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Decore os melhores poemas da língua portuguesa

1. Sonetos Gêmeos (2). (Augusto Meyer)


2. Última Canção do Beco (Manuel Bandeira)
3. Renúncia (Manuel Bandeira)
4. Os Ombros Suportam o Mundo (Carlos Drummond)
5. Na Mão de Deus (Antero de Quental)
6. Transcendentalismo (Antero de Quental)
7. Dois Últimos Sonetos (2). (Bocage)
8. Soneto Plagiado de Augusto Frederico Schmidt (Manuel Bandeira)
9. Oh, como se alonga a peregrinação cansada minha! (Camões)
10. --üa memória nova e nunca ouvida, (Camões)
11. Na ribeira do Eufrates assentado, (Camões)
12. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades (Camões)
13. Julga-me a gente toda por perdido, (Camões)
14. Em prisões baixas fui um tempo atado, (Camões)
15. Cá nesta Babilônia, donde mana (Camões)
16. Correm turvas as águas deste rio, (Camões)
17. Conversação doméstica afeiçoa, (Camões)
18. Vós outros, que buscais repouso certo (Camões)
19. Transforma-se o amador na cousa amada, (Camões)
20. Sete anos de pastor Jacob servia (Camões)
21. Em Frontispício (Bruno Tolentino)
22. A Voz Acima das Portas (Jorge de Lima)
23. A Outra Dor (Jorge de Lima)
24. O Homem, A Luta, A Eternidade (Murilo Mendes)
25. O Impenitente (Murilo Mendes)
26. Mapa (Murilo Mendes)
27. Vazio (Augusto Frederico Schmidt)
28. O Sonho da Argila (Thiago de Mello)
29. Soneto da Precoce Descoberta (Ângelo Monteiro)
30. O Poder dos Brinquedos (Ângelo Monteiro)
31. Penso na Cruz, naturalmente... E se a resisto, (Bruno Tolentino)
32. Ao Divino Assassino (Bruno Tolentino)
33. Soneto de Natal 2016 (Olavo de Carvalho)
Sonetos Gêmeos
(Augusto Meyer)

Gota de luz no cálice de agosto,


Sabe a lúcida calma o desengano.
Em vão devora o tempo o mês e ao ano:
Vindima é a vida, vinho me é o sol-posto.

Cobre-se o vale de um rubor humano.


Um beijo solto voa no ar, um gosto
De uva madura, um aroma de mosto
Desce da rubra luz do céu serrano.

Vem, noite grave. E assim chegasse o outono


Meu, tão sutil e manso como agora
Mesmo subiu a sombra serra acima...

Tudo se apague e a hora esqueça a hora,


Que só do sonho eu vivo, e grato é o sono
A quem provou seu dia de vindima.

II

A quem provou seu dia de vindima


Votado ao outro lado, ao eco, ao nada,
Grata é a sombra mais longa e o fim da estrada
Começo de um descer, que é mais acima.

Grave, de uma tristeza inconsolada


Mas fiel, a minha sombra é a minha rima.
Princípio de um além que se aproxima
É o fim, talvez limiar de outra morada.

Gosto amargo e tão doce de ter sido


Poroso a tudo, alma aberta às auroras
Que hão de nascer, e ao lembrado e esquecido!

Saudade! mas saudade em que não choras


Senão cantando, o próprio mal vivido…
Que as horas voltem sempre, as mesmas horas!
Última Canção do Beco
(Manuel Bandeira)

Beco que cantei num dístico


Cheio de elipses mentais,
Beco das minhas tristezas,
Das minhas perplexidades
(Mas também dos meus amores,
Dos meus beijos, dos meus sonhos),
Adeus para nunca mais!

Vão demolir esta casa.


Mas meu quarto vai ficar,
Não como forma imperfeita
Neste mundo de aparências:
Vai ficar na eternidade,
Com seus livros, com seus quadros,
Intacto, suspenso no ar!

Beco de sarças de fogo,


De paixões sem amanhãs,
Quanta luz mediterrânea
No esplendor da adolescência
Não recolheu nestas pedras
O orvalho das madrugadas,
A pureza das manhãs!

Beco das minhas tristezas.


