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Coletivo fotográfico contemporâneo

e prática colaborativa na pós-fotografia

Eduardo Queiroga

Recife

2012
Eduardo Queiroga

Coletivo fotográfico contemporâneo


e prática colaborativa na pós-fotografia

Dissertação apresentada como requisito


parcial para a obtenção do título de Mestre
em Comunicação pela Universidade
Federal de Pernambuco, sob a orientação
do Prof. Dr. José Afonso da Silva Junior.

Recife

2012
Catalogação na fonte
Bibliotecária Gláucia Cândida da Silva, CRB4-1662

Q3c Queiroga, Eduardo.


Coletivo fotográfico contemporâneo e prática colaborativa na pós-
fotográfia / Eduardo Queiroga. – Recife: O autor, 2012.
139 p. : il.

Orientador: José Afonso da Silva Junior.


Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco,
CAC. Comunicação, 2012.
Inclui bibliografia e anexos.

1. Comunicação. 2. Fotografia. 3. Fotojornalismo. 4. Autoria. 5.


Fotografia - história I. Silva Junior, José Afonso da. (Orientador). II. Titulo.

302.23 CDD (22. ed.) UFPE (CAC2012-13)


FOLHA DE APROVAÇÃO

Autor do Trabalho: Eduardo Queiroga


Título: “Coletivo fotográfico contemporâneo e prática colaborativa na pós-fotografia”.

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre


em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco, sob a orientação do
Professor Dr. José Afonso da Silva Júnior.

Banca Examinadora:

________________________________________
José Afonso da Silva Júnior

________________________________________
Nina Velasco e Cruz

________________________________________
Silas José de Paula

Recife, 24 de fevereiro de 2012.


Não é a madeira do tabuleiro e das pedras
que torna o xadrez um jogo.
Vilém Flusser
Para Daniel, Pedro e Renata.
Por tudo e mais um pouquinho.
Agradecimentos

Ao meu orientador José Afonso, por suas sugestões preciosas, seu cuidado e
sua dedicação, por sua amizade.

Aos professores Paulo Cunha e Nina Velasco, que trouxeram tão importantes
discussões na banca de qualificação.

Aos integrantes dos coletivos estudados, que se dispuseram a colaborar com


informações, que atenderam aos pedidos das entrevistas, que têm proporcionado tantas
e tão amplas questões para o campo da fotografia. Em especial a Pio Figueiroa, Rafael
Jacinto, Carol Lopes, João Kehl e Héctor Mediavilla.

À revista Zmâla, que facilitou o acesso a suas publicações.

Às instituições que acolheram e incentivaram esta pesquisa: UFPE e Facepe.

A todos os demais amigos – fotógrafos, professores, alunos, pesquisadores –


com os quais pude dialogar, testar ideias, enxergar contradições, amadurecer o trabalho.
Contribuições que, mesmo não ocupando espaço nas referências bibliográficas, são
importantíssimas para o resultado final, sem as quais tal trabalho não seria o que é. Os
subcapítulos 2.4 e 2.5 resultam de um frutífero trabalho com Isabella Valle.

Aos meus pais, Amélia e Paulo, e a meus irmãos, Roberta e Paulo, por todo o
incentivo e torcida.
Resumo

Esta dissertação trata do “coletivo fotográfico contemporâneo”, modelo que surge com
maior intensidade nos anos 2000 e se difere de outras experiências que agruparam
fotógrafos ao longo da história – a exemplo de agências fotográficas e fotoclubes.
Avança sobre o redimensionamento do lugar do sujeito na fotografia, colocando novos
modelos de financiamento e processo de criação. Insere questões importantes na prática
fotográfica e comunicacional, como as relacionadas ao lugar da autoria no processo
fotográfico e alteração de elementos identitários, expandindo o campo de atuação e de
domínios cognitivos, conjunturais e conceituais para o fotógrafo contemporâneo.
Exploramos a relação entre subjetividade e objetividade na fotografia e recuperamos as
práticas colaborativas já mapeadas, para melhor perceber o lugar do sujeito nessa
linguagem tão permeada pela referência à automaticidade, além de esclarecer as
características de cada modelo. Buscamos esmiuçar o cenário atual, os preceitos da
cultura de convergência, da criação em rede, rizoma, autoria, pós-fotografia e
fotograficidade, para percebermos como se dá uma mútua influência entre as
tecnologias e seus usos sociais, modificando nossa forma de comunicar e fotografar.
Nossa premissa: tais reconfigurações da sociedade, estimuladas pela digitalização e
mediação por computador, operam diversas aberturas importantes para o surgimento
dos coletivos. Operamos o estudo de caso e análise de obras de dois coletivos – Cia de
Foto (brasileiro) e Pandora (espanhol) – adotando como método a observação não
participante com entrevistas semiestruturadas.

Palavras-chave: Fotografia. Fotojornalismo. Coletivo fotográfico contemporâneo.


Autoria. Rede.
Abstract

This dissertation deals with the “contemporary photographic collective”, model that
appears with greater intensity in the years 2000 and is different from other experiences
gathering photographers throughout the history - such as photo agencies and photo
clubs. It advances toward the resizing of the place occupied by the author in the
photography realm, introducing new models of funding and creative process. It brings
important questions to the photographic and communicational practice, as those related
to the place of the authorship in the photographic process and the change of the identity
elements, expanding the cognitive, conjunctural and conceptual domains and field of
expertise of the contemporary photographer. We explore the relationship between
subjectivity and objectivity within photography and retrieve the previously mapped
collaborative practices, in order to better understand the place of the author in that
language so infused by the reference to the automaticity, and to clarify the
characteristics of each model. We seek to scrutinize the current scenario, the precepts of
convergence culture, network creation, rhizome, authorship, post-photography and
photographicity, in order to understand how a mutual influence between technologies
and their social uses occurs, modifying our way of communicating and photographing.
Our assumptions: such society reconfigurations, stimulated by the digitalization and
computer-mediation, create several important opportunities for the rise of the
collectives. We performed the case study and analysis of works from two collectives -
Cia de Foto (Brazilian) and Pandora (Spanish) - adopting the non-participant
observation method with semi-structured interviews.

Keywords: Photography. Photojournalism. Contemporary photographic collectives.


