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praiavermelha

Revista de Serviço Social


Programa de Pós-Graduação da Escola de Serviço Social

Programa de Pós-Graduação da Escola de Serviço Social


Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
A Revista Praia Vermelha é uma publicação PRAIAVERMELHA
semestral do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Política e Teoria Social
Serviço Social (PPGSS) da Universidade Federal Solicita-se permuta / Exchange desired
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COORDENADOR DE PÓS-GRADUAÇÃO
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Revista On 1ine – ISSN1984 669X
Sumário

A estratégia neoliberal de desenvolvimento capitalista: caráter e contradições


Marcelo Dias Carcanholo
Grasiela Cristina da Cunha Baruco 9

Neoliberalismo e desregulamentação ao capital internacional no


limiar dos anos 1990
Fábio Antonio de Campos 25

Neoliberalismo: apontamentos histórico-econômicos e acirramento de


sua implementação no governo FHC
Carlos Henrique Lopes Rodrigues 43

Redução da desigualdade da renda no governo Lula: análise comparativa


Reinaldo Gonçalves 59

Sindicatos, Neoliberalismo e Estado Social em Portugal (1974-2012)


Raquel Varela
Renato Guedes 71

Pariendo el nuevo: Madres de Plaza de Mayo e a Universidad Popular


Madres de Plaza de Mayo (UPMPM) como estratégia política, no contexto de
crise do neoliberalismo na América Latina
Carlos Eduardo Rebuá Oliveira 89

A privatização da saúde via Organizações Sociais:


a contrarreforma em curso no município do Rio de Janeiro
Vivian de Almeida Mattos 105

Financiamento e heteronomia na pesquisa acadêmica (1950-1990)


Simone Silva
Roberto Leher 121

A ditadura dos empreiteiros: as empresas nacionais de construção pesada,


suas formas associativas e o Estado brasileiro (1964-1985)
Pedro Henrique Pedreira Campos 135
7

Editorial

A organização e o esforço de atualização da e administrativos, em 201l, e, quase igual


Revista Praia Vermelha (RPV) encerra a última período de greve dos técnicos e administrati-
tarefa que desenvolvemos na coordenação do vos, discentes e docentes em 2012. A neces-
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social sidade de lutar contra as políticas regressivas
(PPGSS) da Escola de Serviço Social (ESS) da do que se convencionou denominar neolibera-
UFRJ, cujo mandato iniciou-se a 15 de julho lismo, revitalizou as formas e os instrumentos
de 2010 e finalizou a 17 de outubro de 2012. clássicos de organização da classe trabalhado-
Mas, é preciso reconhecer que este número da ra. Foram eles mesmos, a classe e seus ins-
Revista da Praia Vermelha de nosso programa trumentos de luta, os grandes inimigos do de-
contém a marca da coordenação e equipe edi- nominado neoliberalismo em suas expressões
torial anteriores, na medida em que a temática econômica, política e cultural. Foram, a classe
foi definida na transição das diferentes gestões trabalhadora e seus instrumentos de luta, anun-
do PPGSS. ciados numerosas vezes pelo neoliberalismo,
Sintomático que o número desta revista dis- como ultrapassados, desaparecidos e mortos.
cuta neoliberalismo; tal afirmação explica-se As greves demonstraram que, embora os
porque, feitas as mediações devidas, no próprio momentos de interrupção do trabalho causem
tema – como em uma maldição – encontra-se a transtornos para a vida cotidiana das institui-
determinação principal para o atraso da publi- ções e, no nosso caso, para o programa de pós-
cação da revista, de duas formas importantes: graduação, elas continuam a ser a forma central
1) A Revista Praia Vermelha e o PPGSS de defesa da universidade pública de qualidade
sustentam-se única e exclusivamente da verba e de seus trabalhadores.
PROAP (Programa de Apoio à Pós-graduação) Definido o tema, percorremos um longo ca-
da CAPES. Tais recursos, nem sempre estão dis- minho e um demorado percurso temporal até
poníveis aos programas no momento de início a conclusão deste número da revista. Central-
do calendário letivo e produz-se, então, um des- mente, as muitas demandas postas aos progra-
compasso entre o funcionamento do programa mas pelas agências de fomento podem ser con-
e suas necessidades e a possibilidade de se ter sideradas parte de suas rotinas e prioridades e
os recursos para realizar as atividades da pós- espelham – insistimos – de modo mediatizado,
graduação. Trata-se, para dizer de outro modo, aquilo que em boa hora a revista oportuniza
do debate sobre a alocação do fundo público e discutir: o neoliberalismo.
das prioridades do Estado brasileiro para o de- Neste número, autores conhecidos, do Bra-
senvolvimento da pós-graduação, especialmente sil e de outros países do planeta, oferecem ge-
daqueles programas das denominadas ciências nerosamente a sua contribuição à revista, para
sociais. aprofundarmos o debate crítico em torno de ar-
2) Ao longo destes dois anos e três meses gumentos teórico-práticos experimentados por
de nossa gestão, como forma de resistir aos ata- diferentes governos em diferentes nações.
ques aos direitos dos trabalhadores, as univer- Entretanto, na esteira de um programa de
sidades federais – os seus trabalhadores e dis- pós-graduação que deseja interferir na for-
centes – protagonizaram duas grandes greves. mulação, formação e também deseja oportu-
Cerca de quatro meses de greve dos técnicos nizar espaços de debate com e para a jovem

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 7-8 / Jul-Dez 2011


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intelectualidade comprometida em decifrar a


vida concreta de homens concretos, nesta edi-
ção, novos e densos autores apresentam seus
textos para o debate conceitual e aplicado do
neoliberalismo no Brasil, na América Latina e
em Portugal.
Os artigos problematizam diferentes dimen-
sões da vida social: da desregulamentação do
capital internacional à desigualdade da renda
no governo Lula; da saúde pública em pro-
cesso de privatização à organização dos movi-
mentos sociais; do assalto ao fundo público por
capitais privados ao debate histórico-categorial
do denominado neoliberalismo; dos sindicatos
e políticas sociais em Portugal à estruturação da
pesquisa acadêmica no Brasil; e emprestam ao
leitor um conjunto de referências críticas para
pensar o tempo presente.
Os artigos não se omitem e apresentam e
analisam uma realidade que não pode ser ad-
jetivada de forma alguma como amena. Estes
textos, contudo, não cedem ao pessimismo
pueril e, por isto, constituem importantes con-
tribuições ao programa e ao serviço social bra-
sileiro; (os textos,) mais do que interpretações
do mundo, nos convocam para transformá-lo.

Praia Vermelha (RJ), novembro de 2012.

Coordenação do PPGSS/ESS/UFRJ
(Jul/2010 a Out/2012)

Sara Granemann
Eduardo Vasconcelos
Luis Acosta Acosta

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 7-8 / Jul-Dez 2011


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artiGo

A estratégia neoliberal de desenvolvimento capitalista:


caráter e contradições

Marcelo Dias Carcanholo*


Grasiela Cristina da Cunha Baruco**

Resumo: O presente artigo se propõe a analisar a crise capitalista dos anos 1970, a partir da qual observa-se uma brutal
guinada na condução da política econômica, ou seja, emerge uma nova institucionalidade econômico-inanceira e se
consolida um novo projeto político de sociedade, o neoliberalismo. Para além disso, o objetivo especíico do texto é
demonstrar como o neoliberalismo pareceu ser insuiciente para retomar o ritmo de acumulação de capital – ao menos
nos moldes do período anterior, chamado de “era de ouro” do capitalismo; além de redundar em elevação das taxas de
desemprego e, ao contrário de seu discurso, em aumento dos gastos governamentais. Finalmente, argumenta-se que a
atual crise por que passa a ideologia neoliberal não permite tomá-la como derrotada.

Palavras-chave: Neoliberalismo; Capitalismo; Crises.

Abstract: The aim of this paper is to analyse the economic crisis in the 70´s and the implementation of the neoliberal
policies as a part of the capitalist response. That policies contributes to generate a new economic and inance institu-
tional framework. More speciically, it will be discussed that the neoliberal policies seems to be insuficient to recover
the rhythm of the capital accumulation, at least in the same patterns of the previous period. Additionally, the paper
shows the increases of the unemployment rate and the government expenses as a consequence of those policies, just the
opposite of the neoliberal ideology. Finally, it is argued that the current crisis of this ideology does not allow to take it
as defeated.

Keywords: Neoliberalism; Capitalism; Crisis.

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 9-23 / Jul-Dez 2011


10 A estratégia neoliberal de desenvolvimento capitalista: caráter e contradições

Após a crise dos anos 1970, a validação as características básicas de superacumulação do


das políticas econômicas que garantissem a capital (produção excessiva de capital em todas
retomada do processo de acumulação de capi- as suas formas) e redução das taxas de lucro.
tal no bloco de países capitalistas exigiu uma Mas, o que lhe conferiu especificidade é que, por
concepção de desenvolvimento que disputas- um lado, mesmo após alguns períodos de recu-
se a hegemonia com o keynesianismo – que peração (1976-1977), os níveis de desemprego
havia prevalecido nos anos anteriores, chama- continuaram excessivamente altos, sendo sua
dos de “anos gloriosos” ou “era de ouro” do diminuição pouco significativa. Por outro lado,
capitalismo. Esta nova concepção de desen- a despeito da recessão dos períodos 1968-1975
volvimento inspirada nas teses liberais, a este e 1978-1982, e da queda acentuada dos níveis
“novo liberalismo”, portanto, convencionou- de produtividade, observou-se uma escalada do
se denominar neoliberalismo. O neoliberalis- processo inflacionário.
mo pode ser interpretado como uma das for- Esse período inteiro de crise estrutural se
mas de resposta do capitalismo à sua própria refletiu no plano da teoria social que buscava
crise dos anos 1960/70. entender aquele momento e, como não poderia
Outro aspecto relevante assinala que, diante deixar de ser, no plano da política econômica
dessa nova era neoliberal1, mesmo com alguma que, até aquele momento, se pretendia comple-
– ainda que pífia – recuperação no processo de tamente exitosa no controle dos movimentos
acumulação de capital, isso não se traduz em cíclicos da economia. Essa crise estrutural da
redução das taxas de desemprego e mais, ao economia mundial se refletiu consequentemen-
contrário do que advogam os defensores das te- te em uma crise ideológica e política.
ses neoliberais, fundamentalmente ao fazerem De acordo com a análise de Mendonça
a defesa em favor de um Estado mínimo, o que (1990, p. 64-67), é possível dividir em quatro
se observa é exatamente o contrário, ou seja, o fases o processo de crise da política econômica
neoliberalismo, na prática, não se traduz em re- dos anos 1970. A primeira fase se constituiria
dução dos gastos governamentais, mas implica pela própria eclosão da crise fora das previsões
em redirecionamento dos gastos. dos governos, isto porque, em que pesem os
O que caracteriza a estratégia neoliberal de acontecimentos que a antecederam, sempre se
desenvolvimento, seu resgate da tradição li- acreditava na possibilidade de superação das
beral clássica, assim como sua especificidade adversidades e retorno do processo de expan-
em relação a ela, seu papel na forma histórica são da atividade econômica. No entanto, os
como o capitalismo se reencontra após a crise instrumentos que os governos dispunham para
dos anos 1960/70, e a identificação e afirma- executar esta tarefa, foram progressivamente
ção de estratégias alternativas, é disso que se perdendo sua eficácia, com o que se tornaram
trata a seguir. impotentes diante dos acontecimentos. Uma
segunda fase se caracteriza pelo fato de a re-
Crise estrutural dos anos 1960/70 e a reto- cuperação econômica não ter se desenvolvido
mada do processo de acumulação de capital no padrão esperado, ou seja, os ritmos de cres-
cimento/desenvolvimento, a inflação e o de-
Ao contrário do que se costuma acreditar, a semprego não retornaram aos níveis anteriores
última grande crise estrutural do capitalismo não à crise. Essa tímida recuperação acabaria por
teve início com a supressão unilateral da conver- precipitar um novo refluxo da crise em 1980-
sibilidade dólar-ouro pelos Estados Unidos em 1982, ao qual os governos assistiriam nova-
1971, ou com a explosão dos preços do petróleo mente impotentes – a terceira fase. Por fim, a
a partir do final de 1973. Na verdade, estes foram quarta e última fase é constituída pela perda
alguns sintomas da crise que já se mostrava des- absoluta de eficácia dos instrumentos de po-
de o final dos anos 19602. Essa crise apresentou lítica econômica que haviam prevalecido nos

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Marcelo Dias Carcanholo, Grasiela Cristina da Cunha Baruco 11

anos anteriores, de forma que se abre o cami- capitalismo à produção de um exército indus-
nho para a crise da teoria econômica que a ins- trial de reserva, que lhe permite reconstruir ba-
pira, de filiação keynesiana. ses para um novo processo de acumulação do
Conclui-se então que a crise econômica, a capital, em função da elevação da taxa de mais-
crise da política econômica e a crise da teoria valia e lucro que lhe segue.
econômica são processos complexos e intima- Adicionalmente, a valorização do capital ex-
mente relacionados. A resposta do capitalismo cedente, que já não mais conseguia expandir-se
à sua crise estrutural dos anos 1960/70, portan- na esfera produtiva, através da produção cres-
to, deveria passar por uma reconstrução econô- cente de mercadorias, necessitava de uma esfera
mica, ideológica e política. A esse conjunto de alternativa de valorização. A valorização finan-
transformações que o capitalismo conheceu nas ceira cumpriria a contento este papel, com o que
décadas de 1960-1970 e que se estendeu para as não se deve atribuir ao acaso o aprofundamento
décadas seguintes, convencionou-se denominar dos processos de desregulamentação, abertura e
globalização3, ou neoliberalismo4. internacionalização das finanças que acontece-
No que tange à reposição da lucratividade, ram nesse momento histórico específico.
procurou-se, em primeiro lugar, construir um A crise do capitalismo nos anos 1970 repre-
discurso e uma prática associada de redução sentou uma enorme massa de capital, sob várias
dos custos salariais, elevados em alguma me- formas (dinheiro, produtivo e mercadorias), so-
dida devido às conquistas trabalhistas obtidas brante, acumulado em excesso frente à valori-
com os Estados de bem-estar social (Welfare zação requerida, ou superacumulado6. O capital
States). Com isso ampliou-se a pressão por des- sobrante encontrou nos mercados financeiros
regulamentação e flexibilização dos mercados, liberalizados um espaço de valorização que
especialmente do mercado de trabalho5. Em se- contribuiu para a retomada da acumulação de
gundo lugar, a recomposição dos lucros deman- capital. Trata-se, portanto, de um instrumento
dou a redução da tributação sobre os rendimen- do processo de restauração do capital no pós-
tos que poderiam financiar os investimentos, ou crise de 1970.
seja, sobre os lucros. Desenvolveu-se também Os processos acima mencionados, de finan-
um processo de reestruturação produtiva, por ceirização da riqueza e reestruturação produti-
meio de “novas tecnologias, que permitem uma va, são respaldados e aprofundados na medida
produção mais flexível capaz de satisfazer as em que se constitui uma estrutura ideológica e,
novas exigências do mercado e, assim, criar na sequência, político-econômica, que os su-
condições para que a oferta de bens e serviços porta. Esta estrutura ideológica, uma refuncio-
possa acompanhar as mudanças de hábitos no nalização das clássicas teses liberais, dadas as
consumo” (Teixeira, 1996, p. 214). novas e significativas alterações no capitalismo
A reestruturação produtiva, associada à des- contemporâneo, é justamente o neoliberalismo.
centralização e internacionalização produtiva Assim, a validação de novas políticas eco-
é essencial para o capital, na medida em que nômicas que garantissem a retomada do proces-
incorpora novas formas de valorização, com so de acumulação de capital no bloco de países
ofensivas ainda maiores sobre o mundo do tra- capitalistas, após a crise dos anos 1970, exigiu
balho, especialmente dos países periféricos. uma concepção de desenvolvimento que dispu-
Para isso, contribui de forma dramática a “in- tasse a hegemonia com o keynesianismo. A esta
corporação à produção de tecnologias resultan- nova concepção de desenvolvimento, inspirada
tes de avanços técnico-científicos, determinan- nas teses liberais, portanto a este “novo libe-
do um desenvolvimento das forças produtivas ralismo”, convencionou-se denominar neolibe-
que reduz enormemente a demanda de trabalho ralismo. Desta forma, o neoliberalismo apre-
vivo” (Netto; Braz, 2007, p. 215-216). Esse sentou-se como uma das formas de resposta do
processo visivelmente acentuou a tendência do capitalismo à sua própria crise dos anos 1970.

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12 A estratégia neoliberal de desenvolvimento capitalista: caráter e contradições

O renascimento do liberalismo e sua especi- teóricas em defesa da constituição de um Es-


icidade contemporânea tado no qual a autoridade deveria ser exercida
nas formas do direito e com garantias jurídicas
Diferentemente do que se possa pensar, o preestabelecidas. Este Estado teria como fun-
neoliberalismo não se define no nível de abstra- ção precípua e específica o estabelecimento de
ção da política econômica, isto é, não é porque um estado jurídico, no qual imperasse a liber-
as políticas monetária, fiscal e/ou cambial apre- dade individual, segundo um conjunto de leis
sentam uma determinada característica (mais (Teixeira, 1996, p. 197-198). Note-se que a de-
ortodoxa ou heterodoxa) que se define uma fesa em favor da limitação das ações do Estado
ideologia neoliberal ou antineoliberal. O neoli- se justifica pela necessidade de coibir os abusos
beralismo constitui uma estratégia de desenvol- do poder estatal, ou seja, defende-se a constru-
vimento capitalista, uma proposta de retomada ção do chamado Estado de Direito.
estrutural do processo de acumulação de capital. A influência das ideias liberais no pensa-
Ainda que essa ideologia tenha se constituído mento econômico é comumente identificada
antes, na prática, sua afirmação hegemônica e como tendo início com a publicação de A Rique-
sua implementação são justamente a coloração za das Nações, de Adam Smith (1723-1790),
ideológica do pós-crise dos anos 1960/70. um dos mais importantes teóricos da economia
A estratégia neoliberal de desenvolvimento clássica. A publicação de seu livro, em 1776,
pode ser entendida a partir de três componen- coincide com a Revolução Industrial e satisfa-
tes: (1) a estabilização macroeconômica (con- zia aos interesses de uma nova classe social em
trole inflacionário e das contas públicas) é uma ascensão, a burguesia, que procurava se conso-
precondição; (2) reformas estruturais pró-mer- lidar no espaço político-ideológico da época. A
cado são necessárias para construir um ambien- arguição defendida por Smith foi posteriormen-
te econômico que promova a livre iniciativa e te desenvolvida por aquele que é considerado
os investimentos privados; (3) retomada dos seu sucessor, David Ricardo (1772-1823).
investimentos privados garantem um novo pro- É a partir dessa matriz que a influên-
cesso de crescimento/desenvolvimento da eco- cia das ideias liberais na teoria econômi-
nomia. De fato, a estabilização macroeconômi- ca irá desdobrar-se em dois grandes prin-
ca é um pré-requisito, mas não exige nenhum cípios. O primeiro afirma que, dado que a
tipo específico (ortodoxia ou heterodoxia) de busca do lucro e o interesse próprio são in-
política econômica; o que se requer é o controle clinações fundamentais da natureza humana,
dos preços e dos gastos públicos, pois isto seria o resultado da somatória individual seria a
uma pré-condição para o segundo componente. coordenação harmônica das ações humanas
As reformas estruturais de mercado, com libe- e, consequentemente (consequentemente), do
ralização, desregulamentação e abertura dos próprio sistema. Isto significa admitir a exis-
mercados (sobretudo os de trabalho e finan- tência de leis econômicas que funcionem de
ceiros), amplos programas de privatização etc. forma automática e autônoma, sempre enca-
construiriam o marco estrutural (economia de minhando o sistema para uma ordem social
mercado sem intervenções) que, em função da harmônica. O segundo princípio garante que o
atuação da mão-invisivel do mercado, promo- mundo seria mais racional, eficiente, produtivo
veriam a ordem natural harmônica. e justo se nele imperasse a livre iniciawtiva, ou
seja, se as atitudes econômicas dos indivíduos
Liberalismo clássico e sua manifestação e suas relações não fossem limitadas pelas re-
neoliberal gulamentações emanadas do Estado. Assim, as
atribuições do Estado deveriam ser limitadas,
Em sua forma histórica original, o libera- fundamentalmente, à garantia da propriedade
lismo nasce como um corpo de formulações privada e dos contratos, à segurança interna e

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 9-23 / Jul-Dez 2011


Marcelo Dias Carcanholo, Grasiela Cristina da Cunha Baruco 13

externa e aos serviços essenciais de utilidade 1996, p. 210). Assim, o Estado mínimo no sé-
pública (Moraes, 2001, p. 13-23). culo XIX passa a ser identificado como uma
Nesse sentido, é possível apontar cinco pre- forma de propiciar a constituição e livre fun-
missas da tradição clássica do liberalismo (sé- cionamento do mercado.
culos XVII e XVIII) que são resgatadas pelo Em sua obra A Grande Transformação,
neoliberalismo. É isto, inclusive, o que permite Polanyi (2000, p. 59) afirma que o liberalismo
ao último ser chamado de liberalismo. Em pri- clássico, nascido como mera propensão em fa-
meiro lugar, a tradição liberal assume que os vor de métodos não burocráticos, evoluiu para
agentes individuais tomam decisões visando uma fé verdadeira na salvação secular do ho-
unicamente o interesse próprio (egoisticamen- mem por meio de um mercado autor-regulável,
te), e as ações decorrentes de tais decisões são ou seja, a defesa em favor do não intervencio-
o produto de decisões racionais. Uma segunda nismo que, supostamente, encaminharia o sis-
premissa assume que todas as interações econô- tema para uma ordem natural harmônica. Em
micas entre os indivíduos só podem ser explica- sendo assim, o liberalismo torna-se o princípio
das pelas atitudes individuais, egoístas, com o organizador de uma sociedade engajada na cria-
que a sociedade é entendida como o somatório ção de uma economia de mercado. “Uma eco-
das ações individuais racionais. De acordo com nomia de mercado significa um sistema autor-
a terceira premissa, são estas ações individuais regulável de mercados; em termos ligeiramente
que levam ao bem-estar geral, dado que fazem mais técnicos, é uma economia dirigida pelos
parte de uma ordem natural harmônica. Esta preços do mercado e nada além dos preços do
ordem natural é garantida pelo funcionamento mercado. Tal sistema, capaz de organizar a to-
do mercado, que conseguiria direcionar os in- talidade da vida econômica sem qualquer ajuda
teresses particulares rumo ao ótimo social – a ou interferência externa, certamente mereceria
quarta premissa. De tal modo, qualquer inter- ser chamado autorregulável”.
venção nesse mercado impediria o funciona- No desenvolvimento de sua obra, Polanyi
mento natural da sociedade, ou seja, o alcance busca, com sucesso, desmistificar o caráter
da ordem natural harmônica, esta é a última natural e eterno que o liberalismo econômico
premissa. Desdobra-se dessa premissa a defesa atribui ao mercado, demonstrando então que a
de um Estado não interventor, que se limitasse constituição de um sistema de mercado, supos-
apenas a guardar pela liberdade de ação indivi- tamente autorregulável, exigiu um intervencio-
dual e pelo adequado funcionamento do estado nismo estatal contínuo, controlado e organiza-
natural da sociedade. do de forma centralizada, o que significa dizer
Ainda com relação àquela última premissa, que foi imposto pelo Estado. Destarte, não ha-
pode-se afirmar que a concepção de um Esta- via nada natural em relação à constituição dos
do não interventor, comumente denominado mercados livres, pois eles foram constituídos
de Estado mínimo, nos moldes do liberalismo com a ajuda das tarifas protetoras, de exporta-
clássico dos séculos XVII e XVIII, era de um ções subvencionadas e de subsídios indiretos
Estado que prezasse pelos direitos naturais do dos salários, o próprio mercado livre foi impos-
homem. No século XIX, momento em que se to pelo Estado.
observa a aproximação do pensamento liberal Em sendo assim, sistema de mercado e inter-
de correntes conservadoras, o programa liberal venção não são mutuamente excludentes, dado
encontraria condições favoráveis para sua efeti- que, enquanto esse sistema não é estabelecido,
va realização, isso porque, para se implementar, os liberais irão demandar a intervenção estatal a
pressupunha uma sociedade na qual a produção fim de constituí-lo e, uma vez constituído, a fim
de mercadorias houvesse se tornado a relação de mantê-lo. “O liberalismo econômico pode,
social dominante, o que implicava na necessi- portanto, sem qualquer contradição, pedir que o
dade de constituição dos mercados (Teixeira, estado use a força da lei; pode até mesmo apelar

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14 A estratégia neoliberal de desenvolvimento capitalista: caráter e contradições

para as forças violentas da guerra civil a fim de 1999, p. 125-126), essa perda de autonomia não
organizar as precondições de um mercado au- deve ser correlacionada a um suposto declínio
torregulável” (Polanyi, 2000, p. 152-153). do papel do Estado, ou seja, não se trata de um
Como então se justifica a defesa pela cons- Estado menos interventor ou Estado “mínimo”.
tituição de um Estado mínimo? O papel que O que se altera, de forma acentuada, nas últi-
se atribui ao Estado no liberalismo clássico é mas décadas, é o padrão dos gastos estatais,
o de um Estado mínimo que deveria garantir a agora muito mais centrado na esfera financeiro-
liberdade individual, mas não por uma relação fictícia em detrimento de políticas públicas de
entre governo e governados, mas sim através caráter universalizante. Ou seja, sempre se trata
do pacto social, estabelecido pelos indivíduos, de um Estado interventor, a questão relevante
que prezasse pelos direitos naturais do homem, passa a ser então: comprometido com o quê?
dentre eles e fundamentalmente o direito à pro- Trata-se, isto sim, de um Estado compro-
priedade. O Estado “funcionaria como um ár- metido com a valorização capitalista financei-
bitro reconhecido e imparcial que administra- ro-fictícia e, para que isso seja possível, a res-
ria os possíveis conflitos entre indivíduos que tauração do capital exigiu, nos termos de Sader
poderiam advir do funcionamento do estado (1999), um Estado “mini-max”, mínimo para o
natural”. Já o novo liberalismo que passa a pre- trabalho e máximo para o capital. Ao afirmar
valecer após a crise capitalista dos anos 1970, uma suposta necessidade de redução do tama-
o neoliberalismo, prega o Estado mínimo como nho do Estado, o ataque do grande capital se
uma forma de propiciar o livre funcionamento dirige, na verdade, contra as dimensões demo-
do mercado. No entanto, é necessária a efetiva cráticas da intervenção do Estado na economia,
presença estatal, um Estado forte, para que se fundamentalmente suas dimensões coesivas.
constitua o Estado mínimo. Para além do papel que se atribui ao Esta-
Nesse sentido, as funções do Estado, prin- do, existem outras importantes diferenças entre
cipalmente após a crise dos anos 1970, passam o liberalismo clássico e o neoliberalismo8, e é
a ser, essencialmente, a de desmontar as con- isto o que exige uma nova nomenclatura para a
quistas sociais dos Welfare States, o que requer, ideologia liberal contemporânea. Em primeiro
como mencionado anteriormente, o uso da for- lugar, o liberalismo clássico possuía um caráter
ça, ainda que esporadicamente, para controlar mais progressista, de combate à aristocracia e
os conflitos resultantes. Nesse caso, a presença de luta contra os privilégios da nobreza e dos
de um Estado forte se explica, primeiro, pela di- direitos feudais. O neoliberalismo se consolida
mensão que os Welfare States haviam alcança- como uma opção de desenvolvimento alter-
do, o que exigiria um Estado forte o suficiente nativa ao keynesianismo, acusando-o de ser o
para desregulamentá-los e reformá-los. Em se- responsável pela crise dos anos 1970, e defen-
gundo lugar, como toda a sociedade deverá ser dendo a volta de uma suposta “ordem estabele-
submetida à lógica do mercado, o Estado forte cida” antes da adoção dessas políticas, na qual,
também deverá cumprir a função de garantir a afirmam seus defensores, prevaleceria a con-
disseminação dessa lógica por toda a sociedade. corrência perfeita e a democracia. O neolibe-
Ainda que um dos principais resultados da ralismo, por extensão, possui um caráter muito
adoção do receituário de políticas neoliberais mais conservador.
seja uma menor capacidade dos Estados nacio- Em segundo lugar, o neoliberalismo aban-
nais em formular e conduzir suas políticas “au- dona o campo meramente ideológico e funda-
tonomamente”7, isto é, “o espaço nacional efe- menta um projeto político de sociedade, a “so-
tivamente se debilitou, mesmo que limitemos a ciedade de mercado”, ou seja, o neoliberalismo
globalização a uma universalização do capital se torna hegemônico não somente em termos
financeiro tão-somente, acompanhada de polí- teóricos e ideológicos, mas também sob a for-
ticas dirigidas de desregulamentação” (Sader, ma de políticas econômicas e mais, diante das

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Marcelo Dias Carcanholo, Grasiela Cristina da Cunha Baruco 15

transformações mundiais ocorridas no pós- 1973), Uruguai (1974) e Argentina (1976). A


1970, o neoliberalismo passa a ser entendido necessidade de garantir a expansão dos mer-
como suposta “vitória histórica do capitalis- cados, a profunda deterioração da situação
mo”, uma demonstração histórica da adequa- política, somadas à necessidade de reverter as
ção e superioridade do mercado – uma unilate- tendências igualitárias que começavam a se
ralidade que se refletiu no que se convencionou conformar na região, levaram ao florescimen-
chamar de pensamento único, ou TINA (there to dos regimes ditatoriais, característicos desse
is no alternative). período. Assim, as primeiras experiências neo-
Em outra diferença importante, o liberalis- liberais na região latino-americana ocorreram
mo clássico era fundamentalmente filosófico e em concomitância com a implementação de re-
político e sua concepção de economia deriva- gimes militares ditatoriais.
va de uma filosofia moral mais complexa. Os O fracasso dessas experiências da década
fundamentos filosóficos do liberalismo clássico de 1970 e das políticas ortodoxas de estabiliza-
estão dados pela filosófica dos direitos naturais, ção dos anos 198010 foi interpretado pela visão
o que significa que o ser humano, com base neoliberal como sendo consequência de dese-
em sua natureza, possui determinados tipos de quilíbrios ou distorções, que impediriam o livre
comportamento moral. O chamado homem eco- funcionamento da economia de mercado. Estas
nômico seria uma consequência da natureza hu- distorções (déficits fiscais crônicos, mercado
mana. Já no neoliberalismo as esferas políticas de bens e de trabalho regulamentados, mecanis-
e sociais são reflexos da economia. O compor- mos de indexação salarial, desregulamentação
tamento econômico maximizador do individuo, financeira sem aparato de fiscalização e erro
que em sua escolha racional otimizadora aplica na sequência da abertura externa) seriam muito
análises de custo-benefício, é que determina o mais efeitos dos erros de implementação do que
comportamento do ser humano nas outras esfe- da natureza das próprias políticas propostas.
ras, social, política etc. Como forma de fornecer subsídio para os
Por outro lado, se antes, no liberalismo clás- policy makers dos países latino-americanos, foi
sico, os valores fundamentais do homem eram realizada em 1989 uma reunião entre membros
a razão e a liberdade, além do que, com maior dos organismos internacionais financeiros, fun-
clareza em autores como Rousseau, liberdade e cionários do governo americano e economistas
igualdade, ao menos no plano mais formal, ju- desses países. Suas conclusões ficaram conhe-
rídico, fossem quase que inseparáveis, no neo- cidas como o Consenso de Washington11. A na-
liberalismo a liberdade passa a se subordinar tureza das propostas se traduz na ideia de que
aos ditames da economia9. Mais precisamente, a estabilização deve vir necessariamente acom-
no neoliberalismo a desigualdade passa a ser um panhada de reformas12. Dentre as propostas,
valor, algo desejável, no sentido de que, do ponto tem-se a disciplina fiscal, que visaria a obten-
de vista econômico, a desigualdade como meta é ção de um superávit primário e de um déficit
o que dá sentido à busca por produtividade e efi- operacional de no máximo 2% do PIB. Outra
ciência, enquanto que, do ponto de vista moral, o proposta seria a manutenção de uma discipli-
incentivo ao esforço pessoal só teria sentido com na monetária e a desregulamentação financeira
a desigualdade, ou melhor, a diferenciação social interna para liberalizar o financiamento, com
seria o prêmio por aquele primeiro. o objetivo final de obter uma determinação da
taxa de juros via mercado, mas com uma taxa
Etapas do pensamento neoliberal real moderada. No que se refere à taxa de câm-
bio, ela deveria ser unificada em cada país e fi-
Deve-se ressaltar que a América Latina foi xada em um nível competitivo, mas aceitando
pioneira na implementação das políticas neo- alguma sobrevalorização momentânea como
liberais, como é o caso do Chile (a partir de componente de programas de estabilização

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16 A estratégia neoliberal de desenvolvimento capitalista: caráter e contradições

(Batista, 1994). No front externo, deveriam ser assim, as ideias keynesianas gozavam de gran-
promovidas a liberalização comercial e finan- de prestígio. Portanto, as críticas de Hayek não
ceira, como forma de aumentar a concorrência tiveram grande impacto naquele momento, mas
interna, mobilizar a poupança externa e reduzir seus discípulos (da chamada Escola Austríaca)
o risco de políticas locais inadequadas, dada a carregaram consigo os ensinamentos do autor14.
perda de autonomia da política econômica. A O segundo momento tem início nos anos
privatização das estatais e a desregulamentação 1960, quando seguidores das ideias de Hayek
dos mercados de bens e de trabalho completa- e também Milton Friedman, começaram a con-
riam o Consenso de Washington, na medida em quistar espaço acadêmico. Nos anos que se
que acentuariam o papel do mercado na eco- seguiram, a produção destes teóricos se torna
nomia, ajudando a elevar o grau de competiti- hegemônica nos meios acadêmicos norte-a-
vidade e a gerar empregos de alta qualidade. A mericanos e os economistas formados nessa
primeira ainda é defendida como uma forma de tradição assumiriam posições de destaque em
saldar ou diminuir a dívida pública13. diversos países – inclusive na América Latina,
Como reconheceu o próprio responsável implementando, por exemplo, vários dos planos
pelo termo Consenso de Washington, os obje- de estabilização das décadas de 1980 e 1990.
tivos destas propostas são claramente a drás- A terceira fase do neoliberalismo tem início
tica redução do Estado e a abertura total e ir- quando se passa do plano teórico para o campo
restrita dos mercados, o que evidencia o seu político, emblematicamente concretizado com
caráter neoliberal (Williamson, 1992, p. 45). a chegada ao governo de Margareth Thatcher
O Consenso de Washington seria, assim, a na Inglaterra (1979), Ronald Reagan nos Esta-
institucionalização da estratégia neoliberal de dos Unidos (1980) e Helmut Kohl na Alema-
desenvolvimento após sua afirmação hegemô- nha (1982). É nesse momento que as ideias e
nica nos anos 1990. Mas essa estratégia não as práticas políticas neoliberais são incorpora-
nasceu ali. das pelo Fundo Monetário Internacional (FMI)
Como se viu, o neoliberalismo se consoli- e Banco Mundial e implementadas nos países
da e assume um papel hegemônico dentro do que recorrem a estas instituições, em especial
contexto de retomada do processo de acumu- os países periféricos, como é o caso de vários
lação do capital, após a última crise estrutural latino-americanos. Já no final dos anos 1980
do capitalismo, nos anos 1960/70. Entretanto, tem início a quarta etapa, pois diante da crise
enquanto um corpo ideológico e teórico, ele é do bloco de países socialistas, as ideias neo-
anterior a isso e, mesmo após a referida crise, liberais, completamente opostas a estas, avan-
ele assume outras formas de manifestação. É çam sobremaneira15.
possível, assim, identificar etapas históricas do A partir da leitura de Sader (2009) é possível
pensamento neoliberal. incluir aqui uma quinta e última etapa do neoli-
A primeira etapa se inicia no pós-Segun- beralismo, o de sua atual crise, ainda que não se
da Guerra, quando Hayek (1977) expõe seu trate de uma derrota, mas que existe como tal.
pensamento no livro O Caminho da Servidão, Essa crise se deve, em primeiro lugar, à inca-
uma crítica à intervenção estatal de tipo majo- pacidade das políticas neoliberais em oferecer
ritariamente keynesiano. É importante lembrar os resultados prometidos, fundamentalmente, a
que, embora seja quase consensual entre os in- retomada do crescimento econômico com dis-
térpretes do período 1945 – meados de 1970, a tribuição de renda. Em segundo lugar, a atual
influência da teoria keynesiana na construção crise estrutural por que passa a economia ca-
dos fundamentos da intervenção do Estado na pitalista mundial também é creditada à imple-
economia naquele momento, o mesmo não se mentação das políticas de desregulamentação
pode dizer acerca da influência concreta des- e liberalização dos mercados financeiros, que
sas ideias na prosperidade econômica. Mesmo potencializou a atuação da lógica especulativa

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Marcelo Dias Carcanholo, Grasiela Cristina da Cunha Baruco 17

dos capitais fictícios nesses mercados e se des- à crise dos anos 1970 foi insuficiente para re-
dobrou na atual faceta financeira da crise es- tomar o ritmo de acumulação de capital alcan-
trutural que se vive neste século XXI. Assim, çado durante os “anos gloriosos” ou “era de
esta quinta etapa do neoliberalismo pode ser ouro” do capitalismo mundial.
definida como de crise, no sentido que as con- A Tabela 1 demonstra que a implementação
tradições entre o seu discurso, a prática que das políticas neoliberais não conseguiu atingir
lhe decorreu e as consequências concretas da o seu objetivo de recuperar o ritmo da acumu-
aplicação da estratégia neoliberal de desenvol- lação de capital, ao menos para os padrões an-
vimento são explicitadas. teriores, nem para os países centrais, nem tam-
pouco para os países periféricos.
As contradições da resposta neoliberal Durante o período dos “anos gloriosos”
(1950-1973), a economia mundial cresceu, em
As últimas décadas do século XX, mais es- média, 4,91% ao ano, enquanto que no perío-
pecificamente os anos que se seguem à crise da do entre 1973 e 1998 essa taxa se reduz para
década de setenta, conheceram a hegemonia 3,01%. A Europa Ocidental tem a sua taxa
desse pensamento liberal em termos teóricos e média de crescimento reduzida de 4,81% no
ideológicos e também sob a forma de políticas primeiro período para 2,11% no segundo. Os
econômicas. No entanto, a resposta neoliberal Estados Unidos, por sua vez, passam de 3,93%

Tabela 1. Crescimento do PIB per capita e PIB: regiões, países e mundo – 1913-1998
(composição das taxas médias anuais – dados selecionados)
1870-1913 1950-1973 1973-1998
1913-1950
(Ordem Liberal) (Era de Ouro) (Ordem Neoliberal)

PIB per capita


Europa Ocidental 1,32 0,76 4,08 1,78
Países do hemisfério ocidental 1,81 1,55 2,44 1,94
Japão 1,48 0,89 8,05 2,34
Ásia (excluindo o Japão) ,038 -0,02 2,92 3,54
América Latina 1,81 1,42 2,52 0,99
Leste Europeu e antiga URSS 1,15 1,50 3,49 -1,10
África 0,64 1,02 2,07 0,01
Mundo 1,30 0,91 2,93 1,33
PIB
Europa Ocidental 2,10 1,19 4,81 2,11
Países do hemisfério ocidental 3,92 2,81 4,03 2,98
Japão 2,44 2,21 9,29 2,97
Ásia (excluindo o Japão) 0,94 0,90 5,18 5,46
América Latina 3,48 3,43 5,33 3,02
Leste Europeu e antiga URSS 2,37 1,84 4,84 -0,56
África 1,40 2,69 4,45 2,74
Mundo 2,11 1,85 4,91 3,01

Fonte: Maddison (2001, p. 126)

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18 A estratégia neoliberal de desenvolvimento capitalista: caráter e contradições

Tabela 2. Nível de desemprego nos países capitalistas avançados – 1950-1998


(como porcentagem da força de trabalho)
1950-1973 1974-1983 1984-1993 1994-1998
Bélgica 3,0 8,2 8,8 9,7
Finlândia 1,7 4,7 6,9 14,2
França 2,0 5,7 10,0 12,1
Alemanha 2,5 4,1 6,2 9,0
Itália 5,5 7,2 9,3 11,9
Países Baixos 2,2 7,3 7,3 5,9
Noruega 1,9 2,1 4,1 4,6
Suécia 1,8 2,3 3,4 9,2
Reino Unido 2,8 7,0 9,7 8,0
Irlanda - 8,8 15,6 11,2
Espanha 2,9 9,1 19,4 21,8
Média 2,6 6,0 9,2 10,7

Austrália 2,1 5,9 8,5 8,6


Canadá 4,7 8,1 9,7 9,4
Estados Unidos 4,6 7,4 6,7 5,3
Média 3,8 7,1 8,3 7,8

Japão 1,6 2,1 2,3 3,4


Fonte: Maddison (2001, p. 134)

para 2,99%, a América Latina de 5,33% para inferior aos pouco mais de 4% da época em
3,02% e a África de 4,45% para 2,74%. No que que prevalecia o modelo de desenvolvimento
se refere às taxas médias de crescimento per por substituição de importações. A Argentina,
capita, o período entre 1950 e 1973 apresenta por sua vez, implementa a estratégia neolibe-
taxas médias muito superiores às do período ral a partir de 1976. Se observarmos o período
1973-1998, de hegemonia neoliberal. 1976-1983 a sua economia cresce, em média, a
Poder-se-ia argumentar que a inclusão dos apenas 0,5%.
anos 1970, dentro do período 1973-1998, com- Os dados da Tabela 1 permitem uma com-
prometeria os resultados, uma vez que esses paração mais interessante no sentido de que
anos conformam um período de retração cí- são confrontados três períodos: 1870-1913
clica, afetando o valor médio para o período. (hegemonia liberal), 1950-1973 (“anos glo-
Entretanto, é justamente nos anos 1970 que a riosos”) e 1973-1998 (hegemonia neoliberal).
hegemonia neoliberal, do ponto de vista prin- Tanto no que se refere ao crescimento do PIB,
cipalmente teórico, passa a se constituir. Além como em relação ao PIB per capita, os dois pe-
disso, a implementação efetiva de suas políticas ríodos de hegemonia liberal, tanto o clássico
já ocorre nessa década nos países do cone sul como o neoliberal, apresentam taxas médias
americano. O Chile, país pioneiro a aplicar a es- de crescimento inferiores ao período 1950-
tratégia neoliberal, depois do golpe militar em 1973, isto é, toda a argumentação ortodoxa
1973, obteve uma taxa média de crescimento, a respeito das vantagens de uma economia
no período 1973-1982 de apenas 1,9%, muito pró-mercado, desregulamentada e com pouca

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Marcelo Dias Carcanholo, Grasiela Cristina da Cunha Baruco 19

intervenção estatal, é desmentida pelos fatos, Ademais, a implementação do receituário de


ao menos no que se refere ao ritmo de acumu- políticas neoliberais, ao contrário do que advo-
lação de capital. gam seus defensores, não se traduz em redução
Outro aspecto bastante relevante é a ques- dos gastos governamentais, que são ampliados
tão do desemprego, pois, mesmo com alguma em termos do PIB, e redirecionados, dado que
recuperação conjuntural, isso não se traduz em estão agora comprometidos, em sua grande
redução das taxas de desemprego, como mos- maioria, com o pagamento dos juros de dívida e
tra a Tabela 2 para os países avançados. O que com a circulação financeira. A Tabela 3 confirma
se nota é que, com poucas exceções, as taxas isso. Considerando França, Alemanha, Países
de desemprego são crescentes, considerando Baixos e Reino Unido, a participação dos gastos
os períodos 1950-1973, 1974-1983, 1984-1993 governamentais em relação ao PIB passa de 12%
e 1994-1998. Em média, para esses países a em 1913 para 29,8% em 1950 e 45,9% em 1999.
taxa de desemprego média evolui de 3,8% para Para os Estados Unidos, essa participação sai de
7,1%, 8,3% e 7,8%. 21,4% em 1950 para 30,1% em 1999.
Esse processo traduz a incapacidade do ca- Assim, ao contrário do discurso ideológico
pitalismo contemporâneo em incluir a força de do Estado mínimo, a efetiva implementação
trabalho nos momentos de alguma retomada do das políticas neoliberais levou ao aumento da
ritmo de acumulação. Isso ocorre em razão de participação dos gastos governamentais como
outro componente da resposta capitalista à sua proporção do PIB. A questão científica rele-
crise dos anos 1970, o processo de reestrutura- vante que daí decorre é que, se a participação
ção produtiva, que inclui o aumento da rotação do Estado aumentou, e ocorreu uma efetiva
do capital e o progresso técnico poupador de redução dos gastos em setores antes compro-
mão-de-obra, o que redunda, para a força de metidos com algum tipo de Welfare State, para
trabalho que consegue ser aproveitada no pro- onde foram direcionados esses gastos maio-
cesso produtivo, em intensificação do trabalho, res? Nessa discussão que relaciona o cresci-
prolongamento da jornada de trabalho – ainda mento da dívida pública com a mundialização
que sob formas implícitas, como o segundo e/ financeira e o capital fictício (capital financei-
ou terceiro empregos, necessários para manter ro, ou financeirizado, segundo algumas pers-
o poder aquisitivo anterior – e a menor partici- pectivas teóricas) o discurso neoliberal não se
pação salarial na renda produzida16. sente tão à vontade17.

Tabela 3. Total dos gastos governamentais como porcentagem do PIB – Europa Ocidental,
Estados Unidos e Japão, 1913-1999.
(composição das taxas médias anuais – dados selecionados)

1913 1938 1950 1973 1999


França 8,9 23,2 27,6 38,8 52,4
Alemanha 17,7 42,4 30,4 42,0 47,6
*
Países Baixos 8,2 21,7 26,8 45,5 43,8
Reino Unido 13,3 28,8 34,2 41,5 39,7
Média Aritmética 12,0 29,0 29,8 42,0 45,9

Estados Unidos 8,0 19,8 21,4 31,1 30,1


Japão 14,2 30,3 19,8 22,9 38,1
Fonte: Maddison (2001, p. 135)
*
1910

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20 A estratégia neoliberal de desenvolvimento capitalista: caráter e contradições

O neoliberalismo está em crise, mas organizações multilaterais, da intensificação


não morreu dos processos de liberalização e desregula-
mentação dos mercados de trabalho, privatiza-
Como visto, a atual fase crítica por que ção, processos de ajuste fiscal com a redução
passa a hegemonia neoliberal se manifesta na dos gastos sociais, tanto nos países centrais,
inadequação de seu discurso com a manifesta- como nos periféricos, não é de surpreender.
ção concreta-real dos efeitos de suas políticas. O primeiro elemento, simplesmente, sig-
A atual crise estrutural do capitalismo é vista nifica que os recursos públicos centralizados
por uma ampla maioria de teorias como uma no Estado devem ser crescente e majoritaria-
consequência das políticas de desregulamenta- mente destinados para garantir uma susten-
ção e liberalização dos mercados financeiros, tação de demanda para os chamados ativos
o que tenderia a desacreditar o neoliberalismo podres, permitindo que eles mantenham de
como uma real alternativa de desenvolvimento alguma forma suas cotações nos mercados fi-
para este pós-crise, mesmo desde um ponto de nanceiros. Mas, do ponto de vista do Estado,
vista capitalista. que adquire esses papéis (e/ou lhes dá garan-
Entretanto, a questão não é tão simples. tia), a implicação é o crescimento substan-
A atual crise estrutural do capitalismo tem cial da dívida pública. Aliás, esta atual fase
sua manifestação majoritária na superacumu- da crise do capitalismo não está separada da
lação de capital fictício, de forma que uma crise de 2007/2008. Ao contrário, a manifes-
enorme massa de capital que se especializou tação atual da crise das dívidas soberanas (pú-
na mera apropriação financeira, sem partici- blicas), basicamente na zona do euro, é uma
pação direta na produção da mais-valia, ao consequência não só da forma como o capita-
requerer sua participação nesta última, expli- lismo procurou “sair” da crise de 2007/2008,
citou a desproporção entre os processos de mas da manutenção da característica do Es-
produção e apropriação da mais-valia. A saí- tado (longe de ser mínimo!) no capitalismo
da tradicional que a economia capitalista tem contemporâneo, neoliberal.
para sanar esses momentos de crise é a des- Aprofundamento das reformas neoliberais,
valorização da massa de valor-capital supera- ainda que se mantenha o discurso por uma
cumulado, o que, na atualidade, implicaria na maior (re) regulamentação do mercado finan-
quebra de grande parte das instituições finan- ceiro, e garantias estatais para a valorização
ceiras envolvidas nos mercados financeiros. meramente financeira do capital fictício, essa é
Em função da conformação do bloco de po- a forma que o capitalismo está construindo para
der no capitalismo mundial, essa alternativa a saída desta nova crise estrutural. O neolibera-
está, evidentemente, excluída. lismo morreu?
Sendo assim, só resta uma alternativa, do
ponto de vista capitalista, que combina dois Referências Bibliográicas
elementos: (1) garantir a liquidez (dinheiro)
nos mercados, necessária para que os capitais ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: ensaio
fictícios superacumulados não sejam aniquila- sobre a afirmação e a negação do trabalho. São
dos, e (2) aumentar a produção de mais-valia, Paulo: Boitempo Editorial, 1999.
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1
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MORAES, R. Neoliberalismo: de onde vem, partir das respostas que ele mesmo con-
para onde vai? São Paulo: Ed. SENAC, 2001. formou para a sua crise estrutural dos anos
1970. Nesse sentido, era neoliberal e capi-
NETTO, J. P.; BRAZ, M. Economia política: talismo contemporâneo podem ser enten-
uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2007. didos como sinônimos.

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 9-23 / Jul-Dez 2011


22 A estratégia neoliberal de desenvolvimento capitalista: caráter e contradições

2
As taxas de crescimento das principais eco- um determinado país pode ter frente à
nomias (OCDE), e em especial, dos EUA, configuração internacional de poder no
começam a declinar em 1968. Por outro capitalismo. Evidentemente, o termo não
lado, a formação bruta de capital fixo, um pretende se referir a um pretenso Estado
sinalizador da trajetória dos investimentos, autônomo em relação à luta de classes.
apresenta redução em suas taxas de cres-
8
cimento na virada de 1969 para 1970 nos De acordo com Carlos Nelson Coutinho,
principais países da economia mundial existe uma importante distinção feita na
(Mendonça, 1990, p. 45-58). literatura italiana (como, por exemplo, por
Croce) entre liberalismo e liberismo (infor-
3
Chesnais (1996) prefere o termo mundiali- mação verbal fornecida em 09/07/2009). O
zação. liberalismo pode ser originalmente identi-
ficado com o espectro político da esquer-
4
Para uma análise da “construção” da he- da, isto é, um pensamento que se coloca
gemonia neoliberal como fator ideológico em oposição ao status quo, e faz referên-
principal do capitalismo pós 1970 ver Har- cia, historicamente, ao posicionamento
vey (2008). adotado pela burguesia contra os privilé-
gios feudais. No entanto, os eventos da
5
De acordo com Fiori (1997, p. 84), “o ca- Primavera de 1848 conduzem a uma de-
minho da retomada do crescimento econô- cadência ideológica da burguesia, que se
mico exigiria um aumento da lucratividade converte em uma classe conservadora, isto
incompatível com os níveis salariais e com é, que passa a lutar pela manutenção do
a carga fiscal requerida pelos sistemas de capitalismo. Assim, a democracia, quando
proteção social obtidos pelos trabalhadores e onde triunfou, se deu à revelia da bur-
dos países desenvolvidos. Os mesmos ar- guesia e foi o produto de intensas batalhas
gumentos que depois reapareceram, já de da classe trabalhadora. O liberalismo que
forma caricatural, nas sociedades periféri- passa a ser defendido desde então aceita a
cas onde os salários e as contribuições so- existência de instâncias que se encarregam
ciais têm uma participação baixíssima na de colocar em funcionamento as institui-
formação dos preços e onde jamais existi- ções capitalistas, ou seja, que garantam a
ram redes de proteção social equiparáveis reprodução capitalista – nem que para isso
às do Welfare State europeu”. seja preciso algumas intervenções pontuais
do Estado de forma a contornar possíveis
6
“Superprodução de capital significa ape- falhas de mercado. No caso do liberismo,
nas superprodução de meios de produção – defende-se um mercado ainda mais des-
meios de trabalho e subsistência – que po- regulamentado. Um clássico exemplo de
dem funcionar como capital, ou seja, que autor liberista é Hayek. Por uma questão
podem ser empregados para a exploração de comodidade, estamos utilizando aqui o
do trabalho em dado grau de exploração, vocábulo mais empregado no Brasil, qual
e a queda desse grau de exploração abaixo seja, liberalismo e, para designar seu cor-
de dado ponto provoca perturbações e pa- relato contemporâneo, neoliberalismo.
ralisações do processo de produção capita-
9
lista, crises destruição de capital” (Marx, Segundo Wood (2003, p. 221-222) “O velho
1988, p. 183). conceito liberal de igualdade política, legal
e formal, ou uma noção do que se conven-
7
O termo aqui é colocado entres aspas, cionou chamar de “igualdade de oportunida-
pois se refere ao grau de autonomia que des”, é capaz de acomodar as desigualdades

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 9-23 / Jul-Dez 2011


Marcelo Dias Carcanholo, Grasiela Cristina da Cunha Baruco 23

de classe – e por isso não representa desafio Allende, com a conivência e assistência dos
fundamental ao capitalismo e seu sistema de Estados Unidos –, Hayek visita o país e re-
relações de classe. Na verdade, é uma caracte- vela grande simpatia pelo governo e por seus
rística específica do capitalismo que seja pos- métodos.
sível um tipo particular de igualdade universal
15
que não se estenda às relações de classe [...]”. Esses resultados foram analisados com maior
profundidade em Baruco e Carcanholo (2006).
10
Década esta que ficou conhecida como a
16
“década perdida” para a região por causa da Sobre o impacto do neoliberalismo e da
estagnação de seu PIB per capita. reestruturação produtiva no mercado de tra-
balho, ver Teixeira (1996) e Antunes (1999).
11
As conclusões da reunião foram compiladas
17
em Williamson (1990). Sobre esta discussão, a literatura é vasta.
Apenas para citar alguns, veja-se Chesnais
12
Como o caráter dessas reformas não é me- (1999), Chesnais (2005) e Lima (1997).
ramente econômico, tornava-se necessária a
alteração de aspectos político-institucionais Marcelo Dias Carcanholo
nos países que as aplicassem. Dado que esta * Professor associado da Faculdade de Eco-
tarefa envolve conflitos não desprezíveis, nomia da UFF, membro do Núcleo Interdis-
foi realizada uma outra reunião, em 1993, ciplinar de Estudos e Pesquisas em Marx e
para fornecer subsídios de atuação no campo Marxismo (Niep-UFF), e professor colabo-
político-institucional interno. As conclusões rador da Escola Nacional Florestan Fernan-
e prescrições desta nova reunião são encon- des (ENFF-MST).
tradas em Williamson (1994).
Grasiela Cristina da Cunha Baruco
13
O fato de que muitos dos objetivos não te- ** Professora adjunta do Departamento de
nham sido atingidos, quando da implemen- História e Economia do Instituto Multidis-
tação dessas propostas em vários países, não ciplinar da UFRRJ. Doutora pelo Programa
significa que as medidas propagandeadas não de Pós-Graduação em Políticas Públicas e
tenham sido aplicadas. Muito pelo contrário, Formação Humana (PPFH-UERJ)
isso já seria uma prova de que existe muita
diferença entre o que se vende como discurso
e o que se obtém na prática.

14
Após a Segunda Guerra o pensamento neo-
liberal se desdobrou em três escolas, funda-
mentalmente, são elas: Escola Austríaca, li-
derada por Hayek; Escola de Chicago, cujos
principais expoentes são T.W. Schultz e Gary
Becker (ligados à teoria do capital humano) e,
principalmente, Milton Friedman; e, por fim,
Escola de Virgínia ou public choice, que tem
como principal representante James M. Bu-
chanan (MORAES, 2001, p. 42-46). Quando
o ditador Augusto Pinochet assume a presi-
dência do Chile, em 1973 – após um golpe de
Estado que derrubou o presidente Salvador

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25

artiGo

Neoliberalismo e desregulamentação ao capital


internacional no limiar dos anos 1990 1

Fábio Antonio de Campos*

Resumo: Tendo como referência um processo de longa dependência ao capital internacional, cuja desregulamentação
institucional à sua mobilidade remonta há décadas no Brasil, o objetivo desse artigo é apontar como as reformas neoli-
berais iniciadas no Governo Collor coroam essa trajetória, mas ao mesmo tempo, reletem um novo padrão de acumu-
lação capitalista marcado pela mundialização inanceira. Para tanto, será necessário entendermos os contornos gerais
das medidas neoliberais de abertura ao capital internacional impostas à América Latina. Em seguida, mostraremos os
principais condicionantes internos de assimilação do neoliberalismo no que diz respeito ao acesso do capital internacio-
nal à economia brasileira durante o limiar dos anos 1990, em especial o regime de liberalização ao investimento direto
estrangeiro (IDE).

Palavras-chave: neoliberalismo, capital internacional, investimento direto estrangeiro, economia brasileira, Governo Collor.

Abstract: Taking as reference a process of long dependence to international capital, whose institutional deregulation to
its mobility backs decades in Brazil, the aim of this paper is to show how the neoliberal reforms initiated in the Collor
government crown this trajectory, but at the same time, relect a new pattern of capital accumulation marked by inancial
globalization. To do so, you must understand the general contours of neoliberal measures of openness to international
capital imposed on Latin America. Then, we show the main determinants of internal assimilation of neoliberalism re-
garding to access to international capital to the Brazilian economy over the threshold of the 1990s, especially the rules
of liberalization of foreign direct investment (FDI).

Keywords: neoliberalism, international capital, foreign direct investment, the Brazilian economy, the Collor government.