Não me envergonhei de ti!
Foste rua de mulheres?
Todas são filhas de Deus!
Dantes foram carmelitas…
E eras só de pobres quando,
Pobre, vim morar aqui.

Lapa — Lapa do Desterro —,


Lapa que tanto pecais!
(Mas quando bate seis horas,
Na primeira voz dos sinos,
Como na voz que anunciava
A conceição de Maria,
Que graças angelicais!)
Nossa Senhora do Carmo,
De lá de cima do altar,
Pede esmolas para os pobres,
— Para mulheres tão tristes,
Para mulheres tão negras,
Que vêm nas portas do templo
De noite se agasalhar.

Beco que nasceste à sombra


De paredes conventuais,
És como a vida, que é santa
Pesar de todas as quedas.
Por isso te amei constante
E canto para dizer-te
Adeus para nunca mais!
Renúncia
(Manuel Bandeira)

Chora de manso e no íntimo... procura


Tentar curtir sem queixa o mal que te crucia:
O mundo é sem piedade e até riria
Da tua inconsolável amargura.

Só a dor enobrece e é grande e é pura.


Aprende a amá-la que a amarás um dia.
Então ela será tua alegria,
E será ela só tua ventura...

A vida é vã como a sombra que passa


Sofre sereno e de alma sombranceira
Sem um grito sequer tua desgraça.

Encerra em ti tua tristeza inteira


E pede humildemente a Deus que a faça
Tua doce e constante companheira..
Os Ombros Suportam o Mundo
(Carlos Drummond)

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.


Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.


Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?


Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
Na Mão de Deus
(Antero de Quental)

Na mão de Deus, na sua mão direita,


Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortais, com que se enfeita


A ignorância infantil, despojo vão,
Depois do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.

Como criança, em lôbrega jornada,


Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,

Selvas, mares, areias do deserto...


Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!
Dois Últimos Sonetos
(Bocage)

Não encontrado!
Transcendentalismo
(Antero de Quental)

Já sossega, depois de tanta luta,


Já me descansa em paz o coração.
Caí na conta, enfim, de quanto é vão
O bem que ao Mundo e à Sorte se disputa.

Penetrando, com fronte não enxuta,


No sacrário do templo da Ilusão,
Só encontrei, com dor e confusão,
Trevas e pó, uma matéria bruta…

Não é no vasto mundo — por imenso


Que ele pareça à nossa mocidade —
Que a alma sacia o seu desejo intenso…

Na esfera do invisível, do intangível,


Sobre desertos, vácuo, soledade,
Vôa e paira o espírito impassível!
Soneto Plagiado de Augusto Frederico
Schmidt
(Manuel Bandeira)

E de súbito nalma incompreendida


Esta mágoa, esta pena, esta agonia;
Nos olhos ressequidos a sombria
Fonte de pranto, quente e irreprimida.

No espírito deserto, a impressentida


Misteriosa presença que não via;
A consciência do mal que não sabia,
Aparecida, desaparecida…

Até bem pouco, era uma imagem baça.


Agora, neste instante de certeza,
Surgem do claro, como nunca o vi!

E nesse olhar tocado pela graça


Do céu, não sei que angélica pureza,
— Pureza que não tenho, que perdi.
Oh, como se alonga a peregrinação
cansada minha!
(Camões)

Oh, como se me alonga, de ano em ano,


A peregrinação cansada minha!
Como se encurta, e como ao fim caminha
Este meu breve e vão discurso humano!

Vai-se gastando a idade e cresce o dano;


Perde-se-me um remédio, que inda tinha;
Se por experiência se adivinha,
Qualquer grande esperança é grande engano.

Corro após este bem que não se alcança;


No meio do caminho me falece,
Mil vezes caio, e perco a confiança.

Quando ele foge, eu tardo; e, na tardança,


Se os olhos ergo a ver se inda parece,
Da vista se me perde e da esperança.
-üa memória nova e nunca ouvida
(Camões)

Não passes, caminhante! Quem me chama ?


—üa memória nova e nunca ouvida
de um que trocou finita e humana vida,
por divina, infinita e clara fama.

Quem é que tão gentil louvor derrama?


