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CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
MESTRADO PROFISSIONAL EM ENSINO DE HISTÓRIA
CRATO-CEARÁ
2018
EDSON XAVIER FERREIRA
CRATO - CE
2018
Catalogação na fonte
Cícero Antônio Gomes Silva – CRB-3 n° /1385
F368c
Ferreira, Edson Xavier.
Conversas em Torno de Uma Mesa: As Ideias de Revolução
em Marx e no livro Didático e suas Repercussões no Ensino Básico./
Edson Xavier Ferreira – Crato-Ce, 2018,
123 f.: il.;30cm.
Dissertação (mestrado) Universidade Regional do Cariri– URCA /
Departamento de História / Mestrado Profissional em Ensino de
História - 2018.
Orientador: Prof.Dr. Fábio José Cavalcanti de Queiroz
CDD:930
EDSON XAVIER FERREIRA
Banca Examinadora:
_____________________________________________
Prof. Dr. Fábio José Cavalcanti de Queiroz (Orientador)
Universidade Regional do Cariri (URCA)
______________________________________________
Prof. Dr. Pereira (Membro interno)
Universidade Regional do Cariri (URCA)
______________________________________________
Prof. Dr. Frederico (Membro Externo)
Universidade Estadual do Ceará (UECE)
DEDICATÓRIA
The present work fulfills the objective of analyzing how the high school history
textbooks will deal with the revolutions and how his dialogue with the Marxist
conception of the revolution. For so much that it ran theoretical-historical
investigation in the writings by Karl Marx between 1844 and 1871,delimited in
chapters in which would be substantiated nodal questions on the subject and its
development. In a second moment I analyzed how history teaching relates to the
idea of revolution notably the idea of revolution by Karl Marx. Propitiating or not the
conveyance of conceptions of history and political praxis related to this conception. In
addition, a collection of comic books was produced directly related to the theme in
order to provide a possible use as didactic material to assist in the debate about the
concept of revolution in the classroom.
INTRODUÇÃO ................................................................................................... 8
Capítulo 1: Marx ou uma teoria histórica da revolução............................... 11
Capítulo 2: O conceito e a concepção de revolução: De Marx ao livro didático
......................................................................................................................... 41
2.1- “Todo coração é uma célula revolucionária. ” ......................................... 41
2.2- Um conceito: Consensos e dissensos ................................................... 44
2.3- O passado, o presente e o futuro das revoluções: o debate acerca das
revoluções burguesas ................................................................................... 52
2.4- Inglaterra e América. (Ser ou não ser, eis a questão) ............................ 54
2.5- França: Isto é uma revolução! ................................................................ 63
2.6- Revoluções na era dos extremos ........................................................... 67
3- CONSIDERAÇOES FINAIS ......................................................................... 79
4- FONTES ...................................................................................................... 83
5- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................ 84
6- APÊNDICE .................................................................................................. 88
8
INTRODUÇÃO
...na controvérsia política que surgiu a partir da história real dos levantes e
dos conflitos armados, revolução assumiu um significado especializado de
derrocada violenta e, por volta do final do século XIX, contrapôs-se a
evolução no sentido de nova ordem alcançada por meios pacíficos e
constitucionais. O sentido de revolução como instauração de uma ordem
social inteiramente nova fortaleceu-se em grande medida com o movimento
socialista... (WILLIANS, 2007, p. 360)
1
Apelido de Marx. De fato, essa alcunha era familiar, especialmente, entre as pessoas mais
próximas do intelectual e militante alemão. Hoje, entretanto, qualquer pessoa minimamente
conhecedora da trajetória de Karl Marx não ignora essa alcunha e o quanto ela o define, em
particular, na restauração do seu traçado fisionômico.
10
2 Programa do governo federal que tem por objetivo avaliar e disponibilizar obras didáticas,
pedagógicas e literárias, para as escolas públicas ou conveniadas do ensino básico e médio.
