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C IP- Brasil. Catalogação-na-Fonte


Câmara Brasileira do Livro, SP
Tradução de
Breno Silveira e outros

Poe, Edgar Allan, 1809-1849.


P798h Histórias extraordinárias / Edgar Allan Poe ; tra-
dução de Breno Silveira e outros. São Paulo : Abril
Cultural, 1978. -
l. Contos estadunidenses I. Título.

78-0838 cDD-813
1978
Índice para catálogo sistemático:
l. Contos : Literaturaestadunidense 813 EDITOR: VICTOR CMTA
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Suportei o melhor que pude as injúrias de Fortunato;
rnas, quando ousou insultar-mc, jurci vingança. Vós, que
tao bem conheccis a natureza de mcu caráter, não havereis
tlc supor, no entanto, que eu tenha proferido qualquer
ameaça. No Íim, eu seria vingado. Estc era um ponto de-
l'initivamente assentado mas a própria decisão com quc
cu assim decidira excluía- qualqucr idéia de perigo. Não de-
via apenas castigar, mas castigar impuncmente. Uma injúria
permanece irreparada, quando o castigo alcança aquele que
se vinga. Permanece, igualmente, sem reparação, quando o
vingador deixa de fazer com que aquele que o ofendeu
compreenda tlue é elc quem sc vinga.
É preciso que se saiba que, nem por meio de palavras,
nem de qualquer ato, dei a Fortunato motivo para quc du-
vidasse de minha boa vontade. Continuei. como dc costu-
mc, a sorrir em sua presença, e ele não percebia que o mcu
sorriso, agora, tinha como origem a idéia da sua imolação.
Esse tal Fortunato tinha um ponto fraco, embora, sob
outros aspectos, fossc um homem digno de ser respeitado c,
até mesmo, temido. Vangloriava-sc sempre de ser entendido
cm vinhos. Poucos italianos possuem verdadeiro talento
para isso. Na maioria clas vezes, seu cntusiasmo se adap-
ta àquilo que a ocasião s a oportunidade exigem, tendo em
vista enganar os milionários ingleses e austríacos. Em pintu-
ra e pedras preciosas, Fortunato, como todos os seus com-
patriotas, era um intrujão; mas, com respeito a vinhos an-
tigos, era sincero. Sob este aspecto, não havia grande dife-
rença entre nós pois que eu também era hábil conhece-
-
dor de vinhos italianos, comprando-os sempre em grande
quantidade, sempre que podia.
Uma tarde, quase ao anoitecer, em plena loucura do car-
naval, encontrei o meu amigo. Acolheu-me com excessiva
cordialidade, pois que havia bebido muito. Usava um traje

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muito justo e listrado, tendo à cabeça um
9:..,.^1"q1 cha_ rrma máscara de seda negra e, envolvendo-me bem em meu
peu conico, guarnecido. de guizos. Fiquei tão óontente
de ntquelaire, deixei-me conduzir ao meu palazzo.
encontrá-lo,.que julguei quã jamais eitreitaria
;;;-;;; Não havia nenhum criado em casa, pois que todos ha-
como naquele momento " viam saído para celebrar o carnaval. Eu lhes dissera que
Meu caro Fortunato _ disse_lhs sg _, foi
- uma sorte não regressaria antes da manhã seguinte, e lhes dera or-
qy. bom. aspecro tem você h"j;l il;;b;
ITT^,1í;1"^. Y:r:
um barnt como sendo de Amontillado, mas tenÍro dens estritas para que não arredassem pé da casa. Essas
minhas rlrdens eram suficientes, eu bem o sabia, para assegurar o
dúvidas.
Como? disse ele. _ Amontillado? Um barril? Im_ scu desaparecimento imediato, tão logo eu thes voltasse as
-
possível! E em- pleno carnaval! costas.
Tenho minhas dúvidas _ repeti _ e seria Tomei duas velas de seus candelabros e, dando uma a
- tolo que Fôrtunato, conduzi-o, curvado, através de uma seqüência
o pagasse como sendo de Amontillado antes de consuliá_
lo sobre o assunto. Não conseguiu de compartimentos, à passagem abobadada que levava à
guma, € receava perder um bom negócio.