Authorship.
Sumário

Introdução 10

1. Objetividade, subjetividade e grupos na fotografia 18


1.1 Objetividade 20
1.2 Inscrição do sujeito 29
1.3 As experiências colaborativas na fotografia 32
1.3.1 Fotoclubes 32
1.3.2 Agências fotográficas 35
1.3.3 Farm Security Administration 39
1.4 O fotógrafo individual 41

2. O cenário pós-fotográfico 44
2.1 Cultura de convergência 47
2.2 Rizoma 49
2.3 Inteligência Coletiva 52
2.4 Pós-fotografia 56
2.5 Criação em rede 67
2.6 O irreversível e o inacabável 71
2.7 Novos arranjos 74

3. O coletivo fotográfico contemporâneo 76


3.1 O termo 77
3.2 Individualidades diluídas 79
3.3 O universo dos coletivos contemporâneos 85
3.4 Cia de Foto 88
3.5 Caixa de sapato 96
3.6 Eleições 100
3.7 Colectivo pero no siempre 106

Considerações finais 111

Bibliografia 116

Anexos 121
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Introdução

São muitas as razões que nos levam a produzir um


trabalho e grande parte dessas razões está além
de nossas intenções conscientes
Lúcia Santaella

Certa vez quis comprar uma câmera fotográfica “de verdade”, não uma
daquelas Instamatic de plástico da Kodak – hoje meu conceito de câmera de verdade
também inclui as de plástico, caixa de fósforo ou uma de grande formato, mas naquela
época minha percepção era um tanto mais limitada. Como não tinha dinheiro suficiente,
comprei livros sobre fotografia. Foram vários manuais básicos ou títulos do tipo
“Aprenda fotografia em 10 lições práticas”. Era assíduo frequentador da pequena
prateleira dedicada ao assunto na saudosa Livro 7. Queria, assim, aprender sobre esse
campo que, àquela altura, não me parecia ter a complexidade e riqueza que vim
perceber depois. Estamos falando ainda do período escolar, às vésperas do vestibular. A
escolha pelo curso de Jornalismo já foi influenciada em parte pela possibilidade de atuar
nesse campo fotografando, em parte pelo gosto pela leitura e escrita e por uma
experiência com um jornal de escola.
Daí para a frente, meu envolvimento com a fotografia seguiu vários rumos,
alguns deles bem distantes entre si, muitas vezes paralelamente um ao outro. Trabalhei
como repórter fotográfico, formei agência, atuei no mercado publicitário, fiz
exposições, desenvolvi projetos de documentação. Tive muitas alegrias e também
muitas tristezas ligadas à fotografia. Publiquei em veículos nacionais e internacionais.
Fiz muitos amigos, conheci muita gente e tive contatos superficiais com uma infinidade
de outras pessoas. Ao longo dos últimos 20 anos – um pouco mais, na verdade – vi e

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fotografei os assuntos mais diversos, alguns dos quais preferiria que não existissem.
Também acumulei experiências com o ensino e com a utilização da fotografia como
ferramenta de transformação sociocultural: foram muitas oficinas, projetos e cursos para
os mais diversos públicos, incluindo o FotoLibras1, onde tenho o grande privilégio de
aprender muito com os educadores, multiplicadores e jovens que frequentam o curso. As
aulas no bacharelado em Fotografia também me proporcionaram um exercício
permanente com a linguagem fotográfica.
A minha ligação com a fotografia tem se dado, portanto, de muitas maneiras,
por muitos ângulos diferentes, o que tem me proporcionado experiências das mais
gratificantes. Seja no contato com o meio fotojornalístico, seja participando de eventos
ou nas conversas com amigos, um fenômeno que acompanhei com certa proximidade
foi o aparecimento de um modelo novo de trabalhar a fotografia. Uma temática muito
presente no dia a dia da atividade, mas pouco explorada como objeto de pesquisas
acadêmicas. O coletivo fotográfico me parece trazer questões importantes para a
reflexão sobre a fotografia na atualidade e a presente dissertação objetiva colaborar para
o entendimento desse fenômeno, assim como sobre suas articulações com outros
aspectos da fotografia e da contemporaneidade. Da mesma forma que observava algo
que parecia ser novo, também era – e continua sendo – muito comum o discurso de que
não se trata de novidade, mas de algo que sempre existiu, mas com outros nomes. No
meio fotográfico a temática dos coletivos é quase sempre envolvida por uma discussão
polêmica que inclui elogios e críticas, não raro beirando a descompostura.
Coletivos artísticos, de um modo geral, não são novidade. Grupos que
compartilham ideias, espaço, estrutura de produção, ou simplesmente trocas simbólicas
e afetivas. Sua história remonta à época logo após a Revolução Francesa, tendo no
grupo conhecido por Boémia um dos principais exemplos. Eram pintores, escritores e
outros artistas que levavam uma vida diferente da sociedade que estava se consolidando
naquele momento de crescimento das cidades, de fortalecimento dos ideais modernos.
Esse grupo que tentava ficar à margem do comportamento burguês foi o responsável
pelo sentido da expressão “vida boêmia” que usamos até hoje, que tem um pé na noite,

1 O Projeto FotoLibras utiliza a fotografia participativa com jovens surdos, com a primeira turma
formada em 2007. Visite www.fotolibras.org para mais informações.

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no gosto pela música e pela poesia.


De lá para cá, muitos movimentos seguiram caminhos parecidos, agrupando
poetas, músicos ou atores. Hoje podemos perceber alguns fenômenos que trazem os
coletivos para as discussões mais atuais. Um deles é o ativismo, o caráter político de
diversos grupos contemporâneos. O outro é o surgimento dos coletivos fotográficos, que
acontece com mais força nos últimos dez anos. Nos dois casos podemos apostar numa
influência – de mão dupla – do uso das novas tecnologias, no aproveitamento das, e em
resposta às, novas configurações da sociedade imersa na cultura de convergência.
Para alguns campos do fazer comunicacional e artístico, a prática coletiva é
imperativa. É o caso do cinema, do teatro, da dança: são linguagens onde é difícil
imaginar produções inteiramente individuais, pois demandam especialidades, tarefas
específicas e, até mesmo, volume maior de mão de obra. Isso também é percebido em
produções para televisão, que envolvem equipes – pequenas ou grandes, mas sempre
equipes. Mesmo nas artes plásticas, na pintura, por exemplo, a discussão sobre a
organização em torno de coletivos é algo datado, pertencente a um passado distante 2.
Não pretendemos aqui nos aprofundar nessas experiências em outros campos, mas
podemos pontuar um aspecto importante: a necessidade de observarmos quando um
grupo se junta para dividir tarefas ou estrutura e aquele que busca um compartilhamento
de todo o processo, de um resultado comum, sem distinção dos integrantes.
Já na fotografia, percebemos que até mesmo a presença do sujeito, o
reconhecimento do fotógrafo no ato fotográfico é algo polêmico e mal resolvido. Ao
longo de toda a história da fotografia, o lugar do sujeito na linguagem nunca foi um
consenso, já mudou de acordo com interesses os mais diversos (ROUILLÉ, 2009). Se a
subjetividade é colocada em questão – ou simplesmente e categoricamente deixada à
margem –, perceber um fazer coletivo traz camadas suplementares de indefinições e
consequentes necessidades de negociações.
O estudo da fotografia é algo relativamente recente. Somente nas últimas

2 Cabe aqui um parêntese: embora a aceitação e valorização já aconteça de maneira naturalizada, ainda
se pode falar de uma marginalização desses grupos também nessa área. No entendimento empírico há
um reconhecimento do fazer coletivo no campo das artes plásticas, mas esse entendimento não é
unanimidade. Muitos coletivos artísticos afirmam sofrer uma discriminação. Ver o dossiê na Revista
Dasartes, disponível em http://dasartes.com/site/index.php?option=com_content&view=article&id=
101&Itemid=33.