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26 Neoliberalismo e desregulamentação ao capital internacional no limiar dos anos 1990

Introdução anos 1990, esse plano institucional crescente-


mente moldado pelos interesses das empresas
Em um momento em que o neoliberalismo multinacionais aqui instaladas e seus sócios
no Brasil já passa de vinte anos, cujos impac- nativos fortaleceu-se, e seu viés liberalizante
tos nefastos sobre as classes trabalhadoras se incorporou a dimensão disciplinadora.
mostram como os mais duros golpes do pe- Os determinantes desse fenômeno foram
ríodo, é que temos que matizar suas etapas de originados pela pressão direta de alguns condi-
formação, em particular, as formas de articu- cionantes internacionais que influenciaram os
lação da economia brasileira com as novas es- rumos da política econômica brasileira. A ma-
tratégias imperialistas que condicionam nos- turação do novo padrão de acumulação no cen-
sa sociedade. Esse novo estágio iniciado nos tro capitalista levou à necessidade de descen-
anos 1990 colocou a economia brasileira num tralização de seus investimentos. Isso ocorreu
patamar de subordinação ao capital interna- em virtude de uma crise de superacumulação
cional jamais vista, uma vez que a exigência ocorrida no final dos anos 1980 nas economias
de mobilidade para seu espaço de valorização centrais, cujos efeitos se explicitaram pelo au-
crescentemente mundializado impôs níveis mento da recessão nos países desenvolvidos,
inéditos de desemprego, privatizações, desna- derivada em primeiro lugar do acirramento da
cionalizações, desindustrialização e uma cres- concorrência intercapitalista marcada por uma
cente vassalagem da política econômica aos racionalização produtiva e por uma intensa
mercados financeiros. Daí a importância de centralização de capitais, gerando um excesso
compreendermos o ponto de partida da desre- de capacidade industrial (Brenner, 2003). Em
gulamentação aos investimentos estrangeiros segundo lugar, o desenvolvimento de inúmeros
com o governo Collor (1990-92). instrumentos financeiros permitiu aos capitais
O período em questão apresenta uma nova não reinvestidos na esfera produtiva moverem-
etapa de modificação no marco institucional se para atividades especulativas. Tais exceden-
destinado a disciplinar o capital internacio- tes financeiros também buscariam defender
nal. Antes desse momento, porém, é neces- seus níveis de rentabilidade, deslocando-se para
sário frisar que, desde pelo menos a ditadura os mercados periféricos (Margarido, 1997).
militar, havia no Brasil uma indução discipli- Diante desse retrato brasileiro de contínua
nadora ao capital internacional, orientada por dependência externa e de subdesenvolvimento,
uma intervenção estatal que procurava impor cujo neoliberalismo apresenta-se como o seu
certo controle setorial à concorrência interna clímax, é que temos por objetivo apresentar os
com as empresas estrangeiras. Ainda que essa principais condicionantes externos e internos
forma fosse mais uma resistência à internacio- da desregulamentação institucional ao capital
nalização do que propriamente um controle internacional durante o Governo Collor, em
deliberado, tentou-se igualmente desenvolver especial o IDE. Além dessa breve introdução,
uma regulação à transferência de tecnologia e na primeira parte mostraremos as principais
apresentar uma distinção do capital estrangei- medidas internacionais que pautaram a ma-
ro em relação ao capital nacional. Por outro croeconomia da América Latina e os regimes
lado, havia uma indução liberalizante no mar- institucionais de liberalização aos investimen-
co institucional, que evoluía desde 1955 com tos internacionais aplicados de fora para dentro.
a Instrução 113, passando pela flexibilização Na segunda parte, o artigo aborda a assimilação
da Lei de Remessas de Lucro com o Golpe de interna da economia brasileira às medidas mais
1964, e por todas as medidas posteriores que gerais impostas ao continente, dialogando em
facilitaram o fluxo do investimento direto es- alguns casos com algumas disposições institu-
trangeiro (IDE) e a captação de empréstimos cionais passadas, e, de forma breve apontando
externos pelas filiais estrangeiras. A partir dos para certas implicações futuras que vão além do

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Fábio Antonio de Campos 27

recorte proposto. Por fim, apresentaremos algu- estrangeiro (IDE) às regiões periféricas, a Ro-
mas considerações finais. dada Uruguai tinha como objetivo central es-
tabelecer regras para restringir a ação autôno-
Principais características do neoliberalismo ma dos centros internos de decisão dos países
na América Latina subdesenvolvidos (Thorstensen, 2001; Celli
Júnior, 2006). Assim, instituíram-se vários cri-
Antes de mergulhar em mais um ciclo de térios de conduta que permitiram consolidar,
ingresso de investimentos externos, a América nessas regiões, uma maior liberdade comercial
Latina deveria ajustar-se internamente às neces- para a atuação das empresas multinacionais
sidades da nova internacionalização do capital. (Artigo XI do Gatt). Assinalou-se a necessi-
De certa forma, esse processo de adaptação já dade de desregulamentação para controles ao
teria se iniciado antes do período recessivo dos fluxo e ao movimento dos investimentos ex-
países desenvolvidos, visto que a política de ternos por meio da cláusula de tratamento na-
ajuste do FMI (Fundo Monetário Internacio- cional igualitário (Artigo III). Também foram
nal), imposta ao continente no início dos anos definidos mecanismos legais para por fim às
1980, estabelecia como receituário certas po- restrições quantitativas ao IDE (Trims – Tra-
líticas liberalizantes que negavam as bases de de Related Investment Measures). Todas essas
funcionamento do aparelho estatal desenvolvi- regras impuseram fortes limitações aos Esta-
mentista. Por outro lado, ocorreram no final dos dos periféricos, uma vez que, ao se tornarem
anos 1980 alguns eventos internacionais que te- membros do Gatt, eles estariam automatica-
riam a mesma finalidade, ou seja, impor regras mente constrangidos a estipular requisitos de
liberalizantes e contrárias ao processo de aden- desempenho e/ou de comércio conforme de-
samento das cadeias produtivas industriais, a terminada política industrial.
fim de acelerar a adequação institucional da Estabeleceram-se ainda, em setor de servi-
periferia ao novo estágio de expansão do capi- ços, novas liberdades para o IDE: se determina-
tal internacional. Nesse sentido, temos a Roda- da empresa de país-membro estivesse atuando
da Uruguai (1986-1994) como desdobramento comercialmente em outro país-membro, o trata-
das reuniões do Gatt (General Agreement on mento legal deveria ser igual em ambos os es-
Tariffs and Trade), que iriam originar a OMC paços nacionais (Gats – General Accords Trade
(Organização Mundial do Comércio) em 1995 Services). Para a questão da propriedade inte-
(Valls, 1997). Dentro do ambiente multilateral, lectual (TRIPs – abreviatura de RIPs – Rights
que envolvia a discussão das novas regras de of Intellectual Property), fixaram-se novos
investimento, de comércio e de transferência de critérios de proteção de patentes, copyrights,
tecnologia, estava a pressão dos países desen- marcas e desenhos industriais a serem incor-
volvidos sobre as economias periféricas para porados aos marcos institucionais dos países
adequarem-se às novas exigências da interna- membros que, na verdade, significavam uma
cionalização. Após o término das reuniões, os rede de restrições à transferência de tecnologia
países subdesenvolvidos foram submetidos às para empresas nacionais em países periféricos.
demandas do hemisfério norte, sem contrapar- Em síntese, os países do hemisfério norte bus-
tidas significativas, sendo a continuidade do cavam impor às economias subdesenvolvidas o
protecionismo agrícola no centro e a desregu- desmonte do marco institucional que dava su-
lamentação institucional imposta à periferia as porte aos seus processos de industrialização por
evidências mais perceptíveis de uma pressão substituição de importações e que conferiam,
imperialista que se revelava por vários níveis até então, mesmo com limitações, algum grau
(Guimarães, 2005). disciplinar ao capital internacional2.
No que se refere em particular à questão da De maneira mais ampla, mas com os mes-
liberalização de acesso do investimento direto mos pressupostos do Gatt, o Consenso de

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28 Neoliberalismo e desregulamentação ao capital internacional no limiar dos anos 1990

Washington reforçava a agenda liberalizante de 1989, por meio do Plano Brady, também
para a América Latina3. Segundo seu diagnós- seriam outra forma de forçar a América Latina
tico, a causa da crise no continente residia no a ajustar-se a essa fase de internacionalização.
excessivo crescimento do Estado, em função da Através do alongamento dos prazos para paga-
substituição de importações, visto que as empre- mento dos serviços da dívida e de sua recicla-
sas estatais eram numerosas, ineficientes e su- gem via securitização, parte dos passivos do
jeitas à corrupção. Além disso, os países latino sistema financeiro internacional se integrariam
-americanos eram acusados de apresentar uma ao novo padrão de acumulação (Portella Filho,
incapacidade interna de controlar o déficit pú- 1994). Para os bancos multinacionais seria bem
blico e de permitir que as sucessivas demandas razoável o acordo, pois vários países periféri-
salariais acarretassem pressões inflacionárias. A cos renegociariam suas dívidas trocando “tí-
saída seria a estabilização da economia através tulos podres” por novos, que viriam a ser re-
de forte ajuste fiscal, redução da presença do negociados com boas perspectivas de ágio nas
Estado na economia e adoção de políticas libe- principais praças financeiras (Marçal, 2000).
rais, tendo o mercado como centro privilegiado Para os devedores, os efeitos do Plano Brady
de orientação macroeconômica. Segundo a vi- seriam bem reduzidos, uma vez que os descon-
são do Consenso, a aplicação dessas reformas tos em juros e no valor das amortizações eram
levaria à superação de várias restrições estru- pequenos, apresentando uma tímida diminuição
turais que atravancavam o crescimento econô- nos estoques da dívida. Não obstante, as econo-
mico neste continente. Em síntese, as reformas mias periféricas foram enquadradas pelo acor-
sugeridas eram assinaladas por dez pontos: do, segundo o qual teriam que oferecer várias
garantias internas se quisessem disponibilizar o
1. Controle do déficit fiscal; reescalonamento da dívida e obter refinancia-
2. Priorização dos gastos públicos; mentos. Entre várias condições impostas, em
3. Reforma tributária; particular para o Brasil, estava a exigência, fei-
4. Taxa de juros positiva e determinada ta pelo FMI, de que o país incorporasse o quan-
pelo mercado; to antes medidas liberais como reforma tributá-
5. Taxa de câmbio também orientada pelo ria, desoneração comercial, ajuste fiscal e, em
mercado (de preferência flutuante); específico, o aprofundamento da liberalização
6. Política comercial liberal e sem pro- do marco institucional destinado a controlar os
tecionismo, em que é necessário o au- fluxos dos capitais estrangeiros (Batista Júnior;
mento de importação de insumos in- Rangel, 1994).
termediários mais competitivos do que Temos que ter claro que, além da Rodada
aqueles produzidos internamente; Uruguai, o Consenso de Washington e o Pla-
7. Eliminação das restrições legais ao flu- no Brady, o próprio Mercosul seria mais uma
xo do capital internacional; forma de ajuste às necessidades do novo ciclo
8. Aumento das privatizações; de internacionalização do capital. Mesmo esse
9. Desregulamentação para: o investimen- bloco de integração sul-americana tendo sua
to; o controle de preços; determinadas origem nos acordos bilaterais entre Argentina e
importações; alocação de créditos; taxas Brasil – que de certa forma buscavam integrar
em geral; e, limites à dispensa de em- os processos de implantação das forças pro-
pregados; dutivas desses dois países num mesmo espaço
10. Por fim, direito irrestrito à propriedade regional –, o Mercosul, concebido a partir do
privada. Tratado de Assunção em 1991, formou-se sob
a égide do neoliberalismo, ao optar por uma
Além do Consenso de Washington, contu- integração comercial e produtiva de natureza
do, as renegociações da dívida externa a partir aberta e desregulada, que, portanto, negava os

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Fábio Antonio de Campos 29

acordos anteriores4. Tendo um esboço geral determinado espaço nacional é volátil, e sua ex-
das medidas impostas à América Latina para pectativa de rentabilidade sempre está balizada
se adequar ao neoliberalismo, passamos à par- por uma previsão de retornos rápidos. Seu alto
ticularidade brasileira. poder especulativo e sua maior capacidade de
gerar instabilidades também são fatores que tra-
Neoliberalismo no Brasil e a abertura ao zem consigo um afastamento muito maior com
capital internacional relação à continuidade na implantação das es-
truturas produtivas internas. Ademais, esse ca-
Primeiramente, partimos da hipótese de pital internacional não gera poupanças externas
que as reformas liberais e as políticas macroe- relativamente duradouras, porque, a qualquer
conômicas dos anos 1990 foram influenciadas mudança de sinalização, fixada pelos referen-
diretamente por esse contexto externo. Vale ciais do sistema financeiro internacional, seu
lembrar, contudo, que, embora o limiar dessa abandono é imediato (Margarido, 1997). Não
década ficasse caracterizado por ser um marco obstante, será para viabilizar o livre trânsito
do neoliberalismo no Brasil, sua importância e desse capital internacional, agora altamente vo-
as condições para se impor foram estabelecidas látil e financeirizado – tendo como atrativo os
anteriormente. O processo recessivo dos anos numerosos ativos internos portadores de gran-
1980 refletiu um enfraquecimento das bases de rentabilidade como títulos da dívida pública,
estatais que anteriormente orientavam o desen- bônus e papéis comerciais de empresas privadas
volvimento industrial, assim como se caracte- e de empresas estatais sujeitas à privatização –,
rizou por um forte recuo do capital internacio- que o governo Collor adaptará nesse momento
nal. Estabelecido esse período de estagflação, as políticas de câmbio, monetária e comercial,
aquele aparelho desenvolvimentista voltado ao e, em específico, o marco regulatório.
adensamento das cadeias produtivas industriais, Dentre as determinações de ordem macroe-
que tinha como um de seus instrumentos o mar- conômica do governo Collor, a política de aber-
co institucional de disciplina aos investimentos tura comercial ganhou evidência6. O seu obje-
internacionais, se apresentaria ao final dos anos tivo central era promover uma ampla abertura
1980 enfraquecido e sujeito às vicissitudes da da economia, de modo a modernizar o parque
nova fase de internacionalização5. industrial interno, ao mesmo tempo em que
O desafio maior do governo Collor a partir se buscava combater a inflação pela oferta de
desse contexto seria gerar as condições internas produtos mais baratos no mercado doméstico.
para o restabelecimento do financiamento ex- Subjacente a esses propósitos, o que estava em
terno, introduzindo reformas liberais de modo questão era a reinserção da economia brasilei-
a facilitar o acesso dos investimentos interna- ra nos novos fluxos de capitais externos. Daí
cionais que novamente almejavam deslocar-se a premissa de que, para haver investimentos
para a América Latina. Esse capital internacio- internacionais, principalmente diretos, seria ne-
nal apresentava, entretanto, um caráter distinto cessário facilitar institucionalmente a reestrutu-
daquele das outras fases de internacionalização. ração interna da filial estrangeira nos termos da
Nesse momento, a sua dimensão financeira foi mundialização financeira.
exacerbada, e os tipos de vínculos a serem re- O primeiro passo, então, seria abolir o pro-
tomados para sua valorização com a economia tecionismo comercial, como meio de submeter-
brasileira acarretariam efeitos negativos muito se à nova fase de internacionalização. A forma
maiores, se comparados aos da época da in- de organização corporativa da empresa mul-
ternacionalização do mercado interno entre os tinacional anteriormente estabelecida por um
anos 1950 e 1970. Essa nova fase de interna- regime central de acumulação foi abandonada.
cionalização expõe um tipo de capital que bus- Tal contexto foi acompanhado por uma inten-
ca maior mobilidade, por isso sua presença em sificação do comércio intrafirma, que impôs

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30 Neoliberalismo e desregulamentação ao capital internacional no limiar dos anos 1990

uma maior centralização do capital auxiliada remessas de lucro, dividendos, royalties e ju-
pela financeirização. Além disso, houve uma ros, o governo Collor procurou manter uma
readequação microeconômica: a empresa mul- tendência, seguida por seus sucessores, de fa-
tinacional passou a se organizar em rede e, nes- cilitar ao máximo essas transferências externas
se processo, as principais características eram a e os reinvestimentos de lucro8. As reformas que
fragmentação em várias cadeias industriais e a dotaram as empresas multinacionais de maiores
subcontratação de etapas produtivas considera- facilidades para remessas de lucro foram aque-
das menos estratégicas para a sua valorização las realizadas na gestão de Marcílio Marques
(Coutinho, 1992). Essas mudanças na base pro- Moreira, em 1991, no Ministério da Fazenda.
dutiva do sistema capitalista fizeram com que Dentre elas, destacamos as seguintes:
as economias domésticas fossem pressiona-
das a abrir seus mercados para facilitar a livre 1. Autorização de remessas de lucro e di-
movimentação de bens e capitais, oferecendo videndos, mesmo que o registro do IDE
maior permeabilidade entre os diversos espa- estivesse pendente9;
ços econômicos nacionais. O governo Collor 2. Instituição de regras para o registro das
teria a função de viabilizar tal ajuste, ou seja, remessas de moeda para futuras capitali-
manipular os instrumentos macroeconômicos zações que implicassem aumento do ca-
e transformar o marco institucional de modo a pital, como forma de criar mecanismos
obedecer às recentes exigências do capital in- de proteção aos riscos cambiais10;
ternacional que, no caso específico da abertura 3. Com o mesmo princípio, estabeleceu-se
comercial, passava pelo desmonte daquela es- que os reinvestimentos de lucro também
trutura desenvolvimentista herdada do período usufruiriam para seu cálculo o valor em
da implantação da indústria pesada7. moeda estrangeira pela taxa média de
A modificação no marco institucional de câmbio do dia do reinvestimento, e não
controle ao capital internacional nesse período mais pela taxa média de câmbio entre as
apresentou o mesmo objetivo. Desse modo, o datas de distribuição de lucros e o rein-
restante de regulação ao IDE que ainda havia vestimento11;
na economia brasileira seria, a partir de agora, 4. Foi autorizado o pagamento de royalties
eliminado. Esse momento vinha de longe, uma de filiais ou subsidiárias às suas matri-
vez que se originou do fortalecimento daquela zes, além de permitir a dedução de des-
tendência de crescente liberalização do mar- pesas relativas a assistência técnica e
co institucional desde a Instrução 113 (1955) royalties para o imposto de renda12;
que foi amplamente utilizada durante o Plano 5. Foi permitida às filiais estrangeiras a
de Metas, seguida pela reforma financeira após remessa de dividendos enquanto o cer-
o Golpe de 1964, e aprofundada por todas as tificado de registro estivesse no Bacen
outras facilidades conquistadas no decorrer da aguardando atualização. Ademais, con-
ditadura militar. O ponto de descontinuidade cedeu-se o direito de atualização mone-
ao marco institucional especificamente nesse tária dos seus lucros até a data da capi-
período inscreveu-se, entretanto, no fim dos talização, eliminando a perda cambial.
controles setoriais, na questão da disciplina à Foram igualmente divulgadas normas e
transferência de tecnologia, da tributação sobre critérios para a capitalização de todo tipo
remessas e das facilidades geradas para incenti- de remessas de rendimentos ao exterior13.
var a privatização.
Começamos pela questão dos fluxos do Embora essas medidas facilitassem ainda
IDE. Depois da crise cambial em 1989, ainda mais a saída do capital internacional por meio
que se efetivasse a centralização do câmbio de remessas de lucro, as que tiveram maior im-
impondo restrições à venda de divisas para as pacto foram aquelas que diminuiriam ou mesmo

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Fábio Antonio de Campos 31

eliminariam a incidência tributária sobre essas nos mercados financeiros internacionais para
transferências externas. No caso, a Lei nº 8.383 repasse de recursos externos aos tomadores
de 30/12/1991 foi o instrumento mais importante privados internos como commercial papers,
na liberalização tributária às remessas de lucro e bônus e notes15. Como forma de a empresa pri-
dividendos. A partir do Golpe de 1964, a Lei de vada conceder garantia para a tomada desses
Remessas de Lucro foi flexibilizada por meio da recursos, foram também instituídas operações
adição na base de cálculo de remessas os reves- de securitização de exportações e emissão de
timentos de lucros, assim como a alíquota para títulos conversíveis em ações, que possibilita-
remessas tinha sido aumentada de 10 para 12%. vam a obtenção de condições mais favoráveis
No entanto, o governo militar criou um imposto de custo e de prazo para o endividamento exter-
suplementar por meio da L4.390/64, que inci- no16. Por último, permitiu-se que as instituições
dia em termos crescentes se a filial estrangei- bancárias brasileiras ofertassem às empresas
ra ultrapassasse o limite de 12% para remessas não-financeiras operações de hedge no exterior,
de lucro e dividendos, ou seja: se passasse até com o objetivo de proteger seus empréstimos
15%, o imposto seria de 40%; entre 15 e 25%, externos de eventuais oscilações de juros inter-
era de 50%; e acima de 25% o imposto seria de nacionais, taxa de câmbio e variações nos pre-
60%. Agora, o governo Collor eliminaria esse ços das mercadorias, sendo isento o imposto de
dispositivo, permitindo uma incidência única de renda para o pagamento dessa proteção17.
imposto de renda de 25% a partir do início de Ao lado dos empréstimos externos, a gestão
1992. No ano seguinte, a alíquota seria reduzi- Marcílio Marques Moreira também intensifi-
da para 15%, podendo até mesmo ser abolida cou a liberalização ao investimento estrangeiro
caso existissem acordos bilaterais com os países de portfólio, além de autorizar as operações de
de empresas estrangeiras, a fim de evitar dupla hedges nos mercados futuros e de opção. Cria-
tributação. A Lei 8.383/91 também extinguiu a ram-se então novos canais para a realização
cobrança de imposto de renda sobre o lucro lí- desses investimentos estrangeiros18, por sinal
quido, tanto das empresas nacionais quanto das com legislação bem extensa, mas que, na es-
estrangeiras, mas beneficiava diretamente estas sência, tinha a mesma missão das outras, isto é,
últimas, uma vez que diminuía o custo de seus ajustar os canais financeiros internos ao novo
reinvestimentos de lucro14. padrão de acumulação capitalista seguindo as
Outro complexo de medidas que procurava orientações neoliberais das instituições multi-
satisfazer as novas necessidades da empresa laterais. No caso dos Fundos de Privatização19,
multinacional era referente aos empréstimos em especial, temos que compreender que, por
externos. Se antes os empréstimos externos de trás da criação desse novo dispositivo financei-
filiais sediadas no Brasil estavam condiciona- ro, estava uma estratégia maior de oferecer a
dos quase exclusivamente a uma relação com preços convidativos vários ativos de empresas
os bancos comerciais internacionais, intercedi- estatais para o capital privado, particularmente
da ou não por suas matrizes, nesse momento, para as empresas estrangeiras que tinham maio-
com a internacionalização financeira definida res condições de alavancagens financeiras20.
pelo centro capitalista, multiplicou as fontes As reformas eram uma incorporação do
de empréstimos, sobretudo aqueles referentes diagnóstico feito pelo FMI desde a época do
à desintermediação financeira, como recursos ajuste recessivo e do Consenso de Washington,
de bancos de investimento e títulos securitiza- que se resumiam a uma crítica frontal à inter-
dos. Assim, o governo Collor teria como mis- venção estatal nos setores produtivos conforme
são criar novos canais financeiros internos que o processo de industrialização pesada. Nessa
permitissem agilizar a captação desses novos perspectiva de abertura externa e de desregula-
recursos. Para tanto, foi instituída a emissão de mentação financeira é que o governo Collor per-
títulos por instituições financeiras brasileiras mitiria o acesso dos investimentos estrangeiros

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32 Neoliberalismo e desregulamentação ao capital internacional no limiar dos anos 1990

ao setor público, que agora se mostrava inefi- governo Geisel). Aqui, impôs-se a flexibiliza-
ciente e anacrônico ao olhar da empresa mul- ção, ou mesmo a desarticulação completa de to-
tinacional e as burguesias internas. A evolução dos esses mecanismos. A principal medida que
das medidas para impulsionar a desestatização pôs fim à capacidade discricionária de o poder
da economia seria esta: estatal emitir averbação para controle de trans-
ferência e pagamento de tecnologia foi o Ato
1. Autorização para a participação do ca- Normativo nº 22 do INPI de 22/02/1991. A par-
pital internacional em 40% do capital tir dele, estabeleceram-se regras menos rígidas
votante em ações de empresas a serem para a aprovação de acordos de transferência de
privatizadas21; tecnologia e licenciamento de marcas e paten-
2. Instituição do direito de conversão de tes. Revogou-se também o Ato Normativo nº
investimento de créditos externos cor- 15/75, que limitava o pagamento de royalties da
respondentes a dívidas de entidades do filial estrangeira às suas matrizes. Também ex-
setor público federal – o prazo mínimo tinguiu-se uma série de outros Atos Normativos
de permanência no país aos recursos de função similar, que, em síntese, tiravam a fa-
convertidos seria de 12 anos, contados culdade do INPI de facilitar o acesso da empresa
a partir da data de realização do inves- nacional à tecnologia estrangeira e de limitar as
timento22; remessas de royalties da empresa multinacional.
3. Aceleração da ação privatizante nos go- O INPI, daqui em diante, apenas prescreveria o
vernos posteriores – no âmbito do Plano cumprimento das normas em vigor, sem impor,
Nacional de Desestatização –, privile- por critérios disciplinares, a averbação para uma
giando o acesso do capital internacional, ou outra transferência e remessa pelo pagamen-
visto que os canais e as facilidades para to de tecnologia25.
as empresas multinacionais adquirirem No que tange ao setor de informática, a Lei
empresas públicas no país se ampliaram nº 8.248 de 23/10/1991 extinguiu a reserva de
consideravelmente23. mercado para as empresas nacionais, come-
çando a valer a partir de outubro de 1992. Em
Precisamos lembrar, ademais, que algumas síntese, o desdobramento desse dispositivo em
medidas instituídas anteriormente já teriam an- futuros instrumentos institucionais significou a
tecipado em alguns pontos a desregulamentação flexibilização da proteção a essa indústria na-
do marco regulatório destinado a disciplinar a cional, cujas atividades ficariam desprovidas
empresa estrangeira em termos setoriais e regio- de qualquer regulação na fabricação, desen-
nais. Foi esse o caso da abertura comercial para volvimento e comercialização de seus bens e
modernização tecnológica do parque produtivo serviços. Como reflexo dessa lei, o complexo
e da isenção de controles tributários, cambiais eletrônico passaria por amplas transformações,
e administrativos nas Zonas de Processamento tentando adaptar-se ou mesmo sujeitar-se a um
de Exportações (ZPE)24. Não obstante, foi de processo desnacionalizante, ao não contar mais
fato durante o governo Collor que o restante de com as proteções não-tarifárias e com as alí-
todas as áreas e setores que eram protegidos da quotas do imposto de importação26.
concorrência estrangeira começaram a ser libe- A política de liberalização setorial iniciada
ralizados. Iniciando pela questão tecnológica, na época do Collor foi mantida pelo Governo
como vimos no item anterior, o governo Gei- Itamar Franco, com a extinção de proteções
sel havia desenvolvido certo arcabouço institu- não-tarifárias para vários setores industriais que
cional, na tentativa de regular a importação de antes eram considerados estratégicos, aprofun-
know-how e ao mesmo tempo disciplinar seus dada no primeiro Governo Fernando Henrique
pagamentos à origem por meio do INPI (Institu- Cardoso, com as privatizações27, e desenvolvida
to Nacional da Propriedade Industrial, criado no com as reformas de crescente conversibilidade

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Fábio Antonio de Campos 33

na conta capital estabelecidas pelo governo Luís Nesses anos iniciais de liberalização, os em-
Inácio Lula da Silva28. Os efeitos dessas polí- préstimos a partir de papéis securitizados foram
ticas que dizem respeito ao propósito de inte- aqueles que dominaram os ingressos de capitais
grar o espaço econômico interno às novas ne- internacionais, dos quais, aliás, as filiais partici-
cessidades do padrão de acumulação capitalista param ativamente, endividando-se externamen-
podem ser medidos pelo reingresso de capitais te por meio de emissão de commercial papers.
internacionais que ocorreria já no início dos Os IDEs não vieram imediatamente em res-
anos 1990. Como podemos observar na tabela, posta a essas mudanças do marco regulatório da
o saldo total entre o ingresso e as saídas de capi- época de Collor, porque foi preciso solidificar
tais internacionais de um valor negativo de US$ os mecanismos da estabilidade macroeconômi-
3.748 milhões em 1990 passou para US$ 5.445 ca do país, para que só a partir de um contexto
milhões em 1992, chegando a US$ 13.137 mi- inflacionário minimamente sob controle, me-
lhões em 1995. Há nesses fluxos, contudo, um diante as políticas econômicas implementadas
aspecto qualitativo para entendermos a inserção pelo Plano Real, eles se sentissem seguros para
do país nesta nova fase de internacionalização. ingressar. A desregulamentação setorial promo-
No período inicial, mais propriamente durante vida pelo Plano Real também foi crucial para
o governo Collor, embora fosse instituída uma a volta desses recursos, visto que tais medidas
liberalização regulatória ao capital internacional seriam compatíveis com as exigências da nova
em suas várias modalidades, o IDE em especí- fase de internacionalização. Dentre elas, estava
fico teve um comportamento cauteloso, o que a expansão dos investimentos externos em se-
não aconteceu com os empréstimos externos. tores de serviços, pois eles apresentavam uma

Fluxos Líquidos de Capitais Internacionais para o Brasil no Início da Liberalização

(US$ Milhões, em preços correntes)


1990 1991 1992 1993 1994 1995
(a)
IDE Líquido 628 608 1.405 613 1.888 3.928
Investimentos em Portfólio (b) 104 578 1.704 6.650 7.280 2.294
Financiamentos (c) -3.512 -4.076 -3.425 -2.908 -1.907 -2.198
Organismos Multilaterais -397 -305 -636 -699 -668 -128
Agências Governamentais -2.813 -2.466 -1.658 -1.122 -691 -1.640
Fornecedores/Compradores -302 -1.305 -1.131 -1.087 -548 -430
Empréstimos -968 2.368 5.761 5.865 3.712 9.113
Bancos Comerciais -1.524 -1.270 -388 -1.629 -900 -30
Intercompanhias 88 131 481 577 178 731
Instrumentos securitizados 468 3.507 5.668 6.917 4.434 8.412
Bônus -156 1.030 780 101 -280 1.190
Commercial papers 631 1.817 1.009 -82 -605 -162
Notes - 383 3.873 6.283 5.180 6.689
Papéis de exportação - 278 10 619 143 349
Outros -7 -1 -4 -4 -4 346
Saldo Total -3.748 -522 5.445 10.220 10.973 13.137
Observações e Fontes:
(a)
Compostos por moeda, mercadorias e conversões da dívida externa, sem os reinvestimentos de lucro. Estes dados foram extraídos do Anexo 1 e
de LAPLANE e SARTI (1997);
(b)
Ingresso menos os retornos. Dados de MARGARIDO (1997), até o restante da tabela;
(c)
Este tipo exclui financiamentos brasileiros. Para este e os capitais internacionais na forma de empréstimos foram calculados a partir dos valores de
ingressos brutos menos as amortizações (exceto os refinanciamentos).

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34 Neoliberalismo e desregulamentação ao capital internacional no limiar dos anos 1990

expectativa de valorização bem maior que os fase de internacionalização da empresa multina-


setores de manufaturados. Os impactos que o cional. Ademais, tinham na mão como principal
ingresso desse novo tipo de IDE provocaria ao trunfo o enfraquecimento do aparelho desenvol-
país, podem ser observados no aumento dos vimentista diante da crise da dívida externa. Por
níveis de internacionalização da economia bra- meio de tal ambiente, procuramos mostrar como
sileira determinada pelas desnacionalizações e o controle institucional ao capital internacional
privatizações, ao compararmos as participações se enfraqueceu até chegar ao ponto de pratica-
relativas das filiais estrangeiras com as empre- mente ser anulada sua capacidade regulatória, à
sas privadas nacionais e as empresas estatais medida que a liberalização avançava por todas
segundo o gráfico: as esferas da economia brasileira.

Gráfico 1. Participação por origem de capital na Considerações inais


economia brasileira
(Porcentagem das empresas no total das vendas
das 500 maiores da economia brasileira – Us$ A despeito de o neoliberalismo ser um fe-
milhões, em preços correntes) nômeno delimitado a partir dos anos 1990 no
50
Brasil, o que esse artigo buscou identificar é
45
40
35
que, no que tange a regulamentação ao capital
30
25
internacional, esse período marca tanto uma
20
15
10
ruptura quanto uma continuidade no processo
5
0
mais geral brasileiro de dependência externa e
1990 1991 1992

Estrangeiras
1993 1994 1995

Nacionais
1996 1997 1998

Estatais
1999
subdesenvolvimento. É ruptura porque de fato
foi nesse momento que se internalizou no país
Fonte: Maiores e Melhores, Revista Exame, vários números. um vasto leque de reformas liberalizantes de-
senhadas para toda a América Latina. Ruptura
Em suma, os IDEs que ingressaram a partir também, visto que esse novo ciclo de inter-
deste período de análise e que se avolumaram, nacionalização se articulou de forma inédita
sobretudo, durante o governo Fernando Hen- à mundialização financeira onde até mesmo
rique e atualmente no governo Lula, constituí- o processo de industrialização periférica, que
ram-se em termos quantitativos numa massa de era tão caro ao desenvolvimento capitalista la-
recursos externos jamais vista na história eco- tino-americano, em especial o brasileiro, foi
nômica brasileira29. Porém, em termos qualita- metamorfoseado de modo a enfraquecer-se
tivos, mostraram-se bem diferentes das outras mediante as novas necessidades de reprodução
décadas, uma vez que foram compostos por ampliada do capital. Não será por outro moti-
capitais heterogêneos que não necessariamente vo que se iniciariam amplas reformas institu-
viriam majoritariamente para criar capacidade cionais que garantiriam a livre mobilidade do
produtiva nova (greenfield). Os investimentos capital internacional na economia brasileira, a
apresentaram perfis diferenciados da época da partir do governo Collor e depois dele.
internacionalização dos mercados internos des- Mas também esse processo liberalizante
de os anos 1950, uma vez que foram gestados ecoa por uma continuidade inscrita nas su-
no âmbito da mundialização financeira, a fim de cessivas formas de acesso que o capital inter-
satisfazerem as novas necessidades de acumu- nacional teve no Brasil desde o início da in-
lação que o centro de comando financeiro exi- dustrialização pesada no governo Kubitschek,
gia. A imposição do padrão de acumulação aos passando pela ditadura militar e pelos anos de
países subdesenvolvidos nasceu pela pressão estagflação na década de 1980. A forma como
direta dos órgãos multilaterais e das economias se deu a industrialização pesada no Brasil
hegemônicas sobre as periféricas, a fim de que exigiu um regime institucional subordinado
estas adequassem sua política econômica à nova aos interesses da empresa multinacional para

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Fábio Antonio de Campos 35

garantir sua valorização em escala global já BATISTA, P. N. O consenso de Washington:


naquela época. Depois, a necessidade das fi- visão neoliberal dos problemas latino-america-
liais estrangeiras se integrarem ao financia- nos. São Paulo, PEDEX, 1994. (Caderno Dívi-
mento internacional, no final dos anos 1960, da Externa, n. 6).
exigiu novas reformas liberais conduzidas pe-
los governos ditatoriais, de forma a integrar o BATISTA JÚNIOR, P. N. RANGEL, A. S. A
sistema financeiro brasileiro ao euromercado. renegociação da dívida externa brasileira e o
O desfecho desse processo se deu a partir do Plano Brady: avaliação de alguns dos princi-
início dos anos 1980 com a crise da dívida, pais resultados. São Paulo, PEDEX, 1994. (Ca-
em que à custa do endividamento público, da derno Dívida Externa, n. 7).
desestruturação das empresas estatais e do au-
mento da exploração da classe trabalhadora, BELLUZZO, L. G. M.; ALMEIDA, J. S. De-
impôs-se um ajuste recessivo onde as medi- pois da queda: a economia brasileira da crise
das liberalizantes que ficariam famosas pelo da dívida aos impasses do Real. Rio de Janeiro:
Consenso de Washington em 1989, já estavam Civilização Brasileira, 2002.
todas colocadas nos relatórios do FMI, como
forma de enquadrar as economias latino-ame- BRENNER, R. O boom e a bolha: os Estados
ricanas à reciclagem da dívida, salvando assim Unidos na economia mundial. Rio de Janeiro:
a banca internacional das moratórias dos paí- Record, 2003.
ses endividados.
Partindo dessas determinações mais pro- CAMPOS, F. A. A arte da conquista: o capital
fundas da nossa formação econômica é que internacional no desenvolvimento capitalista
esse trabalho buscou minimante contribuir ao brasileiro (1951-1992). 2009. Tese (Douto-
entendimento do marco liberalizante ao capi- rado em Economia) – Instituto de Economia,
tal internacional, cujas implicações internas Universidade Estadual de Campinas, Campi-
significam uma subordinação estrutural da nas, 2009.
economia brasileira à mundialização finan-
ceira, em que a política econômica tornou-se CARNEIRO, R. Desenvolvimento em crise: a
refém até os dias de hoje da crescente necessi- economia brasileira no último quarto do século
dade de garantir canais para a mobilidade dos XX. São Paulo: Unesp: IE-Unicamp, 2002.
fluxos de capitais. Longe de esse processo ter
sido rompido, ele passou por sucessivos es- ______. (Org.). A supremacia dos mercados e a
tágios de maturação e continua praticamente política econômica do governo Lula. São Pau-
intacto atualmente garantindo cada vez mais lo: Unesp, 2006.
elevados níveis de mobilidade ao capital. Essa
rota neoliberal, portanto, sepulta qualquer ho- CARVALHO, C. E. “O fracasso do Plano Col-
rizonte de reformas civilizacionais por dentro lor: erros de execução ou concepção?” Revista
da ordem capitalista que favoreça a maioria da Economia, Anpec, v.4, n. 2, jul./dez. 2003.
sociedade, uma vez que o sentido de sua exis-
tência é cumprir permanentemente os precei- CELLI JÚNIOR, U. “Acordos de investimen-
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ca à realidade. Estudos Econômicos, São Paulo, ment: How Much Has Happened? Washington:
v. 24, n.1, jan./abr. 1994. Institute for International Economics, 1990.

RUBBI, C. O fluxo de capitais no Brasil: as- Notas


pectos legais e suas consequências em termos
1
de investimento estrangeiro. Florianópolis: Esse trabalho se constitui como uma par-
UFSC, 2005. Mimeo. te modificada do capítulo 3 de nossa tese
(CAMPOS, 2009), cuja pesquisa foi finan-
SAMPAIO JÚNIOR, P. S. A. Padrão de reci- ciada pela Fundação de Amparo à Pesquisa
clagem da dívida externa e política econômica do Estado de São Paulo (FAPESP).
do Brasil em 1983 e 1984. 1988. Dissertação
2
(Mestrado em Economia) – Instituto de Eco- Segundo Rubbi (2005) os principais instru-
nomia, Universidade Estadual de Campinas, mentos de controle dos países subdesenvol-
Campinas, 1988. vidos a serem atacados na Rodada Uruguai,
principalmente pelos EUA e Japão, eram
SARTI, F. A Internacionalização comercial e os seguintes: 1) exigência de componen-
produtiva no Mercosul nos anos 90. Campinas: tes nacionais na produção de determinados
2001. Tese (Doutorado em Economia) – Ins- produtos oriundos de empresa multinacio-
tituto de Economia, Universidade Estadual de nal; 2) exigência de equilíbrio comercial,
Campinas, Campinas, 2001. isto é, importar de forma compatível com

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 25-42 / Jul-Dez 2011


38 Neoliberalismo e desregulamentação ao capital internacional no limiar dos anos 1990

as exportações; 3) reserva de mercado para eram, entre outros, problemas frente aos
firmas nacionais em detrimento da alocação quais a posição negociadora podia se forta-
mundializada da empresa internacional; 4) lecer com a ação conjunta. Não pretendiam
destinação específica para as exportações; isolar-se do mundo nem ignorar as restri-
5) controle ao balanço de pagamentos, ções existentes, mas defender melhor, jun-
sobretudo às remessas de lucros e outras tos, os interesses de cada parte. Tratava-se,
transferências externas; 6) políticas disci- definitivamente, de definir uma estratégia
plinadoras de transferência de tecnologia; de ajuste e crescimento alternativa ao Con-
7) exigência de licenciamento; 8) necessi- senso de Washington. Isso implicava não
dade de participação do capital nacional em somente a convergência da política externa
determinados empreendimentos. mas, ao mesmo tempo, um estilo de divisão
internacional do trabalho no interior do es-
3
Segundo Batista (1994, p. 5), “em novem- paço comum. Daí a estratégia de integração
bro de 1989, reuniram-se na capital dos industrial dos setores líderes, dentro da qual
Estados Unidos funcionários do governo o protocolo referente a bens de capital foi
norte-americano e dos organismos finan- a iniciativa mais eloquente. A estratégia foi
ceiros internacionais ali sediados – FMI, radicalmente modificada pelos presidentes
Banco Mundial e BID – especializados em Menen e Collor. A partir da Ata de Buenos
assuntos latino-americanos. O objetivo do Aires (julho de 1989), a integração setorial
encontro [...] era proceder a uma avaliação intra-industrial foi substituída pela liberali-
das reformas econômicas empreendidas nos zação linear e automática do intercâmbio.
países da região. Para relatar a experiência O mercado assumiu, então, a condução do
de seus países também estiveram presentes processo e a política desapareceu pratica-
diversos economistas latino-americanos. mente do mapa”. Para maiores detalhes so-
Às conclusões dessa reunião é que se daria, bre esse tema ver Guimarães Neto (1999),
subsequentemente, a denominação informal Menezes (2006) e Sarti (2001).
de ‘Consenso de Washington”. A fonte do
5
documento oficial é Williamson (1990). A As adversas condições econômicas que per-
crítica sistemática a esse artigo poder ser mearam toda a década de 1980 foram ges-
encontrada em Lima (2008). tadas por um ajuste recessivo imposto pelo
FMI que, segundo Sampaio Júnior (1988),
4
A dimensão dessa ruptura no processo de forçou o país a praticar uma política fiscal
política externa do cone-sul, sobretudo para de cortes de investimento e salários no se-
Argentina e Brasil, Aldo Ferrer (1999, p. 7), tor público; redução dos salários reais por
colocou nos seguintes termos: “os acordos meio de modificações via leis de reajuste;
Alfonsín-Sarney revelam que, na época, os políticas cambiais voltadas para desvalori-
governos compartilhavam um projeto de re- zação da moeda nacional, aumento de juros
lacionamento com a ordem mundial e uma e contração creditícia. Os efeitos imediatos
interpretação das tendências da ordem glo- desse conjunto de política econômica foram
bal. Os documentos e declarações de fun- a contração do PIB, a diminuição dos inves-
dação revelam, de fato, que os governos timentos e a queda da renda per capita, sem
estavam preocupados com a dimensão de necessariamente gerar uma contração efeti-
seus problemas internos e que julgavam ne- va nos níveis elevados de inflação. A obser-
cessário modificar o estilo de relação com o vação estatística dessa crise, principalmente
resto do mundo para resolvê-los. A dívida, os dados referentes ao PIB, taxa de salários
a vulnerabilidade externa e a gravitação das reais, a formação bruta de capital fixo e a
condicionalidades impostas pelos credores produção industrial. Sobre a análise de todo

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 25-42 / Jul-Dez 2011


Fábio Antonio de Campos 39

o processo de estagflação ver Belluzzo e Al- bilhões. Os impactos foram modestos na es-
meida (2002) e Carneiro (2002) A questão trutura produtiva interna, porém, o aumento
inflacionária sob um enfoque estrutural está do coeficiente de penetração das importa-
esboçada em Tavares e Belluzzo (1986). ções (importação/produção) já apresentava
Por último, os impactos sociais desse pro- um padrão de expansão que iria permane-
cesso recessivo podem ser conferidos em cer inalterado até o final da década. Para o
Henrique (1999). total industrial, o coeficiente de penetração
de importações saiu de um patamar de 4,3%
6
Para o entendimento da política macroeco- em 1989 para 7,4% em 1992, chegando em
nômica do período e sua relação com o flu- 1998 ao percentual de 20,3%. Para o setor
xo de capitais estrangeiros ver Appy (1994), de bens de capital tal coeficiente teve maior
Belluzzo e Almeida (2002), Carvalho crescimento, visto que foi de 11,9; 26,8 e
(2003), Margarido (1997), Meyer (1994) e 100,3%, respectivamente. Os dados desta
Nascimento (2003). nota foram incorporados a partir da análise
de Ulhôa (2003a). Para maiores esclareci-
7
De acordo com as fontes obtidas a partir mentos sobre os impactos do processo de
da pesquisa institucional de Nascimento abertura comercial nessa fase ver Coutinho
(2003), dentre as várias medidas de aber- e Ferraz (1994), Laplane e Sarti (1998),
tura comercial, ele destaca as seguintes: 1) Moreira (1999a), Moreira, (1999b) e Ulhôa
eliminação dos controles quantitativos das (2003b).
importações com similar nacional, revogan-
8
do-se o chamado Anexo C, o qual barrava a A centralização cambial instituída pelo Go-
importação de 1.300 produtos; 2) redução verno Sarney se deu pela Resolução 1.564
paulatina da alíquota nominal de importação do Bacen de 16/01/1989, sendo revogada
– e para os bens de capital sem produção in- no governo Collor pelos seguintes instru-
terna foi instituída a alíquota zero; 3) extin- mentos: Comunicado 2.099 do BACEN de
ção de reserva de mercado para importação 14/5/1990 e Carta-Circular 2.105 do BA-
de produtos de informática; 4) redução para CEN de 27/7/1990.
o quantum adicional de fretes marítimos e
9
de tarifas portuárias; 5) além da diminui- Carta-Circular 2.161 do Bacen de 18/4/1991.
ção gradual de todas as barreiras tarifárias e
10
não-tarifárias para os países que faziam par- Carta-Circular 2.198 do Bacen de 15/8/1991.
te do Tratado de Assunção (1991). Embora
11
a política comercial fosse bem expressiva Decreto nº 368 de 16/12/1991.
nesta fase inicial de abertura, seus efeitos
12
só seriam sentidos com maior intensidade Artigo 50 da Lei nº 8.383 de 30/12/1991.
na segunda metade dos anos 90. Não obs-
13
tante, houve já nesse momento um aumento Carta-Circular 2.266 do Bacen de 13/3/1992.
significativo da taxa de crescimento das im-
14
portações, cuja média chegou a quase 10% Outras medidas editadas posteriormente ao
para o período de 1990 e 1993, enquanto governo Collor aprofundaram o caráter li-
a taxa de crescimento das exportações foi beralizante da redução de impostos sobre as
de apenas 3,3%. Mesmo assim, o volume remessas de lucro e dividendos, tais como:
de exportações se manteve num patamar a) a Instrução Normativa n° 12 da Secretaria
maior que o de importações, proporcio- da Receita Federal de 17/11/1992 que esta-
nando para o mesmo período superávits beleceu diretrizes para determinação do im-
comerciais médios da ordem de US$ 12,4 posto sobre a renda devida por investidores

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 25-42 / Jul-Dez 2011


40 Neoliberalismo e desregulamentação ao capital internacional no limiar dos anos 1990

estrangeiros nos reinvestimentos de lu- indevidamente exploradas pelo setor públi-


cros; b) a Lei nº 8.685 de 20/7/1993, que co; II – contribuir para a redução da dívida
revogou o art.45 da L4.131/62; a L8.981 pública, concorrendo para o saneamento
modificada pelo DL 862/69, que previa os das finanças do setor público; III – permitir
rendimentos oriundos da exploração de pe- a retomada de investimentos nas empresas
lículas cinematográficas; c) a Lei nº 8.981 e atividades que vierem a ser transferidas à
de 20/1/1995, que previa que os residentes iniciativa privada; IV – contribuir para mo-
ou domiciliados no exterior estivessem su- dernização do parque industrial do País, am-
jeitos às mesmas normas de tributação pelo pliando sua competitividade e reforçando a
imposto de renda previstas para os residen- capacidade empresarial nos diversos setores
tes ou domiciliados no país; d) por fim, a da economia; V – permitir que a adminis-
Lei nº 9.249 de 26/12/1995, que extinguiu o tração pública concentre seus esforços nas
imposto de renda sobre as remessas de lucro atividades em que a presença do Estado seja
e dividendos de empresas estrangeiras no fundamental para a consecução das priori-
país, a não ser para ganhos de renda fixa e dades nacionais; VI – contribuir para o for-
de capital, sobre cujos rendimentos incidiria talecimento do mercado de capitais, através
uma alíquota de 15%. do acréscimo da oferta de valores mobiliá-
rios e da democratização da propriedade do
15
Resolução nº 1.734 de 31/07/1990 e Reso- capital das empresas que integrarem o Pro-
lução nº 1.853 de 31/07/1991. grama”

16 21
Resolução nº 1.834 do Conselho Monetário Nos governos posteriores ao de Collor,
Nacional de 26/06/1991, Circular 2.199 do esse limite seria abolido (Artigo 13 da Lei
Bacen de 16/07/1992 e Carta-Circular 2.324 8.031), permitindo ao capital internacional
do Bacen da mesma data. adquirir até 100% de ações do capital vo-
tante (Decreto nº 724 de 19/1/1993 e Decre-
17
Resolução nº 1.921 de 30/04/1992 e Reso- to nº 1.204 de 27/7/1994).
lução nº 2.012 de 30/07/1993. Interpretação
22
baseada inteiramente em Margarido, op. Resolução nº 1.810 do Bacen de 27/3/1991,
cit., 1997. sendo revogada pela Resolução nº 1.894
do Bacen de 09/01/1992, que diminuiu o
18
Entre os quais, destacamos os seguintes: 1) prazo de 12 para 6 anos de permanência
Fundos de Privatização – Capital Estrangei- dos recursos convertidos no país. Esta, por
ro; 2) Carteiras de Investidores Institucio- sua vez, foi revogada pela Carta-Circular
nais; 3) Depository Receipts; 4) Fundos de 2.905 do Bacen de 24/3/2000, que elimina-
Renda Fixa – Capital Estrangeiro. va definitivamente a exigência de prazos
mínimos de permanência no país dos re-
19
Instrução nº 142 do Bacen de 16/04/1991. cursos oriundos de conversão de operações
de crédito externo em investimento ou de
20
Não foi por outro motivo que o Progra- títulos permutáveis lançados no exterior
ma Nacional de Desestatização (PND), em ações.
segundo o seu artigo 1º (Lei nº 8.031 de
23
14/04/1990), apresentava em seus objetivos Além da diminuição e extinção dos prazos
uma influência direta dos receituários libe- de permanência do capital convertido em
rais impostos externamente: “I – reordenar a ações de empresas estatais foram instituídas
posição estratégica do Estado na economia, novas medidas que procuravam impor maior
transferindo à iniciativa privada atividades velocidade ao processo de privatização,

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 25-42 / Jul-Dez 2011


Fábio Antonio de Campos 41

26
tais como a criação do Conselho Nacional Uma interpretação dos efeitos dessa legisla-
de Desestatização por meio do Decreto nº ção que extinguiu a reserva de mercado para
1.204 de 27/7/1994, a Circular 2.832 do Ba- o setor de informática poder ser conferida
cen de 24/8/1998 e a Carta-Circular 2.810 em Garcia e Roselino (2002). Vale lembrar,
do Bacen de 24/4/1998. de forma complementar, que a desregula-
mentação setorial no governo Collor não fi-
24
O Decreto-lei nº 2.433 de 19/5/1988 priori- cou restrita apenas à questão da informática,
zaria por meio de instrumentos financeiros pois o Decreto nº 0-007 de 15/04/1991 aca-
relativos à política industrial a moderniza- bou também com a reserva de mercado ao
ção tecnológica, tentando impor uma ten- capital nacional no setor de engenharia, cuja
dência de abertura comercial e uma forma principal atividade protegida era a prestação
de incentivar o aumento da produtividade de serviços de consultoria técnica aos órgãos
do parque produtivo, ao passo que o Decre- de Administração Federal.
to-lei nº 2.452 de 29/7/1988 garantia que
27
as empresas estabelecidas em ZPEs fica- A partir do Plano Real em 1994, como for-
riam livres do imposto de renda para todas ma de permitir uma ampliação ao acesso
as suas remessas ao exterior, dos impostos do capital internacional às novas áreas da
de importação, Finsocial, IOF e imposto economia brasileira, foram adotados para
cambial. Além disso, seriam liberadas do vários setores produtivos e financeiros ins-
licenciamento de importação e de qualquer trumentos que procuravam impor isonomia
outro expediente cambial, a não ser para entre o capital nacional e as empresas mul-
normas de cunho sanitário, de segurança tinacionais. Por meio de emendas consti-
nacional, de meio ambiente e as da Lei de tucionais de 1995 e outros dispositivos, o
Informática. governo FHC eliminou os últimos entraves
que ainda restavam ao livre trânsito do ca-
25
Outras medidas ampliaram e aprofunda- pital internacional à economia brasileira.
ram o caráter liberalizante da legislação Dentre eles, destacamos os seguintes: 1)
destinada a disciplinar a transferência de dissolveu-se o monopólio de exploração
tecnologia, tais como: 1) a Carta-Circular direta, pelos Estados, da distribuição de
n.º 2.282 de 02/06/1992, que divulgaria gás canalizado (a Emenda Constitucional
novas condições para registro de investi- nº 5 de 18/08/1995 que altera o art. 25 da
mentos estrangeiros mediante conferên- Constituição de 1988); 2) extinguiu-se o
cia de direito sobre patentes ou marcas, conceito de “empresas brasileiras de capi-
a título de integralização de capitais; 2) tal nacional” que lhes dava certas vantagens
a Resolução 35 do INPI de 26/06/1992, definidas pela Constituição de 1988 em
que passou a admitir o exame e o registro relação à empresa estrangeira. O princípio
de acordos de franchising; 3) a Instrução de igualdade permitiria ao capital interna-
Normativa 120 do INPI de 17/12/1993, cional usufruir dos contratos de concessão
que simplificou o registro de contratos pública nos mesmos termos da empresa pri-
de licenciamento e transferência de tec- vada brasileira. Por meio da Emenda Cons-
nologia, de franchising, de assistência titucional nº 6 de 18/08/1995, alteraram-se
científica e técnica; 4) a Lei nº 9.279 de os arts. 170 e 171, resgatando o princípio de
14/05/1996, que flexibilizou o poder dis- isonomia do art. 5º da própria Constituição
cricionário do INPI tal como tinha sido de 1988, ou mesmo o art. 2º da L4131/62.
constituído no Art. 2 da L5.648/70, sobre- Além desses novos instrumentos, a Lei nº
tudo no que diz respeito à concessão de 9.249 de 26/12/1995 ampliou o princípio de
patentes e outras disposições. isonomia ao alterar a legislação do imposto

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 25-42 / Jul-Dez 2011


42 Neoliberalismo e desregulamentação ao capital internacional no limiar dos anos 1990

de renda das pessoas jurídicas, bem como (Exposição de Motivos nº 311 do Ministério
da contribuição social sobre o lucro líquido. da Fazenda de 23/08/1995 do Ministério da
“O ganho de capital auferido por residente Fazenda apud Margarido, 1997). Para uma
ou domiciliado no exterior será apurado e análise do Plano Real ver Filgueiras (2006).
tributado de acordo com as regras aplicáveis
28
às empresas de capital nacional” (art. 18); Para maiores detalhes sobre a política
3) aboliu-se o monopólio dos armadores na- econômica do governo Lula ver Carneiro
cionais, constituído desde o século XIX, no (2006) e Filgueiras e Gonçalves (2007). O
que se refere ao transporte de carga em ca- modelo neoliberal, analisado de uma for-
botagem e à navegação interior, permitindo ma articulada e complexamente determina-
o ingresso, nessas atividades, de embarca- da por frações de classes de Collor a Lula,
ções estrangeiras (a Emenda Constitucio- pode ser visto em Filgueiras (2006).
nal nº 7 de 18/08/1995 alterou o art. 178 da
29
Constituição de 1988); 4) eliminaram-se os Sobre o papel recente do IDE na economia
dispositivos que reservavam às operadoras brasileira ver Filgueiras e Pinheiro (2008) e
de telefonia, telégrafo e comunicações o Laplane e Sarti (2006).
controle estatal, sendo permitidas as con-
cessões de tais setores para as empresas Fábio Antonio de Campos
privadas, inclusive estrangeiras (a Emenda * Professor do Instituto de Economia da
Constitucional nº 8 de 18/08/1995 alterou o Unicamp.
art. 21 da Constituição de 1988); 5) flexibi-
lizou-se o monopólio estatal do petróleo, ao
conceder o fim da exigência de que as auto-
rizações ou concessões de pesquisa e de la-
vra de minérios e gás natural fossem apenas
outorgadas às “empresas brasileiras de ca-
pital nacional” (Emenda Constitucional nº 6
de 18/08/1995). Além disso, abriu-se a pos-
sibilidade para que o setor privado, inclusi-
ve estrangeiro, fosse contratado para fazer o
refino de petróleo nacional e/ou importado,
comercialização de seus produtos e deriva-
dos básicos e o seu transporte. Essas flexi-
bilizações foram feitas por meio da Emenda
Constitucional nº 9 de 18/08/1995, que dava
nova redação ao art. 177 da Constituição de
1988, reservando a exclusividade à União,
na contratação de empresas privadas para
a realização das atividades monopolizadas
do setor petrolífero. A regulação de tais
contratações e a forma de administração do
monopólio seriam elementos confiados à le-
gislação ordinária (tal como a Lei nº 9.478
de 06/08/1997); 6)- por fim, abriu-se para
os investimentos estrangeiros a participação
acionária nos setores financeiros nacionais,
até mesmo para aquisição do seu controle

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 25-42 / Jul-Dez 2011


43

artiGo

Neoliberalismo: apontamentos histórico-econômicos e


acirramento de sua implementação no governo FHC

Carlos Henrique Lopes Rodrigues*

Resumo: O objetivo deste trabalho é fazer um resgate do processo histórico-econômico que propiciou a implementa-
ção do neoliberalismo e a introdução da cartilha neoliberal, conhecida como Consenso de Washington. Essa política
econômica permitiu um aumento do nível de exploração dos países da América Latina, os quais passaram a remunerar
de maneira mais signiicativa o capital inanceiro mundial – quando o setor produtivo apresentava uma tendência à
diminuição da taxa de lucro nos grandes centros capitalistas – através do recrudescimento da dívida pública, fruto da
inanceirização e retomada da hegemonia estadunidense. Entendemos que o acirramento da implementação da política
neoliberal deu-se no Brasil no primeiro mandato do governo FHC, para tanto, analisaremos a Retomada da Hegemonia
dos Estados Unidos, a Globalização e Financeirização, os Pressupostos do Neoliberalismo, o Consenso de Washington,
a Renegociação da Dívida Externa, o Plano Real, a Fragilização das Contas Nacionais e as Privatizações.