11
Ainda hoje, o nome mais associado, para o bem e para o mal, ao conceito de
revolução, indubitavelmente, é o de Karl Marx. O pensador alemão dedicou toda a
sua vida a pensar, escrever e agir no sentido de tornar possível uma revolução que
mudasse profundamente as relações sociais, possibilitando à humanidade sair do
que ele dizia ser a sua pré-história e, finalmente, adentrar o reino da História, onde
homens e mulheres poderiam desenvolver livremente suas potencialidades coletivas
e individuais: o comunismo. Talvez, nenhum outro pensador tenha tido tanta
importância na elaboração do conceito em tela quanto Marx. Suas reflexões foram
assimiladas e reelaboradas por um sem número de outros intelectuais e ativistas
sociais, seus escritos influenciaram diretamente um grande número de processos
revolucionários no século XX e serviram de base para a atuação de centenas de
partidos ao redor do mundo da segunda metade do século XIX até a atualidade. De
lá para cá, não se pode discutir seriamente sobre as elaborações acerca do conceito
político e social de revolução sem levar em consideração Marx e seus seguidores.
O pensamento de Marx se constituiu com base em um conjunto muito grande e
significativo de leituras e reelaborações que têm como base muito do que havia de
mais avançado no pensamento europeu da época. Lênin ressalta em seu pequeno
livro, As três fontes e três partes constitutivas do marxismo 4, a influência da filosofia
alemã, da economia política inglesa e do comunismo francês no arranjo que está no
início da teoria social marxiana. Embora esses sejam importantes pilares do
pensamento de Marx, não podemos restringir a constituição do Marxismo e de sua
concepção de revolução somente a essas influências teóricas. Além do mais,
podemos ressaltar a relação dialética entre a elaboração teórica e o movimento
revolucionário de seu tempo.
3
Citação retirada de “As lutas de classes na França de 1848 a 1850”, publicado por Marx pela
primeira vez em 1850.
4
Texto de V.I. Lenin, escrito em 1913, onde o autor expõe didaticamente o que seriam os
fundamentos do marxismo.
12
O jovem Marx poderia ter seguido carreira acadêmica e até mesmo ter sido
tragado pela inofensiva vida que se levava no interior das universidades alemãs. No
entanto, logo esses espaços se fecharam aos jovens que tivessem um pensamento
um pouco mais radical como os jovens hegelianos de esquerda, círculo do qual Marx
fazia parte. A universidade já não era uma opção, diante das escolhas ideológicas
que fizera até aquele momento. O jovem enveredou, então, na atividade de jornalista
tendo colaborado com diversos periódicos ao longo da sua vida. Essa atividade o
levou a enfrentamentos diversos com as autoridades prussianas e, depois, de outros
países por onde passou, e o levou também a estabelecer contato com pensadores
radicais da época e, finalmente, com o socialismo e com o movimento operário.
Na Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel, texto de 1844, embora já
tenha ultrapassado seus posicionamentos simplesmente democrático-radicais e já
tenha colocado o proletariado como agente fundamental da necessária revolução
socialista, Marx ainda dá um destaque fundamental à filosofia como elemento motor
do processo revolucionário. Dizia ele: “O passado revolucionário da Alemanha é
teórico – é a reforma. Assim como outrora a revolução começou no cérebro de um
monge, agora ela começa no cérebro do filósofo” (MARX, 2010, p. 152). A filosofia,
segundo o pensamento de Karl Marx, deveria agir sobre o proletariado para que este
se tornasse, então, agente revolucionário: só depois da elaboração filosófica
produzida pelo “cérebro do filósofo” se apossar das massas proletárias é que elas
passariam a ser capazes de agir revolucionariamente. O proletariado, portanto, teria
a necessidade da faísca da “ignição” dada pela filosofia para adquirir a
potencialidade do fogo revolucionário. Nesse sentido, a seguinte passagem é
sintomática desse raciocínio:
ambos sejam alvos das críticas do jovem Marx no texto citado. O autor ainda não
consegue superar definitivamente a ideia de supremacia do pensamento sobre a
ação, o que virá a ocorrer logo posteriormente.
O peso dado à filosofia, neste clássico texto, não está presente em textos
posteriores do autor. Naquele, porém, o papel desempenhado pela critica filosófica
seria fundamental. Deveria por seu turno se apossar das massas para que essas
pudessem, então, concretizar a emancipação humana a partir da emancipação do
proletariado. Nesse aspecto, apesar de fundamental, a crítica não é capaz de
transformar a realidade por si mesma, ela precisa se materializar tornando-se parte
efetiva da luta das massas. Assim, a passagem a seguir se mostra emblemática da
expressão mais genuína da reflexividade marxiana:
antes tinha e o que ele vai chamar de práxis revolucionária adquire, nesse curso
reflexivo, um lugar fundamental na concepção marxiana de revolução.
