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Aury Lopes Jr.

obra selsnua no campo da crítica, logo, um espaço a ser


preenchido, que parte, entre outras, da premissa de que mdf,
saber é datado. Toda doutrina ou teoria tem prazo de válida-ide, Aury Lopes Jr.,

. ensina ELNSTEIN. Na mesma linha, OST aponta que “toda ciência


ça por uma recusa (...) o espírito científico mede—se pela sua
:idade de requestionar as certezas do sentido conªium tudo aquilo
tACliELARD designava pelo nome de obstáculo epistemológica”.
Entre as várias “recusas” que fazemos, estão o militarismo
:ssual, o atropelo de direitos e garantias fundamentais, a falta de uma
lição de qualidade“ o tribunal do júri, & prevenção como causa
Introdução
ora da competência, o juiz com poderes ingtrutoriosª o mito da
de real, & pubiicidade abusiva, a transmissão mecânica de
orias do processo civil (fumus boni iuris & periculum in mora?), a
ização das prisões cautelares, enfim, uma Série de dogmas repetidos
naior reflexão e crítica»
Ficaria satisfeito se esse trabalho constituísse uma mom-u, mas,
em um instrumento de ócio criativo. Que fosse uma leitura
ao Processo Penal
lávei, estimulante e, principalmente, capaz de gerar uma saiutar (Fundamentos da

etação no leitor, aguçando sua recusa—criatividade. () Direito carece


: binômio“ e ele é fundamental para que possamos nos libertar do
(Fundamentos da
da tradição (na sua acepção negativa, é claro)
Aum LOPES JR,
lnstrumentalz'dade Constitucional)
4ª edição
Revista, Atualizada e Ampliada
na

cluçao Crítica
. GESSO Penal lnstrumentalz'dade Constitucional)

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ª!
Lumen ªjurzs ágil—“ram
AURY LOPES JR.
Doutor em Direito Processual Penal pela Universidad Complutense de Madrid
Professor no Programa de Pós—Graduação em Ciências Criminais
da Pontificia Universidade Católica do Rio Grande do Sul — PUCRS
mai

vwvwlumenjurisoombr Pesquisador do CNPq


Advogado
EDITORES
WW aurylopesnombr
João de Almeida
João Luiz da Silva Almeida

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Cn's, por você...


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"Mudaria até o meu nome
(«#5
Viveria em greve de fome
L'! LL»; Desejaria, todo dia, a mesma mulher..."

Impresso no Brasil
Printed in Brasil
31 (O 5405
". P. fl.-5%-
Para Thaisa,
Com todo o amor que alguém pode
dar nesta vida...
Agradecimentos

Qualquer agradecimento inicia sempre por meus país, pelo


incansável apoio, carinho e compreensão.
A Don Pedro Aragoneses Alonso, com quem muito aprendi
sobre Processo, Direito e como viver dignamente.
A Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, pelo muito que fez
e faz pelo estudo sério de Processo Penal neste país, mas,
principalmente, porque, para muito além do profundo
conhecimento, é um poeta do Direito Processual Penal.
A meu "irmãozinho" Claudio Brandão, pelas inúmeras aju-
das, mas especialmente pelo carinho e a amizade sincera.
A Salo de Carvalho, Amilton Bueno de Carvalho, Aramis
Nassif, Geraldo Prado, Gustavo Badaró, Fauzi Hassan
Choukr, Paulo Rangel, Mauricio Zanóide, Maria Thereza
Assis Moura, Alexandre Wunderlich e tantos outros a quem
tenho de agradecer pela amizade e pelo muito que aprendi
nas infindáveis discussões, nos muitos congressos e
encontros que tive o prazer da companhia de vocês.
A Ruth Chittó Gauer, pela confiança, a amizade e os valio-
sos ensinamentos.
A Carla Verissimo, pela paciente revisão dos originais, as
valiosas sugestões e críticas.
A Cezar Bitencourt, pela amizade, confiança e a irrespon-
sabilidade de sempre acreditar “no garoto".
A João Luiz e a Editora Lumen Juris, pelo apoio incondicio«
nal e o verdadeiro comprometimento científico e acadêmico.
Esse livro e fruto dos resultados (sempre) parciais do
Projeto de Pesquisa “Processo Penal e Estado Democrático
de Direito: a instrumentalidade garantista como limitação
ao poder punitivo" desenvolvido na Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul — PUCRS, com Bolsa
Produtividade em Pesquisa do CNPq. A ambas instituições,
meu agradecimento pelo apoio e o incentivo à pesquisa.
"Ora, no fundo, o que é necessário é para: de viver esse
sonho e tratar de acordar para a realidade. Parar de viver
esse sonho que vivemos a partir da manipulação discursi-
va. Mais ou menos aquilo que a gente vê, na porta dos
campos de conoetração dos nazistas. Pois saibam que o
que mais me checou no campo de concentração de
Daohau, perto de Munique, na Alemanha, não foram os
fornos crematórios, não foi o museu com aquela Célebre
frase de Santayana: coloro che non sí n'cordano del passaro
sono condannatí e rew'verlo. Não] O que mais me chocou
foram os dizeres na porta principal, que, por sinal, está
escrito também, salvo engano, em Buohenwald. arbit
macht frei — o trabalho liberta. Não há nada no mundo que
seja mais significativo do que o golpe de linguagem; do
que o giro de discurso; do que isso que está ai como lobo
em veste de cordeiro."

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho


Sumário

Abreviaturas ............................................................................................... xvii


Prefácio — Prof. Dr. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho ...................... xix
Prefácio —— Prof. Dr. Pedro Aragoneses Alonso .......................................... XXV
Nota do Autor ............................................................................................. mix

Tª Nota do Autor a Bª Edição ........................................................................ mew


ª Nota do Autor a 4ª Edição ........................................................................ mvií
Capítulo I —- O Fundamento da Existência do Processo Penal: Instru—
mentalidade Constitucional .............................................................. 1
I. Princípio da Necessidade do Processo em Relação a Pena ........... 2
II. Instrumentalídade do Processo Penal .............................................. 6
III. O Utilitarísmo Processual (ou & Eficiência Antigarantista) ........... 11
a) Movimentos Repressivistas: Lei e Ordern/Tolerância Zero ....... 12
b) Necrofliia e Antofagia do Sistema Penal ..................................... 19
c) Neoliberalismo e Processo Penal .................................................. 22
d) Direito e Drornologia: Quando o Processo Penal se Põe a Cor-
rer, Atropelando as Garantias ...................................................... 26
e) Efetividade versus Eiiciência ....................................................... 36
IV. Desconstruindo o Utilitarismo Processual Através dos Paradigmas
Constitucional e Garantista .............................................................. 38
a) Instrumentalidade Constitucional e o Estado Democrático de
Direito .............................................................................................. 38
b) Constitucionalmaçâo do Processo Penal ..................................... 41
c) Direito Penal Mínimo e Garantismo Processual .......................... 46
V. Inserindo o Processo Penal na Epistemologia da Incerteza &! do
Risco: Lutando por um Sistema de Garantias Mínimas ................. 50
a) Risco Exógeno ................................................................................ 51
b) Epistemologia da Incerteza .......................................................... 56
o) Risco Endógeno: Processo como Guerra ou Jogo? ..................... 59
d) Assumindo os Riscos e Lutando por um Sistema de Garantias
Mínimas .......................................................................................... 67

viii
Capítulo II — Em Busca de um Sistema de Garantias Mínimas: os
a') A Falácia do Sistema Bifãsico ............................... . ................. 1 75
Princípios Fundantes da Instrumentaiidade Constitucional ......... 71 b') A Insuficiência da Separação (Inicial) das Ativrdades de
I. Jurisdicionalidade: Nulla Poena, Nulla Culpa Sine Iudicio ............ 72 Acusar e Julgar ........................................................................ 177
a) A Função do Juiz no Processo Penal ........................................... 73
b) A Toga e a Figura Humana do Julgador no Ritual Judiciário: e') identificação do Núcleo ªndante: a Gestão da Prova ....... 178
d') O Probierna dos Poderes Instrutórios: Juizes-Inqulsidores
da Dependência à Patologia ......................................................... 78 e os Quadros Mentais Paranóicos ......................................... 182
c) A Garantia da Imparcialidade Objetiva e Subjetiva do Julga- III. Presunção de Inocência ..................................................................... 184
dor: (Re)Pensando os Poderes Investigatórios/ Instrutórios ..... 88
d) O Direito de Ser Julgado em um Prazo Razoável: o Tempo co-
a) Carga da Prova e In Dubio Pro Reo ..................... ........... 189
mo Pena e a (De)Mora Jurisdicional ............................................ 94.
13) Publicidade Abusiva e Estigmatização do Sujeito Passrvo ...... 191
a') Recordando o Rompimento do Paradigma Newtoniano ..... 94 c) Introdução Critica a Teoria Geral das Prisões Cautelares ......... 198
b') Tempo e Penas Processuais ................................................... 98 a') Respeito às Categorias Juridicas Próprias do Processo Pe-
c') A (De)1VIora Jurisdicional e o Direito a um Processo sem nal: a Impropriedade do Fumus Boni Iuris e do Perículum
Dilações Indevidas ................................................................... 102 in Mora ...................................................................................... 199
a") Fundamentos da Existência do Direito de Ser Julgado b“) Principiologia ........................................................................... 206
num Prazo Razoável ......................................................... 103 a") Jurisdicionalidade ................. ' ........................................... 206
b") A Recepção pelo Direito Brasileiro ................................. 107 b") Provisionalidade ............................................................... 207
c") A Problemática Definição dos Critérios: a Doutrina do c") Provisoriedade .................................................................. 208
Não—Prazo .......................................................................... 112 d") Excepcionalidade ............................................................. 209
d") Nulla Coactio Sine Lage: & (Urgente) Necessidade de e") Proporcionalidade ............................................................. 211
Estabelecer Limites Normativos .................................... 116 c') (Re)Visão Crítica do Periculum Libertatis: a Substancial
e") Algumas Decisões do 'ITibunal Europeu de Direitos Inconstitucionalidade da Prisão Preventiva para Garantia
Humanos, da Corte Americana de Direitos Humanos da Ordem Pública ou Econômica ........................................... 212
e o Pioneiro Acórdão do Tribunal de Justiça do Rio d') Desconstruindo o Paradigma da (Cruel) Necessidade For—
Grande do Sul ................................................................... 124 jado pelo Pensamento Liberal Clássico ................................ 219
d') Em Busca de “Soluções": Compensatórias, Processuais e') Colocando a Prisão em Flagrante no seu Devido Lugar ..... 224
e Sancionatórias ................................................................ 129 IV. Contraditório e Direito de Defesa: Nulla Probatio Sine Defensione . 229
e') A Título de Conclusões Provisórias: o Dificil Equilíbrio a) Direito ao Contraditório ................................................................. 229
entre & (De)Mora Jurisdicional e o Atropelo das Garan—
tias Fundamentais ............................................................. 135 b) Direito de Defesa: Técnica e Pessoal ........................................... 233
a') A Defesa Técnica ..................................................................... 233
e) Inderrogabilidade da Jurisdição: Critica à Justiça Nego-
ciada ........................................................................................... 139 b') A Defesa Pessoal: Positiva e Negativa .................................. 237
f) Critica ao 'Ii'ibunal do Júri: da Falta de Fundamentação das a") Defesa Pessoal Positiva ................................................... 237
Decisões à Negação da Jurisdição .......................................... 147 13") Defesa Pessoal Negativa (Nemo ”Banstur se Detegere) . 241
g) Uma Alternativa Interdisciplinar ao 'Hibunal do Júri: O Es- :. c) Quando o Problema Está nos Extremos: a (In)Eficácia do
cabinato ..................................................................................... 157 Contraditório e do Direito de Defesa no Inquérito Pohc1al e na
[. Gestão da Prova e Separação das Atividades de Acusar e Julgar: Execução Penal ............................................................................... 250
Sistemas Acusatório e Inquisitório ................................................... 160 a') Contraditório e Direito de Defesa no Inquérito Policial ....... 250
a) Sistema Acusatório ........................................................................ 162 b') Contraditório e Direito de Defesa na Execução Penal ......... 256
13) Sistema Inquisitório ....................................................................... 166 V. Motivação das Decisões Judiciais ........................................... .- ........ 263
c) Insuficiência do Conceito de "Sistema Misto ": a Gestão da
Prova e os Poderes Instrutórios do Juiz ....................................... 173 a) Poder
Controle da Racionalidade das Decisões e Legitimaçao do 253
................................................................................................
b) Valoração e Distinção entre Atos de Investigação e Atos de Abreviaturas
Prova: a Garantia de Ser Julgado com Base na Prova Judicia—
lizada ............................................................................................... 267
c) Verdade Real: Desconstruindo um Mito Forjado na Inquisição.
Rumo a Verdade Processual .......................................................... 272
d) Desvelando 0 ”Mito da Verdade" no Processo Penal. Rumo à
Assunção da Sentença como Ato de Convencimento (de
Crença) ............................................................................................ 275 CADH Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto
e) Livre(?) Convencimento Motivado ............................................... 286 de São José da Costa Rica)
f) Invalídade Substancial da Norma: Quando o Juiz se Põe a Pen— CEDH Convenção Europeia para Proteção dos Direitos
sar e Sentir ....................................................................................... 289 Humanos e das Liberdades Fundamentais
a') A (ln)Validade Substancial da Norma ................................... 289 CB Constituição Brasileira
b') Assumindo as Lacunas e Dicotornias do Sistema: a Supe- CE Constituição Espanhola
ração do Dogma da Completude Juridica ............................ 292 CI Constituição Italiana
c') Rompendo o paradigma cartesiano e assumindo a Subje- CM Código-Modelo de Processo Penal para Ibero—América
tividade no Ato de Julgar: Quando o Juiz se Põe a Pensar CP Código Penal Brasileiro
e Sentir ...................................................................................... 29 3 CPC Código de Processo Civil Brasileiro
Referências Bibliográficas ......................................................................... 30 3 CPP Código de Processo Penal Brasileiro
CPPf Código de Processo Penal Fiennes
CPPí Código de Processo Penal Italiano
CPPp Código de Processo Penal Português
HC Habeas Corpus
LE Grim Código de Processo Penal Espanhol (Ley de Enjuicia—
miento Criminal)
LO Lei Orgânica (Espanha)
LOPJ Lei Orgânica do Poder Judiciário (Espanha)
NIP Ministério Público
Revista de Derecho Procesal
RDPI Revista de Derecho Procesal Iberoamericana
REsp Recurso Especial
Re:—rt Recurso Extraordinário
Recurso de Habeas Corpus
RT Revista dos Tribunais
STC Sentença do Tribunal Constitucional (Espanha)
STEDH Sentença de Tribunal Europeu de Direitos Humanos
STF Supremo 'Hihunal Federal (Brasil)
STJ Superior Tiribunal de Justiça (Brasil)
STS Sentença do Tribunal Supremo (Espanha)
StPO Código de Processo Penal Alemão (Strasfprozessordnung)
TEDH Tribunal Europeu de Direitos Humanos
TC Tribunal Constitucional (Espanha)
TJRS Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
TRF Tribunal Regional Federal (Brasil) Prefácio
TS Tribunal Supremo (Espanha) Prof. Dr. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho
Coordenador eleito do Programa de Pós-graduação
em Direito da UFPR

“Não desças os degraus do sonho


Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótâos — onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
ºcultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério esta' é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo... "
(Mario Quintana — Os degraus. Antologia poética.
Porto Alegre: L&PM', 1999, p. 93)

Uma das coisas mais interessantes para entender os pernósticos


é ver Mario Quintana, antes de morrer (infelizmente já faz dez anos),
dizer que seu maior sonho era escrever um poema bom. Anjo travesso,
Malaquias fez —— e faz — estrada, construindo, no jeito gaúcho de ser, coi-
sas maravilhosas, ousadas, marotas, sérias, pedindo passagem entre
as palavras (que as amam tanto quanto ele a elas ama) para não deixar
imune a canalhada que se entrega a Tânatos pensando que assim pode
encontrar Eros. Que nada! Ai só se produz sofrimento, embora não se
deva desconsiderar a hipótese de que também se goza, sem embargo
de se pagar um preço para tanto; e caro, muito caro.
Eis o retrato da malta que assola a todos, brincando com as ima-
gens; vilipendiando os sentidos como jaguaras incorrigíveis; falsos bri—
lhantes, zirconitas. O país está repleto deles, em todos os campos.
No Direito, a situação e, quiçá, ainda pior. Faz-se um abismo entre
o discurso e a realidade. Nunca se esteve tão perto, pelas caracteristi—
cas, do medievo: pensamento único; dificuldades de locomoção para a
grande maioria (não seria isso o pedágio selvagem imposto ao país?);
generalização da ignorância, por mais paradoxal que possa parecer,
porq-Lie 4/5 da população seriam descartáveis; um mundo povoado por
imagens midiáticas, não raro sobrenaturais, para se manter as pessoas
em crença; um espaço onde polis, cívitas, já contam muito pouco; cito—
yen, como Maximilien Robespierre eidgia ser chamado pelo filho, hoje,
sem embargo de estar perto do palavrão, e quase que tao-só inflação sido o desastre que foi, salvo, in terras brasilia, aqueles pouco esclare—
fonética de discurso eleitoreiro.
ciclos e movidos pelo “ouvir dizer". Afmal, ninguém discorda que Silvio
O grave, porém, são os mercadores das imagens; homens da Berlusconi e resultado da maluquice de se permitir uma, digamos, tor-
ordem; e da lei se lhes interessa; maniqueístas interesseiros porque, turemodérée, como, por certo, ironizou o "Esprit" referindo-se aos "dig-
pensando-se do bem (são sempre os donos da verdade, que imaginam nos compatriotas de Beccaria". Em matéria capital a democracia, como
existir embora, cada vez mais, mostre-se como miragem), elegem o mal se sabe, não se transige, em nome de nada, de tudo, ou de um deus
no diferente (em geral os excluídos) e pensam, no estilo nazista, em coi- qualquer; clausulas pétreas, dizem os oonstitucionalistas; e nunca esti-
sas como um Direito Penal do Inimigo. Personalidades débeis, vendem veram brincando, pelo menos se não fizessem parte da canalhada tern—
a alma ao diabo (ou a um deus qualquer como o mercado) para operar bém. Agora, para quem acompanha mais de perto as vicissitudes
em um mundo de ilusão, de aparência. e seduzir os incautos. Parecem peninsulares, Berlusconi dá o troco, vilipendiando da mesma maneira
pavões, com belas plumas multicoloridas, mas os pés cheios de craca.
uma democracia que só Deus sabe como resiste (sobre o tema, v. os
O pior é que, de tanto em tanto, metem no imbroglio gente com a cabe—
excelentes ensaios de CORDERO, Fianco. Le strane regole de] signor B.
ça historicamente no lugar: "Nel 1947 Francesco Carnelutti deplora Milano: Garzanti, 2003, 264p.; CORDERO, Franco. Nere June d'Italia:
che, in ossequio ai pregiudizio pessimistico sulla pena, ogni ”penetra- segnali da no anno clinicas. Milano: Garzanti, 2004, 224p.). Ademais, em
zione nel segreto' sia incongruamente affidata 'alla liberta del suo
titolare', sebbene la pubblica igiene prevalga sull'interesse a nascon— matéria do gênero e como se disse alhures, depois de se dar o primei-
ro tiro — eis a barbárie — ninguem mais sabe por que está atirando.
dere le piaghe: analoghi i due segreti, fisico e psichico; il diritto al
Quem disso duvidar deve perguntar às famílias de Livatino, Chinnici.
secondo 'appartiene a una fase de] pensiero nella quale 1a pena era Falcone ou Borsellini. Em definitivo, o Brasil não merece passar por
ancora concepita come un male anziohé un bene per chi la subisce'; isso, razão por que há de resistir ao desvario, seja ele de que lado for e,
percio le polemiche sulla tortura trascendono dannosamente 'il giusto para tanto, há que resistir, com esforço e obras como a presente.
limite'; 'dev'essere respinta perché non offre alcuna garanzia di verita Aury Lopes Jr., desde o ponto de vista da resistência a barbárie no
della risposta del torturato, non perché lo costringe a palesare um DPI—! é o Malaquias do Direito Processual Penal. Um Mario Quintana que
segreto'; se qualche espediente garantisse l'esito verídico, “senza rompe com a mesmice — e a canalhice — ai instalada, passada como um
cagionare notevoli danni al corpo dell'inquisito, non vi sarebbe alcuna
raio dos ledores do código, em geral leguleios, aos vampiros profetas
ragione perché non fosse adottato' (LPE II, 168). Quattro anni dopo sus—
e/ou salvadores da pátria. Sem desmitificar essa gente, todavia, não se
cita scandalo la confessione estorta in un famoso caso: il pubblico vai adiante no jogo democrático; no crescimento do grau de civilidade.
ministero invoca l'opinione carneluttiana a sostegno della prassi poli— Essa turba tem feito poesia (do DPP) com esquadro e régua; para ser
ziesca (Corriere della Sera, 12 gennaio 1952); in Hancia 'Esprit' dedica medida e não para ser vivida. Só não se pode é ser (muito) condescen-
una notta, sotto ii titolo La tortura modérée, & 'ce digne compatriote de dente com ela. E o Aury não o é. Está ai o sentido do substantivo “cri-
Beccaria'" (CORDEIRO, Franco. Biti e sapienza de] diritto. Roma—Bari:
Laterza, 1985, p. 410). tica" no titulo. Só isso já seria suficiente para justificar a grandeza de
Na estrutura pendular na qual se vive, o difícil e suportar. no um livro como o presente, nominado, como se fosse por Malaquias,
mera Introdução.
tempo, o espaço de descida e subida do pêndulo, porque nada e feito Aury, embora muito jovem, tem um longa estrada, toda construída
sem vilipêndio da democracia. Isto, como é sintomático, produz, nos
com um discurso coerente, do seu Sistemas de investigação preliminar no
atingidos — tem gente que se pensa, nessas ocasiões, para atingir os processo penal (2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, 374p.) ao exce-
outros, acima do bem e do mal — uma reação que se não pode conside— lente (Des)ve1ando o risco e o tempo no processo penal (In A qualidade do
rar desproporcional, embora, não raro, tenda a vilipendiar também ela tempo: para alem das aparências históricas. Org. Ruth M Chittó Gauer.
a democracia. Tudo, enfim, é resultado da falta de respeito pela diferen- Rio de J aneiro: Lumen Juris, 2004, pp. 139 e ss). Doutor em Direito
ça. N ão foi por diverso motivo (entre tantos outros de menor importân— Processual Penal pela Universidad Complutense de Madrid, onde foi con—
cia, ao que parece) ter a chamada “Operação Mãos Limpas", na Itália, duzido pelas mãos seguras do respeitado Pedro Aragoneses Alonso (é só
ver dele, dentre outros, o Proceso ;; derecho procesal. Madrid: Aguilar, que não passava de um jeito, um tanto diferente,
1960, 83411), com ele aprofundou os estudos ein/nos Goldschmidt, que de rezar
continuam distantes de terem uma proposta inaceitável e fornecedora de enquanto, do púlpito, o padre clamava possesso
fundamentos aos "juristas ligados ao credo nacional-socialista" (BET- contra pecados enormes.
TIOL, Giuseppe. Instituições de direito e processo penal. Trad. de Manuel Meus Deus, até o Diabo envergonham-se.
da Costa Andrade. Coimbra: Coimbra, 1974, p. 273). Tudo ao contrário; Afinal de contas, não se estava em nenhuma Babilônia...
nunca foi tão importante estudar os Goldschmidt, mormente agora onde Era, tão-só, uma cidade pequena,
não se quer aceitar viver de aparências. com seus pequenos vícios e suas pequenas virtudes:
Por outro lado, Aury faz parte do corpo docente de um dos melho- um verdadeiro descanso para a milícia dos Anjos
res Programas de Pós-graduação do Brasil, ou seja, do multidisciplinar com suas espadas de fogo
da PUCRS, onde despontam, com ele, Ruth Gauer (com suas mãos de — um amor!
ferro e coração de mãe), Salo de Carvalho e tantos outros que não cabe Agora,
nominar neste breve espaço. aquela antiga cidadezinha esta' dormindo para sempre
A leitura deste Introdução Crítica e um prazer enorme, principal- em sua redoma azul, em um dos museus do Céu. ”
mente quando estamos tão acostumados a "manualística" tacanha e (Mario Quintana — Antologia poética. Porto Alegre: L&PM 1999,
com cheiro de bolor. No eixo de cinco grandes princípios (que dão azo p. 80)
aos cinco capítulos), Aury navega pelo nulla poena, nulla culpa sine
iudicio, porque há de ser entendido como o primeiro principio lógico do
sistema (talvez fosse o caso de dizer que é o principio número dois do
conjunto processual); pela gestão da prova como núcleo do sistema
processual e, a partir dela, a separação das atividades de acusar e jul-
gar (so os muito alienados não percebem que o principio inquisitivo
rege o nosso sistema processual e, mais importante. a fase processual
da persecução; pela presunção de inocência, sem o que não acaba o
abuso bárbaro das prisões cautelares; pelo nulla probatio sine defensio-
ne, algo vital para se compreender o verdadeiro sentido do processo;
por fim, trata da motivação das decisões e derruba um mito atrás do
outro para se aproximar da realidade: “o resgate da subjetividade no
ato de julgar: quando o juiz se põe a pensar e sentir".
O prezado professor doutor advogado Aury Lopes Jr. brinda o pais
com uma obra que, dando fimdamentos da instrumentalidade garantis-
ta, evoca os bons tempos, nos quais se acreditava, com fé, na democra-
cia. Ela vem como "Era um lugar", do inominãvel Mario Quintana, com
a diferença de que não aceita fazer parte de museu algum, a não ser o
da resistência democrática:

"Era um lugar em que Deus ainda acreditava na gente...


Verdade
que se ia a missa quase só para namorar
mas tão inocentemente
Prefácio
Prof. Dr. Pedro Aragoneses Alonso
Profesor Emérito de Derecho Procesal
Universidad Complutense de Madrid (Espana)

A finales de los anos 90, irnparti en la Facultad de Derecho de la


Universidad Complutense un Curso de Doctorado sobre un tipo de pro—
ceso, el "Procedimiento abreviado para determinados delitos" que,
regulado por la LO 7/1998, de 28 de diciembre. trataba de que los delí-
tos menores fueran resueltos en un "plazo razonable“, sin perdida de
las garantias del “debido proceso". Entre los asistentes al curso se
encontraba un joven jurista bras-Henn: Aury LOPES JR.
El método que seguiamos para analizar las peculiaridades dogmá—
ticas y el régirnen jurídico del proceso objeto de nuestro estudio consis—
tia en repartir tal investigación en ponencias a cargo de los doctoran—
dos que componian el grupo. Una vez expuesta 1a ponencia, ésta era
objeto de discusión en la clase. En sus intervenciones Aury, haciendo
honor a su condición de joven, de jurista ? de brasileiro, ponía de relie—
ve en el Cºloquio: su viveza idealista (propia de su juventud); su gran
formación como estudioso del Derecho (que tenia sobradamente acre—
ditada al aprobar 1a oposícíón para la docencia en 1993 e implantar en
la Universidad de Rio Grande un Servicio de Defensa gratuita); y su
interés por comprender con exactitud cualquier cuestión que se expu-
siera en el colóquio que él estimate que podia ser interesante para la
Justicia penal de su país. A tal efecto, siempre con gran respeto, no
dudaba en formular preguntas sobre el sistema espanol y en proporcio-
nar datos sobre la realidad juridica brasiler'ia, de tal modo que, apenas
sin darnos cuenta, aquel Curso se convirtió en un análisis comparativo
de los sistemas jurídico-penales de Espana 5; Brasil. Elle nos enrique—
ció a todos.
Têrminado el Curso me pidió que dirigiera su Tesis, a lo que acce-
di con pleno agrado. Acordamos que la Tesis tuviera por el objeto el
estudio de los Sistemas de instruccíón preliminar en los Derechos espa-
1501 y brasilerio. (Con especial referencia a la situación del sujeto pasivo
del proceso penal). Como se recoge en la Nota preliminar del trabajo “el
orden de los vocablos express el predomínio del objeto (sistemas de
instruccíón) sobre el sujetc (pasivc), de modo que la investigación se
va a centrar en analizar um determinado momento 0 fase del proceso
Auryr Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

penal, tomando en consideración, especialmente, la situación jurídica investigação preliminar no processo penal, que es una sintesis de la
de uno de los intervinientes". La importancia del estudio de 1a instruc- tesis doctoral, que va para la cuarta edición.
ción preliminar radica en que, salvo los casos de flagrancia, como nos Aury Loans Ja ha publicado tambien, con la misma Editora, su In-
dice el autor, “el proceso penal sin previa instrucción es un proceso trodução crítica ao processo penal (Fundamentos da Instrumentalidade
irracional, una figura inconcebible. El proceso penal no puede, y no garantista). En esta obra el autor se formula una pregunta que todo
debe, prescindir de 1a instrucción preliminar, porque no se debe de juz- jurista debe hacerse constantemente: Un proceso (0 un Derecho), apara
gar de inmediato. Primeramente hay que preparar, investigar y, 10 mas que sociedad? (',Cual es el papel de un jurista en ese escenario? El autor
importante, reunir los elementos de convicción para justificar la acusa— muestra su escepticismo ante la legislación y la jurisprudencia de su
ción. Es una equivocacíón que primero se acuse, después se investigue país 37, por ello, busca ser prospectivo, Iibrándose del peso de la tradi—
y, al final, se juzgue. El costo social y económico del proceso, y los ción. Una postura “herética" en la medida en que está mas volcado en
diversos trastornos que causa al sujeto pasivo hacen necesario que lo la creatividad Y el futuro que en la reproducción del pasado. El estudio
primero sea investigar, para saber si hay que acusar o no". critico contempla los fundamentos de la instrumentalidad garantista
Asi centrado el tema, mi labor como director consistió, principalmen— como un “deber ser" Y no como un "ser", un sistema ideal opuesto a un
te, en darle a conocer los métodos complementados que debian seguirse sistema real. Galifícado por el Prof. Dr. Jacinto NELSON DE MIRANDA COU—
en la investigación, según las ensefianzas que yo habia recibido de mis TINHO, como el Malaquias del Derecho Procesal Penal, Aury ha escrito
mejores maestros: Werner GDLDSCHIVIIDT (en su concepción tridimensional un libro para hacer pensar. Elio lo lleva a cabo con tal riqueza de pers—
del mundo jurídico) Y Jaime Guasp (con su sistema lógico formal). pectivas que, al leerlo, nos parece estar examinando un diamante tan
El estudio fue dividido en tres partes: una dedicada a la ricamente tallado que, al contemplar cada faceta, nos presenta una luz
Introducción (fundamento de la existencia del proceso penal; sistemas distinta, pero siempre brillante. No es extrano el éxito que ha alcanza—
históricos: inquisitivo, acusatorio y mixto; ;; el objeto del proceso do esta obra, que también llega a 1a cuarta edición.
penal); otra, sobre los Sistemas de instrucción preliminar (en razón a El currículo de Aury completa el conocimiento de su obra: Profesor
los sujetos : sistema judicial, fiscal 1; policial; del objeto: instrucción del Programa de Posgrado (Mestrado) en Ciências Criminales de la
plenaria v sumaria; y de los actos: publicidad y secreto de las actuacio- Pontifícia Universidade Católica—PUCRS; Coordinador del Curso de
nes), ponderando sus ventajas e inconvenientes; ? una tercera que se Posgrado en Ciências Penales de 1a PUCRS; Investigador del CNPq en
ocupa del Sujeto pasivo en la instruccíón. Terminado el trabajo, 1a tesis Derecho Procesal Penal (el mas importante centro de investigación
fue calificada, por el tribunal que le confirió el grado de Doctor, con la científica de Brasil); Miembro del Consejo Directivo para Iberoamérica
máxima nota: Sobresaliente cum lauda. de 1a Revista de Derecho Procesal, y un largo etcetera.
El resultado constituye, a mi juicio, el mejor estudio de la instruc- Para cerrar esta nota, 3; no como reproche, sino como augurio,
ción preliminar llevado a cabo en Espana, lo que fue posible, justo es pienso que un autor que, acertadamente entiende, con CARNELUTTI, que
reconocerlo, por la existencia de monografias tan sugerentes como la la simetria y la armenia son elementos indispensables de un trabajo
del Magistrado Miguel PASTOR LÓPEZ, sobre El proceso de persecución, o cientifico, tiene que completar su obra ocupándose del tercer elemento
investigaciones tan fundamentales como los Comentarios a la Ley de de la trilogia de los sujetos del proceso penal. Si ya ha analisado lo que
Enjuiciamíento Criminal del Profesor Emilio Gór/1132 ORBANEJA, o las bril- concíerne al órgano jurisdiccional v al sujeto pasivo. todos los que le
lantes exposiciones generales contenidas en los diversos "Manuales" admiramos en su tarea juridica, V le queremos como persona, espera-
que los Profesores utilizan, preferentemente, para la formación univer- mos un estudio suvo sobre el otro protagonista del proceso penal: la
victima del delito.
sitaria, así como los diversos trabajos que se recogen en la bibliografia
que figura al final del estudio.
Los juristas espanoles no tiene 1a suerte de poder conocer tal tra-
bajo en castellano, pero si pueden utilizar el texto publicado en Rio de
Janeiro, por la Editora Lumen Juris en 2001, con el titulo Sistemas de

mii
Nota do Autor

A origem desse trabalho remonta ao ano de 1997, quando encon-


trei — realmente ao acaso, pois ninguém me indicou — a obra Derecho y
Razón, de LUIGI FERRAJOLI, numa livraria de Madri. Já tinha iniciado
minha tese de doutorado na Universidad Complutense e tive que pará-
1a, pois naquele livro encontrei muito do que queria dizer, mas não sabia
como (muitos anos depois, conversando com PERFECTO IBANEZ, des—
cobri que essa sensação também foi compartilhada por ele e confessa-
da por outros tantos). Comecei reescrevendo o primeiro capitulo da
tese, que passou a ser "El Fundamento de 1a Existencia del Proceso
Penal: 1a instrumentalidad garantista", posteriormente incluído na obra
“Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal". Nesse
momento, nascia o sonho desse “livrinho", só agora concretizado.
Recordo que mí maestro PEDRO ARAGONESE'S ALONSO adver-
tiu—me dos perigos que isso encerrava. Ele, como de costume,:tinha
razão: na defesa da tese, paguei pelo meu deslumbramento com o
garantismo....mas valeu a pena. Agradeço ao acadêmico "puxão de ore—
lhas" que recebi, especialmente de ANTONIO GARCIA—PABLOS DE
MOLINA e de ANDRES DE LA OLIVA, pois-foi merecido.
De volta ao Brasil, novamente o acaso (ou a imprevisíbilidade de
um futuro contingente) me conduziu à PUCRS, especialmente ao
Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, permitindo um
convivio diário com a interdisciplinaridade. Lá estavam, entre outros
brilhantes pesquisadores, RUTH GAUER e SALO DE CARVALHO.
Com SALO aprendi e aprendo muito. mas agradeço, especialmen-
te, por me ensinar a criticar a critica, superar o deslumbra e alcançar
um certo grau de maturidade cientifica, descolando—me do garantismo,
para seguir a caminhada, sem que isso signifique abandona-lo total—
mente enquanto matriz teórica.
Também aproxirnei«me de JACINTO NELSON DE MIRANDA COU—
TINHO. do qual nunca tive o privilégio de ter sido aluno, mas compen-
sei isso ouvindo-Ihe atentamente, em cada palestra, em cada conversa,
lendo tudo o que escreve. JACINTO é um "maestro" do processo penal;
naquele glorioso sentido atribuído por CALAMANDREI ao homenagear
JAMES GOLDSCHMIDT no trabalho, un maestro di liberalismo proces-

)DCÍJC
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

scale. O sonho do "livrinho" so estaria completo se tivesse o aval de rias exceções —— segue sendo dominada pelo velho senso comum teóri-
JACINTO. Obrigado amigo, é uma honra ter o teu prefácio. co, não apresentando nenhuma "inovação“ digna de nota; em segundo
O golpe final veio com o aprendizado denso (para não“ dizer dolo- lugar, porque quando pesquiso e escrevo busco ser prospectivo, livran-
rosol) e constante com RUTH CHITTÓ GAUER, que derrubou de vez a do-me do peso da “tradição". É também uma postura herética, na
estrutura tradicional. Costumo dizer que RUTH é o mais autêntico medida em que estou mais voltado para a criatividade e o futuro do que
"homem de ciência" que já conheci, sempre anos-luz à frente de todos.
Como se não bastasse tanto saber, ainda possui um imenso coração,
para a reprodução e o passado.2 .
No Brasil, a jurisprudência tende a ser autofágica: alimenta os
sempre disposto a tolerar os limites e ignorâncias alheias, incluindo a manuais e, depois, regressa a eles, para alimentar—se (de si mesma, em
minha, é claro. Minha dívida com RUTH GAUER é absolutamente ímpa- última análise). É um ciclo que impede qualquer evolução. Daí a sua
gável, em todos os sentidos. Com ela aprendi (também) a perguntar:
Um processo (ou Direito) para que sociedade? Qual o papel do Direito
pouca relevância na academia. .
Voltando ao questionamento inicial, a resposta — a meu sentir —
e do jurista nesse cenário?
parte da consciência da falência do monólogo cientifico (incluindo o
Essa é a primeira pergunta que um jurista deveria (constantemen- juridico), passando pela complexidade (marca indelével das someda-
te) se fazer. Pena que isso não ocorra; basta analisar como se dá o pro- des contemporâneas), inserindo-se na epistemologia da incerteza (que
cesso legislativo ou mesmo a formação da jurisprudência nesse país. remonta à Relatividade de EINSTEIN, mas que continua sendo uma
Quanto maior for o conhecimento da forma de produção da lei e da ilustre desconhecida para o "mundo" do Direito) e chegando finalmen-
jurisprudência,?[ maior é a cautela com que temos que tratar a ambas. te no Tiempo e na aceleração (o paradoxo da dinâmica social frente ao
Cada vez mais evidencia-se a imensa distância que separa esse tipo de tempo do direito) que pauta nossas vidas.
lei e de jurisprudência do Direito, ou ainda, entre eles e a Constituição. E, falando em tempo, dediquei uma parcela bastante prazerosa
E, entre tudo isso, e a sociedade em que se inserem. (espero que o leitor também desfrute) dele para analisar o difícil equi-
É por isso que nunca idolatrei as divindades lei e jurisprudência. A librio do ciclista: não correr demais para não atropelar as garantias fun—
primeira exige uma profunda análise sobre sua validade substancial, damentais, e, ao mesmo tempo, não ir muito devagar, para não "cair".
corno abordo (introdutoriarnente) no tópico destinado à "Fundamen— Procurei desvelar a falácia eficientista da urgência e do utilitarismo
tação das Decisões Judiciais". Já a segunda (jurisprudência) nunca me antigarantista no Capítulo 1, onde trato do atropelo das garantias fun-
preocupou, por dois motivos: em primeiro lugar porque — corn meritó- damentais, reservando para o Capítulo II o estudo de um "jovem direi-
to fundamental", quase desconhecido pela doutrina e jurisprudência
brasileiras: o direito de ser julgado em um prazo razoável. A preocupa-
l A título de ilustração, veja-se a] palestra proferida na Unip pelo vice-presidente do
Supremo Tribunal Federal, Min. Nelson Jobim, noticiada pelo Jornal Estado de São Paulo ção aqui foi com a (de)mora jurisdicional, superando o (lugar-comum)
(“..lohim revela julgamentos por atacado no STF", em 07/10/2003), onde ele revela (o que do empirismo, para buscar uma leitura cientifica desse fenômeno, a luz
já é de todos conhecido, mas não assumido) que, "em 2502, o STF julgou 171.980 proces- da jurisprudência do TEDH, da CADH e das "soluções" (compensato—
sos, o que da uma media de 17,1 mil por ministro em 10 meses de trabatho (os magistra-
dos têm 2 meses de férias), ou BB a cada dia. A primeira impressão que tomou conta dos rias, processuais e sancionatórias) normalmente empregadas.
assistentes e de que os ministros trabalham desbragadamente. Mas, logo a surpresa Nesse (complexo) contexto, dominado pelo risco e o tempo, cons—
tomou conta do auditório, quando ele emendou: Façam as contas, é so' dividir que vocês cientes das incertezas e inseguranças que nos rodeiam, conclui que é
vão chegar a quantos recursos os ministros j olgam por dia:1'sto não é verdadeiro. Aos incre-
dulos, informou que a Corte realiza julgamentos em série. Ele fez um convite para que necessário definir os contornos de um sistema de garantias minimas,
assistam a uma sessão da segunda turma do Supremo, da qual faz parte. Segundo Jobim, das quais o processo pena] não pode prescindir. São as regras do jogo,
a sessão começa com o presidente da turma, Celso de Mello, conclamando para os julga-
mentos íguais. Ao transmitir como ocorre a parte final. arrancou gargalhadas: Vamos à
lista do mim'stro Jobim. Sessenta processos. Nego provimento, sem destaque. De acordo?
De acordo. Pronto, La julgado." Desnecessário apontar que a quantidade mata a qualida— 2 invocando aqui o conceito de herege magistralmente explicado & analisado por IIIJEG-
de e o caráter antropológico de cada processo. Fenômeno semelhante encontramos no NARDO BOFF, no "Prefácio. Inquisição: um espirito que continua a extstir. In:
STJ. nos Tribunais de Justiça e nos Tribunais Regionais Federais espalhados pelo país. Directorium Inquisitorum — Manual dos Inquisidores, p. 12.

mi
Aury Lopes Jr.
Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da lnstrumentalidade Constitucional)

ou melhor, como“ ensina JACINTO, as regras que definem o conteúdo das prisões cautelares, enfim, uma série de dogmas repetidos sem
ético e axiológico do próprio jogo.3 maior reflexão e critica.
Utilizo a concepção de garantismo de FERRAJOLI, mas sem limi—
Claro que isso é muita pretensão para esse "livrinho", dirão (acer—
tar-me 'a ela.4 A preocupação com o referencial constitucional-garantis- tadamente) alguns. Por isso ele é, assumidamente, “introdutório", res-
ta justifica-se na medida em que enfrentamos um contexto social e juri—
dico bastante peculiar e complexo, fortemente influenciado pela dita- pondo(erei). Meu objetivo e apenas esse: introduzir o estudioso do pro-
cesso penal numa perspectiva critica (recordamos que a critica e sem—
dura da urgência e a tirania do tempo curto, pela lógica mercantilista, pre um espaço a ser preenchido).
pelo simbólico do direito penal máximo e a exigência de um processo Por fim, permito-me transcrever uma advertência que ZAFFARONI
penal utilitarista. Quanto maior é a contaminação por tal furor punitivo, faz na apresentação da excelente obra de ANA NIESSUTI6 e que bem
maior é a necessidade de estabelecer um sistema dotado de garantias reflete o que penso nesse momento:
mínimas e inalienáveis, que informem um processo penal a serviço da
efetiva tutela dos direitos fundamentais assegurados na Constituição. Leitor amigo (ou inimigo): não sou ninguém para dar-te conse-
Um verdadeiro freio aos excessos do poder punitivo estatal e instru— lhos, mas, por ser um antigo cliente das tabernas penais, costumo
mento a serviço do individuo, atuando ainda como filtro constitucional, fazê—lo. Se trabalhas com o Direito (Processual) Penal, vais bem em
pelo qual devem passar as normas penais e também processuais. tua carreira e avanças burocraticamente, é melhor que termines
A obra situa-se no campo da critica, logo, um espaço a ser preen— aqui a leitura desse livro, que apenas pode perturbar o brilhante
chido, que parte, entre outras, da premissa de que todo saber é data- futuro que te oferece o mundo de fantasia do Direito (Processual)
do. Toda doutrina ou teoria tem prazo de validade, como ensina EINS— Penal. Se não te dedicas ao Direito (Processual) Penal, ou se o fezes,
TEIN. Na mesma linha, OST5 aponta que “toda ciência começa por uma e te encontras insatisfeito nesse mundo, recomendo que o leias.
recusa (...) o espirito cientifico mede-se pela sua capacidade de reques— Talvez, ao virar a última página, sintas & tentação de abandonar o
tionar as certezas do sentido comum — tudo aquilo que BACHELARD Direito (Processual) Penal. Não te confundas: não se trata de deixar
designava pelo nome de obstáculo epistemológico". Se não fosse assim, o Direito (Processual) Penal, mas o mundo do Direito (Processual)
não haveria motivo para a ciência buscar novas fronteiras, bastando Penal. A chave está em tratar de reconstruir o Direito (Processual)
resumir-se a reproduzir o conhecimento científico dos antepassados. Penal a partir do lado de fora desse mundo. E para isso este livro
Entre as várias “recusas" que fazemos, estão o utilitarismo proces- deve ser lido.
sual, o atropelo de direitos e garantias fundamentais, a falta de uma
jurisdição de qualidade, o tribunal do júri, a prevenção como causa fixa— Ficaria satisfeito se esse trabalho constituísse uma recusa, mas
dora da competência, o juiz com poderes instrutórios, o mito da verda— também um instrumento de ócio criativo, no sentido empregado por
de real,.a publicidade abusiva, a transmissão mecânica de categorias DOMENICO DE MASI. Que fosse uma leitura agradável, estimulante e,
do processo civil (fumus boni iuris e periculum in mora?), a banalização
principalmente, capaz de gerar uma salutar inquietação no leitor, agu-
çando sua recusa—criatividade. O Direito carece desse binômio, e ele e
fundamental para que possamos nos libertar do peso da tradição (na
& COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. "0 papel do novo juiz no processo penal", p. 47. sua acepção negativa, é claro).
4 Sempre recordando as acertadas palavras de GERALDO PRADO (Nota do autor a segun-
da edição da obra Sistema Acusarririo, p. iuri), de que "o garantismo não é uma religião e Deixo a disposição do leitor meu e-mail aur 'unior ucrs.br e
seus defensores não são profetas ou pregadores utópicas. Trata-se de um sistema incom- minha página wmv. aurylopescombr (e gratuita..) onde terei o
pista e nem sempre harmônico, mas sua principal virtude consiste em reivindicar uma maior prazer em compartilhar intranqi'iilidades em torno do que CAR-
renovada racionalidade, baseada em procedimentos que têm em vista o objetivo de conter
os abusos do poder e criar condições para que este mesmo poder possa integrar as pes-
soas, eliminando dentro do possivel todas as formas de discriminação." (gritar:-ros)
5 OST, François. O Tiempo do Direito, 13. 327. ' 6 MESSUTI, Ana. O Tiempo como Pena, p. 14.

modii
Aury Lopes Jr.

N'ELUTTI, do alto de sua genialidade. definiu como as misérias do pro-


cesso pena]. Nota do Autor à 3ª Edição
Um abraço e boa leitura.

A velocidade é a marca indelével das sociedades contemporâneas.


A primeira edição esgotou tão rapidamente, que sequer tive tempo de
fazer uma "nota do autor", e, por pouco, a terceira edição quase sai sem
um comentário....
Mas essa e uma aceleração que me trouxe muito prazer, pois refle-
te a excelente receptividade que esse livro teve e está tendo e. por isso,
inicio agradecendo meus leitores por todo o carinho.
Por ser um livro centrado nos princípios que fundam o processo
penal, é natural que o nivel de "atualizações" que ele sofra, seja mini—
mo, reservando-as para situações realmente relevantes. Creio que a
Emenda Constitucional nº 45 seja uma dessas situações, especialmen—
te porque consagra (finalmente) o direito de ser julgado em um prazo
razoável (e do qual eu já falava ha muito tempo, com base na Convenção
Americana de Direitos Humanos), a possibilidade de sanções adminis—
trativas para o juiz responsável pela (de)rnorajurisidicicna1 e outras ino-
vações dignas de elogio. Mas também trouxe institutos lamentáveis,
como a súmula vinculante e & federalização dos crimes que acarretem
grave violação de direitos humanos (com a possibilidade de "evocação"
dos processos). Assim, ainda que sumária e introdutoríamente, inseri
alguns comentários específicos sobre essas questões.
Aproveitei, ainda, para suprir uma lacuna deixada na crítica ao
Tribunal do Júri, abordando a problemática em torno da decisão de
impronúncia e o estado de pendência que ele gera.
No resto, mantive tudo igual, fiel as minhas convicções e esperan—
ças de modificações. Finalize agradecendo meus leitores pela carinho-
sa acolhida, deixando minha página wmvaurvlopescombr a disposi-
ção para receber suas críticas e sugestões.
Um abraço e boa leitura!

zoom!
Nota do Autor a 4ª Edição
(ou porque mudei o subtítulo do livro...)

A cada nova edição, renovo os agradecimentos aos meus leitores


e leitoras pela calorosa acolhida, manifestada nos diversos emails que
recebo diariamente e também no contato pessoal, nas muitas aulas e
palestras que tenho ministrado por todo o pais. Nunca e excesso agra—
decer esse carinho.
Essa 4ª edição foi (novamente) revisada, pois sempre sobrevivem
alguns erros de digitação, formatação e até repetições desnecessárias.
Agradeço, especialmente, & valiosa revisão que Luciane Potter Biten-
court e Rodrigo Mariano da Rocha fizeram para substancial melhoria
dessa edição.
Além da revisão e atualizações de praxe, a obra recebeu uma
inestimável contribuição: a apresentação de um dos maiores proces—
sualistas espanhóis, PEDRO ARAGONESES ALONSO. Respeitadissi-
mo Catedrático e Professor Emérito da Universidad Complutense de
Madrid, atual Diretor da tradicional Revista de Derecho Procesal — do
Instituto Iberoamericano de Derecho Procesal, PEDRO ARAGONESES
foi meu orientador no Doutorado que lá realizei e que culminou na tese
"Sistemas de Investigación Preliminar en el Proceso Penal".1 aprovada
com nota máxima e voto de louvor unânime. Elementar que & orienta—
ção segura e o rigor (pero sin perder la ternura jamais) desse notável
jurista foram decisivos para o êxito do trabalho. Mas, para além disso.
tive o privilégio de desfrutar do convívio desse autêntico homem de
ciência, nas inesquecíveis conversas que tinhamos na sala de sua
casa, onde sempre me recebia com muito carinho. Mais do que me
ensinar a pensar o Direito Processual Penal, 0 Prof. Dr. PEDRO ARAGO—
NESES foi um marco decisivo na minha vida profissional e pessoal.
Gracias Don PEDRO]
Também ampliei e atualizei alguns conceitos e posições (revisitar
sempre, pois todo saber é datado ensina Einstein."), a começar pelo
subtítulo da obra.

1 Cuja essência foi publicada pela Editora Lumen Juris, sob o título de "Sistemas de
Investigação Preliminar no Processo Penal".
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

Mas, se a receptividade tem sido tão boa, por que mudei o subti- algumas perigosas armadilhas que podem surgir quando da sua apli-
tulo da obra? Sera que "deixei de ser garantista" (como se as coisas cação no Processo Penal.
fossem tão simples assim)...? É importante denunciar o perigo que encerram as viragens ligiiis—
Desde a antropologia, diria que se trata de uma técnica de enco- ticas, os giros discursivos, muitas vezes pregados por lobos, que, em
brimento do estigma para facilitar o alinhamento grupal... pele de cordeiro (e alguns ainda dizem falar em nome da Constitui-
Explico. Já na primeira edição afirmei que o garantismo era um ção...), seduzem e mantém em crença uma multidão de ingênuos, cuja
importante referencial teórico, mas não o único, e que a maturidade frágil base teórica faz com que sejam presas fáceis, iludidos pelo dis-
curso pseudo-erudito desses ilusionistas. Cuidado leitor, mais perigoso
cientifica exigia a superação do deslumbramento para continuar a
caminhada rumo a um processo penal verdadeiramente constitucional do que os inimigos assumidos (e, por essa assunção, até mereceriam
algum respeito) são os que, falando em nome da Constituição, operam
e democrático. Para nos, conscientes do baixo nível de interiorização num mundo de ilusão, de aparência, para seduzir os incautos. Como diz
dos postulados constitucionais e da necessidade de uma radicalização JACINTO COUTINHO, no prefácio dessa obra, “parecem pavões. com
(constitucional e) democrática, o garantismo era (e continua sendo) belas plumas multicoloridas, mas os pés cheios de Graca".
uma importante alavanca teórica. É um ponto de partida, mas não o Mas voltando ao novo subtítulo, em suma, para os que compreen-
ponto final. Disso, temos pouca dúvida. dem o que estou falando (e falei desde sempre), nenhuma alteração
Infelizmente, vivemos num pais em que predomina a idéia de que substancial, senão um ajuste de conceitos.
a diferença é desorganizadora por definição. Tomando emprestada a Superada essa questão, fiz diversas revisões pontuais ao longo do
lição de ROBERTO KANT DE LIMA,2 proliferam os adeptos do "não li e texto e também em notas de rodapé. Entre elas, gostaria de confessar
não gostei", tão ao estilo brasileiro, de quem "olha sempre com suspei- minha insatisfação com o mito da verdade no processo penal. Sempre
ção o que não e coerentemente apresentado como parte de um pensa- me preocupei em desconstruir a tal verdade real, o que é bastante sim-
mento já definido em suas premissas".3 Acrescentem-se uma boa dose ples, em que pese seus nefastos efeitos, pois ela não resiste a uma
de ilusão punitiva, a la lei e ordem, que teremos um terreno fértil para mirada mais detida. Contudo, também não estou satisfeito com a ver-
a explosão do patrulhamento ideológico, no mais puro estilo Nicolau dade processual, pois, carneluttianamente, compreendo que a verdade
Eymerich (no seu Directon'um Inquisitorum). Inclusive, não faltam ten— está no todo e o todo é demais para nós. Há um excesso epistêmico.
tativas de (nos) impor um silêncio obsequioso... Então, explico a critica de Carnelutti a estéril distinção entre verdade
Então, para superar e até encobrir o estigma do garantismo, fugir formal e material e sua proposta, pela tal certeza jurídica. O problema
do reducionismo grosseiro e interesseiro daqueles que "não leram, não é que a “certeza" juridica também não me satisfaz. Nas edições ante-
compreenderam e dizem que não gostaram", seguimos com a caminha— riores, em nota de rodapé, expliquei a superação da certeza e necessi-
da rumo a radicalização constitucional, adotando a "instrumentalidade dade de trabalhar-se com as categorias de possibilidade, probabilidade
constitucional do processo penal", com certeza mais adequada para e até de propensão.
legitimar o fundamento (da existência) que busco. Contudo, hoje, estou a caminho do abandono completo da verda-
Estou cada vez mais convencido de que o processo penal é um ins— de no processo penal, pois penso que a questão situa-se noutra esfera:
trumento a serviço da máxima eficácia dos direitos e garantias consti— a da crença, do convencimento. Descolada a verdade do processo, foi
tucionais, e que isso não pode ser reduzido a um "mero garantismo". necessário suprimir o interessante “(mas agora isolado) tópico sobre "a
E, tocando no conceito "instrumentalidade", destaco que ele tam- contaminação da evidência sobre a verdade: prisão em flagrante, aluciv
bém foi revisitado, diante da necessidade de desvelar e advertir para nação e ilusão de certeza" que havia nas edições anteriores. Era preci-
so manter a coerência com a postura de quem pensa a sentença como
um ato de crença (e de fé) do julgador, bem como de que o processo
2 KANT DE LIMA, Roberto. A antropologia da academia: quando os indios somos nos. 25! penal não pode alcançar a verdade, pois ela é excessiva. A verdade é;
edição. Niteroi, EDUFF, 1997, p. 30. demais para nos (Carnelutti) e para o ritual judiciário. Mas o tema e
3 Idem, ibidem.
Aury Lopes Jr.

complexo e ainda estou construindo e estruturando o pensamento. Dai


porque esclarecer e preciso: neste tópico, o leitor encontrará um esbo- Capitulo I
ço daquilo que ainda estou construindo. Nada de ponto final. Apenas o O Fundamento da Existência do Processo
compartilhar de urna intraqiiilidade e o sinalizar de uma direção.
O que importa é (re)pensar sempre, para não cair na perigosa Penal: Instrumentalídade Constitucional
armadilha do ingênuo repouso dogmática... ou pior, na arrogante ilusão
de que se sabe algo.
Um abraço e boa leitura!

Diante do “direito penal do terror", implementado pelas políticas


repressívistas de lei e ordem. tolerância zero. etc., o processo passou a
desempenhar uma missão fundamental numa sociedade democrática,
enquanto instrumento de limitação do poder estatal e. ao mesmo
tempo, instrumento a serviço da máxima eficácia dos direitos e garan—
tias fundamentais.
A questão a ser enfrentada e exatamente (re)discutir qual é o fun—
damento da existência do processo penal, por que existe e por que pre-
cisamos dele. A pergunta poderia ser sintetizada no seguinte questio-
namento: Processo Penal, para queóm)?
Buscar a resposta a essa pergunta nos conduz à definição da lógi-
ca do sistema, que vai orientar a interpretação e a aplicação das nor—
mas processuais penais. Noutra dimensão, significa definir qual é o
nosso paradigma de leitura do processo penal, buscar o ponto fundan-
te do discurso.
Nossa opção e pela leitura constitucional e. desta perspectiva,
visualizamos o processo penal como instrumento de efetivação das
garantias constitucionais.
J .GOLDSCHMIDT,1 a seu tempo,2 questionou:

Por que supõe a imposição da pena a existência de um pro—


cesso? Se o ius puníendi corresponde ao Estado, que tem o poder
soberano sobre seus súditos, que acusa e também julga por meio
de distintos órgãos, pergunta-se: por que necessita que prove seu
direito em um processo?

1 Problemas Jurídicos y Políticos do] Proceso Pena], 13. 7.


2 Logo. considerando que todo saberá datado. interessa-nos mais a pergunta do que a res-
posta dada pelo autor naquele momento.
Introdução Critica ao Processo Penal
Aury Lopes Jr. (Fundamentos da Instrumentaiidade Constitucional)

A resposta passa. necessariamente, por uma leitura constitucional (195 que não a invocação da devida tutela jurisdicional. lmpõe—se a
necessária utilização da estrutura preestabelecida pelo Estado —- o pro-
do processo penal. Se, antigamente, o grande conflito era entre o direi-
cesso judicial - em que, mediante a atuação de um terceiro imparcial,
to positivo e o direito natural, atualmente, com a recepção dos direitos
cuja designação não corresponde à vontade das partes e resulta da
naturais pelas modernas constituições democráticas, o desafio é outro: imposição da estrutura institucionai, será apurada a existência do deli-
dar eficácia a esses direitos fundamentais.
to e sancionado o autor. O processo, como instituição estatal, e a única
Corno aponta J .GOLDSCHMIDT,3 os principios de política proces— estrutura que se reconhece corno legitima para a imposição da pena.
sual de uma nação não são outra coisa do que segmento da sua políti— Isso porque o Direito Penal é despido de coerção direta e, ao con-
ca estatal em geral; e o processo penal de uma nação não é senão um trário do direito privado, não tem atuação nem realidade concreta fora
termômetro dos elementos autoritários ou democráticos da sua do processo correspondente.
Constituição. No direito privado, as normas possuem uma eficácia direta, ime-
A uma Constituição autoritária vai corresponder um processo diata, pois os particulares detém o poder de praticar atos jurídicos e
penal autoritário, utilitarista (eficiência antigarantista). Contudo, a negócios jurídicos, de modo que a incidência das normas de direito
uma Constituição democratica, como a nossa, necessariamente deve material -— sejam civis, comerciais, etc. - e direta. As partes materiais,
corresponder um processo penal democrático e garantista, até porque em sua vida diária, aplicam o direito privado sem qualquer intervenção
a ideia de garantismo brota da Constituição, da noção de garantia dos órgãos jurisdicionais, que em regra são chamados apenas para
substancial que dela emerge. solucionar eventuais conflitos surgidos pelo incumprimento do acorda-
Assim, devemos definir o fundamento legitimante da existência do. Em resumo, não existe o monopólio dos tribunais na aplicação do
de um processo penal democrático, através da instrumentalidade cons— direito privado e ni siquiera puede decirse que estatisticamente sean sus
titucional, ou seja, o processo como instrumento a serviço da máxima aplicadores mas importantesª
eficácia de um sistema de garantias minimas. Por outro lado, totalmente distinto e o tratamento do Direito Penal.
pois, ainda que os tipos penais tenham uma função de prevenção geral
I. Princípio da Necessidade do Processo em Relação e também de proteção (não só de bens jurídicos, mas também do par—
a Pena ticular em relação aos atos abusivos do Estado), sua verdadeira essên-
cia está na pena e a pena não pode prescindir do processo penal.
Existe um monopólio da aplicação da pena por parte dos órgãos juris—
A titularidade exclusiva por parte do Estado do poder de penar
dicionais e isso representa um enorme avanço da humanidade.
surge no momento em que é suprimida a vingança privada e são Para que possa ser aplicada uma pena, não so é necessário que
implantados os critérios de justiça. O Estado, como ente jurídico e poli— exista um injusto tipico, mas também que exista previamente o devido
tico, evoca para si o direito (e o dever) de proteger a comunidade e tam—
processo penal. A pena não só é efeito jurídico do delito? senão que e
bém o próprio réu, como meio de cumprir sua função de procurar o bem um efeito do processo; mas o processo não é efeito do delito, senão da
comum, que se veria afetado pela transgressão da ordem juridico- necessidade de impor a pena ao delito por meio do processo.
penal, por causa de uma conduta delitiva.4
A pena depende da em'sténcia do delito e da existência efetiva e
A medida que o Estado se fortalece, consciente dos perigos que total do processo penal, posto que, se o processo termina antes de
encerra a autodefesa, assume o monopólio da justiça, ocorrendo não só
a revisão da natureza contratual do processo, senão a proibição expres—
sa para os particulares de tomar a justiça por suas próprias mãos. Fiente
à violação de um bem juridicamente protegido, não cabe outra ativida- 5 Salvo aquelas protegidas pelas causas de exclusão da ilicitude ou da culpabilidade juri-
dicamente reconhecidas pelo Direito Penal.
E MONTERO AROCA. Juan. Principios del Proceso Penal. 13. 15.
7 Como explica GOMEZ ORBANEJA. Comentarios a la Ley de Enjuiciamiento Criminal.
3 Problemas Jurídicos y Politicos de! Proceso Penal, 13. 67. Tomo I, pp. 27 e ss.
fl ARAGONESES ALONSO. Pedro. Instituciones de Derecho Process] Penal, 13. 7.
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

desenvolver—se completamente (arquivamento, suspensão condicional, LAURIA TUC0112 aponta para a imposição de uma autolimitação
etc.) ou se não se desenvolve de forma válida (nulidade), não pode ser do interesse punitivo do Estado—Administração, que somente poderá
imposta uma pena. realizar o Direito Penal mediante a ação judiciária dos juizes e tribunais.
Existe uma íntima e imprescindível relação entre delito, pena e Entendemos que a exclusividade dos tribunais em matéria penal
processo, de modo que são complementares. Não existe delito sem deve ser analisada em conjunto com a exclusividade processual, pois,
ao mesmo tempo que o Estado prevê que só os tribunais podem decla-
pena, nem pena sem delito e processo, nem processo penal senão para
determinar o delito e impor uma pena. rar o delito e impor a pena, também prevê a imprescindibilidade de que
essa pena venha por meio do devido processo penal. Ou seja, cumpre
Assim, fica estabelecido o caráter instrumental do processo penal aos juízes e tribunais declararem o delito e determinar a pena propor-
sário para a pena. .
com relação ao Direito Penal e a pena, pois o processo é o caminho neces-

E o que GOMEZ ORBANEJAB denomina de principio de 1a necesi-


cional aplicável, e essa operação deve necessariamente percorrer o
leito do processo penal válido com todas as garantias constitucional-
mente estabelecidas para o acusado.
dad del proceso penal, amparado no art. 19 da LECrim.9 pois não existe Aos demais Poderes do Estado — Legislativo e Executivo — está
delito sem pena, nem pena sem delito e processo, nem processo penal vedada essa atividade. Inobstante, como destaca MONTERO AROCA,13
senão para determinar o delito e atuar e pena. O princípio apontado absurdamente ...se constata dia a dia que las leyes van permitiendo a los
pelo autor resulta da efetiva aplicação no campo penal do adágio lati- organos administrativos imponer sanciones pecuniarias de tal magnitud,
no nulla poena et nulla culpa sine iudicio, expressando o monopólio da muchas veces, que ni siquiera pueden ser impuestas por los tribunales
jurisdição penal por parte do Estado e também a instrumentalidade do como penas. Da mesma forma, na execução penal, conforme abordare—
processo penal. mos oportunamente. constata-se uma excessiva e perigosa administra—
São trêslº os monopólios estatais: tivização, onde faltas graves —— apuradas em procedimentos adminis—
trativos inquisitivos — geram gravíssimas consequências.
a) Exclusividade do Direito Penal;. Outra situação que nos parece inaceitável é a aplicação de uma pena
b) Exclusividade pelos Tribunais; . sem que tenha antecedido na sua totalidade um processo penal válido,
c) Exclusividade Processual. como alguns juizes já decidiram na transação penal, prevista no art. 72
c/c 85 da Lei 9.099. Uma leitura equivocada dos referidos dispositivos per-
mitiu que a pena de multa. aplicada de forma imediata na audiência pre—
Como explicamos, atualmente a pena é estatal (pública), no sentido liminar, fosse convertida em pena privativa de liberdade ou restritiva de
de que o Estado substituiu a vingança privada e com isso estabeleceu
direitos, quando não fosse paga pelo acusado. O resultado iinal é absur—
que a pena é uma reação do Estado contra a vontade individual. Estão do: uma pena privativa de liberdade (fruto da conversão), sem culpa e
proibidas a autotutela e a-“justíça pelas próprias mãos". A pena deve sem que sequer tenha einstido o processo penal. E um exemplo de sub-
estar prevista em um tipo penal e cumpre ao Estado definir os tipos versão de princípios garantidores básicos do processo penal.
penais e suas consequentes penas, doando o tema completamente fora Por fim, destacamos que o processo penal constitui uma instância
da disposição dos particulares (vedada, assim, a “justiça negociada").11 formal de controle do crime,14 e, para a Criminologia, é uma reação for—

& Comentarios a la Ley de Enjuicz'amiento Criminal, tomo I, p. 27.


El Norma processual penal espanhola — Ley de Enjuiciamiento Criminal. Ajustiça negociada configura uma perigosa e equivocada alternativa ao processo penal.
10 Seguindo MONTERO AROCA, Principios del Proceso Penal, pp. 16 e ss. conforme explicaremos a continuação.
'l'l lnobstante, cumpre destacar que o monopólio estatal de perseguir e punir está sendo 12 LAURIA TUCCI. Rogério. Thor-ia do Direito Processual Penal, p. 25.
questionado a cada dia com mais força, com o implemento de princípios como oportuni- 13 Prmoipios del Proceso Penal, 13. 19.
dade e conveniência da ação penal. aumento do número de delitos de ação penal privada 14 Conforme explicam FIGUEEREDO DIAS e COSTA ANDRADE na obra Criminologia, pp.
ou pública condicionada e com as possibilidades de transação penal (plea bargainiog). 355 e ss.

lh
Aury,r Lopes Jr.
introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

mal ao delito e também pode ser considerado como um instrumento de


seleção, principalmente nos sistemas jurídicos que adotam principios rito já é um indicativo de que dali nada mais poderá ser extraído). A ins—
como da oportunidade, plea bargaining e outros mecanismos de con- trumentalidade do processo é toda voltada para impedir uma pena sem
senso. Ademais, da mesma forma que o Direito Penal é excludente
(tanto quanto a sociedade), o processo e seu conteúdo aditivo só agra— Mais do que mera incursão em um mundo virtual. o processo e transformado num
vam a exclusão. eis que se trata de inegável cerimônia degradante que instrumento de pura estigmatização e rotulação, em que se pune não mais pela pena.
possui seus "clientes preferenciais". mas sim pelo fato de estar sendo processado. Agrava-se, ainda mais, o pesado custo do
processo enquanto cerimônia degradante. Sendo assim. quando há a previsibilidade de
perceber a inutilidade da persecução penal aos fins a que se presta. ou ainda. sendo pos-
II. instrumentalidade do Processo Penal sivel antever a certa decretação da prescrição retroativa com base na eventual pena em
concreto, a ser fixada pelo juiz, é correto afirmar que na ausência do interesse de agir.
Em situação similar, assim decidiu a Oitava Câmara Criminal do Tribuna] de Justiça do
Estabelecido o monopólio da justiça estatal e do processo, tratare— RS (Recurso em Sentido Estrito nº 70000566053. Oitava Cãmara Criminal do TJRS. Rel.
mos agora da instmmentaiidade. Desde logo, não devem existir pudo— Des. 'ITJPINAMBÁ PINTO DE AZEVEDO. ]. 10.04.2000): RECURSO ESTHITO. REJEIÇÃO
DE DENÚNCIA. PHESCRI ÇÃO ANTECIPADA. Inexiste prejuizo no declarar extinta a pre—
res em afirmar que o processo é um instrumento (o problema é definir tensão punitiva, seia ªai for a fase processos] em ªs venha a ocorrer. Se o processo não
o conteúdo dessa instrumentalidade. ou a serviço de que(m) ela está) for útil ao Estado, sua existência e juridica e socialmente inútil. O interesse de agir é cate-
e que essa é a razão básica de sua existência. Ademais, o Direito Penal goria básica para a noção de justa causa, no processo penal, e exige da ação penal um
resultado Útil. Sem aplicaçâo possivel de sanção, inexiste justa causa. Recurso improvido.
careceria por completo de eficácia sem a pena. e a pena sem processo Assim, é perfeitamente lícito decretar—se a prescrição pela futura pena a ser
é inconcebível, um verdadeiro retrocesso. de modo que a relação e inte- imposta, inexistindo preclusão para o Juiz. que poderá extinguir o processo por falta
ração entre Direito e Processo é patente. de interesse. ainda que já tenha recebido a denúncia. Trata-se de ausência de condi-
ção da ação que pode ser discutida e reconhecida a qualquer tempo e em qualquer fase
Da mesma forma. um processo penal que não possa gerar pena do processo. Manter um processo penal nesta situação e uma grave degeneração, que
alguma é inconcebível. Por vezes, nos deparamos com processos legitima o discurso da existência de verdadeiras penas processuais. sem qualquer
penais que são apenas geradores de estigmatização e degradação, base legal ou constitucional. É uma patologia judicial, na qual o processo é utilizado
atuando como pena em si mesmo. como forma de punição antecipada ou pena em si mesmo, tendo em vista a astigmati-
zação social que o agente sofre. a intimidação policial. o estado de angústia prolonga-
Existe uma injustificada resistência em admitir a possibilidade de da, a rotulação, etc.
uma extinção imediata do feito ou mesmo uma sentença absolutória No Estado Democrático de Direito, a estrutura do processo penal deve ser tal que se
antecipada. Nada justifica, por exemplo; manter—se um processo penal reduza ao minimo possivel o risco de erro e. em segundo lugar, o sofrimento injusto que
dele deriva (CARNELUTTI. Francesco. Derecho Prece-sal Civil yPenal. p. 308). "Dados os
quando vislumbra-se uma prescrição pela provável pena a ser aplica- mecanismos de proteção que busquem amenizar o sofrimento e os riscos que ele encer-
da,'15 ou ainda. quando a prova é absolutamente insuficiente (e o inqué— ra são um imperativo de justiça.
Por derradeiro. os opositores ao reconhecimento da prescrição pela futura pena a ser
aplicada aduzem que, ao presumir um decreto coadenatório. com base em fato futuro, se
15 A partir da dennição da prescrição retroativa, pode-se reconhecer a antecipação da pres— está indo de encontro ao principio in dubio pro ren. além de não permitir ao acusado a
crição, inovação jurídica que vem sendo incorporada vagarosamente ao Direito brasilei- possibilidade de ser absolvido. Ora, é imperativo'afirmar, em primeiro lugar. que, para o
ro. O interesse de agir deve ser enfatizado no campo penal. visto ser o processo crimi- cidadão que está com seu status dignítatis abalado por estar sofrendo um processo. é
nal uma coação somente admitida quando seu resultado se mostrar útil, já que. do preferivel terminar com a situação aditiva o mais rapido possivel a continuar sendo sub—
contrário, somente estaria caracterizando-o como meio de aflição, constrangimento e metido a ação penal. Deve-se levar em conta o desgaste pelas infindáveis realizações de
gerador de estigmatizações. Desse modo, pode-se concluir que a existência do processo atos judiciais concateoados. e. principalmente. o fator da estigmatização, que é algo ine—
está condicionada à determinação do delito e à imposição da pena correspondente. Seria vitável. Basta o individuo estar sofrendo um processo para ser rotulado socialmente.
ilógico pensar o processo com objetivo de lixar uma pena que será atacada pela prescri- Mesmo que depois venha a ser declarada sua inocência, atraves de uma sentença abso-
ção retroativa, que declarará extinta a punibilidade. Ou seja. é um processo inútil e ine- lutoria. a marca indelével deixada pelo processo não se apaga. É muito mais fácil abrir
ficaz. Nesta linha. o Des. TUPINAMEÁ PINTO DE AZEVEDO (manifestação extraída do uma ferida do que fechei-1a. sem deixar marcas ou cicatrizes. Outro aspecto importante a
voto prolatada no Recurso em Sentido Estrito nº 70000866053. Oitava Câmara Criminal ser abordado e quanto ao Em do processo. Se o fundamento da sua existência é a instru—
do TJRS, 3“. 10 de maio de 2000), destaca que "o processo, como instrumento, não tem mentalidade garantista, conforme exposto, e inequívoco que deve ser conduzido de
razão de ser. quando o único resultado previsível levara. inevitavelmente. ao reconheci- forma a proporcionar ao réu o menor sofrimento possivel. Nesses casos. a principal
mento da ausência da pretensão punitiva. Se não há efetividade. o uso do processo pelo garantia do acusado não é o devido processo legal. mas sim a de não ser submetido a
processo é mera incursão em um mundo virtual". um processo inútil. Da mesma forma, não há violação da presunção de inocência. mas
sim um reforço de tal presunção. ao evitar a estigmatização social e jurídica do acusado.
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da lnstrumentalidade Constitucional)

o devido processo (principio da necessidade), mas esse nivel de exi- ser revisitado. Claro que nunca pactuamos com qualquer visão “efi—
gência não existe quando se trata de não aplicar pena alguma. Logo, cientista" ou de que o processo pudesse ser usado como instrumento
para não aplicar uma pena, o Estado pode prescindir completamente do político de segurança pública ou defesa social. A
instrumento, absolvendo sem processo algum. Isso também está intima— Resulta imprescindível visualizar o processo desde seu exter1or
mente relacionado com o tema da dilação indevida, tratada em tópico para constatar que o sistema não tem valor em si mesmo, senão pelos
especifico, ao qual remetemos o leitor. objetivos que é chamado a cumprir (projeto democrático-constitucio-
'Itata—se de um patente constrangimento ilegal — processo substan— nal). Sem embargo, devemos ter cuidado na definição do alcance de
cialmente inconstitucional —, pois o Estado não está autorizado a utilizar suas metas, pois o processo penal não pode ser transformado em ins—
o processo penal como pena em si mesmo, e tampouco está legitimada trumento de “segurança pública". Nesse contexto, por exemplo, inse-
a estigmatização social e jurídica produzida sem suficiente justa causa. re—se a critica ao uso abusivo das medidas cautelares pessoais, espe-
A strurnemralità16 do processo penal reside no fato de que a norma cialmente a prisão preventiva para “garantia da ordem pública". 'Itata-
penal apresenta, quando comparada com outras normas jurídicas, a se de buscar um fim alheio ao processo e, portanto, estranho à nature—
característica de que o preceito tem como conteúdo um determinado za cautelar da medida. Ttataremos novamente desse tema quando ana-
comportamento proibido ou imperativo e a sanção tem como destina- lisarmos a presunção de inocência e as prisões cautelares.
tário aquele poder do Estado, que é chamado a aplicar a pena. Não é Nesse sentido, importante é a análise de MORAIS DA ROSA19
possivel a aplicação da reprovação sem o prévio processo, nem mesmo quando sublinha o perigo 'de — a transmitir-se mecanicamente para o
no caso de consentimento do acusado, pois ele não-pode se submeter processo penal as lições de Rangel Dinamarco —- pautar a instrumentali-
voluntariamente à pena, senão por meio de um ato judicial (nulla poena dade pela conjuntura social e política, demandando um "aspecto ético
sine indício). Essa particularidade do processo penal demonstra que do processo, sua conotação deontológica" (expressão de Rangel
seu caráter instrumental e mais destacado que o do processo civil. Dinamarco). Explica MORAIS DA ROSA que "esse chamado exige que o
É fundamental compreender que & instrumentalidade do processo juiz tenha os predicados de um homem do seu tempo, imbuído em redu—
não significa que ele seja um instrumento a serviço de uma única fina— zir as desigualdades sociais", baseando-se nas modificações do Estado
lidade,1ro qual seja, a satisfação de uma pretensão (acusatõria). Liberal rumo ao Estado Social, mas, “vinculada a uma posição especial
Ao lado dela, está a função constitucional do processo. como ins- do juiz no contexto democrático, dando-lhe poderes sobre-humanos, na
trumento a serviço da realização do projeto democrático (e não instru- linha de realização dos escopos processuais, com forte influência da
mento de defesa social, por evidente). Nesse viés insere—se a finalida- superada filosofia da consciência, deslizando no Imaginário e facilitando
de constitucional-garantidora da máxima eficácia dos direitos e garan- o surgimento de Juízes Justiceiros da Sociedade".
tias fundamentais, em especial da liberdade individual. E conclui o autor afirmando que a “pretensão de Dinamarco de
E, aqui, é o momento de ajustar contas com o passado (e o que que o juiz deve aspirar aos anseios sociais ou mesmo ao espirito das
escrevi em edições anteriores). O termo instrumentalidade, que sempre leis, tendo em vista uma vinculação axiológica, moralizante do juridico,
remeteu a algumas lições parciais de RANGEL DINAMARCO,18 deve com o objetivo de realizar o sentimento de justiça do seu tempo, não
mais pode ser acolhida democraticamente".
Nenhuma dúvida temos do enorme acerto e valor dessas lições, e
bem como a angústia prolongada (stato di prolungata an.-ria, reconhecido pelo atual de que esse perigo denunciado por MORAIS DA ROSA e concreto e
Código de Processo Civil italiano). Evita-se o processo e o sofrimento inútil.
16 Como explica LEONE. Elementi rir" Diritto e Procedure Penais. p. 189. encontra em movimentos repressivos, como lei e ordem, tolerância zero
17 Finalâdarle e objeto são coisas distintas, permitindo dizer que as finalidades do proces- e direito penal do inimigo, um terreno fértil para suas nefastas constru—
so vão mais aâém de seu objeto. Por isso. não existe nenhuma contradição entre plurali— ções. Mais danoso ainda são as viragens ligiiisticas, os giros discursi-
dade de funções com o fato de ser a pretensão acusatõria o objeto único do processo
penal (seguindo a teoria do objeto de JAMES GOLDSCI—IMIDT, especialmente na obra
Problemas Jurídicas y Politicos del Proceso Penal ).
18 RANGEL DINAMARCO. Candido. A Instrumentalídade do Processo. 19 MORAIS DA ROSA. Alexandre. Direito Infracional, pp. 135 e ss.
Introdução Crítica ao Processo Penal
Aury Lopes Jr. (Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

vos, pregados por lobos, que, em peie de cordeiro (e alguns ainda di- qualquer menosprezo. O Direito Penal não pode prescindir do processo,
pois a pena sem processo perde sua aplicabilidade.
zem falar em nome da Constituição...), seduzem e mantém em crença Com isso, concluímos que a instrumentalidade do processo penal
uma multidão de ingênuos, cuja frágil base teórica faz com que sejam
presas fáceis. iludidos pelo discurso pseudo-erudito desses ilusionis- e o fundamento de sua existência, mas com uma especial caracteristi-
ca: e um instrumento de proteção dos direitos e garantias individuais.
tas. Cuidado leitor, mais perigoso do que os inimigos assumidos (e, por
É uma especial conotação do caráter instrumental e que só se manifes-
essa assunção, até mereceriam algum respeito) são os que, falando em
ta no processo penal, pois trata—se de instrumentalidade relacronada ao
nome da Constituição, operam num mundo de ilusão, de aparência, Direito Penal e à pena, mas, principalmente, a um instrumento a servr-
para seduzir os incautos. Como diz JACINTO COUTINHO, no prefácio co da máxima eficácia das garantias constitucionais. Está legitimado
dessa obra, "parecem pavões, com belas plumas multicoloridas, mas enquanto instrumento a serviço do projeto constitucional. Trata—se de
os pés cheios de craca". limitação do poder e tutela do débil a ele submetido (réu, por evrden—
Em suma. nossa noção de instrumentalidade tem como conteúdo
a máxima eficácia dos direitos e garantias fundamentais da Consti—
te), cuja debilidade e estrutural (e estruturante do seu lugar). Essa
debilidade sempre existirá e não tem absolutamente nenhuma relaçao
tuição, pautando—se pelo valor dignidade da pessoa humana submeti— com as condições econômicas ou sociopolíticas do imputada—senao
de à violência do ritual judiciário.
que decorre do lugar em que ele é chamado a ocupar nas relaçoes de
Voltando ao binômio Direito Penal—Processual, a independência poder estabelecidas no ritual judiciário (pois é ele o sujeito passivo., ou
conceitual e metodológica do Direito Processual em relação ao direito seja, aquele sobre quem recaem os diferentes constragimentos e lum—
material foi uma conquista fundamental. Direito e processo constituem tações impostos pelo poder estatal). Essa é a instrumentalidade cons-
dois planos verdadeiramente distintos no sistema jurídico, mas estão titucional que a nosso juizo funda sua existência.
relacionados pela unidade de objetivos sociais e políticos, o que conduz
a uma relatividade do binômio direito—processo (substance-procedure). III. O Utilitarismo Processual (ou a Eficiência
Respeitando sua separação institucional e a autonomia de seu tra— Antigarantista)
tamento científico, o processo penal esta a serviço do Direito Penal, ou,
para ser mais exato, da aplicação desta parcela do direito objetivo?-º O sistema penal (material e processual) não pode ser objeto de
Por esse motivo, não pode descuidar do fiel cumprimento dos objetivos uma análise “estritamente juridica", sob pena de ser minimalista. até
traçados por aquele, entre os quais está o de proteção do indivíduo. porque ele não está num compartimento estanque, imune aos movi-
A autonomia extrema do processo com relação ao direito material mentos sociais, politicos e econômicos. A violência é um fato comple-
foi importante no seu momento, e, sem ela, os processualistas não xo,21 que decorre de fatores biopsicossociais. Logo, o processo,
haveriam podido chegar tão longe na construção do sistema proces- enquanto instrumento, exige uma abordagem interdisciplinar, a partir
sual. Mas isso já cumpriu com a sua função. A acentuada visão autôno— do caleidoscópio. isto e, devemos visualiza—lo desde vários pontos e
ma está em vias de extinção e & instrumentalidade está servindo para recorrendo a diferentes campos do saber.22
relativizar o binômio direito—processo, para a liberação de velhos con—
ceitos e superar os limites que impedem o processo de alcançar outros
objetivos, alem do limitado campo processual. 2.1 Explica RUTH CHITTÓ GAU'ER ("Alguns Aspectos da Fenomenologia da Violência". In:
A ciência do processo já chegou a um ponto de evolução que lhe A Fienomenoiogia da Vioiência, pp. 13 e ss.) que a violência é um elemento estrutura],
intrínseco ao fato social1 enão o resto anacrônico de uma ordem bárbara em vias de extin-
permite deixar para trás todos os medos e preocupações de ser absor— cão. Esse fenômeno aparece em todas as sociedades; faz parte, portanto, de qualquer crm-
vida pelo direito material, assumindo sua função instrumental sem iizaçâo ou grupo humano: basta atentar para a questão da violência no mundo atual,
tanto nas grandes cidades como também nos recantos mais isolados.
2.2 se o jurista consciente da insuiiciência do monólogo juridico está apto a compreender a
complexidade característica da sociedade contemporânea. Para tanto, deve ter humilda-
20 OLIVA SANTOS, na obra coletiva Derecho Process.! Penal, p, 6.
11
10
Aury Lopes Jr.
Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

Daí a importância de enfrentar o tema, abordando, entre outros, a altíssimo nível de complexidade, so' pode decorrer do completo afasta-
ideologia repressívista da “lei e ordem", na medida em que é manifes— mento do direito da realidade e/ou da imensa rna-fé por parte de quem
tação do neoliberalismo, para, após, desconstruir o utilitarismo proces- o prega. Não sem razão, foi argumento largamente utilizado por progra-
sual através dos paradigmas constitucional e garantista. mas politicos totalitários, como o nazismo (pureza de raça) ou mesmo o
comunismo (pureza de classe).
a) Movimentos Repressivistas: Lei e Ordem/Tolerância Zero Mas cada esquema de pureza gera sua própria sujeira e cada
ordem gera seus próprios estranhoszª Isso se reflete muito bem na tole-
A Visão de ordem nos conduz, explica BAUMAN,23 à de pureza, e rância zero para o outro e tolerância dez para nos e os nossos. E o cri—
de estarem as coisas nos lugares “justos" e “convenientes". É uma tério da pureza e a aptidão de participar do jogo consumista. Os deixa-
situação em que cada coisa se acha em seu justo lugar e em nenhum dos de fora são os consumidores falhos e, como tais, incapazes de ser
outro. O oposto da pureza (o imundo, o sujo) e da ordem são as coisas “individuos livres", pois o senso de liberdade é definido a partir do
fora do seu devido lugar. Em geral, não são as caracteristicas intrinse- poder de escolha do consumidor.
cas das coisas que as transformam em “sujas", senão o estar fora do Eis os impuros, os objetos fora do lugar.27 O discurso da lei e da
lugar, da ordem. Exemplifica o autor com um par de sapatos, magnifi— ordem conduz a que aqueles que não possuem capacidade para estar
camente lustrados e brilhantes, que se tornam sujos quando colocados no jogo sejam detidos e neutralizados, preferencialmente com o menor
na mesa de refeições. Ou ainda, uma omelete, uma obra de arte culina- custo possivel. Na lógica da eficiência, vence o Estado Penitência. pois
ria que da' agua na boca quando no prato do jantar, torna-se uma man- e mais barato excluir e enoarcerar do que restabelecer o status de con—
cha nojenta quando derramada sobre o travesseiroªªl sumidor, atraves de políticas públicas de inserção social.
O exemplo é interessante e bastante ilustrativo, principalmente Trata—se de uma consequência (penal) do afastamento do Estado
num pais como o nosso, em que vira notícia no Jornal Nacional o fato do setor social, onde um menos Estado-providência necessita de um
de um grupo de favelados terem “descido o morro" e "invadido" um Estado (mais) Penal para conter a decorrente marginalização social. E
shopping center no Rio de Janeiro. Ou seja, enquanto estiverem no seu o que WACQUANTZB sintetiza em supressão do Estado econômico,
devido lugar, as coisas estão em ordem. Mas, ao descerem o morro e enfraquecimento do Estado Social, fortalecimento e glorificação do
invadirem o espaço da burguesia, esta posta a (nojenta) omelete no tra- Estado penal.
vesseiro. Está feita a desordem, a quebra da organização do ambiente. Neste cenário. o Manhattan Institute (organismo criado para apli—
Explica BAU'MAN que “ordem" significa um meio regular e estável car os principios da economia de mercado aos problemas sociais) inicia
para os nossos atos; um mundo em que as probabilidades dos aconteci- sua cruzada contra o Estado—providência de Ronald Reagan investindo
mentos não estejam distribuídas ao acaso, mas arrumadas numa hierar- em Charles Murray (definido por llllAC'.QUANT?“3 como um politólogo
quia estrita — de modo que certos acontecimentos sejam altamente pro- ocioso de reputação medíocre) para produzir a nova bíblia do projeto da
váveis, outros menos prováveis, alguns Virtualmente impossiveis.25 nova direita americana: Losing Ground: American Social Policy, 1950-
Ora, um tal "império da ordem" só pode ser fruto do autismo juri- 1980. Na intensa agenda de divulgação desse livro, milhares de dólares
dico e de uma boa dose de má-fe. A falácia do discurso salta aos olhos, foram gastos em palestras, conferências, entrevistas, midia, etc. desti-
pois uma tal ordem, numa sociedade de risco como a nossa e com um nados a demonstrar que a "excessiva generosidade das políticas de
ajuda aos mais pobres seria responsável pela escalada da pobreza nos
Estados Unidos: ela recompensa a inatividade e induz a degenerescên-
de cientifica suíicierite para socorrer—se de leituras de sociologia. antropologia, história,
psiquiatria, etc. sem falar no lastro filosófico. Não há espaço para o profissional alienado,
porque ele ali-é-nada.
26 BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade, p. 23.
23 BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade, p. 14. 27 BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade, p. 24.
24 BAUMAN. Zygmunt. Ú Mal-Estar da Pós-Modemidade, p. 14. 28 WACQUAN'I', Lolo. As Prisões da Miséria, p. 18.
25 BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade, p. 15. 29 WACQUAN'I'. Loic. As Prisões da Miséria, p. 2.2.