Palavras-chave: Consenso de Washington, Neoliberalismo, Privatizações, Financeirização.

Abstract: The objective of this article is to make a rescue of the historical-economic process which prompted imple-
mentation of neoliberalism and the introduction of neoliberal primer, known as the Washington Consensus. This eco-
nomic policy allowed an increase in the level of exploitation of the countries of Latin America, that began to pay more
signiicantly the global inancial capital – when the productive sector had a tendency of decrease of the rate of proit in
large capitalist centres – through the increase of public debt, as a result of inancialisation and resumption of American
hegemony. We believe that the iercer neoliberal policy implementation came to Brazil in Fernando Henrique Cardoso´s
irst government mandate, for both, we will look at resumption of United States Hegemony, Globalisation and Finan-
cialisation, the Assumptions of Neoliberalism, the Washington Consensus, the Renegotiation of External Debt, the Real
Plan, the Weakening of National Accounts and the Privatizations.

Keywords: Washington Consensus, Neoliberalism, Privatizations, Financialisation.

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 43-57 / Jul-Dez 2011


44 Neoliberalismo: apontamentos histórico-econômicos e acirramento de sua implementação no governo FHC

Introdução “em desenvolvimento”, com maior seguran-


ça. O Plano Real garante esta estabilidade e
A política neoliberal iniciou-se oficialmente o pagamento dos juros das dívidas através de
no Brasil com a eleição de Fernando Collor de elevados superávits primários, isso faz com
Mello, a partir de 1990, tendo continuidade com que nossa dívida pública aumente significa-
os dois mandatos de Fernando Henrique Cardo- tivamente no período e o pagamento dos ju-
so e do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. ros dessa dívida passe a ser o maior gasto do
Contudo, o objetivo deste artigo é analisar governo brasileiro, em detrimento de investi-
o contexto histórico-econômico do neolibe- mentos internos por parte do Estado que ga-
ralismo e o período do primeiro mandato do rantam o aumento da capacidade produtiva da
governo Fernando Henrique Cardoso, por en- nação, da diminuição do nível real de salário e
tendermos que este promoveu o acirramento da redução de postos e trabalho.
da política neoliberal no Brasil e o presidente As privatizações fazem parte das metas do
Lula deu continuidade à mesma. Ainda quando Consenso de Washington, pois permite que es-
Ministro da Fazenda FHC renegociou a dívida sas empresas lucrativas e monopolistas passem
externa brasileira, conseguindo total apoio da para as mãos do grande capital superacumulado
comunidade financeira internacional para sua e o dinheiro arrecadado pelo Estado – pouco,
eleição e a implantação do Plano Real. pois o valor dessas empresas é subfaturado e
O Brasil sempre foi um país integrado à o governo financia uma parte de sua aquisição
economia mundial, desde a época da chegada através de bancos de fomento – sirva de garan-
dos portugueses à Colônia e antes da implanta- tia ao pagamento da dívida pública.
ção do neoliberalismo, com os militares, atra-
vés principalmente do endividamento externo, Contextualização Histórica
pois na década de 70, dado o afluxo de dinheiro
no mercado financeiro, fruto dos petrodólares, O Brasil sempre foi um país integrado à
o governo incentivava as empresas nacionais e economia internacional, desde a época de sua
estrangeiras a capitanear recursos no exterior. colonização, manteve uma relação de comple-
Devido à crise estrutural do capital que ocorreu mentaridade com a Metrópole, sendo esta, de
na primeira metade da década de 70, esses juros acordo com Caio Prado Júnior o “Sentido da
eram baixos, porém flexíveis. Quando os Es- Colonização”, contribuindo no que Marx deno-
tados Unidos em fins da década de 70 e início minou de “acumulação primitiva de capital”.
da década de 80 resolvem aumentar a taxa de Apesar do discurso oficial de que com a
juros, os países da América Latina veem suas implantação do neoliberalismo o Brasil tor-
dívidas aumentarem sobremaneira e alguns de- nou-se mais atuante no cenário internacional,
cretam a moratória, como é o caso do México, isso apenas se justifica se considerarmos o
em setembro de 1982 e outros, como o Brasil, Brasil enquanto país remunerador do capital
decidem pagar os juros da dívida. Desta forma, financeiro dentro do processo de reprodução
na década de 1980 o Brasil foi exportador lí- ampliada do capital.
quido de capitais, pagando os juros abusivos da A ditadura militar havia sido implantada
dívida externa através de superávits elevados para impedir um projeto de desenvolvimento
em sua balança comercial. propriamente nacional, mesmo que nos marcos
Beneficiado pelo retorno de capitais finan- do modo de produção capitalista, mas nem isso
ceiros no início da década de 90, dado que os é permitido a um país periférico, pois compro-
Estados Unidos baixaram suas taxas de juros, mete a acumulação de capital nos países cen-
torna-se necessária uma estabilidade macroe- trais do capitalismo. Temos como exemplo,
conômica para esses recursos instalarem-se a Lei de Remessas de Lucros, que, conforme
nos países periféricos, agora denominados Gennari (1999, p. 30),

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 43-57 / Jul-Dez 2011


Carlos Henrique Lopes Rodrigues 45

[...] o governo brasileiro, ao promulgar segurança fosse maior, apesar das taxas de ju-
a Lei 41311, tocou num aspecto central ros serem menores. Nessas condições, o FMI
do imperialismo daquele período, qual vai atuar nos países devedores da América Lati-
seja, impediu que a mais-valia criada na no sentido de garantir que estes honrem seus
na esfera nacional (de país receptor de compromissos com os credores internacionais.
investimentos diretos) retornasse para a Com isso, o FMI aplicou seu receituário
origem, rompendo assim o próprio ciclo e no caso do Brasil este deveria obter divisas
internacional do capital. através do saldo de sua balança comercial, pro-
movendo a desvalorização cambial, contenção
Contudo, após o Golpe Militar, em 1964, das importações, incentivos às exportações e
esta Lei é modificada, permitindo mais liber- depreciação do salário do trabalhador.
dade ao envio de remessas de lucro ao exterior, Em 1989, quando Fernando Collor de Mel-
numa situação de crise estrutural do capital, lo, com o discurso e um comprometimento
aliada ao Estado do Bem-Estar Social em certas com a política neoliberal derrota Luiz Inácio
regiões do Globo, o que possibilita capitanear Lula da Silva, cujo discurso, pelo menos na-
recursos sobrantes no mercado internacional quele momento, era contrário à implementação
para levar adiante os Planos Nacionais de De- da política neoliberal, esboçada no Consenso
senvolvimento dos governos militares. de Washington, inicia-se, a implementação do
Quando os militares, após o Golpe chega- neoliberalismo no Brasil.
ram ao poder, a dívida externa brasileira era de Após o impeachment de Fernando Collor,
2,5 bilhões, e em 1985, passou para mais de seu vice Itamar Franco assume a presidência e
100 bilhões de dólares. Segundo Francisco de Fernando Henrique Cardoso, que sempre teve
Oliveira (1995, p. 24-25), a disposição de ser candidato à presidência da
República é chamado por Itamar Franco para
[...] a verdade é que foi a ditadura que ser o novo Ministro da Fazenda, deixando o
começou o processo de dilapidação do cargo de Ministro das Relações Exteriores e,
Estado brasileiro, que prosseguiu sem nesse processo, há o acirramento da introdução
interrupções no mandato ‘democrático’ do neoliberalismo no Brasil.
de José Sarney. Essa dilapidação propi-
ciou o clima para que a ideologia neoli- Retomada da Hegemonia dos Estados Unidos
beral, então já avassaladora nos países
desenvolvidos, encontrasse terreno fértil No fim da Segunda Guerra Mundial, tor-
para uma pregação anti-social. Aqui no nou-se necessária a criação de um novo Siste-
Brasil não apenas pelos reclamos anties- ma Monetário Internacional, que significa, se-
tatais (na verdade anti-sociais) da grande gundo Gonçalves (1998, p. 271), “o conjunto
burguesia, mas, sobretudo pelos recla- de regras e convenções que governam as rela-
mos do povão, para o qual o arremedo ções financeiras entre os países”. Porque o uso
de social-democracia ou do Estado de de um instrumento monetário aceitável como
bem-estar, ainda que de cabeça para bai- meio de pagamento e como unidade de conta
xo, tinha falhado completamente. para os participantes das transações internacio-
nais é um pré-requisito para o desenvolvimento
Em setembro de 1982, com o pedido de do comércio internacional. O Sistema Monetá-
moratória do governo mexicano, que não con- rio Internacional requer a existência de regras
seguiu continuar pagando o serviço da dívida claras, aceitas por todos os países que dele par-
externa, os bancos privados reagiram inviabi- ticipam (Gonçalves, 1998).
lizando os créditos novos para os países deve- Em 1944, os delegados de 45 países não-
dores, estes agora foram para regiões onde a comunistas participam de uma conferência

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46 Neoliberalismo: apontamentos histórico-econômicos e acirramento de sua implementação no governo FHC

em Bretton Woods com o propósito de refor- menor que a quantidade de dólares no exterior.
mar o Sistema Monetário Internacional, ago- Segundo Moffitt (1986, p. 29),
ra não sob a liderança da Grã-Bretanha e sim
dos Estados Unidos. De acordo com Moffitt durante a campanha presidencial de
(1984, p. 20), 1960 houve uma explosão na especu-
lação do preço do ouro, quando circu-
o principal objetivo dos acordos de laram rumores de que o crescente dese-
Bretton Woods era proporcionar um cli- quilíbrio entre dólares e ouro forçaria os
ma monetário estável a fim de facilitar Estados Unidos a suspender a venda de
uma retomada do comércio internacio- ouro. Em outubro, o preço do ouro esta-
nal. Havia a intenção de estabelecer no- va acima de US$ 40 a onça.
vas regras de comércio, com as quais os
países comerciantes pudessem conviver No decorrer dos anos 60, os estoques es-
e confiar a uma nova agência internacio- tadunidenses de ouro continuaram a minguar
nal a autoridade de fazê-las cumprir. enquanto aumentavam as reservas em dólar no
exterior. Para Moffitt (1986, p. 29), “[...] a raiz
A solução de Bretton Woods para a desor- do problema estava nos volumosos e crescen-
dem monetária era um meio termo entre a ado- tes déficits americanos e na Guerra do Vietnã”.
ção de um padrão completo de papel-moeda e Com relação aos déficits, os Estados Unidos
um retorno ao padrão-ouro. Os Estados Unidos, perderam o controle sobre seu balanço de pa-
que saem da II Guerra Mundial com 75% de gamentos, além disso a Alemanha e o Japão
todo estoque mundial de ouro compromete-se reemergiram como grandes competidores fi-
a trocar saldos em dólares no exterior por ouro, nanceiro e industrial, respectivamente.
ao preço de US$35,00 a onça2. Em 1971 o governo estadunidense Nixon
As regras básicas para a política cambial rompe com o padrão ouro-dólar, descomprome-
do período Bretton Woods estavam centradas tendo-se em trocar os dólares por ouro mundo
em critérios associados à atuação do FMI, que afora e os Bancos Centrais que detinham gran-
se responsabiliza em garantir o fechamento do des reservas de dólares decidem não se desfazer
Balanço de pagamentos dos países e o contro- dessa moeda sob pena de ter uma desvaloriza-
le sobre a variação cambial dos mesmos; do ção significativa da mesma e, consequentemen-
BIRD que tinha o papel de conseguir o dinheiro te, de suas reservas.
necessário à Europa para os projetos essenciais Quando acontece o primeiro choque do pe-
de sua reconstrução e do Gatt, cujo objetivo era tróleo, em 1973, quem se beneficia, além dos
garantir o liberalismo econômico. países produtores de petróleo, organizados atra-
As exportações de capital através do Banco vés da OPEP, são os Estados Unidos. De acordo
Mundial, logo se mostraram insuficientes para com Beaud (1991, p. 334),
satisfazer às enormes necessidades européias
de investimento. O governo dos Estados Uni- os industriais americanos têm interesse
dos, Truman, apresentou o Plano Marshall, em no aumento do preço do petróleo, dado
junho de 1947, como essencial para evitar a do- que: de fato, eles se abastecem, em 80%,
minação socialista na Europa. em bruto americano, a três dólares por
Outra forma que os Estados Unidos encontra- barril, ao passo que os europeus e os
ram para expandir sua moeda foi aumentar suas japoneses se abastecem, em 100%, em
divisas líquidas com o resto do mundo. Os Esta- bruto comprado a dois dólares o bar-
dos Unidos mantendo déficits frequentes estimu- ril; acrescentando-se à desvalorização
lariam a economia mundial; contudo, já em 1960, do dólar, a elevação do preço do pe-
o montante de ouro do sistema estadunidense era tróleo mundial contribui também para

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Carlos Henrique Lopes Rodrigues 47

melhorar a situação dos industriais ame- financeiro mundial e conseguem, a um baixo


ricanos em relação a seus concorrentes custo, dada a valorização de sua moeda e com
da Europa e do Japão. financiamento do mundo todo, modernizar
seu parque industrial.
Com isso, verifica-se que o aumento do pre- No acirramento da competição entre os paí-
ço do petróleo fortalece os Estados Unidos em ses desenvolvidos, os Estados Unidos dispõem
relação a seus principais concorrentes capitalis- de uma vantagem, que é o fato de sua moeda
tas. Mas, principalmente, ele aumenta conside- ser a moeda do mundo, dessa forma, todo co-
ravelmente as receitas de exportação dos países merciante e todo especulador estadunidenses
produtores de petróleo. De acordo com Harvey dispõem de meios de compra no mundo inteiro.
(2004, p. 58), De acordo com Tavares (1997, p. 35),

o conluio (hoje documentado) entre a ao manter uma política monetária dura


administração Nixon e os sauditas e ira- e forçar uma sobrevalorização do dólar,
nianos para elevar loucamente em 1973 o FED retomou na prática o controle
os preços do petróleo prejudicou muito dos seus próprios bancos e do resto do
mais as economias européias e japonesa sistema bancário privado internacional
do que os Estados Unidos (que na épo- e articulou em seu proveito o interesse
ca não dependiam muito das reservas do dos demais bancos [...]. A partir daí o
Oriente Médio). Os bancos norte-ameri- sistema de crédito interbancário orien-
canos (em vez do FMI, que era o agente tou-se decisivamente para os Estados
preferido das outras potências capitalis- Unidos e o sistema bancário passou a fi-
tas) obtiveram o privilégio monopolis- car sob o controle da política monetária
ta de reciclar petrodólares na economia do FED, que dita as regras do jogo. As
mundial, trazendo de volta para casa o flutuações da taxa de juros e de câmbio
mercado do eurodólar. ficaram novamente amarradas ao dólar,
e através delas o movimento da liqui-
Na década de 1970, para os Estados Uni- dez internacional foi posta a serviço da
dos reafirmarem sua hegemonia econômica, política fiscal estadunidense. A partir
foi necessário enquadrar tanto o Japão quanto do início dos anos 80, todos os grandes
a Alemanha. “Àquela altura, os interesses em bancos internacionais estão em Nova
jogo eram tão visivelmente contraditórios que Iorque, não apenas sob a proteção do
as tendências mundiais eram policêntricas e pa- FED, mas também financiando o déficit
recia impossível aos Estados Unidos conseguir fiscal norte-americano.
reafirmar sua hegemonia, embora continuasse a
ser potência dominante” (Tavares, 1997, p. 30). Globalização e Financeirização
Os desdobramentos da política econômica
interna e externa dos Estados Unidos a par- Após a Segunda Grande Guerra Mundial,
tir de 1979 foram no sentido de reverter es- acirrou-se o processo de internacionalização
tas tendências e retomar o controle financeiro do capital, os Estados Unidos expandiram seus
internacional através da chamada diplomacia investimentos em outras regiões do Globo, de
do dólar forte. Para tanto, há uma elevação da maneira significativa, como, por exemplo, para
taxas de juros estadunidense – o que vai gerar a reconstrução de uma parte da Europa e do Ja-
a crise da dívida externa dos países periféri- pão, devastados pela Guerra.
cos na década de 1980 –, com essa política do A internacionalização se tornará mais in-
presidente do FED, Volcker, no governo Rea- tensa e generalizada, ou propriamente mundial,
gan, os Estados Unidos voltam a ser o centro com o fim da Guerra Fria, a desagregação do

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48 Neoliberalismo: apontamentos histórico-econômicos e acirramento de sua implementação no governo FHC

bloco soviético e as mudanças de políticas eco- capitalismo predominantemente rentista


nômicas nas nações de regimes socialistas. De e parasitário, cujo funcionamento pare-
acordo com Ianni (1996, p. 46): ce estar subordinado, de modo crescen-
te, às necessidades próprias das novas
[...] o que parecia ser uma espécie de formas de centralização do capital-di-
virtualidade do capitalismo como modo nheiro, em particular os fundos mútuos
de produção mundial, tornou-se cada de investimentos e de pensão. O poder,
vez mais uma realidade do século XX; se não a própria existência, deste capi-
e adquiriu ainda maior vigência e abran- tal-dinheiro – que frustou a esperança de
gência depois da Segunda Guerra Mun- Keynes de estar caminhando para ‘uma
dial. Sob certos aspectos, a Guerra Fria, eutanásia progressiva’ do capital rentista
nos anos 1946-84, foi uma espécie de e de ‘seu poder opressor’ –, é sustentado
desenvolvimento intensivo e exclusi- pelas instituições financeiras internacio-
vo do capitalismo pelo mundo. Com a nais e pelos Estados mais poderosos do
nova divisão internacional do trabalho, a planeta a qualquer que seja o custo [...].
flexibilização dos processos produtivos
e outras manifestações do capitalismo Com a tendência à diminuição da taxa de
em escala mundial, as empresas, corpo- lucro evidenciada no início da década de 1970,
rações e conglomerados transnacionais aliada às novas tecnologias, há um recrudesci-
adquirem premência sobre as economias mento do capital financeiro, como mecanismo
nacionais. Elas se constituem nos agen- de compensar essa queda da taxa de lucro no
tes e produtos da internacionalização do setor produtivo e a possibilidade de ganhos am-
capital. Tanto é assim que as transnacio- pliados do capital acumulado durante os “trinta
nais redesenham o mapa do mundo, em anos gloriosos” (Chesnais, 1992, p. 2). Nesse
termos geoeconômicos e geopolíticos processo, a introdução da política neoliberal era
muitas vezes bem diferentes daqueles imprescindível para esse capital.
que haviam sido desenhados pelos mais
fortes Estados nacionais. O que já vinha Neoliberalismo: Ideologia e Pressupostos
se esboçando no passado, com a emer-
gência dos monopólios, trustes e cartéis, O atual estágio de desenvolvimento capi-
intensifica-se e generaliza-se com as talista, foi defendido por Hayek, que em 1944
transnacionais que passam a predominar escreveu o livro O Caminho da Servidão.
desde o fim da Segunda Guerra Mun- Nesta obra, encontram-se muitas das diretri-
dial; inicialmente à sombra da Guerra zes gerais da ideologia que hoje é designada
Fria e, em seguida, à sombra da ‘nova como neoliberalismo.
ordem econômica mundial’. Em 1947, Hayek se une a partidários de
sua teoria, também contrários ao Estado de
Nesse processo, com a evolução tecnológi- bem-estar e ao New Deal, e fundam a socie-
ca ocorrida na década de 1960, principalmente dade de Mont Pélerin, com o propósito de
a microeletrônica, há um desenvolvimento sig- “combater o Keynesianismo e o solidarismo
nificativo das especulações mundo afora, com reinantes e preparar as bases de um outro tipo
facilidades do especulador poder exercer seu de capitalismo, livre de regras para o futuro”
poder de rentista. Para Chesnais (1992, p. 2), (Anderson, 1995, p. 10).
Contrário ao intervencionismo e ao socia-
[...] nas vésperas do século XXI, a eco- lismo e defendendo o neoliberalismo, argumen-
nomia mundial, efetivamente, carrega ta Hayek (1987, p. 27), que “o neoliberalismo
a marca cada vez mais nítida de um preconiza o respeito ao homem individual, ou

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seja, a aceitação de seus gostos, de suas opi- grande imprensa do mundo capitalista.
niões, a liberdade, a independência”. Esse avanço começou com uma discus-
Com a crise estrutural do capital no início são sobre política econômica. O uso dos
da década de 1970, a primeira desde a II Guerra costumeiros instrumentos para sair da
Mundial “a golpear simultaneamente todas as crise não estava dando certo e isso foi
grande potências imperialistas” (Mandel, 1990, interpretado pelos economistas das cor-
p. 9), as ideias neoliberais começam a ganhar rentes liberais como sendo a comprova-
força. De acordo com Anderson (1995, p. 10), ção do esgotamento das propostas inter-
vencionistas Keynesianas que até então
as raízes da crise, afirmavam Hayek e constituíam a base da política econômi-
seus companheiros, estavam localiza- ca dos governos capitalistas; consequen-
das no poder excessivo e nefasto dos temente, propunham uma nova política
sindicatos e, de maneira mais geral, do de caráter liberal.
movimento operário, que havia corroído
as bases de acumulação capitalista com O Consenso de Washington e sua
suas pressões reivindicativas sobre os Implementação
salários e com sua pressão parasitária
para que o Estado aumentasse cada vez Em novembro de 1989, reuniram-se em
mais os gastos sociais. Esses dois pro- Washington funcionários do governo estaduni-
cessos destruíam os níveis necessários dense e dos organismos financeiros ali sediados
de lucro das empresas e desencadeavam tais como FMI e BIRD, onde foi feito um balan-
processos inflacionários que não podiam ço da política neoliberal nos países da América
deixar de terminar numa crise generali- Latina que já o haviam implementado e uma dis-
zada das economias de mercado. cussão para implementar essa política no Brasil
e Peru (Batista, 1994). É de autoria do econo-
Assim, as conquistas da classe trabalhado- mista John Williamson o termo “Consenso de
ra, no período pós-Segunda Guerra Mundial, Washington”. Para Williamson, que participou
que ficou conhecido como Estado do bem-estar dessa reunião (Caros Amigos,1998, p. 14),
social, deveriam ser destruídas para facilitar a
reprodução ampliada do capital. [...] o termo ‘consenso’ pode parecer
Mais uma vez, o trabalhador é tido como muito forte, mas significa, pelo menos,
culpado por uma crise que é inerente ao próprio um alto grau de convergência entre os
modo de produção capitalista e, nesse sentido, economistas americanos e os da Améri-
o Estado deveria acabar com o poder dos sindi- ca Latina, e também entre os políticos,
catos e deixar a livre lei de mercado regular o pelo menos nos aspectos macroeconô-
salário dos trabalhadores. micos. E ‘Washington’ é mais que um
O ponto de partida para a implementação da lugar, são instituições: o governo dos
política neoliberal foi a depressão econômica Estados Unidos (Executivo e a parte do
da década de 1970, este período marca uma in- Congresso interessada na América La-
flexão da política econômica em nível mundial, tina), o Banco Mundial e as agências
Segundo Miglioli (1999, p. 44): do governo.

o cenário ideológico foi formado pelo A competência do Estado foi significati-


avanço das doutrinas liberais entre os vamente questionada e passou-se a admitir
teóricos da economia e da política – a falência do mesmo, visto como incapaz de
muitos dos quais eram ou passaram a ser formular políticas macroeconômicas, conse-
assessores governamentais – e atingiu a quentemente, seria necessário transferir essa

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50 Neoliberalismo: apontamentos histórico-econômicos e acirramento de sua implementação no governo FHC

grande responsabilidade a organismos interna- norte-americana é também moeda inter-


cionais, tais como o FMI e o Banco Mundial nacional. Isso, somado à fuga de divisas
(Batista, 1994). de volta para os Estados Unidos, acabou
Após a primeira crise do petróleo em 1973, de finalizar a crise do endividamento
os países da América Latina foram “eleitos” externo do terceiro mundo.
como os responsáveis para “reciclar” os “pe-
trodólares”, como havia uma crise de supera- A partir de 1980, devido principalmente
cumulção em nível mundial, as taxas de lucros a elevação da taxa de juros estadunidense e o
estavam declinantes e, consequentemente, as significativo aumento da dívida externa, os paí-
taxas de juros. Os banqueiros então estavam ses latino-americanos passaram a mandar mais
emprestando dinheiro a juros baixo, mas flexí- capital para fora do que o capital de fora que
vel – juros que podem variar e que só são fixa- entrava, de acordo com Batista (1994, p. 23),
dos depois do empréstimo realizado. “entre 1982 e 1991, US$195 bilhões de dólares,
A ditadura militar dos países da América quase o dobro, em valores atualizados, do que
Latina havia sido implantada para impedir um os Estados Unidos concederam, como doação,
projeto de desenvolvimento propriamente na- à Europa Ocidental entre 1948 e 1952, sob o
cional, assentado na soberania e voltado para Plano Marshall”.
as necessidades de sua população, nesse sen- Para adquirir as divisas necessárias ao ser-
tido, havia total confiança do grande capital viço da dívida externa, os países da América
nesse regime. Latina após a interrupção dos empréstimos
O regime militar quando instaurado no Bra- estrangeiros e a moratória mexicana em se-
sil a partir de um Golpe em 1964, financiou-se tembro de 1982, para pagar os juros da dívida
através do endividamento externo, deixando o externa buscavam nos saldos de suas balan-
Brasil ainda mais dependente da política impe- ças comerciais os recursos necessários ao pa-
rialista promovida pelos Estados Unidos. gamento dessa dívida, deixando em segundo
A decisão, estadunidense, mesmo antes da plano uma política econômica voltado aos in-
primeira crise do petróleo de desvincular o dó- teresse nacionais, como geração de emprego,
lar do ouro e de deixar flutuar sua moeda já de- desenvolvimento industrial, crescimento eco-
notava a tendência da superpotência, responsá- nômico, entre outras.
vel pela estabilidade da ordem econômica. Após retomar sua hegemonia, os Estados
O aumento da taxa de juros relativa à dí- Unidos adotam uma política econômica de di-
vida em dólares aconteceu entre 1979 e 1981, minuição das taxas de juros internas, de acordo
com a desvinculação do dólar ao ouro, os Es- com Tavares (1997, p. 61),
tados Unidos afirmavam a prevalência dos in-
teresses nacionais sobre o Globo. Com isso, os quando os Estados Unidos baixaram
Estados Unidos elevaram extraordinariamente unilateralmente a taxa de juros de 20%
as taxas de juros sobre o dólar, assim os países para 4,5% no mercado monetário de
da América Latina viram suas dívidas cres- Nova Iorque, verifica-se uma acelera-
cerem abruptamente. De acordo com Arruda ção do crescimento e da globalização
(1999, p. 20), dos mercados futuros de juros e câmbio,
com a saída de fundos de pensão nor-
A taxa média, em torno de 6,25%, su- te-americanos em busca dos chamados
biu nesses dois anos até alcançar 24% ‘mercados emergentes’ da Ásia e Amé-
ao ano. Foi uma decisão completamente rica-Latina.
unilateral do governo dos Estados Uni-
dos, que queria cobrir os déficit do país Agora os países da América Latina têm que
atraindo dólares. Acontece que a moeda se ajustar para receber esses capitais financeiros

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e remunerá-los; para tanto, propõe-se a renego- 90 exigia, para continuar seu movimento para
ciação da dívida externa, sua substituição pelo os países periféricos, de uma desregulamenta-
Plano Brady, secretário do Tesouro dos Estados ção financeira e uma estabilidade econômica.
Unidos, em fins de 1988. O Plano Real implementado ainda quando
Acompanhada a renegociação da dívida Fernando Henrique era Ministro da Fazenda
externa, vem a imposição do Consenso de cumpria algumas diretrizes preconizadas pelo
Washington, que abrange as seguintes dez Consenso de Washington, dando continuidade
áreas, segundo Batista (1994, p. 26): “1) dis- à política neoliberal já iniciada pelo governo de
ciplina fiscal; 2) priorização dos gastos pú- Fernando Collor de Mello.
blicos; 3) reforma tributária; 4) liberalização Fernando Henrique Cardoso faz do Plano
financeira; 5) regime cambial; 6) liberalização Real seu principal cabo eleitoral e, após sua di-
comercial; 7) investimento direto estrangeiro, vulgação, contou com o total apoio do Fundo
8) privatização; 9) desregulação; e 10) pro- Monetário Internacional:
priedade intelectual.”
O FMI, por seu diretor-gerente Michel
A Renegociação da Dívida Externa e o Camdessus, aceitou as promessas mais
Plano Real facilmente mensuráveis, como a de que
o déficit operacional (incluídos os juros
Ainda enquanto Ministro da Fazenda, FHC das dívidas interna e externa) será zero
é responsável pela conclusão da renegociação em 1994 e haverá um superávit primário
da dívida externa brasileira, iniciada no gover- (sem os juros) da ordem de 4% do Pro-
no Collor e intitulada Plano Brady, com esta duto Interno Bruto, e aceitou também a
renegociação o Brasil ficou obrigado a ofere- retórica da equipe econômica, no senti-
cer garantias financiadas de 2 formas: “pela do de que a introdução da URV será ca-
contratação de novos empréstimos, e, sobre- paz de eliminar a indexação “backward
tudo, pela imobilização de parte das reservas -looking”, ou seja, a que leva em conta a
do Banco Central” (Batista Júnior; Rangel, inflação passada (Editorial, Folha de S.
1994, p. 16), diferenciando-se, segundo Ba- Paulo, 17/03/94).
tista Júnior e Rangel (1994, p. 21), das rene-
gociações do México, Venezuela e Argentina, Um plano de estabilização macroeconômi-
em que: “grande parte das garantias foi finan- co era condição sine qua non para a elevação
ciada com recursos de fontes oficiais (FMI, de entrada de capitais no mercado financeiro,
Banco Mundial e outras)”, desta forma, estes principalmente para aquisição da dívida públi-
últimos com um custo menor; além de aten- ca que seria, agora, a grande responsável por
der aos interesses dos credores internacionais fechar o Balanço de Pagamentos dos países
ao acabar com a moratória parcial que havia tidos como emergentes, isto é, não será mais
desde 1989. Com essa renegociação Fernando necessário manter um saldo significativo da
Henrique demonstra para a comunidade inter- Balança Comercial, pois a entrada de recur-
nacional que podia confiar nele e apoiá-lo na sos via conta de capital será a responsável por
disputa presidencial3. equalizar o Balanço.
Em 1994, o então Ministro da Fazenda Contrariamente a década de 1980, onde o
anuncia um Plano de Estabilização Monetária, governo promovia uma política econômica
conhecido como Plano Real que, além de lhe de desvalorização cambial para incentivar as
servir de cabo eleitoral, é uma exigência inter- exportações em detrimento das importações,
nacional, pautada no Consenso de Washington, agora os países periféricos podem, inclusive,
dado que o afluxo de capital financeiro que co- ter um déficit em sua Balança Comercial, de-
meçara a emergir principalmente na década de vido a uma valorização da moeda e abertura

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52 Neoliberalismo: apontamentos histórico-econômicos e acirramento de sua implementação no governo FHC

comercial, que suas contas serão fechadas, é Reservas em Moeda Estrangeira no Banco
claro, à custa de um endividamento crescente. Central do Brasil
O Plano Real foi um programa de estabili- (Conceito Caixa em US$ milhões)
zação apresentado ao país em 7 de dezembro 1990 9.973
de 1993, sendo que seu sustentáculo teórico 1991 9.406
residia nos estudos de Pérsio Arida e André 1992 23.754
Lara Resende, eles propunham que se fizes- 1993 32.211
se uma reforma monetária capaz de retirar o 1994 38.806
componente inercial da inflação, sem controle 1995 51.840
de preços como havia ocorrido anteriormente 1996 60.110
com o Plano Cruzado. 1997 52.173
Na tentativa de conter a memória inflacio- Fonte: Gonçalves e Pomar, (2000, p. 44)
nária, o Plano Real foi implementado em 3 fa-
ses, a saber: em primeiro lugar, o governo ado- O governo, para manter a estabilidade do
tou um Programa de Ação Imediata, o PAI, que plano, adota uma taxa de juros elevada para
foi um mecanismo de equilíbrio orçamentário, atrair o capital especulativo, pois com a adoção
pois o governo, com o fim da inflação, teria di- da banda assimétrica, cujo valor de um real não
ficuldades em fechar suas contas e criou o FSE poderia exceder o valor de um dólar, necessita
(Fundo Social de Emergência) e a IPMF (Im- intervir no mercado, ofertando dólares, sempre
posto Sobre Movimentação Financeira), sendo que há a possibilidade de desvalorização do real.
o FSE o responsável justamente de tirar recur- O governo promove um aumento considerá-
sos da área social, garantido pela constituição vel da dívida mobiliária brasileira, em função da
de 1988, para o governo manejar da maneira excessiva emissão de títulos e a extraordinária
que quiser4. A segunda fase consistiria na cria- taxa de juros, como forma de atrair o capital fi-
ção de um mecanismo original de transição, nanceiro internacional. Conforme a tabela abai-
um índice único e obrigatório de indexação que xo, temos a evolução da dívida pública interna.
restituiria a função de unidade de conta da moe-
da, assim criou-se a URV. A terceira fase seria Evolução da Dívida Pública Interna
responsável pela restauração das duas outras (US$ bilhões)
funções da moeda, ou seja, a de servir como 1994 61,8
meio de troca e reserva de valor, assim ocorre- 1995 108,5
ria a transformação da URV em Real. 1996 176,2
1997 255,5
Contas Nacionais 1998 330,0
Fonte: Arruda (1999, p. 64).
O aumento considerável das reservas bra-
sileiras, em função da política econômica do Cabe-nos ressaltar que, ao mesmo tempo em
governo Collor a partir de 1992, atraindo o ca- que o pagamento com juros da dívida interna
pital especulativo, ajudou na implementação torna-se o maior gasto do governo, para remu-
do Plano Real, pois possibilitou ao governo, nerar o capital especulativo que goza de total li-
ao mesmo tempo poder ter um déficit na Ba- berdade, esta dívida aumenta significativamen-
lança Comercial, devido a política deliberada te. No primeiro mandato do governo Fernando
de abertura comercial e valorização da moeda Henrique Cardoso, o Brasil pagou mais de US$
e, mesmo assim, aumentar suas reservas cam- 210 bilhões em juros da dívida interna.
biais, o que permitiu, devido a grande entrada Além do endividamento público, há tam-
de recursos na Conta de Capital, fechar seu bém o endividamento externo, porque o gover-
Balanço de Pagamentos. no também é obrigado a contrair empréstimos

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através de pacotes do FMI, principalmente para o exterior, aos juros pagos ao serviço da
quando há algum abalo na Bolsa de Valores dos dívida e às viagens internacionais.
países ditos “emergentes” e o investidor finan- A soma dos crescentes resultados negativos
ceiro ameaça sair desse mercado. Conforme a da balança comercial e de serviços, ao mes-
tabela abaixo, constatamos a evolução da dívi- mo tempo, levou a uma deterioração da conta
da externa. de transações correntes, fragilizando o Brasil
em suas relações externas. Conforme a tabela
Dívida Externa abaixo, temos:
(US$ milhões)
Ano Total da Dívida Transações Correntes (1994-1998)
1994 148.295 (US$ bilhões)
1995 159.256
1994 -1.689
1996 179.935
1995 -18.086
1997 199.998
1998 234.694 1996 -23.138
Fonte: Gonçalves e Pomar (2000, p. 40). 1997 -30.916
1998 -33.610
Apesar desse aumento considerável da dí- Fonte: Filgueiras (2000, p. 159).

vida externa, o governo brasileiro honrou o


pagamento dos juros e amortizações da dívi- Como consequência da política econômica
da. Segundo Gonçalves e Pomar (2000, p. 22), adotada pelo governo Fernando Henrique Car-
“[...] só durante o primeiro mandato de Fer- doso temos, no período entre 1995 –1999, um
nando Henrique (1995-1998), desembolsamos déficit comercial acumulado de 24,7 bilhões de
cerca de 128 bilhões de dólares a título de juros dólares. No caso da balança de serviços, o dé-
e amortização”. ficit acumulado entre 1995 e 1999 é de 122,7
Com a introdução do Plano Real, houve bilhões de dólares.
uma armadilha para o crescimento econômico,
pois quando a economia cresce, crescem ainda Privatizações
mais os déficits comercial e de transações cor-
rentes. Conforme a tabela abaixo, observamos A política de privatização estava inserida
a inflexão da balança comercial que começou a nos pontos do Consenso de Washington, pois
ocorrer em 1995, em função do Plano Real. significava destinar ao capital privado empre-
A balança de serviços tornou-se também sas lucrativas a baixo custo, muitas vezes mo-
bastante deficitária a partir de 1994, principal- dernizadas5, com dinheiro oriundo do trabalho
mente devido ao aumento dos lucros remetidos vivo e, além disso, financiada pelo próprio

Balança Comercial
(US$ milhões)
Ano Exportações Importações Saldo
1994 43.545 33.105 10.440
1995 46.506 49.664 -3.158
1996 47.747 53.301 -5.554
1997 52.990 61.347 -8.357
1998 51.120 57.594 -6.484
Fonte: Gonçalves e Pomar (2000, p. 43).

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54 Neoliberalismo: apontamentos histórico-econômicos e acirramento de sua implementação no governo FHC

Estado com juros baixos, através de bancos de atraentes aos investidores, ainda financia sua
fomentos, como o BNDES. aquisição e aceita as chamadas “moedas po-
A partir de 1990, mais precisamente no go- dres” como parte do pagamento.
verno Fernando Henrique Cardoso, com a po-
lítica neoliberal, há um distanciamento cada Considerações Finais
vez maior entre o BNDES e as finalidades que
inspiraram sua criação. Assim, abandonado o Como resultado da implementação da po-
propósito de fazer o Brasil crescer e se de- lítica neoliberal na América Latina temos o
senvolver com a atuação direta do Estado na aumento da pobreza relativa; baixo nível de
economia, o BNDES passou a dar suporte e geração de empregos; a desnacionalização da
muitas vezes financiar a venda de empresas economia devido às privatizações; um acirra-
estatais para empresas estrangeiras. mento da deterioração dos termos de intercâm-
No dia 24 de maio de 1997, o presidente bio no mercado internacional, fruto de uma
FHC autorizou o BNDES a conceder emprésti- desindustrialização da economia; baixo cresci-
mos a grupos estrangeiros, revertendo o papel mento do PIB; um aumento absurdo da dívida
principal do banco que era o de criar condições pública, por privilegiar a remuneração do capi-
de competição para grupos nacionais. Segundo tal financeiro e voltar a política econômica para
Biondi (1999, p. 36), “na semana posterior a isso; e diminuição dos investimentos na econo-
essa medida, um grupo norte-americano com- mia interna para remunerar o capital especula-
prou um lote de um terço das ações da CEMIG tivo, através de superávits primários elevados6.
por dois bilhões de reais, com metade desse va- Com a opção política adotada pelo gover-
lor financiado pelo BNDES”. no Fernando Henrique Cardoso, constatamos
No processo de privatização, fusões e que o Brasil encontra-se numa situação sem
consolidação de empresas privadas, há a re- precedentes na história, os endividamentos,
dução do número de empregados e da capa- tanto interno quanto externo, estão sacrifican-
cidade geradora de empregos. Além da di- do grande parte do orçamento da União para
minuição do número de postos de trabalho, pagar os juros e amortizações dessas dívidas.
há a não incorporação, devido ao quadro de As mazelas sociais nunca foram tão gritantes
crescimento medíocre da economia brasileira e a falta de perspectivas dos brasileiros é visí-
de pessoas que ingressam no mercado de tra- vel, por mais que a mídia tente esconder. Em
balho a cada ano. Com isso, de acordo com contrapartida, o governo insiste em ir ao exte-
Mattoso (1999, p. 31), rior dizer aos capitalistas estrangeiros que po-
dem investir no Brasil, que as dívidas de curto
os empregos formais foram dizimados prazo serão alongadas e o retorno de seus in-
e se expandiram de maneira inusitada e vestimentos será garantido. Enquanto isso, os
trágica o desemprego e a precarização brasileiros ficam se sacrificando para pagar es-
das condições e relações de trabalho. sas remunerações, através do baixo salário ou
Em contrapartida, as importações maci- mesmo do desemprego e da desnacionalização
ças favoreceram uma verdadeira expor- das empresas estatais que foram concebidas
tação de empregos para os países que com a contribuição de cada cidadão. Fernan-
venderam produtos ao Brasil. do Henrique Cardoso adotou uma política sub-
serviente ao interesse internacional, aderindo
Constata-se, dessa forma, que a política de ao neoliberalismo, balizado no Consenso de
privatização do governo não passa de um entre- Washington, tornando o Brasil um país ainda
guismo. Antes de efetuá-la, o governo aumen- mais subordinado a esses interesses, em que
ta as tarifas, enxuga o quadro de funcionários, o único beneficiário é aquele país ou corpora-
moderniza as empresas para torná-las mais ções que preconizaram tal política. Como disse

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Carlos Henrique Lopes Rodrigues 55

Chossudovsky (1999, p. 16), “FHC e Malan BATISTA JUNIOR, P.; RANGEL, A. A rene-
são funcionários do grande capital”. gociação da dívida externa brasileira e o Pla-
Passamos a ser, com a implementação do no Brady: avaliação de alguns dos principais
neoliberalismo, um país cuja medida prioritária resultados. São Paulo: Pedex, 1994. (Caderno
é o pagamento dos juros da dívida interna, ou Dívida Externa, n. 7).
seja, abrimos mão de uma política voltada aos
interesses nacionais para remunerar o grande BATISTA, P. O Consenso de Washington: a vi-
capital financeiro. são neoliberal dos problemas Latino-America-
Com isso, acompanhamos uma evolução nos. São Paulo: Pedex, 1994. (Caderno Dívida
considerável na carga tributária brasileira re- Externa, n. 6).
gressiva, sem reflexo na melhoria dos serviços
prestados pelo Estado, o crescimento do PIB no BEAUD, M. História do capitalismo: de 1500 aos
período foi medíocre e, mesmo pagando eleva- nossos dias. 3. ed, São Paulo: Brasiliense, 1991.
dos montantes de juros da dívida interna, esta
tem aumentado significativamente, como uma BIONDI, A. O Brasil privatizado: um balanço
bola de neve, dada a necessidade cada vez maior do desmonte do Estado. São Paulo: Fundação
do governo de incorrer nesse endividamento Perseu Abramo, 1999.
para pagar os próprios juros dessa dívida.
Nesse sentido a possibilidade de “reversão CHESNAIS, F. A globalização e o curso do ca-
neocolonial” é evidente. Nas palavras de Sam- pitalismo de fim-de-século. Economia e Socie-
paio Júnior (2007, p. 153), dade, Campinas, n. 1, ago. 1992.

[...] não parece exagero afirmar que há CHOSSUDOVSKY, M. A globalização da po-


uma incompatibilidade incortonável en- breza: impactos das reformas do FMI e do Ban-
tre: a disciplina financeira e monetária co Mundial. São Paulo: Moderna, 1999.
exigida pela comunidade financeira in-
ternacional; a reprodução de mecanis- FILGUEIRAS, L. História do plano real. São
mos de mobilidade social que sejam ca- Paulo: Boitempo, 2000.
pazes de dar um mínimo de legitimidade
ao sistema político; e a recomposição FURTADO, C. Formação econômica do Bra-
de um esquema regional de poder que sil. 21 ed. São Paulo: Nacional, 1986.
neutralize as poderosas tendências que
levam ao fracionamento da nação. GENNARI, A. Réquiem ao capitalismo nacio-
nal: lei de remessas de lucros no governo Gou-
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Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 43-57 / Jul-Dez 2011


56 Neoliberalismo: apontamentos histórico-econômicos e acirramento de sua implementação no governo FHC

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gos nos anos 90. 2 ed, São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 1999. Notas

1
MICHALET, C. O capitalismo mundial. Rio de A Lei 4131 se refere a Lei de Remessa de
Janeiro: Paz e Terra, 1983. Lucros, aprovada pelo Congresso Nacional
em setembro de 1962 e regulamentada no
MIGLIOLI, J. Burguesia e liberalismo: política início de 1964, pelo governo João Goulart,
e economia nos anos recentes. Revista Crítica esta Lei limitava a remessa de lucros para
Marxista, São Paulo, n. 6, 1998. o exterior.

2
MOFFITT, M. O dinheiro do mundo: de Bret- Uma onça de ouro equivale a 28 gramas.
ton Woods à beira da falência. 2. ed. Rio de Ja-
3
neiro: Paz e Terra, 1984. Fernando Henrique Cardoso em seu dis-
curso no Senado Federal, após a conclusão
MONTEIRO, M. O custo dos planos econômi- da renegociação da dívida externa declarou
cos. Cadernos do Terceiro Mundo, Rio de Ja- “que estava ‘extremamente feliz com o fim
neiro, n. 178, p. 18-21, 1994. do problema da dívida externa’. Admitiu

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Carlos Henrique Lopes Rodrigues 57

também que um dos condicionantes do FMI reduzir a dívida ... Continuavam a esconder
era a vinculação direta do real ao dólar norte que na verdade, o governo só recebera 40%
-americano, além do receituário tradicional desse valor – 8,8 bilhões de reais. (De fato,
do Fundo: equilíbrio fiscal, austeridade mo- receberia menos ainda, considerando que o
netária, superávit comercial e a agilização governo financiaria por meio do BNDES,
do programa de privatizações” (BATISTA 50% da entrada)”.
JÚNIOR; RANGEL, 1994, p. 5).
6
Segundo Martins (1999, p. 103), “entre
4
O FSE depois transfigurou-se no FEF (Fun- 1980 e 1994, na média, os 20% que mais
do de Estabilidade Fiscal) e agora é conhe- ganham na população brasileira tiveram
cido como DRU (Desvinculação das Recei- uma renda anual de US$ 18,5 mil, enquan-
tas da União), e é responsável pela maior to os 20% que ganham menos receberam
parte do superávit primário brasileiro. “A apenas US$ 578 por ano. Ou seja, ‘os de
principal consequência da DRU é o desvio cima’ ganharam 32 vezes mais que ‘os de
regular de bilhões de reais da saúde, edu- baixo’. No governo Cardoso, a concen-
cação, previdência e assistência social, que tração de renda continuou crescendo no
são transferidos por meio do orçamento fis- Brasil. Entre 1992 e 1997, os 10% mais
cal para os mercados financeiros. A DRU é ricos da população brasileira aumentaram
a alquimia que transforma recursos perten- de 46,28% para 48,21% sua participação
centes à seguridade social em receitas do da renda nacional. E os 40% mais pobres
orçamento fiscal” (SALVADOR, 2010, p. caíram de 7,80 para 7,10%, no mesmo pe-
369-370). ríodo, e assim por diante.”

5
Antes de promover as privatizações o go- Carlos Henrique Lopes Rodrigues
verno brasileiro investiu nas empresas esta- * Mestre em História Econômica pela Uni-
tais sanando-as. Um exemplo dessa políti- camp (Universidade Estadual de Campi-
ca é o caso do sistema Telebrás. Conforme nas), graduado em Ciências Econômicas
Biondi (1999, p. 13), “[...] em 1996, o go- pela UNESP (Universidade Estadual Pau-
verno duplicou os investimentos nas teles, lista) e Professor do Curso de Ciências Eco-
alcançando 7,5 bilhões de reais, chegou aos nômicas da UFVJM (Universidade Federal
8,5 bilhões de reais em 1997 e investiu mais dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri).
5 bilhões de reais no primeiro semestre de
1998, totalizando, portanto, 21 bilhões de
reais de investimento em dois anos e meio”.
Com esse investimento, já no primeiro se-
mestre de 1997, o lucro da Telebrás foi de
1,8 bilhão de reais. Mesmo assim, o gover-
no resolveu vender o sistema Telebrás, prin-
cipalmente porque desde maio de 1998, os
banqueiros e os investidores internacionais
já estavam fugindo, cortando o crédito do
Brasil e o real caminhava para a desvalori-
zação. Segundo Biondi (1999, p. 11), “[...]
quando as teles afinal foram vendidas por
22,2 bilhões de reais, os meios de comu-
nicação trombetearam o tempo todo que
o governo usara aquela ‘dinheirama‘ para

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59

artiGo

Redução da desigualdade da renda no governo Lula:


análise comparativa

Reinaldo Gonçalves*

Resumo: A redução da desigualdade da renda no Brasil e na maior parte dos países da América Latina resulta de po-
líticas públicas, seja gasto social, seja política de salário mínimo. Governabilidade e a perpetuação no poder são os
determinantes principais destas políticas, independente do modelo econômico-político vigente em cada país. Políticas
de redistribuição da renda são funcionais na luta pelo poder político. Sem mudanças estruturais, o Brasil é mais um
exemplo deste fenômeno. O país experimenta melhora marginal na sua posição no ranking mundial dos países com
maior grau de desigualdade.

Palavras-chave: Distribuição de renda; América Latina; governo Lula; políticas sociais.

Abstract: The fall of income inequality in Brazil and in most of Latin American countries is caused by public policies,
either social expenditure or minimum wage policy. Governability and perpetuation in power are the main determinants
of these policies regardless of the economic and political model applied in each country. Policies of income redistri-
bution are instruments in the ight for political power. Without structural changes, Brazil is a clear example of this
phenomenon. The country faces a marginal improvement in its position in the world ranking of the countries with the
highest degrees of inequality.

Keywords: Income distribution; Latin America; Lula government; social policies.

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60 Redução da desigualdade da renda no governo Lula: análise comparativa

Introdução de instabilidade e crise, inclusive, crises


sistêmicas e institucionais;
Há tendência de redução da desigualdade da 2. o objetivo de perpetuação no poder dos
renda no Brasil e no restante da América Latina grupos dirigentes é determinante de po-
na primeira década do século XXI (Cepal, 2010, líticas de redução da desigualdade (e de
p. 51-54). Este fenômeno é particularmente re- combate à pobreza) que rendem votos
levante quando se leva em conta que a América junto aos grupos favorecidos por estas
Latina, em geral, e o Brasil, em particular, têm políticas – as políticas de redistribuição
índices relativamente elevados de desigualdade são funcionais na luta pelo poder polí-
pelos padrões internacionais.1 Este artigo foca tico; e,
na análise da evolução da desigualdade da ren- 3. a evolução favorável da economia mun-
da no Brasil e no restante da América Latina na dial, via afrouxamento da restrição das
primeira década do século XXI.2 contas externas e das contas públicas,
Na seção 1 discute-se a evidência empírica é o condicionante básico no período
para o conjunto dos 12 países da América La- 2003-08.
tina (inclusive, Brasil) que formam o painel. A
evidência disponível informa a redução da desi- O estudo baseia-se em painel de 12 países
gualdade da renda no Brasil e no restante da da América Latina: Argentina, Bolívia, Brasil,
América Latina na primeira década do século Chile, Colômbia, Equador, Honduras, México,
XXI. Estudos recentes mostram que este fenô- Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela.
meno decorre, principalmente, da elevação dos As variáveis para análise são o coeficiente
gastos públicos sociais (e.g, via transferência de de Gini, que varia de 0 (completa igualdade) a
renda para os pobres) e da redução do diferencial 100 (máxima concentração) e a razão da renda
entre os rendimentos dos trabalhadores qualifi- média per capita dos domicílios quintil 5 (20%
cados e os de baixa qualificação (que recebem mais ricos) e quintil 1 (20% mais pobres).
salário mínimo ou salários referenciados ao mí- As fontes de dados são: Cepal (Comissão
nimo) (López-Calva; Lustig, 2010). Entretanto, Econômica para América Latina e Caribe),3
estes estudos falham ao não perceberem os de- Banco Mundial4 e FMI (Fundo Monetário In-
terminantes principais e o condicionante básico ternacional).5 Os dados referem-se, de modo
da expansão dos gastos públicos sociais e do au- geral, ao período 2000-09. Os dados anuais
mento do salário mínimo real. para os coeficientes de desigualdade que não
Na seção 2 analisa-se a evolução da desi- estão disponíveis foram calculados por interpo-
gualdade da renda no Brasil e no restante dos lação geométrica.
países da América Latina comparativamente ao Os indicadores usados são: variação média
resto do mundo. Na seção 3, além da síntese anual do coeficiente de Gini e variação média
dos principais resultados, apresentam-se três anual da razão da renda média per capita dos
argumentos a respeito da redução generalizada domicílios quintil 5 (20% mais ricos) e quintil
da desigualdade da renda no Brasil e no res- 1 (20% mais pobres). A metodologia é simples
tante da América Latina na primeira década de e consiste na análise da evolução da média e
século XXI: da mediana.

1. o imperativo da governabilidade – ne- Comparações regionais


cessidade de garantir a legitimidade
do Estado e a estabilidade política – é A evidência empírica disponível aponta
determinante das políticas de redução para dois fatos marcantes na América Latina na
da desigualdade após duas décadas primeira década do século XXI. O primeiro é o
(1980-2000) marcadas por trajetórias comportamento pró-cíclico da renda da região,

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 59-70 / Jul-Dez 2011


Reinaldo Gonçalves 61

Tabela 1. América Latina (painel) e mundo


Taxa de variação real do PIB %: 2000-10

2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 Var. média anual

Argentina -0,8 -4,4 -10,9 9,0 8,9 9,2 8,5 8,6 6,8 0,8 9,2 3,9
Bolívia 2,5 1,7 2,5 2,7 4,2 4,4 4,8 4,6 6,1 3,4 4,2 3,7
Brasil 4,3 1,3 2,7 1,1 5,7 3,2 4,0 6,1 5,2 -0,6 7,5 3,7
Chile 4,5 3,5 2,2 4,0 6,0 5,5 4,6 4,6 3,7 -1,7 5,3 3,8
Colômbia 2,9 1,7 2,5 3,9 5,3 4,7 6,7 6,9 3,5 1,5 4,3 4,0
Equador 4,2 4,8 3,4 3,3 8,8 5,7 4,8 2,0 7,2 0,4 3,2 4,3
Honduras 5,7 2,7 3,8 4,5 6,2 6,1 6,7 6,2 4,1 -2,1 2,8 4,2
México 6,0 -0,9 0,1 1,4 4,0 3,2 5,2 3,2 1,5 -6,1 5,5 2,0
Paraguai -3,3 2,1 0,0 3,8 4,1 2,9 4,3 6,8 5,8 -3,8 15,3 3,3
Peru 3,0 w0,2 5,0 4,0 5,0 6,8 7,7 8,9 9,8 0,9 8,8 5,4
Uruguai -1,8 -3,5 -7,1 2,3 4,6 6,8 4,3 7,3 8,6 2,6 8,5 2,8
Venezuela 3,7 3,4 -8,9 -7,8 18,3 10,3 9,9 8,2 4,8 -3,3 -1,9 3,0

Média 2,6 1,0 -0,4 2,7 6,8 5,7 5,9 6,1 5,6 -0,7 6,0 3,7
Mediana 3,3 1,7 2,3 3,6 5,5 5,6 5,0 6,5 5,5 -0,1 5,4 3,8

Memo
Mundo, média 4,8 2,3 2,9 3,6 4,9 4,6 5,2 5,4 2,9 -0,5 5,0 3,7
Fonte: FMI.

que acompanha as fases do ciclo econômico médias e das medianas do coeficiente de Gini
internacional, como mostra a Tabela 1. Verifi- para o Brasil e para o restante dos países do pai-
ca-se, então, a fase descendente em 2001-02, nel. Vale mencionar que esta tendência pode ser
a extraordinária expansão de 2003 até meados vista como incipiente (Cepal, 2010, p. 51).
de 2008, a crise de 2008-09 e a recuperação Após elevação em 2000-02, a queda é evi-
em 2010. Este fato, conforme discutido mais dente no período 2003-08, que marcou a fase as-
adiante, é determinante da evolução dos indica- cendente do ciclo econômico internacional. Para
dores de desigualdade. os países do painel a média do coeficiente de Gini
No período 2000-10 os países do painel com cai de 55,1 em 2002 para 51,0 em 2008 e, neste
taxas de crescimento do PIB real acima da mé- mesmo período, a mediana diminui de 55,5 para
dia e da mediana são Argentina, Chile, Colôm- 51,3. No entanto, em 2009 há reversão da média
bia, Equador, Honduras e Peru. A taxa média do coeficiente de Gini (que aumenta para 51,3),
anual de crescimento do PIB do Brasil é 3,7%, embora a mediana deste coeficiente continue em
igual à média e inferior à mediana do painel.6 trajetória de queda (51,1). O coeficiente de Gini
O segundo fato relevante é a tendência de do Brasil também se reduz em 2009. Confor-
queda da desigualdade da renda, como mostra a me discutido adiante, este ato é determinado, em
Tabela 2. Nesta tabela constata-se a queda das grande medida, pelo ciclo político e eleitoral.

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 59-70 / Jul-Dez 2011


62 Redução da desigualdade da renda no governo Lula: análise comparativa

Tabela 2. América Latina (painel) – Coeficiente de Gini: 2000-09


Var. média
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 Média
anual
Argentina 55,8 57,4 59,0 56,3 53,7 52,4 51,0 51,0 51,0 51,0 53,9 -0,53
Bolívia 52,0 53,7 55,4 55,7 56,1 54,0 51,9 49,9 53,6 -0,30
Brasil 63,9 63,9 63,4 62,1 61,2 61,3 60,5 59,0 59,4 57,6 61,2 -0,70
Chile 56,4 56,0 55,6 55,2 54,2 53,2 52,2 52,3 52,3 52,4 54,0 -0,44
Colômbia 57,9 58,7 59,4 57,3 57,9 58,0 58,3 58,6 58,9 57,8 58,3 -0,01
Equador 52,8 52,4 52,0 51,7 51,3 53,1 52,7 54,0 50,4 50,0 52,0 -0,31
Honduras 57,2 58,0 58,8 58,7 59,3 59,9 60,5 58,0 58,8 0,11
México 54,6 53,0 51,4 51,5 51,6 52,8 50,6 51,0 51,5 52,0 -0,39
Paraguai 56,7 57,0 56,3 55,5 54,8 53,6 53,7 53,9 52,7 51,2 54,5 -0,61
Peru 53,5 52,5 54,7 50,6 50,5 50,4 50,2 50,0 47,6 46,9 50,7 -0,73
Uruguai 44,5 45,0 45,5 45,9 46,4 45,1 45,4 45,7 44,6 43,3 45,1 -0,13
Venezuela 49,9 49,9 50,0 48,5 47,0 49,0 44,7 42,7 41,2 47,0 -1,09

Média 54,6 54,8 55,1 54,1 53,7 53,6 52,6 52,2 51,0 51,3 53,3 -0,43
Mediana 55,2 54,9 55,5 55,4 54,0 53,2 52,1 51,7 51,3 51,1 53,4 -0,42
Fonte: Elaboração do autor com base em dados do Banco Mundial e Cepal.
Nota: Dados em itálico são interpolações geométricas.

