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Loraine Boettner
Benjamin B. Warfield
Copyright @ 2020, de Editora Monergismo
Publicado originalmente em inglês sob o título The Inspiration of Scripture (Boettner) e The
Inspiration and Authority of the Bible (Warfield).
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Todos os direitos em língua portuguesa reservados por
E M
SCRN 712/713, Bloco B, Loja 28 — Ed. Francisco Morato Brasília, DF, Brasil — CEP
70.760-620
www.editoramonergismo.com.br
1ª edição, 2020
Loraine Boettner
1. Natureza da inspiração das Escrituras
A
Parece natural que esta inspiração se estenda até mesmo às
próprias palavras, visto que o objetivo da inspiração é conseguir o
registro da verdade. Pensamentos e palavras estão tão
inseparavelmente ligados que, em geral, uma mudança nas
palavras significa uma mudança no pensamento.
Por exemplo, em assuntos humanos, o negociante dita suas
cartas à secretária, usando palavras suas, de modo que elas
encerram aquilo que pretende dizer. Ele não pensa que sua
secretária possa exprimir problemas importantes, delicados e
complexos apresentados apenas em simples termos gerais. Muito
menos o Espírito Santo diria a seu calígrafo: “escreve com este fim.”
A Bíblia pretende falar acerca de um certo número de assuntos que
está absolutamente fora do alcance da sabedoria humana — a
natureza e os atributos de Deus, a origem e os desígnios do homem
e do mundo em que vivemos, a queda do homem no pecado e sua
atual situação, sem esperança, o plano da redenção, inclusive a
vida e morte de nosso Senhor Jesus Cristo, as glórias celestiais e os
tormentos do inferno. É necessário mais do que uma supervisão
geral para que a verdade a respeito desses grandes e
transcendentes assuntos seja apresentada sem erros e sem
preconceitos. Infalibilidade pressupõe que Deus escolheu suas
próprias palavras. Todos quantos têm tentado falar acerca destas
coisas tão profundas, sem uma revelação sobrenatural, pouco mais
têm feito do que mostrar sua ignorância. Tateiam como cegos,
especulam e põem-se a adivinhar, deixando-nos, em geral, numa
incerteza maior do que aquela em que estávamos antes. Na
verdade, estes fatos estão fora do alcance da sabedoria humana.
Basta que consideremos os sistemas pagãos ou as teorias
arrogantes e especulativas dos filósofos, para verificarmos que os
limites de nossa sabedoria espiritual não se podem comparar com
os da Bíblia. Só Deus é capaz de falar com autoridade acerca
desses assuntos; e, entre todos os livros existentes no mundo,
concluiremos que só a Bíblia possui, por um lado, uma descrição
adequada da majestade de Deus; e, por outro lado, uma descrição
aceitável da condição pecaminosa do coração humano e o remédio
satisfatório para essa condição.
Uma mera exposição humana das coisas divinas conteria
erros, em escala maior ou menor, tanto no que diz respeito às
palavras escolhidas para expressar ideias, como na ênfase
proporcional dada às diferentes partes da revelação. Visto que
determinados pensamentos estão ligados inseparavelmente a
determinadas palavras, as expressões têm de ser exatas, ou, caso
contrário, os pensamentos transmitidos serão defeituosos. Por
exemplo, se admitirmos que expressões tais como resgate,
expiação, ressurreição, imortalidade, etc., usadas nas Escrituras,
não têm qualquer autoridade ou significado definido para além
delas, segue-se que as doutrinas que nelas se baseiam, não têm
também autoridade definida. Comparando as Escrituras entre si,
vemos a ênfase que elas dão às palavras que empregam, porquanto
o significado exato depende do uso de determinadas palavras; por
exemplo, quando nosso Senhor diz que “a Escritura não pode
falhar” (Jo 10.35); ou quando ele responde aos saduceus, referindo-
se às palavras de Moisés junto da sarça ardente, em que todo o
peso do argumento depende do tempo do verbo “Eu sou o Deus de
Abraão, e o Deus de Isaque, e o Deus de Jacó” (Mc 12.26); ou
quando Paulo dá grande ênfase ao fato de que na promessa feita a
Abraão a palavra empregada está no singular — semente, “como de
uma”, e não sementes, “como de muitas”: “e a tua semente, que é
Cristo” (Gl 3.16). Em cada um desses exemplos o argumento gira
em torno do uso de uma única palavra, e em cada caso a palavra é
decisiva, pela autoridade divina que tem por detrás de si. A
mudança exata do significado das palavras tem, frequentemente,
imensa importância para a decisão dos problemas de doutrina e de
vida.
U
Para fazermos um estudo sério sobre as doutrinas cristãs,
necessitamos, acima de tudo, possuir a certeza da veracidade da
Bíblia. Se ela é um guia de autoridade absoluta e digno de toda
nossa confiança, então aceitaremos as doutrinas que apresenta. É
possível que não possamos apreender plenamente o significado de
todas as coisas, ou que haja de fato muitas dificuldades em nossas
mentes, porém nunca duvidamos de sua veracidade.
Reconhecemos nossas limitações, mas cremos em todas as
verdades que nos são reveladas. A sorte do cristianismo de fato
está ligada à doutrina da inspiração da Bíblia, porque, a menos que
esta permaneça, nada mais teremos de estável.
Se temos como guia Escrituras dignas de confiança, teremos
um sistema evangélico de teologia distinto de um sistema
naturalista, humanista ou unitariano; na verdade a Bíblia ensina, de
forma clara, um sistema evangélico. Mas se a Bíblia não for um guia
digno de toda nossa confiança, teremos de procurar outra base para
nossa teologia, e é bem provável que fiquemos com pouco mais que
um mero sistema filosófico. Perder a confiança na Bíblia, como livro
inspirado, é fazer desaparecer a confiança em todo o sistema
cristão. Isto nos é lembrado, de forma bem dolorosa, quando
tentamos ler alguns dos recentes livros religiosos, ou até mesmo
teologias sistemáticas, em que os autores não apelam para as
Escrituras, mas para os ensinos dos vários filósofos, em defesa de
seus argumentos. Até hoje temos aceitado as doutrinas pertinentes
ao sistema cristão, porque são ensinadas na Bíblia. E fora da Bíblia
não existe nenhuma outra norma autoritativa.
A menos que a Bíblia possa ser citada como sendo um Livro
inspirado, sua autoridade e utilidade na pregação, no conforto aos
doentes e na morte e instrução em todas as perplexidades, ela fica
empobrecida de forma fatal. Seu “Assim diz o Senhor” fica reduzido
a mera suposição humana, não podendo ser mais considerado
como nossa regra de fé e prática. Atualmente, como em todas as
épocas, os críticos destrutivos, os céticos e os modernistas de toda
espécie concentram seus ataques sobre a Bíblia. Procuram ver-se
livres de sua autoridade porque, de outra forma, seus sistemas não
serão mais que um amontoado de disparates.
Evidentemente, a inspiração que defendemos é a das palavras
originais, hebraicas e gregas, escritas pelos profetas e pelos
apóstolos. Cremos que, se as compreendermos no sentido em que
foram escritas — simples declarações de fatos, figuras de retórica,
idiomatismo e poesia —, então a Bíblia não tem qualquer erro, do
Gênesis ao Apocalipse. Embora não diga muita coisa, todavia aquilo
que diz é verdadeiro, no sentido que tem em vista. Não
reivindicamos infalibilidade para as várias versões e traduções, nem
mesmo para as traduções livres feitas por uma só pessoa e que
ultimamente têm se tornado tão comuns. As traduções variam,
necessariamente, com cada tradutor, e só podem ser consideradas
como exatas apenas na medida em que reproduzem os autógrafos
originais. Além disso, algumas das palavras hebraicas e gregas não
têm um equivalente preciso nas línguas modernas, e às vezes até
os melhores eruditos divergem a respeito do significado de certas
palavras. Em contrapartida, temos de reconhecer que não
possuímos nenhum dos autógrafos originais, e que os Manuscritos
mais antigos que possuímos são cópias de cópias. No entanto, os
mais abalizados eruditos das línguas grega e hebraica afirmam que
em cerca de noventa e nove por cento dos casos temos as palavras
originais, tal era a precisão com que os copistas as reproduziam, e
tão fielmente os tradutores fizeram seu trabalho. Sem dúvida, temos
razão para dar graças a Deus pela Bíblia que nos chegou às mãos
de forma tão pura.