12.
Aurv Lopes Jr.
Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

cia moral das classes populares, sobretudo essas uniões ilegitimas que tes preferenciais da policia e, com o aval dos governantes, nunca se
são a causa última de todos os males das sociedades modernas —- entre
matou, prendeu e torturou tantos negros, pobres e latinos. A máquina
os quais a violência urbana".30 estatal repressora é eficientíssima quando se trata de prender e arre-
Num desses eventos, estava o promotor Rudolph Giuliani, que bentar hiposuficientes. Nos países da América Latina a situação é
acabara de perder as eleições para o democrata negro David Dinkins. ainda mais grave.
Ironicamente, empunhando a bandeira do zero tolerance, Giuliani Um rápido exemplo dos abusos do zero tolerance encontramos em
vence as eleições de 1993 e transforma Nova York na vitrine mundial WACOUANI'.33 Explica o autor que depois de uma série de abusos, a
dessa política repressivista. “Unidade de Luta contra os Crimes de Rua" — de Nova York — passou
Ainda as mãos do Manhattan Institute surge a broken Windows a ser objeto de intensa crítica. Trata—se de uma “tropa de choque de 380
theory, ou mais uma invencionice americana vendida aos incautos como homens (quase todos brancos), que constitui a ponta de lança da poli-
panacéia no mercado da segurança pública mundial, como definem tica de tolerância zero, são objeto de diversos inquéritos administrati—
JACINTO COUTINHO e CARVALHO,31 formulada em 1982 por James vos e dois processos por parte dos procuradores federais sob suspeita
Q. Wilson e George Kelling. Sustentam, em síntese. que todo e qual— de proceder a prisões pelo aspecto (racial pron'ling) e de zombar siste—
quer desvio de comportamento deve ser rigorosamente perseguido e maticamente dos direitos constitucionais de seus alvos. Segundo a
punido, pois quem joga uma pedra e quebra uma vidraça, hoje, amanhã National Urban League, em dois anos essa brigada, que ronda em car-
volta para cometer crimes mais graves. ros comuns e opera à paisana, deteve e revistou na rua 45.000 pessoas
Obviamente que tal "Vidência" jamais foi comprovada empirica— sob a mera suspeita baseada no vestuário, aparência, comportamento
mente. e —— acima de qualquer outro indício — a cor da pele. Mais de 37.000 des-
Das mãos de William Bratton (chefe de polícia de Giuliani e ex— sas detenções se revelaram gratuitas e as acusações sobre metade das
chefe de da segurança do metrô de Nova York) surge uma re—engenha— 8.000 restantes foram consideradas nulas e inválidas pelos tribunais,
ria de “ gestão por objetivo", visando à máxima eficiência a partir de deixando um resíduo de apenas 4.000 detenções justificadas: uma em
rígidos critérios quantitativos de avaliação. Corno define WACOUANT, onze. Uma investigação levada a cabo pelo jornal New York Daily News
ele "transforma os comissariados em centros de lucro, o lucro em ques- sugere que perto de 80% dos jovens homens negros e latinos da cida-
tão sendo a redução estatística do crime registrado. E cria todos os cri- de foram detidos e revistados pelo menos uma vez pelas forças da
térios de avaliação dos serviços em função dessa única medida. Em ordem. (...) A tolerância zero apresenta portanto duas fisionomias dia-
suma, dirige a administração policial como um industrial o faria com metralmente opostas, segundo se é o alvo (negro) ou o beneficiário
uma firma cujos acionistas julgassem ter um mau desempenho". (branco), isto é, de acordo com o lado onde se encontra essa barreira de
Obviamente que as detenções arbitrárias e todo o tipo de autoritarismo casta que a ascensão do Estado penal americano tem como efeito — ou
policial são praticados contra os clientes preferenciais do sistema, com função — restabelecer a radicalizar".34
a plena conivência e até estimulo por parte da administração (incluin- São dados estarrecedores que só reforçam nossa preocupação por
do o caso Abner Luin'la).32 uma matriz garantista que oriente o processo penal e o direito penal
Salta aos olhos que o modelo de tolerância zero é cruel, desumano (mínimo).
e totalmente aético. Os socialmente etiquetados sempre foram os clien- , . . O movimento da lei e ordem (Jaw and order) e a mais clara mani—
festação penal do modelo neoliberal, dos movimentos de extrema direi-
ta. E "velha megera Direita Penal", na expressão de KARAM.35 Praga a
30 WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria, p. 2.2.
31 COUTINHO. Jacinto Nelson de Miranda e CARVALHO. Edward Rocha de. "'IEoria das
janelas quebradas: e se a pedra vem de dentro?" In: Revista de Estudos Criminais, Porto 33 WACQUAN'I', Lnic. As Prisões da Miséria, pp. 34-35.
Alegre. Nota Dez/ETEC. nº 11, pp. 23 e ss.
32 Imigrante haitiano que foi vítima de todo tipo de tortura sexual após ser detido llegab 34 WACQUAN'I', Loic. As Prisões da Miséria, p. 37.
35 KARAM. Maria Lúcia. "A Esquerda Primitiva: Entrevista com Maria Lúcia Karam". In:
mente e conduzido a um posto policial de Manhattan.
Revista de Estudos Criminais —- ITEC. Porto Alegre. nº 1, 2.001, pp. 11 e ss. Outro movi-

14
Aury Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

supremacia estatal e legal em franco detrimento do indivíduo e de seus gos, pichadores e quebradores de vidraças que a macro-criminalidade
vai ser contida. As taxas de criminalidade realmente caíram em Nova
direitos fundamentais. O Brasil já foi contaminado por esse modelo
repressivista há mais de 10 anos, quando a famigerada Lei dos Crimes York, mas também decresceram em todo o país, porque não é fruto de
Hediondos (Lei 8072/90), seguida de outras na mesma linha, marcou a mágica politica nova—iorquina, mas sim de um complexo avanço social e
econômico daquele país. E fato notório que os Estados Unidos têm vivi—
entrada do sistema penal brasileiro na era da escuridão, na ideologia do
repressivismo saneador. A idéia de que a repressão total vai sanar o do nas últimas décadas uma eufórica evolução econômica, com aumen—
problema é totalmente ideológica e místificadora. Sacrificam—se direi— to da qualidade de vida e substancial decréscimo dos índices de desem—
tos fundamentais em nome da incompetência estatal em resolver os prego (em que pese isso estar mudando novamente). Nisto está a res—
problemas que realmente geram a violência. ' posta para a diminuição da criminalidade: crescimento econômico,
sucesso no combate ao desemprego e política educacional eficiente.
Não e necessário maior esforço para ver que exemplo claro do fra— É sempre importante destacar que a criminalidade e fenômeno
casso nos da o próprio modelo brasileiro. Basta questionar: com o
complexo, que decorre de um feixe de elementos (fatores biopsicos—
advento da lei dos crimes hediondos (e posteriores), houve a diminui- sociais); onde o sistema penal desempenha um papel bastante secun—
ção da prática dos delitos ali enumerados (latrocínio, extorsão median-
dário na sua prevenção. Ademais, na expressão de BITENCOURT37 a
te sequestro, estupro, tráfico de entorpecentes, etc.)? A política de "falência da pena de prisão" é inegável. Não serve como elemento de
aumentar penas e endurecer o regime de cumprimento diminuiu as prevenção, não reeduca e tampouco ressocializa. Como resposta ao
taxas de criminalidade urbana? Obviamente que não. A função de pre— crime, a prisão e um instrumento ineficiente e que serve apenas para
venção geral desempenhada pela norma penal é minima ou inexisten— estigmatizar e rotular o condenado, que, ao sair da cadeia, encontra-se
te. Tanto é assim, que a cada dia ocorrem mais delitos de latrocínio, em uma situação muito pior do que quando entrou. Dessarte, o Direito
extorsão mediante sequestro (agora na sua versão "relãmpago") e o «Penal deve ser minimo e a pena de prisão reservada para os crimes
tráfico de entorpecente cresce de forma alarmante, apenas para dar realmente graves.33 O que deve ser máximo é o Estado Social.
alguns poucos exemplos. -3- ' ª' - Como ZAFFARONI,39 entendemos que todo o discursos re está em
Como aponta VERA BATISTA,HG nos Estados Unidos, o marketing "crise. A pena de prisão não ressocializa, não reeduca, não reinsere
de que a redução da criminalidade urbana em Nova York foi consequên- socialmente. Do discurso “re" somente se efetivam a reincidência e a
cia da politica de tolerância zero e severamente criticada. É pura propa— rejeição social. E um discurso ao mesmo tempo real e falso. É falso o
ganda enganosa. Não e prendendo e mandando para a prisão mendi- Conteúdo, mas o discurso é real, ele existe e produz efeitos (legitimantes
do poder de punir).
' -' 'Só por acidente a pena ressocializa, porque como define GARCIA-
mento punitivo muito bem analisado pela autora é a "esquerda punitiva". Segundo PABLOS DE MOLINAzm la pena estigmatiza, no reliabilita. No limpi'a,
KARAM, tal movimento iniciou-se com a fantasia de querer usar o sistema penal contra mancha. &Cómo puede apelarse a su función resccializadcra cuando
as classes dominantes. Com a perda do referencia! socialista, a esquerda ficou sem pers-
pectiva de futuro. Não há mais socialismo, nem revoluções. fazendo com que a esquerda consta empiricamente todo lo contrario? d'C'ómo se explica el impacto
se tornasse "eleitoreira". Isso significa ajustar o discurso a "opinião pública" ou melhor, Ishabilitador del castigo yla reinserción social de! pensão si, en la esti-
"opinião publicada". permeado—se ao lado do discurso punitivo do law and order no "com—
bate à violência". Em outras palavras, a esquerda punitiva passou a defender a máxima
intervenção penal, corroborando as idéias dos movimentos de extrema direita da lei e da
ordem. Assumiu o discurso da repressão ao crime organizado, com o consequente utilita- Veja-se & obra de CEZAR ROBERTO BITENCOURT — Falência da Pena de Prisão. São
rismo processual (supressão de garantias processuais) e banalização do direito penal Paulo. RT. 1993.
(maximização), sem perceber que tal endurecimento contamina todo o sistema penal, e
culmina por atingir os próprios excluidos. que são "clientes preferenciais" do sistema. Por ora' parece-nos que o abolicionismo e utópico, principalmente nos pobres países da
América Latina.
Basta recordar que 9 % dos réus procuram a defensoria pública, porque não tem condiw
ções de pagar um advogado. Isso remete, sem dúvida, uma profunda crise de paradigmas. ZAFFARONI, Eugenio Raul. "Desafios do Direito Penal na Era da Globalização". In:
Revista Consulex. Ano V, na 106. 15 de junho/2001, pp. 27 e ss.
BE BATISTA, Vera Malaguti de Souza. "Intolerância dez, ou a propaganda é a aime do negó- Criminologia, p. 288.
cio." In: Discursos Sediciosos Ano 2, nº 4, Freitas Bastos, 1997.
Aury Lopes Jr.
Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

macián social, suele ser mas ai mero hecho de haber cumpiido ia pena Na correta definição de SALO DE CARVALHO,“ a pretensão e a
que ia propia comisión del delito, lo que implica un grave demérito a los
soberba gerada pela crença romântica de que o Direito Penal pode sai-
ojos de los conciudadaoos.
O law and order é pura propaganda enganosa, que nos fará mer— - vaguardar a humanidade de sua destruição impedem o angustiante e
gulhar numa situação ainda mais caótica. É mais facil seguir no carni— doloroso, porém altamente saudável, processo de reconhecimento dos
nho do Direito Penal simbólico. com leis absurdas, penas desproporcio— limites.
nadas e presídios superlotados, do que realmente combater a crimina— ' ' Dessarte, quanto maior for o narcisismo penal, maior deve ser
lidade. Legislar é fácil e a diarreia legislativa brasileira é prova inequí— nessa preocupação com o instnnnento—processo. Se o Direito Penal
voca disso. falha em virtude da panpenalização, cumpre ao processo penal o papel
A título de ilustração, recentemente foi noticiado pelos meios de de filtro, evitando o (abluso do poder de perseguir e penar. O processo
comunicação que existem em São Paulo cerca de 2 milhões de desem— passa a ser o freio ao desmedido uso do poder. É a ultima instância de
pregados.41 O prazo médio de reinserção no mercado de trabalho. para garantia frente a violação dos Princípios da Intervenção Mínima e da
os sortudos, é claro. e de 50 a 60 semanas. Se apenas 10% dessa multi— Fragmentariedadeªª do Direito Penal.
dão perder os limites éticos, morais e o “medo da lei“ e resolver delin-
qiiir, teremos 200 mil delinquentes cometendo delitos 24h por dia. É 5 bl Necrofilia e Autofagia do Sistema Penal
elementar que não existem Direito Penal e polícia no mundo que resol—
vem uma situação como essa!! O sistema penal é autofágico. Ele se alimenta de si mesmo.
A lei e a ordem significa uma triste opção pela gestão penal da , Primeiro vem a exclusão (econômica, social. etc.), depois o sistema
pobreza.
penal seleciona e etiqueta o excluído, fazendo com que ele ingresse no
Na síntese de ZAFFARONI.42 o aumento de penas abstratas ofere—
cidas pela hipocrisia dos politicos, que não sabem o que propor, não tem . “sistema penal. Uma vez cumprida a pena, solta-o, pior do que estava
espaço para propor, não sabem ou não querem modificar a realidade. quando entrou. Solto, mas estigmatizado. volta às malhas do sistema,
Como não têm espaço para modificar a realidade, fazem o que é mais 'para mantê-lo vivo, pois o sistema penal precisa deste alimento para
barato: leis penais! existir. E um ciclo vicioso, que só aumenta a exclusão social e mantém
Difícil é reconhecer o fracasso da política econômica' a ausência a irripunidade dos não-excluídos (mas não menos delinquentes).
de programas sociais efetivos e o descaso com a educação. Ao que Isso nos leva, também, a uma aproximação com a necroíilia: o
tudo indica, o futuro será pior, pois os meninos de rua que proliferam “amor à morte e a rejeição do novo (e sua vivacidade). O necrófilo ama
em qualquer cidade brasileira ingressam em massa nas faculdades do
crime, chamadas de Febem. A pós-graduação e quase automática,
basta completar 18 anos e escolher algum dos superlotados presídios 43 CARVALHO. Salo de. A Ferida Narcisica do Direito Penal (primeiras observações sobre as
brasileiros, verdadeiros mestrados profissionalizantes do crime. (dis)funções do controle penal na sociedade contemporânea). In: A Qualidade do Tiempo:
para alem das aparências históricas. Ruth M. Chittó Gauer (org.), p. 207.
A situação atualmente se vê agravada pela manipulação discursi— 44“ ' Como explica CEZAR BITENCOURT (Manual de .Direito Penal. v. 1, pp. 11-12) que o "prín-
va em torno da sociologia do risco. revitalizando & (falsa) crença de que - cípio da intervenção minima. também conhecido como ultima ratio. orienta e limita o
o Direito Penal pode restabelecer a (ilusão) de segurança. poder incriminaclor do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se
legitima se constituir meio necessario para a proteção de determinado bem jurídico"
cujos outros meios de controle social revelaramee insuficientes. A fragmentadedade é
decorrência da intervenção mínima e da reserva legal, significando que o Direito Penal
"não deve sancionar condutas lesivas dos bens jurídicos. mas tão-somente aquelas com
41 São dados circunscritos a um determinado espaço-tempo, quando da elaboração do tra- dutas mais graves e mais perigosas praticadas contra bens mais relevantes". Sem
balho. Contudo. o que se tem verificado são pequenas oscilações, que não afetam a subs-
tância da questão. embargo, na atualidade. o discurso fácil do repressivismo saneador fez com que o direi—
42 ZAFFARGNI. Eugenio Raul. “Desafios do Direito Penal na Era da Globalização". In: to penal simbólico — de mai-rima intervenção w sepultasse tais principios. reforçando a
Revista Consulex. Ano V. nº 106. 15 de junho,'2.001. pp. 27 e se. necessidade de termos um processo penal ainda mais preocupado em resgatar a etica—
cia do sistema de garantias do indivíduo.
Aury Lopes Jr.
Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentaiidade Constitucional)

tudo aquilo que não tem vida; por isso, prefere coisas a pessoas. Ter em gia moderna tem sido transferir para os presos e suas famílias uma
vez de ser é o que interessa.
parte dos custos da carceragem, faturando a jornada de detenção,
Nesse processo de coisificaçao'ª5 que experimenta a sociedade cobrando gastos com documentação, refeições pagas, pedágio para ter
contemporânea, o necrófilo pode relacionar—se com um objeto ou com aeesso à enfermaria, assim como diversos adicionais para o acesso aos
uma pessoa. desde que essa possua aquela. Por isso, uma ameaça às serviços do estabelecimento...
suas posses é uma ameaça a ele mesmo, pois perder a posse significa Mas esse problema é complexo e envolve, ainda, um outro fator
perder o elo de ligação com o mundo (por isso o severo apenamento dos crucial nos dias atuais: o deus mercado. Existe hoje um lucrativo mer-
delitos contra o patrimônio). cado privado de carceragem que, segundo WACQUANT,43 movimenta
O necrófilo teme a vida, porque essa é naturalmente insegura. Não cerca de quatro bilhões de dólares, com um brilhante futuro pela fren—
sem razão é o primeiro a se agarrar no discurso da (ilusão de) seguran- te.5Prova disso e que as ações da Corrections Corporation of America
ça jurídica, pois nega a vida e sua incerteza em nome desta fragilissi- foram valorizadas em 746% em três anos.
ma construção. Ademais de rentável, o encarceramento massivo também serve
A necrofih'a também está presente no neoliberalismo e na decor— para comprimir artificialmente o nivel do desemprego, ao subtrair à
rente falta de solidariedade humana que o caracteriza, levando à "logi— força milhões de homens da população em busca de emprego, chegan—
ca da negação da vida". Ao mesmo tempo em que teme a vida (sua do a tirar dois pontos do indice do desemprego americano.4º
diversidade e insegurança), o necrofilo (neoliberal) despreza a vida (do Para finalizar, surge ainda um segundo efeito nesse campo: a
outro) e com isso se insere na lógica negação da vida que acabara acar- cadeia produz um imenso contingente de mão—de—obra submissa e dis—
retando sua própria morte.
ponivel . à exploração. O ex-apenado não pode pretender senão os
Nessa linha, destaca VALLEJO:45 para os necrófilos Lei e Ordem
.«”empregos degradados e degradantes em razão do seu status judicial
são idolos e tudo o que ameaça a lei e ordem é sentido como um ataque infamante". lnequivocamente, contribui ainda para alimentar o tráfico,
satânico contra seus valores supremos. Necrófilos gostam de controle e "prostituição e todo o "capitalismo de rapina de rua", como denomina
no ato de controlar eles matam a vida. O conceito do tipo necrófilo não e WACQUANT, na medida em que o ex—apenado, rotulado, não tem outra
absolutamente uma abstração ou resumo de vários traços de comporta— saída senão a volta ao crime. É a autofagia do sistema penal.
mento disparatados. A necrofilia constitui uma orientação fundamenta]; Contrastando com os lucrativos números de Wall Street, a prisão é
a mais perigosa das orientações de vida de que o homem é capaz. uma ,"fãbrica da miséria",50 pois gera um grave empobrecimento mate-
O movimento da lei e ordem, em nome da liberdade, acaba aprisio—
nando; em nome da ordem pública, sacrifica o individual e estabelece rial do apenado e também de sua família. A perda do emprego, da mora-
dia,.os gastos com advogados, com a justiça, com deslocamentos para
mais graves das injustiças. -
o autoritarismo; em nome justiça, pratica a exclusão e a intolerância, as

Nessa realidade, opera-se uma completa mutação: de welfare em


visita, gêneros alimentícios que a família deve levar para reforçar a
parca dieta penitenciária, o suprimento com material de higiene, limpe—
workfare. zª.-roupas, etc. são fatores determinantes para um mergulho ainda mais
”profundo na pobreza pessoal e familiar. A prisão exporta sua pobreza.
Como explica WACQUANT,” desde o momento em que se impõe - A autofagia penal pode ser resumida nas palavras de WACQUANT151
aos pobres de fora a obrigação de trabalhar pelo viés do workfare, é
lógico impô—la também a esses pobres de dentro. Assim, uma estraté-
"De modo que o tratamento carcerário da miséria (re)produz
sem cessar as condições de sua propria extensão: quanto mais se
45 Sobre o tema, é imprescindível a leitura de SIMMEL, especiaLmente "O dinheiro na ou]-
tura moderna UBES)". In: Simmel e a Modernidade. Jessé Souza e Eerthold Deize (org.).
Brasília, UnB.
WACQUAN'I'. Loic. As Prisões da Miséria, p. 91.
46 VAàLEJO, Valéria Inácio. "Necrõõlos". In: Jornal Agora. Rio Grande, 14 de setembro de
2001, p. 02. WACQUAN'I'. Loic. As Prisões da Mse'ria, p. 97.
WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria, p. 144.
47 WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria, p. 89.
WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria, p. 145.
Introdução Critica ao Processo Penal
Aury Lopes Jr. (Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

- A fenomenologia na sociedade de massa está marcada pela globa—


encarceram pobres, mais estes têm certeza, se não ocorrer ne—
nhum imprevisto, de permanecerem pobres por bastante tempo, e, lização e o ritmo ditado pelo neoliberalismo. Como consequência. todo
o mercado e também o direito estão voltados para o homo oeconomicus
por conseguinte, mais oferecem um alvo cômodo à política de cri-
minalização da miséria. A gestão penal da insegurança social ali- (e não para o homo faber). O individuo só interessa enquanto consumi-
menta—se assim de seu próprio fracasso programado." dor. Logo, cria-se o binômio consumidor-cidadão. Não há espaço para o
diverso, para a tolerância e a solidariedade humana. Corno reflexo, falta
o) Neoliberalismo e Processo Penal a preocupação social em proporcionar meios para el libre desarrollo de
1a personalidad.54
Nesta rápida abordagem, interessa-nos, pois, a influência do neo—
A situação é ainda mais grave, como aponta SALO DE CARVA-
LHO55 "nos países periféricos, nos quais o Estado social foi um sirnula—
liberalismo — enquanto modelo politico-econômico imposto pela globa-
lização — sobre o sistema penal. O movimento da lei e da ordem, ante— oro", pois o projeto político de enxugamento do Estado inviabilizou “a
riormente abordado, é uma demonstração dessa influência. possibilidade de atingirem relativo grau de justiça social com a imple-
Obviamente que em momento algum estamos reduzindo a complexa mentação de políticas públicas imprescindíveis, baseada em distribui-
fenomenologia da violência a uma dimensão exclusivamente economi- ção eqiiânime de riqueza e erradicação da miséria, otimização e acesso
cista. Tampouco sintetizando. rIrata-se apenas de optar por um recorte das populações carentes aos serviços de saúde, educação e terra,
nessa complexidade, sem olvidar os demais fatores concorrentes. melhoria nos sistemas de previdência social e, principalmente, incisivas
A globalização dos mercados e o referencial diferenciador mais "ações contras as exorbitantes taxas de desemprego e exclusão social".
relevante entre neoliberalismo e liberalismo, estando presente apenas Como explica WACOUAN'I', 55 "a penalidade neoliberal apresenta o
no primeiro. Foi FRIEDRICH AUGUST VON HAYEK quem, com sua obra seguinte paradoxo: pretende remediar com um mais Estado policial e
O caminho de servidão, publicada em 1944, deitou as bases para a fim- penitenciário o menos Estado econômico e social que e a própria causa
dação da chamada Sociedade de Mont Peierm (1947). A obra de HAYEK dã- escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos
atacava, principalmente, o Estado de bem—estar social e demonstrava os países, tanto do Primeiro como do Segundo Mundo ". Aponta o autor
sua preocupação com o avanço do socialismo. A sociedade juntaram-se que ela "reafirma a onipotência do Leviatã" no dominio da manutenção
FRIEDMAN e POPPER, passando a combater o keynesianismo e o soli—
darismo reinantes enquanto preparavam as bases de um outro tipo de
capitalismo, duro e livre de regras para o futuro.52 Com isso, vêm atrela- 54 Ensina WERNER GOLDSCI—HMDT (Diireiogia, ]: 189) que "el principio supremo de la' Jus-
dos a deísificação do mercado e o eficientismo, que falaremos a seguir. . ticia estatuye la libertad del desarrollo de la personalidad". Tal garantia está consagra-
da. ainda, em algumas constituições europeiaÍS. V-g-I
Caminham junto com a tolerância zero os postulados de Estado -. a); Alemanha: Art. 2 “'Ibdos têm direito ao livre desenvolvimento de sua personalida-
Social mínimo tipicos do modelo neoliberal. Na mesma linha de HAYEK, -' de, sempre que não vulnerem os direitos de outrem e não atentem contra a ordem
CHARLES MURRAY e seus seguidores defendem que o “Estado-provi— . constitucional ou alei moral."
' .. b) ªmanhª: art. 10.1. ”La dignidad de la persona, los derechos inviolahies que le son
dência deve ser arquivado a fim de salvar a sociedade da underclass” - inherentes, ei libre desarrollo de la personalidad, ei respeto a la ley v a los derechos
para “impedir os pobres de viverem nas nossas costas".53 Nada mais . . de los den-ias son fundamentos del orden politico y de la paz social."
do que uma mutação do welfare em workfare, com a instituição de tra« -- . Cl , Grécia-. Art. 5.1. "Cada uno tendrá derecho a desarrollar librernente su personalidad
3: a participar ou la vida social, econômica y política del país, com tal que no atente
balho (minimamente) assalariado forçado. a los derechos de los demais ni viole ias buenas costumhres."
ª) Itália: "La Repubblica riconosce e garantisce i diritti inviolabili dell'uorno, sia come
- singelo sia nelle formazioni sociali ove si svolge la sua personaltià, e richiede
- í' - l'adempimento dei doveri índerogabili di soiidarieta política, econômica e sociale"
52 ANDERSON, Perry. "Balanço do neoliberalismo". ln: Pós-neoliberalismo: as politicas 55. - CARVALHO, Salo de. A Ferida Narcisica do Direito Penal (primeiras observações sobre as
sociais e o estado democrático. Emir Sader e Pablo Gentili (org.). São Paulo, Editora Paz e (dis)funções do controle penal na sociedade contemporânea). In: A Qualidade do Tiempo:
Terra, p. 10. APUD: COUTINHO, Jacinto de Miranda. "Direito e Neoliberalismo no Brasil, Para além das aparências histórias Ruth M. Chittà Gamer (org. ) p. 190.
hoje". in: Revista de Ciências Criminais, Porto Alegre, Nota Dez/ITEC, nº 04. às WACCIUANT, Loio As Prisões da Miséria, p. 07.
53 WACQUAN'I', Loic. As Prisões da l'v'l'iseria, p. 41.

23
Aury Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

da ordem pública no momento em que está comprovado que ele é inca— riquezas, que produz aumento da pobreza, seletividade na educação,
paz de conter a “decomposição do trabalho assalariado e de refrear a seletividade na saúde, e, como resultado de tudo isso, a violência.
hipermobilidade do capital", desestabilizadores da sociedade inteira. O modelo neoliberal entra no processo penal através do law and
É a triste opção por um tatamento penal e não social da miséria. order e de sua política de endurecimento geral do sistema penal. O
Conjugando isso à doutrina do iaheiing approach, podemos com— movimento da lei e da ordem é a representação mais clara da intolerân—
preender perfeitamente que a sociedade e excludente e que o siste- cia e da completa falta de compromisso ético e social. Afinal, na pós-
ma penal, por ser uma fiel representação dela, é igualmente exclu— modernidade neoliberal, o que interessa é proteger apenas o homo
dente. A sociedade coloca o individuo não-consumidor a margem oeconomicus.
(literalmente marginal), introduzindo-o no sistema penal, que na sua
atividade de seleção atuará com toda dureza sobre o rotulado, o eti— . . . Mas o tratamento penal da miséria também pode adquirir feições
quetado, o nâo-consumidor. Até porque quem não e consumidor não neolombrosianas. Explica Wacquant59 que Charles Murray, um dos
é visto como cidadão. mentores intelectuais da politica repressivista norte-americana, na
Por isso, quem não tem poder econômico para correumir acaba obra The Bell Curve: Intelligence and Class Structure in American Life,
sendo o cliente preferencial do sistema punitivo. Ao não consumir, a aponta para a capacidade cognitiva — o quociente intelectual — como
sociedade o exclui. Ao ser excluido e estigmatizado, torna-se o alvo algo que " determina não apenas quem entra e tem êxito na universida—
ideal para as instâncias formais de controle atuarem com toda sua pre— de, mas ainda quem se torna mendigo ou milionario, quem vive nos
potência, pois, afinal, não há com o que se preocupar: devemos servir sacramentos do matrimônio em vez de numa união livre (as uniões ile—
e proteger (apenas) o cidadão (consumidor). gitimas — um dos mais importantes problemas sociais de nossa epo-
Ademais, o não-consumidor é ineficiente e isso, numa sociedade ca;—, estão fortemente ligadas ao nivel de inteligência"). Segue no seu
voltada para a eficiência, é um estigma vergonhoso.57 delirio elitista afirmando que 0 OI influencia definitivamente na “pro—
Como explica ZAFFARON'iz55 se temos uma economia de mercado, pensão.” ao crime, pois nos bairros “ruins" residem de "maneira des—
necessitamos de um Estado regulador, que não temos. Tmnos Estados proporcionada as pessoas de baixa capacidade cognitiva"(!). E con—
destruídos, Estados quebrados. E, no meio de tudo isso, abrimos um clui, aponta WACQUAN'I', no sentido de que "todas as patologias
enorme espaço para os mafiosos. Um grande espaço macroeconômico, sociais que ailigem a sociedade americana estâo notavelmente concen—
que destrói a vida econômica, que produz grande concentração de tradas na base da distribuição do quociente intelectual".
JACINTO COUTINHOFJD define o nâo-consumidor (excluído) como
um empecilho, restando—lhe apenas “o desamor de seus semelhantes,
57 LENIO STRECK (Ttíhunal do Júri, pp. 55 e 60) faz interessante abordagem da mendicân-
cia em países como o Brasil, em que a sociedade excludente cria as condições ideais em um mundo de competição, aético em seus postulados e antiético em
para o surgimento de pobres, miseráveis, indigentes e mendigos, mas não quer admitir seus mecanismos e efeitos".
sua responsabilidade. Para isso, cria “fórmulas mágicas" para resolver o problema: esta— . Não existe ética na lógica do mercado e tampouco há espaço para
baiana que a mendicância e contravenção penal, cuja pena varia entre 15 dias a 3 meses,
podendo ser aumentada até um terço se a mendicância for feita de "modo vexatúrio. compromisso social, até porque o atendimento a determinadas "exi—
ameaçador ou fraudulento". No Direito Civil, em situação semelhante. embora invertida, gências sociais" decorre de um interesse apaziguador, sedante e não
está o pródigo, "louco típico do mercantilismo". O pródigo é alguém que não consegue
fazer seu patrimônio ter lucro, o que, aponta STRECK, “só pode ser anormal para o capi— de uma postura distributiva, como bem colocou de relevo BERBERI.51
talismo. cuja ideologia dominante se funda no entendimento de que seria a circulação de
mercadorias com :) tito de lucro a origem da riqueza. Pode—se dizer, assim, que ha uma
relação entre o mendigo e o pródigo: enquanto o mendigo denuncia o sistema (e. por 59 WACQUANT, Loic. As Prisões da Miséria, p. 24.
isso, é apenado criminalmente). o pródigo decepciona :: sistema (e, por isso, é sujeito COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. "Direito e Neoliberalismo no Brasil. hoje". In:
a interdição — ouratela, sendo impedido de gerir os seus bens). O pródigo vem a ser. Revista de Ciências Criminais, Porto Alegre, Nota Dez/ITEC, nª 04.
assim, o lumpen da burguesia..." (grifamos). .“ BERBERI, Marco Antônio Lima. "Reflexos da Pós—Modernidade no Sistema Processual
58 ZAFFARONI, Eugenio Raul. "Desaãos do Direito Penal na Era da Globalização". In: Penal brasileiro (algumas considerações básicas)". In: Critica à "Iberia Geral do Direito
Revista Consular. Ano V, nª 106. 15 de junho/2001. p. 29. Procetrsuai Penal. 1313. 57 e se.
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da lnstrumentaiidade Constitucional)

Exemplo típico da contaminação pos—modernista e neoliberal é a notícia. O fato, ocorrido no outro lado do mundo, pode ser presenciado
própria Lei 9.099 (que instituiu o Juizado Especial Criminal), enquanto virtualmente em tempo real. A aceleração do tempo nos leva próximo
novo modelo de solução de conilitos (consenso). ao. instantâneo, com profundas consequências na questão tempo/velo—
É a introdução da lógica do plea negotiation, transformando o pro- cidade. Também encurta ou mesmo elimina distâncias. Por isso, VIRI-
cesso penal num mercado persa, no seu sentido mais depreciativo. Dai LIC)65 —— teórico da Dromologia (do grego dromos = velocidade) — afirma
nossa crítica em relação à justiça negociada e aos Juizados Especiais que “a velocidade é a alavanca do mundo moderno "
Criminais, verdadeiras expressões do movimento da lei e ordem, na O mundo, aponta VIRÍLIO, 55 tornou— —se o da presença virtual, da
medida em que contribuem para a banalização do Direito penal, fomen— telepresença. Não só telecomunicação, mas também teleação (trabalho
tando a panpenalização e o simbolismo repressor. e compra a distância) e até em telessensação (sentir e tocar a distân—
Quando todos defendem a intervenção penal mínima, e Lei 9.099 cia). Essa hipermobilidade virtual nos leva a inércia, além de contrair
vem para ressuscitar no imaginário social as contravenções penais e espaços e intervalos temporais, Até mesmo a guerra nas sociedades
outros delitos de bagatela e minima relevância social. É a banalização contemporâneas são confrontos breves, instantâneos e virtuais, como
do Direito e do processo penal. se.-fossem wargames de computador, em que toda carga de expectati-
O Juizado Especial Criminal e um exemplo claro do Estado saindo vaIeIStá lançada no presente.
das relações sociais, para, de camarote, dizer: "Batem-se que eu não _Sob o enfoque econômico, o ”cassino planetário" é formado pelas
tenho nada com isto. E o neoliberalismo no Direito, agudizando a pró- bolsas de valores que funcionam 24h por dia, em tempo real, com uma
pria crise da denominada teoria do bem juridico, própria do modelo imensa velocidade de circulação de capital especulativo, gerando uma
liberal-individualista de Direito " .52 economia virtual, transnacional e imprevisível — liberta do presente e
Do exposto, fica patente a necessidade de romper com o paradig- do concreto. Isso fulmina com o elo social, pois aqueles que investem
ma de direito regulador para passarmos a perceber/entender o direito 'éCDnomia real não têm como antecipar a ação, desencorajando
como promovedor (Estado Social) & transformador (Estado Democrático mvestrmentos destruindo empresas e empregos. 57
de Direito).53 . Nessa lógica de mercado, para conseguir lucros, e preciso acelerar
a circulação dos recursos, abreviando o tempo de cada operação. Como
d) Direito e Dromologia: Quando o Processo Penal se Põe Consisqiiência, a contratação de mão-de-obra também navega nesse
a Correr, Atropelando as Garantias ritmo: “ac“menor sinal de diminuição das encomendas, dispensa—se a
mão-d'e-obra. E a hiperaceleração levando o risco ao extremo.
Vivemos numa sociedade acelerada. A dinâmica contemporânea é . . OSTBH fala nos contratos de emprego temporários apontando para
impressionante e — como o risco54 —— também está regendo toda nossa uma “heterogeneização do tempo social, manifestada em ritmos sempre
vida. Não só nosso emprego é temporário, pois se acabaram os empre— mais diversificados. rlí'empo conjugal e tempo parental dissociam-se,59
gos vitalicios, como também cada vez é mais comum os empregos em Et? passo que a organização fordista do trabalho dá lugar a uma flexibi— '
jornada parcial. Da mesma forma nossas "aceleradas“ relações afeti-
vas, com a consagração do ficar e do no future.
Que dizer então da velocidade da informação? Agora passada em
tempo real, via Internet, sepultando o espaço temporal entre o fato e a 55;- Velccidade da Libertação, p. 10. '
Sobre o tema: VIRILID, Paul. A Inércia Polar. Lisboa: Publicações Dom Quixote 1993.

57 “OST. François. O Tampo do Direito, p. 353.


68 " OST. François. O Tbmpo do Direito, 53. 377.
-= No que se refere ao casamento. OST (op. cit., p. 390) aponta para um tempo conjugal mais
62 S'I'RECK. Lenio Luiz. Tribunal do Júri - simbolos & rituais, pp. 34-35. - . permanente, que. sobrevive ao tempo do casamento O casal parental sobrevive ao casal
[33 STRECK, Lenio Luiz. Tribunal do Júri - simbolos & rituais, p. 25. Cºnjugal na medida em que — apesar do elo conjugal ter deixado de e::istir — a filiação
(34 Estamos nos referindo ao risco exógena (sociologia do risco) e endógena (inerente ao simbólica em relação à criança permanece A responsabilidade educativa dos dois côn—
processo. enquanto situação jurídica dinâmica e imprevisível). Ambos serão tratados na ªlºe-s sobrevive ao tempomas
do não
casamento sendo incondicional e permanente. É. possivel
continuação. Ivorciar se do cônjuge, dos filhos.

nr- na
Aury Lopes J r. introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da !nstrumentalidade Constitucional)

lidade das prestações, mas também a uma nova precariedade dos social ea correiativa subida da sociedade de risco, a aceleração e o
empregos. A duração prometeica dos Códigos e a promessa das insti— tempo efêmero da moda.
tuições dão então lugar a um tempo em migalhas que tem de ser recon- A urgência surge como forma de correr atrás do tempo perdido.
quistado a cada metante. Direito de visita negociado, estágio consegui— ., . Como explica OST, isso significa que passamos dos “relógios as
do com dificuldade, emprego interino, tudo se passa como se reapare- nuvens,”, no sentido de que não estamos mais vivendo um modelo
cesse o antiqiiissimo imperativo imposto aos pobres: viver o dia—a—dia". mecânico (relogio), linear e previsível de uma legislação piramidal,
Sob outro enfoque, a aceleração obtida a partir do referencial luz é senão o modelo das "nuvens", interativo. recursivo e incerto de uma
impressionante e afeta diretamente nossa percepção de tempo. Como regulação em rede. O direito em rede é flexível e evolutivo. Um conjun-
aponta VlRlLIOFD a tecnologia do final dos anos 80 permitiu que os to indefinido de dados em busca de um equilibrio pelo menos provisó-
satélites transmitissem a imagem à velocidade da luz e isso representou rio. É a normatividade flexibilizada, própria de um direito "mole, vago,
um avanço da mídia televisiva com relevante mudança de paradigma. no estado gasoso".71
A imagem passa a ter visibilidade instantânea com o novo referené A urgência — ou Estado correndo atrás — deixa de ser uma catego-
cial luz. O fascínio da imagem conduz a que "o que não é visível e não ria extraordinária para generalizar-se, com uma tendência de alimen-
tem imagem não e televisãvel, portanto não existe midiaticamente". tar—se. de, si mesmo, como se de alguma forma uma das suas interven-
O choque emocional provocado pelas imagens da TV — sobretudo ções pedisse a seguinte. Ao não tratar do problema com a devida matu-
as de aflição, de sofrimento e morte — não tem comparação com o sen— ração e profundidade, não há resultados duráveis. "As intervenções de
timento que qualquer outro meio possa provocar. Suplanta assim a urgência parecem sempre chegar ao mesmo tempo demasiado cedo e
demasiado tarde: demasiado cedo porque o tratamento aplicado é sem-
fotografia e os relatos, a ponto de que, quando não há imagens, cria-se.
pre superficial; demasiado tarde porque, sem uma inversão de lógica, o
A "reconstituição" das imagens não captadas passa a ser fundamental
para vender a emoção não apreendida no seu devido tempo. Exemplo mal não parou de se propagar. "72
Os planos urgentes e milagrosos para "conter" a violência urbana
tipico são os programas sensacionalistas do estilo ”Linha Direta". são exemplos tipicos disso: ao mesmo tempo demasiadamente cedo
Mas a velocidade da noticia e a própria dinâmica de uma socieda— (tratamento superficial) e demasiadamente tarde (diante da gravidade
de espantosamente acelerada são completamente diferentes da veloci- J'ai-assumida).
dade do processo, ou seja, existe um tempo do direito que está comple— Nesse cenário, juízes são pressionados para decidirem "rápido" e
tamente desvinculado do tempo da sociedade. E o Direito jamais será as comissões de reforma, para criarem procedimentos mais "acelera-
capaz de dar soluções a velocidade da luz. dºS"-.73 esquecendo-se que o tempo do direito sempre será outro, por
Estabelece-se um grande paradoxo: a sociedade acostumada com uma questão de garantia. A aceleração deve ocorrer, mas em outras
a velocidade da virtualidade não quer esperar pelo processo, dai a pai— esferas-. Não podemos sacrificar a necessária maturação, reflexão e
xão pelas prisões cautelares e a visibilidade de uma imediata punição. tranquilidade do ato de julgar, tão importante na esfera penal.
Assim querem o mercado (que não pode esperar, pois tempo é dinhei— Tampouco acelerar a ponto de atropelar os direitos e garantias do acu-
ro) e a sociedade (que não quer esperar, pois está acostumada ao ins— sado; Em última análise, o processo nasce para demorar (racionalmen-
tantãneo). te; é claro), como garantia contra julgamentos imediatos, precipitados
Isso, ao mesmo tempo em que desliga do passado, mata o devir, enocalor da emoção.-
expandindo o presente, Desse presenteisrno/imediatismo brota o
Estado de Urgência, uma consequência natural da incerteza epistemo—
lógica, da indeterminação democrática, do desmoronamento do Estado 71'. OST. François. O Tampo de Direito, 13. 323.
72 OST, François. () Tiempo do Direito, 13. 356.
."Que não pode ser confundido com técnicas de sumarização (horizontal e vertical) da cog-
níção. Sobre o tema veja-se nossa obra Sistemas de Investigação Preliminar no Processo
70 Velocidade da Libertação, p. 26. Penal 131192 e ss.. especialmente nas pp. 96— 97.
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

Dizer que o processo é dinâmico significa reconhecer seu movi— uma série de novos instrumentos jurídicos. O sistema penal é utilizado
mento. Logo, como todo movimento, está inscrito no tempo de maneira como sedante, através do simbólico da panpenalieação, do utilitarismo
irreversível, sem possibilidade de voltar atrás.74 O que já foi feito não processual e do endurecimento geral do sistema. E a ilusao de resgatar
pode voltar a acontecer, até porque o tempo é irreversível, ao menos um pouco da segurança perdida através do Direito Penal, 0 erro de pre«
por ora. Se o processo, como a vida, e movimento, o equilibrio necessá— tender obrigar o futuro sobre a forma de ameaça.
rio só pode. ser dinâmico e, como tal, extremamente difícil e eivado de Não se edifica uma ordem social apenas com base na repressão.
riscos. É o que RAUX75 define como o "equilíbrio de ciclista fundado Acompanhando a síntese de DST, o endurecimento da norma
sobre o movimento".
penal é reflexo da urgência, que descuida do passado e fracassa nalpre-
O processo penal também é acelerado, em resposta ao desejo de tensão de obrigar o futuro. Os programas urgentes, contudo, permitem
uma reação imediata. Surgem os procedimentos sumários e até suma- resultados rápidos, visíveis e midiaticamente rentáveis, mas com cer—
riissimos (como previsto na Lei 9.099/95); proliferam os casos de guilty teza não se institui nada durável numa sociedade a partir, unicamente,
plea nos Estados Unidos, de pattegiamento na Itália, ou transação da ameaça de repressão.
penal no Brasil, até porque as chamadas zonas de consenso são ícones Mas as condições para que se atue com a necessária reflexão e
de eficiência (antigarantista, é claro) e celeridade (leia—se: atropelo de maturação desaparecem, uma vez que os discursos da segurança e do
direitos e garantias individuais). urgente (imediato) invadiram o imaginário social.
Retornando à situação do ciclista, o difícil é encontrar o equilibrio, Quando o Direito se põe a correr no ritmo da urgência, opera—se
pois, se e verdade que um processo que se arrasta assemelha-se a uma uma importante mudança de paradigma, em que “o transitório tornou-
negação da justiça, não se deverá esquecer, inversamente, que o prazo se, o habitual, a urgência tornou—se pennanente".7'7 O transitório era
razoável em que a justiça deve ser feita entende—se igualmente como antes visto como um elo de ligação entre dois períodos de estabilidade
recusa de um processo demasiado expedito.76 O processo tem o seu normativa, um articulador entre duas sequências históricas. Hoje isso
tempo, pois deve dar oportunidade para as partes mostrarem e usarem tudo mudou, a duração desapareceu, tornando inuteis os rearranjos do
suas armas, deve ter tempo para oportunizar a dúvida, fomentar o direito transitório. Todo o direito se pôs em movimento e o transitório é
debate e a prudência de quem julga. Nesse terreno, parece—nos eviden— oestado normal, com o direito em constante trânsito, impondo—se a
te que a aceleração deve vir através da inserção de tecnologia na admi— urgência como tempo normal. A0 generalizar a exceção, e sistema entra
nistração da justiça e, jamais, corn a mera aceleração procedimental, em,-colapso. Antes a urgência era admitida no Direito com extrema
atropelando direitos e garantias individuais. reserva e era sempre situacional, revogando—se tão logo cessasse o
Infelizmente, na atualidade, assistimos a um velho Direito tentan- estado de urgência. Hoje ela esta em todo lugar e surge independente
do correr no ritmo da moderna urgência. Para tanto, em vez de moder— de qualquer crise.
nizar—se com a tecnologia, prefere os planos milagrosos e o terror da ' Isso também se manifesta no processo legislativo.
legislação simbólica. A inflação legislativa brasileira em matéria penal ': . ,A urgência implica não só aceleração, mas também inversão, pois
e exemplo típico desse fenômeno. permite ."ao imperium (a força) preceder a jurisdictio (o enunciado da
Nesse complexo contexto, o Direito é diretamente atingido, na Fegra), imunizando o facto consumado relativamente a um requestiona—
medida em que e' chamado a (re)instituir o elo social e garantir a segu- mento juridico ulterior".78 É o que ocorre, vg, com o chamado "contra-
rança juridica. Multiplicam-se os direitos subjetivos e implementam—se ditório diferido", em que primeiro se decide (poder), para depois sub-
meter ao contraditório (ilusório) de onde deve(ria) brotar o saber.
' .. “Outro exemplo seria a banalização das medidas in limine litis,
74 RAUX, Jean-François. "Prefácio: Elogio da Filosofia para Construir um mundo melhor". especialmente com a antecipação de tutela do CPC, e também das pri-
In: A Sociedade em Busca de Valores, p. 13.
75 RAU'X. Jean—François. “Prefácio: Elogio da Filosofia para Construir um mundo melhor". “?ª—..."—
In: A Sociedade em Busca de Valores, p. 13. 77 .- ÚST. Mancais. O Tempo do Direito, 19. 359.
76 OST, François. O Tiempo do Direito, 13. 359. 73ª "OST, François. O Tempo do Direito, p. 362.

'In
Aury Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

sões cautelares no processo penal, onde a prisão preventiva — tipica zaçãode qualquer reforma séria, de modo que, não contente em das-
medida de urgência —— foi generalizada, como um efeito sedante da opi— fruir a ordem jurídica, a urgência impede a sua reconstrução.???
nião pública. Surge assim um novoªº risco: o risco endógeno ao sistema jurídico
A prisão cautelar transformou-se em pena antecipada, com uma em decorrência da aceleração e da (banalização) da urgência. Essa é
função de imediata retribuição/prevenção. A “urgência" também auto— uma'nova insegurança jurídica que deve ser combatida, pois perfeita—
riza(?) a administração a tomar medidas excepcionais, restringindo mente contornãvel. Não há como abolir completamente a legislação de
direitos fundamentais, diante da ameaça à "ordem pública", vista urgência, mas tampouco pode-se admitir a generalização desmedida
como um perigo sempre urgente. da técnica.
Leva, igualmente, a simplificar os procedimentos, abreviar prazos ' «Entendemos que a esse novo risco deve—se opor uma (renovada)
a contornar as formas, gerando um gravíssimo problema, pois, no pro— Segurança juridica, enquanto instrumento de proteção do individuo.
cesso penal, a forma é garantia, enquanto limite ao poder punitivo Trata-se de recorrer a uma clara definição das regras do jogo, para evi-
estatal. São inúmeros os inconvenientes da tirania da urgência. tar uso desmedido “do poder, enquanto redutor do arbítrio, impondo ao
As medidas de urgência deveriam limitar—se a um caráter "conser— Estado o dever de obediência. No processo penal, é o que convenciona—
vatório" ou “de preservação", até que regresse a normalidade, quando mo's'chamar de ínstrumentalidade constitucional, ou seia, o processo
então seria tomada a decisão de fundo. Contudo, isso hoje foi abando- enquanto instrumento a serviço da máxima eficácia dos direitos e
nado, e as medidas verdadeiramente “cautelares" e ”provisionais"(ou garantias do débil a ele submetido. Afinal, o Estado é uma reserva
situacionais e temporárias) estão sendo substituídas por antecipatórias éticas-de legalidade, jamais podendo descumprir as regras do jogo
da tutela (dando-se hoje o que deveria ser concedido amanhã, sob o damnorãtico “de espaços de poder.
manto da artificial reversão dos efeitos, como se o Direito pudesse avan— Interessante é o exemplo trazido por OST,81 de que o Tribunal de
çar e retroagir com o tempo) com a natural definitividade dos efeitos. Justiça Europeu decidiu pela "obrigação de não impor aos indivíduos
Na esfera penal, considerando-se que estamos lidando com a uma mudança normativa demasiado brutal: por essa razão, a regra
liberdade e dignidade de alguém, os efeitos dessas alquimias jurídicas nova deve ao menos comportar medidas transitórias em benefício de
em torno do tempo são devastadores. A urgência conduz a uma inver— desturatanos que possam alegar uma expectativa legitima" Seria uma
são do eixo lógico do processo, pois, agora, primeiro prende—se para especre de " direito a medidas transitórias" Importante limite a
depois pensar. Antecipa-se um grave e doloroso efeito do processo mudanças radicais de atitude e a necessidade de justificação objetiva
(que somente poderia decorrer de uma sentença, apos decorrido o e razoável (motivação)
tempo de reflexão que lhe é inerente), que jamais poderá ser revertido. : Através de proteções e contrapesos, a jurisprudência deve tentar
não so porque o tempo não volta, mas também porque não voltam a assegurar ao direito um papel garantidor e emancipador. Assim deve
dignidade e a intimidade violentadas no cárcere.
ser repensado o cbnceito de segurança jurídica, enquanto freio a dita—
Inequivocarnente, a urgência e um grave atentado contra a liber- dura (estatal) da urgência.
dade individual, levando a uma erosão da ordem constitucional e ao
Anoção de' “segurança" no processo (e no Direito) deve ser repen-
rompimento de uma regra básica: o processo nasceu para retardar, Sada, partindo— se da premissa de que ela está na forma do instrumen-
para demorar (dentro do razoável, e claro), para que todos possam tº ÍUIldíC'D 'e que, no processo penal, adquire contornos de limitação ao
expressar seus pontos de vista e demonstrar suas versões e, principal-
Pºder punitivo estatal e emancipador do débil submetido ao processo.
mente, para que o calor do acontecimento e das paixões arrefeça, per- O Pronesso. enquanto ritual de reconstrução do fato histórico, é única
mitindo uma racional cognição. Em última análise, para que possamos
racionalizar o acontecimento e aproximar o julgamento a um critério '—'-—'——'-.;-___
minimo de justiça. 79: uOST, François. O Tiempo do Direito, p. 366.
O ataque da urgência e duplo, pois, ao mesmo tempo em que HD Ao lado do risco exógena, inerente a nossa sociedade de risco.
81 Idem, p. 371.
impede a plena juridicidade (e jurisdicionalidade), ela impede a reali—
':I'! 33
Aury Lopes Jr.
Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

maneira de obter uma versão aproximada do que ocorreu. Nunca será


o fato, mas apenas uma aproximação ritualizada do fato. maturação e cognição, mas sem excessos, pois o grande prejudicado é
É fundamental definir as regras desse jogo, mas sem esquecer que
creu, aquele submetido ao ritual degradante e a angustia prolongada
mais importante do que a definição está em (des)ve1ar o conteúdo axio— dasituação de pendência. O processo deve ser mais celere para evrtar
lógico das regras. A serviço do que ou de quem elas estão? Voltamos o sofrimento desnecessário de quem a ele esta submetido. E uma inver-
são na ótica da aceleração: acelerar para abremar o sofrimento do reu.
sempre à pergunta: Um Processo Penal para que(m)?
Também chegou o momento de aprofundar o estudo deum novo
Nessa linha, evidencia—se o cenário de risco e aceleração que con— direito: o direito de ser julgado num processo sem dilaçoeslmdevrdas.
duz a tirania da urgência no processo penal. Essa nova carga ideológi- Trata-se de decorrência natural de uma serie de outros direitos funda-
ca de processo exige especial atenção, diante da banalização da excep— mentais, como o respeito à dignidade da pessoa humana e a propna
cionalidade. O contraste entre a dinâmica social e a processual exige garantia da jurisdição. Na medida em que a jurisdição e um poder, mas
uma gradativa mudança a partir de uma séria reflexão, obviamente também um direito, pode-se falar em verdadeira mora ]UIJSdlClOnEl,
incompatível com o epidermico e simbólico tratamento de urgência. quando o Estado abusar do tempo necessário para prestar a tutela.
O processo nasceu para retardar a decisão, na medida em que exige - - Entendemos adequado falar-se em uma nova pena processual,
tempo para que o jogo ou a guerra se desenvolva, segundo as regras decorrente desse atraso, onde o tempo desempenha uma função pum-
estabelecidas pelo próprio espaço democráticoªº Logo, jamais alcança— tiva no processo. É a demora excessiva, que pune pelo sofrimento
rá a hiperaceleração, o imediatismo característico da virtualidade. decorrente da angústia prolongada, do desgaste psicológico (o proces—
Ademais, o juiz interpõe—se no processo numa dimensão espacial, se como gerador de depressão exógena), do empobrecimento do reu,
mas principalmente temporal, situando-se entre o passado—crime e o enfim, por toda estigmatização social e jurídica gerada pelo Simples
futuro—pena, incumbindo—se a ele (e ao processo) a importante missão
de romper com o binômio ação—reação.?33 O processo nasceu para dila—
fato de estar sendo processado. , .
.? ; ' O processo é uma cerimônia degradante e, como tal, o caraterpuni-
tar o tempo da reação, nasceu para retardar. tivo está diretamente relacionado com a duração desse ritual punitivo.
Contudo, alguma melhora na dinâmica não só é possível, como " ..Ássumido o caráter punitivo do tempo, não resta outra coisa ao
também necessária. Obviamente que não pela mera aceleração proce- iuiz-que (além da elementar detração em caso de prisão cautelar) com-.
dimental (e consequente supressão de garantias fundamentais), mas pensara demora reduzindo a pena aplicada, pois parte da punição—Ja for
sim através da inserção de um pouco da ampla tecnologia a disposição, efetivada pelo tempo. Para tanto, formalmente, podera lançar mao da
especialmente na fase pré-processual. Também devemos considerar o atenuante genérica do art. 66 do Código Penal. . . _
referencial "luz", a visibilidade. Nesse (des)velar, a luz e fundamental, . . .O próprio tempo do cárcere deve ser pensado e partir da distinçao
ainda que indireta, como ensina PAUL VIRILLO. Tal questão nos leva — .Óbietivo/subjetivo, partindo—se do clássico exemplo de EINSTEIN,34 a
também — a repensar a publicidade e a visibilidade dos atos. A trans— fun 'de- explicar a Relatividade: “quando um homem se senta ao lado de
parência do processo, mas sem cair no bizarro espetáculo televisivo. uma moça bonita, durante uma hora, tem a impressão de que passou
Esse é um ponto de dificílimo equilíbrio. ªpenas um minuto. Deixe—o sentar-se sobre um fogão quente durante um
No que tange à duração razoável do processo, entendemos que a minuto somente — e esse minuto lhe parecerá mais comprido que uma
aceleração deve produzir—se não a partir da visão utilitarista, da ilusão hora..— Isso é relatividade". O tempo na prisão85 deve ser repensado,
de uma justiça imediata, destinada a imediata satisfação dos desejos de pois esta mumificado pela instituição e gera grave defasagem, enquan—
vingança. O processo deve durar um prazo razoável para a necessária to tempo de involução.

82 Democracia aqui considerada numa dimensão substancial. enquanto sistema político e Bªl EINSTEIN, Vida apensamentos, p. 100. .
cultural que valoriza, fortalece, o individuo entre todo ieixe de relações que ele mantém 55 Sºbre o tema, consulte-se o trabalho de GEUSEPPE MDSCONI, “'l'iempo social 5! tiempo
com os demais e com o Estado. 5»í=' de cárcel". In: Secuestros ínstitucionales y derechos humanos: la cárcel y el manicomio
83 NLESSUTI. Ana. O Tampo como Pena, 13. 103.
- como iaben'ntos de obediencias fingicias. Ifralri Rivera Beiras e Juan Dohcm (org.)-
. Barcelona, Bosch. 1997.

34
35
Aury Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

Com certeza, dez anos de prisão hoje não equivalem — em termos Não que o tempo do direito esteja completamente correto. Há muito
de tormento, sofrimento e desconexão com a dinâmica social — a 10 que evoluir na comunicação dos atos processuais e na simplificação de
anos de prisão quando da concepção do Código Penal, em 1940. O con— toda complexa malha burocrática que rodeia o processo, e que parece
teúdo aditivo (tempo subjetivo) é infinitamente maior.
propositalmente alimentada para esconder as deficiências materiais e
Em suma, uma infinidade de novas questões envolvendo o binô- peSSoais do Estado. Sem dúvida que o panorama atual é caótico e exige
mio tempo/direito está posta e exige profunda reflexão.
profundas modificações, e começar pelo ingresso nos .foros de uma
e) Efetividade versus Eficiência (pequena) parcela da moderna tecnologia que temos a dispomçao.
““Sem embargo, como sei ocorrer, o caminho tomado é o eqinvocado.
""Os juízes são pressionados para decidirem "rápido" e as comis-
No conflito garantismo "versus" utilitarismo adquire muita impor- 'sões de reforma, para criarem procedimentos mais "acelerados", EB
tância a distinção entre efetividade e eâciência. Como ensina JACINTO esqueúendo- se que o tempo do direito sempre será outro, por uma
COUTINHO,BE não é admissível, em hipótese alguma, sinonimizar efeti-
questão de garantia. A aceleração deve ocorrer, mas em outras esferas.
vidade oom eficiência, principalmente por desconhecimento. Afinal, Não-podemos sacrificar a necessária maturação, reflexão e tranquilida—
aquela reclama uma análise dos fins; esta, a eficiência, desde a base neo- de do" ato :de julgar,” tão importante na esfera penal.
liberal, responde aos meios. “Ná acertada conclusão de JACINTO COUTINHO, 89 esse conjunto
A noção de eficiência e amplamente difundida no mercado, de 'de fatores leva a supressão (exclusão) de direitos e/ou garantias, ou,
modo que as ações devem ser eficientes para obtenção de resultados
previsíveis. Na medida em que é impossível a correta previsão dos pelo menos, redução da sua esfera de proteção.
E neste complexo contexto que definimos o utilitarismo proces-
resultados no processo — explica JACINTO COUTINHO —, a atenção sual no sentido de eficiência antigarantista.
volta-se para os meios. Ou seja, as ações desenvolvidas devem ser efi— ' " Para complementar, remetemos o leitor ao Capitulo 11, sendo espe—
cientes para com isso chegarmos ao "melhor“ resultado. O resultado
deve ser visto no contexto de exclusão (social e penal). O individuo já asiatiente importante a leitura do tópico intitulado "O Direito de ser jul-
gado 'é'ni um prazo razoável: o tempo como pena e a (de)mora jurisdi-
excluído socialmente (por isso desviante) deve ser objeto de uma ação =ional" '
efetiva para obter- -se o (máximo e certo) apenamento, que corresponde
à declaração de exclusão juridica.
Se acrescentamos a esse quadro o fator tempo — tão importante no
' zes os garantidores da eficácia do sistema de garantias previsto na Constituição. Como
controle da produção, até porque o deus—mercado não pode esperar —, a ensina FERRAJOLI, deve—se buscar a maximização do saber judicial, enquanto ampara-
eficiência passa a ser mais uma manifestação (senão sinônimo) de :do-por argumentos oognoscitivos seguros e válidos, e a minimização do poder, enquan-
exclusão. A premissa neoliberal de Estado mínimo também se reflete no to poder em si mesmo. Outro exemplo típico desse compromisso meramente burocratico
encontramos na execução penal, onde alguns juízes adotam uma posição de meros
campo processual, na medida em que a intervenção jurisdicional tam- " homologadores de laudos criminológioos, gerando uma perigosa fundição do modelo' ]UI'Í-
bém deve ser minima, tanto no fator tempo (duração do processo), como "dido com o discurso da psiquiatria, e, por consequência. impondo a ditadura do modelo
também na ausência de um comprometimento maior por parte do julga— .=.“=.'-Lc1inico. Para esse julgador o papel de mero homologador de laudos técnicos e muito
dor, que passa a desempenhar um papel meramente burocráticoª'ª' . comodo. pois torna sua decisão impessoai, invarificável e impossivel de ser contestada.
. É º lªºmzilromisso meramente burocrático e a pulverização da responsabilidade de deci—
' "'-dir. Falta-lhes a consciência de que o fator Iegitimante do poder jurisdicional e da propria
independência da magistratura reside no fato de serem os juizes os garantidores da efl-
BE COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. "Efetividade do Processo Penal e Golpe de ' bacia do sistema de garantias previsto na Constituição.
Cena: Um Problema às Reformas Processuais." In: Escritos de Direito e Processo Penal, BB Que não pode ser confundido com técnicas da sumarização (horizontal e vertical) da cog—
pp. 143 e ss. nição. Sobre o tema veja- se nessa obra Sistemas de investigação Preliminar no Processo
57 Como ocorre com os exegetas - paleopositivismo _ que "aplicam a lei" sem qualquer Penal 131192 e ss., especialmente nas pp. 96 e 97.
questionamento de validade substancial, a luz da Constituição, pois ainda confundem 59 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. "Efetividade do Processo Penal e Golpe de
vigência e validade. Tambem lhes falta a consciência de que o fator Iegitimante do poder Cena: Um Problema às Reformas Processuais." In: Escritos de Direito e Processo Penal,
jurisdicional e da própria independência da magistratura reside no fato de serem os juí- PP.-143 e ss.

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Aury Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
[Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

IV. Desconstruindo o Utilitarismo Processual Através - Essa evolução levou o Estado a aceitar no processo pena] uma
dos Paradigmas Constitucional e Garantista soberania mitigada, pois deve submeter ao debate público sua preten—
'são acusatória e poder punitivo. Enquanto dura o processo, dura a
a) Instrumentalidade Constitucional e o Estado Democrático moerteza, até que se pronuncie a sentença. , .
de Direito Por isso, a personalidade do Estado, que aparece monoliticaªl3 den-
tro do Direito Público interno (constitucional e administrativo), uma vez
dentro do processo penal parece dividir—se e modelar—se distintamente,
Antes de servir para a aplicação da pena, o processo serve ao segundo os diferentes papéis que exerce: de juiz, na atividade jurisdi—
Direito Penal e a pena não é a única função do Direito Penal. Tão impor— cional,“ e como titular da função punitiva; e de Ministério Público na ati—
tante como a pena e a função de proteção do indivíduo em relação ao vidade encaminhada a perseguição dos delitos (como titular da preten—
Direito Penal, por meio do principio da reserva legal, da própria essên- são acusatória).
cia do tipo penal e da complexa teoria da tipicidade. Existe ainda o fundamento histórico-politico para sustentar a
O processo, como instrumento para a realização do Direito Penal, dupla função do moderno processo penal, que foi bem abordado por
deve realizar sua dupla função: de um lado, tornar viável a aplicação da . BE'I'TIOL.Em
pena, e, de outro, servir como efetivo instrumento de garantia dos direi— A proteção do individuo também resulta de uma imposição do
tos e liberdades individuais, assegurando os indivíduos contra os atos E'Stado Liberal, pois o liberalismo trouxe exigências de que o homem
abusivos do Estado. Nesse sentido, o processo penal deve servir como “tenha uma dimensão juridica que o Estado ou a coletividade não pode
instrumento de limitação da atividade estatal, estruturando—se de “sacriãtàar ad nutum. O Estado de Direito mesmo em sua origem já
modo a garantir plena efetividade aos direitos individuais constitucio- "representava uma relevante superação das estruturas do Estado de
nalmente previstos, como a presunção de inocência, contraditório, '- [Polícia, que negava ao cidadão toda garantia de liberdade, e isto sur-
defesa, etc.
giu-na“ Europa depois de uma época de arbitrariedades que antecedeu
Nesse sentido, BATTAGLLN'lºº afirma que o moderno Direito Penal " 'a'-Declaração dos Direitos do Homem, de 1789.
tern comofunção principal a garantia da liberdade individual. Ademais, . A pena começa precisamente quando terminam a Vingança e os
como destaca ARAGONESES ALONSO,91 incluso tiene el Estado el impulsos que dão razão a vingança, e a imposição da pena correspon-
cleber de proteger al propio delincuente, pues esto también es uma forma '- "de" ao juiz-, não só desde os tempos do Estado de Direito, mas desde que
de garantizar el libre desarrollo dela personalidad, que es la función de "existam juiz e pena. Juiz e pena se encontram sempre juntos.95 Como
la justicia.
explica BETTIOLzºª la vsnganza es fruto de un impulso, y, por tanto, de
Por sua vez, W. GOLDSCHMIDT92 explica que os direitos funda— una 'emoción no controlada por la razón, y as a menudo desproporcrona-
mentais, como tais, dirigem-se contra o Estado, e pertencem, por con- '. daª'respecto a la entidad del mal 0 del dario causado. La pena, por el con—
seguinte, à seção que trata do amparo do indivíduo contra o Estado. IfÍáÍÍD."Si quiere en verdad ser y permanecer como tal, es fruto de una
Prova disso é a quantidade de dispositivos que integram as constitui- ' remessa. É um ato da razão que determina uma importante caracteris-
ções modernas, regulando o processo penal, com a finalidade de garan— tica da'pena: a proporcionalidade.
tir a plena eficácia dos direitos fundamentais do acusado enquanto ' ' A democracia e um sistema político-cultural que valoriza o 1nd1v1—
estiver sendo processado. Também não podemos esquecer que o pro- . duo frente ao Estado e que se manifesta em todas as esferas da relação
cesso penal constitui um ramo do Direito Público, e que a essência do Estado—individuo. Inegavelmente, leva a uma democratização do pro-
Direito Público é a autolimitação do Estado.

93 GUARNIERI, José. Las Partes en el Proceso Penal, p. 35.


90 Diritto Penais, p. 133. BETTIDL, Guiseppe. Instituciones de Derecho Penal ;! ProcesalI Penal, pp. 54 e se.
91 Instituciones de Derecho Proc—essi Penal, pp. '7 e 55. 95 GDLDSCI—IMIDT, James. Problemas Jurídicos ylªoliticos del Proceso Penal. 13. 7.
92 La Ciencia dela Justicia —Dilrelogia, p. 201. '- ' 55 Instituciones de Derecho Penal yProoesal Penal. p. “147.

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Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da instrumentalidade Constitucional)

cesso penal, refletindo essa valorização do indivíduo no fortalecimento um imperativo de justiça Isso é crucial para o processo penal poder ser
do sujeito passivo do processo penal. Pode-se afirmar, com toda segu—
rança, que o principio que primeiro impera no processo penal é o da inserido no complexo sistema de garantias que forma o Direito.
proteção dos inocentes (débil), ou seja, o processo penal como direito 13) Constitucionalização do Processo Penal
protetor dos inocentes. Esse status (inocência) adquiriu caráter consti-

natória transitada em julgado. ,


tucional e deve ser mantido até que exista uma sentença penal conde-

O objeto primordial da tutela não será somente a salvaguarda dos


Com a Constituição de 1988 e a instituição do Estado Democrá—
“tico de Direito, rompeu- se um paradigma da maior relevantna para o
sistema jurídico O novo modelo de Estado impõe uma nova forma
interesses da coletividade, mas também a tutela da liberdade proces- de produção do direito e, acima de tudo, uma nova postura do ope-
sual do imputado, o respeito a sua dignidade como pessoa como efeti—
rador jurídico, pois a função transformadora e promovedora que—o
va parte do processo. O significado da democracia e a revalorização do .Direito passa a desempenhar temsua eficacia pendente da atuaçao
homem, em toda la complicada red de las instituciones procesaies que daquele.
sólo tienen um significado si se entienden por su naturaleza y por su fina— Nenhuma dúvida pode existir de que o constitucionaiísmo, exsur—
iidad politica y jurídica de garantia de aquel supremo valor que no gente do Estado Democrático de Direito, pelo seu perfil compromissario,
puede nunca venir sacrificado por razones de utilidad: el hombre.97
dirigente e vinculativo, constitui-a—ação do Estado!100 . .
O processo penal é uma das expressões mais tipicas do grau de “ Ó,,processo penal deve passar pelo filtro constituc1onai e 'se
cultura alcançado por um povo no curso da sua história, e os principios democratizar. A democracia pode ser vista como um sistema politi-
de politica processual de uma nação não são outra coisa que segmen— Ico-cultural que valoriza o individuo frente ao Estado, e que se mani—
tos da política estatal em geral. Nessa linha, uma Constituição festa em todas as esferas dessa complexa relação Estado- individuo.
Democrática deve orientar a democratização substancial do processo Como consequência, opera— se uma democratização do processo
penal, e isso demonstra a transição do direito passado ao direito futu— ' penal que se manifesta atraves do fortalecimento do sujeito passivo.
ro. Num Estado Democrático de Direito, não podemos tolerar um pro— O indivíduo submetido ao processo penal passa a ser valorizado
cesso penal autoritário e típico de um Estado-policial, pois o processo . Jundicamente
penal deve adequar—se à Constituição e não vice—versa. Entendemos que sociedade deve ser compreendida dentro da
Devemos romper com a tradição do direito regulador para inserir- fenomenologia da coexistência, e não mais como um ente superior, de
nos num novo paradigma imposto pelo Estado Democrático de Direito:
o do direito promovedor e transformador. , . ç oí'antropomorfica na qual a sociedade é concebida como um ente
Deve-se buscar aquilo que GERALDO PRADO98 chama de consoli- ' gigantesco no qual os homens são meras células, que lhe devem cega
dação de uma cultura democrática e, naturalmente, também de direitos obedienma Nossa atual Constituição e, antes dela, a Declaração
fundamentais, lutando contra os ranços e as resistências de um pais Umversal dos Direitos Humanos consagram certas limitações necessá-
em que o processo de democratização é recente, e a transição do siste- - nas'para a coexistência e não toleram tal submissão do homem ao ente

penal autoritário.“?1 _ _
ma politico autocrãtico para outro democrático é lenta e gradativa. ' .. SUPiEriorf essa visão antropomórfica que corresponde a um sistema
Como consequência, a estrutura do processo penal deve ser tal
que se reduza ao mínimo possível o risco de erro e, em segundo lugar, ' Na mesma linha, BOBBIO102 explica que, atualmente, MEDE-Sª
o sofrimento injusto que dele deriva. 99 Todos os mecanismos de prote- . : u'mapostura mais liberal na relação Estado-individuo, de modo que pri—
ção que busquem amenizar o sofrimento e os riscos que ele encerra são
__________ .
100 STRECK, Lenío. Jurisdição Constitucional eHermenêutica, 13.19.
9? BE' I"“,IIOL. Giuseppe Instituciones de Derecho Penal“ ;; Procesai Penai,p.174. . #01 ZAFFAHDNI, Eugenio Raúl e PIERANGELE. José Henrique. Manuai de Direito Penal“
QB PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório, 13.45. Brasileiro, 13.96
99 CAHNELU'I'TI, F'rancesco. Derecho Procesai Cila? ;; Penal, 13. 308. 102 Nº prólogo da ºbra de FEHRAJOLI, Derecho yRazõn,p.1El.

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Aury Lopes Jr.
Introdução Critica ao Processo Penal .
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucronal)

meiro vem o indivíduo e, depois, o Estado, que não é um fim em si


mesmo. O Estado só se justifica enquanto meio que tem como fim a tº; passando a ocupar uma posição de destaque enquanto parte“”
tutela do homem e dos seus direitos fundamentais, porque busca o com verdadeiros direitos e deveres.108 . .
- ' Por tudo issº, o Código de Processo Penal nao pode mais ser lido
bem comum, que nada mais é do que o benefício de todos e de cada um
dos indivíduos. . ' de forma desvinculada do texto constitucional. É o Código de Processo
Por isso, FERRAJOLI fala da ley de] más débillº3 No momento do que deve ser lido a luz da Constituição, e não o contrário, como querem
“alguns paleopositivistas, que restringem a eficácia protetora da
crime, a vítima é o débil e, por isso, recebe a tutela penal. Contudo, Constituícão para fazer com que esta entre na sistemática autontaria e
no processo penal opera-se uma importante modificação: o mais débil
passa a ser o acusado, que frente ao poder de acusar do Estado sofre superada do nosso CPR .
Devemos pensar, assim, a partir de um verdadeiro processo penal
a violência institucionalizada do processo e, posteriormente, da pena. conStÍtucíonal como método de estudo do processo penal a luz da
O sujeito passivo do processo, aponta GUARNIERI,104 passa a ser o
protagonista, porque ele é o eixo em torno do qual giram todos os atos
do processo.
Ganstítuição Federal'lºº . , .
'. Na visão de FERRAJOLI, todo e qualquer texto normativo so e
“' ' válido — validade substancial — quando estiver de acordo com as nor—
AMILTON E. DE CARVALHO,105 questionando para que(m) serve
' 3 mas e princípios (igualmente normas) constitucionais.
a lei, aponta que a “a lei e o limite ao poder desmesurado — leia—se:
' 'Estamos convencidos de que, com o advento da Constituição de
limite a dominação. Então, a lei — eticamente considerada — e proteção "21988; o' CPP ficou com sua estrutura seriamente comprometida, pois
ao débil. Sempre e sempre, e a lei do mais fraco: aquele que sofre a sua sistemática e de assumida inspiração fascista. Basta ler a exposr—
dominação".
' ção de motivos.110
O Direito (especialmente o Penal e Processual Penal) passa a
desempenhar um novo papel no Estado Democrático de Direito. Como
bem identificou WUNDERLICH,105 "com o nascimento do Estado .107' É complexa a problemática doutrinária acerca da existência de partes no processo penal.
Constitucional Democrático de Direito, a teoria crítica jurídica prega ' Grande parte da divergência vem w uma vez mais — do equivocado paralelismo entre c;
a necessidade de uma adequação ao novel paradigma de produção - direito processual civil e o penal. É preciso respeitar as peculiaridades do processo pena
=º“ suas categorias jurídicas próprias, evitando o paralelismo com o processo mini.-Assim.
científica. Deve-se criar uma ruptura com o direito meramente regula- “quando falamos em partes, estamos aludindo a um processo iae—nal de partes, e nao a um
dor. para que se possa ingressar no modelo de direito promovador e processo puro de partes. porque isso configurada uma errônea analogia com o processo
transformador. Em síntese, basta referir que os processualistas cori— ' civil, seu princípio dispositivo e a possibilidade de ampla dispo51çao sobre seu objeto.
-.Reconhecer a existência de partes no processo penal é um imperativo da propria estru-
temporâneos têm se orientado por uma tutela constitucional do pro— : tura dialética que o caracteriza, além de refletir o grau de valorização juridica do amado
cesso, tendo o processo como instrumento e serviço da ordem constitu- - passivo (não mais um mero objeto), que decorre da democratizaçao do processo penal.
cional. “ (gritamos) 108- Ou cargas, expectativas e perspectivas, se adotarmos a 'Banda do Processo como
Situação Juridica, de James Goldschmidt.
Nessa democratização do processo penal e ingresso no modelo 109- soAiíANcs FERNANDES. Antonio. Processo Penal Constitucional, p. 17. . "
transformador, o sujeito passivo deixa de ser visto como um mero obje- 110 Esse e um dos fatores que nos levam a crer que não há como fazer “reformas pontuais
:. =.“ do CPB em que pesem os respeitáveis motivos apontados pela Comissao de reforma.
' - Basta ler o item II da Exposição de Motivos do Código atua : "...impunha—se o seu ajus-
' tamento ao objetivo de maior eficiência e energia da ação repressiva do Estado contra os
103 FERRAJOLI. Luigi. Derechos y Garantias. La ley d'el mas débil. Trad. Perfecto Andrés '3 que delinqiiem. As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos teus, ainda
Ibanez e Andrea Greppi. Madri, Trotta, 1999. 'que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência das provas. um tao eirtenso
104 Las Partes en el Proceso Penal, p. 272. catálogo de garantias e favores, gue a repressão se torna necessariamente, defeituosa
e retardatãria, decorrendo daí um indireto estímulo à eggsnsão da criminalidade. ªº
105 BUENO DE CARVALHO, Amilton. "Lei. Para Quatro)?" In: Escritos de Direito e Processo ue se'a abolida a in'ustificável rimazia do interesse do índimduo sobre o da tutela
Penal em Homenagem ao Professor Paulo Cláudio Tbvo, pp. 56 e as. social. Não se pode continuar a contemporízar corn pseudodireitos individuais em pre—
106 WUNDERLICH, Alexandre. Por um Sistema de Impugnações no Processo Penal ' luiza do bem comum. O indivíduo. principalmente quando vem de se mostrar rebelde
Constitucional Brasileiro. In: Escritos de Direito e Processo Penal em Homenagem ao
Professor Paulo Claudio Tbm, p. 25. à disciplina jurídico-penal da vida em sociedade, não pode invocar. em face do ímã-Static.
outras franquias ou imunidades além daquelas que o assegurem contra 0 EXEIClClº dº

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Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

Sua sobrevivência tem exigido um verdadeiro contorcionismo juri— constitucionai brasileiro. Não existe uma dinâmica única no que se
dico, dificil e perigoso, pois deixa uma porta aberta para que os adep— refere à efetivação das normas constitucionais. _
tos do discurso autoritário e paleoposítivista neguem eficácia a deter- ', ., , A Constituição tem realizado com plenitude seu projeto penaliza-
minadas garantias fundamentais, fechando os olhos para a substancial dor e, como define BALO DE CARVALHO,113 é “nítido, pois, que, em
invalidade de uma série de normas processuais. Daí a necessidade matéria repressiva, a efetividade das normas constitucionais não ape—
urgente de uma reforma total111 do Código de Processo Penal, não se nas foi integral, como o legislador, aproveitando a ascensão do pânico
podendo conceber alterações pontuais. , moral, excedeu aos parâmetros (freios) estabelecidos pelo constituinte
Enquanto isso, cumpre ao jurista identificar, no interior do sistema “originário — p. ex., a inconstitucionalidade por excesso presente na Lei
processual, normas e institutos que não encontram mais respaldo cons— dos Crimes Hediondos".
titucional. São as chamadas invalidades substanciais, tratadas na con- ª .. Por outro lado, são elevados os índices de ineficácia dos direitos
tinuação?12 que devem ser expurgadas. .
Mas não basta isso, o mais dificil é a interiorizacão de processo de
constitucionalizacão. A baixa constitucionalidade é, acima de tudo,
psiquica.
preocupação. _
fundamentais e sociais, sendo essa a parcela objeto de nossa análise e

" Infelizmente nossa Constituição já caminha para sua maioridade ——


lá anos de vigêncial — e continua sendo (no recorte anteriormente defi—
O interessante é que a baixa eficácia da Constituição é um fenô— nido) uma ilustre desconhecida em muitas delegacias, foros e tribunais
meno Iocalizado, setorial, fruto das diversas dimensões do dirigismo bra-“silence, incluindo, obviamente, alguns péssimos exemplos dados
' “saibª superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal.114
,' Diariamente nos deparamos, desde a tribuna, nas audiências, nas
poder público de fora da medida reclamada pelo interesse social. Este o critério que pre—
delegacias, com um certo desprezo quando e invocada a violação deste
sidiu à elaboração do presente projeto de Código. No seu texto, não são reproduzidas as ' “daquele dispositivo constitucional. Não raras vezes, presencramos
fórmulas tradicionais de um mal—avisado favorecimento legal aos criminosos. O proces- suspiros de enfado, de ironia até, quando citado o art. 52 da Constituí—
so penal e aliviado dos excessos de formalismo e joeirado de certos critérios normativos
com que, sob o influxo de um mal-compreendido individualismo ou de um sentimen- oãoE impressionante como é comum ouvirmos comentários do estilo:
talismo mais ou menos equívoco, se transige corn a necessidade de uma rigorosa e '."1'-""-VêIl'l eles com o discurso da Constituição, invocando novamente os
expedita aplicação da justiça penal". (grifamos) O discurso autoritário e de assumida ' tais direitos fundamentais, vamos deixar a Constituição para lá... não é
inspiração fascista (Código de Rocco) — no mais puro estilo law and order diríamos ho—
je — e equivocado [o tempo demonstrou isso), e absolutamente incompatível com um era; isso que ela quis dizer“.
Estado Democrático de Direito. Daí a importância de uma reforma global, sob pena de ' Que dizer então da — elementar — recepção dos direitos assegura-
evidente prejuízo a harmonia e homogeneidade do sistema.
dos “na, Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São
111 No mesmo sentido. é acertada a critica de Jacinto Coutinho (Efetividade do Processo
Penal e Golpe de Cena: Um Problema as Reformas Processuais. ln: Escritos de Direito e
Processo Penal em Homenagem ao Professor Paulo Cláudio 'Ihvo. pp. 140 e ss.): "Com efei-
to, em favor da parcialidade fala uma desconfiança —— não de todo improcedente — na direi '- 113 CARVALHO, Salo de. A Ferida Narcisica do Direito Penal (primeiras observações sobre as
ção do Parlamento. principalmente em se tratando do nosso. De qualquer sorte, as refor— '(disjfunções do controle penal na sociedade contemporânea). In: A Qualidade do Tiempo:
mas parciais não têm sentido quando em jogo está uma alteração que diga respeito à para além das aparências lustâri'cas. Ruth M. Chittó Gauer (org.). p. 197.
estrutura como um todo, justo porque se haveria de ter um patamar epistémíco do qual . USB)—templos são incontáveis e a lista aumenta a cada dia. Sem que seja necessária que]-
não se poderia ter muita dúvida. Isso. todavia, não é o que se passa com o sistema pro- CIUer pesquisa, basta recordar as decisões do STF sobre a taxa de juros de 12% ao ano
cessual penal onde, antes de tudo, não se consegue sequer delimitar corretamente o (Masisa de lei complementar para definir o que é 12%?). a (tímida) receptividade da
conceito de sistema que, a toda evidência. deveria, no nosso campo, partir da noção kan- . Convenção Americana de Direitos Humanos, a constitucionalidadei?) do regime integral-
tiana. ou seja, fundada na noção de princípio unificador, por sinal protocelular." Conclui 5 mente fechado (e de toda a hedionda Lei 8.072), a famigerada Súmula 523 do STF (desde
o autor afirmando que não se pode deixar de sustentar que "um projeto global consis— ' quªndo a antítese de ampla defesa e defesa inexistente?) ou a 174 do STJ (arma de brin-
tente" haverá de vingar, em que pesem as deficiências do Parlamento. pois "e' preciso ter ' qu'edoáarma de verdade?). a não-concessão de efeito suspensivo nos recursos especial
confiança na força qualitativa e técnica dos juristas, capazes (por que não?) de armar, & extraordinário (como se o fenômeno e o objeto do processo penal fosse igual ao do pro-
desde premissas sólidas. uma estrutura que se não consiga mexer. quanto a substância. cesso civil...), a consagração do sigilo do inquérito policial para o advogado (o CPP então
por interesses antidemocráticos." rªfºgºu o art. 59. LV, da Constituição?), enfim, uma lista infindável de negação da etica-
112 Consulte-se o Capítulo II. quando tratamos da "fundamentação das decisões judiciais". oía da Constituição.

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Aury.r Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentaiidade Constitucional)

José da Costa Rica)? É até perigoso invoca-1a em público, sob pena de Na doutrina espanhola, ARAGONESES ALONSO“? explica que a
cometer grave heresia juridica... Constituição da Espanha de 1978 consagrou os principios contidos na
Que época triste essa nossa, em que é mais fácil quebrar um átomo Declaração Universal dos Direitos Humanos, que, por sua vez, vêm
de que um preconceito, diria EINSTEIN, do alto de sua genialidade. Coincidir com os também revelados pela doutrina pontifícia como direi-
Lutamos, pois, pela quebra do imenso preconceito que existe em ' to natural. Corn isso, o problema foi transferido e não está mais no
relação à Constituição e a constitucionalização do processo penal. pIano da existência jurídica, mas no da efetividade do garantismo.
-A efetividade da proteção está em grande parte pendente da ati-
o) Direito Penal Minimo e Garantismo Processual vidade jurisdicional, principal responsável por dar ou negar a tutela
dos direitos fundamentais. Como consequência, o fundamento da legi-
Apesar da dificuldade gerada pelo neoliberalismo e os movimen— timidade da jurisdição e da independência do Poder Judiciário esta no
tos repressivistas (como o law and order), entendemos que o caminho reconhecimento da sua função de garantidor dos direitos fundamentais
a ser tomado deve ser outro. Conforme explicado anteriormente. no inseridos ou resultantes da Constituição. Nesse contexto, a função do
modelo democrático o Estado Social deve ser máximo, o processo juiz e atuar como garantidor dos direitos do acusado no processo penal
garantista e o direito penal, minimo. E mais é imprescindível termos em mente que o processo penal
Ftente a essas dificuldades e retornando a linha da democratiza- : deve ser lido à luz da Constituição e não ao contrário. Os dispositivos
doCódigo de Processo Penal (de 1941) é que devem ser objeto de uma
ção substancial da justiça, atualmente propugna—se com muita proprie— releitura mais acorde aos postulados democráticos e garantístas na
dade por um modelo de justiça garantista ou garantismo penal, cujo ªno-ssa atual Carta, sem que os direitos fundamentais nela insculpidos
ponto de partida passa necessariamente pela teoria estruturada por
FERRAJOLI.115 "sejam interpretados de forma restritiva para se encaixar nos limites
É importante destacar que o garantismo não tem nenhuma relação -' autoritários do Código de Processo Penal.
" .::-No prólogo da obra de FERRAJOLI, BOBBIO define as grandes
com o mero legalismo, formalismo ou mero processualismo.
linhas-de um modelo geral de garantismo: antes que nada, eievándoio a
Consiste na tutela dos direitos fimdamentais, os quais —— da vida à iªn-odeio ideal del estado de derecho, entendido no sólo como estado libe-
liberdade pessoal, das liberdades civis e políticas às expectativas - ral protector de los derechos sociales; en segundo lugar, presentandoio
sociais de subsistência, dos direitos individuais aos coletivos — repre- ' ”como una teoria del derecho que propone un iuspositivismo critico con-
sentam os valores, os bens e os interesses, materiais e pré—politicos, -' trapuesto al iuspositivismo dogmático; y, por último, interpretándoio
que fundam e justificam a existência daqueles artifícios — como chamou - como uma filosofia política que funda el estado sobre los derechos funda—
Hobbes — que são o direito e o Estado, cujo desfrute por parte de todos mentales de los Ciudadanos y que precisamente del reconocimiento y de
constitui a base substancial da democracia.115 Dessa afirmação de 1a. efectiva protección (ino basta el reconocimiento!) de estos derechos
FERRAJOLI é possivel extrair um imperativo básico: o direito existe extrae su legitimidad y también la capacidad de renovarse sin recurrir a
para tutelar os direitos fundamentais.
. laviolencia subversiva.
Superado o tradicional conflito entre direito natural-direito positi- -' ' Existe uma profunda relação entre o modelo de Direito Penal mini-
vo, tendo em vista a constitucionalização dos direitos naturais pela mo e seu correspondente processo penal garantista. O primeiro e con—
maioria das constituições modernas, e problema centra-se agora na dicionado e limitado ao máximo, correspondendo não só ao máximo
divergência entre o que o direito e e o que deve ser, no interior de um Grande tutela das liberdades dos indivíduos em relação ao arbítrio
mesmo ordenamento jurídico, ou, nas palavras usadas repetidamente punitivo, mas também a um ideal de racionalidade e de certeza. Existe
por FERRAJOLI: o problema está entre efetividade e normatividade. uma clara vinculação entre garantismo e racionalismo.

115 No capo Lavoro, Derecho yHazán. “_º—».—


115 FERRAJOLI, op. cit., pp. 28-29. -' ll? Nª "Nºta para la segunda edición" da obra Proceso yDerecho Proc-essi, p. 28.

46 47
Aury Lopes Jr.
Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

O Direito Penal minimo e uma técnica de tutela dos direitos funda—


-_ Ademais, a busca da verdade substancial (ou real), mediante uma
mentais e " configura a proteção do débil contra o mais forte; tanto do
débil ofendido ou ameaçado pelo delito, como também do débil ofendido investigação inquisitiva, mais além dos limitados recursos oferecidos
ou ameaçado pela vingança; contra o mais forte, que no delito é o claim-- , pelo respeito às regras processuais, conduz ao predomínio das opiniões
quente, e na Vingança é a parte ofendida ou os sujeitos públicos ou pri— '. subjetivas, e até aos prejulgamentos irracionais e incontroláveis dos
vados solidários com elenª A proteção vem por meio do monopólio ' julgadores. O arbítrio surge no momento em que a condenação e a pena
dependem unicamente da suposta sabedoria e equidade dos juizes.
estatal da pena e da necessidade de prévio processo judicial para sua ' ' . Em resumo: o garantismo encontra sua antítese no Direito Penal
aplicação, e da existência, no processo, de uma serie de instrumentos
e limites, destinados a evitar os abusos por parte do Estado na tarefa mezanino e no utilitarismc
O utilitarismo processual,
está relacionado ambos
a idéia do tão em voga
combate ultimamente
à criminalidade
de perseguir e punir.
a qualquer custo, a um processo penal mais célere e eficiente no sen—
Como correspondente, a discricionariedade judicial deve ser sem— ' " tido de diminuir as garantias processuais do cidadão em nome do inte—
pre dirigida não a estender, mas a reduzir a intervenção penal enquan- '- resse estatal de mais rapidamente apurar e apenar condutas. É sinôni-
to não motivada por argumentos cognoscitivos seguros. A dúvida mo de exclusão, supressão de direitos fundamentais para alcançar a
sobre a verdade juridica exige a intervenção de instituições como a máxima eficiência (antigarantista). E, ainda, a matriz constitucional—
presunção de inocência do- imputado até a sentença definitiva; o ônus g'arantista, importante instrumento de resistência ao crescente movi-
da prova a cargo daacusação; o principio in dubio pro rec; a absolvição mento de terror no direito penal e processual penal, com seus mani-
em caso de incerteza sobre a verdade fática e, por outro lado, a analo— queismos grosseiros do estilo direito penal do inimigo.
gia in bonam partem. e a interpretação restritiva dos pressupostos tipi- ' ,O constitucionalismo processual é crucial a partir do momento em
cos penais e extensiva das circunstâncias eximentes ou atenuantes. Quartzompreendemos o seu custo, suas "misérias" na consagrada
Como destaca FERRAJOLI em diversos momentos, a dúvida deve Ép're'ssão de CABNELUTTI. A dureza dos instrumentos processuais
ser resolvida sempre pela aplicação do princípio in dubio pro rec (crité— faz'oor'ri que se castigue ex ante e que o processo se transforme numa
rio pragmático de solução das incertezas jurisdicionais) e a manutenção p aero si mesmo.
da presunção de inocência. A única certeza que se pretende no proces— É.:A'violência do processo penal é patente, tendo sua face mais cruel
so penal está relacionada com a existência dos pressupostos que condi— a, prisões cautelares, cujo conteúdo aflitivo em nada se diferencia (é,
cionam a pena e a condenação, a não com os elementos para absolver. alusiva”, mais grave) da prisão decorrente da sentença definitiva. Mas
Em sentido oposto, o modelo de Direito Penal máximo caracteriza—' éústem outros atos igualmente punitivos, ainda que praticados com
se pela excessiva severidade, pela incerteza, a imprevisibilidade das maxima delicadeza, que estão muito próximos das ações delitivas.
condenações e das penas e por configurar um sistema não controlável . Exemplifica IBÁICIEZ119 que a busca e apreensão domiciliar, se conside-
racionalmente, pela ausência de parâmetros certos e racionais. rada na sua pura materialidade, em nada se distingue da invasão de
No plano processual, a eficiência antigarantista identiiica—se, em dDIIllCIhD Da mesma forma, a interceptação telefônica ou a intervenção
linhas gerais, com o modelo inquisitivo. Sempre que o juiz tem funções Immoral (equivalente à lesão corporal ou mesmo atentado violento ao
acusatórias ou a acusação tem funçõesjurisdicionais, e ocorre a mistu— dor, conforme a natureza do ato).
ra entre acusação e juizo, estão comprometidas a imparcialidade do A violência dos atos e igual. A diferença então está no sentido e
segundo e, também, a publicidade e a oralidade do processo. A carên- . Prºfundº respeito às garantias processuais, na necessidade e pro-
cia dessas garantias debilita todas as demais e, em particular, as .. Pºl-'Cíonalidade, na natureza e importância do bem juridico tutelado.
garantias processuais do estado de inocência, do ônus da prova, do = Nisso reside a autorização para que o Estado cometa tais crimes. 0 pro-
contraditório e da defesa.
cesso Bªnal faz com que o Estado tenha uma soberania mitigada, um

118 FERRAJOLI, Luigi. Derecho yrazón, p. 335.


119. º ªªi-ªmplo É de IEÁÉEZ. Garantismo ;; Proceso Penal, 13. 50.

tJB
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da lnstrumentalidade Constitucional)

poder limitado e reduzido ao limites racionais e no marco dos princípios tudo isso. está alguém sendo punido pelo processo e, se condenado,
garantidores. sofrendo uma pena, concreta, efetiva e dolorosa.
E cabe ao juiz essa importante tarefa e, enquanto garantidor da
eficácia do sistema de garantias constitucionais e processuais, deve -_ &) Risco Exógeno
atentar, principalmente, para os critérios de necessidade e proporcio—
nalidade (obviamente que estamos falando de proporcionalidade como .. .. s-êNão há como iniciar uma abordagem sobre risco sem falar na risk
proibição de excesso), buscando sempre o menor sofrimento possível society de BEGKÍLZ1 Obviamente que a análise perpassa essa visão,
do sujeito passivo submetido à violência do processo. Em última análi— que serve apenas como ponto inicial. A doutrina de BECK desempenha
se, menor constrangimento e sofrimento do inocente submetido ao pro— uma importante missão na superação da compreensão de que o sofri-
cesso, porque esse e o status constitucional do réu. mento e a miséria eram apenas para o outro, pois haviam paredes e
fronteiras reais e simbólicas para nos escondermos. Isso desapareceu
coin Chernobil. Acabaram—se as zonas protegidas da modernidade, ha
V. Inserindo () Processo Penal na Epistemologia Negado el final de los otros.122 O grande desafio passa a ser viver com
da Incerteza e do Risco: Lutando por um Sistema assadas—coberta do perigo. Caiu o manto de proteção, deixando a des-
de Garantias Mínimas .I'coberto esse desolador cenário.
'A sociologia do risco é firmada e definida pela emergência dos
Como já apontamos, vivemos numa sociedade complexa, em que perigos ecológicos, caracteristicamente novos e problemáticos. Mas a
o risco está em todos os lugares, em todas as atividades e atinge a ': dimensão desse risco transcende a esfera ecológica e também afeta o
todos, de forma indiscriminada. Concomitantemente, é uma sociedade ª processo, pois alcança a sociedade como um todo, e o processo penal
regida pela velocidade e dominada pela lógica do tempo curto. Toda nãofica-imune aos riscos.
essa aceleração potencializa o risco. ' :- Como aponta BECK, as sociedades humanas sempre correram ns—
Alheio a tudo isso, o Direito opera com construções técnicas arti- cos; mas eram riscos e azares conhecidos, cuja ocorrência podia ser
ficiais, recorrendo a mitos como “segurança jurídica",120 "verdade prevista e sua probabilidade, calculada. Os riscos das sociedades in-
dustriais eram importantes numa dimensão local e frequentemente
real", "reversibilidade de medidas", etc. Em outros momentos, parece 'Í: devastadores na esfera pessoal, mas seus efeitos eram limitados em
correr atras do tempo perdido, numa desesperada tentativa de acom—
': termos espaciais, pois não ameaçava sociedades inteiras. 123 Atual-
panhar o “tempo da sociedade". Surgem então alquimias do estilo
mente as novas ameaças ultrapassam limites espaciais e sociais e
“ antecipação de tutela", “aceleração procedimental", etc. também excedem limites temporais, pois são irreversíveis e seus efei—
O conflito entre a dinâmica social e jurídica é inevitável, eviden« " tos (toxinas) no corpo humano e no ecossistema vão se acumulando. Os
ciando uma vez mais a falência do monólogo cientifico diante da com— Plª-“171905 ecológicos de um acidente nuclear em grande escala, pela libe-
plexidade imposta pela sociedade contemporânea.
Nossa abordagem é introdutória, um convite à reflexão pelo viés
interdisciplinar, com todos os perigos que encerra uma incursão para
121 Trabalhamos aqui com os conceitos de BECK na obra La Sociedad dei Hiesgo, Barcelona.
alem de um saber compartimentado. Sem esquecer que, em meio a ' Paidós,1995.etambém de GDLDBLATT, "A Sociologia de Risco— Ulrich Back" in: irlanda
: -.Sociai & Ambiente. Traci. Ana Man's André. Lisboa, Instituto Piaget, 1996.
1.32 BECK, Ulrich. La Sociedad de] Riesgo, p. 11.
220 A crítica dirige-se à visão tradicional, paleopositivista e arraigada no dogma da compie- ' ' .]".2'3 Im-"ªªªú'ído BECK, GOLDBLATT ("A sociologia de Risco" ,p. 232), cita o exemplo da polui-
tude lógica do sistema. Da mesma forma, a critica está dirigida a ilusão de controle que Çãn causada por uma siderurgia ou fundição, no século XIII)-( ou meados do século XX: O
enlarge do conceito. Corno explicaremos no final, a tal segurança jurídica deve ser lixº Produzido tinha consequências relevantes em nivel local, para as pessoas que traba—
(re)pensada no atual contexto (de insegurança exógena e endógena) enquanto instru— lhawam lá e para a comunidade local, que bebia a água e respirava o ar contaminado.
mento limitador do poder punitivo estatal e eniancipador do débil submetido ao proces- “Contudo, essa ameaça (mesmo considerando todas as siderurgias do mundo) não alcan-
so penal. ÇElVa populações inteiras, nem o planeta no seu todo.
Aury Lopes .Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
[Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

ração de químicos ou pela alteração e manipulação da composição Por conseguinte. as atuais formas de degradação do ambiente
genética da flora e fauna (transgênicos), colocam em risco o próprio ' atingem atodos indistintamente, ou seja, não há quase considerar
planeta. Existe um risco real de autodestruição. ' qualquer tipo de barreira social ou geográfica como meio de [proteçao
Outro problema é que nos riscos ecológicos modernos, segundo " contra-tais perigos. Os gases poluentes emitidos pelos automoveis que
BECK,124 o ponto de impacto pode não estar obviamente ligadoao seu ' circulam “nas grandes cidades atingem da mesma forma ricos e pobres,
ponto de origem e sua transmissão e movimentos serem muitas vezes . transando—lhes os mesmos problemas circulatórios, assim como o fato
invisíveis e insondáveis para a percepção quotidiana. É um gravíssimo aê:-morar.. em uma favela ou em um bairro nobre não protege ninguém
problema que dificulta ou impossibilita a identificação do nexo causal, deuma catástrofe.
como ocorreu, vg, com as contaminações pelo Antraz. - . O risco também está no trabalho e manifesta-se pelo desemprego
Se na sociedade pré—industrial o risco revestia a forma natural (tre- . estrutural em,]arga escala e a longo prazo. Não há mais estrutura de
mores, secas. enchentes, etc.), não dependendo da vontade do homem traballio por “sexo; ha uma queda do trabalho por tempo integral e o
e, sendo por isso, inevitável, o risco na sociedade industrial clássica aumento das jornadas parciais; operou— se um rompimento da estrutura
passou a depender de ações dos indivíduos ou de forças sociais (ex': . 'tradicmnal do emprego regular (vitalício); ilexibilidade geral das rela-
perigo no trabalho devido à utilização de máquinas e venenos; no ço sí Tudo isso gera uma grande insegurança econômica que se vai
âmbito social, o perigo do desemprego e penúria, ocasionado pelas al trar em todo feixe de relações dos indivíduos.
incertezas da dinâmica econômica, etc.). Nesse momento nasce a ilu- Também na esfera das relações afetivas e na própria estrutura
são do Estado Segurança. familiar. o risco está mais presente do que nunca. No núcleo familiar,
Em que pese o fato de certos perigos e azares constantemente .. nao há mais a distinção entre trabalho doméstico (não remunerado e
ameaçaram determinados grupos, tais riscos eram conhecidos, cuja educação dos filhos) e trabalho assalariado (privativo do homem). Está
ocorrência poderia ser prevista e cuja probabilidade poderia ser(á?) . consagrada a decadência do patriarcado. Intensificou— s—e a individuali—
calculada. Mas os riscos contemporâneos são qualitativa e quantitati- j z ção, com o rompimento das funções tradicionais (homem e mulher) e
vamente distintos, pois assumem consequências transgeracionais ªffõrças ideologicas que ajudavam a “"prender as pessoas. A inse—
(pois sobrevivem aos seus causadores) e' marcados pelo que BECK ança multiplicou- -se em relação ao núcleo familiar com o divórcio,
chama de giocalidade (globais e locais ao mesmo tempo). :ºpaternidade ou maternidade unilateral e também implica uma nova
Ademais, é patente a desconstrução dos parâmetros culturais tra— ”dinâmica das relações interpessoais, em que o casar—se passa a um
dicionais e as estruturas institucionais da sociedade industrial (classe, ',Éêgurido plano. valorizando—se mais a realização profissional e o indivi—
consciência de classe, estrutura familiar e demarcação de funções por dualismo (logo, relacionamentos afetivos superficiais).
sexo). Não ha estratificação econômica rigida, funções demarcadas por , '. A dinâmica do tempo curto e a ditadura do instantâneo potencia—
sexo e núcleo familiar. Todo o oposto. liza esse risco das relações afetivas, pois não existem mais os longos
O mito do Estado Segurança cai por terra quando se verifica a fra— namoros, seguidos de noivado e casamento para toda a vida. As pes-
gilidade de seus postulados. BECK125 justifica o estado de insegurança - soas. '.ªficam", o que significa a mais completa falta de compromisso
sustentando que "a dimensão dos riscos que enfrentamos é tal, e os Com o passado e de comprometimento com o futuro. É o presenteismo
meios pelos quais tentamos lutar contra eles, a nível político e institucio— em grau mªo.
nal, são tão deploráveis, que a fina capa de tranquilidade e normalidade , Que dizer do “futuro"? E totalmente contingente" pois — explica
e constantemente quebrada pela realidade bem dura de perigos e amea- OST-125 — ae opera uma ruptura com a experiência vulgar do tempo -—
ças inevitáveis? - enquªnto simples recondução do passado —- pois tudo se torna possí-
.vel Ó futuro é verdadeiramente contingente, indeterminado; o instan—
124 GOLDBLATT. “A Sociologia de Risco", 1). 233.
125 GDLDBLA'I'I', David. "A Sociologia do Risco de Ulrich Beck", in: lataria Social e Ambiente,
p. 240. :.,125, 0319111130 do Direito, p. 324.
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

te é verdadeiramente instantâneo, suspenso, sem sequência previsível Outra face importante das nossas sociedades contemporâneas é o
ou prescrita. Projetos e promessas (impulso prometeico) perdem toda infantilísmo,131 externado pelo desejo e o consumismo, faze-ndo deeper-
pertinência. É a incerteza elevada ao quadrado. " ' tar.- a criança que existe em cada um de nós. Aliado ao dese]o infantil de
Mais radical, COMTE—SPONVTLLE 127 chama de nadiú'cação. Mais ' tudo possuir. não sabemos lidar com o tempo e a recusa. Uma vez ma1s
do que isso, é a nadificação do nada, pois o passado não existe, uma . estamos inseridos na urgência (da satisfação do desejo), onde qualquer
vez que já não é, nem o futuro, já que ainda não e. E o presente se divi— [ demora e um retardo doloroso e insuportável, não queremos e não pre-
de num passado e num futuro que não existem. Logo, é o nada, pois, - cisamos esperar, poís lançamos mão do crédito, provocando um verda-
entre dois nada: o tempo seria essa nadíficaçâc perpétua de tudo. deito curto- -círcuito no tempo, como define BRUCKNER.132 O crédito per—
Sob outro aspecto, indo além nessa análise, é importante conside— ' mite fazer desaparecer, como que por passe de mágica, o intervalo entre
rar que vivemos numa sociedade em busca de valores (parafraseando a desejo e satisfação, inserindo-nos numa perspectiva (imediatista) tlpl-
obra128 de PRIGOGINE e MORIN). camente infantil, da crianca que não conhece a renúncia.
Nessa busca de valores, devemos considerar que estamos numa ' Como se não bastasse isso, os jovens de 1968 (do histórico maio de
sociedade pós-moralista,?29 que, liberta da ética de sacrifícios, e domi— . 1968) cresceram, tornando se, eles próprios, em país. E, quando isso
nada pela felicidade, os desejos, o ego e os direitos subjetivos, sem "ocorreu, não ensinaram outra coisa aos seus filhos do que a recusa a
qualquer ideal de abnegação. E mais, tais benefícios devem ser obtidos - qualquer autoridade. É uma geração dominada pela ideologia de renun—
ciar a renúncia. Isso, obviamente. acarreta graves problemas, na medi-
a curto prazo, pois igualmente inseridos na lógica da aceleração, onde
qualquer demora e vista como um sofrimento insuportável. d iii-que o conflito com o Direito (limite e imposição de renuncia) e ine-
São fatores que conduzem a um individualismo sem regras, sem v1 avel' e' doloroso. Isso gera, ao mesmo tempo, violência e insegurança.
limites, desestruturado e sem futuro. Essa é apenas (mais) uma das “Desnecessário seguir, pois o risco, a incerteza e a insegurança
"'em tudo. Sequer o sexo virtual, tido como seguro, ficou imune ao
faces das nossas sociedades, que não sepultou & moral, senão que a risco.-Os virus da Internet, cada vez mais sorrateiros e destrutivos, aca-
deseja no mesmo nivel de complexidade (uma moral a la carte diria
baram com qualquer esperança de "segurança".
LIPOVETSKY,IEID pois sentimental, intermitente, epidermica, uma últi-
' 'Vivemos inseridos na mais completa epistemologia da incerteza.
ma forma do consumo interativo de massa, eis que fortemente influen- . Como consequência desse cenário de risco total, buscamos no Direito
ciada pelo discurso midiático). Até mesmo em torno da moral reina a
Penal“ a segurança perdida Queremos segurança em relação a algo que
,mais absoluta incerteza, pois evidente o estado de guerra entre “os “sempre existiu e sempre existirá: violência e insegurança.
vários tipos de moral".
Aqui devemos fazer uma pausa e destacar que muito se tem mani-
pulado o discurso para utilizar esses novos riscos como legitimante da
. intervenção penal. Não é essa nossa posição.
127 COMTE-SPONVILLE, André. O Ser-Tiempo, p. 18. ' , Estamos de acordo com a brilhante síntese de SALO DE CARVA-
IZB MORIN, Edgar e PRIGOGINE. Ilya et al. A Sociedade em Busca de Valores. Para fugir a ' il.-HUF??? de que o Direito Penal (e também o processo penal), “ao assu«
alternativa entre o cepticismo & o dogmatismo. Lisboa, Piaget, 1556. I_TIÍI & responsabilidade de fornecer respostas às novas demandas (aos
129 GILLES LIPOVETSKY ("A Era do Apos-Dever". In: A Sociedade em Busca de Valores, pp.
30-31) explica que existem três fases essenciais na história da moral ocidental, A primei- nºvos riscos), redimensiona, vez mais, sua estrutura" num “narcisismo
ra marca pelo momento teológico da moral, onde ela era inseparável dos mandamentos
de Deus e da Bíblia. A segunda fase, que inicia no final do século XVII, é laico—moralis-
ta, onde busca— —se fundar as bases de uma moral independente dos dogmas religiosos e
da autoridade da' igreja. É uma moral pensada a partir da racionalidade, onde o homem
__ .
131” EHUCKNER. Pascal. "Filhos e Vítimas: o tempo da inocência". In: A Sociedade em Busca
pode alcançar uma vida mural sem a ajuda de Deus e dos dogmas teológicos. Por fim.a de Valores, 13.55
terceira fase e a "pos-moralista" e continua com o processo de secularização posto em 132 i'Filhos e Vítimas: o tempo da inocência" In: A Sociedade em Busca de Valores 13 55-
marcha nos séculos XVII e XVIII. É uma sociedade que estimula mais os desejos, e feli- 33 CARVALHO, Salo de. A Ferida Narcisica do Direito Penal (primeiras observações sobre as
cidade e os direitos subjetivos, sem a cultura da ética de sacrifícios. - ªí (díslfunções do controle penal na sociedade contemporânea) In: A Qualidade da Tªmpª
130 LIPOVETSKY, Gilles. "A Era do Após-Dever". In: A Sociedade em Busca de Valores, p. 35. Pªra além das aparências históricas. Ruth M. Chitto Gauer (org.), p. 159.

54
Aury Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

infantil".134 Surge do “delirio de grandeza (messianismo) decorrente da o aviador. A verdade absoluta somente poderia ser determinada pela
auto-atribuição do papel de proteção dos valores mais caros a " soma de todas observações relativas 137
Humanidade, chegando a assumir responsabilidade pelo futuro da Givi—' ; HAWICENGHB explica que EINSTEIN derrubou os paradigmas da
lização (tutela penal das gerações futuras); estabelece uma relação époCa: o repouso absoluto, conforme as experiências com o éter, e o
consigo mesma que a transforma em objeto amoroso". tétfipo'absoluto ou universal que todos relogios mediriam. Tudo era
Esse cenario conduz a onipotência que incapacita o Direito Penal relàtíVD, 139 nao havendo, portanto um padrão a ser seguido.
a perceber seus próprios limites, inviabilizando uma relação madura - ' Partindo da premissa de que todo saber é datado, EINSTEIN dis-
com os outros campos do saber (interdisciplinaridade). Ao não dialo- tingue' uma teoria verdadeira de uma falsa a partir do seu prazo de vali-
gar, o Direito Penal não percebe a falência do monólogo científico, o que dade: maior tempo para a primeira, tal como décadas ou anos; já para
conduz ao agravamento da crise e do próprio autismo juridico. ' a'desmistificacao da segunda bastam apenas dias ou instantes 140
Nossa abordagem situa-se nessa dimensão: reconhecer o risco Neste interim, ”somente ha uma verdade cientifica até que outra
para legitimar um sistema de garantias minimas. E fazer um recorte venha a ser descoberta para contradizer a anterior".141 Caso contrário,
garantidor e não penalizador na sociedade do risco. ainda se resumiria em reproduzir o conhecimento científico dos ante—
Para concluir, recordernos a lição de RUTH GAUER135 de que vio-
lência é um elemento estrutural, intrínseco ao fato social e não o resto
anacrônico de uma ordem bárbara em vias de extinção. Esse fenômeno 37 EINSTEIN. Wda e pensamentos, pp. 16-18.
aparece em todas as sociedades; faz parte, portanto, de qualquer civili- 38 I-IAWÍCING, Stephen. O universo numa casca de noz, p. 11.
íãé ' Contudo, ensina I—IAWICING (op. cit., p. 79), "a relatividade geral falhou ao tentar descre-
zação ou grupo humano: basta atentar para a questão da violência no ver os momentos iniciais do universo porque não incorporava o principio da incerteza, (]
mundo atual, tanto nas grandes cidades como também nos recantos elemento aleatório de teoria quântica a que Einstein tinha se oposto, como o pretexto de
mais isolados. ' gue bens não joga dados" [teem-demos da célebre frase de Einstein: "Deus não joga
- dados com o Universo"). Mas, ao que tudo indica, prossegue HAWKLNG, é que Deus seja
, um grande jogador, onde o Universo não passa de um imenso cassino, com dados sendo
b) Epistemologia da Incerteza lançados e roletes girando a todo momento. Existe um grande risco de' 'perder dinheiro"
a cada lançamento de dados, mas existe uma previsibilidade (probabilidade), senão os
l'JIºlJrietarios de Cassinos não seriam tão ricos! O mesmo ocorre com o grande universo
Aliado a tudo isso, a epistemologia da incerteza e a Relatividade Cine temos hoje, em que Existe um número enorme de lançamento de dados, onde a
média de resultados pode ser prevista. É aqui que as leis clássicas da fisica funcionam:
sepultam as "verdades reais"135 e os “juízos de certeza ou segurança" Para os grandes sistemas. Sem embargo, quando universo é minúsculo, como o era pró-
(categorias que o Direito Processual tanto utiliza), potencializando a “ me a época do big-bang, "o número de lançamentos de dados e pequeno, e o principio
insegurança. tia-incerteza é muito importante". Aqui está a falha da relatividade, ao não incorporar
esse elemento aleatório de incerteza. Hoje, a incerteza está tão arraigada nas diferentes
Com EINSTEIN e a Relatividade sepultou—se de vez qualquer res— dimensões da vida (economia, sociologia, antropologia, etc.) que a discussão supera a
quício dos juízos de certeza ou verdades absolutas, pois tudoé relati- fªsº da “probabilidade". para atingir o nivel da "possibilidade", ou ainda, das "propen-
sõe's" como deliniu KARL POPPER (ao longo da obra Um Mundo de Propensães). para
vo: & mesma paisagem podia ser uma coisa para o pedestre, outra coisa , .quem,'fa tendência para que as médias estatísticas se mantenham, se as condições se
totalmente diversa para o motorista, e ainda outra coisa diferente para mantiverem estáveis, é uma das características mais notáveis do nosso universo.
ú'stento que isso so pode ser explicado pela teoria da propensão que são mais do que
meras possibilidades, são mesmo tendências ou propensões para se tornarem realidade;
« Du Dmpensões para se realizarem a si mesmas. as quais estão inerentes a todas as pos-
134 CARVALHO, Salo de. A Ferida Narcisica do Direito Penal (primeiras observações sobre as sibilidades em vários graus e que são algo como uma força que mantém as estatísticas
(dislfunções do controle penal na sociedade contemporânea). In: A Qualidade do Tampa: EªtªVªÍE" (UP cir., p. 24). Apropensão, entendemos, poderia ser definida como uma 'p'os-
para além das aparências históricas. Ruth M. Chitto Gauer (org.), p. 206. . sibilidade qualificada", conduzindo assim ao abandono da categoria "probabilidade"
135 "Alguns Aspectos da Fenomenologia da Violência". In: A Fenomenologia da Violência, pp. - diante dº Púnoipio da incerteza.
13 e ss. . VÍRILIO. Paul. Ainércía polar, p. 19.
136 Tratarernos especificamente do mito da verdade real no processo penal no próximo . THUMS, Gilberto. Sistemas processuaispenais: tempo, dromoiogia, tecnologia egarantis-
JHC, p 21
Capítulo, quando da análise da garantia da "mndamentação das decisões judiciais".