—Quem derramar seu sangue não duvida
por seguir a bandeira esclarecida
de um capitão de Cristo, que mais ama.

Ditoso fim, ditoso sacrificio,


que a Deus se fez e ao mundo juntamente,
apregoando direi tão alta sorte.

Mais poderás contar a toda a gente,


que sempre deu sua vida claro indício
de vir a merecer tão santa morte.
Na ribeira do Eufrates assentado
(Camões)

Na ribeira do Eufrates assentado,


Discorrendo me achei pela memória
Aquele breve bem, aquela glória,
Que em ti, doce Sião, tinha passado.

Da causa de meus males perguntado


Me foi: Como não cantas a história
De teu passado bem e da vitória
Que sempre de teu mal hás alcançado?

Não sabes, que a quem canta se lhe esquece


O mal, inda que grave e rigoroso?
Canta, pois, e não chores dessa sorte.

Respondi com suspiros: Quando cresce


A muita saudade, o piedoso
Remédio é não cantar senão a morte.
Mudam-se os tempos, mudam-se as
vontades
(Camões)

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,


Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,


Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,


Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,


Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.
Julga-me a gente toda por perdido
(Camões)

Julga-me a gente toda por perdido,


vendo-me tão entregue a meu cuidado,
andar sempre dos homens apartado,
e dos tratos humanos esquecido.

Mas eu, que tenho o mundo conhecido,


e quási que sobre ele ando dobrado,
tenho por baixo, rústico, enganado,
quem não é com meu mal engrandecido.

Vão revolvendo a terra, o mar e o vento,


busquem riquezas, honras a outra gente,
vencendo ferro, fogo, frio e calma;

que eu só em humilde estado me contento,


de trazer esculpido eternamente
vosso fermoso gesto dentro n’alma.
Em prisões baixas fui um tempo atado
(Camões)

Em prisões baixas fui hum tempo atado;


Vergonhoso castigo de meus erros:
Inda agora arrojando levo os ferros,
Que a morte, a meu pezar, tẽe ja quebrado.

Sacrifiquei a vida a meu cuidado,


Que Amor não quer cordeiros nem bezerros;
Vi mágoas, vi miserias, vi desterros:
Parece-me que estava assi ordenado.

Contentei-me com pouco, conhecendo


Que era o contentamento vergonhoso,
Só por ver que cousa era viver ledo.

Mas minha Estrella, que eu ja agora entendo,


A Morte cega, e o Caso duvidoso
Me fizerão de gostos haver medo.
Cá nesta Babilônia, donde mana
(Camões)

Cá nesta Babilónia, donde mana


Matéria a quanto mal o mundo cria;
Cá, onde o puro Amor não tem valia,
Que a Mãe, que manda mais, tudo profana;

Cá, onde o mal se afina, o bem se dana,


E pode mais que a honra a tirania;
Cá, onde a errada e cega Monarquia
Cuida que um nome vão a Deus engana;

Cá, neste labirinto, onde a Nobreza,


O Valor e o Saber pedindo vão
Às portas da Cobiça e da Vileza;

Cá, neste escuro caos de confusão,


Cumprindo o curso estou da natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião!
Correm turvas as águas deste rio
(Camões)

Correm turvas as águas deste rio,


Que as do céu e as do monte as enturbaram;
Os campos florescidos se secaram,
Intratável se fez o vale, e frio.

Passou o Verão, passou o ardente Estio,


Úas cousas por outras se trocaram;
Os fementidos Fados já deixaram
Do mundo o regimento, ou desvario.

Tem o tempo sua ordem já sabida;


O mundo, não; mas anda tão confuso,
Que parece que dele Deus se esquece.

Casos, opiniões, natura e uso


Fazem que nos pareça desta vida
Que não há nela mais que o que parece.
Conversação doméstica afeiçoa
(Camões)

Conversação doméstica afeiçoa,


ora em forma de boa e sã vontade,
ora d’uma amorosa piedade,
sem olhar qualidade de pessoa.

Se despois, porventura, vos magoa


com desamor e pouca lealdade,
logo vos faz mentira da verdade
e brando Amor, que tudo em si perdoa.

Não são isto que falo conjecturas,


que o pensamento julga na aparência,
por fazer delicadas escrituras.

