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Até os oito anos?

Comecemos assinalando um fato cuja relevância para a ALFABETIZAÇÃO é


desconhecida por não especialistas: para sustentar o funcionamento de
todas as ações nela envolvidas, inclusive a coordenação de movimentos de
grupos musculares, a comunicação oral faz ao cérebro uma demanda de
processamento informacional muito superior à apresentada no caso da
comunicação escrita. Se é assim, por que nós aprendemos a falar sem
necessidade de instrução, enquanto o aprendizado da leitura e da escrita
exige o apoio de um professor?
Em 1877, Adolphe Kaussmaul identificou a word-blindness (cegueira para
palavras), condição na qual o leitor adulto perdia capacidade de ler
palavras, mesmo quando a visão, em geral, e a capacidade de ver,
identificar e distinguir letras e números, em especial, permaneciam
preservadas.
Não obstante a evidência de que a fala estava implicada na leitura,
permaneceu, durante grande parte do século XX, a abordagem de que o x
da questão, para o ato de ler, estava no funcionamento ocular e/ou no
processamento visual.
No campo da Psicologia o chamado efeito de superioridade da palavra,
segundo o qual reconhece-se mais rapidamente uma letra no contexto de
palavra do que isoladamente ou no contexto de uma pseudopalavra,
demonstrado pela primeira vez em 1866, deu suporte empírico às
afirmações segundo as quais, durante a leitura, reconhecemos palavras, ou
pelo menos estruturas de palavras, e não letras isoladas.
No campo da Pedagogia, ideias segundo as quais as crianças aprendem
globalmente, do todo para a parte, e segundo as quais as atividades de
ensino devem privilegiar a ação, o sentido, o significado, disseminaram-se
pelo mundo da educação durante a expansão e consolidação dos sistemas
nacionais públicos de instrução escolar desde o início do século XX.
Assim, procedimentos de ensino de leitura que pouco a pouco passaram a
privilegiar a ação do educando, o reconhecimento da palavra inteira, a
apreensão do significado, tornaram-se muito prestigiosos. Sobretudo a
partir da segunda década do século XX. Isso em contraposição a
procedimentos que caracterizavam a prática pedagógica de alfabetização,
antes da segunda metade do século XIX, quando ela, predominantemente,
enfatizava o conhecimento das letras e do alfabeto, dava relevo às regras
de decodificação e ao domínio do código ortográfico, se servia de textos
que não tinham a preocupação de responder aos interesses infantis.
A partir dos anos 1960 e 1970, hipóteses ligadas à ênfase no tratamento
visual da informação durante a leitura, influenciadas pela revolução
cognitiva que devastou o prestígio do behaviorismo, foram retomadas. Elas
resultaram no desenvolvimento de teorias psicolinguísticas inovadoras. Nos
anos 1990, uma ideia disseminada entre tipógrafos pesquisadores do
problema da legibilidade, segundo a qual leríamos reconhecendo a forma
das palavras, reforçou tais hipóteses.
O cérebro do leitor prestaria atenção à forma inteira da palavra escrita. E
trataria as informações do todo para a parte, globalmente. Na hipótese que
veio da tipografia, por exemplo, uma linha imaginaria circundaria a palavra
escrita, acompanhando os altos e baixos das letras. Daria, assim, uma forma
a cada palavra. A apreensão dessa forma levaria ao reconhecimento da
palavra, isto é, à percepção de que aquela forma gráfica representava uma
palavra da língua oral que o leitor já conhecia e usava. Ademais, ao integrar
informações do texto e do contexto, o cérebro construiria o sentido do
texto. Sem ser atrapalhado por atividades repetitivas e fastidiosas que
tiravam a motivação das crianças para a leitura. A leitura seria, então, como
um jogo psicolinguístico de adivinhação.
Didaticamente isso se traduziu em diminuição dos exercícios de instrução
fônica. Deu-se ênfase tanto à exposição das crianças a um ambiente leitor
estimulante quanto às hipóteses, formuladas pelas próprias crianças, a
respeito do funcionamento do sistema de escrita. Houve, também, a
valorização do conhecimento linguístico que a criança trazia de casa,
qualquer que fosse a variante sociolinguística, frente aos formalismos da
variante de maior prestígio da norma culta.
Os experimentos que testaram, em sala de aulas reais, com crianças de
carne e osso, de vários países, falantes de várias línguas, de diversas
condições sociais, conduzidas por tipos distintos de professores, a
produtividade didática dessas hipóteses, logo as desautorizariam. Restou
demonstrada a improcedência das abordagens globais, hoje chamadas
ideovisuais, que levaram ao conceito de letramento, termo para o qual há
tantas definições quanto o seu úmero de usuários, e ao abandono da
ALFABETIZAÇÃO.
Confrontada por um lado com os números desastrosos do desempenho de
crianças e adolescentes em leitura nos testes nacionais e internacionais
após mais de 30 anos de hegemonia incontrastável de suas teses nas