"n"oni.,a_I"
;;;;;;;;j_ adega. Chegamos, por fim, aos últimos degraus e detivemo-
Amontillado! nos sobre o solo úmido das catacumbas dos Montresor.
- Tenho minhas dúvidzrs. O andar de meu amigo era vacilante e os guizos de seu
- Amontillado! gorro retiniam a cada um de seus passos.
- E preciso efetuar o pagamento. E o barril? perguntou.
- Amontillado! - Está mais adiante
- respondi. Mas observe as
- Mas, como você está ocupado, irei à procura -
brancas teias de aranha -que brilham -nas paredes dessas
_
- S_q existe alguém qr" .onh"çu o assunto, de Lu- cavernas.
9ne;i. esse alguém
é ele. EIe me dirá. . . Voltou-se para mim e olhou-me com suas nubladas
Luchesi é incapaz de distinguir entre um pupilas, que destilavam as lágrimas da embriaguez.
, -e um
uo xerez.
Amontilla_
Salitre? perguntou, por fim.
Nã.o obstante, há alguns imbecis que acham - Salitre - respondi. Hâ quanto tempo você tem
'
paladar. de Luchesi pooe competlr com o seu.
que o -
essa tosse? - -
vamos, vamos embora. Meu pobre amigo pôs-se a tossir sem cessar e, durante
- Para onde? muitos minutos, não lhe foi possível responder.
- Para as suas adegas. Não é nada disse afinal.
- Não, meu amigo. Não quero abusar
de sua bondade.
- \,r2p6s disseJhe
- com decisão. Vamos voltar.
^ -
renso que você deve ter algum compromisso. Sua- saúde é preciosa.
- -
Você é rico, respeitado, admirado,
Luchesi. . .
Não tenho compromisso algum. Vamos. amado; você é feliz, como eu também o era. Você é um
- amigo. Embora você não renha compro_ homem cuja falta será sentida. Quanto a mim, não impor-
*,: l|*:m-eu velo qye.eltá com muito frio. E as adegas ta. Vamos embora. Você ficará doente, e não quero arcar
,Tll]l^il9lTt
lnsuportavetmente úmidas. Estão recobertas de saliire.
são
com essa responsabilidade. Além disso, posso procurar
de rudo, vamos, Não importa o frio. Luchesi. . .
...1
tllli.d"tlggsur foi-enganado. Quanto u'lr.teri, Amon- Basta sxglsrneu ele. Esta tosse não tem im-
.Você
orstlngulr entre Xerez c Amontillado.
,a, ,ãú. -
portância; - me matará. Não-morrerei por causa de uma
não
Assim falando, Fortunato tomou_me pelo braço. pus simples tosse.
É verdade, é verdade respondi. B ss, de fato,
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- - -
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não^tenho intenção alguma de ararmáJo sem
motivo. Mas lrrrlrn com brilho ardente. Pôs-se a rir e atirou a garrafa
yo;ê {ev9 tomar predauções. Um gole rleste Medoc nos
oerenderá da umidade. l)rrra o ar, com gesticulação que não compreendi.
Olhei-o, surpreso. Repetiu o movimento, um movimentcr
pa.rti o gargalo de uma garrafa que se
numa i*o,
_^L:.1,1:l_9: longa fila de muiras ontras iluais, ,otr. o
grotesco.
l:!u"9
cnao umldo. Você não compreende? perguntou.
Beba
- §f,s, não compreendo - respondi.
disse, oferecendo_lhe o vinho. - Então é porque você não
- pertence à irmandade.
-Levou a garrafa
- aos lábios, olhando_mc cle
uma pausa e saudou_me com familiaridade,
soslaio. Fcz - Como?
guizos soavam.
enquanto seus - Não pertence à maçonaria.
- Sim, sim. Pertenço.
Bebo disse ele _ - Você? Impossível! Um maçom?
-
enterrados, - torno de nós. à saúde dos que repousam
em - Um maÇom respondi.
E eu para que você tenha vicla longa. - Prove-o disse - ele.
-I omou-mc de novo o braço p.orr"g:riror. - Eis aqui - respondi, tirando de debaixo das dobras
Estas cavernas " _ sãJextensas.
de-meu roquelaire
- uma colher de pedreiro.
dissé_me
- Os Montresor - respondi _ formavam uma fami_
lia-grande e numerosa.- -
Você está gracejando! exclamou recuando alguns
passos. Mas prossigamos: -vamos ao Amontillado.