Na Tabela 3 constata-se, para o conjunto dos de modo geral, os países da América Latina
países do painel, a queda da média e da media- continuam com coeficientes de Gini muito mais
na do razão entre a renda média per capita dos elevados do que a média mundial. Por exem-
domicílios quintil 5 (20% mais ricos) e quintil plo, na primeira década do século XXI o coefi-
1 (20% mais pobres) no período 2003-08. Nes- ciente médio de Gini para os países do painel é
te período a razão média reduz-se de 23,3 para de 51,6 enquanto a média e mediana mundiais
17,2 enquanto a mediana cai de 19,7 para 15,9. são de 39,5 e 38,8 respectivamente. Os países
Entretanto, a média e a mediana desta razão au- que têm os maiores graus de desigualdade (aci-
mentam em 2009. ma da mediana regional) são os mesmos nas
A última coluna das Tabelas 2 e 3 mostram últimas duas décadas: Colômbia, Bolívia, Hon-
que no painel de 12 países somente Honduras duras, Brasil, Paraguai e Chile. Neste período
não logra redução dos índices de desigualda- houve algumas mudanças de posição relativa:
de. As maiores quedas do coeficiente de Gini por exemplo, o Brasil passou da mais elevada
ocorrem na Venezuela, Peru e Brasil enquanto desigualdade em meados dos anos 1990 para
as maiores reduções da Razão Q5/Q1 são na a 4ª posição no painel na primeira década do
Bolívia, Venezuela e Brasil. século XXI.
Apesar de haver queda da desigualdade
Comparações internacionais na América Latina na primeira metade do sé-
culo XXI, os países da região continuam com
Os dados da Tabela 4 mostram que, embora os mais elevados indicadores de desigualdade
tenha ocorrido queda da desigualdade de renda, de renda no mundo. Para ilustrar, em meados

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 59-70 / Jul-Dez 2011


Reinaldo Gonçalves 63

Tabela 3. América Latina (painel) – Razão da renda média per capita dos domicílios
quintil 5 (20% mais ricos)/quintil 1 (20% mais pobres): 2000-09
Var. média
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 Média
anual
Argentina 17,8 19,2 20,6 18,4 16,5 16,2 15,5 15,9 16,2 16,6 17,3 -0,14
Bolívia 46,7 45,4 44,2 33,0 24,7 26,8 29,0 31,5 35,2 -2,17
Brasil 36,2 36,9 34,4 31,7 29,4 28,8 27,2 26,0 26,2 23,9 30,1 -1,37
Chile 19,5 19,1 18,8 18,4 17,5 16,6 15,7 15,8 15,8 15,9 17,3 -0,40
Colômbia 27,8 30,3 32,9 27,3 28,0 26,9 28,7 30,6 32,7 28,0 29,3 0,02
Equador 17,9 17,3 16,8 16,1 15,4 16,7 15,5 15,9 13,2 14,3 15,9 -0,40
Honduras 26,4 26,4 26,3 28,2 31,9 36,1 40,9 32,5 31,1 0,87
México 16,9 16,2 15,5 15,7 16,0 17,0 14,8 15,4 16,0 15,9 -0,12
Paraguai 24,0 25,7 23,7 21,8 20,1 18,2 18,6 19,1 18,4 18,3 20,8 -0,64
Peru 20,4 19,3 17,7 16,3 16,3 16,4 16,4 16,5 14,4 13,7 16,7 -0,75
Uruguai 9,7 10,0 10,2 10,4 10,6 10,0 10,1 10,3 9,6 9,1 10,0 -0,07
Venezuela 18,0 18,1 18,1 16,4 14,9 17,9 12,3 10,6 9,7 15,1 -2,00

Média 23,5 24,3 23,3 21,1 20,1 20,6 20,4 20,0 17,2 17,5 20,8 -0,60
Mediana 23,5 19,3 19,7 18,4 17,0 17,5 16,1 16,2 15,9 16,3 18,0 -0,40
Fonte: Elaboração do autor com base em dados do Banco Mundial e Cepal. Nota: Dados em itálico são interpolações geométricas.

Tabela 4. América Latina (Painel) e mundo – Coeficiente de Gini


Gini, meados anos 1990 Gini, 2000-10
1 Brasil 59,1 Colômbia 58,5
2 Honduras 59,0 Bolívia 57,2 Fonte: PNUD.
Notas: Mundo: conjunto de
3 Bolívia 58,9 Honduras 55,3
110 países para os quais há
4 Paraguai 57,7 Brasil 55,0 dados tanto para meados dos
5 Chile 57,5 Paraguai 53,2 anos 1990 como para a pri-
meira década do século XXI.
6 Colômbia 57,1 Chile 52,0 O Gini da Argentina para mea-
7 México 51,9 México 51,6 dos dos anos 1990 não está na
base de dados do PNUD. Este
8 Equador 50,8 Peru 50,5 dado é a média dos coeficien-
9 Venezuela 48,8 Argentina 48,8 tes de Gini para 1994-96 cal-
10 Argentina 47,3 Uruguai 47,1 culados a partir de pesquisas
por amostras de domicílios
11 Peru 46,2 Equador 46,9 em 15 cidades. Ver United
12 Uruguai 42,3 Venezuela 43,4 Nations University – WIDER.
Disponível: http://www.wider.
unu.edu/research/Database/
Média 53,1 51,6
en_GB/wiid/.
Mediana 54,5 51,8 A base de dados do PNUD tem
coeficientes de Gini para mea-
Memorando
dos dos anos 1990 (111 países)
Mundo e primeira década do século
Média 39,4 39,5 XXI (145 países). Entretanto,
somente para 110 países há da-
Mediana 37,5 38,8 dos para os dois períodos.

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64 Redução da desigualdade da renda no governo Lula: análise comparativa

Tabela 5. Mundo – Coeficientes de Gini em ordem decrescente (10 países com maior desigualdade
de renda): meados dos ano 1990 e primeira década do século XXI

Gini, meados anos 1990 Gini, 2000-10


1 Suazilandia 60,9 Colômbia 58,5
2 Nicarágua 60,3 África do Sul 57,8
3 África do Sul 59,3 Bolívia 57,2
4 Brasil 59,1 Honduras 55,3
5 Honduras 59,0 Brasil 55,0
6 Bolívia 58,9 Panamá 54,9
7 Paraguai 57,7 Equador 54,4
8 Chile 57,5 Guatemala 53,7
9 Colômbia 57,1 Paraguai 53,2
10 Zimbábue 56,8 Lesoto 52,5
Fonte: PNUD.
Nota: Conjunto de 110 países para os quais há dados para meados dos anos 1990 e primeira década do século XXI.

desta década 4 entre os 5 países com maior de- 4. no Brasil a desigualdade diminui em
sigualdade estão na região (Colômbia, Bolívia, 2009 como resultado do extraordinário
Honduras e Brasil), como mostra a Tabela 5. crescimento do salário mínimo real e da
No conjunto dos 10 países mais desiguais há 8 expansão dos gastos públicos sociais no
países latino-americanos. contexto do ciclo político e eleitoral e
Entre meados da última década do século da política de estabilização frente à crise
XX e meados da primeira década do século global no período;
XXI o Brasil sai da 4ª posição no rank mun- 5. no conjunto dos países do painel que
dial dos países mais desiguais para a 5ª posi- mostram melhores resultados quanto à
ção.7 redução da desigualdade, o Brasil ocupa
a 3ª posição após a Venezuela (projeto
Síntese de orientação socialista) e o Peru (pro-
jeto liberal);
A análise empírica desenvolvida neste arti- 6. Brasil, Honduras, Bolívia e Colômbia,
go nos permite chegar às seguintes conclusões têm os mais elevados coeficientes de desi-
a respeito da evolução da desigualdade da ren- gualdade na América Latina, que tem, na
da na primeira década do século XXI: média, elevados coeficientes de desigual-
dade pelos padrões internacionais;
1. há tendência de queda da desigualdade 7. o Brasil experimenta melhora marginal
da renda no Brasil no governo Lula; na sua posição no ranking mundial dos
2. a redução da desigualdade da renda é países com maior grau de desigualdade
fenômeno praticamente generalizado na entre meados da última década do sécu-
América Latina; lo XX e meados da primeira década do
3. a crise global em 2008-09 provoca re- século XXI visto que sai da 4ª posição
versão ou interrupção da tendência de no rank mundial dos países mais desi-
queda da desigualdade na região; guais para a 5ª posição; e,

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Reinaldo Gonçalves 65

8. sem mudanças estruturais, as trajetórias a existência de políticas focalizadas de transfe-


de redução da desigualdade da renda na rência de renda em todos os 12 países da região,
América Latina,em geral, e no Brasil,em como mostra a Tabela 6.11
particular, seguem a “linha de menor re- Neste contexto, cabe apresentar 3 argu-
sistência” visto que resultam, em grande mentos que explicariam a tendência de redu-
medida, do aumento do gasto público ção da desigualdade da renda na América La-
social e da política de salário mínimo. tina tendo em vista a significativa diversidade
de modelos de desenvolvimento na região na
Por que há tendência generalizada de queda primeira década do século XXI. O esquema
da desigualdade na América Latina na primeira analítico subjacente a estes argumentos está
década do século XXI, período em que houve no Quadro 1.
aumento extraordinário da diversidade de expe-
rimentos com modelos de desenvolvimento?8
Esta pergunta é relevante quando se con- Quadro 1. Distribuição da renda, poder e
vulnerabilidade externa: Esquema analítico
sidera, com risco de simplificação exagerada,
que a redução da desigualdade é no modelo li-
Dinamismo
Políticas sociais:
beral “a hipótese sob condições”,9 nos projetos Vulnerabilidade econômico:
renda, salário, emprego,
previdência, benefícios, assitência,
saúde, edução, saneamento,
externa crédito, inflação,
de orientação socialista é “a própria razão de relações trabalhistas
moralista, segurança

ser” e nos modelos de liberalismo periférico é o


Valores Desempenho
“caminho da aleatoriedade”10. econômico

Na realidade, os temas da desigualdade e Legitimidade


do Estado
Distribuição
da renda
pobreza estão presentes nas agendas políticas Organização da
sociedade
nacionais, independente de modelos e, até mes- Estabilidade
política

mo, da diretriz político-ideológica dos grupos


dirigentes. A melhor evidência a este respeito é GOVERNABILIDADE PERPETUAÇÃO NO PODER

Tabela 6. América Latina (painel) – Programas de transferência de renda: 2007-10


Programa Gasto como percentual do PIB
Argentina Asignación Universal por Hijo para Protección Social 0,20
Bolívia Bono Juancito Pinto 0,33
Brasil Bolsa Família 0,47
Chile Chile Solidario 0,11
Colômbia Familias em Acción 0,39
Equador Bono de Desarrollo Humano 1,17
Honduras Programa de Asignación Familiar 0,24
México Oportunidades 0,51
Paraguai Tekoporã 0,36
Peru Juntos 0,14
Uruguai Asignaciones Familiares 0,45
Venezuela Misiones (e.g., Madres del Barrio) -
Fonte: Elaboração do autor com base em Cepal (2010), p. 148. Disponível: http://www.eclac.org/publicaciones/xml/9/41799/PSE2010-Cap-III-gas-
topublico-preliminar.pdf.
Notas: Inclui somente os chamados programas de transferência condicionada. O programa Misiones da Venezuela abarca 28 projetos, inclusive aque-
les de transferência condicionada como Madres del Barrio. Disponível: http://www.gobiernoenlinea.ve/miscelaneas/misiones.html.

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66 Redução da desigualdade da renda no governo Lula: análise comparativa

O primeiro argumento é que a queda pra- A profundidade e o escopo das políticas de


ticamente generalizada da desigualdade na redução da desigualdade variam significativa-
América Latina decorreu da questão do impe- mente entre os países, o que impede a identifi-
rativo da governabilidade; ou seja, a garantia cação de padrões gerais, inclusive, em decor-
da legitimidade do Estado e da estabilidade rência das diferenças marcantes dos modelos
política12. Na primeira década do século XXI de desenvolvimento adotados. Ainda que haja
esta questão torna-se fundamental na região grande heterogeneidade, os países da região
após duas décadas (1980-2000) marcadas por têm em comum a expansão dos gastos públi-
trajetórias de instabilidade e crise, inclusive, cos sociais, a elevação do salário mínimo real
crises sistêmicas e institucionais e aumento da e do PIB per capita (Cepal, 2010).17 Entretanto,
desigualdade.13 Vale destacar que a redução da no painel de 12 países estas variáveis não têm
desigualdade ocorre independente do modelo correlação significativa com a redução dos in-
e das especificidades econômicas, sociais e dicadores de desigualdade.
políticas de cada país na primeira década do Portanto, na América Latina os fatores co-
século XXI. muns talvez sejam o “imperativo da governabi-
O segundo argumento é que grupos diri- lidade” (determinante) – que decorre da legiti-
gentes, focados na perpetuação no poder, re- midade do estado e da estabilidade política – e a
conhecem o papel das políticas de redução da redução da vulnerabilidade externa conjuntural
desigualdade em geral, e de combate à pobreza, (condicionante). Naturalmente, este argumento
em particular, nas disputas eleitorais. Gastos deve ser visto como hipótese que precisa ser
públicos sociais focalizados, transferências e investigada em detalhes em trabalhos futuros.18
benefícios específicos transformam-se em ins- A estratégia de garantia de legitimidade
trumentos eficazes de conquista de votos junto do Estado e estabilidade política é operacio-
aos grupos sociais de menor renda. Ou seja, a nalizada, diretamente, com políticas sociais
política de distribuição de renda é funcional (principalmente, salário mínimo, previdência,
na luta pelo poder político. Cabe destacar que benefícios e assistência social). E estas polí-
políticas de combate à pobreza e redução da ticas sociais são instrumentos funcionais para
desigualdade são implementadas em todos os redução generalizada da desigualdade da renda
países do painel, independente dos modelos de na região na primeira década do século XXI no
desenvolvimento ou ideologias dominantes. contexto de afrouxamento da restrição externa
Na primeira década do século XXI, dos go- no período 2003-08.
vernos liberais aos socialistas, é generalizado Cabe destacar que a condição necessária
o uso de políticas sociais assistencialistas na para a implementação das políticas sociais é a
América Latina.14 redução da vulnerabilidade externa conjuntural
O terceiro argumento é que a redução da (afrouxamento da restrição de balanço de pa-
desigualdade tem sido bem sucedida graças, em gamentos). Portanto, tendo em vista a vulne-
grande medida, à menor vulnerabilidade externa rabilidade externa estrutural da região, fases
conjuntural dos países da região em decorrência adversas do ciclo internacional interrompem e,
da fase ascendente da economia mundial no pe- até mesmo revertem, o processo de redução da
ríodo 2003-08.15 O afrouxamento da restrição de desigualdade de renda na América Latina.19 As
balanço de pagamentos permite maior dinamis- evidências para 2009 apontam nesta direção.
mo econômico (renda, emprego, crédito, etc) e Por fim, vale destacar que os indicadores de
geração de excedentes que viabilizam políticas desigualdade usados neste estudo baseiam-se
públicas. Não é por outra razão que, com a crise em pesquisas de domicílios. O fato é que dados
global em 2008-09, parece ter ocorrido reversão baseados nestas pesquisas subestimam os rendi-
ou interrupção da tendência de queda da desi- mentos do capital (lucro, juro e aluguel). Portan-
gualdade no conjunto dos países.16 to, a queda da desigualdade da renda reflete, em

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Reinaldo Gonçalves 67

grande parte, mudança na distribuição de rendi- um balanço crítico (2003-2010). Rio de Janei-
mentos dentro da classe trabalhadora. A queda in- ro: Garamond, 2010. p. 35-70.
cipiente da desigualdade da renda dentro da clas-
se trabalhadora pode não ter sido acompanhada GONÇALVES, Reinaldo. Estratégias de de-
sequer por mudanças marginais na distribuição senvolvimento e integração da América do Sul:
funcional da renda (trabalho versus capital).20 divergência e retrocesso. Revista da Sociedade
Brasileira de Economia Política, Rio de Janei-
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Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 59-70 / Jul-Dez 2011


68 Redução da desigualdade da renda no governo Lula: análise comparativa

7
http://hdr.undp.org/en/media/back.pdf. Acesso Países como Haiti, Angola, Belize e Namí-
em 06 de novembro de 2012. bia que têm elevados coeficientes de Gini
não estão na base de dados do PNUD para
USEEM, Bert ; USEEM, Michael. Government meados dos anos 1990 embora estejam pre-
legitimacy and political stability. Social Forces, sentes na base de dados para meados da pri-
v. 57, n. 3, p. 840-852, Mar. 1979. meira década do século XXI. Esses e outros
países foram excluídos para termos uma
Notas base de dados que permitisse a comparação.
Esta base inclui 110 países com dados para
1
Dados do Banco Mundial (World Develop- ambos os períodos.
ment Indicators database) mostram que no
8
início do século XXI o coeficiente médio de Para uma taxonomia de modelos de desen-
Gini para uma amostra de 104 países é de volvimento na América Latina com base no
39,2 e para uma amostra de 18 países lati- grau de liberalização econômica, ver Gon-
no-americanos é de 51,7. Ver, ainda, Baer çalves (2009).
e Maloney (1997) para o aumento da de-
9
sigualdade da renda na América Latina no Para uma discussão a respeito dos efeitos
final do século XX. positivos do liberalismo sobre a distribui-
ção de renda, ver Baer e Maloney, 1997.
2
Naturalmente é preciso cautela na compa-
10
ração de indicadores da desigualdade da O caminho da aleatoriedade é influenciado,
renda entre países visto que as pesquisas por exemplo, por políticas públicas focali-
por amostras de domicílios têm cobertu- zadas, salário mínimo real e gastos da pre-
ras diferentes; por exemplo, podem se ba- vidência social. Este é o caso do Brasil no
sear em gastos ou renda, podem ser para período em análise.
amostra nacional ou regional, área urba-
11
na etc. Ademais, pesquisas de domicílios As políticas focalizadas na América Latina
subestimam rendas que são derivadas do implicam o retrocesso relativo das políti-
capital (juro, lucro e aluguel) e tendem a cas de universalização do acesso a serviços
expressar a distribuição de rendimentos básicos desde meados dos anos 1980. Es-
da classe trabalhadora. tas políticas têm como referência pioneira
o Fundo de Emergência Social da Bolívia
3
Disponível: http://websie.eclac.cl/sisgen/ criado em 1986. Para uma discussão do
ConsultaIntegradaFlashProc.asp. tema “universalização versus focalização”
e dos programas de transferências de renda
4
World Development Indicadors, 2004. condicionados, ver Pereira e Stein (2010).

5 12
World Economic Outlook DataBase. Dispo- Legitimidade é a confiança da sociedade
nível: http://www.imf.org/external/pubs/ft/ nas autoridades e instituições políticas e é
weo/2011/01/weodata/index.aspx. condição necessária para a estabilidade po-
lítica. Ver Useem e Useem (1979).
6
No período 2003-10 as taxas média e media-
13
na de crescimento real do PIB total do painel Na América Latina a fragilidade institucio-
de 12 países são 4,7% e 4,4% respectiva- nal parece estar associada a protestos e re-
mente. Neste período (governo Lula) a taxa voltas populares, que geram instabilidade
de crescimento real do PIB total do Brasil é política (Machado; Scartascini; Tommasi,
de 4,0% e a do PIB per capita é de 2,7%. 2009). Ademais, parece haver um processo

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Reinaldo Gonçalves 69

de “normalização” de protestos populares e Gonçalves (2007, p. 35). De modo geral,


em alguns países da região (MOSELEY; a vulnerabilidade externa conjuntural é in-
MORENO, 2010). Este processo implica fluenciada pelo crescimento da economia
maior propensão a protestos relativos a mundial e pela liquidez internacional (flu-
políticas governamentais, inclusive aque- xos financeiros internacionais).
las que impactam na distribuição de renda.
16
Entretanto, em alguns países o crescente O Brasil parece ter escapado a este processo
“invertebramento” da sociedade organi- em função, muito provavelmente, dos gas-
zada tem reduzido esta propensão. Gover- tos associados ao ciclo político e eleitoral
nos têm sido bem sucedidos no sentido de 2009-10. Em consequência da crise global
cooptar agentes políticos e sociais. O Bra- o PIB real per capita do país caiu 1,9% em
sil, o governo Lula pode ser visto como 2009. Entretanto, o salário médio real e o
exemplo. Neste governo, organizações salário mínimo real aumentaram 1,3% e
como a Central Única de Trabalhadores 7,4% respectivamente. Os aumentos reais
(CUT), a União Nacional de Estudantes dos benefícios assistenciais e das despesas
(UNE) e o Movimento Sem Terra (MST) da previdência social foram 11,7% e 6,6%
foram cooptados ou, então, foram “domes- respectivamente. Ver Secretaria do Tesouro
ticados”. Filgueiras (2010, p. 49) discutem, Nacional. Disponível: http://www.tesouro.
por exemplo, o transformismo político das fazenda.gov.br/hp/downloads/lei_responsa-
lideranças sindicais. bilidade/RROdez2009.pdf.

14 17
Na origem desta generalização talvez haja o Para ilustrar, na fase ascendente do ciclo
processo de formação histórica da América econômico internacional (2003-08) é mar-
Latina no século XX marcado por inúmeros cante a expansão do gasto público social
experimentos políticos em que governantes, (GPS) per capita (dólares a preços constan-
de direita ou de esquerda, executaram dife- tes de 2000) e do GPS como percentual do
rentes projetos populistas assentados, entre PIB no conjunto dos países do painel. Esta
outros fatores, nos gastos públicos sociais expansão é particularmente forte no final
e políticas de salário mínimo. Neste senti- desta fase. Para ilustrar, a mediana do GPS
do, a redução da desigualdade na América per capita (dólares a preços constantes de
Latina na primeira década do século XXI é 2000) aumenta de US$ 383 em 2002 para
caudatária de relações, estruturas e proces- US$ 885 em 2008 e, neste mesmo período,
sos políticos do século XX. Não obstante, a média aumenta de US$ 516 para US$ 777.
no passado como no presente, o objetivo
18
central de políticas sociais é a perpetuação Por exemplo, pode-se formular a seguinte
no poder dos grupos dirigentes. Para uma hipótese: há correlação significativa entre a
discussão sintética a respeito do populismo “propensão a protestar” em países latino-a-
na América Latina e no restante do mundo, mericanos e a redução da desigualdade da
ver Incisa (1994). renda. Ou seja, quanto maior esta propen-
são, maior a redução da desigualdade. Para
15
A vulnerabilidade externa conjuntural é de- o nosso painel (exclui Chile, para o qual
terminada pelas opções e custos do processo não há dados sobre propensão a protestar),
de ajuste externo. A vulnerabilidade externa um exercício simples de correlação entre,
conjuntural depende positivamente das op- de um lado, a propensão a protestar e, de
ções disponíveis e negativamente dos cus- outro, as variações do coeficiente de Gini e
tos do ajuste externo. Ela é, essencialmente, da razão da renda média per capita dos do-
um fenômeno de curto prazo. Ver Filgueiras micílios quintil 5 (20% mais ricos)/quintil

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 59-70 / Jul-Dez 2011


70 Redução da desigualdade da renda no governo Lula: análise comparativa

1 (20% mais pobres), gera coeficientes de


correlação de -0,102 e -0,309, respectiva-
mente. A propensão a protestar é informada
por (MOSELEY; MORENO, 2010) e as va-
riações dos indicadores de desigualdade são
as apresentadas neste estudo.

19
A vulnerabilidade externa estrutural de-
corre das mudanças relativas ao padrão de
comércio, aparelho produtivo, dinamismo
tecnológico e robustez do sistema finan-
ceiro. A vulnerabilidade externa estrutural
é determinada, entre outros fatores, pelos
processos de desregulamentação e libera-
lização nas esferas comercial, produtivo
-real, tecnológica e monetário-financeira
das relações econômicas internacionais
do país. Ela é, fundamentalmente, um fe-
nômeno de longo prazo. Ver Filgueiras e
Gonçalves (2007), p. 35. No que se refere
ao governo Lula, Carcanholo (2010) apre-
senta análise detalhada da vulnerabilidade
externa conjuntural (decrescente) e da vul-
nerabilidade externa estrutural (crescente)
da economia brasileira.

20
Conforme já mencionado a Cepal (2010, p.
51) considera a tendência de queda da desi-
gualdade na América Latina como incipiente.

Reinaldo Gonçalves
* Professor titular do Instituto de Econo-
mia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Portal: http://www.ie.ufrj.br/hpp/
mostra.php?idprof=77. E-mail: reinaldo-
goncalves1@gmail.com.

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71

artiGo

Sindicatos, Neoliberalismo e Estado Social


em Portugal (1974-2012)

Raquel Varela*
Renato Guedes**

Resumo: Neste artigo fazemos um breve estudo da conquista dos direitos sociais em Portugal desde 1974 e dos conli-
tos colectivos que decorreram a partir da década de 80 do século XX com a vitória do neoliberalismo, que associamos
a dois factores chave: a derrota dos sectores mais combativos do movimento operário e o pacto social, que manteve os
sindicatos ligados a um sindicalismo de negociação, avesso ao confronto social.

Palavras-chave: direitos sociais em Portugal; pacto social; sindicalismo de negociação.

Abstract: This article sums up the history of the struggle for social rights in Portugal since 1974 and of the collective
conlicts that took place from the 80s onwards, with the victory of neoliberalism. This victory is associated here with
two key factors: the defeat of the most combative sectors of the labor movement and the social pact, that tied up the
unions to a tactic of negotiation, against any social confrontation.

Keywords: social rights in Portugal; social pact; tactic of negotiation.

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72 Sindicatos, Neoliberalismo e Estado Social em Portugal (1974-2012)

Introdução no Pacto Social – exploração sim mas mediada


pelos chamados “direitos adquiridos”. Não lo-
Uma premissa tantas vezes reiterada nas graram compreender, sindicatos e sectores mé-
últimas duas décadas é a de que historicamen- dios, no auge dos anos 80 do seculo XX, que a
te o neoliberalismo está associado à queda precariedade dos que entravam então no mer-
da URSS. Ora o neoliberalismo, caracteriza- cado de trabalho seria a médio prazo também a
do pelo modelo just in time – não pode haver sua precariedade e que, nesse tempo, estariam
stocks de mercadorias nem de força de trabalho em frente a uma crise do próprio sindicalismo,
– bem como por um salto qualitativo na trans- desacreditado aos olhos daqueles, os mais jo-
ferência de recursos públicos para o sector vens, que nada conseguiram.
privado (privatizações, parcerias público-pri- A primeira grande crise económica depois
vadas, aumento das dívidas públicas, aumen- do fim da URSS pode lentamente abrir portas a
to exponencial da utilização da poupança dos um sindicalismo mais combativo, mais radical,
trabalhadores para a segurança social para ca- que não se limita só às reivindicações económi-
pitalizar empresas privadas, subcontratação de cas mas que tem na luta política estratégica a
serviços públicos), nasceu no final da década possibilidade de ganhar no terreno económico.
de 1970 e ao longo da década de 1980, antes
da queda da URSS. A queda da URSS acelerou Portugal 2012 sob a égide da intervenção
um processo que tinha começado antes e por- do FMI
tanto as suas explicações devem, em primeiro
lugar, ser encontradas na dinâmica da relação Em 2007, antes das medidas da Troika, “Um
de forças nos países onde se dá e menos nas quinto dos portugueses vive com menos de 360
mudanças ocorridas no sistema internacional euros por mês. E 32% da população activa entre
de estados, ou seja, pelo fim da URSS. os 16 e os 34 anos seria pobre se dependesse
A hipótese que colocamos neste artigo é que só do seu trabalho”. Em 2012, este número ti-
a consolidação do paradigma neoliberal só foi nha subido para 1/3 das famílias portuguesas,
possível, na Europa, região onde o Estado Social consideradas no “limiar da pobreza e sem ex-
tinha ido mais longe, por dois factores chave. pectativas”1. Passou-se, oficialmente, de dois
O primeiro factor foi a derrota de categorias milhões de pessoas a viver abaixo do limiar de
simbólicas e centrais para o movimento operá- pobreza (20% da população) para três milhões
rio: mineiros na Inglaterra, operários navais e (30%). Em 2007 a falta de comida já “afectava
trabalhadores siderúrgicos em Espanha; em Itá- 97.000 crianças por dia”2.
lia os operários do sector automóvel, em parti- Nenhuma das soluções propostas pela direi-
cular da Fiat; em Portugal os operários navais ta resolverá a questão do desemprego, que sem-
da Lisnave. Fora da Europa, os controladores pre esteve previsto aumentar no programa dos
aéreos nos EUA. governos PS/PSD/Troika3. O primeiro-ministro
O segundo factor, a aceitação, por parte dos actual do país, Pedro Passos Coelho, disse na
sindicatos, na sua esmagadora maioria, de nego- televisão portuguesa que “Portugal só vai sair
ciações que implicaram conservar direitos para da crise empobrecendo”4.
os que ficavam (conservar direitos, dar refor- A aposta na mais-valia relativa, ou seja,
mas antecipadas que recaem sobre a segurança o desenvolvimento tecnológico, vai substituir
social etc.) em troca de tirar os direitos aos que trabalho vivo (trabalhadores) por trabalho mor-
entravam (sub contratados, precários). Ou seja, to (máquinas). A aposta na mais-valia absoluta
a existência de um modelo de coexistência pa- (aumento da jornada de trabalho, diminuição dos
cífica entre ocidente e a URSS, que levava os salários) vai empurrar mais trabalhadores para o
sindicatos, afectos aos PCs ligados à URSS e à desemprego. As propostas da esquerda keynesia-
social democracia no norte da Europa, a confiar na são inoperantes a curto prazo. Investimento

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Raquel Varela, Renato Guedes 73

público sem nacionalizar a banca e o sistema torno de 170 mil milhões de euros e não temos
financeiro na totalidade e sem suspender o pa- riqueza para pagar as necessidades mais bási-
gamento da dívida pública significará mais em- cas de qualquer sociedade: saúde, educação,
presas a fecharem, mais trabalhadores a serem auxilio e bem estar na velhice. Para onde vai a
despedidos, porque no quadro do capitalismo riqueza produzida?
as empresas que não reduzem custos não con- Em Portugal o rendimento dos trabalhado-
seguem sobreviver. É importante lembrar que o res portugueses correspondia já em 2011 a 50%
investimento em obras públicas durante a crise do PIB (incluído os pagamentos para a Segu-
de 1929 nos EUA não diminuiu a médio prazo o rança Social, tanto dos trabalhadores como a
desemprego. O único investimento público que TSU, e antes de pagarem os impostos); mas
diminuiu o desemprego na Alemanha, na Fran- cerca de 75% da massa de tributação entregue
ça, na Inglaterra e nos EUA de Roosevelt foi o ao Estado provinha dos mesmos trabalhadores.8
keynesianismo de guerra, o único historicamente O argumento do peso “excessivo” do estado
bem-sucedido, ou seja, investimento do Estado -providência deve ser rebatido com factos: bas-
em indústrias de destruição5. ta fazer as contas, a partir dos números forneci-
Cada trabalhador grego no activo, segundo dos pelos próprios governos, para verificar que
a OCDE, trabalhou, em 2011, 2032 horas; cada o estado-providência é financiado pelos traba-
alemão 1413 horas anuais; cada português 1711 lhadores, com saldo positivo. Num estudo que
horas anuais. O objectivo, diz a OCDE, é que publicamos calculámos quanto quem trabalha e
todos os países da Europa passem a trabalhar vive do salário entrega ao Estado em contribui-
1776 horas anuais6. ções e impostos (directos e indirectos) e quan-
O governo acena com a mentira da falência to recebe deste em serviços públicos prestados
do Estado social – os portugueses “teriam vi- (saúde, educação, segurança social, transportes,
vido acima das suas possibilidades”; é a frase desporto, espaços públicos, cultura). Chegámos
mais repetida nos media liberais. Calculámos, a à conclusão de que os défices do Estado não po-
partir da adaptação de um modelo previamente dem ser imputados aos gastos sociais e que na
quanto quem trabalha e vive do salário entrega maioria dos anos há mesmo um excedente, isto
ao Estado em contribuições e impostos e quan- é, os trabalhadores entregam mais ao Estado do
to recebe deste em serviços públicos prestados. que recebem dele em gastos sociais. Não nos
Chegámos à conclusão de que os défices do Es- surpreenderam os resultados estando Portugal
tado não podem ser imputados aos gastos sociais neste campo a par de outros países da OCDE,
e que na maioria dos anos há mesmo um exce- onde estudos semelhantes, nomeadamente os
dente, isto é, os trabalhadores entregam mais ao de Anwar Shaikh9, foram realizados.
Estado do que recebem dele em gastos sociais7. Um governo de um país não tem legitimida-
O dogma neoliberal é um dogma porque as- de para apresentar uma dívida, uma factura para
sume a economia como uma ciência ahistórica, pagar, sem explicar porque a contraiu, como,
ou seja, os homens não seriam artificies da sua em benefício de quem. Mas não é indispen-
história, não fariam escolhas da forma como a sável auditar a dívida para concluir que quem
sociedade produz e se reproduz, das suas rela- trabalha em Portugal não deve. O montante da
ções de trabalho, mas estariam fadados a acei- dívida gera uma renda sempre crescente na for-
tar uma série de mecanismos como inevitáveis: ma de juros – estando acordado no plano com a
produção para o lucro, desemprego, dívida pú- Troika a constante subida da dívida portuguesa
blica são, para os liberais, dados da realidade a pagar: 2007 (68,3% do PIB), 2011 (107,8%
tão inexoráveis como a gravidade. do PIB), 2013 (115,7% do PIB) (previsão do
Na verdade a primeira questão que nos de- governo)10. Este grande aumento da dívida é
vemos colocar é, cremos, a seguinte: somos acompanhado por um gigantesco aumento da
um país que produz de riqueza anual algo em massa de juros. Na sua aparência trata-se de

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74 Sindicatos, Neoliberalismo e Estado Social em Portugal (1974-2012)

uma dívida – que apela a honestidade dos tra- único, polícia política e censura. Ungido chefe
balhadores para pagar – mas na sua essência é supremo da nação, Salazar, dotando o Executi-
uma renda fixa de capital. vo de poderes discricionários então necessários
Portugal tem hoje uma população activa à manutenção da ordem, desempenha um papel
de 5.481.000. Destes, estão desempregados arbitral em face da sociedade portuguesa, colo-
1.350.00011 (25%). O desemprego jovem (14- cando-se “acima” das suas partes constituintes
25) oficial é de 36,2%. Trabalham por conta de conflitivas. Um regime de liberdades cívicas e
outrem 3.662.000. Todos os restantes trabalham democráticas era «considerado um atentado à
a contrato com termo (607.000), recibos verdes, segurança interna»14 e, no plano dos direitos so-
entradas e saídas no desemprego e subemprego. ciais, a extensão destes vai ser paulatina e ultra-
Isto significa que está em situação precária ou minoritária, como veremos, mais à frente neste
desempregada 33% da força de trabalho. Acres- artigo, para os campos da saúde e previdência
cente-se a isto que ganham o ordenado mínimo social. Nas colónias vive-se uma forma de acu-
(432 euros líquidos) 500.000 portugueses que mulação de capital baseada no trabalho forçado
em muitos casos, nas cidades, têm de ser acom- (pela escassez de força de trabalho e pela ne-
panhados de apoios estatais (rendimentos míni- cessidade de usar trabalho intensivo nas minas
mos, distribuição alimentos), porque para quem e plantações algodoeiras, por exemplo15) e com
não tem um pedaço de terra de subsistência o uma polícia política – PIDE/DGS – muito mais
ordenado mínimo já se situa (segundo cálculos brutal do que na metrópole, como o demons-
da ONU) abaixo do limiar da subsistência12. tram os trabalhos de Dalila Cabrita Mateus16.
Entre 1926 e 1933, parece ter havido uma
Direitos na República e Estado Novo (1910- compreensão clara por parte da maioria dos
1926; 1933-1974) setores da burguesia portuguesa que a moder-
nização capitalista e a acumulação de capital,
Como lembra o jurista Ângelo Ribeiro, os em grande medida baseada no modelo colonial,
direitos “humanos, no sentido de liberdades cí- não poderia ser feita sob um regime democrá-
vicas, na sua múltipla vertente de direitos civis, tico porque, ao se dar já no século XX, dá-se a
políticos, sociais, económicos e culturais, que par da existência de um novo sujeito social, o
fazem de um país um ‘Estado de Direito’, fo- operariado e setores médios da sociedade, que
ram praticamente inexistentes em Portugal”13 exigiam a par da liberdade política “a libertação
entre 1926 e 1974. O golpe de 28 de maio de económica”. Tal como noutros casos – os países
1926 suspendeu a Constituição republicana que vão constituir as forças do eixo na II Guerra
de 1911, que consagrava, embora de forma Mundial – a democratização tardia do país leva
restrita, as liberdades cívicas e democráticas a que, quando esta é feita, o proletariado já ti-
fundamentais, em resultado do crescimento nha uma expressão suficientemente importante
do movimento operário, das lutas sociais e do para impedir a estabilização política do regime.
sindicalismo durante o final do século XIX e A solução para este nó górdio é a instauração
início do século XX. A Constituição de 1933, de um regime bonapartista onde, como refere
plebiscitada já sob a égide de Salazar, protege o jurista Ângelo Ribeiro, não se podia propria-
a concentração de capital e promove a docili- mente “falar de direitos”.
zação da força de trabalho através da supressão
dos direitos (direito à greve, direito de associa- A crise e a Revolução de abril (1973-1975).
ção e reunião etc.) e da implantação de uma es- Nasce o Pacto Social em Portugal
trutura sindical de tipo corporativo (abolindo os
sindicatos livres e substituindo-os pelos “sindi- “Quilómetros e quilómetros de povo. Povo
catos nacionais”, submetidos ao Estado). Vi- alegre.” Medeiros Ferreira fala em dois milhões
ve-se sob um regime bonapartista, com partido de pessoas em todo o país a celebrar o 1º de

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Raquel Varela, Renato Guedes 75

maio de 1974, o primeiro legal dos últimos 48 ação dos trabalhadores, muitas vezes em luta
anos, quase meio século de “noite”, para relem- contra os despedimentos ou a descapitalização
brar uma expressão de Victor Serge aplicada e abandono de empresas e não por estratégia
à Alemanha. O jornal República noticia: “O da sua direção política principal, o PCP –, a re-
povo já não medo! Esta descoberta espantosa volução portuguesa sofre um salto qualitativo,
e comovedora dominou ontem as gigantescas transformando-se numa situação revolucioná-
manifestações do 1º de maio, que assumiram ria social, de tipo “soviético”, que em setembro
proporções nacionais. Um ex-exilado políti- de 1975, com a irradiação da dualidade de po-
co vindo de França declarou-nos em lágrimas: deres nas forças armadas (SUV, comissões de
“Diga ao seu jornal que isto foi mais belo e soldados etc.), pensamos, é já uma crise revolu-
mais esplêndido do que a libertação de Paris, a cionária, ou seja, o momento em que ou se dá o
que eu assisti”.17 deslocamento do Estado ou um golpe contrarre-
Há manifestações por todo o país: Lisboa, volucionário põe fim à crise do Estado. Com o
Porto, Setúbal, Barreiro, Beja, Faro, Leiria, golpe de 25 de novembro de 1975, a revolução
Bragança. Redações de jornais, ordem dos ad- sofre uma derrota e inicia-se um processo de
vogados, professores, fábricas e empresas, mú- contrarrevolução, assente na progressiva esta-
sicos, cineastas, atores, todos assinam cartas de bilização da democracia liberal representativa,
adesão às manifestações do 1º de maio. como recorda o economista (já falecido) Sousa
“A política foi, em primeiro lugar, a arte Franco20.
de impedir as pessoas de se intrometerem na- A combinação rara de alguns fatores levou à
quilo que lhes diz respeito”18, escreveu o poe- ocorrência da maior crise num Estado europeu
ta francês Paul Valéry. O 25 de abril iniciou desde a II Guerra Mundial: a derrota da guerra
em Portugal um período em que a política foi colonial, a crise económica de 1973, uma socie-
exactamente o contrário, a arte de as pessoas dade desorganizada em que as classes trabalha-
se envolverem nas decisões que condicionam dores e populares não tinham um veículo único
o seu dia-a-dia. O golpe militar de 25 de abril de diálogo com o Estado (sindicatos ou partidos
de 1974 abre portas à entrada em cena de mi- fortes), uma população operária, jovem, forte-
lhões de trabalhadores, iniciando uma situação mente concentrada em dois lugares chave do
revolucionária em Portugal marcada pela luta país: as margens do estuário do Tejo e o Porto.
contra a ditadura, lutas democráticas portanto. Em Portugal, a contrario das medidas re-
São as lutas pelas liberdades democráticas, o cessivas da crise de 1973, conquistam-se au-
ódio à ditadura, que determinam a entrada em mentos salariais. Contra a onda europeia de
cena dos trabalhadores e setores intermédios da surgimento dos pactos sociais, o conflito entre
sociedade, contra, aliás, as ordens da própria patrões e trabalhadores torna Portugal o centro
direção militar que tinha posto fim à ditadura, o do mundo, ocupando à altura um lugar tão ou
MFA. Nesse momento, embora não ainda legal- mais relevante que aquele que é hoje ocupado
mente consagrados, são socialmente garantidos pela crise grega. Temia-se, então como agora,
os direitos de manifestação, reunião, associa- um efeito disruptivo a nível europeu de um pe-
ção, constituição de partidos políticos, direito queno país situado na sua periferia, como es-
à greve, ocupação de empresa, organização na creve Lémus a partir do estudo dos arquivos
empresa e organização sindical. norte-americanos21.
A partir de março de 1975, com a generali- Não dispomos de nenhuma obra sistemática
zação da constituição de comissões de trabalha- que abarque um estudo das greves e dos confli-
dores e de moradores (que designaremos gene- tos sociais durante todo o período da revolução
ricamente por organismos de duplo poder19), o portuguesa e os dados quantitativos são, como
início da reforma agrária e o questionamento da é comum neste tipo de pesquisa, extremamen-
propriedade privada – processo que se dá por te deficitários22. Verifica-se um sub-registo das

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 71-87 / Jul-Dez 2011


76 Sindicatos, Neoliberalismo e Estado Social em Portugal (1974-2012)

greves e outras formas de ação coletiva. Há dizia-se nos meios populares, podia estudar e
dados oficiais e das centrais sindicais, estudos quase não existiam escolas nem professores
parciais, que dizem respeito às primeiras cin- em zonas rurais. Apesar da obrigatoriedade do
co semanas da revolução, e um estudo amplo ensino ser de 6 anos desde 1965, em 1974 cer-
dos conflitos coletivos que não distingue gre- ca de 26% da população é analfabeta, 85% das
ves de outro tipo de conflitos sociais, realizado crianças com idades compreendidas entre seis
por Duran Muñoz23, que registou 958 conflitos e dez anos frequentavam apenas o 1º ciclo (os
de empresa e fábrica. Com exceção de julho e primeiros quatro anos de escolaridade)26.
agosto de 1974, todos os meses registam mais A revolução muda tudo a uma velocidade
de 100 conflitos por mês. surpreendente. Nas escolas alteram-se conteú-
No estudo de Santos et al, nas primeiras cin- dos programáticos, condições de trabalho para
co semanas depois de 25 de abril de 1974 há docentes e para pessoal não docente e condi-
97 greves e 15 ameaças de greve, mais do que ções de estudo para alunos. São criadas redes
ocorreu em cada um dos anos precedentes. A de transporte escolar; foram construídas novas
maioria das greves registam-se na indústria, 58, escolas, cantinas e residências escolares, foram
e em 35 destas greves verifica-se a ocupação da estipulados subsídios para alunos carenciados
fábrica ou empresa. Em 4 regista-se o sequestro e houve a distribuição do leite escolar (entre
de pessoas e bens24. As greves que se registam outras medidas). A oferta curricular é unifor-
neste estudo são maioritariamente “selvagens”, mizada para os 7º, 8º e 9º anos de escolaridade,
decididas em assembleias democráticas de tra- deixando de haver os ramos de ensino liceal
balhadores e dirigidas, na maior parte dos casos, e ensinos técnicos comercial, industrial e agrí-
pelas comissões (conselhos) de trabalhadores. A cola. Em 1974-1975 reintroduz-se o caráter
maioria das reivindicações destes conflitos são laico na educação; extinguem-se a Mocidade
aumentos salariais, salário mínimo, participa- Portuguesa e a Mocidade Portuguesa Femini-
ção nos lucros da empresa, 13º e 14º mês, e, em na; acaba-se com a separação dos alunos em
40% dos casos, controle sobre a empresa. Nas turmas por sexo. Também no plano da gestão
reivindicações salariais de 1974-75, que eram são introduzidas mudanças que só serão altera-
39,8% das reivindicações totais, há um caráter das em 2008. Deixa de haver o cargo de diretor
predominantemente igualitário: aumento sala- ou de reitor e os órgãos de gestão das escolas
rial igual para todos, redução do leque salarial, (Conselho Diretivo e Conselho Pedagógico)
constituição do salário mínimo. Surgem ainda passam a ser democráticos, ou seja, passam
reivindicações novas, típicas de um período re- a ser eleitos pelos seus pares, e no Conselho
volucionário, como trabalho igual, salário igual; Pedagógico há representantes dos docentes, do
abolição de privilégios na empresa. pessoal não docente, dos alunos, dos pais e en-
Basta referir que mesmo tendo em conta a carregados de educação e de outros elementos
crescente cobertura da assistência social duran- com intervenção na escola e/ou no processo
te o Estado Novo (para responder à necessidade educativo. São formadas as associações de pais
de reprodução da mão de obra mais especiali- e de encarregados de educação, associações de
zada, que emigra do campo para a cidade para estudantes, sindicatos de professores e sindica-
trabalhar na indústria), quer no que toca às re- tos de pessoal não docente (alguns integrados
formas quer no que toca à saúde, anexadas de nos sindicatos da função pública). Esta gestão,
facto aos baixos salários e à situação de penúria muitas vezes culpabilizada pela ineficácia da
dos trabalhadores, faziam até aqui de Portugal gestão escolar pelos partidos da terceira via e
um país com índices de subdesenvolvimento25. da direita liberal, permite-nos compreender a
Apesar do maior acesso à escola, feito dificuldade que foi introduzir as reformas neo-
nos anos 60, esta era até ao 25 de abril ainda liberais em Portugal durante os anos 1980 e
uma escola elitista. Só “quem tinha dinheiro”, 1990 porque, uma vez aprovadas no governo,

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Raquel Varela, Renato Guedes 77

as reformas esbarravam de facto, embora de Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Prínci-
forma desigual de escola para escola, na força pe, Moçambique e Angola.
dos Conselhos Diretivos das escolas e das As- Os conflitos resultam num ganho substan-
sociações de Pais. Também no ensino superior cial de transferência de rendimentos do capital
há alterações nos programas curriculares, as- para o trabalho27, em grande medida devido ao
sim como nas condições de acesso. As univer- facto, assinalado por José Barreto, de a “Inter-
sidades passam a dispor de autonomia peda- sindical ter levado algum tempo a estender a
gógica, financeira e científica e os seus órgãos sua influência a todo o movimento e a todos os
são também eleitos pelos seus pares, havendo níveis”28, o que remete justamente para o fac-
órgãos em que há representação do pessoal do- to de que neste contexto de estudo das crises
cente, do pessoal não docente e do pessoal dis- e direitos, mais vale uma organização do que
cente. O ensino é gratuito. nenhuma, do ponto de vista do Estado e dos pa-
Uma das características dos conflitos do trões de empresas e fábricas.
biénio de 1974-1975 é a sua radicalidade: são
maioritariamente convocados em assembleias Crise sem revolução: o duplo mergulho de
e plenários de trabalhadores. O governo vê-se 1981-1984, a adesão à UE e o nascimento da
por isso obrigado a atualizar o salário mínimo Concertação Social em Portugal
(de 3300 escudos para 4000 escudos entre abril
de 1974 e abril de 1975) e a aprovar medidas de Muitas das “conquistas de abril” só foram
contenção dos preços dos bens alimentares, isto legalizadas já nos anos de contra revolução de-
depois de várias manifestações ao longo do mês mocrática. Traumatizadas por uma explosão
de março de 1975 contra a “carestia de vida”. social sem precedentes, um movimento operá-
Em muitas fábricas e empresas o governo é rio forte, extremamente organizado, sindicatos
obrigado a intervir (em mais de 300 ao todo) grandes e influentes, as classes dominantes vão
para evitar despedimentos e descapitalização, de facto criar as condições legais para a institu-
conseguindo os trabalhadores que a fábrica cionalização de muitos daqueles direitos. A si-
mantenha a produção e os postos de trabalho, tuação social estava longe de estar estabilizada
mas em muitas outras conseguem aumentos sa- política e socialmente.
lariais, generalização do contrato coletivo, 13º Entre 1976 e 1983 o país vai ter nada mais,
mês, subsídio de Natal. Também foram conse- nada menos do que 10 governos, dois dos quais
guidas melhorias generalizadas ao nível da pre- interinos e três de iniciativa presidencial. Era
vidência, assistência na maternidade, doença e o resultado institucional de um país fortemente
invalidez. É neste período que os trabalhadores radicalizado (recordemos os quase 800 mil vo-
conseguem o subsídio de desemprego, generali- tos em 1976 no candidato da esquerda radical
zação do direito à reforma e à segurança social; Otelo Saraiva de Carvalho!), saído de uma re-
acesso generalizado a cuidados de saúde; direi- volução parcialmente vitoriosa que fazia entrar
to ao divórcio civil para casamentos católicos; agora no vocabulário as “conquistas de abril”,
habitação social, controle do preço das rendas e “os direitos adquiridos”, em referência aos di-
de bens alimentares essenciais; nacionalização reitos conquistados. De tal forma que a tenta-
da banca e das seguradoras nacionais, reforma tiva de impor a concertação social em 197729
agrária, democratização da gestão do ensino – cujos princípios estavam contra o pacto social
secundário e superior. É ainda neste período, porque estabeleceu por decreto-lei o limite de
é preciso recordá-lo, que um dos mais básicos 15% para os aumentos salariais e a fixação de
direitos é conquistado: o direito à autodetermi- um cabaz de compras, entre outras medidas – é
nação dos povos de África colonizados por Por- um desaire e o I Governo Constitucional cai.
tugal. Entre julho de 1974 e novembro de 1975 Como salienta José Barreto, “as relações entre
é oficialmente reconhecida a independência da o patronato e os trabalhadores ficaram, como é

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78 Sindicatos, Neoliberalismo e Estado Social em Portugal (1974-2012)

óbvio, profundamente marcadas pelas lutas po- na siderurgia e na reparação naval; a isto jun-
líticas de 1974-1975”30, que haviam transferi- ta-se a flexibilização das leis laborais impostas
dos ganhos substanciais para o Trabalho. Entre pela própria adesão do País à CEE (leis 201/83),
1977 e 1981 o rendimento disponível real per as quais estavam associadas aos empréstimos
capita registou um crescimento médio anual de do FMI (Fundo Monetário Internacional), que
3,6% ao ano. Neste cálculo não entram só as intervém no País na altura.
remunerações do fator trabalho – que são mais A estas medidas há uma resposta sindical
elevadas em 1974-1975 (60%) do que em 1979 concertada pela CGTP, com momentos de forte
(45,9%) – mas também outra fonte de rendi- radicalização. O pico grevista de 1981 e 1982
mentos: “as transferências correntes do Estado, dá-se neste preciso momento, quando está no
maioritariamente constituídas pelas rubricas poder o governo de direita da AD (Aliança De-
‘prestações sociais’, com 13,3% do total”31. Os mocrática). No dia 12 de fevereiro de 1982 é
direitos institucionalizados neste período co- convocada a primeira greve geral desde 1934.
brem todo o espectro: saúde, educação, direitos Mas, nestes processos de luta, mudam as
laborais, segurança social. reivindicações: os dados já citados de Cristo-
Porém, esta instabilidade política é marca- vam33, por exemplo, apontam claramente para
da pela progressiva estabilização de centrais um decréscimo das reivindicações que questio-
sindicais muito próximas do modelo europeu. nam os centros de poder da empresa e desta-
Depois do fim da revolução é revogada a lei da cam um aumento das reivindicações salariais.
unicidade sindical e surge uma nova central sin- De acordo com o sociólogo Marinús Pires de
dical, a UGT (União Geral dos Trabalhadores), Lima, estes anos pós 1975 são marcados pela
ligada ao Partido Socialista (social democra- progressiva institucionalização e implantação
ta) e ao Partido Popular Democrático (liberal), dos sindicatos das células partidárias na em-
cuja força maior se encontra nos bancários. As presa, por um lado, e por outro pela crescente
duas centrais sindicais rivalizam entre si na dis- influência da CGTP, muito influenciada pelo
puta de influência junto dos trabalhadores, mas Partido Comunista Português, por oposição às
a CGTP, ligada ao Partido Comunista, continua comissões de trabalhadores, que funcionavam
a ser a maior, com influência no operariado in- como conselhos de fábrica, que dominaram o
dustrial, no setor de serviços e nos funcionários período revolucionário. Lima caracteriza que
públicos. Em final de 1977 a CGTP mantém na na fase revolucionária predomina a ação direta,
sua esfera de influência 287 dos 360 sindicatos a rutura, a iniciativa dos trabalhadores e a de-
existentes em Portugal, entre eles a maioria dos mocracia de base, e na fase pós 1975 passa-se
sindicatos da indústria. progressivamente a um período em que a CGTP
A situação muda radicalmente com a crise se torna mais hegemónica, predomina a nego-
cíclica do início da década de 1980. Neste pe- ciação, “as reivindicações são enquadradas no
ríodo a taxa de crescimento do PIB é de 4,81%, estudo dos problemas económicos e financeiros
em 1981 é de 1,26%, em 1984 é de -1,82%. das empresas, em ligação com a política glo-
Esta crise económica, de alcance mundial, vai bal do Estado”34. Progressivamente, vão sendo
ter como resultado a expansão extraordinária criados organismos de concertação social a ní-
do processo de deslocalização de empresas para vel de algumas empresas. Também Alan Stole-
países com mão de obra mais barata, nomeada- roff identifica a tendência de ambas as centrais
mente para a Ásia. A pressão para a deslocali- sindicais “dirigirem as suas reivindicações ao
zação, a crescente automação e a reestruturação Estado em vez de às empresas”35.
das empresas vem dos grupos económicos por- Os estaleiros navais da Lisnave, os mais ra-
tugueses e da própria Comunidade Económica dicais entre os radicais durante a revolução (as
Europeia (CEE), que negoceia a redução drásti- suas formas de manifestação tinham sido imi-
ca da produção32 em diversos setores, entre eles tadas por outros sectores da classe trabalhadora

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Raquel Varela, Renato Guedes 79

em Portugal, como marchar de braços entre- “Contratos Sociais”, em que os trabalhadores


laçados), jogarão neste contexto um papel de- se comprometiam a não fazer greves; renunciar
terminante. Desenvolve-se um conflito na em- às férias, em troca da construção de um super-
presa que vai durar anos, sendo o período mais petroleiro, construção que no fim acabou por
crítico os anos entre 1982 e 1986. O golpe mais ser cancelada. A seguir ao acordo são feitas de
duro sobre estes operários vai ser a política de imediato 700 rescisões voluntárias com indeni-
salários em atraso que a administração inicia zação. A partir desse ano não houve mais gre-
para desmoralizar os trabalhadores. Fernan- ves na Lisnave.
do Figueira, operário da Lisnave nesta altura, Em 1984, surge o Conselho Permanente de
conta-nos em entrevista “que havia casos de fa- Concertação Social (CPCS), um organismo tri-
mílias que mandaram as crianças para casa dos partido onde estavam representados o governo,
avós por já não terem como sustentar a educa- confederações patronais e sindicais, que visa
ção e mesmo a sobrevivência dos filhos”36. arbitrar a luta de classes. A ideia era domes-
Os trabalhadores vão responder com dife- ticar a força de trabalho, numa época de crise
rentes ações e vai-se desenrolar neste período que tinha sido acompanhada de agudização das
uma acirrada disputa sindical dentro da Lisnave tensões sociais. O governo, que joga aqui um
que opõe a tendência dirigida pela UDP (maoís- papel de até duvidosa legalidade constitucional,
ta), que propugna a ação direta e a permanên- aparece como força neutra, com sérios riscos de
cia do modelo basista de discussão e ação entre corporativismo. Ao CPCS aderiu imediatamen-
os trabalhadores; uma tendência liderada pela te a UGT, afeta aos social democratas e liberais.
CGTP, próxima do PCP, que defendia o contro- A CGTP, afeta ao PCP, começa por considerar
le da discussão e da informação, para realizar o Conselho uma entidade “proto-fascista”, mas
negociações com a administração. E finalmente vai recuar nesta posição rapidamente e aderir a
uma tendência da UGT, social-democrata. este em 198737.
Os trabalhadores da Lisnave ainda protagoni- Na década de 1990 mais de 60% dos 5000
zarão medidas radicais de luta como o sequestro operários da Lisnave são despedidos mas ne-
de diretores e administradores (setembro e outu- goceiam, sob a liderança da CGTP, uma re-
bro de 1982), bloqueio de navios, medidas que forma antecipada em que ficam em casa, sem
terão como resposta a ocupação policial do esta- trabalhar, mas a receber o salário por inteiro,
leiro, em 1983. Lutava-se contra a redução dos durante um período de 10 anos até à idade da
postos de trabalho e pelo pagamento dos salários reforma legal. Hoje a Lisnave tem, 2300 ope-
em atraso, mas a sua capacidade de responder rários, 300 dos quais do quadro, 2000 subcon-
às medidas anticrise da administração tende a tratados que quando não há trabalho ficam em
diminuir. Neste contexto, com grande surpresa casa, e não recebem.
face à anterior história de radicalidade da Lisna- De acordo com o sociólogo Hermes Augus-
ve, a UGT vai ganhar a maioria para a comissão to Costa38, a derrota dos operários da Lisnave,
de trabalhadores em 1986, pela primeira vez na que se saldou no acordo de empresa foi fun-
história da Lisnave. Longe, porém, de ter garan- damental, do ponto de vista político, para ins-
tido a viabilidade da Lisnave, a reestruturação e tituir a concertação social em Portugal e levar
finalmente o quase desaparecimento da empresa a CGTP, depois da derrota da Lisnave, a aderir
dão-se a partir desta data de forma irreversível. ao CPCS. Os mesmos operários que tinham
Será sob a negociação da comissão de tra- um efeito exemplar na radicalização das lutas
balhadores dirigida pela UGT que se assinará, tiveram um efeito exemplar, para todos os tra-
em 1986, o único acordo de empresa celebrado balhadores, na institucionalização dos acordos
até aí em Portugal que previa uma cláusula de que levaram a restruturação produtiva. Não é
paz social. Em troca de a administração regu- por mera coincidência que o principal dirigente
larizar os salários em atraso, são assinados os que esteve na liderança destes acordos, ligados