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décadas do século XX surgiu uma série de livros, que se tornaram clássicos e


ontológicos da reflexão e estudo sobre fotografia3. Ao longo desses anos, o interesse
vem aumentando, assim como o volume de publicações, teses, artigos e eventos
dedicados à linguagem. O número de pesquisas e assuntos pesquisados acompanha esse
crescimento, mas ainda são poucos os registros que tratam da produção coletiva, do
fazer em grupo. Esta pesquisa se propõe a contribuir no preenchimento de tais lacunas,
o que, em termos práticos, significa uma maior dificuldade na coleta de dados, uma vez
que não existem muitas fontes disponíveis que tratem diretamente do objeto. Nosso
esforço se dá num movimento centrípeto de tentar atrair temas para elucidar o objeto
que está no centro de nossos interesses: o coletivo fotográfico contemporâneo. Para
falar dos coletivos, deveremos investigar e traçar articulações com outros campos e
assuntos circundantes. Rizoma, criação em rede, cibercultura, inteligência coletiva e
autoria são alguns desses conceitos e temáticas que abordaremos em articulação com a
fotografia. Em alguns momentos precisaremos desviar um pouco o nosso foco para
buscar aproximações que sejam esclarecedoras das premissas abordadas.
Não nos parece correto, em tempos de convergência, de pós-modernidade, de
articulações em rede e hibridações, tentar compartimentalizar os espaços, os processos.
Entendemos que há uma crescente interconexão, que as barreiras estão sendo
derrubadas ou simplesmente estão ficando mais porosas. Há uma possibilidade de
mistura dos conteúdos antes separados hermeticamente. Sem deixar de levar isso em
conta – na verdade, sem deixar de acreditar nisso como algo importante –,
priorizaremos algum recorte, na medida em que aumentar o contraste entre campos ou
funcionalidades se mostrar como melhor caminho metodológico para se tratar as
questões aqui levantadas. Ou seja, enxergamos melhor alguns aspectos específicos,
importantes para a discussão, quando ampliamos alguma diferença entre eles e
definimos melhor os limites de cada um. A fotografia abarca uma grande diversidade de
usos, aplicações e relações. Serve aos objetivos mais distintos e possibilita vivências
variadas. É um retângulo de papel fotográfico, é uma linguagem, é uma técnica. Está
presente no álbum de família, na galeria de arte, no jornal e no inquérito policial. É

3 Antes disso existiram contribuições importantes, algumas delas referenciais no atual estudo (ver
bibliografia). Mas só no final do século XX é que o volume torna-se realmente significativo, a ponto
de podermos encarar a fotografia como campo de teoria.

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importante que separemos, em alguns momentos, essas especificidades.


Mas fica desde já o alerta que não estamos aqui defendendo um mundo de
fronteiras tão demarcadas, com diferenças tão inviabilizadoras de toda uma gama de
possibilidade que as misturas podem ocasionar. Não haveria sentido em falar de
processos coletivos e defender segregações num mesmo texto. Quando for preciso então
tratar de delimitações, trabalharemos com as seguintes distinções: fotógrafo e artista;
arte e comunicação.
Embora em alguns momentos as fronteiras não sejam tão definidas – em outros
nós iremos invadir terrenos vizinhos propositalmente em busca de conceitos que podem
trazer um melhor entendimento das questões colocadas –, é importante delimitar de que
fotografia queremos tratar prioritariamente. Acreditamos na diferença entre a fotografia
feita pelo artista e a arte feita pelo fotógrafo. Mesmo que os resultados das duas
situações sejam fotográficos, veremos que neste trabalho estaremos, em grande parte,
envolvidos, preocupados com o processo, muito mais do que com a técnica ou com o
produto final. Sendo assim, existem delimitações entre a fotografia feita pelo fotógrafo
– mesmo que do campo da arte – e o artista: aqui estamos falando de formação, de
ligações culturais que estão presentes até mesmo na autorreferencialidade. André
Rouillé (2008) insiste nessa diferenciação afirmando que “o fotógrafo é o herdeiro de
uma cultura e de uma ética visual e profissional”, afirmando que nem todos que
fotografam são fotógrafos. Entendemos que a distinção passe por um trabalho –
consciente ou inconsciente – sobre a linguagem. Para Rouillé, existe uma terceira
categoria, a da arte-fotografia, assim com hífen no sentido de ser uma liga, de ser um
produto terceiro da junção de dois elementos: ele vai buscar na ideia de liga metálica, de
dois metais que são misturados para formar um diferente, novo.
Sem querer estender muito nesse ponto, mas considerando importante deixar
mais clara essa diferenciação, existem os artistas que usam a fotografia como suporte ou
material do seu trabalho, mas que a utilizam a partir de um cabedal acumulado no
campo da arte. A contemporaneidade traz uma hibridação entre os campos e não
queremos aqui nadar contra a correnteza ou assumir posição conservadora em relação a
uma mistura entre linguagens. O intuito de separação é apenas metodológico para
alcançarmos as questões que consideramos mais ricas e importantes.

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Outra delimitação que fazemos é que nos interessa observar o campo da


fotografia aplicada à comunicação. Pode parecer estranho ter feito a ressalva anterior
falando de arte e agora dizer que não nos interessa observar esse campo. É que, em
muitos momentos, arte e comunicação – ou mais propriamente, a relação da fotografia
com essas áreas – se confundirão ou estarão sobrepostas. Teremos considerações
envolvendo ambas as relações, mas isso acontecerá apenas como um procedimento cujo
objetivo é trabalhar conceitos que não foram abordados ainda por pesquisadores da
fotografia mais voltados para a comunicação.
Com o objetivo principal de contribuir para um melhor entendimento sobre o
fenômeno do surgimento do modelo aqui chamado de “coletivo fotográfico
contemporâneo”, precisaremos atacar algumas questões, resumidas no seguinte
problema: como e por que são formados os coletivos fotográficos contemporâneos?
Para isso, consideramos a necessidade de investigar o lugar do sujeito na fotografia –
como pensar num sujeito coletivo sem antes entender como se dá a relação entre
subjetividade e objetividade numa linguagem tão marcada pela técnica, automaticidade
e mecanicidade? Por muito tempo, mesmo após o reconhecimento do sujeito na
fotografia, mesmo quando içado à condição de autor, isso se dava apenas de maneira
individual.
Também fizemos um levantamento, delimitação e exemplificação das
experiências colaborativas mais importantes envolvendo agrupamentos de fotógrafos,
na busca por identificar suas principais características, que consideramos importante na
comparação com os aspectos observados nos coletivos contemporâneos. Estudamos as
agências fotográficas, os fotoclubes e o Farm Security Administration (FSA). É possível
falarmos num modelo que traz diferenças em relação a outras iniciativas? Existe mesmo
um novo modelo ou trata-se de um nome novo para uma prática antiga? O primeiro
capítulo traz, então, os antecedentes de pesquisa: o lugar do sujeito na fotografia e as
práticas colaborativas anteriores.
Um outro caminho percorrido seguiu na direção da investigação sobre o
cenário que propiciou e influenciou o surgimento dos coletivos contemporâneos. A
fotografia não é mais a mesma, assim como a sociedade não é mais a mesma. O
segundo capítulo, portanto, traz uma maior densidade conceitual e teórica, cujo objetivo