Eis a posição histórica dos protestantes a respeito da
autoridade das Escrituras. Foi defendida por Lutero e Calvino, e
ficou gravada nos credos escritos no período imediato à Reforma. A
doutrina luterana da inspiração foi apresentada na Fórmula de
Concórdia, como segue: “Cremos, confessamos e ensinamos que a
única regra e norma, de acordo com as quais todos os dogmas e
todos os mestres devem ser comparados e julgados, não é outra
senão os escritos proféticos e apostólicos do Antigo e do Novo
Testamento.”
A doutrina da Igreja Reformada foi apresentada na Segunda
Convenção Helvética da seguinte maneira: “Cremos e confessamos
que as Escrituras canônicas dos santos profetas e apóstolos, de
ambos os Testamentos, são a verdadeira Palavra de Deus, e que
possuem autoridade suficiente e inerente, e não humana. Foi o
próprio Deus quem falou aos pais, aos profetas e aos apóstolos, e
continua a falar pelas Sagradas Escrituras.”
Na Confissão de fé Westminster, a Igreja Presbiteriana
declara: “Agradou ao Senhor, em tempos vários e ocasiões
diferentes, revelar-se a si próprio e declarar sua vontade para com
sua Igreja; e depois ... pôs a mesma, completamente, por escrito”.
“A autoridade das Sagradas Escrituras, pela qual deve ser
acreditada e obedecida, depende não de algum testemunho
humano ou de alguma igreja, e sim inteiramente de Deus, seu Autor,
que é a Verdade; portanto, deve ser recebida, visto ser a Palavra de
Deus.” E ainda: “que tanto o Antigo quanto o Novo Testamento
foram inspirados por Deus, e por seu cuidado e providência
singulares foram conservados puros através dos anos”. Mais
recentemente foi defendida por Hodge, Warfield e Kuyper. Estes
homens foram luzeiros e ornamentos do mais elevado tipo de
cristianismo, reconhecido, praticamente, por todos os protestantes.
Afirmaram que a Bíblia não só contém a palavra de Deus, como
uma pilha de restolho pode conter algum trigo, mas que a Bíblia é a
palavra de Deus, em todas suas partes.
2. Os autores afirmam possuir inspiração
O E
A doutrina bíblica do verdadeiro objetivo e função dos profetas,
bem como de seu método de expor a mensagem, é apresentada, de
forma clara, nas palavras do Senhor a Moisés: “Eis que lhes
suscitarei um profeta como tu, do meio de seus irmãos, e porei
minhas palavras em sua boca, e ele lhes falará tudo o que eu lhe
ordenar” (Dt 18.18). O Senhor podia falar tanto pelos profetas
quanto por seu intermédio. Eles tinham de falar precisamente as
palavras recebidas, e não outras. “Eis que ponho minhas palavras
em tua boca” — disse o Senhor a Jeremias, ao designá-lo profeta
das nações. Do mesmo modo foi dito a Isaías (51.16; 59.21). E a
expressão “Assim diz o Senhor” é reiterada no livro de Isaías cerca
de 80 vezes. Até mesmo o falso profeta Balaão só podia falar o que
o Senhor lhe ordenou que falasse: “E disse o anjo do Senhor a
Balaão: Vai com estes homens; mas falarás somente a palavra que
eu falar-te” (Nm 22.35; 23.5, 12, 16).
Em muitas passagens do Antigo Testamento, o que se
descreve é simplesmente um processo de ditado, ainda que não se
nos informe por qual método se conseguiu tal ditado. Em outras, nos
é dado a entender que o Senhor falou por intermédio de homens
que de antemão escolheu como seus instrumentos, dirigindo-os de
tal maneira que o que falaram ou escreveram eram palavras de
Deus, e de forma evidente um produto distintamente sobre-humano.
O ensino uniforme do Antigo Testamento é que os profetas falaram
quando a Palavra de Deus lhes era transmitida (Os 1.1; Am 1.3; Mq
1.1; Ml 1.1; etc.).
A palavra hebraica para profeta é nabhi, “porta-voz”, não só
um porta-voz em geral, mas em forma eminente, ou, seja, porta-voz
de Deus. Em nenhum caso o profeta pretende falar movido por sua
própria autoridade. Ser profeta, em primeiro lugar, não provém de
sua própria escolha, e sim uma resposta à vocação divina,
frequentemente uma vocação respondida com relutância; e se ele
fala ou pretende falar, isso se dá somente quando o Senhor lhe diz o
que deve falar.
E, em contraste com esta alta vocação dos verdadeiros
profetas, deveríamos notar os fortes avisos e as denúncias contra
os que pretendiam falar sem uma vocação diretamente divina: “O
profeta que presumir soberbamente falar alguma palavra em meu
nome, e tal palavra não se cumprir, ou o que falar em nome de outro
deus, esse profeta morrerá” (Dt 18.20). Era um caso sério para
meros homens e de mãos impuras pretenderem falar em nome do
Deus Altíssimo! No entanto, como é comum ouvir-se, os críticos
destruidores de nossos dias negam esta afirmação da Bíblia, ou
dizem que necessitamos de uma Bíblia menor, ou, inclusive, de uma
nova Bíblia, composta de assuntos mais modernos! E o erro
cometido ainda por outros, que adicionam algo à Palavra de Deus,
como fazem os católicos com os apócrifos e a tradição; a ciência
cristã, com a “ciência e saúde”, e com a “chave para as Escrituras”;
e os mórmons, com seu “livro de mórmon”. Tudo isso é tão
prejudicial quanto diabólico!
T J A T
É absolutamente evidente que Jesus considerava o Antigo
Testamento como plenamente inspirado. Ele o cita como tal e
baseou nele seu ensino. Uma de suas afirmações mais claras a este
respeito encontra-se em João 10.35, onde, numa controvérsia com
os judeus, sua defesa toma a forma de apelo às Escrituras, e,
depois de citar uma declaração, acrescenta as significativas
palavras: “E a Escritura não pode ser anulada.” A razão pela qual
valia a pena para Jesus, e vale a pena para nós, apelar para as
Escrituras, é que elas “não podem ser anuladas”.
E a palavra que se traduz por “anulada” é a que se usa para a
transgressão da lei, que significa negar as Escrituras. Para ele,
assim como para os judeus, um apelo para as Escrituras equivalia
um apelo para a autoridade cujas determinações eram finais, até
nos mínimos detalhes. Que Jesus considerava toda a Escritura
como sendo a Palavra de Deus, pode ver-se, por exemplo, em
Mateus 19.4. Quando alguns dos fariseus lhe fizeram perguntas a
respeito do divórcio, sua resposta foi: “Não tendes lido que aquele
que os fez no princípio, macho e fêmea os fez, e disse: Portanto,
deixará o homem pai e mãe, e se unirá a sua mulher, e serão dois
numa só carne? ... Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o
homem”. Aqui Jesus declara explicitamente que Deus é o autor das
palavras de Gênesis 2.24: “aquele que os fez ... disse: Portanto,
deixará o homem pai e mãe, e se unirá a sua mulher ...”. E no
entanto, lendo estas palavras no Antigo Testamento, nada há que
indique ter sido Deus quem as proferiu, pessoalmente, visto que são
apresentadas por Moisés, e só podem ser atribuídas a Deus como
seu Autor, na medida em que toda a Escritura é sua Palavra.
Marcos 10.5-9 e 1 Coríntios 6.16 apresentam exemplos
semelhantes. Onde quer que Cristo ou os apóstolos citem as
Escrituras, pensam delas como sendo a voz viva de Deus, e
portanto como que possuindo autoridade divina. Não têm a mínima
hesitação em atribuir a Deus as palavras de autores humanos, ou
de atribuir a autores humanos as palavras de Deus (Mt 15.7; Mc 7.6,
10; Rm 10.5, 19, 20).
Quando repreende fortemente os saduceus, ele lhes diz:
“Errais não conhecendo as Escrituras ...” (Mt 22.29), precisamente
aquilo que Jesus lhes aponta não é o erro deles de não terem
seguido as Escrituras, e sim de as terem rejeitado.
Aquele que acha sua doutrina e prática nas Escrituras não
erra. Tão comum era este uso, e tão indiscutível sua autoridade,
que, em seu conflito mais vibrante, Jesus não precisou de outra
arma além da palavra “Está escrito!” (Mt 4.4, 7; Lc 4.4, 8; 24.26).