O autor já havia encontrado no proletariado, na década de 40 do século XIX, a
única classe social capaz de, a partir de sua própria “natureza”, generalizando as
condições de sua própria emancipação, propiciar a emancipação humana de forma
geral. A revolução proletária é, então, para ele, a única capaz de avançar no sentido
de abolir a sociedade de classes e conduzir a sociedade a uma condição de
igualdade. No entanto, a ideia da autonomia do proletariado, de sua
autoemancipação só irá surgir ulteriormente.
Essa virada tem fundamentos não na simples evolução teórica, mas na relação
da teoria com a dinâmica da luta de classes em seu complexo andamento. O
movimento concreto do proletariado observado por Marx, naquele momento
histórico, fez com que ele visse que o proletariado no movimento real da luta de
classes não era simplesmente o “coração” necessitado de uma “cabeça” proveniente
da filosofia, mas que sua atuação no campo da luta de classes mostraria sua
tendência ao socialismo revolucionário.
Apesar do “problema” colocado, desse texto em especifico, em relação aos
escritos futuros de Marx, ele é um texto fundamental para a compreensão da obra
em seu conjunto e nos traz uma concepção sobre a revolução e, especificamente,
sobre a revolução proletária, que vai estar explícita ou implicitamente presente nas
obras de maturidade do autor.
Marx afirma que, na revolução, uma classe se põe como a representante dos
interesses universais e somente assim ela é capaz de mover a sociedade no sentido
de transformá-la. Apenas uma classe, na sociedade capitalista, porém, é capaz de,
por sua condição, encabeçando a revolução e transformando a sociedade de acordo
com sua posição dentro dela, representar efetivamente os interesses humanos
universais. Essa classe é o proletariado, pois este seria o extremo oposto da
propriedade privada, que seria a encarnação da desumanização expressa pela
sociedade de classes e da apropriação da riqueza socialmente produzida e
apropriada por poucos, assim como da sociedade burguesa de modo específico5.
Em 1844, Marx toma contato com o movimento dos tecelões da região
prussiana da Silésia. Trata-se de uma revolta na qual os tecelões, lutando contra a
5
Concepção presente na Introdução à Crítica da filosofia do direito de Hegel e na Sagrada família.
15
6
Filósofo e escritor político alemão ligado aos Jovens Hegelianos, jovens intelectuais, alunos e professores
universitários de Berlin que permaneceram ativos entre 1840 e 1845, utilizando o método de Hegel para tecer
críticas a religião e sociedade alemã.
18
coloca que uma revolução meramente política seria aquela que não atinge os
fundamentos da sociedade de classe. Ela eleva uma nova classe – ou uma fração
determinada de uma classe ou uma combinação de agrupamentos de classe - ao
poder e mantém intacta a divisão da sociedade em classes sociais. Nesse processo,
a classe que movimenta a sociedade no sentido da revolução faz com que as
massas se identifiquem “em exigências e direitos” com sua luta particular. A classe
que almeja o poder deve encarnar, nesse momento, os interesses universais; os
resultados objetivos de sua vitória, porém, se limitam à sua posição de classe.
Sob o ponto de vista do proletariado, o caráter social da revolução estaria
intimamente ligado aos seus interesses e necessidades mais profundos. A
radicalidade da revolução social estaria tão arraigada na constituição do proletariado
que possibilitariam ações instintivas dele no sentido de concretizá-la. Nesses termos
o entendimento político seria capaz de trair o instinto social.
Löwy cita como um elemento de relevância na composição da consciência do
proletariado certo instinto social desenvolvido pelas massas em luta. Ele afirma que
se desenvolve nelas uma
...é nossa tarefa tornar a revolução permanente até que todas as classes
proprietárias em maior ou menor grau tenham sido alijadas do poder, o
poder estatal tenha sido conquistado pelo proletariado e a associação dos
proletários tenha avançado, não só em um país, mas em todos os países
dominantes do mundo inteiro, em tal ponto que a concorrência entre os
proletários tenha cessado nesses países e que ao menos as forças
produtivas decisivas estejam concentradas nas mãos dos proletários, para
nós, não se trata de modificar a propriedade privada, mas de aniquilá-la, não
se trata de camuflar as contradições de classe, mas de abolir as classes,
não se trata de melhorar a sociedade vigente, mas de fundar uma nova.”