E'?
Aury Lopes Jr. introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

passados, assim como não haveria motivo para a ciência buscar novas ---5apenaS uma decisão que gera um acordo apenas parcial, uma verdade
fronteiras.
' aproximada.
Em síntese, a ciência estrutura—se a partir do principio da incerte- ; Inserida na epistemologia da incerteza, a democracia está centra-
za. E por causa dele “não haverá apenas uma história do universo con— da num conflito interminável, pois ela é essencialmente transgressiva
tendo vida inteligente. Ao contrário: as histórias no tempo imaginario e desprovida de base estável. Recordemos que, etimologicamente,
serão toda uma família de esferas ligeiramente deformadas, cada uma “político não se refere apenas a polis, mas também a polemos, isto é, a
correspondendo a uma história no tempo real na qual o universo infla [EF-"lªnª de forma que o espaço político não é apenas aquele reconcilia-
por um longo tempo, mas não indefinidamente. Podemos então pergun— doie harmônico, da ordem consensual, mas também do conflito. A arte
tar qual dessas histórias possíveis e a mais provãvel".142 consiste em transformar o antagonismo potencialmente destruidor em
Essa incerteza também está intimamente relacionada com a noção ' agonismo democrático.145
de futuro contingente, em que se opera uma ruptura com a experiência
vulgar do tempo — enquanto simples recondução do passado w, pois tudo [fc-'),IR'isco Endógeno: Processo como Guerra ou Jogo?
se torna possível. O futuro é verdadeiramente contingente, indetermina-
do, o instante e verdadeiramente instantâneo, suspenso, sem sequência Mas o risco e a incerteza não estão apenas fora ou em torno do
previsível ou prescrita.“3 Projetos e promessas (impulso prometeico) processo.,São inerentes ao próprio processo, seja ele civil ou penal.
perdem toda pertinência. É a incerteza elevada ao quadrado. ,A noção de processo como relação jurídica, estruturada na obra de
Como aponta OST,144 "toda ciência começa por uma recusa (...) o BÚLDWMT foi fundante de equivocadas noções de segurança e igual—
espirito cientifico mede—se pela sua capacidade de requesticnar as certe- dadegue brotaram da chamada relação de direitos e deveres estabele—
zas do sentido comum — tudo aquilo que Bachelard designava pelo nome "cidjos entre, as partes e entre as partes e o juiz. O erro foi o de crer que
de obstáculo epistemológico", pois "uma teoria nunca pode ser provada o “processo penal houvesse uma efetiva relação jurídica, com um
positivamente, nem definitivamente: lá pelo facto de termos contado autêntico processo de partes.
milhares de cisnes brancos, como poderíamos ter a certeza de não existir __A teoria doprocesso como uma relação jurídica e um marcelª“! rele-
pelo menos um que fosse preto?" A ciência está sempre em suspenso. vante para o estudo do conceito de partes, principalmente porque repre—
Nessa perspectiva de incerteza, a ordem e, pois, excepcional: e o ntou'uma evolução de conteúdo democrático—liberal do processo, em
caos que é regra. _ momento em que o processo penal era visto como uma simples inter-
A própria democracia é uma "política de indeterminação", pois venção estatal com fins de “desinfecção social" ou “defesa social".“?!
torna o poder infigurãvel. Ao contrário do totalitarismo, explica 051145
na democracia ninguém tem o direito natural de deter o poder.
Ninguém pode aspirar exerce—lo de forma durável. Nenhuma força ou 14 »DST, François. D Tiempo do Direito, p. 335.
partido podera apropriar-se do poder, senão através do abuso. 147Desenvclv-ida na obra La Iberia de las Excepciones Diiatórias y los Presupuestns
...-Procesales publicada (original em alemão) em 1858.
Enquanto o totalitarismo erradica o confiito e reduz toda espécie de .Como aponta CHIDVENDA (Princípios de Derecho Procas-al Civil, v. 1. p. 123), a "la sen-
oposição, a democracia está baseada no pluralismo de opiniões e na ,cíllísima pero fundamentai idea notada por HEGEL. afim-rada por BETHMANN—HOLL—
sua oposição conilitual (é uma visão de caos como regra). A democra- '..WUBGy desenvuelta principalmente por BÚLOW y mas tarde por I(OHLEH y por otros
ranchos, inciuso en Italia: el proceso civil contiene una relación juridica". Na realidade.
cia nào elimina o conflito, apenas tenta garantir um desfecho negocia- ”nao soporte aiirmar que BÚLDW criou a teoria da relação jurídica. pois, como aponta
vel (através de procedimentos aceitos). Nunca há uma conclusão, mas ARAGDNESES ALONSO (Proceso yDcrecho Process], p. 206). o tema já havia sido aludi—
“dº pºr BETE—MANN—HOLLWEG anteriormente. Ademais. existem antecedentes histori-
5103.5105“ juristas italianos medievais, como Búlgaro de Sassoferrato que ao afirmar que
'Jud'rcium est actos criam personarum. judicis, actori's, rei contemplava no processo as três
142. HAWKING. Stephen. O universo numa casca de noz, p. 94. “ “simªº º ÍUÍZ que julgue, :! autor que demanda e o réu que se defenda. Contudo, foi
143 DST. Francois. O Tiempo do .Direito, p. 324. :BULOW quem raCionalizou a teoria e, principalmente, ;; desenvolveu sistematicamente
144 OST, François. O Tempo do Direito, p. 327. frente ao processo.
145 OST, François. O Tampo do Direito, p. 332. 14? BETTÍÚL. Guiseppe. Instituciones de Derecho Penal y Process.! Penal, p. 243.

HP.
Aury Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da lnstrumentalidade Constitucional)

Com certeza, foi muito sedutora a tese de que no processo haveria existência de direitos e obrigações processuais, ou seja, o próprio con-
um sujeito que exercitasse nele direitos subjetivos e, principalmente, teúdo da relação e, por fim, reputa definitivamente corno estetica eu
que poderia exigir do juiz que efetivamente prestasse a tutela jurisdicio- :'r'netafísica' adoutrina vigente nos sistemas processuais contempora—
nal solicitada sob a forma de resistência (defesa). Apaixonante, ainda. a neos;--.Neste sentido, os pressupostos processuais nao representam
idéia de que existiria uma relação jurídica, obrigatória, do juiz com rela— pressupostos do processo. deixando, por sua vez, de condimonar 0 nas—
ção às partes, que teriam o direito de lograr através do ato final. um ver— cimento .da relação juridica processual, para serem concebidos como
dadeiro clima de legalidade e restabelecimento da “paz social". pressupostos-da decisão sobre o mérito,. . , . "
Tal relação deveria instaurar-se entre as partes (MP e réu) e o juiz, .:. Interessanos, pois, a critica pelo mes da mercra e de falsa noçao, de
dando origem a urna reciprocidade de direitos e obrigações proces— ' segurança que traz insita a teoria do processo enquantolrenlaçao ]undica.
suais. Ademais, a cadete—ncia de partes constitui uma exigência lógica «w.-Foi GOLDSCHMIDT quem evidenciou o carater dinam1co do pro-
da instituição, da própria estrutura dialética do processo. pois, dogma— ' caesog. ao transformar a certeza própria do direito material na incerteza
ticamente, o processo não pode ser concebido sem a existência de par— característica da atividade processual. Na síntese do autor, durante a
tes contrapostas, ao menos in potentia.15º paz,: 'azrelação de um Estado com seus territórios de súditos e estaticar
Mas a tese de BÚLOW gerou diversas criticas151 e' sem dúvida, a constitui um império intangível.
mais apropriada veio de JAMES GOLDSCHMIDT e sua teoria do proces- ' 'Sem embargo, ensina GOLDSCHMIDT, quando a guerra estoura,
se como situação juridica, tratada na sua célebre obra Prozess als tecidas-encontra na ponta da espada; os direitos mais intangíveis se
Bechtslage, publicada em Berlim em 1925 e posteriormente difundida convertem, em expectativas, possibilidades e obrigações, e todo direito
em diversos outros trabalhos do autor.152 GOLDSCHMIDT atacar pri- poderia, aniquilar como conseqiiência de não ter aproveitado uma oca-
meiramente, os pressupostos da relação jurídica, em seguida nega a sião ou descuidado de uma obrigação; como, pelo contrario, a guerra
pode proporcionar ao vencedor o desfrute de um direito que não lhe cor-
respondeiªª
150 GUASP, Jaime. "Administración de Justicia y Derechos cie ia Personalidad". In: Estudios
Jurídicos, pp. 180 e se. Essa dinâmica do estado de guerra é a melhor explicação para o
151 A teoria de BÚLDW foi o ponto de partida de outras variantes. A nosso juízo. as princi- enõrnend do processo, que deixa de lado a estática e a segurança (con-
pais foram a teoria do processo como situaçãcjurio'ica de J.GOLDSCHMIDT e a teoria do tibia)”; da relação jurídica para inserir—se na mais completa epistemolo-
processo como instituição juridica de GUASE Interessante é a posição de WERNER ªadaincerteza. O processo é uma complexa situação jurídica, onde a
GOLDSCHMIDT (“'Prologo" da primeira edição da obra Proceso ;; Derecho Procesal de
ARAGONESES ALONSO. p. 35) no sentido de que tais teorias não podem ser concebidas sucessão de atos vai gerando situações jurídicas, das quais brotam as
como inconciliáveis, mas sim como complementares. Para o autor. “mientras la teoria de chances“, que, bem aproveitadas, permitem que a parte se liberte de
la situación destaca lo que ocurre en el Derecho cuando este opera en e] plano dinâmico
del proceso, 1a teoria institucional. ser'iala ARAGONESES ALONSO, se mueve en el Ó'çlfg'as (probatórias) e caminhe em direção favoravel. Não aproveitando
mundo abstracto de los conceptos. Por ello. estas dos posiciones no solo se otrecen como ªai-É.:bancesrnão há a liberação de cargas, surgindo a perspectiva de
incompatíbles, sino corno complementadas. de la misma forma que pueden concehirse ufiliª-ISK“entença' desfavorável. O processo. enquanto situação — ern movi-
como complementadas 1a teoria de la relación“. Somente com a integração destes con— mªniq— dá origem a expectativas, perspectivas, chances, cargas e libera-
ceitos poderíamos compreender como nasce o processo e qual é o fundamento metafisi-
co da sua existência (teoria da instituição). o conteúdo real do processo tal como se “;ºidiª. Éárgas..Do aproveitamento ou não dessas chances. surgem ônus
desenvoive na vida e sua continua evolução (teoria da situação jurídica) e. finalmentE. cabanas“; '
qual é a força que une os diversos sujeitos que nele operam (teoria da relação jurídica).
152 Para compreensão da temática. consultamos as seguintes obras de James Goldschmidt: . As expectativas de uma sentença favorável irão depender normal-
Derecho Procesai Civil. Principios Generaies' del Proceso, Derecho Justicia] Material, mente da prática com (“a:—rito de um ato processual anterior realizado pela
Problemas J uri dicos yPoiiticos dei Proceso Penal e a recente tradução brasileira Princípios pªrte- interessada (liberação de cargas). Como explica o autor,154 se
Gerais do Processo Civil. Destaque-se, ainda. a magistral análise feita por Pedro
Aragoneses Alonso na obra Proceso ;! Derecho Process], pp. 235 e ss.. especialmente no
que se refere a critica feita por Piero Calamandrei e à resposta de Goldschmidt. que levou
o processualista italiano e. nos últimos anos de vida. retificar sua posição e admitir o 153 “Princípios Gerais do Processo Civil, p. 49.
acerto da teoria do processo como situação jurídica. 154 Derecho Procesai Civil, pp. 194 e ss.
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

entiende por derechos procesales las expectativas, posibilidades )? libera- . ra. afirmação e feita por ele na peça acusatória (denúncia ou queixa),
ciones de una carga procesal. Existem paralelamente a los derechos mate- mas também porque o réu está protegido pela presunção de inocencia.
n'ales, es decir, a los derechos facultativos, potestativos y permisivos (...). :; Contudo, é sabida distância entre o ser e o dever—ser do Direito, de
Las Hamadas expectativas son esperanzas de obtener futuras ventajas modo que, na prática, a distribuição de cargas no processo penal esta
procesales, sin necesidad de acto alguna propio, y se presentan rara vez (absurdamente) sendo tratada da mesma forma que no processo C1v11.
en el desenvolvimiento normal del proceso; pueden servir de ejemplo de Não raras são as sentenças condenatórias fundamentadas na falta de
elias la del demandado de que se desestime la demanda que padezca de .'."provas da tese defensiva", como se o réu tivesse que provar sua versão
defectos procesales o no este debidamente fundada (...). :. 'de negativa de autoria ou da presença de uma excludente. Por isso
As posibilidades surgem de uma chance, são consideradas como la diante dessa degeneração da práxis (que obviamente não avalizamos),
situación que permite obtener una ventaja procesal por la ejecución de seguiremos trabalhando com a noção de cargas.
un acto procesal.155 Corno esclarece ARAGONESES ALONSOJEE a A obrigação processual (carga) é tida como um imperativo do pro—
expectativa de uma vantagem processual e, em última análise, de uma priomteresse da parte, diante da qual não há um direito do adversário
sentença favorável, a dispensa de uma carga processual e a possibili— ou. do Estado. Por isto é que não se trata de um dever. O adversario nao
dade de chegar a tal situação pela realização de um ato processual deseja outra coisa senão que a parte se desincumba de sua obrigação
constituem os direitos em sentido processual da palavra. Na verdade, de fundamentar, provar, etc. Com efeito há uma relação estreita entre
não seriam direitos propriamente ditos, senão situações que poderiam as obrigações processuais e as possibilidades (direitos processuais da
denominar—se com a palavra francesa "chances".157 Diante de uma “mesma parte), vez que "cada possibilidade impõe a parte a obrigaçao
chance, a parte pode liberar-se de uma carga processual e caminhar em “de.:aproveitar & possibilidade com o objetivo de prevenir sua perda .158
direção a uma sentença favorável (expectativa), ou não liberar—se, e, “ A liberação de uma carga processual pode decorrer tanto de uma
com isso, aumentar a possibilidade de uma sentença desfavorável gli-positivo (praticando um ato que lhe é possibilitado) como tambem
(perspectiva). deum nãoÁatuar, sempre que se encontra numa situação que le permite
Assim, sempre que as partes estiverem em situação de obter, por abs-tenerse de realizar algún acto procesal sin temor de quele sobreven-
meio de um ate, uma vantagem processual e, em última análise, uma Tae-l peri-incio que suele ser inherente a tal conducta.153 Exemplo tipico
oleirercicio do direito de silêncio, calcado no nemo tenetur se detegere.
sentença favorável, têm uma possibilidade ou chance processual. O
produzir uma prova, refutar uma alegação, juntar um documento no , Já a perspectiva de uma sentença desfavorável irá depender sempre
devido momento são tipicos casos de aproveitamento de chances. '. da náo—realização de um ato processual em que a lei imponha um prejuizo
Pela-inércia). A justificativa encontra— -se no principio dispositivo. A nao-
Tampouco incumbem às partes obrigações, mas sim cargas pro- ração de uma carga leva a perspectiva de um prejuízo processual.
cessuais, entendidas como a realização de atos com a finalidade de pre—
_obretudo de uma sentença desfavorável, e depende sempre que a parte
venir um prejuízo processual e, consequentemente, uma sentença des— assada não tenha se desincumbido de um ônus (carga) processual 159
favorável. Tais atos se traduzem essencialmente na prova de suas afu-
_Na síntese de ABAGDNESES ALONSO 161 al ser expectativas e
mações É importante recordar que, no processo penal, a carga da : Perspectivas de un fallo judicial futuro, basadas en las normas legales,
prova está inteiramente nas mãos do acusador, não só porque a primei— representar] mas bien srtuacrones Juridicas, lo que quiere decir estado de
ªnª Persona desde el punto de vista de la sentencia judicial, que se espe-
155 Derecho Procesal Civil, 13. 195.
156 Proceso y Derecho Procesal, p. 241.
357 1. Maneira favorável ou desfavorável segundo a qual um acontecimento se produz (alea.
acaso); potência que preside o sucesso ou insucesso. dentro de uma circunstância (for-
tuna. sorte). 2. Possibilidade de se produzir por acaso (eventualidade, probabilidade). 3.
%
“: ra con arreglo a las normas jurídicas.

3158 Principios GErais do Processo Civil, 37). 66.


159 Idem, ibidem.
Acaso feliz, sorte favorável (felicidade, fortuna). Na definição do dicionário Le Petit 150 Haiti., p. 68.
Hebert, Paris: Dictionnaires Le Robert, 2000, p. 383 (tradução nossa). 163 Proceso yDerecho Procesal, ?. 241-
Aury Lopes Jr. introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidacle Constitucnonal)

Assim, o processo deve ser entendido como o conjunto destas " '“.Nâo'se pode supor o direito como existente (enfoque material), mas
situações processuais e concebido “como um complexo de promessas sim Comprovar se o direito existe ou não no fim do processo. Justamente
e ameaças, cuja realização depende da verificação ou omissão de um porisso é que se afirma que o processo e incerto: inseguro.
ato da pa.rte".162 A visão do processo como guerra evidencra a realidade de que
Essa rápida exposição do pensamento de GOLDSCHMIDT serve vence - (alcança a sentença favorável) aquele que lutar melhor, que
para mostrar que o processo —- assim como a guerra — está envolto por melhor souber aproveitar as chances para libertar—se de cargas proces-
uma nuvem de incerteza. A expectativa de uma sentença favorável ou suais.-Entretanto, não há como prever com segurança a decrsao do ]'LIIZ.
a perspectiva de uma sentença desfavorável está sempre pendente do E'Jéáteé ponto crucial onde queriamos chegar: demonstrar que a incer-
aproveitamento das chances e liberação de cargas. Em nenhum eza-Qé'caracteristica do processo' considerando que o seu ambito de
momento tem-se a certeza de que a sentença será procedente. A acu— “' " ” ' alidade.
sação e a defesa podem ser verdadeiras ou não; uma testemunha pode ªmªªªfmepªríªnte destacar que GOLDSCHMIDT sofreu duras e injustas
ou não dizer a verdade, assim como a decisão pode ser acertada ou não ríti'cas,.. até porque muitos não compreenderam o alcance de. sua obra.
(justa ou injusta), o que evidencia sobremaneira o risco no processo. Parte dos.-ataques deve ser atribuído ao momento político Vivrdo e a ilu—
O mundo do processo é o mundo da instabilidade, de modo que sao, de ª'ªidiireitos" que BÚLOW acenava, contrastando com a dura reali—
não há que se falar em juízos de segurança. certeza e estabilidade dade-espelhada por GOLDSCHMIDT, que chegou a ser rotulado'de teo-
quando se está tratando com o mundo da realidade. o qual possui ris— nco,.doi,nazismo. Uma imensa injustiça. repetida ate nossos dias, por
cos que lhes são inerentes. soas que conhecem pouco a obra do autor e desconhecem comple—
É evidente que não existe certeza (segurança), nem mesmo após o
trânsito em julgado, pois a coisa julgada e uma construção técnica do
ente o “autor da obra.155 ' &
No plano-juridicc-processual, CALAMANDREI foi um opomtor a
direito, que nem sempre encontra abrigo na realidade, algo assim como , contudo, após as criticas iniciais, todas refutadas1 perfilou-se ao
a matemática, na visão de EINSTEIN.153 É necessário destacar que o "é"." 'GOLDÍSCHMIDT no celebre trabalho Il Processo Come
direito material é um mundo de entes irreais, vez que construído a . cil-ÉS“: Posteriormente. escreveu Un Maestro di Liberalismo
semelhança da matemática pu.ta, enquanto que o mundo do processo1 racessuale157 em sua homenagem.
como anteriormente mencionado, identifica—se com o mundo das realí—
dades (concretização). pelo qual há um enfrentamento da ordem judi—
cial com a ordem legal. Afamíiía- GDLDSCHMIDT fez história no Direito. e suas obras são de leitura imprescindi-
1» Dªm quem queira estudar com seriedade. não apenas o direito processual (em] .E
A dinâmica do processo transforma a certeza própria do direito penal); mas também a filosofia do direito (com as obras de Werner. Diifelogia — La Ciencia
material na incerteza característica da atividade processual. Para das justicia, e também Hlosofia de] Derecho). James e seus dois filhos. Roberto e Werner.
GOLDSCI-IMID'I',164 "& incerteza e consubstancial as relações proces- eramjudeus alemães nascidos em Berlim e. com & ascenção do nazismo nopenodo que
tecedeu a Segunda Guerra Mundial. passaram a sofrer uma cruel perseguição-(eviden-
suaisr posto que a sentença judicial nunca se pode prever com segu— ciando o'grave erro histórico de alguns críticos da teoria do proceso como situaçao jundi—
rança". A incerteza processual justifica—se na medida em que coexis— Cª- :Doí's é'eiementar “que James Goldschmidt jamais pactuou com o pensamento Juridico-
tem em iguais condições a possibilidade de o juiz proferir uma senten- . nazista da época. tanto que foi forçado ao exílio). Obrigados a abandonar a Alemanha. bus—
ça justa ou injusta. Éárarn refúgio na Espanha. onde James proferiu as famosas Conferências na Unwersrdad
" C'coiplutense de Madrid entre 1934 e 1535, publicadas na obra "Problemas jurídicos ? poll—
tiªºªídEI Proceso penal" (daí o agradecimento dele a Francisco Becer'ia. que lhe cedeu &
cátedra de "Enjuiciamiento Criminal"). Mas a permanência na Espanha não foi facrl e.
' 'ºíplºrªdcs pela Falange Espanhola, buscaram o asilo definitivo na América Latina. James
152 Princípios Gerais do Processo Civil, 13. 57. -' Goidschmidt faleceu no dia 25 de junho de 1940. no seu exílio em Montevideo.
163 Ensina EINSTEIN (op. cit., pp. ESB-EE) que "o principio criador reside na matemática; a 466 In: Hi'vista di Diritto Processuais, V. 5 - parte I, 1950, Padova. pp. 23 e ss. Também publi-
sua certeza é absoluta. enquanto se trata de matemática. abstrata, mas diminui na razão
direta de sua concretização (...) as teses matemáticas não são certas quando relaciona— . 67
" In:
Cªcic nºs Scritti in onera doi prof. nancesco Carneluttí. .
Hivista di Diritto Processuais, v. 1 — parte I. Padova. 1951. pp. 01 e ss. Também publi—
das com a realidade e. enquanto certas. não se relacionam com a realidade". cªdº no número especial da Revista de Derecho Procesal, em memória de James
154 Princípios Gerais do Processo Civil, p. 50. Goldschmidt,

64 RI:
Aury Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penai
(Fundamentos da Instrumentaíidade Constitucronal)

Na sua visão do processo como um jogo, CALAMANDREI explica , A sentença — na visão de CALAMANDREI —— deriva da soma .de
que as partes devem, em primeiro lugar, conhecer as regras do jogo. “esforços contrastantes, ou seja, das ações e das omissoes, das astucras
Logo, devem observar como funcionam na prática, eis que a ativida— ou dos descuidos, dos movimentos acertados e das equivocações, con-
de processual trabalha com a realidade. Além disso, é preciso "expe— iderando que O processo, neste ínterim, "vem a ser nada mais que um
rimentar como se entendem e como as respeitam os homens que jogo no qual há que vencer".172
devem observa-las, contra que resistências correm risco de se enfren— 'a Por derradeiro, tanto no jogo como na guerra, importam & estraté—
tar, e com que reações ou com que tentativas de ilusão têm que con- “gia e o bom manuseio das armas disponíveis. Mas, acima de tudo, são
tar".1GB Entretanto, para se obter justiça, não basta tão—somente ter - atividades de alto risco, envoltos na nuvem de incerteza Não há como
razão. O triunfo do processo depende, outrossim, de "sabe-1a expor, prever com segurança quem sairá vitorioso. Assim deve ser visto o
encontrar quem a entende, e a queira dar, e, por último, um devedor processo, uma situação jurídica dinâmica inserida na lógica do risco e
que possa pagar".1ªº do giuocc. Reina a mais absoluta incerteza até o final. Como. bioa guer—
Neste jogo, o sujeito processual cu o "ator", como denomina o pré- ra;. em jogo. em que a estratégia e a habilidade sao crucrais. Logo,
' risco multiplicado.
prio CALAMANDREI, movimenta-se a fim de obter uma sentença que
acolhe seu direito, muito embora o resultado (procedência) não depen—
da unicamente de sua demanda, considerando que neste contexto ' djíAssumindo os Riscos e Lutando por um Sistema de
insere-se a figura do juiz. Assim, o reconhecimento do direito do "ator", 'ª-G'arantias Mínimas
depende necessariamente da busca constante da convicção do julga—
dor, fazendo-o entender a demanda. Ou nas palavras de CALAMAN- "Em qile pese o risco inerente ao jogo (ou a guerra), em qualquer
DREI:170 "O êxito depende, por conseguinte, da interferência destas .dos dois casos é necessário definir um sistema (ainda que minimo) de
psicologias individuais e da forca da convicção com que as razões fei— regras (limites).
Diante desse cenário de risco total em que o processo penal se
tas pelo demandante consigam fazer suscitar ressonâncias e simpatias insere, mais do que nunca devemos lutar por um sistema de garantias
na consciência do julgador".
mínimas Não e querer resgatar a ilusão de segurança, mas sim assumir
Contudo, o árbitro (juiz) não é livre para dar razão a quem lhe dê "suecos e definir uma pauta mínima de garantias formais das quais
vontade, pois se encontra atrelado a pequena história retratada pela não podemos abrir mão. É partir da premissa de que a garantia está na
prova contida nos autos, Logo, está obrigado a dar razão àquele que Ima-do instrumento juridico e que, no processo penal, adquire contor-
melhor consiga, através da utilização de meios técnicos apropriados, n s'deilirnitação'ao poder punitivo estatal e emancipadcr do débil sub-
convence-lo. Por conseguinte, as habilidades técnicas são cruciais metido “ao processo.
para fazer valer o direito, considerando sempre o risco inerente à ati— Não se trata de mero apego incondicional à forma, senão de con—
vidade processual: "Afortunada coincidência é a que se verifica Sídérâ-“lá'co'mo uma garantia do cidadão e fator legitimante da pena ao
quando entre dois litigantes o mais justo seja também o mais habili- final aplicada.
doso". Entretanto, quando não há tal coincidência, "o processo, de "'Mas—' é importante destacar — não basta apenas definir as regras
instrumento de justiça, criado para dar razão ao mais justo, passe a dº lºgº Não é qualquer regra que nos serve, pois, como sintetiza
ser um instrumento de habilidade técnica, criado para dar vitória ao JACINTO COUTINHO, 173 devemos ir para além delas (regras do jogo),
mais astuto".171 , efínindo contra quem se está jogando e qual o conteúdo ético e axioló-
QÍC'D do próprio jogo.
168 Idem, Ibiá. (p. 221).
165 CALAMANDREI, Piero. Direito Processual Civil. V. 3, 13. 22.3.
"º—_º—
170 Direito Proceseuai Civíl. V. 3, p. 223. .172'. CALAMANDREI, Piero. Direito Processual Civil. V. 13.13.5324.
171 CALAMANDREI, Piero. Direito Processual Civil. V. 3, p. 224. 173 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda "0 papel do novo juiz no processo penal", p. 47.

66 G'?
Aury Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da lnstrumentalidade Constitucional)

Nossa análise situa-se nesse desvelar do conteúdo ético e axioló— .. total" (até porque a falta, ensina Lacan, é constitutiva e sempre lá esta—
gico do jogo e de suas regras, indo muito além do mero (paleo)positi— rá) sob pena de incidirmos na errônea crença na segurança (e sermos
vismo. Estamos com AMILTON E. DE CARVALHO,174 ao defender a vitimas de nossa própria crítica). Trata- -se, assim, de reduzir os espaços
positividade oombativa, onde devemos lutar pela máxima eficácia dos autoritários e diminuir o dano decorrente do exercício (abusivo ou não)
direitos e garantias fundamentais, fazendo com que tenham vida real. do poder. Uma verdadeira política processual de redução de danos,
Como define o autor: pois, repita- se, o dano, como a falta, sempre lá estará.
É o reconhecimento de que o direito positivado, por muitas vezes, Ademais, é preferível um sistema que falha em alguns casos por
resume conquistas democráticas (embora outras tantas vezes não seja “falta de controle (ou de limitação da esfera de liberdade individual) do
aplicado). E, em tal acontecendo, na que se o fazer viger. que um Estado policialesco e prepotente, pois a falha existirá sempre.
Tampouco podemos confundir garantias com impunidade, como ' O problema é que nesse último caso o risco de inocentes pagarem pelo
insistem alguns defensores do terrorismo penal, subvertendo o eixo do
discurso. As garantias processuais defendidas aqui não são geradoras
de impunidade, senão legitimantes do próprio poder punitivo, que fora
sem resistir. _ _ , . . .
erro é infinitamente maior e esse é um custo que não podemos tolerar

Nosso objetivo na presente exposrçao e buscar definir esse srste—


desses limites e abusivo e perigoso. ma de garantias mínimas, às quais não podemos renunciar, a partir dos
A discussão, como muito, pode situar-se no campo da relação .prlnCIPIOS a seguir explicados.
onus- bônus. Que preço estamos dispostos a pagar por uma 'seguran—
ça" que, como apontado, sempre será mais simbólica e sedante do que
efetiva e que, obviamente, sempre terá uma grande margem de falha
(ausência de controle)? De que parcela da esfera de liberdade indivi—
dual estamos dispostos a abrir mão em nome do controle estatal?
É aceitável que — em situações extremas e observadas as garan—
tias legais —— tenhamos de nos sujeitar a uma interceptação telefônica
judicialmente autorizada, por exemplo. Contudo, sera que estamos dis-
postos a permitir que essas conversas sejam reproduzidas e explora-
das pelos meios de comunicação? .
Em definitivo, e importante compreender que repressão e garantias
processuais não se excluem, senão que coexistem. Radicalismos à parte,
devemos incluir nessa temática a noção de simultaneidade, em que o
sistema penal tenha poder persecutório—punitivo e, ao mesmo tempo,
esteja limitado por uma esfera de garantias processuais (e individuais).
Considerando que risco, violência e insegurança sempre existirão,
é sempre melhor risco com garan tias processuais do que n'sco com auto—
ritarismo.
Em última análise, pensamos desde uma perspectiva de reddcão
de danos, onde os principios constitucionais não significam "proteção

174 BUENO DE CARVALHO,Ami1ton, Iberia e Prática do Direito A1tematívo,pp. 56-57.


Consulte se, também, a excelente obra de DIEGO J. DUDUELSKY GOMEZ. Entre a Lei B
o Direito, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2.002.

68 69
Capitulo II
Em Busca de um Sistema de
Garantias Mínimas: os Princípios
Fundantes da Instrumentalidade
Constitucional

No Capítulo anterior, abordamos os principais fatores que condu—


«zem ao utilitarismo processual, bem como verificamos de que forma o
processo penal é inserido na dinâmica da urgência, aceleração e risco.
', Com isso, desvelamos um cenário preocupante, fértil para retrocessos
iªi democráticos e a supressão de direitos e garantias fundamentais.
Nesse contexto, concluirmos pela necessidade de que o processo
Penal passe por uma constitucionáizaçâo. sofre uma profunda filtra-
gem_ constitucional, estabelecendo-se um (inafastável) sistema de
garantias minimas. Como decorrência, o fundamento legitimante da
existência de um processo penal democrático e sua instrumentalidade
Constitucional, ou seja, o processo enquanto instrumento a serviço da
máxima eficácia de um sistema de garantias minimas.
,.Ázcontinuaçâo, deâniremos os princípios que devem (in)formar
esse-sistema e dos quais o processo penal deve ocupar—se em radicali-
zar sua eficácia.
; = Dentro da íntima e imprescindível relação entre o Direito Penal e o
P;?D.C.E'SSD penal, deve—se apontar que ao atual modelo de Direito Penal
“Elin-imo; corresponde um processo penal garantista. Só um processo
.; penal (311.19. em garantia dos direitos do imputado, minimize os espaços
impróprios. da discricionariedade judicial pode oferecer um sólido fun-
damento para a independência da magistratura e ao seu papel de con-
trºle da legalidade do poder.175
O' garantismo no processo penal reveste—se, a cada dia, de uma
mãº!.irnportânoia, diante da panpenalizaçâo que estamos presencian-
dª'-““Quanto maior é a influência de movimentos repressivistas, como o

1"||''v
7,5 [Timm-IOM. Luigl. Derecho yHazon — “Iberia del Garantismo Penal, p. 10.
Aury Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

law and order, mais eficaz deve ser o filtro garantista desempenhado Partindº do cognoscítivísmo processual, FERRlºnTÇJLI179 define a
pelo processo penal.
atividade do juiz como cognitiva dos fatos e recognitivalªº em rela—
A nosso juízo,175 e sistema garantista esta sustentado por cinco aereo. direito aplicável, isto é, o pronunciamento judimal vero cons-
princípios básicos, que configuram, antes de mais nada, um esquema tituídº pela motivação de fato e de direito que justifica e legitima a
epistemológico de identificação dos desvios penais, dirigido a assegu- atuação jurisdicional. Para tanto, a estrita legalidade esta Vinculada
rar o respeito à tutela da liberdade contra arbitrariedades do poder ' ..._princ1'pio de estrícta jurisdíccionalidad, que exrge duas condr-
punitivo. São eles:
çõesªiverificabilidade ou refutabilidade das hipoteses acusatorrasne
àÇwnécessidade de prova empírica (que permita tanto a verificaçao
I. Jurisdicionalidade: Nulla Poena, Nulla Culpa Sine como a refutação).
Iudicio " Uma justiça penal não-arbitrária deve estar baseada numa verda-
de ce'nstruida no: processo, calcada em juízos predominantemente cog—
nitivo-s dos fatos e recognitivos do direito, e sempre passrvels de verifi-
Não só como necessidade do processo penal, mas também em sen-
tido amplo, como garantia orgânica da flgurae do estatuto do juiz, tam- caçãoernpírica que permitam sua refutação. Voltaremos a tratar desse
rna girando analisarmos a garantia de motivaçao das decrsoes judr-
bém representa a exclusividade do poder jurisdicional, direito ao juiz rambém ao desconstruir o mito da verdade real. .
natural, independência da magistratura e exclusiva submissão à lei.”7 nteressa-nos, nesse momento, analisar a função do juiz, que
Ainda que a garantia da jurisdicionalidade tenha um importante o acham-ado a desempenhar num processo penal democrático
matiz interno (exclusividade dos tribunais para impor a pena e o pro- erviço de que(m)“e1e está. Para tanto, também devemos traba—
cesso como caminho necessário), ela não fica reclusa a esses limites.
Fazendo um questionamento mais profundo, FERRAJOLI vai se dºam 'a figura humana do julgador, sua (in)dependência e pato—
gias-:mais graves, para compreender o alcance da imparcialidade
debruçar nos diversos principios garantistas que configuram um verda— ativa.-e subjetiva, bem como a absoluta incompatibilidade entre
deiro esquema epistemológico, de modo a que a categoria de garantia Imparcialidade) e os chamados poderes instrutórios ou investi-
ço central do sistema penal. '
sai da tradicional concepção de confinamento para colocar-se no espa— Por'firn',“ de nada bastaria a garantia da jurisdicionalidade
_,,figura do juiz pudesse ser substituída. Nesse contexto, critica-
Como aponta IBÁÃTEZJ'J'B não se trata de garantir unicamente as sistema de justiça negociada — perigosa alternativa às garan—
regras do jogo, mas sim um respeito real e profundo dos valores em tra da urisdicionalidade e do devido processo —— e também o tribu-
jogo, com os que — agora — já não cabe jogar. dD-Júril. : ' '
A garantia da jurisdicionalidade deve ser vista no contexto das
garantias orgânicas da magistratura, de modo a orientar a inserção do Função do Juiz no Processo Penal
juiz no marco institucional da independência, pressuposto da imparcia—
lidade, que deverá orientar sua relação com as partes no processo. “Nãobasta apenas ter um juiz; devemos perquirir quem e esse ]u1z,
Ademais, o acesso à jurisdição e premissa material e lógica para a garantias ele deve possuir e a serviço de que(m) ele esta.
efetividade dos direitos fundamentais.
Derecho yHazdn. pp. BE e ss.-
f.ERRAJDLI vai criticar — com acerto —— os chamados elementos normativos do tipo penal,
176 Em alguns pontos, nos baseamos em FEHHAJOLI, Luigi. Derecho yRazon, p. 732; queles cláusuias em branco do estilo "ato obsceno". "mulher honesta" ('?l). a outras
177 O que não significa apego acritico à letra da lei, o palecpositivismo, como explicaremos érolas do Direito Penal. cuja indeterminação permite uma ampla discricionaríedade do
à continuação, no tópico intitulado Motivação das decisões Judiciais, especialmenLe no ªiªi (me lançará mão de seus juízos particulares do valor. Nestes casos. há um caráter
subtituío Invalidade Substancíal da Norma: quando o juiz se põe a pensar. Dnstltutivu incompatível com o princípio da legalidade. A atividade do juiz deve ser
175 IBANEZ, Andrés Perfecto. "Garantismo v Proceso Penal." In: Revista dela Facultad de ªpenas Cºgnitiva e não constitutiva dos fatos, bem como recognitíva (reconhecimento,
Derecho de la Universidad de Granada , nº 2, Granada, 1999, p. 49. '.UbSIiDçE-lõ) em relação à norma (e não constitutiva).

72
Aury Lopes Jr.
Introdução Critica ao Processo Penal .
(Fundamentos da Instrumentalidade Constituctonal)

Nos centraremos, agora, em definir a função do juiz no processo (a .“ - " " cia post facto, evitando-se que a juizes ou tribunais sejam espe-
serviço de quefm) ele está). : Prºtºn nte atribuídos poderes (apos o fato) para julgar um determinado
Inicialmente, cumpre recordar a garantia do juiz natural, enquan— 513931301“ fim, a ordem tar—cativa de competência é indisponível, não
to portadora de um tríplice significado:“?1 ' ibilidade de escolha.
:h'ave'ªªªspaºlsiflha, entendemos completamente equivocadas inovação
a) somente os órgãos instituídos pela Constituição podem exercer trazida pela Emenda Constitucional nº 45, .ao. inserir o seguinte institu—
jurisdição;
: o'in'o'pa'rãgrafo 52, no artigo 109 da Constituição:
b) ninguém poderá ser processado e julgado por órgão instituido
após o fato; “Art. 109, 5 52 — “Nas hipóteses de grave violação de direitos
c) há uma ordem taxativa de competência entre os juízes pré-cons— humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de
tituídos, excluindo-se qualquer alternativa deferida a discricio—
nariedade de quem quer que seja. assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados
Emªter-nacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte,
poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qual-
Trata—se de verdadeira exclusividade do juiz legalmente instituido “que: fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de
para exercer a jurisdição, naquele determinado processo, sem que seja competência para a Justiça Federal."
possivel a criação de juízos ou tribunais de exceção (art. Eº, XPQÇVII, da
CE). Considerando que as normas processuais não podem retroagir
A federalização dos crimes que acarretam grave violação de direi-
para prejudicar o réu,182 é fundamental vedar-se a atribuição de com- to'sihiiin'anos permite agora que o Procurador-Geral da República utili-
z“ 'o STJ “para fazer uma verdadeira "evocação" de processos. O proble-
ltll BONATD, Gilson. Devido Processo Legal e Garantias Processuais Penais, p. 138. Stã do imenso perigo de manipulação politica (e teatralizaçao)
182 Ensina a doutrina tradicional que o processo penal é guiado pelo Princípio da te da abertura conceitual (qualquer homicídio e uma grave viola-
Emediatidade (art. 22 do CPF], de modo que as normas processuais penais teriam aplica- ão'. agºdª“ “eitos humanosl), pois a fórmula utilizada pelo legislador e
ção imediata, independente de serem benéficas ou prejudiciais ao réu, tão logo passas-
se a vacatio legis, sem prejudicar, contudo, os atos já praticados, eis que não retroagiria v " a im recisa e indeterminada. É uma flagrante violação da garantia
jamais. Pensado assim, o princípio não resistida a uma filtragem constitucional, como do juiz'ªknatural, do principio da legalidade (abertura conceitual), do
muito bem foi desvelado por PAULO QUEIROZ e ANTONIO VIEIRA, no excelente artigo
“Retroatívidade da Lei Processual Penal e Garantismo", publicado no Boletim do pactoíffederativo e, principalmente, esse poder de evocar processos
IBCCrim, nª 143, de outubro de 2004. Lá, ensinam os autores "que a irretroatividade da repreâ'éhiâi'um grave retrocesso antidemocrãtico. Por fim, não resta
ªlei penal' deve também compreender, pelas mesmas razões, a lei processual penal, a dUVldade que esse instituto presta-se — verdadeiramente —- como ins—
despeito do que dispõe o art. 2“ do Código de Processo Penal, que determina, como regra
geral, a aplicação imediata da norma, uma vez que deve ser (rejinterpretado à luz da
Constituição Federal. Portanto, sempre que a nova lei processual for prejudicial ao réu.
porque suprime ou relativiza garantias « mg., adota critérios menos rigidos para a decre-
tação de prisões cautelares ou amplia os seus respectivos prazos de duração, veda & NÍQ-V'EERA, "sempre que a lei processual dispuser de modo mais favorável ao teu — Vig..
iiberdade provisória mediante dança, restringe a participação do advogado ou a utilize— Fªrias e admitir a âança, reduz o prazo de duração de prisão provisória, ampha a partici-
ção de algum recurso, etc. —, limitar-se—á a reger os processos relativos às infrações 'E'-ªç㺠do advogado. aumenta os prazos de defesa, prevê novos recursos, em. — tera apªl-
penais consumadas após a sua entrada em vigor; anna], também aqui — é dizer, não apo- ação efetivamente retroativa. E aqui se diz retroativa advertindo-se que, nestes casos,
nas na incriminação de condutas, mas também na forma e na organização do processo — Ti㺠deverá haver tão-somente a sua aplicação imediata, respeitando-se os atos valida-
a lei deve cumprir sua função de garantia, de sorte que, por norma processual menos mÉ-nté'oraticados, mas até mesmo a renovação de determinados atos processuais, a
benéfica, se há de entender toda disposição normativa que importe diminuição de garan- depender da fase em que o processo se achar". Por fim, concluem os autores, "quando
tias, e, por mais benéfica, a que implique o contrário: aumento de garantias proces- ' estivermos diante de normas meramente procedimentais, que não impliquem aumento ou
suais". Então a lei mais gravosa não incide naquele processo, mas somente naqueles ' C“"m"—“ª'êªz'io de garantias, como soi ocorrer com regras que alteram tão-so o processamen-
cujos crimes tenham sido praticados após a vigência da lei. Por outro lado, a lei proces- ' tº. dºs recursos, a forma de expedição ou cumprimento de cartas rogatórias, etc.. terao
sual penal mais benéfica, podera perfeitamente retroagir para beneficiar o réu. a contrá- ªpliªªç⺠imediata (CPP. art. 22), incidindo a regra geral, porquanto deverão alcançar o
rio do defendido pelo senso comum teorico. Como explicam PAULO QUEIROZ e ANTD- . Hºmem no estado em que se encontra e respeitar os atos validamente praticados .

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Aury Lopes Jr.
Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

trumento para a molesta intervenção do Poder Executivo na jurisdição,


sendo, portanto, inaceitável. , fatores eriternos, ou seja, não está obrigado a decidir conforme queira
. maioria ou tampouco deve ceder a pressões politicas. . '
O princípio do juiz natural não é mero atributo do juiz. senão um
verdadeiro pressuposto para a sua própria existência. A“ independência deve ser vista como a sua exterioridade ao erste-.
Nesse tema, imprescindível a leitura de ADELINO MARCON,133 “a político e; num sentido mais geral, como a exterioridade a todo srs-
que considera o Princípio do Juiz Natural com um principio universal, éma de ]:r'od'eres.13Ei O juiz não tem por que ser um su]e1to representati-
fundante do Estado Democrático de Direito. Consiste, na síntese do ' p'óst'o' que nenhum interesse ou vontade que não se]a a tutela dos
itos sobjetivos lesados deve condicionar seu juizo, nem sequer o
autor, no direito que cada cidadão tem de saber, de antemão, a autori-
"teresse da maioria ou inclusive, à totalidade dos lesados. Ao contrá—
dade que irá processa—lo e qual o juiz ou tribunal que irá julga—lo, caso
"de Poder Executivo ou do Legislativo, que são poderes de maioria,
pratique uma conduta definida como crime no ordenamento jurídico—
penal. Importante que MARCON desloca o nascimento da garantia
para o momento da prática do delito, e não para o do início do proces-
se,- como o fazem outros. Isso significa uma ampliação na esfera de pro—
dade das minorias. , .
iz julga em nome do povo — mas não da maioria— para a tutela da

'A legitimidade democrática do juiz deriva do caráter democratico


teção, evitando manipulações nos critérios de competência, bem como - onstituição, e não da vontade da maioria. O juiz tem uma nova
a definição posterior (ao fato, mas antes do processo) do juiz da causa. ç o- dentro do Estado de Direito e a legitimidade de sua atuação
Elementar que essa definição posterior afetaria, também, a garantia da politica,“ mas constitucional, e seu fundamento é unicamente a
imparcialidade do julgador que sera tratada no próximo tópico. gibilidade dos direitos fundamentais. É uma legitimidade demo-
' Quando se questiona a serviço de quem está o juiz, transferimos a a fundada na garantia dos direitos fundamentais e baseada na
discussão para uma outra esfera: a das garantias orgânicas da magis—
Gracia substancial. '
tratura.FERRAJOL1154 chama de garantias orgânicas aquelas relativas Contudo. a independência não significa uma liberdade plena (arbi-
à formaçao do juiz e sua colocação funcional em relação aos demais a) pois sua decisão está limitada pela prova produzida no proces—
poderes do Estado (independência, imparcialidade, responsabilidade, o com 'plena'Observãncia das garantias fundamentais (entre elas a
separação entre juiz e acusação, juiz natural, obrigatoriedade da ação afiação da prova ilícita) e devidamente fundamentada (motivação
penal, etc. ) Considera como garantias processuais aquelas relativas à nquanto fator legitimante do poder).
formação do processo, isto é, a coleta da prova, exercício do direito da Não está o juiz Obrigado a decidir conforme deseja a maioria, pois
defesa e à formação da convicção do julgador (contraditório, correla— egitimação de seu poder decorre do vínculo estabelecido pela verda—
ção, carga da prova, etc. ). & rocessualmente obtida a partir do caráter cognoscitivo da ativida-
Dentro das garantias orgânicas, nos centraremos, agora, na inde— adicional. A validade da sentença está calcada na verdade pro—
pendência, pois para termos um juiz natural. imparcial e que verdadei- almenteflª? obtida. É uma questão de legitimação externa, ético—
ramente desempenhe sua função (de garantidor) no processo penal " ”bu- substancial do Poder Judiciário define FERRAJOLI. “55
deve estar acima de quaisquer especies de pressão ou manipulação Nªnhuma maioria pode tornar verdadeiro o que e falso ou vice-versa,
política. Não que com isso estejamos querendo o impossível —— um juiz 'É d então a chamada verdade consensual repelida pelo modelo
neutrolªª - senão um juiz independente; alguém que realmente possua feita.: . . .
condições de formar sua livre convicção. Esta liberdade é em relação a
———__
BB FERRAJOLI, Luigi. Derechoylªiazón, p 580.
383 MARCON, Adelino. O Princípio do Juiz Natural no Processo Penal. pp. tl'? e 55. 37-- Sohre & "verdade" no processo penal e sua problemática, remetemos o leitor para 0
184 DerechoyRazón, p. 539. Próximo capítulo onde no tópico “Verdade real: desconstruindo um mito forjado na
185 Da mesma forma. quando tratarmos da imparcialidade (objetiva e subjetiva), não estare- mquisição".
mos aludindo a um juiz neutro. Derecho yRazón, p. 543.

76 77
Aury Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalídade Constitucional)

Então, no Estado Democrático de Direito, se o juiz não está obriga—


do a decidir conforme deseja a maioria, qual é o fundamento da inde- ' referindo a uma minoria, aos casos patológicos. mas é em relação a
pendência do Poder Judiciário? esses que o sistema de garantias deve se ocupar.
De nada adianta independência se o juiz é totalmente dependente
O fundamento da legitimidade da jurisdição e da independência do d ' pla, tribunal, sendo incapaz de pensar ou ir além do que ele diz. É
Poder Judiciário esta no reconhecimento da sua função de garantidor dos reocupante o nivel de dependência que alguns juizes criam em rela-
direitos fundamentais inseridos ou resultantes da Constituição. Nesse o,. ao "entendimento" deste ou daquele Tribunal, e o que é pior, a
contexto, a função do juiz é atuar como garantidor da eficácia do sistema sujeição de alguns Tribunais ao que dizem outros Tribunais Superiores
de direitos e garantias fundamentais do acusado no processo pena]. ,ºu "do, uma decisão vale porque proferida por este ou aquele tribunal,
O juiz passa a assumir uma relevante função de garantidor, não naoporque é uma boa decisão, passa- se a ser um mero repetidor acri-
devendo julgar conforme deseja a maioria e, não podendo, fica inerte ' ' autofágico impedindo qualquer espécie de evolução
diante de violações ou ameaças de lesão aos direitos fundamentais, 'A situação ficará, com certeza, ainda mais grave com a vigência
constitucionalmente consagrados ou que brotem dos tratados e con— daErtierida Constitucional nº 45 e a criação das súmulas e decisões
venções firmados pelo Brasil. ciilantes Agora, além de seguir cegamente o pai—tribunal, esses jui—
“tribunais estarão” 'protegidos" pela vinculação normativa que as
Assume, assim, uma nova posição no Estado Democrático de &] cisões do STF passaram a ter Mais tranquilizador impossivel, prin-
Direito, sem que com isso sua atuação seja política, mas constitucional,
consubstanciada na função de proteção dos direitos fundamentais de cipalmente para juízes inseguros. E, ainda que conscientemente se
rebelam (mas sigam as súmulasl), no inconsciente eles gozam.
todos e de cada um, ainda que para isso tenha que adotar uma posição ;-Sobre a relação do juiz corn a jurisprudência, e interessantissima a
contrária à opinião da maioria. Deve tutelar o indivíduo e reparar as dagern- de AMILTON B. DE CARVALH0191 quando analisa a troca
injustiças cometidas, absolvendo sempre que não existirem provas ple— e , "ogrna: da lei pelo pensamento dos tribunais, uma cruel forma de
nas e legais de sua responsabilidade penal. Como define FERRAJO— inibir a" criatividade do operador juridico Segundo o autor, na relação
LI,139 o objetivo justificador do processo penal é a garantia das liberda- ' ' a comunidade, o juiz acaba assumindo no (in)consciente do povo,
des dos cidadãos. guia do pai (e as vezes passando pelo papel de juiz- -divindade), pois
eles, aquele que pune, que repreende que autoriza o casamento ou
b) A Toga e a Figura Humana do Julgador no Ritual eterrnma a separação. É a figura do pai- -julgador.
Judiciário: da Dependência à Patologia Nessa,.mesma linha, ALEXANDRE MORAIS DA ROSA192 prosse-
"lr-Paraapontar que o Direito age em nome do Pai e por mandato,
arando na subjetividade humana, ditando a lei como capaz de man-
No estudo do papel do juiz evidencia-se (uma vez mais) a falência
er”, .o laço social, sob a utilitária promessa de felicidade. Não raro, os jui—
do monólogo científico e a necessidade de buscar na interdisciplinari— ªSSumem :) papel de cavaleiros da prometida plenitude, na expres-
dade o instrumental capaz de alcançar a superação do antagonismo dº, autor, ou completude lógica, noutra dimensão, e— ,a partir des-
entre sujeito—objeto, ou, ainda, entre conhecimento e objeto a ser renças, congregam em si o poder de dizer o que é bom para os
conhecido.190 Por mais que o Direito crie estruturas teóricas, um grave emais mortais— neuróticos por excelência- ,surgi'ndo daí um objeto de
problema está noutra dimensão, para alem do Direito. Está na figura amor capaz de fazer amar ao chefe censurados tido como necessário
humana do juiz. Também devemos nos preocupar com esse fator quan- Para manutenção do laço social. Portanto, o amor mantém a crença pela
do se pensa em sistema de garantias. É elementar que estamos nos ªlarde do poder, as quais serao objeto de amor.

189 DerechoyHazón. p. 546. 31.- l-IO. .Íuiz & & Jurisprudência — um desabafo critico". In: Garantias Constitucionais e
190 Como muito bem destaca LIDIA REIS DE ALMEIDA PRADO, na excelente obra O Juiz e Processo Penal. pp. 9-12,
a Emoção. Aspectos da Lógica da Decisão Judicial, p. 02. 92 MORAIS DA RGSA, Alexandre. Direito Infracional, p. 85.
Aury Lopes Jr.
Introdução Crítica ao Processo Penal .

ur'ª,.
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucmnal)

Agrava a situação, aponta ALMEIDA PRADO, 193 o desejo de uma . tros pºrém alcançam a maturidade: "O tribunal e apenas o tri—
excessiva estabilidade juridica por parte das pessoas, que possuem um
anseio mítico de segurança, e buscam essa segurança no substituto do all Tem defeitos. como tambem Virtudes. como qualquer grupº
pai, no juiz—infalível, agravando com isso o quadro clínico do julgador.
hum
bu? ano' Dele emergem decisões preciosas que merecem ser segmdas
. . - ,.
Interessante como é bastante comum que os demais atores do
ritual judiciario também adotem o discurso de que "somente querem 0112135522 iniz independente, disposto a "ousar e a criar, quer o dpai
cumprir a lei". MORAIS DA ROSA294 desvela essa subserviência aliena- ' ' d - ar não. Seu compromisso não e com a carreira, ou agra ar
apl-all .ª: C[Zim colocar sua atuação a serviço do ]urrsdieionado . Claro
da e apaixonada, para explicar que isso lhes concederia um lugar ao
lado do Outro. Mas isso não é amor, adverte o autor, senão uma identi- qifeêªgãjjsuiz pode acabar causando um mal—estar no pai _neurgticçmftâie-
ficação (identificar = ficar idem), com o poder do líder que tudo pode, búnal), que não compreende a liberdade-maturidade do Mªcª) " (tªmº &
pois o mundo está dividido — Iacanianamente falando —— entre ele e os "table-rna é que, como conclui AMILTON I?. DE CARVAL. , f se da
castrados e, ao se indentificar com ele, surge a ilusão de não ser castra-I ainda encontra—se (e parece sem condiççes de sair dali) na a. tem
do (faltoso), numa relação dialética de amo-escravo. E o Outro tanto anciã-, facil é perceber como a jurisprudençia emergente do pai e
pode ser o juiz — que aplica a lei — como o legislador, que elabora & lei ourilíofdedogma e e entorpecedora da cnatnndade. Dai por que nao S'a
concorda "com Carlos Maximiliano quando diz que o julgador. cop1
(conforto para o desalento constitutivo).
Mas esta relação entre pai-filho que se opera entre juiz-jurisdicio—
" ª' ' r ai".
acórdão pela lei do menor esforço; entendo que o motivo e outro. agra-

nado também se reproduz entre juiz-tribunal. Podemos identificar, na dªl” cªregnâºdªeââeíindência, só um juiz consciente de'seu papel de
lição do autor, o juiz que está na infância, tendo o pai como ídolo. Seu garantidor e que, acima de tudo, tenha a dúvida como habito prof1ss10-
desejo é agradar o pai e, para isso, nada melhor do que aderir ao seu " ' .e bomo estilo intelectual, e merecedor do poder que lhe e çonfendo.
saber, expresso nos acórdãos. Para tanto, transcreve sempre a vontade- qui 'esta um outro grave problema: o juiz que assume uma Cãi—
jurisprudéncia do seu superior. Essa relação neurótica perdura quando ubjacente, de forte conotação de defesa soc1al,197 incrementa a
seu caminho, copiando-o. - ' '
este juiz chega ao Tribunal, pois espera que os outros "filhos" sigam p l'aªsã'açã'o persistente dos meios de comumcaçao, reclamando mªnos
hnpunidade e maior rigor penal. derivada, por Sua 'vez, de .uma ou pra
Pior, esse juiz mata o que há de mais digno na atividade judican- gªer'a1.=política autoritária, como a herdada nos paises latino—america-
te: o sentíre.195 Em vez de proferir a sentença com sentimento, ele se . 19.8“ que afeta o juiz (enquanto homem politico e somal), fazendo
GÓÍDÉ'ÉIue ele imponha uma concepção de processo menos dialetica e
reduz a um mero burocrata repetidor de decisões alheias,195 com a fina-
lidade de aderir à maioria ou ao pai—tribunal. igualitária para as partes. . .
É aquele juiz que absorve esse discurso de Limpeza sacra! e aselm
Em outros casos encontramos o juiz adolescente, que na sua rebel—
passara—“jama, colocando-se no papel de defensor da lei e da lorder—n,
dia quer destruir o pai. O culpado e sempre o Tribunal, que lhe perse—
gue e protege sempre o outro. "Este filho mantém a lógica da familia ardadeiro, guardião da segurança pública e da paz social. A srtuaçao
gªta-Ve.“ na medida em que tudo isso se reflete na eleição e no proprio
doentia, e-lhe reservado o papel de ovelha negra do grupo familiar. O
número não é significativo". ªbrir (io-ato decisório, pois a sentença é reflexo da eleição de uma das
fases” a' ele submetidas (acusação e defesa), bem como de um Juizo
ªxiºlógico da prova e da lei aplicável ao caso.
' ' Esse juiz representa uma das maiores ameaças ao processo penal e
193 O Juiz e a Emoção. Aspectos da Lógica da Decisão Judicial, p. 18. ª rlili-ªfinªl:administração da justiça, pois é presa fácil dos juízos apnons—
194 MORAIS DA ROSA, Alexandre. Direito Infracional, pp. 84-85.
195 Sobre o tema, consulte-se o tópico "Motivação das Decisões Judiciais" no final desse
capitulo,
ção do semonde
tire. emlicamos a origem etimológica da palavra sentença, enquanto deriva— 197 O autor está se referindo à Teoria da Defesa Social, de Marc Aneel, nascedouro de outras
'.- como lei e ordem, tolerância zero, etc.
196 No mesmo sentido ALMEIDA PRADO, op. cit., p. 21.
193, PRADO, Geraldo. Sistema Acusstório, p. 46.
80
na
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

ticos de inverossimilitude das teses defensivas; é adepto da banalização pese ser constatada corn “razoável frequência". Ao ladddela, igual-
das prisões cautelares; da eficiência antigarantista do processo penal; Iú'ehte'estão a promotor-Zire e advogadite, sendo esta ultima nao tao
dos poderes investigatórios/instrutórios do juiz; do atropelo de direitos e comum, até porque carecedor de poder.
garantias fundamentais (especialmente daquela "tal" presunção de ino— '.::A."juizite" é um consagrado bordão, explica SOUZA NETO, “que
cência); da relativização das nulidades pro societate; é adorador do rótu- tende exprimir que o cargo ocupou a pessoa, de tal maneira que se
lo ”crime hediondo", pois a partir dele pode tomar as mais duras deci— tornou-aquele ser alguém prepotente e arrogante, a mandar sempre". E
sões sem qualquer esforço discursivo (ou mesmo fundamentação); intro- espelho" de Machado de Assis, em que ao olhar-se diante do espelho
jeta com facilidade os discursos de "combate ao crime"; como ' “o'sabe mais se é "um ser com um cargo ou um cargo com um ser?".
(paleo)positivista, acredita no dogma da completude do sistema jurídico, Justifíca o autor explanando que, "tão logo de posse da carteiri-
não sentindo o menor constrangimento em dizer que algo "é injusto, mas
e a lei, e, como tal, não lhe cabe questionar"; sente—se a vontade no zfd'eªjuiz'. de promotor, de advogado, tanto faz), passa a receber o
':':ento de doutor. Vêm, portanto, a pompa e a circunstância. Dai
manejo dos conceitos vagos, imprecisos e indeterminados (do estilo "pri— , o riso dos verbos mais drãsticos como o eu exijo ou o emprego do
são para garantia da ordem pública", "homem médio ", "crimes de peri—
tradicional você sabe com quem esta" falando? a distãncia é pequena".
go abstrato", etc.), pois lhe permitem ampla manipulação, etc.
Mas, principalmente, esse juiz transforma o processo numa ence— .Aíj'uizíte vem“ acompanhada pelo desejo de poder e, como explica
nação inútil, meramente simbólica e sedante, pois desde o inicio já tem ALMEIDA PRADO?“2 pode ocorrer como expressão da tentativa de
definida a hipótese acusatória como verdadeira. Logo, invocando uma compor o arquétipo cindido. O arquétipozºª do juiz, como de qualquer
vez mais CORDERO, esse juiz, ao eleger de inicio a hipótese verdadei— sabe;,tem dois pólos. Não há um arquétipo de juiz e outro de infrator,
ra, não faz no processo mais do que uma encenação, destinada a mas- ois-cada um deles seria uma das extremidades de uma mesma situa-
carar a hábil alquimia de transformar os fatos em suporte da escolha 'arquetípica.
inicial. Ou seja, não decide a partir dos fatos apresentados no proces— *Na-atividade do juiz, pode ocorrer uma ruptura entre os pólos
so, senão da hipótese inicialmente eleita como verdadeira. A decisão qoêtípicos, onde um deles permanece consciente e o outro é reprimi-
não e construída a partir da prova, pois ela já foi tomada de inicio. É o ' fica'ino inconsciente e é projetado sobre as partes no processo. E a
prejuízo que decorre do pré—juizo. A situação e mais grave, recordando ' 'ação do juiz que acredita que o crime não tem nada em comum con-
a lição de JACINTO COUTINHO,199 na medida em que "o que poderia º' (corno se ele e todos nós não fossemos delinquentes...) e que o mal
restar de segurança é o livre convencimento, ou seja, retórica e contra- ' ' 'st'eª rio réu, uma criatura que habita um mundo totalmente diver-
ataques, basta imunizar a decisão com um belo discurso." . crear“; Ele esquece que tem "como possibilidade um réu dentro de
Mudando o enfoque, devemos sublinhar que a legitimidade da "Zºª e passa a se considerar a própria justiça encarnada. Esse fenô—
decisão de um juiz decorre da razão200 e não do poder. Infelizmente, até Wªclãa'wma—se inflação da persona,205 “que ocorre quando os magis-
porque são seres humanos, com suas falhas e limitações, alguns jamais
atingem essa consciência ou mesmo superam o que SOUZA NETO defi—
—'—'_—q
ne como jur'zr'te:201 uma patologia que não possui ainda CID, em que , ºª =..O Juiz e a Emoção. Aspectos da Lógica da Decisão Judicial, p. 45.
zuªi-.Síntetiza ALMEIDA PRADO (op. cit.) que o arquétipo equivale ao padrão de comporta-
ciento EE.-."de uma forma bastante simplificada, pode-se dizer que são formas de agir,
199 Correspondência eletrônica particular de maio/2003. Pensar, sentir recorrentes e típicas, comuns à humanidade".
200 Mas é importante destacar que empregamos razão não no sentido cartesiano (dualismo º.ºgALMEIDA PRADO, Op, cit., p. 45.
tradicional), senão naquele desvelado por DAMASIO (DAMASIO, Antonio. O erro de 0,5 Explica ALMEIDA PRADO que a palavra persona tem origem latina e designa a "másca-
Descartes. São Paulo, Companhia das Letras, 1996), de que não existe racionalidade sem Fª-usada pelos atores teatrais. Por isso, persona e o arquétipo que se refere à face que
sentimento, emoção. A subjetividade e a atuação são inerentes e inafastáveis da raciD» colocamos para enfrentar a vida social. Segundo Jung, não passa de um comprºmisso
ualidade, e esta não existo sem aquelas. entre o indivíduo e a sociedade, acerca do que alguem parece ser: pai, filho, possuidor
20? SOUZA NETO, João Baptista de Mello. "Corrãito de Gerações entre Colegas, ou Conflitº qe'Umstítulo, detentor de um cargo, etc." O problema é quando existe uma inãaç⺠da
de Egos?" In: Aspectos Psicológicos na Prática Jurídica, p. 132. Pgíªºna e O cargo passa a ocupar a pessoa.

of:
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

trados de tal forma se identificam com as roupas talares (toga), que não
mais conseguem desvesti—las nas relações familiares ou sociais".
Falta a esse juiz a consciência de sua própria sombraººª a capaci-
dade de ser, ao mesmo tempo julgador-jingado. É, também, um exerci-
dente.-=“ -' . ' . .
mbé'm. suas vestes. A aproximação com o simbólico da divindade

Niassacenário, a toga insere-se como instrumento imprescindi-


912,33 “noªritual de purificação. pois ao mesmo tempo em que e um escu-
cio de abstração ou mesmo de altruísmo, de respeitar o outro na sua o protetor," Subtrai o sujeito da sua condiçao de mortal, p'lJI'lfLCEl-D,
diversidade e assumir seu local de fala, absolutamente imprescindível
para o exercício da magistratura, mas que infelizmente não tem sido
om'o'explica GARAPONZ“ .
devidamente exercitado. ' " Sem o ritual e a toga, como dois discursos poderiam ser. ao mesmo
emp'og-contraditórios e legítimos? Como acusador e defensor poderiam
A atividade judicante pode ser essencialmente projetiva, na medi- t “atacam hostilidade e agressividade ao longo do processo?. E o ritual
da em que o julgador tira de si e coloca no mundo externo (em outro, toga que permitem a socialização dessa molenma discurswa, pois a
ou em alguma coisa) os próprios sentimentos, desejos e demais atribu- ' rdadeira ameaça — aponta GARAPON212 — so pode vn“ do exterior
tos tidos como indesejáveis. Dai s'er muito importante que o juiz, mais esse. circulo vestiinentán'o.
talvez do que qualquer outro profissional, aponta ALMEIDA PRADO,207 ' riam-bém- serve como marco divisor entre a violência correta e a
entre em contato com seus conteúdos sombrios, trazendo-os à cons- incorreta-.Épermitindo que a violência correta seja exercida sem sequer
ciência para, com isso, projeta-los menos. Corno aponta a autora, "isso s.;mãos de quem a exerce, pois autorizado pelo tribunal e muni-
ocorrerá se buscar entender o significado desse possivel infrator que —- o'escudo protetor.
como todo ser humano — tem dentro de si, reconhecendo-o com tal". ':b'viamente que essa proteção pode gerar. algumas vezes, um
No viés psiquiátrico, ZlMERMANªºª aponta para os problemas de dniissivelz.,senti1nento de superioridade em relação às partes. até
uma personalidade narcisista, que com crescente frequência tem se , & ioga prolonga a cancella, marca a separação. Tem razão TOC—
manifestado. Segundo o autor, “em uma exagerada figura retórica DEFêquando. diante de um magistrado que trata rispidamení
pode-se dizer que eles sofrem de um complexo de deus, quando, então, artes; encolhe os ombros perante os meios de defesa ou sem
o sujeito narcisista sente—se como se fosse o Sol, enquanto configura emplacência em face da enumeração das, acusações, protesta
aos demais como sendo seus planetas e satélites que devem orbitar em om III i'gnaç'ãoz. gostaria que alguém se dispusesse a retirar-lhes a toga,
torno dele. Muitas vezes pagam um preço por essa ânsia de brilhatura aber, se, uma vez vestidos como simples cidadãos, isso não lhes
porque seguidamente são vítimas de um outro tipo de complexo, que àxmemória a dignidade natural da espécie humana.
podemos denominar como complexo de mariposa, isto é, tal como esses Átoga é a marca da superioridade da instituição sobre o homem,
insetos, são atraídos pela luminosidade e brilho das lâmpadas que aca— “áfnão é ele que habita a sua veste, mas sim esta que o habita a
bam se queimando nelas".
Contribui ainda para o agravamento do quadro clinico o fato de o
10. .Cºmo regra, a toga é imprescindível para o ritual judiciário. pois. com explica GARAPDN
julgamento ser um imenso ritual, com a peculiar arquitetura do templo— (Bªm Julgar. Ensaio sobre o ritual judiciário, p. 73), os professores universitários já aban—
tribunal,ªºª com suas estátuas. sua sequência de atos, sua linguagem donaram a toga em ”1968. os médicos cada vez vestem menos a bata e os padres já estão
“diª-Dªhàados do uso da sotaina pelo Concílio Vaticano H. É o mais antigo uso civil ainda
“fil-Vigor. Mas já existem muitas meritórias exceções em primeiro grau, e. nos Tribunais.
mºs notícia de que algumas Câmaras do TJRS, entre elas a 5a Câmara Criminal. abo-
206 Enquanto a representação do "nosso lado esquecido. desvalorizado ou reprimido, assim -, faiª'cºmpletarnente seu uso. Mais relevante que o simbólico da toga. é o seu abando—
como todas as possibilidades de desenvolvimento rejeitadas pelo indivíduo" (ALMEIDA ºª'ªnaªmeciida em- que significa um rompimento com a tradição da impessoalidade, um
PRADO, op. cit.). “ªdªm—ªim (dªslcobrir o manto protetor (da toga—mascara). para sinalizar uma nova pos-
207 ALMEIDA PRADO. Lidia Reis de. op. cit., p. 49. Éfií Flª Cºmiªrometimento e asaunção de responsabilidades pessoais. de ideologias e
208 “A Influência dos Fatores Psicológicos inconscientes na decisão jurisdicional". In: bém “de falibiiidade. Isso é fundamental para a humanização da justiça. para que se
Aspectos Psicológicos na Prática Jurídica, pp. lio-111. -mª'-'mais íntima e menos intimidante (CAREDNNIERL
209 Notamos isso com clareza nos tribunais classicos. cuja arquitetura em muito se asseme— ARAPON. Antoine. Bem Julgar. Ensaio sobre o ritualjudicia'rio, pp. 85 e ss.
lha ao de um imenso templo. com suas estatuas (divinas), vestes pretas e todo um simbo— vit.. IJ. BB.“
lismo a nos recordar. constantemente. que o binômio crime-pecado nunca foi superado. jJud GARAPON. Antoine Bem JLdgar. Ensaio sobre o ritual judiciário, p. 85.

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Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentaâidade Constitucional)

ele"?“1 A toga permite o refúgio na generalidade da função, impessoa— O ritual judiciário e inafastável, pois o rito, até certo ponto, é garan—
lizando a decisão (e também a acusação e a defesa). A assunção desse tia fundamental. Mas existe um limite para o ritual, que, uma vez supe—
papel conduz ao afastamento do eu, levando a que, não raras vezes, o rado, faz com que ele enfoque, conduza a alienação dos atores judicia-
acusador acuse estando convicto do contrário ou, o que é pior, o juiz jul— rios (no sentido de que ali—é-nada) e ao autismo juridico. Um afastamen—
gue em que pese a consciência da injustiça da decisão. É a conhecida to tal da realidade é o que pode ser presenciado em muitos julgamen-
desculpa: sinto muito, é injusto, mas é a lei (então a culpa é da toga e tos, absolutamente imersos em frágeis categorias artificialmente cria—
não minha?). das pelo direito e que não encontram a minima legitimação externa.
Essa é a toga-máscara de GARAPON, coerente com o resto do rIrata-se de um erro gravissimo, mas bastante comum na Justiça
ritual judiciario, pura exterioridade, em que a nova pele faz com que Criminal, excessivamente contaminada pelas equivocadas ideologias
seu portador possa praticar a violência sem correr riscos e exercer a do repressivismo saneador: a crença de que o simbólico da lei penal irá
vingança sem recear represálias. Da boca da toga sai o discurso que se resolver o problema, real e concreto, que esta por trás da violência urba—
convencionou ser o verdadeiro; é a verdade institucional. na. Como adverte ANDREI SCHMIDT,Em chega-se ao absurdo de esque-
Obviamente que essa maneira de “esconder" o juiz é falsa, mas é cer aquilo que o crime ainda deve possuir em sua essência: o seu carã-
fundamental para a mistificação da justiça, pois, como só lidam com ter antropológico, o caráter humano do Direito Penal.
ciências imaginárias, vêm—se forçados a fazer uso desses instrumentos O processo precisa libertar—se de alguns "rituais", para a justiça
fúteis que impressionam a imaginação com a qual contactam. E a ver- tornar-se mais intima e menos mtimídante.219
dade é que, com isso, conseguem incutir respeito.?15
. ' . : Somente assim é que a real dimensão e importância das garantias
O juiz, consciente de seu mister, não se pode deixar despir de sua Constitucionais e processuais serão finalmente compreendidas. É por
natureza humana pela toga. Precisa racionalizar, inclusive seus medos.
isso que não podemos abrir mão de um sistema de garantias minimas
Deve ter presente a função democrática-garantidora que se lhe atribui capazes de remediar (pelo controle) ou, ao menos, amenizar o imenso
a Constituição (especialmente no processo penal), jamais assumindo o
prejuizo causado pela patologia judicial.
papel de justiceiro, de responsável pelo sistema imunológico da socie-
Recordemos CARNELUTTI,220 que do alto de sua genialidade ensi—
dade, com uma posição mais policialesca que a própria policia; mais nava:
persecutc'nriaª15 que o próprio acusador oficial. Tolerância, humanidade,
humildade são atributos que não podem ser despidos pela toga e tem—
pouco asfixiados pelo poder. “Nenhum homem, se pensasse no que ocorre para julgar um
Devemos assumir as subjetividades e a existência de espaços outro homem, aceitaria ser juiz. Contudo, achar juízes e necessá—
impróprios que permitem excessiva discricionariedade. Vamos des— rio. O drama do Direito é isto. Um drama que deveria estar presen-
cobrirª“ as patologias, admitindo que elas estão em todas as esferas. te a todos, dos juízes aos jurisdicionados no ato no qual se exalta
o processo. O Crucifixo, que, graças a Deus, nas cortes judiciárias
pende ainda sobre a cabeça dos juízes, seria melhor se fosse colc—
214 GARAPON, Antoine. Bem Julgar. Ensaio sobre o ritual judiciário, p, 85. cado defronte a eles, a fim de que ali pudessem com frequência
215 PASCAL, citado por GARAPON, ob. cit., p. 87. pousar o olhar, este a exprimir a indignidade deles; e, não fosse
216 Não apenas no sentido processual, com a figura do juiz-ator, que não se contenta com a
necessária inércia e vai atrás da prova, mas também no sentido psiquiátrico, de alguém outra, a imagem da vítima mais insigne da justiça humana. So—
que possui transtorno delirante de tipo persecutório (a anteriormente chamada para-
nóia). É a situação descrita por KAPLAN, SADDCIC e GREBB (Compêndio de Psiquiatria,
p. 485) em que o foco do delírio "é alguma injustiça que deve ser reparada diante da
ação legal (paranóia querelante). e o indivíduo afetado, frequentemente. engaja-se em 218 SCHMIDT, Andrei Zenlmer. Exclusão da Puninilidade em Crimes de Sonegação Fiscal,
tentativas repetidas de obter satisfação por apelos a tribunais e outras agências gover- (introdução), p. XVII.
namentais". Em se tratando de um juiz, o problema e muito mais grave, pois ele não pra- 219 Como sintetiza JEAN CARBONNIER no Prefácio da obra de GARAPON, Bem Julgar.
cisa buscar a ação legal através do processo: ele é a lei. Ensaio sobre o ritual judiciário, p. 15.
2.17 No sentido de "retirar o manto, a cobertura." 220 Do capo lavcro “As Miserias do Processo Penal". p. 33.
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Procesao Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

mente a consciência da sua indignidade pode ajudar o juiz a ser Por isso, W. GOLDS(JI-HVJIIDTZZEi sintetiza que la imparcialidad dei
menos indigno." juez es la resultante de las parcialidades de los abogados (ou das partes).
- : Mas tudo isso cai por terra quando se atribuem poderes instrutórios
c) A Garantia da Imparcialidade Objetiva e Subjetiva (ou investigatórios) ao juiz, pois a gestão ou iniciativa probatória é carac—
do Julgador: (Re)Pensando os Poderes Investigatórios/ terística essencial do principio inquisitivo, que leva, por consequência, a
Instrutórios fundar um sistema inquisitnrio.227 A gestão/iniciativa probatória nas
mãos do juiz conduz a figura do juiz ator (e não espectador), núcleo do
Mas não basta a garantia da jurisdição, não é suficiente ter um sistema inquisitório. Logo, destrói-se a estrutura dialética do processo
juiz, é necessário que ele reúna algumas qualidades minimas. para penal, o contraditório, a igualdade de tratamento e oportunidades e, por
estar apto a desempenhar seu papel de garantidor. derradeiro, a imparcialidade __ o princípio supremo do processo.
A imparcialidade do órgão jurisdicional e um "princípio supremo Essa posição ativa pode ser assumida pelo juiz em dois momentos:
do processo"221 e, como tal, imprescindível para o seu normal desenvol-
vimento e obtenção do reparte judicial justo. Sobre a base da imparcia— . —poderes investigatórios exercidos na investigação preliminar
lidade está estruturado o processo como tipo heterônomo de reparto. . (fase pré-processual);
Aponta (LABNELUTTI222 que el juicio es um mecanismo delicado — poderes instrutón'os, exercidos no processo.
como un aparato de reiojeria: basta cambiar la posición de una medecii—
ia para que ei mecanismo resulte desequilibrado e comprometido. Distinguimos poderes investigatórios-ínstrutórios a partir da dis-
Segumdo WERNER GOLDSCHMID'Ilªªª o termo partial expressa a con— tínção223 que fazemos entre atos de prova (realizados na fase proces—
dição de parte na relação jurídica processual e, por isso, a impartialida- anal, com todas as garantias inerentes) e atos de investigação (realiza-
de do julgador constitui uma consequência lógica da adoção da hetero— dos'na fase inquisitorial, tendo, portanto, valor reduzido diante de sua
função endoprocedímental).
composição, por meio da qual um terceiro impartiai substitui a autono—
mia das partes.“ .. ' A imparcialidade do juiz fica evidentemente comprometida quan—
Já a parcialidade significa um estado subjetivo, emocional, um esta— do estamos diante de um juíz—instrutor (poderes investigatórios) ou
do animico do julgador. A imparcialidade corresponde exatamente a quando lhe atribuímos poderes de gestão/iniciativa probatória. É um
essa posição de terceiro que o Estado ocupa no processo, por meio do contraste que se estabelece entre a posição totalmente ativa e atuante
juiz, atuando como órgão supra—ordenado às partes ativa e passiva. Mais
do instrutor, contrastando com a inércia que caracteriza o julgador. Um
é sinônimo de atividade e o outro de inércia.
do que isso, exige uma posição de terzietà,224 um estar alheio aos inte-
resses das partes na causa, ou, na síntese de JACINTO COUTINHO,235 Nos centraremos na problemática figura do juiz com poderes ins—
trutórios/investigatórios cujo núcleo está não só no famigerado art. 156
não significa que ele está acima das partes, mas que está para além dos
interesses delas. do CPP, mas também na possibilidade de o juiz, de oficio, decretar a prí-

226 Introducción Filosófica el Derecho, p. 321.


221 A expressão é de PEDRO ARAGON'ESES ALONSO. na obra Proceso y Derecho Pronese]. 227 Consultem-se os diversos trabalhos de JACINTO COUTINHO. especialmente o artigo
p. 127. "Introdução aos Princípios Gerais do Direito Processual Penal Brasileiro". in Revista de
222 Derecho Process] Civil 3! Penal, p. 342. Estudos Criminais. nº 1, 2001; e também o "Glosas ao Verdade, Dúvida e Certeza de
223 No magistral trabalho "La lmparcialidad como Principio Basico del Proceso". In: Revista Francesco Carnelutti, para os operadores do Direito", in Anuário Ibero—Americano de

Penal, p. 11. '


de Derecho Procesai, nª 2. 1950. pp. 2.08 e ss. Direitos Humanos, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2002.
224 Para FEHRAJOLI (Derecho y Razón. p. 580) e a ajenidao' dei juez a los intereses de ias par- 228 'l'rataremos do tema a continuação, quando abordarmos a "Fundamentação das Decisões
tes en causa. Judiciais". Consulte-se. ainda. nossa obra "Sistemas de Investigação Preliminar no
225 "O papeâ do novo juiz no processo penal". In: Critica à Thorin Geral do Direito Processual Processo Penal", onde analisamos de forma mais detida essa problemática distinção e
valoração.

HR nn
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instmmentalidade Constitucional)

são preventiva art. 311 do CPP; determinar o sequestro de bens, art. Enfrentando esses resquícios inquisitórios, o Tribunal Europeu de
127 do CPP; decretar a busca e apreensão. art. 242 do CPP; ouvir outras Direitos Humanos (TEDH), especialmente nos casos Piersacir, de
testemunhas, além das arroladas pelas partes. art. 209 do CPP; “invo« 01/10/82, e de Cubber, de 26/10/84, consagrou o entendimento de que
car" o MP, no caso de materia iibelii (art. 384) para que providencie o o' juiz com poderes investigatórios é incompatível com a nmção de jul—
aditamento (para ele poder condenar, é óbvio...); o juiz inquisidor (ver— gador. Ou seja, se o juiz lançou mão de seu poder investigatório na fase
são policialesca até) previsto na Lei 9.034.229 etc. pre—processual, não poderá, na fase processual, ser o julgador. É uma
A esses rápidos exemplos, devemos ainda recordar o interrogató— violação do direito ao juiz imparcial consagrado no art. 6.1 do Convênio
rio previsto no CPE que, sob o manto de "ato pessoal do juiz",230 confi— para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais,
gura uma verdadeira inquisição, e a forma como são tomados os depoi- de 1950. Segundo o TEDH, a contaminação resultante dos pré—juízos
mentos das testemunhas no processo penal brasileiro: primeiro o juiz conduzem à falta da imparcialidade subjetiva ou objetiva.
faz a inquisição completa, para somente depois deixar o que "sobrou" . Desde o caso Piersaclr, de 1982, entende-se que a subjetiva alude
para as partes. àconvicção pessoal do juiz concreto, que conhece de um determinado
O juiz deve manter—se afastado da atividade probatória, para ter o assunto e, deste modo, a sua falta de pré-juízos.
alheamento necessário para valorar essa prova. A figura do juiz espec- J a a imparcialidade objetiva diz respeito a se tal juiz se encontra
tador em oposição à figura inquisitória do juiz ator é o preco a ser pago em uma situação dotada de garantias bastantes para dissipar qualquer
para termos um sistema acusatório. conforme voltaremos a explicar duvida razoável acerca de sua imparcialidade. Em ambos casos, a par—
quando da análise dos sistemas (Inquisitório e Acusatório). cialidade cria a desconfiança e a incerteza na comunidade e nas suas
Mais do que isso, é uma questão de respeito às esferas de exercí— instituições. Não basta estar subjetivamente protegido; e importante
cio de poder. São as limitações inerentes ao jogo democrático. Como que se encontre em uma situação jurídica objetivamente imparcial (é a
explicaremos a seu tempo, quando da análise dos sistemas inquisitório visibilidade).
e acusatorio, a transição para a inquisição começou exatamente com a - ' Seguindo essas decisões do TEDH, aduziu o Tribunal Constitucio-
insatisfação com a atividade incompleta das partes. Como decorrência,
abandonou—se o principio do na procedat index officio, corolário da inérÁ
nal espanhol (STC 145/88), entre outros fundamentos, que o juiz-instru-
tor'não poderia julgar, pois violava a chamada imparcialidade objetiva,
cia judicial, para paulatinamente forjar—se o juiz inquisidor.
aquela que deriva não da relação do juiz com as partes, mas sim de sua
relação com o objeto do processo.
229 Com "apenas" 5 anos de atraso (exemplo típico de inadmissível (de)mora jurisdicio-
“ Ainda que a investigação preliminar suponha uma investigação
nal) o STF julgou a ADI 1.517. que questionava a constitucionalidade do art. Bº da Lei objetiva sobre o fato (consignar e apreciar as circunstâncias tanto
9034/95. decidindo por maioria de votos (vencido o Min. Carlos Velloso) que os pode- adversas como favoráveis ao sujeito passivo), e contato direto com o
res instrutórios violam e imparcialidade do julgador &. por consequência, o principio
do devido processo legal. infelizmente, a liminar postulada há mais de 5 anos foi Sujeito passivo e com os fatos e dados pode provocar no ânimo do juiz—
negada, permitindo que por todo esse tempo (mais de 8 anos, considerando que a lei ínstrutor uma serie de pré-juízos e impressões a favor ou em contra do
e de 1995) juizes inquisidores atuassem de oficio e em absoluto sigilo, tendo acesso a imputado, influenciando no momento de sentenciar.
dados. documentos e informações fiscais, bancárias. financeiras e eleitorais de réus e
ainda, ao final. julgassem. Imaginem se alguém resolvesse agora postular efeitos Destaca o Tribunal uma fundada preocupação com a aparência de
retroativos dessa decisão (eficácia retroativa da jurisprudência in bonam partem)? imparcialidade que o julgador deve transmitir para os submetidos a
Com certeza seria uma "heresia jurídica" para muitos. mas perfeitamente defensável
a nosso juizo... administração da justiça, pois ainda que não se produza o pré—juízo, é
2.30 Pode-se dizer que a inquisitoriaiidade do interrogatório foi amenizada com o advento da dificil evitar a impressão de que o juiz (instrutor) não julga com pleno
Lei 10792, que alterou a redação do art. 188 do CPF, para permitir, ao final, a interven- alheamento. Isso afeta negativamente a confiança que os Tribunais de
ção das partes. Mas continua sendo um ato essencialmente inquisitório, pois e presidi-
do pelo juiz, com uma tímida participação das partes no final, que poderão elaborar per- uma sociedade democrática devem inspirar nos justiçáveis, especial—
guntas desde nue o iuiz entenda "pertinente e relevante". mente na esfera penal.
Aury Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instmmentalídade Constitucional)

Desta forma, atualmente, existe uma presunção absoluta de par- , Em definitivo, a prevenção deve ser uma causa de exclusão da com—
cialidade do juiz-instrutor, que lhe impede julgar o processo que tenha petência. O juiz-instrutor é prevento e como tal não pode julgar. Sua
instruído. irnparcíalidade está comprometida não só pela atividade de reunir o
Outra decisão sumamente relevante, que vai marcar uma nova era material ou estar em contato com as fontes de investigação. mas pelos
no processo penal europeu. foi proferida pelo TEDH no caso "Castillo— diversos pré-julgamentos que realiza no curso da investigação prelimi—
Algar contra Espana" (STEDH de 28/10/98), na qual declarou vulnera— narª-Í32 (como na adoção de medidas cautelares, busca e apreensão,
do o direito a um juiz imparcial o fato de dois magistrados, que haviam autorização para intervenção telefônica, etc.).
formado parte de uma Sala que denegou um recurso interposto na fase ' ' São esses processos psicológicos interiores que levam a um pré—
pré-processual, também terem participado do julgamento. juízo sobre condutas e pessoas. O problema é definir se o juiz tem con-
Esta decisão do TEDH levará a outras de caráter interno, nos res- dições de proceder ao que se chama de uma idéia sobre a pequena his-
pectivos Tribunais Constitucionais dos países europeus, e sem dúvida tória do processo, sem intensidade suficiente para condicionar, ainda
acarretará uma nova alteração legislativa. Friso-se que esses dois gue inconscientemente — e ainda que seja certeiramente — a posição de
magistrados não atuaram como juízes de instrução, mas apenas afastamento interior que se exige para que comece e atua no processo.
haviam participado do julgamento de um recurso interposto contra Como aponta OLIVA SANTOS,233 essas idéias pré-concebidas até
uma decisão interlocutória tomada no curso da instrução preliminar podem ser corretas — fruto de uma especial perspicácia e melhores qua-
pelo juiz-instrutor. Isso bastou para que o TEDH entendesse compro— lidades intelectuais —, mas inclusive nesse caso não seria conveniente
metida a imparcialidade deles para julgar em grau recursal a apelação iniciar o processo penal com tal comprometimento subjetivo.
contra a sentença. Crer na imparcialidade de quem está totalmente absorvido pelo
Imaginem o que diria :) TEDH diante do sistema brasileiro, em que labor investigador é o que J . GOLDSCHIVIIDTZM denomina de erro psi-
muitas vezes os integrantes de uma Câmara Criminal irão julgar do pri- cológico. Foi essa incompatihilidade psicológica que levou ao descrédi—
meiro habeas corpus —— interposto contra a prisão preventiva — passan— to'ª do modelo inquisitório.
do pela apelação, e chegando até a decisão sobre os agravos interpos- Sem dúvida, chegou o momento de repensar a prevenção e também
tos contra os incidentes da execução penal... a relação juiz/inquérito, pois ao invés de caminhar em direção a figura
Mas não apenas os espanhóis enfrentaram esse problema. do'jiuz' garante ou de garantias, alheio à investigação e verdadeiro órgão
Seguindo a normativa européia ditada pelo TEDH, o art. 34 do Códice supra—partes, está sendo tomado o caminho errado do juíz-instrutor. '
de Procedure Penal prevê, entre outros casos, a incompatibilidade do ” JACINTO COUTINHOªª5 aponta o erro da visão tradicional, que
juiz que ditou a resolução de conclusão da audiência preliminar para temºs larga desvantagem de desconectar & matéria referente à compe-
atuar no processo e sentenciar. Posteriormente, a Corte Constituzíonale tênCía'do princípio do juiz natural. Deve-se descortinar essa cruel

preliminare. '
através de diversas decisõesªªl declarou a inconstitucionalidade por estrutura e assumir o problema.
omissão deste dispositivo legal, por não haver previsto outros casos de Não basta apenas definir as regras do jogo, mas ir além delas, defi-
incompatibilidade com relação a anterior atuação do juiz na indagin nindo contra quem se está jogando e qual o conteúdo ético e axiológico
dº Próprio jogro.23'5 Esquecemos os erros do passado e tampouco olha-
Em síntese, consagrou o principio anteriormente explicado, de
que o juiz que atua na investigação preliminar está prevento e não
pode presidir o processo, ainda que somente tenha decretado uma pri— 232. OLIVA SANTOS, Andres. Jueces im parciales, Escalas investigadores ynueva rafcnna para
são cautelar (Sentença da Corte Constituzíonale nº 432, de 15 de setem— , . Ia Vieja crisis de 1a justicia penal. Barcelona. PPU, IEIBB, p. 30.
bro de 1995). 233 Jueces imparciajes, Escalas investigadores ynueva reforma para la viaja crisis de la justi-
. cia pena!, pp. SE], 44 e ss.

432/2995, entre outras. '.


23,4 Problemas Jun'dicosy Políticos da! Proceso Penal. Barcelona, Bosch, 1935. p. 29.
231 Decisões nº 496/1990. 401/1991. 502/1991, 124/1992, 186/1952, 399/1992. 435/1553. 23.5. "O papel do novo juiz no processo penal", p. 12.
236 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. "O papel do novo juiz no processo penal", p. 47.

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Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

mos para os lados. Como sintetiza a Exposição de Motivos do Código- de um tempo linear, pois. para conhecermos o futuro, bastava dominar
Modelo para Ibero—America, “o bom inquisidor mata ao bom juiz, ou ao o presente.
contrário, o bom juiz desterra ao inquisidor". Sequer isso é lido. Não só Corn EINSTEIN e a Teoria da Relatividade,239 opera—se uma ruptu—
estamos na contra—mão da evolução, querendo ressuscitar a superada ra completa dessa racionalidade, com o tempo sendo visto como algo
figura do juiz de instrução, como nos negamos a evoluir, repensando a relativo, variável conforme a posição e o deslocamento do observador,
prevenção, diante da necessidade de proteção da posição do julgador. pois ao lado do tempo objetivo está o tempo subjetivo.
Em momentos como esse, parece que não somos mais capazes de Sepultou-se de vez qualquer resquício dos juízos de certeza eu ver-
repensar o pensamento, e, acima de tudo, somos incapazes de repen- dades absolutas, pois tudo é relativo: a mesma paisagem podia ser uma
sar o próprio pensar. coisa para o pedestre, outra coisa totalmente diversa para o motorista,
Como já advertiu GORDERO,237 nessa estrutura domina o primero e ainda outra coisa diferente para o aviador. A percepção do tempo é
dell'ípotesí sui fato“, gerador de um quadri mentali paranoidi. O cenário completamente distinta para cada um de nós. A verdade absoluta
é doentio: devemos nos preparar para atuar com juizes fazendo que— somente poderia ser determinada pela soma de todas observações rela—
dros mentais paranóicos.235 tivas.24D HAWKINGFM explica que EINSTEIN derrubou os paradigmas
da época: o repouso absoluto, conforme as experiências com o éter. e o
d) O Direito de Ser Julgado em um Prazo Razoável: tempo absoluto ou universal que todos relogios mediriam. Tudo era rela-
o Tempo como Pena e a (De)lVIora Jurisdicional tivo. não havendo, portanto, um padrão a ser seguido. Outra demonstra—
”ção importante e o chamado "paradoxo dos gêmeos", onde se um dos
a*) Recordando o Rompimento do Paradigma Newtom'ano gêmeos (a) parte em uma viagem espacial, próximo a velocidade da luz,
enquanto seu irmão (b) permanece na Terra, em virtude do movimento
O "tempo" mereceria — ainda que a título de introdução — uma obra
que o tivesse como único objeto. Nossa intenção, nos estreitos limites do
presente trabalho, é fazer um pequeno recorte dessa ampla temática. “239 Composta pela 'Banda da Relatividade Especial, desenvolvida no artigo "Sobre a
Eletrodinàmica dos Corpos em Movimento". publicado no dia 5 de junho de 1905, na
Num proposital salto histórico, recordamos que para NEWTON o Revista Annalen der Physilr e. posteriormente. complementada pela 'Banda da
universo era previsível, um autômato, representado pela figura do reló— Relatividade Geral. no texto "Iberia da Relatividade Geral" publicado em Berlim no ano
gio. Era a idéia do tempo absoluto e universal, independente do objeto de 1916, cujo reconhecimento culminou com o recebimento do Nobel de Física em 1921
(mas pelo trabalho realizado em 1905, pois a relatividade geral ainda enfrentava muita
e de seu observador, eis que considerado igual para todos e em todos resistencia). No texto publicado em 1905. Einstein demonstra que a idéia do éter (experi-
os lugares. Existia um tempo cósmico em que Deus era o grande relo- mento de Fitzgerald e Lorentz) era supérfluo e que as leis da ciência deveriam parecer as
joeiro do universo. Tratava-se de uma visão determinista com a noção mesmas para todos os observadores em movimento livre. Eles deveriam medir a mesma
velocidade da luz. sem importar o quão rápido estivessem se movendo. pois a velocidade
da luz é independente do movimento deles, sendo a mesma em todas as direções. Isso
exigia o abandono da idéia de que existe uma quantidade universal chamada tempo que
todos os relógios medidam. Ao contrario, explica IiIAWKING (op. cit., p. 9), cada um teria
237 COHDERÚ, Franco. Guida alla Procedure Penais. Torino, Utet, 1986, p. 51. seu tempo pessoal. Os tempos de duas pessoas coincidiriam se elas estivessem em
238 Mantivemos o termo "paranóico" (de origem grega, significando "ao lado de" e "mente") - repouso uma em relação a outra, mas não se estivessem em movimento. Vários experi—
para ser fiel ao empregado por CORDERO. Contudo, I(APLAN. SADOCK e GREEE mentos foram feitos, incluindo uma versão do paradoxo dos gêmeos. feita com dois reló-
(Compêndio de Psiquiatria, pp. 482-487) explicam que atualmente a psiquiatria prefere gios de alta precisão viajando & bordo de aviões que voavam em direções opostas ao redor
tratar como "transtorno delirante". pois nem sempre tais delirios são de conteúdo perse- do mundo. Eles retornavam mostrando horas ligeiramente diferentes. demonstrando que
cutorio. Seria um transtorno delirante de tipo persecutcirío, mas não no sentido de "estar o tempo era relativo, variavel conforme a posição e o deslocamento do observador. Mas
sendo perseguido". senão de que “deve perseguir" para reparar a injustiça sofrida pela fºi Em 1516, com a Thoria da Relatividade Geral, que Einstein rompe a base da teoria nevv-
vítima (paranóia querelante). A questão poderia ainda ser tratada não no campo da pato- toniana do tempo absoluto. demonstrando a superação das três dimensões (altura, larguv
logia, mas como sentimentos persecutórios. De qualquer forma. são evidentes os prejuí- ra e comprimento) para acrescentar o tempo enquanto quarta dimensão.
zos (decorrentes dos pre-juízos) para a imparcialidade (subjetiva) e o afastamento que 240 EINSTEIN. Vida epensamentos, pp. 16-18.
deve guardar o julgador (imparcialidade objetiva). 241 HAWKING. Stephen. O universo numa casca de noz. p. 11.

CIA
Aury Lopes .ir. Introdução Critica ao Processo Penal
(?undamentos da instrumentalidade Constitucional)

do gêmeo(a), o tempo flui mais devagar na espaçonave. Assim, ao retor— ainda não é, e que por isso tambem não existe. Nessa incessante corri—
nar do espaço, o viajante (a) descobrirá que seu irmão (b) envelheceu da,,oitempo rege nossa vida pessoal, profissional e, como não poderia
mais do que ele. Como explica HAWIGNG,242 embora isso pareça con— deixar de ser, o próprio direito.
trariar o senso comum, várias experiências indicam que, nesse cenário, No que se refere ao Direito Penal, 0 tempo é fundante de sua estru—
o gêmeo viajante realmente voltaria mais jovem. tura, na medida em que tanto oria como mata o direito (prescrição),
O tempo é relativo à posição e velocidade do observador, mas tam— podendo sintetizar—se essa relação na constatação de que a pena é
bém a determinados estados mentais do sujeito, como exterioriza EINS— tempo e o tempo é pena.245 Pune-se através de quantidade de tempo e
TEINZªªS na clássica explicação que deu sobre Relatividade à sua empre— permite-se que o tempo substitua a pena. No primeiro caso, é o tempo
gada: quando um homem se senta ao lado de uma moça bonita, durante do castigo; no segundo, o tempo do perdão e da prescrição. Como iden—
uma hora, tem a impressão de que passou apenas um minuto. Deixe-o tificou MESSUTI?"17 os muros da prisão não marcam apenas a ruptura
sentar-se sobre um fogão quente durante um minuto somente — e esse no espaço, senão também uma ruptura do tempo. O tempo, mais que o
minuto Ihe parecerá mais comprido que uma hora. — Isso a' relatividade. espaço, e o verdadeiro significante de pena.
Até EINSTEIN, consideravam-se apenas as três dimensões espa- O processo não escapa do tempo, pois ele está arraigado na sua
ciais de altura, largura e comprimento, pois o tempo era imóvel. própria concepção, enquanto concatenação de atos que se desenvol-
Quando verificou-se que o tempo se move no espaço, surge a quarta vem, duram e são realizados numa determinada temporalidade. O
dimensão: e espaço—tempo. Norberto Elias244 considera como a dimen— tempo é elemento constitutivo inafastãvel do nascimento, desenvolvi—
são social do tempo, em que o relógio é uma construção do homem a mento-e conclusão do processo, mas também na gravidade com que
partir de uma convenção, de uma medida adotada. Isso está tão arrai- serão aplicadas as penas processuais, potencializadas pela (de)mora
gado que não imaginamos que o tempo exista independente do junsdrcional injustificada. .
homem. Sem embargo, o paradoxo do tempo é o fato de o relógio mar- ', . Sem embargo, gravíssimo paradoxo surge quando nos deparamos
car 2h ontem e hoje novamente, quando na verdade as duas horas de com a inexistência de um tempo absoluto, tanto sob o ponto de vista
ontem jamais se repetirão ou serão iguais às 2h de hoje. ti 'no, como também social ou subjetivo, frente a concepção jurídica de
Na perspectiva da relatividade, podemos falar em tempo objetivo e tempo. O Direito não reconhece a relatividade ou mesmo o tempo sub-.
subjetivo, mas principalmente de uma percepção do tempo e de sua jetivo, e como define PASTOR, 243 o jurista parte do reconhecimento do
dinâmica. de forma completamente diversa para cada observador. tempo enquanto. “realidade", que pode ser fracionado e medido com
Como dito anteriormente, vivemos numa sociedade regida pelo tempo, exatidão, sendo absoluto e uniforme. 0 Direito só reconhece o tempo do
em que a velocidade e a alavanca do mundo contemporâneo (VIRILLIO). calendário edo relógio,. juridicamente objetivado e definitivo. E mais,
Desnecessária maior explanação em torno da regência de nossas para o Direito é possível acelerar e retroceder & ilecha do tempo, a par—.
vidas pelo tempo,?15 principalmente nas sociedades contemporâneas, tir de suas alquimias do estilo' 'antecipação de tutela" e “reversão dos
dominadas pela aceleração e a lógica do tempo curto. Vivemos a efeitos": em manifesta oposição às mais elementares leis da física.
angústia do presenteismo, buscando expandir ao máximo esse frag— _ ' No Direito Penal, em que pese as discussões em torno das teorias
mento de tempo que chamamos de presente, espremido entre um pas— justificadoras da pena, o certo é que a pena mantém o significado de
sado que não existe, uma vez que já não e um futuro contingente, que tempo fixo de aflição, de retribuição temporal pelo mal causado. Sem
dúvida que esse “intercâmbio negativo", na expressão de MOSCONLzªS

242 HAWKING, Stephen. O universo numa casca de noz. p. 11. 2.4.5 PASTOR, Daniel. El Plaza Hazonable en el Proceso del Estado de Derecho, p. 85.
243 EINSTEIN Vida e pensamentos, p. 300. 247 MESSUTI, Ana. O Tiempo como Pena, p. 33.
244 Especialmente na obra "Sobre o Tempo". Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor. 1995. 248 PASTOR, Daniel. El Plazo Bazonable en el Proceso del Estado de Derecho, p. 79.
245 Para melhor compreensão da questão, é imprescindível a !eítnra do tópico "Direito & 249 MOSCONI. Giuseppe. 'Tíompo social y tiempo de cárcel". In: Semestres institucionalesy
Dromologia: quando o processo pena] se põe a correr, atropelando as garantias", inseri— . derechos humanos: Ia cárcel ;; e] manicomio como laberintos de obedisn cias tingidas. Inald-
do rio Capitulo I. Rivera Beiras e Joan Dobon (org.). Barcelona, Editor-al Bosch. 1997, pp. Eli-103.