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80 Sindicatos, Neoliberalismo e Estado Social em Portugal (1974-2012)

à UGT, na década de 1980 seja hoje o presidente sociais foram tardios, como lembra Silva Leal39.
da Confederação Industrial Portuguesa (CIP), a Nasceram no exato momento em que noutros
maior associação patronal do país. Como “pren- países onde germinaram primeiro – como na
da” por ter derrotado o sector mais aguerrido do França pós 1945 e na Inglaterra com o plano
movimento operários o Grupo Mello, detentor do conservador Beveridge, de 1942 – estavam
da Lisnave, acabou por lhe “oferecer” uma pe- a ser postos em causa com medidas recessivas
quena empresa e convidá-lo para aquilo que ele para recuperar as taxas de valorização do capi-
sabia fazer melhor – a concertação social entre tal reduzidas com a crise cíclica de 1973. Me-
patrões, sindicatos e Estado. drou aqui, na periferia da Europa, trinta anos
depois. Mas nasceu em parte de causas idên-
Conclusões ticas àquelas que deram origem ao Estado de
bem-estar na Europa Central e do Norte. Ou
Neste artigo fizemos uma breve história seja, nasceu da pressão do movimento operário
das lutas políticas e das conquistas sociais e sindical, do temor das classes trabalhadoras,
em Portugal nas últimas quatro décadas. Ar- no fundo, como assinala Luís Graça, da “preo-
gumentámos que o Pacto Social em Portugal cupação do próprio sistema económico e polí-
– que a maioria dos autores situa no nascimen- tico, preocupado pela industrialização (explo-
to da concertação social em 1986 – nasceu de são demográfica, conflitos sociais e políticos,
facto em 1975. Este Pacto Social foi simulta- crises económicas etc.)”40.
neamente uma cedência da burguesia portu- A hipótese que ponderamos neste artigo é
guesa como forma de estabilizar a contrarre- a de que os direitos sociais em Portugal foram
volução democrática representativa em reação conquistados durante os 19 meses de período
ao 25 de abril, mas foi também resultado dessa revolucionário e consolidados na década se-
radicalidade social, económica e política du- guinte – sob a forma de um Pacto Social de
rante o período revolucionário. Será depois da facto – e que a instabilidade política herdada
crise de 1981-1984 que este Pacto Social ini- da revolução e que perdurou 10 anos depois de
cia o seu fim, com a vitória paulatina das polí- 1975 foi essencial para a permanência desse
ticas neoliberais, que têm como eixo de gestão pacto. A marca desta instabilidade está na cri-
da perda de direitos a concertação social. Se se governativa crónica que durará até à eleição
o regime democrático-liberal se sustentou no de Aníbal Cavaco Silva. Este balanço de for-
Pacto Social, o fim deste abre uma nova etapa ças social modelou-se entre 1976 e 1985 e sig-
histórica, de que a crise de 2008 parece ser um nificou a impossibilidade real de pôr em cau-
marco fundamental. sa o compromisso social, institucionalizado
O Estado de bem-estar social, ou seja, a ou não,41 e na desconfiança entre a sociedade
assunção de que parte do rendimento dos tra- portuguesa com o projeto europeu. Em 1980
balhadores não lhes é pago em salário direto apenas 24,4% dos portugueses, de acordo com
mas em salário indireto (ou salário social), sob o Eurobarómetro, considerava a “adesão à
a forma de bens e serviços públicos, gratuitos CEE uma coisa boa”. Entre 1986 e 1990 esse
ou quase gratuitos e universais, nasceu, de for- número atingiu os 70%42. As políticas neolibe-
ma generalizada, dos conflitos resultantes do rais em Portugal são grosso modo da segunda
processo revolucionário e é a partir dele que se metade da década de 80 e da década de 90 do
pode olhar, retrospetivamente para compreen- século XX – regulamentação da flexibilização
der a erosão progressiva destes direitos, erosão generalizada do mercado de trabalho, privati-
em alguns momentos diluviana, como depois zação de serviços e bens públicos, transferên-
da crise de 2008. cia de recursos públicos para o setor privado –
O Estado social português e a generali- e levarão uma década depois de 25 de abril de
zação, qualitativa e quantitativa, de direitos 1974 a começarem a ser sentidas em Portugal,

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Raquel Varela, Renato Guedes 81

embora algumas destas leis, com alcance mi- do movimento operário organizado, na Side-
noritário, tenham sido publicadas em 1977. rurgia, mas sobretudo nos estaleiros navais da
Foi preciso uma situação peculiar – e esta Lisnave, com um efeito de arrastamento para
é a hipótese analítica central que aqui propu- todo o movimento operário organizado43. Da
semos – para pôr fim às crises políticas herda- mesma forma que o neoliberalismo em Ingla-
das da revolução, pela força social que o setor terra venceu depois de derrotada a espinha dor-
dos trabalhadores acumulou nesse período – e sal da classe trabalhadora inglesa, os mineiros,
criar as condições sociais das maiorias abso- também em Portugal, cremos, se aplica aquilo
lutas dos governos conservadores de Cavaco que Bo Strath44 defende ter acontecido noutros
Silva e da adesão à Comunidade Económica países na Europa. Isto é, as políticas neolibe-
Europeia (CEE). Ou seja, o neoliberalismo rais só grassaram depois de derrotados bastiões
não foi o caminho “natural” e inevitável da do movimento operário organizado (mineiros,
sociedade portuguesa nas últimas três déca- construção naval e operários siderúrgicos, se-
das, antes resultou da confluência de fatores gundo o economista sueco). Estes setores do
económicos com fatores políticos, em que movimento operário tinham um efeito político
estes últimos, ou seja, os fatores subjetivos, de arrastamento de outros setores operários e
foram preponderantes. mesmo do terciário – quer pelas empresas saté-
A combinação de uma crise económica com lites destes, quer pelo valor exemplar das suas
uma crise política em 1974-1975 deu origem lutas, ou seja, atuavam como uma vanguarda
à consagração do Estado social, e a crise eco- disruptiva da gestão estável do Pacto Social.
nómica de 1981-1984, porque não foi acom- Ainda de acordo com este autor, o papel dos
panhada de uma crise política, consagrou a sindicatos – referindo-se sobretudo ao modelo
conjuntura que permitiu a fase neoliberal em de cogestão do Norte da Europa – foi um fator
Portugal. Tal como em 1974-1975 a vontade determinante no amortecimento da conflituali-
de tornar ingovernável o País foi determinante dade social, decorrente das políticas neolibe-
no curso da crise, em 1981 a aceitação do não rais e da deslocalização produtiva.
questionamento do regime democrático-liberal Finalmente, e embora o valor de rendi-
foi qualitativa no desfecho da crise económica. mento do capital para o trabalho se tenha in-
Estes fatores atuam sempre de forma desi- vertido a fator do primeiro desde o final da
gual, é certo: 1) a crise económica de 1981- década de 1970, é indiscutível que se agregam
1984, cujas medidas contracíclicas aceleraram a estes fatores políticos de estabilização a me-
a inflação, perda de poder de compra, queda lhoria das condições económicas para a maior
abrupta dos salários reais, desemprego, salá- parte da população depois de 1986: a criação
rios em atraso, deslocalização produtiva; 2) de infraestruturas no País, a abertura cultural
a progressiva estabilização do regime, depois à Europa – cujo valor simbólico não pode dei-
de 25 de novembro de 1975, nomeadamente xar de ser aludido num país que funcionava
ao nível das forças armadas, tribunais, forças como uma ilha45 –, o acesso a bens e serviços
de ordem pública, partidos políticos, sindica- de nível europeu para setores das classes mé-
tos; 3) a atuação colaboradora com os pode- dias, com a melhoria do poder de compra; o
res instituídos por parte da União Geral dos fim dos bairros de lata46, a expansão do siste-
Trabalhadores (UGT) e atuação defensiva da ma universitário, a melhoria da qualidade dos
Confederação Geral dos Trabalhadores Portu- cuidados de saúde. A União Europeia, que
gueses (CGTP) face à crise. Finalmente, e re- gerava ainda desconfianças nos anos 198047,
lacionado com a atuação dos sindicatos e orga- foi abraçada de forma praticamente pela unâ-
nismos de luta dos trabalhadores, as condições nime, como vimos, pela população portugue-
para o nascimento das políticas neoliberais sa na década de 1990. Houve um período de
nascem de um último fator: a pesada derrota expansão capitalista da economia portuguesa

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82 Sindicatos, Neoliberalismo e Estado Social em Portugal (1974-2012)

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do centro – PS e PSD – que trouxeram uma Alves, Amável, “A contratação coletiva, uma
inédita estabilidade política, e também uma arma dos trabalhadores”, In O Militante, nº
burocratização dos sindicatos, que cresceram 273, novembro/dezembro de 2004.
e se fortaleceram como aparelhos com força
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dade em compreender o que é a instabilidade boa: Teorema, 1992.
social, e acreditam numa cultura intrínseca de
um país de brandos costumes, quando a insta- Barreto, José, “Modalidades, condições e pers-
bilidade social – eufemismo para confrontos, pectivas de um pacto social”, In Análise Social,
por vezes sangrentos, entre classes sociais – foi vol. XIV (53), 1978-1º, pp. 81-106.
a marca histórica do Portugal contemporâneo.
O Estado Novo manteve a inação social à custa Barreto, António, “Mudança Social em Portugal”,
da brutal repressão, e nem o regime republica- In Costa Pinto, António, Portugal Contemporâ-
no, nem o pós 25 de abril suportaram os con- neo, Lisboa, Dom Quixote, 2004, pp. 137-162.
flitos emergentes de uma sociedade desigual.
Com exceção, talvez, do período entre 1985 Birke, Peter; Huttner, Bernd; Oy, Gottfried
e 2001. Vivemos hoje provavelmente o início (HRSG.), Alte Linke – Neue Linke? Die Sozia-
de um novo período histórico, marcado pelo len Kampfe der 1968er Jahre in der Diskussi-
agravamento plausível da conflitualidade so- on, Berlin: Karl Dietz Verlag, 2009.
cial que poderá ou não, essa é hoje ainda uma
incógnita, ter como consequência uma crise do Coggiola, Osvaldo; Martins, José. Dinâmicas
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23
mico/edicion_impresa/economia/pt/desar- Muñoz, Duran, Ob. cit, p. 142.
rollo/1046490.html
24
Santos (et al). Ob. cit.
13
Ribeiro, Ângelo. Direitos Humanos. Bar-
25
reto, António, Mónica, Maria Filomena. Campos, António Correia de. Saúde Públi-
Dicionário de História de Portugal. Porto: ca. Barreto, António, Mónica, Maria Filo-
Figueirinhas, 2000, p. 559. mena (org.), Dicionário de História de Por-
tugal. Porto: Figueirinhas, 2000, p. 405.
14
Ibidem, p. 560.
26
Duarte, Sandra; Varela, Raquel. Paixão
15
Anderson, Perry, “Portugal and the End of pela educação…privada. Educação e Ter-
Ultra-Colonialism”, In New Left Review, ceira Via em Portugal: da Revolução dos
I/16, July-August, 1962. Cravos aos nossos dias. Peroni, Vera;
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16
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Guerra Colonial. Lisboa: Terramar, 2004.
27
Barreto, José. Modalidades, condições e
17
República, 2 de maio de 1974, p. 1. perspetivas de um pacto social. In: Análise
Social. Vol. XIV (53), 1978, 1º, p. 93.
18
“La politique fût d’abord l’art d’empêcher
28
les gens de se mêler de ce qui les regarde”. Barreto, José. Ob. cit.
Paul Valéry, Tel Quel (1941).
29
Na mesma altura que em Espanha se nego-
19
Charles Tilly, relembrando a dificuldade que ciavam os Pactos de Moncloa, com o apoio
todos os processos revolucionários levantam dos socialistas e comunistas (PSOE e PCE).
à teorização de uma definição comum a estes
30
momentos de transformação social e a va- BARRETO, José. Ob. cit., p. 94.
riabilidade de fatores que caracterizam uma
31
situação revolucionária, optou por utilizar Lima, Ana Valadas de. O rendimento em
como elemento central definidor das revolu- Portugal ao longo da última década. In:
ções a existência de duplo poder (Tilly, Char- Análise Social, Vol. XXI, ns. 87-88-89,
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Helm, 1987.
35
Stoleroff, Alan. Sindicalismo e relações in-
45
dustriais em Portugal. In: Sociologia, nº 4, Embora um país continental, comporta-se
1988, p. 160. como uma ilha – até à década de 1970,
as trocas comerciais com Espanha eram
36
Entrevista realizada com Fernando Figuei- minoritárias, as relações de Portugal com
ra, trabalhador da Lisnave Margueira, janei- a Europa eram feitas (90%) através do
ro de 2009. transporte marítimo, a maioria das ex-
portações portuguesas destinam-se à Grã
37
Stoleroff, Alan D. O Sindicalismo e o Esta- -Bretanha e Escandinávia.
do Pós-1974: o neo-corporativismo e a luta
46
de classes. In: A Sociologia e a sociedade Favelas.
portuguesa na viragem do século. Frag-
47
mentos, 1990, p. 138. Recordemos que o Documento dos 9 – a ala
que dirigiu a contrarrevolução militar em
38
Costa, Hermes Augusto. A construção do 1975 – assumia-se contra a URSS e contra a
Pacto Social em Portugal. In: Revista Críti- social-democracia europeia.
ca de Ciências Sociais, nº 39, maio de 1934,
48
pp. 119-146. Entende-se por “informalidade” o tra-
balho sem direitos. Para um desenvolvi-
39
Leal, Silva António da. As políticas sociais mento deste tema ver TAVARES, Maria
no Portugal de hoje. In: Análise Social, Augusta. Os fios (in)visíveis da produção
Vol. XXI (87-88-89), 1985; 3º, 4º, 5º, pp. capitalista. São Paulo: Cortez Editora,
925-943. 2004.

40
Graça, L. Evolução do sistema hospitalar:
uma perspetiva sociológica. Lisboa: Uni- Raquel Varela (1978)
versidade Nova de Lisboa, Escola Nacional * É historiadora no Instituto de História
de Saúde Pública, Cadeira de Ciências So- Contemporânea da FCSH-Universidade
ciais e Humanas, mimeo. (Textos, T 1238 a Nova de Lisboa e no Internacional Ins-
T 1242), 1996. titute for Social History, Amsterdam. É
presidente da Associação Internacional de
41
Barreto, José. Modalidades, condições e Greves e Conflitos Sociais. É doutora em
perspetivas de um pacto social. In: Análise História Política e Institucional (ISCTE –
Social, Vol. XIV (53), 1978-1º. Instituto Universitário de Lisboa). É coor-
denadora da obra Quem Paga o Estado
42
Pinto, António Costa, Teixeira, Nuno Seve- Social em Portugal? (Lisboa: Bertrand,
riano (orgs.). A Europa do sul e a construção 2012).

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 71-87 / Jul-Dez 2011


Raquel Varela, Renato Guedes 87

Renato Guedes (1968)


** Físico e matemático, é investigador do Cen-
tro de Física Teórica e Computacional da
Universidade de Lisboa, onde se dedica a
extensões do Modelo Padrão das interações
fundamentais em partículas, física do bosão
de Higgs e do quark top. É doutorado em Fí-
sica pela Universidade de Lisboa. É mem-
bro do Comité para a Anulação da Dívida
Pública Portuguesa (CADPP) e da redação
da revista Rubra. É autor, com Rui Viana
Pereira, do estudo Quem Paga o Estado
Social em Portugal? (in VARELA, Raquel,
(coord.), Bertrand, 2012).

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 71-87 / Jul-Dez 2011


89

artiGo

Pariendo el nuevo:
Madres de Plaza de Mayo e a Universidad Popular
Madres de Plaza de Mayo (UPMPM) como estratégia
política, no contexto de crise do neoliberalismo na
América Latina 1

Carlos Eduardo Rebuá Oliveira*

“Nuestros hijos nos parieron”


(Insígnia das Madres de Plaza de Mayo)

Resumo: Este artigo tem como objeto a Universidad Popular Madres de Plaza de Mayo (UPMPM), instituição alicer-
çada num projeto de educação popular e fundada no ano 2000 pela Asociación Madres de Plaza de Mayo, um dos mais
robustos movimentos sociais latino-americanos, atuante há mais de três décadas na Argentina e vinculada a diferentes
lutas e movimentos sociais em todo o mundo. Fundadas sob o signo da resistência contra o regime civil-militar argenti-
no (1976-1983) – o mais cruel do continente, com um saldo de cerca de trinta mil mortos/desaparecidos – as “mães” das
vítimas do chamado Proceso de Reorganización Nacional, sintonizadas em torno de causas comuns (memória, verdade,
justiça, aparição com vida etc.), passaram a empreender uma luta política que extrapolou as dores individuais, forjando
um movimento social de grande envergadura, fundamental nas lutas por democracia e justiça naquele país, ainda hoje.
No contexto de crise do neoliberalismo no continente (2000-2010), diversos movimentos sociais têm empreendido
uma luta material e simbólica no sentido de erigirem espaços de educação/formação política contra-hegemônicos, que
representem um “novo ponto de partida” – para tomar emprestada uma expressão de Florestan Fernandes –, uma trin-
cheira e ao mesmo tempo uma estratégia política nas lutas anti-sistêmicas em nuestra America. Nos interessa investigar
este movimento – a partir, sobretudo, do referencial gramsciano – em direção a uma “nova pedagogia dos de baixo”,
fundada sob as experiências de luta das Madres e que coloca na ordem do dia a discussão/compreensão sobre o caráter
do público e sua importância para as lutas dos trabalhadores.

Palavras-chave: Movimentos Sociais – Contra-hegemonia – Madres de Plaza de Mayo

Abstract: The object of this article is the Universidad Popular Madres de Plaza de Mayo (UPMPM), an institution ba-
sed on a popular education project which started in 2000 by Asociación Madres de Plaza de Mayo, one of the strongest
latin-american social movements, actuating in Argentina for more than three decades and linked to several ights and
social movements worldwide.Based on resistance against argentine civil and military system (1976-1983) – the crue-
lest of the country, with a balance of thirty thousand dead/disappeared – the “mothers” of the victims of the so called
Proceso de Reorganización Nacional tuned with common causes (memory, truth, emerging of dead persons among the
living society) began a political ight of great impact showing individual sufferings, therefore starting enormous social
movement, which is fundamental in ights for democracy and justice in the country up to date.
Within the period of neoliberalism crisis, many social movements had began material and symbolic ight in order to get
space for education and political attitude against counter-hegemony which would represent a “new starting point” – as
FlorestanFernandes sated –, a shelter and at the same time a political strategy in anti-systemic ights in nuestra Ameri-
ca. We must investigate this movement – beginning , above all, with gramscian referential – towards “underdogs new
pedagogy” based on the Madres experiences in ights which puts in the irst place the discussion/comprehension of the
public aspect and its importance for the working classes.

Key words: Social movements – Counter-hegemony – Madres de Plaza de Mayo

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 89-104 / Jul-Dez 2011


90 Pariendo el nuevo: Madres de Plaza de Mayo e a Universidad Popular Madres de Plaza de Mayo (UPMPM)...

Arcabouço teórico contornos de alternativas ao sistema vigente”,


com vários grupos/organizações populares for-
Movimentos sociais e educação: as experiên- jando mudanças substanciais e propostas polí-
cias em “Nuestra America” ticas de novo tipo no continente, cujos reflexos
se disseminam e se vinculam com outras lutas
“Los movimientos están tomando la educa- insurgentes a nível global. Zibechi (2003) iden-
ción en sus manos, como parte de la lucha por tifica três linhagens dos movimentos sociais que
crear un mundo diferente, con lo que ganan en surgiram em meio ao avanço do neoliberalismo
autonomía frente a los estados y en capacidad no continente, desde fins da década de 1970;
crítica frente a los intelectuales y al saber aca- movimentos com novas “roupagens”, distintas
démico”. A afirmação de Zibechi (2005) busca tanto do velho sindicalismo, quanto do “padrão”
dar conta do processo de construção, em diver- dos movimentos europeus: os movimentos ecle-
sas partes da América Latina contemporânea, siais de base, os movimentos indígenas e o gue-
de projetos educacionais de grande enverga- varismo, de matriz revolucionária.
dura por parte dos mais distintos movimentos Boneti (2010, p. 55-56), que corrobora
sociais. Universidad Popular Madres de Plaza Leher quando afirma que o processo educa-
de Mayo (2000), na Argentina; Escola Nacio- tivo está presente em qualquer movimento
nal Florestan Fernandes (ENFF/MST, 2003), social, frisa que o momento histórico e as
no Brasil; Universidad Campesina (2004), na questões sociais das épocas de surgimento
Colômbia; Universidad Intercultural de los dos movimentos sociais, bem como o caráter
Pueblos y Nacionalidades Indígenas (UINPI, do Estado, a ordem econômica e as relações
2004), no Equador; Sistema Educativo Rebelde culturais, definem o caráter da luta e diferen-
Autônomo de Liberación Nacional (SERAZLN/ ciam os processos educativos de cada movi-
Zapatistas, 2004), no México, dentre outros. mento. Tal autor trabalha com o conceito de
Nos últimos dez anos, a relação movimentos movimento social como uma “manifestação
sociais e educação se estreitou profundamente, coletiva, organizada ou não, de protesto, de
materializando-se em instituições alicerçadas reivindicação, luta armada ou como um sim-
na educação popular, em defesa do pluralismo ples processo educativo” [...] como “qual-
e de um conhecimento científico vinculado às quer manifestação ou ação coletiva que se
práticas sócio-culturais latino-americanas, nos apresente com o objetivo de interferir numa
esforço de superar as perspectivas eurocêntri- ordem social”. Também no esforço de con-
cas, a colonialidade do saber, nos termos conce- ceituação dos movimentos sociais, Kaucha-
bidos por Quijano (2005, p. 227-278). kje (2010, p. 76-79) pontua que apesar de não
Com Leher (2010, p. 28) defendemos que haver consenso sobre tal conceito, existindo
a história dos movimentos sociais e revolucio- concomitantemente noções amplas e restritas
nários revela que educação e cultura sempre a seu respeito, é possível construir uma noção
representaram pilares fundamentais de seus geral sobre o fenômeno, mesmo que apenas
programas, sendo que na América Latina, na no interior de cada tradição ou campo teórico.
última década, a dimensão educacional ganhou Para a autora, movimento social é “um fenô-
novo ímpeto, a partir da construção coleti- meno de diversas facetas, que acompanha a
va de espaços de saber vinculados às suas lu- história das diferentes sociedades”[...] “uma
tas. Como afirma Semeraro (2009, p. 9-10), de das formas de ação coletiva”. Por sua vez,
maneira paradoxal, a América Latina, uma das Gohn (2011, p. 13) entende os movimentos
regiões mais assoladas do planeta, pelo (neo) sociais como “ações sociais coletivas de ca-
colonialismo e, mais recentemente, pelo neoli- ráter sociopolítico e cultural que viabilizam
beralismo, “tornou-se um fascinante laborató- distintas formas da população se organizar e
rio de propostas sociais e políticas que ganham expressar suas demandas”.

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 89-104 / Jul-Dez 2011


Carlos Eduardo Rebuá Oliveira 91

Hegemonia e educação na América Latina em [...] Mas a relação pedagógica não pode
tempos neoliberais ser limitada às relações especificamen-
te ‘escolares’,através das quais as no-
Na teoria do marxista sardo Antonio Gramsci vas gerações entram em contato com as
(1891-1937), que segundo Eric Hobsbawm antigas e absorvem suas experiências e
(2011, p. 287) representa o pensamento mais seus valores historicamente necessários,
original surgido no Ocidente desde 1917, he- ‘amadurecendo’ e desenvolvendo uma
gemonia e educação se vinculam de maneira personalidade própria, histórica e cultu-
dialética, sendo toda relação pedagógica uma ralmente superior. Esta relação existe em
relação hegemônica, assim como qualquer rela- toda a sociedade no seu conjunto e em
ção hegemônica é necessariamente pedagógica todo indivíduo com relação aos outros
(Jesus, 1989, p. 122-123). indivíduos, entre camadas intelectuais e
Sobre a primeira afirmativa, Antonio Tava- não intelectuais, entre governantes e go-
res de Jesus (1989, p. 19) diz que a educação vernados, entre elites e seguidores, entre
representa um processo para a concretização dirigentes e dirigidos, entre vanguar-
de uma concepção de mundo2 (ideologia), cuja das e corpos de exército. Toda relação
importância é fundamental tanto na preservação de ‘hegemonia’ é necessariamente uma
de uma hegemonia, quanto na sua renovação relação pedagógica, que se verifica não
(contra-hegemonia). A educação pode agir tanto apenas no interior de uma nação, entre
como instrumento de dissimulação a serviço das as diversas forças que a compõem, mas
classes dominantes, como também pode expli- em todo o campo internacional e mun-
citar para os dominados as contradições existen- dial, entre conjuntos de civilizações na-
tes, permitindo-lhes “reagir a todas elas e ten- cionais e continentais.
tar a contra-hegemonia” (Jesus, 1989, p. 60).
Em relação à segunda afirmativa (as rela- Leher (2010, p. 19), alicerçado no revolu-
ções hegemônicas como pedagógicas), Jesus cionário sardo, corrobora as reflexões de Je-
pontua que “tanto a hegemonia como a contra sus, quando afirma que quando pensada como
-hegemonia exigem um desempenho pedagó- hegemonia, a educação representa parte da
gico mantenedor-reformador da relação total estratégia política dos movimentos sociais,
de poder, de acordo com a situação histórica” dos partidos políticos, sendo por este motivo,
(Jesus, 1989, p. 60). A natureza pedagógica historicamente atacada de maneira vigorosa
das relações hegemônicas se confirma teorica- pelas elites. Se os regimes civil-militares lati-
mente pelo próprio significado de hegemonia no-americanos impuseram duras derrotas aos
desenvolvido por Gramsci: direção intelectual/ diversos movimentos sociais vinculados às lu-
moral e dominação, exercida por uma classe tas da esquerda, na retomada das lutas sociais
sobre as demais, através da sociedade política em fins da década de 1970 e principalmente na
e da sociedade civil, dialeticamente ligadas. década de 1980, as práticas de educação popu-
Na prática, esta natureza pedagógica também lar e as reflexões sobre elas foram resgatadas,
é confirmada, uma vez que somente uma ação representando para os setores dominantes uma
pedagógica é capaz de forjar uma nova cultura ameaça à “governabilidade”. Os movimentos
(através da imperiosa reforma intelectual e mo- sociais recolocaram na pauta as discussões
ral, como preconizava o revolucionário sardo) sobre a educação popular, uma vez que sem
sintonizada com os objetivos da nova classe he- a “formação” de classe, não é possível avan-
gemônica, e é capaz de transformar concepções çar nas estratégias e na disputa hegemônica.
de mundo norteadas pela superstição e pelo fol- Para Leher (2010, p. 20-22), “as contradições
clore, em concepções de mundo histórico-críti- ensejadas pelas políticas de ajuste estrutu-
cas. Diz Gramsci (2006, p. 399): ral neoliberal provocaram relativa ascensão

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 89-104 / Jul-Dez 2011


92 Pariendo el nuevo: Madres de Plaza de Mayo e a Universidad Popular Madres de Plaza de Mayo (UPMPM)...

das lutas sociais, assim como recolocaram na um cenário para outro bastante diferente, jus-
agenda dos movimentos sociais a necessidade tamente por esta “ressaca”, pela saturação das
de repensar suas estratégias”. Com isso, dian- políticas neoliberais (ou neoconservadoras5),
te dos desafios das lutas contra o neoliberalis- que impulsionam diferentes movimentos so-
mo, os movimentos sociais conferiram à for- ciais (“novos” e “velhos”) na busca por avan-
mação política – a educação com hegemonia, çar em projetos pedagógicos próprios.
como salienta Leher – um lugar de destaque A ascensão de governos progressistas na
em sua agenda política. América Latina nesta última década explicita
Frigotto, reafirma a concepção marxiana da os efeitos assombrosos das políticas neoliberais
educação como prática social, como atividade e seu profundo desgaste, traduzido na ida em
humana e histórica que se define nos diversos massa às urnas em diferentes países6. O cenário
espaços da sociedade, na articulação com inte- latino-americano se modificou bastante com as
resses múltiplos (político, econômicos, cultu- vitórias de presidentes cujas campanhas eleito-
rais) das classes/grupos sociais. Em suas pala- rais se alicerçaram nas promessas de transfor-
vras, “a educação é, pois, compreendida como mações sociais, econômicas, políticas e cultu-
elemento constituído e constituinte crucial da rais (Moraes, 2009, p. 99).
luta hegemônica” (Frigotto, 2010, p. 23). A Em ordem cronológica, são eles: Hugo
educação “apresenta-se historicamente como Chávez (Venezuela, 1998), Luiz Inácio Lula
um campo de disputa hegemônica” (Frigotto, da Silva (2002, Brasil), Néstor e Cristina Kir-
2010, p. 27). Para o autor, esta disputa ocor- chner (Argentina, 2003 e 2007, respectiva-
re “na perspectiva de articular as concepções, mente), Tabaré Vázquez (Uruguai, 2004), Evo
a organização dos processos e dos conteúdos Morales (Bolívia, 2005), Rafael Correa (Equa-
educativos na escola e, mais amplamente, nas dor, 2006), Daniel Ortega (Nicarágua, 2006) e
diferentes esferas da vida social, aos interesses Fernando Lugo (Paraguai, 2008). Tais gover-
de classe” (Frigotto, 2010, p. 27). nos, mais “próximos” dos movimentos sociais,
Se a década de 1990 representou para a permitiram a estes últimos construir e/ou avan-
América Latina3o período da “desertificação çar no processo de transformações sociais es-
neoliberal”, nos termos de Antunes (2004), o truturais (de onde as iniciativas no campo da
momento do apogeu do neoliberalismo (e de educação são poderosos exemplos) através de
suas políticas de desregulamentação da econo- uma reorganização radical de atos, palavras e
mia, privatizações em massa, flexibilização de símbolos, provocando a desestabilização do
direitos trabalhistas, “Estado mínimo”, ajuste sistema por meio de formas inesperadas e cria-
fiscal e redução dos gastos públicos com edu- tivas (Leher, 2010, p. 31).
cação, saúde, previdência social etc.), a dé- Por parte dos novos governos, as políticas
cada seguinte (2000-2010) – recorte de nossa públicas não puderam “desconsiderar” as de-
pesquisa – expôs o desgaste desta ideologia mandas dos distintos movimentos sociais (não
e suas políticas, que para muitos intelectuais sem conflitos) – que deram sustentação às suas
(Sader; Gentili, 1995; Meszáros, 2002; Seme- campanhas –, inclusive e, sobretudo, seus pro-
raro, 2009; Sader, 2009; Frigotto, 2010) repre- jetos de educação popular pública (a UPMPM,
senta uma crise estrutural4 do neoliberalismo, por exemplo), que convergem em direção a um
modelo específico do capitalismo. A América projeto popular maior, de sociedade (Semeraro,
Latina, outrora paraíso neoliberal, passou a ser 2009, p. 11), contra-hegemônico, alternativo a
seu elo mais fraco, obtendo avanços na dire- um modelo de sociedade em processo de dis-
ção de sua superação, sendo os movimentos solução. Para Semeraro, “o resgate e os des-
sociais fundamentais artífices destas ações. dobramentos dessa práxis surpreendente são
Em suma, da década de 1990 para a década de postos em contraposição à crise estrutural do
2000, o continente latino-americano passa de (neo)liberalismo que se processa diante dos

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nossos olhos, empurrando cada vez mais o pla- próprio, “hegemonia couraçada de coerção”
neta para a catástrofe” (Semeraro, 2009, p. 11). (Gramsci, 2007a, p. 244).
Diferentes movimentos sociais latino-ame- É importante ressaltar que o comunista ita-
ricanos estão empreendendo nos últimos anos liano entendia a sociedade valendo-se de um
uma “ampliação” da frente cultural7, como mo- esquema triádico, formado por economia – so-
vimento, política e organização, ações impres- ciedade civil – Estado (sociedade política), com
cindíveis no esforço de fazer avançar a hege- a economia correspondendo à estrutura e so-
monia dos subalternos. A “batalha das ideias” ciedade civil/sociedade política representando
forjada pelos movimentos sociais do continente dois grandes planos superestruturais12. Gramsci
que lutam contra o capitalismo e, logo, contra amplia a teoria leninista do Estado, defendendo
o neoliberalismo, comprova que se desenvolve que a hegemonia não se reduz à força econômi-
por aqui um processo histórico-social em que o ca e militar, mas resulta de uma batalha cons-
conhecimento é política e estratégia contra-he- tante pela conquista do consenso no conjunto
gemônica (Leher, 2010, p. 30). da sociedade (grupos subalternos e potenciais
aliados). Para ele, a hegemonia corresponde à
Hegemonia e contra-hegemonia liderança cultural e ideológica de uma classe
sobre as demais, pressupondo a capacidade de
O conceito de hegemonia – que dentro do um bloco histórico (aliança de classes e frações
pensamento marxista8 corresponde a um dos de classes, duradoura e ampla) dirigir moral e
mais polêmicos e difíceis de definir – tem ori- culturalmente, de forma sustentada, toda a so-
gem no grego eghestai, significando “condu- ciedade (Moraes, 2009, p. 35).
zir”, “ser guia” ou “chefe”, e do verbo eghe- Portanto, é impossível pensar a hegemonia
moneuo, que também corresponde a “guiar/ sem pensar na luta de classes. Abordar a hege-
conduzir”, e por consequência, “dominar”, monia e a contra-hegemonia significa tocar na
“comandar”9 (Macciocchi, 1977, p. 182). Tal questão do antagonismo entre as classes sociais
conceito alcançou seu pleno desenvolvimento que, a partir de sua posição (dominante ou su-
como conceito marxista com Gramsci. Consi- balterna, no interior da sociedade e do Estado),
derado por muitos estudiosos do filósofo sardo exercem/sofrem/disputam o poder de maneira
seu conceito chave e sua maior contribuição permanente (Dantas, 2008a, p. 91).
à teoria marxista, a “hegemonia gramsciana” O conceito de contra-hegemonia não foi
(que era ainda um conceito pouco desenvolvi- criado por Gramsci, correspondendo a uma in-
do10 antes de sua prisão pelo Estado fascista, terpretação do conceito de hegemonia do filó-
em 1926) era definida, já nas anotações da pri- sofo revolucionário a partir de uma perspectiva
são (que dariam origem à sua maior obra, os crítica, atualizada e, sobretudo estratégica, por
Quaderni), como o modo pelo qual a burguesia parte de inúmeros marxistas13, objetivando tra-
estabelece e mantém sua dominação (hegemo- duzir e/ou demarcar, em termos de luta ideoló-
nia como projeto de classe). Analisando histo- gica e material, um projeto antagônico de clas-
ricamente a Revolução Francesa e o Risorgi- se, em relação à hegemonia burguesa. O termo,
mento italiano, Gramsci vai buscar entender que se consolidou pelo uso, significa que a luta
como se construiu nestes países a chegada da é contra uma hegemonia estabelecida, uma luta
burguesia ao poder e, sobretudo, a manuten- que objetiva a construção de uma nova hege-
ção deste poder, definindo o Estado, a partir monia, e que por isso, corresponde a um pro-
principalmente de Maquiavel, como força mais jeto de classe distinto. Como corresponde a
consentimento, coerção mais consenso, domí- uma interpretação, tal conceito oferece muitas
nio mais direção, sociedade política (Estado dificuldades para quem se dispõe a explorar seu
stricto sensu) mais sociedade civil (aparelhos (s) significado (s). Além de escassa na literatu-
privados de hegemonia11), ou em expressão do ra marxista, a definição do conceito pode ser

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encontrada sob os mais distintos espectros polí- em Gramsci, a construção de uma “nova he-
tico-ideológicos. gemonia emancipadora” exige a realização de
Não se trata de incorporar um neologis- uma reforma intelectual e moral que seria capaz
mo, mas de utilizar um conceito legitimado de criar uma nova concepção de mundo e uma
por diversos intelectuais importantes dentro do nova ideologia do povo. Finalizando, Eagleton
campo marxista (ainda que poucos o definam), (1997, p. 106) defende que na sociedade mo-
que fazem uso da “contra-hegemonia” queren- derna não basta ocupar fábricas ou enfrentar
do apontar para outro projeto de classe, outro diretamente o Estado, pois o que também deve
mundo possível. Para Eduardo Granja Coutinho ser contestado é toda a área da “cultura”, defi-
(2008a, p. 77), parafraseando Marx, é possível nida em seu sentido mais amplo.
dizer que toda hegemonia traz em si o germe
da contra-hegemonia, existindo uma unidade Madres e Universidad Popular Madres de
dialética entre ambas, com uma se definindo Plaza de Mayo (UPMPM)
pela outra. Raymond Williams (1979, p. 115-
116), frisa que a hegemonia sofre uma resistên- “(...) Na Argentina, as loucas da
cia continuada, limitada, alterada e desafiada Praça de Maio
por pressões que não são as suas próprias. Com serão um exemplo de saúde mental,
isso, é preciso acrescentar a este conceito outro: porque se negaram a esquecer
“contra-hegemonia” (e/ou “hegemonia alterna- em tempos de amnésia obrigatória.”
tiva”), elementos reais e persistentes na prática.
Daniel Campione (2003, p. 53) também utili- (Eduardo Galeano, O Direito ao Delírio)
za a expressão “hegemonia alternativa” como
sinônimo de contra-hegemonia, afirmando que A Asociación Madres de Plaza de Mayo sur-
só é possível a conversão dos grupos domina- giu em 30 de abril de 1977, em Buenos Aires,
dos em hegemônicos se estes passarem do pla- um ano após o início da mais cruel ditadura ci-
no econômico-corporativo ao plano ético-polí- vil-militar daquele país (1976-1983) e uma das
tico (com o vetor “ético” indicando a dimensão mais sangrentas do continente, protagonizada
intelectual e moral e o vetor “político” o con- pelo triunvirato Videla-Massera-Agosti e inti-
trole do aparato de Estado). Por sua vez, Terry tulada por seus ideólogos/artífices como Proce-
Eagleton (1997, p. 107) afirma que todo poder so de Reorganización Nacional. O terrorismo
governante é forçado a enfrentar forças contra de Estado (Pascual, 2004) imposto pelo regime
-hegemônicas, parcialmente constitutivas de deixou um saldo de cerca de trinta mil desapa-
seu próprio domínio. recidos, e da inquietação de inúmeras mães que
Toda contra-hegemonia é uma luta em duas perderam seus filhos (a maioria sem conseguir
frentes: a material (que Gramsci chama de “con- enterrá-los), surge um dos movimentos sociais
teúdo”14) e a ideológico-cultural (que Gramsci mais importantes da América Latina e o movi-
chama de “forma”), que na concepção grams- mento feminino mais comentado e estudado no
ciana equivale ao campo do consenso. Con- continente nos últimos trinta anos. A maioria
quistar a hegemonia significa, para Gramsci, de seus membros era formada por mulheres de
estabelecer uma liderança moral, intelectual, meia-idade, oriundas dos setores médios ou da
política, difundindo sua própria “concepção de classe trabalhadora, com formação até o ensi-
mundo” por toda a sociedade, igualando o pró- no secundário (grande parte) e com raras exce-
prio interesse (da classe hegemônica) com o da ções, nunca haviam se envolvido diretamente
sociedade em geral. Acanda (2006, p. 207) nos na política (Bouvard, 1994).
ajuda a compreender a importância da cultura e Cansadas de esperar as autoridades ministe-
da ideologia na construção de qualquer movi- riais para obter informações de seus parentes, co-
mento contra-hegemônico, quando afirma que meçaram a se reunir e a marchar semanalmente,

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de maneira espontânea (AMPM, 2003) na Pla- busca por uma nova práxis, sintonizada com
za de Mayo (coração político de Buenos Aires as novas lutas pós-ditadura, as Madres, mais
e “lugar de memória”15 fundamental daquela “maduras”, ampliaram seus objetivos coletivos
sociedade), com seus pañuelos16(lenços) bran- (e logo, sua identidade) não apenas nas ques-
cos com o nome de seus filhos. De suas fileiras tões concernentes aos direitos humanos19, mas
surgiram outros grupos ainda atuantes e tam- também para criticar o neoliberalismo e suas
bém de grande referência na Argentina: a Aso- consequências (Borland, 2006, p. 131) – extre-
ciación Civil Abuelas de Plaza de Mayo (1977), mamente desastrosas em seu país, como atesta
formada por mães e avós de desaparecidos; a a Crise de 2001/2002 – consolidando-se como
Madres de Plaza de Mayo Línea Fundadora um importante sujeito político coletivo.
(1986), uma dissidência devido a desacordos De todos os lugares de memória forjados
estratégicos e de liderança; e finalmente, o mo- pelas Madres, o maior e mais representativo de-
vimento H.I.J.O.S (1995), integrado por filhos/ les é a Universidad Popular Madres de Plaza de
parentes de vítimas do regime – sequestrados Mayo (UPMPM), inaugurada em 6 de abril de
e criados desde bebês pelos próprios algozes – 2000, em Buenos Aires, defendendo uma edu-
em busca de justiça e de reconstruir sua história cação vinculada à transformação social, numa
pessoal e familiar: perspectiva crítica frente ao status quo, no sen-
tido de construir uma sociedade mais justa, de-
Cuando desapareció mi hijo, yo me ha- mocrática. A UPMPM “nasce” para materializar
bía quedado muy sola. No tenía a quien os sonhos interrompidos de milhares de hijos,
acercarme, me sentia muy sola. Cosa sendo “el camiño increíble para la revolución
que le pasó la gran mayoría de las ma- que soñaron nuestros hijos”20, como afirmou
dres. Estábamos como perdidas, sin Hebe de Bonafini, uma das fundadoras das Ma-
tener a quien recurrir. No sólo a quien dres e principal porta-voz do movimento, presi-
recurrir, sino con quien hablar, alguien dindo-o e atuando como reitora da universidade.
que participara de nuestra pena y nos Sob a metáfora do parto, as Madres construíram
comprendiera (...) En las oficinas Del poderosas bandeiras, traduzidas, por exemplo,
Ministerio del Interior yo conocí a otras nos lemas “parir rebeliones” e “nuestros hijos
madres que iban por lo mismo, entonces nos parieron”. Segundo Basile (2002, p. 67),
empece a tener, por fin en quien apoyar- em seu estudo acerca da UPMPM,
me, a tener un punto de referencia.17
La ya notable actuación de este movi-
Protagonistas de uma história de luta e re- miento social – las Madres de Plaza de
sistência, as Madres construíram um movimen- Mayo – y su reciente fundación de una
to que se tornou um dos principais emblemas Universidad abren otros prefiles para
internacionais na defesa dos direitos humanos indagar procesos especificamente latino
(Correa; Morzilli, 2011). Enquanto a imagem -americanos de institucionalización de
de seus pañuelos se convertia num símbolo nuevas prácticas que vinculan el cono-
fundamental das lutas pela memória18 (contra cimiento con la práxis social.
a “memória oficial”) e pela justiça na Argen-
tina, o período de transição da ditadura para a Alicerçada no tripé ensino-pesquisa-exten-
democracia colocaria em questão toda a expe- são, a Universidade – que começou com pou-
riência anterior do movimento, obrigando-o a cos cursos – oferece hoje cursos de graduação
repensar reivindicações, formas de luta e mo- (Direito, Licenciaturas em História e Trabalho
dos de atuação política, sob a pressão de vários Social), cursos de formação (Capitalismo e
setores para que essas mudanças ocorressem na Direitos Humanos, Cooperativismo, Jornalis-
direção de seus interesses (Gorini, 2006). Na mo de Investigação, Psicologia Social etc.),

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seminários anuais (Leitura metodológica do Ca- se trata ya, necesariamente de una lucha
pital, Literatura e Política, Ecologia e Capitalis- armada; la revolución se puede continuar
mo etc.) e oficinas (Pintura, Fotografia, Narrati- de diferentes modos ha dicho Hebe en un
va etc.), também anuais21. A UPMPM se oferece programa televisivo y sus prácticas de
como um espaço alternativo, crítico ao “poder protestas, marchas, rondas, petitórios tes-
oficial”, representando uma “contraoferta” timonian un cambio notable. No menos
tanto às universidades privadas quanto às uni- notable es haber fundado una universi-
versidades públicas argentinas. Esta universi- dad. (Basile, 2002, p. 69).
dade, criada pelo movimento social de maior
referência daquele país, propõe um tipo de co- Neoliberalismo e os embates da “pedagogia
nhecimento que se baseia na experiência, so- da contra-hegemonia”, na América Latina
bretudo por ter surgido justamente da experiên-
cia de sofrimento daquelas mulheres durante a Quem tem consciência pra se ter coragem
ditadura, sendo a memória o nexo entre filhos e Quem tem a força de saber que existe
mães, que com o passar dos anos, não quiseram E no centro da própria engrenagem
mais “enterrá-los” a fim de poder manter seus Inventa a contra- mola que resiste
sonhos “vivos”. Defendem um saber ancorado Quem não vacila mesmo derrotado
na espessura do real, interessado pelas deman- Quem já perdido nunca desespera
das sociais, pelas reivindicações por justiça e E envolto em tempestade decepado
pelas lutas (Basile, 2002, p. 69). Em oposição Entre os dentes segura a primavera
aos paradigmas pós-modernos, que dissolvem
as utopias, negam a História e sepultam a luta (Primavera nos Dentes, Secos e Molhados)
de classes e os ideais revolucionários, a UPM-
PM resgata as bandeiras revolucionárias dos São vários efeitos perversos causados pelas
anos 1960 para torná-las válidas, em outra con- políticas de ajuste estrutural neoliberal sobre
juntura e através de outras armas: a educação: privatizações; repressão aos edu-
cadores; desestruturação das carreiras docente
Frente a un conocimiento fragmentado, e técnico-administrativa; corte de verbas; am-
disciplinario, desinteresado, especulati- pliação do Ensino à Distância (EAD); profu-
vo, teorico; la Universidad Popular pro- são/legitimação dos sistemas avaliativos como
cura un saber cargado de memorias, de parâmetros inquestionáveis de análise de qua-
historias de vida, de nombres y apellidos, lidade, “medida” através das “competências”,
de rostros y cuerpos, de reclamos por la que individualizam as relações na escola; co-
justicia, de protestas por la verdad, de modificação do saber, onde o produtivismo
ideales. E incluso resulta todo un gesto acadêmico, a regulação da produção científica
político la reasunción de cierta termino- e a intensificação/precarização do trabalho do
logia de la izquierda, fundamentalmente professor são efeitos imediatos22,dentre outros.
contra algunas corrientes del post mo- Para Leher (2010, p. 21), dentre estes diversos
dernismo que la dan de baja, en el uso efeitos, a redução do sentido do que é público
de conceptos como “dependencia”, “im- merece atenção especial.
perialismo”, “lucha de clases”, “utopía”, Através da defesa de uma sociedade civil23
“liberación”, “explotación” etc. (...) Sin “asséptica”, sem capitalismo e/ou classes so-
embargo, la continuidad del sueño re- ciais, “fora” do Estado e do mercado (tercei-
volucionario de sus hijos nacido en la ro setor24), o pensamento neoliberal difunde a
coyuntura histórica de los años 60 y 70, ideia de que é na sociedade civil que se realiza
se reformula necesariamente en otros tér- plenamente a democracia, a liberdade, a satis-
minos en el horizonte del presente. No fação dos desejos individuais. Do “outro lado”,

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o Estado é visto como o lócus do autoritarismo Permanecem intocadas, contudo, as re-


e da burocracia. O embate privado x Estatal, lações de exploração, que estão longe
como afirma novamente Leher (2005, p. 2), aca- de serem abolidas no mundo contempo-
ba excluindo do debate a esfera pública e, logo, râneo, sobretudo nos países capitalistas
tanto as políticas universais quanto as lutas em periféricos” (Neves, 2005, p. 15).
defesa de uma esfera pública no Estado: “Em
outros termos, o par em conflito afasta do cam- Para a autora, o Estado capitalista, na con-
po de análise a tese de que o público (publicus, dição de educador27, desenvolveu (e desenvol-
poblicus), os direitos de todo o povo, resultam ve) uma “pedagogia da hegemonia”, com ações
das lutas de classes. A positividade do privado concretas tanto no Estado quanto na sociedade
e a negatividade do público é também uma tese civil. Nas sociedades chamadas por Gramsci de
dos neoliberais” (Ibidem). Neste processo de “ocidentais”28 – mais estruturadas politicamen-
“apagamento” do público, frisa Leher, a esfera te – a pedagogia da hegemonia passa a se exer-
privada passa a ser rotulada como um espaço cer de forma mais sistemática, através de ações
“público-não estatal”, uma vez que atende ao com função educativa positiva, desenvolvidas
“interesse social”. principalmente na sociedade civil, mais especi-
Neste panorama claro de embates ideológi- ficamente nos aparelhos privados de hegemo-
cos e materiais por, de um lado, perpetuar/forta- nia, onde a escola, segundo Gramsci, é o mais
lecer o modelo societário neoliberal na América importante e estratégico (Neves, 2005, p. 27).
Latina25, e de outro, construir uma hegemonia Tais aparelhos representam peça-chave den-
dos subalternos, a educação do consenso tem tro da teoria ampliada do Estado de Gramsci.
grande centralidade, como ensinou Gramsci, De acordo com Coutinho (2007, p. 129), eles
se referindo à imprescindível direção político- são “organizações materiais que compõem a
cultural que a classe hegemônica deve exercer sociedade civil”, são “organismos sociais cole-
na perspectiva de conservar e/ou transformar o tivos voluntários e relativamente autônomos”
conjunto da vida social. em relação à sociedade política (cujos orga-
Lúcia Neves (2005) constrói primorosa aná- nismos sociais ou portadores materiais são os
lise dos pressupostos, princípios e estratégias chamados aparelhos repressivos de Estado – o
do projeto neoliberal da Terceira Via26, que nor- aparato policial-militar e a burocracia executi-
teiam o que ela chama de “nova pedagogia da va). Denis de Moraes (2009, p. 40), alicerçado
hegemonia” burguesa no mundo de hoje, que na em Coutinho contribui para a análise dos apa-
América Latina atua de maneira exemplar (Ne- relhos privados de hegemonia, afirmando que
ves, 2005, p. 38). Tal projeto de sociabilidade, “tais aparelhos são os agentes fundamentais
da hegemonia, os portadores materiais das
apresenta a característica de negar o ideologias que buscam sedimentar apoios na
conflito de classes e até mesmo a exis- sociedade civil”. E pensando na contra-hege-
tência dessa divisão nas sociedades di- monia, salienta que “o aparelho de hegemonia
tas ‘pós-tradicionais’, ancorando uma não está ao alcance apenas da classe dominan-
sociabilidade com base na democracia te que exerce a hegemonia, como também das
formal, ou seja, na ‘conciliação’ de in- classes subalternas que desejam conquistá-la”.
teresses de grupos ‘plurais’, na alter- Dentre as ações concretas da nova pedagogia
nância de poder entre os partidos polí- da hegemonia, podemos citar a atuação do movi-
ticos ‘renovados’, na auto-organização mento “Todos pela Educação”29, aqui no Brasil,
e envolvimento das populações com as que reúne quase 80% do PIB nacional (Itaú, Bra-
questões ligadas às suas localidades, no desco, Vale, Monsanto, Globo, Abril, Odebrecht,
trabalho voluntário e na ideologia da Faber-Castell, Gol, HSBC, Natura, Santander etc.)
responsabilidade social das empresas. em torno de um projeto que visa fazer o Brasil

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alcançar “a Educação que precisa”30 (grifo nos- tempo, tem criado/aprofundado tensões com o
so), através de cinco metas “simples, específicas Estado, com o qual mantém relações institucio-
e focadas em resultados mensuráveis”, onde uma nais nestes anos de kirchnerismo (2003-2012).
se destaca (Meta 5): “Investimento em Educação Interessa-nos, na tese em construção, analisar
ampliado e bem gerido” (grifos nossos). os vínculos das Madres (destacadamente de sua
Caberia aqui uma análise mais acurada direção31) com o governo argentino – de caráter
dos objetivos/efeitos da atuação destes grupos “progressista”32 – nesta última década, verifi-
empresariais privados, num organismo que se cando como ocorre concretamente o processo
reivindica como de “interesse social”, defen- de “adequação à ordem”33 deste sujeito coleti-
sor da educação pública, conforme dissemos vo (Madres), como se dá a relação da educação
anteriormente. Para além do caráter “merca- nos movimentos sociais com o Estado.
dológico” de um movimento deste tipo, que Uma educação de qualidade para os traba-
materializa a educação como uma importante lhadores, assinala Leher (2008, p. 17), tem de ser
e estratégica fonte de lucro, é importante res- uma meta prioritária desde o hoje, “para que os
saltar mais uma vez a contribuição de Gramsci germes da educação do futuro possam ser culti-
no que se refere ao caráter fundamental do vados”. E quem disse que educação de qualidade
vetor-consenso na consecução de uma hege- não pode ser oferecida, pensada, recriada por um
monia de classe. Em termos gramscianos, tal movimento social, sobretudo um movimento so-
movimento representa um poderoso aparelho cial fundado por mães, que do luto partiram para
privado de hegemonia da burguesia brasileira, a luta?! E quem disse que uma outra educação e,
que tem como objetivo claro pesar decisiva- por conseguinte, um outro mundo possível, não
mente na correlação de forças existentes em pode ser “parido” da concretude do real, com to-
nossa sociedade, obtendo do conjunto da so- das as suas contradições, perguntas, lutas, me-
ciedade o consentimento passivo e/ou ativo mórias, “contra-molas” e rostos humanos?!
para seus projetos de sociabilidade.
Do “outro lado”, também cientes da impor- A pedagogia da contra-hegemonia, por
tância da educação do consenso, da formação sua vez, apesar de garantir expressivas
política e do caráter hegemônico da educação, vitórias em formações sociais periféricas,
os movimentos sociais latino-americanos, como foi perdendo seu poder de persuasão nas
dissemos anteriormente, têm construído cole- formações capitalistas centrais e, final-
tivamente poderosas frentes de luta materiais mente, com a queda do muro de Berlim
e ideológicas, materializadas em instituições e com o fim da União Soviética, vem
educacionais de educação popular que visam o tendo muita dificuldade para convencer
fortalecimento/ampliação da contra-hegemonia a classe trabalhadora de que processos
(Neves, 2005, p. 17) e da esfera pública como como a expropriação, a exploração e a
algo que é efetivamente de todos, de maneira dominação por ela vivenciadas são his-
democrática, uma vez que “o embate contra toricamente construídos, como resultado
-hegemônico traz a exigência da construção de da hegemonia burguesa. Mesmo assim,
uma alternativa que tenha a democracia como em todos os cantos do planeta, embora
o valor fundamental” (Frigotto, 2010, p. 25-30) de forma minoritária, aparelhos privados
A UPMPM, forjada a partir de três déca- de hegemonia proletária – nos quais se
das de “práxis educadora” das Madres, de suas incluem partidos, sindicatos, movimen-
experiências nas lutas por justiça, memória e tos sociais (grifo nosso) e até algumas
verdade, tem conquistado, consolidado e apro- organizações não-governamentais – con-
fundado poderosos consensos no processo de tinuam sua tarefa de persuadir o conjunto
ampliação de seu espectro de luta, “educando” da população de que um outro mundo é
diferentes setores daquela sociedade. Ao mesmo possível” (Neves, 2005, p. 32).

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Carlos Eduardo Rebuá Oliveira 99

Mais do que nunca, é preciso construir o Educação e movimentos sociais: novos olhares.
público na luta pela desmercantilização da edu- Campinas, SP: Editora Alínea, 2010. p. 55-73.
cação, contra a colonialidade do saber e em
diálogo permanente com as lutas sociais. Cento BORLAND, Elizabeth. Las Madres de Plaza de
e quarenta anos após o silêncio imposto pelas Mayo em la era neoliberal. Revista Colombia
armas da reação conservadora à Comuna de Internacional, n. 63, ene./jun. 2006. p. 128-147.
Paris, ainda ecoa o exemplo dos comunards e
de suas bandeiras em defesa de uma educação BOUVARD, Marguerite Guzmán. Revolution-
efetivamente pública, popular, gratuita, laica, izing motherhood: the Mothers of the Plaza de
omnilateral, universal, integral. Mayo.Wilmington, DE: ScholaryResources,
Na Argentina, são as Madres – “las locas Inc, 1994.
Madres de Plaza de Mayo”, como brinca Ga-
leano – que nos ensinam a lutar lutas velhas BUCI-GLUCKSMANN, Christinne. Gramsci
com novas armas, “pariendo el nuevo”através e o estado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
da práxis de uma pedagogia contra-hegemônica
materializada na UPMPM, sob o lema “cons- CAMPIONE, Daniel. Hegemonia e contra-he-
trucción colectiva del conocimiento y la libera- gemonia na América Latina. In: COUTINHO,
ción”... cada vez mais atual e urgente. C. Nelson; TEIXEIRA, Andréa de P. (Org.).
Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Ja-
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SADER, Emir. A nova toupeira: os caminhos Florestan Fernandes (ENFF – Movimento
da esquerda latino-americana. São Paulo: Boi- dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) em
tempo, 2009. tempos neoliberais (2000-2010)”, ainda
em construção.
SADER, Emir.; GENTILI, Pablo (Org.) Pós-
2
neoliberalismo: as políticas sociais e o estado Buci-Glucksmann sintetiza – em breve e
democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. clássica definição – a noção de ideologia
como concepção de mundo em Gramsci,
SAPIA, Jorge Edgardo. La construcción de citando o próprio: “rompendo resolutamen-
espacios simbolicos de resistência: Madres de te com uma concepção da ideologia como
Plaza de Mayo y familiares de desaparecidos ideologia-ilusão ou como simples sistema
y detenidos por razones politicas. Dissertação de ideias, Gramsci estende a análise dos
(Mestrado) – Instituto Universitário de Pesqui- aspectos mais conscientes das ideologias a
sas, Rio de Janeiro, 2004. seus aspectos inconscientes, implícitos, ma-
terializados nas práticas, às normas cultu-
SEMERARO, Giovanni. Libertação e hege- rais, aceitas ou impostas. As ideologias fun-
monia: realizar a América Latina pelos mo- cionam como agentes de unificação social,
vimentos populares. Aparecida, SP: Ideias & como cimento de uma base de classe. Mais
Letras, 2009. ainda: a ideologia, tendencialmente identi-
ficada à concepção de mundo de uma clas-
ZIBECHI, Raúl. Los movimientos sociales la- s,e impregna todas as atividades, todas as
tinoamericanos: tendencias y desafios. Revista práticas. Ela é ‘uma concepção de mundo
do OSAL, Buenos Aires, n. 9, jan. 2003. que se manifesta implicitamente na arte, no
direito, na atividade econômica, em todas
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ciales. FLAPE – Foro Latino americano de Po- tiva’” (1980, p. 83-84).
líticas Educativas, 2005. Disponível em: www.
3
foro-latino.org. Acesso em agosto de 2011. Região onde mais proliferaram governos
neoliberais, em suas versões mais radi-
Internet cais. No caso argentino, as políticas neoli-
berais foram implementadas pelos gover-
http://www.madres.org/navegar/nav.php – Aso- nos Carlos Menem/Fernando de la Rúa,
ciación Madres de Plaza de Mayo respectivamente.