Metido tenho a mão na consciência,


e não falo senão verdades puras
que m’ensinou a vida experiência.
Vós outros, que buscais repouso certo
(Camões)

Vós outros, que buscais repouso certo


Na vida, com diversos exercicios;
A quem, vendo do mundo os beneficios,
O regimento seu fica encoberto;

Dedicai, se quereis, ao Desconcêrto


Novas honras e cegos sacrificios;
Que, por castigo igual de antiguos vicios,
Quer Deos que andem as cousas por acêrto.

Não cahio neste modo de castigo


Quem poz culpa á Fortuna, quem somente
Crê que acontecimentos ha no mundo.

A grande experiencia he grão perigo:


Mas o que a Deos he justo e evidente
Parece injusto aos homens e profundo.
Transforma-se o amador na cousa
amada
(Camões)

Transforma-se o amador na cousa amada,


Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,


Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semideia,


Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim co'a alma minha se conforma,

Está no pensamento como ideia;


[E] o vivo e puro amor de que sou feito,
Como matéria simples busca a forma.
Sete anos de pastor Jacob servia
(Camões)

Sete anos de pastor Jacob servia


Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
e a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,


passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos


lhe fora assi negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida,

começa de servir outros sete anos,


dizendo: – Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida.
Em Frontispício
(Bruno Tolentino)

O Senhor prometera nos compensar os anos


que a legião dos gafanhotos devorara,
meu coração, mas a promessa era tão rara
que achei mais natural vê-Lo mudar de planos

que afinal ocupar-Se de assuntos tão mundanos.


Assombra-me, portanto, ver uma luz tão clara
fecundar-me as cantigas, coração meu — repara
como crescem espigas entre escombros humanos…

Naturalmente, quem sou eu para que Deus


cumprisse em minha vida promessa tão perfeita,
e no entanto hei-Lo arando, limpando os olhos meus,

fazendo-os ver que, no trigal em que se deita


a luz dourada e musical, se algo perdeu-se
foi como o grão — entre a seara e a colheita.
A Voz Acima das Portas
(Jorge de Lima)

Não encontrado!
A Outra Dor
(Jorge de Lima)

Não encontrado!
O Homem, A Luta, A Eternidade
(Murilo Mendes)

Adivinho nos planos da consciência


dois arcanjos lutando com esferas e pensamentos
mundo de planetas em fogo
vertigem
desequilíbrio de forças,
matéria em convulsão ardendo pra se definir.
Ó alma que não conhece todas as suas possibilidades,
o mundo ainda é pequeno pra te encher.
Abala as colunas da realidade,
desperta os ritmos que estão dormindo.
À guerra! Olha os arcanjos se esfacelando!

Um dia a morte devolverá meu corpo,


minha cabeça devolverá meus pensamentos ruins
meus olhos verão a luz da perfeição
e não haverá mais tempo.
O Impenitente
(Murilo Mendes)

Quem me consolará no mundo vão?


Homens, tenho convosco a relação da forma.
Nuvem Sólida, rosa virginal, água Branca
E tu, antiga sinfonia aérea,
Pertenceis ao anjo, não a mim.
Eu digo ao pecado: Tu és meu pai.
Eu digo à podridão: Tu és minha irmã.
A presença real do demônio
É meu pão de vida cotidiano:
Minha alma comprime a aleluia gloriosa.

Hóstias puras,
Inutilmente vos ergueis sobre mim.
Mapa
(Murilo Mendes)