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Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

é fator legitimante e de aceitabilidade da pena ante a opinião pública. entre os dois extremos: de um lado o processo demasiadamente expe—
O contraste é evidente: a pena de prisão está fundada num tempo dito, em que se atropelam os direitos e garantias fundamentais, e, de
fixoª5º de retribuição, de duração da aflição, ao passo que o tempo social

processo penal. _
outro, aquele que se arrasta, equiparando-se a negação da (tutela da)
é extremamente fluido, podendo se contrair ou se fragmentar, e esta justiça e agravando todo o conjunto de penas processuais manas ao
sempre fugindo de definições rígidas.
É uma concepção vinculada à idéia de controle e segurança juridi— A visibilidade da pena processual e plena quando estamos diante
ca, que, como apontamos no capítulo anterior, deve ser repensada à luz de uma prisão cautelar, em que a segregação é prévia ao trânsito em
da sociologia do risco e da propria teoria da relatividade.
julgado da sentença. Nesse caso, dúvida alguma paira em torno da gra-
Interessa—nos, agora, abordar o choque entre o tempo absoluto do vidade dessa violência, que somente se justifica no estritos lirmtes de
direito e o tempo subjetivo do réu, especialmente no que se refere ao sua verdadeira cautelaridade, como se verá em tópico especifico, quan—
direito de ser julgado num prazo razoável e à (de)mora judicial enquan- do analisaremos a "teoria geral das prisões cautelares.
to grave conseqiiência da inobservância desse direito fundamental. Mas a questão da dilação indevida do processo também deve ser
b') Tempo e Penas Processuais reconhecida quando o imputado está solto, pois ele pode estar livre do
cárcere, mas não do estigma e da angústia É inegável que a submis-
são ao processo penal autoriza a ingerência estatal sobre toda uma
A concepção de poder passa hoje pela temporalidade, na medida série de direitos fundamentais, para além da liberdade de locomoção,
em que o verdadeiro detentor do poder e aquele que está em condições
de' impor aos demais o seu ritmo, a sua dinâmica, a sua própria tempo— pois autoriza restrições sobre a livre disposição de bens, a privacidade
ralidade. Como já explicamos em outra oportunidade, 'o Direito Penal das comunicações, a inviolabilidade do domicílio e a propria dignidade
'do réu.
e o processo penal são provas inequivocas de que o Estado—Penitência
O caráter punitivo está calcado no tempo de submissão ao cons-
(usando a expressão de LOÍC WACQUANT) já tomou, ao longo da his—
toria, o corpo e a vida, os bens e a dignidade do homem. Agora, não trangimento estatal, e não apenas na questão espacial de estar intra—
havendo mais nada a retirar apossa— se do tempo. 251
muros. Corn razão MESSUTI,252 quando afirma que não e apenas a
Como veremos quando a duração de um processo supera o limite separação física que define a prisão, pois os muros não marcam apenas
da duração razoável, novamente o Estado se apossa ilegalmente do a ruptura no espaço, senão também uma ruptura do tempo. A marca
tempo do particular, de forma dolorosa e irreversível. E esse apossa— essencial da pena (em sentido amplo) é "por quanto tempo"? Isso por-
mento ilegal ocorre ainda que não exista uma prisão cautelar, pois o que o tempo, mais que o espaço, é o verdadeiro significante da pena.
processo em si mesmo é um pena. " O processo penal encerra em si uma pena (la pena de banquillo),253
No primeiro capítulo tratamos do grave problema que constitui o ºu conjunto de penas se preferirem, que, mesmo possuindo natureza
atropelo das garantias fundamentais pelas equivocadas politicas de diversa da prisão cautelar, inegavelmente cobre(m) seu preço e
aceleração do tempo do direito. Agora, interessa-nos o difícil equilíbrio sofre(m) um sobre-custo inflacionário proporcional a duração do pro—
cesso. Em ambas as situações (com prisão cautelar ou sem ela), & dila-
ção indevida deve ser reconhecida, ainda que os critérios utilizados
250 Devemos considerar que o Direito construiu seus instrumentos artificiais de "aceleração“:
buscando amenizar a rigidez do tempo carcerário. Exemplo típico e a remição comutação
e o próprio sistema progressivo como um todo. Contudo, ao lado do critério temporal estão
os requisitos subjetivos. fazendo com que a aceleração dependa do "mérito" do apenado. 252 MESSUTI, Ana. O Tampo como Pena, p. 33.
Poderíamos até cogitar de uma teoria da relatividade na execução penal, onde 10 anos de 253 Ilustrativa é a expressão "pena de banquillo", consagrada no sistema espanhol. para
pena para um não é igual a 10 anos de pena para outro. O problema são os critérios que designar a pena processual que encerra o "sentar-se no banco dos réus". E uma pena
o Direito utiliza para imprimir maior iluiciez ao tempo carcerário. autônoma, que cobra um alto preço por si mesma, independentemente de futura pena
251 Parecer: tempo e direito. In: Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais «- IBC— privativa de liberdade (que não compensa nem justifica, senão que acresce o carater
C'RIM, nº 122 — Janeiro/2003. p. 669. punitivo de todo o ritual judiciario).

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Aury Lopes Jr. introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da instrumentalidade Constitucional)

para aferi-la sejam diferentes, na medida em que, havendo prisão cau- em muitos casos, através de verdadeiras penas privativas de liberdade
telar, a urgência se impõe a partir da noção de tempo subjetivo. aplicadas antecipadamente (prisões cautelares). E o que CiAÍRlxlELUT-
A perpetuação do processo penal, alem do tempo necessário para TIZEE define como a misure di sofrªrenza Spirituals ou dr unulrazrone. O
assegurar seus direitos fundamentais, se converte na principal viola- mais grave é que o custo da pena-processo nao e meramente economi-
ção de todas e de cada uma das diversas garantias que o réu possui. co, mas o social e psicológico. , ' .
A primeira garantia que cai por terra e a da Jurisdicionalidade ins- A continuação é fulminada a Presunção de Inocencra, pois a demo—
culpida na máxima latina do nulla poena, nulla culpa sine indício. Isso ra e o prolongamento excessivo de processo pen-al vao, paulatinamen-
porque o processo se transforma em pena prévia à sentença, através da te,-sepultando a credibilidade em torno da versao do acusado. Exrste
estigmatização,254 da angústia prolongada,255 da restrição de bens e, uma relação inversa e proporcional entre a estigmatrzaçao e a presun-
ção:- de inocência, na medida em que o tempo implementa aquela e
esta.
61135533“ cleiãeeito de defesa e o próprio contraditório também são afetados,
254 O termo estigmatizar encontra sua origem etimológica no latim stigma, que alude à
marca feita com ferro candente, o sinal da infãmia, que foi. com a evolução da humani- na medida em que & prolongação excessiva de processo gera graves
dade, sendo substituida por diferentes instrumentos de marcação. Atualmente. não há dificuldades para o exercicio eficaz da resistência processual, bem como
como negar que o processo penal assume a marca da infãmia e a função do ferro canden—
te. A Criminologia critica aponta para o labeling approach (FIGUEIREDO DLAS, Jorge e implica um sobre—custo financeiro para o acusado, não apenas com os
COSTA ANDRADE, Manuel. Criminologia, p. 42) como essa atividade de etiquetamento gastos em honorários advocatícios, mas tambem pelo empobrecunento
que sofre a pessoa e tal fenômeno pode ser perfeitamente aplicado ao processo penal. O gerado pela estigmatização social. Não há que olvrdar a eventual indis—
labelíng approach, como perspectiva criminologica, entende que o self— a identidade —
não é um dado, uma estrutura sobre a qual atuam as "causas” endógenas ou exógenas, punibilidade patrimonial do réu, que por si só e gramssrrna, mas que, se
mas algo que se vai adquirindo e modelando ao longo do processo de interação entre o for conjugada com uma prisão cautelar, conduz à inexoravel bancarrota
sujeito e os demais. Nesse panorama, o processo penal assume a atividade de etiqueta- do imputado e de seus familiares. A prisão (mesmo cautelar) nao—ape-
mento, retirando a identidade de uma pessoa, para outorgar—lhe outra, degradada, estig- nas gera pobreza, senão que e exporta, & ponto de a "intranscendencra
matizada. É claro que essa estigmatização é relativa e não absoluta, na medida em que da pena" não passar de romantismo do Direito Penal.
varia conforme a complexidade que envolve a situação do réu (o observador na visão da
relatividade de EINSTEIN) e a própria duração do processo. Não ha duvida de que tanto A lista de direitos fundamentais violados cresce na mesma propor-
maior será o estigma, quanto maior for a duração do processo penal, especialmente se o ção em que o processo penal se dilata indevidamente.
acusado estiver submetido a medidas cautelares. O processo penal constitui o mais
grave status—degradation ceremony. Como explicam Figueiredo Dias e Costa Andrade 1 " ,“ . Mas o que deve ficar claro é que existe uma pena processual
(Criminologia, p. 350), o conceito de cerimônia degradante foi introduzido em 1956, por mesmo quando não na prisão cautelar, e que ela aumenta progressrva-
H. Garfinlrel, como sendo os processos ritualizados em que uma pessoa é condenada e mente com a duração do processo. Seu imenso custo será ainda maior,
despojada de sua identidade e recebe outra, degradada. O processo penal é a mais
expressiva de todas as cerimônias degradantes.
255 A expressão stato di prolungata ansia resume esse fenômeno. Foi empregada na
Exposição de Motivos do atual Código de Processo Civil italiano, para justificar a crise
do procedimento civil ordinário e a necessidade de implementar formas de tutela de sado. Tudo isso traduz, em última análise, que o binômio crime-pecado ainda nao foi
urgência, mas encontra no processo penal um amplo campo de aplicação, levando em completamente superado pelo homem. Os membros do Estado —- ÉUÍZESKPIDHIOÍJOIBS e
conta a natureza do seu custo. Como explicamos em outra oportunidade (Sistemas de auxiliares da justiça— movem-se em um cenário que lhes é familiar, corn. a indiferença de
Investigação Preliminar no Processo Penal, p. 54), o processo penal submete e particular -' quem só cumpre mais uma tarefa rotineira. Utilizam uma indumentarra: vocabulario e
a uma instituição que, em geral. lhe é absolutamente nova e repleta de mistérios e incóg- '. todo um ritualismo que contribui de forma definitiva para que o indivrduo adquira .a
nitas. A profissionalização da justiça e a estrutura burocrática que foi implantada devi- plena consciência de sua inferioridade. Dessa forma. o mais forte é 8011119“th no mais
do também a massificação da criminalidade fazem com que o sujeito passivo tenha que « impotente dos homens frente a supremacia punitiva estatal. Tudo isso acrescrdo do peso
se submeter a um mundo novo e desconhecido. Isso sem considerar o sistema peniten- da espada de Dâmocles que pende sobre sua cabeça. leva o sujeito passivo a um estado
ciário, que, sem dúvida, é um mundo à parte, com sua própria escala e hierarquia de : de angústia prolongada. Enquanto dura o processo penal, dura a incerteza e isso leva
valores. linguagem etc. Esse ambiente da justiça penal e hostil, complexo e impregnado qualquer pessoa a níveis de estresse jamais imaginados. Não raros serão os transtornos
de simbolismos. Para o sujeito passivo, todo o cenario revela um mistério, que somente psicológicos graves, como a depressão exógena. O sofrimento da alma e um custo que
poderá compreender depois de submeter-se a toda uma série de cerimônias degradan— terá que pagar :) submetido ao processo penal, e tanto maior será sua dor como maior
tes. A arquitetura das salas dos Tribunais configura um plágio das construções religio— seja a injustiça a que esteja sendo submetido.
sas, com suas estátuas e inclusive com um certo vazio. onde deverá ser "exposto" o acu- 2.56 Lezioní sul Processo Penais, vol. 1. pp. 67 e seguintes.

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Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

a partir do momento em que se configurar a duração excessiva do pro- Cunhamos a expressão “(de)mora jurisdicional" porque ela nos
cesso, pois, então, essa violência passa a ser qualificada pela ilegitimi— remete ao próprio conceito (em sentido amplo) de "mora", na medida
dade do Estado em exerce-1a.
em que existe uma injustificada procrastinação do dever de adimple—
o') A (De)lViora Jurisdicional e o Direito a um Processo sem mento da obrigação de prestação jurisdicional. Dalpor que nos parece
Dilações Indevidas adequada a construção (de)mora judicial no sentido de nao-cumpri—
mento de uma obrigação claramente definida, que e a da propna pres-

BECCARIA,257 a seu tempo, já afirmava com acerto que o proces—


taçâo da tutela (jurisdicional) devida. .
Cumpre agora analisar os contornos e os problemas que rodeiam
so deve ser conduzido sem protelações. Demonstrava a preocupação o direito de ser julgado num prazo razoável ou a um processo sem dila-
com a (de)mora judicial, afirmando que, quanto mais rápida for a apli— ções indevidas.
cação da pena e mais perto estiver de delito, mais justa e útil ela será.
Mais justa porque poupará o acusado de cruel tormento da incerteza, a") Fundamentos da Existência do Direito de Ser Julgado num
da própria demora do processo enquanto pena. Explica que a rapidez ' -ª Prazo Razoável
do julgamento é justa ainda porque a perda da liberdade (em sede de
medida cautelar) já é uma pena. E, enquanto pena sem sentença, deve "A (de)mora na prestação jurisdicional constitui um dos mais anti—
limitar-se pela estrita medida que a necessidade o exiginªªª pois, gos problemas da administração da justiça. Contudo, como aponta
segundo o autonºªº um cidadão detido só deve ficar na prisão o tempo PASTOR,250 somente após a Segunda Guerra Mundial é que esse direi—
necessário para a instrução do processo; e os mais antigos detidos tem o to'ªfundamental foi objeto de uma preocupação mais intensa. Isso coin-
direito de ser julgados em primeiro lugar. cidiu com a promulgação da Declaração Universal dos Direitos do
Homem, em 10/12/1948, especialmente no art. 10, que foi fonte direta
tanto do art. 6.1 da Convenção Europeia para Proteção dos Direitos
25? Dos Delitos e das Penas, p. 59. Humanos e das Liberdades Fundamentais (CEDI—I) como também dos
258 Essa é a base do pensamento liberal clássico nas prisões cautelares: a cruel necessida—
de. Acompanhada do caráter de excepcionalidade e brevidade (provisoriedade).
arts. 7.5'e 8.1 da CADH.
259 Não concordamos. contudo, quando o autor (p. 42) distingue duas espécies de delitos e a Os principais fundamentos de uma célere tramitação do processo,
eles atribui regras de probabiiidade para diferenciar a duração dos processos. Aiirma s'em'atropelo de garantias fundamentais, e claro, podem ser resumidos
Eeccaria que os crimes mais graves são “mais raros, deve diminuir-se a duração da ins- assnn:
trução e do processo. porque a inocência do acusado e mais provável do que o crime.
Deve-se, porém, prolongar o tempo da prescrição. (...) Ao contrário, nos delitos menos con-
sideráveis e mais comuns, e preciso prolongar o tempo dos processos porque a inocência ' -— respeito à dignidade do acusado: considerando os altíssimos
do acusado e menos provavel, e diminuir o tempo fixado para a prescrição. porque a impu-
nidade é menos perigosa." Trata—se de uma premissa equivocada e de uma relação nunca
custos (econômicos, fisicos, psíquicos, familiares e sociais)
demonstrada. Sem embargo. isso em nada prejudica o brilhantismo da obra. pois deve- gerados pela estigmatização jurídica e social, bem como todo
mos considerar o espaço-tempo em que ela foi concebida (Itália, 1764/65), bem como a o conjunto de penas processuais (medidas cautelares reais,
importância de seu conjunto. Particularmente, discordamos da premissa que norteia a ' pessoais, etc.) que incidem sobre o acusado, o processo penal
construção de JESUS-MARIA SILVA SANCHEZ de um "direito penal de duas velocida-
des". Existe um grave erro na premissa inicia]. pois o Direito Penal não tem realidade con- deve desenvolver-se sem dilações indevidas, pois esse
creta fora do processo penal e, muito menos. “velocidade". Quem tem dinâmica e movi- "custo" multiplica—se de forma proporcional a sua duração.
mento é o processo. Logo. não existe “velocidade" no Direito Penal e tampouco acelera—
ção. A discussão somente pode situar-se na esfera do processo penal, esse sim. em movi- _ Interesse probatório: é inegável que o tempo que passa é a
mento e passível de aceleração. Dai porque, cai por terra toda a construção de duas, três. ' prova que se esvai, na medida em que os vestígios materiais
ou quantas velocidades pensarem existir no direito penal... Tampouco argumentam que e a propria memória em torno do crime, enquanto aconteci—
se trata w ou se pretendeu falar -— de um sistema puntivo de velocidades ou coisas do
gênero. As palavras têm significados e "dizem algo", por mais elementar que isso possa
parecer, existindo limites semânticos que exigem um minimo de rigor científico. Daí por-
que. deve—se ter cuidado. Quem tem dinâmica e. portanto. aceleração, e o processo. ZGD PASTOR. Daniel. El Plaza Hazonable en el Proceso del Estado de Derecho, p. 103.

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Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

mento histórico, perdem sua eficácia com o passar dos anos. . . Trata—se de um paradoxo temporal insito ao ritual judiciário: um
A atividade probatória como um todo se vê prejudicada pelo juiz julgando no presente (hoje), um homem e seu fato ocorrido num
tempo, pois se trata de juntar os resquícios do passado que passado distante (anteontem), com base na prova colhida num passa—
estão no presente (na verdade, um presente do passado, que
é a memória), e que tendem naturalmente a desaparecer do“ próximo (ontem) e projetando efeitos (pena) para o futuro (amanhã).
Assim como o fato jamais será real, pois histórico, o homem que prati—
quando o presente do presente (intuição direta) passa a pre- éou'o fato não é o mesmo que esta em julgamento e, com certeza, não
sente do futuro?31
sê'r'á'o'mesmo que cumprirá essa pena e seu presente no futuro será um
—- Interesse coletivo: no correto funcionamento das instituições,
inerente a própria estrutura do Estado Democrático de Direito. constante reviver o passado 253
— A confianca na capacidade da Justica: de resolver os assuntos Ó Estado resulta, como sintetiza PEDRAZ PENALVA, 264 no princi—
que a ela são levados, no prazo legalmente considerado como lã.—ii obrigado por esse direito fundamental, na medida em que cria
adequado e razoavel. Para além do limite legal, é fundamental deveres para o juiz (impulso oficial), bem como para o Estado-legisla-
que a administração da justiça, na medida em que invocou dor (promulgação de um sistema normativo material, processual e
para si o monopólio da jurisdição, atue num prazo razoável
também para o jurisdicionado, pois não podemos continuar 263 Pois uma função inerente à pena de prisão e obrigar a um constante reviver o passado
desprezando o eterno problema entre o tempo objetivo (abso— no presente. Devemos recordar ainda que o cárcere (3 um instrumento de caricaturização
luto), em que se estrutura o Direito, e o tempo subjetivo . e potencialização de distintos aspectos da sociedade. cie modo que a dinâmica do tempo
daquele que sofre a incidência ou que necessita do amparo do Ita-remain vai extremar-se no interior da instituição total. levando ao que denomina de
sistema jurídico. "patologias de natureza temporal". Isso significa, em apertada síntese, que o tempo de
-, prisão é tempo de involução, que a prisão gera uma total perda do referencial socral de
', tempo, pois a dinâmica intramuros e completamente desvinculada da vivida eirtramuros,
O núcleo do problema da (de)mora, como bem identificou o ondea sociedade atinge um nivel absurdo de aceleração, em total contraste com a iner—
cia do apenado. Existe uma clara defasagem entre o tempo social e o tempo do cárcere,
Tribunal Supremo da Espanha na STS 4519, 252 está em que, quando se como bem percebeu MOSCDNI ("Tiempo social 31 tiempo de cárcel". In: Secuestros insti—
julga além do prazo razoável, independentemente da causa da demo- ' tuoionaies y derechos humanos: la cárcel ;! el manicomio como laberintos de obediencias
ra, se está julgando um homem completamente distinto daquele que ' tingidas, pp. Eli-103). A prisão possui um. “tempo mumificado pela instituição" em con—
'ª'-traeml com a dinâmica e complexidade do exterior, Assim, essa ruptura de existências e
praticou o delito, em toda complexa rede de relações familiares e ' ' .signííicados, de potencialidades, identidades e perspectivas, causa um sofrimento muito
sociais em que ele está inserido, e, por isso, a pena não cumpre suas . maior do que antigamente. Isso exige um repensar a proporcionaiidade e adequação da
funções de prevenção especifica e retribuição (muito menos da falacio- Pena a partir de outro paradigma temporal, aliado a velocidade do tempo externo e o
sa “reinserção social"). congelamento do tempo interno. Não há dúvida de que o tempo da prisão é muito mais
lento e longo do que há aãgurn tempo. O choque não está apenas no tempo subjetivo do
íapenado o no sofrimento, mas também na inutiiidade da pena diante do contraste com
- .:o tempo social. É por isso que aúrmamcs que a pena de prisão e tempo de involução: o
apenado não sairá do cárcere em condições de acompanhar o tempo social, pois está lite
261 Estamos aqui empregando a noção de tempo de ANDRE COMTE SPONVILLE (O Ser- - .. ralmente à margem (por isso, novamente marginalizado) dessa dinâmica. Eis aqui mais
?bmpo, p. 31), que, invocando Santo Agostinho, admite apenas a existência do presente. - um elemento a evidenciar a falácia ressocializadora. Corn razão MDSCONI (op. cit.) quan-
que pode ser concebido em três dimensões: o presente do passado é a memória; o pre— — do conclui apontando a necessidade de reduzir ao máximo a duração da pena de prisão,
sente do presente é a intuição direta; o presente do futuro é a espera. Na visão do autor, " -=ª para evitar um prejuizo ainda maior. A pena, enquanto resposta a inadequação social, é
"o passado não existe, uma vez que já não é, nem o futuro, já que ainda não e" (ida:-11,13. - obsoleta e igualmente inadequada, pois em conilito com o pluralismo dinâmica da atual
18), de modo que o ser é sempre o presente. -- complexidade social. Para o autor, o tempo da prisão devera pluraiizar—se e diferenciar—
262 “Es indudable y resulta obvio que cuando se juzga mas allá de un plazo razonable (cual- '- se necessariamente, inclusive com várias formas de experiência, que abandona qualquer
quiera que sea ia causa dela demora) se está juzgando a un hombre distinto en sus Cir- resíduo ideológico ou rigidez preconcebida. Ademais, essa defasagem temporal se trans-
cunstancias personales, familiares ;! sociales, por .lo que la pena no cumpie, ni puede fºrma em fonte de somatização e enfermidade. de modo que o uso prolongado da insti-
cumplir con eitactitud las Iunoiones de ejemplaridad y de reinserciún social del culpa- - tuíção penitenciária somente poderá produzir novas patologias sociais (dai, novamente,
bie. que son fines justificantes de la sanción, como com [ina sensibilidad dice ia Sentencia a necessidade de redução do tempo de duração da pena de prisão).
de 26.6.1992". APUD: PEDRAZ PENALVA. Ernesto. "El derecho a un proceso sin diiacio— 254 PEDRAZ PENALVA, Ernesto. "El derecho a un proceso sin dilaciones indebidas". In: La
nes indebidas". IN: La Reforma dela Justicia Penal, p. 387. Reforma dela Justicia Penal. p. 401.

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Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalídade Constitucional)

mesmo orgânico) para uma efetiva administração da justiça, sem Sua existência funda-se na garantia de que los procesos deben ter—
esquecer os meios materiais e pessoais.255 Tampouco pode-se exigir minar 10 mas rapidamente que sea posible en interés de todos, pero ante
“cooperação" do imputado, na medida em que protegido pelo nemo todo em resguardo dela dignidad de] imputado.267 Somente em segun-
tenetur se detegere. Ademais, os arts. 7.5 e 8.1 da CADH não exigem tal do plano, numa dimensão secundária, a celeridade pode ser invocada
participação ativa junto às autoridades judiciais ou policiais. para otimizar os fins sociais ou acusatórios do processo penal, sem que
Na sistemática espanhola, explica GIMENO SENDRA,355 o direito isso, jamais, implique sacrifício do direito de ampla defesa e pleno con—
a um processo sin dilaciones indebidas é autônomo em relação ao direi— traditório para o réu.
to a tutela jurisdicional efetiva, na medida em que consagrados de
forma separada e diversa. Inicialmente, inclinou-se o Tribunal b'.') A Recepção pelo Direito Brasileiro
Constitucional no sentido de que tal direito estaria contido no direito à
tutela. Em termos práticos, pouca relevância tem tal distinção, na Desde as edições anteriores, já tratávamos do direito de ser julga-
medida em que as principais consequências do reconhecimento de sua do em um prazo razoável a partir da garantia fundamental de respeito
violação permanecem iguais: imediata concessão de liberdade se o à dignidade da pessoa humana e na expressa vedação constitucional a
imputado estiver cautelarmente preso e nascimento da pretensão res— tortura, ao tratamento desumano ou degradante (art. Eº, III, da GB).
sarcitória (a questão das soluções [compensatórias, processuais ou san— Ademais, também podia ser extraído da conjugação dos seguintes
cionatórias] será abordada a continuação). direitos fundamentais:
Processualmente, o direito a um processo sem dilações indevidas
insere-se nurn principio mais amplo, o de Celeridade Processual. — expressa vedação à tortura, tratamento desumano ou degra-
Inobstante, uma vez mais evidencia-se o equívoco de uma ”teoria geral dante: art. 59, III
do processo", na medida em que o dever de observância das catego— — direito à tutela efetiva: art. 52, XXXV
rias jurídicas próprias do processo penal impõe uma leitura da questão - direito ao devido processo legal: art. 52, LIV
deforma diversa daquela realizada no processo civil. No processo — direito à ampla defesa e ao contraditório: art. 69, LV
penal, o princípio da celeridade processual deve ser reinterpretado à
luz da epistemologia constitucional de proteção do réu, constituindo, Entendiamos também que esse direito fundamental já estava
portanto, um direito subjetivo processual do imputado. expressamente assegurado nos arts. 7.5 e 8.1 da CADH, 255 recepciona—
dos pelo art. 59, 5 29 da Constituição, onde se lê:
Art. 79 Direito à Liberdade Pessoal
265 Interessante a argumentação que o Estado alemão invocou no caso Bock, STEDH 5. Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem
29/03/1554, conforme aponta PEDRAZ PENALVA (op. cit., p. 402), de que "nenhum
Estado pode garantir a infalibilidade de seus Tribunais, pois o erro judicial cometido por demora, a presença de um juiz ou outra autoridade autorizada
um juiz pode provocar um recurso e, por conseguinte, prolongar o procedimento. Se isso por pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julga—
signilica uma violação do direito a um prazo razoável. se estará reconhecendo o direito a
decisões judiciais impecáveis' (tradução livre). Tal argumento, ainda que sedutor, carece
da dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem
de qualquer fundamento legitimo, pois como bem respondeu o TEDH "um erro imputa- prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser con-
vel a um Tribunal, entranhado de um atraso oriundo da necessidade de ataca—lo, pode. dicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em
quando combinado com outros fatores, ser considerado para a apreciação do caráter juízo. (grifamos) '
razoavel do prazo do art. 6.1 (da CEDH)". Não se trata de buscar decisões judiciais impe-
cáveis. obviamente impossiveis, senão de reconhecer a reaponsabilidade do Estado pelo
erro crasso, ou a excessiva demora por parte do 'Itibunal em remediar um equívoco evi-
dente, quando forem causadores de longa demora. estamos diante e uma dilação indevi- 257 PASTOR. Daniel. El Plaza Razonable en el Proceso del Estado de Derecho, p. 100.
da. O que não se pode admitir é que, além do erro, seja ele qualificado pela demora em 258 O Brasil aderiu a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São Jose da
remediar seus efeitos Costa Rica, de 22. de novembro de 1969) através do Decreto nº 678, de B de novembro
ZEE GIMEND SENDRA, Vicente el: aiii. Derecho Procesal Penai,pp.10í5 e ss. de 1992.

106 10?
Aury Lopes Jr.
Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

Art. 82 Garantias Judiciais


1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas so seja objeto de manifestação jurisdicional num tempo razoável, A
garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal mexe e isolada inobservância de algum prazo,270 por si só, não conduz,
competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormen— automaticamente, a violação do direito fundamental em analise.
te por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada con- Os direitos e garantias previstos na CIADH271 passaram a integrar
tra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de o rol dos direitos fundamentais, a teor do art. Sª, 5 Zº, da Constituição,
natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. sendo, portanto auto aplicáveis (art. 59, 5 lº, da GB). Logo, nenhuma
duvrda paira em torno da existência, no sistema brasileiro, do direito de
A Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, não ser julgado em um prazo razoável. A contrário senso, está proibida a
inovou em nada com a inclusão do inciso LXXVIII no art. Sº da (de)mora jurisdicional, pois violadora desse direito fundamental.
Constituição, apenas seguiu a mesma diretriz protetora da CADH, com Em que pese a expressa consagração constitucional (art. 52,
a seguinte redação: LXXVIII), cumpre enfrentar a discussão sobre a inserção da CADH no
sistema jurídico brasileiro, até porque há uma corrente que propugna
LXXVIII — a todos, no âmbito judicial e administrativo, são pela equivalência das normas dos tratados sobre direitos fundamentais
assegurados & razoável duração do processo e os meios que
garantam a celeridade de sua tramitação.
270 Claro que essa afirmação deve ser relativizada na medida em que as conseqiiências de
Dessarte, o sistema jurídico vigente deve adequar—se a essa nova violação de um prazo isolado possam gerar grave prejuízo para o réu. Interessante deci-
são proferiu o extinto Tribunal de Alçada/RS, na Apelação Crime nº 12.386, Rel. Dr. Mário
exigência, revisando seus procedimentos e o próprio ritual judiciario, Rocha Lopes, cuja ementa é:
buscando equilibrar garantia e aceleração. Ao mesmo tempo em que se — LESÃO CORPORAL E sxsscicro AHBITRÁHIO DAS PH óperas RAZÓES.
Não pode o Promotor, por decidia ou voluntária omissão, deslocar marco inicial de
deve evitar a dilação indevida, não se pode atropelar direitos e garan- prescrição. Verificado o excesso no prazo para oferecimento da denúncia, o marco inicial
tias fundamentais. da prescrição volve a da ta em que estariam vencidos os prazos para formalização e rece—
Além de firmatãrio da CADH, o Brasil é passível de ser demanda— bimento da acusação. Preson'ção da Pretensão Punítiva ante as penas concretizadas. Voto
Vencido. Recurso Provido.
do junto à Corte Americana de Direitos Humanos, que previsivelmente No voto do relator, Dr. Mário Rocha Lopes, encontramos um importante referencial
"importa" muitos dos entendimentos do TEDI—I. Não tardará para que o ' para discussão dessa problemática, quando leciona que "os prazos processuais e o seu
STF comece também a lançar mão desse artificio doutrinário, para ade- - cumprimento constituem garantia das partes para a realização da justiça. (..,) Se os pra-
zos devem ser assim obedecidos, o cumprimento deles, por parte do juiz e do promotor.
quação do sistema jurídico interno a nova diretriz ditada pelo direito . mais se impõe porque, contrariamente ao que ocorre para as partes, quando lhes é assi-
internacional dos direitos humanos. Daí a necessidade de constante " nado algum prazo, com a abertura deste, recebem os autos. (...) Assim, sem que impor-
remissão às decisões do TEDH e da doutrina européia, com muito mais te arbítrio prejudicial ao réu, não pode o promotor deslocar o marco inicial da prescrição
-— a partir do recebimento da denúncia —, oferecendo- -a a destempo, por desídía, ou volun—
tradição no trato da questão. . taria omissão", No caso em questão, o promotor somente ofereceu a denúncia 45 dias
Importa destacar que o tema em questão não se confunde com ' depois do prazo legal. Considerou o reiator que se a denúncia tivesse sido oferecida no
uma eventual "constitucionalização de prazos", senão, como ensina a : prazo de 15 dias tixado pelo art. 46 do CPB e o juiz recebido no prazo legal, teria ocorri—
STC 5/85,259 que o constitucionalizado é o direito fundamental como do a presunção entre a data do recebimento da denúncia e a data da sentença. Logo,
deslocou o marco inicial para o momento correto (em que deveria ter sido oferecida a
um todo, no sentido de que uma pessoa tem direito a que seu proces- recebida a acusação) e reconheceu a prescrição. O Tribunal, constatando que o descum—
Drimento de um prazo isolado impediria que se operasse a prescrição (com inequívoco
DrEjuízo para o réu), reavalíou o tempo do processo como um todo (mas a partir da viola-
269 STC 5/55: "El art. 24.2 no ha constitucionalizado e] derecho a [os plazos; ha constitucio— Çào do prazo fixado para o recebimento da denuncia), para, de certa forma, reconhecer
naiizado. como un derecho fundamenta] con todo lo que ello significa, el derecho de toda que o excesso de prazo no oferecimento/recebimento da acusação constituiu uma dila—
ção indevida.
persona a que eu causa sea resuclta dentro de un tiempo razonable." APUD: PEDRAZ
PENALVA, Ernesto. "El derecho a un proceso sin dilaciones indebidas". IN: La Reforma 271 O Brasil aderiu à Convencão Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da
de la Justicia Pona], p. 392. - Costa Rica, de 22 de novembro de 1969) através do Decreto nº 678, de E de novembro de
1992.

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Aury Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Enstrumentalidade Constitucional)

com as leis ordinárias, negando—lhes hierarquia constitucional (com a cionais. Frise-se: todos os tratados internacionais de direitos humanos
qual não concordamos, por óbvio). Essa discussão voltou apauta com são materialmente constitucionais, por força do % 2º do art. Eº. Para além
o novo & Bº do art. Eº da Constituição, também inserido pela Emenda de “serem materialmente constitucionais, poderão, a partir do 5 39 do
Constitucional nº 45, onde se lê: mesmo dispositivo, acrescer a qualidade de formalmente constitucio-
nais, equiparando-se às emendas à Constituição, no âmbito formal“.274
“5 39- Os tratados e convenções internacionais sobre direitos ' Feito esse esclarecimento, com BADARÓ concluímos que a CADH.
humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso diante do disposto nos %% 29 e Bº do art. Eº da Constituição, tem natu-
Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos reza materialmente constitucional, embora formalmente suas normas
membros, serão egyfvalentes às emendas constitucionais". não“ sejam constitucionais. por não terem sido aprovadas pelo quorum
previsto para as emendas constitucionais. De qualquer forma, do ponto
Diante dessa nova redação, questiona GUSTAVO HENRIQUE BA- de vista do conflito de normas, e de se destacar que toda e qualquer
DARÓ:272 norma infraconstitucional que está em confronto com a CADH será dos-
tituída de eficácia, posto que inconstitucional.
a) o novo 5 Sº tera aplicação apenas em relação aos tratados Aplicando tais conceitos ao direito ao processo no prazo razoável,
aprovados depois da Emenda Constitucional nº 45, de 8 de e'irplica BADARÓ, é de se concluir que, antes da Emenda Constitucio-
dezembro de 2004, ou disciplinará também os tratados apro— nal nº 45/04, o direito ao processo em um prazo razoável tinha nature—
vados anteriormente? za materialmente constitucional, por força do 5 29, do art. 52, da Magna
13) caso a Emenda Constitucional tenha aplicação retroativa, os Carta, que “constitucionalizava” o direito previsto no art. 8.1, da
tratados já aprovados poderiam ser submetidos à nova vota— CADH. O mesmo poderia ser dito em relação ao direito de o acusado
ção, visando a obter o quorum que lhe desse equivalência preso cautelarmente ser desencarcerado se o processo superasse a
constitucional? duração razoável (CADH, art. 7.5). Após a Emenda Constitucional nº
45, que acrescentou o 5 39— e o inc. LEÇVIII ao art. 59, o panorama se
Há que se buscar a resposta nas lições de FLÁVIA PIOVESAN,273 alterou. O direito ao processo no prazo razoável passou a ser uma
no sentido de que "há que se afastar o equivocado entendimento de garantia. constitucional explicita (art. 52, inc. LXXVIII). Já o direito de o
que, em face do 5 Sº do art. 5ª. todos os tratados de direitos humanos já acusado ser posto em liberdade, se estiver preso e o processo durar
ratificados seriam recepcionados como lei federal, pois não teriam obti— além do prazo razoável, passou a ser uma garantia materialmente
do o quórum qualiiicado de três quintos demandado pelo aludido pará— constitucional (CADI—I, art. 7.5), embora formalmente não seja equipa-
grafo. Reitere-se que, por força do art. 5ª, & 29, todos os tratados de direi— rado a uma emenda constitucional (CR, art. Sº, % Sº).
tos humanos, independentemente do quórum de sua aprovação, são : ' Com a nova redação do art. 59, estão evidenciadas a supremacia
materialmente constitucionais. A leitura sistemática dos dispositivos dos tratados e a prevalência dos direitos humanos como valor fundan-
aponta que o quórum qualificado está tão—somente a reforçar tal nature— te do Estado Democrático de Direito, estejam eles previstos, formal—
za constitucional, ao adicionar um lastro formalmente constitucional aos mente, na Constituição ou em tratados internacionais de direitos
tratados ratificados". E conclui: "Vale dizer, com o advento do 5 Sº do humanos. De qualquer forma, o direito ao julgamento no prazo razoa-
art. 5ª, surgem duas categorias de tratados de direitos humanos: a) os Vºip que ja era uma garantia constitucional implícita, decorrente do
materialmente constitucionais; e b) os material e formalmente constitu— devido processo legal, passou a estar expressamente assegurado pelo
novo inc. LEVEL-275

272 BADAHÓ, Gustavo E-Ienrique e LOPES Jr., Aury. "Prazo Razoável no Processo Penal".
Aguardando publicação pela Editora Lumen Juris. 274 PIOVESAN, Flávia. '“I'ratados internacionais p. 9.
273 PIOVESAN. Flávia. “Tratados internacionais de proteção dos direitos humanos e a Cons- 275 RADARES). Gustavo Henrique. "Prazo Razoável no Processo Penal". Aguardando publica-
tituição Federal de 1988". Boletim IBCCHIM. São Paulo, nº 153, ago. 2005. p. 9. ção pela Editora Lumen Juris.
Aury Lopes Jr. introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidacle Constitucional)

o“) A Problemática Definição dos Critérios: a Doutrina do N ão—Prazo e) as dificuldades para a investigação do caso (complexidade dos
fatos, quantidade de testemunhas e réus, dificuldades probató-
Tanto a Convenção Americana de Direitos Humanos como a rias, etc.);
Constituição não fixaram prazos máximos para a duração dos proces— f) a maneira como a investigação foi condumda;
sos e tampouco delegararn para que lei ordinária regulamentasse a g) a conduta das autoridades judiciais.
matéria.
Adotou o sistema brasileiro a chamada "doutrina do não—prazo", . 'Itatava—se de critérios que deveriam ser apreciados em conjunto,
persistindo numa sistemática ultrapassada e que a jurisprudência do com valor e importância relativas. admitindo—se, inclusive. que um
Tribunal Europeu de Direitos Humanos vem há décadas debatendo—se. deles fosse decisivo na aferição do excesso de prazo.
Dessa forma, a indeterminação conceitual do art. 59, LXXVIII, da , Mas a doutrina dos sete criterios não restou expressamente aco-
Constituição, nos conduzirá pelo mesmo (tortuoso) caminho da juris— lhida pelo TEDH como referencial decisivo, mas tampouco foi comple-
prudência do TEDH e da CADH, sendo importante explicar essa evolu-
tamente descartada, tendo sido utilizada pela Comissão em diversos
casos posteriores e servido de inspiração para um referencial mais
ção para melhor compreensão da questão. . ' .
enxuto: a teoria dos três critérios básicos.
Foi no caso "il'llernhoff'1273 (STEDH de 27/6/ 1968) que se deu o pri-
meiro passo na direção da definição de certos critérios para a valoração a) a complexidade do caso;
da “duração indevida", atraves do que se convencionou chamar de b) a atividade processual do interessado (imputado);
"doutrina dos sete critérios". Para valorar a situação, a Comissão suge— c) a conduta das autoridades judiciárias.
riu que a razoabilidade da prisão cautelar (e consequente dilação inde—
vida do processo) fosse aferida considerando-se?” , Esses três critérios têm sido sistematicamente invocados. tanto

nação; .
pelo TEDH, como também pela Corte Americana de Direitos Humanos.
a) a duração da prisão cautelar; Ainda que mais delimitados, não são menos discricionários.
b) a duração da prisão cautelar em relação à natureza do delito, a Como tratar do direito de ser julgado num "prazo" razoável se o
pena fixada e a provável pena a ser aplicada em caso de conde— ;I'EDH (e também a Corte Americana de Direitos Humanos) jamais fixou
um limite temporal? Que prazo é esse que nunca foi quantificado? Se não
c) os efeitos pessoais que o imputado sofreu, tanto de ordem mate— há um limite temporal claro (ainda que admita certa flexibilidade diante
rial como moral ou outros; ' das especificidades), o critério para definir se a dilação é “indevida" ou
d)a influência da conduta do imputado em relação à demora do esta justificada é totalmente discricionário, com um amplo e impróprio
processo; ÉàPaço para a (des)valoração, sem qualquer possibilidade de refutação.
- = Nessa indefinição e vagueza de conceitos foi consolidada a doutri-
na do "não-prazo",273 pois deixa amplo espaço discricionário para ava—
276 Cf. PASTOR. Daniel. El Piezo Razonable en el Proceso del Estado de Derecho, pp. 111 e ss. liação segundo as circunstâncias do caso e o “sentir" do julgador.
277 a) La duracíón de 1a detención e si misma. .
la) La duración dela prisión preventiva con relación ala naturaleza del delito, a la pena
seãalada v a la pena que debe esperarse eo caso de condena.
o) Los efectos personales sobre el detenido. tanto de orden material como moral 1: 273 Severarnente criticada também por DANIEL PASTOR, entre outras, na seguinte passa»
otros. gem (op. cit., p. 207): "Así. quedó sentado que el plazo no es un plaza. tanto por no ser
d) La conducta del imputado en cuanto haya podido influir en el retraso del proceso. necesario su determinación legal, cuanto porque eu contenido no debe ser expresado en
e) Las dificultades para la investigación del caso (complejidad de los hechos, cantidad las unidades de tiempo con las que normalmente se EXPIESBH los plazos (días. semanas.
de testigos e inculpados, dificultades probatorias, etc.). meses anos). Por 10 damas. cualquier plazo legal establecido. como 10 entiencle el dere-
[) La manera en que la investigación ha sido conducida. cho procesal penal. en dichos intervalos temporales, no debe ser atenido y puede ser
9) La conducta de las autoridadesjudiciales. Cielado de lado. La razonahilidad es cuestión de los jueces del caso. sin sujeción a pauta

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Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

Para falar-se em dilação "indevida", é necessário que o ordena— Por dilação entende—se a (de)mora, o adiamento, a postergação em
mento juridico interno defina limites ordinários para os processos, um relacao aos prazos e termos (inicial-final) previamente estabelecidos
referencial do que seja a “dilação devida", ou o "estandar medio admi- em lei, sempre recordando o dever de irnpulso(oficial) atribuído ao
síble para proscribír dialaciones mas allá de él".279 órgão jurisdicional (o que não se confunde com poderes instrutórios-
Uma vez definido um parâmetro, a discussão desviará seu rumo inquisitorios). Incumbe às partes o interesse de impulsionar o feito
para outras questões, como por exemplo: se o limite abstratamente (enquanto carga no sentido empregado por James Goldschmidt), e um
fixado e substancialmente constitucional (à luz dos diversos princípios dever jurisdicional em relação ao juiz.
em torno da qual gira a questão); em que situações a superação desse 'Já o adjetivo “indevida", que acompanha o substantivo "dilação",
limite podera ser considerada como "justificada";280 possibilidade de constitui o ponto nevrálgico da questão, pois a simples dilação não
reconhecer—se como indevida uma dilação, ainda que não se tenha constitui o problema em si, eis que pode estar legitimada. Para ser
alcançado o prazo fixado, mas as circunstâncias específicas do caso "indevida", deve-se buscar o referencial "devida", enquanto marco de
indicarem uma conduta danosa e negligente por parte dos órgãos que legitimação, verdadeiro divisor de águas (para isso é imprescindível
integram a administração da justiça, etc. um- limite normativo, conforme tratado a continuação).
Fundamental, ainda, é a leitura da questão à luz do principio da GIIVIENO SENDRA283 aponta que a dilação indevida corresponde
proporcionalidade,281 critério inafastável na ponderação dos bens jurí- a mera inatividade. dolosa, negligente ou fortuita do órgão jurisdicio—
dicos em questão. nal“. Não constitui causa de justificação a sobrecarga de trabalho do
A questão pode ser ainda abordada desde uma interpretação gra— órgão jurisdicional, pois é inadmissível transformar em "devido" o
matical, como o faz GIMENO SENDRA,252 onde deverá haver, em pri— “indevido" funcionamento da Justiça. Como afirma o autor, “lo que no
meiro lugar, uma "dilação"r e, em segundo lugar, que essa dilação seja puede suceder es que lo normal sea el funcionamiento anormal dela jus-
"indevida". .tícia, pues Jos Estados han de procurar los medios necesarios a sus trí-
bunales' a fin de que los procesos transcurran en un plazo razonable
(SSTEDI—I Bucholz cit.. Eckle, S. 15 julio 1982; Zimmerman—Steiner, S. 13
legal alguna, sino en razón de la consideracion de unos criterios ahiertos, imprecisos, julio ”1983,- DCE 7984/77, 11 julio; SSTC 223/1988; 37/ 1991)". '
vagos e indeterminados que no hacen mas que esconder, caso a caso, 1a predileccion ”Em síntese, o art. Sº, LXXVIII, da Constituição — incluido pela
(arbitrariedad) de quien decide, respecto de la razonabilidad o no de 1a duración de una
actividad procesal (cautelar o la totalidad del proceso mismo )." “Emenda Constitucional nº 45 —— adotou a doutrina do não—prazo, fazen—
279 PEDRAZ PENALVA, Ernesto. "El derecho a un proceso sin dilaciones indebidas". In: La “do como que exista uma indefinição de critérios e conceitos. Nessa
Reforma dela Justicia Penal, p. 395.
280 Obviamente que o “acúmulo de serviço" ou argumento similar não pode ser admitido, vagueza, cremos que quatro deverão ser os referenciais adotados
como não o é pelo 'l'riburial Europeu de Direitos Humanos, na medida em que incumbe pelos Tribunais brasileiros, a exemplo do que já acontece nos TEDH a
ao Estado organizar-se de modo a fazer frente à demanda de tutela e jamais legitimar o ria CADH:
"anormaã" funcionamento do Poder Judiciário (quase que um "beneficiar-se de sua pró-
pria torpcza"). Por outro lado, é perfeitamente admissível o argumento de que, se a
demora ocorreu por atos de natureza manifestamente procrastinatoria por parte do ' — complexidade do caso;
imputado, não há que se falar em dilação indevida, senão em atraso gerado e imputável — atividade processual do interessado (imputado), que obvia—
à parte. Em última anáíise. como bem definiu o TEDH no Caso Ciricosta e Viola versus
Itália, 4/12/1995, "solo las dilaciones imputables al Estado puedem llevar a concluir la ' mente não poderá se beneficiar de sua propria demora;
inobservância de] plaza razonable". —' a conduta das autoridades judiciárias como um todo (polícia,
281 Com base na proporcionalidade, já decidiram o TEDH e a Corte Americana que uma pri— Ministério Público, juizes, servidores, etc.);
são cautelar supere o prazo fixado no ordenamento jurídico interno e, ainda assim. este»
ja justificada (a partir da complexidade. da conduta do imputado, da proporcionalidade. — principio da proporcionalidade.
etc.), No "Caso Firmem'cli versus Argentina", a Corte Americana de Direitos Humanos
entendeu que uma prisão cautelar, que havia durado mais de 4 anos, estava justificada.
ainda que superasse o prazo fixado pelo ordenamento interno (?. anos).
282 GIMENG SENDRA, Vicente et al. Derecho Proceso! Pona], pp. 108 e seguintes.
_.'__ '
283 GIMENO SENDRA, Vicente et all. Derecho Process] Penal, 13. 109.

114
Aury Lopes Jr.
Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

Ainda não é o modelo mais adequado, mas, enquanto não se tem venção do Estado, deve estar metajudicíalmente regulado, com preci-
claros limites temporais por parte da legislação interna, já representa são e detalhe.
uma grande evolução.
;. - Assim como o Direito Penal está estritamente limitado pelo princi-
pio da legalidade e o procedimento pelas diversas normas que o regu—
d") Nulla Coactio Sine Lega: a (Urgente) Necessidade de lam, também a duração dos processos deve ser objeto de regulamenta-
Estabelecer Limites Normativos
ção. normativa clara e bem definida.
, : Na falta de bom senso por parte dos responsáveis em reconduzir
O ideal seria abandonar a noção newtoniana de tempo absoluto, a o tempo ao sujeito, devemos partir para uma definição normativaªªª do
qual o direito ainda está vinculado, para reconduzir o tempo ao sujeito, tempo máximo de duração do processo, a exemplo da pena de prisão.
por meio da concepção de tempo subjetivo. A ponderação deveria par- O. Principio da Legalidade, muito bem explicado por CLAUDIO
tir do tempo subjetivo, colocando esse poder de valoração nas mãos- BRANDÃO,257 surge para romper com esse terror e dar, como conse-
dos tribunais.
qiiência, uma outra feição ao Direito Penal. A partir dele o Direito Penal
Mas, se, por um lado, não seria adequado cientificamente definir se prestará a proteger o homem, não se coadunando com aquela realida-
rigidamente um tempo universal e absoluto para o desenvolvimento do de pretérita.
processo penal (recusa einsteniana), por outro a questão não pode ficar Ademais, é importante destacar. que, se o legislador interno fixar
inteiramente nas mãos dos juízes e tribunais, pois a experiência com a limites inadequados ou abusivos, cumprirá a Corte Americana de
(ampla) discricionariedade judicial contida na doutrina do não-prazo.
não se mostrou positiva. Direitos Humanos apontar a violação da CADH por parte da legislação
interna, reconduzindo-a a limites razoáveis. Então, não é qualquer limi—
A principal crítica em relação às decisões do TEDI-I (e também da

visto na CADl-I. "


te nbrmativo que devemos aceitar, mas somente aquele que estiver em
Corte Americana de Direitos Humanos) sobre a matéria está calcada no
conformidade com o direito de ser julgado no prazo razoável assim pre—
inadequado exercício da discricionariedade jurisdicional, com os tribu—
nais lançando mão de um decisionismo arbitrário e sem critérios razoá-
=S "A partir da definição de limites temporais máximos de duração

próximo tópico). ,
veis. Sem falar no majoritário desprezo dos tribunais brasileiros em
relação à matéria (com poucas exceções meritórias, como se verá no dos procedimentos (definidos a partir de suas especificidades), abre-se
a'possibilidade de exigir a pn'ori a observância do direito fundamental,
PASTORBEM critica o entendimento dominante do não—prazoªª5 enão apenas ter de contentar-se com uma discussão posterior,255 cuja
como o adotado pelo. art. 59, LXXVIII, da Constituição brasileira, pois
se, inteligentemente, não confiamos nos juízes a ponto de delegar-lhes 286 Não somos adeptos do dogma da completude lógica e, ainda que a lei defina limites,
o poder de determinar o conteúdo das condutas puníveis, nem o tipo - -:, atendendo a certos critérios, e elementar que o reconduzir o tempo ao sujeito exige uma
de pena a aplicar, ou sua duração sem limites mínimos e máximos, nem significativa carga de sentira por parte do julgador. Mas essa operação deve realizar-se
as regras de natureza procedimental, não há motivo algum para confiar a partir de certos parâmetros. para não cair numa tal abertura conceitual que conduza a
,. ineficácia do direito fundamental.
a eles a determinação do prazo máximo razoável de duração do proces— 2.87 BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao Direito Penal, 13. 10.
so penal, na medida em que o processo penal em si mesmo constitui 233 ,,PEDRAZ PENALVA ("El derecho a un proceso sin dilaoioues indebidas". In: La Reforma
.. de la Justicia Penal, 13. 392) aponta que um dos requisitos considerados indispensáveis
um exercicio de poder estatal, e, igual a pena, às buscas domiciliares, Pºla 'Il'ibunal Constitucional da Espanha para o reconhecimento da "diiação indevida" e
a interceptação das comunicações e todas as demais formas de inter- - .- que a parte manifeste seu protesto & postule a resolução do feito. antes de sua conclu—
são. 'íal entendimento visa permitir que o proprio julgador sans o problema, remedíando
. adilação corn a prática da atividade devida. Tal exigência é corretamente criticada pelo
284 PASTOR, Daniel. El Piezo Razonable en ei Proceso del Estado de Derecho, p. 60. autor (53. 385), na medida em que isso "cria um outro prazo também razoável para sanar
285 'Itata—se da doutrina do não—prazo, explicada no tópico anterior, no sentido de que com- . & dilação", gerando, ao Enel, uma soma cronológica irracional e muito além do tempo
pete aos juízes aferir, em cada caso e expost, se houve violação da garantia em questão. final aceitável. De qualquer forma, a decisão prolatada tardiamente não repara a dilação
já ocorrida, pois não se opera qualquer tipo de "saneamento", como muito bem enten-

'l'lE
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

consequência será o absurdo de criar um outro prazo, também razoá— 11). A liberdade, em tese, poderia ser restabelecida, permitindo—se a
vel, para sanar a dilação. continuação do processo.
No Brasil, a situação e gravíssima. Não existe limite algum para Até mesmo algumas bem intencionadas tentativas de conside-
duração do processo penal (não se confunda isso com prescriçãolªªº e, rar isoladamente os prazos procedimentais para fins de verificação
o que é mais grave, sequer existe limite de duração das prisões caute— do excesso, foram feitas. Assim, violado o prazo fixado para realiza—
lares, especialmente a prisão preventiva, mais abrangente de todas. cão de algum dos atos que compõem o procedimento (por ex., supe—
A questão da dilação indevida de processo penal nasce tendo rado o prazo de 5 dias para oferecimento da denúncia; 20 dias para
como núcleo a excessiva duração da prisão preventiva e assim perma— realização da instrução, etc.) haveria constrangimento ilegal, com a
nece até hoje, na imensa maioria dos casos em discussão (inclusive no consequente concessão da ordem de soltura (em sede de habeas
TEDI-I). No Brasil a história não é diferente. Trava—se uma histórica dis- corpus). Mas esse tipo de construção, excessivamente benevolente
cussão em torno dos já lendários 81 dias, construídos a partir da soma (ou perniciosamente garantista....), obviamente não caiu no agrado
dos diversos prazos que compõem o procedimento ordinário quando o do senso comum.
imputado encontra—se submetido à prisão preventiva. ' Mas, concretamente, não existe nada em termos de limite tem-
No processo penal brasileiro campeia a absoluta indeterminação poral das prisões cautelares. Infelizmente, a cada dia, alastra-se mais
acerca da duração da prisão cautelar, pois em momento algum foi dis- no processo penal uma praga cívilista, chamada de relativismo das
ciplinada essa questão, Excetuando-se a prisão temporária, cujo prazo garantias processuais. Isso vai da relativização da teoria das nulida-
máximo de duração está previsto em lei,?90 as demais prisões cautela— des,232 passando pelas garantias processuais e fulminando até
res (preventiva, decorrente da pronúncia ou da sentença penal conde—. mesmo direitos fundamentais. O mais interessante é a alquimia de
natória recorrivel)3'ª1 são absolutamente indeterminadas. ”relativizar" o que deveria ser radicalizado no viés da intangibilidade,
Diante da imensa lacuna legislativa, a jurisprudência tentou, sem e manter a lógica newtoniana naquilo que, sim, deveria ser relativo
grande sucesso, construir limites globais, a partir da soma dos prazos (tempo, verdades, etc.).
que compõem o procedimento aplicável ao caso. Assim, resumidamen— ' Inexiste um referencial de duração temporal máxima e, cada vez
te, se superados os tais 81 dias o imputado continuasse preso, e o pro- mais, os Tribunais avalizarn & (de)mora judicial a partir dos mais frágeis
cedimento não estivesse concluido (leia-se: sentença de lº grau), have— argumentos, do estilo: complexidade (aprioristica?) do fato, gravidade
ria “ excesso de prazo", remediável pela via do habeas corpus (art. 648, (in abstrato?), clamor público (ou seria opinião publicada?), ou a sim-
ples rotulação de ”crime hediondo", como se essa infeliz definição legal
se bastasse, autolegitimando qualquer ato repressivo.
deu o Tribunal Constitucional da Espanha (STC 10/91: "Ninguna influencia tiene ala ora ' É óbvio que o legislador deve, sim, estabelecer de forma clara os
de ponderar la pervivencia de la lesiõn constitucional el que la inactividad judicial haya limites temporais das prisões cautelares (e do processo penal, como
cesado después de interpuesto e] recurso de amparo").
259 No Brasil, os prazos previstos para a ocorrência da prescrição da pretensão punitiva
(pela pena aplicada ou in abstrato) são inadequados para o objeto em questão, pois
excessivos (principalmente pela pena em abstrato). Ainda que se cogita de prescrição 292 Os tribunais chegam ao absurdo de reconhecer que uma nulidade e absoluta e, "Civilis-
pela pena aplicada, tal prazo. em regra. está muito além do que seria uma duração rasca—- ticamente", exigir a demonstração de prejuízo (i!) e inatingimento do fim (!!) para sua
vel do processo penal. Devemos considerar ainda, diante da imensa resistência dos trí- decretação. Isso quando não se invoca o pomposo (mas inadequado ao processo penal)
hunais em reconhecer a prescrição antecipada, que o imputado terá de suportar toda a Dªs nullítê sens gn'ef. desprezando-se que a violação é de norma constitucional! Acerca
longa duração do processo, para só após o trânsito em julgado buscar o reconhecimento do principio do prejuízo, inserto no art. 563 do CPP, e precisa a lição de Jacinto Coutinho
da prescrição pela pena concretizada. (“Introdução aos Princípios Gerais do Processo Penal Brasileiro". In: Revista de Estudos
ZEICI A famigerada prisão (para tortura) temporária está prevista na Lei T.BGU/BB, e determina Criminais, Porto Alegre, Nota Dez Editora, nº 01, 2001, p. 44), de que "prejuizo, em sendo
que a segregação durará até 5 dias, prorrogáveis por igual período. Em se tratando do um conceito indeterminado (como tantos outros dos quais está prenhe a nossa legisla-
crime hediondo ou equiparado, a prisão temporária poderá durar até 30 dias. prorrogá- ção processual penal), vai encontrar seu referencial semântico naquilo que entender o
veis por igual período, nos termos da Lei 8.072. julgador; & ai não e dificil perceber, manuseando as compilações de julgados. que não
291 Sucessivamente disciplinadas nos arts. 311 a 315, 408 e 549, todos do CPP. raro expressam decisões teratologicas".
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

um todo), a partir dos quais a segregação é'ilegal, bem como deveria , No mesmo sentido, DELMANTO JUNIOR294 é categórico ao afir-
consagrar expressamente um "dever de revisar periodicamente" a mar a necessidade de a lei estipular prazos claros e Objetivos para a pri-
medida adotadaªºi3 são cautelar.
Cumpre esclarecer que não basta fixar limites de duração da pri-
são cautelar. Sempre destacamos a existência de penas processuais,
293 'I'ratamos dessa questão em diversas oportunidades, mas especialmente no artigo paraaiém da prisão cautelar (punição processual mais forte, mas não
"Fundamento, Requisito e Princípios Gerais das Prisões Cautelares", publicado com
algumas variações nas Revistas AJURIS, nº 72, Revista dos Tribunais, nº 748 e Revista única), e que resultam de todo o conjunto de coações que se realizam
de Processo, no 89. Lá, explicamos que a duração da prisão provisória e pautada pela no curso do processo penal. Essa é uma questão inegável e inerente ao
necessidade e manutenção dos pressupostos que a originaram. Na Espanha, o Tribunal processo penal.
Constitucional — STC 178/1985 — definiu que a duração deve ser tão-somente a que se
considere indispensável para conseguir a finalidade pela qual foi decretada. No mesmo Estabelecida existência de uma coação estatal, devemos recordar
sentido também ja' tem decidido o Tribunal Europeu de Direitos Humanos nos casos qee ela deve estar precisamente estabelecida em lei. É a garantia bási-
Weinhoff (junho/68), Neumeister (junho/BE), Bezicheri (out/85) entre outros. Para evitar ca. de nulla coactio sine legs, principio basilar de um Estado
abusos, o art. 17.4. da Constituição da Espanha dispõe que por lei irá se determinar o
prazo máximo de duração da prisão provisória. D regramento do dispositivo constitucio- Democrático de Direito, que incorpora a necessidade de que a coação
nal encontra-se no art. 504 da LECrim, que disciplina o prazo máximo de duração dessa seja expressamente prevista em lei, previamente e com contornos cla—
medida cautelar, levando-se em consideração a pena abstratamente cominada no tipo ramente definidos. Nisso esta compreendido, obviamente, o aspecto
penal incriminador. Assim, a prisão cautelar podera durar. no máximo até 3 meses, quan-
do a pena cominada for de 7 a 15 fins de semana; até 1 ano, quando a pena cominada for temporal.
de 5 meses a 3 anos; até 3 anos, quando a pena cominada for superior a 3 anos. É possí- Como ensina CLAUDIO BRANDÃO,295 se é através da Legalidade
vel a prorrogação em casos expressos em lei. “que se limita a intervenção penal, é porque ela tem a função de garantir
Na Alemanha — StPD & 121 — a regra geral e a de que a prisão provisória não possa
durar mais de 6 meses, salvo quando a especial dificuldade, a extensão da investigação 'oinciividuo do próprio Direito Penal (e processual), delimitando o âmbi-
ou outro motivo importante não permita prolatar a sentença e justifique a manutenção to de atuação do Estado na inflição da pena. Neste espeque, podemos
da prisão. Em caso de prorrogação, se poderá encomendar ao Tribunal Superior do fazer a ilaçáo de que e a Legalidade que torna o homem a figura central
“Land" que faça um exame sobre a necessidade de manutenção da prisão no máximo a
cada 3 meses (dever de revisar periodicamente). de todo o Ordenamento Penal, valorizando-o em sua dignidade.
Em Eoªugal o juiz tem a obrigação de revisar a cada 3 meses a medida cautelar ' ' Então, as pessoas têm o direito de saber, de antemão e com preci—
decretada, veriãcando se ainda permanecem os motivos e pressupostos que a autoriza- são, qual é o tempo máximo que poderá durar um processo concreto.
ram —— art. 213.1. Além disso, se passados & meses da prisão ainda não tiver sido inicia-
do o processo, com efetiva acusação, o imputado deverá ser colocado em liberdade, salvo Essa afirmação com certeza causará espanto e até um profundo recha-
situação de excepcional complexidade. Também como regra geral, o CPP português ço por algum setor atrelado ainda ao paleopositivismo e, principalmen-
prevê que se passados IB meses sem sentença ou 2 anos sem trânsito em julgado, deve te, cegos pelo autismo juridico. Basta um minimo de capacidade de
o acusado ser posto em liberdade, salvo se a gravidade do delito ou sua complexidade
justificar a ampliação do prazo. abstração, para ver que isso está presente — o tempo todo — no Direito
Na Itália o CPP utiliza o critério de quantidade da pena em abstrato para determi- e fora dele. É inerente às regras do jogo. Por que não se pode saber, pre-
nar o tempo máximo de duração da prisão cautelar e para isso existe uma grande varie-
dade de prazos, conforme a gravidade do delito e a fase em que se encontra o processo.
É importante ressalvar que o legislador italiano determinou que os prazos devem ser
considerados independentes e autônomos para cada fase do processo. meses. Em Mgª, art. 213,1 do CPP, também a cada 3 meses, no mai-timo, deverá o juiz
É óbvio que a duração fixada pode ser considerada, dependendo do caso, excessi- revisar a medida e decidir sobre a necessidade de sua manutenção.
va, mas ao menos existe uma referencia] normativo para orientar a questão e, até mesmo, Esse é um exemplo que deveria ser seguido no Brasil. para evitar a triste reali-
definir o objeto da discussão. O que é inadmissível e a inexistência total de limites nor- dade daqueles juízes que simplesmente "esquecem" do réu preso, recordando o supli-
mativos, como sucede no sistema brasileiro. cio narrado por BECCARIA (De los delitos ;; de las penas, p. 61): "rlCuál contraste más
Outra questão muito relevante é que, em observância ã provisionalidade da prisão cruel que la indolencia de un juez y las angustias de un rec? dLas comodidades yplace-
cautelar (são situacionais), existe em alguns países europeus um M a res de um magistrado insensible, de una parte, y, de otra las lágrimas y la sociedad de
medida adotada apos determinado lapso de tempo. Na itália, art. 254.3 do Codice de un encarcelacio?"
Procedure Penale, o juiz deverá revisar a decisão que determinou a prisão em no max-ci- 294 DELNLAN'I'O JUNIOR, Roberto. A:;- Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de
me 5 dias desde que se iniciou seu cumprimento. Na Alem—emile, StPO 5 122, o exame Duração, pp. 235 e seguintes.
sobre se a prisão deve ser mantida no não deverá ser revisada no máximo a cada 3 295 BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao Direito Penal, p 39.

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Aury Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da lnstrumentalidade Constitucional)

viamente, quanto tempo poderá durar, no máximo, um processo? investigação preliminar), que, uma vez superado, impedirá o futuro
Porque a arrogância jurídica não quer esse limite, não quer reconhecer exercício da ação penal pela perda do poder de proceder contra alguém
esse direito do cidadão e não quer enfrentar esse problema. (ius ut procedatur).
Além disso, dar ao réu e direito de saber previamente o prazo Por fim, cumpre destacar a resolução ficta, ínsculpida nos arts. 141
máximo de duração do processo ou de uma prisão cautelar e uma ques— 9142399 do CPP paraguaio, atraves da qual, em síntese, se um recurso
tão de reconhecimento de uma dimensão democrática da qual não contraiuma prisão cautelar não for julgado no prazo fixado no Código,
podemos abrir mão. o, imputado poderá exigir que o despacho seja proferido em 24h. Caso
O "direito à jurisdição", como bem recorda o Tribunal Constitu— não o seja, se entenderá que lhe foi concedida a liberdade.
cional espanhol,295 no puede entederse como algo desligado de] tiempo ' Igual sistemática resolutiva opera—se quando a Corte Suprema não
en que debe prestarse por los órganos del Poder Judicial, sino que ha de julgar um recurso interposto no prazo devido. Se o recorrente for o im—
ser comprendido en el sentido de que se otorgue por estos dentro de los putado, uma vez superado o prazo máximo previsto para tramitação do
razonables términos temporales en que las personas lo reclaman en el recurso, sem que a Corte tenha proferido uma decisão, entender—se-á
ejercicio de sus derechos e intereses legítimos. que o pedido foi provido. Quando o postulado for desfavorável ao impu-
Um bom exemplo de limite normativo interno encontramos no tado (recurso interposto pelo acusador), superado o prazo sem julga—
Código de Processo Penal do Paraguai (Ley 1286/1998), que, em sinto— mento, o recurso será automaticamente rechaçado. .
nia com a CADH, estabelece importantes instrumentos de controle ' O Código de Processo Penal paraguaio é, sem dúvida, um exemplo
para evitar a dilação indevida. ar”-ser seguido, pois em harmonia com as diretrizes da CADI-l. Trata—se,
O prazo máximo de duracão do processo penal será de 3 anos,297 corno-D'Brasíl, de um pais sul-americano, com graves deficiências na
após o qual o juiz o declarará extinto (adoção de uma solução proces- Administração da Justiça, especialmente na Justiça Penal, mas com
sual extintiva). Também fixa um limite para a fase pré—processualªºª (a um'irnportante diferencial: ao inves de reformas pontuais, inconsisten—
tes e eivadas de dicotomías (uma verdadeira colcha de retalhos), muito
296 STC 24/81. APCD: PEDHAZ PENALVA, Ernesto. "El derecho a un proceso sin dilaciones
indehidas". In: La Reforma de la Justicia Penal, p. 404.
297 Artículo 135. DURACIÓN MÍDCIMA. 'Ibda persona tendrá derecho a una resolución judi- .?º- el juez declarará extinguido 1a acción penal, sin peúuicio de la responsabilidad per-
cial definitiva en un plaza razonable. Por lo tanto, todo procedimiento tendrá una dura— “ soma] de] Fiscal General del Estado 0 del fiscal interviníente.
cion máxima de tres anos. contados desde el primer acto de] procedimiento. Este plaza 299 Artículo 141. DEMORA EN LAS MEDIDAS CAUTELARES PERSONALIZE. RESOLUCIÓN
sólo se podrá extender por seis meses más cuando exista una sentencia condenatoria. a , . FICTA. Cuando se haya planteado la revisión de uma medida cautelar privativa de liber-
fin de permitir la tramitación de los recursos. La fuga o rebeldia dei imputado interrom- " tad :: se haya apelado la resolución que deniega la libertad y el juez o tribuna! no teatro!—
pirá el plazo de duracio'n del procedimiento. Cuando comparezca o sea capturado, se rei- va dentro de los plazos establecidos en este código, el imputado podrá urgir pronto des-
niciará el plazo. - Facho y si dentro de las veinticuatro horas no obtlene resolución se entenderá que se ha
Artículo 137. EFECTDS. Vencido el plazo previsto en el artículo anterior el juez (] tri- . concedido la libertad. En este caso, el juez o tribunal que le siga en el orden de rumo
bunal. de oficio o a petición de parte, declarará extinguida la acción penal, conforme a lo ordenará la libertad. Una nueva medida cautelar privativa de libertad sólo podrá ser
previsto por este código. Cuando se declare la extinción de 1a acción penal por morosi- decretada a peticion del Ministerio Público o del querellante, según el caso.
dad judicial, la victima debora ser indemnizada por Eos funcionarios responsables y por Artículo 142. DEMORA DE LA CORTE SUPREMA DE JUSTICLA. RESOLUCIÚN
el Estado. Se presumirá la negligencia de los funcionarios actuantes, salvo prueba ao FlCTA. Cuando 1a Corte Suprema de Justicia no resuelva ou recurso dentro de los plazos
contrario, En caso de insolvencia del funcionario, responderá directamente el Estado. sin ' establecídos por este código, ao entenderá que ha admitido la solución propuesta por el
perjuicio de su derecho a repetir. recorrente, salvo que sea desfavorahle para el imputado. caso en el cual se entenderá
Artículo 138. PRESCRIPCIÓN. La duracion dei procedimiento no podrá superar ei que el recurso ha sido rechazado. Si existen recursos de varias partes, se admitirá la solu—
plazo previsto para la prescripcion de la acción penal. cuando este sea inferior al máxi- cion propuesta por el imputado. Cuando el recurso a resolver se refiera a la casación de
mo establecido en este capítulo. una sentencia condenatoria, antes de aplicar las reglas precedentes, se integrará una
298 Artículo 139. PERENTORIEDAD EN LA ETAPA PREPARATÓRIA. Cuando el Ministerio nueva Sala Penal dentro de Eos tres dias de vencido el plaza, la que deberá resolver el
Público no haya acusado ni presentado otro requenmiento en la fecha l'ijada por el juez. recurso en un piazo no superior a los diez dias. Los ministros de la Corte Suprema de
y tampoco haya pedido prorroga o ella no corresponda, el juez intimará al Fiscal General Justicia que hayan perdido su competencia por este motivo tendrán responsabilidad por
del Estado para que requíera lo que considere pertinente en el plazo de diez días. .. mal desempefio de :lªunciones. El Estado deberá indemnizar al querellante cuando haya
'Í'ranscurrido este plazo sin que se presente una solicitud por parte del Ministerio Públi— Perdido su recurso por este motivo, conforme lo previsto en este capítulo.
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalídade Constitucional)

mais sedantes e simbólicas do que realmente progressistas, partiram sar & doutrina construída em torno do art. 6.1 da (IEDI-1301 (também
para um novo código, norteado pela CADH. São vantagens de uma fonte de inspiração da CADH).
codificação que, alem de corajosamente avançada, possui um principio , A essa altura, o leitor pode estar questionando "quanto tempo" é
unificador. necessário para constituir a "dilação indevida" nos casos submetidos
Definida assim a necessidade de um referencial normativo claro da ao TEDH. Como já foi apontado, não há um critério único, rigido, senão
duração máxima do processo penal e das prisões cautelares, bem como uma análise do caso em concreto (doutrina do não—prazo). Feita essa
das “soluções" adotadas em caso de violação desses limites, passemos ressalva, apenas como ilustração, vejamos alguns exemplos:“)2 de con-
agora a uma rápida analise de decisões do TEDH, da Corte Americana denações por violação ao direito de ser julgado num prazo razoável:
e de uma pioneira decisão do TJRS.
- Caso "Metzger contra Alemanha", STEDH 31/05/2001: delito
e") Algumas Decisões do Tribunal Europeu de Direitos Hurrianos, contra o meio ambiente, cujo processo durou cerca de 9 anos. Só
da Corte Americana de Direitos Humanos e o Pioneiro Acórdão a investigação preliminar demorou cerca de 4 anos e 8 meses.
— Caso “Milasi contra Itália", STEDH 25/06/1987: delitos de
do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
natureza política, com sentença absolutória em virtude de um
decreto de anistia, cuja duração total foi de cerca de 9 anos e
Como ja destacamos, alem de frrmatário da CADH, o Brasil é pas— . . 7 meses.
sível de ser demandado junto à Corte Americana de Direitos Humanos, e Caso “Deumeland contra Alemanha", STEDH 29/05/1986: deli—
que previsivelmente "importa" muitos dos entendimentos do TEDH, tos de natureza previdenciária, tendo o processo durado cerca
que acabarão — por via transversa — afetando nossa jurisprudência inter— , de 10 anos e 7 meses.
na, como já ocorreu na pioneira decisão do TJRS, a seguir analisada. - Caso "Zimmermann v Steiner contra Suiça", STEDH
O'direito a um processo sem dilações indevidas (ou de ser julgado 13/07/ 1983: esse caso é de natureza administrativa, mas. con-
num prazo razoável) e “jovem direito fundamental", ainda pendente de siderando que o direito a um processo sem dilações indevidas
definições e mesmo de reconhecimento por parte dos tribunais brasi— está inserido no princípio geral de celeridade, também e invo—
leiros, em geral bastante tímidos na recepção de novos (e também de cavel sua violação. Trata—se de uma ação de reparação de
"Ueli-los") direitos fundamentais, mas que já vem sendo objeto de preo— danos promovida contra o Estado suiço. tendo como objeto de
cupação há bastante tempo por parte do Tribunal Europeu de Direitos reclamação junto ao TEDH & demora de aproximadamente 3
Humanos (TEDH), e dos sistemas processuais europeus.300 Diante anos e meio para julgamento de um recurso junto ao Supremo
dessa tradição européia na questão, e & inegável influência que as Tribunal Federal suíço. A dilação303 foi considerada indevida e
decisões do TEDH exercem sobre a Corte Americana de Direitos .: o Estado, condenado a indeniza-1a.
Humanos e ela, sobre o sistema interno brasileiro, é importante anali— —,- -' Caso "Foti e otros contra Itália", STEDH 10/12/1982: envolvia
delitos praticados em uma rebelião popular, envolvendo porte

300 Também está consagrado em diversas Constituições européias, entre elas. destacamos
a espanhola (tradução livre):
Art. 24.1. Todas as pessoas têm direito a obter a tutela efetiva dos juízes & tribunais
M
301. Art. 6.1 "'Ibda' persona tiene derecho a que su causa sea cida equitativa. publicamente
:: :.,y dentro-de un plazo razonabie por un tribunal independiente e imparcial, establecido
no exercicio de seus direitos e interesses legítimos, em que, em nenhum caso, passa pra- por e ley, que decidirá sobre sus derechos y obligaciones de carácter civil e sobre el fun-
duzir—se cerceamento de defesa. ' dai-neuro de cualquier acusaciõn que en materia penal se dirija contra elia".
2. De igual forma, todos têm direito ao juiz ordinário pré-detemínado por lei, a defe- 302 Exemplos extraídos das obras de Daniel Pastor e Ernesto Pedraz Penalva. anteriormente
sa e a assistência de advogado, a ser informado da acusação formulada contra si, a um citadas.
processo público sem difacões indevidas e com todas as garantias, & utilizar os meios de 303 Para os padrões brasileiros. urna demora de "apenas" três anos e meio junto ao STF,
prova pertinentes para sua defesa, a não declarar contra si mesmo, a não confessar sua numa ação de natureza reparatúria contra a União, seria realmente "anormal", mas em
culpa e a presunção de inocência. (grifamos) sentido inverso ao caso citado... '
325
Aury Lopes Jr.
Introdução Critica ao Processo Penal .
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucmnal)

ilegal de armas, resistência e "obstrução de vias públicas". razoável. Em decisão única, a Corte entendeu'que Argentina
Foi considerado que o procedimento mais rápido durou três violou, em relação a todos os peticionários, o direito aum pro-
anos e o mais longo, 5 anos e 10 meses, tendo o TEDH conde— cesso sem dilações indevidas, assim como o direito a presun—
nado a Itália por violação ao art. 6.1 da CEDH (direito a um ' ' cência.
processo sem dilações indevidas), na medida em que havia Ejªºsge'ªºarcés Valladares contra Equador:,“ Sentença de
longos lapsos “mortos" de tempo, em que os procedimentos 13/04/1999: a re foi detida e acusada por pratica de ativuzla-
ficaram injustiíicadamente sem atividade. des vinculadas ao tráfico de substâncias entorpecentes,
tendo permanecido em prisão cautelar ao longo de 5 anos e
Na esfera da Corte Americana de Direitos Humanos, a garantia 11 meses. Ao final, foi absolvida de todas as acusaçoes e
prevista nos arts. 7.5 e 8.1 da CADH já foi objeto de decisão em algu-
mas oportunidades, como por exemplozªº4 colocada em liberdade. A. Comissão entendeu que houve
violação do direito ao julgamento em um prazo razoavel e da
— Caso "Gimenez contra Argentina", Sentença prolatada em presunção de inocência. Recomendou ”que o Estado
01/03/1996: o réu foi condenado por delitos de roubo a uma (Equador) efetuasse uma reparação pecuniaria pelas v1ola—
pena de 9 anos de prisão. Cautelarmente, ficou detido por ções cometidas.
cerca de 5 anos. A Corte expressou seu reconhecimento pelo
avanço legislativo daquele país, que havia promulgado lei No Brasil, encontramos uma única decisão que realmente enfren—
estabelecendo o limite de duração da prisão preventiva (2 tou a violação do direito de ser julgado
efetivo num
que aprazo razoavel, “comdao
anos). Destacou a possibilidade de uma cautelar exceder o
prazo fixado no sistema jurídico interno (2 anos), sem com isso

'seriedade
ornadas ' ' '
soluçoes" biveis.
e o comprometimento
compensatonas ca . '
questao emge. aplican

Entendeu a 5ª- Cãmara do Tribunal de Justiça do Estado do Rio


ser considerado, automaticamente, como “indevido", ao
mesmo tempo em que uma prisão cautelar poderia ser vista Grande do Sul, na Apelação nº 70007100902, Rel. Des. Luis Gonzaga da
como excessiva, ainda que sua duração fosse inferior ao prazo Silva Moura, j. 17/12/2003:
de 2 anos. No caso em questão, a partir da doutrina dos três
critérios, entendeu que houve dilação indevida do processo e Penal. Estupro e Atentado violento ao pudor. Autoria & maizena-
excesso na duração da prisão cautelar. Iídads Suficientemente comprovadas. Condenaçao confrrmada.
— Caso "Bronstein e outros contra Argentina“, Sentença de Redimenfsíonamento da pena. Atenuante inomínada do artigo 66 do
29/01/1997: foram reunidas 23 reclamações de excesso de Código Penal caracterizada pelo longo e injustificado—tempo de tra:
prazo da prisão preventiva, em diferentes processos penais. mítação do processo (quase oito anos) assomado ao nao-cometimen
As detenções variavam de 1 ano e 4 meses a 6 anos e 9 meses to de novos delitos pelo apelante. Hedíondez afastada. Promento
e 11 imputados ainda se encontravam presos quando do julga— parcial. Unânime.
mento na Corte. A Comissão entendeu que havia uma dene-
gação de justiça em relação aos reclamantes e dos demais que No caso em questão, o réu foi acusado pelo delito de atentado tao-
se encontravam em situação similar na Argentina. Destacou ª Ile-nto ao pudor (arts. 2.14, c/c 224, alínea “a", 225, inciso II, e 226, moi-
que o poder estatal de deter uma pessoa a qualquer momen— 50 II, na forma do art. 70, parágrafo único, do CP), sendo ao final con-
to ao longo do processo penal constitui, ao mesmo tempo. o - denado a uma pena de 17 anos e seis meses de reclusao, no regime
fundamento do dever de julgar tais casos dentro de um prazo
integralmente
Em grau recursal, o TJRS ,
fechado.
. . - a.pena,.&
redimensronou
do
1eraãd,
cona a
entre outros elementos, a ocorrenc1a de dilaçao mdevrda, _na me
304 Apud PASTOR, Daniel. Op. cit., pp. 209 e ss. em que o processo tramitou por quase oito anos sem iustificativa.
125 127
Aury Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da lnstrumentalidade Constitucional)

Ponderou o Relator dois aspectos: Até onde tivemos noticia, esse foi o primeiro acórdão a enfrentar a
violação do direito de ser julgado num prazo razoável, adotando com
”Um, que a excessiva duração da demanda penal, como na precisão uma das soluções compensatórias cabíveis (no caso, a ate—
espécie presente, por culpa exclusiva do aparelho judicial, viola nuante inominada do art. 66 do CP) com real eficácia, posto que a pena
direito fundamental do homem — o de ter um julgamento rápido foi substancialmente reduzida e a punição —- como um todo —, compen-
(artigo lº da Declaração dos Direitos do Homem da Virginia) —, pelo sada pela pena processual (longa e injustificada tramitação do feito).
que tal situação deve ser valorada no momento da individualização Concluindo. os exemplos citados demonstram que a demora não
da pena. Aliás, já há na jurisprudência europeia decisões no senti- precisa ser tão longa como se imagina, a que, na maioria dos casos,
do de atenuar o apenamento, em razão da exorbitante duração do sequer se Operaria a prescrição (mesmo pela pena aplicada). Saindo da
processo criminal (ver Daniel R. Pastor, in "EL PLAZO RAZONABLE esfera penal e ingressando no universo de demandas ajuizadas por
EN EL PROCESSO DEL ESTADO DE DERECHO”, pág. 177/180). particulares contra a União ou Estados, o direito a um julgamento sem
Dois, se a pena tem na prevenção e retribuição seus objetivos, dilações indevidas teria um imenso campo de incidênc1a, amda com-
e' de se concluir que, na hipótese, a dualidade preventiva restou pletamente inexplorado.
Mas não basta afirmar que houve uma dilação indevida; é neces-
atendida só pelo moroso tramitar da lide penal — sem sentido se sario buscar e aplicar uma solução para o caso, conforme as opções que
falar em prevenção de novos delitos, quando, durante os quase oito analisaremos a continuação.
anos de "andamento" do processo, o apelante não cometeu nenhum
novo crime. E se isto aconteceu, evidente que, em respeito ao prin- dl) EmBusca de “Soluções": Compensatórias, Processuais e
cipio da proporcionalidade e necessidade, tal deve refletir na defini- Sancionatórias
ção do apenamento a ser imposto ao acusado. ”
. . Reconhecida a violação do direito a um processo sem dilações
Interessa—nos, especificamente, o reconhecimento por parte do indevidas, deve-se buscar uma das seguintes soluçõeszíªº5
Tribunal da existência (recepção) do direito fundamental de ser julga—
do num prazo razoável e sua incidência no processo penal brasileiro. “1. .:.,Solucões Compensatórias: Na'esfera do Direito Internacional,
Invocou o relator a incidência do princípio da proporcionalidade. na - :. pode—se cogitar de uma responsabilidade por “ilícito legislati—
medida em que as funções de prevenção e retribuição da pena foram ' ' ' vo", pela omissão em dispor da questão quando já reconhecida
atendidas pela morosa tramitação do feito. Destacou-que a função de a necessária atividade legislativa na CADH (que. está incorpo-
prevenção de novos delitos acabou por perder seu objeto, consideran— rada ao sistema normativo interno). Noutra dimensão, a com-
do que durante os oito anos de duração do processo o imputado não pensação poderá ser de natureza civil ou penal. Na esfera civil,
cometeu nenhum novo crime. resolve-se corn a indenização dos danos materiais e/ou morais
Ao redimensionar a pena, o Tribunal lançou mão de uma solucão produzidos, devidos ainda que não tenha ocorrido prisão pre—
compensatória de natureza penal (explicaremos as "soluções" a conti— ventiva. Existe uma imensa e injustiíicada resistência em reco-
nuação), reduzindo a pena aplicada atraves da incidência da minuª— nhecer a ocorrência de danos, e o dever de indenizar, pela
te inominada do art. 66 do CP para um quantitativo inferior ao minimo (mera) submissão a um processo penal (sem prisão cautelar), e
legal, desprezando — acertadamente —- o disposto na Súmula 231 do STJ. que deve ser superadaªºõ Já a compensação penal podera ser
Admitida ainda a continuidade delítiva, a pena tornou-se definiti-
va em 8 anos de reclusão, no regime semi—aberto, porque também foi 305 A câassincação é de PASTOR. Daniel. Op. cit., pp. 504—538.
afastada a incidência da Lei 8.072, em que pese o novo entendimento 306 'Ial dano e substancialmente ampliado pela necessidade de um novo e demorado proces-
do STF, pois a Câmara segue a orientação de que somente há hedion— ' 50 (ªgora de natureza civil) onde esse dano será longamente discutido e debatido para.
ªpós. novo processo, agora de execução. No mínimo, o "dano processual" deve ser tripli-
dez quando resulta lesão corporal grave ou morte. cado, pela necessidade de a parte suportar dois processos de conhecimento (o penal,

128 129
Aury Lopes Jr. introdução Critica ao Processo Penal
(Fimdamentos da Instrumentalidade Constitucional)

através da atenuação de pena ao final aplicada (aplicação da penal estatal. Também existe uma grande resistência em com-
atenuante inominada, art. 66 do CP) ou mesmo concessão de
preender que a instrumentalidade do processo é toda voltada
perdão judicial, nos casos em que é possivel (mg., art. 121, 5 59, para impedir uma pena sem o devido processo, mas esse nivel
art. 129, 5 Sº, do CP). Nesse caso, a dilação excessiva do proces— de exigência não existe quando se trata de não aplicar pena
so penal —— uma consequência da infração — atingiu o próprio alg-urna. Logo' para não aplicar uma pena. o Estado pode pres—
agente de forma tão grave que a sanção penal se tornou desne- cindir completamente do instrumento. absolvendo desde logo
cessária. Havendo prisão cautelar, a detração (art. 42 do CP) e o imputado, sem que o processo tenha que tramitar integral—
uma forma de compensação, ainda que insuficiente. mente. Finalizando, também são apontadas como soluções
2. Solucoes Processuais: a melhor solução é a extinção do feito,307 processuais: possibilidade de suspensão da execução ou dis-
mas encontra ainda sérias resistências. Ao lado dele, alguns pensabilidade da pena. indulto e comutação. . .
países prevêem o arquivamento (vedada nova acusação pelo 3. Solucoes Sancionatórias: punição do servidor (incluindo ]ui—
mesmo fato) ou a declaração de nulidade dos atos praticados zes, promotores, etc.) responsável pela dilação indevida. Isso
após o marco de duração legítima.308 Como anrmado no inicio' exige, ainda. uma incursão pelo Direito Administrativo. Civrl e
a extinção do feito é a solução mais adequada, em termos pro— Penal (se constituir um delito). A Emenda Constitucional nº
cessuais, na medida em que, reconhecida a ilegitimidade do 45, além de recepcionar o direito de ser julgado em um prazo
poder punitivo pela própria desidia do Estado. o processo deve razoável, também previu & possibilidade de uma sanção admi-
findar. Sua continuação, além do prazo razoável, não e mais nistrativa para o juiz que der causa à demora. A nova redação
legítima a vulnera o Princípio da Legalidade, fundante do do art. 93, II, e, determina que:
Estado de Direito, que exige limites precisos, absolutos e cate-
goricos —— incluindo-se o limite temporal —— ao exercício do poder "e) não será promovido o juiz que, injustificada—mente, reti-
ver autos em seu poder além do prazo legal. não podendo devol—
vê—los ao cartório sem o devido despacho ou dec1sao;"
gerador do dano inicial. seguido do processo de conhecimento na esfera civil) e um de
execução (da sentença condenatória proferida pelo juízo cível). Em última análise. a vio- Cumpre agora esperar para ver se a sanção ficara apenas
lação do direito de ser julgado num prazo razoável conduz à reiteração da violação do ' nessa dimensão simbólica ou se os Tribunais efetivamente apli-
mesmo direito, pois novamente o imputado terá de suportar a longa (de)mora judicial,
agora na esfera cível. carão a sanção.
307 É o melhor sistema, adotado pelo Código de Processo Penal do Paraguai. tanto para o
processo penal como um todo. como também para a ação penal. se a investigação preli- ( Na atual sistemática brasileira. não vemos dificuldade na aplica-
minar exceder o prazo lixado. A questão está disciplinada nos arts. 135 a 139. anterior-
mente transcritos quando tratamos do tópico "Nulla coactio sine lega (...)". ao qual reme- ção das soluções compensatórias de natureza Civel (devrdas ainda que
temos o leitor para evitar repetições. iião exista prisão cautelar), bem como das sancionatónas. A valoração
308 Similar à pena de inutilizzabilità. prevista no art, 407.3 do CPP italiano. mas apenas em
relação aos atos da investigação preliminar:
das consequências da dilação indevida pode ser considerada quando
Art. 407. Tbm-lini di durata massima delle indagíni preliminan'. da quantificação da medida reparatória; contudo é importante desta—
3. Salvo quanto previsto dall'art. 415—bi's, qualora il pubblico rninjtero non abbia escr- Çâi' que a responsabilidade estatal independe dos efeitos causados
citato l'azíono penale o richiesto l'arcln'vr'azz'one nel termine stabilito dalla legge o prom- Pºla dilação. Em outras palavras, a reparação é devida pelo atraso
gato dal g'r'ucLice, gli arti di indagr'ne compiuti dope la scadenza del termine non possono
essere utilizzati (408, 41 I ). injustificado em si mesmo. independentemente da demonstraçao de
Para assegurar a eficácia da limitação temporal fixada para a fase pré—processual .dàn'os'as partes, até porque presumidos. Também haverá, na pratica,
(indagini preliminan'). o CPPI determina que se o MP não exercitar a ação pena] ou soli- dois sérios inconvenientes: a dificuldade que os tribunais têm de reco-
citar o arquivamento no prazo estabelecido na lei (ou prorrogado pelo juiz). os atos de
investigação praticados depois de expirado o prazo (dilação indevida) não poderão ser nhecer e assumir o funcionamento anormal da justiça (resistência cor—
utilizados no processo. É o que a doutrina define como pena de inutilizzabilità (pena de Piiorativa), bem como a imensa timidez dos valores fiz—tados, sempre
inutilidade). em clara alusão à ineiicàcia juridica desses atos. muito aquém do minimo devido por uma violência dessa natureza.
130
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitumonal)

'de. .
Na esfera penal, não compreendemos a timidez em aplicar & ate—
nuante genérica do art. 66 do CP Assumído o caráter punitivo do
tempo, não resta outra coisa ao juiz que (além da elementar detração
rocessuais . , , ,
sivo para fulminar a própria pretensão punitiva (a solução mais ade—

quadâjzeilãatãirgcoscâmpo de iniiidência seja limitado,não vislumbrarncs


em caso de prisão cautelar) compensar a demora reduzindo a pena apli- » ' ' ' conveniente na concessão do perdão judicial. nos casos em
cada, pois parte da punição já foi efetivada pelo tempo. Para tanto, for— nenhãrgolsnsivel (vg. art. 121' E 59, art. 129, % Bº, do CP), pois a dilaçao
malmente, devera lançar mão da atenuante genérica do art. 56 do
Código Penal. É assumir o tempo do processo enquanto pena e que, por— gigessiva do processo
âmªgo próprio penal
agente deéforma
uma consequência da_infraçaç
tão grave que a sançaoS—e (Eure
pena o
tanto, deverá ser compensado na pena de prisão ao final aplicada.
Já em 1995, com inegável pioneirismo, GUSTAVO BADARÓªºº
ºcm Cligªeiiãsessªieira de PASTOR,311 o fato de apontaimos soluções Cºªl—
defendia que “a duração irrazoável do processo, que por certo consti—
p-e'nsat'ôrias não significa que toierarnos pacificamente as WOI'EIÇOE—S do
tui uma espécie de sanção antecipada, pela incerteza que tal estado
Estado, senão'que elas são um primeiro passo na direçaoda efetivação do
acarreta, bem como pelos danos morais, patrimoniais e jurídicos, deve direito de ser julgado num processo sem dilaçoes inda-Vidas. A flec a. o
ser considerada circunstância relevante posterior ao crime, caracteri-
tempo e'irre'versivel e o tempo que o Estado indevidamente se 'Írâpnou
zando—se como circunstância atenuante inominada nos termos do art.
66 do Código Penal". jamais será suficientemente indenizado, pms nao pode'ser resti 1 ªª
As soluções compensatórias são meramentepaliativas. uma _ Cs)?
' Para além dessa indiscutível incidência, somos partidários de que a compensação, não só por sua pouca eticaCia (lunites'para'atenuaçja fil
atenuante pode reduzir a pena além do mínimo legal, estando completa- ina-is também porque representam um Iretoque cosmetico , como e.
mente equivocada a linha discursiva norteada pela Súmula 231 do STJ .310 na PASTOR,312 sobre uma pena invalida e ilegítima. eis que obtida—atra-
A aplicação da atenuante terá ainda, conforme caso, caráter deci— vés'de um instrumento (processo) viciado. Ademais, a atenuaçao da
sivo para a ocorrência da prescrição. tornando a redução um fator deci- pena é completamente ineficiente quando o réu for absolvido ou a pena
p'IÓCes'sual exceder o suplício penal. Nesse caso., o .maxuno que se
309 BADARÓ. Gustavo Henrique Highi Ivahy. Direito ao processo penal em prazo razoável.
podera'obter é uma paliativa e, quase sempre, tiririida'indenizaçaotgi
“ *ª Em reiação à indenização pela demora, BiílClBHCla—Se'Ci para cxo
Monografia apresentada à Comissão“ de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, 1995. p. 24.
de obrigar alguém a cumprir uma pena — conSideradla legitima e co?“—
forme o. Direito —— e, ao mesmo tempo. gerar uma indemzaçao pe a

"" ' 'eitimoeile al. .


310 Neste sentido. a Súmula 231 do STJ reflete a posição hoje majoritária. Contudo. a nosso
juízo. trata-se de entendimento equivocadamente pacificado. na medida em que cons- demora do processo que impôs essa pena — processo esse, em conse—
titui um despropositado preciosismo, além de substancialmente inconstitucionai, como
muito bem identificou o então Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro em saudosos decisões
proiatadas no STJ. ug. RESP 65.120-0 MG, cuja ementa é: RESP - PENAL — PENA —
quengllíanltogàs solucõeíI processuais. o problema é ainda mais grave. O
INDIVIDUALIZAÇÃO _ A'I'ENUANTE - FIXAÇÃO ABAIXO Do MÍNIMO LEGAL - O sistema processual penal brasileiro está completamente engessado e
Princípio da individualização da pena (Const., art. 59, KLV!) materiaimente significa que
a sanção deve corresponder às caracteristicas do fato, do agente e da vítima, enfim, con- inadequado para atender às diretrizes da CADH. Nao dispoe de mstru—
siderar todas as circunstancias do delito. A cominação, estabelecendo grau minimo e mentos. necessários para efetivar a garantia do direito a um processo
sem dilações indevidas. Saque]: possui um prazo máximo de duraçao
das prisões cautelares. . . .
grau máximo, visa a esse fim, conferindo ao juiz, conforme o critério do art. 68. CP, fixar
a pena in concreto. A lei trabalha com o gênero. Da espécie cuida o magistrado. Só assim,
ter-se—á direito dinâmico e sensivei à realidade, impossivel” de, formalmente, ser descrita
em todos os pormenores. Imposição ainda da justiça do caso concreto, buscando reaii'zar " O. ideal seria uma boa dose de coragem legislativa para prever
o direito justo. Na espécie sub judice, & pena-base foi fixada na mínimo legal, claramente o prazo máximo de duração do processo e das prisoes
Reconhecida, ainda, a atenuante da confissão espontânea (CE art. 55, III, d). Todavia, cautelares. fixando condições resolutivas pelo descumprimento. Na
desconsiderada porque não poderá ser reduzida. Essa conclusão signiãcaria desprezar a
circunstância. Em outros termos, não repercutir na sanção aplicada. Ofensa ao principio
e ao disposto no art. 59, CP, que determina ponderar todas as circunstâncias-do crime.
cação da Súmula 2.31 do STJ. - '
Infelizmente. tal posição encontrou sérias resistências. a ponto de culminar com a publi-
312 PASTOR. Daniel. Op. cit., p. 513. -
311 EE.! Piezo Razonabie eu e! Proceso del Estado de Derecho, especialmente no Cªpítulº!“

32
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

fase de investigação preliminar, deve—se prever a impossibilidade de e') A Titulo de Conclusões Provisórias: o Dificil Equilibrio entre
exercicio da ação penal após superado o limite temporal, ou, no mini— a (De)Mora Jurisdicional e o Atropelo das Garantias
mo, fixar a pena de inutilidade para os atos praticados após o prazo Fundamentais
razoável.
Também é preciso que se compreenda a instrumentalidade do pro— Até aqui nos ocupamos do direito de ser julgado num. prazo razoá-
cesso penal, de modo que, para não aplicar uma pena, o Estado pode vel, seu fundamento, recepção pelo sistema jurídico brasueiro, dificul-
prescindir completamente do instrumento, absolvendo desde logo o dade no seu reconhecimento e os graves problemas gerados pela
imputado, sem que o processo tenha que tramitar integralmente. Isso
permite que se exija, por exemplo, o pronto reconhecimento da prescri-
(de)rnora jurisdicional. . , '
O processo nasceu para retardar a dilatar o propnoltempo [1.3 rea—
ção pela provável pena a ser aplicada, como imediata extinção do feito. ção. Mas, ao lado dessa regra basilar, devemos (tambem) consrderar
Deve—se voltar os olhos para os sistemas europeus, mas também que o processo que se prolonga indevidamente conduz a uma distorçao
para o Código de Processo Penal paraguaio, que acertadamente consa— de suas regras de funcionamento,—313 e as restrições processuais dos
gra um instrumento que efetivamente assegura a eficácia do direito direitos do imputado, que sempre são precárias e provisonas, ja nao

favor do imputado. ,
fundamental de ser julgado num prazo razoável: resolução ficta em
Se, diante de um recurso (contra decisões definitivas ou mesmo
estão mais legitimadas, na medida em que adquirem contornos de
sobre—custo inflacionário da pena processual, algo intolerável em um
Estado Democrático de Direito. _
interlocutórias) interposto pelo réu, o Tribunal competente não se Contudo, não se pode cair no outro extremo, no qual a duraçao do
manifestar no prazo legal (marco normativo do prazo razoável), enten— processo é abreviada (aceleração antigarantista) não para assegurar
esses direitos, senão para viola-los. Estamos voltando a uma questao
de-se automaticamente concedidos os direitos pleiteados. É óbvio que
o imputado, que já está sofrendo todo um feixe de penas processuais,
não está obrigado a suportar o sobre—custo da demora na prestação
jurisdicional. Essa é a verdadeira compreensão do que seja a (de)mora
pelando as garantias". .
tratada no Capítulo I, " quando o processo penal se põe a correr, atro—

Como define PASTOR,314 não existe nada mais demonstrativo da


arbitrariedade de um procedimento que os juízos sumários ou suma—
judicial. E não se diga, por favor, que isso justificará decisões apressa— riissimos em matéria penal, pois eles impedem que o imputado possa
das e sem a devida motivação, pois um direito fundamental (ser julga— exercer todas as faculdades próprias de um processo penal adequado
do no prazo razoável) não legitima o sacrifício de outros, autônomos e
igualmente imperativos para o Estado. à constituição democrática. Isso nos remete a um primeiro ponto. de
O Brasil tem ainda um longo caminho a percorrer nesse terreno. partida, que é analisar o problema a partir da perspectiva dos direitos
Outra questão de suma relevância brota da análise do "Caso do imputado. O processo penal reclama tempo suficiente para satisfa-
ção, com plenitude, de seus direitos e garantias processuais.
Metzger", da lúcida interpretação do TEDH, no sentido de que º Nesse sentido, a CADH prevê no seu art. 82.2, “'e' que:
reconhecimento da culpabilidade do acusado através da sentença
condenatória não justifica a duração excessiva do processo. É um 2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presu»
importante alerta, frente a equivocada tendência de considerar que ma sua inocência enquanto não se comprova legalmente sua
qualquer abuso ou excesso está justificado pela sentença condena— culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena
tória ao final proferida, como se o "fim" justificasse os arbitrários igualdade, às seguintes garantias minimas:
"meios" empregados. Desnecessária qualquer argumentação em
torno do grave erro desse tipo de premissa, mas perigosamente
difundida atualmente pelos movimentos repressivistas de lei e 313 PASTOR, Danie1.El'PIazo Hazonabie en el Proceso del Estado de Derecho, p. 53.
ordem, tolerância zero, etc. 314 PASTOR, Daniel. Ei Piezo Bazonahie en el Proceso del Estado de Derecho, p. 51.