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é nos permitir visualizar os diferentes aspectos presentes neste cenário de convergência,


articulação em rede, criação coletiva e novas tecnologias e como isso estimula ou
influencia as possibilidades associativas. Tais aspectos presentes na sociedade mediada
pelo computador não fundaram as práticas colaborativas, obviamente, mas
potencializaram as possibilidades de interação. A digitalização tem operado mudanças
não apenas do ponto de vista técnico, mas toca diretamente o modelo de visualidade de
nossa sociedade.
Um desafio aqui encontrado foi o de trazer conceitos que consideramos
realmente úteis para a compreensão do fenômeno nas suas várias articulações sem que,
no entanto, nos deixássemos tomar um infindável número de possíveis ramificações.
Como veremos, numa confirmação de diversos pontos levantados ao longo do trabalho,
há um imbricamento de questões: novas ligações se formam a todo instante. Alguns dos
caminhos que surgem são muito instigantes, mas precisamos em vários momentos
limitar o alcance de nossos percursos, ou nos arriscaríamos a sair completamente do
rumo. Se é um capítulo mais denso, com um cabedal mais concentrado de conceitos e
autores, é porque avaliamos ser de suma importância a articulação com tais teorias e
reflexões.
Uma vez preparado o terreno, entramos mais diretamente na caracterização e
análise dos coletivos fotográficos contemporâneos, buscando dar conta desde a
terminologia – com as dificuldades e contradições existentes – até os aspectos de
diferenciação em relação às demais práticas estudadas anteriormente. Foi dedicado
algum tempo de pesquisa na procura por um termo que pudesse ser usado na nomeação
do modelo estudado. Terminamos por trazer do campo da prática o termo “coletivo
fotográfico contemporâneo”, que será esmiuçado no terceiro capítulo. Mas é importante
que façamos uma observação já agora sobre o uso da palavra “contemporâneo”.
Existem ao menos três significados para esse termo. O primeiro deles dá conta
do compartilhamento de um tempo, de uma época. Duas coisas são contemporâneas
entre si quando pertencem a um mesmo tempo. Nesse sentido é impossível dizer que
algo é contemporâneo em si (ARAÚJO; CRUZ, 2011). Além disso, podemos apontar
para uma utilização em relação ao presente atual ou como uma postura, uma forma de
fazer arte. (idem). Embora em alguns momentos o termo possa unir mais de um desses

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significados, daremos preferência a usá-lo em referência ao entendimento como postura


e não na sua condição de cronologia – a menos que esteja claro estar se referindo ao
compartilhamento de uma mesma época entre duas coisas. O uso de palavras como
moderno ou pós-moderno também acompanham essa abordagem, levando em conta as
camadas de significação que vão além de sua conceituação temporal-cronológica. Para
falar de tempo, usaremos termos como atualidade ou nos referiremos a anos ou épocas.
Na busca por afinar nosso foco sobre o fenômeno estudado, traremos uma
comparação mais detalhada com as práticas precedentes, estudadas no primeiro
capítulo. Acreditamos que tal resgate muito nos facilitará no esforço por melhor
entender o fenômeno. Por se tratar de um objeto contemporâneo ao estudo, algo que
acontece e se modifica ao mesmo tempo em que é feita a pesquisa, optamos pelo estudo
de caso como procedimento metodológico, uma vez que não temos como influenciar os
resultados. Estudamos dois coletivos: o paulista Cia de Foto e o espanhol Pandora.
Vários trabalhos foram analisados com o intuito de relacionar, testar e confrontar os
conceitos apresentados.
O rizoma de Deleuze e Guattari (1995) certamente é o conceito que melhor se
relaciona ao fenômeno dos coletivos e é também o maior inspirador para este estudo.
Acreditamos que muitas novas ligações e rupturas surgem a partir daqui. Buscamos
articulações com diversos autores, conceitos e experiências com o desejo de melhor
perceber como e porque são formados os coletivos. Empreendemos esforços em várias
direções e trouxemos para a discussão diversas ideias que consideramos importantes
para tal empreitada. Mas sabemos da impossibilidade de esgotar um tema que se
constrói a partir de reconfigurações e de misturas.
Nesta conjuntura, as aberturas a novas ligações são mais importantes, as
questões podem ser mais ricas que as respostas, a busca e o caminho serem tão bonitos
quanto o destino. Assumimos as possibilidades de linhas de fuga como parte do
processo.

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Capítulo 1
Objetividade, subjetividade e grupos na fotografia

La historia de la fotografía puede ser contemplada


como un diálogo entre la voluntad de acercarnos a
lo real y las dificuldades para hacerlo.
Joan Fontcuberta

Antes de nos debruçarmos sobre o coletivo, que é nosso objeto de pesquisa,


faz-se necessário observarmos como o sujeito esteve mais ou menos presente no
discurso fotográfico – independentemente se um sujeito individual ou coletivizado. A
fotografia, por si só, não pode ser tomada como uma linguagem mais ou menos
objetiva, ao contrário do que aconteceu ao longo de sua história. Não é a técnica ou o
aparato que vai trabalhar em tal delimitação. Algo que nos parece claro hoje, mas
veremos que a abertura para a participação do homem, para sua valorização no ato
fotográfico não foi o entendimento dominante. Pelo contrário, a fotografia ganhou
espaço e importância através da defesa da condição de “espelho do real” ou de produto
de uma máquina. Veremos como o alinhamento aos preceitos industriais e modernos,
que durou cerca de um século, trouxe dividendos à fotografia. A ligação direta com o
referente, a transparência da fotografia, seu valor indicial será destacado por estudiosos
importantes para a teoria da fotografia, ainda nas últimas décadas do século XX, algo –
essa aderência ao referente (BARTHES, 1984) – pertencente à sua natureza mais
elementar. Se a existência de um sujeito no processo foi muitas vezes contestada,
precisamos primeiro esclarecer como se dá a relação – até mesmo a simples aceitação –
de subjetividade, para depois podermos avançar numa ampliação que envolve um fazer
em grupo. Voltaremos, então, aos princípios do que conhecemos por fotografia e até

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mesmo um pouco antes do seu surgimento.