Me colaram no tempo, me puseram


uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou
limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,
a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação.
Me vejo numa nebulosa, rodando sou um fluído,
depois chego à consciência da terra, ando como os outros,
me pregaram numa cruz, numa única vida.
Colégio. Indignado, me chamam pelo número, detesto a hierarquia.
Me puseram o rótulo de homem, vou rindo, vou andando, aos solavancos.
Danço. Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado,
gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos do ar,
alguém da terra me faz sinais, não sei mais o que é o bem
nem o mal.
Minha cabeça voou acima da baía, estou suspenso, angustiado, no éter,
tonto de vidas, de cheiros, de movimentos, de pensamento,
não acredito em nenhuma técnica.
Estou com os meus antepassados, me balanço em arenas espanholas,
é por isso que saio às vezes pra rua combatendo personagens imaginários,
depois estou com os meus tios doidos, às gargalhadas,
na fazenda do interior, olhando os girassóis do jardim
Estou no outro lado do mundo, daqui a cem anos, levantando populações...
Me desespero porque não posso estar presente a todos os atos da vida.
Onde esconder minha cara? O mundo samba na minha cabeça.
Triângulos, estrelas, noite, mulheres andando,
presságios brotando no ar, diversos pesos e movimentos me chamam a atenção
o mundo vai mudar a cara,
a morte revelará o sentido verdadeiro das coisas.

Andarei no ar.
Estarei em todos os nascimentos e em todas as agonias,
me aninharei nos recantos do corpo da noiva,
na cabeça dos artistas doentes, dos revolucionários.
Tudo transparecerá:
vulcões de ódio, explosões de amor, outras caras aparecerão na terra,
o vento que vem da eternidade suspenderá os passos
dançarei na luz dos relâmpagos, beijarei sete mulheres
vibrarei nos cangerês do mar, abraçarei as almas no ar
me insinuarei nos quatro cantos do mundo.
Almas desesperadas eu vos amo. Almas insatisfeitas, ardentes.
Detesto os que se tapeiam,
os que brincam de cabra-cega com a vida, os homens "práticos". ..
Viva São Francisco e vários suicidas e amantes suicidas,
os soldados que perderam a batalha, as mães bem mães,
as fêmeas bem fêmeas, os doidos bem doidos.
Vivam os transfigurados, ou porque eram perfeitos ou porque jejuavam muito.
viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente.
Sou a presa do homem que fui há vinte anos passados,
dos amores raros que tive,
vida de planos ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor,
tudo é ritmo do cérebro do poeta. Não me inscrevo em nenhuma teoria,
estou no ar,
na alma dos criminosos, dos amantes desesperados,
no meu quarto modesto da praia de Botafogo,
no pensamento dos homens que movem o mundo,
nem triste nem alegre, chama com dois olhos andando,
sempre em transformação.
Vazio
(Augusto Frederico Schmidt)

A poesia fugiu do mundo.


O amor fugiu do mundo —
Restam somente as casas,
Os bondes, os automóveis, as pessoas,
Os fios telegráficos estendidos,
No céu os anúncios luminosos.

A poesia fugiu do mundo.


O amor fugiu do mundo —
Restam somente os homens,
Pequeninos, apressados, egoístas e inúteis.
Resta a vida que é preciso viver.
Resta a volúpia que é preciso matar.
Resta a necessidade de poesia, que é preciso contentar.
O Sonho da Argila
(Thiago de Mello)

O vocábulo puro, em que me amparo,


esquiva-se a meu jugo; e raro canto.
Que a palavra da boca é sempre inútil
se o sopro não lhe vem do coração.

Mudo, contemplo os valerosos feitos


de quem funda caminhos sobre os mares
e edifica cidades e ergue torres
de cujo topo logre dominar
o mundo inteiro - e ver que o mundo é pouco.

Antes os que, cegos, trabalham a terra,


sorvendo-lhe os tesouros mais esconsos,
sem assombro, no convívio dos bois,
com eles aprendendo ser humildes,
e dormem, vinda a noite, sossegados,
- permaneço calado, e todavia
algo em mim lhes inveja esse dormir.
Não me pranteio por saber-me turvo
ou por não me caber a paz dos brutos.
Sei que morro amanhã, mas não me louvo
a sóbria face que disfarça o medo.
Move-me ao canto ver que a sombra cresce
dentro de mim, enquanto um sol avaro
esplende oculto - em céus só vislumbrados
quando a argila, grotesca e ousada, sonha.
E ver o inútil dessa argila em sonho,
mais que mover-me ao canto, me comove.
Soneto da Precoce Descoberta
(Ângelo Monteiro)

Não encontrado!
O Poder dos Brinquedos
(Ângelo Monteiro)