134 135
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ac Processo Penal
(Fundamentºs da !nstrumantaiidade Constituoional)

o) concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados inviável pensar em compartimentos estanques e hermeticos, que per—
para a preparação de Sua defesa; (grifamos) ' entos isolados.
aliiãêlãlªâfsªªªªuação pode ficar ainda mais grave, quando otratamento
A CADH não se contentou em prever o direito aos meios adequa» viam acompanhado por doses de utilitarismo processual, pais tambem
dos de defesa, senão que consagrou, de forma cumulativa (conjunção deve-se acelerar o processo", para terna-lo ainda mais encrinte.
aditiva “e") a garantia de concessão ao acusado de tempo. Trata—se de
começa então o sacrifício lento e paulatrnoldos d1re1tos “fundameãn ais.
garantir o tempo da defesa, na medida em que a eficácia dessa garan— É'o' óbito do Estado Democrático de Direito e o nascrrnento edum
tia esta pendente de tempo para seu preparo. Tem-se assim uma clara EStado.Policial, autoritário. O resto da historia e por todos conhecr a.
orientação a ser seguida: em caso de dúvida, o tempo está a favor do Vimos, assim, os dois extremos da questao “tempo no processo
acusado.315 Isso implica vedação ao atropelo das garantias fundamen—
penal:.aceieração antigarantista e dilação indevida: Em ambos, temos
tais (aceleração antigarantista) e, ao mesmo tempo, negação à dilação a negação da jurisdição, pois não bastagualquerguiz e qualquer ]u gír-
indevida do processo penal. rnent'o', isto é, a garantia da tutela jurisd1c1onal exrge qualidade e, nas 'e
Devemos considerar, ainda, que existe uma clara relação entre o tema-, ela está no equilíbrio do direito a ser julgado num prazo razoa-
aumento do número de processos com a duração que eles acabarão vel;3-15 enquanto recusa aos dois extremos.
tendo, de modo que a panpenalização, gerada por movimentos como law ' "'”“Dessarte, pensamos que:
and order e tolerância zero, sobrecarregam a Justiça Penal, muitas vezes
com condutas que deveriam ser penalmente irrelevantes (eis que passí- ía)” Deve haver um marco normativo interno, de duração máxima
veis de-resolução em outras esferas, como cível e direito administrativo : ' ' : do processo e da prisão cautelar, constnndo a partir das espe—
sancionador), entupindo juizes e tribunais com volumes absurdos de tra— 'cificidades do sistema processual de cada para, mas “tendo
balho e, em última análise, aumentando a duração dos processos; "como norte um prazo fixado pela Corte Aniericana de Direitos
De nada servirá um simplório (senão simbólico) “aumento de pes— ' Humanos.“ Com isso, os tribunais internacionais deveriam
soal", pois o volume de processos criminais gerados pela maximização "abandonar a doutrina do não-prazo, deixando de lado os axrc—
do Direito Penal e inalcançável, ainda mais para um Estado que tende. ' mas abertos, para buscar uma clara definição de "prazo razoa—
cada vez mais, ,a ser ”minimo-". . r . -. ' vel“, ainda que admitisse Lim-certo grau de ilembilidade aten-
dendo às peculiaridades do caso. Inadmissivel e a total aber—
É interessante o infindável ciclo que se estabelece: o Estado se
afasta completamente da esfera social, explode a violência urbana. tura conceitual, que permite ampla manipulação dos criterios.
São insuficientes as soluções compensatórias (reparaçao dos
Para remediar, tratamento penal para a pobreza. Diante da banalização
do Direito Penal, maiores serão a ineficiência do aparelho represscr e a ”ª danos) e atenuação da pena (seque-r aplicada pela imensa
'Imaioria de juízes e tribunais brasileiros), pors produz pouco ou
própria demora judicial (em relação a todos os crimes, mas especial—
' ' nenhum efeito inibitórío da arbitrariedade estatal. E, necessa-
mente dos mais graves, que demandam maior dose de tempo, diante
de sua complexidade). Entulharn-se as varas penais e evidencia-se a ' ' “ao-que o reconhecimento da dilação indevida tambem produ-
i'za a extincãc do feito, enquanto inafastável consequencra pro—
letargia da Justiça Penal. Nada funciona. A“ violência continua e sua
'CesISual. O poder estatal de perseguir e punir'deve ser estrita—
percepção amplia-se, diante da impunidade que campeia. Que fazer? Tn'ente lirnitado pela Legalidade, e isso também inclui e res-
Subministrar doses ainda maiores de Direito Penal. E o ciclo se repete. peito a certas condições temporais máximas. Entre as regras

%-.—-.
É consequência natural da complexidade, onde os diversos ele-
"'do jogo, tarribém se inclui a limitação temporal para exercrçio
mentos atuam em rede, numa permanente relação e interação, sendo legítimo do poder de perseguir e punir. Tão ilegitima como e a

315 PASTOR, Daniel. EI Piezo Razonabie en el Proceso del Estado de Derecho, p. 89. 316 Ou ainda, no mesmo sentido, o direito a um processo sem dilaçoes index/idas.

136 137
Aury Lopes Jr.
Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da instrumentaiidade Constitucional)

admissão de uma prova ilícitar para fundamentar uma senten—


ça condenatória, é reconhecer que um processo viola o direito indevidas, mas também sem atropelos. Não estamos aqui buscando
de ser julgado num prazo razoável e, ainda assim, permitir soluções ou definições cartesianas em torno de tão complexa tematica,
senão dando um primeiro e importante passo em direçao a soluçao de
que ele prossiga e produza efeitos. É como querer extrair efei—
tos legítimos de um instrumento ilegítimo, voltando à (absur—
um grave problema, e isso passa pelo necessario reconhecimento
da) máxima de que os fins justificam os meios. desse "jovem direito fundamental".
c) O processo penal deve ser agilizado. Insistimos na necessida—
de de acelerar o tempo do processo, mas desde a perspectiva felt) lnderrogabiiidade da Jurisdição: Critica à Justiça
de quem o sofre, enquanto forma de abreviar o tempo de dura- = Negociada
ção da pena-processo. Não se trata da aceleração utilitarista
como tem sido feito, através da mera supressão de atos e atro- . f- " A garantia da jurisdição careceria de sentido se fosse possivel sua
pelo de garantias processuais, ou mesmo a completa supres— fungibilidade. A inderrogabilidade é garantia que decorre e assegura a
são de uma jurisdição de qualidade, como ocorre na justiça eficácia da garantia da jurisdição. no sentido de intangibilidade e inde-
negociada, senão de acelerar através da diminuição da demo- niinabilidade do juízo, assegurando a todos o livre acesso ao processo
ra judicial com caráter punitivo. É diminuição de tempo buro- e'ªaopoder jurisdicional.
crático, através da inserção de tecnologia e otimização de atos ' Nessa linha. os modelos de justiça negociadaªlª (e consensuada)
cartorários e mesmo judiciais. Uma reordenação racional do representam importante violação a garantia da inderrogabilidade do
sistema recursal, dos diversos procedimentos que o CPF e leis . juizo. A lógica da plea negotiation conduz a um afastamento do Estado-
esparsas absurdamente contemplam a ainda, na esfera mate— ,Juiz das relações sociais, não atuando mais como interventor necessa—
rial, um (re)pensar os limites e os lins do próprio Direito Penal. rioç'inas apenas assistindo de camarote o conflito.
absurdamente maximizado e inchado. Trata—se de reler a aos— " ª A negotiation viola desde logo esse pressuposto fundamental,
leração não mais pela perspectiva utilitarista, mas sim pelo pois a violência repressiva da pena não passa mais pelo controle juris-
viés garantista, o que não constitui nenhum paradoxo. dic'ionai e tampouco submete—se aos limites da legalidade, senão que
está nas mãos do Ministério Público e submetida à sua discricionarie—
Atento à questão, SALO DE CARVALH0317 leciona "que a legisla—
asda“ " '
ção seja aperfeiçoada no sentido do estabelecimento de prazos razoá— Isso significa uma inequívoca incursão do Ministério Público em
veis às decisões judiciais em sede executiva, mas apreendendo os urn'a'á'rea que deveria ser dominada pelo Tribunal, que erroneamente
valores insitos ao Pacto de São José, sejam criadas técnicas judiciais limita—se a homologar o resultado do acordo entre o acusado e o promo-
idôneas a uma célere decisão sobre os incidentes de execução penal". tºr.-Não sem razão, a doutrina afirma que o promotor e o juiz as portas
Ainda que estivesse se ocupando da execução penal (sem dúvida do tribunal.
um ponto sensível da questão), sua acertada indicação encontra plena Com o advento da Lei 9099/95, cujo campo de incidência foi subs-
ressonância em todo o processo penal, especialmente a "resolução tancialmente ampliado pela Lei 10.259, foi introduzida319 uma variação
ficta", que SALE) busca inspiração no Código de Processo Penal flo-(modelo de reparte até então adotado no nosso processo penal: a jus—
Paraguaio, no sentido da “concessão automática dos direitos pleitea—
dos em caso de omissão dos poderes jurisdicionais". .mo tema. remetemos o leitor a obra coletiva intitulada Diálogos sobre a Justiça
Em suma, um capítulo a ser escrito no processo penal brasileiro é Dialogal. organizada por Salo de Carvalho & Aiexancire Wunderlich (Editora Lumen
o direito de ser julgado num prazo razoável, num processo sem dilações Juris), onde o tema é exaustivamente analisado e criticado por vários autores.
319 Cuidado, estamos dizendo que é a "introdução" da lógica da plea negotiation e não que se
. trata de verdadeira pica bargaining do sistema norte-americano. pois esta é mais ampla,
" 'ª - PErmitindo que acusador o acusado façam amplo acordo sobre os fatos. sua qualãiicação
317 CARVALHO. Salo. Pena e Garantias, p. 208. jurídica e as consequências penais. Mas. sem dúvida. a introdução da lógica negocial e um
importante passo nessa direção e nisso reside a critica prospectiva que Fizemos.
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Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

tiça negociada. Para grande parte da doutrina brasileira, uma inovação A justiça negociada está atrelada a idéia de eficiência (viés econo-
revolucionária (ou perigoso retrocesso?). Contudo, com o passar dos micista), de modo que as ações desenvolvidas devem ser eficientes
anos, a criatura virou—se contra o criador, ou melhor, mostrou sua ver— para como isso chegarmos ao ”melhor" resultado. O resultado deve ser
dadeira cara: militarismo processual, e a busca da máxima eficiência visto no contexto de exclusão (social e penal). O indivíduo já excluido
(antigarantista) . socialmente (por isso desviante) deve ser objeto de uma ação efetiva
Nossa crítica não se limita ao aspecto normativo da Lei 9.099, 'para obter-se o (máximo e certo) apenamento, que corresponde à
senão que vai à base epistemológica que a informa, constando que o declaração de exclusão juridica. Se acrescentamos a esse quadro o
problema será potencializado com o aumento das chamadas zonas de fator tempo — tão importante no controle da produção, até porque o
consenso, como já ocorreu com a Lei 10.259. deus-mercado não pode esperar —, a eficiência passa a ser mais uma
Alertamos, ainda, que nosso discurso parte da aceitação do siste— manifestação (senão sinônimo) de exclusão.
ma heterônomo de reparte, por meio de uma instituição estatal, impar— ' ' A premissa neoliberal de Estado minimo também se' reflete no
cial e autônoma. Parece-nos que a discussão sobre autotutela, auto- campo processual, na medida em que a intervenção jurisdicional tam—
composição, reparto heterônomo por terceiro parcial e heterocomposi— bém deve ser mínima (na justiça negociada o Estado se afasta do con—
ção já está há muito superada na doutrina processual, 320 da mesma
flito), tanto no fator tempo (duração do processo), como também na
forma que estão sepultadas as teorias de direito privado gue buscavam
explicar a natureza jurídica do processo a partir do contrato. ausência de um comprometimento maior por parte do julgador, que
O pensamento que nos orienta e prospectivo, olhamos para o futu— passa a desempenhar um papel meramente. burocrático. É inafastável
ro. A situação atual já é preocupante mas pretendemos demonstrar .— 'que vivemos numa sociedade regida pela velocidade, mas isso não nos
através da crítica — que a ampliação do campo de atuação da justiça obriga a tolerar o atropelo de direitos e garantias fundamentais carac-
consensuada será desastrosa para o processo penal. Devemos recor— teristico dos juizados especiais. .
dar, ainda, o contexto social e econômico no qual ela se insere (e foi A tendência generalizada de implantar no processo penal amplas
gerada), até porque o sistema penal não está num compartimento zonas de consenso' 'também esta sustentada, em Sintese, por três
estanque imune aos movimentos sociais, políticos e econômicos, con— argumentos básicos:
forme explicamos nos capítulos anteriores, onde tratamos da ideologia
repressivista da “lei e ordem" e da eficiência (antigarantista). ' a) estar conforme os princípios do modelo acusatório;.
A lógica negocial transforma o processo penal num mercado b) resultar da adoção de um "processo penal de partes";
persa, no seu sentido mais depreciativo. Constitui, também, verdadei- o) proporcionar celeridade na administração de justiça,
ra expressão do movimento da lei e ordem, na medida em que contri—
bui para a banalização do Direito Penal, fomentando a panpenalização A tese de que as formas de acordo são um resultado lógico do
e o simbolismo repressor. Quando todos defendem a intervenção penal modelo aousatório" e do" processo de partes" é totalmente ideológica
minima, a Lei 9.099 vem para ressuscitar no imaginário social as con— & mistificadora, como qualificou FERRAJOLI,321 para quem esse siste-
travenções penais e outros delitos de bagatela, de mínima relevância ma e fruto de uma confusão entre o modelo teórico acusatório — que con-
social. Por isso, ela está inserida no movimento de banalização do siste unicamente na separação entre juiz e acusação, na igualdade entre
Direito Penal e do processo penal. acusação e defesa, na oralidade e publicidade do juizo — e as caracteris-
ticas concretas do sistema acusatório americano, algumas das quais,
cºmo a discricionariedade da ação penal e o acordo, não têm relação
320 Sobre o reparte e a axiosofia da justiça. consulte-se a obra de WERNER GOLDSCHMIDT, ªlguma com o modelo teórico.
Diirelogia —- La Ciencia de La Justicia. Buenos Aires, Depalma. 1986. Ainda, como leituras
imprescindíveis para abordar o tema: ARAGONESES ALONSO, Pedro. Proceso yDerecho
Procesal. Zª edição, Madrid, Eder-sa, 1997. e ALCALA—ZAMORA Y CASTILHO, Nic-etc. ª—ª—w—
Proceso, Autocomposioion :; Autodefensa. México, 1947. 321 FEHHAJOLI, Luigi. Derecho y Razón, p. 747.

“mn
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instmmentalidade Constitucional)

O modelo acusatõrio exige — principalmente — que o juiz se mante- cas persuasõrias permitidas pelo segredo e nas relações desiguais do
nha alheio ao trabalho de investigação e passivo no recolhimento das sistema inquisitivo. E transformar o processo penal em uma “negocia—
provas, tanto de imputação como de descargo. A gestão/iniciativa pro- ta", no seu sentido mais depreciativo.
batória, no modelo acusatõrio, está nas mãos das partes;332 esse é o No sistema americano, muitas negociações são realizadas nos ga—
principio fundante do sistema. Ademais, há a radical separação entre binetes do Ministério Público sem publicidade, prevalecendo o poder

WMM.
as funções de acusar/julgar; o processo deve ser (predominantemente) do mais forte, acentuando a posição de superioridade do Parquet.
oral, público, com um procedimento contraditório e de trato igualitário Explícam FIGUEIREDO DIAS e COSTA ANDRADE325 que a plea bargaí—
das partes (e não meros sujeitos). Com relação à prova, vigora o siste— ning nos Estados Unidos é responsável pela solução de 80 a 95% de
ma do livre convencimento motivado e a sentença produz a eficácia de tõdos os delitos.
coisa julgada. A liberdade da parte passiva e a regra, sendo a prisão ' Ademais, as cifras citadas colocam em evidência que W
dele a justiça negociada. ,
cautelar uma exceção. Assim é o sistema acusatõrio, não derivando

A verdade consensuada, que brota da plea negotiation, é ilegítima.


No mesmo sentido, o Juiz Federal dos Estados Unidos, RUBEN
CASTILLO,325 afirma que de todos os processos criminais iniciados
FERRAJOLI323 lembra que nenhuma maioria pode fazer verdadeiro o que mais de 90% nunca chegam a juízo, pois a defesa acorda com o MP.
é falso, ou falso o que é verdadeiro, nem, portanto, legitimar com seu con—
' O que caracteriza o principio do contraditório e exatamente o con-
senso uma condenação infundada por haver sido decidida sem provas.
fronto claro, público e antagônico entre as partes em igualdade de con—
Com isso, surge o equívoco de querer aplicar o sistema negocial,
como se estivéssemos tratando de um ramo do Direito Privado. Exis— dições.,Essa importante conquista da evolução do Estado de Direito
tem, inclusive, os que defendem uma "privatização" do processo penal resulta ser a primeira vitima da justiça negociada, que começa por
partindo do Principio Dispositivo do processo civil, esquecendo que o sacrificar o contraditório e acaba por matar a igualdade de armas. Que
processo penal constitui um sistema com suas categorias jurídicas pró- igualdade pode existir na relação do cidadão suspeito frente à prepo—
pn'as e que tal analogia, além de nociva, é inadequada. Explica CAR— tência da acusação, que, ao dispor do poder de negociar, humilha e
NELUTT1324 que existe uma diferença insuperável entre o Direito Civil impõe suas condições e estipula o preço do negócio?
e o Direito Penal: en penal, con la ley no se juega. No Direito Civil, as par— O pacto no processo penal é um perverso intercâmbio, que trans—
tes têm as mãos livres; no Penal, devem tê—las atadas. forma a acusação em um instrumento de pressão, capaz de gerar auto—
O primeiro pilar da função garantista do Direito Penal e Processual a'cusações falsas, testemunhos caluniosos por conveniência, obstrucio—
é o monopólio legal e jurisdicional da violência repressiva. A justiça nis'rno ou prevaricações sobre a defesa, desigualdade de tratamento e
negociada viola desde logo esse primeiro pressuposto fundamental, pois insegurança. O furor negociador da acusação pode levar à perversão
a violência repressiva da pena não passa mais pelo controle jurisdicional burocrática, em que a parte passiva não disposta ao "acordo" vê o pro-
e tampouco submete—se aos limites da legalidade, senão que esta nas cesso penal transformar-se em uma complexa e burocrática guerra.
mãos do Ministério Público e submetida à sua discricionariedade. Tudo e mais dificil para quem não está disposto ao "negócio".
É a mais completa desvirtuação do juízo contraditório, essencial 'O promotor, disposto a constranger e obter o pacto a qualquer
para a própria existência de processo, e encaixa melhor com as práti— Preco, utilizará a acusação formal como um instrumento de pressão,
“solicitando altas penas e pleiteando o reconhecimento de figuras mais
graves do delito, ainda que sem o menor fundamento.
322 Sendo a gestão da prova o princípio fundante do sistema acusatóric, não resta dúvidas
de que o processo penal brasileiro é inquisitório. Outra não pode ser a conclusão frente
aos poderes instrutõrios que o CPP atribui aos juízes, na mais pura manifestação de
inquisitorialidade (especialmente o famigerado art. 156 do CPP). 325 Criminologia, pp. 464 e as.
323 Derechosy Garantias —la ley de.! mas débil, p. 27. 325 Na pale-stm "Garantias en e] serio del Proceso Penal USA", proferida no curso Investigar.
324 "La Equidad en el Juícío Penal". In: Cuestiones sobre el Proceso Penal, 13. 292. Acusar, Juzgar, também publicada na Revista Caras:”, nº “141, pp. 30 e ss.
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

A tal ponto pode chegar a degeneração do sistema que, de forma da igualdade, certeza e legalidade penal não passem de ideais histori—
clara e inequívoca, o saber e a razão são substituídos pelo poder atribui- camente conquistados e sepultados pela degeneração do atual siste—
do ao Ministério Público. O processo, ao final, é transformado num lujo ma. Tampouco sobrevivem nessas condições a presunção de inocência
reservado sólo a quienes estén dispuestos a afrontar sus costas y sus e .o ônus probatório da acusação. O processo penal passa a não ser
riesgos.327 mais o caminho necessário para a pena, e com isso o status de inocen-
Tampouco entendemos que 'o sistema negocial colabore para te pode ser perdido muito antes do juizo e da sentença e, principalmen-
aumentar a credibilidade da justiça, pois ninguém gosta de negociar te, sem que para isso a acusação tenha que provar seu alegado.
sua inocência. Não existe nada mais repugnante que, ante frustrados A superioridade do promotor, acrescida do poder de transigir, faz
protestos de inocência, ter que decidir entre reconhecer uma culpa ine- com que as pressões psicológicas e as coações sejam uma prática nor—
xistente, em troca de uma pena menor, ou correr o risco de submeter— mal, para compelir o acusado a aceitar o acordo e também a "seguran—
se a um processo que será desde logo desigual. ça" do mal menor de admitir uma culpa, ainda que inexistente. Os acu—
É um poderoso estímulo negativo saber que terá de enfrentar um sados que se recusam ao acordo ou a guilty plea são considerados incô-
promotor cuja imparcialidade imposta por lei foi enterrada junto com & modos e nocivos, e sobre eles pesarão acusações mais graves.
frustrada negociação, e que acusará de forma desmedida, inclusive -. - .. O panorama e ainda mais assustador quando, ao lado da acusa-
obstaculiz'ando a propria defesa. Uma vez mais tem razão GUARNIERI, ção, está um juiz pouco disposto a levar o processo até o final, quiçá
quando afirma que acreditar na imparcialidade328 do Ministério Público mais interessado que o próprio promotor em que aquilo acabe o mais
é incidir no erro de confiar al lobo la mejor defensa” de] cordero.
rápido e com o menor trabalho possivel. Quando as pautas estão cheias
No plano do direito material, as bases do sistema caem por terra. e o sistema passa a valorar mais o juiz pela sua produção quantitativa
O nexo de casualidade entre delito, pena e proporcionalidade da puni- do que pela qualidade de suas decisões, o processo assume sua face
ção e sacrificado. A pena não dependerá mais da gravidade do delito, mais nefasta e cruel. É lógica do tempo curto, atropelando as garantias
mas da habilidade negociadora da defesa e da discricionariedade da fundamentais em nome de uma maior eficiência.
acusação. Ainda, conforme se viu no Brasil, contribui para a banalizaf
ção do sistema penal, com todos os graves inconvenientes do Direito Não podemos esquecer que o mesmo juiz que preside a fase con—
Penal máximo. Em síntese, tudo dependerá do espirito aventureiro do ciliatória (com a vitima) será o que, frustradas a conciliação e a nego—
ciata (com o MP), julgará o processo. Logo, está claramente contamina—
acusado e de seu poder de barganha., ,, . . , do e será imenso o prejuízo causado pelo pré-juizo. Não há como con—
O excessivo poder — sem controle — do Ministério Público e seu
maior ou menor interesse no acordo fazem com que principios como os trolar a imagem negativa que se formará no (in)consciente do julgador,
pela frustração do acordo pela recusa do réu. Dependendo do caso, o
argumentado e admitido na fase negocial acabará fulminando —— initio
327 FERRAJDLI, Derecmy rãâón, p. 745. litis % no (in)consciente do juiz a própria presunção de inocência.
325 São múltiplas as críticas 'a artiãcial construção jurídica da imparcialidade do promotor no Criticando o sistema no Direito espanhol — criticas perfeitamente
processo penal. O crítico mais incansável foi, sem dúvida. o mestre CARNELU'ITI (Poner aplicáveis ao nosso caso —, FAlREN GUILLENªªª assinala que o “para—
en su puesto al Ministerio Publico. In: Cuestiones sobre el Proceso Penal, pp. 211 e se.),
que em diversas oportunidades pôs em relevo a impossibilidade de la cuadra tura ciel cir- doxo maior está no fato de que um Estado, que no momento segue um
culo: (No es como reducir un circulo a un cuadrado, construir uma parte imparcial? El regime politico que intervém em quase todas as esferas de atividade do
ministerio público es un juez que se hace parte. Por eso, eu mas de ser una parte que suba,
es un juez que baja. Em outra passagem (Lecciones sobre el Proceso Penal, v. 2. p. 99). cidadão, funcione em sentido contrário. abandonando o campo do
CARNELU'I'TI explica que não se pode ocultar que, se o promotor exerce verdadeiramen- Direito Público em beneficio do interesse particular — não se venha dizer
te a função de acusador, querer que ele seja um órgão imparcial não representa no pro- ágºra, ao cabo de mais de vinte anos de experiência do plea bargain nos
cesso mais que uma inútil e hasta molesta duplicidad. Para GOLDSCHMIDT (Problemas
Juridicosy Politicos dc! Proceso Penal, p. 29), o problema de exigir imparcialidade de uma
parte acusadora signiiica cair en el mismo error psicológico que ha desacreditado al pro-
ceso inquisitivo, qual seja, o de crer que uma mesma pessoa possa exercitar funções t㺠329 No prólogo da obra "La Reforma Procesal Feria] — 1988—1992". Zn: Estudios de Derecho
antagônicas como acusar, julgar e defender. ': Proa-esa! Cívil, Penal y Constitucional, p. XXXV.
Aury Lopes Jr.
Introdução Crítica ao Processo Penal _
(Fundamentos da lnstrumentaiidade Constitucional)

Estados Unidos, que o Ministério Público, ao pactuar, está sempre con- ordem, eis que ressuscitou no imaginário coletivo um rol de condutas
vencido dos motivos cívicos, públicos, admiráveis, do acusado que não deveriam mais ser objeto de tutela penal (no caso dos delitos
Também entendemos que a participação da vítima no processo de menor potencial ofensivo). Contribui. assim, para a panpenahzaçao:
penal não deve ser potencializada,33D para evitar uma molesta contami— Por derradeiro, ainda que o campo de negoc1açao prevrsto pela Lei
nação pela sua "carga vingativa". Seria um retrocesso à autotutela e 9.099 (e, no âmbito federal, pela Lei 10.259, de 12 de julho de “2,001? seja
autocomposição, questões já superadas pelos processualistas. Não se restrito, a critica justifica-se na medida em quelos problemas ]a existem
pode esquecer que a participação da vítima no processo penal, em e' podem ser potencializados em caso &? amphaçao da chamada [zona
geral, e no assistente da acusação em especial, decorre de uma preten- de consenso". Gomo explicamos no inicio. o trabalho e prospectivo e
são contingente: ressarcimento e/ou reparação dos danos. Isso acarre—
ta uma perigosa contaminação de interesses privados em uma seara
' com os futuros problemas. .
Bªtª 5553313125 nesse
cla, fulminaremos com rumo,
a maisampliando
importanteo de
espaço
todasdaasjustiça nego-ola.-
garantias. o direi-
regida por outra lógica e princípios. Desvirtua por completo todo o sis-
tema jurídico-processual penal, pois pretende a satisfação de uma pre- to a um processo penal justo.
tensão completamente alheia a sua função, estrutura e finalidade.
GOMEZ ORBANEJA331 aponta para o inconveniente da privatiza— i) Critica ao Tribunal do Júri: da Falta de Fundamentação
ción del proceso penal, completamente incompatível com sua verdadeira ' das Decisões à Negação da Jurisdição
finalidade e o caráter estatal da pena. Não resta dúvida de que as víti—
mas, em muitos casos (especialmente através da assistência), utilizam o
processo penal como uma via mais cômoda, econômica e eficiente para O ideal seria poder construir o júri para, após, desconstrui—lo
alcançar a satisfação pecuniária. Ora, para isso eldste o processo civil... desde a base e de suas equivocadas premissas. Contudo, esse e um
livro introdutório, e que pretende apenas inserir o leitor numa perspec—
Para finalizar, possivelmente a única vantagem (para os utilitaris-
tas) da plea negotiation seja a celeridade com que são realizados os
acordos e com isso finalizados os processos (ou sequer iniciados). Sob twa gotªriª explica FERRAJOLI,332 o Tribunal do Juri desempenhou um
o ponto de vista do utib'tarismo judicial, existe uma considerável eco— importante papel na superação do sistema inquisitono, tendo .o pen—
samento liberal clássico assumido a defesa do modelo de ]'LHZ crdadao
nomia de tempo e dinheiro. Ou seja, é um modelo antigarantista.
Também o argumento de que a estigmatização do acusado e em contraste com os horrores da inquisição. Mas o tempo passa e os
menor não e de todo verdadeiro. Em modelos como o nosso, a rotulação referenciais mudam. Para valorar a figura do juiz profissional, em con-
fronto com a dos juízes leigos, não são adequados os criterios do secu-
se produz em massa, na medida em que se banaliza o sistema penal ao
ressuscitar e vivificar todo um rol de crimes de bagatela e de completa lo passado (ou melhor, retrasado), invocados com algum acerto naque-
irrelevância social. Há, ainda, os casos (não raros), em que um inocen— le momento, mas completamente superados na atualidade. .
te admite a culpa (inexistente) para não “correr o risco" do processo. Um dos graves problemas para a evolução de um determmado
Em síntese, a justiça negociada não faz parte do modelo aousató- campo do saber é o repouso dogmático. Quando nao se estuda mais e
não se questiona as "verdades absolutas". O Tribunal do Jun e um dos
rio e tampouco pode ser considerada como uma exigência do processo
temas em que a doutrina nacional desfruta de um longo repouso dog—

dee legitimidade. , . .
penal de partes. Resulta ser uma perigosa medida alternativa ao pro- mático, pois há anos ninguém (ousa) questiona(r) mais sua necess1da—
cesso, sepultando as diversas garantias obtidas ao longo de séculos de
injustiças.
Ademais, está intimamente relacionada ao afastamento do Estado ' É verdade que o Tribunal do Júri é cláusula petrea da Constitui-
imposto pelo modelo neoliberal e também com o movimento da lei e ção. art. Sº, XXXVIII, mas isso não desautoriaa & critica, ate porque
podemos, sim, questionar a legitimidade de tal instituiçao para estar

330 Somos contrários, inclusive, a figura do assi-*,Lente da acusação. pelos mesmos motivos.
331 GDMEZ DRBANEJA, Emilio. Comentariosa Ja Ley de Enjui'ciamiento Criminal, v. [I. p. 231. 332 DerechoyHazón, p. 577.

146
mg;"

Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal


(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

na Constituição. Ademais, recordamos que o art. 52, XXXVIII, consagra democracia), na medida em que são membros de segmentos bem defi—
o júri, mas com a “organização que lhe der e lei". Ou seja, remete a dis—
nidos: funcionários públicos, aposentados, donas-de-casa, estudantes,
ciplina de sua estrutura 'a lei ordinária, permitindo uma ampla e subs— enfim, aqueles que não têm nada melhor para fazer e cuja ocupação
tancial reforma, desde que assegurados o sigilo das votações, a pleni— lhes permite perder um dia inteiro (ou mais) em um julgamento.
tude de defesa, a soberania dos veredictos e a competência para o jul- :Argumerita-se, ainda, em torno da independência dos jurados.
gamento dos crimes dolcsos contra a vida. Abre—se, assim, um amplo Grave equivoco. Os leigos estão muito mais suscetíveis a pressões e
espaço para reestrutura-lo (já que a extinção, pura e simples, como influências políticas, econômicas e, principalmente midiática, na medi-
desejamos, dependeria de alteração na Constituição).
Para além de tais limites, importa aqui contribuir para a formação da em que carecem das garantias orgânicas da magistratura. .
A independência, destaca FERRAJOLI, deve ser vista enquanto
de uma visão crítica, fundamental (senão para a extinção) para com-
preensão e aperfeiçoamento do júri. exterioridade ao sistema político e, num sentido mais geral, como & exte-
Um dos primeiros argumentos invocados pelos defensores do júri n'orídade & todo sistema de poderes.
e o de que se trata de uma instituição "democrática". Não se trata aqui ' A legitimidade democrática do juiz deriva do caráter democrático
de iniciar uma longuissima discussão do que seja "democracia". mas cla-Constituicao e não da vontade da maioria. O juiz assume uma nova
com certeza o fato de sete leigos, aleatoriamente escolhidos, participa- posição dentro do Estado de Direito e, a legitimidade de sua atuação
rem de um julgamento e uma leitura bastante reducionista do que seja não é política, mas constitucional, e o seu fundamento é unicamente a
democracia. A tal "participação popular" e apenas um elemento den- intangibilidade dos direitos fundamentais. É uma legitimidade demo-
tro de complexa concepção de democracia, que, por si só, não funda crática, fundada na garantia dos direitos fundamentais e baseada na
absolutamente nada em termos de conceito. democracia substancial (e não meramente formal).
Democracia e algo muito mais complexo para ser reduzido na sua - , Ademais, eles não são juizes, senão que estão temporária e preca—
dimensão meramente formal-representativa. Seu maior valor está na riamente investidos. Alem de carecerem das necessárias garantias
dimensão substancial, enquanto sistema político-cultural que valoriza orgânicas — que suportam a independência —, reforça a critica o próprio
o indivíduo em todo feixe de relações que ele mantém com o Estado e instituto do desaforamento, previsto no art. 424 do CPB que reconhece
com outros individuos. É fortalecimento e valorização do débil (no pro— a-fragilidade do binômio independência—imparcialidade do júri e permi—
cesso penal, o réu), na dimensão substancial do conceito. te ao 'Itibunal determinar o julgamento em outra comarca.
E o fortalecimento do indivíduo no processo penal se dá em duas , A falta de profissionalismo, de estrutura psicológica, aliados ao
dimensões: potencializando sua posição e condições de fala no proces—

to (terzietã). , .
mais completo desconhecimento do processo e de processo, são graves
so penal, através de contraditório e ampla defesa (reais e efetivos) e na inconvenientes do Tribunal do Júri. Não se trata de idolatrar o juiz toga-
garantia de ser julgado por um juiz natural e em posição de alheamen— do, minto longe disso, senão de compreender a questão a partir de um
minimo de seriedade científica, imprescindível para o desempenho do
Noutra dimensão, aponta—se para a legitimidade dos jurados na
ato de julgar.
medida em que são "eleitos", como se isso fosse suficiente. Ora, o que
legítima a atuação dos juízes não é o fato de serem “eleitos" entre seus Os jurados carecem de conhecimento legal e doqmático mínimo
pares (democracia formal), mas sim a posição de garantidores da eficá— para a realização dos diversos juízos axiológicos que envolvem & análi—
cia do sistema de garantias da Constituição (democracia substancial). se. da norma penal e processual aplicável ao caso, bem como uma
Ademais, de nada serve um juiz eleito, se não lhe damos as garan— razoável valoração da prova. É o grave paradoxo apontado por FAIREN
tias orgãnicas da magistratura e exigimos que assuma sua função de GUILLÉN:333 un juez lego, ignorante de la Ley, no puede aplicar un texto
garantidor. dela Ley porque no la conoce.
Os jurados tampouco possuem a "mm
ga" necessária (ainda que se analisasse numa dimensão formal de 333 FAIRÉN GUILLÉN, Víctor. E] Jurado, p. 57.

148 3149
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

O próprio "sentire"334 — essência do ato de decidir —- exige uma inquérito policial (portanto, em segredo, sem defesa ou contraditório e
prévia cognição e compreensão da complexidade juridica. sendo inad—
missível o empirismo rasteiro empregado pelo júri. não-judicializado). . . , . . '
Em que pese o sistema brasileiro não excluir olmquento pohcral
Outro grave problema refere-se ao aspecto probatório, espinha de dentro dos autos do processo de conhecimento, e sabidoque uma
dorsal do processo penal. Na sistemática brasileira, a prova é colhida
sentença penal condenatória não pode amparar—se exclusrvamente
na primeira fase, diante do juiz presidente, mas na ausência dos jura—
dos. Em plenário, até pode ser produzida alguma prova, mas a prática
demonstra que essa é uma raríssima exceção. .
A regra geral é a realização do interrogatório (obrigatório, nos
termo do art. 449 do CPP) e a mera leitura de peças, com acusação e
na sentença. .
nos elementos colhidos na fase inquisitorial. O (relativo) oontrole da
observância de tal garantia cla-se atraves da fundamentação exarada

Contudo, no Tribunal do Júri, qualquer esperança de ser julgado a


partir da prova judicializada cai por terra. na medida em que nãodexrs-
defesa explorando a prova já produzida e subtraindo dos jurados a pos- te a exclusão física dos autos do inquérito e tampouco ha vedação-de
sibilidade do contato direto com testemunhas e outros meios de provas. que se utiliza em plenário os elementos da fase inquisitorial (1nc1us1ve
O julgamento resume-se a folhas mortas. Os jurados desconhecem
o Direito e o próprio processo, na medida em que limitam-se ao trazido o julgamento pode travar-se exclusivamente em torno dos atos do
inquérito policial). Para completar o triste cenano, .os. jurados julgam
pelo debate, ainda que, em tese, tenham acesso a "todo" o processo por livre convencimento imotivado, sem qualquer distinção entre atos
(como se o “todo" fosse apreensiva], realmente estivesse no processo e
esse processo fosse realmente de conhecimento dos jurados).
de investigação e atos de prova. . -
' O golpe fatal no júri esta na absoluta falta de motivacao do ato
Outra garantia fundamental, que cai por terra no Tribunal do Júri, decisório. A motivação serve para o controle da racionalidade de dom-
é o direito de ser julgado a partir da prova judicializada. Em diversas
são judicial. Não se trata de gastar folhas e folhas para demonstrar eru-
oportunidadesª35 explicamos a distinção entre atos de investigação dição juridica (e jurisprudencial) ou discutir obviedades. O mais impor-
(realizados no inquérito policial) e atos de prova (produzidos em juízo,
tante e explicar o porquê da decisão. o que o levou a tal conclusao
na fase processual), ressaltando a importância de que a valoração que sobre a autoria e materialidade. A motivação sobre a matena fatica
encerra o julgamento recaia sobre os atos verdadeiramente de prova, demonstra o saber que legitima o poder, pois a pena somente pode ser
devidamente judicializados e colhidos ao abrigo do contraditório e da
ampla defesa. imposta a quem — racionalmente — pode ser considerado autor do fato
criminoso imputado. Como define IBANEZ,338 o ius dicere em materia
A garantia da "originalidade"335 decorre da função endoprocedi- de direito punitivo deve ser uma aplicaçâo/explicação: um exercrcro de
mental dos atos da investigação, que possuem eficácia interna a fase. Poder fundado em um saber consistente por demonstradamente bem
para fundamentar as decisões interlocutórias tomadas no curso da adquirido. Esta qualidade na aquisição do saber é condição essencral
investigação. Para tanto, defendemos a adoção do sistema de exclusão Para legitimidade do atuar jurisdicional.
Hsica do inquérito poiioial,337 buscando evitar a contaminação do julga— A decisão dos jurados é absolutamente ilegítima porque carecedo-
dor pelos atos (de investigação) praticados na fase inquisitória do ra de motivação. Não ha a menor justificação (fundamentação) para
Seus atos. Trata—se de puro arbítrio, no mais absoluto predomínio do
poder sobre a razão. E poder sem razão e prepotência. .
334 Recordando que sentença expressa sentimento, deriva de sententia, gerúndio do verbo
A situação é ainda mais grave se considerarmos que a liberdade
"sentira". O julgador "sente", no sentido de valoração da prova e da própria axiologia de' convencimento (imotivado) é tão ampla que permite o julgamento a
335
(incluindo a carga ideológica) que faz da norma penal e processual penal aplicável ao caso. Partir de elementos que n_ãg estão no processo. A ”intima convicção",
Entre outros, consulte-se nossa obra Sistemas de Investigação Preliminar no Processo despida de qualquer fundamentação, permite a imensa monstruosida—
Penal, publicado pela Editora Lumen Juris.
336 O objetivo é a máxima originaiità do processo pena1,como explicam FERRAIDLI e BALL“.
na obra Manuais di Diritto Processuaie Penais, pp. 568 e se.
33? Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal, pp. 209 e ea. - 338 Garantísmo yproceso penal, p. 59.

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Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

de jurídica de ser julgado a partir de qualquer elemento. Isso significa Interessante, ainda, como um dos principais pilares em comum do
um retrocesso ao Direito Penal do autor, ao julgamento pela "cara", cor, Direito Penal e do processo penal cai por terra sem quem ninguém o pro—
opção sexual, religião, posição socioeconômica, aparência física, postu— teja. 0 in dubio pro rec e premissa hermenêutica inafastãvel do Direito
ra do réu durante o julgamento ou mesmo antes do julgamento, enfim, Penal e, no campo processual, juntamente com a presunção de inocência,
é imensurável o campo sobre o qual pode recair o juízo de (des)valor norteadores da axiologia probatória. Ao mesmo tempo informa a interpre—
que o jurado faz em relação ao réu. E, tudo isso, sem qualquer funda- tação da norma penal e a valoração da prova no campo processual.
mentação. Quando os jurados decidem pela condenação do réu por 4x3, está
A amplitude do mundo extra-autos que os jurados podem lançar evidenciada a dúvida, em sentido proceSSual. Significa dizer que exis—
mão sepulta qualquer possibilidade de controle e legitimação desse te apenas 57,14% de consenso, de convencimento. Questiona—se: al—
imenso poder de julgar. Nem mesmo o catalão NICOLAU EYMERICH, o guém admite ir para a cadeia com 57,14% de convencimento? Ele-
mais duro dos inquisidores, no famoso Dírectorium Inquisitorum, elabo- mentar que não.
rado em 1376, posteriormente ampliado por Francisco de la Pena em A sentença condenatória exige prova robusta, alto grau de proba—
1578, imaginou um poder de julgar tão amplo e ilimitado. bilidade (de convencimento), algo incompatível com um julgamento
A supremacia do poder dos jurados chega ao extremo de permitir por 433. Ou seja, ninguém poderia ser condenado por 4x3, mas isso
que eles decidam completamente fora da prova dos autos. Imaginemos ocorre diuturnamente no tribunal do júri, pois lá, como diz o jargão
um julgamento realizado no tribunal do júri, cuja decisão seja manifes— forense, o in dubio pro rec passa a ser lido pelos jurados como in dubio
tamente contrãria à prova dos autos (condenatória ou absolutória). Há "pau" no rec...
recurso de apelação com base no art. 593, III, "d", do CPP; que, uma vez ' Mas não é apenas no plenário que o in dubio pro rec e abandonado.
provido pelo Tribunal, conduz a realização de novo júri (consequência Ao“ final da primeira fase, o juiz presidente poderá tornar uma dessas
da aplicação da primeira parte do parágrafo terceiro do alt. 598). Esse quatro decisões: absolver sumariamente, desclassificar, impronunciar ou
“novo" júri será composto por outros jurados, mas como o espetáculo pronunciar. O problema não está na decisão em si, mas no princípio que
será realizado pelos mesmos "atores", em cima do mesmo "roteiro" e irá orientar a valoração da prova nesse momento. A imensa maioria dos
no mesmo cenário, a chance de o resultado final ser igual é imensa. autores e tribunais segue repetindo que, nessa fase, a luz da “soberania
E, nesse "novo" júri, a decisão é igual a anteriormente prolatada do júri" (novamente o argumento de autoridade, mas completamente
e, portanto, novamente divorciada da prova dos autos. Duas decisões vazio de sentido), o juiz deve guiar-se pelo in dubio pro societate.
iguais, em manifesta dissociação com o contexto probatório. ' A pergunta é: qual a base constitucional desse “principio"?
Poderá haver então novo recurso, aduzindo que novamente os Nenhuma, pois ele não foi recepcionado pela Constituição de 1988 e
jurados decidiram contra a prova dos autos? Não, pois a última parte não'pode coexistir com a única presunção constitucionalrnente consa-
do parágrafo terceiro do art. 593 veda expressamente essa possibilida- grada: a presunção de inocência e o in dubio pro rec.
de. Logo, se no segundo júri eles decidirem novamente contra a prova . .“ Meritória exceção doutrinária, PAULO RANGEL339 também ataca
dos autos, não caberá recurso algum. tal,construção, afirmando que o chamado principio do in dubio pro
Os jurados podem então decidir completamente fora da prova dos seeietate não é compativel com o Estado Democrático de Direito, onde a
autos sem que nada possa ser feito. Possuem o poder de tornar o que- dúvida não pode autorizar uma acusação, colocando uma pessoa no
drado, redondo, com plena tolerância dos 'Itibtmais e do senso comum
ban-Co dos réus.(.,.) O Mhistério Público, como defensor da ordem jurídi-
teórico, que limitam—se a argumentar, fragilmente. com a tal "suprema—
ca e dos direitos individuais e sociais indisponíveis, não pode, com base
cia do júri", como se essa fosse uma "verdade absoluta", inquestioná—
vel e insuperável. na dúvida, manchar & dignidade da pessoa humana e ameaçar a liber-
dade de locomoção com uma acusação pena].
Nós preferimos deixar o autismo jurídico de lado (e suas verdades
absolutas, reais, etc.) e tratar da questão no campo da patologia juridi— ___—4...
ca. da intolerável supremacia do arbítrio. 339 RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 13. 79.
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da lnstrumentaiidade Constitucional)

Com razão, RANGEL destaca que não há nenhum dispositivo legal ou isento. e sim esclarecer bastante que nada foi legitimamente prova-
que autorize esse chamado principio do in dubio pro societate. O ônus do contra ele; desta forma, se, mais tarde, trazido novamente diante do
da prova, já dissemos, e' do Estado e não do investigado. Por derradeiro, tribunal, for indiciado por causa de qualquer crime. possa ser condena-
enfrentando a questão na esfera do Tribunal do Júri, segue o autor do sem problemas, apesar da sentença de absolvição"
explicando que, se há dúvida, e' porque o Ministério Público não logrou Entendemos assim que o estado de pendência e de indefinição
êxito na acusação que formulou em sua denúncia, sob o aspecto da auto- gerado pela impronúncia cria um terceiro gênero não recepcionado
ria a materialidade, não sendo admissível que sua falência funcional seja pela Constituição, onde o réu não é nem inocente, nem está condena—
resolvida em desfavor do acusado, mandando-o a júri, onde o sistema do definitivamente. E como se o Estado dissesse: ainda não tenho pro—
que impera, lamentavelmente, é o da intima convicção. (...) A desculpa vas suficientes, mas um dia eu acho... (ou fabrico...); enquanto isso. fica
de que os jurados são soberanos não pode autorizar uma condenação esperando,
com base na dúvida. A questão também deve ser tratada a luz do direito de ser julgado
Ainda, nesse momento processual, cumpre desvelar o absurdo em um prazo razoável, como explicamos anteriormente. Não só o poder
gerado pela decisão de impronúncia, art. 409 do CPB proferida quando de acusar está condicionado no tempo, senão também que o réu tem o
o juiz não se convencer da existência do crime ou de que o réu seja seu direito de ver seu caso julgado. A situação de incerteza prolonga a
autor. O problema reside na possibilidade, prevista no parágrafo único, pena—processo por um periodo de tempo absurdamente dilatado (como
de o processo ser reaberto a qualquer tempo, enquanto não estiver ' será o da prescrição pela pena em abstrato nesses crimes). deixando o
extinta a punibilidade, se surgirem novas provas. A impronúncia não réu a disposição do Estado, em uma situação de eterna angústia e
resolve nada. Gera um angustiante e ilegal estado de "pendência", grave estigmatização social e jurídica. Retornando à lógica inquisito-
pois o réu não está nem absolvido, nem condenado. E, o que é pior, rial, a extinção da punibilidade tampouco resolve o grave problema
pode voltar a ser processado pelo mesmo fato a qualquer momento. criado, não só porque constitui uma absurda (dah-nora jurisdicional,
Acertada e a lição de PAULO RANGEL,340 no sentido de que “tal mas também porque não o absolve plenamente. Significa apenas que o
decisão não espelha o que de efetivo se quer dentro de um Estado “réu foi suficientemente torturado e nada se conseguiu provar contra
Democrático de Direito, ou seja, que as decisões judiciais ponham um ele", no mais puro estilo do Directorium Inquisitorum.
fim aos litígios, decidindo—os de forma meritória. dando, aos acusados '- Aqui, outra não poderá ser a solução adotada: se não na prova
e à sociedade, segurança jurídica". suficiente para a pronúncia (ou desclassificação), o réu deverá ser
Trata-se de uma decisão substancialmente inconstitucional e que absolvido (art. 386, II ou IV).
viola, quando de sua aplicação, a presunção de inocência. Se não na Por fim. deve ser enfrentada a questão da Leilª. que'tambem
prova suficiente da existência do fato e/ou da autoria, para autorizar a está presente nos julgamentos levados a cabo por juízes togados, o que
pronúncia (e, recorde—se, nesse momento processual, vigora a presun- é elementar. Contudo, não é necessário maior esforço para verificar que
ção de inocência e o in dubio pro rec), a decisão deveria ser absolutória. :a margem de erro (injustiça) é infinitamente maior no julgamento reali-
O que resulta, por evidente, inadmissível é colocar — como define ' zado por pessoas que ignoram o direito em debate e a própria prova da
RANGEL — o indivíduo no banco de reservas aguardando novas provas situação fática em torno do qual gira o julgamento, e, como se não bas—
ou a extinção da punibilidade! tasse são detentoras do poder de decidir de capa—a—capa e mesmo
: :|
A impronúncia remonta a uma racionalidade tipicamente inquisi- fora—cla- -capa“ do processo, sem qualquer fundamentação. Os juízes e
tória, em que o herege não deveria ser plenamente absolvido, senão hibunais também erram, e muito, mas para isso existe todo um sistema
que — como explica EYMERlCl-l341 — “o inquisidor tomara cuidado para de garantias e instrumentos limitadores do poder, que reduzem os espa-
não declarar em sua sentença de absolvição que o acusado e inocente ços impróprios da discricionariedade judicial (mas não eliminam, é
claro). A fertilidade do terreno da injustiça e completamente diversa.
. É como querer comparar a margem de erro de um obstetra e sua
340 RANGEL. Paulo. Direito Processual Penal, 103 edição. 1). 541.
341 EYMERlCI—I, Nicolau. Manual dos Inquisidores, pp. IED-151. EQHÍDE numa avançada estrutura hospitalar de uma grande capital, com
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

a de uma parteira, isolada em plena selva amazônica. É óbvio que o risco E os argumentos contrários ao júri seguem, numa lista interminá—
está sempre presente, mas com certeza a probabilidade desua efetiva— velª7 e. o que é mais grave, inabaláveís pelos frágeis argumentos dos
ção e bastante diversa. E se a parteira, em plena selva amazônica, é útil defensores da instituição. Salta aos olhos que a administração de justi—
e necessária, diante das inafastãveis circunstâncias, o mesmo não se ça pode perfeitamente prescindir de uma instituição tão arcaica e pro-
pode dizer do Tribunal do Júri, instituição perfeitamente prescindivel. blemática como é o Tribunal do Júri.
Com certeza, é bastante sedutor o discurso manipulado em torno Contudo, considerando a (infeliz) consagração constitucional, o
do ”saber do homem simples", mas é demagógico e busca apenas des- que impediria a extinção pura e simples do júri, a única alternativa que
viar o eixo da discussão. Quando refutamos a necessidade desse tipo resta para amenizar os graves inconvenientes dessa monstruosidade
de participação do “homem simples",342 não o fazemos por arrogância jurídica, é o sistema de escabinato, a seguir analisado.
científica ou desprezo do saber decorrente da experiência (como certa-
mente argumentarão os defensores do júri), senão que deixamos o g) Uma Alternativa Interdisciplinar ao Tribunal do Júri:
populismo de lado para definir as diferentes dimensões da participa- O Escabinato
çãoíªª'l3 do homem na distribuição da justiça.
O chamado Princípio de Justiça Proú'ssionai é considerado impres— Explica GIMENO SENDRAªªB que o escabinato representa uma
cindível para a correta administração da justiça, tendo sido, inclusive, instituição superior ao júri, pois juizes leigos e técnicos atuam e deci—
objeto de analise e aprovação no “I Congreso Nacional de Derecho dem ,em colegiado. Trata-se de uma modificação na estrutura do órgão
Procesal" e, posteriormente, no "II Congreso Iberoamericano y Filipino colegiado, que passa a ser composto por juízes de carreira e "leigos"
de Derecho Procesal".344 É a forma mais eficiente de não chegar hasta gue, decidem conjuntamente. Os jurados leigos constituem um obstá—
el extremo de poner la administración humana de la justicia en ese culo à rotina judiciária, pois podem aportar regras da experiência que
extremo: de un si a un no emitidos por un ignorante de] Derecho.345 . ventilam o mecânico ato de julgar Por outro lado, mais significativa e a
Naquela ocasião, ARAGONESES ALONSO,346 explicou que a com— influencia do juiz—técnico sobre o leigo, ao prestar—lhe assessoramento
plexidade do Direito Positivo nos levou a establecer un primer principio, juridico qualificado e uma dilatada experiência na atividade jurisdicio—
el de que si las resoluciones de los organismos jurísdiccionales han de Ii'al, "requisitos indispensáveis para o bom funcionamento da moderna
basarse en la ley, el órgano jurisdiccional no puede en modo alguna estar administração da justiça.
encarnado en un lego, pois o problema de se as decisões podem ser jus— Claro que isso significaria uma substancial transformação do trí—
tas sem ser legaisé eextremamente complexo. A equidade encerra pro— bunal do júri, que perpassaria a questão da composição para influir
blemas e dificuldades muito maiores que a mera legalidade, não permi— também na própria forma de funcionamento da instituição, na medida
rindo que o leigo decida quando sequer compreende a dimensão da em. que afetaria a incomunicabilídade, a quesitação e permitiria tam—
própria legalidade. bfrn observar a necessária fundamentação das decisões judiciais (que
poderia ser elaborada em conjunto por leigos e técnicos, em momento
... erior ou mesmo imediatamente posterior à publicação da decisão).
342 Que deve ser um parente não muito distante do famoso "homem médio", figura folclo- . . O ideal' e que os “leigos" assim o sejam em relação ao Direito mas
rica da dogmática penal e que bem reflete a utilidade dos conceitos vagos. de conteú- -5 técnicos em áreas úteis ao julgamento. Diante da complexidade e da
do impreciso e indeterminado, para as manipulações interpretativas e subversões " elementar falência do monólogo cientifico (incluindo o jurídico), é extre-
axiológicas.
343 Ou ainda. quando se argumenta da importância para a "democracia" de termos jurados 'mamente útil que o julgamento seja realizado por órgãos colegiados,
eleitos, exigir que, ao embarcar num vôo, faça-se uma eleição para ver quem vai coman—
dar a aeronave.... É óbvio que "essa democracia" ninguem quer, e nem por isso somos “%%—_
adeptos do autoritarismo!
344 Como informa ARAGONESES ALONSO. Proceso ]! Derecho Procesal, p. 155. 3,47 Que dizer então do sistema de votação, dos famigerados quesitos? Trata- -se de uma fonte
345 FAIRÉN GU'íLLÉN, Victor. EI Jurado p. 57 inesgotávei de nulidades processuais e de produção de graves injustiças. A complexida-
.- de do nosso sistema de quesitação precisa ser urgentemente revisada.
346 Conforme consta nas "Actas del I Congreso Nacional de Derecho Procesai", publicadas
Em Madri no ano de 1950 especialmente nas páginas 223 e 224 - . 345 GIMENO SENDRA, José Vicente. Fl.:ndamentos de! Derecho ProcesalPena1.p.37.

157
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Aury Lopes Jr.


Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

compostos por pessoas com conhecimento em diferentes áreas do


julgamento é realizado em colegiado, especialmente quando na compo—
saber, conforme a própria matéria submetida ao júri. sição estão alguns juizes leigos. Isso diminui um dos mais graves peri—
Na Alemanha,349 o Tribunal de Escabinos atua no plano dos gos do julgamento por um juiz profissional: la frialdad ;! la abstracción,
Amtsgen'chte, sendo composto por juizes honorários (escabinos) ao lado 1a perdida del sentido de lo concreto.
de um ou dois juízes profissionais. Nas Câmaras ou Turmas dos Tribunais ,, Sem embargo, tampouco o sistema está imune a críticas. LORCA
do Land, existem igualmente dois juízes leigos ao lado de um ou três juí- NAVARRETEªªª recorda que o modelo aponta para um panjurisdiccío-
zes proi'issionais. Como aponta TIEDEI).!IANINLÉD nos crimes mais graves, nalísmo, com antecedentes históricos nos Tribunais Militares de carã-
e composto por três juízes profissionais e dois escabinos, com igual direi- ter não democrático. Seria uma forma híbrida e hipócrita de participa-
to de voto sobre as questões de culpabilidade, punibilidade. ção popular na administração da justiça, pois são inegáveis o poder
Também em outros países europeus, com longa tradição no siste- dos juizes profissionais e o respeito que inspira sua função, fazendo
ma de jurado "puro", está se operando uma modificação para o escabi- com que a participação dos leigos seja meramente simbólica.
nato, a exemplo do que já está ocorrendo na Fiança, Itália e Portugal. Desde a perspectiva da Psicologia Social, PAÚL VELASC0353 expli—
A rejeição que existe em relação ao tribunal do júri no meio juridi— ca que incluir juizes técnicos e possibilitar aos leigos discutir tanto a
co (europeu) é muito maior do que aquela dirigida ao escabinato. questão fática como a juridica não incrementa a participação cidadã. Ao
Cresce a consciência da complexidade das sociedades contemporâ- contrário, o juiz exercerá uma grande influência informativa durante a
neas e, como consequência, da própria complexidade que envolve a deliberação, devido a sua posição de superioridade técnica, e isso é logo
fenomenologia da violência, passando a exigir uma visão interdiscipli— percebido pelos leigos, que ficam inibidos e diminuídos diante dessa
nar da questão. Com isso, a solução passa por julgamentos em órgãos realidade. Como consequência, a superioridade técnica conduz a uma
colegiados, compostos por juízes togados e pessoas leigas em Direito, superioridade hierárquica do juiz profissional em relação ao leigo, bem
mas especialistas em outras áreas como Economia (para os julgamen— como um predomínio de sua opinião. Ainda que exista uma supremacia
tos que envolvam questões comerciais); em Educação e Pedagogia numérica dos leigos, a situação não se alteraria, pois aunque las figuras
(para o julgamento de crianças e adolescentes); em Informática (para de poder sean minimas numericamente son máximas psicologicamente.
os delitos cometidos por Internet ou mesmo criminalidade organizada); Cumpre destacar, ainda, a interessante proposta de CARNELUT—
em Psiquiatria, Sociologia e Antropologia (para as causas criminais). TI,354 de atribuir um oficio consultivo ao júri, de modo que o veredicto
Isso não só é possivel, como recomendável. não teria um efeito vinculante. A solução encontrada pelos jurados
Os conhecimentos e convicções pessoais que os leigos (em seria sugerida aos magistrados profissionais, que poderiam aceitar ou
Direito) podem aportar são extremamente úteis para o juiz profissional. rechaçar. no todo ou em parte, a sugestão. mantendo assim seu poder
e o resultado do intercâmbio e francamente favorável para a melhor decisório. Assim, se manteria a principal vantagem do júri popular —
administração da justiça. Outra vantagem apontada é que no sistema equidade e sensibilidade —, conservando nas mãos do juiz profissional
de escabinato os juizes leigos e os profissionais formam um colegiado D.,poder de última palavra. Segundo o autor, além de despertar a sensi-
único, decidindo sobre o fato e o direito, de modo que os conhecimen— 1?ílidade dos juízes profissionais, exigiria uma melhor fundamentação
tos de um podem suprir as lacunas do outro. para justificar eventual dissentirnento em relação à opinião dos jurados
Para CARNELUTTI,351 mesmo quando o juiz está bem preparado. leigos. Corno via de controle, sugere CARNELUTTI que as partes tives-
não consegue ver mais do que un encuadramiento de la realidad, um Sªm à sua disposição uma via recursal de mérito, de modo que & impos-
único ângulo, e a perda da capacidade cognoscitiva diminui quando o

%
sibilidade de alcançar uma decisão consensual pudesse ser verificada
pºr um Tribunal Superior.
349 'l'lEIÍJEMANN, ROXIN y ARZ'I'. Introducción el Derecho Penal y si Derecho Process! Penal.
13. 152.
352 El Jurado Espai-lol —- La nueva Ley de! Jurado. p. 27.
350 Introducción el Derecho Penal y el Derecho Process] Penal. 13. 153. 353 E! Tribunal de.! Jurado desde la Psicologia Social, pp. 16-17.
351 Derecho Procesal Civil y Penal, pp. 3551-350. 354 "La equidad en el Juicio Penal". In: Cuestiones sobre el Proceso Penal. 1331 295 e 55-

158
Aury Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Iostrumentalídade Constitucional)

Concluindo, ainda que o sistema de escabinos também possua cebe mais à flor da pele que nos demais ramos jurídicos". E esse fenô-
inconvenientes, com certeza são muito menores que aqueles enumera- meno é ainda mais notório no processo penal, na medida em que e ele,
dos para o Tribunal do Júri. Como já apontado, não só é fundamental e não o Direito Penal, que toca no homem real, de carne e osso. Como
alterar a composição do órgão colegiado, mas também a forma como afirmamos anteriormente, o Direito Penal não tem realidade concreta
deve se desenvolver o próprio julgamento, incluindo aqui a necessária fora do processo penal, sendo as regras do processo que realizamdrre—
fundamentação que deve acompanhar a decisão. tamente o poder penal do Estado. Por isso, conclui MAYER, e no Direito
Em última análise, a única opção que desponta como absoluta— fProcessual Penal que as manipulações do poder político são mais fre—
mente inadmissível é continuar exatamente como está, pois são tantos quentes e destacadas, até pela natureza da tensão existente (poder de
e tão graves os problemas do Tribunal do Júri que ele representa a pró- penar versus direito de liberdade). . . . . '
No processo, o endurecimento manifesta-se no utilrtarismo ]udr—
pria negação da jurisdição.
cial, em atos dominados pelo segredo, forma escrita, aumento das
penas processuais (prisões cautelares, crimes inafiançáveis, etc. ), algu—
ll. Gestão da Prova e Separação das Atividades de. mas absurdas inversões da carga probatória e, principalmente, mais
Acusar e Julgar: Sistemas Acusatório e Inquisitório poderes para os juizes 'investigarem"
Pode- se constatar que predomina o sistema acusatório nos países
Na história do Direito se alternaram as mais duras opressões “ci-fue respeitam mais a liberdade individual e que possuem uma sólida
com as mais amplas liberdades. É natural que nas épocas em que o hase democrática. Em sentido oposto, o sistema ínquisitório predomi—
Estado viu-se seriamente ameaçado pela criminalidade o Direito na historicamente em países de maior repressão, caracterizados pelo
Penal tenha estabelecido penas severas e o processo tivesse que ser autoritarismo ou totalitarismo, em que se fortalece a hegemonia esta-
também infiel-cívelíªª5 Os sistemas processuais inquisitivo e acusató— tal em detrimento dos direitos individuais.
rio são reflexo da resposta do processo penal frente às exigências do ' cronologicamente, em linhas gerais, 355 o sistema acusatório pre—
Direito Penal e do Estado da época. Atualmente, o law and order é dominou até meados do século XII sendo posteriormente substituido,
mais uma ilusão de reduzir a ameaça da criminalidade endurecendo gradativamente, pelo modelo inquisitorio que prevaleceu com plenitu—
o Direito Penal e o processo. de até o final século XVIII (em alguns países. até parte do século XIX),
Na lição de J. GOLDSCHMIDT,356 "los principios de la politica pro- momento em que os movimentos sociais e políticos levaram a uma
cesal de una nación no son otra cosa que segmentos de su política esta— nova mudança de rumos. A doutrina brasileira, majoritariamente,
tal en general. Se puede decir que la estructura del proceso penal de una aponta que o sistema brasileiro contemporâneo é misto (predomina o
nacr'ón no es sino el termómetro de los elementos corporativos o autori— inquisitorio na fase pré- -processual e o acusatório, na processual). .
tarr'os de su Constitución. Partíendo de esta experiencia, la ciencia pro— Ora, afirmar que o ”sistema é misto" é absolutamente insufi-
cesal ha desarrollado um número de princípios opuestos constitutivos del Óíente, ate porque não existem mais sistemas puros (são tipos histo-
proceso. (...) E] predomínio de uno u otro de estos princípios opuestos en ricos), todos são mistos. A questão é, a partir do reconhecimento de
el derecho vigente, no es tampoco mas que un transito del derecho pasa-
do al derecho del futuro ".
Nessa linha, MAIER357 explica que no Direito Penal "a influência SSB Nosso objeto de estudo está circunscrito à estrutura dos sistemas, buscando definir suas
' ' notas processuais caracteristicas. Por esse motivo, O aspecto histórico (ainda que extre-
da ideologia vigente ou imposta pelo efetivo exercício do poder se per— mamente relevante) será tratado com bastante superficialidade. Recomendamos, para
” aprofundar o estudo, a leitura (entre outras) das seguintes obras: Julio Maier, Derecho
* Procesal Penal — thdamentos (especialmente o Capítulo II, 5 5ª); Vicenzo Manzmr,
Derecho Procesal Penal, torno I; Alfredo Vélez Mariconde, Derecho Procesal Penal, tomo 1;
355 BELING, Ernst. Derecho Process;1 Penal, p. 21. Ernst Beling, Derecho Procesal Penal; Franco Cordero, Procedimiento Penal (ou na ”Gruda
356 Problemas Jurídicos yPoliticos del Proceso Penal, 13. 67. alla Procedure Penela); José Henrique Pierangelli, Processo Penal: Evolução Hrstorrca e
357 MALER, Julio 13. J. Derecho Procesal Penal —Fundamentos, p. 260. Fontes Legislativas e Geraldo Prado, Sistema Acusatárr'o.

151
Auryr ches Jr.
Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da instmmentaiidade Constitucronal)

que não existem mais sistemas puros, identificar o princípio informa— arte de declamar em público, podendo exibir para os eleitores sua apti—
dor de cada sistema, para então classifica—lc como inquisitório ou dão para os cargos públicos.
acusatório, pois essa classificação feita a partir do seu núcleo é de Corno notas caracteristicas, destacamos:
extrema relevância.
Antes de analisar a situação do processo penal brasileiro contem—
porâneo, vejamos — sumariamente — algumas das características dos-
a) a atuação dos juízes era passiva, no sentido de que ele se
mantinha afastado da iniciativa e gestão da prova, atrvrdades
sistemas acusatório e inquisitório.

distintas; . . _ .
a cargo das partes;
a) Sistema Acusatório b) as atividades de acusar e julgar estao encarregadas a pessoas

c) adoção do principio ne proceder index ex offrcro, nao se admi-


A origem do sistema acusatório remonta ao Direito grego, onde se
desenvolve referendado pela participação direta do povo no exercício
da acusação e como julgador. Vigorava o sistema de ação popular para
mo e idôneo; _
tindo & denúncia anônima nem processo sem acusador legiti-

d) estava apenado o delito de denunc1açao caluniosa, como


os delitos graves (qualquer pessoa podia acusar) e acusação privada forma de punir acusações falsas e não se podia proceder con-
para os delitos menos graves, em harmonia com os princípios do tra réu ausente (até porque as penas são corporais);
Direito Civil.
e) acusação era por escrito e indicava as provas;
No Direito Romano da Alta Republica-'ª59 surgem as duas formas do f) havia contraditório e direito de defesa;
processo penal: cognitio e accusatío. A cognitio era encomendada aos " g) o procedimento era oral;
órgãos do Estado — Magistrados. Outorgava os maiores poderes ao la) os julgamentos eram públicos, com os magistrados votando
Magistrado, podendo este esclarecer os fatos na forma que entendes— ao final sem deliberar.360
se melhor. Era possível um recurso de anulação (provocaria) ao povo,
sempre que o condenado fosse cidadão e verão. Nesse caso, o Mas na época do Império o sistema acusatório foi se mostrando
Magistrado deveria apresentar ao povo os elementos necessários para insuficiente para as novas necessidades de repressão dos delitos, ade—
a nova decisão. Nos últimos séculos da República, esse procedimento
mais de possibilitar com freqiiência os inconvenientes deuma persecu-
começou a ser considerado como insuficiente, escasso de garantias, ção inspirada por ânimos e intenções de vingança. Por meio dos ofimais
especialmente para as mulheres e para os que não eram cidadãos (pois públicos que exerciam a função de investigação (os denolrn'mados

resultados obtidos. .
não podiam utilizar o recurso de anulação) e acabou sendo uma pode— curiosí, nuncíatores, stationarii, etc.) eram transmitidos aos Juizes os
rosa arma politica nas mãos dos Magistrados.
Na accusatio, a acusação (pólo ativo) era assumida, de quando em
A insatisfação com o sistema acusatório vigente for causa de que
quando, espontaneamente por um cidadão do povo. Surgiu no último os juizes invadissem cada vez mais as atribuições dos acusadores pri-
século da República e marcou uma profunda inovação no Direito vados, originando a reunião, em um mesmo órgão do Estado, das fun-
Processual romano. Tratando—se de delícta publica, a persecução e o ções de acusar e julgar.
exercício da ação penal eram encomendados a um órgão distinto do A partir daí, os juizes começaram a proceder de oficio, sem acusa—
juiz, não pertencente ao Estado, senão a um representante voluntário
da coletividade (accusator). Este método também proporcionava aos ção formal, realizando eles mesmos a investigação e posteriormente
dando a sentença. Isso caracterizava o procedimento extraordinário,
cidadãos com ambições politicas uma oportunidade de aperfeiçoar a que, ademais, introduziu a tortura no processo penal romano.

359 GIMEND SENDRA, Vicente. Frmdamentos de] Derecho Procesal, p. 190. - SGD ARAGÚNESES ALONSO, Pedro. Instituciones de Derecho Process] Penal, pp. 39 e ss.

162
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal .
(Fundamentos da Iostrumentalidade Constituctonal)

E se no início predominava a publicidade dos atos processuais, isso


foi sendo gradativamente substituído pelos processos a porta fechada. mesmo com os mais graves, como foi a inquisição. Basta. consâataí cªi
As sentenças, que na época Republicana eram lidas oralmente desde o o atual CPP atribui poderes instrutónos para o juiz, lamarcria oª uma
alto do Tribunal, no Império assumem a forma escrita e passam a ser nais e doutrinadores defende essa "postura lativa por parte o ] m
(muitas vezes invocando a tal "verdade real . esquecendo a erige
lidas na audiência. Nesse momento surgem as primeiras características desse mito e não percebendo o absurdo do conceito), proliferam proje-
do que viria a ser considerado como um sistema: o inquisitorio. tos ,de lei criando juízes inquisidores e "julaados de mstruçao ,.etc.
Também o processo penal canônico (antes marcado pelo acusató—
rio) contribuiu definitivamente para delinear o modelo inquisitorio,
mostrando na Inquisição Espanhola sua face mais dura e cruel.
Finalmente, no século XVIII, a Revolução Ftancesa e suas novas
' ' 'nha nas trevas. . ,
.: Não
diria podemos reincidir
TOCQUEVILLE: umaemvezerros
que historicos
o passado dessaforma, pois,
Ja nao ilumma

GSPmOtº sigma acusatorio é um imperativo do moderno processo


comoo
o tura,

ideologias e postulados de valorização do homem levam a um gradual


abandono dos traços mais cruéis do sistema inquisitorio. penal, frente à atual estrutura social-e politica do 'Estado. 'Asseguígna
Na atualidade, a forma acusatória caracteriza—se pela: imparcialidade e a tranquilidade psicologica do juiz que ira seg íxá
ciar; garantindo o trato digno e respeitoso com _o acusado, qne e t
de'ser um mero objeto para assumir sua pos1çao de autentica-par e
a) clara distinção entre as atividades de acusar e julgar; passiva do processo penal. Também conduz a uma maior tranquilida—
b) a iniciativa probatória deve ser das partes; . . de'social, pois evita—se eventuais abusos de prepotencra estatal mãe
c) mantém—se o juiz como um terceiro imparcial. alheio a labor de se“ pode manifestar na figura do juiz "apaixonado pelo resultado . e
investigação e passivo no que se refere à coleta da prova, sua labor investigadora e que, ao sentenciar, olv1da—se dos. pnnmplos
tanto de imputação como de descargo;
d) tratamento igualitário das partes (igualdade de oportunida-
des no processo); ' "' ' ' vesti a ão. ' . .
básiCDs de justiça, pois tratou o suspeito como condenado desde o

mlelâãªadudcorrêªciª dos postulados do sistema, em proporção inversa

parte); .
e) procedimento é em regra oral (ou predominanternente);
f) plena publicidade de todo o procedimento (ou de sua maior

g) contraditório e possibilidade de resistência (defesa);


h) ausência de uma tarifa probatória, sustentando—se a sentença
âí'inatividade do juiz no processo está a atividade das partes. Frente a
irríposta inércia do julgador se produz um significativo aumento da res—
ponsabilidade das partes, já que têm o dever de investigar e proporcio—
Haras provas necessárias para demonstrar os fatos..lsso surge uma
maior responsabilidade e grau técnico dos proflssionais do Direito que
pelo livre convencimento motivado do órgão jurisdicional; atuam no processo penal. _
i) instituição. atendendo a critérios de segurança jurídica (e : Também impõem ao Estado a obrigação de criar e manter uma
social) da coisa julgada; estrutura capaz 'de proporcionar o mesmo grau de representaçao pro-
j) possibilidade de impugnar as decisões e o duplo grau de juris— ceSsual às pessoas que não têm condições de suportar os elevados
diçâo.
honoráriosde um bom profissional. Somente assim se podera falar de
E importante destacar que a principal crítica que se fez (e se faz até
hoje) ao modelo acusatorio é exatamente com relação a inércia do juiz
(imposição da imparcialidade), pois este deve resignar-se com as con—
ão da 'usti &. ' ' .
processo a'cusatório com um nivel de eficácia que possibilite a obten—

ºf , Fránte çao' inconveniente de ter que suportar uma atividade


incompleta das partes (preço a ser pago pelo sistema acusatono), o
sequências de uma atividade incompleta das partes, tendo que decidir que se deve fazer e fortalecer a estrutura dialética e nao destrui—1a,
com base em um material defeituoso que lhe foi proporcionado. Esse com a atribuição de poderes instrutorios ao juiz. O Estado ja possui
sempre foi o fundamento histórico que conduziu a atribuição de poderes um serviço público de acusação (Ministério Público), devendo agora
instrutorios ao juiz e revelou—se (através da inquisição) um gravíssimo ocupar—se 'de criar e manter um serviço público de defesa, tao bem
erro. O mais interessante é que não aprendemos com os erros. nem estruturado como o é o Ministério Público. E um dever correlato do
164
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

leticidade. ,
Estado para assim assegurar um minimo de paridade de armas e dia-

Trata-se de (re)pensar a questão a partir de DUSSEL,351 da neces—


tes da legalidade. Também representou uma ruptura definitiva entre o
processo civil e penal 353
A mudança em direçao ao sistema inquisitorio começou com a pos-
sidade de criar um terreno fértil para que o réu tenha "condições 'de sibilidade de, junto ao acusatório, existir um processo judicial de ofício
fala" e possa realmente ter "fala". Ou seja, adotar uma ética libertató— para os casos de flagrante delito Os poderes do Magistrado foram pos-
ria no processo penal e não voltar a era da escuridão, com um juiz- teriormente invadindo cada vez mais a esfera de atribuições reservadas
inquisidor. ao acusador privado, até o extremo de se reunir no mesmo órgãodo
Estado as funções que hoje competem ao Ministério Publico e ao Juiz.
b) Sistema Inquisitório As vantagens desse novo sistema, adotado inimalmente pela
Igreja, impuseram-se de tal modo que foi sendo incorporado por todos
os legisladores da época, não so para os delitos em flagrante, mas para
O sistema inquisitório, na sua pureza, e um modelo histórico. 352 toda classe de delito.364
Até o século XII, predominava o sistema acusatório, não existindo pro- O sistema inquisitório muda a fisionomia do processo de forma
cessos sem acusador legítimo e idôneo.
radical. O que era um duelo leal e franco entre acusador e acusado, com
A acusação era apresentada por escrito, indicando as provas que igualdade de poderes e oportunidades, se transforma em uma disputa
se utilizariam para demonstrar a veracidade dos fatos. Estava apenado desigual entre o juiz—inquisidor e o acusado. O primeiro abandona sua
o delito de calúnia, como forma de punir as acusações falsas. Não se posição de árbitro imparcial e assume a atividade de mquiSidor, atuan-
podia atuar contra um acusado ausente. do desde o início também como acusador. Confundem—se as atrvrdades
As transformações ocorrem ao longo do século Xll até o FGV, quan— do juiz e acusador e o acusado perde a condição de sujeito processual
do o sistema acusatório vai sendo, paulatinamente, substituído pelo e se converte em mero objeto da investigação.
inquisitório. Frente a um fato tipico, o julgador atua de oficio, sem necessidade
Essa substituição foi fruto, basicamente, dos defeitos da inativida— de prévia invocação, e recolhe (também de oficio) o material que vai
de das partes, levando à conclusão de que a persecução criminal não constituir seu convencimento. O processado e a melhor fonte de conhe—
poderia ser deixada nas mãos dos particulares, pois isso comprometia cimento e, como se fosse uma testemunha, e chamado a declarar a ver-
seriamente a eficácia do combate à delinqiiência. Era uma função que dade sob pena de coação. O juiz é livre para intervir, recolher e selecro—
deveria assumir o Estado e que deveria ser exercida conforme os limi- hªr o material necessário para julgar, de modo que não emstem mais
defeitos pela inatividade das partes e tampouco existe uma vmculaçao
legal do juiz.355
361 Especialmente na obra Filosofia da Libertação. Critica à ideologia da exclusão. São Paulo.
Paulus, 1995.
362 É importante destacar que o sistema inquisitódo permanece em sua mais radical cons-
tituição no Direito Canônico, com todo vigor em pleno século XXI. Como questiona o teó- ha a salvaguarda suficiente do direito de defesa". Penido pela moderna Inquimçao corn —
logo HANS I(UNG ("Preguntas sobre la Inquisición", publicado no jornal espanhol EL ' I- entre outras penas — a imposição de um "silêncio obsequioso, EDFF relata como se leva a
PAÍS em 16/02/98), de quê serve abrir-se os arquivos da Inquisição dos séculos XVI a XIX cabo a “morte psicológica" do condenado: "Pressione os acusados ate o limite da suporta-
se mantem-se fechados e inacessíveis os arquivos da Inquisição do século XX, que já não “ bilidade psicológica. São desmoralizados, faz—se perder a comilança em sua pessoa e pala-
culmina com a queima fisica senão psíquica e moral? Para continuar exercendo- -a diaria- vra; :r-lor isso proibe-se que sejam convidados para conferências, assessonas e retirosespr—
mente em escala global no século XXE? O próprio autor relata que leva mais de 49 anos rituais; muitos são transferidos para outros países, são forçados a tornar anos sabaticçs
tentando conseguir o que em uma sociedade democrática se concede sem o menor esfor- eufemisticamente, quer dizer, devem deixar as cátedras; pressionam-se as editoras a nao
ço a qualquer acusado: direito à vista dos autos. No mesmo sentido, outro exemplo vivo publicar seus escritos e proibem-se as livrarias religiosas de expor e de vender seus escri-
dessa “queima psíquica e moral" nos da LEONARDO BOFF, que relata no prefácio que los. " Em deiinitivo, quando se afirma que o modeio inquisitório pleno não emste mais.
faz "a tradução brasileira do Manual dos Inquisidores (pp 24 e ss.), que "ainda perduram deve-se ressalvar; exceto no Direito Canônico em que permanece em seu estado puro.
o processo de delação, a negação ao acesso às atas dos processos, a inexistência de um 353 Cf. MONTERO AROCA, na obra coletiva Derecho Jurisdíccional, Ill, Proceso Penal, 13. 15.
advogado e a impossibilidade de apelação. A mesma instância acusa, julga e pune. Isso 364 FENECH, Miguel. Derecho Process! Penal, vol. 1, p. 83.
e uma perversidade jurídica em qualquer Estado de Direito, pagão, ateu ou cristão. Não 355 GDLDSCHMIDT, James. Problemas Jurídicos yPolitr'cos de! Proceso Penal, pp. 67 e ss.

166 167
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

O juiz atua como parte, investiga, dirige, acusa e julga. Com rela- ler a "vontade de Deus". surgem as escrituras sagradas, que contêm
ção ao procedimento, soi ser escrito, secreto e não contraditório. um alfabeto sobrenatural que permite ter acesso as verdadesdivmas.
Originariamente, com relação à prova, imperava o sistema legal de Contudo, nasce um novo problema: o livro pode ser lido de diferentes
valoração (a chamada tarifa probatória). A sentença não produzia coisa maneiras. Surgem então os Bispos e o Papa, máximos interpretes .e
julgada e o estado de prisão do acusado no transcurso do processo era representantes da vontade de Deus. Mas isso nao e suf1c1ente, para
uma regra geral. 355 eles são humanos e podem errar. Era necessário resolver essa questao
O processo inquisitório se dividia em duas fases: 357 inquisição e Deus então se apiedou da fragilidade humana e concedeu a seus
geral e inquisição especial. representantes um privilégio único: a infalibilidade.
A primeira fase (geral) estava destinada à comprovação da auto— Nesse momento reforça-se o mito da segurança, oriundo da verda—
ria e da materialidade, e tinha um caráter de investigação preliminar e de absoluta, que não e construida, senão dada pelos concílios, encícli—
preparatória com relação a segunda (especial), que se ocupava do pro- cas e outros instrumentos nascidos sob a assistência divma.
cessamento (condenação e castigo). Reoordemos que a intolerância vai fundar a inquisição. A verdade abso-
No transcurso do século XIII foi instituído o Tribunal da Inquisição luta é sempre intolerante, sob pena de perder seu caráter “absoluto".
ou Santo Oãcio, para reprimir a heresia e tudo que fosse contrário ou A lógica inquisitorial esta centrada na verdade absoluta e, nessa estm—
que pudesse criar dúvidas acerca dos Mandamentos da Igreja Católica. tura, a heresia era o maior perigo, pois atacava o núcleo fundante do
Inicialmente, eram recrutados os fiéis mais íntegros para que, sob jura— sistema. Fora dele não havia salvação. Isso autoriza o "combate a qual—
mento, se comprometessem a comunicar as desordens e manifestações quer ousto" da heresia e do herege, legitimando até mesmo a tortura e
contrárias aos ditames eclesiásticos que tivessem conhecimento a crueldade nela empregada. A maior crueldade não era a tortura em
Posteriormente foram estabelecidas as comissões mistas, encarrega- si, mas o afastamento do caminho para a eternidade. 370
das de investigar e seguir o procedimento. ' Como explica BOFF,”1 qualquer experiência ou dado que conflita
Na definição de JACINTO COUTINHO,33E "trata-se, sem dúvida, comes verdades reveladas só pode significar um equívoco ou um erro,
do maior engenho jurídico que o mundo conheceu; e conhece. Sem uni obstáculo ou desvio no caminho da eternidade.
embargo de sua fonte, a Igreja é diabólico na sua estrutura (o que O crime não é problema nesse trilhar para a eternidade, pois para o
demonstra estar ela, por vezes e ironicamente povoada por agentes do “arrependido sempre há o perdão divino. O problema está na heresia, na
inferno!), persistindo por mais de 700 anos. Não seria assim em vão:
veio com uma finalidade específica e, porque serve — e continuará ser— oposição ao dogma, pois isso sim fecha o caminho para a eternidade; esse
éªo maior perigo de todos. Como tal, exige o máximo rigor na repressao.
vindo, se não acordarmos —— mantém— se higido“. ' O Manual dos Inquisidores, escrito pelo catalão Nicolau Evmerich
Para compreender a inquisição, é necessário situa 1a num espaço“— em 1375, posteriormente revisto e ampliado por Francisco de 1a Feira
tempo, considerando o comportamento da Igreja. Trata— —se de um siste—
ma fundado na intolerância, derivada da "verdade absoluta" de que “a em 1678, deve ser lido nesse contexto, pois somente assim podemos
“Cºmpreender sua perfeição lógica. BOFF372 explica que igual raciocrnio
humanidade foi criada na graça de Deus". Explica BOFFªª9 que a deve ser empregado para compreensão da tortura e repressão dos regi-
humanidade »— com Adão e Eva— perdeu os dons sobrenaturais (graça) mes militares latino-americanos, pois perfeitamente encaixados na
e mutilou os dons naturais (obscureceu a inteligência e enfraqueceu & ideologia da segurança nacional, assimilada na plenitude pelos tortura—
vontade). A medida que a humanidade se afasta e não consegue mais dores e mandantes; ou, ainda, na limpeza genetica levada a cabo pelo
nazi-fascismo.
356 Cf. ARAGONESES ALONSO, Instituciones de Derecho Procesal Penal, 13. 42.
367 MANZINI, Vicenzo. iii-atado de Derecho Prooesal Penal, vol. 1, pp 52 e ss.
368 COUTINHO. Jacinto Nelson de Miranda. "O Papel do Novo Juiz no Processo Penal". In: 370 BOFF, Leonardo. “Prefácio. Inquisição: um e5piritº fluª continua ª existir". ão:
Critica à 'lboria Geral do Processo Penal, p. 18 Directorfum lnqufsítorum — Manual dos InquisidºrºS. 1311 9 ª 55-
359 BOFF, Leonardo. "Prefácio. Inquisição: um espírito que continua a existir." In: 373 ldem, ibidem, p. 10.
Directorium lnquisitorurn— Manual dos lnqui',srdores pp. Bass. 372 ldem, ibidem, p. 11.

158 169
Aury Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

O herege, explica BOFF,373 não apenas se recusa a aceitar o discur-


Com a Inquisição, são abolidas a acusação e a publicidade. O juiz-
so oficial, senão que cria novos discursos a partir de novas visões; por
“mquíSidor atua de oficio e em segredo, assentando por escrito as decla—
isso, está mais voltado para a criatividade e o Ínturo do que para a
reprodução e o passado. É o que BOFF define como congelamento da
história.
O "buscar a verdade" significa dinâmica, movimento. O movimen—
o réu não os descubra). .
rações das testemunhas (cujos nomes sao mantidos em Slgllo, para que

O Directorium Inquisitorum — Manual dos Inquisidores — do cata—


lão NICOLAU EYMERICI—I3'77 relata o modelo inquisitório do DlIE'ltD'
to de buscar a verdade evidencia a inércia de quem presume have-la
encontrado. Como admitir que alguém busque enquanto fico inerte? Canônico, que influenciou definitivamente o processo penal: o proces-
Então estou em erro e, portanto, correndo o risco de afastar-me da sal— se poderia começar mediante uma acusação informal, denunc1a (de um
vação? Isso conduz aos processos de exclusão. Explica BOFF que nos particular) ou por meio da investigação geral ou especnal levada a cabo
primeiros séculos o divergente era excomungado, uma questão intra— pelo inquisidor. Era suficiente um rumor para que a investigação tives-
eclesial. Sem embargo, quando o Cristianismo assume o status de reli- se lugar e com ela seus particulares métodos de averiguaçao..A prisao
gião oficial do império, a questão vira politica e a divergência afeta a era uma regra porque assim o inquisidor tinha a sua disposiçao o acu-
coesão e união politica. Nesse contexto, a punição sai da esfera eclesial sado para tortura—1037B até obter a confissão. Bastavarn dors testemu-
nhos para comprovar o rumor e originar o processo e sustentar a pos—

va a tortura. ,
e legitima uma severa repressão, pois insere—se na mesma linha das
ideologias de segurança nacional (o metafísico interesse público, legi— terior condenação. As divergências entre duas pessoas levava. ao
timador das maiores barbáries).374 ' rumor e autorizava a investigação. Uma única testemunha ja autoriza-
O primeiro passo foi o abandono do princípio ne proceder iudex ex
ofício, inclusive para permitir a denúncia anônima, pois o nome do acu— ' . A estrutura do processo inquisitório foi habilmente constrmda a
sador era mantido em segredo. Surgiram em determinados lugares, partir de um conjunto de instrumentos e conceitos (falaciosos, e claro),
especialmente nas Igrejas, determinados lugares, gavetas ou caixas,375 especialmente o de “verdade real ou absoluta". Na busca dessa-tal
destinadas a receber as denúncias anônimas de heresia. O que se bus— “verdade real", transforma-se a prisão cautelar em regra geral, pois o
cava era exclusivamente punir o pecado e a heresia, em uma concep- inquisidor precisa dispor do corpo do herege. De posse dele, para bus-
ção unilateral do processo. O actas trium personarum, já não se susten— car a verdade real, pode lançar mão da tortura, que se for “bem utili—
ta e, como destaca JACINTO COUTINHO,375 "ao inquisidor cabe o mis— zada conduzirá a confissão. Uma vez obtida a confissão, o inqursrdor
não necessita de mais nada, pois a confissão e a rainha das provas (sis—

servir ao sistema. _
ter de acusar e julgar, transformando-se o imputado em mero objeto de
verificação, razão pela qual a noção de parte não tem nenhum sentido". tema de hierarquia de provas). Sem dúvida, tudo se encaixa para bem

373 ldem, ibidem, p. 12.


A confissão era a prova máxima, suficiente para & condenaçaoe,
374 A lógica da inquisição era irretocável, e com certeza serviu de inspiração para muitos
no sistema de prova tarifada, nenhuma prova valia mais que a confis—
ditadores. Aponta BOFF (op. cit., p. 20) que quem “pensasse" a fé já era suspeito de
são. O inquisidor EYMERICI—I fala da total inutilidade da defesa, pois,
heresia e sujeito a repressão, pois pensar significa discutir e, por conseqiiência, & ques- Se o acusado confirmava a acusação, não havia necessidade de advo-
tionar. Pergunta, corn acerto o autor: não pensavam assim os agentes da repressão militar
em regime de segurança nacional: quem discutir publicamente politica é já suspeito de
subversão e, logo, de sequestro, de tortura e de cárcere? Mudam os sinais, mas não & lógi-
ca de um sistema totalitán'o e porisso repressivo de toda e qualquer diferença. A intole-
rância e o discurso do interesse público também vão conduzir ao conhecido e atual "tole- 377 Algumas informações sobre a vida do inquisidor podem ser encontradas no trabalho Vita
di Nicolas Eymerich, disponivel em Internet no seguinte endereço eletronico. www.
rância zero", legitimando as maiores barbáries em relação aos direitos e garantias fun-
damentais sol:) a mesma lógica.
375 As chamadas bocas de leão ou bocas da verdade que até hoje podem ser encontradas
delos.fantascienza.com. . . . . . t aduzm
373 Como explica MANZINI (op. cit., p. 8), foi o procedimento extraordinaria que in rt nha
nas antigas igrejas espanholas. & tortura entre os institutos processuais romanos. Por longo tempo, a tortura foi as ra &
376 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. "0 Papel do Novo Juiz no Processo Penal". In: ao processo
Grecia. penal romano,
Posteriormente, foienquanto que estava
transformada em umempoderoso
uso por todas as partes,nas
instrumento inclusivedràs
maos
Critica a Ti:-oria Geral do Processo Penal, 13. 23. inquisidores.

170
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

gado. Ademais, a função do advogado era fazer com que o acusado sitório, os indivíduos são reduzidos a mero objeto do poder soberano.
coníessasse logo e se arrependesse do erro, para que a pena fosse irne— Não existe dúvida de que a idéia do Estado de Direito influi de forma
diatamente aplicada e iniciada a execução. imediata e direta no processo penal. Por isso, pode—se afirmar que
Tendo em vista a importância da confissão, o interrogatório era quando se inicia o Estado de Direito é quando principia a organização
visto como um ato essencial, que exigia uma técnica especial. Existiam do procedimento pena1.382
cinco tipos progressivos de tortura e o suspeito tinha o "direito" a que Em definitivo, o sistema inquisitório foi desacreditado — principal—
somente se praticasse um tipo de tortura por dia. Se em 15 dias o acu- mente — por incidir em um erro psicológico:383 crer que uma mesma
sado não confessasse, era considerado como “suficientemente" tortu- pessoa possa exercer funções tão antagônicas como investigar, acusar,
rado e era liberado. Sem embargo, os métodos utilizados eram eficazes defender e julgar.
e quiçá alguns poucos tenham conseguido resistir aos 15 dias. O pior é
que em alguns casos a pena era de menor gravidade que as torturas
sofridas. o) Insuficiência do Conceito de “Sistema Misto": a Gestão
' da Prova e os Poderes Instrutorios do Juiz
A inexistência da coisa julgada era característica do sistema
inquisitório. EYMERICI—I alertava que o bom inquisidor deveria ter
muita cautela para não declarar na sentença de absolvição que o seu-, Com o fracasso da inquisição e a gradual adoção do modelo acu-
sado era inocente, mas apenas esclarecer que nada foi legitimamente satorio, o Estado seguia mantendo a titularidade absoluta do poder de
provado contra ele. Dessa forma, mantinha-se o absolvido ao alcance penar e não podia abandonar em mãos de particulares esse poder e a
da Inquisição e o caso poderia ser reaberto mais tarde pelo Tribunal, função de persecução. Logo, era imprescindível dividir o processo em
para punir ao acusado sem o entrave do trânsito em julgado. fases e encomendar as atividades de acusar e julgar a órgãos e pessoas
O sistema inquisitório predominou até finais do século XVIII, iní— distintas. Nesse novo modelo, a acusação continua como monopólio
cio do XIX, momento em que a Revolução Francesa,379 os novos postu— estatal, mas realizada através de um terceiro distinto do' ]uiz.
' Aqui nasce o Ministério Público. Por isso, existe um nexo entre sis—
lados de valorização do homem e os movimentos filosóficos que surgi—
ram com ela repercutiam no processo penal, removendo paulatinamen— tema inquisitivo e Ministério Público, como aponta CABNELUTTI.334
te as notas características do modelo inquisitivo. Coincide com & ado— pois essa necessidade de dividir a atividade estatal exige, naturalmen-
ção dos Juris Populares e se inicia a lente transição para o sistema
te, duas partes. Quando não existem, devem ser fabricadas, e o
misto, que se estende até os dias de hoje. Ministério Público é uma parte fabricada. Surge da necessidade do sis—
Como explica HEINZ GOESSEL,350 o antigo processo inquisitório tema acusatório e garante a imparcialidade do juiz. Eis aqui um outro
deve ser visto como uma “expressão lógica da teoria do Estado de sua erro histórico: a pretendida imparcialidadeªi?!5 do MP!
época",381 como manifestação do absolutismo que concentrava o poder
estatal de maneira indivisível nas mãos do soberano, quem legibus
absolutos não estava submetido a restrições legais. No sistema inqui— 382 Segundo RISSEL, na tese doutora] Die Ver-fassungsrechtliche Stellung des Rechtsan-
walts, Marburgo, 1950, p. 45. Apud HEINZ GOESSEL, op. cit., p. 17.
333 GOLDSCHMIDT, James. Problemas Juridicosy Políticos del Proceso Penal, p. 29.
354 "Meti-ere il Publico Ministerio al suo Posto". In Hivista di Diritto Processuale, vol. VIII,
'ª parte I, 1953, pp. IB e ss. Também em espanhol _ "Poner en su Puesto al Ministerio
379 Na realidade, alguns câmbios iniciaram antes mesmo da Revolução Francesa. impelidos Público". In: Cuestiones sobre el Proceso Penal, pp. 2.09 e seguintes.
pelo clima reformista e os ideais que predominavam na época, e que posteriormente 385 São múltiplas as críticas à artificial construção jurídica da imparcialidade do promotor no
foram tomando força até culminar com a efetiva luta armada. - processo penal. O crítico mais incansável foi. sem dúvida, o mestre CARNELUT'I'I, que
380 E! Defensor en el Proceso Penal, pp. 15 e ss. em diversas oportunidades pôs em relevo a impossibilidade de la cuadratura del circu—
381 Convém recordar que a inquisição é fruto de sua época, marcada pela intolerância, a lo: dNo es como reducir un circulo & un cuadrado, construir uma parte imparcial? El minis-
crueldade, e a própria ignorância que dominava. Não deve ser lida (ou julgada) e partir terio público es un juez que se hace parte. Por eso, em vez de ser una parte que sobe, EE un
dos parâmetros atuais, pois impregnada de toda uma historicidade que não pode ser juez que haja. Em outra passagem, CARNELUTTI (Lecciones sobre el Proceso Penal, v. 2,
afastada.
p. 99.) explica que não se pode ocultar que, se o promotor exerce verdadeiramente a fun-
Aury Lopes .]r. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

É lugar—comum na doutrina processual penal a classificação de A separação (inicial) das atividades de acusar e julgar não é o
“sistema misto"r com a afirmação de que os sistemas puros seriam núcleo fundante dos sistemas e, por si só, é insuficiente para sua carac-
modelos históricos sem correspondência com os atuais. Ademais, a terízação.
divisão do processo penal em duas fases (pré-processual e processual Vejamos agora essas questões.
propriamente dita) possibilitaria o predomínio. em geral, da forma
inquisitiva na fase preparatória e acusatória na fase processual, dese— a') A Falácia do Sistema Bifásico
nhando assim o caráter "misto".
Historicamente, o primeiro ordenamento jurídico que adotou esse Sobre a falácia do sistema bifásico do Código Napoleônico de
sistema misto foi o francês, no Code d'Instructíon Criminalle de 1808, 1808, com a fase pré—processual inquisitória e a fase processual (supos—
pois foi pioneiro na cisão das fases de investigação e juizo. Posterior- tamente) acusatória, ensina JACINTO COUTINHO:355 “É isso que
mente. difundiu-se por todo o mundo e na atualidade e o mais utilizado. Jean-Jacmles-Regis de Cambacérés faz passar no Código napoleônico,
Nessa linha. o critério deflnidor de um sistema ou outro 'seria a de 17.11.1808. Segundo HÉLIE (”Itaité, I. 178, 5 639), é "la loi procedure
"separação das funções de acusar e julgar", presente apenas no mode- críminelle 1a moins irnpenfaite" du mond. Enfim, monstro de duas cabe-
lo acusatório. ças; acabando por valer mais a prova secreta que a do contraditório,
Para GIMENO SENDRA,3BE o simples fato de estar o processo divi- numa verdadeira fraude. Afinal, o que poderia restar de segurança é o
do em duas fases (pré-processual e processual em sentido próprio ou livre convencimento, ou seja, retórica e contra—ataques; basta imunizar
estrito) e que se encomende cada uma a um juiz distinto (juiz que ins— a decisão com um belo discurso. Em suma: serviu a Napoleão um tira—
trui não julga) bastaria para afirmar que o processo está regido pelo no; serve a qualquer senhor; não serve à democracia".
sistema acusatório. No mesmo sentido, ABMENTA DEU357 entende É necessário ler com muita atenção para compreender o alcance
que em determinado sentido bastaria afirmar-se que o processo acasa— desse fenômeno, pois ele reflete exatamente o que temos no sistema
tón'o se caracteriza pelo fato de ser imprescindível uma acusação leva— brasileiro. O monstro de duas cabeças (inquérito policial totalmente
da a cabo por um órgão ou agente distinto do julgador (ne procedat inquisitório e fase processual com "ares" de acusatório [outro engodo,
índex ex officio). ensinará JACINTO a continuação]) é a nossa realidade diária, nos foros

aspectos: '
A classificação de sistema misto peca por insuficiência em dois

Considerando que os sistemas realmente puros são tipos históri-


e tribunais do pais inteiro.
No mesmo sentido. FERRAJOLI389 diz que o Código Napoleõnico
de 1808 deu vida a um "monstruo, nacido de la union del proceso acu-
cos, sem correspondência com os atuais, a classificação de "sistema satorio con el inquisitivo, que fue el Hamada proceso mixto".
misto" não enfrenta o ponto nevrãlgico da questão: a identificação do A fraude reside no fato de que a prova é colhida na inquisição do
núcleo fundante. inquérito. sendo trazida integralmente para dentro do processo e' ao
final, basta o belo discurso do julgador para imunizar a decisão. Esse
discurso vem mascarado com as mais variadas fórmulas, do estilo: a
prova do inquérito e corroborada pela prova judicializada; cotejando a
ção de acusador. querer que ele seja um órgão imparcial não representa no processo mais prova policial com a judicializada; e assim todo um exercício imuniza-
que uma inútil e basta molesta duplicidad. Para J.GOLDSCHMIDT (Problemas Juridicosy tório (ou melhor, uma fraude de etiquetas) para justificar urna condena-
Politicos dei Proceso Penal. p. ES.). o problema de exigir imparcialidade de uma parte acu—
sadora significa cair en el mismo error psicológico que ha desacreditado al proceso inqui-
sitivo, qual seja. o de crer que uma mesma pessoa possa exercitar funções tão antagôni-
cas corno acusar e defender. Não há que confundir imparciaiidade com estrita observân-
cia da legalidade e da objetividade.
388 Correspondência eletrônica particular de maio/2.003, cujos ensinamentos de Jacinto
Coutinho foram por nos utilizados na Palestra "Reformas Penais: Juizado de Instrução
386 Derecho Procesal Penal, p. 83. Inobstante. em sua obra anterior Fundamentos dei Derecho Criminal". proferida no dia 30 de maio de 2.003. no Auditório Externo do Superior Tribunal
Procesal, p. 389, considera como insuficiente essa afirmação. que imputa a um grupo de de Justiça, em Brasília.
. autores alemães (Schmidt e RGXÍH]. 389 Derecho yHazón, p. 566.
387 "Principio Acusatorio: realidad y utilización." In: RDP. nº 2. 1996. p. 272.
Aury Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da lnstrumeotaliclade Constitucional)

ção, que na verdade está calcada nos elementos colhidos no segredo b') A Insuficiência da Separação (Inicial) das Atividades de
da inquisição. O processo acaba por converter-se em uma mera repeti— Acusar e Julgar
ção ou encenação da primeira fase.
Ademais, mesmo que não faça menção expressa a algum elemen— Apontada pela doutrina como fator crucial na distinção dos siste—
to do inquérito, quem garante que a decisão não foi tomada com base mas, a divisão entre as funções de investigar-acusar—julgar é uma
nele? A eleição (culpado ou inocente) e o ponto nevrálgico do ato deci— importante característica do sistema acusatório, mas não é a única e
sório e pode ser feita com base nos elementos do inquérito policial e tampouco pode, por si só, ser um critério determinante, quando não
disfarçada com um bom discurso. vier aliada a outras (como iniciativa probatória, publicidade, contradi-
Ora, ou alguém imagina que Napoleão aceitaria o tal sistema bifa— tório, oralidade, iguaidade de oportunidades, etc.).
sico se não tivesse certeza de que era apenas um "mudar para conti- Dada a sua complexidade, como conjunto de atos concatenados, o
nuar tudo igual"? processo é formado por toda uma cadeia de circunstâncias que se inter—
Como "born" tirano, jamais concordaria com uma mudança dessa relacionam e influem no resultado final. Basta analisar o sistema inqui—
natureza se não tivesse certeza de que continuaria com o controle total, sitório, para ver que ao lado da acumulação de funções (investigar, acu—
através da fase inquisitõria, de todo o processo. sar e julgar) existe toda uma gama de princípios que juntos compõem
Enquanto não tivermos um processo verdadeiramente acusatório, e dão conteúdo ao todo. Especial atenção merece o contraditório, pois
do inicio ao fim, ou, ao menos, adotarmos o paliativo da exclusãoªºº físi— existe uma acertada tendência de considerã-lo fundamental para a pro-
ca dos autos do inquérito policial de dentro do processo, as pessoas pria existência do processo enquanto estrutura dialética.
continuarão sendo condenadas com base na “prova" inquisitorial, dis— Com relação à separação das atividades de acusar e julgar, trata—
farçada no discurso do "cotejando", "corrobora", e outras fórmulas se realmente de uma nota importante na formação do sistema. Contudo,
que mascaram & realidade: a condenação está calcada nos atos de não basta termos uma separação inicial, com o Ministério Público for—
investigação, naquilo feito na pura inquisição. mulando a acusação e depois, ao longo do procedimento, permitir que o
Isso porque, como concluiu JACINTO COUTINHO:391 ii sistema juiz assuma um papel ativo na busca da prova ou mesmo na prática de
inquisitorio non puõ convivere con il sistema accusaton'o, non solo per- atos tipicamente da parte acusadora, como, por exemplo, permitir que
ché ia 'contaminatio' é irragionevole sul piano logico, ma anche perché o juiz de oficio determine uma prisão preventiva (art. 311), uma busca e
1a pratica sconsigiia una commistione dei genere. Ou seja, uma mistura apreensão (art. 242), o sequestro (art. 127), ouça testemunhas além das
conseiha tal mescla. ,
de tal natureza (inquisitório e acusatório) é irracional, e a prática desa-

Cumpre, por fim,- reiletír sobre a última frase de JACINTO: (se tal
indicadas (art. 209), proceda ao reinterrogatório do réu a qualquer
tempo (art. 196), determine diligências de oficio (art. 156), reconheça
agravantes ainda que não tenham sido alegadas (art. 385), condene
sistema) serviu a Napoleão, um tirano; serve a qualquer senhor; (obvia— ainda que o Ministério Público tenha postulado a absolvição (art.
mente) não serve a democracia. 385),392 altere a classificação jurídica do fato (art. 383), condene por ato
E basta. diverso daquele constante na acusação (no caput do art. 384)?3 admi-
ta o chamado recurso ex oii'icio (art. 574, I e II, do CPP), etc.
Fica evidente a insuficiência de uma separação inicial de ativida—
390 Explicamos isso no livro Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal a partir des se, depois, o juiz assume um papel claramente inquisitorial. O juiz
do sistema italiano. Contudo, recorda—nos JACINTO COUTINHO que o antigo Código do
Distrito Federal (Decreto nº 15.751. de 31.12.1924), art. 243: "Os autos de inquirição apen-
sos aos de investigação, nos termos dos arts. 241 e 242, servirão, apenas, de esclareci-
mento ao Ministério Público, não se juntarão ao processo, quer em original, quer por cer- 392 Sobre esse tema, veja-se nosso artigo “(Re)Discutindo o objeto do Processo Penal com
tidão, e serão entregues, após a denúncia, pelo representante do Ministério Público ao Jaime Guasp e James Goldschmidt", publicado na Revista do IBCCrim nº 39. Também
cartório do juízo, em invólucro lacrado e rubricado, a fim de serem arquivados à sua dis- na Barista de Estudos Criminais, Porto Alegre, Nota Dez Editora. nº 6.
posição." 393 Sobre o tema: GIACOMOLLI, Nereu José. "Princípio da Provocação e os artigos 383 e 384
391 Conclusão nª 3 de sua Tese Doutoral, conforme correspondência eletrônica de maio/2503. do Código de Proceso Penal". In: Estudos de Direito Processual Penal.