Suas últimas palavras, antes de sua ascensão, continham uma
repreensão a seus discípulos por não terem compreendido que tudo
quanto se encontrava escrito nas Escrituras “tinha de ser cumprido”
(Lc 24.44). Se estava escrito que Jesus havia de sofrer estas coisas,
então todas as dúvidas a seu respeito se tornavam absurdas. Os
discípulos deviam basear-se nesta palavra, como um fundamento
seguro. Assim, recebemos o Antigo Testamento com base na
autoridade de Cristo. Ele no-lo dá e nos informa ser ele a Palavra de
Deus, que os profetas falaram pelo Espírito Santo, e que as
Escrituras não podem ser anuladas. Ele o mistura com suas
inúmeras citações e com o Novo Testamento, de tal forma que hoje
temos uma Bíblia unificada. Através dos dois Testamentos, ouve-se
uma só voz. Ou eles ficam de pé, ou caem juntos.
A N T A
Se Jesus mantinha a opinião de que todo o Antigo Testamento
era infalível, a mesma ideia não deixa de ser apresentada, e de
forma bem clara, pelos apóstolos. A maneira familiar como citavam
qualquer parte das Escrituras, como sendo a Palavra de Deus, sem
levarem em conta o fato de as palavras originais lhe serem ou não
atribuídas, mostra que pensavam que ele falava por meio do Antigo
Testamento. Em Hebreus 3.7, citam-se as palavras do salmista
como sendo palavras diretas do Espírito Santo: “Portanto, como diz
o Espírito Santo, se hoje ouvirdes sua voz, não endureçais vossos
corações, como na provocação”. Em Atos 13.35, as palavras de
Davi (Sl 16.10) são apresentadas como sendo as palavras de Deus:
“Pelo que também em outro salmo, diz [Deus, que é o sujeito da
oração]: Não permitirás que teu santo veja a corrupção”. Em
Romanos 15.11, atribuem-se a Deus as palavras do salmista: “E
outra vez [Deus] diz: Louvai ao Senhor, todos os gentios, e celebrai-
o, todos os povos”. Em Atos 4.24, 25, o apóstolo atribui a Deus as
palavras proferidas pela boca de Davi no segundo salmo: “Deus ...
disseste pela boca de Davi teu servo: Por que bramaram as nações,
e os povos pensaram coisas vã?”. Em Hebreus 1.7, 8 nos
deparamos com o mesmo ensino a respeito de dois salmos. Em
Romanos 15.10, atribuem-se a Deus as palavras de Moisés: “E
outra vez [Deus] disse: Alegrai-vos, gentios, com seu povo” (Dt
32.43).
Estas citações revelam, de forma bem evidente, que na mente
de Cristo e dos apóstolos havia uma identificação absoluta entre o
texto do Antigo Testamento e a voz do Deus vivo. E, evidentemente,
pode-se inferir que a inspiração do Novo Testamento não é inferior à
do Antigo Testamento. De fato, a tendência tem sido atribuir ao
Novo Testamento uma posição inferior. Se o Antigo Testamento é
apresentado como sendo inspirado, não há dúvida alguma também
acerca do Novo Testamento.
A N T
Quando examinamos as reivindicações que os
escritores do Novo Testamento apresentam acerca de sua própria
obra, verificamos que reivindicam para elas inspiração absoluta, e
as colocam no mesmo nível das Escrituras veterotestamentárias.
Todas as escolas de crítica bíblica, atualmente existentes,
reconhecem que esta pretensão é feita reiteradamente, ainda que
neguem possuir fundamento. Por exemplo, notamos que, quando os
apóstolos começaram seu ministério, receberam do próprio Cristo a
promessa de diretriz sobrenatural: “E, quando vos entregarem, não
cuideis em como ou o que haveis de falar, porque, naquela hora,
vos será concedido o que haveis de dizer, visto que não sois vós os
que falais, mas o Espírito de nosso Pai é quem fala em vós” (Mt
10.19, 20; Mc 13.11; Lc 12.11, 12). Esta mesma promessa foi
reiterada no fim de seu ministério (Lc 21.12-15). É possível que a
promessa mais importante se encontre no Evangelho de João:
“quando vier, porém, o Espírito da Verdade, ele vos guiará a toda a
verdade” (Jo 16.13). Mais tarde os apóstolos reivindicaram esta
mesma diretriz. Não tinham a menor dúvida a respeito da exatidão
de suas palavras, tanto sobre questões históricas, quanto doutrinais
— fenômeno este bastante notável, se considerarmos que os
historiadores mais concretos e amantes da exatidão possuem uma
segurança menor e pouco elevada, ao apresentar-nos detalhes dos
acontecimentos. Paulo afirma que seu evangelho é tão autoritativo,
que declara estarem errados e serem malditos todos quantos
ensinarem outra doutrina, ainda que os tais fossem anjos vindos do
céu. “Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie
outro evangelho além do que já vos tenho anunciado, seja anátema
...” (Gl 1.6-9). Seus mandamentos são do Senhor, e são
apresentados com autoridade obrigatória: “... as coisas que vos
escrevo são mandamento do Senhor” (1Co 14.37; cf. 2Ts 3.6, 12).
Escrevendo aos coríntios, Paulo faz distinção entre os
mandamentos que são do Senhor e aqueles que ele, Paulo, dava;
porém os coloca lado a lado com os mandamentos de Cristo e com
a mesma autoridade (1Co 7.10, 12, 40). Afirma que o que ele
pregava na verdade era a “Palavra de Deus” (1Ts 2.13). E essas
coisas deviam ser recebidas imediatamente e sem discussão.
Devemos notar sua maneira fácil de combinar o livro de
Deuteronômio com o Evangelho de Lucas sob a designação comum
de Escritura, como se fosse a coisa mais natural: “Porque diz a
Escritura: Não ligarás a boca ao boi que debulha. E, digno é o
obreiro de seu salário” (1Tm 5.18). Este mesmo costume era normal
entre os Pais da Igreja.
Nas Epístolas de Pedro encontra-se a mesma elevada opinião
a respeito dos escritos do Novo Testamento. Ele afirma que “a
profecia nunca foi produzida por vontade de homem, mas homens
[santos] de Deus falaram inspirados pelo Espírito Santo” (2Pe 1.21).
Ele afirma que os apóstolos, “pelo Espírito Santo enviado do céu ...
pregaram o evangelho” (1Pe 1.12). E coloca os escritos de Paulo no
mesmo nível das “demais Escrituras”, ao dizer: “... nosso amado
irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada ...
em todas suas epístolas ... que os indoutos e inconstantes torcem,
bem como as demais Escrituras ...” (2Pe 3.15, 16). Não é possível
atribuir maior dignidade, reverência e autoridade, do que esta, a
nenhum outro escrito.
Lucas declara que, no dia de Pentecostes, os discípulos
falaram “conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem” (At
2.4). E João, o discípulo amado, fala da maldição que virá sobre
todo aquele que se atrever a tirar ou a acrescentar alguma coisa
àquilo que escreveu (Ap 22.19). Semelhantes reivindicações, se
fossem baseadas simplesmente na autoridade humana, revelariam
apenas a mais espantosa impudência. Sem dúvida, é impossível
desmentir os inúmeros textos que ensinam a inspiração plenária, e a
ideia de que poderiam ser desmentidos se baseia na estranha
noção de que esta doutrina só é ensinada, aqui e acolá, em textos
isolados. É certo que alguns textos a apresentam com clareza
excepcional, textos esses dos quais os céticos gostariam de se ver
livres. Mas essas passagens são apenas o apogeu de um
testemunho progressivo sobre a origem divina e a infalibilidade
desses escritos, ensino igualmente forte em ambos os Testamentos.
3. Natureza da influência pela qual a inspiração é
alcançada
E
Não nos é possível, por falta de espaço, dar uma lista
circunstanciada dos erros que se têm apontado nas Escrituras, e no
entanto nossa discussão ficaria incompleta se não apresentássemos
alguns exemplos. À primeira vista parece haver contradição entre
Atos 9.7 e Atos 22.9, acerca da conversão de Paulo. Na primeira
passagem lemos que os homens que acompanhavam Saulo
ouviram a voz que lhe falou, enquanto na outra lemos que não
ouviram a voz. A dificuldade, porém, desaparece ao verificarmos
que a palavra grega traduzida por voz pode também significar som,
e assim se pode traduzir Atos 9.7. Concluímos, pois, que os homens
que viajaram com Saulo ouviram o som, porém não entenderam as
palavras.