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 89-104 / Jul-Dez 2011


102 Pariendo el nuevo: Madres de Plaza de Mayo e a Universidad Popular Madres de Plaza de Mayo (UPMPM)...

4 11
Crise que não significa o fim do capitalis- Os aparelhos privados de hegemonia são as
mo, nem do neoliberalismo, como defende organizações materiais que compõem a so-
Sader (1995), que usa a expressão pós-neo- ciedade civil moderna, como por exemplo, a
liberalismo para se referir à década citada, escola, a Igreja, os partidos políticos, as asso-
entendendo tal expressão não como uma ciações privadas, os meios de comunicação, a
fase histórica, mas sim como uma transição Universidade, os sindicatos, as organizações
para outro modelo. não-governamentais. Estes aparelhos forjam,
reproduzem e legitimam interesses de classe,
5
Frigotto, Op. cit., p. 22. “educando” ideológica e culturalmente as di-
versas classes e frações de classe da sociedade
6
Neste ponto, é importante frisar que muitos civil. São chamados de “privados” porque a
destes governos críticos ao neoliberalismo adesão a eles é voluntária e para distingui-los
não romperam decisivamente com tais po- da esfera pública do Estado. Com Gramsci,
líticas, adotando um “social-liberalismo”, entendemos que os aparelhos privados de he-
onde o Brasil é grande exemplo. Daí o fato gemonia são os espaços responsáveis pela ela-
dos movimentos sociais se empenharem por boração e/ou difusão das ideologias (COUTI-
avançar as linhas de força no sentido de des- NHO, 2007, p. 127), sendo primordiais para a
truir o neoliberalismo no continente. conquista do poder de Estado nas sociedades
complexas do capitalismo recente (COUTI-
7
Como afirma o historiador britânico E. P. NHO, 2007, p. 135).
Thompson (LEHER, 2010, p. 28).
12
Para Gruppi (2003, p. 178) Gramsci repre-
8
Inúmeros nomes importantes, tais como Lê- senta o maior estudioso marxista das supe-
nin, Stálin, Bukharin, Mao Tse-tung, Gramsci restruturas, investigando sua importância,
e Perry Anderson, dedicaram a este conceito complexidade e suas articulações internas,
uma atenção especial, permitindo interpretá sem, no entanto, “abandonar” o papel de-
-lo como liderança e/ou como domínio. terminante da estrutura, numa concepção
dialética da relação entre ambas as dimen-
9
No grego antigo, eghemonia significava sões. Mas nem por isso perde de vista o
a designação para o comando maior das papel determinante da estrutura, ainda que
Forças Armadas, tratando-se, portanto, no interior de uma concepção dialética da
de um termo militar. Ainda de acordo relação entre estrutura e superestrutura.
com Macciocchi, na Grécia, o eghemon
13
representava o comandante do exército e Por exemplo, os brasileiros Leandro Kon-
a “cidade eghemon”, à época da Guerra der e Carlos Nelson Coutinho e os britâni-
do Peloponeso (entre Esparta e Atenas, cos Raymond Williams e Terry Eagleton.
no século V a.C.), era aquela que diri-
14
gia a aliança das cidades gregas em luta. Eagleton, 1997, p. 109.
Entendida como uma estratégia da classe
15
operária e um sistema de alianças que o Assim como a Plaza, os pañuelos, o Par-
operariado deve dar início com o objetivo que de la Memoria (lugar de recordação
de derrubar o Estado burguês. e homenagem em frente ao Rio da Prata,
onde milhares de pessoas foram arremes-
10
Entendida como uma estratégia da classe sadas de aviões, nos chamados “voos da
operária e um sistema de alianças que o morte”), a ESMA (Escuela de Mecánica de
operariado deve dar início com o objetivo la Armada, principal Centro Clandestino de
de derrubar o Estado burguês. Detenção do regime) e a Universidade das

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 89-104 / Jul-Dez 2011


Carlos Eduardo Rebuá Oliveira 103

Madres (UPMPM) representam importan- XX – como o fascismo, o bolchevismo e


tes “lugares de memória”, conceito elabo- o keynesianismo – o Estado, lugar de uma
rado pelo historiador francês Pierre Nora, hegemonia de classe, não se resume à so-
que faz referência a lugares (edifícios, ciedade política (aparato político-jurídico
praças, cidades...), datas (comemorações, – o espaço da coerção) apenas, mas com-
revoluções, golpes...) e objetos (livros, fil- preende também, numa perspectiva de “Es-
mes, fotografias...). tado ampliado” (que se contrapõe à visão
de Marx e Engels, que entendiam o Estado
16
Símbolo do movimento que, posteriormen- como “restrito”) e numa concepção dialéti-
te, adotou apenas pañuelos brancos, sem o ca da realidade histórico-social, a sociedade
nome dos filhos, a fim de “socializar a ma- civil (locus dos aparelhos privados de he-
ternidade” (BORLAND, 2006, p. 133), ou gemonia, como a Igreja, a escola e a mídia
seja, a “adoção” por parte das Madres de – o espaço da hegemonia, do consenso). De
todos os hijos desaparecidos, sob o lema acordo com o revolucionário sardo, a socie-
“aparición com vida”. Tal movimento no dade civil é a arena privilegiada da luta de
sentido da construção de uma identidade classes, o terreno sobre o qual se dá a luta
coletiva fortaleceu a solidariedade daquelas pelo poder ideológico (consenso); é o com-
mães e reforçou as redes sociais que susten- ponente essencial da hegemonia (Acanda,
tavam seu ativismo. 2006, p. 178) ou nas palavras de Dênis de
Moraes, “[...] o espaço político por exce-
17
Entrevista com la Sra. Lola, Madres y Fami- lência, lugar de forte disputa de sentidos”
liares, In: SAPIA, Jorge Edgardo, 2004, p. 67. (2009, p. 38). Dizer que é na sociedade ci-
vil onde se garante a hegemonia dos grupos
18
Chamada por Natália Carolina Marcos de dominantes (e onde se forja, na dinâmica
“memória insurgente” (MARCOS, 2008). dos embates político-ideológicos, a contra
-hegemonia) não significa que neste local
19
No âmbito internacional, estabelecem con- não atue a coerção. A sociedade civil é um
tatos, por exemplo, com mulheres da antiga momento do Estado, logo, as esferas tanto
Iugoslávia; participam dos esforços pela paz da sociedade política (Estado stricto sensu)
entre israelenses e palestinos; se posicionam quanto da sociedade civil se interpenetram,
publicamente contra a Guerra do Golfo etc. sendo a hegemonia o polo dominante den-
tro do funcionamento da sociedade civil e a
20
Extraído de http://reporterisme.files.wor- coerção seu polo secundário (PIOTTE apud
dpress.com/2009/03/repormadres.pdf – MOCHCOVITCH, 1992, p. 33).
Acesso em: jul. 2012.
24
Que segundo Carlos Nelson Coutinho, “se
21
O estatuto acadêmico da UPMPM está dis- caracteriza pelo voluntariado, pela filan-
ponível em: http://www.madres.org/docu- tropia e, sobretudo, pela redução das de-
mentos/doc20110720154134.pdf – Acesso mandas sociais ao nível corporativo dos in-
em: jul. 2012. teresses particulares” (COUTINHO apud
NEVES, 2005, p. 12).
22
Neste caso, tratamos especificamente da
25
Educação Superior. Sobretudo numa conjuntura de desgaste po-
lítico-ideológico e de crise econômica.
23
Para Gramsci, que diferentemente de Marx
26
vivenciou as profundas mudanças na re- Sistematizado, sobretudo, pelo sociólogo
lação entre economia e política no século britânico Anthony Giddens.

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104 Pariendo
Pariendoelnuevo:
elMadres
dePlaza
nuevo: deMayoeaUniversidad
Madres de PlazaPopularMadresde
de Mayo ePlazadeMayo(UPMPM)
a Universidad comoestratégia
Popular política,nocontexto
Madres de Plazadecrisedo
deneoliberalismonaAméricaLatina1
Mayo (UPMPM)...

27 30
Tal concepção está alicerçada em Gramsci, Extraído do site do movimento citado an-
que afirma: “A classe burguesa coloca-se teriormente.
a si mesma como um organismo em contí-
31
nuo movimento, capaz de absorver toda a Será fundamental para as análises da pesqui-
sociedade, assimilando-a a seu nível cultu- sa a contribuição de Gramsci acerca do fe-
ral e econômico; toda a função do Estado é nômeno do transformismo, a “absorção gra-
transformada: o Estado transforma-se em dual mas contínua, e obtida com métodos de
‘educador’ etc.” (GRAMSCI apud MA- variada eficácia, dos elementos ativos surgi-
NACORDA, 2008, p. 243). dos dos grupos aliados e mesmo dos adver-
sários e que pareciam irreconciliavelmente
28
Gramsci chamou de formações sociais do inimigos” (CHIAROMONTE, 2007). Em
“Oriente”, aquelas onde a sociedade civil é suma, trata-se de investigar as “metamor-
débil e o Estado repressor predomina; e de for- foses” (IASI, 2006) ocorridas por parte das
mações sociais do “Ocidente”, aquelas onde lideranças das Madres e do MST (lembrando
existe um equilíbrio entre sociedade civil e que a tese é um estudo comparado entre estes
Estado. Os conceitos de “Ocidente” e “Orien- dois movimentos e suas universidades popu-
te” não são ideias originais de Gramsci (eram lares, conforme citado a seguir, na descrição
ideias correntes na Internacional comunista do trabalho), nestes anos de vínculos mais
após 1922), mas foi o filósofo marxista quem estreitos com os governos de seus países.
conferiu maior atenção a estas categorias. Para
32
Gramsci, as sociedades civis “ocidentais” (a A partir da ideia de que se processam mu-
partir do último quartel do século XIX) teriam danças nestes movimentos sociais (Madres
um maior grau de desenvolvimento que as so- e MST) quando governos considerados
ciedades civis “orientais” (chamadas por ele mais “próximos” assumem o poder. Até que
de primitivas e gelatinosas), pois no “Ociden- ponto isso alterou as políticas públicas é
te” (onde a burguesia hegemonizava o Estado uma questão que está sendo levada em con-
– sob a égide do capitalismo), a correlação de sideração na pesquisa, bem como a análi-
forças entre Estado e trabalhadores (cada vez se da relação entre estes “novos” projetos
mais organizados em partidos e sindicatos) era (UPMPM/ENFF) e os antigos projetos de
muito menos assimétrica que no “Oriente”, educação pública de Argentina e Brasil.
com uma esfera pública situada “fora” desse
33
Estado. Já na Rússia de 1917, por exemplo, Por exemplo, ao se tornarem instituições re-
o Estado czarista era “tudo”, ou seja, a socie- conhecidas pelas instâncias governamentais
dade política se sobrepunha à débil sociedade de seus países.
civil, em que os trabalhadores não estavam
organizados e por isso não eram capazes de Carlos Eduardo Rebuá Oliveira
influenciar as massas. Decorre desta leitura a * Professor de História. Doutorando em Edu-
concepção gramsciana, dentro do conceito de cação pelo Programa de Pós-Graduação em
hegemonia, da guerra de posição e da guerra Educação da Universidade Federal Flumi-
de movimento. nense (PPGE/UFF). Bolsista da Coordena-
ção de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ní-
29
Para conhecer melhor “quem está conosco”, vel Superior (CAPES). Membro do Núcleo
ou melhor, com “eles”, no movimento, suge- de Estudos e Pesquisas em Filosofia, Po-
re-se a visita à página oficial do “Todos pela lítica e Educação da Universidade Federal
Educação”, disponível em: http://www.todos- Fluminense (Nufipe).
pelaeducacao.org.br/institucional/quem-esta-
conosco/ – Acesso em julho de 2012.

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 89-104 / Jul-Dez 2011


105

artiGo

A privatização da saúde via Organizações Sociais:


a contrarreforma em curso no município do
Rio de Janeiro

Vivian de Almeida Mattos*

RESUMO: Na busca por restaurar suas taxas de lucro, o capital avança sobre o fundo público e tem as políticas sociais
como seu lócus privilegiado. A satanização de tudo que é público e a suposta busca por qualidade e eiciência justiicam
a gestão privada dos serviços públicos. Assim, impõe-se a lógica do lucro, da produtividade, do foco no quantitativo ao
setor público. No município do Rio de Janeiro, a expansão da rede de saúde vem se dando por meio da gestão dessas
instituições qualiicadas como Organizações Sociais (OS). Neste artigo, buscamos desmontar os principais argumen-
tos que sustentam a transferência da gestão para essas entidades por meio da análise de publicações de alguns de seus
defensores, além da apresentação de alguns resultados da pesquisa efetuada nas Unidades de Pronto Atendimento mu-
nicipais geridas por OS.

Palavras-chave: neoliberalismo; novos modelos de gestão; organizações sociais.

Abstract: Aiming to recover its proits rate, the capital advances into the State Fund, mainly over the public social
policies. The depreciation of the public services and the supposed search for quality and eficiency justify the private
management of the public services. So, it is imposed the proit logical, the focus on the quantitative results into the
public service. In the Rio de Janeiro city, the expansion of the health care system is made by the management of the
institutions so-called social organizations. In this article, we seek to obliterate the arguments that maintain the manage-
ment transference to these entities through the analysis of the publications of some of the supporters, in addition to the
presentation of some results of the research made in the Emergency Units of Rio de Janeiro.

Keywords: neoliberalism; new management models, social organizations.

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 105-120 / Jul-Dez 2011


106 A privatização da saúde via Organizações Sociais: a contrarreforma em curso no município do Rio de Janeiro

Introdução consolidar a estabilização e assegurar


o crescimento sustentado da economia.
Este artigo, parte integrante da dissertação Somente assim será possível promover
cujo título é Serviço Social – Cotidiano pro- a correção das desigualdades sociais e
fissional nas unidades de pronto atendimento regionais. (Mare, 1995, p. 6).
geridas por Organizações Sociais no município
do Rio de Janeiro1, propõe-se a demonstrar a Para tanto, o plano esclarece que “reformar
particularidade da contrarreforma do Estado em o Estado significa transferir para o setor priva-
curso no município do Rio de Janeiro que tem do as atividades que podem ser controladas pelo
como um dos mecanismos de materialização, a mercado” (Mare, 1995, p 12, grifos nossos), e
passagem da gestão das unidades de saúde para neste rol se incluem os serviços de educação,
entidades sem fins lucrativos, as Organizações saúde, cultura e pesquisa científica. Dessa for-
Sociais (OS). ma, foi criado o Programa de Publicização. Por
Com a crise estrutural capitalista deflagrada meio deste seriam transferidos esses serviços
na década de 1970, o capital empreende uma para o setor público não estatal2, organizações
série de processos para restaurar a sua taxa de sociais, entidades do direito privado “sem fins
lucros, a saber: reestruturação produtiva, finan- lucrativos” que têm autorização para celebrar
ceirização e ideologia neoliberal. Esses pro- contratos de gestão com o Poder Executivo e,
cessos em solo brasileiro – que em função das assim, têm direito a dotação orçamentária.
particularidades de nossa formação social, só
tem início na década de 1990 – têm como uma O Projeto das Organizações Sociais tem
das expressões institucionais o Plano Diretor como objetivo permitir a descentraliza-
da Reforma do Estado (PDRE) – que não por ção de atividades no setor de prestação
acaso, estava em consonância com os diversos de serviços não-exclusivos, nos quais
documentos publicados pelo Banco Mundial não existe o exercício do poder de Es-
de orientação aos países em desenvolvimento tado, a partir do pressuposto que esses
(Nogueira, 2004) –, levado a cabo no governo serviços serão mais eficientemente rea-
Fernando Henrique Cardoso (FHC) e larga- lizados se, mantendo o financiamento
mente difundido pelos governos Lula e Dilma. do Estado, forem realizados pelo setor
É por intermédio desse plano que surgem as Or- público não-estatal. (Mare, 1995, p. 60,
ganizações Sociais. grifos nossos).
Sob o argumento de que a esfera estatal é
naturalmente (sic) burocrática, ineficiente, len- Assim, segundo o PDRE, o Estado reduziria
ta e corrupta, o PDRE prevê como solução a seu papel equivocado de executor e prestador
adoção de um Estado Gerencial que se restringe de serviços – uma vez que é nitidamente inefi-
e prioriza suas reais funções de mero regulador ciente e burocrático – e fortaleceria sua função
e financiador e repassa para a iniciativa privada de promotor e regulador do desenvolvimento. E
a gestão das funções que não lhe são exclusi- vale destacar, financiador.
vas, uma vez que esta é mais eficiente e flexível O objetivo desse artigo é evidenciar que os
(Mare, 1995). A apresentação do documento, argumentos apresentados para a transferência
escrita pelo então presidente FHC, é enfática da gestão das políticas sociais para as OS não
em afirmar que se sustentam e tem por fim último – ao contrário
do que nos querem fazer crer seus defensores,
a crise brasileira da última década foi de aumento da eficiência e da qualidade dos
também uma crise do Estado [e que, serviços prestados – liberar ao capital os es-
portanto,] [...] a reforma do Estado paços que podem ser mercantilizados, ou seja,
[era] instrumento indispensável para nos quais esta é capaz de obter lucro. Assim,

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 105-120 / Jul-Dez 2011


Vivian de Almeida Mattos 107

conforme Iamamoto (2010), estamos diante de Guedes Alcoforado para prestar assessoria e
políticas governamentais favorecedoras da es- consultoria na implantação do modelo das OS
fera financeira e do grande capital produtivo. no município. Alcoforado foi coordenador
do gabinete do Ministro Luiz Bresser Pereira
A chamada crise fiscal do Estado passa (Mare – Ministério da Administração Federal e
a ser o argumento para a defesa neoli- Reforma do Estado), além de ter atuado como
beral do corte de gastos sociais, que es- consultor junto a governos para a “contratuali-
conde as reais intenções de diminuição zação de resultados do Estado com o terceiro
dos custos com a força de trabalho e o setor” – Minas Gerais, São Paulo, Espírito San-
redirecionamento do fundo público para to, Ceará e Rio Grande do Sul. É o atual Subse-
atender, em maior escala, as demandas cretário de Gestão da Secretaria Municipal de
do grande capital. (Silva, 2011, p. 12, Saúde e Defesa Civil/RJ (SMSDC/RJ), local no
grifos nossos). qual foi criada a Coordenadoria de Organiza-
ções Sociais, Convênios e Contratos (Cosc).
Essas características conformam um pro- Nas publicações de Alcoforado sobre OS a
cesso que é nacional e que está em curso acele- que tivemos acesso, observa-se que sua argu-
rado no município do Rio de Janeiro por meio mentação se sustenta nos mesmos pilares expos-
da adoção das OS – em especial na política de tos no PDRE. Para o autor (2005), o novo (sic)
saúde – e que, por isso, será alvo de nossas re- modelo de Estado brasileiro, concebido após a
flexões. Inicialmente, confrontaremos algumas Reforma do Estado, possui como instrumento
publicações de defensores das OS – que inclu- privilegiado de sua modernização o Contrato.
sive fazem parte da atual composição da pre- Este possibilitaria instituir práticas de planeja-
feitura – com dados da realidade. Em seguida, mento, avaliação e monitoramento da execução
apresentaremos alguns dados da pesquisa efe- por parte do Estado. O foco dos Contratos está,
tuada em duas Unidades de Pronto Atendimen- fundamentalmente, nos indicadores de desempe-
to (UPA) municipais geridas por OS3. nho quantificáveis, dos quais parte-se para esti-
pulação de metas. Aqui importam os resultados.
Os argumentos para a escolha das Organiza-
ções Sociais na política de saúde do municí- Desse modo, abandona-se a tradicio-
pio do Rio de Janeiro nal forma de se avaliar os contratos e
a prestação dos serviços somente pela
A Lei das OS – 5.026 – no município do correta utilização dos recursos, atra-
Rio de Janeiro foi aprovada em maio de 2009, vés da tradicional prestação de con-
primeiro ano de governo do atual prefeito, tas financeira. Agora esse não é mais
Eduardo Paes (2009-2012), e tem como área um critério de avaliação do Contrato
de atuação, além da saúde, o ensino, a pesqui- e dos serviços prestados! Na contra-
sa científica, o desenvolvimento tecnológico, tualização, avalia-se o cumprimento
a proteção e preservação do meio ambiente, a do contrato pela avaliação do alcance
cultura, e o esporte. Foi votada em caráter de dos resultados pactuados, através da
urgência, à revelia dos movimentos sociais e verificação quanto ao atingimento das
conselhos de políticas e de direitos que votaram metas previstas para os indicadores de
contra a aprovação dessa legislação. As justifi- desempenho. Agora a prestação de con-
cativas para a aprovação dessa Lei passam pela tas financeira e o adequado uso dos re-
conhecida falácia da crise de gestão em função cursos é uma obrigação da organização
da incapacidade da gestão pública. contratada, mas não é condição para
Por volta de um mês após a aprovação da Lei se avaliar desempenho. (Alcoforado,
nº 5026, a prefeitura contratou Flávio Carneiro 2005, p. 2-3, grifos nossos).

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108 A privatização da saúde via Organizações Sociais: a contrarreforma em curso no município do Rio de Janeiro

Dois comentários são necessários sobre a hospitais administrados por OS (HOS) com 10
mudança de foco do componente financeiro da administração direta (HAD) localizados no
para o alcance dos resultados pactuados. Pri- estado de São Paulo, todos com mais de 100
meiramente, cabe ressaltar que uma das razões leitos. Os critérios para a comparação foram
apresentadas para a utilização do modelo de fundamentalmente quantitativos, como o nú-
gestão das OS é sua pretensa capacidade de mero de altas por leito e tempo médio de per-
poupar dinheiro público, já que seriam mais manência, ambos com vantagens para os HOS
eficientes. Dessa forma, é no mínimo contra- – estes teriam produzido 35% mais altas em ge-
ditório que a utilização dos recursos não seja ral em relação aos leitos que ofertaram.
uma condição de avaliação de seu desempe- Não poderia ser de outra maneira. Se a con-
nho, como afirma o autor. Segundo comentário tratação dessas instituições privadas, por inter-
– que tem relação com o primeiro –, os contra- médio de um contrato de gestão por resultados,
tos de gestão atualmente assinados entre a pre- tem como um dos critérios a quantidade de al-
feitura e as OS contam com uma parte variável tas produzidas para a continuidade do repasse
de repasse de recursos que depende do alcance de verbas públicas, não é de se estranhar que
das metas. Como repassar mais dinheiro para o número de altas dos HOS seja superior. Ou
uma instituição, se a avaliação da utilização dos seja, contrata-se uma OS que é avaliada pelo
recursos não é um critério central? número de altas, então são altas que ela vai ge-
Alcoforado ressalta que a vantagem em se rar. A questão que a pesquisa não coloca é: a
trabalhar com as OS está na sua flexibilidade, que custo? O número de altas, por si só, não é
já que os ritos e os procedimentos adotados capaz de demonstrar a resolutividade da assis-
não são passíveis de controle. “É importante tência prestada, não informa em que condições
que a organização tenha regras e controles, essas altas se deram, nem se dizem respeito aos
mas a grande vantagem está na possibilidade mesmos usuários em internações sucessivas.
dessas regras e controles não serem imutáveis A pesquisa ainda utilizou como indicador o
e também não estarem acima da consecução uso da força de trabalho, avaliado pelo número de
dos objetivos de cada situação”. (Alcoforado, horas contratadas por categoria profissional, no
2010, p. 10). Isto é, no modelo das OS, os fins qual aponta que os HOS são mais eficientes uma
justificam os meios. vez que operam com 30% menos horas de traba-
Assim, em nome dos resultados, as OS po- lho médico e 33% mais horas de profissionais de
dem contratar seus recursos humanos pelo re- nível superior de enfermagem do que o utiliza-
gime CLT, cooperativas, pessoas jurídicas ou do nos HAD. Essa análise leva em consideração
mesmo autônomos. Os contratos e compras que o custo médio do salário do profissional de
devem ter regras claras e transparentes, porém enfermagem é substancialmente inferior ao cus-
específicas e flexíveis para cada caso, justificá- to do profissional médico. O enfermeiro não é
veis por critérios de mercado. As despesas são contratado pela sua capacitação e especificidade
realizadas de acordo com as necessidades da ou pela necessidade de sua especialidade e, sim,
organização para a execução do plano de traba- pelo valor atribuído a sua força de trabalho.
lho, inclusive, com a possibilidade de aplicar as Em outro estudo, Barbosa (2010) aponta a
receitas no mercado financeiro – independente- vantagem dos HOS em relação ao HAD pela
mente da origem. sua capacidade de exercer as mesmas funções
Cabe-nos pontuar o tipo de resultados a que com menos funcionários, conforme demonstra
se faz alusão aqui. A título de exemplo temos o Quadro 1. O autor afirma que :
uma pesquisa realizada em 2004 por dois pro-
fessores da ENSP/Fioruz (Costa; Ribeiro, 2004 As vantagens competitivas observadas
apud Conass, 2006), financiada pelo Banco pelo modelo OSS [organizações so-
Mundial, que comparou o desempenho de 12 ciais de saúde] decorrem de uma maior

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 105-120 / Jul-Dez 2011


Vivian de Almeida Mattos 109

autonomia na contratação de seus recur- mais se afeiçoam às suas peculiaridades,


sos humanos e em sua capacidade de traçando um panorama daquelas em que
usar esta autonomia para promover rápi- a atuação estatal deficitária suscita a ne-
da reposição de pessoal e explorar, com cessidade de fomento da iniciativa priva-
base nesta autonomia, uma maior capa- da, bem como regras próprias de cons-
cidade de utilização destes recursos, uso tituição que não colidam com normas
este condicionado pelos compromissos de direito civil, respeitando-se, assim, o
estabelecidos nos contratos de gestão, princípio federativo e a autonomia que
que fixam metas de produção e de pro- daí surge. (Correia, 2011, p. 54).
dutividade a estas unidades. (Barbosa,
2010, p. 2505, grifos nossos). Correia (2011) esclarece que a adoção des-
se modelo de gestão deve se dar em regime
de colaboração e não de forma que privatize a
Quadro 1. Hospitais segundo indicadores de
coisa pública, a fim de desonerar o Estado de
eficiência – relação funcionário/leito
suas atribuições, quando bem desenvolvidas
2001 2002 2003 por este. Em outras palavras, as OS podem e
HOS 3,9 3,8 4,1
devem ser adotadas em áreas de comprovada
ineficiência estatal, nas quais se elege a gestão
HAD 7,1 6,8 6,4 compartilhada de serviço público em caráter
Fonte: Barbosa (2010) complementar ao prestado diretamente pelo Es-
tado como forma de aperfeiçoar o atendimento.
Os estudos de Tibério; Souza; Sarti (2010) É imperioso destacar que, como bem res-
e de Sano; Abrúcio (2008) demonstram que, ao salta a autora, essas áreas não são sempre as
que se propõem, é inegável que as OS atingem mesmas, variando de ente para ente federativo.
seus objetivos: aumento da eficiência, flexibili- Ou seja, em diferentes lugares, a gestão pública
dade e autonomia gerencial, sempre medidas por é considerada deficitária em áreas distintas, o
índices de produtividade. O que os estudos que que pode significar, na verdade, a ineficiência
analisamos não mostram são os reais impactos do gestor em exercício e não, da gestão pública
que a gestão pela OS tem na saúde da população. em si. Isso reforça o argumento desse estudo de
Analisamos também um artigo escrito pela que a abertura dessas áreas para a gestão das
Procuradora do Município do Rio de Janeiro e OS tem por interesse a obtenção de lucros. Ra-
atual Suplente do Presidente da Comissão de tifica esse argumento o fato da Lei municipal
Qualificação das Organizações Sociais (Co- 5.026 possuir 7 áreas de atuação, mas ter 56%
quali)4, Arícia Fernandes Correia. Neste artigo, das qualificações de entidades sem fins lucrati-
Correia (2011) se propõe a discutir o marco re- vos como OS na área da saúde. Isso tem relação
gulatório das OS em solo carioca. A autora clas- com o próprio direcionamento da prefeitura que
sifica as leis federais das OS (Lei 9.637/1998) e anunciou que a política de saúde seria a área
das Oscip (Lei 9.790/1999) como marcos regu- com maior investimento, além de ter divulgado
latórios do Terceiro Setor que fomentam a ini- a expansão da rede municipal de saúde.
ciativa privada e servem de modelo de gestão A ampliação da rede de saúde não tem qual-
para os entes federados. A Lei Federal das OS é quer relação com as necessidades da população
considerada uma norma geral, de acesso ao atendimento médico. O município
do Rio de Janeiro herdou, por ter sido capital do
daí a razão constitucional pela qual os de- país por mais de 200 anos, o maior complexo
mais Entes Federativos podem escolher, médico-hospitalar do Brasil. É inegável que a
como objeto social das entidades cuja distribuição dessa rede pelo território carioca é
atividade visem a fomentar, quais áreas desigual, de forma que as áreas mais populosas

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110 A privatização da saúde via Organizações Sociais: a contrarreforma em curso no município do Rio de Janeiro

são as que contam com a menor quantidade de série de critérios, dispostos na Seção I do Decre-
leitos. A criação de novas unidades – funda- to 30.780. Porém, a existência dessas exigências,
mentalmente de Clínicas de Saúde da Família para a definição de quem irá gerir as unidades
(CSF)5 e de Unidades de Pronto Atendimento de saúde públicas, não parece ter sido suficiente
(UPA) – visou atingir, no entanto, outro objeti- para impedir de qualificar e até mesmo consi-
vo: abrir espaço para a atuação das OS. derar vencedora, em processos seletivos para a
Primeiramente, o Decreto 30.780 de 2 de gestão de CSF e UPA, instituição com denúncias
junho de 2009, que regulamenta a Lei 5.026, de fraude e desvio de dinheiro público. Em 18
prevê que, caso não haja manifestação de in- de maio de 2012, Siro Darlan, desembargador do
teresse por parte das OS qualificadas, a Secre- Tribunal de Justiça, publicou um artigo no Jor-
taria interessada em firmar a parceria poderá nal do Brasil, sob o título de Assalto ao tesouro
repetir o procedimento de convocação quantas municipal 6, no qual informa que o Tribunal de
vezes forem necessárias. Dessa forma, percebe- Contas do Município (TCM) do Rio de Janeiro
se que o interesse em firmar a parceria precede emitiu relatório constatando que a empresa Iabas
o da prestação do serviço. superfatura seus serviços. Darlan afirma:
Porém, a maior prova de que o foco da
prefeitura não é a saúde da população foi o Segundo o Relatório, o Iabas geren-
primeiro Edital lançado em 2011 – Programa cia quinze unidades no âmbito da CAP
Emergência Presente. Este programa previa a 5.1 e terceiriza seus serviços sem qual-
passagem imediata da gerência das Emergên- quer processo seletivo na escolha de
cias dos Hospitais da prefeitura para as OS. O seus prestadores e/ou fornecedores. [...]
Edital foi contestado judicialmente pelo Sindi- Houve sobrepreço em todos os serviços
cato dos Médicos e Enfermeiros, que entraram realizados por essa empresa tais como
com uma ação para impedir que as entidades 71% nos serviços de portaria; 62% no
que ganharam o processo seletivo assinassem serviço noturno, afirmando os técnicos
contrato com a prefeitura. A decisão em trans- a existência de um dispêndio a maior do
ferir um setor do hospital para as OS ameaça a Tesouro Municipal, que em apenas um
integralidade do atendimento, tratando a emer- mês seria de R$ 89.117,00 e em doze
gência como um setor à parte e independente. meses esse sobrepreço alcançaria a cifra
O Edital 01/2011 foi considerado nulo, mas de R$ 1.060.404,00.
a prefeitura não desistiu de seus intentos de re-
passar para as OS a gestão das emergências. Ademais, segundo reportagem de O Globo,
Uma vez que dentro das unidades não seria em 06 de abril de 2012, o TCM apurou que o
possível a atuação das OS, a prefeitura lança Iabas recebeu do município mais de R$ 2 mi-
a Coordenação de Emergência Regional (CER) lhões para pagar serviços que não eram previs-
– que nos editais atende pelo nome de Coor- tos em contrato, além de ter anexado cópias de
denação Operacional Regional de Emergência notas fiscais repetidas nas prestações de con-
(Core) –, uma estrutura construída ao lado dos tas. A OS teria ainda contratado uma empresa
hospitais. A primeira foi inaugurada em 01 de de consultoria, Anstafi Serviços Econômicos e
maio de 2012, ao lado do Hospital Municipal Financeiros, que recebeu R$ 835 mil, embora
Souza Aguiar. Intitulada de CER Centro, possui essa despesa não estivesse prevista em contra-
30 leitos e será a nova porta de entrada da emer- to. Tal empresa tinha como sócio André Staffa
gência, sendo responsável por receber e fazer o Filho, que à época da contratualização da OS,
acolhimento dos usuários. era um dos diretores do Iabas. Como se pode
A fim de que possa ser qualificada como uma ver, as ressalvas feitas ao controle exercido
OS e assim, estar apta a concorrer aos editais da pelo TCM apresentadas pelos palestrantes não
prefeitura, a instituição deve corresponder a uma são inocentes.

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Vivian de Almeida Mattos 111

Tais fatos não constituem exceções. Temos as administrações públicas. De acordo com a
ainda como exemplo o caso da Associação Receita Federal, aproximadamente 30% dos
Paulista para o Desenvolvimento da Medicina recursos recebidos pelo Ciap eram transferidos
(SPDM) e da Associação Global Soluções em para uma conta bancária específica da entidade,
Saúde (Global). Ambas assinaram contratos mi- sob a justificativa de cobrir despesas adminis-
lionários com a prefeitura. A SPDM tinha como trativas (Entidade..., 2010).
presidente o ex-reitor da Unifesp que pagava o A única das OS aqui citadas que foi desqua-
aluguel dos imóveis da OS, responsável pela lificada e teve os contratos com a SMSDC/RJ
gestão do Hospital de São Paulo, com dinheiro rescindidos foi a Ciap. As organizações sociais
público da universidade (O Globo, 18/09/2008). SPDM e Iabas continuam com eus contratos e
Ademais, como publicado no site do vereador são as OS que atualmente mantêm mais contra-
Paulo Pinheiro7, a OS responde a uma ação civil tos com a SMSDC/RJ. A primeira com nove e a
pública por improbidade administrativa, tem dí- segunda com quatro.
vidas no INSS, além de outras 22 ações. Das 21 entidades qualificadas na área da
A Global, presidida pelo médico colombia- saúde, até maio de 2012, 14 haviam assinado
no Carlos Mauricio Medina Gallego, já atuava contrato com a SMSDC/RJ, além do Ciap, que
no governo César Maia sob o nome Instituto foi desqualificado e por isso não consta dessa
Assistencial Mundo Melhor, uma ONG contra- lista. A soma simples dos valores iniciais dos
tada para implantar o Programa Saúde da Fa- editais lançados entre 2009 e 2011, obtemos o
mília. Um mês antes da aprovação da lei das valor de R$ 986.107.540,65, ou seja, quase um
OS no âmbito da prefeitura, a entidade mudou bilhão de reais.
de nome e se habilitou à qualificação como OS O valor total do Quadro 2 é aproximado e
(Instituto..., 2010a). não considera os Termos Aditivos (TA) aos con-
O empresário ainda teria uma fundação con- tratos assinados, que não são poucos. Dos doze
siderada ilegal pelo Ministério Público estadual, contratos firmados a partir dos editais de 2009,
dois inquéritos abertos contra uma cooperativa encontramos TA em seis deles. Os TA estão re-
de médicos que ele presidia e a suspeita de utili- lacionados desde a contratações temporárias e/
zação de laranjas numa de suas empresas. Nada ou inserção de equipes Nasf (Núcleo de Apoio
disso teria impedido a prefeitura, já sob a gestão à Saúde da Família) até a inclusão de UPA e
de Eduardo Paes, de firmar contratos no valor Centro de Atendimento Psicossocial (Caps).
de R$ 147 milhões (Instituições..., 2010b).
Houve ainda o caso do Centro Integrado e Quadro 2. Total dos valores dos Editais firma-
Apoio Profissional (Ciap), entidade com sede dos pela SMSDC/RJ com OS referentes aos
no Paraná, acusada de desviar até 300 milhões anos de 2009, 2010 e 2011.
em recursos públicos. A operação da Polícia ANO VALOR DOS EDITAIS SOMADOS
Federal realizada em cinco estados – Paraná, 2009 R$ 340.986.311,08
São Paulo, Goiás, Maranhão e Pará – batizada 2010 R$ 311.224.120,51
de Operação Parceria terminou na prisão de 2011 R$ 333.897.109,06
diversas pessoas acusadas de envolvimento em TOTAL R$ 986.107.540,65
um esquema milionário de desvio de recursos Fonte: elaboração própria, 2012.
federais a partir do Ciap. As investigações e as
prisões foram feitas em parceria com a Con- Como exemplo, podemos citar o primeiro
troladoria Geral da União (CGU), o Ministério edital lançado pela prefeitura para gestão de
Público Federal e a Receita Federal. Segundo as CSF na AP 5.3., que gerou o contrato de gestão
investigações, o Ciap se tornou uma Oscip com 01/2009, firmado com a SPDM. Esse contrato
o propósito único de se apropriar ilegalmente foi orçado, inicialmente, em R$ 35.355.745,60
de verbas recebidas por meio das parcerias com para os 12 primeiros meses de gestão. Após

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112 A privatização da saúde via Organizações Sociais: a contrarreforma em curso no município do Rio de Janeiro

dois TA, um de contratação temporária e ou- centavos), elevando o valor do contrato


tro para inclusão de 12 equipes Nasf, ao final de gestão para R$ 237.820.305,66 (du-
do tempo de vigência, o contrato foi renovado zentos e trinta sete milhões e oitocentos
e prorrogado por mais 2 anos. No terceiro TA, e vinte mil e trezentos e cinco e sessenta
número 12/2011, em sua cláusula primeira, que e seis centavos) para operacionalização,
versa sobre o objeto do contrato, temos: apoio e execução pela CONTRATADA,
de atividades e serviços de saúde da fa-
O presente Termo Aditivo tem por ob- mília no âmbito da área de planejamento
jeto a prorrogação da vigência do con- – AP 3.1 [...].
trato de gestão nº 01/2009 pelo prazo
de 2 (dois) anos e o acréscimo de valor Em 2012, a expansão da rede assistencial
relativo ao mesmo período no valor de por meio da gestão das OS continua. Até mar-
R$ 231.217.237,58 (duzentos e trinta e ço deste ano, quatro editais haviam sido lança-
um milhões, duzentos e dezessete mil dos para CER e UPA somando cerca de R$ 61
e duzentos e trinta e sete e cinquenta e milhões. Com as medidas adotadas pelo muni-
oito centavos) para operacionalização, cípio, está claro que o objetivo final da atual
apoio e execução pela CONTRATADA, prefeitura não é a saúde da população carioca
de atividades e serviços de saúde da fa- e, sim, garantir que a saúde, transformada em
mília no âmbito da área de planejamento mercado rentável, sirva aos propósitos da acu-
– AP 5.3 [...] mulação. Isto fica ainda mais evidente nos re-
sultados obtidos na pesquisa realizada em duas
Do primeiro contrato para sua prorrogação UPA geridas por OS e que será o foco do pró-
houve um acréscimo de três vezes no valor do ximo item.
contrato. Os motivos para esse aumento – se é
que existem motivos razoáveis – demandam As Organizações Sociais na gerência das
uma pesquisa mais apurada, que fugiria aos UPA no município do Rio de Janeiro8
propósitos desse estudo. No entanto, ressalta-
mos esse aumento vultoso e o fato disso não ser Conforme disposto no sítio eletrônico do
exclusividade desse contrato. O mesmo aconte- Ministério da Saúde, o projeto das UPA 24 ho-
ceu com Edital 04/2009 para gestão da CSF na ras integra a Política Nacional de Atenção às
AP 3.1, que gerou o contrato de gestão 05/2009, Urgências – Portaria nº 1.863, de 29 de setem-
vencido pela VIVA COMUNIDADE. Este foi bro de 2003. São consideradas estruturas de
orçado inicialmente em R$ 55.152.419,76. complexidade intermediária entre as Unidades
Após dois TA sobre inclusão de equipes Nasf, Básicas de Saúde e as portas de urgência hos-
o terceiro TA celebra a prorrogação do contra- pitalares, com as quais compõe uma rede orga-
to. Conforme consta no terceiro TA, número nizada de atenção às urgências. São integrantes
16/2011, em sua cláusula primeira, que versa do componente pré-hospitalar fixo e devem ser
sobre o objeto do contrato: implantadas em locais estratégicos para a con-
figuração das redes de atenção à urgência, com
O presente Termo Aditivo tem por obje- acolhimento e classificação de risco em todas
to a prorrogação da vigência do contrato as unidades. Prestam assistência emergencial
de gestão nº 05/2009 pelo prazo de 01 de baixa e média complexidade, 24 horas por
(um) ano e o acréscimo de valor rela- dia. A estratégia de atendimento está direta-
tivo ao mesmo período no valor de R$ mente relacionada ao trabalho do Serviço Mó-
98.361.561,38 (noventa e oito milhões vel de Urgência (Samu) que organiza o fluxo de
e trezentos e sessenta e um mil e qui- atendimento e encaminha o usuário ao serviço
nhentos e sessenta e um e trinta e oito de saúde adequado à situação. Caso contrário,

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Vivian de Almeida Mattos 113

Quadro 3. Unidade de Pronto Atendimento (UPA) por porte Portaria nº 1020/2009.


Município do Rio de Janeiro.
NÚMERO DE NÚMERO
POPULAÇÃO NÚMERO MÍNIMO
ÁREA ATENDIMENTOS MÍNIMO DE
UPA DA REGIÃO DE DE MÉDICOS POR
FÍSICA MÉDICOS EM LEITOS DE
COBERTURA PLANTÃO
24 HORAS OBSERVAÇÃO
2 médicos,
50.000 a 100.000 2
50 a 150
Porte I 700 m sendo um pediatra e um 5-6 leitos
habitantes pacientes
clínico geral
4 médicos,
100.001 a 200.000 2
51 a 300
Porte II 1.000 m distribuídos entre pediatras 9-12 leitos
habitantes pacientes
e clínicos gerais
6 médicos, distribuídos
200.001 a 300.000 301 a 450
Porte III 1.300 m2 entre pediatras e clínicos 13-20 leitos
habitantes pacientes
gerais
Fonte: Portaria nº 1020,13 de maio de 2009/Município RJ

o usuário deve ser liberado ou permanecer em estão concentradas nas áreas com menor popu-
observação por até 24 horas. lação (BRASIL, 2007). Tanto as UPA estaduais
A Portaria nº 1020, de 13 de maio de 2009, quanto as municipais estão, em sua maioria,
estabelece as diretrizes para a implantação do instaladas na AP 3 (5 municipais e 7 estaduais).
componente pré-hospitalar fixo – UPA e Salas Como campo de pesquisa, elegemos UPA lo-
de Estabilização – para a organização de redes calizadas em duas diferentes AP, com pelo menos
locorregionais de atenção integral às urgências um ano de funcionamento e sob a gestão de di-
em conformidade com a Política Nacional de ferentes OS. Ambas as unidades estudadas estão
Atenção às Urgências. A implantação da UPA é localizadas em comunidades as quais, à época da
feita de acordo com a população da região a ser pesquisa, não tinham recebido ainda Unidades de
coberta, o que irá condicionar a capacidade ins- Polícia Pacificadora (UPP). São regiões de popu-
talada (área física, número de leitos disponíveis, lação empobrecida, com ocupação desordenada
recursos humanos e capacidade diária de aten- do solo, com precário saneamento básico e abas-
dimentos médicos). A partir desses critérios, as tecimento de água. É comum avistar línguas ne-
UPA são classificadas em três diferentes portes. gras de esgoto correndo a céu aberto lado a lado
As UPA são implantadas na cidade do Rio a uma enorme quantidade de sacos de lixo infes-
de Janeiro, em 2007, sob gestão estadual, du- tados pelos mais diversos insetos. Está claro que
rante o primeiro governo Cabral (2007-2010) os problemas de saúde dessas populações não se
– a primeira foi na Maré. A primeira UPA muni- resumem ao acesso ao atendimento médico.
cipal só foi construída em 2009, já no governo As duas unidades visitadas possuem Clí-
Paes (2009-2013), em Vila Kennedy. Até maio nicas de Saúde da Família recém-inauguradas
de 2012, o município do Rio de Janeiro contava em sua volta com equipes Nasf. São de portes
com 28 UPA, das quais 12 são municipais. A diferentes o que, conforme vimos no Quadro
Área de Planejamento (AP)9 1.0 é a única em 3, condiciona sua instalação física bem como
que não foi implantada uma UPA e é também tem relação com a expectativa de atendimentos
onde está localizada a maior concentração de médicos diários – a UPA I é porte III e a UPA
consultórios e de leitos hospitalares em oposi- II é porte II.
ção à escassez de consultórios nas AP 3.3, AP 4, Tanto a UPA I quanto a UPA II possuem
AP 5.1, AP 5.2, AP 5.3. As unidades de saúde serviços terceirizados10. Em ambas, os serviços

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114 A privatização da saúde via Organizações Sociais: a contrarreforma em curso no município do Rio de Janeiro

Quadro 4. Município do Rio de Janeiro/RJ – CSF e UPA por AP – extenso até maio/2012

POPULAÇÃO|
AP CSF UPA MUNICIPAIS UPA ESTADUAIS
(CENSO 2010)
1.0 297.976 2 - -
2.1 638.050 3 1 2
2.2 371.120 - - 1
3.1 886.551 10 2 3
3.2 569.970 9 1 1
3.3 942.051 6 2 3
4.0 909.955 3 1 1
5.1 671.041 7 2 2
5.2 665.198 7 - 2
5.3 368.534 11 3 1
TOTAL 6.320.446 58 12 16
Fonte: elaboração própria, 2012.

de limpeza, vigilância, exames laboratoriais e que fez o acolhimento solicitou que a avó pro-
alimentação são terceirizados. Somente a UPA curasse outra unidade para atendimento. Ela
II, no entanto, terceiriza o serviço de Raios-X. se recusou, cobrou o atendimento, questionou
É comum que as UPA contratem profissionais por que deveria ir para outra unidade se possuía
que morem nas comunidades em que foram uma bem perto de sua casa. Disse que não se
implantadas. importava se iria demorar, mas que gostaria que
A Portaria nº 1.863, de 29 de setembro de o neto recebesse o atendimento. O enfermeiro
2003, no Artigo 2, primeiro parágrafo elege as justificou o encaminhamento: a questão não é o
competências/responsabilidades da UPA. Aqui tempo de espera e, sim, que já havia um grande
se confronta legislação e realidade. número de crianças para serem atendidas e que
como a pediatra saía às 19 horas, isso excederia
I – funcionar nas 24 horas do dia em todos os o horário de trabalho da médica.
dias da semana;
III – implantar processo de Acolhimento com
Um enfermeiro relata ao chefe de equipe a Classificação de Risco, considerando a identi-
frequente dificuldade na troca do plantão. Os ficação do paciente que necessite de tratamen-
médicos deixam o plantão às 19 horas e os que to imediato, estabelecendo o potencial de ris-
deveriam assumir o plantão só chegam depois co, agravos à saúde ou grau de sofrimento em
das 22 horas. O chefe de equipe manda “fe- sala específica para tal atividade e garantindo
char” a UPA (não aceitar usuários) até que os atendimento ordenado de acordo com o grau
médicos cheguem. de sofrimento ou a gravidade do caso;

II – acolher os pacientes e seus familiares sem- IV – estabelecer e adotar protocolos de atendi-


pre que buscarem atendimento na UPA; mento clínico, de triagem e de procedimentos
administrativos;
Uma senhora chegou com seu neto com fe-
bre alta na UPA por volta das 17 horas. A sala de Após passar pela classificação de risco e de
espera estava cheia de crianças. O enfermeiro ter sido classificado com a cor amarela – que

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Vivian de Almeida Mattos 115

significa urgência – o usuário aguarda na sala inacessível, o que impede as visitas dos fami-
de espera. Depois de 45 minutos de espera sem liares ou acompanhamento posterior, como foi
que qualquer atendimento seja efetuado, a téc- o caso relatado acima.
nica administrativa liga para a administração
da UPA perguntando sobre a localização dos VI – possuir equipe interdisciplinar compatível
médicos. Passam 10 minutos e uma confusão com seu porte;
começa na sala de espera. As mães trazem seus
filhos para a parte do atendimento. Uma senho- Somente a UPA I possuía atendimento para
ra aparece com as pernas sujas de sangue: “o emergências odontológicas que ocorria somen-
moço vomitou nas minhas pernas. Onde posso te nos fins de semana. Nas duas unidades o
me lavar?”. O paciente que havia sido classi- atendimento pediátrico acontece somente duas
ficado como amarelo e que aguardava atendi- vezes por semana de 7 às 19 horas. Após esse
mento há quase 1 hora vomitou sangue. horário, dependendo do plantão, as crianças são
atendidas pelos clínicos ou são direcionadas
V – articular-se com a Estratégia de Saúde da para outras unidades. Na sala de administração,
Família, Atenção Básica, Samu 192, unidades uma das coordenadoras recebe a ligação de um
hospitalares, unidades de apoio diagnóstico e pediatra procurando trabalho. Quando a ligação
terapêutico e com outros serviços de atenção termina, a coordenadora comenta que necessi-
à saúde do sistema locorregional, construin- dade há, o que faltam são recursos para a con-
do fluxos coerentes e efetivos de referência e tratação de mais pediatras. Em outro momento,
contrarreferência e ordenando os fluxos de afirmam que já ofereceram salários acima do
referência através das Centrais de Regulação mercado para pediatras, mas como os atendi-
Médica de Urgências e complexos regulado- mentos excedem os 100 por plantão, eles não
res instalados; ficam por muito tempo.

Um usuário com a mão enfaixada se dirige à VII – prestar atendimento resolutivo e quali-
sala do Serviço Social. Ele informa que há mais ficado aos pacientes acometidos por quadros
ou menos uma semana havia sido atendido na- agudos ou agudizados de natureza clínica, e
quela UPA e que, na ocasião, foi transferido prestar primeiro atendimento aos casos de na-
para o Hospital Estadual Adão Pereira Nunes tureza cirúrgica ou de trauma, estabilizando
no município de Duque de Caxias, no qual foi os pacientes e realizando a investigação diag-
atendido pela ortopedia. Morador do entorno da nóstica inicial, definindo, em todos os casos, a
unidade, o usuário informa que deveria voltar necessidade ou não, de encaminhamento a ser-
naquele dia para retirar os curativos, mas que viços hospitalares de maior complexidade;
pela distância do Hospital de sua casa, não teria
condições financeiras de comparecer. Pede uma VIII – fornecer retaguarda às urgências atendi-
alternativa. Poderia realizar o atendimento na das pela Atenção Básica;
UPA? A assistente social informa que lá não há
serviço especializado para tanto. Pede que ele IX – funcionar como local de estabilização de
se dirija ao PAM mais próximo ou que vá até a pacientes atendidos pelo Samu 192;
Clínica de Saúde da Família.
O encaminhamento de usuários a partir da X – realizar consulta médica em regime de pron-
UPA para outras unidades nem sempre corres- to atendimento aos casos de menor gravidade;
ponde à regionalização da saúde. Há casos em
que, mesmo quando o usuário consegue a vaga XI – realizar atendimentos e procedimentos
em algum hospital, a família nega a transfe- médicos e de enfermagem adequados aos casos
rência por ser um local distante e muitas vezes críticos ou de maior gravidade;

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116 A privatização da saúde via Organizações Sociais: a contrarreforma em curso no município do Rio de Janeiro

XII – prestar apoio diagnóstico (realização de deles tem que esperar na unidade o retorno da
Raios-X, exames laboratoriais, eletrocardio- ambulância. Se o procedimento demora mais
grama) e terapêutico nas 24 horas do dia; que o esperado, a transferência tem que ser
feita no dia seguinte. Ainda há a possibilidade
XIII – manter pacientes em observação, por de a ambulância ter sido emprestada para
período de até 24 horas, para elucidação diag- alguma das UPA estaduais, o que atrasa ainda
nóstica e/ou estabilização clínica; mais a transferência.
Observamos que dois usuários precisavam
Conforme foi anteriormente afirmado, a de transferência e as duas vagas foram libera-
análise das internações da UPA I durante o ano das quase que ao mesmo tempo. Diante disso,
de 2011 demonstra que um terço dos usuários a ambulância transferiu, primeiro, a usuária
internados passa mais que 24 horas na UPA. com diagnóstico de Acidente Vascular Cere-
Dos que extrapolam o tempo máximo das 24 bral – AVC; o outro usuário também com a
horas, a média de tempo é de quatro dias (míni- vaga liberada estava com a perna fraturada e
mo de dois dias e máximo de 23 dias). teve de aguardar na sala de espera. O usuário
tinha fortes dores e reclamava continuamente.
XIV – encaminhar para internação em ser- Depois de tentar acalmá-lo, a assistente social
viços hospitalares os pacientes que não tive- solicitou à administração uma segunda ambu-
rem suas queixas resolvidas nas 24 horas de lância para sua transferência. Mesmo quando
observação acima mencionada por meio do a transferência ocorre com sucesso e o hos-
Complexo Regulador; pital não apresenta restrições para aceitar o
usuário, os responsáveis pela ambulância são
Se depois de estabilizado, o usuário precisar atrasados por outro problema comum: a maca.
de um leito num Centro de Terapia Intensiva – A maca em que o usuário chega à unidade de
CTI, o caminho mais rápido não é o Complexo destino é muitas vezes incorporada pelo hos-
Regulador e, sim, por meio de recurso à via ju- pital, o que representa um empecilho para
dicial. Caso contrário, o usuário pode vir a óbi- que a ambulância retorne rapidamente para a
to enquanto espera a liberação do leito. UPA, uma vez que este é um componente es-
sencial para o seu funcionamento.
XV – prover atendimento e/ou referenciamento
adequado a um serviço de saúde hierar- Inter XVIII – garantir apoio técnico e logístico
quizado, regulado e integrado à rede locorre- para o bom funcionamento da Unidade.
gional de Urgência a partir da complexidade
clínica e traumática do usuário; A adoção do modelo de gestão das OS tem
como uma das justificativas a flexibilidade, já
XVI – contrarreferenciar para os demais serviços que não atende aos procedimentos burocráticos
de atenção integrantes da rede proporcionando da administração pública. No entanto, o que ob-
continuidade ao tratamento com impacto positivo servamos, é que padecem dos mesmos proble-
no quadro de saúde individual e coletivo; mas que vieram solucionar: falta de médicos e
demora no atendimento, numa clara demons-
Inter XVII – solicitar retaguarda técnica ao tração que os problemas atuais da política de
Samu 192, sempre que a gravidade e comple- saúde não se limitam à gestão. As OS contra-
xidade dos casos ultrapassarem a capacidade tadas pelo regime de metas e de produtividade
instalada da Unidade; tendem a sobrecarregar os profissionais, que
exaustos, pedem demissão.
Cada UPA conta com uma ambulância. Se Os usuários, por sua vez, reclamam da de-
há dois usuários para serem transferidos, um mora no atendimento decorrente da falta de

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Vivian de Almeida Mattos 117

profissionais, da falta de divulgação sobre o a existência das UPA11 e que coaduna com os
perfil e a dinâmica da unidade, que não po- motivos para a implantação do modelo das OS.
dem depender do atendimento na UPA: “os
pobres que se cuidem, é daqui para a morte”. Considerações Finais
Os profissionais, por sua vez, reclamam que
os usuários não entendem o conceito de ur- Em que pesem os esforços dos defensores
gência e emergência – “uma dor de cabeça de das OS em divulgar seus benefícios e vanta-
uma semana não é urgência” –, afirmam que gens, os prejuízos ao erário e o favorecimento
as mães levam seus filhos para atendimento da acumulação capitalista, garantidos pela ges-
depois das 17 horas, pois é o horário em que tão das OS sobressaem. Observamos concreta-
estariam voltando da praia, criticam os pais mente a intensificação da precarização do traba-
das crianças e adolescentes que procuram lho no serviço público pelo fim da estabilidade
atendimento desacompanhados. ao permitir contratos por CLT, que tem por con-
Essa aparente incompreensão sobre o per- sequência alta rotatividade de profissionais. Isso
fil da unidade é digna de nota. Primeiramen- compromete a continuidade e qualidade do ser-
te, aquilo que não é considerado urgente para viço prestado. O prejuízo à população usuário
quem trata e detém o conhecimento sobre advém, também, da necessidade exclusiva do
aquele sintoma, é, sim, por outro lado, urgen- cumprimento de metas quantitativas sem qual-
te para quem sofre com a dor ou desconfor- quer compromisso com a qualidade do atendi-
to. Segundo, as unidades básicas de saúde – e mento à saúde. A lógica da produtividade impõe
aqui se incluem, além dos postos de saúde já a necessidade de alta rotatividade ao serviço.
existentes, as CSF –, para as quais os profis- A pesquisa nas UPA demonstrou que a ges-
sionais entendem que essas demandas não ur- tão por OS não trouxe a qualidade prometida
gentes deveriam ser encaminhadas, atendem de forma que observamos frequentemente a
ou a partir de senhas distribuídas no começo unidade funcionando com menos profissionais
do dia ou a partir de consultas previamente do que exige a sua demanda e, por conta disso,
marcadas. Assim, os usuários sabem que nas negando atendimento. Ainda assim, contratos
UPA há maior probabilidade de serem atendi- foram renovados e Termos Aditivos com valo-
dos, ainda que essa expectativa nem sempre res expressivos foram assinados.
se realize. Seguindo os preceitos neoliberais, a im-
O que ocorre, na verdade, é uma superes- plantação de políticas sociais focalizadas, se-
timação das possibilidades da UPA. O discur- letivas e privatizadas, desvinculadas do caráter
so recorrente é de que é uma unidade capaz de de direito social adquirido, é ideal para as novas
desafogar as grandes emergências e ainda aten- pretensões do capitalismo. Em português claro,
der as demandas de baixa complexidade. Ou estamos diante da mercantilização das políticas
seja, esta unidade, por si só, responderia a to- sociais que agora funcionam sob a lógica do
dos os problemas de superlotação e de falta de lucro – são o fundo e o patrimônio públicos a
acesso que hoje assolam a saúde. É esse o dis- serviço dos interesses privados.
curso que justifica a sua expansão generalizada Por isso, a defesa pela saúde pública, esta-
e que vai de encontro aos preceitos do SUS que tal, universal e de qualidade deve seguir firme
valorizam e priorizam as ações de promoção e e não ouvir o “canto das sereias” que, sonori-
prevenção de saúde. Estamos claramente diante zada em diversas siglas – OS, Oscip, FEDP e
de uma política que valoriza o modelo médico EBSERH – soletram a mesma palavra: priva-
hospitalocêntrico, centrado na doença, que tem tização. Se queremos realmente atender aos in-
por objetivo atender aos interesses lucrativos das teresses dos usuários dos serviços, precisamos
indústrias de medicamentos, de insumos e equi- fazer cumprir a premissa: saúde como um direi-
pamentos biomédicos – é esse o real motivo para to de todos e dever do Estado.