De lá para cá, ao longo desse período, a história da visualidade – e aqui vamos
tratar com mais ênfase da fotografia – passou por momentos em que a subjetividade era
mais ou menos valorizada. Num movimento pendular, ora a fotografia era defendida
como uma técnica objetiva, ora se tentava valorizar e destacar a importância do homem
na produção da obra fotográfica. “Dependendo da época, das circunstâncias, usos,
setores ou dos profissionais envolvidos, era um ou outro aspecto que prevalecia”
(ROUILLÉ, 2009, p.27). Ainda hoje, não raro, nos deparamos com referências mais
fortes ao dispositivo do que ao fotógrafo, como responsáveis pela imagem final.
A câmara obscura tem os seus princípios óticos conhecidos desde mais de 2000
anos atrás. Aristóteles, Leonardo Da Vinci e Kepler, dentre outros, especularam sobre o
fenômeno que projeta no fundo de uma caixa escura, uma imagem invertida da cena
exterior, proporcionada pela luz que atravessa um pequeno orifício. Mas foi na Idade
Média que a câmara obscura se popularizou, não apenas como uma experiência óptica,
mas como um aparato de entretenimento, um instrumento de auxílio a desenhistas e
pintores, ou, mais importante, modelo de visualidade. Entre os séculos XVI e XVIII, a
câmara obscura assume importância ao delimitar e definir as relações entre observador e
mundo. Ela não é apenas um entre vários instrumentos ou opções visuais. Mais que isso,
a câmara obscura produz uma operação de individualidade, definindo o observador
como “isolado, fechado e autônomo em seu confinamento escuro, retirado do mundo”
(CRARY, 1990). Desta forma esse aparato cumpre uma função decisiva de separar o ato
de ver do corpo físico do observador, de descorporificar a visão.
Com a câmara obscura, passa-se a entender que a imagem - sempre ligada ao
olho, que sempre foi percebida como uma função fisiológica - pode ser formada
independentemente do sujeito. Ela estará lá, projetada no fundo da câmara, estando ou
não o observador no seu interior. Crary (1990, p. 47) cita experiência sugerida por
Descartes em sua “Dioptrica”, em que um olho de um homem recém-morto - na falta
deste, de um boi ou de outro animal de grande porte - deve ser retirado do seu corpo e
posicionado no furo da câmara obscura. Descartes detalha os procedimentos para
adaptar o globo ocular ao dispositivo e afirma que um olho morto e até mesmo de um
boi, separado de seu corpo, projetará imagens no interior da câmara escura: a imagem

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como formação mecânica, não mais dependente de um organismo vivo ou humano.


No início do século XIX, ainda antes do surgimento da fotografia, Goethe
utiliza a câmara obscura numa outra experiência. Nela, um observador fixa seu olhar
sobre o círculo de luz que entra pelo furo da câmara. Em seguida o furo é fechado e o
olhar permanece voltado para a parte escura. O que se forma é uma imagem circular,
inicialmente amarela e depois avermelhada. Uma imagem não projetada na caixa, mas
criada pelo organismo do observador. Essa experiência ótica descrita por Goethe aqui
apresenta uma noção de visão que o modelo clássico é incapaz de explicar. A
subjetividade corporal do observador, que havia sido excluída no conceito da câmara
obscura, se torna primordial na condição de observador (CRARY, 1990). As
experiências trabalham uma ideia de separação entre imagem e observador. A imagem
do mundo é formada independentemente do observador, assim como a imagem se forma
no interior do observador independente do mundo exterior.

1.1 Objetividade
O embate entre objetividade e subjetividade, a máquina versus o homem, dura
até os dias de hoje e não foi inaugurado pela fotografia, como bem pudemos perceber
nos exemplos acima citados. Mas a fotografia alimentou esse debate e foi fortemente
influenciada por ele. Ela surge num momento de alinhamento com a modernidade. É
sincrônica ao aparecimento das grandes cidades, da industrialização, da serialização das
coisas – não apenas dos objetos, mas dos procedimentos, das ideias etc. Os modernos
operam uma anulação da subjetividade em nome do desenvolvimento, do progresso. A
fotografia responde a esses anseios e os reforça. Surge na esteira de um movimento que
enxergava na retirada do homem a causa para o aumento da eficácia e da exatidão. Aos
olhos daquele momento, a máquina demonstrava mais perfeição do que o inexato da
mão humana. Os caminhos a serem percorridos respondem a necessidades e
possibilidades – ou limitações – de cada época.
Como nos lembra Gisele Freund, “qualquer invenção é condicionada, por um
lado, por uma série de experiências e conhecimentos anteriores e, por outro, pelas
necessidades da sociedade” (FREUND, 1995, p. 37). Mais importante do que a
existência de uma tecnologia é o uso social que é dado a ela: como a sociedade

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responde, interpreta e se apropria de uma invenção, que vem como resposta a


necessidades diretas de cada época. Vilém Flusser toca neste aspecto por outro viés.
Para ele, existem duas classes dividindo a sociedade: “os que usam as máquinas em seu
próprio proveito e os que funcionam em função de tal proveito” (2002, p.21). Cada
momento histórico traz consigo problemas e questionamentos que exigem soluções
novas.
Em 1786, uma invenção que fez muito sucesso foi o fisionotraço (FREUND,
1995, p.28). Consistia num aparato que, se utilizando de braços pantográficos,
possibilitava a produção de imagens de perfis com considerável rapidez e fidelidade.
Mais um exemplo de um anseio mecanicista, matemático e de produção em série da
sociedade europeia do final do século XVIII. O fisionotraço é precursor da fotografia
tanto como sistema de reprodução múltipla como pelas suas pretensões de oferecer uma
verdade mecanicamente transcrita, uma garantia de autenticidade. A busca por uma
objetividade mecânica terá um papel fundamental na forma como a fotografia irá se
estabelecer, a começar pelo anúncio de sua invenção.
A fotografia tem registrada como data de criação o dia 19 de agosto de 1839.
Essa data é emblemática na medida que se refere ao momento em que o governo francês
anuncia a compra da patente da invenção do daguerreótipo, um dos processos pioneiros
de fixação de uma imagem formada a partir da exposição à luz, ao sol. Naquele
momento havia várias pesquisas em andamento nesse sentido. Na verdade, a ação da luz
sobre determinados compostos, como por exemplo o escurecimento dos sais de prata, já
era conhecido e experimentado há muito tempo. A busca se dava, em geral, pela técnica
que permitisse que esse escurecimento fosse interrompido e que a imagem resultante
fosse durável. O que Louis Daguerre conseguiu naquele ano, mais do que a invenção
propriamente dita do processo que fazia referência ao seu nome, foi negociar a patente
com a França, em troca de pensão vitalícia para ele e para a família de seu sócio,
Niepce, já falecido àquela altura. O anúncio, que marcou o início da história oficial da
fotografia, aconteceu amparado pela Academia de Ciências, que destacava o lado
objetivo, maquínico de tal invenção.
Essa história poderia ser contada de outros pontos de vista. Por exemplo, pela
visão de um outro inventor da época, também francês, chamado Hippolyte Bayard, que