175
Introdução Critica ao Processo Penal
Aury Lopes J r. (Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

— Principio dispositivo:395 funda o sistema acusatório; a gestão


deve manter uma posição de alheamento, afastamento da arena das da prova está nas mãos das partes (juiz espectador).
partes, ao longo de todo o processo. — Principio inquisitivo: a gestão da prova está nas mãos do jul—
Como explica J. GOLDSCHMIDT,354 no modelo acusatório, o juiz se
gador (juiz ator [inquisidorng por isso, ele funda um sistema
limita a decidir, deixando a interposição de solicitações e o recolhimento inquisitório.
do material àqueles que perseguem interesses opostos, isto e, às partes.
O procedimento penal se converte deste modo em um litígio e o exame
do processado não tem outro significado que o de outorgar audiência. Dai estar com plena razão JACINTO COUTINH0397 quando expli—
Parte do enfoque de que a melhor forma de averiguar a verdade e reali- ca que não ha — e nem pode haver —— um principio misto,. o que, por evi—
zar—se a justiça é deixar a invocação jurisdicional e a coleta do material dente, desconfigura o dito sistema. Para o autor, os Sistemas, assa-ri
probatório aqueles que perseguem interesses opostos e sustem opiniões como os paradigmas e os tipos ideais, não podem ser mistos; eles sao
divergentes. Deve—se descarregar o juiz de atividades inerentes às par— informados por um principio unificador. Logo, na essência, o materna e
tes, para assegurar sua imparcialidade. Com isso, também se manifesta sempre puro. E explica, a continuação, que o fato de ser misto Significa
respeito pela integridade do processado como cidadão. ser, na essência, inquisitório ou acusatório, recebendo a refenda adjeti-
vaçâo por conta dos elementos (todos secundários), que de um Sistema
Para além disso, recordemos que o processo tem como finalidade
(além do explicado no Capítulo I) buscar a reconstituição de um fato são emprestados ao outro. .
Isso não significa que, ao lado desse núcleo inquisitivo (dernrado
histórico (o crime sempre é passado, logo, fato histórico), de modo que
a “gestão da prova, na forma pela qual ela e realizada, identifica o prin— do principio inquisitivo, onde a gestão da prova está nas maos do ªura),
cípio unificador",395 como explicaremos a continuação. não possam orbitar características que geralmente circundam o nucleo
dispositivo, que informa o sistema acusatório. Em outras palavras, o
c') Identificação do Núcleo Fundante: a Gestão da Prova

Ainda que todos os sistemas sejam mistos, n_ão existe um princi— 396 Sempre recordando que o processo penal tem suas categorias jurídicas próprias, para
pio fundante misto. O misto deve ser visto como algo que, ainda que evitar perigosas e muitas vezes errôneas analogias com o processo cm], que foram e são
mesclado, na essência é inquisitório ou acusatón'o, a partir do principio feitas até hoje. Com uma justificada preocupação. J. GOLDSCHNILDZI' (Problemas Juri I-
que informa o núcleo. cos yPoliticos del Proceso Penal, pp. 28 e se) destacaun a construçao do modelo acusa-
tório no processo penal deve ser distinta daquela aplicavlelao processo sumi (um concep-
Então, no que se refere aos sistemas, o ponto nevrálgico é a identi— cão distinta do princípio dispositivo), pois a situação pedras da parte ativa e completa-
ficação de seu núcleo, ou seja, do principio informador, pois é ele quem mente diferente que a do autor (processo civil). 0 Ministerio Publico nao faz valer no prf)—
vai deiinir se o sistema é inquisitório ou acusatório e não os elementos cesso penal um direito próprio e pede a sua adjudicaeâç (como o autor noprocesso avi.),
senão que afirma o nascimento de um direito judicral de penar e exige o exercrrgo
acessórios (oralidade, publicidade, separação de atividades, etc.). deste direito, que ao mesmo tempo representa um dever para o Estado (11115111de o
Como afirmamos anteriormente, o processo tem como finalidade direito de penar e que realiza seu direito no processo não como parte. mas como una).
Para compreender esse pensamento é imprescindível partir da prenussa de que o ob1eto
(além do explicado no Capitulo I) buscar a reconstituição de um fato do processo penal é uma pretensão acusatória (ius ut procedatur). A titulo de ilustraçao,
histórico (o crime sempre e passado, logo, fato histórico), de modo que uma má interpretação do que seja o modelo acusatorio, e uma errada analogia com o pro-
a gestão da prova é erigida a espinha dorsal do processo penal, estru- cesso civil, leva alguns sistemas (como o espanhol) a permitir que a açusaçao peça uma
determinada quantidade de pena — "x" anos — e mais errado ainda-e pensar que esse
turando e fundando o sistema a partir de dois princípios ínformadores, pedido vincule o juiz. Outro erro que diariamente vem sendo cometido e afirmar que 'a
conforme ensina JACINTO COUTINHO: chamada "justiça negociada" (plea negotiation) e ama manifestaçao do modelo acusato—
riº. quando na verdade se trata de uma degeneração completa do processo penal e uma
distorcida visão do que seja um processo de partes, o sistema acusatorio ou mesmo o
394 Problemas Juridicosy Politicos doi Proceso Ponai, pp. 69 e ss.
verdadeiro objeto do processo penal. . , . .
397 Em diversos trabalhos, mas especialmente no artigo "Introdução aos PrinCipios Gerais
395 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. "Introdução aos Princípios Gerais do Processo do Processo Penal Brasileiro". In: Revista de Estudos Criminais, Porto Megre, Nota Dez
Penal Brasileiro". In: Revista de Estudos Crio inaís, Porto Alegre, Nota Dez Editora, nº 01, Editora, nº 01, 2001.
2001, p. 28.
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Aury Lopes Jr.
introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da instrumentalidade Constitucional)

fato de um determinado processo consagrar a separação (inicial) de ati- A verdade absoluta é sempre intolerante, sob pena de perder seu cara—
vidades, oralidade, publicidade, coisa julgada, livre convencimento ter "absoluto".
motivado, etc. não lhe isenta de ser inquisitorio. É o caso do sistema A lógica inquisitorial está centrada na verdade absoluta e, nessa
brasileiro, claramente inquisitório na sua essência, ainda que com estrutura, a heresia era o maior perigo, pois atacava o núcleo fundante
alguns “acessórios" que normalmente ajudam a vestir o sistema acu— do sistema. Fora dele não havia salvação. Isso autoriza o "combate a
satórío (mas que por si só não o transforma em acusatório). qualquer custo" da heresia e do herege, legitimando até mesmo a tor-
A seleção dos elementos teoricamente essenciais para cada siste- tura e a crueldade nela empregadas. A maior crueldade não era a
ma, explica FERRAJOLI,393 está inevitavelmente condicionada por juí— tortura em si, mas o afastamento do caminho para a eternidade.“2
zos de valor, por conta do nexo que sem dúvida cumpre estabelecer A matéria raramente é objeto de análise por nossos tribunais, e,
entre sistema acusatório e modelo garantista e, por outro lado, entre mais raro ainda, é ser devidamente tratada.
sistema inquisitório, modelo autoritário e eficácia repressiva. Sem embargo, merecem transcrição as acertadas decisõesºº3 abai—
Nesse contexto, dispositivos que atribuem ao juiz poderes instru— xo, que bem demonstram a importância da questão:
tórios, como o famigerado art. 156 do CPP, externam a adoção do prin—
cipio inquisitivo, que funda um sistema inquisitórío. pois representam CORREIÇÃO PARCIAL.
uma quebra da igualdade, do contraditório, da própria estrutura dialé- — O órgão acusador —parte que e e poderes que tem — não pode
tica do processo. Como decorrência, fulminam a principal garantia da exigir que o Judiciário requisite diligências, quando o próprio
jurisdição, que é a imparcialidade do julgador. Está desenhado um pro- Ministério Público pode fazê-lo.
cesso inquisitório. — O mito de que o processo penal mira a "verade real " está supe-
A posição do juiz é o ponto nevrálgico da questão, na medida em rado. A busca e' outra: julgamento justo ao acusado (lições de
que “ao sistema acusatório lhe corresponde um juiz espectador, dedi- Adauto Suannes e Lugi Ferrajoli).
cado, sobretudo, a objetiva e imparcial valoração dos fatos e, por isso, — O papel do juiz criminal e de eqiiidistância: a aproximação
mais sábio que experto; o rito inquisitorio exige, sem embargo, um juiz- entre acusador e julgador é própria do medieval inquisitório.
ator, representante do interesse punitivo e, por isso. um enxerido,399 — Correição parcial improcedente.
versado no procedimento e dotado de capacidade de investigação".400 (Quinta Câmara Criminal do TJRS, Correição Parcial nº
O tema também está intimamente relacionado com a questão da 70002028041, Rel. Des. Amilton Bueno de Carvalho, 20/12/2000)
verdade no processo penal. No sistema inquisitorio, nasce a (inalcançá-
PROCESSUAL PENAL. "IMBEAS CORPUS". SISTEMA ACUSATÓRIO.
vel e mitológica) verdade real, onde o imputado nada mais é do que um
PROVA. GESTÃO. PROVA TESTÉMEHVHAL PBODUZDJA DE OFÍCIO
mero objeto de investigação, “detentor da verdade de um crime",“ºlº1 e,
PELO JIHZ. EEGITHMIDADE.
portanto, submetido a um inquisidor que está autorizado a extrai-la &
— Nulo é o ato processual em que restam agredidos os manda—
qualquer custo. Recordemos que a intolerância vai fundar a inquisição. mentos constitucionais sustentadores do Sistema Processual
Penal Acusatório.
— A Oficiosidade do juiz na produção de prova, sob amparo do
398 Derecho ;; Razón, p. 553. principio da busca da "verdade real ", é procedimento eminen-
399 'Ibda tradução encerra imensos perigos, por isso, para evitar equívocos, destacamos que
a palavra empregada pelo autor foi "ieguleyo", que em espanhol possui um sentido das- temente inquisitório e agride o critério basilar do Sistema
pecLivo, de “persona que se ocupa de cuestiones legaEes sin tener el conocimiento o la
especíalizacíón suficientes" (Ci. Clave — Diccionario de uso del espanol actual).
100 FERRAJOLI, Luigi. Derecho yHazón, p. 575.
301 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. "Introdução aos Princípios Gerais do Processo 402 BOFF, Leonardo. "Prefácio. Inquisição: um espírito que continua a existir. " in: Directo-
Penal Brasileiro". In: Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, Nota Dez Editora, nº 01. rium lnquisitorum — Manual dos Inquisidores, pp. 9 e ea.
2001. p. 28. 403 Extraídas da obra de AMILTON BUENO DE CARVALHO. Garantismo Penal Aplicado. pp.
147-150 e ISB-IBH.

LSD
Aury Lopes J r. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

Acusatório: a gestão da prova como encargo especiú'co da aon- trutorios) conduz ao primata dell'ipotesi sui fatti, gerador de quadri
sação e da defesa. mentalí paranoidi. Isso significa que opera-se um primado (prevalên-
«— Lição de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. cia) das hipóteses sobre os fatos, porque o juiz que vai atrás da prova
— Ordem concedida, por unanimidade.
primeiro decide (definição da hipótese) e depois vai atrás dos fatos
(Quinta Câmara do TJRS, HC 70003938974, Rel. Des. Amilton
(prova) que justiiicarn a decisão (que na verdade já foi tomada). O juiz,
Bueno de Carvalho, 24/04/2002) nesse cenário, passa a fazer quadros mentais paranóicos.
Na mesma linha, JACINTO COUTINHO407 afirma que "abre-se ao
Dessarte, fica fácil perceber que o processo penal brasileiro é
inquisitório, do início ao fim, e que isso deve ser severamente combati— juiz a possibilidade de decidir antes e, depois. sair em busca do mate-
rial probatório suficiente para confirmar a sua versão. isto e, o sistema

verdadeiro" . .
do, na medida em que não resiste a necessária filtragem constitucional.
legitima a possibilidade da crença no imaginário, ao qual toma como
Sempre se reconheceu o caráter inquisitório da investigação preli-
minar e da execução penal, encobrindo o problema da inquisição na
fase processual. Mas compreendidos os sistemas e os princípios que os É evidente que o recolhimento da prova por parte do juiz antecipa
estruturam, a conclusão só pode ser uma, como claramente aponta a formação do juízo. Como explica GERALDO PRADO,4ÚB "a ação volta-
JACINTO COUTINHO:404 “O sistema processual penal brasileiro é, na da a introdução do material probatório é precedida da consideração
sua essência, inquisitório, porque regido pelo princípio inquisitivo, já psicológica pertinente aos rumos que o citado material. se efetivamen—
que a gestão da prova está, primordialmente, nas mãos do juiz". te incorporado ao feito, possa determinar". O juiz. ao ter iniciativa pro-
Compreendida a questão e respeitada a opção "acusatória" feita pela batória, está ciente (prognóstico mais ou menos seguro) de que conse-
Constituição, são substancialmente inconstitucionais todos os artigos do quências essa prova trará para a definição do fato discutido, pois
CPP que atribuam poderes instrutórios e/ou investigatórios ao juiz. "quem procura sabe ao certo o que pretende encontrar e isso, em ter-
mos de processo penal condenatório, representa uma inclinação ou
d') O Problema dos Poderes Instrutórios: Juizes-Inquisidores tendência perigosamente comprometedora da imparcialidade do julga-
e os Quadros Mentais Paranóicos dor".4ºº Mais do que uma “inclinação ou tendência perigosamente
oomprometedora", trata-se de sepultar definitivamente a imparcialida-
Compreendida a necessidade de buscar o núcleo fundante de um de do julgador. Nessa matéria, não existe investigador imparcial, seja
sistema a partir da gestão da prova, resta verificar a problemática (e ele juiz ou promotor.
inquisitiva) atribuição de poderes instruto'rios/investigatórios ao juiz. O modelo acusatório (garantista) traz na sua essência & necessi-
Atribuir poderes instrutórios a um juiz — em qualquer faseªºlDE — é dade de um amplo debate sobre a hipótese acusatória. Para tanto, FER-
um grave erro, que acarreta a destruição completa do processo penal RAJOLIMU define as seguintes garantias secundárias: publicidade, ora-
democrático. Ensina CORDER0405 que tal atribuição (de poderes ins— lidade, legalidade do processo e motivação da decisão judicial. Tais
garantias são condições necessárias para que o debate transcorre com
transparência e igualdade de oportunidades, ou seja, no ambiente que
404 COUTINHO. Jacinto Nelson de Miranda. "Introdução aos Princípios Gerais do ?rocessc se espera da estrutura dialética do processo.
Penal Brasileiro". In: Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre. Nota Dez Editora, nº 01,
2.001. p. 29.
405 A critica serve tanto para a atribuição de poderes instrutórios na fase processual (como
ocorre no art. 155). como também quando ela é feita na fase pré-processual. admitindo 407 COUTINHO. Jacinto Nelson de Miranda. "Introdução aos Principios Gerais do Processo
que o juiz pratique atos de investigação. Com mais razão. somos completamente contrá- Penal Brasileiro". In: Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, Nota Dez Editora. nº 01.
rios aos chamados Juizados de Instrução (sistema de Juiz-instrutor). conforme exausti- num. 13. 37.
vamente ex'plicado na obra Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal, e 408 PRADO. Geraldo. Sistema Acusatório, p. 158.
cujas tentativas de inserção no Brasil nos causam profunda preocupação. 409 Idem, ibidem.
406 CORDEIRO. Franco. Guida alia Procedure Penais. Torino, Utet. 1986. p. 51. 410 Derecho y Razón. p. 606.

182 183
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Procesao Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

Sempre que se atribuem poderes instrutórios ao juiz,“1 destrói—se insuficiência de provas equivalia a uma semiprova, que comportava um
a estrutura dialética do processo, o contraditório. funda—se um sistema juízo de semiculpabilidade e semicondenação a uma pena leve. Era na
inquisitório e sepulta—se de vez qualquer esperança de imparcialidade verdade uma presunção de culpabilidade. No Directorium Inquisitomm,
(enquanto terzietà a alheamento). É um imenso prejuizo gerado pelos EYMERICH orientava que “o suspeito que tem uma testemunha contra
diversos pré-juízos que o julgador faz. ele e torturado. Um boato e um depoimento constituem, juntos, uma
Não só diversos modelos contemporâneos demonstram isso (basta semiprova e isso é suficiente para uma condenação".
estudar as reformas da Alemanha em 1974, Itália e Portugal em 1987/88 A presunção de inocência e o principio de jurisdicionalidade
e também as mudanças levadas a cabo na Espanha pela LO 7/88, feita foram, como explica FERRAJOLI,412 finalmente, consagrados na
às pressas para adequar—se à Sentença do Tribunal Constitucional nº Declaração dos Direitos do Homem de 1789. Inobstante, no fim do sécu—
145/1988), mas também a historia do Direito Processual, especialmen- lo XlIX e inicio do século XX, a presunção de inocência voltou a ser ata—
te o erro iniciado no sistema acusatório romano de atribuir poderes ins— cada pela verbo totalitário e o fascismo, a ponto de MAN ZINI chama-la
trutórios ao juiz, que acabou levando ao sistema inquisitório. de “estranho o absurdo extraído do empirismo francês". Partindo de
Corno explicamos anteriormente. a imparcialidade do juiz fica evi— uma premissa absurda, MAN ZINI chegou a estabelecer uma equipara-
dentemente comprometida quando estamos diante de um juiz-instrutor ção entre os indícios que justificam a imputação e a prova da culpabi—
ou quando lhe atribuímos poderes de gestão/iniciativa probatória. É lidade. O raciocinio era o seguinte: como a maior parte dos imputados
um contraste que se estabelece entre a posição totalmente ativa e resultavam ser culpados ao final do processo, não há o que justifique a
atuante do instrutor, contrastando com a inércia que caracteriza o jul- proteção e a presunção de inocência. Com base na doutrina de
gador. Um é sinônimo de atividade e o outro, de inércia. Manzini, o proprio Código de Rocco de 1930 Lio consagrou a presun—
O Tribunal Europeu de Direitos Humanos, ha muito tempo e em ção de inocência, pois era vista como um excesso de individualismo e
diversas oportunidades, tem apontado a violação da garantia do juiz garantismo.
imparcial em situações assim, destacando, ainda, uma especial preocu— No Brasil, a presunção de inocência está expressamente con—
pação com a aparência de imparcialidade que o julgador deve transmi— sagrada no art. Sº. LVII, da Constituição. sendo o principio reitor do
tir para os submetidos à administração da justiça. pois, ainda que não processo penal e, em última análise, podemos verificar a qualidade
se produza o pré—juizo, e difícil evitar a impressão de que o juiz (irretro— de um sistema processual através do seu nível de observância (efi—
tor) não julga com pleno alheamento. Isso afeta negativamente a con— cãcia).
fiança que os Tribunais de uma sociedade democrática devem inspirar Tal é sua relevância que AMILTON B. de (.“.AJRVALHOªí3 afirma que
nos jurisdicionados, especialmente na esfera penal. "o Princípio da Presunção de Inocência não precisa estar positivado em
Como sintetiza a Exposição de Motivos do Código-Modelo para lugar nenhum: é 'pressuposto' — para seguir Eros —, neste momento his—
Ibero-America, e nunca é demais recordar, “o bom inquisidor mata ao tórico, da condição humana".
bom juiz, ou ao contrário, o bom juiz desterra ao inquisidor". A presunção de inocência é, ainda, decorrência do principio da
jurisdicionalidade, como explica FERRAJOLI.414 pois, se a jurisdição e
lll. Presunção de Inocência a atividade necessária para obtenção da prova415 de que alguém come—

A presunção de inocência remonta ao Direito Romano (escritos de


'Itajano), mas foi seriamente atacada e até invertida na inquisição da 412 DerechoyRazón, p. 550.
Idade Média. Basta recordar que na inquisição a dúvida gerada peia 413 CARVALI—ID, Amilton Bueno de. "Lei, para que(m)?". In: Escritos de Direito e Processo
Penal, 13. 51.
414 Derechoyl'iasón, p. 549.
415 Daí a importância da distinção entre atos de prova, praticados durante a fase processual,
411 Sobre o tema. veja-se nosso artigo “Juizes Inquisidores? E paranóicos. Uma critica a pre-
venção a partir da jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos." In: Boletim e atos de investigação, colhidos na inquisição do inquérito e sem a observância dajurisdi—
cionalidacle, posto que somente os primeiros podem justificar uma sentença condenatória.
do IBCCrim, nº 127. junho de 2803, pp. 11-12.

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Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

teu um delito, até que essa prova não se produza, mediante um proces- Podemos extrair da presunção de inocência42D que:
so regular, nenhum delito pode considerar-se cometido e ninguém pode
ser considerado culpado nem submetido a uma pena. a) Predetermina a adoção da verdade processual, relativa, mas
Segue o autorª116 explicando que é um princípio fundamental de dotada de um bom nível de certeza prática, eis que obtida
civilidade, fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunida— segundo determinadas condições.
de dos inocentes, ainda que para isso tenha-se que pagar o preço da b) Como consequência, a obtenção de tal verdade determina um
impunidade de algum culpavel. Isso porque, ao corpo social, lhe basta tipo de processo, orientado pelo sistema acusatório, que
que os culpados sejam geralmente punidos. pois o maior interesse é impõem a estrutura dialética e mantém o juiz em estado de
que todos os inocentes, sem exceção, estejam protegidos. alheamento (rechaça à figura do juiz-inquisidor — com poderes
Se é verdade que os cidadãos estão ameaçados pelos delitos, investigatórios/instrutórios — e consagração do juiz de garan-
também o estão pelas penas arbitrárias, fazendo com que a presunção tias ou garantidor).
de inocência não seja apenas uma garantia de liberdade e de verdade, (3) Dentro do processo, se traduz em regras para o julgamento,
senão também uma garantia de segurança (ou de defesa socialªí'f), orientando a decisão judicial sobre os fatos (carga da prova).
enquanto segurança oferecida pelo Estado de Direito e que se expres- d) Traduz-se, por último, em regras de tratamento do acusado,
sa na confiança dos cidadãos na Justiça. É uma defesa que se oferece posto que a intervenção do processo penal se da sobre um
ao arbítrio punitivo. Destarte, segue FERRAJOLI, o medo que a inocente.
Justiça inspira nos cidadãos e signo inconfundível de perda da legiti—
midade política da jurisdição, e, ao mesmo tempo, de sua involução Na mesma linha, VEGAS TORRES,421 abordando o art. 24.2 da
irracional e autoritária.
Assim, “cada vez que un imputado tiene razón para temer a un Constituição Espanhola, explica que tal garantia estende sua eficácia
juez, quiere decir que este se baila fuera de la lógica del estado de dere- alem do processo penal, incluindo os demais ramos da jurisdição e,
cho: el miedo, ;; también la sola desconfianza y la no seguridad del ino- mais além inclusive, do campo propriamente jurisdicional, pois alcança
cente, indican 1a quiebra de 1a función misma de la jurisdicción penal y até a atividade administrativa sancionadora.
la ruptura de los valores politicos quela legitiman".418 , , .A partir da análise constitucional e também do art. 99 da
BECCARÍA,419 a seu tempo, já chamava a atenção para o fato de Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,422 de 1789, VEGAS
que um homem não pode ser considerado culpado antes da sentença do TORRESªZE aponta para as três principais manifestações (não exclu—
juiz; e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública depois que seja dentes, mas sim integradores) da presunção de inocência:
decidido ter ele violado as condições com as quais tal proteção lhe foi
concedida. a) É um princípio fundante, em torno do qual e construido todo o
Sob a perspectiva do julgador, a presunção de inocência de— processo penal liberal, estabelecendo essencialmente garan—
ve(ria) ser um princípio da maior relevância, principalmente no trata— tias para o imputadoªªª frente à atuação punitiva estatal.
mento processual que o juiz deve dar ao acusado. Isso obriga o juiz
não só a manter uma posição "negativa" (não o considerando culpa-
do), mas sim a ter uma postura positiva (tratando-o efetivamente co- 420 Baseamo-nos na divisão de Perfecto Andrés Ibanez, Garantismo yproceso pena!, 13. 53.
mo inocente). 421 VEGAS TORRES, Jaime. Presuncion de inocencia yprueba en el proceso penal, pp. 14 e ss.
422. Art. Elº. Todo homem presume-se inocente enquanto não houver sido declarado culpado;
porisso, se se considerar indispensável dete-io, todo rigor que não seria necessário para
a segurança de sua pessoa deve ser severamente punido pela lei.
416 FERRAJOLl, Luigi. Derecho y Razón, p. 549. 423 VEGAS TORRES, Jaime. Presunción do inocencia yprueba en el proceso pena], pp. 35 e ss.
417 Não confundir essa concepção com aquela dada por Marc Aneel. 424 Utilizamos a expressão imputado para designar o "acusado em geral", a que se refere o
418 FEHRAJOLI, Luigi. Derecho 3; Razão, p. 550. art. 52. LV, da Constituição. Logo. tal tratamento inclui tanto o formalmente acusado (fase
419 Dos Deiitos e das Penas, p. 35. processual), como tambem aqueie que, na fase pré-processual, figura como sujeito

IEE 157
Aury Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

13) É um postulado que está diretamente relacionado ao tratamen- e do ubi lex non distinguit nec nos distinmlere debemus, não existem
to do imputado durante o processo penal. segundo o qual have— pessoas “mais presumidas" inocentes e pessoas “menos presumidas".
ria de partir—se da idéia de que ele e inocente e, por tanto, deve Todos somos presumidamente inocentes, qualquer seja o fato que nos é
reduzir—se ao máximo as medidas que restrinjarn seus direitos atribuído.
durante o processo (incluindo—se, é claro, a fase pré-processual). Em sendo assim — e só pode ser assim, afirma categoricamente
0) Finalmente, a presunção de inocência e uma regra diretamen— SUANNE5437 —— "nada justifica que alguém, simplesmente pela hedion-
te referida ao juízo do fato que a sentença penal faz. É sua inci— dez do fato que se lhe imputa, deixe de merecer o tratamento que sua
dência no âmbito probatório, vinculando à exigência de que a dignidade de pessoa humana exige. Nem mesmo sua condenação defini-
prova completa da culpabilidade do fato é uma carga da acu— tiva o excluirá do rol dos seres humanos, ainda que em termos práticos
sação, impondo-se a absolvição do imputado se a culpabilida- isso nem sempre se mostre assim. Qualquer distinção, portanto, que se
de não ficar suficientemente demonstrada. pretenda fazer em razão da natureza do crime imputado a alguém ino-
cante contraria o principio da isonomia, pois a Constituição Pêderal não
A garantia de que será mantido o estado de inocência até o trân— distingue entre mais-inocente e menos-inocente. O que deve contar não
sito em julgado da sentença condenatória implica diversas consequên— é o interesse da sociedade, que tem na Constituição Federal, que priori-
cias no tratamento da parte passiva, na carga da prova (ônus da acu- za o ser humano, o devido tratamento, mas o respeito à dignidade do ser
sação) e na obrigatoriedade de que a constatação do delito, e & aplica— humano, qualquer seja o crime que lhe é imputado".
ção da pena, será por meio de um processo com todas as garantias e Por tudo isso, a presunção de inocência, enquanto princípio reitor
através de uma sentença fundamentada (motivação como instrumento do processo penal, deve ser maximizada em todas suas nuances, mas
de controle da racionalidade). especialmente no que se refere à carga da prova (regia del juicio), e às
Por fim, numa análise sistemática. quando a Constituição ordena regras de tratamento do imputado , (limites à publicidade abusiva
que todos sejam julgados pelo juiz natural (predeterminado por lei); [estigmatização do imputado] e à limitação do (ab)uso das prisões cau-
que aos acusados em geral estão assegurados o contraditório e a telares).
ampla defesa; que os atos processuais são públicos; que ao imputado
está assegurado o direito de silêncio e o de não fazer prova contra si a) Carga de Prova e In Dubio Pro Reo
mesmo (nemo tenetur se detegere); a garantia da presunção de inocên—
cia, enfim, ao assegurar todas as garantias inerentes ao devido proces- A partir do momento em que o imputado é presumidamente ino-
so legal, não está dizendo outra coisa, segundo CARRARA,425 que: cente, não lhe incumbe provar absolutamente nada. Existe uma pra-
sunção que deve ser destruída pelo acusador, sem que o acusado (e
”Haced esto, porque el hombre de quien vosotros sospechais es ino- muito menos o juiz) tenha qualquer dever de contribuir nessa descons—
cente, ;! no podeis negarle su inocencia mientras no hayáis demos- trução (direito de silêncio — nemo tenetur se detegere).
trado su culpabilidad, ;; no podeis llegar a esa demostración si no FERRAJDLIª—ªª esclarece que a acusação tem a carga de descobrir
marcháis por el camino que os senado. ” hipóteses e provas, e a defesa tem o direito (não dever) de contradizer
com contra—hipóteses e contra—provas. O juiz, que deve ter como hábi-
Como acerto, ADAUTO SUANNESªªE chama a atenção para o fato to profissional a imparcialidade e a dúvida, tem a tarefa de analisar
de que, por aplicação elementar do princípio constitucional da isonomia todas as hipóteses, aceitando a acusatória somente se estiver provada
e, não a aceitando, se desmentida ou, ainda que não desmentida, não
restar suficientemente provada.
passivo de uma notícia—crime ou foi indiciado. Sobre o tema, veja-se nossa obra Sistemas
de Investigação Preliminar no Processo Penal, pp. 271 e se. ,
425 CARRARA, Derecho Penal yProcedimiento Penal, p. 15. Apud VEGAS TORRES, op. cit., p. 38. 427 Idem, ibidem.
426 SUANNES, Adauto. Os andamentos Éticos do Devido Processo Penal, p. 232. 425 Derecho yHazc'n, p. 152.

188 189
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

Ao lado da presunção de inocência, como critério pragmático de Importante destacar que a presunção de inocência e o in dubio pro
solução da incerteza (dúvida) judicial, o principio do in dubio pro rec rec não podem ser afastados no rito do Tribunal do Júri. Ou seja, além
corrobora a atribuição da carga probatória ao acusador. A única certe- de não existir a mínima base constitucional para o in dubio pro societa-
za exigida pelo processo penal refere—se a prova da autoria e da mate— te (quando da decisão de pronúncia), é ele incompatível com a estrutu-
rialidade, necessárias para que se prolate uma sentença condenatória. ra das cargas probatórias definida pela presunção de inocência. O sis—
Do contrário, em não sendo alcançado esse grau de convencimento (e tema probatório fundado a partir da presunção constitucional de ino—
liberação de cargas). a absolvição ê imperativa. cência não admite nenhuma exceção procedimental, inversão de ônus
Isso porque, ao estar a inocência assistida pelo postulado de sua probatório ou frágeis construções inquisitoriais do estilo in dubio pro
presunção, até prova em contrário, esta prova contrária deve aporta—1a societate. Para evitar repetições, remetemos o leitor para a crítica que
quem nega sua existência, ao formular a acusação.429 Trata-se de estri— fazemos ao Tribunal do Júri, ao tratar da garantia da Jurisdicionalidade.
ta observância ao nulla accusatio sine probatíone. No processo penal, é como se o asusador iniciasse com uma imen-
Devemos destacar que a primeira parte do art. 156 do CPP deve sa "carga probatória",432 constituida não apenas pelo ônus de provar o
ser lida e luz da garantia constitucional da inocência. O dispositivo alegado (autoria de um crime), mas também pela necessidade de der-
determina que "a prova da alegação incumbirá a quem a fizer“. Mas a rubar a presunção de inocência instituída pela Constituição. Para che—
primeira (e principal) alegação feita é a que consta na denúncia e apon—
ta para a autoria e a materialidade; logo, incumbe ao MP o ônus total e gar à sentença favoravel (acolhimento da tese acusatõria sustentada),
intransferível de provar a existência do delito. ele deve aproveitar as chances do processo (instrução, etc.) para libe-
rar-se dessa carga.
Gravissimo erro é cometido por numerosa doutrina (e rançosa juris—
prudência), ao afirmar que à defesa incmnbe a prova de uma alegada A medida que o acusador vai demonstrando as afirmações feitas
excludente. Nada mais equivocado. A carga do acusador é de provar o na inicial, ele se libera da carga e, ao mesmo tempo, enfraquece a pre-
alegado; logo, demonstrar que alguem (autoria) praticou um crime (fato sunção (inicial) de inocência, até chegar ao ponto de máxima liberação
típico, ilícito e culpável). Isso significa que incumbe ao acusador provar da carga e consequente desconstrução da presunção de inocência com
a presença de todos os elementos que integram a tipicidade, a ilicitude e a sentença penal condenatória.
a culpabilidade e, logicamente, a inexistência das causas de justificação. Caso isso não ocorra, a absolvição é um imperativo.
No mesmo sentido, GUARNIERIªªU afirma categoricamente que ín-
cumbe a la acusación la prueba positiva, no sólo de los hechos que cons- b) Publicidade Abusiva e Estigmatização do'Sujeito Passivo
tituyen el delito, sino también de 1a inexistencia de los quele excluyan.
Então, tanto pela regra do ônus da prova quanto pela existência A publicidade433 de uma audiência significa sua acessibilidade
da presunção de inocência, se o réu aduzir a existência de uma causa para todos.“34 A publicidade do procedimento chegou a ser uma peti—
de exclusão da ilicitude, cabe ao acusador provar que o fato e ilícito e ção política, como chegaram a ser o processo acusatório, o tribunal do
que a causa não existe (atraves de prova positiva).4'—ª-1 júri popular e a oralidade. Pediu-se que a administração de justiça fosse
colocada sob o controle da publicidade, pois se considerava a publici—
dade como a garantia de um juízo justo.
429 FERRAJOLI, Luigi. Derecho yRazán, p. 510.
430 Las partes en el Proceso Penal“. p. 305.
431 Antes que algum incauto leitor pense que estamos exigindo a (impossível) prova nega- 432 Utilizamos a expressão "carga probatória" no sentido empregado por James Gold-
tiva, esclarecemos que não se trata disso. Por exemplo, se a defesa alega que o delito foi schmidt ao definir a lenda do Processo com Situação Jurídica. Para melhor compre-
cometido ao abrigo da excludente da legítima defesa, incumbe ao acusador provar que ensão, remetemos o leitor ao Capitulo I, onde tratamos dessa teoria no topico ”Risco
não houve & repulsa a uma injusta agressão (logo, provando que a agressão era justa). Endógeno: processo como guerra ou ;ogo?".
ou que dita agressão não era atual ou iminente (logo, era passada ou futura), que o réu 433 Sobre publicidade, segredo interno e externo, consulte-se nosea obra Sistemas de
não repeliu dita agressão usando moderadamente dos meios necessários (logo, demons- Investigação Preliminar no Processo Penal.
trando o excesso), enfim, trata-se de prova positiva que afaste a excludente. 434 GDLDSCHMIDT, James. Problemas JuridicosyPolítioos d'el Proceso Penal, pp. 95 e se.

190
Aury Lopes .] r.
Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

A publicidade (ao lado oralidade, legalidade e motivação) é uma


garantia secundaria que se destina a dar transparência ao proces-
so/debate. permitindo o controle interno e externo de toda a atividade sabilidade do imputado. '
tes, implicam (na grande maioria dos casos) um juízo acerca da respon—

Mas a situação nem sempre é tão simples. pois, como define


processual. Contudo. quando a publicidade é hipertrofiada (segredo) ou
sobredimensionada (publicidade abusiva), reverte-se em antigarantia. RAMONE'IǪH? "no grande esquema industrial concebidq pelos donos
Os tempos mudaram e a imprensa também. Vivemos a era da das empresas de lazer, cada um constata que a informaçao e antes de
informação e, com ela. do bizarro espetáculo. Como definiu GOMEZ DE tudo considerada como uma mercadoria, e que este carater prevalece,
de longe, sobre a missão fundamental da mídia: esclarecer e enrique—
LIANO.435 a imprensa é pródiga em criar uma cultura da suspeita e os
juízos de papel são capazes de produzir maiores prejuízos que o próprio
cerA informação
o debate democrático" .
é uma mercadoria e, como tal. deve ser vendida ao
processo judicial. É muito mais facil formular uma acusação que des— maior número de interessados e também desinteressados, utilizando—
trui—la, da mesma forma que é mais simples abrir uma fen'da que fecha— se para isso todos os instrumentos de marketing sensacronalista (molu—
ia, sem pontos nem cicatrizes.
sive alterar a verdade) necessários para estimular e despertar o inte-
A pena pública e infamante do Direito Penal pré—moderno foi res- resse A manipulação da informação atende na atualidade não só a
suscitada e adaptada a modernidade. mediante a exibição pública do interesses econômicos, senão também a interesses politicos, cujos pre-
mero suspeito nas primeiras páginas dos jornais ou nos telejornais. juizos para a investigação, o processo e a administração de Justiça
Essa execração ocorre não como consequência da condenação, mas da como um todo são patentes
simples acusação (inclusive quando esta ainda não foi formalizada pela A publicidade abusiva, comprovadamente, causa distorção no
denúncia), quando, todavia, o individuo ainda deveria estar sob o comportamento dos sujeitos processuais (promotores advogados e jui—
manto protetor da presunção de inocência. zes) aumentando ainda mais o estigma do imputado Uma das conse—
Não há como negar que a publicidade realmente prejudicial não é quências negativas está no que IBÁIKIEZ433 define como hiperpenaliza-
a imediata, mas sim a mediata, pois a natural limitação do local em que ção, atraves da espetacularização do julgamento. A verdadeira garantia
são realizadas as audiências (momento máximo de publicidade) ou as está exatamente no oposto. pois a presunção de inocenc1a ex1ge que o
tomadas de depoimento na polícia só permitem que algumas poucas imputado seja protegido de tais fenômenos. '
pessoas assistam ao ato. 0 grande prejuízo vem da publicidade media- .“ Ela altera substancialmente a forma de atuar dos envolvrdos no
ta. levada a cabo pelos meios de comunicação de massa, como o rádio, processo penal Interessa— -IlDS especialmente. a posição do julgador.
a televisão e a imprensa escrita, que informam a milhões de pessoas de Não há dúvidas de que a exposição massiva dos fatos e atos proces-
todo o ocorrido, muitas vezes deturpando a verdade em nome do sen— suais os juízos paralelosªl39 e o filtro do cronista afetam o (in)consçien-
te do juiz, além de acarretarem intranqiiílidade e apreensao. O livre"

âniri'io do juiz. , '


sacionalismo.
Como disse CARNELUTTLªlªB' a crônica judicial interpõe entre o convencimento passa a ser utópico. diante do contaminado estado de
processo e o público o diaãagma do cronista, uma pessoa que, ademais . Como explicamos anteriormente o tempo do direito e diverso do
de desconhecer a técnica do processo, oculta outros interesses detrás
da simples atividade de informar. Também, como qualquer homem, o tempo da noticia/informação e os juízos paralelos são muito mais ace-
lerados Como consequência, a atividade probatória antes dirigida a
cronista“ tem suas paixões, opiniões, simpatias e antipatias. Não é formar uma convicção racional, também tem que derrubar uma esfera
necessário mais que olhar algumas capas de jornal para constatar que
as crônicas, quase sempre apresentadas com adjetivos impressionan-
437 RAMDNET, Ignacio. A Tirania da Comunicação, 13. B.
438 Garantismo _vproceso penal. p. 56.
435 Pesos Perdidos — Confesiones em carne viva. p. 221. 439 Existe um grande perigo de que programas do estilo “Linha Direta" em breve possam
436 "La Publicidad del Proceso Penal". In: Cuestiones sobre el Proceso Penal, pp. 123 e ss. e(in)voluir para um “Você Decide" sobre processos em andamento. substitumdo o 11.117.
por um grande “júri global".
192
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal .
(Fundamentos da Enstrumentalidade Constitucional)

emotiva (pré-constituída) e também o pré-julgamento (forjado pela Não podemos desprezar que a superintormação conduz a hiper—ç-
imprensa e seus juízos paralelos). É um imenso prejuizo pelo pré-juízo
moção e ao mimetismo. Segundo RAMONE'IIÉÉZ mnneªsnciio ͺadcãªeºª
gerado pela intermediação midiática, com patente comprometimento
da imparcialidade e da independência do julgador. febre que se apodera repentinamente da midia '(confun 1.11; se ara
Também devemos considerar que a tecnologia do final dos anos 80 suportes), impelindo-a na mais absoluta urgencra, a precrpr ar— lªws
permitiu que os satélites transmitissem a imagem à velocidade da luz cobrir um acontecimento (seja qual for) sob pretexto de que os o me
e isso representou um avanço da mídia televisiva com relevante meios de comunicação — e principalmente a midia de referencrad— D
atribuarn uma grande importância. Esta imitação delirante, leva a a
mudança de paradigma. A imagem passa a ter visibilidade instantânea
com o novo referencial “luz". O fascínio da imagem conduz a que "o extremo, provoca um efeito bola—de-neve e funciona como umaaelspeªe
que não é visível e não tem imagem não é televisãvel, portanto não de auto—intoxicação: quanto mais os meios de comunicaçao f amt e
existe midiaticamente".440 O choque emocional provocado pelas ima- um assunto, mais se persuadem, coletivamente, de que esteaãsun ª;
gens da TV — sobretudo as de aflição, de sofrimento e morte — não tem indispensável, central, capital, e que e prec1so dar—lhe ain . a mus-
comparação com o sentimento que qualquer outro meio posso provo— cobertura, consagrando-lhe mais tempo, mais recursos, mais jomíi
car. Suplanta assim a fotografia e os relatos. tas. Assim os diferentes meios de comumcaçao se auto—efstunu ZI;

' ' ' te, até a náusea". .


Nesse contexto a “reconstituição" das imagens não captadas superexcitam uns para
deixam arrastar aos outros, multiplicam cada
a superinformação numaVEZ'ID'EIIS
espec1e deasespir
0 erªsvªrti-
passa a ser fundamental para vender a emoção não captada no seu
devido tempo. Exemplo típico e o programa "Linha Direta".
glnºslªstªªjªse verdadeiras campanhas demonizadoras, como defi-
Outro aspecto fundamental é a influência da “ideologia do ao ne Kt—thªrllli,“143 que, "fácil e prontamente, o elegem para bode expiato-
vivo", que encontra abrigo na lógica dominante do tempo curto e na
cultura do instantâneo. Como consequência, está reduzido o tempo da rio, ao mesmo tempo que consagram como herºis os' que aparecem
análise e da reflexão, fazendo com que sejam "as sensações que pri- como seus implacáveis perseguidores e condenadores . _ te
mam... o jornalista reage com paixão, instintivamente." Mas “não são A situação é ainda mais grave se consrderarmos que antigªmende
as olhos ou os sentidos que permitem compreender; e a razão, só ela. ”a veracidade de uma noticia representava seu maior valor. Nos res e
Enquanto os sentidos enganam, o cérebro, o raciocínio, a inteligência hoje, o redator-chefe ou o diretor de um jornal nao perguntam mais ts _

' ' ' a consideráve '. _


são mais confiáveis. Portanto, o sistema atual só pode conduzir ã irra— uma informação é verdadeira. mas se ela e.mteressante. Se for Cçons :;
:ionalidade ou ao erro".441 E um erro nessas dimensões e tragico para tado que ela não é interessante, nã; ͪubhcada. De um ponto e me
) imputado.
A própria presunção de inocência — regra máxima no garantismo eÍNDICE gªª?㪪niríprensa neste contexto não é difundir/divulgar
Jrocessual —— é sepultada pelos julgamentos paralelos e isso, inegavel- conhecimento, mas sim vender, e não há nada que venda mais do que
nente, também afeta a relação juiz/acusado no curso do processo e, a desgraça alheia. E o crime e uma dupla desgraça da Vida, terªo pªga
Jrincipalmente. na decisão final. O critério pragmático para resolução quem sofreu a violência, como também para quem a praticou. . ve IX
:obre a incerteza judicial é a aplicação do in dubio pro rec e a manuten— cão constitucional de censura à liberdade de imprensa .(arlts. Eº, inc. ,
rão da presunção de inocência. Contudo, com a publicidade abusiva e é 220, %% 19 e 29, da GB) não se traduz numa liberdade ilimitada, Se nem
rs julgamentos prévios, eventual dúvida será resolvida — inconsciente— o direito à liberdade é ilimitado —— permite-se até a prisao cautelar —,
obviamente que o direito de expressão e informação nao pode se—lo.

' ' ' ' ' " 2.1. _


nente — pelo in dubio pro societate, com a consequente condenação em
Jgar da necessária absolvição.

442 RAMONET, Ignacio. A Drama da Comunicaçao, p. . ' _ e


40 RAMONET, Ignacio. A Tirania da Comunicação, 13. 26. 443 [CAM, Maria Lúcia.
de informacão."ln: "O Direito
Boletim a um julgamento
do IBCCrim, msmde
nº 107, outubro e as liberdªdes
2001, p. . de expressao
111 RAMDNE'I', Ignacio, A Tirania da Comunicação, p. 61. 444 RAMDNET, Ignacio. A Tirania da Comunicaçao, p. 25.

na
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

A gravidade dos bizarros espetáculos midiáticos montados em ção, assegurando a máxima eficácia dos direitos fundamentais de pri—
torno de certos acontecimentos faz com que defendemos uma espécie meira geração, como a dignidade, imagem, honra e vida privada.
de "censura garantista". Trata-se de censurar para proteger & dignida— Não há dúvida de que necessitamos de uma censura garantista ou
de, privacidade e honra do cidadão submetido ao processo. democrática, pautada pelo respeito a presunção de inocência, a intimi-
Concordamos com RAMDNET445 quando aponta que “ninguém
nega a indispensável função da comunicação de massa numa democra— dade, imagem e vida privada do imputado. . ., .
Diante da ilusão de que todos os juizes atinjam & plena conscren—
cia; pelo contrário. A informação continua sendo essencial ao bom cia e compreensão de seu papel de garantidor do débil submetido ao
andamento da sociedade, e sabe-se que não há democracia possível
sem uma boa rede de comunicação e sem o máximo de informações processo, e de que somente tal função (garantidor) legitima seu poder,
o sistema deve estabelecer limites concretos à publicidade abuswa.
livres. Todo mundo está de fato convencido de que e graças à informa—
ção que o ser humano vive como um ser livre". Não olvidemos que em jogo estão a imparcialidade, principio supremo
Contudo, existe um grande conflito: e importância da comunica— do processo,447 a independência e a própria presunção de _inocenc1a.
ção na democracia versus direitos fundamentais, ou ainda, entre o — Seguido a lição de KARAM,443 como sugestões Simples, con—
"direito" de informar (e ser informado) e o direito a intimidade, a vida cretas e realizãveis por parte do legislador ou em alguns casos
privada, a honra e à imagem das pessoas., , . pelo proprio juiz, para evitar — ou pelo menos amenizar — a
Utilizamos ”direito" (entre aspas) de informar e ser informado exa—
tamente porque não somos de todo partidários da efetiva existência de publicidade abusiva. . _
-— Aplicar analogicamente ao processo penala proteçao que o
mi direito de tal natureza. Entendemos que essa liberdade de informar Estatuto da Criança e do Adolescente da ao infrator. Baseado
não pode ser confundida com um suposto “direito" que assistiria ao cida—
no art. 143 do ECA — aplicado por analogia —, poderá haver
:lão e ao jornalista, de' realizar juízos paralelos, sobre temas alheios aos
seus interesses (ilegitimidade e ausência de interesse jurídico) e que vedação à identificação, fotografia, referência a nomes, apeli—
estão em fase de investigação ou sub judice. Sobre o tema, são conclu— do, filiação, parentesco ou residência da pessoa submetida a
ientes as palavras de CARNELUTTI:445 “ Un derecho de] Ciudadana de inquérito (ou qualquer outra forma de investigação prelimmar)
notar personalmente la nariz en cada uno de los procesos, & ser infoma- ou processo penal.
io de] desarrollo de él, a manifestar su opinión acerca de é], no eros—te". ' —— Vedar a “inquisição do repórter", que logo após o fato —logo, com
Essa questão deve ser tratada a partir da constatação de que vive— a conivência policial —- Elma e extrai a "confissão" do detido.
nos uma nova era, em que a democracia está consolidada, e a impren— “ Estabelecer, legislativamente, que em qualquer notícia ou
ra desempenhou um papel relevante nesse contexto. Mas agora che- informação sobre o fato delituoso seja reservado um espaço
;ou a hora de colocar limites, igualmente democráticos, a essa mesma equivalente para a manifestação de uma e outra parte.
nformação. A liberdade de informar atingiu o patamar de "super—liber—
iade", necessitando de uma limitação democratica para não sermos —- Impedir a divulgação de gravações resultantes de intercepta-
cões telefônicas ou escutas ambientais, com autorização judi—
'itimas da ditadura midiática. Como adverte RAMONET, quem ajudou
-. nos salvar do autoritarismo não pode agora cobrar esse preço: trans— cial ou não. Recordemos que a autorização judicial e para
:erar—se em novo algoz. colher a prova e não para divulga-la na imprensa.
A democracia, vista como um sistema político-cultural que valori-
a o indivíduo em todo feixe de relações que mantém com o Estado e
em a propria coletividade. deve protege-lo também da superexposi— 447 ARAGONESES ALONSO. Pedro. Proceso y Derecho Procesal, p. 127._ .
448 Baseamo—nos no trabalho do KARAM, Maria Lúcia. "O Direito a urnjulgamento justo sãs
liberdades de expressão e de informação." In: Boletim do IBCÇrim. nº 107, outubro 'e
15 Op. cit. p. 211. 2001, pp. 4 e ss. Recomendamos, ainda, a leitura da obra "De Cnmes, Penas e Fantasma ,
26 "La Publicidad del Proceso Ferral". In: Cuestiones sobre e! Proceso Penal, 13. 129. da mesma autora.
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

A questão passa também pelas esferas de responsabilidade civil Corno identificou J . GOLDSCHMIDT,451 grave problema existe no
(indenização) e penal (crimes de imprensa), que devem ser repensadas paralelismo entre processo civil e processo penal, principalmente
à luz desse grave fenômeno. quando são buscadas categorias e dennições do processo crvrl e pra—
Por derradeiro, e necessária uma profunda modificação cultural tende-se sua aplicação automática no processo penal.
por parte dos juizes. promotores e policiais, despertando—lhes a cons- O fenômeno do processo civil é bastante claro e distinto daquele
ciência da proteção constitucional da presunção de inocência, da ima— que caracteriza o processo penal. Assim, é necessario respeito às cate—
gem, vida privada e dignidade da pessoa submetida ao processo ou gorias juridicas próprias do processo penal, adequadas as particulari—
investigação. Não são poucos os que, estimulados pela vaidade, fazem dades de seu objeto. Nisso reside a necessidade de revisar alguns con-
clamorosas e ao mesmo tempo precipitadas declarações em público e ceitos erroneamente utilizados pelo senso comum teórico (e também
aos meios de comunicação, fomentando & estigmatização do sujeito jurisprudencial) em torno do requisito e fundamentos da prisao, bem
passivo e prejudicando seriamente a administração e o funcionamento como de seu objeto.
da Justiça. Inclusive, o prejuízo causado é proporcional ao status e a Após, cumpre analisar a difícil (ou impossivel?) coezdstencia das
credibilidade dessas pessoas e à função que desempenham. prisões cautelares com a presunção de inocência, o que emgira uma
Ademais de reprimir e punir tais desvios de conduta, seria interes— análise de sua principiologia.
sante que o Poder Judiciário colocasse em marcha “Serviços de
Informação" ou "Assessorias de Imprensa", para canalizar e racionali- a') Respeito às Categorias Juridicas Próprias do Processo Penal:
zar a informação concedida. a Impropriedade do Filmus Boni Iuris e do Pericuium m Mora
Como explicam MORAL GARCIA e SANTOS VIJANDE,449 na
Alemanha existe a figura do “magistrado porta-voz", que com exclusi- As medidas cautelares de natureza processual penal buscam
vidade proporciona as informações pertinentes, atendendo-se aos fins

do processo. . .
garantir o normal desenvolvimento do processo e, como consequência,
da investigação e respeitando a intimidade do sujeito passivo. Trata—se a eficaz aplicação do poder de penar. São medidas destinadas à tutela
de um filtro, uma censura garantista.
Filiamo-nos à corrente do1|.1.trinãriaªª52 que defende seu carater ins-
:) Introdução Critica à Teoria Geral das Prisões Cautelares trumental onde "las medidas cautelares son, pues, actos que tienem
por objeto garantizar el normal desarrollo del proceso y, por tanto, 1a
Considerando que se trata de uma obra de "introdução ao estu- eficaz aplicación del jus puniendi. Este concepto confíere a las medidas
io", não iremos analisar as medidas cautelares pessoais em espécie, cautelares 1a nota de instrumentaiidad, en cuanto son medios para
nas sim a estrutura sobre a que] elas se erguem. Trata—se da base do alcanzar la doble finalidad arriba apuntada".453
que se poderia chamar de “teoria geral" das medidas cautelares de Delirnitado o objeto das medidas cautelares, e importante frisar
ratureza processual penal e que, por ser o pilar de sustentação das nossa discordância454 em relação à doutrina tradicional que, ao analí-
nedidas em espécie, e um ponto nevrálgico para a ciência do Direito.
Os conceitos empregados, ainda que na maior parte do caso invo—
ruem a prisão preventiva, são comuns as demais cautelares,450 até por- em ilagrante, considerada peia maior parte da doutrina como cautelar, será analisada ao
rue a prisão preventiva e a espinha dorsal de todo sistema cautelar. iinai. porque entendemos ser uma medida pré-cautelar.
451 GDLDSCHMIDT. James. Problemas Jurídicos yPoliticos del Proceso Penal. 13. B. .
452 Atualmente pensamos ser esta a posição majoritária, avalizada pela melhor doutrina,
seja na Espanha (Sara Aragoneses, Prieto—Castro. Herce Quemada, Fairen Gurllen, entre
outros) ou na Itália (Carnelutti, Calamandrei).
(19 Publicidad ;: Secreto en el Proceso Penal, p. 114 (rodapé). 453 NIARTINEZ. Sara Aragooeses, et alii. Derecho Procesai Penal. Madrid: Editorial Centro de
EU Especialmente a prisão decorrente da sentença penal condenatória recorrível (art. 594) Estudios Ramon Areces S.A., 3995, p. 387.
e da pronúncia (art. 408, 5 29). A prisão temporária possui algumas especificidades que 4511 No mesmo sentido, recomendamos a leitura de Roberto Delmanto Junior na obra As
exigem uma análise em separado. fugindo aos limites do presente trabalho. Já a prisão Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de Duração, pp. 83 e 155.
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

ser o requisito e o fundamento das medidas cautelares, identificaºos patrimônio do acusado. Sem embargo, nas medidas coercitivas pes—
com o fumus boni iuris e o periculum in mora, seguindo assim as lições soais, o risco assume outro caráter.
de CALAMANDREI em sua célebre obra Introduzione alto studio siste- Aqui o fator determinante não é o tempo, mas a situacão de peri—
matico dei provedimenti cauteiarrlªªf1 De destacar—se que o trabalho de go criada pela conduta do imputado. Fala—se, nesses casos, em risco de
CALAMANDREI é de excepcional qualidade e valia, mas não se pode frustração da função punitiva (fuga) ou graves prejuízos ao processo,
transportar alguns de seus conceitos para o processo penal de forma em virtude da ausência do acusado, ou no risco ao normal desenvolvi—
imediata e impensada como tem sido feito. mento do processo criado por sua conduta (em relação à coleta da
O equívoco consiste em buscar a aplicação literal da doutrina pro— prova).
cessual civil ao processo penal. exatamente em um ponto em que deve— O perigo não brota do lapso temporal entre o provimento cautelar
mos respeitar as categorias jurídicas próprias do processo penal, pois e o definitivo. Não e o tempo que leva ao perecímento do objeto.
não é possível tal analogia. O risco no processo penal decorre da situação deliberdade do sujei-
Constitui uma impropriedade jurídica (e semântica) afirmar que to passivo. Basta afastar a conceituação puramente civilísta para ver
para a decretação de uma prisão cautelar e necessária a existência de que o periculum in mora no processo penal assume o caráter de perigo
fumusboni iuris. Como se pode afirmar que o delito é a "fumaça de bom ao normal desenvolvimento do processo (perigo de fuga, destruição da
direito"? Ora, o delito é a negação do direito, sua antítese! prova) em virtude do estado de liberdade do sujeito passivo.
No processo penal, o requisito para a decretação de uma medida Logo, o fundamento e um periculum libertatis, enquanto perigo que
coercitiva ªo e a probabilidade de existência do direito de acusação decorre do estado de liberdade do imputado.
alegado, mas sim de um fato aparentemente punivel. Logo, o correto é É necessário abandonar a- doutrina civilista de CALAMANDREI
afirmar que o requisito para decretação de uma prisão cautelar e a exis- para buscar conceitos próprios e que satisfaçam plenamente as neces—

autoria. ' ' ' '


tência do fumus commissi delícti, enquanto probabilidade da ocorrência sidades do processo penal, recordando, sempre, que as medidas caute-
de um delito (e não de um direito), ou, mais especificamente, na siste- lares são instrumentos a serviço do processo, para tutela da prova ou
mática do CPP, a prova da existência do crime e indícios suficientes de para garantir a presença da parte passiva.457
Definidas as categorias a serem estudadas, vejamos agora, mais
Seguindo a mesma linha de CALAMANDREI, a doutrina conside- detidamente, o requisito e o fundamento da prisão cautelar.
ra equivocadamente o periculum in mora como outro requisito das cau— O requisito para utilização das medidas cautelares e a fumaça da
telares. existência de um delito. Não se exige um juízo de certeza, mas de pro-
babilidade razoavel.“SB A medida cautelar deve ter por base "la razona-
Em primeiro lugar, o periculum não é requisito das medidas caute-
lares, mas sim o seu fundamento. ' da atribución del hecho puníble a una persona determinada".459
O fumus commissi deiíctí exige a existência de sinais externos,
Em segundo lugar, a confusão aqui vai mais longe, fruto de uma
equivocada valoração do perigo decorrente da demora no sistema cau— com suporte lático real, extraídos dos atos de investigação levados a
':elar penal. Para CALAMANDRE1455 o periculum in mora e visto como
3 risco derivado do atraso inerente ao tempo que deve transcorrer até
457. Entre outros, é por esse motivo que a prisão preventiva para garantia da ordem pública
que recaia uma sentença definitiva no processo.
”Iai conceito se ajusta perfeitamente às medidas cautelares reais, te inconstitucional. .
“ou da ordem econômica não possui natureza cautelar, sendo, portanto, substancialmen—

4.58 O Código de Processo Penal da Alemanha — StPO, % 112 — exige que a pessoa seja funda—
em que a demora na prestação jurisdicional possibilita a dilapidação do damente suspeita do fato delitivo e que exista um motivo para a prisão. Isto é, suspeita
hem fundada, alto grau de probabilidade de que o imputado tenha cometido o delito.
Além disso, é necessário que existam, como fundamento da prisão: perigo de fuga, de
ocultação da prova, gravidade do crime ou perigo de reiteração (GOMEZ CDLOMER.
155 Publicada originariamente em Padova, no ano de 1936. . Juan-Luis. El Proceso Penal Alemao, p. 106).
156 Introduzione ello studio sistematico deiprovedimenti cancelam“. Padova, 1936, p. 'lEl. 459 SENDHA, Vicente Gimeno et alii. Derecho Procesal Penal, 13. 481.

mn
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

cabo, em que por meio de um raciocínio lógico, sério e desapaixonado, NELUTTI, requisitos positivos do delito significa prova de que a condu—
permita deduzir com maior ou menor veemência a comissão de um deli- ta e aparentemente tipica, ilícita e culpável. Além disso, não podem
to, cuja realização e consequências apresentam como responsável um existir requisitos negativos do delito, ou seja, não podem existir (no
sujeito concretorªªO mesmo nivel de aparência) causas de exclusão da ilicitude (legítima
Para CARNELUTTI,451 quando se diz que para emitir um mandado defesa, estado de necessidade, ...) ou de exclusão da culpabilidade
de captura e necessário que existam indícios suficientes de culpabili- (inexigibilidade de conduta diversa, erro de proibição. etc).
dade, "não se está dizendo nada". A proposição “indícios suficientes" Dessarte. o primeiro ponto a ser demonstrado é a aparente tipici-
não diz nada. Como questiona o mestre italiano, devem ser suficientes, dade da conduta do autor. Esse ato deve amoldar—se perfeitamente a
isso é óbvio, mas para quê? Sem indícios suficientes sequer uma impu- algum dos tipos previstos no Código Penal, mesmo que a prova não
tação pode ser formulada. Qual é o valor das provas de culpabilidade seja plena, pois o que se exige é a probabilidade e não a certeza. Em
exigido para que o imputado possa ser detido? Será aquele mesmo que síntese, deverá o juiz analisar todos os elementos que integram o tipo
e necessário para ser processado?
penal, ou seja, conduta humana voluntária e dirigida a um fim, presen-
Para responder a essa indagação deve—se distinguir entre juízo de ça de dolo ou culpa, resultado, nexo causal e tipicidade.
probabilidade e juízo de possibilidade posto que em sede de cautelar Mas não basta a tipicidade, pois o conceito formal de crime exige
não se pode falar em juízo de certeza.
a prática de um ato que, além de tipico, seja também ilícito e culpava].
Seguindo a lição de CARNELUTTI.452 existe possibilidade em lugar Deve existir uma fumaça densa de que a conduta e aparentemente tipi-
de probabilidade quando as razões favoráveis ou contrárias a hipótese ca, ilícita e culpável. É imprescindível que se demonstre que a condu-
são equivalentes. O juízo de possibilidade prescinde da afirmação de ta e provavelmente ilícita — por ausência de suas causas de justificação
um predomínio das razões positivas sobre as razões negativas ou vice—
— bem como a provável existência dos elementos que integram a culpa—
versa. Para o indiciamento seria suficiente um juízo de possibilidade.
bilidade penal (e a consequente ausência das causas de exclusão).
posto que no curso do processo deve o Ministério Público provar de
Especificamente no que se refere a ilicitude, o art. 314 do CPP tem
forma plena, absoluta, a culpabilidade do réu. Já para a denúncia ou
queixa ser recebida, entendemos que deve existir probabilidade do ale— sido objeto de "esquecimento" ou errônea interpretação por parte de
muitos juízes e Tribunais. A situação e tão grave — teratológica até -—
gado. A sentença deve sempre refletir um juízo de certeza jurídica (na
verdade, um alto grau de probabilidade) para que possa o réu ser con— que é muito comum juízes e tribunais decretaram ou manterem prisões
denado. Caso contrário, a absolvição é imperativa. preventivas, aduzindo que a legítima defesa (ou qualquer outra exclu-
Para a decretação de uma prisão cautelar, diante do altíssimo dente) "não restou suficientemente provada". Esquecem, ou despre-
custo que significa, é necessário um juizo de probabilidade, um predo- zam, que não incumbe ao imputado — nunca —- nenhum ônus probatório.
mínio das razões positivas. Se a possibilidade basta para a imputação. É elementar, mas mesmo assim desprezado, que não se pode exigir
não pode bastar para a prisão preventiva, pois o peso do processo agra— que o imputado "prove" que agiu ao abrigo da excludente. Basta que
va-se notavelmente sobre as costas do imputado. exista a fumaça da excludente para enfraquecer a própria probabilida—
A probabilidade significa a existência de uma fumaça densa, & de da ocorrência de crime (enquanto fato tipico, ilícito e culpável),
verossimilhança (semelhante ao vero, verdadeiro) de todos os requisi— siendo incompatível com a prisão cautelar.
tos positivos e, por consequência, da inexistência de verossimilhança Ainda que em sede de probabilidade todos esses elementos sejam
dos requisitos negativos do delito. Interpretando as palavras de CAR- objeto de análise e valoração por parte do juiz no momento de aplicar
uma medida coercitiva de tamanha gravidade.
Para tanto, é necessario que o pedido venha acompanhado de um
QBD ILLESCAS RUS, Angel-Vicente. Op. cit., 13. BE. minimo de provas — mas suficientes — para demonstrar a autoria e a
451 CARNELUTTI. Francesco. Lecciones sobre el Proceso Penal. v. 2. p. IED. materialidade do delito e que a decisão judicial seja fundamentada.
462 Op. cit., Dp. ISI-182. Infelizmente, a famigerada práxis está eivada de mandados de prisão
Aury Lopes .ir. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalídade Constitucional)

amparados em decisões formulárias e sem a menor fundamentação. gravidade do fato imputado, pois a futura pena a ser imposta sera mais
Proliferam decisões do estilo: graveªªª
Outros preferem simplesmente invocar os rótulos, como "crime
"Homologa o flagrante, eis que formalmente perfeito. Decreto hediondo", "tráfico de substâncias entorpecentes", "crime organiza—
a prisão preventiva para garantia da ordem pública (ou convenien— do", etc., para decretaram prisões preventivas sem o menor fundamen-
cia da instrução criminal ." to no demonstração da necessidade. Pensamos que nada disso justifi—
ca ou ampara juridicamente uma presunção de fuga, sequer a gravida-
Decisões (se e que assim podem ser chamadas) desse nível se de do fato. Qualquer que seja a situação, é imperativo que existam ele-
repetem com uma frequência espantosa (ou apavorante). A nosso juízo, mentos concretos para justificar uma decisão de qualidade, um primor,
sequer deve—se falar em "falta de fundamentação", senão em "inexis- de singular e extraordinária fundamentação.465
tência de decisão", pois isso e um ato inexistente, não possuindo o Não há nenhum exagero no nivel de exigência que estamos sus-
suporte fático e legal minimo para ingressar no mundo jurídico. O que tentando, pois exagero sim e a violência real, concreta, de aplicar-se
foi feito, mas tem defeito, existe e deve ser refeito, mas o que não foi uma pena antecipada, sem processo e sem sentença, a ser cumprida
feito não existe e, pois, não pode ter defeito, deve ser feito!453 numa delegacia de polícia ou estabelecimento carcerário, em condi-
Além do fumus commissi delicti, as medidas cautelares exigem ções subumanas. de superlotação e com seriissimos riscos de vida.
uma situação de perigo ao normal desenvolvimento do processo, repre— Um único dia de detenção no Brasil tem uma altissima probabili-

imposta. .
sentada pelo periculum libertatis. . dade de transformar-se em uma pena de morte, não apenas em decor—
No processo penal, o perigo de fuga e um dos principais funda- rência da violência (rotineiramente empregada por outros detentos ou
mentos para justificar medidas como as prisões cautelares, onde o mesmo pelos carcereiros), mas também pelo alto risco de contágio pelo
risco de evasão tornará impossível a execução da pena provavelmente HIV (pois tanto a violência sexual como os niveis de contaminação são
altíssimos).
Contudo, o que é absolutamente inconcebível é qualquer hipo- Existem outras formas menos onerosas de assegurar a presença
tese de presunção de fuga, até porque substancialmente inconstitu- do acusado, proporcionais e adequadas a situação. Em caso de viola—
cional frente ã Presunção de'lnocência. Toda decisão determinando ção desses deveres, demonstrando a intenção de fugir, teríamos uma
a prisão do sujeito passivo deve estar calcada em um fundado temor, prova válida e suficiente para se falar em prisão decorrente do perigo
jamais fruto de ilações ou criações fantasmagóricas de fuga. Deve-se de fuga. A presunção de inocência, como aponta CARNELUTTI,455
apresentar um fato claro, determinado, que justifique o receio de impõe ao juiz que presuma também a obediência do acusado ao cha-
evasão do réu. mamento do Estado e só em caso de quebra dessa presunção é que se
É imprescindível um juízo sério. desapaixonado e, acima de tudo. pode falar em uma medida restritiva da liberdade.
racional. Infelizmente, muitos juizes olvidam-se disso e, com base em Concluindo, as prisões cautelares possuem como requisito o
fumus commissi deiicti, ou seja, a probabilidade da ocorrência de um
frágeis elementos, tomam essa decisão tão séria e estigmatizante. .
Tampouco o periculum iibertatís pode assumir um caráter quantl- delito. Na sistemática do Código de Processo Penal (art. 312), e aprova
tativo. Ainda que seja inaceitável qualquer presunção de fuga, muitos da existência do crime e indícios suficientes de autoria.
sustentam que o perigo de evasão aumenta a medida que aumenta a

464 SENDRA, Vicente Gimeno, et alii. Op. cit., p. 451.


465 Na doutrina espanhola, a partir das reiteradas decisões do Tribunal Constitucional, está
483 A inspiração vem da genialidade de PONTES DE MIRANDA (Tratado das ações, “Lp. GBS consagrada a expressão “exquisita motivacio'n", sendo o adjetivo "esquisita" visto como
"Defeito não é falta. O que falta não foi feito. O que foi feito, mas tern deleito, existe. de "calidad, de primor, de singular y extraordinaria flmdamentación". Neste sentido:
que não foi feito não existe e, pois, não pode ter defeito. O que foi ferro, para que falte, AngeLVicente illescas. op, cit., p. 75.
há, primeiro, de ser desfeito". 465 Lecciones sobre e! Proceso Penal, v. II, p. 71.
Aury Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

Quanto ao fundamento, periculum libertatis, é o perigo que decor- por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competen-
re do estado de liberdade do sujeito passivo, previstos no CPP como o te, salvo nos casos de crime militar. Assim, excetuando-se a prisão em
risco para a ordem pública, ordem econômica, conveniência da instru— flagrante (que não e cautelar), ninguém poderá ser preso por ordem de
ção criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal. delegado de policia, promotor ou qualquer outra autoridade que não &
judiciária (juiz ou tribunal) com competência para tanto. Eventual ile—
h') Principiologia galidade deverá ser remediada pela via do habeas corpus nos termos
do art. 648, III, do CPP
A base principiolõgica é estruturante e fundamental no estudo de Ainda que seja um ilustre desconhecido do sistema brasileiro, o
qualquer instituto juridico. Especificamente nessa matéria — prisões contraditório seria muito importante e perfeitamente compativel com a
cautelares — são os princípios que permitirão a coexistência de uma pri- medida. Bastaria que c detido fosse desde logo conduzido ao juiz que
são sem sentença condenatória transitada em julgado, com e garantia determinou a prisão, para que, após ser ouvi—lo (interrogatório), decida
da presunção de inocência. fundamentadamente se mantém ou não a prisão cautelar. Através de
Vejamos as notas características dos principios orientadores do um ato simples como esse, o contraditório realmente teria sua eficácia
sistema cautelar: de “direito à audiência", e, provavelmente, evitaria muitas prisões cau-
telares injustas e desnecessárias. Ou ainda, mesmo que a prisão se efe—
a") Jurisdicionalidade tivasse, haveria um minimo de humanidade no tratamento dispensado
ao detido, na medida em que, ao menos, teria sido "ouvido pelo juiz".
Toda e qualquer prisão cautelar somente pode ser decretada por Para os "operadores" do Direito já imunizados pela insensibilidade,
ordem judicial fundamentada. A doutrina majoritária aponta como isso pode não representar muito, mas com certeza, para quem está
exceção a esse princípio a prisão em flagrante, mas, na realidade, o fia— sofrendo a medida, é um ato da maior relevância. Não sem razão, o art.
grante é pré-cautelar, como se verá a continuação. Por isso não obser- 89.1. da CADH determina que “toda pessoa tem direito a ser ouvida,
va o principio da jurisdicionalidade. com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou
O princípio da jurisdicionalidade está intimamente relacionado tribunal competente (...)".
com o due process of law. Como prevê o art. 52, LIV, ninguém será (ou
melhor, deveria ser) privado da liberdade ou de seus bens sem o devi— b' ') Provisionalídade
do processo legal. Portanto, para haver privação de liberdade, necessa—

missível. _
damente deve preceder um processo (nulla poena sine praevio indício),
' isto é, a prisão só pode ser após o processo. A rigor, cotejando isso com
a presunção de inocência, a prisão cautelar seria completamente inad—

Contudo, o pensamento liberal clássico buscou sempre justificar a


prisão cautelar (e a violação de diversas garantias) a partir da " cruel
Nas prisões cautelares, a provisionalidade é um princípio básico
que tem sido pouco observado no sistema brasileiro. As medidas cau—
telares são, acima de tudo, situacionais, na medida em que tutelam
uma situação fática. Uma vez desaparecido o suporte fático legitimadcr
da medida e corporificadc no fumus commissí delicti e/ou no periculum
libertada, deve cessar a prisão. O desaparecimento de qualquer uma
necessidade". Assim, quando ela cumpre sua função instrumental—cau— das "fumaças" impõe a imediata soltura do imputado, na medida em
telar, seria tolerada, em nome da necessidade e da proporcionalidade. que é exigida a presença concomitante de ambas (requisito e funda—
Inobstante, quando a prisão cautelar e assumidamente utilizada como mento) para manutenção da prisão.
pena antecipada (especialmente na prisão preventiva para garantia da ' O TEDH, atento a essa constante inobservância por parte de
ordem pública ou econômica), com função de prevenção geral e espe- diversos Estados europeus, decidiu em algumas ocasiões (vg. Caso
cial e imediata retribuição, é completamente inadmissível. Ríngeisen) que a prisão cautelar era excessiva, não tanto por sua dura-
No Brasil, a jurísdicionalidade está consagrada no art. Bº, LXI, da Ção como um todo, senão pela manutenção da custódia cautelar após o
GB, segundo o qual ninguém será preso senão em flagrante delito ou desaparecimento das razões que a justificavam.
Introdução Critica ao Processo Penal
rªturar Lopes Jr. (Fundamentos da lnstrumentalidade Constitucional)

A jurisprudência tentou, sem grande sucesso, construir limites


O desprezo pela provisionalidade conduz a uma prisão cautelar globais, a partir da soma dos prazos que compõem o procedimento
ilegal, não apenas pela falta de fundamento que a legitima, mas tam- aplicável ao caso. Assim, resumidamente, se superados os tais 81 dias
bém por indevida apropriação do tempo do imputado. o imputado continuasse preso, e o procedimento (ordinário) não esti-
O princípio da provisionalidade decorre do art. 816 do CPP, segun- vesse concluido (leia-se: sentença de lº grau), haveria “excesso de
do o qual a prisão preventiva (ou qualquer outra cautelar) poderá ser prazo", remediável pela via do habeas corpus (art. 648, II). A liberdade,
revogada a qualquer tempo, no curso do processo ou não,467 desde que em tese, poderia ser restabelecida. permitindo—se a continuação do
desapareçam os motivos que & legitimam, bem como pode ser nova— processo. Algumas decisões até admitiram considerar o excesso de
mente decretada, desde que surja a necessidade (periculum libertatís).
prazo de forma isolada. e partir da violação do limite estabelecido para
Por fim, a situação fática que permite a prisão cautelar não pode a pratica de algum ato especifico (ex: a denúncia deverá ser oferecida
ser presumida e tampouco existe uma "prisão obrigatória", como que—
rem alguns. a partir de uma errônea leitura da hedionda Lei 8072. Tudo no prazo máximo de 5 dias quando o imputado estiver preso. de modo
deve ser demonstrado e devidamente fundamentado pelo juiz no que, superado esse limite sem a prática do ato, a prisão seria ilegal).
momento de sua decretação. Não existe e não poderia existir uma pri- Mas, concretamente, não existe nada em termos de limite tempo-
são cautelar obrigatória, até porque não seria cautelar seria pena ante— ral das prisões cautelares, impondo—se uma urgente discussão em
cipada para determinados delitos. torno da matéria, para que normativamente sejam estabelecidos pra-
zos máximos de duração para as prisões cautelares, a partir dos quais
c") Provisoriedade a segregação seja absolutamente ilegal.
Ademais, a norma processual deveria consagrar expressamente
um “dever de revisar periodicamente" a medida adotada, como expli—
Distinto do princípio anterior, a provisoriedade está relacionada ao
fator tempo, de modo que toda prisão cautelar deve(ria) ser temporária. camos anteriormente. .
de breve duração. Manifesta-se, assim. na curta duração que deve ter” Para evitar repetições desnecessárias. remetemos o leitor ao início
a prisão cautelar, até porque é apenas tutela de uma situação fática desse Capitulo, quando analisamos o "direito de ser julgado num prazo
(provisionalidade) e não pode assumir contornos de pena antecipada. razoável", especialmente no tópico intitulado “Nulla coactio sine legs:
Aquí reside um dos maiores problemas do sistema cautelar brasi- a (urgente) necessidade de estabelecer limites normativos", onde a
leiro: a indeterminação. Reina a absoluta indeterminação acerca da provisoriedade e sua relação com o tempo foi devidamente analisada.
duração da prisão cautelar, pois em momento algum foi disciplinada
essa questão. Excetuando—se a prisão temporária. cujo prazo máximo d") Excepcionalidade
de duração está previsto em lei,463 as demais prisões cautelares (pre—-
ventiva, decorrente da pronúncia ou da sentença penal condenatória A excepcionalidade deve ser lida em conjunto com a presunção de
recorrívelylªº são absolutamente indeterminadas, podendo durar inocência. constituindo um princípio fundamental de civilidade, fruto
enquanto o juiz ou tribunal entender existir o periculum libertatis. de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes.
ainda que para isso tenhamos que tolerar a impunidade de algum cul—
pado, pois tão grande como é a ameaça dos delitos e e o das penas
467 Ainda que o dispositivo fale em “correr do processo". é elementar que se a prisão pre- arbitrárias.
ventiva pode ser decretada no curso do inquérito policial também pode ser revogada a As medidas cautelares são a ultima ratio do sistema, reservada
qualquer tempo. Seria ilõgica uma interpretação literal que permitisse a decretação no
curso do inquérito. mas. para revogação. exigisse que o processo tivesse iniciado. para os casos mais graves, tendo em vista o elevadíssimo custo que
468 A prisão temporária está prevista na Lei 7350/89, e determina que a segregação durará representam. 0 grande problema é a massificação das cautelares,
até 5 dias. prorrogáveis por igual período. Em se tratando de crime hediondo ou equipa-
rado. a prisão temporária poderá durar até 30 dias, prorrogáveis por igual período, nos levando ao que FERRAJOLI denomina de "crise e degeneração da pri—
termos da Lei 8.072. são cautelar pelo mau uso".
469 Sucessivamente disciplinadas nos arts. 311 a 33.6. 408 e 549, todos do CP]?!
209
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

No Brasil, as prisões cautelares estão excessivamente banaliza- ,.


? de "eficiência" do aparelho repressor estatal e da própria justiça. Com
das, a ponto de primeiro se prender, para depois ir atrás do suporte pro- ;.
l:. isso, o que foi concebido para ser "excepcional" torna-se um instrumen-
,.
batório que legitima a medida. Ademais, está consagrado o absurdo to de uso comum e ordinário, desnaturando-o completamente. Nessa
à

primado das hipóteses sobre os fatos, pois prende-se para investigar, teratológica alquimia, sepulta—se a legitimidade das prisões cautelares.
quando, na verdade, primeiro se deveria investigar, diligenciar, para
somente após prender, uma vez suficientemente demonstrados o e") Proporcionalídade
fumus commissi delicti e o periculum libertatis.
Corn razão, FERRAJOLIWU afirma que a prisão cautelar e uma Definido como o princípio dos princípios, a proporcionalidade472 é
pena processual, em que primeiro se castiga e depois se processa, o principal sustentáculo das prisões cautelares.
atuando com caráter de prevenção geral e especial e retribuição. As medidas cautelares pessoais estão localizadas no ponto mais
Ademais, diz o autor, se fosse verdade que elas não têm natureza puni— critico do difícil equilíbrio entre dois interesses opostos, sobre os quais
tiva, deveriam ser cumpridas em instituições penais especiais, com gira o processo penal: o respeito ao direito de liberdade e a eficácia na
suficientes comodidades (uma boa residência) e não como é hoje, em repressão dos delitos.473 O Princípio da Proporcionalidade vai nortear a
que o preso cautelar esta em situação pior do que a do preso definitivo conduta do juiz frente ao caso concreto, pois deverá ponderar a gravi-
(pois não tem regime semi-aberto ou saidas temporárias). dade da medida imposta com a finalidade pretendida, sem perder de
Na lição de CARNELUTTI,471 "as eJu'gências do processo penal são vista a densidade do fumus CDmnlíSSÍ delicti e do periculum iibertatis.
de tal natureza que induzem a colocar o imputado em uma situação Deverá valorar se esses elementos justificam a gravidade das conse-
absolutamente análoga ao de condenado. É necessário algo mais para
advertir que a prisão do imputado, junto com sua submissão, tem, sem quências do ato e a estigmatização jurídica e social que irá sofrer o acu-
sado. Jamais uma medida cautelar poderá se converter em uma pena
embargo, um elevado custo? O custo se paga, desgraçadamente em
moeda justiça, quando o imputado, em lugar de culpado, é inocente, e já antecipada, sob pena de flagrante violação a presunção de inocência.
sofreu, como inocente, uma medida análoga à pena; não se esqueça que Ainda que tenham origens diferentes, razoabilidade (Estados
se a prisão ajuda a impedir que o imputado realize manobras desones- Unidos) e proporcionalidade (Alemanha), guardam entre si uma relação
tas para criar falsas provas ou para destruir provas verdadeiras, mais de de fungibilidade, como explica SOUZA DE OLIVEIRA,474 para quem o
uma vez prejudica a justiça, porque, ao contrário, lhe impossibilita de princípio pode ser classificado em razoabilidade interna e externa. A
buscar e de proporcionar provas úteis para que o juiz conheça a verda- primeira diz respeito a lógica do ato em si mesmo, enquanto que a
de. A prisão preventiva do imputado se assemelha a um daqueles remé- segunda exige consonância com a Constituição. Divide o autor, ainda,
dios beróicos que devem ser ministrados pelo médico com suma prudên— em três subprincipios: adequação, necessidade e proporcionalidade
cia, porque podem curar o enfermo, mas também pode ocasionar-lhe um em sentido estrito.
mal mais grave; quiçá uma comparação eficaz se possa fazer com a
anestesia, e sobre tudo com a anestesia geral, a qual é um meio indispen-
sável para o cirurgião, mas ah se este abusa dela!” 472 Dada sua relevância, e princípio da proporcionalidade exigiria um amplo estudo, que
Infelizmente as prisões cautelares acabaram sendo inseridas na ultrapassa os limites do presente trabalho. Até mesmo a questão terminologias (propor-
cionalidade ou razoabilidade) já seria motivo de debate. Assim, para o leitor interessa-
dinâmica da urgência, desempenhado um relevantíssimo efeito sedan- do, sugerimos que a leitura inicie pelos constitucionalistas (que muito tem se dedicado
te da opinião pública pela ilusão de justiça instantânea. O simbólico da ao tema). especialmente de J. J. Gomes Canotilho (Direito Constitucional e Ila-oria da
prisão imediata acaba sendo utilizado para construir uma (falsa) noção Constituição), e também de monografias específicas, como as obras Por uma 'Banda dos
Principios — O Princípio Constitucional da Hazoabilidade, de Fabio Corrêa Souza de
Oliveira, e O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Ccnstitucionalidade das leis
restritivas de direitos fundamentais, do Suzana de Toledo Barros.
473 MAR'l'INEZ. Sara Aragoneses et alii. Ob. cit., p. 389.
471 CARNELUTTI. Francesco. Lecciones sobre el Proceso Penal. Vol. II. Trad. Santiago Santis 474 SOUZA DE OLIVEIRA, Fábio Corrêa. Por uma Taenia dos Principios — O Principio
Melendo. Buenos Aires: Editora Bosch, 1950, p. 75. Constitucional da Razoabilidade, p. 323.

210 2.11
Aury Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da instrui-mentalidade Constitucional)

A adequação informa que a medida cautelar deve ser apta aos Nesse ponto, sim, podemos recorrer a CALAMAN'DREIATG segun-
seus motivos e fins. Logo. se houver alguma outra medida (inclusive de do o qual, nos procedimentos cautelares, mais do que o objetivo de
natureza cautelar real) que se apresente igualmente apta e menos one— aplicar o direito material, a finalidade imediata e assegurar a' eficácia
rosa para o imputado, ela deve ser adotada, reservando a prisão para do procedimento definitivo (esse, sim, tornará efetivo o direito mate—
os casos graves, como ultima ratio do sistema. rial). Isso porque “ia tutela cautelare e, nei confronti del diritto sustan—
A necessidade "preconiza que a medida não deve exceder o ziale, una tutela mediata: piu che a far giustizia, serve a garantire l ”em"-
imprescindível para a realização do resultado que almeja“.4'f5 Rela— cace funzionarnento della giustizia. Se tutti i provvedimenti giurisdizio-
ciona—se, assim, com os princípios anteriores de provisoriedade e pro— nali sono uno strumento del diritto sostanziaie che attraverso essi si“
visionalidade.
attua, nei provvedimenti cautelari si n'scontra una striunentalità quali-
Por fim, & proporcionalidade em sentido estrito significa o sopesa—
ficata, ossi elevata, per cosi dire, ai quadrato: essi sono infatti, imman-
mento dos bens em jogo, cabendo ao juiz utilizar a lógica da pondera— cabilmente, un mezzo predisposto per la miglior riuscita del provvedi—
ção. De um lado, o imenso custo de submeter alguém que é presumida- mento definitivo, che a sua volta é mezzo per I"attuazione del diritto;
rnente inocente a uma pena de prisão, sem processo e sem sentença,
sono cioe, in reiazione alia finalità ultima della funzione giurisdizionale,
e, de outro lado, a necessidade da prisão e os elementos probatórios
existentes. Strumenti dello strumento".477
Fica evidenciado, assim, que as medidas cautelares não se desti—
o') (Re)Visão Crítica do Periculum Libertatis: a Substancial nem a "fazer justiça“, mas sim garantir o normal funcionamento da jus—
Inconstitucionalidade de Prisão Preventiva para Garantia tiça através do respectivo processo (penal) de conhecimento. Logo, são
da Ordem Pública ou Econômica ' instrumentos a serviço do instrumento processo; por isso, sua caracte—
ristica básica é & instrumentalidade qualificada ou ao quadrado.
Como apontamos inicialmente, o periculum libertatis no sistema É importante fixar esse conceito de ínstrumentalidade qualificada,
pois só é cautelar aquela medida que se destinar a esse fim (servir ao
telar é constitucional. .
brasileiro está previsto no art. 312 do CPP: traduzindo uma das seguin-
tes situações tutelãveisf processo de conhecimento). E somente o que for verdadeiramente cau-
— ordem pública;
— ordem econômica: Com DELMANTO JUNIOR,47B "acreditamos, igualmente, que a
— instrução criminal;
característica da instrumentalidade é insita à prisão cautelar na medida
— aplicação da lei penal. em que, para não se confundir com pena, só se justifica em função do
bom andamento do processo penal e do resguardo da eficácia de even-
Analisaremos agora os dois primeiros fundamentos, para demons— tual decreto condenatória".
trar que são substancialmente inconstitucionais. Os demais (tutela da
instrução e da lei penal) serão tratados no próximo tópico. 476 Introduzione alia studio sistematico dei pruvvedimenrí cautelari, PPA 21-22-
A primeira questão a ser enfrentada é: qual é o objeto da prisão 477 "A tutela cautelar e. quando comparada com o direito material, uma tutela mediata: mais
cautelar? A resposta nos conduz ainda a sua finalidade e delimita, natu— . que fazer justiça, serve para garantir o eficaz funcionamento da Justiça. Se todos os pro-
ralmente, seu campo de incidência, pois a prisão cautelar e ilegítima vimentos jurisdicionais são instrumentos do direito material que através deles se atua,
nos provimentos cautelares encontra-se uma instrumentalidade qualificada, ou seja, ele-
quando afastada de seu objeto e finalidade, deixando de ser cautelar vada. por assim dizer, ao quadrado: esses são de fato, infalivelmente. um meio predis-
posto para melhor resultado do provimento delinitivo. que. por sua vez, é um meio para
a atuação do direito (material); são, portanto, em relação à finalidade última da ativida-
de jurisdicional, instrumentos do instrumento.” (Tradução livre)
478 SOUZA DE OLIVEIRA, Fábio Corrêa. Por uma Teoria dos Principios — D Principio 478 DELMANTD JUNIOR, Roberto. As Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de
Constitucional da Razoabiiidade, p. 321. Duração. 13. BZ.

2.12. 213
Aury Lopes J r. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

Nesse momento evidencia—se que as prisões preventivas para HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. REQUISITOS
garantia da ordem pública ou da ordem econômica não são cautelares e, LEGAIS. PRESUNÇÃO DE PERICULOSIDADE PELA PROBABILI-
portanto, são substancialmente inconstitucionais. DADE DE REINCIDÉNCIA. INADIVHSSIBILEDADE.
Trata—se de grave degeneração transformar uma medida proces-
sual em atividade tipicamente de policia, utilizando-as indevidamente — A futurologia perigosista. reflexo da absorção do aparato teó-
como medidas de segurança pública. rico da Escola Positiva — que, desde muito, têm demonstrado
seus efeitos nefastos: excessos punitivos de regimes políticos
Quando se mantém uma pessoa presa em nome da ordem pública,
totalitários, estigmatização e marginalização de determinadas
diante da reiteração de delitos e o risco de novas práticas, está se aten-
classes sociais (alvo do controle punitivo) — tem acarretado a
dendo não ao processo penal. mas sim a uma função de polícia do proliferação de regras e técnicas vagas e ilegítimas de couro—
Estado' completamente alheia ao objeto e fundamento do processo le social no sistema punitivo, onde o sujeito — considerado
penal. como portador de uma perigosidade social da qual não pode
Inadmissivel, portanto, a prisão preventiva sob o argumento de subtrair-se — torna—se presa fácil ao aniquilante sistema de
"perigo de reiteração“ de condutas criminosas. Trata—se de (absurdo) exclusão social. (grifamos)
exercício de Vidência por parte de julgadores, que até onde temos — A ordem pública. requisito legal amplor aberto e carente de
conhecimento ainda não possuem um pericrdosômetro (diria ZAFFARO- sólidos critérios de constatação (fruto desta ideologia perigo—
NI) à disposição. sista) — portanto antidemocrático —. facilmente enquadravel a
Alem de ser um diagnóstico absolutamente impossivel de ser feito qualquer situação, é aqui genérica e abstratamente invocada
(salvo para os casos de Vidência e bola de cristal), e flagrantemente — mera repetição da lei —, já que nenhum dado fático, objetivo
inconstitucional. pois a única presunção que a Constituição permite e e concreto na a sustenta-la. Fundamento prisional genérico,
a de inocência e ela permanece intacta em relação a fatos futuros. antigarantista, insuficiente, portanto!
Recorda SALO DE CARVALH0479 que uma das principais distin— — A gravidade do delito, por si só, também não sustenta o cár-
cer extemporâneo: ausente previsão constitucional e legal de
ções entre o sistema inquisitivo e o acusatório—garantista se manifesta
prisão automática por qualquer espécie delitiva. Necessária, e
no que diz respeito a existência de possibilidades de concreta refutação
das hipóteses probatórias. sempre, a presença dos requisitos legais (apelação—crime
70006140693, j. em 12/03/2003).
Como refutar esse exercício de Vidência por parte do magistrado? — Á unanimidade, concederam a ordem.
Como provar (como se o imputado tivesse que provar algo...) que no
futuro não irei cometer nenhum crime?
Completamente inaceitável, diante da absoluta inconstitucionali—
Ora. com a máxima vênia, esse tipo de decisão é dotada de um ele- dade, a "futurologia perigosista". como denominou o Relator, comu-
vado grau de charlatanismo e um altíssimo grau de prepotência. mente invocada para decretar uma prisão preventiva com base na
Ambos completamente inadmissíveis num processo minimamente "possivel" reiteração de delitos.
democrático e constitucional. A prisão preventiva para garantia da ordem pública ou econômica
Nesse sentido, cumpre trazer à colação os bem—lançados argu— nada tem a ver com os fins puramente cautelares e processuais que
mentos da Quinta Câmara Criminal do TJRS, no HC 70006140693, Rel. marcam e legitimam esses provimentos.
Des. Amilton Bueno de Carvalho, j, 23/04/2003: Como aponta SAN GUINÉf-ªªº “quando se argumenta com razões
de exemplan'dade, de eficácia da prisão preventiva na luta contra a

479 Pena e Garantias: Uma Leitura do Garantismo de Luigi Fei-rajalí no Brasil. Rio de Janeiro. 480 SANGUINÉ. Odone. “A Inconstitucionalidade do Clamor Público como ªndamento de
Lumen Juris. 2001. p. 199. Prisão Preventiva". In: Revista de Estudos Crâninais, nº 10. p. 114.

2.15
Aury Lopes J r. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

delinqiiência e para restabelecer o sentimento de confiança dos cida— cia de seu resultado — insito a toda e qualquer medida cautelar. servin-
dãos no ordenamento juridico, aplacar () clamor público criado pelo do de inaceitável instrumento de justiça sumária".
delito, etc. que evidentemente nada tem a ver com os fins puramente Em outros casos, a prisão para garantia da ordem pública atende
cautelares e processuais que oficialmente se atribuem a instituição. na a uma dupla natureza:483 pena antecipada e medida de segurança, já
realidade. se introduzem elementos estranhos à natureza cautelar e que pretende isolar um sujeito supostamente perigoso.
processual que oficialmente se atribuem a instituição, questionáveis É inconstitucional atribuir à prisão cautelar a função de controlar
tanto desde o ponto de vista jurídico—constitucional como da perspec- o alarme social, e por mais respeitáveis que sejam os sentimentos de
tiva político-criminal. Isso revela que a prisão preventiva cumpre fun- vingança, nem a prisão preventiva pode servir como pena antecipada
ções reais (preventivas gerais e especiais) de pena antecipada incom— e fins de prevenção, nem o Estado, enquanto reserva ética, pode assu—
patíveis com sua natureza". mir esse papel vingativo.
Grave problema encerra ainda a prisão para garantia da ordem Também a ordem pública, ao ser confundida com o tal "clamor
pública, pois trata—se de um conceito vago, impreciso, indeterminado e público", corre o risco da manipulação pelos meios de comunicação de
despido de qualquer referencial semântico. Sua origem remonta a massas, fazendo com que a dita opinião pública não passe de mera opi-
Alemanha na década de 30, período em que o nazi-fascismo buscava nião publicada, com evidentes prejuizos para todos.
exatamente isso: uma autorização geral e aberta para prender. Até Nesse sentido, destaque—se a acertada decisão da Quinta Câmara
hoje, ainda que de forma mais dissimulada, tem servido a diferentes Criminal do TJRS, no HC 70005916929, Relator Des. Amilton Bueno de
senhores, adeptos dos discursos autoritários e utilitaristas, que tão Carvalho, em 12 de março de 2003:
“bem" sabem utilizar dessas cláusulas genéricas e indeterminadas do
Direito para fazer valer seus atos prepotentes. HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. REQUISITOS DO
Assume contornos da verdadeira pena antecipada, violando o ART. 312, DO CPP. FUMUSBONI JURIS E PERICULUll/IDVMORA.
CLAMOR PÚBLICO. ]NADMISSIBILIDADE Á PRISÃO.
devido processo legal e a presunção de inocência. SAN GUINEªª1 expli—
ca que a prisão preventiva para garantia da ordem pública (ou ainda, o
clamor público) acaba sendo utilizada com uma função de “prevenção __ Toda especie de prisão provisória. enquanto espetacular exce—
geral, na medida em que o legislador pretende contribuir à segurança ção ao princípio constitucional da presunção de inocência (art.
da sociedade, porém deste modo se está desvirtuando por completo o 5ª, LVII, da CF), exige a satisfação dos requisitos gerais em
verdadeiro sentido e natureza da prisão provisória ao “atribuir—lhe fun- matéria cautelar, quais sejam, o fumus boni iuris e o periculum
ções de prevenção que de nenhuma maneira esta chamada a cumprir". in mora. O primeiro encontra—se consubstanciado nos indícios
As funções de prevenção geral e especial e retribuição são exclu- de autoria e prova da materialidade (concomitantemente), ao
sivas de uma pena, que supõem um processo judicial válido e uma sen— passo que o segundo pode se manifestar na necessidade de
garantir a ordem pública (ou econômica), assegurar a aplica—
tença transitada em julgado. Jamais tais funções podem ser buscadas
na via cautelar. ção da lei penal ou, ainda, por conveniência da instrução cri-
minal (ao menos uma destas hipóteses deve estar presente).
No mesmo sentido, DELMANTO JUNIOR432 afirma que e indisfar—
— O "clamor público", a “intranq'iiilidade social" e o “aumento da
çável que nesses casos "a prisão preventiva se distancia de seu cará—
criminalidade" não são suficientes a configuração do pericu—
ter instrumental — de tutela do bom andamento do processo e da efica- lum in mora: são dados genéricos, sem qualquer conexão com
o fato delituoso praticado pelo réu, logo não podem atingir as
48] SANGUINÉ, Odone. "A Inconstitucionalidade do Clamor Público como Fundamento da garantias processuais deste. Outrossim, o aumento da crimina—
Prisão Preventiva". In: Revista de Estudos Criminais, nª 10, p. 115.
482 DELMANTD JUNIOR, Roberto. As Modalidades de Prisão Prow'sória e seu Prazo de
Duração, 13. 183. 483 smomnn, Odone. idem, ibidem.