(MARX, 2010c, p. 64)
7
Documento interno da Liga dos Comunistas publicado em 1850. A Liga foi a Primeira organização
comunista internacional do proletariado, fundada em 1847 em Londres por Marx e Engels, a partir
da reorganização da Liga dos Justos, que fora uma associação de caráter secreto surgida na
década de 1830.
21
Sobre a questão, Löwy argumentaria que, nas ideias de Marx de 1848 a 1850,
estaria presente a ideia de revolução permanente como um processo dialético no
qual estariam ligadas as tarefas da revolução democrática e a revolução socialista
(LOWY 2010 apud MARX, 2010c, p. 18). Nesse momento, Marx parte da realidade da
Alemanha, que ainda estava longe de ser uma grande potência industrial e de ter
uma numerosa classe de trabalhadores industriais assalariados, mas não perde de
vista o desenvolvimento da Europa em seu conjunto e dos principais protagonistas
do processo de industrialização. A Alemanha de então não poderia ser vista de
forma isolada e, nesta perspectiva, o avançar do desenvolvimento da luta de classes
no solo alemão estava ligado ao desenvolvimento da luta no restante do continente.
Do mesmo modo o desenvolvimento político, econômico e social da Alemanha
poderia, de acordo com a ideia de Marx, encadear momentos distintos das
revoluções burguesa e proletária.
Esse seria basicamente o conceito que mais tarde seria defendido por Trotsky
e pelos trotskistas e que, aprofundado em alguns dos seus aspectos, foi um dos
polos da discussão com o estalinismo e os defensores do socialismo em só país.
Nesse momento, Marx expõe como uma necessidade que a revolução proletária
cumpra as tarefas postas pelo desenvolvimento de uma sociedade de caráter
burguês e se lancem de imediato, para além dela, em direção à concretização do
8
Etapismo seria a concepção de que, necessariamente, o processo revolucionário deveria passar
por determinadas etapas sucessivas e separadas enquanto fases distintas ou revoluções
distintas.
22
9
Manifesto do Partido Comunista.
24
A comuna foi uma experiência que teve efeitos profundos sobre o que Marx
teorizava acerca da concretização da revolução social proletária. Por meio da
Associação Internacional dos Trabalhadores, ele teve contato com os
acontecimentos parisienses; afinal, a Internacional teve muitos de seus membros
como participantes ativos na vanguarda do movimento da Comuna. Como membro
da internacional, Marx voltou-se para o que se desenrolava em Paris, incidiu sobre o
movimento por meio da internacional e dele tirou importantes lições quanto às
necessidades da luta dos trabalhadores no sentido da concretização de sua
emancipação política e social. Acompanhando a movimentação dos communards,
Marx colocava à prova muito do que havia escrito até aquele momento e, mediante a
experiência da Comuna, ele pode compreender mais profundamente o papel do
Estado diante da luta de classes, assim como o papel dos revolucionários diante do
Estado. Se, até então, não havia uma experiência concreta que pudesse fazer com
que Marx desse uma definição quanto ao que fazer em relação à máquina de Estado
quando esta houvesse de cair nas mãos do proletariado, agora os communards
possibilitaram o surgimento dessa referência. Sem utopismos, como afirmara Lênin,
Marx recolheu do movimento real do proletariado as reflexões necessárias à sua
teoria.
Se, na pouco expressiva revolta dos tecelões silesianos, Marx conseguiu
enxergar tendências profundas do movimento revolucionário do proletariado, na
experiência da Comuna, ele foi capaz de observar, no calor dos acontecimentos, a
confirmação de várias de suas assertivas e o desenvolvimento da luta revolucionária
contra o Estado burguês. É na práxis revolucionária que Marx coloca em teste sua
teoria. Desta, ele aponta para possibilidades futuras da luta, mas somente a partir do
momento em que estas já, de alguma forma, estão colocadas no plano da luta de
30
Nessa passagem, Marx retoma o que já há muito havia afirmado nas teses
sobre Feuerbach: a transformação dos “homens” e das circunstâncias que o formam
não estão de maneira alguma dissociadas ou colocadas em momentos separados e
estanques; na realidade, são partes de um mesmo processo complementar e
dialético. Os seres humanos e as circunstâncias transformam-se conjuntamente. A
práxis revolucionária compõe-se na integração da transformação do ser humano que
age no sentido de transformar sua realidade e da realidade transformada que incide,
por sua vez, na transformação do ser humano.