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já havia chegado a resultados concretos na sua busca por fixar uma imagem formada a
partir de um material sensível à luz. O processo de Bayard produzia imagens em
positivo, semelhante ao que outro pesquisador, na Inglaterra, Henry Fox Talbot, veio a
registrar com o nome de talbótipo: a grosso modo, num processo negativo-positivo,
imagens poderiam ser reproduzidas em papel emulsionado, num método mais
semelhante ao que conhecemos como fotografia analógica do que o daguerreótipo, que
era uma placa metálica, de difícil sensibilização e manipulação, além de impossível
reprodução. As placas de daguerreótipo “precisavam ser manipuladas em vários
sentidos, até que se pudesse reconhecer, sob uma luz favorável, uma imagem cinza-
pálida. […] Não raro, eram guardadas em estojos, como jóias” (BENJAMIN, 1994,
p.93). Ou seja, 1839 não marca a invenção da fotografia, mas, mais propriamente, o
anúncio pelo governo francês de um processo em detrimento de vários outros que
aconteciam paralelamente. Vale lembrar que até o Brasil teve sua contribuição a dar
nessa pluralidade, com as pesquisas do franco-brasileiro Hercules Florence, reconhecido
hoje como a primeira pessoa a se utilizar do termo “photographie”, em 1833 (KOSSOY,
1980).
O intuito de fazermos esse resgate histórico é, apenas, o de clarear algumas
relações que influenciam o surgimento e valorização de determinados fenômenos em
detrimento de outros; é o de percebermos, reforçarmos como o cenário de uma época
propicia o surgimento de algumas tecnologias, que, ao mesmo tempo, num processo
dialógico, passa a estimular esse mesmo ambiente social. Se a fotografia carrega até
hoje um peso de objetividade, isso pode ser em parte explicado pelo discurso que
defendia a nova invenção como traço do real, como ausência do homem, algo
consonante com os ideais de modernização e industrialização vigentes em meados do
século XIX, que acreditava que a máquina trazia mais exatidão e eficiência aos
processos de produção. Veremos, mais adiante, que esse entendimento ganha reforços
de outras naturezas, como, por exemplo, um viés que teoriza a partir da relação com o
referente. Naqueles tempos iniciais, no entanto, a fotografia ganhou espaço quando foi
oferecida como espelho do real, como imagens produzidas diretamente pelo sol, sem a
interferência do homem. O primeiro livro de fotografia da história, de Fox Talbot, traz
essa referência já em seu título, The pencil of nature: as calotipias ali presentes foram

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impressas pela natureza, não são obra da mão de um desenhista ou gravurista


(LEFÈVRE, 2003). Se grande parte dos manuais credita a Daguerre a invenção da
fotografia – e não apenas os manuais, pois até o dia mundial da fotografia é o 19 de
agosto – isso se deve ao fato de que houve uma polarização dos dois processos, um se
aliando mais às ciências e o outro, às artes. A ciência defendia Daguerre e a Academia
de Belas Artes se alinhava a Bayard. Surgiu o embate entre a precisão científica e o
indefinido dos contornos artísticos, entre o metal e o papel, o ofício e a criação, a
utilidade e a curiosidade (ROUILLÉ, 2009).
Os dois discursos, as duas defesas coexistiram num mesmo tempo, mas uma
delas, a da objetividade, teve mais força por conta dos anseios vigentes. Bayard nos
deixa um documento dessa disputa “perdida” pelo campo da arte. Ele protagoniza um
episódio que inaugurou o autorretrato fotográfico e que jogava com o peso da
representação nesta linguagem que surgia. Já naquele momento, o valor de prova da
fotografia é posto em questão. Ele faz circular por Paris um retrato onde ele aparece
fingindo-se afogado. No verso, um texto4 relata que aquele cadáver que vemos é o do
Sr. Bayard, criador da técnica que temos em mãos, inventor engenhoso, vítima de uma
injustiça pela Academia, que reconheceu e pagou muito a Daguerre, mas disse não
poder fazer nada por Bayard, que até chama a atenção para o fato de que a cabeça e as
mãos já começam a apodrecer - aparecem mais escuras na imagem. Bayard se sente
depreciado, afogado economicamente (ALBARRÁN, 2010). O processo criado por ele
não era menos científico ou mais artístico, mas, no que se estabeleceu uma polarização,
os argumentos que se seguem direcionam para um ou outro polo. “Cada tecnologia
suscita questões relativas à sua consistência enunciativa específica que, em última
instância, se articula com a produção discursiva de uma sociedade num determinado

4 “Le cadavre de monsieur que vous voyez ci-derrière est celui de M. Bayard, inventeur du procédé
dont vous venez de voir les merveilleux résultats. À ma connaissance, il y a à peu près trois ans que
cet ingénieux et infatigable chercheur s ´occupait des perfectionements de son invention. / L
´Academie, le roi et tous deux qui ont vu ses dessins, que lui trouvait impartaits, les ont admirés
comme vous les admirez en ce moment. Cela lui a fait beaucoup d´honneur et ne lui a pas valu un
liard. Le gouvernament, qui avait beaucoup trop donné à M. Daguerre, a dit ne pouvoir rien faire pour
M. Bayard et le malhereux s´est noyé. Oh! Instabilité des choses humaines! Les artistes, les savants,
les journaux se sont ocupes de lui pendant longtemps et aujourd´hui qu´il y a plusieurs tours qu´il est
exposé à la morgue, personne ne l´a encore reconnu, ni réclamé. Messieurs et Dames, passons à d
´autres, de crainte que votre odorat ne soit affecté, car la tête du monsieur e ses mains commencent á
pourrir, comme vous pouvez le remmarquer” (FRIZOT apud ALBARRÁN, 2010).

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momento” (PARENTE, 1996, p.15).


São muitas as qualidades dessa nova invenção que podem ser alinhadas aos
ideais vigentes em meados do século XIX.
A fotografia – que reproduz mais rapidamente, mais
economicamente, mais fielmente do que o desenho, que
registra sem omitir nada, que dissimula as imprecisões da
mão, que, em resumo, troca o homem pela máquina –
impõe-se imediatamente como a ferramenta por
excelência, aquela que a ciência moderna necessita. E
continuará sendo assim até a Segunda Guerra Mundial
(ROUILLÉ, 2009, p. 109).