216 217
Aury Lopes Jr.
introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

lidade e o clamor público são frutos da estrutura social vigen— soas ao cometimento de crimes semelhantes, fins exclusivos da sanção
te, que se encarrega de multiplica-los nas suas próprias criminal".
excrescências. Assim, não é razoável que tais elementos —
genéricos o suficiente para levar qualquer cidadão a cadeia —
Novamente estamos diante de uma medida que nª e cautelar,

sário repetições. .
sendo igualmente inconstitucional, conforme explicamos anteriormen-
sejam valorados para determinar o encarceramento prematuro. te ao tratar da prisão para garantia da ordem pública, sendo desneces—
— A gravidade do delito, por si só, também não justifica a impo—
sição da segregação cautelar, seja porque a lei penal não Por fim, empregamos a noção de "substancial inconstitucionalida—
prevê prisão provisória automática para nenhuma espécie de" na acepção definida no final desse Capitulo, quando abordaremos
delitiva (e nem () poderia porque a Constituição não permite), a "motivação das decisões judiciais“.
seja porque não desobriga o atendimento dos requisitos
legais em caso algum.
— Á unanimidade, concederam a ordem. d') Desconstruindo o Paradigma da (Cruel) Necessidade Forjado
pelo Pensamento Liberal Clássico
Obviamente que a prisão preventiva para garantia da ordem
Esclarecido que a prisão para garantia da ordem pública ou eco-
pública não é cautelar, pois não tutela o processo, sendo, portanto, fla—
nômica não possui natureza cautelar e que, portanto, não está consti—
grantemente inconstitucional, até porque, nessa matéria, é imprescin- tucionalmente legitimada, cumpre agora analisar os fundamentos res—
dível a estrita observância do principio da legalidade e da taxativida—
de. Considerando a natureza dos direitos limitados (liberdade e presun—
tantes: tutela da instrução criminal e da aplicação da lei penal.
Essas são verdadeiramente cautelares, na medida em que se des—
ção de inocência), e absolutamente inadmissível uma interpretação
extensiva (in malan partem) que amplie o conceito de “cautelar" até o tinam ao processo, a assegurar o regular e eficaz funcionamento do pro—
cesso penal. A questão é saber se são realmente necessárias no não.
ponto de transformá—la em “medida de segurança pública".
Por fim, a prisão para garantia da ordem econômica é resultado da O pensamento liberal classico convive(u) com as prisões cautela—
influência do modelo neoliberal e seria risível se não fosse realidade. res a partir de um argumento basico, verdadeira tábua de salvação: a
Num pais pobre como o nosso, ter uma prisão preventiva para tutelar o cruel necessidade de tais medidas. Invocando o superado argumento
de que os fins justificam os meios, contenta-se em considerar o meio
capital especulativo envergonha o processo penal. É elementar que, se o
objetivo é perseguir & especulação financeira, as transações fraudulen- como um fenômeno natural, que não precisa ser justificado, mas ape-
nas explicado e, como muito, delimitado.
tas, e coisas do gênero, o caminho passa pelas sanções a pessoa jurídi-
ca, o direito administrativo sancionador, as restrições comerciais. mas A prisão obrigatória e ainda mais absurda e, para alguns, teria sido
jamais pela intervenção penal, muito menos de uma prisão preventiva. inclusive ressuscitada no Brasil com a Lei dos Crimes Hediondos (Lei
Como acerto, DELMANTO JUNIOR484 aponta que “não resta dúvi- 8.072). Isso porque, ao impedir a concessão de fiança e liberdade provi—
da de que nessas hipóteses a prisão provisória afasta—se, por comple— sória, gerou de fato a obrigatoriedade da manutenção do encarceramen—
to, de sua natureza cautelar instrumental e/ou final, transformando-se to. Mas não se dão conta de que a obrigatoriedade vai de encontro a
em meio de prevenção especial e geral e, portanto, em punição anteci- tábua de salvação criada pelo sistema: o princípio de necessidade. Se a
pada, uma vez que uma medida cautelar jamais pode ter como finalida- necessidade já era discutível, é completamente inaceitável uma presun—
de a punição e a ressocialização do acusado para que não mais infrin- ção absoluta de necessidade em relação & tipos penais abstratos“
ja a lei penal, bem como a consequente desestimulação de outras pes— Antes de seguir repetindo essas lições sem maior reilexão. deve-
mos constantemente questionar: sera que realmente é necessária a pri—
são cautelar? Com certeza, após uma análise seria e criteriosa, se não
484 DELMANTO .JUNiCiH, Roberto. As Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de
Duração, p. 192.
chegarmos a eliminar a base teórica até então vigente, ao menos dimi—
nuiremos em muito a incidência dessa verdadeira pena antecipada.
218
219
Auri.r Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

comum teórico. ,
Para tanto, vejamos alguns aspectos raramente enfrentados pelo senso

Inicialmente. devemos considerar que a tutela da prova não pode


menor e o tempo necessário para a apuração do fato e menores são os
“riscos de manipulação ou destruição por parte do suspeito. . .
A essa altura, alguém pode estar se perguntando: mas essa não é
ser confundida com a de interrogar o imputado e obter sua confissão. a realidade brasileira, cuja atividade policial, na imensa maioria dos
Em primeiro lugar, porque numa visão aCusatoria (ou ao menos não— casos. não consegue superar o nível da coleta de depoimentos? Ora, até
inquisitiva...) do processo, o interrogatório e um direito de defesa e não mesmo a coleta de depoimentos pode ser agilizada de forma bastante
serve para a acusação. Não serve para adquirir provas de culpabilida— barata, com a filmagem e gravação, a partir das quais o risco de mani-
de. Ademais, a confissão não pode ser usada em seu prejuízo e, há pulação passa a ser mínimo. 0 que não se pode continuar admitindo é
muito, deixou de ser a prova plena; basta uma rápida leitura da expo- que tenhamos que arcar com os custos da incompetência estatal e a
sição de motivos do CPB É o momento de superar a culpa judaico-cris— mais absoluta falta de interesse em realmente resolver o problema.
tã que conduz ao “confessa e arrepende-te de teus pecados, para Quanto mais se analisa a questão, maior é o convencimento de
encontrar a salvação ". que. na realidade, não existe necessidade. mas mera conveniência para
Para o FERRAJOLI,495 a prisão cautelar pode ser perfeitamente o Estado. E, com isso, não pactuamos. ,
substituída pela mera "detenção", ou seja, o traslado do sujeito passivo . Outro argumento comumente empregado é o do “medo" da vítima
para ser colocado sob custódia do tribunal pelo tempo estritamente e das testemunhas. O argumento anterior segue sendo invocado.
necessário para interroga-lo e realizar as primeiras comprovações do Incumbe ao Estado as funções de segurança pública, da vítima, das
fato. inclusive utilizando o incidente de produção antecipada de provas testemunhas e de todos nós. O processo penal não é o instrumento
(desconhecido no Brasil). Com isso, esse isolamento não duraria mais do adequado, sob pena de sepultarmos o Estado Democrático de Direito e
que horas ou no máximo dias, mas jamais meses e anos e tampouco todas suas conquistas. Tampouco o Estado está realmente preocupado
teria o impacto estigmatizante da prisão cautelar. O suspeito ficaria iso- ein-proteger vítimas e testemunhas, basta verificar como funcionam os
lado por um breve período, até ser ouvido e realizadas as primeiras com- ffprogramas de proteção " para constatar que o que se protege não é a
provações do fato, inclusive com produção antecipada em incidente.
testemunha, mas sim o testemunho. Sequer conseguem disfarçar que a
Após ser ouvido e produzida essa prova, não há mais motivo para visão utilitarista também se dirige a vítimas e testemunhas... .
Também não é, como explicamos anteriormente, função da prisão
a segregação, até porque o suspeito não poderá — substancialmente —
alterar mais nada. Mantê-lo preso representa apenas constrangimento cautelar a prevenção geral e especial. Essas são funções exclusivas da
e cerceamento de defesa, pois o detido tem suas possibilidades de pena, aplicada após o processo. .
' Isso tudo sem falar na necessidade de que exista prova suficiente
defesa reduzidas ao extremo, inclusive permitindo que a acusação e a dessa situação. O periculum líbertatis não se presume. Tampouco pode
vitima possam — esses sim — manipular a prova. Ou por acaso o acusa-
ser fruto de ilações fantasmagõricas ou transtornos persecutórios. Uma
dor público ou privado está imune a esse tipo de tentação? No sistema análise séria. que racionalize os medos, levará à conclusão de que na
acusatório, o contraditório e essencial, e o combate livre e aberto, em imensa maioria das prisões cautelares decretadas sob esse fundamen-
igualdade de armas, cai' por terra com o acusado preso. Sem falar que to a prisão e ilegal, pois não existe a situação fática legitimante da
a prisão cautelar conduz a uma verdadeira “presunção de culpabilida— intervenção penal.
de" extremamente prejudicial para o processo. Em suma, no que se refere à tutela da prova, existem outras formas
Também a tutela da prova deve caminhar no sentido de maior e instrumentos que permitam sua coleta segura com um custo (social e
cientificidade da própria investigação e coleta de indícios. Quanto mais para o imputado) infinitamente menor que o de uma prisão cautelar.
eficiente for a polícia cientifica e as técnicas de recolhimento de provas, No que se refere a prisão cautelar para tutela da aplicação da lei
penal, estamos diante de uma medida verdadeiramente cautelar.
Novamente a questão e saber se realmente existe a cruel necessidade
486 Derecho yHazón, pp. 775 e ss. a legitima-1a.

220 221
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

Recordemos que é absolutamente inconcebível e gralgier hipote- Inclusive, é imprescindível a ampliação dos instrumentos a servi-
se da presunção de fuga. até porque substancialmente inconstitucional ço da liberdade provisória. com um rol mais abrangente de restrições
frente à Presunção de Inocência. Toda decisão determinando a prisão gradativas, que podem ir da obrigação de comparecimento periódico
do sujeito passivo deve estar calcada em um fundado temor, jamais (até mesmo diário) para informar as atividades e comprovar a presen—
fruto de ilações. Deve-se apresentar um fato claro, determinado, que ça na comarca, passando pela retenção de passaporte, expedição de
justifique o receio de evasão do réu. documentos que permitam o trânsito restrito, obrigatoriedade de reco-
Infelizmente muitos juizes olvidam-se disso, e, com base em frá— lhimento noturno e estabelecimentos especiais,455 até a vigilância por
geis elementos, tornam essa decisão tão séria e estigmatizante. O risco meio de pulseiras com GPSªªº ou outros recursos tecnológicos, cujo
deve apresentar-se como um fato claro, determinado, que justifique o custo econômico e social, tanto para o Estado como para o imputado. é
medo de evasão do acusado. É imprescindível um juízo sério, desapai— infinitamente menor do que os de uma prisão cautelar. É interessante
xonado e acima de tudo, racional. como o discurso tecnológico de teleação, teleaudiência, teleinterroga-
Existem outras formas menos onerosas de assegurar a presença tório e uma via de mão única, nunca se aplicando em beneficio do cida-
do acusado, proporcionais e adequadas à situação. Não esqueçamos, dão acusado.
ainda, que a presunção de inocência impõe que se presume o compa- Não há a menor dúvida de que manter o imputado em liberdade,
recimento do acusado. integrado, trabalhando e desenvolvendo suas atividades dentro de um
Com acerto, FERRAJOLIªªE argumenta que a fuga e em geral cau- certo nível de normalidade, é infinitamente mais útil para todos do que
sada mais pelo medo da prisão preventiva do que pela própria senten- simplesmente determinar seu encarceramento. Em último caso, para
ça, até porque. se esta for justa e proporcional, não há por que teme-la. situações realmente excepcionais, lançaria-se mão de privação de
liberdade.
A desproporcionalidade,4ª7 sim, é fator predominante para a fuga, e
isso é (mais) um problema do Direito Penal máximo. Há seculos. Com muita razão, FERRAJOLI490 aponta para a degeneração conti-
nental do instituto e defende a sua exclusão do ordenamento. Sem dúvi—
Voltaire já chamava a atenção para a dureza do procedimento criminal
como causa da fuga: "Se um homem está acusado de um crime. come- da que essa degeneração está diretamente relacionada ao uso abusivo
por parte de muitos juízes e ao excesso de sua duração. Como pena
çamos por encerra-Io em um calabouço horrivel; não permitindo que antecipada. a prisão cautelar não tem função ressocializadora, mas de
tenha comunicação com ninguém, testemunhas depõem sem que ele prevenção geral e especial, e principalmente de retribuição imediata.
assista. Enfim toda uma carga como se já tivesse sido julgado culpado. Diziam BEGCARIA e BENTHAM que não era a crueldade das
Concluia Voltaire, Oh juizes, quereis que o inocente acusado não esca— penas um dos maiores freios dos delitos, senão sua infalibilidade e
pe, pois facilita—lhe os meios para defender—se". prontitude. Atualmente. isso foi substituído pela infalibilidade e ime—
Atualmente, com as facilidades de uma sociedade informatizada e
internacionalrnente integrada, com os atuais sistemas de vigilância. o
risco de fuga fica bastante reduzido. 488 E impressionante o número de presos cautelares por crimes cometidos sem violência ou
grave ameaça, em que a eventual pena ao final aplicada é passível de substituição por
prestação de serviços à comunidade ou outras medidas não restritivas de liberdade. Ou
seja, nem mesmo se ao final fossem condenados seriam encarcerados. mas estão presos
485 Derecho y Razón, pp. 775 e ss. cautelarmente. Em outros casos. a quantidade de pena aplicada (ou aplicável, pois sem-
1187 O medo de uma pena desproporcionada e injusta e o maior motivador da fuga. Porque pre e perfeitamente possível uma previsão aproximada) autoriza o regime semi-aberto ou
passar a vida toda fugindo se. na pior das hipóteses, posso cumprir uma pena razoável até mesmo o aberto como inicial de cumprimento da pena. Como manter alguém preso
e seguir vivendo minha vida? Nessa linha. devemos rediscutir o limite máximo das penas cautelarrnente em "regime" muito mais rigoroso do que aquele eventualmente aplicável
privativas de liberdade. Para FERRAJDLI, elas não devem superar os 16 anos. Com isso. ao final, em caso de condenação? São situações flagrantemente desproporcionais. mas
reduzimos drasticamente o medo da pena e favorecemos o desaparecimento da prisão que ocorrem diariamente.
preventiva. A questão também deve ser analisada 'a luz do que explicamos sobre o 489 O GPS (Sistema de Posicionamento Global) já é um equipamento bastante difundido,
"tempo", pois a pena de prisão e tempo de involução. geradora de uma quebra da sinto- cujo custo reduzido e a facilidade de manejo fazem com que seu uso seja comum e roti-
nia com a dinâmica social. Não há dúvida de que 20 anos de pena hoje são completamen— nelro.
te diferentes do que li] anos de pena há 10 anos atrás. 490 Derecho y Razón, pp. 559 e ss.

222 223
Aury Lopes Jr.
Introdução Critica ao Processo Penal .
(Fundamentos cia Instrumentalidade Constitucional)

diatidade da prisão cautelar, que, por sua vez, provocou a dilatação dos e dada essa ermissão?
processos na mesma medida com que se prolongou o período máximo ªiªiªªte porque exipste a visibilidade do delito, o fumus com-
de duração das medidas cautelares.
Finalizando, nossa intenção era trazer algumas rápidas considera- missi delicti é patente e inequívoco e, principalmente, porgue essa
ções sobre as medidas cautelares no processo penal. buscando de detenção deverá ser submetida ao crivo judrcral no prazo maximo de
alguma forma contribuir com a evolução de tão importante instituto no 2411.4535 Precisamente porque o flagrante e uma medida precaria, que
Direito brasileiro e também despertar para a gravidade dessas medi- não está dirigida a garantir o resultado finaldo processo, e que pode
das, como poderosos instrumentos de estigmatização social e jurídica ser praticado por um particular ou pela autoridade policral.
dos acusados. Com este sistema, o legislador consagrou o carater pre-cautelar da
Chegou o momento de tratar a prisão cautelar como verdadeira prisão em flagrante. Como explica BANACLOCHE FALAO,494 o flagran—
pena antecipada, com conteúdo aflitivo igual ou superior ao da pena de te— ou la detención imputativa — não é uma medida cautelar pessoal,
mas sim pré-cautelar, no sentido de que não se dirige a garantir o resul—
prisão e, como tal, deve(ria) ser reservada para situações realmente
excepcionais. Com muita razão, FERRAJOLI aponta para a degeneração tado final do processo, mas apenas destina—se a colocar o detido a dis-
continental do instituto e defende a sua exclusão do ordenamento. Sem posição do juiz para que adote ou não uma verdadeira medida cante ar.
Por isso, o autor afirma que e uma medida independente, frisando o
dúvida que essa degeneração está diretamente relacionada ao uso abu—
sivo por parte de muitos juízes e ao excesso de sua duração. Corno pena caráter instrumental e ao mesmo tempo autônomo do ilagrante.
antecipada, a prisão cautelar não tem função ressocializadora, mas de A instrumentalidade manifesta—se no fato de a prisao em flagran-
prevenção geral e especial, e, principalmente, da retribuição imediata. te ser um Strumenti dello strumentoªªlEi da prisão preventiva; ao passo

'vio fla rante. . .


É a completa subversão do proprio instituto. que a autonomia explica as situações em que o flagrante nao gera & pn-
são preventiva ou, nos demais casos, em que a prisao preventiva EXIS—
e') Colocando & Prisão em Flagrante no seu Devido Lugar tº segelsjifâca o aigtor que a prisão em flagrante en ningún caso se dirige
A doutrina costuma classificar a prisão em flagrante, prevista no
art. 301 e seguintes do CPP, como medida cautelar. Trata-se de um
' a fase decisoria de proceso. .
a- assegurar ni ia eventual ejecución gia la pena, ni tampoco la presencra
dº] ªªªtãdâiãgrfsa a lição de FERRAIDLI e DALlAzªºª l'arresto in fla—
equívoco, a nosso ver, que vem sendo repetido sem maior reflexão ao
longos dos anos e que agora queremos (des)velar. granza é uma
A prisão Misureesta
em ilagrante Pre—Cautelari Personali.
justificada nos casos . . 'de
excepcronais,
Como explica CARNELUTTI,491 a noção de flagrãncia está direta-
necessidade e urgência, indicados taxativamente no art. 302 do ÇPP e
mente relacionada a "la llama, que denota con certeza 1a combustión;
cuando se ve la llama, es indudable que alguna cosa arde". Essa constitui uma forma de medida pré-cautelar pessoal que se distingue
chama, que denota com certeza a existência de uma combustão, coin— da verdadeira medida cautelar pela sua absoluta precariedade. leeste
mesmo sentido, FERRAIOLI e DALLA afirmam que as medidas pre-cau—
cide com a possibilidade para uma pessoa de comprova—lo mediante a telares são excepcionais, de assoluta precarietã, che le connota come
prova direta. Como sintetiza o mestre italiano: a ilagrãncia não e outra iniziative di brevissima durata.497
coisa que a visibilidade do delitoªºª
Esta certeza visual da prática do crime gera a obrigação para os
órgãos públicos, e a faculdade para os particulares, de evitar a conti—
nuidade da ação delitiva, podendo, para tanto, deter o autor. 493 Esseiprazo é obtido a partir da análise do art. 306 do CPP. . 292
494 La iibertadpersonai ;; sus iimitaciones. Madrid, Mo Gravv Hill,-199541- b ligadº
495 Invocancio aqui o consagrado conceito de "striimentahta qualiãcata , tao em exp :"
por CALAMANDREL na obra Lntroo'uzions alla Studio Sistematico de: Prowedimen :
491 Lecciones sobre el Proceso Penal. Trad. Santiago Sentis Melendo. Tomo II. Buenos Aires, Cautelari, Padova, Sadam. 1935. p. 2.2. . _ _
495 FERRAIDLI, Marzia e DALLA, Andrea Antonio. Manuais di Dirrtto Processuais Penais,
1950, p. 77.
492 Idem, p. 78. Milão, “Cedarn, 1997.1313. 228 e ss. . .
497 A titulo de ilustração, vejamos a duração da prisão em flagrante em alguns outros paises.
224 225
Aury Lopes Jr.
Introdução Crítica ao Processo Penal .
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucmnal)

Tratando especificamente da prisão em flagrante a cargo da


Polícia Judiciária, apontam que essa extensão do poder de iniciativa 29 Momento: bomologando a prisão em flagrante, devera, ser;;
pré-cautelar significou a aceitação do risco de privação, temporária, da pre, enfrentar a necessidade ou não da prisao preventrvaldº
necessária e cabível, poderá decreta—laldesde que tenha sr
liberdade pessoal do cidadão por razão de ordem política. O instituto postulada sua decretação).493 Do contrario, devera conceder a
fermo di polizia marcou um pesado desequilíbrio na relação autoridade-
liberdade e por isso deve ser analisado com sumo cuidado em um liberdade provisória,o nos
fo único (conforme termos
caso). do art. 310,
Em qualquer caput
caso, ou parªguai
& decrsao eve
Estado Democrático de Direito, como o nosso. rá ser motivada.
A prisão em flagrante e uma medida pré—cautelar, de natureza pes-
soal, cuja precariedade vem marcada pela possibilidade de ser adota-
Com isso se estiverem presentes os requisitos formais do gama-lr;-
da por particulares ou autoridade policial, e que somente está justifica— te o juiz deverá homologa—lo, chancelando a legalrdade' ema e:
da pela brevidade de sua duração e o imperioso dever de análise judi-
' “, ' ' " ' ão estava presente, ou porqu
contudo se o flagrante for ilegal (forjado, provocado, etc.), seàahpl altªr]—
cial em até 24h, onde cumprirá ao juiz analisar sua legalidade e decidir
a Situação
falha formal, o fat1oa de homologa—lo.
flagrancna n consequenc
. . " « ja'

''"o.
sobre a manutenção da prisão (agora como preventiva) ou não. me juiz não devera Como
Em síntese, o primeiro aspecto a ser destacado é que a prisão em
flagrante não é uma prisão cautelar. rna-= sim uma medida Dre-cautelar.
deverá relaxar a prisão. . . I n—
Homologando o flagrante, passa o ]u1z para um segundo morrªm
Ísto porque destina-se a preparar, instrumentalizar uma futura medida
to obedecendo ao art. 310 do CPB especialmente no seu paragªrt
:autelar. Por isso, é a única forma de detenção que a Co nstituição per- único' deverá verificar & necesmdade da pnsao cautelar. O propri re-
níte seja realizada por um particular ou pela autorida de policial sem
>rdem judicial. 310 remete para os arts. 311 e 312 do CPB que disc1plinarn apntsaoap ri-
' ' "da se estiverem presen
menties_ 0fam rí—
ventiva. É como se o legislador dissesse: em que pese 1oflagran ÉS cãm_
sao somente podera ser
ão reventíva. . _ _ .
Uma vez efetivada a prisão em flagrante, com a consequente
missi delíctí e o periculum libertatis, podendo entao ser decretada a p
avratura do auto respectivo, e peça policial será enviada ao juiz com-
Jetente. Esse juiz, a luz do disposto no art. 310 do CPP, devera decidir
e homologa ou não a prisão em flagrante. Assim, o julgador atua de 5 13Do contrário se não houver a neoessrdade da prisao preventgvlaiª
arma sucessiva, em dois momentos:
deverá
não ser concedida
a exige) mas com a liberdade provisória
a obrigação sem fiança
de comparecer (pors ()
a todos osaít.S
a o do
recesso, sob pena de revogação. .“ , 'O
' Il ' " es-
19 Momento: analisa o aspecto formal da prisão em flagrante,
sua legalidade ou ilegalidade. Se legal, homologa; se ilegal,
deverá relaxa—la.
p O que desde logo deve ser rechaçado e3 qualquerlargumento Ciª-.e
núcleo seja a existência de uma “conversão automatica . Nao errd
conversão automática
cartada a liberdade ou "sobrevrda
provisória, para
a única a pnsao
medida em ilagrante
cautelar :; e
pesso qu
' ' ' reventíva.
Na Espanha o detido em flagrante deverá ser a presentado ao juiz no prazo máximo pode ser adotada e a prisao p . _ . _ . ade
de 2411 (art. 496 da LECrím), momento em que será convertida em prisión provisional ou O princípio da reserva legal unpoe que a restnçao da llªªdestá
será concedida a liberdade provisória. A lei processual alema — StPD & 128 — determina individual esteja estritamente controlada, de modo que some limites
que o detido deverá ser conduzido ao juiz do ”Amtsgencht“ em cuja jurisdição tenha constitucionalmente legitimada quando alustada aos estritos
ocorrido a detenção, de imediato ou quando
Codice de Procedure Penal italiano, art. 386.3.
detido à disposição do Ministério Púbiico o rn
entregando junto o correspondente “
"a", do CPP determina que no prazo
ais rápido possível ou no máximo em 24h.
atestado" policial, Por fim, em Portugal, o art. 254, ' ' " ' ' " - 'uiz, enten-
498 Ainda que o art. 311 preveja a possibilidade de rlecretaçao _de eficªz 105211133 acusam—
máximo de 48h deverá ser efetivada a apresentação
ao juiz, que decidirá sobre a prisão cautelar aplicável, apos interrogar o detido e dar—lhe . demos
rio eser
da substancialmente inconstitucional,
própria garantia da imparcialidade,por flagrantesupremo
principio vxolaçao
do0proce
ªgo &,pm cºnse-
oportunidade de defesa (art. 28,1 da Constituição). quência, do due process of law.

2.27
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal .
(Fundamentos da lnstruznentalidade Constitucronal)

de legalidade. Por isso. o rigor e fundamental ao tratar de temas como


pressupostos, requisitos, principios, modalidades e prazos. ' nte a um “nada juri ICO .
e fundado na proteção dos direitos fundâmelntais, não seria excesso

' ' . , IX, da GB. .


O próprio sistema de prisão cautelar é incompatível com a presun-
dIZEIAqÉÍÉÃZÉZÍaÉÉU da decisão judicial é imprescindível,_ tendotem
ção de inocência. Contudo, sobrevive. graças aos princípios da (cruel) vista a gravidade de uma prisão cautelar. Ademais, e um rmpera ivo
necessidade e da excepcionalidade. verdadeiras tábuas de salvação do
pensamento liberal clássico. É um sistema fragilmente legitimado e que Cºnsªªºãªªuª pªgs. com um processo penal medianamente evoluir;
não permite, jamais, qualquer espécie de ampliação do seu campo de
intervenção. Todo o oposto: sua incidência deve ser limitada ao máximo. do, não há lugar para uma prisão cautelar sustentada por deãrsoes te
estilo: "Atendidos os requisitos legais, homologo a pnsao'em agran .
Por não ser cautelar nem decorrente de sentença condenatória Determino a prisão preventiva para garantia da ordem publrca . _
transitada em julgado, a manutenção da prisão em flagrante e manifes— Em definitivo. a prisão em flagrante. como medida pre-cautelar, nao
tamente inconstitucional. Tal situação fica mais evidenciada na "con—
pode ter vida e realidade após o prazo legal de sua duração. Deve sªr
versão automática" do flagrante em prisão preventiva, por manifesta
falta de fundamentação. prévia ao processo penal e submetida ao crivo ]udrcrnal em prazo e:;rguál
não existindo fundamento legal para defender a sua conversao au omdi—
Ademais, o legislador foi clarissirno ao dispor que a manutenção tica" em prisão preventiva. Neste momento procedimental. & unica; me ãº

10 CPP: .
da prisão somente se dará quando estiverem presentes os requisitos
que autorizam a prisão preventiva. Basta verificar o disposto no art. 310 da cautelar de natureza pessoal que pode ser adotada para maãru enlçna
da segregação é a prisão preventiva. Para tanto, e unprescrcrli “É? tada
fundamentação séria e condizente com a gravrdade da medi. a_ad (31. cm- e,
Ainda que o art. 22 da "hedionda" Lei 8.072/90 preveja que os cri— que aponte racionalmente a probabilidade do fumus commrssr e I“,
nes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e do periculum libertatis. Do contrário, a liberdade e rrnperatrva.
irogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de fiança e liberdade pro—
risória, a prisão em flagrante não é uma nova modalidade de prisão IV. Contraditório e Direito de Defesa: Nulla Probatío Sine
:autelar e tampouco poderá ser automaticamente convertida em prisão Defensione
Jreventiva, dispensando-se o juiz de motivar esse decreto. Para manu-
enção da prisão é imprescindível recorrer ao instituto da prisão pre—
rentiva fundamentando a existência de seus requisitos. E, sem não a) Direito ao Contraditório
existir o periculum libertatis, não na situação fática tutelável pela pri—
:ão preventiva. Deverá o juiz conceder liberdade plena ao imputado. O contraditório pode ser inicialmente tratado como um metodo ªê
lequer se trata de liberdade provisória, até porque poderiam invocar a confrontação da prova e comprovação da verdade,, fundlandolísedn &
“edação constitucional. É liberdade plena porque não há nenhuma mais sobre um juízo potestativo, mas sobre o cpnflrto, discip rna. oE
ausa legitirnante da prisão preventiva. ritualizado, entre partes contrapostas: a asus—açao çexpressao do in e:
Em qualquer caso, o juiz deve enfrentar a questão e justificar a resse punitivo do Estado) e a defesa (express—ao do rnteresse do aãªãaa
.ecessidade do encarceramento com base no art. 312 do CPP, funda- do [e da sociedade] em ficar livre de acusaçoes infundadas e un
penas arbitrárias e desproporcionadas). E unprescmdrvel para a pró-
.rentando sua decisão. O que é inadmissível é a manutenção da prisão
xclusivamente com base no flagrante ou ainda entender que existe pria existência da estrutura dialética do processo. . _
ma conversão automática. Pior ainda é o argumento daqueles que pre- O ato de "contradizer'ªªgg a suposta verdade animada na acusação

m ' ' ' ' ' or no J.


sndem ressuscitar a prisão preventiva obrigatória. (enquanto declaração petitória) é ato imprescindível para um minimo de
Mas a "fundamentação" não pode ser "forrnulária", padronizada
u esgotar-se em uma linha, simplesmente afirmando que “foram aten—
idos os requisitos legais". Nada além disso. Considerando que o ato 499 A relacão inafastãvel entre contraditono e o ato _de contradiz—er expglçarªcªiº de
GOLDÉCHMID'I' utiliza como sinônimos as expressoes.
veja-se ao
suadefinir ríjom E; CNH
rose ?.
. BZ,
idicial somente encontra legitimidade enquanto amparado pela razão controvérsia o contradicción". Sobre o tema, obra Derecho

'.B 229
..a.
Aury Lºpes Jr.
' ' ' Penal
Introduçao Critica ao Processo . .

' ' ' ' ' ' ' fei-


(Fundamentos da Instrumentalidade Constituctonal)

Mmisteno Publico e Defesa estao


configuração acusatória do processo. O contraditório conduz ao direito
de audiência e as alegações mútuas das partes na forma dialética. ' ' ' ' 'an'a che
odemos esquecer que T1594 . ar que la
N㺠cºntraditarem—se, a ponto de CARNELUT afim
fª d' fone e necessária al grudice come l ossrgeno nell— .
Por isso, está intimamente relacionado com o principio do audie-
tur et altera pars. pois obriga a que a reconstrução da "pequena histó—
ria de delito" seja feita com base na versão da acusação (vítima), mas
On ubbío e um .. .. .. .-_tà
.
tºs Pª É 3d JZ ' passaggio obblígato sulla via della venta; Quai al
ªircra- dgnon dubita! (...) Non tanto la possrbihta quanto 1a effettrm
também com base no alegado pelo sujeito passivo. 0 adágio está atre—
lado ao direito de audiência, no qual o juiz deve conferir a ambas as
Bºªdica ' " síano e ' íbrate le forze dei
del carlª? 1fale codesta garanzra quanto pru quil
cartes, sobre pena de parcialidade. Para W. GOLDSCI—IMID'IZEDU tam— Tªntº pl ari ' ' ' loba o direito das partes
Jérn serve para justificar a face igualitária da justiça. pois " quien pms- ' ' “ ' ' ' e e tenham a faculdade
due 1017175 5 visão moderna, o contraditono eng
:a audiencia a una parte, igual favor debe a 1a otra". ' ' ' bém
t ' ' “ esse; e necessano que o juiz
N1J 1' frente ao JUIZ, mas nao e suficient qu
tem
O juiz deve dar “ouvida" a ambas as partes, sob pena de parciali— de delaa partimpaçao no proc . Miz—intimªdª ºu cºm a

' ª ' 505 . .


iade, na medida em que conheceu apenas de metade do que deveria de armª intensamente (não confundir com ] d dº adequada—
er conhecido. Considerando o que dissemos acerca do " processo como
ago", das chances e estratégias que as partes podeml ançar mão (1991-
imamente) no processo, o sistema exige apenas que seja dada a &_ 'Jnclus1ve
nte ' ' ' ' do atuacoes
partiCÍPQ de poderes instrutórios ao ]uiz). respon eu mando suas
asevnzan
' interlocutonas), sacam-;'_
atribuiç㺠petições e requerun' entos das partes, fund-timede OHCÍD e as
Icãifcisõe5 (1 Ao sentenciar, é crucial que observe a correlaçao acu ;
oportunidade de fala". Ou seja, o contraditório é observado quando se
riam as condições ideais de fala e oitiva da outra parte. ainda que ela
.ao queira utilizar—se de tal faculdade, até porque pode lançar mão de
su reS tença. . ' _ . tos' 910
agf-5535 ªdo contraditório e direito de defesa sao d1st1n p
RINI 505 ex lica que "defe—
emo tenetur se detegere.501
cofLoaditório
plano teórico. PELLEG enmovsa
estão indissoluvelmente ligadosr p amº é dº con—
porqu
O contraditório e uma nota característica do processo. uma exi- mçnºs Il ' ' ' o momento, da informação) que brota o
ência politica. e mais do que isso. se confunde com a própria essência 5ª º COI-% (Vistº em seu Dªmª“ d rrelato ao de acão — que
o processo. Como define RANGEL DLNAIVIARC0'50-2 — claramente ins-
traditóf1
eerCÍC—ío da contraditório.
defesa; mas é Aesta — comopo
defesa, assun, er co te º contraditãríºl mas
garan
irado em Elio Fazzalari —, o conceito moderno de proc esso necessaria-
Lente deve envolver o procedimento e o contraditóri 0. sem o que não garantª“
dste processo.
A interposição de alega ções contrária frente ao órgão jurisdicional.
' ' ' Penela. p. 139. -
. . , . UTT Francesco. Princrpr del Processo . . . ' HE acusaçãº-
#504
505 ()C
;, Ill-“Tl166 ' lixaAos limites da nos
sentença e posar ]. 1 Zíesistência da

G .. . . .
I) imeâto da acusação formulada leva a necessaria correiªalçâs
carl gentença. correlaçao ' ' " ' ' lação do
própria discussão, explica QUASESDB não só é um eficaz instrumento
cnico que utiliza o direito para obter a descoberta dos fatos relevan- .'
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s para o processo, senão que se trata de verdadeira exigência de jus-
inc ª 1Eli-'Dlllã
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sentido, ON (' DE].
;a que nenhum sistema de Administração de Justiça pode omitir. É
ltêntica prescrição do direito natural. dotada de inevitável conteúdo
Lperativo. Talvez seja o principio de direito natural mais caracteristico.
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' GOLDSCHMIDT. Werner. "La Imparcialidad como Principio Básico de] Proceso". In: Cºnde , 1ª Cºncuríºªºlª dª CECI-mªt ' ue o julgamento receia sobre o mesmopfato natu
Revista de Derecho Process]. nº 2. 1950, p. 189. “mªiô? indªd' Etºn. Acºrfªlªçªº ªfªgº CI mo seu elemento objetivo. A correlaçao no pro-
Direito de silêncio, "nada a temer por se deter".
mf q'Lf1ªmººrª
ena] esta, acrm
de tudo a, serviço da defesa. evrtando () segredo e a. surp
'AntaÉ: ' ' Penal. . 63.
19011551, a' pret'eua
A Instrumentalidade do Processo, 13. 177.
-' cessº QRINI GRINOVER. Ada; SCARANGE FERNANDEZ ' ' *S, Antonio e GOMES F
"Administración
182 e ss. de Justicia y Derechos de la Personalidad". In: Estúdios Jurídicos. pp. ,. í
' . . sos- PEDD ;) Magalhaes. As Nulidades no Processo 1:

231
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

também por este se manifesta e é garantida. Eis a íntima relação e inte— isso expressa a dificuldade prática, em certos casos, de distinguir entre
ração da defesa e do contraditório". . a reação e o direito de defesa.
No mesmo sentido, LEONE507 faz a distinção e afirma que não se Assim o contraditório e, essencialmente, o direito de ser informa—
pode identificar contraditório e direito de defesa, pois o último pode ser do e de participar no processo. É o conhecimento completo da acusa—
exercido sem que seja instaurado o contraditório. Para o autor, o con— cão, o direito de saber o que está ocorrendo no processo, de ser comu—
traditório consiste na participação contemporânea e contraposta de nicado de todos os atos processuais. Como regra, não pode haver
todas as partes no processo. Ademais, destaca que o contraditório e da
segredo (antítese) para a defesa, sob pena de violação ao contraditório.
essência da estrutura dialética sobre a qual deve estruturar—se o pro— Trata—se (contraditório e direito de defesa) de direitos constituem—
cesso penal. nalmente assegurados no art. 59, LV, da CE:
Assim, o contraditório deve ser visto basicamente como o direito
de participar, de manter uma contraposição em relação a acusação e de 'Ãos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos
estar informado de todos os atos desenvolvidos no inter procedimental. acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa,
A relevância da distinção reside na possibilidade de violar um com os meios e recursos a ela inerentes. "
deles sem a violação simultânea do outro, com reflexos no sistema de
nulidades dos atos processuais. É possível cercear o direito de defesa A partir desse postulado, vejamos agora algumas questões em
pela limitação no uso de instrumentos processuais, sem que necessa— torno do direito de defesa (técnica e pessoal [positiva e negativa“ e,
riamente também ocorra violação do contraditório. A situação inversa apos, a incidência, juntamente com o contraditório, nas fases pré-pro-
e, teoricamente, possível, mas pouco comum, pois em geral a ausência cessual, processual e de execução penal.
de comunicação gera a impossibilidade de defesa.
Destacamos que — na teoria — e facilmente apontável a distinção
entre contraditório e direito de defesa. Sem embargo, ninguém pode b) Direito de Defesa: Técnica eiPessoal
omitir que o limite que separa ambos é tênue e, na prática, às vezes a') A Defesa Técnica
quase imperceptível. Desse modo, entendemos que não constitui peca—
do mortal afirmar que em muitos momentos processuais o contraditó-
A defesa técnica supõe a assistência de uma pessoa com conheci-
rio e o direito de defesa se fundem, e a distinção teórica fica isolada mentos510 teóricos do Direito, um profissional, que será tratado como
diante da realidade do processo. Nessa linha, parte da doutrina não faz
advogado de defesa, defensor ou simplesmente advogado. Explica
uma distinção clara entre ambos e llfli—XIXTZINIEÚa chega inclusive a afir—
mar que a defesa é um elemento do contraditório. FENECH511 que a defesa técnica e levada a cabo por pessoas peritas
:em Direito, que tem como profissão o exercicio desta função técnico—
No mesmo sentido, RANGEL DINAMARCO explica que os dois
pólos da garantia do contraditório são: informação e reação. A efetivi-
dade do contraditório no Estado Democrático de Direito está amparada
no direito de informação e participação dos indivíduos na administra-
relevo seus direitos. ' .
juridica de defesa das partes que atuam no processo penal, para pôr de

' A justificação da defesa técnica decorre de uma esigenza di equr-


ção de Justiça. Para participar é imprescindível ter a informação. A par— Iibrr'o funzioonale612 entre defesa e acusação e também de uma acertada
ticipação no processo se realiza por meio da reação, vista como resis— presunção de hipossuâciéncia do sujeito passivo, de que ele não tem
tência à pretensão juridica (acusatória e não punitivaªªºº) articulada, e - conhecimentos necessários e suficientes para resistir à pretensão esta—
tal; em igualdade de condições técnicaº com o acusador. Essa hipossu-
507 Eiementi di Diritto e Procedure Female. p. 212.
508 Tratado de Derecho Procosai Penal, v. "i, p. 281.
510 Na Espanha, utiliza-se a expressão "letrado" cm clara alusão ao (presumido) conhem-
509 Isso porque seguimos a lição de JAMES GOLDSCHMLDT, para quem o objeto do proces- mento que o advogado deve ter. não só técnico—jurídico. mas também de outras areas.
so penal e uma pretensão acusatóría e não punitiva, como entendia EINDING. Sobre o 511 Derecho Procesai Penal, vol. I, p. 458.
tema consulte-se sua obra Problemas Jurídicos y Politicos dei Proceso Penal. 512 FOSCHINI. Gaetano. L'l'mputato, p. 26.

!32.
Aury Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

ficiência leva o imputado a uma situação de inferioridade ante o poder jogo da dialética processual e da igualdade das partes. É, na realidade,
da autoridade estatal encarnada pelo promotor. policial ou mesmo juiz. uma satisfação alheia a vontade do sujeito passivo, pois resulta de um
Pode existir uma dificuldade de compreender o resultado da atividade imperativo de ordem pública, contido no principio do due process oflaw.
desenvolvida na investigação preliminar, gerando uma absoluta intran- O Estado deve organizar-se de modo a instituir um sistema de
qililidade e descontrole. Ademais, havendo uma prisão cautelar, existi- “Serviço Público de Defesa", tão bem estruturado como o Ministério
ra uma impossibilidade física de atuar de forma efetiva. Público, com a função de promover a defesa de pessoas pobres e sem
Para FOSGHINI,513 a defesa técnica é anche una esigenza della condições de constituir um defensor. Assim como o Estado organiza
soc-l'età, perché 1a regiudicanda penais implica non solo una responsabi— um serviço de acusação, tem esse dever de criar um serviço público de
Iitã individuale me enche una responsabilítà della collettività sociale. defesa, porque a tutela da inocência do imputado não é só um interesse
Prossegue o autor afirmando que l'imputato, infatti, alla stregua individual, mas socia1.515
dei propri oriteri, potrebbe anche difendersi poco o non difendersi o Neste sentido, a Constituição garante, no art. Sº, LXXIV, que o

necessita). .
addirittura annnettere la propria certamente negativo se, alla stregua Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que compro-
dei valori sociali tradotti nell'ordinamento giuridico, e da ritenere che il varem insuficiência de recursos. Para efetivar tal garantia, o sistema
fatto non constituisca resto o che non sai fonte di responsabilità (ad es. brasileiro possui uma elogiável instituição: a Defensoria Pública, pre—
perché constituísse un'azione helh'ca, o perché commesso in stato di vista no art. 134 da GB, como instituição essencial à função jurisdicio—
nal do Estado, incumbindo—lhe & orientação jurídica e a defesa, em
Isso significa que a defesa técnica é uma exigência da sociedade, todos os graus, dos necessitados.
porque o imputado pode, ao seu critério, defender—se pouco ou mesmo]
não se defender, mas isso não exclui o interesse da coletividade de uma A necessidade da defesa técnica está expressamente consagrada
verificação negativa no caso do delito não constituir uma fonte de res- no art. 261 do CPP, onde se pode ler que nenhum acusado, ainda que
ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor.
ponsabilidade penal. A estrutura duaiistica do processo expressa-se
tanto na esfera individual como na social. No âmbito internacional, o art. 8.2 da Convenção Americana de
O direito de defesa está estruturado no binômio: Direitos Humanos prevê o direito do acusado de defender-se pessoal-
mente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comuni-
— defesa privada ou autodefesa; car-se livremente e em particular com seu defensor. Tambem garante o
— defesa pública ou técnica, exercida pelo defensor. direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo
.|
Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado
Por esses motivos apontados por FOSCHINI, a defesa técnica é não se defender ele próprio nem nomear defensor dentro do prazo esta-
considerada indisponível, pois, além de ser uma garantia do sujeito belecido pela lei.
passivo, existe um interesse coletivo na correta apuração do fato. Trata— No inquérito policial, a defesa técnica está limitada, pois limitada
se, ainda, de verdadeira condição de paridade de armas, imprescindí— está a defesa como um todo. Ainda que o direito de defesa tenha
vel para a concreta atuação do contraditório. Inclusive, fortalece a pró— espressa previsão constitucional, como explicamos anteriormentejna
pria imparcialidade do juiz, pois, quanto mais atuante e eficiente forem pratica, a forma como é conduzido o inquérito policial quase não deixa
ambas as partes, mais alheio ficará o julgador (terzietà=alheamento). espaço para a defesa técnica atuar no seu interior Por isso, diz-se que
No mesmo sentido, MORENO CÃ'ÍENAEM leciona que a defesa téc- a defesa técnica na fase pré—processual tem uma atuação essenciaimen—
nica atua também como um mecanismo de autoproteção do sistema te exógena, através do exercício de'-habeas corpus e do mandado de
processual penal, estabelecido para que sejam cumpridas as regras do segurança, que, em última análise, corporificam o exercício do direito
de defesa fora do inquérito policial. Dentro do inquérito basicamente só
513 Hlmputato, 131127 e ss.
514 La Defensa en el Proceso Penal, p. 112. 515 GUARNIERI. Ob. Cir.. p. 116.
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

existe a possibilidade de solicitar diligências, nos estreitos limites do defensor unicamente tem que vigiar o processo penal para evitar infra—
art. 14 do CPP.
ções da lei ou injustiças contra seu cliente, sem, e claro, atuar fora da
É imprescindível que seja nomeado um defensor — quando não legalidade.
constituido —, permitindo-lhe, em caso de prisão, que converse prévia e Por fim, deve-se destacar que o advogado finalmente deixou de ser
reservadamente com o sujeito passivo, antes de ser ouvido. Ademais, uma figura "dispensável" no interrogatório ou, quando presente, um me—
o defensor poderá solicitar diligências a autoridade policial (art. 14) ro “convidado de pedra". A teor da nova redação dos arts. 185 e 188 do
que poderão ser realizadas ou não. Tendo em vista que o art. 59, XXXV, CPB não só o advogado deve estar presente no interrogatório (judicial ou
da GB prevê que a lei não pode excluir da apreciação do Poder policial), como ainda poderá, ao final, formular perguntas ao imputado.
Judiciário uma lesão ou ameaça a um direito, a injusta negativa por
parte da autoridade policial deverá ser objeto de impugnação pela via b') A Defesa Pessoal: Positiva e Negativa
do habeas corpus ou do mandado de segurança. conforme o caso.
Outra importante garantia, que deve ser observada desde a inves— a") Defesa Pessoal Positiva
tigação preliminar, e evitar a colidência de teses defensivas. A impos—
sibilidade de que um mesmo defensor possa defender a dois ou mais . Junto à defesa técnica, existem também atuações do sujeito pas-
imputados pode ser classificada em:
sivo no sentido de resistir pessoalmente a pretensão estatal. Através
destas atuações, o sujeito atua pessoalmente, defendendo-se a si
Impossibilidade absoluta: é o sistema previsto na StPO, que mesmo como indivíduo singular, fazendo valer seu critério individual e
impede a figura do defensor comum, sem levar em consideração

(colidência). , . . ,
seu interesse privadoªlª
se existe ou não um conflito de interesses ou de teses defensivas A chamada defesa pessoal ou autodefesa manifesta-se de várias
formas, mas encontra no interrogatório policial e judicial seu momento
Impossibilidade relativa: neste sentido, dispõe o art. 106 do
de maior relevância. Classificamos a autodefesa a partir de seu caráter
CPP italiano que a defesa de vários imputados pode ser assumida
exterior, como uma atividade positiva ou negativa. O interrogatório é o
por um defensor comum, sempre que as diversas posições da defe—I momento em que o sujeito passivo tem a oportunidade de atuar de
se não sejam incompatíveis entre si. Também é a posição do CPP
português, art. 65, que possibilita a defesa de vários arguidos por forma efetiva —- comissão —, expressando os motivos e as justificativas
um único advogado, sempre que não contrarie a função da defesa.
ou negativas de autoria ou de materialidade do fato que se lhe imputa.
Ao lado deste atuar que supõe o interrogatório, também é possí—
No Brasil não existe previsão legal e a jurisprudência foi encarre— vel uma completa omissão, um atuar negativo, através do qual o impu-
tado ae nega a declarar. Não só pode se negar a declarar, como também
gada de consolidar uma "impossibilidade relativa" de que um mesmo
advogado atue na defesa de dois ou mais acusados. Para tanto, firmou pode se negar a dar a mais minima contribuição para a atividade pro—
entendimento de que é inviável quando existir colidência de teses batória realizada pelos órgãos estatais de investigação, como ocorre
defensivas capaz de gerar uma deficiência do direito de defesa. nas intervenções corporais, reconstituição do fato, fornecer material
Na atualidade, a presença do defensor deve ser concebida como escrito para a realização do exame grafotécm'co etc.
um instrumento de controle da atuação do Estado e de seus órgãos no Também a autodefesa negativa reflete a disponibilidade do pró—
processo penal, garantindo o respeito à lei e à justiça. Se o processo prio conteúdo da defesa pessoal, na medida em que o sujeito passivo
penal deve ser um instrumento de proteção dos direitos fundamentais pode simplesmente se negar a declarar. Se a defesa técnica deve ser
do sujeito passivo, o defensor deve ajustar-se a esse fim, atuando para indisponível, a autodefesa é renunciãvel. A autodefesa pode ser renun—
sua melhor consecução. Está intimamente vinculado ao direito funda— Ciada pelo sujeito passivo, mas e indispensável para o juiz, de modo
mental da salvaguarda da dignidade humana, obrigando o defensor a _'_r_%
uma atividade unilateral, somente a favor daquele por ele defendido. O 516 FOSCHINI. Gaetano. L'Imputato, 13. 2.7.
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instmmentalidade Constitucional)

que o órgão jurisdicional sempre deve conceder a oportunidade para estejam garantidas a segurança do juiz e auxiliares, a presença do
que aquela seja exercida, cabendo ao imputado decidir se aproveita a defensor e a publicidade do ato. Inexistindo a segurança, o interro—
oportunidade para atuar seu direito de forma ativa ou omissiva. gatório será feito nos termos do Código de Processo Penal.
A autodefesa positiva deve ser compreendida como o direito dis— 5 29 Antes da realização do interrogatório, o juiz assegurará o
ponivel do sujeito passivo de praticar atos, declarar. constituir defen- direito de entrevista reservada do acusado com seu defensor. "
sor, submeter-se a intervenções corporais, participar de acareações. Como já afirmado, agora não mais será o advogado um “con—
reconhecimentos etc. Em suma, praticar atos dirigidos a resistir ao vidade de pedra", senão que poderá participar ativamente do
poder de investigar do Estado, fazendo valer seu direito de liberdade. interrogatório:
Mesmo no interrogatório policial, o imputado tem o direito de ”Art. 188. Após proceder ao interrogatório, o juiz indagará das
saber em que qualidade presta as declarações,517 de estar acompanha- partes se restou algum fato para ser esclarecido, formulando as per—
do de advogado e, ainda, de reservar-se o direito de só declarar em guntas correspondentes se o en tender pertinente e relevante. "
juízo, sem qualquer prejuízo. O art. 59, LV, da GB e inteiramente aplica—
vel ao IE 0 direito de silêncio, ademais de estar contido na ampla defe— . Com relação ao valor probatório do interrogatório, propugnamos
sa (autodefesa negativa), encontra abrigo no art. 52, LlXIII, da GB, que por um modelo garantista, em que o interrogatório seja orientado pela
ao tutelar o estado mais grave (preso) obviamente abrange e é aplicá— presunção de inocência, visto assim como o principal meio de exercício
vel ao sujeito passivo em liberdade. da autodefesa e que tem, por isso, a função de dar materialmente vida
Nesse sentido, expressamente prevê o art. 186 do CPP: ao contraditório, permitindo ao sujeito passivo refutar a imputação ou
aduzir argumentos para justificar sua conduta.518
”Art. 186. Depois de devidamente qualiãcado e cientificado do ' Especificamente na investigação preliminar, o interrogatório deve
inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes estar dirigido a verificar se eidstem ou não motivos suficientes para a
de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de abertura do processo criminal. Dentro da lógica que orienta a fase pre-
não responder perguntas que lhe forem formuladas. ' processual, a eventual confissão obtida neste momento tem um valor
Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, endoprocedimental, como tipico ato de investigação e não ato de prova,
não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa. " "servindo apenas para justificar as medidas adotadas neste momento e
justificar o processo ou o não-processo.
A presença do defensor no momento das declarações do suspeito PELLEGRINI GRIN OVER519 explica que através do interrogatório
frente à autoridade judiciária ou policial é imprescindível, não só pela o juiz (e a policia) pode tomar conhecimento de elementos úteis para a
exigência constitucional (nunca obedecida), mas pela (agora) expressa descoberta da verdade, mas não é para esta finalidade que o interroga—
previsão no art. 185 do CPP: tório está orientado. Pode constituir fonte de prova, mas não meio de
prova. Em outras palavras, o interrogatório não serve para provar a ver-
'Art. 185. O acusado que comparecer perante a autoridade dade, mas para fornecer outros elementos de prova que possam condu—
judiciária, no curso dolprocesso penal, será qualificado e interroga- zir à verdade juridicamente válida e perseguida no processo penal.
do na presença de sei-i'defensor, constituido ou nomeado. A própria Exposição de Motivos do CPP, ao falar sobre as provas,
5 lª O interrogatório do acusado preso será feito no estabeleci- diz categoricamente que a própria comissão do acusado não constitui,
mento prisional em que se encontrar, em sala própria, desde que fatalmente, prova plena de sua culpabilidade. Todas as provas são rela-
tivas; nenhuma delas terá, ex vi legis, valor decisivo, ou necessariamen-

517 É oensurávei a práxis policial de tomar declarações sem informar se a pessoa que as
presta o faz como informante/testemunha ou como suspeito, subtraindo-lhe ainda o
direito de silêncio e demais garantias do sujeito passivo. É patente a violação do contra-
ditório e da ampla defesa nesses casos.
M
te maior prestígio que outra. Em suma, a confissão não e mais, feliz-

518 FERRAJDLI, Luigi. Derecho yRaaón, p. 608.


519 "Pareceres — Processo Penal", in O Processo em Evolução, pp. 343 e ss.
Introdução Critica ao Processo Penal
Aury Lopes Jr. (Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

mente, a rainha das provas, como no processo inquisitório medieval. Concluindo e sempre buscando um modelo ideal melhor que o
Não deve mais ser buscada a todo custo, pois seu valor é relativo e não atual, entendemos que o interrogatório deve ser encaminhado a permi-
goza de maior prestígio que as demais provas. tir a defesa do sujeito passivo e, por isso, submetido a toda uma serie
O interrogatório deve ser um ato espontâneo, livre de pressões ou de regras de lealdade processual,521 que podem ser assim resumidas:
torturas (físicas ou mentais). É necessário estabelecer um limite máxi-
me para a busca da verdade e para isso estão os direitos fundamentais. a) deve ser realizado de forma imediata, ou, ao menos, num
prazo razoável após a prisão;
Por isso, hoje em dia, o dogma da verdade material cedeu espaço para
a verdade juridicamente válida, obtida com pleno respeito aos direitos b) presença de defensor, sendo—lhe permitido entrevistar—se pré—
via e reservadamente com o sujeito passivo;
e garantias fundamentais do sujeito passivo e conforme os requisitos
estabelecidos na legislação. o) comunicação verbal não só das imputações, mas também dos
Como consequência, os métodos "tocados por um certo oharlata— argumentos e resultados da investigação e que se oponham
aos argumentos defensivos;
nismo", como classifica GUARNIERI?“J devem ser rejeitados no pro—
cesso penal. Assim, não deve ser aceito o interrogatório mediante hip- d) proibição de qualquer promessa ou pressão direta ou indireta
sobre o imputado para induzi—lo ao arrependimento ou a cola—
nose, pois é um método tecnicamente inadequado e inclusive perigoso,
pois, estando o hipnotizado disposto a aceitar qualquer sugestão, dire— borar com a investigação;
ta ou indireta do hipnotizador, não pode ser considerado digno de fé, e) respeito ao direito de silêncio, livre de pressões ou coações;
inclusive porque pode ser conduzido para qualquer sentido.
f) tolerância com as interrupções que o sujeito passivo solicite
fazer no curso do interrogatório, especialmente para instruir—
Também devem ser rechaçados, por insuficientes e indignos de se com o defensor;
confiança, os métodos químicos ou fisicos. No primeiro grupo encon—
tram-se os chamados "soros da verdade", que, como explica GUARNIE—
g) permitir-lhe que indique elementos de prova que comprovem
sua versão e diligenciar para sua apuração;
RI, são barbitúricos injetados intravenosamente juntamente com
outros estupefacientes, anestésicos ou hipnóticos, que provocam um h) negação de valor decisivo a confissão.
estado de inibição no sujeito, permitindo que o experto — mediante a
narcoanãlise — conheça o que nele existe de reprimido ou oculto. b'i) Defesa Pessoal Negativa (Nemo Tênetur se Detegere)
Como método físico, os detectores de mentira são aparelhos mecâ—
nicos que marcam o traçado do batimento cardíaco e, da respiração, e, . O interrogatório deve ser tratado como um verdadeiro ato de defe-
sa, em que se da oportunidade ao imputado para que exerça sua defe—
conforme o tempo de reação às perguntas dirigidas ao interrogando.
permitiriam assinalar as falsidades em que incorreu. Conforme o inter— sa pessoal. Para isso, deve ser considerado como um direito e não como
valo das reações, o experto poderia definir, em linhas gerais, um padrão
dever, assegurando-se o direito de silêncio e de não fazer prova contra
de comportamento para as afirmações "verdadeiras" e outro para as si mesmo, sem que dessa inércia resulte para o sujeito passivo qual-
supostas “mentiras". quer prejuízo jurídico. Além disso, entendemos que deve ser visto
como um ato livre de qualquer pressão ou ameaça.
Ambos os métodosfnão são dignos de confiança e de credibilida—
Quando o imputado's'ubmete-se a algum ato destinado a constituir
de, de modo que não podem ser aceitos como meios de prova juridica—
mente válidos. Ademais. são atividades que violam a garantia de que uma prova de cargo, colaborando com a acusação, essa atividade não
ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou deve ser considerada como autodefesa positiva, mas sim como renún-
degradante, prevista no art. 59, II, da CE. cia à autodefesa negativa, pois neste caso o imputado deixa de exercer

521 Em aiguns pontos, nos baseamos em FERRAJDLI, Derecho y Razón, p. 608.


520 Las Partes en el Proceso Penal, p. 299.

241
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

seu direito de não colaborar com a atividade investigatória estatal (e a Com explica FERRAJOLI,523 o principio nemo tenetur se detegere
própria acusação em última análise). é a primeira máxima do garantismo processual acusatório. enunciada
O direito de silêncio está expressamente previsto no art. 59, LXIII, por Hobbes e recepcionada, a partir do século XVII, no Direito inglês.
da GB (o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de per- Dele seguem-se. como corolários. na lição de FERRAJOLI:
manecer calado...). Parece-nos inequívoco que o direito de silêncio apli-
ca—se tanto ao sujeito passivo preso como também ao que esta em a) a proibição da tortura espiritual, como a obrigação de dizer a
liberdade. Contribui para isso o art. 8.2, g, da CADH, onde se pode ler verdade;
que toda pessoa (logo, presa ou em liberdade) tem o direito de não ser b) o direito de silêncio, assim como a faculdade do imputado de
obrigada a depor contra si mesma nem & declarar—se culpada. faltar com a verdade nas suas respostas;
Ao estar assegurado o direito de silêncio sem qualquer reserva na c) a proibição' pelo respeito devido à pessoa do imputado e pela
Constituição e na Convenção Americana de Direitos Humanos, por lógi- inviolabilidade da sua consciência, não só de arrancar a con—
ca jurídica, o sistema interno não pode atribuir ao seu exercício quai— fissão com violência. senão também de obtê—la mediante
quer prejuizo. Daí surgiu a alteração (com bastante atraso, registre—se) manipulações psíquicas, com drogas ou praticas hipnóticas;
do art. 186 do CPP, que agora possui a seguinte redação: d) a consequente negação de papel decisivo das confissões;
e) o direito do imputado de ser assistido por defensor no interro—
Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do gatório, para impedir abusos ou quaisquer violações das
inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes garantias processuais.
de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de
não responder perguntas que lhe forem formuladas. Destarte, através do principio do nemo tenetur se detegere, o sujei—
Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, to passivo não pode ser compelido a declarar ou mesmo participar de
não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa." qualquer atividade que possa incriminá—lo ou prejudicar sua defesa.
Não pode ser compelido a participar de acareações, reconstituições.
O direito de calar também estipula um novo dever para a autorida— fornecer material para realização de exames periciais (exame de san-
de policial ou judicial que realiza o interrogatório: o de advertir o sujei— gue, DNA, escrita etc.) etc. Por elementar, sendo a recusa um direito,
to passivo de que não está obrigado a responder as perguntas que lhe
forem feitas. Se calar constitui um direito do imputado e ele tem de ser
informado do alcance de suas garantias, passa a existir o correspon—
dente dever do órgão estatal a que assim o informe, sob pena de nuli- & decisões que simpiesmente desprezam o postuiacío constitucional a partirde frágeis
dade do ato por violação de uma garantia constitucional. premissas do estilo "os fins justificam os meios". ”Iambém são adeptos do discurso de
que o rótulo admite qualquer conteúdo. Assim. invocando o rótulo (cláusula genetica) “de
O direito de silêncio é apenas uma manifestação de uma garantia "crime hediondo", sepultarn até mesmo a Constituição ou ainda ressuscitam a logica
muito maior, insculpida no princípio nemo tenetur se detegere, segun- inquisitiva de EYMERICH (por que celas se és inocente?). Nesse sentido:
' TRÁFICO DE ENTORPECENTES — ASSOCIAÇÃO — COMPETQNCLA — INTERNA-
do o qual o sujeito passivo não pode sofrer nenhum prejuizo juridico por CIONALIDADE » DEDTÚNCLA: INÉPCLA - iNTERCEPTAÇÃO TELEFONlCA: AUTORIZA-
omitir-se de colaborar em uma atividade probatória da acusação ou por ÇÃO JUDICIAL. INU'I'ILIZAÇÁO DAS FITAS MATRIZES. TRANSCRIÇAO DAS GRAVA-
exercer seu direito de silêncio quando do interrogatório. CÓES. PERÍCIA — CRIME DE ASSOCIAÇÃO: TIPO OEJETÍVO. ATITUDE DO JUIZ.
Sublinhe—se: do exercício do direito de silêncio não pode nascer Éaova. 'iNDÍCIOS, INTERROGATÓRIO, SIILÉNCIO. TESTEMUNHAS romenos.
nenhuma presunção de culpabilidade ou qualquer tipo de prejuízo jurí- É12.) O silêncio do réu não implica COrlfiSSãD. mas é significativa a atitude de quem.
dico para o iruputado.532 preso e acusado injustamente de crime gravíssimo. prefere manter-se calado. pois a rea-
ção natural de qualquer pessoa inocente e proclamar veementemente a sua mocencta'
esteja onde estiver ('I'ribunal Regional Eleclearl da Quarta Região. Ap. 200071040036423/RS,
52.2 Infelizmente, existe alguma resistência a interiorização da Constituição e dos direitos e Oitava Turma, Rel. Amir Sarti. publicado no DJU em 16/01/2002. página 1.396).
garantias fundamentais do imputado. Ness ' seri ido, (ainda) pode-se encontrar acórdãos 523 Derecho ;; Razón, p. 608.

242. 243
Aury Lopes Jr. introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

obviamente não pode causar prejuízos ao imputado e muito menos ser passivo não pode ser compelido a auxiliar a acusação a liberar—se de
considerado delito de desobediência. uma carga que não lhe incumbe.

retrocesso. _
No que se refere a recusa em submeter-se a intervencões corporais, Submeter o sujeito passivo a uma intervenção corporal sem seu
a lição segue igual, mas devemos atentar para algumas particularidades. consentimento e o mesmo que autorizar a tortura para obter a confis-
As provas genéticas desempenham um papel fundamental na são no interrogatório quando o imputado cala. ou seja, um inequívoco
moderna investigação preliminar e podem ser decisivas no momento
de definir ou excluir a autoria de um delito. Entretanto. sua eficácia Junto ao direito de defesa, existem outros direitos fundamentais
está condicionada, em muitos casos. a uma comparação entre :) mate— que dispõem sobre a tutela da integridade física e que impedem as
rial encontrado e aquele a ser proporcionado pelo suspeito. intervenções corporais sem o consentimento do imputado. Dessarte,
Não existe problema quando as células corporais necessárias para assegura a Constituição:
realizar, mg., uma investigação genética, encontram-se no proprio lugar
dos fatos (mostras de sangue, cabelos. pêlos etc.), no corpo ou vestes
da vítima ou em outros objetos. Nestes casos, poderão ser recolhidas
'' ninguém
o direito à vida (art. 52); _
será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma corsa
normalmente, utilizando os normais instrumentos jurídicos da investi— senão em virtude de lei (art. 52, II);
gação preliminar, como a busca e/ou apreensão domiciliar ou pessoal. ' ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento desuma—
Como aponta GÓSSEL,524 as células corporais na roupa do suspeito no ou degradante (art. 59, III);
(camisa manchada de sangue, com cabelos ou a, roupa interior com ' são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a irna—
células de sêmen etc.) ou na sua casa, por exemplo, nas vestes não uti— gem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo
lizadas no momento do delito. roupa de cama ou outros objetos de sua dano material ou moral decorrente de sua violação (art. 59, X);
prõpriedade. poderão ser obtidas sem problemas, utilizando a busca ' são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios
e/ou apreensão previstas nos arts. 240 e seguintes do CPP ' ilícitos (art. 52, LVI);
Da mesma forma, havendo o consentimento do suspeito, poderá
ser realizada qualquer espécie de intervenção corporal, pois o conteú- Pode—se argumentar. ainda. que airestrição a esses direitos funda—
do da autodefesa é disponível e, assim, renunciãvel. mentais não pode ser realizada por meio de uma lei ordinária, mas ape-
O problema está quando necessitamos obter as células corporais nas por norma constitucional. Isto porque uma garantia constitucional
diretamente do organismo do sujeito passivo e este se recusa a colabo— de tal importância somente pode ser limitada por uma norma de
rar. Se no processo civil o problema pode ser resolvido por meio da mesmo status juridico-constitucional, que deverá prever a possibilida-
carga da prova e a presunção de veracidade das afirmações não con— de da restrição do direito' outorgando a uma norma ordinária a regula—
testadas, no processo penal a situação é muito mais complexa. mentação dentro dos limites constitucionais.
O sujeito passivo encontra-se protegido pela presunção de inocên- Cerrobora esse entendimento o fato de que a limitação de outros
cia e a totalidade da carga probatória está nas mãos do acusador. O direitos fundamentais similares não se realiza apenas por norma ordi-
direito de defesa, especialmente sob o ponto de vista negativo. não nária. senão que mereceram atenção da Constituição. Como exemplo.
pode ser limitado, principalmente porque a seu lado existe outro prin— podemos citar o direito a liberdade, cuja limitação (cautelar ou definiti—
cipio básico, muito bem apontado por GARNELUTTI:525 & carga da va) está expressamente prevista na Carta (art. 59. LVII e LXI, da GB).
prova da existência de todos os elementos positivos e a ausência dos ele— No mesmo sentido, o direito ao sigilo das comunicações esta expressa-
mentos negativos do delito incumbe & quem acusa. Por isso, o sujeito

(art. 59, Xl). . _ .


mente restringido na Constituição (art. 59. XII) e regulamentado em
norma ordinária, da mesma forma que a inviolabilidade do domicílio
524 "Las Investigaciones Genéticas como Objeto de Prueba en el Proceso Penal". in Revista
ciel Ministerio Fiscal, nº 3. janeiro/junho de 1956, p. 147. No sistema. brasileiro, não em'stem disposições constitucmnais
52.5 Lecciones sobre el Proceso Penal, vol. II, p. 180. que prevejam a possibilidade de restrição do direito à vida e 'a integri—

344 245
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penai
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

dade fisica e moral e tampouco normas ordinárias que disciplinam a No nosso estudo sobre o tema, interessa apenas o terceiro caso.
matéria. Essa omissão legislativa (constitucional e ordinária) e, a nosso Explica a autora que existe a possibilidade de uma intervenção .legis-
ver, um obstáculo insuperável para que as intervenções corporais — sem lativa com caráter restritivo, ainda que não exista outorga ou limitação
o consentimento do sujeito passivo — possam ser realizadas. constitucional. Considera que os direitos fundamentais estabelecem
Atualmente, predomina o entendimento de que os direitos funda— posições jurídicas e, por isso, podem ser objeto de ponderação em'caso
mentais não são absolutos e, em certos casos, podem ser limitados no de aparente conflito com outros direitos fundamentais. Cabera ao orgao
processo penal. A cada dia toma mais força a idéia da ponderação de jurisdicional fazer a ponderação de bens e interesses para determinar
bens jurídicos e o principio da proporcionalidade. a aplicação de um ou outro direito e, por consequência, limitar o alcan-
ce do direito sacrificado.
O princípio da proporcionalidade tem como ponto nevrálgico &
ponderação dos interesses em conflito e realiza uma importante missão Na Espanha,523 o Tribunal Constitucional (STC 11/1981) adotou a
'l'êoria de los Limites Innatos para explicar que frente a uma colisão de
na regulamentação e aplicação das medidas limitativas de direitos fun—
damentais. Como explica GONZALEZ-CUELLAR SERRANO,525 sua direitos, deve-se ter em conta o conteúdo essencial de cada um deles e
tratar de buscar sua coordenação, Evitando que um restrinja o outro,
evolução como princípio constitucional com transcendência no proces—
porque & congruência e a completude são elementos essenciais do
so penal foi obra da jurisprudência, doutrina e legislação alemã. A pri—
meira alusão ao principio teve lugar numa resolução do deutscher jour- ordenamento jurídico. Logo, não existem conflitos de direitos funda-
mentais, senão que uns devem prevalecer sobre outros. E o que o
nalistentag, tomada em Bremen, em 22 de agosto de 1875. Na StPO, foi Tribunal chamou de elasticidade dos direitos fundamentais, segundo o
introduzido na reforma de 1964, A jurisprudência alemã outorgou sta- interesse coletivo.
tus constitucional ao principio da proporcionalidade, extraindo-o basi— A ausência de estritos limites constitucionais para delimitar em
camente do principio de Estado de Direito e da essência mesma dos que casos e como deve um direito fundamental prevalecer sobre outro
direitos fundamentais, sem admitir, contudo, que dito princípio consti- outorga ao órgão jurisdicional este poder de determinar, ante um caso
tuía, em si mesmo, um direito fundamental. concreto, como deve harmonizar—se o sistema.
No processo penal. o princípio da proporcionalidade adquire Em definitivo, o direito fundamental poderia ser limitado por uma
importância na aplicação de instrumentos processuais que limitem os norma ordinária, mas é imprescindível que exista uma norma proces-
direitos fundamentais. Ao analisa-lo, TOLEDO BARROSª-ªª? explica que sual penal que discipline a matéria.
as normas que dispõem sobre os direitos fundamentais têm caráter Exatamente neste primeiro pressuposto tropeça o Direito brasilei—
principiológico, atuando no campo das situações plausíveis e, por isso, ro, que carece de um dispositivo similar ao 5 81 da StPO, ou ao art. 171
os direitos fundamentais podem ser limitados pelo legislador ordinário. do CPP português ou, ainda, aos arts. 244 e seguintes do CPP italiano,
A restrição pode dar—se de três formas distintas: que, com maior ou menor profundidade, tratam do tema.
Dispõe o 5 81, a, da StPO que poderá ser determinada pelo juiz ou
' que a própria Constituição preveja a limitação de forma ex- pelo Ministério Público (em situação de urgência) a extração de san-
pressa; gue, sempre que:
' que a Constituição outcrgue o poder de restrição a uma norma

médico"; *
ordinária; ' seja de importância para o processo;
' que a Constituição não limite direta ou indiretamente o direi— ' seja realizada por um meio segundo "as regras do saber
to fundamental.
' não exista nenhum perigo para a saúde (do imputado).

526 Proporcionalidad y Derechos Pimdamentales en el Proceso Penal, 13. 21.


527 TOLEDO BARROS, Suzana. Princípio da Proporcionaiidao'e, p. 959. 52.8 GIL I-IERNANDEZ. Ángel. Intarvenciones CorporaiesyDerechos F'Lmo'amentales, pp. ZE e ss.

245 247
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

O CPP português não dispõe acerca de nenhuma intervenção cor— dade da conduta ou mesmo a sua licitude, pelo exercício regular de um
porei especifica, senão que de forma genérica, em seus arts. 171 e 172, direito.
possibilita que, mediante decisão da autoridade judicial competente. Em suma, com base na ponderação ou proporcionalidade de bens
sejam realizados "exames" em pessoas contra a sua vontade. e interesses seria possível uma intervenção corporal contra a vontade
Tambem prevê o CPP italiano, arts. 244— e 245, que a intervenção do agente, ainda que a Constituição não limite ou outorgue a uma
sera determinada por meio de uma decisão judicial motivada, podendo norma ordinária o poder de restringir a esfera de proteção dos direitos
ser efetuada por um medico, assegurando-se ao imputado a faculdade fundamentais da defesa, da vida, intimidade e integridade corporal.
de ser assistido por uma pessoa de sua confiança e se realizará com Mas para isso é imprescindível a existência de uma norma processual
respeito a dignidade e, na medida do possível, ao pudor de quem seja prévia (que, como vimos, não existe), que disponha os casos e a forma
objeto da inspeção. como deve ser realizada a intervenção corporal.
No Brasil, existe uma grave lacuna legislativa sobre o tema, permi— Além de existir uma norma, a limitação do direito fundamental
tindo afirmar que não existe uma norma processual que obedeça aos “deve ser determinada por decisão judicial fundamentada e passível de
requisitos mínimos (sujeito/obieto/atos) necessários para disciplinar a recurso Nesta decisão judicial, como em todas as manifestações do
matéria. poder jurisdicional, deverá predominar a razao sobre o poder e, por isso,
Ad argumentandum tantum, ainda que existisse, entendemos que a motivação devera destacar a ponderação entre o bem jurídico a ser
a prova obtida nestas condições equivale a uma confissão e, como tal, violado pela medida e os benefícios coletivos que serão obtidos (pro-
não tem valor decisivo nem maior prestígio que as demais provas. porcionalidade).
Recordemos que o CPP adota o principio do livre convencimento moti- Influem no princípio da proporcionalidade a gravidade do fato e
vado (art. 157), não havendo hierarquia de provas, permitindo assim a possibilidade ou não de sua averiguação por outro meio menos
que o juiz não fique adstrito ao laudo, podendo aceita-lo ou rejeita-lo, traumático para o sujeito passivo e essa ponderação deverá constar
no todo ou em parte (art. 182 do CPP). na decisão judicial, para permitir o controle sobre a racionalidade
No que se refere às consequências da recusa, entendemos que se judicial.
trata de mais uma manifestação da autodefesa negativa, logo, o regu- , , , Para encerrar, o magistério sempre autorizado de MAGALHÃES
GOMES FlLHO:529
lar exercicio do Direito Constitucional de não fazer prova contra si
mesmo. Acrescente—se, ainda, a presunção de inocência, como garan-
Mas, o que se deve contestar em relação a essas interven-
tia da manutenção deste status até a sentença condenatória firme.
ções, ainda que minimas, é a violação do direito a não auto-incri-
Em definitivo, aplica—se aqui o principio do nemo tenetur se detegere.
Mas devemos destacar que nos sistemas jurídicos atuais existe minação e a liberdade pessoal, pois se ninguém pode ser obriga-
do a declarar-se culpado, também deve ter assegurado o seu
uma tendência em tratar a recusa de duas formas distintas, ambas pre- direito a não fornecer provas incriminadoras contra si mesmo. O
judiciais ao imputado:
direito à prova não vai ao ponto de conferir a uma das partes no
processo prerrogativas sobre o próprio corpo e a liberdade de
' permitir a coação direta — se o afetado não contribui — para escolha da outra. Em matéria civil, a questão tem sido resolvida
levar a cabo a intervenção corporal (mg., Alemanha); segundo as regras de divisão do ônus da prova, mas no âmbito
' buscar a “colaboração" do imputado sob a ameaça de ser pro— criminal, diante da presunção de inocência, não se pode cons-
cessado pelo delito de desobediência (mg., Espanha e Fiança). tranger o acusado ao fornecimento dessas provas nem de sua
negativa inferir a veracidade do fato.
No Brasil, felizmente está afastada a coação direta, mas vez por
outra alguém é processado pelo delito de desobediência ao negar-se a
contribuir com a autoridade estatal. A nosso juízo, é patente a atipici— 529 Direito à Prova no Processo Penal, p. 115.

245 249
Aury Lºpes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

0) Quando o Problema Está nos Extremos: a (In)Eficácia do ela, parece-nos inafastáveis a incidência do contraditório e o direito de
Contraditório e do Direito de Defesa no Inquérito Policial defesa no inquérito policial.
e na Execução Penal A postura do legislador constitucional no art. 59, LV, foi claramen—
te garantidora, e a confusão terminológica (falar em processo adminis—
É importante destacar que atualmente os pontos de maior ineficá— trativo quando deveria ser procedimento) não pode servir de obstácu—
cia das garantias processuais residem nos dois extremos do processo lo para sua aplicação no inquérito policial.531 _
penal: no inquérito policial e na execução da pena. Tampouco pode ser alegado que o fato de a Constituição mencro—
nar acusados e não indiciados é um impedimento para sua aplicação na
Na fase processual propriamente dita (iniciada com o recebimento
da acusação [denúncia ou queixa] e finalizada com o trânsito em julga- investigação preliminar. Sucede que a expressão empregada não foi só
acusados, mas sim acusados em geral, devendo nela ser compreendida
do da sentença), em que pese os inúmeros problemas já apontados, também o indiciamento, pois não deixa de ser uma imputação em sen-
não existe um comprometimento estrutural de tal monta que fulmine o
contraditório e o direito de defesa, até porque efetivas as demais tido amplo. Em outras palavras, é inegável que o indiciamento repre—
senta uma acusação em sentido amplo, pois decorre de uma imputação
garantias do due process of law, especialmente jurisdicionalidade, fun- determinada. Por isso o legislador empregou acusados em geral, para
damentação das decisões, presunção de inocência e separação de ati— abranger um leque de situações, com um sentido muito mais amplo
vidades (em que pese os poderes instrutórios do juiz).
que a mera acusação formal (vinculada ao exercício da ação penal) e
Já no inquérito e na execução, os fatores de ineficácia são comuns: com um claro intuito de proteger também ao indiciado.
estrutura administrativa e inquisitória. Ao serem ambas as fases encar- - No mesmo sentido, LAURLATUCCI e CRUZ E TUCC1532 afirmam
regadas a órgãos administrativos que atuam dentro de uma estrutura
que “percebe—se, desde logo, sem mínimo esforço de raciocínio, que o
normativa (e lógica) inquisitória, tratam o sujeito passivo como verdadei-
nosso legislador constituinte pontuou, no primeiro dos incisos transcri-
ro objeto (de investigação ou suplício penal) sem as mínimas garantias. tos, a real diferença entre o conteúdo do processo civil, cuja ja verifica—
Por isso, nos dedicaremos, sumariamente, a desvelar (ao menos da finalidade é a compositiva de litígios, e o do processo penal, em que
em parte) essa problemática, mostrando a necessidade de constitucio-
pessoa fisica, integrante da comunidade, é indiciada, acusada e, até,
nalizar ambas as fases e, por consequência, abandonar a sistemática condenada pela prática de infração penal". Mais adiante, ainda referin—
vigente.
do—se à proteção constitucional, apontam que "...de modo também
induvidoso, reafirmou os regramentos do contraditório e da ampla defe-
a') Contraditório e Direito de Defesa no Inquérito Policial sa, com todos os meios e recursos a ela inerentes, estendendo sua inci-
dência, expressamente, aos procedimentos administrativos... ora,
Na fase pré—processual desenvolve-se a investigação preliminar, assim sendo, se o próprio legislador nacional entende ser possível a
destinada a apurar o fato delituoso para justificar o exercício da ação utilização do vocábulo processo para designar procedimento, nele se
penal ou o arquivamento das peças de informação. No Brasil, o modelo encarta, a evidência, a noção de qualquer procedimento administrativo
de investigação preliminar adotado é o policial, através do inquérito e. consequentemente, a de procedimento administrativo—petsecutório
policial.
de. instrução provisória, destinado a preparar a ação penal, que é o
Enquanto modelo administrativo e inquisitório, o inquérito policial inquérito policial".
abriga inúmeros e graves problemas. Em que pese isso, como já expli— É importante destacar que quando falamos em "contraditório" na
camos em outra cportunidade,530 buscando sempre a máxima eficácia fase pré—processual estamos fazendo alusão ao seu primeiro momento,
do art. 59, LV, da GB, bem como a necessária conformidade do CPP a

531 Até porque basta uma rápida leitura do CPP para verificar o mais completo confusionis-
530 Sobre o tema, consulte—se nossa obra Sistemas de Investigação Preliminar no Processo mm nº emprego das expressões, mg., processo sumário, processo ordinário. etc.
Fenaj, Rio de Janeiro, Lumen Juris. 5232 Devido Processo Legal e 'Ilitela Jurisdicional. pp. 25 e ss.

2.56 251
Aury Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

da informação. Isto porque, em sentido estrito, não pode existir contra— ção de carater coercitivo contra uma pessoa determinada, configuran—
ditório no inquérito porque não existe uma relação juridico—processual, do uma "agressão" ao seu estado de inocência e de liberdade, capaz
não esta presente a estrutura dialética que caracteriza o processo. Não de autorizar uma resistência em sentido juridico-processual. Essa
havendo o exercício de uma pretensão acusatória, não pode existir a resistência é o direito de defesa.
resistência. Sem embargo, esse direito a informação — importante face— O direito de defesa é um direito natural, imprescindível para a
ta do contraditório — adquire relevância na medida em que sera através administração da justiça. Nega-lo implica violar os mais elementares
dele que será exercida a defesa.
postulados do moderno processo penal. Como ensina GUARNIERI,535
Esclarecedoras são as palavras de PELLEGRINI GRINOVER533 no “la defensa en el período instructóric es indudable que presenta defec-
sentido de que "defesa e contraditório estão indissoluveimente liga- to's, pero sus ventajas son mucho mayores y no sirvam para obscurecer-
dos, porquanto é do contraditório (visto em seu primeiro momento, da las las objeciones de sus enemigos".
informação) que brota o exercício da defesa; mas e esta — como poder GÓMEZ DE LA SERNA535 assinala que ningún derecho as mas
correlato ao de ação —— que garante o contraditório. A defesa, assim,
natural, ninguno as mais sagrado que el de 1a defensa. Como tipico direi—
garante o contraditório, mas também por este se manifesta e é garan- to natural, o direito de defesa foi absorvido pelas modernas constitui-
tida. Eis a íntima relação e interação da defesa e do contraditório"
O direito de defesa é igualmente aplicável no inquérito policial, em coes democráticas e pelos principais tratados internacionais.
que pese todo ranço do senso comum espelhado por numerosa juris— ª No plano dos Tratados Internacionais, destacamos que por meio
prudência e doutrina. do Decreto 678/92 0 Brasil aderiu à Convenção Americana de Direitos
O direito de defesa é um direito-réplica,53ªª que nasce com a agres- Humanos — CADH (Pacto de San José de Costa Rica, de 21/11/1969), de
são que representa para o sujeito passivo a existência de uma imputa— modo que suas disposições passaram a integrar o ordenamento jurídi—
ção ou ser objeto de diligências e vigilância policial. Nesta valoração co interno nos termos do art. 59, 5 2ª, de Constituição.
reside um dos maiores erros de numerosa doutrina brasileira que advo- Determina o art. 7.4 da CADH que toda pessoa detida tem o direi-
ga pela inaplicabilidade do art. 59, LV, da Constituição ao inquérito poli— to a'ser informada sobre as razões de detenção, da acusação ou acusa-
cial, argumentando que não existem "acusados" nessa fase, eis que ções que existam contra ela. No art. 8. 2 da CADH, estão enumeradas
não foi oferecida denúncia ou queixa. - as garantias judiciais do individuo. 537
Ora, não é preciso maior capacidade de abstração para verificar que Não esqueçamos, ainda, da defesa técnica no inquérito policial,
qualquer noticia-crime que irnpute um fato aparentemente deiitivo a pois trata—se de espécie do gênero ampla defesa, e, para exercê- -la com
uma pessoa determinada constitui uma imputação, no sentido jurídico plenitude-, o defensor deve atuar rodeado de uma série de garantias
de agressão, capaz de gerar no plano processual uma resistência. Foi qiie lhe permitam uma completa independência e autonomia em rela-
isso que o legislador constitucional quis dizer com "acusados em geral" ção ao juiz, promotor e a autoridade policial.
(note-se bem, o texto constitucional não fala simplesmente em "acusa-
dos", o que daria abrigo a uma leitura mais formalista, mas sim em “acu«
sados em geral", o que sem dúvida é muito mais amplo e protecionista). 535 Les Partes en el Proceso Penal, p. 351.
536- Apud MORENO CATENA, op. cit., p. 23.
Da mesma forma, quando da investigação ex officio realizada pela 537 Entre elas, interessam ao inquérito policial: a) presunção de inocência; b) ser ouvido com
policia surgem suficientes indícios contra uma pessoa, a tal ponto de as devidas garantias. em um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, inde—
tornar—se o alvo principal da investigação — imputado de fato —, devem pendente e imparcial; o) ser assistido por tradutor ou intérprete, se não compreende o
idioma; d) ser comunicado, deforma prévia e pormenorizada, dos fatos que Lhe são impu-
ser feitos a comunicação e o chamamento para ser interrogado pela tados; e) defender-se pessoalmente ou eleger um defensor para assistir-lhe; f) entrevis-
autoridade policial. Em ambos casos, inegavelmente, existe uma atua— .. ter-se livremente e de forma reservada com o seu defensor; q) ser defendido por um
advogado do Estado (dativo) quando não tenha condições de constituir, ou ainda, caso
. não indique, devera ser-lhe nomeado um defensor dativo; h) perguntar 'as testemunhas
533 PELLEGRINI GRINOVER et alii, As Nulidades no Processo Penal, p. 63. e também solicitar a declaração de outras testemunhas ou peritos que possam auxiliar
534 MORENO CATENA, Victor. La Defensa en ei Proceso Penal, 13. 105. na comprovação do fato; i) não declarar contra si mesmo, nem declarar-se culpado.

252 253
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da lnstrumentalidade Constitucional)

Isso significa que o advogado deve estar presente quando da oiti- duramente Detalhada ao longo da conceituação de due process
va do imputado, podendo, inclusive, a teor do art. 185 do CPP (com a clause não seja algo meramente formal, como aceitar que seu tra-
nova redação dada pela Lei 10.792). entrevistar—se prévia e reservada— balho seja considerado algo absolutamente despicienclo?
mente com o imputado e formular as perguntas correspondentes (nova
redação do art. 188 do CPP). Não há como aceitar—se o segredo interno. E patente que vedar o
Para que a defesa técnica não seja meramente simbólica, e abso- “acesso do advogado aos autos do inquérito policial é —— ademais de ile—
lutamente imprescindível que o advogado tenha acesso aos autos do gal, por violar o disposto na Lei 8.906 — substancialmente inconstitucio-
inquérito policial. Ao contrário de alguma jurisprudência533 que veda o nal, por negar a devida eficácia ao direito fundamental de defesa, que
acesso do advogado, entendemos que a questão deve ser lida a partir constitui a própria essência do devido processo penal.
da Constituição, cujo art. 133 dispõe que “o advogado é indispensável Incabivel situar a discussão na seara do “predomínio do interesse
à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifesta- público sobre o privado". Estamos diante de direitos fundamentais,
ções no exercício da profissão, nos limites da lei". que transcendem essa dimensão reducionista.
A regulamentação do dispositivo constitucional encontrarmos na Por qualquer ângulo que se veja a matéria, estamos convencidos
Lei 8806/94, que disciplina a atividade proiissionai do advogado. Entre de que o advogado não pode ser alcançado pelo segredo interno,
outras importantes garantias, destacamos a contida no art. 72, XIV, que devendo-lhe ser assegurada a prerrogativa de acesso aos autos do
assegura ao advogado o direito de “examinar em qualquer repartição inquérito. Mais do que limitar o exercício de uma atividade profissional,
policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, fin- o segredo interno fulmina o contraditório e o direito, a defesa técnica.
dos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo A situação é ainda mais grave porque o inquérito policial integra
copiar peças e tornar apontamentos". os autos do processo (por isso defendemos a exclusão física), contami-
Sequer é necessario invocar a tutela constitucional. Estamos dian- nando o (in)consciente o julgador com atos de investigação (pois o
te de duas normas de mesma hierarquia (CPP e Lei 8.906) na qual vai inquérito não gera atos de prova) colhidos no segredo da inquisição.
predominar a novatio legis que tem aplicação imediata em matéria pro— Essa contaminação faz com que o julgador valore na sentença os atos
cessual (principio da irnediatidade da norma processual). A nosso praticados em segredo, seja de forma inconsciente (pois os elementos
juizo, não existe uma dicotomia real, pois a Lei 8.906 acaba por supri— estão no processo), seja de forma consciente.
mir a imensa lacuna deixada pelo art. 20 do CPB que, como visto, é , ' Nesse último caso, é corrente a utilização da falaniosa fórmula de
completamente omisso em relação ao alcance do segredo. Está claro "'-condenar com base na prova judicial cotejada com a do inquérito". Na
que a nova lei regula o vazio normativo da anterior para assegurar que verdade, essa fórmula juridica deve ser lida da seguinte forma: não
o advogado não será alcançado pelo segredo interno. esiste prova no processo para sustentar a condenação, de modo que
Procede, pois, a perplexidade de ADAUTO SUANNES,539 ao ques— vou socorrer—me do que está no inquérito (cujo segredo também foi por
tionar:
mim determinadol), esse instrumento inquisitório, hibrido e mel forma—
do que temos no CPF!
Se a Constituição considera a presença do advogado indispen— Isso sem falar no imenso prejuízo que decorre do pré-juízo, pois o
sável para que tenhamos um fair trial, para que essa conquista sistema brasileiro considera a prevenção como causa de fixação (e não
de exclusão) da competência. Um absurdo sistêmico há muito aponta—
do peio Tribunal Europeu de Direitos Humanos em diversas decisões.
538 Especificamente acerca da negativa em permitir que o advogado tenha acesso aos autos
do inquérito policial, conforme alguma jurisprudência tem apregoado. remates o leitor a O que não podemos e concordar com o discurso autoritário que
nosso trabalho “Direito de Defesa e Acesso do Advogado aos Autos do Inquérito Policial: ainda é assumido por alguns tribunais brasileiros. Pensamos que se é
Desconstruindo o Discurso Autoritário". In: Processo Penal: Leituras Constitucionais.
Gilson Bonato (organizador). Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2503.
Para ser legalista, sejamos, fazendo uma leitura constitucional do CPP;
539 Os andamentos Éticos do Devido Processo Penal, p. 317. se for para ser positivista. ótimo, mas um positivismo de combate, bus-

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Aury Lopes .ir. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidacle Constitucionai)

cando & maxima eficácia dos direitos fundamentais previstos na Cons- co autoriza o Estado a atropelar todas as garantias que estruturam o
tituição e não o mofado paleopositivismo. devido processo penal, até porque execução e processo.
Em suma, desde o paradigma constitucional e a luz da Convenção - O contraditório pode ser invocado como o direito de informação e
Americana de Direitos Humanos, é inafastável a incidência do contra- participação das decisões judiciais que lhe alcancem de qualquer
ditório e do direito de defesa (técnica e pessoal [positiva ou negativa]) forma, de igualdade de tratamento e de oportunidades em relação ao
na investigação preliminar. Ministério Público e, acima de tudo, no direito de audiência.
- O contato direto do juiz com o apenado é crucial, seja através de
b') Contraditório e Direito de Defesa na Execução Penal audiências ou ainda indo pessoalmente ao presídio. Inadmissível qual-
quer tentativa de substituir o contato pessoal por interrogatórios atra-
Verificado no curso do processo a efetiva existência do delito e vés de meios informáticos (videoconferência e outros recursos simila-
proferida sentença penal condenatória, inicia-se a execução penal, res). 'Se“ o problema e segurança e dificuldade de transporte, porque o
onde o poder estatal de penar será levado a cabo. Com o trânsito em juiz não vai até o preso? Nessa linha, magistral a lição de GERALDO
julgado da sentença penal condenatória, está constituído o título exe— PRAD02544 Se as partes tradicionalmente têm o direito de serem ouvidas
cutivo. Contudo, o problema não está terminado, ao contrário, inicia-se pelo júiz — é dito que têm direito ao seu dia na corte —, o juiz passa a ter
mais uma problemática fase do já doloroso processo penal, definida por o direito (ou dever, diríamos nós?!) ao seu dia na prisão: one dayin jail.
GARNELUTT154D como expiación dela pena, considerado como o con- “Não basta com que a defesa pessoal positiva seja exercida por
junto de atos processuais que se verificam depois de haver passado em meio: da imensa quantidade de cartas e bilhetes que os presos enviam
julgado a sentença condenatória. ao juízo da execução, postulando seus direitos... eles tem direito à
Grande inconveniente da execução penal e o teratológico consen— andiência. Por isso, para plena eficácia desse direito, é necessário que
so em torno da possibilidade de total abandono de toda e qualquer 'o" preso tenha acesso ao juiz, através de audiência, e também a um
garantia processual. Existe uma passividade espantosa por parte dos defensor. '
juízes e tribunais, que, "respaldados" por rançosa doutrina,541 assis— :: " 'D- preso também tem direito a autodefesa negativa, quase sempre
tem inertes a barbárie jurídica que é a execução penal. negada de forma arbitrária e ilegal. '
O processo de errecuçãoªl2 é atividade que deveria exigir, na sua Através do principio do nemo tenetur se detegere, o preso não
plenitude, a atuação jurisdicional. A instrumentalidade, inerente ao pode ser compelido a declarar ou mesmo participar de qualquer ativi-
processo, está fundada na tutela judiciária dos direitos subjetivos do dade que possa incrimina—lo ou prejudicar sua defesa. Não pode ser
sentenciado e, também, voltada para a efetividade do comando concre- compelido a participar de acareações, reconstituições, fornecer mate-
to emergente da sentença.543 Não é o momento, como infelizmente rial-'para realização de exames periciais (exame de sangue, DNA, escri-
ocorre hoje, de abandonar a garantia da jurisdição de qualidade. O fato ta, etc.), etc.
de ter sido condenado não subtrai do apenado esse direito, e tampou- . Isso se aplica. especialmente, em relação aos fatos ocorridos no
interior do estabelecimento penal ou ainda posteriores à condenação
que originou o encarceramento. Não há que se olvidar que o preso con—
540 CARNELUTTI, Francesco. Lecciones sobre el Proceso Penai, v. 4, trad. Santiago Santis
Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1950. p. 191. tinua protegido — também — pela presunção de inocência, obviamente
543 Recordemos a autofagia do sistema: o manual cita a jurisprudência, que cita o manual, em relação aos fatos posteriores ao gerador do título executivo.
que volta a citar a jurisprudência, que voâta a citar o manual... e assim o ciclo se repete. Sendo a recusa um direito, obviamente não pode ao mesmo tempo
É a necrofiãia jurídica em grau máximo.
542 Sobre esse e outros temas oorreiatos, recomendamos a leitura da obra coletiva Critica à ser considerado delito, nem mesmo como falta disciplinar. Trata—se de
Execução Penal, coordenada por Salo de Cai-vamo e publicada pela Editora Lumen Juris.
543 PELLEGHINI GRINOVER, Ada. "A exigência de jurisdicionalização da execução na
América Latina". In: O Processo em Evolução. Rio de Janeiro, Forense, 1996, p. 259. 544 Sistema Acusatón'o, p. 276.

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Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentaliciade Constitucional)

exercicio regular de um direito que afasta a ilicitude da conduta, tornan- excessiva, olvidando a estrita sujeição da execução ao principio da
do—a impunivel, tanto na esfera penal como também administrativa. legalidade.
Outro problema sério do processo de execução é a ausência de Nada mais equivocado. O apenado não perde o direito de defesa
defesa técnica. técnica e essa restrição na prática forense de uma das manifestações
O art. 272 do CPP afirma que ninguém pode ser processado sem capitais do direito de defesa (se não do direito mesmo, em toda sua
defensor. Mas pode ser executada a pena sem defensor? Parece—nos extensão) carece de qualquer justificação à luz de seu reconhecimento
óbvio que não. O direito de defesa é constitucional, amplo e indisponí- como norma fundamentalªªE
vel, no que diz respeito à defesa técnica. A defesa técnica é essencial para garantir o contraditório e a pró-
No plano da existência formal, a LEP contempla expressamente a pria igualdade de armas. Como aponta SCARANCE FERNANDES?“ “a
garantia do defensor no art. 41, incisos VII (assistência jurídica) e IX defesa técnica, para ser ampla como exige o texto constitucional. apre-
(entrevistar-se com o advogado). O problema esta na eficácia de tal senta-se no processo como defesa necessária, indeclinável, plena e efe-
direito. tiva. Por outro lado, além de ser garantia, a defesa técnica é também
No processo de execução, a situação de inferioridade e extrema— direito e, assim, pode o réu escolher defensor de sua confiança". Não
mente agravada pela impossibilidade física de atuar de forma efetiva e tendo condições de fazê-io, e dever inafastavel do Estado oferecer—lhe
pelo proprio contexto em que o preso se encontra. um serviço público de defesa, tão bem estruturado como está o
Ministério Público.
Talvez o ponto nevrãlgico da ausência de defesa técnica venha da
frágil justificativa de que o preso tem plena capacidade postulatória Por derradeiro, chamamos a atenção para a flagrante violação do
contraditório e do direito de defesa ocorrida quando os juízes da exe—
(art. 41, XIV, da LEP). E um engodo, que serve apenas para acobertar o
imenso prejuizo que ele sofre pelo abandono. O preso não deve possuir cução penal adotam, como fundamento de decidir, os argumentos utili—
capacidade postulatõria, porque isso e uma falsa vantagem. Ele tem Zados por Psicólogos e Psiquiatras das Equipes de Observação Crimi-
húlÓgÍCª.54a
que ter, isso sim, um defensor, pois a defesa técnica é imprescindível e
Em que pese não haver mais a obrigatoriedade da realização de
indisponível. Tal situação é agravada ao extremo quando cotejada com
tais laudos, a partir da nova redação dada ao art. 112 da LEP pela Lei
o mofado discurso de que na execução todos são advogados do preso 10.792, e previsível que muitos juízes e tribunais resistam a essa "ino-
(juízes, promotores, servidores, etc.).
vação " e continuem determinado a realização de tais avaliações, a títu—
Tecnicamente, tais construções não encontram o menor amparo lo de “livre convencimento". É tradição do Direito mudar para conti-
legal ou constitucional e so contribuem para aumentar o abandono e a nuar tudo como sempre esteve.... Procede, assim, nossa preocupação.
injustiça que sofrem os apenados. São argumentos intimamente vincu— Toda e qualquer avaliação sobre a personalidade de alguém é
lados ao discurso inquisitivo e autoritário, compietamente incompatí— inquisitiva, visto estabelecer juízos sobre & interioridade do agente.
veis com o paradigma constitucional e garantista—acusatório que Também é autoritária, devido as concepções naturalistas em relação ao
defendemos.
sujeito autor do fato criminoso. Qualquer prognóstico que tenha como
Como bem aponta MORENO CATENA,545 parece que a submissão mérito "probabilidades“ não pode, por si só, justificar a negação de
do condenado à execução leva como lógica e iniludível consequência a direitos, visto que são hipóteses inverificãveis empiricamente. É uma
privação de toda possibilidade de intervir nas atividades que nela se porta aberta para o subjetivismo incontrolável.
realizam. ou de opor-se a ela, como se o Estado se convertesse em um
ser onipotente frente ao condenado, devendo este padecer qualquer
atividade ou restrição em seus direitos, ainda que resulte arbitrária ou 546 MORENO OATENA, Victor. Idem, p. 888.
547 SCARANGE FERNANDES, Antonio. Processo Penal Constitucional, p. 2.52.
548 Sobre o tema. imprescindívei a leitura de SALO DE CARVALHO, Pena e Garantias, 211 edi—
545 MORENO CATENA, Victor; GIMENO SENDHA, Vicente e CORTES DOMINGUEZ. çãº. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2003. Também consulte-se a obra coletiva Critica à
Valentin. Derecho Process! Penal, Madri. Colex, 1996, pp. BBB e ss. Execução Penal, organizada pelo mesmo autor e publicada pela Editora Lumen Juris.