É importante enfatizarmos dois elementos supostamente contraditórios nessa
passagem: a tendência irresistível do desenvolvimento histórico e a necessária luta
dos trabalhadores para destruir a velha sociedade e possibilitar o desenvolvimento
de uma nova sociedade. Marx volta a colocar que, dentro da sociedade burguesa de
sua época, já se desenvolvem os elementos necessários para o surgimento do
comunismo; porém somente o que pode libertar essas forças sociais e econômicas é
a ação revolucionária do proletariado. Sobre essa tensão entre ideia de
inelutabilidade da vitória do socialismo e da possibilidade de vitória a partir da luta e
31
Uma revolução, não contra essa ou aquela forma de poder estatal, seja ela
legítima, constitucional, republicana ou imperial. Foi uma revolução contra o
Estado mesmo, este aborto sobrenatural da sociedade, uma reassunção,
pelo povo e para o povo da sua própria vida social. Não foi uma revolução
feita para transferi-lo de uma fração das classes dominantes para outra,
32
10
Icária foi uma comunidade socialista cristã imaginaria descrita por Étienne Cabet em seu livro
Viagem à Icária. Utopia foi a sociedade ideal criada por Thomas Morus em seu livro de mesmo
nome.
11
Em 1848, ocorreu na Europa central e oriental uma série de movimentos revolucionários
colocando-se contra os vestígios do absolutismo. O Conjunto desses movimentos ficou conhecido
como Primavera dos povos.
34
12 Karl Marx, As lutas de classes na França (São Paulo: Boitempo Editorial, 2012).
35
Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não
a fazem sob circunstâncias de sua própria escolha e sim com aqueles que
se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição
de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos
vivos. (MARX, 1997, p. 21)
e Engels, estas ideias vigoram durante tanto tempo por terem raízes profundas no
caráter de classes das sociedades que se sucederam na história. Uma vez
eliminada a exploração de uma classe por outra, eliminadas também as próprias
classes sociais, essas representações da realidade material objetiva
desapareceriam: haveria uma “convulsão da totalidade das ideias”. Essas ideias
aparentemente eternas, nesse sentido, não são mais do que o fruto dos elementos
mais gerais e profundos das relações classistas de exploração, dos elementos de
uma temporalidade histórica de longa duração, para usar um conceito braudeliano.
Para transformar-se tão radicalmente a sociedade, o proletariado, como outras
classes antes dele, não pode prescindir do uso da violência. Nenhuma classe
abandona o palco da luta de classes por vontade própria. Uma classe dominante só
sai de cena quando derrubada pelo ato de força de seus antagonistas. Dessa forma,
o proletariado, para se alçar ao poder se constituindo em classe dominante, não tem
alternativa a não ser o uso da violência revolucionária, da violência das grandes
massas contra seus opressores. Marx, longe de ser um pacifista, compreendia a
necessidade do uso da força para concretizar as tarefas históricas do proletariado:
este “... por meio de uma revolução se converte em classe dominante e, como tal,
suprime violentamente as velhas relações de produção...” (MARX, 1997, p. 29).
Para Queiroz
expropriadores, embora Lênin não tenha deixado de ressaltar que mais importante
do que a violência é a organização.
41
13
Citação extraída do filme alemão de 2004, “Die Fetten Jahre sind vorbei” (no Brasil, Os
edukadores) de Hans Weingartner.
42
A partir do livro didático e das aulas que tive durante o Ensino Médio, não me
foi possível chegar à compreensão teórica dos processos revolucionários. Estes me
tocavam, “apenas”, pelas suas “manifestações superficiais”: acreditava, como ainda
acredito, na possibilidade de virar o jogo em uma sociedade de desigualdades. E,
embora não compreendesse suas engrenagens, sentia na pele, como filho de
operário/agricultor e de uma empregada doméstica, e como jovem negro da
periferia, os efeitos da exploração, da opressão e da exclusão. Antes do conceito, a
revolução me chegou pelo ódio às condições em que as pessoas como eu viviam e
pela esperança de transformação social.
Nasci, e passei minha infância e adolescência em um período de sérias e
profundas transformações sociais as quais ocorriam no Brasil e no mundo. Passei os
primeiros anos de vida entre o fim da Ditadura Militar e a Redemocratização. Ainda
criança, vi noticiados na TV, sem entender muito bem o que estava acontecendo, a
queda do Muro de Berlim e a dissolução da União Soviética. A realidade
transformava-se e as balizas com as quais as pessoas mediam o mundo também.