Há relativamente pouco tempo, os críticos destrutivos
escarneceram de alguém que aceitasse a declaração de Lucas de
que a Ilha de Chipre foi governada por um procônsul (At 13.7), e que
o tetrarca Lisânias foi contemporâneo dos governantes herodianos
(Lc 3.1). No entanto, o escárnio depressa se desvaneceu, quando
descobertas arqueológicas confirmaram as afirmações bíblicas.
Na cura do servo do centurião, quer o próprio centurião se
dirigisse a Jesus e pedisse que seu servo fosse curado, como
Mateus nos leva a crer (8.5), ou lhe enviasse anciãos dos judeus,
como nos diz Lucas (7.3), a questão é a mesma, pela forma como
nos conta a história. Em nossa linguagem comum, atribuímos à
pessoa aquilo que seus agentes ou servos fazem sob suas ordens.
A acusação que Pilatos escreveu na cruz nos é dada pelos
evangelistas com pequenas variantes. No entanto, tudo indica que a
explicação para esse fato se encontra principalmente no fato de a
acusação ser escrita em três idiomas: latim, grego e hebraico, que
havia variantes nos originais e que, pelo menos um dos escritos,
apresenta uma tradução livre, não havendo diferença substancial,
por exemplo, entre a declaração de Marcos, “o Rei dos Judeus”, e a
de Lucas, “Este é o Rei dos Judeus”.
Na manhã da ressurreição, quer a pedra do túmulo fosse
retirada por mãos humanas, como se refere na narrativa de Marcos,
Lucas e João (ainda que tenham o cuidado de não dizer que o fora
por mãos humanas, mas apenas que a pedra foi tirada), ou que um
terremoto contribuiu para esse fim, como Mateus nos informa mais
especificamente (28.2), o fato não interessa perante o ponto
essencial de que Cristo, naquela manhã, ressurgiu e saiu do túmulo.
Mateus nos fornece um relato mais detalhado, neste ponto, nos
dizendo que o Senhor usou as forças da natureza para alcançar seu
objetivo; enquanto os outros evangelistas apenas registram a
importante verdade religiosa de que o túmulo estava aberto.
Acontece amiúde que autores sacros, assim como os seculares,
descrevem acontecimentos de um prisma diferente, ou com ênfases
diferentes. Em tais casos, não há mais contradição entre as
narrativas do que há, por exemplo, entre quatro fotografias da
mesma casa, uma tirada do ocidente, outra do norte, outra do leste
e outra do sul, ainda que apresentem vistas diferentes.
Mateus 27.5 afirma que Judas entregou o dinheiro aos
sacerdotes, e depois saiu e foi enforcar-se; enquanto Atos 1.18
afirma que ele comprou um campo com esse dinheiro. Mas,
coordenando as duas narrativas, deduz-se que o que realmente
aconteceu foi que os sacerdotes rejeitaram o dinheiro que Judas
atirou para o templo. No entanto, depois de sua traição e suicídio, tal
desgraça se ligou a ele, de maneira que nenhum amigo ou parente
veio cuidar de seu corpo, e foi enterrado pelas autoridades. Os
sacerdotes se lembraram de que o dinheiro fora devolvido e que não
poderia entrar nas ofertas do templo por ser preço de sangue; e,
necessitando o corpo de sepultura, resolveram, muito a propósito,
usar aquele dinheiro para comprar um terreno onde o enterrassem,
talvez o mesmo campo em que ele suicidara. Assim, diz-se que ele
comprou um campo com a recompensa recebida por sua iniquidade
— não que ele o tivesse adquirido pessoalmente, mas que foi
comprado com seu dinheiro, e que nele foi enterrado.
Muitos críticos afirmam que a referência de Jeremias que se
faz em Mateus 27.9 constitui um erro, e que deve ser, antes, a
Zacarias 11.12, 13. No entanto, tudo indica ser este um caso de
menção subsequente, como acontece também em Atos 20.35 e
Judas 14. Mateus diz que Jeremias disse essas palavras, e ninguém
pode provar o contrário. Certamente, Jeremias as pronunciara,
Zacarias as escrevera, e Mateus, inspirado pelo Espírito Santo, as
citou aqui, atribuindo-as a Jeremias. É possível que Mateus tivesse
fontes seguras para atribuí-las a Jeremias, fontes essas que não
conhecemos. O fato de a citação de Mateus não ser exatamente
como se encontra em Zacarias pode ser tomado como indicação de
que ele de fato possuía outros livros.
Às vezes afirma-se que Gênesis 36.31, ao referir-se a rei (ou
reis) que governaram sobre os filhos de Israel prova que o livro do
Gênesis não foi escrito por Moisés, mas por outra pessoa, que
Moisés era profeta e que, muito antes da promessa ser dada a
Abraão de que haveria reis (Gn 17.6; 35.11), predisse o
aparecimento de reis em Israel (Dt 17.14-20), e que em Gênesis
36.31 ele apenas diz que havia reis reinando em Edom, muito antes
de os haver em Israel.
No que diz respeito a Êxodo 9.19, às vezes se pergunta como
é que os egípcios poderiam ter ainda gado para ser morto pela
saraiva, que foi a sétima praga, se em Êxodo 9.6 se declara que
todo o gado perecera pela peste, que foi a quinta praga. Pode-se
explicar este fato, porquanto a quinta praga não matou o gado que
pertencia aos israelitas, e durante o tempo decorrido entre as duas
pragas sem dúvida os egípcios se apossaram desse gado.
O fato de os Dez Mandamentos, apresentados em Êxodo
20.17 e Deuteronômio 5.7-21, mostrarem certas variantes na
linguagem ou, em alguns casos em que os escritores do Novo
Testamento citam o Antigo Testamento, não citarem as palavras
exatas, mas apenas o significado em geral, não é um argumento
contra a inspiração verbal, a menos que se possa provar que
quiseram citar literalmente. O escritor ou orador está em seu direito
de repetir seus pensamentos de maneira relativamente diversa, e é
isto que o Espírito Santo fez. A linguagem humana, em sua forma
mais elevada, é demasiadamente imperfeita para expressar a
plenitude da mente divina, e não deveríamos limitar o Espírito Santo
a uma forma estereotipada de falar. Os escritores do Novo
Testamento têm mais interesse em apresentar a verdade básica,
colocando-a em uma forma variada e rica, do que em seguir um
método rígido. Isto põe de lado um grande número de contradições
que alguns críticos afirmam encontrar na Bíblia. Além disso, se
encontrarmos uma passagem que permita duas interpretações, uma
que se harmonize com o restante das Escrituras e outra não, sem
dúvida devemos aceitar a primeira. Quer essa declaração se
encontra nas Escrituras, em documentos históricos ou em
documentos legais, o princípio da interpretação comumente aceito é
que o significado que pressupõe o documento é auto-consistente e
racional e deve ser preferido ao que o torna inconsistente e
irracional. Agir sobre outra base é fazê-lo com preconceitos e
pressupor o erro em vez de o provar. No entanto, os críticos da
Bíblia não se importam em descartar esta regra.
Muitas das chamadas “dificuldades morais” do Antigo
Testamento surgem apenas porque não se tomou em consideração
a natureza progressiva da revelação. Ainda mais, evidentemente, se
espera de nós, que vivemos na era cristã e que possuímos a luz do
Novo Testamento. Também aqui existe “primeiro a haste, depois a
espiga, e por fim o grão maduro na espiga”. Muitas vezes surgem
mal-entendidos devido ao fracasso em distinguir entre o que as
Escrituras registram e o que elas sancionam.