políticas educacionais brasileiras e na formação de professores no país, e,
por outro, com as evidências científicas que, por toda parte, negam suporte
empírico à teoria e práticas de ensino de leitura por ela elaborada,
preconizada e aplicada no Brasil, a intelligentsia educacional universitária
brasileira lançou uma cortina de fumaça sobre o problema ao se
reposicionar e postular: alfabetizar letrando.
As evidências científicas, há quase meio século, indicam que a escrita
alfabética se baseia em um código. Nele, unidades gráficas de escrita
representam unidades fonológicas da fala. O modo pelo qual essas
unidades gráficas de escrita envelopam unidades fonológicas da fala é tudo,
menos transparente ou conscientemente percebido. E nisso reside a
dificuldade. Tanto para quem ensina quanto para quem aprende a ler.
Na fala, unidades contínuas de energia acústica, presentes nos sinais
sonoros que a compõem, carregam unidades discretas de significação
fonológica. A descrição desse processo, bem como a compreensão dessa
descrição, exige conhecimentos que vão da Física à Psicologia, passando
pela Matemática, Linguística e Medicina. Detê-los e familiarizar-se com eles
é crucial para entender o que entra em jogo quando uma criança tem que
aprender a ler.
No Brasil raros educadores dominam o ciclo completo de informações
necessárias ao desvendamento do que é o aprendizado inicial da leitura e
de seus pontos cruciais. Isso cria dificuldades e gera equívocos. Nem a
formação universitária de docentes para os anos iniciais do Ensino
Fundamental nem a formação de Pedagogos integram estudos
aprofundados em todas essas áreas de saber.
Quanto aos pais, a dificuldade é maior. Eles não possuem os conhecimentos
específicos. E entregam seus filhos em confiança a profissionais cujo nível
de desconhecimento é, muitas vezes, nesse aspecto, comparável ao deles.
Na mesma situação, também se encontra, desinformada e desamparada, a
sociedade: civil e política. Longe de todos está a percepção de que, no
aprendizado da leitura, é crucial o papel do processamento cerebral de
informações sonoras portadoras de valor linguístico.
A manipulação consciente dos elementos fonológicos que compõem a fala,
bem como o conhecimento das regras que põem em funcionamento os
códigos alfabéticos referem-se, predominantemente, à linguagem oral.
Mas diferentemente do que ocorre na comunicação oral, altamente
produtiva, entre outras coisas porque a gestão da relação entre os
elementos fonológicos e acústicos se faz de modo automático e
inconsciente, o uso da escrita obriga à manipulação mecanizada e
consciente desses elementos. Isso sobrecarrega a memória fonológica de
trabalho, componente do sistema de funções executivas centrais do
cérebro. Em consequência, a comunicação escrita perderia produtividade
se nunca pudesse dar tratamento automatizado e inconsciente aos
aspectos fonológicos e acústicos que lhe são intrínsecos.
Acontece que ler não é aprender a ler. O aprendizado da leitura é longo e
difícil. Começa-se na condição de analfabeto, entra-se na condição de leitor
iniciante, passa-se pela condição de leitor hábil e chega-se à condição de
leitor expert. E a condição de leitor expert não se refere somente à perícia
com que se domina aspectos psicofísicos da atividade leitora, mas ao uso
que se pode fazer da escrita. Aí a produtividade da leitura e da escrita
atingem seu ponto máximo. Em sistemas educacionais eficazes a maioria
dos alunos é leitor hábil aos 10/11 anos. Ainda não é leitor expert.
Ser leitor hábil significa ter deixado para trás a fase em que o tratamento
dos aspectos fonológicos e acústicos da fala, codificados na escrita, era
mecânico e consciente. No leitor hábil, esse tratamento, a exemplo do que
ocorre na fala, passa a ser automatizado e inconsciente, inclusive porque a
prática controlada da leitura na fase de leitor iniciante faz uma reciclagem
nas redes neuronais que tratam a informação visual e sonora.
Por que essa reciclagem? Porque nosso cérebro foi provido, no curso do
desenvolvimento da espécie, de recursos para tratar, especifica e
isoladamente, informações visuais e informações sonoras, mas não dispõe
de recursos destinados especificamente ao tratamento de informações
sonoras portadoras de valor linguístico envelopadas em informações
visuais, característica da escrita, particularmente a escrita alfabética.
Ler não é natural, como falar. Mas também não é sobrenatural, uma
espécie de jogo de adivinhação que se pode fazer com custo atencional
zero.
Na fase inicial do aprendizado da leitura, a saber, a ALFABETIZAÇÃO, o
esforço principal tem que estar no ensino explícito e sistemático do
princípio alfabético e nas regras de decodificação. A compreensão não deve
ser negligenciada. Mas as atividades de leitura e compreensão precisam ser
didática e cronologicamente distintas: ensina a ler e a compreender
simultaneamente, e com os mesmos materiais é ineficaz. É o que dizem as
melhores evidências disponíveis.