GED 255
Aury Lopes .] r. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

Nesses laudos. em geral, podemos verificar que o superadissimo Na verdade, o que ocorre no processo de execução, e ninguém
direito penal do autor continua sendo aplicado. talvez fruto da dificul— quer admitir, é que nosso modelo implica reducionismo sociobiolõgico.
dade em compreender o fenômeno da secularização ou, ainda, por É ”um absurdo retrocesso aos conceitos lombrosianos de propensão ao
culpa da prisionalização que atinge a todos aqueles que atuam na exe- delito, causas da delinqiiência e personalidade voltada para o crime,
cução e os impede de repensar posições ultrapassadas. como muito bem identificou SALO DE CARVALHO.
Como consequência, a lógica inquisitiva continua dominando - A função do juiz fica reduzida a acolher os laudos e com isso há a
amplamente e em todos os aspectos. ' perigosa fundição do modelo juridico com o discurso da psiquiatria.
E o perigo está no excesso de subjetivismo, pois o discurso juridi-
A exigência contida no art. 83, parágrafo único, do Código Penal,
além de ser um diagnóstico absolutamente impossivel de ser feito co é refutável, mas o da psiquiatria, não. É a ditadura do modelo clínico.
(salvo para os casos de Vidência e bola de cristal), (% flagrantemente Para os juízes, o papel de mero homologador de laudos técnicos e
inconstitucional, pois a única presunção que a Constituição permite e muito cômodo. Eles acabam substituindo o discurso jurídico pelo dis—
a de inocência. E, por favor, não se diga que o preso não está protegi— curso da psiquiatria, tornando sua decisão impessoal, inverificável e
do pela presunção de inocência, pois esta permanece intacta em rela— impossivel de ser contestada. Voltamos a questão da "toga—máscara"
de GARAPON, anteriormente analisada, que permite ao juiz refugiar—se
ção a fatos diversos daquele que ensejaram a condenação. Continua
naºimpessoalidade da decisão.
existindo, principalmente em relação a fatos futuros. Não existe base
Verifica-se de plano a nefasta substituição do direito penal do fato
curso da periculosidade. .
legal para prognósticos de reincidência ou, ainda, para o mofado dis—

Recorda SALE) DE CARVALH0549 que uma das principais distin—


pelo direito penal do autor. Não se pune mais pelo que o apenado obje—
tivamente fez, mas sim pelos diagnósticos irrefutáveis de personalida—
de perigosa, desviada, etc.
ções entre o sistema inquisitivo e o acusatório-garantista se manifesta ' Com isso, explica FERRAJOLI,551 cai por terra um das bases do
no que diz respeito à existência de possibilidades de concreta refutação liberalismo que norteia um Estado democrático de Direito: o direito de
das hipóteses probatórías. cada um ser e permanecer ele mesmo. e, portanto, a negação ao Estado
Não raramente encontramos em laudos — acolhidos pelos juízes — de indagar sobre a personalidade psíquica do cidadão e de transformá—
que negam o direito pleiteado aduzindo que "a personalidade é imatu— lo moralmente através de medidas de premiação ou de punição por
ra. ele é mesocriminoso preponderante, possui atenção normovigil e aquilo que ele é e não por aquilo que ele fez.
normotenaz, orientação auto e alopsiq-uica, afeto normomodulado",55Cl Como dissemos, não existe a menor possibilidade (salvo os casos
e outras pérolas que são absolutamente impossiveis de serem demons- de Vidência...) de uma avaliação segura sobre a personalidade de
tradas e refutadas. alguém, até porque existem mais de 50 definições diferentes sobre a
Logo, fulminados estão os direitos constitucionais do contraditório personalidade.
e da ampla defesa. Diga-se de passagem que o fato de ter sido conde— É um dado impossivel de ser constatado empiricamente e tão
nado não implica perda de tais direitos. O apenado continua tendo o pouco demonstravel objetivamente para poder ser desvalorado.
direito de refutar e contraditar juízos de valoração negativos feitos con— O diagnóstico da personalidade é extremamente complexo e
tra ele. envolve histórico familiar, entrevistas, avaliações, testes de percepção
Mas isso é impossivel, pois o discurso da psiquiatria destrói qual— temática e até exames neurológicos, e isso e absolutamente impossivel
quer possibilidade de contraditório e direito de defesa, eis que não há de ser constatado através dos exames feitos pela CTC/ECC.
como refutar as hipóteses, resistir em igualdade de condições. Não podemos admitir um juízo negativo sem fundamentação e
base conceitual e metodológica.
549 Pena o Garantias: Uma Leitura do Gai-autismo de Luigi Flarrajolinc Brasil. Rio de Janeiro.
Lumen Juris. 2001.13. 199.
550 Os exemplos são de SALO DE CARVALHO. na obra Pena e Garantias. 551 Derecho y razón. Madrid. Trotta, 1997.
Aury Lopes Jr. .“; Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

Com a consequente adoção do modelo acusatõrio, exige-se a . indisponível: traduz—se em condição de paridade de armas
plena refutabilidade das hipóteses e o controle empírico da prova e da --; : que afasta o procedimento do pré—moderno modelo inquisito-
própria decisão, que só pode ser admitida quando motivada por argu- fªria.? (Lição de Aury Lopes Jr.)
mentos cognoscitivos seguros e válidos. A decisão do juiz sempre deve Nulo o-decisum que nega benefício ao condenado, com funda—
ser verificável pelas partes e refutável, bem como deve-se compreen— mento' em'laudos técnicos (0.0.0. e OTC.) dos quais a defesa
der o processo de racionalização desenvolvido, e isso não é possivel não“ 'se oportunizou cientificação e exame.
quando o julgador simplesmente acolhe um laudo desfavorável como Decisão'unânime.
esses emitidos pela GTC ou pela EOC.
Com acerto já decidiu o Tribunal de Justiça do Estado do Rio ;” Ein resumo. é imprescindível constitucionalizar a execução penal
Grande do Sul, através de sua Quinta Câmara Criminal, no Agravo nº 'e' seus "operadores", pois a estrutura atual é completamente inquisito-
70004106308, Rel. Des. Amilton Bueno de Carvalho, em 26 de junho de aas anteritária. Não podemos pactuar com um hediondo retorno à cul-
2002:
pabilidade do autor e pela conduta de vida. Tampouco tolerar decisões
sem 'a'd'evida fundamentação, que não são constatáveis empiricamen-
EXECUÇÃO PENAL. AGRAVO. ACUSATORIEDADE. PAR-
TICIPAÇÃO DE DEFESA TÉCNICA. MPRESCHNIDIBEDJADE DE te” e. portanto, refutáveis. Entre as muitas garantias indevidamente
INTIMAÇÃO DEFENSIVA DOS LAUDOS QUE AVALIAM O CIDA-
sepultadas estão o contraditório e o direito de defesa Recordernos que
o fato de ter sido condenado não autoriza o Estado a subtrair—lhe todo
DÃO-CONDENADO. RESPEITO AOS PRINCÍPIOS DO CONTRA—.
DITÓBIO E AMPLA DEFESA. feixe de direitos e garantias que estruturam o devido processo penal,
— A determinação constitucional de jurisdicionalidade acusató— sob pena de perigoso retrocesso a barbárie jurídica.
ria no processo de execução penal impõe estrutura dialética
ao procedimento de aferição de requisito subjetivo, fundamen— liª-Motivação das Decisões Judiciais
tador de decisão que altera o título executivo. Urgente filtra—
gem a luz da Carta Maior, das regras executórias, como forma a) “Controle da Racionalidade das Decisões e Legitimação
de implementar sistema adequado à garantia dos elementa— ?: do Poder
res direitos fundamentais inerentes ao núcleo liberal do
Estado, assegurando ao cidadão-condenado as regras demo- Para o controle da eficácia do contraditório e do direito de defesa,
cráticas que lhe garantem dignidade.
— A legitimidade de toda atividade jurisdicional penal, corno bem como de que existe prova suficiente para sepultar a presunção de
leciona o professor Geraldo Prado, está condicionada à efetiva mecencia, e fundamental que as decisões judiciais (sentenças e deci—
segurança dos direitos e garantias fundamentais, que se da. soes- interlocutorías) estejam suficientemente motivadas. Só a funda-
exclusivamente, num ambiente marcado pela vigência do sis- 'mentacão permite avaliar se a racionalidade da decisão predominou
tema acusatório. sobre o poder, premissa fundante de um processo penal democrático.
— No processo de execução — conjunto de atos com função Nesta linha, está expressamente consagrada no art. 93, IX, da CB.
garantidora de liberdade e verdade —, devem ser afiançadas No modelo garantista não se admite nenhuma' imposição de pena:
àquele que figura no pólo da relação todas as garantias pro— sem que se produza a comissão de um delito; sem que ele esteja pre-
cessuais democráticas: ampla defesa, contraditório, duplo viarnente tipificado por lei; sem que exista necessidade de sua proibi—
grau de jurisdição, publicidade, igualdade de partes, etc. Ção e punição, sem que os efeitos da conduta sejam lesivos para tercei—
— Tais valores fundantes do processo penal democrático são afir— ros; sem o caráter exterior ou material da ação criminosa; sem a impu-
medos, unicamente, se houver a fiscalização dos atos do tabilidade e culpabilidade do autor; e sem que tudo isso seja verifica-
Estado por parte de advogado/defensor. A defesa técnica e do através de uma prova empírica, levada pela acusação a um juiz
252
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Pena!
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

imparcial em um processo público, contraditório, com amplitude de tai. conclusão sobre a autoria e materialidade. A motivação sobre a
defesa e mediante um procedimento legalmente preestabelecido. matéria fática demonstra o saber que legitima o poder, pois a pena
Explica FERRAJOLI que ...e! modelo penal garantista equivale a un somente pode ser imposta a quem— racionalmente— pode ser conside—
sistema de minimizaCión de! poder y de maio'mización del saber judicial, rado autor do fato criminoso imputado.
en cuanto condiciona la validez de las decisiones a la verdad, empírica y Como define IBANEZ, 554 o ius dicere em matéria de direito puniti—
logicamente controiabie, de sus motivaciones.552 O juízo penal e toda a vc. deve ser uma aplicação/explicação: um exercício de poder fundado
atividade jurisdicional e um saber-poder, uma combinação de conheci— em.-um saber consistente por demonstradamente bem adquirido. Esta
mento (veritas) e de decisão (auctoritas). Com esse entrelaçamento, qualidade na aquisição do saber é condição essencial para legitimida—
quanto maior é o poder, menor é o saber, e vice—versa. No modelo ideal de" do atuar jurisdicional.
de jurisdição, tal como foi concebido por Montesquieu, o poder é Quando se fala em racionalidade e razão, é importantíssimo des—
"nulo". No modelo autoritarista —- totalmente rechaçado na atualidade t'acar- que concepção estamos dando à "deusa razão" .Não se trata da
— o ponto nevrálgico está exatamente no oposto, ou seja, na predomi— razao no sentido cartesiano, que separa a mente do Cérebro e do corpo,
nância do poder sobre o saber e a quase eliminação das formas de con- substanCiando E) "penso, logo existo" , pilar de toda uma noção de
trole da racionalidade. súperio'ridade da racionalidade e do sentimento consciente sobre a
No pensamento de FERRAJOLI, o ponto nevrãlgico de um proces— “emaçãó: Isso sugere que pensar e ter consciência de pensar são os ver—
so penal garantista está na dimensão do binômio saber-poder. dadeiros substratos de existir, pois Descartes via o ato de pensar como
O processo está destinado a comprovar se um determinado ato uma atividade separada do corpo, desvinculando a “coisa pensante"
humano realmente“ ocorreu na realidade empírica. Com isso, o saber — dci—" corpo não pensante". 555 O erro está na "separação abissal entre o
enquanto obtenção de conhecimento —— sobre o fato é o Em a que se des- corpo e a mente". 555
tina o processo, que deverá ser um instrumento eficaz para sua obtenção. ' Essa racionalidade queremos transcender na esteira de ANTD—
A dimensão do poder— considerado como coação que afeta o sujei- NIO DAMASIO. Demonstrou o renomado neurologista na célebre obra
to passivo da atuação processual — necessário para atingir esse saber O erro de Descartes, 557 após a observação de pacientes que tiveram
tem que ocupar um lugar secundário e permanecer sujeito a regras removrdas partes do cérebro responsáveis pelo sentimento e a emoção,
muito estritas, presididas pelos princípios da necessidade (e respeito que a racionalidade e incompleta, e resulta seriamente prejudicada,
aos direitos fundamentais) e proporcionalidade (racionalidade na rela-
qnando não existe nenhuma ligação com o sentimento.
cão meio/firn). , .Para o autor, o fenômeno é exatamente oposto àquele descrito por
FERRAJOLI defende não só a humanização do poder, mas também Descartes na medida em que "existimos e depois pensamos e so pen-
uma importante inversão do paradigma clássico, eis que agora o saber
samos na medida em que eii'istimos, visto o pensamento ser na verda—
deve predominar. O poder somente está legitimado quando calcado no de, causado por estruturas e operações do ser" É o erro de considerar,
saber judicial, de modo que não mais se legitima por si mesmo. Isso como muitos ainda o fazem, que a mente pode ser perfeitamente expli-
significa uma verdadeira revolução cultural — como define IBANEZE53 — cada em termos de fenômenos cerebrais, deixando de lado o resto do
por parte dos operadores jurídicos e dos atores processuais. ºrganismo e o meio ambiente físico e social. É a prática médica de tra-
Nesse contexto, a motivação serve para o controle da racionalida?
de da decisão iudicial. Não se trata de gastar folhas e folhas para tar do corpo, sem preocupar-se com as conseqiiências psicológicas das
demonstrar erudição jurídica (e jurisprudencial) ou discutir obvieda-
des. O mais importante e explicar o porquê da decisão, o que o levou a 554 Garantismo yproceso penal. p. 59.
555 DAMASÉO. Antonio. 0 Erro de Descartes, p. 279.
556 DANLASID, Antonio. 0 Erro de Descartes, p. 280.
557 Por tudo, conferir ANTONIO DAMASIÚ. O erro de Descartes, São Paulo, Companhia das
552 FERRAJDLI, op. cit., pp. 22 e ss. Letras, 1996.
553 Garantismo yproccso penal. p. 55.

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Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

doenças do corpo, fechando os olhos ainda, para o efeito inverso, dos Em síntese, o poder judicial somente está legitimado enquanto
conflitos psicológicos no corpo. amparado por argumentos cognoscitivos seguros e validos (nao basta
A questão interessa-nos e muito, não só porque desvela diversos apenas boa argumentação), submetidos ao contraditono e refntaveis. A
mitos, mas principalmente porque “quando os seres humanos não con- fundamentação das decisões e instrumento de controle da racronalidade
seguem ver a tragédia inerente a existência consciente, sentem-se e do sentira do julgador, num assumido anticartesianismo. Mas tambem
menos impelidos a fazer algo para minimiza-1a e podem mostrar menos serve para controlar o poder, e nisso reside o núcleo da garantia. Permite
respeito pelo valor da vida. (...) Talvez a coisa mais indispensável que ainda aferir "que verdade" brota do processo, evitando assnn o substan-
possamos fazer no nosso dia-a—dia, enquanto seres humanos, seja cialisrno da mitológica "verdade real". Ademais, é crucial que e funda-
recordar a nós próprios e aos outros a complexidade, fragilidade, finitu- mentação seja construída a partir dos atos de prova, devidamente sub-
de e singularidade que nos caracteriza".55H metidos a jurisdicionalidade e contraditório, como se verá a continuaçao.
Não existe racionalidade sem sentimento, emoção, dai a importân-
cia da subjetividade e de todo sentire no ato decisório. Também isso lá)-Valoração e Distinção entre Atos de Investigação e Atos
contribui para desvelar a hipocrisia do discurso (paleo)positivista da de Prova: e Garantia de Ser Julgado com Base na Prova
"neutralidade do juiz", além de evidenciar que o enfoque legalista Judicializada
(paleopositivismo) não é outra coisa que um mecanismo de defesa que ª.

o julgador lança mão para não introjetar sua sombraªªº


E

:.

Como decorrência da garantia da jurisdição, está a de ser julgado


%.

Como explicamos anteriormente, não basta ter um juiz, devemos


com base em atos de prova. Para tanto, iniciamos pela distinção atos
atentar a serviço de quem e do quê ele está. É também nessa linha que
FERRAJOLI550 desenvolve as noções de estrita jun'sdicionalidade e mera de investigação/atos de prova.'552
jim'sdicionalidade. Ao primeiro caso corresponde o modelo processual Com relação aos atos de investigação:
garantista, cognoscitivo, orientado pela averiguação da verdade proces—
sual empiricamente controlável e controlada. Ao segundo, corresponde o a) não se referem a uma afirmação, mas a uma hipótese; .
modelo decisionista. substancialista, dirigido à descoberta de uma ver- b) estão a serviço da instrução preliminar, isto é, da fase pre-pro—
dade substancial e global, fundada essencialmente em valorações eti— cessual e para o cumprimento de seus objetivos;
cas, políticas, morais, que vão mais além da prova processualizada. c) servem para formar um juízo de probabilidade e não de certeza;
Por fim, como aponta FERNANDO GIL,551 não há que se dar exces— d) não exigem estrita observância da publicidade, contradição e
siva importância a argumentação e à sua teoria; embora se deva reco- imediação, pois podem ser restringidas;
nhecer & importância da dialética argumentativa, a pretensão de dissol- e) servem para a formação da opinio delicti do acusador; .
ver a idéia de prova na idéia de argumentação e de todo inaceitável. Não f) não estão destinados a sentença, mas a demonstrar a probabi—
corresponde a qualquer realidade. lidade do fumus commissi delicti para justificar o processo
(recebimento da ação penal) ou o não-processo (arquivamento);
q) também servem de fundamento para decisões interlocutórias
558 DAMASIO, Antonio. 0 Erro de Descartes, p. 282. de imputação (indiciamento) e adoção de medidas cautelares
559 CE. ALMEIDA PRADO, Lidia Reis. O Juiz e a emoção, p. 110. A expressão "sombra" está pessoais, reais ou outras restrições de caráter provisional;
empregada no sentido de "lado esquecido, desvalorizado ou reprimido". Sobre o tema,
consulte-se o que explicamos anteriormente no tópico "A toga e a iigura humana do jul- h) podem ser praticados pelo Ministério Público ou pela Polícia
gador no ritual judiciário: da dependência à patologia". Judiciária.
560 Derecho y Razón, p. 540.
561 Entrevista conduzida por RUI CUNHA MARTINS com FERNANDO GIL, acerca dos
"Modos da Verdade", in Revista de História das Idéias, Instituto de História e Teoria das
Idéias de Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Volume 23, 2002, pp. 15 e 562 Sobre o tema, consulte-se nessa obra Sistemas de Investigação Preliminar no Processo
seguintes. Penal, 253 edição, pp. 130 e ss.

266 2.67
Aury,r Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instmmentalidade Constitucional)

Substanciaimente diversos, os atos de prova: -. Na Constituição, os incisos LIII, LIV, LV e LV'l do art. Sº e o inciso
a) estão dirigidos a convencer o juiz da verdade de uma afirmação; ]X do art. 93 são disposições que consagram as garantias aplicáveis ao
b) estão a serviço do processo e integram o processo penal; processo penal.
o) dirigem-se a formar um juízo de certeza — tutela de segurança; = Também cumpre destacar que o Brasil está vinculado à Convenção
d) servem à sentença; Americana sobre Direitos Humanos, cujo art. 82 enumera uma série de
e) -exigem estrita observância da publicidade. contradição e ime- garantias judiciais, entre elas a publicidade, o contraditório e o direito
diação; de' defesa, que devem ser observadas no processo penal. Nos países
f) são praticados ante o juiz que julgará o processo. europeus, ademais da legislação interna, os arts. 14.1 e 14.3 do Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos e os arts. 6.1 e 6.3.d) do
Por meio dessa distinção e possivel fundamentar o porquê do limi— Convênio Europeu de Direitos Humanos também consagram garantias
tado valor probatório dos atos praticados na investigação preliminar, judiciais da mesma natureza e com caráter vinculante no plano interno.
ficando clara a inadmissibilidade de que a atividade realizada no A limitação da eficácia dos atos de investigação está justificada
inquérito policial possa substituir a instrução definitiva (processual). A pela forma mediante a qual são praticados os atos no inquérito policial:
secretos, escritos, ausentes o contraditório minimo e o respeito ao
única verdade admissível e a processual, produzida no âmago da estru— direito de silêncio.
tura dialética do processo penal e com plena observância das garantias
de contradição e defesa. Em outras palavras, os elementos recolhidos - ' Da mesma forma devem ser considerados os atos de investigação
realizados pelo Ministério Público, pois representam a inquisição do
na fase pré—processual são considerados como meros atos de investiga- acusador. com um contraditório meramente aparente e muitas vezes
ção e, como tal, destinados a ter uma eficácia restrita às decisões inter—
absolutamente inexistente. Da mesma forma, a igualdade sequer é um
locutórias que se produzem no curso da instrução preliminar e na fase ideal pretendido, muito pelo contrário, de todas as formas se busca
intermediária.
acentuar a vantagem do acusador público.
Como explica CiªslllNIELUT'I'I,EEB a eficácia das provas produzidas ' -' Não é necessário maior esforço para concluir que a investigação
no curso da investigação deve limitar-se aos fins da investigação; tais preliminar, independente do órgão que a dirige — policia, juiz ou MP —.
provas podem servir somente para a decisão do MP sobre o ponto de carece das garantias mínimas para que seus atos sirvam mais além do
se deve ou não pedir a autorização do juiz para castigar; não, em câm- juízo provisional e de verossimilitude necessário para adotar medidas
bio, para a decisão do juiz de se a autorização deve dar-se ou não, mas cautelares e decidir sobre a abertura ou não do processo penal.
os elementos de convicção do juiz não podem ser proporcionados É óbvio que as diligências levadas a cabo na investigação prelimi-
senão pelo que ocorreu ante ele, ou seja. pelo que ele viu ou ouviu. nar não podem servir como fonte de convencimento do órgão jurisdicio-
No plano das garantias processuais, as constituições modernas nal no momento da sentençaªªª
asseguram que a sentença condenatória só pode ter por fundamento a Os atos da investigação preliminar têm uma função endoprocedi-
prova validamente praticada no curso da fase processual, com plena menta1555 no sentido de que sua eficácia probatória é limitada, interna
observância da publicidade, oralidade, imediação, contraditório e à= fase. Servem para fundamentar as decisões interlocutórias tomadas
ampla defesa. Isso exclui a possibilidade de que os atos de investiga- no curso da investigação, formalizar a imputação, amparar um eventual
ção, cuja estrutura não garante esses direitos, sejam considerados pedido de adoção de medidas cautelares ou outras medidas restritivas
como meios de prova, logo, suscetíveis de valoração no momento da
sentença.
554- VEGAS TORRES, Jaime. Presuncíón de Inocencia yprueba en el proceso pena!, p. 39.
555 Seguimos DRAGONE, na obra coletiva Manuais pratico d'el nuovo processo penais, p. 475,
com a distinção de que o autor utiliza a expressão endoprocessuale. Preferimos endapro-
563 Derecho Process] Civil yPenal, p. 340. Cedimentai por ser mais apropriada à natureza juridica da fase pre—processual.

269
Aury Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

e para fundamentar a probabilidade do fumus commissi delicti que jus- . O. objetivo é a absoluta originaiità do processo penal, de modo que
tificarã o processo ou o não—processo. , não. se atribui à fase praprocessual o poder de aquisição da prova.
Infelizmente proliferam decisões em que os juízes condenam com Somente deve recolher elementos úteis à determinação do fato e da auto-
base no inquérito policial. Alguns lançam mão de uma fraude discursi— ria, em grau de probabilidade, para justificar a ação penal. A efetiva cole-
va: “cotejando a prova judicializada com a policial..." ou "a prova poli— tazda prova está reservada para a fase processual — giudice de] dibatti-
cial corrobora...", para então condenarem. mento .-—, cercada de todas as garantias inerentes ao exercício da jurisdi-
Por mais que se invoque, não há a necessária interiorização das ção; A originalidade é alcançada, principalmente, porque se impede que
garantias processuais. todos os atos da investigação preliminar sejam transmitidos ao proces—
Diante de um cenário tão preocupante como esse, temos defendi- so —,'exclusão de peças —, de modo que os elementos de convencimento
do a exclusão física dos autos do inquérito de dentro do processo, como são obtidos da prova produzida em juizo. Assim, evita—se a contamina—
única maneira de efetivar a garantia da jurisdição e de ser julgado com ção e garante—se que a valoração probatória recairá somente sobre aque—
base nos atos de prova. les atos praticados na fase processual e com todas as garantias.
. Em síntese, a regra geral é que os atos da investigação preliminar
Trata-se de sistema já empregado com sucesso em outros países e
que também já fez parte do processo penal brasileiro, no antigo Código (inquérito policial) sejam, como tais, considerados meros atos de inves-
do Distrito Federal (Decreto nº 16.751, de 31.12.1924), art. 243: "Os tigação,-com uma limitada eficácia probatória, pois a produção da
prova deve estar reservada para a fase processual. É a função endopro—
autos de inquirição apensos aos de investigação, nos termos dos arts. cedimental dos atos da instrução, no sentido de que sua eficácia e
241 e 242, servirão, apenas, de esclarecimento ao Ministério Público, interna a fase, para fundamentar as decisões interlocutórias tomadas
não se juntarão ao processo, quer em original, quer por certidão, e no curso da investigação.
serão entregues, após a denúncia, pelo representante do Ministério ' , Para evitar a contaminação. o ideal e adotar o sistema de elimina-
Público ao cartório do juízo, em invólucro lacrado e rubricado, a fim de ção do processo dos atos de investigação, excetuando-se as provas tec-
serem arquivados à sua disposição." nicas irrepetiveis e a produzida no respectivo incidente probatório.
Tal tecnica de exclusão também é adotada pelo sistema italiano, . Excepcionalmente, tendo em vista a urgência ou o risco de pereci-
em que são eliminadas dos autos que formarão o processo penal todas gment'ode uma prova importante, o procedimento a ser adotado para
as peças da investigação preliminar (indagine preliminare), com exce- júrisdicionalizar os atos de investigação, outorgando—lhes com isso o
ção do corpo de delito e das antecipadas, produzidas no respectivo status de ato de prova, e o incidente de produção antecipada de pro-
incidente probatório. vas, outro ilustre desconhecido do processo penal brasileiro.557
Como explicam DALLA e FERRAIOLI,555 um dos motivos da clara " ,Nessa breve análise, pretendemos chamar a atenção para o pro-
distinção entre o procedimento per ie indagíni preliminarí e o processo blema do valor probatório e a necessidade de limitar a eficácia dos atos
é exatamente evitar a contaminação do juiz pelos elementos obtidos na
fase pre-processual.
Na nova lei do Tribuna] do Júri, o legislador espanhol de 1995 jus— 557 .Cºmº-iá referimos em diversas oportunidades, somos contrários a uma "teoria geral do
, “processo", pois o fenômeno do processo penal é completamente diverso daquele que
tifica, na Exposição de Motivos, a necessidade da exclusão física das ' informa o processo civil. Assim, precisamos respeitar as peculiaridades e as categorias
peças do sumario (instrução preliminar) dos autos do processo, evitan— ' jurídicas próprias do processo penal, evitando ao máximo a transmissão mecânica das
do com isso as indesejáveis confusões de fontes cognoscitivas atendi“ categorias do processo civil para o penal. Nessa linha, é inadequado pensar que a lacu—
.- na existente (incidente de produção antecipada de provas) poderá ser suprimida pela
veis, contribuindo assim a orientar sobre o alcance e a finalidade da prá— . . analogia com o processo civil. É fundamentai definir os requisitos básicos de relevância
tica probatória realizada no debate (ante os jurados). ' = & imp'rescindibilidade do seu conteúdo para a sentença e a impossibilidade de sua repe—
tição na fase processual. amparado por indícios razoáveis do provável pcrecimento da
Prova. O processo penal também deverá definir a forma do ato. considerando as garan-
tias ínaiastãveis do contraditório e da ampla defesa. Sobre o tema. consulte-se nossa
566 Manuais di Diritto Processuais Penais, pp. 558 e ss. obra Sistemas de Investigação Preiiminarno Processo Penal, pp. 207 e ss.

2.71
Aury Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

de investigação e de exclui-los dos autos do processo. É importante que serviu de argumento para as maiores atrocidades); com sistemas
acentuar a função endoprocedírnental do inquérito, para evitar — inclu- ' politicos autoritários; com a busca de uma “verdade" a qualquer custo
sive — que se admita a sua valoração pelo "cotejo" com a prova judicial, , . , (chegando a legitimar a tortura em determinados momentos históri-
que nada mais é do que uma maquiagem para condenar com base em IÍ . :cos);:e-corn'a= figura do juiz ator (inquisidor).
meros atos de investigação. O inquérito, por ser um procedimento pré- rªcemo explica PACELLI DE OLIVEIRA,559 0 maior inconveniente da
processual administrativo, está caracterizado por um alto grau de ' verdade real foi ter criado uma "cultura inquisitiva" que acabou se dis-
"liberdade de forma" e, por isso, é inidôneo para proporcionar resulta— seminando por todos os órgãos estatais responsáveis pela persecução
do probatório, até porque ele representa o predomínio do poder e da penal.-A partir dela, as práticas probatórias mais diversas estão auto—
força sobre a razão, algo absolutamente inadmissível em um Estado de rizadas pela nobreza de seus propósitos: a verdade. Nessa linha, sinte-
Direito que aspira um moderno processo penal. tiza 'c'om “aeerto o autor que "a crença inabalável segundo a qual a ver-
O direito de ser julgado com base na prova (leia-se: atos de prova) dade'ies'tava efetivamente ao alcance do Estado foi a responsável pela
deve ser visto na sua real dimensão, enquanto garantia de máxima ori— implantação da idéia acerca da necessidade inadiável de sua persegui—
ginalidade. Para tanto, deve-se evitar a contaminação do julgador pelos ção, como meta principal do processo penal".
atos de investigação, pois colhidos na fase inquisitória, sem as mini- Noutra dimensão, devemos sublinhar _ na esteira da FERRA-
mas garantias. A falácia do discurso oficial está em apontar para a JOLIEVU —- que a verdade substancia], ao ser perseguida fora das
“suficiência" das garantias da fase processual e permitir, quando da “regras e controles e, sobretudo, de uma exata predeterminação
sentença, que o julgador decida com base na pura inquisição (do empírica das hipóteses de indagação, degenera o juízo de valor,
inquérito).
amplamente arbitrário de fato, assim como o cognoscitivismo ético
sobre o qual se embasa o substancialismo penal, e resulta inevita—
c) Verdade Real: Desconstruindo um -Mito Forjado na. velmente Solidário com uma concepção autoritária e irracionalista
Inquisição,“ Rumo a Verdade Processual - do processo penal.
.. . Deãsarte, há que se des- cobrir a origem e a finalidade do mito da
Quando se' aborda a fundamentação das decisões judiciais, em verdade real: nasce na inquisição e, a partir dai, é usada para justificar
última análise, estã—se discutindo também “que verdade" foi buscada os atos abusivos do Estado, na mesma lógica de que "os fins jutificam
e aicançada' no ato decisório. Eis aqui a relevância de desconstruir o os meios".
mito da verdade real, na medida em que é uma artimanha engendrada ,,Assim, no processo penal, só se legitimaria a verdade formal ou pro-
nos meandros da inquisição para justificar o substancialismo penal e o ..cessuai.
decisionismo processual (utilitarismo), típicos do sistema inquisitório. . Trata-se de uma verdade perseguida pelo modelo formalista como
Historicamente,553 está demonstrado empiricamente que o pro— fundamento de uma condenação e que só pode ser alcançada median—
cesso penal, sempre que buscou uma "verdade mais material e consis-
“1:53 CJ.-respeito das regras precisas e relativas aos fatos e circunstâncias
tente" a com menos limites na atividade de busca, produziu uma “ver— considerados como penalmente relevantes.
dade" de menor qualidade e com pior trato para o imputado. Esse pro—
cesso, que não conhecia a idéia de limites — admitindo inclusive & tor-
Relevante é a distinção entre a "verdade" construida no processo
tura — levou mais gente a confessar não só delitos não cometidos, mas 'e fiXada pelo juiz na sentença e a verdade científica ou histórica. A pri—
também alguns impossiveis de serem realizados. meira tem o juiz como investigador exclusivo,571 ao passo que as
O mito da verdade real está intimamente relacionado com a estru— demais, não. A competência para investigar esse fato histórico e julgar
tura do sistema inquisitório; com o "interesse público" (clausula geral
IEEE) PACELLI DE OLIVEIRA, Eugénio. Curso de Processo Penal, 13.325.
570 FERRAJOLI. Luigi. Derechoyrazón, pp. 446 ss.
568 IBÁNEZ, Perfecto Andrés. Garantjsmo yproceso penal, p. 53. 571 FERRAJDLI. Luigi. DerechoyBazón, p. 57.

272 2.73
Aury Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

está fixada em lei, como exclusividade, para o juiz. Logo, uma vez processual jurídica. A primeira é uma verdade histórica, porque referen-
alcançada essa decisão pela coisa julgada, será em regra imutável.5er te a fatos passados. J a a verdade processual jurídica é classiãcatóría,
Isso é grave, principalmente quando em prejuízo do imputado. Se pois diz respeito à qualificação jurídica dos fatos passados a partir do
na ciência toda teoria tem prazo de validade, sendo verdadeira apenas rol de opções que as categorias jurídicas oferecem.
até que outra demonstre sua falsidade, no Direito o fenômeno é diver—
“ ““Essa distinção e relevante para definir como se dará a verificabili—
so e os prejuízos, irreparáveis. Daí a importância de um sistema de
garantias que diminua ao máximo o risco de uma sentença injusta, bem dade" dessas proposições. Os fatos passados não são passíveis de
como possibilita um eficaz sistema de controle recursal. experiência direta, senão verificados a partir de suas consequências,
Como explica FERRAJOLI,573 & verdade processual não pretende Ide-seus efeitos. Trata-se de interpretar os signos do passado, deixados
ser a verdade. Não é obtida mediante indagações inquisitivas alheias nop-rasante. O presente é experimentava]. O passado tem que ser pro-
ao objeto processual, mas sim condicionada em si mesma pelo respei- vado. Nessa atividade, o juiz assemelha-se ao historiador, de modo que
to aos procedimentos e garantias da defesa. A verdade formal é mais após um raciocínio indutivo chegará a uma conclusão que tem o valor
controlada quanto ao método de aquisição e mais reduzida quanto ao da hipótese provavel (probabilidade).
conteúdo informativo que qualquer hipotética verdade substancial. Já a verdade processual juridica está relacionada com a subsun-
Essa limitação se manifesta em 4 sentidos: ção do fato à norma, um procedimento classificatório. A lógica aqui e
dedutiva, o conhecido silogismo que se realiza na sentença. Claro que
1 —- a tese acusatõria deve estar formulada segundo e conforme não se trata de mera adequação do fato à norma. Permeia essa ativida—
a norma; de uma série de variáveis de natureza axiológica, inerentes à subjetivi—
II — a acusação deve estar corroborada pela prova colhida atra— dade especifica do ato decisório, até porque toda reconstrução de um
vés de técnicas normativamente preestabelecidas; fato histórico esta eivada de contaminação, decorrente da própria ati-
III — deve ser sempre uma verdade passível de prova e oposição;
IV — a dúvida, falta de acusação ou de provas ritualmente forma- vidade seletiva desenvolvida. Sobre o tema, remetemos o leitor ao sub-
das impõem a prevalência da presunção de inocência e atri— título Inv'alidade Substancíal da Norma: quando o juiz se põe a pensar e
buição de falsidade formal ou processual às hipóteses acusa— sentir, onde analisamos algumas dessas variáveis.
terias. '. ,. Em suma, a verdade real é impossivel de ser obtida. Não só por-
que'a verdade é excessiva (como se verá a continuação), senão porque
O valor do formalismo está em presidir normativamente a indaga- constitui um gravíssimo erro falar em "real" quando estamos diante de
ção judicial, protegendo a liberdade dos indivíduos contra a introdução um fato passado, histórico. É o absurdo de equiparar o real ao imaginá-
de verdades substancialmente arbitrárias ou incontroláveis. FERRAJO- rio. O real só existe no presente. O crime é um fato passado, reconstrui-
LI574 vai definir a verdade processual como uma verdade aproxímativa, do no presente, logo, no campo da memória, do imaginário. A única
aquela limitada "por lo que sabemos", e, portanto, sempre contingen- coisa que ele não possui, e um dado de realidade.
te e relativa. Diferencia o autor a verdade processual fática da verdade
d) Desvelando 0 “Mito da Verdade" no Processo Penal.
572 Não desconhecemos a possibilidade da revisão criminal, senão que somos bastante céti- Rumo à Assunção da Sentença como Ato de
cos em relação a sua eficácia real. na medida em que seu cabimento é restrito aos casos . Çonvencimento (de Crença)
previstos no art. 621 do CPP! Ademais, na prática, é bastante dificil obter êxito nesse tipo
de ação desconstitutiva, em virtude das limitações procedimentais, e, principalmente,
da imensa resistência por parte dos Tribunais. Isso tudo sem falar no famigerado in dubio Até as edições anteriores, nos conformamos em desconstruir a
pro sociotate, absolutamente despido de suporte constitucional.
573 Idem, ibidem. Vardade real, o que não se reve1a(va) nada dificil, apontando para a ver-
574 Derecho yrazõn, p. 50. dade processual como viável e legítima.
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucionai)

Antes de expormos nossa posição, cumpre explicar que existem, piensen, aunque en realidad eso no suceda y quizás precisa—
em síntese, três grandes linhas na discussão sobre a verdade e a fun- mente porque en realidad eso no sucede". Nessa linha, reali-
ção da prova no processo. Partindo de TARUFFO,575 vejamos: zadas algumas adequações em relação ao reducionismo do
ritual, e o nosso pensamento, que vai complementado (eis que
a) A primeira posicão sustenta que as provas são uma espécie compativel) pela segunda concepção.
de nonsense, ou algo que na realidade não existe e tampouco ' ia) A segunda concepção situa a prova no terreno da semiótica575
são um meio para determinar a verdade dos fatos. É assim . e das narrativas do processo. A premissa fundamental é que o
para todos os que pensam ser epistemologicamente, ideologi- processo e uma situação (situação jurídica — Goldschmidt) na
camente ou por outros fatores impossivel considerar que a qual se desenvolvem diálogos e se narram fatos. Essas narra-
verdade dos fatos e realmente estabelecida no processo de , tivas e diálogos (melhor, discursos) têm relevância desde sua
um modo racional. Numa concepção irracionalista da decisão estrutura semiótica e linguistica, não sendo relevante a rela-
judicial, não é possivel atribuir qualquer significado 'a prova ção entre narrativa e realidade empírica. Não existe uma
dos fatos. O mesmo suscede no âmbito das ideologias, para determinação de veracidade, ou melhor, não é a verdade ele-
quem o processo não pode e não deve orientar-se pela deter- mento fundante. Cada prova e tomada como um fragmento da
minação da verdade. Por fim, assim também pensam os que história (o autor emprega a palavra story), um pedaço da nar—
consideram que o processo não é um instrumento idôneo para rativa, interessando pela dimensão linguistica e semiótica do
alcançar—se a verdade, diante do seu excesso epistêmico. processo como uma das tantas ocorrências do debate. As pro-
Nessa linha, a "verdade" dos fatos passa a ser irrelevante, ou, vas são utilizadas pelas partes para dar suporte a story of the
ao menos, contingencial para o processo. No âmbito dessas case, que cada advogado propõe ao juiz. A decisão final é a
teorias, surgem algumas vezes a idéia de que a prova tem adoção de uma ou outra das narrativas. Fica excluída qual-
uma “função ritual". Em síntese, as provas não serviriam para quer referência a veracidade das teses. É, em síntese, uma
determinar os fatos, mas seus procedimentos (como a cross— funcão persuasiva da prova (criticada pelo autor por uma
examination) constituiriam ritos destinados a reforçar na cpi— suposta vagueza e incerteza de conceitos e limites). Nessa
nião pública o convencimento de que o sistema processual dimensão dialógico—narrativa a única função que pode ser
implementa e respeita valores positivos como a igualdade de imputada à prova e a de avalizar a narrativa desenvolvida por
armas, a correção do litígio e a vitória de quem tem razão. um dos personagens do diálogo, tornando-a idônea para ser
Assim, a prova e seus respectivos procedimentos de obtenção assumida como própria por outro personagem, o juiz. Taruffo,
seriam meios, não orientados aos fins racionais internos ao por pensar desde a razão moderna (clássico racionalismo juri—
processo, mas sim para dar aparência de legitimidade racio— dico), não admite essa corrente. Elementar que, superado o
nal a um mecanismo teatral (na verdade, ritual), cuja função paradigma cartesiano, assumida a subjetividade e o caráter
seria dissimular a realidade irracional e, muitas vezes, injusta (inegável) de ritual do processo judicial, compreende—se que o
das decisões judiciais. Destaque—se que Taruffo, ao rechaçar processo penal, principalmente o acusatório, é uma estrutura
essa posição, distorce alguns conceitos e faz um maniqueismo de discursos. E o que o juiz faz, ao final, é exatamente a elei-
com o qual não concordamos. Mas a essência está correta. É ção dos significados de cada um deles para construção do seu
acertadissirna & afirmação final de que “en ese sentido, las (sentença). Dai porque, nossa posição situa-se na coexistência
pruebas servirian para hacer creer que el proceso determina dessas duas correntes.
la verdad de los hechos, porque es útil que los Ciudadanos lo
——__—,__
576 SlntetlcamEnte, a semiótica ocupa-se do estudo dos símbolos e sinais usados na como-
575 O que segue é um resumo de Michele 'I'aruffo, La Prueba de los Hechos, pp. 80-87. nicaçâo.
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentaiidade Constitucional)

c) A terceira posicao e o clássico discurso racionalista, que defen— "substituição por outra categoria igualmente excessiva: certeza. Com o
de a possibilidade de determinar a verdade no curso do pro— atual nível de evolução da ciência, especialmente da fisica quântica,
cesso. Claro que seus adeptos se apressam em "relativizar" a operou—se o "fim das certezas", como definiu PRIGOGINE. É chegado o
verdade, buscando abrigo na autista categoria de verdade momento de o Direito reconhecer que a incerteza está tão arraigada
"judicial" (ou processual). e acabam caindo no lugar comum. nas'diferentes dimensões da vida (recorde-se o que explicamos sobre o
Taruffo afirma que "o termo provas faz referência sinteticamen— risco no Capítulo I) que a discussão superou há muito o nivel da "cer—
te ao conjunto de meios através dos quais, aquela reconstrução te'za'" para situar-se na "probabilidade", com forte tendência de rumar
(dos fatos) é elaborada, verificada e confirmada como verda- para a “possibilidade", ou ainda, "propensões". Contudo, não é nesse
deira". Defende existir um nexo instrumental entre prova e ver- cainpo que opera o processo penal.
dade dos fatos, constituindo nisso a base da concepção juridi- ' Nossa posição vai com CARNELUTTI até o abandono da verdade.
ca tradicional da prova. Para tentar salvar a "verdade judicial" Dali em diante, ele segue com a "certeza", categoria igualmente insa-
afirma que ela pode ter diferentes versões (sem deixar de ser tisfatória, e nos propomos um giro no pensamento jurídico—processual.
' verdade!?) em função da variação dos sistemas processuais e . . Retomemos a discussão no momento do abandono da verdade
das opções epistemológicas. Em outro momento, confessa que para-“construir nossa posição, bem como demonstrar a relação dela com
só essa concepção é capaz de confirmar a ideologia legal-racio— :a'Construção dos modelos processuais inquisitório e acusatório.
nal da decisão judicial (opção dele). O maior inconveniente " Devemos considerar que o processo penal tem por finalidade — atra-
dessa posição é que, estruturada desde o racionalismo moder— vés da prova — fazer a reconstituição de um fato histórico (crime) e que a
no, não consegue descolar—se da noção de verdade para justi- reconstrução de um fato histórico é sempre mímmalista e imperfeita.
ficar a função da prova no processo. “Não se trata de construir, mas de mconstruir um fato passado no
presente. Ora, basta isso para afirmar que não exite um dado de reali-
Feita essa distinção, pensamos que é o momento de, retomando dade, para falar em verdade (muito menos real). É o absurdo de equipa-
CARNELUTTI (apenas como ponto de partida), demonstrar que mesmo rar- o real ao imaginário, esquecendo que o passado só existe no irnagi—
a verdade processual e igualmente inadequada. Com razão CARNE- nário, na memória, e que. por isso, jamais será real. Sem falar que a ile-
LUTTI quando dizia (já em 1925) ser estéril a discussão a respeito de cha do tempo é irreversível, de modo que o que foi real, num fugaz pre-
viger a verdade real (material) ou a verdade processual (formal). 0 pro- sente, nunca mais voltará a sê-lo (sempre necessaria a leitura, aqui, de
blema é a “verdade". Para o autor, inspirado em HEIDEGGER, a verda— COMTE SPONVILLE).
de é inalcançável, até porque a verdade está no todo, não na parte; e o É preciso entender, como aponta JACINTO COUTINHO,579 que
todo é demais para nós.577 Além de inalcançável, tampouco existem falar em processo é, antes de tudo, falar de atividade recognitíva de um
verdades absolutas, como a propria ciência encarregou—se de demons-
Juiz ”que não sabe, mas que precisa saber Por isso se diz que o juiz e
trar, pois todo o saber é datado e tem prazo de validade (Einstein). Uma
um ignorante, pois ele ignora os fatos e necessita de alguém que tenha
teoria só vale até que outra venha para nega—Ia. Logo, a verdade está
no todo e o todo e excessivo, jamais pode ser alcançado pelo homem?“ “conhecimento do ocorrido (cognitio) para lhe permitir a re cognitio. É
Então, propõe CARNELUI'TI o abandono da noção de verdade e .Com certeza, uma cognição bastante contaminada.
sua substituição por certeza (juridica). Mas isso resulta numa mera A título de ilustração, pensemos na prova testemunhal (mas pode—
na ser qualquer outra), principal meio de prova utilizado no processo
penal brasileiro, graças a pobreza dos meios técnicos e a práxis policial.
577 CARNELU'E'TI apud COUTINHO, Jacinto. "Glosas ao Verdade, Dúvida e Certeza, de
Francesco Carnelutti, para os operadores do Direito". in Anuario Ibero-Americano de ———_
Direitos Humanos, 13. 175. 579 COUTINHO, Jacinto. "Glosas ao Verdade, Dúvida e Certeza, de Frªncesco Carneiutti para
578 Idem, ibidem. os operadores do Direito", in Anuário Ibero -mnedcano de Direitos Humanos, pp 175 e ss.
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

Se imaginarmos a testemunha como o pintor, encontramos em emluta com os fatos. Aparece então a negação do fato real. Os aconte-
MERLEAU—PONTY550 a lição magistral de que faltam ao olho condições cimentos não são apreendidos, uma vez que as imagens não se fixam,
de ver o mundo e faltam ao quadro condições de representar o mundo. eacapam pela fluidez da velocidade".
Isso porque, ensina o autor, a idéia de uma pintura universal, de Em. suma. sob qualquer ângulo que se analise a questão, o que se
uma totalização da pintura, de uma pintura inteiramente realizada, e , .,:vê.:é-urnlabirir1to de subjetividade e contaminações que não permite
destituída de sentido. Ainda que durasse milhões de anos, para os pin— fàl'ar;se. que a sentenca e a revelacâo da "verdade" (nem real, nem pro—
tores, o mundo, se permanecer mundo, ainda estará por pintar, findará cessual,'pois o problema está na "verdade").
sem ter sido acabado. "Então, pouca dúvida temos de que a verdade contém um excesso
Ademais, a verticalidade do homem o impede de conhecer & tota- e;; istêmic'm, principalmente para o processo (melhor, para o ritual judi—
lidade, pois “o mundo está em torno do homem e não diante dele". ciário). Quando se argumenta que existe uma "verdade" da acusação,
Existe uma historicidade surda, que avança no labirinto, por desvios, outra da defesa e, por fim, outra que brota da sentença, questiona-se:
transgressões, usurpação e pressões súbitas, que impedem o pintor (e quantas "verdades" contrapostas podem conviver legitimamente no
a testemunha) de retratar. processo penal? E, mais, como admitir que a sentença seja uma “outra"
Isso não significa — explica MERLEAU—PONTY —— que o pintor não verdade?. Em suma, é verdade demais] Ou de menos, se pensarmos
saiba o que quer, mas sim que ele esta aquém das metas e dos que, quando “tudo" é verdade, nada e verdade...
meios...ate pela impossibilidade de apreensão do todo (e a verdade é o Existe uma insuperável incompatibilidade entre verdade e o para-
todo, recordando CARNELUTTI).
O crime é história, passado e, como tal, depende da memória de _ dexo temporal insito ao ritual judiciário, em que um juiz no presente
“julga um fato do passado, gerando efeitos para o futuro. O crime sem-
quem narra. A fantasia/criação faz com que o narrador preencha os pre,:é passado, logo, história. fantasia, imaginação. Depende, acima de
espaços em branco deixados na memória com as experiências verda— tudo, da memoria. Logo, existe um obstáculo temporal insuperável
deiras, mas decorrentes de outros acontecimentos. A imaginação ' para a tal verdade: o fato de o crime ser sempre passado e depender, a
colore a memória com outros residuos. É o clássico exemplo do cubo:
presentificação dos signos do passado, da memória, da fantasia e da
podemos ver duas, no máximo três faces. O cubo só é real no imagi— imaginação.
nário,551 pois somente assim se conhece as 6 faces. Não há dúvida de . , Além disso, o juiz no processo penal tem uma atividade similar à
que a imaginação não forma imagens, mas deforma as cópias prag- do historiador, de modo que ele elimina dados (consciente ou incons-
máticas fornecidas pela percepção. Isso sem considerar a intenção
de deturpar, pois parte da premissa da ”boa testemunha", o que é cientemente), conserva outros (o que nos conduz a questionar: por que
uma ilusão. esses elementos são selecionados?) e também tem de conviver com
Influi, ainda a título de exemplificação, & verticalidade do homem, uma infinidade de elementos faticos que lhe são subtraídos, quer pelas
que, como animal vertical, tem extrema dificuldade na percepção do partes- (pois é elementar que elas tragam para o processo a “parte" da
horizontal. historia do delito que lhes interessa, algo similar ao antigo conceito de
Como não poderia deixar de ser, o binômio tempo/velocidade de— kde parcial de GARNELUTTI), quer pela própria complexidade (que
sempenha um relevante papel. Não só pela memória que se perde com não permite a apreensão do "todo"). E tudo isso e feito dentro do ritu-
o passar do tempo, mas também porque — explica RUTH GAUERªªª2 —— al judiciario, com seus limites e deformações.
"os acontecimentos desvanecem-se, perdem-se, pois já não há idéias , A verdade na sentença é um mito, enquanto revelação sagrada.
Dan e importância da compreensão do ritual judiciario, com sua arqui-
ÉEtura eivada de estátuas, e toga, o latim, a confissão atenuando a
580 O Ollie e o Espírito, Rio de Janeiro, Grifo, 1955. porta, etc. Ou seja, o ritual (e o seu caráter sacral) reforça a presentifi—
551 Sobre o tema: DURAN, Gilbert. As estruturas do imaginário: uma introdução à arquatipo- ca o mito e, sublinha-se, através dele, o juiz passa a fazer parte do mito
logia geral. São Paulo, Martins Fontes, 1997.
582 GAUÉR, Ruth. "Falar em Tempo, viver o tempol". in Tampo/História, p. 26. (Corno alguém capaz de ser o portador da revelação).

281
Aury Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentaiidade Constitucional)

É importante compreenderªªª3 que o rito (e o ritual judiciário) pre- :];5- A“ luz de tudo isso, defendemos uma postura cética em relação à
sentifica e reforça o mito (da verdade). O mitoªªª1 fundante do processo “verdade no processo penal. Mais, negamos completamente a obtenção
(notoriamente o inquisitório) é a verdade, logo, isso estrutura um ritual da'verdade como função do processo ou adjetivo da sentença. Não há
e um procedimento que dê conta dessa função. Não sem razão, vem -mais como pretender justificar o injustificável nem mesmo porque acei-
todo o simbólico do sagrado no ritual judiciário (arquitetura dos tribu- tar o argumento de que, ainda que não alcançável, a verdade deve ser
nais, a toga, o latim, a confissão, os juramentos, etc.) para reforçar a umhorizonte utópico...
crença de que a verdade é uma revelação sagrada. Nesse contexto, é O penta-chave é negar a "verdade" como possibilidade ou, mais
necessario dotar o juiz de poderes instrutorios para que ele possa "ir importante ainda, como função do processo (até para fugir da armadi-
atrás" de tudo aquilo que possa conduzir a revelação da sagrada ver— lha do sistema inquistório, fundado na busca da verdade). É uma inge-
dade. Como conseqiíiêncía, funda-se, em nome da verdade, um proces— nuidade que reflete a crença na onipotência do conhecimento juridico
so penal inquisitório, com todos os graves inconvenientes que aponta- moderno. A equação, até então, é(era): razão moderna + juiz + ritual
mos anteriormente quando explicamos os sistemas processuais. judiciário = mito da verdade. E o mito fundador da sentença e até do
processo (inquisitório) e a verdade. Dai porque, desvelar e preciso,
No processo inquisitorio (antítese do acusatório), reforça—se o mito
inclusive para, liberto da verdade, caminhar em direção ao processo
da verdade (notoriamente a real) e estrutura-se um procedimento que penal-acusatório e democrático.
dá ao juiz a gestão da prova, para ele atuar ativamente na busca da Não se pode mais admitir que o processo penal sirva para "fazer
prova, em nome de uma (pseudo)verdade. Logo, deixa de ser um pro— crer" » as pessoas — que ele determina a "verdade" dos fatos. Isso sem-
cedimento em contraditório (FAZZALARI). pre serviu para legitimar o poder e buscar uma proteção para a razão
No sistema acusatório, a verdade não é fundante (e não deve ser), moderna, bem como reforçar o papel divino do juiz (boca da lei). Isso
pois a luta pela captura psíquica do juiz, pelo convencimento do julga- era (e continua sendo) útil, porque é útil que os cidadãos assim o pen—
dor, e das partes, sem que ele tenha a missão de revelar uma verdade. sem, ainda que na realidade isso não suceda e quiçá precisamente por—
Logo, com muito mais facilidade o processo acusatório assume a sen— que. na realidade essa tal verdade não possa ser obtida, é que se neces-
tença como ato de crença, de convencimento, a partir da atividade pro— sita de reforçar a crença.585 Ou seja, a verdade no processo penal e ina—
batória das partes dirigida ao juiz. Essa luta de discursos para conven- cessível, mas, conscientes disso, (eles)monta_m uma estrutura que pra—
cer o juiz marca a diferença do acusatório com o processo inquisitório. cisa legitimar a submissão ao poder, através da afirmação de que a
sentença e o juiz são portadores da revelação do sagrado (verdade).
Esse é o engenho que não podemos mais tolerar, pois também é pen-
583 E aqui registramos o reconhecimento e agradecimento a FABRICIO DREYER DE ÁVILA sado para negar a subjetividade e todos os diversos fatores psicológi-
POZZEBDN. em cuja excepcional tese de Doutorado intitulada "Reflexos da Crise do cos que afetam o ato de julgar, persistindo no mundo onirico de um juiz
Conhecimento Moderno na Jurisdição: Fundamentos de Motivação Compartilhada no fora-do-mundo, neutro, boca da lei, etc.
Processo Penal" (Pontifícia Universidade Catoiica do Rio Grande do Sui, 2005) buscamos
inspiração e valiosas iiçoes para esse tópico. A 'Dase, quando publicada, será imprescin-
Então, se a sentença não é — necessariamente «— reveladora da ver—
dível para aqueles que queiram compreender a crise da razão moderna, prasssuposto dade, ela é o quê?
básico para a discussão da problemática "verdade processual" aqui trabalhada e a supe- Um ato de crença, de fé. Se isso coincidir com a “verdade", muito
ração do senso comum teorico dos juristas. bem. Importa e considerar que a "verdade" é contingencial, e não fun—
584 Nos limites de um livro de "introdução ao processo penal", não há como aprofundar no
estudo da antropologia. de modo que remetemos o leitor para outras obras que poderão dante. O juiz, na sentença, constrói a "sua" história do delito, elegen-
introduzi-lo no estudo do mito e do rito: LEVI-STRAUSS, Claude. Mito e significado. Lis- do os significados que lhe parecem válidos, dando uma demonstração
boa, edições 70, 1987. LEVI-STRAUSS. Claude. Mito e Linguagem Social. Rio de Janeiro.
Tiempo brasileiro, 1970. ELLADE. Mircea. Mito e Realidade. São Paulo, Perspectiva, 2002.
BAR'I'I-IES, Roland. Mitologias. São Paulo. Difel, 1980. PAZ. Otávio. Cia ude Lévi-Strauss ou
o novo festim de Esopo. São Paulo. Perspectiva, 1977. SEGALEN, Martine. Ritos e Rituais 585 'I'ii'LRUFO, Michele. Las Pmebas de los Hechos, p. 81. A posição é citada pelo autor. mas
Contemporâneos. FGV, 2002. TURNER, Victor W. 0 Processo Ritual. Vozes. Petrópolis, nao compartilhada por eis, que se perfila entre aqueles que (ainda) acreditam na possi-
1974. bilidade de ser alcançada a verdade no processo.

282 283
Aury Lopes J :. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instmmentalidade Constitucional)

inequívoca de crença, de fé. O resultado final não é (e não precisa ser) (crença) e na própria axiologia, incluindo a carga ideológica, que faz da
a "verdade", mas sim o resultado do seu convencimento. Com a costu— norma (penal ou processual penal) aplicável ao caso.
meira precisão de suas lições, ARAGONESES A]”..ONSOªªE nos ensina .Em suma, o processo penal tem uma finalidade retrospectiva,
que o conceito de prova está vinculado ao de atividade encaminhada a ,; onde através das provas, pretende— se criar condições para a atividade
conseguir o convencimento psicológico juiz. . ;eçognitíva do juiz acerca de um fato passado. As partes buscam sua
O determinante é convencer o juiz. É assim que funciona o siste- captura psíquica (para mente—Io em crença), sendo que o saber decor-
ma acusatório que, liberto da verdade, não permite que o juiz tenha ati— rente do conhecimento desse fato legitimará o poder contido na sen—
vidade probatória (recordamos o que já foi dito sobre os sistemas pro— tenga. Ou seja, o poder do juiz não precisa da' verdade" para se legiti-
cessuais). mar, até porque, sendo ela impossivel de ser obtida no processo, teria—
Na instrução, as provas nela colhidas são fundamentais para a mos de assumir que o poder e ilegítimo Logo, diante do excesso epis-
seleção e eleição das hipóteses históricas aventadas.5ª7 As provas são têrnico da “verdade", importa é o convencimento, formado a partir do
os materiais que permitem a reconstrução histórica e sobre os quais qne esta e ingressou legalmente no processo (significa dizer, com estri—
recai a tarefa de verificação das hipóteses, com a finalidade de conven- ta observância das regras do due process of law, vedando—se, por pri—
cer o juiz (função persuasiva).SBB mário, as.-provas ilícitas contra o réu e coisas do gênero), regido pelo
Nesse mister persuasivo, CORDEIRO aponta para uma palavra— sistema-eeusatório, devidamente evidenciado pela motivação da sen-
chave: fé. Os locutores pretendem ser acreditados e tudo o que dizem tença (para permitir o controle pela via recursal).
tem valor enquanto os destinatários crerem. Os resultados dependem Para finalizar essa questão da verdade, nada melhor que CARLOS
de variáveis relacionadas aos aspectos subjetivos e emocionais do ato DRUMMOND DE ANDRADE: 591
de julgar (crer = fé),
As provas desempenham uma função ritual na medida em que , :“ A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar
inseridas e chamadas a desempenhar um papel de destaque na com- . meia pessoa de cada vez.
plexidade do ritual judiciário criando "atrativos para tentar uma captu- Assim não era possível atingir toda a verdade,
ra psiquica" (CORDERO)559 de quem está declarando (e também dar porque a meia pessoa que entrava
maior credibilidade(fé) para quem julga). só trazia o perfil de meia verdade.
Disso decorre a importância de outro termo que dela é insepará— E a segunda metade
vel: sentíre. Como explicaremos nos próximos tópicos, 0 papel do sen— voltava igualmente com meio perfil.
timento do juiz é fundamental e isso fica evidenciado até pela etimolo- , E os meios perfis não coincidiam.
gia da palavra “sentença", que vem de "sententia", que, por sua vez, “Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
vem de “sententiando”, gerúndio do verbo "sentire", ensejando a idéia Chegaram ao lugar luminoso
de que, por meio dela, o juiz experimente uma emoção, uma intuição onde a verdade esplendia seus fogos.
emocional. Mais do que isso, ele sente e declara o que senteªºiº Era dividida em metades
É inafastável que o juiz "eleja" versões (entre os elementos fáticos ., , diferentes uma da outra.
apresentados) e o significado (justo) da norma. Esse eleger é inerente ' Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
ao "sentire" por parte do julgador e se expressa na valoração da prova Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
586 ARAGDNESES ALONSO, Pedro. Instituciones de Derecho Process] Penal, p. 251.
587 CDRDERO, Franco. Procedimienro Penal, vol. 2, p. 3,
588 TARUFO, Michele. La prueba de los hechos, p. 83. EET—"—
585 CGRDERO, Franco. Procedimiento Penal, vol. 2, p.'l'l. ., 1 DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. "Verdade". In: Corpo — Novos Poemas. Editora
Record.
590 BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos Retóricos de Sentença Penal, 13. 7.

255
Aury Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da instrumentaiidade Constitucional)

e) Livre(? ) Convencimento Motivado " '. ' 'sentíre do julgador. Mas isso não significa pactuar com juízos morais e
" de notado cunho discriminatório Por evidente isso não impede que ele
O livre convencimento motivado ou persuasão racional e um . faça um juízo moral e construa unia blindagem argumentativa. até por-
importante principio a sustentar a garantia da fundamentação das que -o processo é uma estrutura de discursos. Mas pelo menos que
decisões judiciais, estando previsto no art. 157 do CPP. Queremos ape— '- .“ construa uma argumentação juridicamente legitima. A fundamentação
nas destacar o alcance dessa "liberdade" de convencimento que o juiz , dasdecisões, a partir dos fatos provados (cognoscitivisrno) refutãveis e
possui. - 'de-“argumentos jurídicos válidos e um limitador (ainda que não imuniza-
Ela se refere a não-submissão do juiz a interesses políticos, econô- dqr).tdos:juizos morais. Esse é um espaço impróprio da subjetividade
micos ou mesmo a vontade da maioria. Como já explicamos, a legitimi— quer?:Ele'ª estará presente (não existe juiz neutro), mas que o sistema
dade do juiz não decorre do consenso, tampouco da democracia formal, de garantias deve buscar, constantemente. desvelar e limitar.
senão do aspecto substancial da democracia, que o legitima enquanto . f .Mas não nos iludimos. Não há como fechar os olhos para o fato de
guardião da eficácia do sistema de garantias da Constituição na tutela “que-basta uma boa retórica para mascarar a sentença e disfarçar o que
do débil submetido ao processo. realmente ocorreu: o primado do juízo moralista sobre as provas e fatos
Tambem decorre da própria ausência de um sistema de prova tari— do. processo.
fada. de modo que todas as provas são relativas, nenhuma delas tem . Eis aqui mais um argumento em prol da necessária preocupação
maior prestígio ou valor que as outras, nem mesmo as provas técnicas com a máxima eficácia do sistema de garantias, pois somente através
(a experiência já demonstrou que se deve ter cuidado com o endeusa— . dele poderemos alcançar um grau minimo de controle desses espaços
mento da tecnologia e da própria ciência). . impróprios da subjetividade do julgador.
Contudo, em que pese nossa afirmativa anterior de que a decisão ' : “LA,-decisão de um juiz somente é legítima quando calcada na prova
é um ato de crença. não significa — na dimensão juridico-processual — produzida no processo Significa uma limitação ao que esta nos autos e
uma plena liberdade, pois, como aponta LEONE,592 não pode significar . 'que lá tenha regularmente ingressado. Conduz, assim, ao rechaço total
liberdade do juiz para substituir a prova (e, por conseguinte, a critica do substancialismo e também da admissão e valoração da prova ilícita.
valoração dela) por meras conjecturas ou, por mais honesta que seja, Mas não basta estar no processo e necessário que se revista da
sua mera opinião. qualidade de "ato de prova" ou seja aquela colhida na fase proces-
Ainda que o juiz não esteja vinculado ou adstrito a vontade da sua], com plena observância do principio da jurisdicionalidade. Isso
maioria. tampouco deve—se avalizar uma decisão que reflita "somente conduz a uma repulsa à possibilidade de o juiz formar sua convicção &
a opinião do juiz" sem qualquer base argumentativa válida593 Daí a partir dos atos de investigação realizados na inquisição do inquérito
necessidade de que a decisão seja fundamentada para ser reconhecida policial
como justa e. por isso, respeitada. . Alem de ser colhido na frente do juiz, a coleta da prova deve ter
Igualmente, não significa que o juiz possa substituir a prova em . observado as garantias do contraditório e da ampla defesa sob pena
sentido juridico pela prova em sentido moral. Tal questão é sumamente
relevante e diz respeito à interioridade não—controlável do julgador.594 ' . 519 nulidade e portanto imprestabilidade motivacional.
Sempre destacamos a importância do resgate (e des-cobrimento) da Quando se fala em respeito ao direito de defesa significa que a
subjetividade e a assunção da sentença enquanto ato de eleição e de . S::faacçegsegrã se bafsear em prova válida e refutãvel a qual a defesa
, tãf Nãoa se
. ge exçm surefutação.
efetiva iciente' qualidade
mas simde tempo" para conhecer e refu-
sua possibilidade.
592 LEONE, Giovanni. Tratado de Derecho Process! Penal. Vol. EI, p. ”157.
593 LEONE. Giovanni. Tratado de Derecho Procesai Penal. Vol. IE. p. 158. peÍtDitíeImearijso ªrrªiá? a Zlotivação do juiz encontra limitação no res-
594 A temática é muito relevante para a compreensão desse princípio. tendo sido abordada decidir cºntra O réu & Zªirectleegere, ríila medida em que o juiz não pode
anteriormente. no ponto intitulado "A toga e a figura humana do julgador no ritual judi-
ciário: da dependência a patologia". sua cmpabmdadeuºatribuir
p seu aqualquer
encio. ou sejade
espécie não pode (desvalor)
prejuízo presumir
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

pelo exercício do direito de silêncio e de não produzir prova contra si Tampouco pode deixar-se seduzir pela “ sua" experiência de vida,
mesmo. Esse é um importante limite ao ato decisório. ”rechaçadº de imediato aquilo que não encaixa nas “suas" categorias.
O juiz deve, ainda, conformar-se com a atividade probatória das Mas,- acima de tudo, deve duvidar, sempre e sempre, principal—
partes. Como explicado anteriormente (na abordagem dos sistemas 'me" tefde'suas mais arraigadas convicções.597 Como diria CARNELUT—
inquisitório e acusatório), o juiz deve manter sua posição de especta— 1 Abril:: juiz que não duvidei!
dor, de alheamento, pois só isso garante sua imparcialidade (e a visibi— , Em? definitivo, o livre convencimento e. na verdade, muito mais
lidade dela), assegura a dialeticidade, a igualdade de oportunidade e : tado” do"'que livre. E assim deve sê-lo, pois se trata de poder e, no
tratamento às partes. Assim, na formação de seu convencimento-, j'o'gc'í democrático do processo, todo poder tende a ser abusivo. Por isso,
jamais deve assumir a posição de juíz—ator, buscando e diligenciando necessita de controle.
de ofício para colher a prova.
Seu convencimento deve ser formado a partir do que lhe é trazido ., irmandade Substancial da Norma: Quando o Juiz se Põe
e não do que ele busca, pois o juiz foi ontologicamente concebido para -- . a Pangear e Sentir
ser um “ignorante, ele ignora os fatos e as provas, e isso é fundamen—
tal para a estrutura do processo acusatório, cabendo às partes trazer— a, (hiiifaliciade Substancial da Norma
lhe a informação e os elementos de convicção. Essa questão, para ser

processuais. '
compreendida, deve ser lida à luz do que dissemos anteriormente
sobre a "garantia da imparcialidade do juiz" e o estudo dos sistemas

A convicção do julgador deve, ainda, respeito ao tempo do proces-


so. Não há que confundir economia processual com economia do seu
. Com o advento da Constituição de 1988, muitos dispositivos do
atual CPP não resistem a necessária passagem pelo filtro constitucio—
' " ::ollu, “para tanto, exigem um considerável esforço de adaptação do
ªfaste- ,
Recordando a lição de BOBBIO,593 com a constitucionalização dos
próprio tempo, ensina LEONE.595 Não pode o juiz atropelar, como vimos direitos-naturais, o tradicional conflito entre o direito positivo e e direi—
anteriormente, a dinâmica da dialeticidade do processo, cabendo a ele atural e entre o positivismo jurídico e o jusnaturalismo perdeu gran—
respeitar o tempo da acusação, da defesa, da prova e da própria matu— eparte do seu significado. O anterior contraste entre a lei positiva e a
ração do ato decisório. ar natural transformou—se em divergência entre o que o direito é e o que
Deve o julgador ter a dúvida (e a paciência de duvidar) como hábi- “O direito deve ser no interior do ordenamento jurídico, ou ainda, nas
to, evitando ao máximo os juízos apriorístícos de ínverossimilitude das
circunstâncias ou fatos alegados. Como sublinha LEONE,595 1a vicia es ___
. 597 Claro que isso é bastante complexo e dificil. Claro que exige um alto grau de maturida-
demasiado variada, demasiado rica en incógnitas, en singularidades y ' de.—de bom senso e até de sofrimento. Mas quem disse que ser julgador e algo fácil? E
hasta en rarezas, para que pueda encerrarseia en esquemas prefabrica- . mais, nao deve, e tampouco queremos, que seja uma atividade simples e mecânica. O jul-
dos a la realidad. gador que decide com extrema facilidade, sem uma boa dose de apreensão e de solªri—
Infªnte,-não serve para ser juiz. Não honra a toga que usa. Numa época em que os aca-
O juiz consciente não se deixa levar pelos juízos imediatos e tam— demicoshde Direito estão sedados pela proliferação dos cursos preparatórios para concur-
pouco pelos julgamentos apriorísticos, no sentido kantiano, de "antes . ,;“qu'ààl'uch-dns com a sedução da toga, enganados pela promessa de bons salários, status
da experiência". Deve experimentar as teses acusatória e defensiva à " tall) ªr. e presiso fazer essa advertenCla. Isso em nada diminui o brilho e a dignidade de
luz da prova trazida, evitando os pré-julgamentos, guardando o ato :. adiªntªva. Todo o oposto. D que buscamos é apenas desvelar o sedutor discurso calca-
: Inomio poder—dinheiro-status, que tanto ilude os acadêmicos, para demonstrar
decisório, de eleição das teses apresentadas, para o momento correto.

s" - . . .
" ªgtgsílàreblioscea: sociedade precisam é de pessoas comprometidas e vocacionadas, dis-
magistratura é Llmcessantemente essas qualidades minimas a que tanto aludimos. A
tenta c [??-a camara extremamente digna, mas para vocacionados. Não se con—
orn esses iludidos , pois o sonho (poder-dmheíro-status) acaba, e o que sobra
595 LEONE, Giovanni. Tratado de Derecho Process] Penal. Vol. II, p. 159. ªº frustraçoes e me qualidade do semço prestado. Disso a sociedade não precisa,
596 LEONE, Giovanni. Tratado de Derecho Process) Penal. Vol. II, p. 159. 598 No prólogo da obra de Ferrajoli, p. 17.

.ORR “mr ”Inn-Rªin *


Aury Lopes .] r. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

palavras de FERRAJOLI, o conflito agora está centrado no binômio efe— são:6once'itos assimétricos e independentes entre si. A vigência
tividade e normatividade, à luz da principiologia constitucional. gustas relação'com a forma dos atos normativos; é uma questão de
Mais do que nunca, o Código de Processo Penal exige uma cons— . âúhãú'nçâo' ou correspondência entre seus atos produtivos e as normas
tante adaptação e necessárias correções para que seus dispositivos q-ªúe'ºre'guíªm sua formação (legalidade do aspecto formal do processo
possam ser aplicados. Nessa tarefa, é crucial o papel do Poder
Judiciário. O juiz passa a assumir uma relevante função de garantidor, le eletivo) : '
' A validade refere- se ao seu significado, é uma questão de coerên-
que não pode ficar inerte ante violações ou ameaças de lesão aos direi— -= cia ou compatibilidade das normas produzidas com as de caráter subs—
tos fundamentais constitucionalmente consagrados, como no superado ' tancial sobre sua produção.
modelo positivista. ' “FERRÁJOLIEW identifica duas classes de normas sobre a produ-
Nessa tarefa, o juiz não pode confundir vigência com validade, pois ção juridica:
só assim poderá identificar a substancial invalidade de uma determi— Formais: condicionam a validade e também dão a dimensão formal
nada lei processual, que não sobreviveu ao filtro constitucional (de vali- da; “democracia política, pois se referem ao “quem" e se "como" das
dade) decisões São garantidas pelas normas que disciplinam as formas das
Ensina FERRAJOLIªºª que o grande erro está em identificar os pla-
nos da existência (vigência) com o da validade. A simples vigência de decisões, assegurando com elas a expressão da vontade da maioria.

grave equivoco. '


: º '“ Dimensão material: refere— se a democracia substancial, posto que
uma norma, na dogmática tradicional, conduz a validade e isso é um : relamonada ao “"que não se pode decidir, ou deva ser decidido por
Devemos analisar a validade sob dois aspectos: formal e substan-
,. qualquer maioria, e está garantida pelas normas substanciais, que
: regulam a substância e o significado das mesmas decisões, vinculan-
cial. As normas substanciais dizem respeito ao significado, a própria
substância do direito. Aqui entram os principios, como fator limitador e ' =[ (1 ' 5, sob pena de invalidade, ao respeito aos direitos fundamentais e
vinculante da atividade legislativa. Assim, uma norma que viola o prin— ais princípios axiológicos estabelecidos pela Constituição.
cipio da igualdade ou da proporcionalídade, mg., por mais que tenha Os direitos fundamentais configuram vínculos negativos, gerados
validade formal ou vigência (existência), pode ser inválida e, como tal, 5 direitos de liberdade, que nenhuma maioria pode violar, e os vin—
suscetível de anulação, por confrontar uma norma substancial sobre s:: positivos, gerados pelos direitos sociais, que nenhuma maioria
sua produção. das. deixar de satisfazer. Os direitos fundamentais são garantidos
Como explica FERRAJOLI,500 a existência de normas inválidas ' p ra todos e estão fora do campo de disponibilidade do mercado e da
pode ser facilmente compreendida com a mera distinção entre duas politica formando o que FERRAJOLIEGZ classifica como esfera do inde-
dimensões: c1d1ve1 que e do indecidive] que não.
, ,: Com isso, ainda que sumariamente, definimos que a norma pro-
a) regularidade ou legitimidade das normas: que se pode chamar cessual penal ou penal possui uma dimensão formal e outra substan-
de vigência ou existência, dizendo respeito “a forma do ato nor- ,çial,. .A primeira significa a observância do regular processo legislativo
mativo, e depende da conformidade ou correspondência com de,:- sua elaboração e lhe atribui, apenas, a vigência e validade formal.
normas formais sobre sua produção; : : :,: : : No modelo constitucional- -garantista, a validade da norma já não é
13) validade propriamente dita: ou, em se tratando de leis, & um: :dógrna associado a mera existência formal da lei, senão uma quali—
'constitucionalidade", que, ao contrario, tem a ver com seu Slade: contingente de mesma, ligada a coerência de seus significados
significado ou conteúdo, e que depende da coerência com as : com :a Constituição, coerência mais ou menos opinável e sempre reme—
normas substanciais de sua produção. . : tida: a valoração do juiz.

599 Derechosy Garantias — la ley del más débil, p. 21. .“ ggâ Dªfªºhºªy Garantias— la ley de! mas débiL 13.23.
[500 Derechosy Garantias — la ley de] más débil, p. 21. : Derechos-3; Garantias— la ley de.! mas débil, p. 24.

290
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instmmentalidade Constitucionaã)

Interessa-nos, pois, sua dimensão substancial, verificando se ela, erro (entre outros) de matar o caráter antropológico do direito penal,
ainda que existente, possui quando de sua aplicação uma validade ' '. negando ao mesmo tempo a subjetividade e o diferente.
substancial, ou seja, se guarda coerência e estrita observância com os “Compreenda- se que todo saber é datado e possui um prazo de
direitos e garantias fundamentais assegurados na Constituição e na '.Í validade, ensinou EINSTEIN. Com os Códigos e Leis ocorre o mesmo
Convenção Americana de Direitos Humanos. É uma análise muito mais . passeio-manifestações de um saber circunscrito num determinado
abrangente e que supera o mero legalismo É nesse terreno que o juris- espaço-tempo. Portanto, envelhecem e ficam em desacordo. com os
ta e o juiz devem trabalhar. ' ('novos) valores sociais vigentes. Ademais, não há mais eSpaço para o
juiz paleopositivista, boca da lei.
b' ) Assumindo as Lacunas e Dicotomías do Sistema: a Superação '» .=..=A possibilidade do " direito inválido" ou "lacunoso" — a divergên—
do Dogma da Completude Juridica cia entre normatividade e efetividade, antre (: dever—ser e o ser do direi-
to —' é Condição prévia tanto do Estado Constitucional de Direito, como
Verificada a vigência de uma norma (dimensão formal), cumpre “da:-própria dimensão substancial da democracia. bem como a supera—
indagar se ainda assim é possível haver lacunas e conflitos internos ção do-papel do juiz como mero aplicador de lei. O papel do juiz-no pro-
(dicotomias) cesso penal constitucional é o alguém que deve "sentir" (sentenciar) e
. As antinomias e lacunas do sistema são perfeitamente possíveis e eleger os signficados válidos da norma e das versões trazidas pelas
nisso reside seu maior mérito, pois uma perfeita coerência e plenitude
só pode ocorrer em um Estado absoluto, onde qualquer norma existen- partes,
" “ Com fazendo constantemente
isso, não juízos adeexistência
só demonstramos valor. de uma dimensão
te é válida simplesmente porque foi produzida de acordo com as formas . . substancial da norma como também que a mera vigência e insuficien—
estabelecidas pelo ordenamento - . te, na medida em que o sistema está eivado de lacunas e — principal—
O dogma da completude juridica está há muito superado. BOB—
_.mente — de dicotomias
Bloªºª ensina que a escola da exegese já foi abandonada e substituída *É como se a norma possuísse duas faces, só reveladas quando de
pela escóla cientifica. O caráter peculiar da escola da exegese é a admi— "sua aplicação: uma face justa e outra injusta. Incumbe ao juiz buscar,
ração incondicional pela obra realizada pelo legislador através da codi- . ,noª'ca'so concreto, aplicar a face justa da norma, analisando sua valida-
ficação, uma confiança c'ega na suficiência das Leis, a crença de que os de substancial (e não se contentando com a mera validade formal).
códigos, uma vez premulgados, bastam-se completamente a si pró— Passemos agora ao terceiro ponto: como isso se efetiva no proces-
prios, isto é, sem lacunas. ' so penal.
É a ilusão de que no sistema não há nada a acrescentar ou retirar
e que não existem conflitos O dogma da completude cai por terra G') Rompendo o paradigma cartesiano e assumindo & Subjetividade
quando verificamos que o sistema está eivado de lacunas e de confli— . nãAfº de Julgar: Quando o Juiz se Põe & Pensar e Sentir
tos internos (antinomias)
E mais. a crença nas "leis racionais" e na "razão moderna" atinge Ó ]uiz assume uma nova posiçãoªºª no Estado Democrático de
seu ápice com teóricos vinculados ao verbo autoritário, como JAKOBS
.Direito, e a legitimidade de sua atuação não é política, mas constitucio-
(e seu funcionalismo, direito penal do inimigo e outras pérolas), que
fazem a perigosíssima viragem linguística e discursiva para deslocar a nal- consubstanciada na função de proteção dos direitos fundamentais
“de todos e de cada um, ainda que para isso tenha que adotar uma posi—
noção de bem jurídico para a “norma racional", criando um discurso
que legitima a punição pela necessidade de manter/reforçar a confian- ção Contrária à opinião da maioria Deve tutelar o indivíduo e reparar as
ça na lei e no sistema juridico—penal. Cometem, assim, o gravíssimo
E“»..—
ºª SILVA FRANCO, Alberto. O Juiz a o Modelo Garantista. In: Doutrina do Instituto
Brasileiro de Ciências Criminais. disponível no site do Instituto (www.ibccrim.com.br) em
BDS Tacna do Ordenamento Juridico, pp. 119 e ss. março de 1998.

292 7.9.1
Aury Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da ínstrumentalidade Constitucional)

injustiças cometidas e absolver, quando não existirem provas lícitas e :'jseparado. Trata-se de venncar se a norma destemporaiizada é adequada
suficientes. '. à-dimensãotemporal em que ira incidir, justo quando da sua incidência.
Não ha mais espaço para o juiz exegeta, paleopositivista e buro- Comobem identificou MESSUTLEUÉ toda lei contem uma inevitável
crata, fiel seguidor do senso comum teórico dos juristasªº5 E, acima de disparidade em relação a atividade concreta, porque tem um caráter
tudo, está superada a mera subsunção à lei penal ou processual penal: universal.- Por isso, e não há por que ter pudores em afirmar que a lei é
deve o juiz operar sobre a principiologia constitucional. sempre,-defeituosa, mas não porque o seja em si mesma, e sim porque
Dessarte, impõe-se uma postura mais corajosa por parte dos jui— retende regular a realidade do mundo humano, que é sempre imprevi-
zes e tribunais em matéria penal. Julgadores conscientes de que seu sível-"e irei-ativo (basta recordar a teoria da Relatividade). Uma pura e
poder só está legitimado enquanto guardiões da eficácia do sistema de º simples aplicação da lei é inviável, porque sua completude é impossível.
garantias previsto na Constituição. . Pernieia, ainda, essa atividade uma série de variáveis de natureza
Nessa linha, “em havendo leis (atos normativos lato sensu) incom- amologica inerentes a subjetividade específica do ato decisório, até
patíveis com a principiologia constitucional, é tarefa do Poder poro-ue toda reconstrução de um fato histórico está eivada de contami-
Judiciário expungi—los do ordenamento ou, em determinados casos. nação decorrente da própria atividade seletiva desenvolvida.
efetuar a adaptação/correção de tais atos normativos, vivificando—os, . « É chegado o momento de resgatar a subjetividade e compreender
tornando-os aptos a serem aplicados pelos operadores juridicos".505 — recordando as lições de ANTONIO DAL/IASIO— que a racionalidade e
Ademais, como ja apontamos anterionnente, a norma nasce com a ' , incompleta e resulta seriamente prejudicada quando não existe nenhu-
pretensão de obrigar o futuro, ou seja, ela antecipa o futuro e busca ' ligaçao com o sentimento. O dualismo cartesiano separa a mente
libertar-se com isso da dúvida. Ao tentar prever um mundo que ainda érebro e do Corpo, substanciando o ",penso logo existo" ,pilar de
não existe (ambição prospectiva), as normas jurídicas tropeçam num "má noção de superioridade da racionalidade e do sentimento
obstaculo epistemológico, com altíssimo risco de um doloroso tombo. ciente sobre 'a emoção. O erro está na ”separação abissal entre o
Incumbe ao juiz superar esse obstáculo epistemológico e evitar o rp'o e a mente" .509 É essa a racionalidade que queremos transcender
tombo, pois, quando da aplicação da norma, o direito deve sair desse steira de ANTONIO DAMASIO e dos presentes estudos sobre neu-
mundo destemporalizado para amoldar—se à realidade social, ou seja, ência (e também neuropsicanálise).
como aponta MESSUTI,507 voltar à dimensão temporal de que havia se 'I'Rompeu—se a separação cartesiana entre razão e sentimento. Para
DAMASIO o fenômeno é exatamente oposto aquele descrito por
Descartes na medida em que "existimos e depois pensamºs E SÓ Pen“
505 A expressão é de WARAT (apud STRECK) e bem retrata o conjunto de crenças e valo— sarncs na medida em que existimos, visto o pensamento ser, na verda—
res do discurso (manualistico) que impregnar nossos tribunais. Valores e conceitos são
repetidos ao longo de anos sem maior questionamento ou reflexão por parte dos opera- de.“ causado por estruturas e operações do ser". O penso, logo existo,
dores juridicos, retratando um perigosíssimo conformismo. Exemplo tipico dessa postu- deve ser lido como: existo (e sinto), logo penso, num assumido anticar—
ra repetidora do "saber comum" é a paixão arrebatadora por parte de alguns juizes, 'tesramsmo
pelos repertórios de jurisprudência. Invocar a "jurisprudência pacifica". "reiteradas deci-
sões de tal tribunal", etc. é. considerado por eles como “fundamentação". Como explica
" É a reCuSa a todo discurso científico (incluindo o positivismo, o
LENIO LUIZ BTRECK (Tribunal do Júri, p. 51). "com esse tipo de procedimento. são igno- ' mito da neutralidade. etc.) baseado na separação entre emoção (senti-
rados o contexto histórico e social no qual estão inseridos os atores jurídicos (acusado. re) e razão.
vítima, juiz, promotor, advogado, etc.), bem como não se indaga (e tampouco se'pesqui—
sa) a circunstância da qual emergiu a ementa jurisprudencial utilizada. Afinal de contas. . A questão interessa—nos e muito, porque, "quando os seres huma-
nos não conseguem ver a tragédia inerente a existência consciente,

M
se a jurisprudência torrencialmente vem decidindo que.... ou a doutrina pacificamente
entende que..., o que resta fazer? Consequencia disso e que o processo de interpretação Sentem- se menos impelidos a fazer algo para minimiza-la e podem
da lei passa a ser um jogo de cartas marcadas. Ainda se acredita na ficção da vontade
do legislador, do espirito do legislador, da vontade da norma".
(506 STRECK, Lenin Luiz. "A Aplicação dos Princípios Constitucionais". In: Escritos de Direito
e Processo Penal em Homenagem ao Professor Paulo Cláudio 'l'bvo, p. 204. SOEI- Idem. ibidem.
507 MESSUTI, Ana. Op. cit., p. 43. 559 DAMASIO, Antonio. 0 Erro de Descartes, p. 280.

295
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

mostrar menos respeito pelo valor da vida, (...) Talvez a coisa mais ª.r'i'cz'ado válido de norma É o momento de discutir e verificar a substan-
indispensável que possamos fazer no nosso dia-a—dia, enquanto seres ..Cial (in)valídade do significado eleito. . . .
humanos, seja recordar a nós próprios e aos outros a complexidade, fra— Em algims casos, a norma pode apresentar vários “Significados",
gilidade, finitude e singularidade que nos caracteriza".610 cabendo: ao juiz proceder a uma interpretação conforme a Constituição,
Não existe racionalidade sem sentimento, emoção, dai a importân- “"-atendendo ao que. (L!—LTxTCJTILHC)615 chama de princípio da prevalência
cia de subjetividade e de todo sentira no ato decisório, bem como, assu— Constituiçao, optando pelo sentido que apresente uma conformida-
mir que a sentença é ato de crença, de fé (abandono da verdade pela de Constitucional
impossibilidade). :Co'mo complemento a essa técnica interpretativa 616 pode ser uti-
RECASÉNS SIGI—IES511 destaca a importância, na produção do jul- 'a declaração de inconstitucionaiidade parcial sem redução de
gado, do papel do sentimento do juiz, cuja essência fica evidenciada
até pela etimologia da palavra sentença, que vem de sentencia, que, d" " irma“ lei ou ato normativo, o interprete (juiz ou tribunal) exclui algu-
por sua vez, vem de sententiando, gerúndio do verbo "sentira", ense— Para ou algumas de suas interpretações possiveis e que se revestem de
substancral inconstitucionalidade. Isso ocorre a partir do que CANOTI—
jando a idéia de que, por meio dela, o juiz experimente uma emoção,
uma intuição emociona]. Mais do que isso, ele sente e declara o que LHOªíª chama de espaço de decisao (— espaço de interpretação) aber-
sente.512
É inafastavel esse “sentira" por parte do julgador e ele se expres—
se na valoração da prova e na própria axiologia, incluindo a carga ideo-
lógica, que faz da norma (penal ou processual penal) aplicável ao caso.
A sentença, sublinha BOSCHI,513 "é mais do que o resultado do
simples ajustamento da lei a fattispecie (...) mas como objeto cultural é cado substanmalmente inconstitucional.
uma obra humana, impregnada de valores e de ideologias, eniãm, uma , trará-se, ainda, de lançar mão — concomitantemente — do poder de
criação da inteligência e da vontade do juiz, como bem declarou ntrole difuso da constitucionalidade, através do qual um juiz pode (e
Couture, que integra o rol de seus deveres institucionais e funcionais".
É chegado o momento de pensar e sentir, dando a função jurisdi— ve) analisar a constitucionalidade substancial da norma, a partir da
fmmdencra no caso concreto.
cional eua verdadeira dimensão criadora, até porque o "velho" silogis- Nes e contexto, a Constituição (e, principalmente seus princi-
mo há muito caiu no descrédito.514 ,,pios) 'e os Prmcrpios Gerais do Direito são cruciais, até porque o siste—
O sentira implica, essencialmente, a atividade (s)eletiva do juiz, rna penal deve passar pelo filtro constitucional. Tudo deve se confor-
que deverá eleger entre as teses apresentadas (acusatória e defensiva) mar a Constitulcao Os princípios (especialmente os constitucionais)
qual delas na acolher, isso na dimensão probatória. Já no plano juridi— a normas fundamentais ou gerais do sistema. São o próprio espirito
co, incumbe ao juiz eleger a norma aplicável e, principalmente, o signi- da norma eis que dela emergem. São fruto de uma generalização

ElD DAMASIO, Antonio, 0 Erro de Descartes, p. 282.


511 Citado por ALMEIDA PRADO, Lidia Reis. "O Juiz e a Emoção. Aspectos da Lógica da
:,. .
Decisão Judicial", p. 14. ,.,ÃLCANDTILHO José Joaquim Gomes. Direito Constituciona1.653 edição. Coimbra, Alme—
dina, 1996, 13,229.
612 BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos Retóricos da Sentença Penal. São Paulo, Revista dos
Tribunais, 1980, p. ?. Apud BOSGHI. op, cit,, p. 65. Sempre recordando que essa é uma obra assumidamente "introdutória" e que não tem
613 BDSCHI, Jose Antonio Faganella, "A Sentença Penal", in Revista de Estudos Criminais, como objeto o estudo de toda complexa principiologia constitucional ou mesmo da her-
menêutica.
nº 5, 2002. p. 65.
614 ALMEIDA PRADO, Lidia Reis. "O Juiz e a Emoção. Aspectos da Lógica da Decisão MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. lan edição. São Paulo,At1as.2003,pp.47 e ss
Judicial", p. 13. CANDTILHO. José Joaquim Gomes. Direito Constituciona1,p.230.

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Aury Lopes Jr. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional)

BOBBIOªlª—l é categórico: "Para mim não há dúvida: os princípios - D' - 'n'eoesSáIͺ aprofundar acerca dos graves inconvenientes deste
gerais são normas como todas as outras." E dá o seu clássico exemplo: eiro ”cabresto" que o STF poderá colocar a partir de agora, prin-
" ..se são normas aquelas das quais os princípios gerais são extraídos, lpalmgnte em juízes mseguros/imaturos e, portanto, umbilicaimente

ogafe o ritual judiciário. _


através de um procedimento de generalização sucessiva, não se vê por Vinculados ao pai-tribunal, como explicamos anteriormente ao tratar da
que não devam ser normas também eles: se abstraio da espécie ani—
mal, obtenho sempre animais, e não flores ou estrelas. Em segundo Diante. desse novo perigo entendemos que toda a argumentaçao
lugar, a função para a qual são extraídos e empregados e a mesma que apresentamos aqui para justificar o abandono do paradigma paleo—
cumprida por todas as normas, isto e, função de regular um caso". ositivista, a superação do dogma da completude lógica e o desapego do
Evidencia—se uma vez mais a importância do papel assumido pelo luisª?“ à“: letra da Lei" , são perfeitamente aplicáveis para negar validade
julgador. A sujeição do juiz a lei — explica FERRAJOLIE'ZD —— já não é, '- substancial a súmula. Ou seja, a filtragem constitucional que o juiz deve
como no velho paradigma positivista, sujeição à letra da lei, qualquer " faze'r.“quando da aplicação da lei ao caso concreto, também deve ser feita
que seja seu significado, mas sim uma sujeição à lei enquanto válida, ""aofaplicar determinada súmula vinculante. E, assim como podemos e
isto e, coerente com a Constituioão. ' devemos negar validade substancial à lei, podemos negar a súmula.
Grave ameaça à independência do juiz e ao próprio sentira da sen— , , Cabe ao juiz, ao aplicar a lei ou a súmula, fazer um juízo de valora-
tença (em última análise, o ataque é na essência da própria atividade I 'I-I'çã'õªsobre elas. elegendo seus significados válidos, verificado sua com-
jurisdicional) são as decisões e súmulas vinculantes, recepcionadas .Ipzatibilidade' “com as normas constitucionais substanciais e com os
pela Emenda Constitucional nº 45 e inseridas nos arts. 102, % Zª, e 103A - direitos fundamentais estabelecidos.
da GB. Está assim permitido que: " "cabe-aa juiz, ao aplicar a norma, fazer um juizo de valoração sobre
'ela»: elegendo seus significados válidos, verificado sua compatibilidade
a) as decisões definitivas de mérito proferidas pelo STF nas ' omººasínorrnas' constitucionais substanciais e com os direitos funda—
ações diretas de inconstitucionalidade e nas declaratórias de rfie'nt'aisª'estabeleoidos.
oonstituoionalidade vinculam os demais órgãos do Poder ' ª : Somente atuando assim o juiz legítima a jurisdição e sua indepen-
Judiciário;
dência, precisamente enquanto guardião dos direitos fundamentais
b) o STF defina súmulas com efeito vinculante em relação aos bra-fas “quais se assenta a democracia substancial, direitos estes
demais órgãos do Poder Judiciário;
c) por força do art. 89 da Emenda Constitucional nº 45, o STF esta— garantidos a todos e a cada um de maneira incondicionada, inclusive
beleça que as atuais súmulas do STF venham a ter efeito vincu— “';”contra vontade da maioria.
lante, quando confirmadas por dois terços de seus integrantes. A legitimidade do ]'lllZ não tem que ver com a noção de democra-
, .cia politica, ligada a representação. Não deriva da vontade da maioria.
As súmulas innoulantes deveriam existir, mas exclusivamente em O fundamento da legitimidade do juiz esta' na intangibilidade dos direi-
relação ao maior litigante de má—fé que circula pelos foros brasileiros: a tos nitidamemais É, assim, uma legitimidade democrática, enquanto
União e seus diversos órgãos e autarquias. Em relação a eles e seus º : derivada da sua função de garantidor dos direitos fundamentais, que
infindáveis recursos protelatórios é que as súmulas deveriam vincular. são a base“ da democracia substancial.
Contudo, a emenda constitucional foi muito além e, se os juízes e tribu- , Derrubada a presunção de que vigência e validade se confundem,
nais estavam ameaçados pela enxurrada de demandas infimdadas que & critica ao direito invalido e a busca por sua anulação passam a ser a
a União patrocina e protela, agora eles estão ameaçados na sua inde— DnnCIpal tarefa científica e politica da ciência juridica e também ativi—
pendência. dade iegitímante da jurisdição.
-Tal raciocínio não se aplica apenas às normas penais, mas para
619 Thorin do Ordenamento Jurídico, 13. 158.
todos os direitos sociais (saúde, educação, subsistência, salário míni-
520 Derechos y Garantias - ia ley de! más débil, p. 26. 1110 pensões, assistência sanitária e médica gratuita, etc.).

298 299
Aury Lopes Jr. Introdução Critica ao Processo Penal
(Fundamentos da Enstrumentalidade Constitucional)

Em definitivo, legitimidade e legalidade são categorias diversas, “substancial-invalidade da agravante da reincidênciaf523 (violação do
de modo que um ato realizado pela autoridade legislativa (administra— princípio de na bis in idem, da igualdade, de proporcionahdade, etc.);
tiva ou mesmo judicial) não e, presumidamente, legal e regular. Esse retroatividade da jurisprudência in bonam partem624 (a vedação à
ato ainda deve ser objeto de severo controle, entre eles do "filtro cons— etroatividade é substancialmente inconstitucional na medida em que
titucional" que o juiz deve fazer em relação a uma norma antes de apli— a'Constituição assegura a retroatividade mais benigna da norma, bem
cá—a ao caso concreto. como viola o principio da razoabilidade) etc.
lmpõe—se ao juiz a rejeição. como destaca CANOTILHO, por Por fim, PONTES DE MIRANDA525 ampara o julgador exegeta e
inconstitucionalidade, dessas normas, atendendo à competência que :. temeroso de julgar contra lega:
se lhes atribui para a nao—aplicação das normas (substancialmente)
inconstitucionais. "Se entendermos que a palavra 'lei' substitui a que lá deveria
O campo de aplicabilidade prática do discurso é imenso, especial- estar, 'direito', já muda de figura. Porque direito e conceito socio-
mente se partimos da análise da norma (penal ou processual) a luz dos lógico, & que o juiz se subordina, pelo fato mesmo de ser instru-
princípios constitucionais de proporcionalidade, dignidade da pessoa ' ? mento de realização dele. E esse é o verdadeiro conteúdo do jura—
humana, igualdade, etc. mento do juiz, quando promete respeitar e assegurar ª. Se o
Entre outros rapidos exemplos, apontamos o necessário reconhe— “conteúdo fosse o de impor a letra legal, e só ela, aos fatos, a fun—
cimento do direito de defesa e contraditório no inquérito policial (dian— ção judicial não corresponderia aquilo para que foi criada: apazi-
te da substancial inconstitucionalidade da vedação do contraditório e, guar, realizar o direito objetivo. Seria a perfeição em matéria de
do direito de defesa); nulidade do processo cujo interrogatório judicial braço mecânico do legislador, braço sem cabeça, sem inteligência,
se deu sem a presença do defensorª521 (substancialmente inconstitucio— sem discernimento; mas anti-social e, como a lei e a jurisdição ser—
nal diante do direito de defesa técnica); limitação da publicidade abu- vem. à sociedade, absurda. (...) Pouco importa, ou nada importa,
siva dos atos em nome da proteção da intimidade, imagem e vida pri- que a letra seja clara, que a lei seja clara; a lei pode ser clara, e
vada do sujeito passivo (substancial invalidade das normas que auto— obscuro o direito que, diante dele, se deve aplicar. Porque lei é
rizam a publicidade abusiva); substancial invalidade do regime inte—
gralmente fechado de cumprimento da pena (ao violar o princípio da
culpabilidade, proporcionalidade e dignidade da pessoa humana);522 'de 1/3 (??) da pena para concessão da progressão de regime, atropelando o Princípio da
Reserva Legal diante da inequívoca afronta ao exigido pela Lei de Execuções Penais
(que é de 1/6). O giro e a manipulação discursiva já chegou ao absurdo de falarem em
621 Mantivemos o exemplo, em que pese a nova redação do art. 185 do CPP (dada pela Lei "garantismo social"...Pobre FERRAJOLI, não lido, não compreendido, mas distorcido.
10.792 de dezembro de 2003). exatamente porque a mudança legislativa se deve, em Não sem razão, abrimos essa quarta edição com uma passagem de JACINTO COUTI-
grande parte, à persistência de alguns poucos e corajosos julgadores que. na contramão ' NHD. advertindo que “não ha nada no mundo que seja mais significativo do que o golpe
da "pacíficos entendimentos jurisprudenciais e doutrinários". sistematicamente anula— de linguagem; do que o giro de discurso; do que isso que está ai como lobo em veste de
vam processos cujo interrogatório se produziu sem a presença de advogado, a partir da cordeiro."
substancia; invalidade do CPP. 623 Entre outros, recomendamos a leitura dos excelentes trabalhos de ARANHS NASSIF,
62.2 Novamente mantivemos o exemplo. em que pese a mudança (antes tarde do que "Reincidência: Necessidade de um Novo Paradigma". in: Escritos de Direito e Processo
nunca...) de entendimento por parte do Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus nº Penal em Homenagem ao Prof. Paulo Cláudio 'l'bvo, pp. 63 e ss. & de BALO DE CARVALHO,
82959, em 23 de fevereiro de 2006. quando foi declarada a inconstitucionalidade da veda- Pena e Garantias.
ção de progressão de regime para os crimes hediondos, com efeito ex nunc. E mantive- 524 Sobre o tema. é imprescindível a leitura de TUPINAMBÁ PINTO DE AZEVEDO.
mos para mostrar que resistir e preciso, e que muitas das posições aqui defendidas — e - . , “Retroatividade erga omnes da decisão penal benigna". In: Escritos de Direito e Processo
taxadas de "utópicas", "garantistas", etc. — com o passar dos anos vão sendo acolhidas Penal em Homenagem ao Prof. Paulo Claudio 'l'bvo, pp. 255 e ss. Ainda: Revisão Criminal
pelos Tribunais. Ademais, ainda existe resistência por parte de muitos juízes e promoto- ªº 70 002 052 955, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 42 Grupo, Rel. Des.
res vinculados ao discurso autoritário (alguns talvez porque ainda não tenham superado - . - 'I'llpinamhá Pinto de Azevedo, j. 22 de junho de 2001.
a infantil posição de guardiões da "sua" lei e ordem. ou mesmo. ainda sintam—se o pai- 525 Comentários ao CPC, tomo VI, pp. 3290-91-94. Apud AZEVEDO, Tupinamba Pinto de.
social. responsáveis pela "defesa social") em dar efetividade a esse direito (de progres- "Retroatividade erga omnes da decisão penal benigna". ln: Escritos de Direito e Processo
são). Já tem até quem faça frágeis (e ilegais) construções para "exigir" o cumprimento Penal em Homenagem ao Prof. Paulo Cláudio 'Ibvo, pp. 304.5

SDG 301
Aury Lopes Jr.

roteiro, itinerário, guia. (...) Ainda quando o juiz decide contra


legem scrigtam, não viola o direito, se sua decisão corresponde ao ' Referências Bibliográficas
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E basta.

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