Quantas vezes os brinquedos que criamos


Se libertam de nós e nos comandam
Sem supormos estar em seu poder?
Quantas vezes os brinquedos são mais que brinquedos
Em sua estranha vida, a ensinar-nos surpresas
Como a de uma linguagem
De poesia, em que tudo é puro sonho,
Ou de terror, quando seus monstros investem
Contra o puro sonho que nos salva?
Como banhar-nos nas avenidas do dia,
Se impelidos para amanhãs não suspeitados
Somos flechas sem destino, somos títeres
Da própria farsa que engendramos
Para nos livrar do silêncio das coisas
E o domínio alcançar da árvore da ciência
Do bem como do mal?
E tudo ao custo do esquecimento
Da árvore da vida! Pobre árvore da vida,
Que não serás mais verde nem eterna!
Penso na Cruz, naturalmente... E se a resisto
(Bruno Tolentino)

Penso na Cruz, naturalmente . .. E se a resisto,


entendo que me agrava assim, quando me pesa
porque me restitui ao real, à nobreza
agônica de tudo. Subo a colina e um misto
de escuridão e de lanterna é quanto avisto,
os vaga-lumes que há no ser ... Se a realeza
coroada da graça de morrer como a presa,
não como o arqueiro ou sua flecha, como o Cristo,
se essa agonia de monarca sem reinado
não for minha alegria, de que hei de viver?
Se o meu calvário é Alexandria, é esse passado
que me ilumina como um falso amanhecer
minha cruz nem sequer é minha, mas do ser
que se abraça a um vazio e morre, o ser amado.
Ao Divino Assassino
(Bruno Tolentino)

Uma litania ante o Sagrado Coração

concebida em Paray-le-Maulnier, tempos

depois do acidente fatal de Anecy Rocha

Senhor, Senhor, o Teu anjo terrível

é sempre assim? Não tens um refratário

à hora do massacre – um mais sensível

que atrasasse o relógio, o calendário?

Ao que parece a todos tanto faz

por quem o sino dói no campanário.

Começa a amanhecer e uma vez mais

rebelo-me, mas sei que a minha vida

não tem como ou por que voltar atrás.

Aceito que a mais dura despedida

é bem mais que metáfora do nada

a que se inclina o chão; que uma ferida

e a papoula sangrenta da alvorada

pertencem ao mundo sobrenatural

tanto quanto uma lágrima enxugada

à beira de um caixão. Mas afinal,

Senhor, amas ou não a humanidade?

Não fui ao escandaloso funeral


e imaginá-la em Tua eternidade

dói demais! Vou passar mais este teste,

sim, mas protesto contra a insanidade

com que arrancas à muque o que nos deste!

Tu sabes que a soberba da família

era maior que a dela e eu tinha a peste –

pai e mãe apartavam-me da filha

e o irmãozão nem falar… E hoje, coitados,

como hão de estar? Aqui é a maravilha,

as genuflexões… Os potentados

e os humildes, a nata da esperança,

todos chegam por cá meio esfolados,

sangrando como a luz. Não só da França,

toda a Europa rasteja até aqui

esfolando os joelhos, não se cansa

de ensangüentar-se até chegar a Ti

e ao menos a um pixote do Além Tejo

restituíste a vista; eu quando o vi

solucei – mas que o cego e o paraplégico

saiam aos pinotes, que o Teu coração

se escancare e esparrame um privilégio

aqui e outro acolá na multidão,

só me faz perguntar: E ela? E ela…?

Não consigo entender que a um aleijão


concedas tanto enquanto a uma camélia

Tu deixas despencar… Por que, Senhor?

Olho tudo do vão de uma janela,

mas vejo a porta de um elevador

escancarar-se sobre um outro vão,

um vão sem chão… E a seja lá quem for

aqui absurdamente dás a mão!

Me pões trêmulo, gago, estupefato,

pasmo, Senhor – mas consolado não.

A mesma mão que fez gato e sapato

da minha doce Musa, cura e guia,

cancela as entrelinhas do contrato,

Dominus dixit… Mas quem merecia

mais do que uma açucena matinal

um manso desfolhar-se ao fim do dia,

quem mais do que uma flor, Senhor? Igual

nunca viram os mais alvos crisantemos,

tinha direito a um fim mais natural,

à morte numa cama, em casa ao menos…

Mas não – tinha que ser total o escândalo!