Daguerre, ao falar de sua criação, anunciava que “qualquer um pode tomar as visões
mais detalhadas mediante um processo físico-químico que outorga à natureza a
capacidade de reproduzir-se” (NEWHALL, 2006). Talbot, como já vimos, também
retira de si e credita à natureza a criação das imagens contidas em seu livro The pencil
of nature. Esse entendimento de que a imagem era formada pela luz, no interior de um
dispositivo mecânico, pelas leis da física e da química, de modo automático, onde a
participação do homem é (quase) nula, está presente não apenas naqueles momentos
iniciais: exemplos desse tipo de manifestação serão registrados ao longo de toda a
história da fotografia, em maior ou menor grau, dependendo do contexto.
Um fenômeno responsável por uma enorme popularização da fotografia foi a
produção da carte de visite. Patenteada por André-Adolphe-Eugène Disdéri, em 1854,
eram cópias fotográficas feitas a partir de negativos de vidro, montadas em cartão, com
dimensões reduzidas, por volta de 6 x 9 cm. O tamanho não era um detalhe menor. A
grande ideia que trouxe fama e fortuna a seu criador foi, através de câmeras
especialmente construídas para isso, passar a produzir oito ou mais retratos em apenas
uma chapa de vidro. Com isso cada chapa era copiada para o papel e bastava recortar
cada retrato e colar no cartão para produzir rapidamente um grande número de
fotografias, que eram vendidas a baixo custo e assim se podia atingir uma enorme
clientela. As relações entre fotografia e serialização vão muito além da possibilidade de
cópias. No processo de produção das carte de visite, o fotógrafo ocupava a posição de
um simples peão, um operário numa linha de produção compartimentada e repetitiva
(TAGG, 2005, p.67). Mesmo no campo das Belas Artes, já pelos idos de 1880, a

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fotografia era usada num caráter mais funcional: impressões de homens e mulheres nus,
como forma de economizar com modelos vivos. Outros fotógrafos se ocupavam de
produzir clichês de cenas urbanas ou paisagens também com o propósito de auxiliar
pintores e desenhistas nas suas criações. Eram aplicações auxiliares na produção de
quadros, gravuras ou esculturas5.
Para André Rouillé (2009), a fotografia é plural, sempre foi. Mas surgiu e se
desenvolveu diretamente inserida na dinâmica da sociedade industrial nascente, o que
vai determinar seus desdobramentos e funcionalidades. Uma vez que foi forjada por esta
sociedade, “a fotografia, no decorrer de seu primeiro século, como destino maior
conheceu apenas o de servir, de responder às novas necessidades de imagens da nova
sociedade. De ser uma ferramenta” (idem, p. 31). A fotografia respondeu e reforçou as
necessidades dessa sociedade, assim como qualquer outra relação entre tecnologia e
seus usos sociais. A fotografia é, por excelência, a imagem da modernidade, ao
ultrapassar um limite: até então, na produção de imagens, nunca a mão do homem havia
sido abolida. Essa fronteira era transposta em meio a um turbilhão de significados. Por
um lado a câmara obscura era responsável pela nitidez da projeção. Por outro lado, o
processo químico de fixação não tirava nem colocava nada à cena retratada. A junção
dessas propriedades físico-químicas era capaz apenas de reproduzir, de capturar, não
havia criação, interpretação, apenas um espelhamento do real, segundo os pensamentos
que conseguiam maior eco. Tais características são vistas mais como qualidade do que
como defeito. Enquanto o desenhista transmite para o papel apenas uma seleção daquilo
que documenta – por limitações que vão da técnica ao que “consegue” ver –, o fotógrafo
é mais exato, mais completo, o que traz para a fotografia uma grande funcionalidade de
documentação. Rouillé faz um extenso esmiuçamento das várias maneiras como a
fotografia esteve ligada aos ideais industriais e da modernidade, onde o caráter
automático, serializado, maquínico tinha maior destaque do que o aspecto humano,
criativo ou subjetivo. Essas ligações passam pelas cidades, pelo expansionismo, pelo
mercado – como no citado exemplo de Disdéri e suas carte de visite –, pela democracia

5 Alguns desse pintores que fotografaram cenas para serem reproduzidas em seus quadros hoje são mais
referenciados pelas fotografias que fizeram do que por suas pinturas, como é o caso de Eugene Atget
(ROUILLÉ, 2009, P.38). Isso reforça o pensamento de que a presença da subjetividade não está na
técnica ou no dispositivo, mas sim no contexto social que dá suporte a esse entendimento.

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– um valor moderno ao qual a fotografia se vê associada. A fotografia ignora a


transcendência, traz para o plano das coisas triviais do mundo profano os valores
sagrados do céu: a imagem deixa de ser fruto do gênio criador humano e sensível, para
uma produção de uma máquina sem alma.
Durante cerca de um século, irá perdurar o valor de dessubjetivação, essa
retirada da importância do sujeito na produção fotográfica, cujo resultado é chamado
por Rouillé de fotografia-documento: “refere-se inteiramente a alguma coisa palpável,
material e preexistente, a uma realidade desconhecida, em que se fixa com a finalidade
de registrar as pistas e reproduzir fielmente a aparência” (ROUILLÉ, 2009, p. 62). A
fotografia-documento tira partido de uma ligação direta entre as coisas e as imagens.
Uma característica presente na fotografia, que trata do aspecto mais indicial, de uma
ligação física entre referente e o signo. Ou seja, o valor de documento da fotografia tem
como base o dispositivo6 em si – e respectivos processos cientificamente objetivos
englobando a física e a química –, o modelo epistemológico da câmara obscura – que
isolou imagem e observador –, as ligações com preceitos da modernidade, mas teve em
estudos mais recentes uma sobrevida, uma reafirmação de sua instância referencial, que,
se não tinha esse objetivo, pelo menos contribuía para o poder de verdade, de real da
fotografia. Barthes dedica grande espaço a essa ligação imagem-referente.
“O que intencionalizo em uma foto […] não é nem a Arte, nem a
Comunicação, é a Referência, que é a ordem fundadora da Fotografia” (BARTHES,
1984, p. 115). “Eis soldados poloneses em repouso em um campo” [referindo-se a uma
fotografia de Kertész, de 1915] “nada de extraordinário, a não ser isso, que nenhuma
pintura realista me dariam: eles estavam lá; o que vejo não é uma lembrança, uma
imaginação, uma constituição […] mas o real no estado passado: a um só tempo o
passado e o real” (BARTHES, 1984, p.124). O noema “isso-foi” de Barthes – segundo
ele mesmo o que resume o objeto do livro inteiro - é tido até hoje como um dos pilares
da ontologia fotográfica. Em outra passagem, reforça: “a fotografia sempre traz consigo

6 O conceito de dispositivo de Maurice Mouillaud aponta para a ideia de uma matriz que age sobre as
práticas sociais, comandando não apenas a ordem dos enunciados, mas a postura do leitor (2002,
p.32). Os dispositivos impõem suas formas ao texto – por ele entendido como qualquer forma de
inscrição – e se encaixam uns nos outros. Tal linha de pensamento nos remete a Vilém Flusser, que usa
o termo “aparelho”, afirmando que este é programado para funções e estão subordinados a aparelhos
superiores (2002). Flusser também fala da função codificadora do canal distribuidor.