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118 A privatização da saúde via Organizações Sociais: a contrarreforma em curso no município do Rio de Janeiro

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Vivian de Almeida Mattos 119

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In: BRAVO, M.I.de S.; MENEZES, J.S.B. de. Geral do Município; Controlador-Geral do
(Org.). Saúde na atualidade: por um sistema Município; Secretário Municipal de Fazen-
único de saúde estatal, universal, gratuito e de da e Secretário Municipal de Administra-
qualidade. Rio de Janeiro: UERJ. Rede Sirius, ção, sob a presidência do primeiro.
2011. p. 10-14.
5
O site da Secretaria Municipal de Saúde e
TIBÉRIO, A. A.; SOUZA, E. M.; SARTI, F. M. Defesa Civil do Rio de Janeiro (SMSDC/
Considerações sobre avaliação de estabeleci- RJ) informa que as CSF representam o mo-
mentos de saúde sob gestão de OSS: o caso do delo de atenção básica da prefeitura e têm
Hospital Geral do Grajaú. Saúde e Sociedade, como objetivo focar as ações na atenção
São Paulo, v.19, n. 3, p.557-568, 2010. primária, trabalhar a prevenção e a promo-
ção da saúde e realizar diagnóstico precoce
TCM vê sinais de fraude em contratos de de doenças.
UPAs. O Globo, Rio de Janeiro, 6 abr. 2012.
6
Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/ Disponível em: http://www.jb.com.br/so-
tcm-ve-sinais-de-fraude-em-contratos-de-u- ciedade-aberta/noticias/2012/05/18/assalto
pas-4516051. Acesso em: 25 maio 2012. -ao-tesouro-municipal/

7
Notas O site do vereador Paulo Pinheiro: http://
www.paulopinheiro.org. Notícia disponível
1
Dissertação apresentada ao Programa de em: http://www.paulopinheiro.org/noticia_
Pós-Graduação em Serviço Social da Uni- mandato/index.asp?cod=225. Acesso em:
versidade do Estado do Rio de Janeiro, em 13 fev. 2011.
2012, orientada pela Professora Doutora
8
Ana Maria de Vasconcelos. Os dados que se seguem dizem respeito às
observações feitas durante três meses (outu-
2
O PDRE concebe o Estado em 4 setores: bro-dezembro/2011) nas UPA selecionadas.
Núcleo Estratégico; Atividades Exclusi-
9
vas; Serviços não Exclusivos e Produção Desde 1993, a Secretaria Municipal de
de Bens e Serviços para o Mercado. Cada Saúde e Defesa Civil (SMSDC/RJ) traba-
setor teria seu tipo de propriedade ideal: no lha com a divisão da cidade em 10 áreas de
núcleo estratégico e nas atividades exclusi- planejamento (AP), a saber: AP 1.0, AP 2.1,
vas, a propriedade estatal; nos serviços não AP 2.2, AP 3.1, AP 3.2, AP 3.3, AP 4.0, AP
exclusivos, a propriedade pública não esta- 5.1, AP 5.2 e AP 5.3. Em cada uma destas
tal e; na produção de bens e serviços para o AP há uma estrutura gerencial denomina-
mercado, a propriedade privada. da Coordenação de Área de Planejamento
(CAP). As AP possuem características di-
3
Todas as UPA municipais são geridas por ferenciadas no que se refere à oferta de ser-
OS e as UPA estaduais estão em processo viços, à estrutura de suas populações e aos
de transferência de gestão para as OS. indicadores socioeconômicos. (RIO DE
JANEIRO, 2009).
4
A Comissão de Qualificação de Organiza-
10
ções Sociais (Coquali) é responsável pela Se considerarmos a gestão por OS como ter-
decisão sobre os requerimentos de qua- ceirização, então os serviços contratados a
lificação das OS no município do Rio de que faremos referência serão quarteirizações.

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 105-120 / Jul-Dez 2011


120 A privatização da saúde via Organizações Sociais: a contrarreforma em curso no município do Rio de Janeiro

11
É só observar os valores vultosos anun-
ciados pela Presidente Dilma de R$ 2,7
bilhões para construir mais 900 UPA, até
2014, enquanto se investem R$ 3,5 bilhões
para construir e equipar quase 4 mil novas
Unidades Básicas de Saúde, e reformar e
ampliar outras 21 mil em todo o país. São
unidades extremamente caras – enquan-
to R$ 2,7 bilhões constroem 900 UPA, R$
3,5 bilhões dão conta de 25 mil unidades
básicas de saúde! – e pouco resolutivas,
já que atuam na urgência, no emergencial,
no agravo ao problema de saúde, ao invés
de buscar a solução de suas principais cau-
sas. Ademais, contribuem para confundir a
população que, não ciente do perfil da uni-
dade, sem conseguir atendimento nas uni-
dades básicas, tem a UPA como mais uma
etapa na busca pelo atendimento.

Vivian de Almeida Mattos


* Assistente Social da prefeitura Municipal
de Itaguaí. Mestre em Serviço Social pelo
Programa de Pós Graduação da Faculdade
de Serviço Social da UERJ. Integrante do
Núcleo de Estudos, Extensão e Pesquisa em
Serviço Social – NEEPSS/UERJ.

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121

artiGo

Financiamento e heteronomia na
pesquisa acadêmica (1950-1990)

Simone Silva*
Roberto Leher**

Resumo: O presente artigo propõe uma periodização da produção cientíica no Brasil (1950-1990) até o momento da
institucionalização da pesquisa por meio de editais, em três períodos: 1) Da constituição dos conselhos de pesquisa na
década de 1950 até o golpe civil-militar de 1964; 2) Do Parecer nº 977/65 e da reforma universitária de 1968 até a ins-
titucionalização do III PBDCT e, por último, 3) da entrada em cena dos editais de pesquisa em 1984 até 1990. O estudo
propugna que as políticas cientíico-tecnológicas foram construídas pelos governos brasileiros com a participação de
parte da intelectualidade das universidades e em parceria com os governos e burguesias dos países centrais, contando
com o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento. Tais parcerias inluenciaram os conselhos, a
regulamentação da pós-graduação e da universidade e contribuíram para a implantação do modelo de inanciamento da
pesquisa que, conforme o artigo, institucionalizou a heteronomia acadêmica.

Palavras-chave: política de ciência e tecnologia; editais de pesquisa; inanciamento; desenvolvimentismo; heteronomia.

Abstract: This article proposes a periodization of scientiic production in Brazil (1950-1990) until the moment of the
institutionalization of research through public edictals in three periods: 1) the establishment of research councils in the
1950’s until the civil-military coup in 1964; 2) The legal opinion nº 977/65 and 1968 university reform until the institution-
alization of PBDCT III and inally, 3) the arrival on the scene of the research public edictals in 1984 until 1990. The study
advocates that the scientiic-technological policies have been built by the Brazilian government with the participation of
the university intelligentsia, and also with the partnership of both governments and central countries bourgeoisies, count-
ing even with the World Bank and Interamerican Development Bank. These partnerships have inluenced the councils,
the regulation of postgraduate and university, and contributed to the implementation of a pattern for funding research
which, according to the article, institutionalized the academic heteronomy.

Keywords: science and technology policy; public notice of research; funding; developmentalism; heteronomy.

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 121-134 / Jul-Dez 2011


122 Financiamento e heteronomia na pesquisa acadêmica (1950-1990)

Ciência e tecnologia e o chamado nacional- desenvolvimentistas se caracterizaram pelo


desenvolvimentismo (1950-1963) apoio à industrialização (a produção industrial
cresceu cerca de 7% ao ano no período) e pela
A história da ciência e da tecnologia no Bra- busca de certa soberania energética, o que se
sil possui forte nexo com as chamadas políticas consolidou em 1953 com a Petrobrás. A cria-
desenvolvimentistas implantadas no país. Com ção do Banco Nacional de Desenvolvimento
o fim da Segunda Guerra, a consciência da im- (BNDE), 1952, buscou consolidar o apoio à
portância da ciência e da tecnologia, como fa- infraestrutura produtiva, fortalecendo a relação
tores de desenvolvimento econômico e social e, da área de C&T com determinados ramos da
sobretudo, como área de grande relevância es- indústria e com as empresas públicas.
tratégico-militar, passou a motivar autoridades O binômio subdesenvolvimento/desenvol-
brasileiras a constituir um espaço de ciência no vimento foi a marca das políticas no Brasil du-
país que pudesse estabelecer interlocuções in- rante um longo período, em particular a partir
ternacionais. Por iniciativa da Aeronáutica, ob- do segundo governo Vargas (1951). O perío-
jetivando domínio de tecnologia aeroespacial, do subsequente, incluindo o governo JK, foi
foi criado o Instituto Tecnológico da Aeronáu- marcado pela propagação de uma ideologia do
tica em 1950, instituição referenciada no Insti- desenvolvimento (Cardoso, 1978) pelos apa-
tuto de Tecnologia de Massachusetts. A criação relhos de hegemonia, como partidos, sindica-
do CNPq em 1951, significativamente com o tos, escolas, meios de comunicação e igreja.
protagonismo do Almirante Álvaro Alberto da A referida ideologia contribuiu com a difusão
Motta, então interessado na energia nuclear da crença de que valia a pena se submeter aos
e, no mesmo ano, mas já no governo Vargas, maiores sacrifícios em nome da garantia de um
da Capes, liderada por Anísio Teixeira, foram futuro melhor moldado pelo estilo de vida es-
acontecimentos que transformaram, definitiva- tadunidense divulgado fortemente, naquele pe-
mente, a relação Estado-ciência no Brasil. ríodo, nos filmes e comerciais de TV.
Desde então, a expansão das atividades de Se, até o final dos anos 1950, as proposições
ciência e tecnologia, doravante denominada desenvolvimentistas da Cepal eram relevantes
C&T, se deu fundamentalmente em instituições no debate, repercutindo, de algum modo, nas
públicas, sejam em institutos organizados a medidas de governos, a partir da Revolução
partir do CNPq, como o Instituto de Matemá- Cubana o quadro se modifica rapidamente. O
tica Pura e Aplicada – IMPA e o Centro Brasi- confronto com o arcaico, em nome do moderno
leiro de Pesquisas Físicas – CBPF, sejam, prin- era, segundo a teoria de W. W. Rostow (1960),
cipalmente, em instituições universitárias como imperativo para o correto desenvolvimento
a Universidade de São Paulo – USP e as Uni- dos países “subdesenvolvidos”. A sua concep-
versidades Federais. “Na tradição brasileira, é ção evolucionista propugnava que o “arranque
nelas que se tem realizado a quase totalidade econômico” dependia do apoio ativo de um
do ensino e da pesquisa nos setores básicos do setor da sociedade que fosse de fato adepto
conhecimento.”1 do desenvolvimento. Nas etapas do desenvol-
Como é possível depreender do exposto an- vimento propugnadas por Rostow as relações
teriormente, o grande salto que erige as bases consideradas atrasadas seriam paulatinamen-
das atividades de C&T no Brasil está concen- te apagadas com mais capitalismo, como se a
trado no segundo governo Vargas (1951-54), combinação do arcaico (hiperexploração, tra-
um governo dito nacional-desenvolvimen- balho precário, longas jornadas de trabalho, la-
tista. Embora este governo estivesse preocu- tifúndios utilizados como reserva de valor etc.)
pado, principalmente em seus dois primeiros com o moderno (industrialização) não fosse
anos de governo, com aspectos ortodoxos, uma característica do desenvolvimento capita-
como a inflação e o déficit, as suas políticas lista nos países ditos subdesenvolvidos.

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 121-134 / Jul-Dez 2011


Simone Silva, Roberto Leher 123

Trabalhos clássicos como os de Lenin sobre as soluções para os grandes problemas


o desenvolvimento do capitalismo na Rússia, da atualidade, o bem estar presente e o
publicado originalmente em 1899, apontavam futuro. Se diversos capitalistas se reu-
que o desenvolvimento é marcadamente de- nissem e patrocinassem a construção
sigual em uma mesma formação econômico- de um grande laboratório de pesquisas
social, proposição sistematizada na forma de nucleares, estariam conquistando um
uma lei geral do capitalismo, a lei do desen- lugar na história do desenvolvimento
volvimento desigual e combinado, por Trotsky científico, estariam se imortalizando.
no primeiro capítulo da História da Revolução (Lattes, 1949: 44) (grifo nosso)
Russa (2007). Também intelectuais brasileiros
como Fernandes (1968) e, mais tarde, Francisco Na década de 1950, o setor da educação
de Oliveira, em 1972, irão criticar severamente brasileira havia incorporado muito da ideologia
tal proposição como não histórica. Ao contrá- do desenvolvimento, combinando concepções
rio, todos esses estudos confirmam a dialética liberal-democráticas amparadas em Dewey
entre o moderno e o arcaico no capitalismo. A (Anísio Teixeira) com algo do pensamento de-
funcionalidade que possibilita tal relação no ca- senvolvimentista da Cepal (Celso Furtado), em
pitalismo em países periféricos é um elemento especial nos governos Vargas, JK e João Gou-
essencial para a compreensão do processo de lart. A construção da ideia de que era preciso
“desenvolvimento” no Brasil, pois, longe de construir um país moderno para que um futuro
ser um empecilho, esta relação pode estar sub- melhor fosse o destino irrevogável da popula-
jacente às áreas mais dinâmicas da economia. ção brasileira impregnou também a educação.
(Oliveira, 2003, 44-45). As universidades eram ao mesmo tempo espaço
Os modestos investimentos financeiros nas de disseminação desta ideologia, responsáveis
universidades no governo Dutra (1946-1951), pela formação de uma mão de obra graduada e
confirmavam que esta instituição não era real- especializada, e por realizar a pesquisa em seu
mente prioritária. Na ausência de verbas pú- âmbito, com o objetivo de garantir o fortaleci-
blicas, proeminentes cientistas miravam com mento científico de um país em direção ao de-
otimismo o exemplo estadunidense de aproxi- senvolvimento.
mação do sistema C&T com o setor produtivo. As lutas pelas reformas de base, entre as
Esta preocupação pode ser exemplificada com quais a universitária, contudo, revelaram rapi-
o seguinte depoimento de Cesar Lattes. damente suas fragilidades na organização da
resistência por parte de setores organizados da
O essencial no Brasil é organizar labora- classe trabalhadora. O grupo articulado em tor-
tórios onde os nossos cientistas possam no do Instituto Superior de Estudos Brasilei-
trabalhar. Assim, formaremos um am- ros sustentava a possibilidade de reformas com
biente propício às pesquisas científicas protagonismo de frações burguesas locais, tese
no país e podermos convocar técnicos parcialmente abraçada pelo PCB. Entretanto,
estrangeiros que nos ministrem ensina- como o golpe civil-militar de 1964 demonstra-
mentos. Sei de muitos cientistas norte-a- ria de modo categórico, as principais frações
mericanos que gostariam de vir ao Bra- burguesas objetivavam uma integração-subor-
sil com esse propósito. dinação ao capitalismo monopolista. A viru-
Nos Estados Unidos, na Inglaterra, lência da repressão que se abateu sobre a UnB,
em todos os países adiantados, tanto instituição representativa do projeto nacional-
o governo como as entidades priva- desenvolvimentista, corrobora essa avaliação.
das interessam-se profundamente pelo De acordo com Fernandes (1975), na ausên-
desenvolvimento das pesquisas. Dos cia de uma verdadeira revolução burguesa
laboratórios, em grande parte, chegam no país (compreendida como revoluções que

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124 Financiamento e heteronomia na pesquisa acadêmica (1950-1990)

protagonizam um porvir nacional autopropeli- como pode ser verificado no período ditatorial,
do), as frações burguesas locais se conforma- discutido adiante.
ram com uma associação subordinada com as Foram nesses marcos que se deram as po-
frações burguesas hegemônicas, configurando líticas de fomento à C&T e que configuraram
um quadro em que as frações locais e as ex- o primeiro período assinalado (1950-1964), em
ternas são complementares. Fernandes (2009) que, de fato, novos aparatos são erigidos pelo
identifica nas burguesias locais parceiros do Estado; porém, sob as contradições do chama-
processo de constituição de uma nação depen- do nacional-desenvolvimentismo que, verda-
dente que deiramente, não conta com a adesão das frações
burguesas mais relevantes.
[...] viram-se superadas pelos fatos, tan- Como analisou de modo penetrante Flores-
to nos países nos quais conquistaram tan Fernandes, em seu clássico A Revolução
sua hegemonia de classe por meios rela- Burguesa no Brasil, “o grosso das classes pos-
tivamente pacíficos (Argentina) quanto suidoras e de suas elites econômicas, militares
em países nos quais sua hegemonia de e políticas (...) nas lutas contra o último go-
classe foi lograda por vias cruentas (Mé- verno de Vargas, via o ‘capitalismo de Estado’
xico). No final, de uma maneira ou de como instrumental ou funcional apenas para os
outra, tiveram de ceder terreno às evolu- interesses privados (nacionais e estrangeiros)”
ções externas do capitalismo, de colocar (Fernandes, 2008, p. 305). Com efeito, o fato
em segundo plano a revolução nacional de o Estado estar sendo fortalecido em termos
e exercer suas funções de liderança ou de aparatos de C&T não assegura, por si só, um
de dominação como uma plutocracia futuro promissor para o setor. Como salientou
compósita, minada a partir de dentro Florestan na mesma obra:
dos interesses, valores e influências so-
ciais das sociedades hegemônicas. Nes- Essa experiência histórica comprova
se sentido, elas foram os artífices do ca- que o Estado não tem nem pode ter, em
pitalismo dependente. Escolheram-no e e por si mesmo, um poder real e uma
o fortaleceram como alternativa a uma vocação inflexível para o nacionalismo
revolução nacional dentro da ordem, econômico puro. Ele reflete, historica-
que ameaçaria iniquidades muitas de mente, tanto no plano econômico quan-
origem e significado ou consequências to no militar e político, os interesses
coloniais, diante das quais “as desigual- sociais e as orientações econômicas ou
dades de classe” têm o caráter de uma políticas das classes que o constituem e
conquista democrática. (ibdem: 63-64) controlam. (Fernandes, 2008: 306)
(grifo do autor).
Concretamente, após o golpe civil-militar
Por este motivo, Fernandes não atribui a o veio profundo do imperialismo, o capitalis-
heteronomia exclusivamente à determinação mo monopolista, tornou-se o eixo das políti-
externa, mas à uma lógica de articulação entre cas do Estado. A lógica do novo governo é de
os centros capitalistas hegemônicos e as eco- que a transferência de tecnologia poderia su-
nomias capitalistas dependentes. Ele conside- prir as necessidades produtivas da indústria e
ra que não há condição de intervenção externa que, no que se refere ao Estado (especialmen-
sem que as burguesias locais tomem parte nesta te, suas empresas), áreas estratégicas deveriam
articulação. Da mesma forma, as burguesias lo- contar com capacidade tecnológica própria
cais não teriam êxito na formulação e imple- (energia, agricultura, tecnologia nuclear, enge-
mentação das políticas para a universidade sem nharias), objetivo, conforme o argumento do
a parceria com setores da comunidade científica presente artigo, inviável, considerando o grau

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Simone Silva, Roberto Leher 125

de interdependência entre a economia brasilei- Cabe ressaltar, entretanto, que a prin-


ra e a dos países hegemônicos e, mais ainda, cipal modificação ocorrida nas atri-
as mediações que tecem a dependência das fra- buições deste organismo, além de
ções burguesas locais frente às hegemônicas. desvinculá-lo completamente das ati-
Desse modo, o segundo período analisado vidades no campo da energia atômica,
no artigo cujo como marcador temporal é o diz respeito a uma maior explicitação
golpe militar protagonizado pelos setores do- de sua função de órgão formulador de
minantes expressa contradições que ainda ne- políticas, mantendo-se ao mesmo tem-
cessitam ser melhor investigadas, pois, de um po a função de coordenador a ele atri-
lado, é indubitável que o governo militar estru- buída desde o inicio. Neste sentido a
turou a pesquisa universitária na pós-gradua- ampliação deste papel do Conselho
ção, criou ou consolidou institutos de pesquisa, seria condizente com a incorporação
mas, ao mesmo tempo, manteve a economia do conceito de planejamento à política
estritamente vinculada ao imperialismo, con- governamental, não se tratando assim
tando, para isso, com o apoio ativo das princi- de um discurso específico à ciência e
pais frações burguesas locais, configurando um tecnologia e sim de um reflexo na ciên-
quadro de dependência fundamental teorizado cia e tecnologia de ideologias governa-
por Florestan Fernandes como capitalismo de- mentais mais globais, concomitante ao
pendente (2008). reconhecimento da importância destas
atividades para o projeto de desenvol-
Período da ditadura: modernização conser- vimento nacional (Romani, 1982: 6).
vadora da universidade (1964-1984)
Este plano, ainda relativamente lateral em
Logo após a sua deflagração, o golpe mi- relação as políticas axiais da ditadura, visava
litar cassou muitos dos intelectuais que for- constituir um instrumento de apoio à C&T que
mularam o projeto educacional do governo pudesse ter caráter nacional e acompanhar a
Jango, como Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, situação da pesquisa em todo o país. Seu ob-
mas também educadores que apoiaram as re- jetivo era formular um projeto de investigação
formas de base, como Paulo Freire. Junto com de temáticas consideradas importantes para
a repressão à UnB, o novo governo avançou o desenvolvimento do Brasil. As áreas consi-
na regulamentação da pós-graduação (Pare- deradas estratégicas foram astronomia, mate-
cer nº 977 de 1965, que ficou mais conhecido mática, biologia, física, química e tecnologia,
pelo nome de seu mentor, o professor New- além de algumas áreas nas ciências sociais e
ton Sucupira), objetivando promover a sua de uma preocupação particular com a região
expansão nos marcos de um “dado modelo” Amazônica. Proclamava ser possível estabe-
transplantado do modelo estadunidense. lecer o Brasil como país relevante na disputa
A tentativa de reconfiguração do CNPq em no campo da ciência em nível mundial, desde
1964, embora tenha sido rejeitada por mem- que alocando alto grau de investimento finan-
bros da Sociedade Brasileira para o Progresso ceiro e de investimento em recursos humanos.
da Ciência (SBPC), confirma o interesse da Nesta formulação seria possível atingir os ní-
ditadura nas políticas de C&T. Este processo veis de desenvolvimento necessários atuando
se concretiza com o Programa Estratégico de através dos instrumentos propostos pelo plano,
Desenvolvimento – PED para o período de direcionados à formulação de políticas públicas
1968/1970 que deu origem ao plano quinque- que pudessem garantir a expansão da produção
nal para a pós-graduação, inaugurando um científica e tecnológica em nível nacional, per-
novo momento na relação desenvolvimento seguindo as áreas determinadas como prioritá-
do país e C&T. rias para o desenvolvimento do país.

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126 Financiamento e heteronomia na pesquisa acadêmica (1950-1990)

A ciência e a tecnologia não têm preferi- (PBDCT). Os planos básicos foram as princi-
dos e o gigantesco poder da tecnologia pais medidas do governo para organizar a ciên-
moderna é acessível a qualquer país, cia para o desenvolvimento do país, que naque-
desde que seus governantes efetivamen- le momento (I PBDCT, 1973; II PBDCT, 1976)
te se dediquem a promover o desenvol- vivia um ciclo econômico expansivo, o que re-
vimento científico, assistindo conve- sultou em relevantes investimentos financeiros
nientemente seus tributários: ensino de em ciência naquele período. Os dois primeiros
ciência mais prolongado e de alta qua- planos expressam um claro direcionamento
lidade, maior proporção de cientistas no para as áreas consideradas prioritárias afins ao
corpo docente, laboratórios adequados padrão de acumulação do capital. É nesse con-
aos diferentes setores da investigação, texto que a Embrapa foi fundada (1973), obje-
pós-graduação em padrão internacional, tivando sustentar tecnologicamente a chamada
formação de técnicos, intercambio de Revolução Verde. O mesmo pode ser dito so-
cientista, moderno serviço de documen- bre o Centro de Pesquisas Leopoldo Américo
tação e informação e condições salariais Miguez de Mello (Cenpes), da Petrobras que, a
condignas à grandeza da missão que de- despeito de ter sido criado em 1968, foi amplia-
sempenha o pesquisador na sociedade do neste período e sobre o Centro de Pesquisas
moderna.2 (grifo nosso) de Energia Elétrica (Eletrobras Cepel) consti-
tuído em 1974.
Para que a política de fomento às atividades Pode-se afirmar que a mais definitiva políti-
de C&T ganhasse organicidade com as políti- ca de sistematização do financiamento foi sem
cas estratégicas do regime militar foi preciso dúvida a criação do Fundo Nacional de Desen-
ajustar a universidade às exigências da moder- volvimento Científico e Tecnológico (FNDCT)
nização conservadora. A conjunção de medidas em 1969, mas de fato ativo a partir de 1971.
como os Acordos MEC-Usaid, a “reforma uni- Com uma estrutura de financiamento organiza-
versitária” (Lei 5.540/1968) e o AI-5 e o Decre- da a partir de um fundo com características de
to 477/1969 compuseram um novo marco para agência, acreditava-se ser possível promover
a universidade e para a C&T no Brasil. suporte para as ações mais efetivas no campo
A promessa de que a ditadura era um mo- científico. A sua consolidação deveu-se fun-
vimento que almejava lançar o Brasil na era do damentalmente às políticas empreendidas no I
desenvolvimento foi um dos pilares da ideolo- Plano Básico de Desenvolvimento Científico e
gia manejada pelos governos militares nos anos Tecnológico (I PBDCT) (1973-1974) que esta-
1970. Longe de ser uma consigna vazia, uma va vinculado ao I Plano Nacional de Desenvol-
série de medidas foram efetivadas com esse vimento (PND) (1972-74). É possível creditar
fim. Desenvolvimento, no caso, expressava a ao FNDCT a responsabilidade pela institucio-
agenda do capitalismo monopolista que, objeti- nalização da pesquisa nos anos 1970 e pelo es-
vamente, necessitava da infraestrutura do Esta- petacular crescimento do número de cursos de
do. Foi nessa perspectiva que o governo militar, pós-graduação.
em sintonia com o imperialismo, estruturou os A regulamentação dos cursos de pós-gra-
Planos Nacionais de Desenvolvimento (PND). duação, assim como a planificação da distri-
Com os planos, as medidas da contrarreforma buição de recursos para a pesquisa, foram res-
de 1968 tornam-se mais congruentes com a mo- ponsáveis pelo crescimento da pós-graduação
dernização conservadora. no Brasil que, segundo dados da Capes, saltou
De fato, os nexos entre as universidades e de 36 cursos em 1965 para 761 em 1976. Esta
o modelo tornaram-se mais estreitos, especial- planificação foi consolidada nos anos 1970
mente a partir da elaboração dos Planos Básicos através da elaboração de planos de desenvol-
de Desenvolvimento Científico Tecnológico vimento do país, seguidos dos planos básicos

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de desenvolvimento científico e tecnológico. Nacional de Pós-Graduação e consolidando as


Os planos elaborados correspondiam a um mo- novas estruturas criadas para atender ao projeto
mento de efetivação das políticas de desenvol- organizadas em torno do Sistema Nacional de
vimento e crescimento em que as atividades de Ciência e Tecnologia (1975) vinculado à Secre-
C&T foram consideradas estratégicas. A deter- taria de Planejamento.
minação do governo militar em lançar o país O sistema de fundos para dar impulso ao
na era do desenvolvimento estava refletida desenvolvimento científico e tecnológico está
nas políticas de ressignificação dos conselhos consolidado através do Fundo Nacional de De-
e na pré-definição da distribuição de recursos senvolvimento Científico e Tecnológico – FN-
para certas áreas. Mudanças importantes foram DCT, do Fundo Tecnológico – da Funtec, do
cunhadas neste período. O CNPq sofreu alte- então Conselho Nacional de Desenvolvimen-
rações decisivas para a implantação dos Pla- to Científico Tecnológico – do CNPq (antigo
nos Básicos, dentre elas sua vinculação direta Conselho Nacional de Pesquisa), da Financia-
à Secretaria de Planejamento da Presidência da dora de Projetos – Finep, e da Coordenação de
República (1974). Vale ressaltar que mudanças Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
semelhantes foram firmemente rejeitadas por – Capes, enquanto o Banco Nacional de Desen-
cientistas reunidos na SBPC dez anos antes. volvimento Econômico – BNDE destina sua
O I PBDCT (1973-1974) aponta um novo atenção às indústrias básicas.
caminho da ciência e da tecnologia no Brasil. Porém, uma diferença podia ser percebida
O plano afirma estar comprometido com uma entre os dois planos. O segundo plano priori-
política de C&T sintonizada com o progresso zava as políticas industrial e agrícola que de-
científico mundial. Para isso, os cientistas e veriam ser operadas pelo Sistema Nacional
tecnólogos brasileiros foram chamados a par- de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
ticipar do processo de fortalecimento da C&T – SNDCT, então articulado pela Secretaria de
em nome de sua vocação como homens de- Planejamento (Seplan), um dos mais relevantes
votados à ciência independente de seu lugar centros de pensamento do governo ditatorial,
no governo, na empresa ou no laboratório da em detrimento da pesquisa científica, prioriza-
universidade. Pretendia-se convencer a todos da no I PBDCT. De fato, a preocupação em ali-
que a produção científica, mesmo a realizada nhar universidade e empresa e setores públicos
na universidade, precisava estar comprometida e privados na geração e absorção de conheci-
com o projeto de modernização conservadora. mento ganha maior centralidade no II PBDCT
É perceptível que o governo militar alterou sua que busca enfrentar problemas advindos da
relação com a universidade, pois, no lugar de crise dos anos 1970, como os já mencionados
uma tática de controle puramente repressiva problemas energéticos.
(AI-5/68, Decreto 477/69) passou a combinar a
repressão com a cooptação dos grandes planos No que diz respeito à aplicação de estí-
de fomento às atividades de C&T em nome da mulos específicos ao desenvolvimento
modernização. Com efeito, a monta de recur- tecnológico industrial, em particular
sos envolvida no referido plano era superior a aqueles de natureza financeira, cum-
qualquer outro momento anterior da história da pre, em particular, coordenarem-se as
ciência no Brasil. ações da STI-MIC, do BNDE e da FI-
O II PBDCT, aprovado em 1976, segue NEP no plano de programas setoriais,
dando o impulso ao desenvolvimento científi- com o uso apropriado das respectivas
co e tecnológico, após o epicentro da crise do competências e vocações, competindo
petróleo com prioridade às fontes alternativas ao CNPq, como órgão central do SN-
de energia, como o Proálcool, a consolidação DCT, promover tal coordenação, sem-
da expansão da pós-graduação com o Plano pre que necessário.

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128 Financiamento e heteronomia na pesquisa acadêmica (1950-1990)

Este plano, que teve sua vigência de 1976 a o imperialismo. Desse modo, os espaços de
1979, garantiu a participação de outras esferas contradição no interior da universidade acaba-
do governo nas políticas de C&T, instituindo, ram sendo muito mais fecundos do que deseja-
progressivamente, o setor privado no esforço va a ditadura. De fato, é possível verificar que,
nacional em pesquisa, notadamente por meio ao longo destes três planos, os mecanismos ins-
da Finep e do BNDE. tituídos para a aproximação do setor produtivo
O exame cuidadoso de cada plano confirma privado com o setor público e, em particular,
que, apesar das nuances, existe uma linha de com a pesquisa nas universidades não foi efeti-
continuidade no que se refere ao tema central vado como esperado pelos governos militares.
do presente artigo: a aproximação com o setor O fato é que nem as corporações localizadas no
privado e a pré-determinação das temáticas a Brasil desejavam converter suas matrizes em
serem pesquisadas, cada vez mais em confor- espaços intensivos em conhecimento. Tampou-
midade com os Planos Nacionais de Desenvol- co as empresas públicas se desenvolveriam in-
vimento. Desse modo, as políticas da ditadura definidamente como empresas de alta tecnolo-
paulatinamente aprofundam a heteronomia cul- gia, tendo em vista a demanda do grande capital
tural da universidade frente aos particularismos na privatização das mesmas e, não menos im-
do Estado e das corporações. portante, as dificuldades crescentes de crédito
O III PBDCT (1980 a 1985) pode ser consi- após a tectônica crise da dívida de 1982.
derado a consolidação deste processo heteronô- No período de implantação do III Plano foi
mico. Embora os planos anteriores não tenham perceptível uma significativa redução nos re-
sido plenamente efetivados, existe uma coerên- cursos orçamentários para o financiamento das
cia na política desejada. O III PBDCT segue o pesquisas. A situação econômica e política do
mesmo direcionamento em relação às grandes país apresentava alto grau de instabilidade. O
prioridades da área de C&T. No entanto, apre- alto endividamento em que se encontrava, e o
sentava de forma mais objetiva a intenção de visível descontentamento com a ditadura civil-
selecionar programas e atividades prioritárias a militar por parte da sociedade brasileira, inclu-
serem implementadas nos diversos setores. sive de segmentos empresariais, contribuíam
O Plano tem como particularidade, também, a para uma desestabilização também nas políti-
retomada do papel da academia na sua implanta- cas de C&T.
ção. Não que a universidade não estivesse envol- Com menos recursos, a situação precisava
vida nos planos anteriores, porém no III PBDCT ser contornada e para isso foram desenvolvidas
a pesquisa acadêmica estava institucionalmente as denominadas “Ações Programadas em Ciên-
subordinada ao CNPq. É mister apontar que a cia e Tecnologia”:
reconfiguração do CNPq, em 1974, instituciona-
lizou o Conselho como organismo no comando Espécie de capítulos do Plano Nacional,
do processo de pesquisa. O corolário desse pro- elas deveriam indicar as ações e provi-
cesso é que a responsabilidade da comunidade dências, organizadas na forma de progra-
acadêmica na implantação das políticas de C&T mas e projetos específicos, a serem im-
tornou-se muito mais proeminente. plementados, durante os anos seguintes,
Conforme a proposição do capitalismo de- pelos diversos órgãos do governo, uni-
pendente era previsível que a universidade não versidades, instituto de pesquisas, em-
se converteria em uma peça decisiva do proces- presas estatais e agências de promoção e
so de intensificação tecnológica da indústria e fomento, diretamente interessadas.3
da agricultura brasileira. Afinal, as frações bur-
guesas locais nada tinham de revolucionárias e, Desse modo, o segundo período se esgota
por conseguinte, não ousariam liderar um pro- a partir da virada dos anos 1970 para os pri-
jeto autopropelido de nação em confronto com meiros anos da década de 1980, um período em

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Simone Silva, Roberto Leher 129

que a situação econômica e política do Brasil contrato com o Banco Mundial, assinado em
já não eram as mesmas em virtude da crise fi- 1983, já durante a gestão do PADCT, iniciou
nanceira mundial. O III PBDCT (1980-1985), sua gestação no início da década. E apesar de
como destacado, foi formulado nesta conjuntu- ter se materializado nos anos 1980 e ter pre-
ra. É nesta conjuntura que surge a proposta do I tendido ser, segundo seus negociadores, a
Plano de Apoio ao Desenvolvimento Científico inauguração de uma nova era, mais se apro-
e Tecnológico (1984), o PADCT, que tem como xima de uma manifestação tardia das políticas
suas marcas principais a intensificação da utili- de C&T elaboradas para os anos 1970. Esta
zação de financiamento através de agências in- convicção sustenta-se no fato de que a iniciati-
ternacionais e a distribuição de recursos para a va da Finep junto ao Banco Interamericano de
pesquisa por meio de editais, ampliando a par- Desenvolvimento – BID em 1986, com vistas
ticipação do mundo empresarial nas decisões à obtenção de um empréstimo de US$ 100 mi-
relativas à produção científica. lhões, modesto diante das quantias investidas
O Plano de Apoio ao Desenvolvimen- em C&T na década de 1970, foi extremamen-
to Científico e Tecnológico – PADCT tomou te dificultosa e os recursos foram liberados
empréstimos do Banco Mundial objetivando apenas seis anos depois. Um importante fator
o custeio da pesquisa científica e tecnológi- que comprova a relação entre os acordos, em-
ca. Diferente dos PBDCT, este era um plano préstimos e políticas aplicadas para a C&T é
concebido como um instrumento transitório de que tanto a aprovação final desse empréstimo
ação completar às agências de financiamento quanto a renovação do contrato do PADCT
e tinha áreas e metas pré-definidas a alcançar. só aconteceram após o fechamento do último
O Plano tinha uma primeira etapa com dura- acordo sobre a dívida externa brasileira. Outro
ção de cinco anos, momento em que se faria aspecto das dificuldades diz respeito ao fato
uma avaliação de sua aplicação. Os resultados de que, desde 1984, o FNDCT passou a com-
desta avaliação poderiam implicar em ajustes partilhar o papel de agência de fomento insti-
de programação e redefinição da aplicação do tucional com o PADCT.
restante dos recursos previstos. Diferentemente do que pensam habitual-
mente os usuários, os diversos programas de
As agências participantes do PADCT um setor são, do ponto de vista financeiro, va-
receberam na primeira etapa (fase teste) sos comunicantes. Para os gerentes das finanças
cerca de 2.500 propostas de diversas en- nacionais de C&T, o que interessa é o montante
tidades brasileiras de ensino e pesquisa alocado ao setor. A maneira pela qual se distri-
para serem analisadas quanto ao mérito buem os recursos pelos programas é um proble-
técnico-científico e ao enquadramento ma menor. Se um programa tem seus recursos
das especificações fixadas em editais de aumentados, outros terão seus recursos dimi-
convocação de proposta. Desta forma, nuídos. A avaliação positiva da implementação
o PADCT pretende contemplar prefe- do PADCT certamente contribuiu para com-
rencialmente aquelas propostas que se plicar o processo de recuperação do FNDCT,
direcionem para carências previamente bem como dos programas de fomento do CNPq
identificadas e que se coadunem com as e dos demais institutos. Afinal, o êxito procla-
estratégias adotadas para saná-las.4 mado do PADCT consolidou definitivamente a
interferência direta das agências internacionais
Apenas 360 projetos foram contratados nas políticas de educação e de C&T, o que no-
e por uma duração estimada de dois anos, vamente confirma Fernandes (1975): o proces-
contemplando uma fase teste que intencio- so de desenvolvimento aplicado no Brasil não
nava avaliar os mecanismos utilizados para tem e nunca teve compromisso verdadeiro com
a contratação de projeto através de editais. O a independência da produção científica do país.

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130 Financiamento e heteronomia na pesquisa acadêmica (1950-1990)

As nações capitalistas desenvolvidas e, milhões de dólares foram operacionalizados em


principalmente, as nações hegemôni- aquisição de equipamentos, peças de reposição,
cas do mundo moderno podem finan- insumos, bibliografia e treinamento de pessoal
ciar os progressos globais da ciência e no exterior, não sendo transferidos para o Bra-
da tecnologia avançada. De um modo sil. Somente os 12 milhões foram juntados aos
ou de outro, elas acabam descobrindo recursos da contrapartida nacional, que foram
e aproveitando certos expedientes que da monta de 163 milhões de dólares, oriundos
permitem comercializar – econômica, do CNPq, da Finep, da Capes, da Secretaria de
política e culturamente – as descober- Tecnologia Industrial, a STI do Ministério da
tas e os avanços realizados. As nações Indústria e Comércio e entidades executoras.
subdesenvolvidas precisam pôr em pri-
meiro plano seus objetivos nacionais e, O PADCT passou a realizar um exercí-
portanto, para elas o processo interessa cio de fomento dirigido, complementar
na medida em que, através da moder- às atividades de fomento espontâneo
nização ou da racionalização do ensino que, através da publicação de editais,
e da expansão da pesquisa cientifica e informava as áreas a serem atendidas, o
tecnológica, elas conseguem melhores volume de recursos envolvidos e os ti-
condições de participação do fluxo do pos de projetos a serem apoiados. Des-
padrão de civilização de que partici- sa forma, um componente fundamental
pam. Isto significa que, para elas, o que para seu sucesso seria a adequada divul-
entra em jogo, na fase da negação e de gação, a fim de garantir a participação
superação do subdesenvolvimento, é o de todas as entidades interessadas e,
grau de autonomia cultural relativa que desse modo, determinar um alto nível de
alcança (ou podem alcançar) por meio qualidade das propostas recebidas (Stal;
da educação escolarizada, da ciência e Cerantola, 1989: 85).
da tecnologia avançada. Por isso, a uni-
versidade integrada e multifuncional Com efeito, a situação iniciada em 1971
propõe-se o objetivo de modernizar e se consolidou definitivamente na vigência do
intensificar o ensino, bem como se im- PADCT. A produção científica no Brasil a par-
põe a missão de produzir conhecimen- tir da década de 1970 se dá de forma sistema-
tos científicos e tecnológicos de forma tizada e pré-determinada desde o primeiro Pla-
independente. Ela não procura, e seria no básico elaborado para as políticas de C&T.
um suicídio se o procurasse (pelo me- O financiamento passa a ter direcionamento
nos nesta fase), converte-se em mece- pré-definido, assim como as temáticas e seus
nas do crescimento e do aperfeiçoamen- objetivos. Todos os elementos que envolvem
to da ciência e da tecnologia científica. a pesquisa estão subordinados às políticas
(Fernandes, 1975: 88-89) denominadas nacional-desenvolvimentistas,
mas, como lembra Fernandes (2005), já inscri-
A partir da avaliação do Plano e sob as ba- tas no bojo do capitalismo monopolista. Este
ses teóricas do capitalismo dependente e da processo caracteriza o que no início da década
heteronomia cultural, sustentamos a hipótese de 1980, no PADCT, vai ser denominado como
que o PADCT é a expressão mais concreta da chamada via editais de pesquisa.
relação de parceria subordinada nas políticas A estrutura organizacional do plano defi-
de C&T entre as instituições de fomento, o go- nia passo a passo as atividades do programa e
verno brasileiro e o Banco Mundial. Vale res- os agentes responsáveis por sua implementa-
saltar que do total alocado pelo Banco Mundial ção. Cabia às agências financiadoras a divul-
durante o I PADCT, 72 milhões de dólares, 60 gação dos editais, aprovação das propostas,

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Simone Silva, Roberto Leher 131

contratação, liberação de recursos e acom- system é um sistema de avaliação e seleção de


panhamento físico e financeiro dos projetos propostas realizada pela própria comunidade
contratados. No organograma do PADCT, as acadêmica, mas, sob a coordenação das agên-
missões do Banco Mundial, o Grupo Especial cias, adquire novas dimensões, como avaliar,
de Acompanhamento e o Conselho Científico selecionar e planejar o processo de seleção.
e Tecnológico do CNPq eram o ponto de par- Portanto, o PADCT apresenta uma nova meto-
tida para a implantação das políticas. A estru- dologia de distribuição de recursos. Um grupo
tura do Plano também continha equipes, cujas de intelectuais brasileiros, de ‘reconhecida au-
estruturas já estavam determinadas (número e toridade acadêmica’, planeja a seleção, avalia
origem dos membros), sendo o Grupo de Tra- os projetos de pesquisa e seleciona aqueles que
balho acompanhado pelas Secretarias Técnicas atendem ao crescimento do país. Tudo isto sob
e responsável pela elaboração do edital. a coordenação das agências.
A implantação do plano encontrou uma O novo planejamento do fomento às ativi-
enorme demanda reprimida que, ao se depa- dades de pesquisa instituídas com o apoio fi-
rar com os editais, alterou linhas de pesquisa nanceiro do Banco Mundial, e de acordo com
para se adequarem a eles. O que é mais uma suas regras, significou uma saída para o declí-
demonstração da situação dos recursos desti- nio dos aportes financeiros destinados à C&T.
nados à pesquisa, que enfrentavam um decrés- Todo esse processo repercutiu na consolidação
cimo nos aportes feitos pelo FNDCT naquele de um grupo de pesquisadores que assumiram a
momento, e do reflexo nefasto que os editais liderança da “big Science”. Vale lembrar, con-
provocam sobre a produção científica. A alte- tudo, que a parcela da comunidade detentora
ração de projetos e de linhas de pesquisa para da ‘autoridade científica’, cuja tarefa passou
a submissão aos editais repercute na definição a ser planejar, avaliar e selecionar projetos de
da problemática cientifica, ressignificando, in- pesquisa que receberiam o grosso do financia-
clusive, a natureza do trabalho acadêmico dos mento nunca precisou submeter suas próprias
pesquisadores brasileiros. pesquisas a este tipo de avaliação, afinal, avali-
A participação do Banco Mundial, ao longo zadas por eles mesmos.
de três décadas, é intensificada não só no finan-
ciamento, como na determinação das políticas A heteronomia institucionalizada
de C&T. Não é secundário que acordos finan- (1985-1990)
ceiros relativos a empréstimos ao país fiquem
subjulgados à implantação de políticas de C&T Em 1985, a criação do Ministério de Ciên-
pré-determinadas. O esvaziamento do FNDCT, cia e Tecnologia – MCT, através do Decreto nº
causado pela estagnação econômica a qual foi 91.146 de 15 de março de 1985, constitui um
submetido o país na década de 1980, somado novo marco para a história da C&T no Brasil.
à instabilidade política que vinha se agravando A proposta de criar um novo órgão dedicado à
a partir da segunda metade da década de 1970, C&T se baseava nos discursos já repetidamente
e que atingiu seu ápice no início da década de utilizados de que se o país não assumisse a tare-
1980, privou muitas instituições de pesquisa do fa de fortalecer a educação e pesquisa não seria
apoio institucional e da possibilidade de traba- senhor de si mesmo. A justificativa do minis-
lhar adequadamente e reter seus melhores qua- tério era balizada pelo objetivo de superar um
dros. Diante de um quadro econômico bastante conjunto disperso e desarticulado de ações e or-
difícil, o modus operandi do Banco Mundial só ganizações, públicas e privadas, com pouca su-
contribuíram para o aumento da heteronomia. pervisão e controle; a urgência na implantação
Outro fator muito importante advindo do de mecanismos e instrumentos voltados para
PADCT é a pré-avaliação como elemento defi- os interesses econômicos, sociais e políticos da
nidor na distribuição de recursos. O peer review sociedade; a necessidade de posicionamento do

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132 Financiamento e heteronomia na pesquisa acadêmica (1950-1990)

governo diante da abrangência e da magnitude de Pesquisas, o processo de institucionalização


dos impactos dos avanços científicos e tecno- das agencias de fomento ampliou o controle do
lógicos; e o potencial do progresso da ciência e Estado (e grupos particularistas) sobre a já dé-
da tecnologia para a qualidade de vida da popu- bil autonomia universitária.
lação brasileira, fundamentado especialmente Existem sólidas evidências de que toda a
nos setores industrial, agrícola e de serviços. trajetória das políticas de C&T contribuiu para
Para o pleno exercício de suas atividades, a consolidação de uma produção científica in-
foram absorvidos e vinculados ao MCT o Con- capaz de romper, sistemicamente, com a de-
selho Nacional de Informática e Automação pendência e a heteronomia. Ou seja, aqueles
– Conin, a Secretaria Especial de Informática que durante as quatro últimas décadas propa-
– SEI, a Fundação Centro Tecnológico para gandearam que as políticas desenvolvidas no
Informática – CTI, os Distritos de Exportação Brasil para C&T levariam o país ao desenvolvi-
de Informática, o Fundo Especial de Informá- mento, na verdade fortaleceram a heteronomia
tica e Automação, a Comissão de Cartografia da produção científica da pós-graduação.
– Cocas, a Financiadora de Projetos – Finep Mesmo durante nos anos 1970, o auge dos
e o Conselho Nacional de Desenvolvimento maiores investimentos financeiros em C&T, as
Científico e Tecnológico – CNPq. O quadro de políticas não foram de fortalecimento de uma
pessoal destes órgãos também foi transferido ao produção científica independente, determinada
Ministério, assim como funções da Secretaria a encontrar saídas para os grandes problemas
de Planejamento da Presidência no que se refe- da maioria da população brasileira; ao contrá-
re especificamente à coordenação, planejamen- rio, as políticas objetivaram potencializar as
to e execução das finalidades e competências relações econômicas com os países centrais.
estabelecidas no âmbito do decreto. A estagnação financeira e a instabilidade po-
Outra questão a ser destacada foi a transfe- lítica configuraram um período de escassez
rência para a MCT do Conselho Consultivo e dos investimentos direcionados à C&T, o que
Tecnológico – CCT, colegiado máximo do SN- agravou a situação das universidades e institu-
DCT e anteriormente vinculado ao CNPq e de tos, levando parte considerável da comunidade
caráter consultivo. Além de ser transferido, foi cientifica a se insurgir contra as políticas da
alterado no sentido de redução do número de Nova República que rapidamente provocaram
participantes, passando a ser deliberativo. Ade- frustração em muitos setores que apoiaram a
mais, foi estimulada a criação de comissões, via de transição pelo alto.
temporárias ou setoriais de acordo com a situa- Este artigo buscou estabelecer a relação
ção específica. entre o processo de desenvolvimento de C&T
A análise documental que envolveu este com as políticas “modernizadoras” encaminha-
estudo confirmou nossa hipótese de que as re- das pelos países centrais e suas agências, em
lações parceiras entre frações burguesas locais parceria com as frações burguesas locais. Ob-
e dos países centrais, constituindo o que Fer- jetivando tornar pensável o processo de consti-
nandes (2009) definiu como capitalismo depen- tuição das políticas desenvolvimentistas como
dente, foram e são um elemento determinante elemento determinante para a consolidação da
na constituição das políticas de C&T no Bra- heteronomia na educação superior e na pes-
sil. Desde a constituição dos conselhos, marco quisa realizada no Brasil, o estudo examinou
inicial do estabelecimento de uma nova relação os conselhos de pesquisa, os planos básicos, a
Estado-ciência no Brasil, passando pela dita- reorganização do aparato de C&T na Seplan e a
dura civil-militar, período da regulamentação e política de editais engendrada no PADCT.
planificação da distribuição de recursos e, por O conhecimento das políticas do período
fim, com a crise financeira mundial de 1980 e da modernização conservadora da ditadura
a definição do financiamento através de Editais civil-militar é relevante em um contexto de

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Simone Silva, Roberto Leher 133

inusitada reedição do discurso do desenvol- universidade como organização de serviços,


vimentismo, agora denominado como neo- seja através da formação de uma mão de obra
desenvolvimentismo. Segundo Schwartzman técnica especializada para atender às rebaixa-
(2001), as políticas da ditadura foram inter- das demandas de força de trabalho, seja pela
pretadas como positivas, pois, prestação de serviços técnico-científicos deno-
minados atualmente como inovação.
o estudo de 1993-94 dizia que, vinte e
cinco anos depois, o sistema brasilei- Referências Bibliográicas
ro de ciência e tecnologia ainda estava
configurado nos termos do “modelo CARDOSO, M. L. Ideologia do desenvolvi-
Geisel”, estabelecido em meados dos mento: Brasil: JK – JQ. Rio de Janeiro: Editora
anos 70 e já em decadência no início Paz e Terra, 1978.
dos anos 80. Apesar de sua brevíssima
duração, foi um período que deixou FLORESTAN, F.. Sociedade de classes e sub-
saudades entre muitos cientistas e pes- desenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.
quisadores, pela abundância relativa de
recursos, pela facilidade com que pro- _____. Capitalismo dependente e classes so-
jetos eram aprovados, pelas inovações ciais na América Latina. 4ª Ed. São Paulo: Glo-
institucionais que ocorreram (como, bal, 2009.
por exemplo, a criação da Coordenado-
ria de Programas de Pós-graduação em _____. A revolução burguesa no Brasil. Rio de
Engenharia – COPPE/UFRJ, e da Uni- Janeiro: Ed. Globo, 2008.
versidade de Campinas) e pela crença
que parecia existir no papel da ciência e _____. Universidade Brasileira: reforma ou re-
da tecnologia como instrumento de de- volução. São Paulo: Ed. Alfa – Omega, 1975.
senvolvimento e modernização do País
(Schwartzman, 2001: 6).5 LATTES, C.. Organização da Ciência no Bra-
sil. In: Revista de Ciência e Cultura. Vol.1, nº
Em um breve exame da configuração dos 1-2. São Paulo, 1949, p. 44-45.
editais dos últimos anos, elaborados a partir da
criação dos fundos setoriais no governo de Car- LENIN, V. I. O desenvolvimento do capitalis-
doso e, mais recentemente, da Lei de Inovação mo na Rússia: o processo de formação do mer-
Tecnológica no governo de Lula, indagamos se cado interno para a grande indústria. 2.ed. São
os desdobramentos da heteronomia empreendi- Paulo: Nova Cultural, 1985 (1899).
da pela “reforma consentida da universidade”
(Fernandes, 1975) não contribuíram para a na- OLIVEIRA, F. Crítica à razão dualista. O or-
turalização do modelo heteronômico dos atuais nitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.
editais. De fato, decorre da lei de inovação tec-
nológica a elaboração de editais diretamente ROMANI, J. P. O conselho nacional de pesqui-
pelo setor empresarial. A defesa da presença sa e institucionalização da pesquisa científica
empresarial tem como fundamento a ideolo- no Brasil. In: Schwartzman, Simon. Universi-
gia do neodesenvolvimento, ironicamente em dade e Instituições Científicas no Rio de Janei-
um contexto em que os laços que conformam ro. Brasilia, CNPq, 1982, p. 135-166.
o capitalismo dependente se aprofundaram, re-
duzindo, ainda mais, os espaços contraditórios ROSTOW, W.W. The stages of economic
da universidade. O maior risco desses editais é growth. A non-comunist manifesto. 3.Ed. Lon-
justo o aprofundamento da reconfiguração da dres. Cambridge University Press, 1960.

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134 Financiamento e heteronomia na pesquisa acadêmica (1950-1990)

SCHWARTZMAN, S. Um espaço para a ciên-


cia. A formação da Comunidade Científica no
Brasil. Brasília: Ministério da Ciência e Tecno-
logia, Centro de Estudos Estratégicos, 2001.

STAL, E.; CERANTOLA, W. A. PADCT: uma


avaliação preliminar do subprograma de ins-
trumentação. Revista de Administração, São
Paulo 24(2): 83-89, abril/junho 1989.

TROTSKY, L. A história da Revolução Russa.


São Paulo: Editora Sundermann, 2007.

Notas

1
Relatório de Atividades do CNPq, 1985.

2
Plano Quinquenal (1968-1972) – CNPq,
Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
Arquivo Mast.

3
Trecho extraído do II PBDCT.

4
Trecho extraído do III PBDCT

5
Seplan – CNPq 1980-1985 – Uma Expe-
riência de Gestão em Ciência e Tecnologia

Simone Silva
* Técnico-administrativo da UFRJ. Mes-
tre em Educação pelo PPGE/UFRJ.
Pesquisadora do Colemarx/FE/UFRJ.
E-mail: silva.simone@gmail.com

Roberto Leher
** Professor Titular – FE/UFRJ. Pes-
quisador do CNPQ. Bolsista Sênior
da Cátedra para o Desenvolvimen-
to Ipea/Capes (Florestan Fernandes).
E-mail: leher.roberto@gmail.com

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135

artiGo

A ditadura dos empreiteiros:


as empresas nacionais de construção pesada, suas
formas associativas e o Estado brasileiro (1964-1985)

Pedro Henrique Pedreira Campos*

Resumo: As empreiteiras nacionais têm hoje grande importância na economia brasileira, com forte projeção interna-
cional e ramiicação em suas atividades. Este artigo pretende analisar as raízes do poderio dessas empresas no período
da ditadura civil-militar, quando elas se consolidaram como grandes grupos privados nacionais e iniciaram suas ativi-
dades fora do país. Organizados em entidades privadas como associações e sindicatos, os empreiteiros tiveram intensa
atividade nos mais de vinte anos do regime autoritário e agiram correntemente junto ao aparelho de Estado, pautando
e determinando as políticas públicas, inclusive os grandes projetos de engenharia da ditadura. Pode-se dizer que os
empresários nacionais da indústria de construção pesada estiveram profundamente articulados à ditadura civil-militar
brasileira, tendo aderido ao regime e sendo responsáveis pelo mesmo, junto com outros empresários e grupos sociais.

Palavras-chaves: empreiteiras; indústria de construção pesada; ditadura civil-militar brasileira (1964-1985)

Abstract: The national heavy consctruction enterprises have great importance today in the Brazilian economy, with
strong international projection and ramiication in their activities. This article intends to analyze the roots of the might
of those companies in the period of the civil-military dictatorship, when they consolidated as national great groups and
began their activities out of the country. Organized in entities deprived as associations and unions, the contractors had
intense activity than the more of twenty years of authoritarian regime and they acted very close to the apparel of State,
ruling and determining the public politics, besides the great projects of engineering of the dictatorship. It can be said that
the national entrepreneurs of the industry of heavy construction were deeply articulated to the Brazilian civil-military
dictatorship, having stuck to the regime and being responsible for the same, with other entrepreneurs and social groups.