Esqueci o seu brasão.
- Um grandequalpé de ouro, em campo azul. O pé esmaga
- bem disse eu, guardando outra vez a fer-
Está
uma- serpente ameaçadora, cujas presas se acham -
ramenta debaixo -da capa e oferecendoJhe o braço.
cravadãs Apoiou-se pesadamente em mim. Continuamos nosso
no salto.
E a divisa/ caminho, em busca do Amontillado. Passamos através de
- Nemo me impune lacessit. uma série de baixas abóbadas, descemos, avançamos ainda,
- Muito bem! exclamou. tornamos a descer e chegamos, afinal, a uma profunda
-O vinho brilhava- em seus olhos cripta, cujo ar, rarefeito, fazia com que nossas velas bru-
c os guizos retiniam. xuleassem, ao invés de arder normalmente.
Minha pópria imaginaçào se animou, ã.iiao uo vr.áá..
Atra.vés de Na extremidade mais distante da cripta aparecia uma
.paredes de ossos empilhaáos, cntremeaclos rjc outra, menos espaçosa. Despojos humanos empilhavam-se
barris e tonéis, penetramos no. r"ôinto* mais profundos
das ao longo de seus muros, até o alto das abóbadas, à maneira
catacumbas. Detive-me de novo e, essa vez, me
atrevi a das grandcs catacumbas de Paris. Três dos lados dcssa
segurar Fortunato pelo braço, acima clo cotovekl.
cripta eram ainda adornados dessa maneira. Do quarto, os
O salitrer exclamei. _ Veja como aumenta. pren-
- como musgo,
tl.e-se. - nas abóbadas.'Estam«rs ossos haviam sido retirados e jaziam cspalhados pelo chão.
sob o lcito tltr formando, num dos cantos, um monte de certa altura.
no. As gotas de umidade filtram-sc. por entre os ossos.
Vamos. Voltemos, antes que seja iarde demais. Dentro da parede, que, com a remoção dos ossos, ficara
Sua exposta, via-se ainda outra cripta ou recinto interior, de
tosse. . .
uns quatro pés' de profundidade, três de largura e seis
Nào é nada respondeu els. _ prossigamos. Mas,
- tomemos outro
antes, - gole do Medoc. ou sete de altura, Não parecia haver sido construída para
?arti o gargalo de uma garrafa de vinho De Grâvc c tjei_a qualquer uso determinado, mas constituir apenas um inter-
a Fortunato. Ele a esvaziõu de um trago. Seus olhos
cinti_ r Pé: ntedida inglasa cquivalente a 30,48 centínretros, (N. do E.)
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valo entre os dois enormes pilares que sustinham a cúpula tluc tive disso foi um lamentoso grito, vindo do fundo do
das catacumbas, tendo por fundo uma das paredes cirôun- rricho. Nâo era o griÍo de um homem embriagado. Depois,
dantes de sólido granito. houve um longo e obstinado silêncio. Coloquei a segunda,
Foi em vão que Fortunato,
.leante, erguendo sua vela bruxu- rr tcrccira e a quarta fileiras. Ouvi, então, as furiosas sacudi-
procurou divisar a profundidade daquele recinto. clas «la corrente. O ruído prolongou-se por alguns minutos,
A luz, fraca, não nos permitia ver o fundo. durantc os quais, para deleitar-me com ele, interrompi o
Continue disse-lhe eu. O Amontillado está aí mcu trabalho e sentei-me sobre os ossos. Quando, por fim,
- Quanto -a Luchesi
dentro. ... - o ruído cessou, apanhei dc novo a colher de pedreiro c
É um ignorante inlsllsmpeu o meu amigo, en_ acabei de colocar, sem interrupção, a quinta, a sexta e a
- avançava com -passo
quanto vacilante, seguido imediata_ sétima fileiras. A parede me chegava, agora, até a altura
mente por mim. do peito. Fiz uma nova pausa e, segurando a vela por cima
Num momento, chegou ao fundo do nicho e, vendo o da obra que havia executado, dirigi a fraca luz sobre a
caminho interrompido pela rocha, dcteve-se, estupidamente Iigura que se achava no interior.