O fim da União Soviética em 1991 iria pôr abaixo a grande referência da
perspectiva socialista, do Marxismo e da própria ideia de revolução. A referência viva
da revolução que teria abalado o mundo, como a havia definido John Reed 14 no
início do século, chegava ao fim: a revolução enquanto horizonte e perspectiva
perdia uma parte significativa de seu poder de mobilizar corações e mentes. Como
afirmou sobre o período pós-soviético Emília Viotti da Costa:
Há quem diga que a era das revoluções está encerrada, que o mito da
Revolução que governou a vida dos homens desde o século XVIII já não
serve como guia no presente. Até mesmo entre pessoas de esquerda, que
tem sido ao longo do tempo os defensores das ideias revolucionárias, ouve-
-se dizer que os movimentos sociais vieram substituir as revoluções. Diante
do monopólio da violência pelos governos e do custo crescente dos
armamentos bélicos, parece a muitos ser quase impossível repetir os feitos
da era das barricadas. (VIOTTI DA COSTA, 2009, p. 5)
Compreendo que Emilia Viotti fale do “mito”, não enquanto algo ilusório,
fantasmagórico ou falso, mas como uma ideia-força do campo político-ideológico
que, longe de ser ilusória, é expressão concreta da relação dialética entre projeto e
ação política. Nesse sentido, o “mito da revolução”, que, entre o final do século XVIII
14
John Reed foi um jornalista estadunidense que escreveu o mais conhecido relato sobre a
Revolução Russa, Dez dias que abalaram o mundo, publicado pela primeira vez em 1919.
43
15
Concepção tomada a Mauro Iasi como parte da aula A teoria da revolução em Marx, parte do
curso “A Teoria da Revolução” organizado pela Editora Boitempo. In:
<https://www.youtube.com/watch?v=Vdy7NXLwRU0>. Acessado em 10 de agosto de 2018.
49
Aqui está o eixo do conceito, como definido pelos autores: por meio da luta
radicalizada, rompe-se com a antiga ordem social e política, instaurando-se uma
nova ordem, eis a Revolução. Mas os autores não se restringem à definição do
termo. Em alguns momentos, como no início de cada um dos capítulos em que se
concentra o tratamento dos movimentos revolucionários, podemos perceber o alerta:
a era das revoluções ficou para trás e foi substituída pelos movimentos sociais e
pelos processos democráticos burgueses de decisão política. Vejamos:
Essa mesma ideia se repete no texto dos autores quando estes lidam com o
processo revolucionário francês do século XVIII ou com os movimentos
contestatórios da década de 1960. Quando os autores relacionam tais movimentos
ao tempo presente, procuram refutar a possibilidade ou necessidade de movimentos
revolucionários em nossa época. Os autores cometem o erro de universalizar e
perenizar o período histórico em que vivem, deixando à margem as possibilidades
da dinâmica histórica. A ideia que deixam é a de que havia história e já não há.
Santiago, Cerqueira e Pontes apontam para um elemento importante na
distinção dada a um movimento revolucionário:
seus textos essa característica quanto às revoluções. Alguns, embora ainda poucos,
nem mesmo levam em conta a mobilização das massas em relação à caracterização
de um movimento enquanto movimento revolucionário. Sobre isso, falar-nos-ia
Barros (2016) em seu livro, Os conceitos: seus usos nas ciências humanas:
como se fosse a própria revolução. Quanto a essa questão nos explicam Varela,
Arcary e Demier (2015):
diga que nada nos processos históricos concretos é tão simples: as classes se
desenvolvem no andamento das lutas travadas, e, no correr das mesmas, cria uma
consciência de si e dos seus interesses concretos. O alinhamento das classes, ou
de frações de uma classe social, é dinâmico; nesse sentido, mudam no decorrer dos
processos históricos. É preciso, diante da dinâmica dos processos revolucionários,
não perder de vista o aspecto da totalidade. É necessário atentar para as diversas
conexões do todo social e, essencialmente, o que preside essas conexões.
Quanto à Revolução Inglesa, essa parece ser a linha mestra sobre a qual se
desenvolvem os esquemas explicativos dos livros didáticos, mesmo com todos os
seus problemas, omissões ou desvios.