Keywords: contractors; hevy construction industry; brazilian civil-military dictatorship (1964-1985)

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136 A ditadura dos empreiteiros:

A economia brasileira apresenta na atuali- que elas nos auxiliaram bastante a compor o
dade alguns setores e grupos empresariais bas- trabalho final, bem como a tentar definir uma
tante fortes e expressivos. Para além do setor orientação mais original para a pesquisa.
bancário, mineral, do agronegócio e alguns Notamos nos estudos correntes sobre o tema
ramos industriais, chamam a atenção os con- algumas lacunas, pelas quais não se deve culpar
glomerados liderados pelas maiores empresas os referidos estudiosos, mas apenas sinalizar a
de obras públicas do país. As empreiteiras na- amplitude do assunto, bem como o caráter ain-
cionais tiveram como um momento-chave de da diminuto das pesquisas realizadas sobre o
seu período de expansão a ditadura civil-mi- mesmo. No tocante ao tema, notamos a ausên-
litar inaugurada nos anos 1960. A proposta do cia de estudos mais aprofundados sobre as en-
presente artigo1 é analisar em linhas gerais o tidades de classe dos empreiteiros, ou melhor,
desenvolvimento das empresas do setor ao lon- seus aparelhos da sociedade civil. Além disso,
go do regime. apesar de haver trabalhos sobre a relação entre
Em meados de 2007, diante do Plano de empreiteiros e política, nenhum deles discorreu
Aceleração do Crescimento (PAC) e de outras sobre a interface entre esses empresários e a di-
políticas estatais do governo Inácio da Silva, tadura civil-militar brasileira de 1964. No que
chamou-nos a atenção o forte poderio econô- corresponde a aspectos de ordem teórico-me-
mico e político das maiores empresas nacio- todológica, verificamos a ausência de pesqui-
nais de engenharia. Tal projeção nos motivou sas assentadas na matriz teórico-conceitual do
a transformar essa constatação que nos insti- materialismo histórico nos estudos específicos
gava em um projeto de pesquisa. Partimos de sobre os empreiteiros. Além disso, apesar do
uma vaga sugestão de que talvez o período da tratamento multidisciplinar dado ao tema, nota-
ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) e mos a escassez de uma abordagem histórica do
seus grandes projetos no campo da engenharia referido problema, em que pese o trabalho com
fossem nos dar respostas acerca do processo de os primados da totalidade e da historicidade. É
crescimento e consolidação das principais fir- justamente nessas lacunas que tentamos cons-
mas do setor de construção pesada2 nacionais. truir a orientação do nosso objeto, propondo as-
Ao longo do processo de pesquisa e trabalho sim preencher essa ausência na bibliografia que
com as fontes, verificamos que nossa hipótese aborda o tema.
inicial tinha certo fundamento. Nosso objetivo na pesquisa era entender as
Existe uma razoável quantidade de pes- raízes do processo de fortalecimento das em-
quisadores que já realizou estudos sobre os preiteiras nacionais e para tal voltamos a análise
empreiteiros de obras públicas nacionais. Um para o Estado e as políticas públicas. Para com-
grupo ligado ao Instituto de Economia da UFRJ preender a sociedade política, nos pautamos em
contribuiu com estudos bastante ricos sobre o uma concepção marxista gramsciana de Estado,
período aqui trabalhado, trazendo dados, infor- tomando para tal a metodologia de pesquisa for-
mações e levantamento de material e análise mulada por Sonia Regina de Mendonça:
sobre o assunto3. Na Unicamp, há análises da
função e participação dos empreiteiros na po- Sabendo que tais interesses só terão for-
lítica, dando subsídios para a compreensão da ça política uma vez que organizados e
ascensão do seu poder4. Outros textos abordam que tal organização – ou construção da
indiretamente esses empresários, ao tratar de vontade coletiva – tem como espaço
grandes obras e projetos da ditadura5, ou então os aparelhos privados de hegemonia,
de políticas e agências estatais que sofrem in- localizados junto à sociedade civil, te-
fluência, pressão e inserção por parte dos em- mos como primeiro passo para o estu-
preiteiros6. Tomamos contato com essas pes- do de qualquer agência ou política es-
quisas em nossos estudos de doutorado, sendo tatal, o rastreamento das entidades de

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Pedro Henrique Pedreira Campos 137

classe existentes no momento histórico período trabalhado, além das fontes produzidas
focalizado, suas principais demandas diretamente pelo aparelho de Estado13. Com
ou pressões setoriais, assim como sua esse conjunto documental, conseguimos pro-
busca pelo aparelhamento de seus qua- ceder uma certa reconstrução do objeto anali-
dros junto a este ou aquele organismo sado, os aparelhos privados de hegemonia dos
do Estado, mesmo que isso se traduza empreiteiros, porém, não sem alguns lapsos e
na necessidade de criação de um novo ausências.
órgão. Logo, vê-se que, para chegarmos O recorte temporal utilizado vai do golpe de
ao Estado em sentido estrito, é necessá- Estado de primeiro de abril de 1964 até o final
rio partir do estudo da sociedade civil, e do governo Figueiredo, no início de 1985. Es-
não o contrário, como costumeiramente tamos de acordo com o apontamento de Renato
se tem feito.7 [grifo nosso] Lemos em seus textos14 e em nossa defesa de
tese segundo a qual o regime político ditatorial
Nesse sentido, para compreender o Esta- só chegou de fato ao fim com o estabelecimen-
do, é preciso ter em mente a organização das to de um novo marco constitucional a partir da
classes sociais e suas frações no âmbito da so- Carta de 1988. Em nossa pesquisa, entretanto,
ciedade civil. Partindo desse postulado meto- restringimo-nos até o final da gestão do general
dológico, assim organizamos nossa pesquisa, Figueiredo, momento importante no processo
analisando em princípio a sociedade civil no de transição política, apesar de ressaltar vários
período analisado, em particular os aparelhos elementos de continuidade no período Sarney,
privados de hegemonia dos agentes focados – em particular no que se refere à interface entre
os empresários do setor de construção pesada. os empreiteiros e a sociedade política.
Após o conhecimento sobre as formas organi-
zativas dos empreiteiros e de outros grupos so- Empreiteiros e ditadura
ciais, partimos para a abordagem do Estado e
das políticas públicas, verificando em que me- Verificamos ao longo de nossa pesquisa
dida estas correspondem aos anseios e projetos como houve um fortalecimento recíproco e
dos empresários da construção. uma retroalimentação na parceria entre em-
Tendo como objeto privilegiado de estudos presários brasileiros da construção pesada e o
a sociedade civil, fomos à busca das associa- projeto do regime implantado a partir de 1964.
ções de empreiteiros e empresas de engenharia Para proceder uma análise sintética, é necessá-
de modo a trabalhar com seus conjuntos docu- rio retomar certas conclusões parciais alcança-
mentais. No entanto, tivemos dificuldade para das ao longo da tese.
obter o aceite dessas instituições para pesqui- Vimos inicialmente, no que diz respeito
sar em seus arquivos ou mesmo realizar entre- à trajetória histórica do setor da indústria da
vistas. Diante dessa recusa, também encontra- construção pesada no Brasil, que a consolida-
da por outros pesquisadores do mesmo tema8, ção de um mercado nacional para as empresas
resolvemos proceder um estudo dos aparelhos desse ramo se deu consoante a implementação
privados de hegemonia dos empreiteiros atra- da economia industrial capitalista, com suas
vés de fontes indiretas. Assim, consultamos demandas de infra-estrutura para as fábricas
revistas especializadas sobre a construção pe- e para as cidades. Se antes, ao proporcionar a
sada9, publicações comemorativas e memoria- infra-estrutura do sistema primário-exportador,
lísticas dos sindicatos e associações10, outros havia a preponderância dos capitais e empresas
materiais de divulgação dessas mesmas enti- de engenharia estrangeiras, com a estatização
dades11, memórias de empresários e agentes re- da demanda das obras públicas, ocorrida dos
lacionados ao objeto em estudo12, algumas en- anos 20 aos 60, houve uma priorização das fir-
trevistas com sujeitos envolvidos com o tema e mas nacionais para a realização dos serviços, o

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138 A ditadura dos empreiteiros:

que levou à conformação de um mercado na- para as obras, com concentração das atividades
cional para as empreiteiras brasileiras. O novo em empreendimentos de grande porte, geridos
modelo de desenvolvimento que começou a por poucas empresas, o que levou a uma centra-
tomar forma na década de 1930 incluía a cons- lização de capitais no setor. A ditadura semeou
tituição e a acumulação de fundos estatais para assim a formação de grandes conglomerados
a realização de obras de infra-estrutura nos se- nacionais da construção pesada, o que levou
tores de transporte, energia e outros. Uma das a uma reação negativa dos pequenos e médios
frações do empresariado mais beneficiadas empreiteiros no final do regime, momento em
com os investimentos nesses setores foram os que eles estavam deslocados do mercado de
empreiteiros de obras públicas, que viram suas obras. O processo de incentivo ao grande ca-
oportunidades de ampliação de negócios e acu- pital ficou ainda mais patente com o “convite”
mulação de capitais se expandir à medida que o governamental, por meio de políticas favorá-
governo realizava gastos sob a justificativa de veis, à ramificação e diversificação das ativi-
atingir o “desenvolvimento nacional”15. dades das maiores empresas de engenharia – o
As principais empresas do setor eram con- que ocorreu paralelamente ao incentivo à reali-
troladas por famílias, que se expandiram e se zação de obras no exterior –, fazendo com que
consolidaram por meio da inserção nas frações elas passassem a atuar em ramos como a agri-
dominantes dos grupos políticos e empresariais cultura, mineração, siderurgia, petroquímica e
locais e regionais, o que incluía uma atuação outros setores industriais. Com isso, no final da
junto aos aparelhos da sociedade civil e nas ditadura, despontavam quatro grandes grupos
agências da sociedade política de cada estado econômicos nacionais, liderados por empreitei-
da federação. Foi por meio dessas relações ras (Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez, Nor-
que eles foram guindados a um porte nacio- berto Odebrecht e Mendes Júnior), ao lado de
nal, atuando em agências federais contratado- outras pequenas e médias firmas em decadência
ras de obras. Destaque especial nesse processo ou em estado de falência17.
tiveram os empresários da construção pesada Após a análise da trajetória histórica do
sediados em Minas Gerais e São Paulo. Atra- setor, abordamos a organização dos empresá-
vés de uma vigorosa organização em associa- rios da construção em aparelhos da socieda-
ções locais e atuando nos projetos estaduais de de civil. Vimos como os empreiteiros tiveram
desenvolvimento da infra-estrutura industrial, uma intensa articulação em diversos aparelhos
esses empresários se projetaram dentre os gru- privados de hegemonia, com forte movimen-
pos mais poderosos da construção civil nacio- tação para formular projetos, atuar no merca-
nal ao longo da ditadura16. do na forma de cartéis, agir junto a agências
O período JK foi o momento fundamental específicas do aparelho de Estado e fazer-se
para a consolidação de um mercado nacional de representar diretamente na sociedade política.
obras públicas e, durante a ditadura, o nível de As primeiras formas de organização integradas
atividades do setor chegou a um patamar ain- pelos empresários do setor foram as associa-
da superior e inédito na história nacional, com ções de engenheiros, como o Clube de Enge-
a realização de grandes projetos nas áreas de nharia do Rio de Janeiro (criado em 1880), o
transporte e energia, dentre outras. Na primei- Instituto de Engenharia de São Paulo (de 1917)
ra metade do regime, o modelo de desenvolvi- e a Sociedade Mineira de Engenharia (fundada
mento do período Kubitschek foi reafirmado, em 1931). Tais entidades, mais do que orga-
com grande soma de serviços demandados aos nizações corporativistas ou profissionais, eram
empreiteiros, principalmente na forma de es- órgãos de classe, com a predominância dos
tradas de rodagens e usinas hidrelétricas. Já na empresários do setor da engenharia, tendo im-
segunda metade do regime, houve uma estag- portante atuação junto à sociedade política, em
nação e, depois, redução do volume de recursos particular as de caráter local18.

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Pedro Henrique Pedreira Campos 139

As primeiras organizações específicas de junto à imprensa, poder estabelecido em certas


empreiteiros surgiram em âmbito regional, agências estatais e ampla representação junto
com a formação de entidades como a Apeop ao aparelho de Estado. A força política do Sini-
(Associação Paulista dos Empreiteiros de con ao longo da ditadura parece ter sido crucial,
Obras Públicas, de 1947), o Sicepot-MG (Sin- após uma participação decisiva de empresários
dicato da Construção Pesada do Estado de Mi- do sindicato na conspiração empresarial-militar
nas Gerais, de 1968), o Sinicesp (Sindicato da e no golpe de Estado que derrubou o presidente
Indústria da Construção Pesada do Estado de João Goulart20.
São Paulo, de 1967) e a Aeerj (Associação dos Havia outras entidades organizadas pelos
Empreiteiros do Estado do Rio de Janeiro, de empreiteiros de obras e também organismos da
1975). Estas foram formas pioneiras de organi- sociedade civil que contavam com esses em-
zação dos empresários da construção pesada e presários, como foi o caso do Ipes (Instituto de
tinham como alvo preferencial os aparelhos de Pesquisas e Estudos Sociais)21, que tinha repre-
Estado de dimensão municipal e estadual, com sentantes do Sinicon e de outras entidades. Os
suas agências específicas. Essas associações, empreiteiros brasileiros e seus representantes
além de atuar frequentemente junto ao aparato no aparelho de Estado tinham também articu-
estatal para pressionar por projetos e influen- lações e contatos internacionais, participando
ciar a aplicação de certas diretrizes e políticas de entidades como o IRF (International Road
públicas, ainda eram centros para acertos entre Federation) e a FIIC (Federação Internacional
os empresários ali reunidos. Nesses espaços, da Indústria da Construção)22.
os empreiteiros dividiam obras entre si, acer- Analisando a sociedade civil no Brasil du-
tavam os preços de alguns projetos, lances a rante a ditadura (1964-1988), vimos vários
serem dados em concorrências e margens de exemplos do que Virgínia Fontes chamou de
ganho a serem praticadas. Enfim, as entidades ampliação seletiva do Estado23. Ao longo do re-
de classe dos empreiteiros (tanto as regionais gime, foram fundados vários aparelhos privados
como as nacionais), além do caráter básico de hegemonia do empresariado, com destaque
de núcleo catalisador das relações entre esses para os relacionados aos empresários da indús-
empresários, era ambiente para a realização de tria de construção, como a Abemi (Associação
práticas cartelistas19. Brasileira de Engenharia Industrial, de 1964), a
A partir dos anos 1950, foram formadas as Abes (Associação Brasileira de Engenharia Sa-
primeiras organizações de construtoras de es- nitária, de 1966), o Sicepot-MG (1968), o Sini-
cala nacional, como Abeop (Associação Bra- cesp (1968), a Aeerj (1975) e outras. Enquanto
sileira dos Empreiteiros de Obras Públicas, de isso, as organizações populares eram reprimi-
1953), a CBIC (Câmara Brasileira da Indústria das e até proibidas, o que fez com que, após
da Construção, de 1957) e o Sinicon (Sindica- o regime, houvesse uma figuração desigual na
to Nacional da Construção Pesada, de 1959). arena da luta de classes na sociedade civil, já
Dentre essas, merece destaque a terceira delas, que as formas associativas da classe dominan-
que agremiava apenas empreiteiros e que tinha te se proliferaram e se fortaleceram durante o
atuação privilegiada junto a ministérios e agên- regime, ao passo que as formas de organização
cias estatais, como o Ministério dos Transpor- popular foram desestruturadas ou bloqueadas24.
tes (MT) e o Ministério de Minas e Energia Após a abordagem da organização dos em-
(MME), além de organismos a eles subordi- preiteiros em entidades privadas, analisamos
nados, como o DNER (Departamento Nacio- a atuação desses empresários, a partir de suas
nal de Estradas de Rodagem). O Sinicon agia formas organizativas ou por outros meios, junto
como um autêntico partido dos empreiteiros, à sociedade como um todo, com ações endere-
dada a sua representação das empresas do se- çadas à sociedade civil e à sociedade política.
tor, forte movimentação política, intensa ação O que se viu foi uma movimentação expressiva

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140 A ditadura dos empreiteiros:

dos empreiteiros, com atuação em debates pú- empresários atuavam também em outros veícu-
blicos, incursões junto à imprensa, articulação los de informação, com financiamentos à im-
de frentes, campanhas e grupos de interesse prensa, reportagens pagas e matérias encomen-
junto a outros empresários e a agentes posicio- dadas que exaltavam suas obras e principais
nados no aparelho de Estado25. representantes políticos desses empresários no
Verificamos uma expressiva produção de aparelho estatal. Revistas específicas do setor,
ideologias por essa fração do empresariado in- como o periódico mensal O Empreiteiro, tra-
dustrial, que tentavam difundir para toda a so- ziam suas noções de mundo e projetos e eram
ciedade seus valores e concepções de mundo. distribuídas gratuitamente para agentes do po-
Vimos um certo tom desenvolvimentista no der público na ditadura, de modo a pressionar
discurso dos empreiteiros e seus representantes, as agências do Estado por políticas favoráveis e
com a defesa do desenvolvimento como meio projetos específicos de obras27.
para resolução dos problemas nacionais, sendo Além disso, os empresários da engenharia
necessária, para sua implementação, uma infra se mobilizaram em torno de algumas campa-
-estrutura adequada na forma de estradas, fer- nhas durante o regime. A maior delas foi a que
rovias, centrais elétricas, redes de transmissão e reuniu forças contra a atuação de empresas es-
distribuição etc. Ao longo do processo de tran- trangeiras no setor da construção no período
sição política da ditadura para o regime consti- Castello Branco, a chamada campanha “em
tucional legal, houve uma certa transformação defesa da engenharia nacional”, e que calhou,
do discurso de parcela significativa dos emprei- após forte articulação e atuação das entidades e
teiros, que abraçaram com vigor os apelos dos empresários da engenharia28, na decisão gover-
grupos populares, defendendo investimentos namental de 1969 que instituía uma reserva de
em projetos de cunho social, como hospitais, mercado no setor de obras públicas e trabalhos
escolas e redes de saneamento básico. Assim, de projetos, consultoria etc, proibindo a atuação
os empreiteiros “modernizavam” e atualizavam das firmas de fora do país no setor. Outras cam-
o seu discurso em função da nova realidade panhas foram contra a participação de agências
política do país, ao passo que mantinham suas estatais em obras, como os batalhões de en-
atividades, ao deslocar o campo preferencial genharia do exército, que realizavam projetos
de atuação dos setores de energia e transportes como rodovias; a campanha contra os cortes
para a construção de edifícios e obras ligadas governamentais e a em favor da “moralização
aos investimentos em Saúde e Educação26. das concorrências”, esta última conduzida prin-
De porte de seus valores e ideias, os emprei- cipalmente pelas pequenas e médias empreitei-
teiros atuaram junto à imprensa e outros órgãos ras, deslocadas das licitações públicas no final
de divulgação para obter apoio às políticas de da ditadura, em meio à redução dos investimen-
seu interesse, ou formar uma adesão social mais tos em empreendimentos estatais29.
ampla aos seus projetos e objetivos. Desenvol- Vimos também como os empreiteiros se ar-
veram forte atuação na imprensa, com a toma- ticulavam com outros empresários, nacionais
da do controle dos jornais Correio da Manhã e e estrangeiros, com parlamentares e militares,
Última Hora por parte dos donos da construtora o que lhes rendia ingresso junto às agências
carioca Metropolitana, além da compra do gru- estatais e força dentro delas. No período da
po Visão por Henry Maksoud, da empreiteira ditadura, era especificamente comum que as
Hidroservice. Nesses organismos de informa- empresas e associações do setor empregassem
ção, os empreiteiros viravam sócios do projeto oficiais militares em seus quadros, o que servia
de suporte e defesa da ditadura, substituindo de instrumento para facilitar acertos com ou-
linhas editoriais antes independentes e críticas tros militares que cumpriam funções em agên-
por orientações que aproximavam esses perió- cias do Estado. Para tal, ajudava o contato e a
dicos de órgãos de comunicação oficiais. Os

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Pedro Henrique Pedreira Campos 141

proximidade da formação de engenheiros civis das empresas do setor se deu em função de uma
e de oficiais do ramo da engenharia militar30. forte e clara atuação dos representantes desses
Analisamos também os principais intelec- empresários nos postos-chave do aparelho de
tuais orgânicos e representantes do setor, que Estado, o que incluía uma seleção dos princi-
tiveram posições e projeção vigorosas no re- pais empresários a serem beneficiados, acaban-
gime, em demonstração do poder desses em- do por conformar os líderes do capital monopo-
presários. O principal nome que expressava lista no setor.
a força dos empreiteiros era o coronel Mário Analisando o Estado e as políticas públicas,
David Andreazza, ministro dos Transportes en- em primeiro lugar mapeamos as mais importan-
tre 1967 e 1974 e do Interior de 1979 a 1985. tes agências do aparelho estatal sob a influência
Andreazza foi uma espécie de “novo príncipe” e atuação dos empresários do setor, o que in-
dos empreiteiros, ao figurar como representan- cluía o Ministério dos Transportes, o Ministério
te máximo desses empresários no aparelho de de Minas e Energia e o Ministério do Interior,
Estado ao longo da ditadura. Alguns constru- além das agências específicas dessas pastas,
tores investiram firmemente em sua projeção como o Departamento Nacional de Estradas de
política, engajando-se na tentativa de transfor- Rodagem (DNER), a Eletrobrás, o Banco Na-
má-lo em presidente da República na sucessão cional de Habitação (BNH), além de outras em-
de 1985. Já um exemplo de intelectual orgânico presas estatais. Notamos uma forte articulação
do setor foi o engenheiro Eduardo Celestino dos titulares dessas agências com os empreitei-
Rodrigues, que era dirigente e acionista da em- ros e suas organizações e também a presença
preiteira paulista Cetenco. Celestino teve forte dos seus aparelhos privados de hegemonia e de
atividade nas entidades empresariais de cons- empresários específicos junto a essas agências
trutoras, tendo presidido a Apeop (Associação estatais. A nomeação dos titulares dessas pas-
Paulista dos Empreiteiros de Obras Públicas) tas e agências parecia passar por uma espécie
e o IE (Instituto de Engenharia de São Paulo), de crivo prévio dos empresários do setor e das
além de ter figurado na diretoria do Sinicon e associações de empreiteiros, que, além disso,
de outros aparelhos privados de hegemonia da gozavam de ampla representação nos postos
construção. Professor da USP e autor de uma intermediários dos ministérios e das estatais33.
extensa obra técnica sobre os problemas nacio- A partir desse posicionamento dos emprei-
nais de energia e transportes31, Celestino Ro- teiros no aparelho estatal, analisamos as polí-
drigues defendia projetos específicos, como o ticas públicas do regime ditatorial que tinham
Pró-Álcool e a construção de ferrovias, o que consequências diretas ou indiretas para as em-
correspondeu às diretrizes que conduziram as presas de construção pesada. Notamos um in-
políticas nacionais após 1974. O empresário tenso beneficiamento dos empresários do se-
assumiu ainda posições destacadas no aparelho tor pelas políticas do período, seja através de
de Estado, ao ser assessor do ministro de Minas medidas mais gerais, como o arrocho salarial
e Energia e secretário-executivo da Comissão e o favorecimento de empresas intensivas em
Nacional de Energia no governo Figueiredo32. contratação de força de trabalho, como em me-
Após a análise dos organismos privados dos didas específicas, como reserva de mercado,
empreiteiros e sua atuação junto à sociedade, isenções, incentivos, subsídios e ampla eleva-
abordamos o aparelho de Estado e as políticas ção dos recursos orientados para investimentos
públicas da ditadura para o setor de construção em obras de infra-estrutura34.
pesada, notando forte beneficiamento e prote- Com as reformas tributárias realizadas du-
ção a esse ramo industrial, sob a justificativa rante a implementação do Plano de Ação Eco-
de se tratar de um setor de segurança nacional e nômica do Governo (Paeg) e após o AI-5, com
também com a tese da defesa da empresa nacio- o Congresso Nacional fechado, a carga tributá-
nal. Tentamos mostrar como o fortalecimento ria no Brasil foi reforçada, indo de 16,1% em

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142 A ditadura dos empreiteiros:

1963 para 26% em 197035. O incremento desses acidentes de trabalho. Nesses acidentes, a culpa
recursos do fundo público foi absorvido funda- recaía sobre as próprias vítimas, ou melhor, os
mentalmente por alguns grupos e setores eco- operários dos canteiros de obras, e o país apre-
nômicos mais restritos, em detrimento do aten- sentava cifras das mais elevadas do mundo em
dimento das demandas mais diretas e imediatas acidentes trabalhistas. Diante dessas condições
das classes subalternas. Nos gastos orçamentá- precárias de trabalho, remuneração e segurança,
rios, a ditadura restringiu significativamente as no período final da ditadura, ocorreram greves e
verbas antes endereçadas à área social, apesar rebeliões dos trabalhadores da construção civil,
da elevação na arrecadação de impostos. Assim, como a revolta dos operários da construção em
na Saúde, os recursos foram de 4,29% do orça- Belo Horizonte em 1978 e a insurreição dos bar-
mento da União em 1966 para 0,99% em 1974. rageiros em Tucuruí em 198039.
Na Educação, os gastos correspondiam a 10,6% Outro exemplo de favorecimento aos em-
do orçamento federal em 1965 e, em 1975, eram presários do setor ficou expresso nos suntuo-
apenas 4,3%36. Em sentido contrário, os Trans- sos projetos de engenharia da ditadura, como as
portes tinham o maior orçamento da esplanada grandes rodovias e centrais hidrelétricas. Além
dos ministérios, correspondendo a 9,35% de de serem obras que beneficiavam e garantiam o
todo o orçamento federal em 197437. Os gastos lucro dos empreiteiros e outros empresários, es-
públicos nas áreas de infra-estrutura de transpor- sas “estranhas catedrais” tinham seus projetos
tes e energia no período eram, no entanto, ainda muitas vezes elaborados pelos próprios empre-
maiores, já que as agências desses dois setores sários da engenharia e organizações do setor,
gozavam de amplas linhas de crédito de insti- exprimindo justamente o poder dos construto-
tuições financeiras multilaterais e bancos do ex- res no regime. A implementação dessas obras
terior. A taxa de investimentos foi de 14,7% do como principais marcos e legados do regime
PIB em 1965 para 23,3% em 1975. Em última evidencia, de certa forma, o poder central que
instância, recursos eram retirados da área social os empresários da engenharia tinham no acerto
e dos gastos correntes para serem investidos em político da ditadura. Obras como a hidrelétrica
grandes projetos de engenharia, para benefício de Itaipu, a rodovia Transamazônica, as usinas
das empreiteiras de obras públicas e toda a ca- nucleares de Angra dos Reis, a Ferrovia do Aço,
deia produtiva da construção civil. As emprei- o projeto de mineração Carajás, os trens metro-
teiras e outras frações do empresariado ditavam politanos urbanos de Rio e São Paulo, a pon-
a prioridade das políticas públicas, o que ficou te Rio-Niterói e os conjuntos habitacionais do
explícito também no projeto do II PND, que BNH (Banco Nacional de Habitação) viraram
previa um montante de Cr$ 439,4 bilhões para o emblemas do regime autoritário e, ao mesmo
chamado setor de “infra-estrutura econômica”, tempo, representaram ótimos negócios para os
composta pelos gastos em transportes, energia e empreiteiros de obras públicos e outros empre-
telecomunicações. Enquanto isso, o mesmo pla- sários relacionados à indústria de construção40.
no reservava apenas Cr$ 267 bilhões para a área Por fim, analisamos as “tenebrosas transa-
de “recursos humanos”, o que abrangia todos os ções”, ou melhor, as irregularidades envolvendo
gastos nacionais com educação, saúde pública, empreiteiras na ditadura. Percebemos que o uso
saneamento, nutrição e trabalho em um período de mecanismos ilegais pelos empresários estava
de cinco anos38. inserido na própria lógica da acumulação capita-
No tocante às políticas para os trabalhado- lista, sendo usados para três fins básicos: como
res, vimos que, além da política salarial, as me- forma de maximização dos ganhos com a obra, o
didas e diretrizes consoantes à segurança do tra- que ocorria com pedidos de aditivo por parte da
balho acabavam beneficiando os empreiteiros, empreiteira, economia em partes e aspectos da
que empregavam bastante pessoal e eram líde- obra e mudança nas regras legais para viabilizar
res em índices de mortes, doenças de operários e taxas de ganho maiores; como repartição dos

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lucros em um dado empreendimento, o que era no cenário doméstico. Assim, a explicação para
feito através do aliciamento de agentes públi- esse movimento do capital parece se situar
cos e privados que tinham posições no aparelho mais no vigor e novo patamar de acumulação
estatal para contratar ou fiscalizar as empresas de capitais atingido na economia brasileira (em
de obras públicas; e também como anulação da especial em alguns setores) do que em supos-
concorrência e prática monopolista ou oligopo- tas fragilidades ou debilidades do capitalismo
lista por uma ou um grupo de empresas. Em um no país. A atuação das empreiteiras no exterior
regime político no qual estavam amordaçados – realizando investimentos, levando equipa-
ou neutralizados os mecanismos clássicos de mentos, transportando técnicos e engenheiros
controle sobre essas práticas ilegais, como a im- e produzindo obras – pode ser compreendida
prensa, a Justiça e os movimentos populares, o não como uma “exportação de serviços”, mas
uso desses artifícios irregulares se multiplicou como forma específica de exportação de capi-
e se cristalizou como prática corrente no setor. tal, que realiza no exterior uma planta industrial
Com o processo de transição política, abranda- particular e vende uma mercadoria específica, a
dos os mecanismos de cerceamento dos instru- obra pronta44.
mentos de fiscalização, vieram à tona alguns Podemos entender, concordando com Ma-
casos de ilegalidade, que passaram a figurar co- ria Moraes e Guido Mantega45, que a economia
tidianamente nos meios públicos como “escân- brasileira chegou ao fim dos anos 70 mais ma-
dalos” de corrupção41. dura e com um novo padrão de acumulação con-
As empresas brasileiras de engenharia che- solidado. A antes economia dependente e com
garam ao final da ditadura extremamente po- débeis capitais nacionais via então um patamar
derosas. Com o crescimento verificado desde de acumulação de porte monopolista, com o
fins dos anos 1960, as construtoras iniciaram domínio de grupos monopolistas estrangeiros,
um amplo processo de internacionalização, coexistindo, no entanto, com grupos domésti-
realizando obras na América do Sul, África e cos de grande porte. Como afirmam os dois au-
Oriente Médio42. Até 1984, 150 empresas bra- tores, defendido por políticas estatais de amplo
sileiras de engenharia assinaram 444 contratos protecionismo, emergiu no fim da década um
no exterior, em mais de 50 países, concentra- capital monopolista brasileiro, principalmente
dos em volume de recursos nos 66 referentes em três setores-chave: o bancário e financeiro
à construção pesada, em especial os de energia (com grupos como o Moreira Salles, Brades-
e transporte assinados por grandes empreiteiras co e Itaú), o industrial pesado (com os grupos
como Mendes Júnior, Odebrecht, Andrade Gu- empresariais Gerdau, Votorantim, Villares e
tierrez, Camargo Corrêa, Cetenco e Rabello43. outros) e o da construção civil (particularmen-
Auxiliadas pelos financiamentos da Carteira de te com as quatro maiores empresas do setor,
Comércio Exterior do Banco do Brasil (Cacex Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez, Mendes
-BB), as empresas atuaram em outros países, Júnior e Norberto Odebrecht). Esse capital mo-
escudadas por proteção e incentivo estatal, na nopolista da construção pesada, protegido pelas
forma de isenções, empréstimos e ajuda dire- políticas estatais durante a ditadura, conformou
ta da diplomacia brasileira. O processo de in- um oligopólio nacional no setor, passando a ter
ternacionalização das empreiteiras nacionais é um novo grau de acumulação e possuir também
sintoma do grau de capitalização, poder e alta uma projeção internacional, com a realização
capacidade técnica verificados no setor e pode de obras no exterior. Enfim, pode-se dizer que
ser entendido não pela exiguidade do mercado a economia brasileira chegou no período ao pa-
interno ou da redução das demandas de obras drão do capital monopolista e financeiro, com
no país, mas pela própria superacumulação de exportação de capitais, o que teve continuidade
capitais na economia brasileira e redução das ta- nas décadas posteriores, com o fortalecimento
xas de lucro sentidas na indústria de construção econômico e político desses grupos durante a

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144 A ditadura dos empreiteiros:

transição política e reforço de sua atuação in- amordaçamento de mecanismos fiscalizadores,


ternacional e exportação de capitais. como a imprensa, o parlamento e parte da socie-
Acerca do conceito de capital monopolista, dade civil, permitia aos empreiteiros maximizar
é importante frisar dois aspectos. Em primeiro seus lucros com práticas ilícitas e tocar obras
lugar, não estamos entendendo-o em seu sen- com rapidez, agilidade e sem preocupação com
tido estrito, ou melhor, como a condição de os seus impactos sociais dos empreendimentos.
mercado específica em que há apenas um ven- A participação popular e eleitoral limitada ga-
dedor de dada mercadoria, mas sim como um rantia aos empresários do setor ter maior força
capital de grande porte e escala, que geralmente nas agências estatais e junto a figuras presentes
se apresenta como um oligopólio, ou então um em posições-chave do aparelho de Estado, de
monopólio não-puro. Outro aspecto diz respei- modo a pautar as prioridades das políticas pú-
to à relação do capital monopolista com o de- blicas, como grandes rodovias em locais inabi-
senvolvimento do capitalismo. Não estamos de tados e centrais elétricas de grande porte, com
acordo com a noção que enxerga essa forma de forte impacto regional. As demandas popula-
capital como uma etapa ou uma fase particular res e os anseios da maior parte da população
na história do capitalismo, porém entendemos – na forma de saúde, educação, saneamento e
que o capital monopolista é a própria tendência habitação – ficavam restringidos e os recursos
do desenvolvimento do capital com o processo para essas áreas eram desviados para as “neces-
de acumulação. Na nossa concepção, é da pró- sidades” impostas pelos empreiteiros e outros
pria característica específica do capital, da sua empresários, através de seus representantes na
lógica própria, tornar-se cada vez mais centrali- sociedade política. O regime de repressão per-
zado, adquirindo a marca ‘monopolista’. Assim, mitia também que a economia tivesse uma lar-
o que Paul Baran e Paul Sweezy identificaram ga margem de investimentos, com altos índices
na economia norte-americana dos anos 196046 de formação bruta de capital fixo, deixando de
foi um momento no processo de concentração atender a anseios mais diretos da população,
capitalista, em escala menos acentuada do que mas alocando verbas para o custeamento de
a verificada posterior e atualmente, quando há amplos projetos de infraestrutura. Alguns em-
ali um capital monopolista ainda mais centra- presários do setor não só aprovavam a ditadu-
lizado e mundializado do que antes. No caso ra e participavam de seus projetos no setor de
brasileiro, o padrão de acumulação monopolis- obras, como partilhavam de seus valores e con-
ta teve seu princípio no período JK e avançou tribuíam também com sua política de terroris-
nas décadas seguintes, com a presença de gru- mo de Estado, que cassava guerrilheiros, pren-
pos de grande porte estrangeiros e a formação dia-os, torturava-os e assassinava-os. Apesar da
de um capital monopolista residente, protegido heterogeneidade desse grupo de empresários,
pelo aparelho de Estado e políticas públicas nos pode-se dizer que a maioria deles aderiu ao re-
anos 60 e 70 e que passou a se internacionalizar gime, assumiu a ditadura, a aplaudiu e, ao mes-
desde então. mo tempo, a sustentou. Com a ideia do regime
Tendo em conta todas essas conclusões, po- de se auto-identificar com as próprias imagens
demos refletir de maneira mais ampla e sinté- das obras públicas de grande envergadura pos-
tica acerca da relação entre ditadura e emprei- tas em prática durante o período, pode-se dizer
teiros. O regime ditatorial fechado se mostrou que a ditadura tinha a cara dos empreiteiros e os
ambiente bastante adequado para as atividades empreiteiros tinham a cara da ditadura.
e possibilidades de lucros para os empresários Os resultados de nossa tese acabam por re-
do setor. Não à toa, o governo mais elogiado forçar a ideia de que o regime político insti-
pelos empreiteiros foi justamente o mais autori- tuído em 1964 não deve ser entendido como
tário, sendo o que mais reprimiu e torturou pes- uma ditadura militar ou regime militar, com
soas, o do general Emílio Garrastazu Médici. O pleno poder nas mãos dos oficiais das forças

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Pedro Henrique Pedreira Campos 145

armadas ou mesmo preponderância desses so- da obra e impactos positivos questionáveis para
bre outros grupos sociais47. As conclusões de os pequenos agricultores do sertão nordestino.
nossa pesquisa parecem reforçar a noção de As rodovias internacionais da Amazônia foram
que tivemos no Brasil uma ditadura civil-mi- retomadas, com ligações por terra com países
litar, mantida por um pacto político de frações vizinhos, renovando a diretriz principal do pro-
sociais que cruzavam as forças armadas e a jeto da Transamazônica. Por fim, o combali-
sociedade. Concordando com a ponderação de do projeto atômico não foi deixado de lado e
que é preciso qualificar esse elemento civil48, a terceira usina termo-nuclear de Angra deve
enxergamos a força de certos grupos empre- ser completada nos próximos anos. A retomada
sariais sobre outros estratos da sociedade na dessas obras não evidencia apenas a inspira-
sustentação, adesão e composição do regime. ção e admiração dos líderes políticos atuais ao
Sem discordar da leitura que vê no regime uma modelo de desenvolvimento posto em prática
ditadura do grande capital49, entendemos que naqueles tempos – como foi exposto explici-
é preciso destrinchar as frações da classe do- tamente em alguns discursos das principais
minante para melhor entender o suporte dado autoridades estatais do país ultimamente51 –,
ao pacto político encetado em 1964. Nesse mas também um determinado arranjo políti-
sentido, os empresários de setor da construção co que guarda elementos de semelhança com
pesada (ao lado de outros grupos, em especial a sustentação do regime dos anos 1970, com a
no setor industrial e no bancário-financeiro) ti- projeção política dos grandes grupos privados
veram grande figuração e relevância na manu- nacionais de engenharia e todos os seus interes-
tenção do bloco de poder no regime pós-1964, ses, projetos e valores. Essas mesmas compa-
sendo um dos principais grupos sociais respon- nhias foram também diretamente beneficiadas
sáveis pela ditadura brasileira. recentemente por políticas e medidas estatais,
que redundaram na conformação de grandes
“Vai passar”? conglomerados monopolistas da petroquímica
(Odebrecht-Braskem), telefonia (Andrade Gu-
A um governo de empreiteiros, sucede um tierrez-BrOi), distribuição de energia (Camar-
governo de contadores.50 go Corrêa-CPFL/AES), por meio do BNDES,
Nos últimos dez anos, fomos surpreendidos que também incentivou a atuação internacional
com a retomada de vários projetos encetados desses grupos, principalmente com suas obras
no período ditatorial, além de empreendimen- de engenharia.
tos novos que reproduzem certas características A força econômica e política atual desses
daquele modelo de desenvolvimento. Assim, grupos é resultado da forma como se procedeu a
vimos a retomada da construção das grandes transição política no Brasil do regime ditatorial
centrais hidrelétricas – como Belo Monte, pro- para o regime democrático representativo. Com
jetada na ditadura, e as usinas do rio Madeira, a consolidação dos grandes grupos monopolis-
de projeto final mais recente –, com seu gran- tas industriais e bancário-financeiros no final da
de impacto socioambiental. Novas tentativas ditadura e a força dos seus aparelhos privados
foram feitas para a implantação do trem-bala de hegemonia, esses empresários se gabaritaram
entre Rio e São Paulo-Campinas, além da reto- a ter influência no processo da transição políti-
mada da construção da ferrovia Norte-Sul, em- ca, tendo projeção nos governos que seguiram
preendimento iniciado no governo Sarney que ao regime civil-militar. A alternância de poder
segue o padrão das obras da ditadura. Como entre regimes políticos e entre as diferentes
parte do projeto “Nordestão”, de Andreazza, alianças políticas no período constitucional re-
temos visto a implementação da transposição cente tem se dado concomitantemente à manu-
das águas do rio São Francisco, apesar de todas tenção desses grandes grupos junto ao bloco de
as polêmicas e reações às medidas, alto preço poder, apesar das diferentes posições assumidas

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146 A ditadura dos empreiteiros:

em cada período. Mesmo com certas dificulda- uma questão se dá também no que diz respeito ao
des sentidas por essas empresas no novo regime pagamento de indenizações às pessoas que so-
político representativo, visíveis em “escândalos freram com a tortura, a perseguição e o exílio ao
públicos de corrupção” nas quais estão envol- longo do regime. Segundo o modelo adotado no
vidas, além de problemas no exterior e reações Brasil, o Estado é o único onerado por esses pro-
de trabalhadores nos canteiros de obras – o que cessos, com o pagamento de indenizações, sendo
só reafirma a ideia de que elas tinham a cara da que não há incriminação de torturadores, mili-
ditadura e se mantiveram apegadas às práticas tares que cometeram atrocidades e empresários
daquele tempo –, seu poder econômico e políti- que financiaram a repressão e enriqueceram com
co tem se mostrado inabalável. o regime. Recorrentemente são questionados os
O Plano Real e a instauração dos governos Fer- valores dessas indenizações e seu alto custo para
nando Henrique Cardoso e Lula redundaram em as contas públicas nacionais, que têm prioridades
um processo que possibilitou certa superação dos tão urgentes em nosso país. Uma solução possível
conflitos setoriais e regionais da classe dominante seria cobrar essa justa reparação diretamente das
brasileira, abrindo margem para um real processo ricas e poderosas empresas monopolistas brasilei-
de hegemonia burguesa no país52. Nesse novo con- ras e estrangeiras – como as empreiteiras –, que
certo, vê-se a liderança do processo legado ao setor contribuíram e se beneficiaram com as políticas
bancário-financeiro e ao capital industrial monopo- da ditadura. Afinal, elas compunham ou não o Es-
lista, incluindo aí, de maneira privilegiada, as gran- tado brasileiro naquela ocasião?
des empreiteiras brasileiras, apesar do epicentro da
acumulação ter se transferido para o setor finan- Fontes primárias
ceiro53. O último ciclo do processo de acumulação
centrado no setor industrial, entre 1955 e 1980, deu ASSOCIAÇÃO DAS EMPRESAS DE ENGE-
lugar a um novo padrão de acumulação, calcado NHARIA DO RIO DE JANEIRO. AEERJ 30
principalmente nos ramos bancário e financeiro. Anos: 30 anos de obras públicas no Rio de Ja-
Nesse sentido, se a ditadura dos empreiteiros – e de neiro (1975-2005). Rio de Janeiro, 2005. 265p.
outros empresários também, sobretudo industriais
– acabou, dando lugar à república dos banqueiros, CLUBE DE ENGENHARIA. Luta pela enge-
os empreiteiros da ditadura têm se mostrado firmes nharia brasileira. Rio de Janeiro: Engenharia,
e fortes nesse novo contexto político. 1967. 211p.
Essas reflexões acerca de algumas marcas
de continuidade entre a ditadura e o modelo DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO.
democrático representativo atual não nos deve
levar a fazer tábua rasa entre os dois regimes FUNDAÇÃO João Pinheiro. Diagnóstico nacio-
políticos. Os grupos sociais que mais sofreram nal da indústria da construção. Belo Horizonte:
com o golpe de 1964 e com o AI-5 foram as Fundação João Pinheiro, 1984. 20 + 3 vol.
classes populares e, apesar de todas as limita-
ções e desilusões vividas após os anos 1980, GUEDES, Henrique. Histórias de empreiteiros.
o processo de redemocratização é uma vitória São Paulo: Clube dos Empreiteiros, s/d. 408p.
desses mesmos grupos.
Alguns debates atuais têm se dado em torno INFORME SINICON. Publicado pelo Sindica-
das questões da memória e da reparação no que to Nacional da Construção Pesada (Sinicon).
concerne à ditadura civil-militar brasileira. His-
toriadores e movimentos sociais têm reclamado INSTITUTO DE ENGENHARIA. Engenharia
o acesso aos arquivos públicos e documentos no Brasil: 90 anos do Instituto de Engenharia,
produzidos à época do regime, ainda liberados a 1916-2006. São Paulo: Instituto de Engenharia,
conta-gotas por parte do aparelho de Estado. Toda 2007. 187p.

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Pedro Henrique Pedreira Campos 149

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MANTEGA, Guido; MORAES, Maria. Acu- 1983. Outros títulos do mesmo grupo são
mulação monopolista e crises no Brasil. 2. ed. CHAVES, Marilena. Indústria da Constru-
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. 106p. ção no Brasil: desenvolvimento, estrutura e
dinâmica. 1985. 281 f. Dissertação (Mestra-
MENDONÇA, Sonia Regina de. Estado e so- do em Economia Industrial). Rio de Janei-
ciedade. In: MATTOS, Marcelo Badaró (Org.). ro: Universidade Federal do Rio de Janei-
História: pensar & fazer. Rio de Janeiro: Labora- ro, 1985. JOBIM, Antonio Jaime da Gama;
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ção Pesada na Economia Brasileira . Rio
OLIVEIRA, Francisco de. Os direitos do an- de Janeiro: FEA-UFRJ, out. 1984. (Texto
tivalor: a economia política da hegemonia im- didático, n. 26); JOBIM, Antonio Jaime da
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ção Zero à esquerda). da construção pesada na economia brasi-
leira. Rio de Janeiro: UFRJ/Finep, 1982.
PAULA, Dilma Andrade de. Fim de linha: a
4
extinção de ramais da estrada de ferro Leopol- Destacam-se os trabalhos procedidos ou
dina, 1955-1974. 2000. 344 f. Tese (Doutorado orientados por Sebastião Velasco e Cruz,
em História) – Universidade Federal Fluminen- como o de CAMARGOS, Regina Coeli Mo-
se, Niterói, 2000. reira. Estado e empreiteiros no Brasil: uma
análise setorial. 1993. Dissertação (Mestra-
RIBEIRO, Ricardo Alaggio. A engenharia mi- do em Ciência Política). Campinas: Uni-
litar de construção no Brasil: uma abordagem camp, 1993; RIBEIRO, Ricardo Alaggio. A
institucional. 1999. 162 f. Dissertação (Mestra- Engenharia militar de construção no Bra-
do em Ciência Política) – Universidade Esta- sil: uma abordagem institucional. Disserta-
dual de Campinas, Campinas, 1999. ção (Mestrado em Ciência Política). Campi-
nas: Unicamp, 1999.
Notas
5
Exemplos são as pesquisas de LIMA, Ivo-
1
Este ensaio é uma espécie de condensação ne Therezinha Carletto de. Itaipu: as faces
das principais conclusões estabelecidas em de um mega-projeto de desenvolvimento,
nossa tese de doutorado, defendida no Pro- 1930-1984. Tese (Doutorado em História).
grama de Pós-Graduação de História Social Niterói: Universidade Federal Fluminense,
da Universidade Federal Fluminense (UFF) 2004; e BRANDÃO, Rafael Vaz da Motta.
em março de 2012 com o mesmo título do O negócio do século: o acordo de coopera-
presente artigo. ção nuclear Brasil-Alemanha. Dissertação
(Mestrado em História). Niterói: Universi-
2
O setor de construção pesada é o ramo da dade Federal Fluminense, 2008.
indústria de construção que se dedica às
6
obras de infraestrutura, como rodovias, fer- Nas quais, destacam-se ALMEIDA, Már-
rovias, hidrovias, usinas elétricas, redes de cio. Estado e energia elétrica em São
transmissão e distribuição de eletricidade, Paulo: CESP, um estudo de caso. Disser-
saneamento, urbanização, portos, aeropor- tação (Mestrado). Campinas: Unicamp,
tos, dentre outros. 1980; CORRÊA, Maria Letícia. O setor de

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 135-152 / Jul-Dez 2011


150 A ditadura dos empreiteiros:

11
energia elétrica e a constituição do estado Como Informe Sinicon, publicado pelo Sin-
no Brasil: o Conselho Nacional de Águas dicato Nacional da Construção Pesada (Si-
e Energia, 1939-1954. Tese (Doutorado em nicon) na década de 1980.
História). Niterói: Universidade Federal
12
Fluminense, 2003; PAULA, Dilma Andra- Sendo exemplos GUEDES, Henrique. His-
de de. Fim de Linha: a extinção de ramais tórias de Empreiteiros. São Paulo: Clube dos
da estrada de ferro Leopoldina, 1955-1974. Empreiteiros, s/d; MENDES, Murillo Valle;
Tese (Doutorado em História) – Niterói: ATTUCH, Leonardo. Quebra de Contrato:
Universidade Federal Fluminense, 2000. o pesadelo dos brasileiros. Belo Horizonte:
Del Rey, 2004; PRADO, Lafayette Salvia-
7
MENDONÇA, Sonia Regina de. Estado e no. Transportes e Corrupção: um desafio à
sociedade. In: MATTOS, Marcelo Badaró cidadania. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997;
(Org.). História: pensar & fazer. Rio de Ja- QUINTELLA, Wilson. Memórias do Bra-
neiro: Laboratório de Dimensões da Histó- sil Grande: a história das maiores obras do
ria, 1998. cap. 1. p. 24. país dos homens que as fizeram. São Paulo:
Saraiva: Vigília, 2008.
8
Como relata FERRAZ FILHO, Galeno Ti-
13
noco. A Transnacionalização da Grande Como o Diário Oficial da União.
Engenharia Brasileira. Dissertação (Mes-
14
trado em Economia). Campinas: Unicamp, Ver LEMOS, Renato Luís do Couto Neto.
Campinas, 1981. p. 1-9. Contrarrevolução e ditadura no Brasil: ele-
mentos para uma periodização do processo
9
Como as revistas O Empreiteiro, Constru- político brasileiro pós-64. In: Congrès du
ção Pesada, Construção Hoje e Dirigente conséil européen de recherche en sciences
Construtor, em especial a primeira delas. sociales sur l’amerique latine. 6, 2010. Tou-
louse. Indépendences, Dépendences, Inter-
10
Alguns exemplos foram ASSOCIAÇÃO dépendences. Toulouse, 2010. p. 1-21.
DE EMPREITEIROS DO ESTADO DO
15
RIO DE JANEIRO. AEERJ 30 Anos: 30 O tema foi abordado no primeiro capítulo
anos de obras públicas no Rio de Janeiro de nossa tese de doutorado e foi investigado
(1975-2005). Rio de Janeiro: AEERJ, 2005; também no livro ALMEIDA, Júlio Sérgio
INSTITUTO DE ENGENHARIA. Enge- Gomes de; DAIN, Sulamis; ZONINSEIN,
nharia no Brasil: 90 anos do Instituto de Jonas. Indústria de construção e política eco-
Engenharia, 1916-2006. São Paulo: Institu- nômica brasileira do Pós-Guerra: relatório
to de Engenharia, 2007; SINDICATO DA de pesquisa. Rio de Janeiro: IEI/UFRJ, 1982.
INDÚSTRIA DA CONSTRUÇÃO PESA-
16
DA DE MINAS GERAIS. Rumo ao futuro: CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. A di-
a construção pesada e o desenvolvimento de tadura dos empreiteiros: as empresas nacio-
Minas. Belo Horizonte: Sicepot-MG, 2005; nais de construção pesada, suas formas as-
SINDICATO DA INDÚSTRIA DA CONS- sociativas e o Estado brasileiro, 1964-1985.
TRUÇÃO PESADA DE SÃO PAULO. A 2012. 515 f. Tese (Doutorado em História
saga da construção pesada em São Paulo. Social). Niterói: Universidade Federal Flu-
Vinhedo, SP: Avis brasilis, 2008; SINDI- minense, 2012, cap. 1.
CATO NACIONAL DA CONSTRUÇÃO
17
PESADA. Dois Brasis: o que a infraestru- Ibid., cap. 1.
tura está mudando. Cotia: Eolis Produções
18
Culturais, 2009. Ibid., cap. 2.

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 135-152 / Jul-Dez 2011


Pedro Henrique Pedreira Campos 151

19
Ibid., cap. 2. 1975.; ______. Problemas do Brasil po-
tência. São Paulo: Editoras Unidas, 1973.;
20
Ibid., cap. 2. e ______. Solução Energética. 2. ed. São
Paulo: Editoras Unidas, 1983.
21
Sobre esse organismo, ver DREIFUSS,
32
René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ver CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira.
3. ed. Petrópolis: Vozes, 1981. Op. cit., cap. 3.

22 33
Ver CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. Ibid., cap. 3.
Op. cit., cap. 2.
34
Ibid., cap. 4.
23
A autora entende que ao longo da ditadura
35
as formas organizativas da classe dominan- Dados obtidos na página do Instituto Brasi-
te se desenvolveram e se reproduziram ao leiro de Geografia e Estatística, http://www.
mesmo tempo em que foram amordaçadas ibge.gov.br/ . Acesso em 17 julho de 2012.
as associações das classes subalternas. Para
36
isso, ver FONTES, Virgínia. O Brasil e o FONSENCA, Selva Guimarães. Caminhos
capital-imperialismo: teoria e história. Rio da história ensinada. Campinas: Papirus,
de Janeiro: EdUFRJ, 2010. p. 224-225. 1993. p. 17-48.; JORGE, Wilson Edson. A
política nacional de saneamento pós-64. .
24
Ver CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanis-
Op. cit., cap. 2. mo). São Paulo: Universidade de São Paulo,
1987. p. 72-111.
25
Ibid., cap. 3.
37
Tema trabalho no quarto capítulo da tese.
26
Ibid., cap. 3. Informação obtida na revista O Empreitei-
ro. Edição de janeiro de 1974, no 72.
27
Ibid., cap. 3.
38
Ver CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira.
28
A campanha foi liderada pelo Clube de En- Op. cit., cap. 4.
genharia, que lançou os livros ROTSTEIN,
39
Jaime (Clube de Engenharia). Em defesa da Ibid., cap. 4.
engenharia brasileira. Rio de Janeiro: En-
40
genharia, 1966; CLUBE DE ENGENHA- Ibid., cap. 4.
RIA. Luta pela engenharia brasileira. Rio
41
de Janeiro: Engenharia, 1967. Ibid., cap. 4. No tocante ao tema da corrup-
ção, tentamos fazer uma via alternativa ao
29
Ver CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. estudo de Marcos Bezerra, que relaciona es-
Op. cit., cap. 3. sas práticas à manutenção da lógica das rela-
ções pessoais dentro do aparelho de Estado.
30
Ibid., cap. 3. Para tal concepção, ver BEZERRA, Marcos
Otávio. Corrupção: um estudo sobre poder
31
Exemplos são RODRIGUES, Eduardo Ce- público e relações pessoais no Brasil. Rio
lestino. Álcool, lenha, carvão e óleos vege- de Janeiro: Relume Dumará, 1995.
tais. São Paulo: 1977; Brasil 74. São Paulo:
42
Editoras Unidas, 1974; ______. Crise nos Sobre a atuação internacional das empreitei-
transportes. São Paulo: Editoras Unidas, ras brasileiras, ver FERRAZ Filho, Galeno

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 135-152 / Jul-Dez 2011


152 A ditadura dos empreiteiros:

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cionalização da engenharia brasileira e a dences. Toulouse, 2010. p. 1-21.
mobilidade da força de trabalho”. Análise
49
e Conjuntura. Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. IANNI, Octavio. A ditadura do grande ca-
221-228, jan./abr. 1986.; CAMPOS, Pedro pital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
Henrique Pedreira. “A transnacionalização 1981.
das empreiteiras e o pensamento de Ruy
50
Mauro Marini”. Revista Contra a Corrente: CAMPOS, Roberto. Apud PRADO, Lafa-
revista marxista de teoria, política e história yette. Transportes e corrupção: um desa-
contemporânea, ano 2, n. 3, p. 70-77, 2010. fio à cidadania. Rio de Janeiro: Topbooks,
1997. p. 223.
43
FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Diagnós-
51
tico nacional da indústria da construção. Dentre outras afirmações, o ex-presidente,
Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Luís Inácio da Silva, disse que Geisel foi “o
1984. v. 13. presidente que comandou o último grande
período desenvolvimentista do país”. Dis-
44
Essa hipótese foi desenvolvida em CAM- ponível em: http://www.estadao.com.br/ .
POS, Pedro Henrique Pedreira. Op. cit., Acesso em 8 de fevereiro de 2012.
2010, p. 70-77.
52
OLIVEIRA, Francisco de. Os direitos do
45
MANTEGA, Guido; MORAES, Maria. antivalor: a economia política da hegemo-
Acumulação monopolista e crises no Brasil. nia imperfeita. Petrópolis: Vozes, 1998.
2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. (Coleção Zero à esquerda). p. 9-16.
83-106.
53
Sobre isso, o empreiteiro Murillo Mendes
46
BARAN, Paul; SWEEZY, Paul. O Capita- afirmou em 2004: “os nossos credores fi-
lismo Monopolista: ensaio sobre a ordem nanceiros, estejam eles sediados no Brasil
econômica e social americana. Rio de Ja- ou no exterior. São eles os novos donos do
neiro: Zahar, 1966. passim. País.” MENDES, Murillo Valle; ATTUCH,
Leonardo. Quebra de contrato. Op. cit. p. 2.
47
Como é a leitura de autores como FICO,
Carlos. O grande irmão: da operação Bro- Pedro Henrique Pedreira Campos
ther Sam aos anos de chumbo; o governo * Doutor em História Social pela UFF e pro-
dos Estados Unidos e a ditadura militar bra- fessor de Política Externa Brasileira na
sileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização UFRRJ
Brasileira, 2008.; e BORGES, Nilson. A
doutrina de segurança nacional e os gover-
nos militares. In: FERREIRA, Jorge; DEL-
GADO, Lucília de Almeida (Org.). O Bra-
sil republicano. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003. v. 4, p. 15-42.

48
Conforme indica LEMOS, Renato em
“Contrarrevolução e ditadura no Brasil:

Revista pRaiaveRmelha / Rio de Janeiro / v. 21 no 1 / p. 135-152 / Jul-Dez 2011

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