Ora, a ALFABETIZAÇÃO demanda, por um lado, e insistamos, esse ponto é
crucial, o desenvolvimento da linguagem oral. Por outro lado, ela demanda
o desenvolvimento de habilidades ligadas ao sistema de funções executivas
do cérebro: controle inibitório, flexibilidade cognitiva e memória de
trabalho.
Nos dois casos o foco é a tomada de consciência das unidades fonológicas
mínimas das palavras faladas codificadas em palavras escritas com base nas
estruturas psicolinguísticas que envolvem tanto os aspectos fonéticos
(sílaba, ataque, rima e coda) quanto os aspectos fonológicos (fonema,
grafema) das mesmas. Isso se faz pelo treino do uso consciente de um
mecanismo cognitivo: a memória fonológica de trabalho. E exige
concentração consciente da atenção, além de flexibilidade cognitiva para
mudanças de foco na atenção.
Didaticamente falando: controle corporal, ritmo, desenvolvimento da
consciência fonológica, capacidade de manipulação de fonema (dividida em
substituição, adição, inversão e supressão de fonemas), treino oral com a
rememoração de listas de palavras. Poderíamos falar aqui em PRÉ-
ALFABETIZAÇÃO.
Desde que a criança fale, e desde que seu sistema executivo central esteja
em dia, ela pode ser ALFABETIZADA. Nada impede que seja aos quatro
anos. Ou aos cinco. Isso vai depender de outros fatores. Inclusive o nível de
transparência da relação grafema/fonema na escrita da língua nativa da
criança. E da complexidade silábica dessa língua. Além da motivação para
aprender a ler.
No que diz respeito ao nosso tema, a saber, a propriedade ou
impropriedade da ALFABETIZAÇÃO em tenra idade, esses esclarecimentos
sobre a centralidade do desenvolvimento da linguagem oral como pré-
requisito para a ALFABETIZAÇÃO, bem como os esclarecimentos sobre o
processo do desenvolvimento cerebral ganham significado especial quando
postos contra o pano de fundo pintado com auxílio de informações
empíricas, coletadas em pesquisa científica de alta qualidade, a respeito da
experiência linguística dos diversos grupos socioeconômicos de crianças
entre o nascimento e o quarto ano de vida.
Um experimento célebre deu base para uma estimação: no período que vai
do nascimento aos quatro anos de vida as crianças acumulam experiência
linguística com 45, 26 e 13 milhões de palavras, conforme vivam em famílias
da alta, média e baixa condição socioeconômica, respectivamente. O
grande problema? Como se vê, é alarmante o déficit de experiência
linguística e conhecimento de palavras entre crianças oriundas de famílias
cujo nível socioeconômico é baixo. O baixo nível de experiência linguística
tem implicações para o desenvolvimento das capacidades de prestar
atenção consciente aos aspectos fonológicos da fala. E vimos que isso é
central para aprender a ler. A consequência? O risco de fracasso na
ALFABETIZAÇÃO é alto nessa população.
Por isso as creches e pré-escolas das redes públicas de ensino, em sua
maioria frequentada por crianças desse tipo familiar, deveriam dar atenção
especial à experiência linguística. Tanto em quantidade quanto em
qualidade. E criar as condições para que elas passem pelo processo de
alfabetização sem ter que lutar tanto para quebrar o código alfabético.
Por fim, a ALFABETIZAÇÃO não pode se afastar de procedimentos de ensino
cuja efetividade e eficácia sejam suportadas pelas melhores evidências
científicas disponíveis. E os professores alfabetizadores precisam conhecer
não somente os fundamentos teórico-científicos do processo, mas,
também, os procedimentos didáticos e materiais realmente eficazes. E o
Brasil está inacreditavelmente atrasado nesses dois quesitos.
A Ciência tem mostrado que a antecipação exagerada da ALFABETIZAÇÃO
não rende muitos frutos. Mas conduzi-la equivocada e tardiamente
aumenta, e muito, o risco de tropeço na trajetória escolar, sobretudo dos
que vão iniciar a ALFABETIZAÇÃO com experiência linguística precária e
desfavorável. É preciso lembrar aqui que 90% dos maus leitores ao final do
primeiro ano serão maus leitores ao final do quinto. E que chegar ao quinto
ano com baixo desempenho em leitura caracteriza risco de evasão. Com
todas as más consequências a ela associadas.
Em horizonte que vai até 2024, conforme o Plano Nacional de Educação,
sabendo-se que mais de 80% das crianças brasileiras frequentam escolas
públicas nas quais a maior parte dos alunos é proveniente de famílias que
apresentam baixo nível socioeconômico, propor que elas entejam
ALFABETIZADAS até os oito anos de idade, quando também se sabe que
mais de 80% já frequenta escola desde os quatro, é contratar o aumento
futuro do mau desempenho e do fracasso escolar.
Algum pai de classe média ou alta aceita essa meta para seu filho?

Prof. Luiz Carlos Faria da Silva.

Universidade Estadual de Maringá.

Dr. Em Educação pela UNICAMP.

Membro ad hoc do Grupo de Estudos sobre Aprendizagem Infantil.

Academia Brasileira de Ciências.

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