Gilberto Cotrim é autor de uma das obras mais utilizadas entre os livros
didáticos de História no Brasil já há muitos anos. Em sua obra, História Global,
podemos observar o enquadramento das Revoluções Inglesa e Francesa dentro da
perspectiva clássica das revoluções burguesas. Embora não faça citações dos
autores marxistas, seu esquema de interpretação reproduz, concisa e
simplificadamente, a interpretação marxista do processo revolucionário.
Quanto à Revolução Inglesa, o autor afirma: “Foi na Inglaterra que surgiram as
primeiras grandes transformações nas estruturas políticas e sociais que
caracterizam as sociedades europeias na idade moderna. Essas transformações
integram o longo processo conhecido como Revolução Inglesa (1642-1689)”
(COTRIM, 2016, v.2 , p. 103). A passagem aponta para o tom empregado pelo autor
e para a relevância dada ao processo revolucionário inglês em seu desenvolvimento
e em seus resultados. A revolução é pensada como um processo que durou
décadas, e que está, indissociavelmente, ligado ao desenvolvimento do capitalismo
na Inglaterra, concepção que se reproduz em diversas das obras que analisamos.
Podemos ver isso mais nitidamente na seguinte passagem:
16
Bill of Rights de 1689, documento que restringia o poder do rei e o submetia ao parlamento inglês
em vários aspectos.
57
E ainda:
No livro de Vainfas (et al) é onde encontramos uma contraposição mais efetiva
em relação à abordagem da Revolução Inglesa que se tornou clássica pelas mãos
dos historiadores marxistas. Existe um debate teórico situado à parte do texto
principal que explica vários dos posicionamentos dos autores em relação à sua
concepção de revolução, e, a partir desse debate, é possível compreender os usos
do conceito pelos autores no decorrer do livro, assim como é possível notar um
diálogo/debate com o Marxismo e sua concepção de revolução política e social.
Os autores continuam:
A Revolução Americana não foi apenas uma luta pela independência, pois
implicou mudanças sociais e políticas. No período em que ocorreu,
significou um grande avanço, pois trazia uma concepção política e uma
abordagem inovadoras para os conceitos de liberdade e cidadania. A
revolução representou não só a libertação das colônias inglesas na América
como também a afirmação de alguns direitos básicos... (MOCELLIN;
CAMARGO, 2016, v. 2, p. 19)
17
Episódio narrado por Hanna Arendt em “Sobre a revolução”.
64
vários grupos sociais, desde burgueses até populações pobres das cidades,
pequenos produtores e comerciantes e camponeses explorados pela
servidão. (COTRIM, 2016, v. 2, p. 146)
E continua:
Fica patente na definição inicial dada pelo autor seu alinhamento com a
definição marxista clássica para a Revolução Francesa e de seu enquadramento
como uma revolução de caráter burguês, uma revolução que acaba com o domínio
da nobreza, estabelecendo a burguesia no poder e substituindo os privilégios
hereditários pelos privilégios determinados pelo dinheiro. Mesmo a composição do
movimento, formado por vários grupos sociais distintos, não impede que o
movimento seja compreendido como uma revolução burguesa, já que, na
interpretação dos autores, postas abaixo as estruturas do antigo regime, essa classe
assume o lugar da nobreza no comando da sociedade.
Cândido Grangeiro, destaca tanto o impacto da revolução sobre a própria
França como sua influência que se espalhou mundo afora, dando bases para o
surgimento do mundo contemporâneo.
18
O Autor define “povo” como a “grande massa de trabalhadores pobres urbanos, que viviam da
força de seus braços.” (GRANGEIRO, 2016, v.2, p.236)
19
O autor toma a conceituação de “povo” como trabalhadores urbanos, estes iriam dos artesãos
detentores de ferramentas e técnicas de produção aos trabalhadores despossuídos.
65
20
BOULOS, volume 2, página 174.
67
…em 1881, Marx recebeu uma carta de uma jovem russa perguntando-lhe
se a Rússia agrária teria que se industrializar antes de fazer uma revolução.