Por exemplo, os problemas mais sérios surgem quando se
trata da destruição dos cananeus, dos salmos imprecatórios, da
doutrina da expiação substitutiva e da doutrina do castigo eterno. É
possível que as dificuldades relacionadas com estes problemas não
possam ser resolvidas, mas a objeção de que são moralmente
errados surge da suposição de uma justiça retributiva inexistente. É
preciso ter em mente que, se Deus é bom e recompensa a justiça,
também é justo e pune, com toda certeza, o pecado, e que o castigo
do pecado é para ele obrigatório, refletindo sua glória, do mesmo
modo que a recompensa da justiça o faz. Este é o ensino do Novo
Testamento, de forma tão clara como é o do Antigo Testamento; e
que está em sua base doutrinária o fato de que o castigo de nossos
pecados não poderia ser simplesmente cancelado, mas tem de ser
posto sobre Cristo, para nossa salvação. Além disso, o Antigo
Testamento mostra não apenas que certos indivíduos, mas que até
cidades inteiras eram tão depravadas, que vieram ser uma maldição
para a sociedade. Tais indivíduos, pois, eram indignos de viver. Até
mesmo a religião de alguns povos era corrupta, como, por exemplo,
os que seguiam o culto de Baal, culto que era acompanhado de ritos
imorais, de sacrifícios de crianças recém-nascidas atiradas ao fogo,
e do ósculo lançado às imagens de deuses pagãos.
A atitude do Antigo Testamento em relação à poligamia, o
divórcio e outros males semelhantes, é frequentemente
ridicularizada pelos críticos atuais; mas, analisada em seu próprio
ambiente, é em si um argumento a favor da autoridade divina da
Bíblia. No que diz respeito a quase todas estas questões,
verificamos que o objetivo da Bíblia é apresentar princípios básicos
aplicáveis a todos os povos, a todas as nações, a todas as raças e
em todas as épocas, e não estabelecer leis específicas que, embora
se adaptem a um tipo de pessoas sob certas condições diferentes,
podem não se aplicar a outros. A criação de leis específicas,
adaptáveis a certos problemas sociais ou políticos e a condições
locais, pertence aos corpos legislativos competentes. Portanto, as
leis da Bíblia não são tão específicas quanto muita gente gostaria
que fossem. A sabedoria que a Bíblia revela ao enfrentar tais males,
numa época primitiva, dando leis e princípios que os regulassem, de
forma a destruí-los, é em si uma forte evidência de que essas leis
são de origem sobre-humana.
AB
É evidente que a Bíblia não foi escrita do prisma científico.
Aquele que procurar usá-la como sendo um livro-texto, ficará
verdadeiramente desapontado. Foi escrita muitos anos antes do
aparecimento da ciência moderna e tendo em mente não cientistas
e intelectuais, e sim o povo comum. Sua linguagem é a do povo e
sua matéria é, acima de tudo, religiosa e espiritual. Se tivesse sido
escrita na linguagem científica ou filosófica, teria sido ininteligível ao
povo das épocas primitivas, e na realidade não seria compreendida
pelas massas de nossa própria época. Além disso, embora não
pretendamos rebaixar as realizações científicas modernas, e sim,
antes, aceitá-las e usá-las ao máximo, devemos dizer que os livros-
texto científicos têm de ser reescritos, pelo menos uma vez em cada
geração; e, ao progredirmos como sucede hoje nas investigações
científicas, dentro de dez anos a maioria dos livros científicos ora
em uso será obsoleta. Mas a Bíblia é um livro que não sofreu
qualquer revisão durante milhares de anos, e que atualmente apela
para o coração e para a inteligência do homem, com tanta força
como o fez no passado. Aqueles que buscam na Bíblia inspiração
espiritual e intelectual, encontram-na tão fresca e inspiradora, como
se tivesse sido escrita ainda ontem.
Uma das coisas mais maravilhosas a respeito da Bíblia é que,
embora escrita em épocas de ignorância e de superstição, ela não
contém os erros e falácias populares de seu tempo. Moisés, como
príncipe herdeiro do Egito, frequentou as melhores escolas e “foi
instruído em toda a sabedoria dos egípcios”, cuja maior parte seria
considerada hoje patética, porém não a usou na Bíblia. As teorias
inverossímeis e fantásticas defendidas pelos egípcios a respeito da
origem do mundo e do homem são completamente ignoradas; e no
primeiro capítulo do Gênesis, em linguagem majestosa nunca
ultrapassada até hoje, ele nos fornece um relato da criação do
mundo e do homem que não pode ser desmentido pela ciência
moderna. Os outros profetas que não tiveram contato com a ciência
de seu tempo, na Caldéia e em Babilônia, procederam da mesma
maneira; e, embora pessoalmente cressem em muitas coisas
errôneas, só escreveram o que estava de acordo com a verdade.
É provável que alguns dos profetas admitissem que o mundo
era plano. No entanto, em parte alguma de seus escritos ensinaram
tal coisa. Quando falam do nascer e do pôr-do-sol, dos quatro
cantos da terra ou dos confins da terra, não devemos tomar ao pé
da letra o que eles dizem. Atualmente, usamos as mesmas
expressões, porém não queremos com isso afirmar que o sol gira
em torno da terra, ou que a terra seja plana ou retangular. Em nossa
linguagem corrente, com frequência descrevemos as coisas como
nos parecem e não como bem sabemos são na realidade. E embora
os céticos, como um grupo, estejam sempre prontos a afirmar que a
Bíblia ensina que a terra é plana, quase não podemos encontrar um
que seja suficientemente honesto para citar um determinado
versículo em que a Bíblia faça tal declaração a respeito da forma da
terra. Ao descrever a grandeza e a majestade de Deus, Isaías diz
que “ele está assentado sobre a redondeza da terra” (40.22). A
palavra hebraica que se traduz por redondeza ou globo literalmente
significa redondo. Tampouco os céticos gostariam de citar as
palavras de Jó: “Estende o norte sobre o vazio; suspende a terra
sobre o nada” (Jó 26.7).
Em 1861, a Academia Francesa de Ciências publicou uma
lista de 51 fatos, denominados científicos, cada um dos quais, dizia-
se, refutava uma afirmação da Bíblia. Hoje, a Bíblia permanece
como então era, porém nenhum desses supostos fatos é defendido
pelos atuais homens de ciência.
Devíamos fazer sempre distinção entre especulação científica
e fatos demonstrados de forma inegável. As especulações
científicas são como as correntes movediças do oceano; enquanto
as Escrituras, qual rochedo de Gibraltar, lhes resistem há muito mais
de dois mil anos. Ainda não foi possível demonstrar que há
contradições entre a Bíblia e fatos científicos comprovados; pelo
contrário, a narrativa do mundo, em contraste com aquilo que se
encontra nos livros antigos, está de acordo com as descobertas da
ciência moderna, de maneira tão extraordinária que se torna
maravilhoso. O conflito que algumas pessoas supõem existir entre a
Bíblia e a Ciência na realidade não existe.
É possível que a principal razão por que há tanta confusão
acerca das relações entre a ciência e a religião seja o fracasso, por
parte de muita gente, em distinguir entre fatos e opiniões. A
verdadeira ciência lida com fatos comprovados; as opiniões podem
variar, com a pessoa que as formula. A evolução orgânica, por
exemplo, como tem sido apresentada, em geral não admite o
sobrenatural e está em contradição com a Bíblia. Devemos, porém,
lembrar-nos de que a evolução não é um fato científico, mas apenas
uma teoria, uma hipótese. Nem um só dos argumentos normalmente
apresentados para a sustentar é válido; e muitos cientistas de valor
não acreditam na teoria da evolução, mas na criação, como é
apresentada na Bíblia. Se um pastor não estudou ciências, não tem
o direito de invadir o domínio da ciência e falar com autoridade a
seu respeito. Tampouco um cientista que não teve qualquer
experiência do poder regenerador do Espírito Santo tem qualquer
direito de invadir o campo da religião e falar livremente a seu
respeito. Atualmente, certos cientistas de renome, mas sem
experiência religiosa, presunçosamente têm escrito ou falado,
emitindo sua opinião acerca de assuntos religiosos. Sua opinião,
porém, a respeito desses assuntos não tem mais valor que a de
qualquer outra pessoa, pela simples razão de que falam a respeito
de coisas que estão muito além de seu conhecimento. O simples
fato de um homem ser uma sumidade dentro de um campo, não lhe
confere o direito de falar, com autoridade, sobre questões fora desse
campo de conhecimento. A verdadeira religião e a verdadeira
ciência nunca se contradizem; mas ministros e cientistas podem
discordar, pessoalmente. Na verdade, a ciência tem feito coisas
maravilhosas. Mas seu domínio está estritamente limitado à parte
material da vida. Não tem autoridade para falar acerca de coisas
espirituais. Quando a ciência se torna um substituto da religião, em
geral se transforma em um falso Messias.