Por que, se nem nos circos mais extremos

Teus mártires andaram despencando

sobre os leões, se nem o lixo cai

de oito andares aos trancos, Santo Vândalo?!


Não vim denunciar o Filho ao Pai

ou o Pai ao Filho, não vim dar razão

aos que recusam e usam cada ai

contra a humildade; vim porque a Paixão

me chamou pelo nome e a alma obedece

e aceita suar sangue – como não?

Mas não sei mais unir o rogo à prece

do que a elegia ao hino de louvor,

não sei amar-Te assim… Caso o soubesse

teria que ficar aqui, Senhor,

aqui, arrebentando-me os joelhos,

esfolando-me todo ante um amor

que vai tornando sempre mais vermelhos,

mais duros os degraus do Teu altar.

Tu, que tudo consertas, dos artelhos

que desentortas e repões a andar

até às pupilas mortas de um garoto,

do cachoupinho que me fez chorar;

Tu, que a este lhe dás a flor no broto

e àquele o lírio pútrido do pus;

Tu, que passas por um de quatro e a um outro

pegas no colo e entregas a Jesus;

Tu que fazes jorrar da rocha fria;

Tu que metaforizas Tua luz


ao ponto de fazer de uma agonia

um puro horror ou a morna mansuetude –

que hás de fazer, Senhor, comigo um dia?

Quando eu agonizar, boiar no açude

das lágrimas sem fundo… Quando a fonte

cessar de soluçar e uma altitude

imerecida me enxugar a fronte…

Como há de ser, Senhor? Oxalá queiras

que a mim me embale a barca de Caronte

como o fazia a velha Cantareira,

o azul da travessia… A Irrecorrível

arrasta a cada um de uma maneira

e a quem quer que se abeire ao invisível

recordas a promessa: aquele a escuta

e este a recusa porque a dor é horrível,

mas, se a todos a última permuta

terá sempre o sabor da anulação,

o travo lacrimoso da cicuta,

a ela Tu negaste o próprio chão,

deixaste-a abrir a porta sem querer!

Nunca falou na morte, e com razão,

intuía, quem sabe, o que ia ver…

Sentença Tua? Em nome da promessa

não há negar Teu duro amanhecer –


mas quando arrancas mais uma cabeça

como saber que és Tu, que não mentia

O que ressuscitou? Talvez na pressa,

no pânico de Pedro, eu negue um dia

e trate de escapar, mas hoje não;

hoje sofro com fé e, sem poesia,

metrifico uma dor sem solução,

mas não vim negar nada! Faz efeito

essa dor: faz sangrar, mas faz questão

de defender-me como um parapeito

contra a queda e a revolta… Um Botticelli

despedaçou-se todo, mas que jeito,

se por Lear enforcam uma Cordélia

e encarceram a Ariel por Calibã…?

Alvorece, a manhã beata velha

enfia agulhas no Teu céu de lã,

tricoteia Paray-le-Maulnier *

e eu penso: ela morreu… Hoje, amanhã,

enquanto Te aprouver e até que dê

a palma ao prego e o último verso à traça,

vai doer – mas Amém! Não há por que

amar a morte, mas que venha a Taça,

aceito suar sangue até ao final,

como não… Tudo dói, menos a graça,


mata, Senhor, que a morte não faz mal!
Soneto de Natal 2016
(Olavo de Carvalho)

Nasceste neste mundo sem sair do eterno


E para lá voltaste sem sair daqui.
Discursaste aos demônios no fundo do inferno
Sem nem descer do Trono que pertence a Ti.
Ferido e mutilado no topo da Cruz,
Resgatavas da morte eterna os Teus algozes,
Que ao pregar no madeiro duro os Teus pés nus,
Sorviam com delícia as Tuas dores atrozes.
Não perdeste nenhum dos que o Pai te entregou,
Mesmo os que relutavam em seguir Teus passos,
Sem saber que só em Ti podem dizer “Eu sou”.
Salva-nos por Teus méritos, Encarnação
Do Verbo, pois os nossos são falsos e escassos
E nem para louvar-Te jamais bastarão.

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