perplexo. Um momento após, eu já o havia acorrentado ao Uma sucessão de gritos altos e agudos irrompeu, de
granito, pois que, em sua superfíõie, havia duas argolas de repente, da garganta do vulto acorrentado, e pareceu im-
ferro, separadas uma da outra, horizontalmente, por um pelir-me violentamente para trás. Durante breve instante.,
espaço de cerca de dois pés. De uma delas pendia uma hesitei. . . tremi. Saquei de minha espada c pus-me a
corrente; da outra, um cadeado. Lançar a corrente em desferir golpes no intêrior do nicho; mas um momento <ie
torno de sua cintura, para prendêJo, foi coisa de segundos. reflexão bastou para tranqüilizar-me. Coloquei a mão sobre
Ele estava demasiado-atônito para oferecer qualqueir resis_ a parede maciça da catacumba e senti-me satisfeito. Tornei
tência. Retirando a chave, reóuei alguns passos. a aproximar-me da parede e respondi aos gritos daquele
Passe a mão pela clisse-lhe su. _ §!1y que clamava. Repeti-os, acompanhei-os e os venci em
- deixar de sentir oparede
poderá salitre.- Estii, com cteito, tnuito volume e em força. Fiz isso, e o que gritava acabou por
úmida. Permita-me, ainda uma vez, que lhe implore para silenciar.
vo.ltar. Não? Então, positivamente, tenho cte dcixá_lo. Mas, Jâ era meia-noite, a minha tarefa chegava ao fim. Com-
primeiro, devo prestar-lhe rodos os pequenos obséquios ao pletara a oitava, a nona e a décima fileiras. Havia termi-
mcu alcance. nado quase toda a décima primeira e restava apenas
O Amontillado! exclamou o mcu lrnigo, quc - seu lugar. Ergui-a
uma pedra a ser colocada e rebocada cm
- não se rcfizera de- seu
ainda assombro. com grande esforço, pois que pesava muito, e coloquei-a,
É verdade respondi o Amontillado. em parte, na posição a que se destinava. Mas, então, saiu
-F, dizendo essas
- palavras,-,pus-mc a trabalhar cntre it do nicho um riso abafado que me pôs os cabelos em pé.
pilha de.ossos a que já me reféri. Jogando-os para o lado, Seguiu-se-lhe uma voz triste, que tive dificuldade em reco-
oeparet togo com uma certa quantidade dc pedras de cons_ nhecer como sendo a do nobre Fortunato. A voz dizia:
trução e argamassa. Com estc material c óom a aiu«Ja clc Ah! ah! ah!. . . eh! eh! eh!. . . Esta é uma boa pia-
minha. colher de pcdrciro, comccci ativarncntc a tapar a da.- . . uma excelente piada! Vamos rir muito no palazzo
entrada tlo nicho. por causa disso. . . ah! ah! ah! . . . por causa do nosso
, Mal assentara a primeira
dreiro, cluando descobri
fileira tle nrinha obra tlc pc_ vinho.. . ah! ah! ah!
quc a cmbriaguez dc Fortunato O Amontillado! disse eu.
havia, em grande parte, sb dissipaclo. ó primeiro indício - Ah! ah! ah!... -sim, sim... o Amontillado. Mas
-
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não está ficando tarde? Não estarão nos esperando no
palácio. . . a Sra. Fortunato e os outros? Vamos embora.
Sim respondi vamos embora.
- Pelo -amor de Deus,
-, Montresor!
- Sim respondi pelo amor de Deus!
- - em vão -,
_ Mu! esperei qualquer resposta a estas palavras.
Impacientei-me. Gritei, alto,
Fortunatot
-Nenhuma resposta. Tornei a gritar:
Fortunato!
-Ainda agora, nenhuma resposta. Introduzi uma vela pelo
orifício que restava e deixei-a cair dentro do nicho. Chegou
até mim, como resposta, apenas um tilintar de guiãos.
Senti o coração opresso, sem dúvida devido à umidade das O GATO PRETO
catacumbas. Apressei-me para terminar o meu trabalho.
Com. esforço, coloquei em seu lugar a última pedra e
-
cobn-a com argamassa. De encontro à nova parede, tornei
a erguer a antiga muralha de ossos. Durante meio século,
mortal algum os perturbou. In pace requiescat!

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