A relação entre a Bíblia e a ciência foi apresentada, de forma
bem clara, pelo Dr. Samuel G. Craig, da seguinte maneira: Uma
coisa é dizer que as Escrituras contêm declarações contrárias aos
ensinos da ciência e da filosofia modernas, e outra coisa totalmente
diferente é dizer que contêm erros comprovados. Estritamente
falando, não existem ciência e filosofia modernas — existem apenas
cientistas e filósofos modernos que divergem entre si. É apenas na
suposição de que as vozes discordantes dos cientistas e filósofos
modernos devem identificar-se com as vozes da ciência e da
filosofia, que alguém se justifica dizendo que a Bíblia contém erros e
isto em virtude de seus ensinos nem sempre estarem de acordo
com os ensinos desses cientistas e filósofos. Porventura alguém
admite que a ciência e a filosofia já atingiram sua forma final? Não
seria melhor afirmar que estão longe de a atingir e que, se os
ensinos da Bíblia estivessem em perfeita harmonia com a ciência e
a filosofia modernas, é quase certo que estariam em desacordo com
a ciência e filosofia do futuro? Por exemplo, se o anti-sobrenatural
da ciência e da filosofia dominantes de hoje for a característica das
mesmas em sua forma definitiva, então a Bíblia conteria, sem
dúvida, muitos erros. No entanto, quem possui competência
suficiente para afirmar que é esse o caso? E, a menos que se prove
que a ciência e a filosofia do futuro sejam essencialmente iguais à
filosofia e ciência do presente, estamos fora da evidência existente,
quando afirmamos que a Bíblia contém erros comprovados, apenas
porque seu ensino está em contradição com os ensinos de
cientistas e filósofos modernos.
5. Fidedignidade da Bíblia
T
Evidentemente, atualmente há muitos sábios que, por várias
razões, tentam lançar o descrédito sobre a Palavra de Deus. Em
geral começam atacando o Antigo Testamento, e levam esse ataque
até o Novo Testamento. Temos, porém, a alegria de dizer que há
muitos sábios, de sabedoria pelo menos igual, que declaram ser a
Bíblia absolutamente digna de confiança. O falecido Dr. Benjamin B.
Warfield, professor de Teologia Sistemática em Princeton durante 35
anos, cremos que o maior teólogo e estudante de grego que jamais
houve na América, depois de examinar a evidência com base na
qual todos os críticos baseavam suas conclusões, não teve qualquer
escrúpulo em declarar que essa evidência era destituída de
qualquer valor, e disse que a Bíblia, do Gênesis ao Apocalipse, é
aquilo que pretende ser: a Palavra de Deus. Seu livro, Revelação e
inspiração, sem dúvida é o melhor livro sobre o assunto. A revista
“Sunday School Times” tem absoluta razão em afirmar que ele
“constitui a defesa mais erudita, exaustiva e convincente da
inspiração da Bíblia jamais escrita, nos últimos tempos”.
Em relação ao Antigo Testamento, nos sentimos em terreno
seguro afirmando que não surgiu até hoje maior autoridade do que
Robert Dick Wilson. Conhecendo perfeitamente 45 línguas e
dialetos, e conhecendo mais acerca do Antigo Testamento do que
qualquer homem atual, apresentou suas conclusões nos seguintes
termos: Dediquei-me constantemente, há quarenta e cinco anos, ao
estudo do Antigo Testamento em todas as línguas, em toda sua
arqueologia, em todas suas traduções e, tanto quanto possível, em
tudo quanto diz respeito a seu texto e a sua história ... A evidência
que possuímos me convence de que Deus falou muitas vezes e de
muitas maneiras pelos profetas e pelo Filho (Hb 1.1), e de que o
Antigo Testamento em hebraico, sendo inspirado diretamente por
Deus, foi conservado puro por sua providência e cuidado.
O mundo continua esperando por uma teoria que forneça um
relato adequado da origem e da autoridade da Bíblia, baseado em
outras hipóteses que não tenham sua origem em Deus. Uma após
outra, as teorias apresentadas caem automaticamente ou são
desmentidas por outros esquemas igualmente destrutivos. Até hoje
nenhuma outra hipótese, com exceção daquela da origem divina,
conseguiu manter-se mais de meio século. Isto, por si só, é uma
prova de que não se pode atribuir a origem do Livro a outros meios
além dos que nos foram apresentados pelos próprios profetas.
Tampouco temos razão para admitir que apareça, no futuro, outra
teoria com possibilidade de êxito. Assim, o único curso racional a
seguir é aceitando aquilo que a Bíblia afirma ser, até que possamos
mudar de opinião.
É interessante demonstrar que através dos séculos a fé cristã
ortodoxa tem se desenvolvido e se defendido mediante esforços
reverentes e ansiosos de Orígenes, de Agostinho, de Erasmo, de
Lutero, de Calvino, de Hodge e de Warfield, os quais acreditavam
na plena inspiração da Bíblia, e não pelos pelagianos, socinianos,
wellhausens[1] e fosdicks[2] com suas dúvidas sobre se Moisés,
Paulo, ou até mesmo Cristo, acreditavam naquilo que disseram.
Nosso desejo é que não haja oportunidade para se dizer de nós o
que se disse daqueles que viveram em épocas passadas: “que
recebemos a Palavra de Deus, tal como foi anunciada pelos anjos, e
não a guardamos”.
R B
Quando afirmamos que a Bíblia é absolutamente fidedigna
quanto a sua apresentação de fatos doutrinários ou éticos, com isso
não queremos dizer que examinamos pessoalmente cada uma de
suas declarações tão cuidadosamente, que nos sentimos
justificados em afirmar que são todas verdadeiras, nem tampouco
queremos dizer com isso que somos oniscientes. Chegamos a esta
conclusão, em primeiro lugar, notando as reivindicações feitas na
Bíblia acerca de sua própria inspiração e fidedignidade; e em
seguida comparamos essa reivindicação com os fatos fornecidos
pela crítica e pela exegese bíblica. Em virtude da muita evidência
que consubstancia esta reivindicação da Bíblia, como, por exemplo,
o alto nível moral e espiritual que existe ao longo de todo o Livro, a
prometida diretriz do Espírito Santo, as muitas profecias feitas em
determinadas épocas, e que no devido tempo tiveram seu
cumprimento, até nos mais insignificantes pormenores, a inerente
unidade do Livro, a forma simples e sem preconceitos com que se
descrevem acontecimentos, etc., e, portanto, na ausência de
quaisquer erros comprovados, concluímos que a Bíblia é aquilo que
pretende ser: um livro inteiramente inspirado. Esta parece ser a
única maneira lógica e compreensível de encarar o problema. Se
rejeitarmos este método para chegarmos a uma conclusão, teremos
de fazer um exame exaustivo de cada parte das Escrituras,
versículo por versículo, declaração por declaração, e provar sua
veracidade ou falsidade. Ao tentarmos este processo, logo
esbarraremos com coisas difíceis de serem discernidas,
declarações sobre as quais não temos informação adequada, e
profecias ainda sem cumprimento. Então descobriremos que
estamos a lutar contra as Escrituras, para nossa própria destruição
espiritual.
A posição dos conservadores sobre este assunto foi
apresentada, de forma bem clara, pelo Dr. Samuel Craig. Depois de
afirmar que “a Bíblia dá testemunho acerca de sua própria
veracidade”, acrescenta: “Se não fosse assim, o máximo que
poderíamos dizer é que a Bíblia não possui erros comprovados. Tal
fato é bem óbvio, se lembrarmos que as partes mais recentes da
Bíblia foram escritas há cerca de dois mil anos; que a Bíblia, como
um todo, trata de períodos de história dos quais, na melhor das
hipóteses, temos apenas informações incompletas; que relata as
crenças e experiências de muitos indivíduos acerca dos quais pouco
sabemos, e que contêm representações que se supõem foram
reveladas de forma sobrenatural, incluindo muitas predições ainda
não cumpridas — para não enumerar outros assuntos. Ninguém,
nem mesmo os sábios mais famosos, possui o mínimo de
conhecimento que seria necessário para poder afirmar, com base
apenas em seu próprio conhecimento, que a Bíblia contém algum
erro. Somos, porém, de opinião que o problema é absolutamente
diferente, se o testemunho de sua veracidade absoluta é em si parte
do fenômeno bíblico. Neste caso, o caminho está aberto para
afirmar sua completa veracidade, sem necessidade de provar uma
negativa universal. Evidentemente, não pretendemos que sejamos
julgados como se afirmássemos que o mero fato de a Bíblia
pretender possuir infalibilidade nos inibe da responsabilidade de
examinar suas passagens e afirmar que parte de seu conteúdo está
de acordo com suas reivindicações. No entanto, se a Bíblia
apresenta tal reivindicação, e se o exame mais cuidadoso nada
revela que a faça contradizer-se, então é possível que essa
reivindicação seja válida. Se, ao examinarmos a Bíblia, verificamos
que todas suas declarações são verídicas, nos sentimos mais
inclinados a crer que as declarações impossíveis de averiguação
são igualmente verídicas. Em suma, nossa defesa, ao afirmarmos a
infalibilidade da Bíblia, baseia-se: 1. Na ausência de erros
comprovados; e 2. No testemunho que a Bíblia apresenta de sua
plena fidedignidade. Nossa confiança na fidedignidade dos
escritores bíblicos é tal que nos sentimos absolutamente
fundamentados ao aceitarmos suas declarações como verdadeiras,
mesmo quando não tenhamos possibilidade de as averiguar”.