Sua resposta foi curta e cautelosa. Dava a entender que camponeses
analfabetos pudessem se rebelar e fazer a revolução. No entanto, pareciam
não saber bem “o que fazer”. (CAMPOS; CLARA, 2013, v. 3, p. 33)
E ainda:
Justificamos a longa citação pelo fato de que, em nenhum outro dos livros
estudados, o leitor se depara com um relato tão extenso das transformações
provocadas pela Revolução Russa. Tendo em vista a própria natureza de um
processo revolucionário, compreender o conjunto das transformações que tal
processo provoca é fundamental. No entanto, a maioria dos autores restringe muito
as referências ao conjunto de mudanças radicais provocadas na sociedade russa a
partir de 1917. Esse fato é de grande relevância se temos em conta que uma
revolução não é apenas o acontecimento da tomada de poder, mas um processo
que pode se estender por anos ou décadas. Campos e Clara, embora não se
aprofundem em explicações acerca das mudanças provocadas pela Revolução
Russa, apontam para fatos que demonstram o quão radicais foram as mudanças
que tocaram, desde questões aparentemente triviais, como a mudança do alfabeto
até as questões centrais da revolução socialista, como a expropriação dos
industriais e latifundiários e a redistribuição de recursos.
Cândido Grangeiro usa um conceito pouco utilizado entre outros autores dos
livros didáticos: o conceito de revolução social. Tal conceito aparece
recorrentemente na coleção de livros do autor ao tratar da Revolução Russa,
Mexicana e Espanhola. Para Marx e Engels, a revolução social é aquela que
derruba o antigo poder e dissolve a antiga sociedade 21. Ao contrário de uma
revolução meramente política, a revolução social, além de mudar o regime político,
alteraria a ordem econômica e social e as relações de propriedade.
Para o autor, a era das revoluções sociais começa com o que seria um grande
ensaio: a Comuna de Paris, em 1871, “o primeiro governo de origem popular
21
Como definiram Marx e Engels em “Luta de Classes na França”. (Boitempo, 2010)
70
22
Lenin, Trotsky, por exemplo, denominam a revolução de 1905 como o Ensaio Geral da revolução
de 1917.
23
BOULOS, Alfredo, História: Sociedade e cidadania, Volume 3, p. 37-38.
72
Continua:
3. CONSIDERAÇOES FINAIS
grande representante dessa vertente, figura em não mais de dois dos livros didáticos
do atual Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD).
Existe uma linha que liga a crítica do revisionismo da Revolução Francesa à
Revolução Russa. Uma parte desses revisionistas retroage até o Iluminismo. Assim
sendo, a razão iluminista seria a raiz da violência revolucionária, tendência maléfica
a ser extirpada das sociedades contemporâneas, segundo a perspectiva política
liberal ou teórico-revisionista. Essa ideia, embora não esteja claramente presente na
maioria dos livros didáticos de História, teve repercussão no universo intelectual
ocidental e possui determinado peso sobre as elaborações que condenam qualquer
possibilidade de ação revolucionária no mundo contemporâneo.
Os livros se aprofundam quanto às Revoluções Francesa e Inglesa e mostram-
se um tanto superficiais quanto aos processos revolucionários que estão mais
próximos de nós ou quanto mais são impactantes sobre a nossa realidade e às lutas
políticas e sociais travadas na contemporaneidade. Quanto mais vivo é o debate
para o nosso tempo, maior é a dificuldade que os autores têm para analisar mais
profundamente os movimentos revolucionários, fruto óbvio das pressões ideológicas
que aparentam se aprofundar em um próximo ciclo de produção de livros didáticos
de História.
Marx, como ele mesmo afirmou, não descobriu a luta de classes: os autores
franceses que escreveram os clássicos contemporâneos da revolução já utilizavam
o termo. No entanto, Marx e os marxistas se apropriaram desse conceito e lhe
deram um maior peso em suas análises. A luta de classes e a perspectiva da
revolução, embora tenha sido abandonada por muitos, continua a ser uma força
viva, cuja simples pronúncia pode instigar ódio ou paixão.
82
FONTES
BIBLIOGRAFIA
BALDISSERA, José Alberto. O livro didático de Historia: uma visão crítica. São
Leopoldo: Editora Cultural Vale dos Sinos, 1993.
Editorial, 2008.
EISNER, Will. Quadrinhos e arte sequêncial. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
FARIA, Ana Lucia G. Ideologia no livro didático. São Paulo: Cotez, 2008.
MAIER, Corinne; SIMON, Anne. Marx: uma biografia em quadrinhos. São Paulo:
Barricada, 2018.
MUSTO, Marcelo. O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos [1881-
1883]. São Paulo: Boitempo, 2018.
RIUS. Cuba para principiantes. São Paulo: Editora Versus/Editora Espaço, 1980.
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