Em outro lugar: “Dependemos das Escrituras para nosso
conhecimento de todos os fatos e doutrinas distintos do cristianismo.
Se não podemos confiar nelas, quando falam de si mesmas, como
poderemos confiar nelas quando nos falam acerca da divindade de
Cristo, da redenção por seu sangue, da justificação mediante a fé,
da regeneração efetuada pelo Espírito Santo, da ressurreição dos
mortos e da vida eterna?”.
Além disso, não podemos ver inteiramente a importância do
testemunho a respeito de sua própria veracidade, a menos que
consideremos o fato de que a fidedignidade de Cristo está também
envolvida. Pelas expressões: “A Escritura não pode ser anulada”, e
“até que os céus e a terra passem, nem um jota, nem um til se
omitirá da lei, sem que tudo se cumpra”, ele atribui plena autoridade
ao Antigo Testamento, como um todo orgânico, e faz dele a regra de
vida. Nestes pontos não existe qualquer dúvida a respeito da pureza
do texto grego. Assim, a autoridade das Escrituras e a autoridade de
Cristo estão ambas ligadas inseparavelmente. Infelizmente há quem
se incline perante ele e se regozije nele, como o Mestre e Senhor, e
simultaneamente impute às Escrituras erros, não só históricos, mas
também morais. No entanto, não é possível manter uma atitude tão
inconsistente. Parece-nos absurdo que sejamos a um só tempo
seus adoradores e seus críticos. Só a ignorância ou a falta de
reflexão torna possível que alguém pense que pode continuar a ser
ortodoxo em sua concepção acerca de Jesus, aceitando,
igualmente, muitos pontos de vista de críticos destrutivos. Quando
dizemos: “Jesus, ensina-me isto ou aquilo, mas a verdade é esta ou
aquela”, já não lhe prestamos culto como Senhor e Mestre. Deste
modo, a pergunta “Que pensais vós de Cristo; de quem é ele Filho?”
é perfeitamente paralela à pergunta: “Que pensais vós da Bíblia; de
que fonte vem este Livro?”. A investigação nos convence de que a
Bíblia, e bem assim o Cristo por ela apresentado, é verdadeiramente
humana e verdadeiramente divina. Do mesmo modo que ele era
verdadeiro homem, tentado em tudo como nós o somos, mas sem
pecado, porquanto era divino, também a Bíblia na verdade é um
livro humano, escrito por homens como nós, porém sem erros,
porquanto é também divina.
Quando dizemos que a inspiração abrange todas as partes da
Bíblia, com isso não queremos dizer que todas suas partes são
igualmente importantes. Admite-se, de boa vontade, que Gênesis,
Mateus ou Apocalipse, por exemplo, têm muito mais significância do
que 2 Crônicas, Ageu ou Judas. Como Paulo diz: “Uma estrela
difere, em glória, de outra estrela” — e no entanto Deus a todas elas
criou. No corpo humano, alguns órgãos têm muito mais valor do que
outros: os olhos, por exemplo, ou o coração, são mais valiosos que
os dedos ou o cabelo. De fato, quase podemos viver prescindindo
de certos órgãos, embora um corpo completo seja muito mais
desejável e saudável. O mesmo se pode dizer da Bíblia: nem todas
suas partes têm o mesmo valor, mas todas são igualmente
verdadeiras.
Além disso, não pretendemos dizer que, se não houvesse
inspiração, não haveria cristianismo. De bom grado admitimos que,
se os escritores bíblicos dependessem apenas de suas faculdades,
como se fossem historiadores e mestres ordinários, a despeito disso
poderiam fornecer-nos relatos precisos das mensagens que
tivessem recebido e dos acontecimentos que ocorreram, e que o
cristianismo assim mesmo teria prosseguido, ainda que de uma
forma muito mais pobre. Mesmo que a Bíblia, como livro, se tivesse
perdido por completo, as verdades essenciais a respeito do caminho
da salvação nos teriam sido transmitidas, relativamente puras. Mas,
a quantas incertezas, dúvidas e erros, gerando constantemente
erros piores, estaríamos expostos! Não se pode negar que assim
teríamos somente uma forma de cristianismo, muito fraca e pobre.
Para podermos apreciar o que nos aconteceria, basta-nos olhar
para certos grupos, tais como a igreja romana, a igreja ortodoxa, as
igrejas nestoriana e copta, e para os modernistas de nossos dias,
com sua Bíblia indigna de confiança e sua confusão sem fronteiras.
Nas duas primeiras igrejas citadas, negou-se ao povo o acesso às
Escrituras; as outras duas possuem as Escrituras, porém mescladas
com muito erro. Portanto, sem a Bíblia talvez tivéssemos alguma
forma de cristianismo, porém quão pobre seria! Que privilégio é
possuirmos um Livro, cada linha do qual nos sendo transmitida por
inspiração divina! Quem pode medir o valor exato de um privilégio
como este? Na verdade, a prática tem demonstrado que o fator que
mais solidamente tem contribuído para a conservação do verdadeiro
cristianismo, através dos séculos, tem sido uma Bíblia digna de
confiança nas mãos do povo.
Cremos que a Bíblia, tal como a conhecemos, está completa e
nenhum outro livro se lhe deve acrescentar. Cremos assim porque a
Bíblia nos dá um relato suficientemente claro da relação existente
entre Deus e os homens, e do plano divino de redenção, tal como foi
realizado por Cristo, e que está sendo aplicado agora a seu povo
pelo Espírito Santo. É isto que a Confissão de fé Westminster
apresenta, quando diz: “Todo o conselho de Deus acerca das coisas
necessárias para sua própria glória, salvação, fé e vida do homem é
expressamente apresentado nas Escrituras, ou pode ser deduzido
delas, como consequência boa e necessária, à qual nada se pode
acrescentar, em tempo algum, seja por novas revelações do
Espírito, ou por tradição do homem”.
Devemos ter em mente que a doutrina protestante da
inspiração e autoridade das Escrituras difere fundamentalmente da
que é sustentada pela igreja romana. O Concílio de Trento, que
reuniu-se na cidade italiana do mesmo nome, e cujas sessões
terminaram em 1653, fixou as regras que a Igreja Romana tem
desde então defendido consistentemente. Afirmam a inspiração
divina e a autoridade das Escrituras, porém com algumas reservas.
Declaram que a Vulgata, tradução latina da Bíblia feita por
Jerônimo, terminada em 405, é o texto autêntico das Escrituras, e
que “ninguém deve atrever-se ou pretender rejeitá-lo sob qualquer
pretexto”. Além disso, e o que é mais importante, introduzem uma
estimativa fundamentalmente diferente do lugar das Escrituras na
religião, e da religião em si, quando colocam, juntamente com as
Escrituras e como possuindo igual autoridade, certas tradições da
Igreja que em geral consistem de decretos papais e dos concílios da
Igreja, e declaram que se deve reconhecer unicamente a Igreja
como o único juiz do significado e interpretação das Sagradas
Escrituras”. Isto coloca a autoridade final da interpretação das
Escrituras nas mãos de homens falíveis e pecadores, e abre de par
em par a porta a toda espécie de erro.
6. Posição inconsistente dos modernistas
C B P D
Surge agora, naturalmente, a seguinte questão: Como
podemos saber que a Bíblia é a Palavra de Deus? Eis nossa
resposta: Pelo testemunho do Espírito Santo em nossos corações,
ao examiná-la. Quando o crente lê a Bíblia, instintivamente sente
que Deus lhe está falando. O Espírito Santo testifica com seu
espírito que essas coisas são como dizem ser; as bases primordiais
para sua convicção são internas, e não externas. Aos que são
espirituais, a Palavra autentica-se a si própria. Na verdade, o crente
encontra muita segurança adicional ao verificar as muitas
excelências das Escrituras, como sejam as sublimes verdades
espirituais e morais que ela apresenta; a unidade das várias partes;
a magnificência de seu estilo; sua influência benéfica, onde quer
que ela chegue; o apelo que faz tanto ao erudito quanto ao
camponês; suas declarações da verdade, em linguagem tão simples
que até uma criança pode entender seu significado; enquanto que,
por outro lado, o homem mais sábio não é capaz de esgotar sua
profundidade, o cumprimento detalhado de suas profecias, séculos
depois de terem sido proferidas, etc. Eis, na verdade, algumas
provas que obrigam sua aceitação, e que podem ser usadas, com
êxito, para calar a boca dos opositores. A despeito de tudo, elas não
têm senão um valor relativo. Fora da iluminação do Espírito Santo,
jamais poderão convencer o incrédulo, por mais lógica e habilmente
sejam elas apresentadas.
Tentar provar a origem divina da Bíblia por meio de provas
externas equivale pretender provar a existência de Deus através do
mundo exterior. Podemos citar os argumentos ontológicos,
teleológicos, cosmológicos ou morais, o que bastará ao crente.
Apesar disso, esses argumentos não são demonstrativos e
coercivos, e os incrédulos não se darão por convencidos. Se
consentirmos em fortalecer a autoridade da Bíblia por meios
exteriores, estaremos permitindo o combate no terreno do
adversário, e nesse caso temos de aproveitar ao máximo possível
nossos argumentos. Em si, esses argumentos são de tal natureza
que suscitam dúvida na alma não-regenerada, e não podem
resolver o assunto definitivamente. Se sairmos ao combate nesse
terreno, faremos uma concessão ao racionalismo que pressupõe ser
a razão humana capaz de julgar e de apreciar todas as experiências
humanas, e nega a necessidade da revelação divina, não importa
qual seja.
No íntimo de nosso ser, somos regenerados ou não-
regenerados. Paulo diz que “o homem natural não compreende as
coisas do Espírito de Deus, porque elas lhe parecem loucura; e não
pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente” (1Co
2.14). E, em outro lugar, diz que o evangelho de Cristo crucificado é
“escândalo para os judeus e loucura para os gregos; mas para os
que são chamados, quer judeus, quer gregos, é o poder de Deus e
a sabedoria de Deus” para a salvação (1Co 1.24). Por conseguinte,
o homem não-regenerado tem uma atitude antagônica, e não se
deixará convencer mesmo que lhe seja apresentado todo o
testemunho externo de que se possa lançar mão. Todas as pessoas
têm de escolher entre a voz de Deus e a voz do mundo; e a decisão
de sua escolha, do que para eles possui maior autoridade, depende
de serem ou não regenerados. É impossível à alma humana, sem
qualquer auxílio, compreender as coisas profundas do Espírito,
como é para o psicanalista comum dar explicação adequada do
processo da salvação. Todos os esforços que tendem a convencer a
alma não-regenerada da origem divina da Bíblia, por meio de provas
eruditas ou históricas, só podem resultar em fracasso e têm de ser
abandonados, de forma tão completa, como fez Jesus quando
desistiu de convencer os membros do Sinédrio de que ele não era
culpado de blasfêmia, já que tinham resolvido, em seu íntimo, o
contrário. Foi este o princípio que fez com que a igreja protestante
resistisse, no tempo da Reforma, à igreja romana. Enquanto os
romanistas reconheciam a igreja como a fonte de autoridade, e os
humanistas admitiam a razão humana, o princípio protestante de
que a Confissão de fé Westminster é um princípio típico, era de que
a voz de Deus, falando à alma, é a fonte de autoridade. “A
autoridade das Sagradas Escrituras, nas quais devemos crer e às
quais obedecer, não depende do testemunho de nenhum homem,
nem de nenhuma Igreja, mas sim inteiramente de Deus, que é a
Verdade e seu Autor; e portanto deve ser recebida, porquanto é a
Palavra de Deus ... Nossa convicção e segurança profundas na
verdade infalível e em sua autoridade divina está na razão da
operação interior do Espírito Santo que dá testemunho por meio da
Palavra e com a Palavra em nossos corações” (I, IV, V). Está fora de
dúvida que alcançaríamos muito maior progresso nas discussões,
atualmente, se nos lembrássemos sempre deste princípio.
Em suma, a fé do crente não depende de provas externas,
mas da experiência interior. O crente vive pelas Escrituras e se
deleita em sua luz. Tem segurança consciente e íntima — chamem-
lhe misticismo ou outro título qualquer — de que é filho de Deus, e
de que as Escrituras são a Palavra de Deus. As provas externas
servem para classificar e fortalecer sua fé, mas a prova absoluta e
infalível de que o sistema cristão é, sem dúvida, o verdadeiro
sistema procede do testemunho do Espírito Santo em seu coração,
quando as lê, e em sua experiência como crente. Mesmo que não
possua o conhecimento de todas as evidências eruditas e
científicas, que lhe permitiriam defrontar os críticos destrutivos em
seu próprio terreno, o crente repele todas suas dúvidas da mesma
maneira como fez o cego curado pelo Salvador, que replicava a
todos os argumentos dos fariseus, com sua convicção inabalável:
“Se é pecador, não sei; de uma coisa eu sei: eu era cego, e agora
vejo”. O crente não pede autorização ao crítico para crer, da mesma
forma que não pede autorização ao médico para respirar, pois
ambas as coisas são para ele absolutamente naturais e
espontâneas. Na verdade julga que o estudo científico e erudito
fornece uma diretriz mais clara da Palavra, e que lhe permite
sistematizá-la e compreendê-la melhor. Mas a autoridade suprema
de sua crença vem do coração e não do processo racional de sua
própria cabeça.
Isto não significa que ele menospreza a sabedoria e a ciência.
Em parte alguma se encontra o princípio da ciência sadia e de
investigação científica em condições mais puras do que entre os
verdadeiros e leais crentes das igrejas evangélicas. De fato,
estamos convencidos de que, se não fora o auxílio prestado pela
sabedoria, a fé cristã estaria praticamente indefesa perante os
ataques do inimigo. Desejamos uma base sólida para nossa fé, e
nossa investigação mostra que a possuímos. Reconhecemos que as
provas externas, ao serem apresentadas ao incrédulo, de forma
racional, apontam o caminho para Deus e muitas vezes preparam o
coração para a obra do Espírito Santo. Desejamos, no entanto,
mostrar que estas provas em que alguns tanto confiam são
destituídas de valor, a menos que sejam suplementadas pelo
Espírito Santo nos corações.
É possível que nossos adversários se queixem de que este
método à discussão seja um aspecto demasiadamente dogmático.
Esquecem, porém, que agem exatamente do mesmo modo: partem
também de premissas que são axiomáticas, ainda que pretendam
que estão sujeitos, de forma absoluta, à razão. Sua proposição é
que a razão humana é competente para julgar todas as coisas, até
mesmo as coisas profundas de Deus. Ainda que reconheçamos ser
seu ponto de partida errado, não nos queixamos disso, pois eles
não podem fazer outra coisa: a mente que não é iluminada pelo
Espírito Santo não pode discernir as coisas do Espírito. Como disse
Thornwall, e muito bem: “A realidade da evidência é uma coisa; o
poder para percebê-la é outra muito diferente. Não é válida uma
objeção contra o brilho do sol, se não pode dar luz aos cegos”. Cada
um de nós determina seus métodos. O mais que podemos pedir é
que esses princípios sejam postos à prova, e que se nos dê a
oportunidade de verificar qual deles se enquadra melhor nas
realidades da vida.
Conclusão
Benjamin B. Warfield
1. O significado dos termos
[1] Referência a Julius Wellhausen (1844-1918), estudioso alemão famoso por suas
investigações críticas do Antigo Testamento. [N. do R.]
[2] Referência a Harry Emerson Fosdick (1878-1969), ministro batista liberal. [N. do R.]