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seu referente […] estão colados um ao outro” (p.15). A análise barthesiana privilegia a
característica de índice da fotografia, afirmando ver somente o referente. Uma
transparência ou invisibilidade da fotografia, que é atravessada pelo olhar do leitor –
spectator –, este, talvez, o único possível sujeito no processo. O livro de Barthes, sua
última obra antes de falecer, foi escrito em 1980 e se transformou num dos pilares da
teoria fotográfica, contribuindo para reforçar um valor de verdade, de prova , que tem
nessa ligação direta – sem interferência do homem – entre imagem e objeto fotografado
seu maior argumento. Barthes defende que existem mecanismos para conferir verdade a
uma linguagem, faz-se uso da lógica ou do juramento. Já a fotografia seria indiferente a
esse tipo de recurso: “ela não inventa; é a própria autenticação; os raros artifícios por ela
permitidos não são probatórios” (ibidem, p. 128).
Escrito três décadas antes de A camara clara, um outro texto que foi por muito
tempo referenciado – e ainda recentemente usado como apoio e não de maneira crítica
em pesquisas – é o de André Bazin, cujo título já antecipava o papel que tomou para si
no campo das reflexões sobre as imagens: “Ontologia da imagem fotográfica” 7. Ele trata
de uma libertação da pintura pelo advento da fotografia, baseada não no
aperfeiçoamento material, mas numa satisfação completa por uma reprodução mecânica
do real. “Todas as artes se fundam sobre a presença do homem; unicamente na
fotografia é que fruímos da sua ausência” (BAZIN, 1983). Se Bazin chega a defender
que a fotografia deveria ser considerada como do campo das ciências naturais, tão forte
é sua relação com a natureza, maior do que com as ciências humanas, Barthes (1984)
dedica todo o seu último livro publicado em vida a essa característica de ligação com o
real. Em outros livros, Barthes traz um apagamento do sujeito não apenas na fotografia,
mas na linguagem de um modo geral. Ou seja, o seu pensamento aborda a construção da
autoria, colocando em questão, até, a construção do autor a partir da obra. Embora ele
tenha demonstrado uma preocupação mais geral em outros textos, “A câmara clara”
reforça uma ideia de ausência do sujeito no ato fotográfico.
Outros autores, no entanto, trabalham com perspectivas diferentes. John Tagg
(2005) entende que a combinação entre fotografia e evidência na segunda metade do
século XIX estava estreitamente ligada à aparição de novas instituições e novas práticas

7 Publicado em 1958.

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de observação e de arquivo. Para ele o poder não está na câmara, mas no Estado que faz
uso dela, que garante a autoridade das imagens que constrói como prova ou registro da
verdade8. A condição “ontológica” de um reflexo do real, não é assim tão direta, óbvia,
natural. Foi negociada, necessitou de um aprendizado, de uma aceitação. O autor
detalha os primeiros usos da fotografia como documento num julgamento judicial 9.
Duas constatações exemplares valem ser citadas. Por um lado, os responsáveis pelo
julgamento não estavam habituados a considerar as imagens fotográficas como
constatação de algo, como deixa claro um dos presentes ao questionar se não haveria
nada melhor a fazer do que amontoar as pessoas com cartões postais. Por outro lado,
Cameron, sanitarista responsável pelo uso das fotografias como prova, se valia de seu
conhecimento técnico num nível acima da plateia para preencher lacunas de informação
que a fotografia não era capaz de trazer. Com isso ele conduzia o discurso ora para uma
argumentação que destacava o caráter realista, ora para possíveis interpretações e
percepções mais subjetivas. Estamos em 1896. Somente na virada do século é que são
desenvolvidos procedimentos técnicos para a codificação da análise de fotografias como
elementos de prova. A qualidade vinculante entre fotografia e realidade é constituída
não apenas pelo aparato, pelo grau de definição, mas pela autoridade que é investida por
instituições como polícia, ministérios, justiça, tribunais.
Já Dubois , que pretende “atingir a fotografia” no sentido de um discurso
teórico mais amplo (1994, p.59), leva a discussão para as outras categorias da semiótica
peirceana. Ele afirma que a fotografia é índice, em “primeiro lugar”, para depois então
adquirir sentido (símbolo) e tornar-se parecida (ícone). O processo e as pessoas
envolvidas devem estar incluídos no fotográfico. “Com a fotografia, não nos é mais
possível pensar a imagem fora de seu modo constitutivo, fora do que a faz ser como é”
(DUBOIS, 1994, p.59), devendo estar aí incluída, nessa constituição, o ato da produção,
da distribuição e da recepção. Este autor amplia os elementos constitutivos da
fotografia, envolvendo o ato produtor como gerador de significação.

8 “No se trata del poder de la cámara, sino del poder de los aparatos del Estado local que hacen uso de
ella, que garantiza la autoridad de las imágenes que construye para mostrarlas como prueba o para
registrar una verdad.” (TAGG, 2005, p.84).
9 Durante plano de desocupação de um bairro de Leeds, quando uma seleção de fotografias é
apresentada ao Parlamento, com o propósito de reforçar uma autoridade e um reconhecimento das
argumentações. Ver TAGG, 2005, cap.5.

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Podemos entender a forte influência de autores como Barthes que, tão


recentemente, reforçaram a condição de uma fotografia meramente indicial, mas
sabemos que esses conceitos eram contemporâneos a outros que defendem maneiras
diversas de encarar tais ligações. Décadas antes, nos anos 1930 e 1940 ou mesmo na
virada do século XIX para o XX, diversos movimentos, no campo da produção, já
apontavam para uma valorização do fotógrafo como sujeito produtor da imagem.
Revistas ilustradas já destacavam a participação de alguns fotógrafos em suas edições,
se valendo de uma fama, de um valor agregado que esses autores carregavam. A Life,
por exemplo, é lançada em 1936 manifestando sua prioridade para a imagem resultante
de um pensar e sentir, uma revista “para ver e ter o prazer de ver; para ver e ser
surpreendido; para ver e aprender” (KOBRÉ, 2011, p.437). Iniciativas como a agência
Magnum – agência francesa, fundada em 1947, falaremos dela com mais cuidado
adiante – surgiam com o propósito maior do reconhecimento do fotógrafo e dos direitos
autorais.

1.2 Inscrição do sujeito


O declínio da imagem-documento acontece quando o fotógrafo reivindica a
inscrição de sua subjetividade em sua obra, abrindo espaço para a imagem-expressão:
“o elogio da forma, a afirmação da individualidade do fotógrafo e o dialogismo com os
modelos são seus traços principais” (ROUILLÉ, 2009, p. 161). Para este autor, o melhor
exemplo dessa reorientação foi Robert Frank, que entre 1955 e 1956, apoiado pela
Fundação Guggenheim, cruza os EUA recusando “à mínima imposição externa”,
assentando “a soberania do 'eu' do fotógrafo”, colocando “a imagem sob o domínio
exclusivo de sua subjetividade, de sua 'inspiração', de sua 'alma'” (ROUILLÉ, 2009,
p.171). Agora se faz necessária uma escrita fotográfica, uma forma trabalhada por um
autor. Segundo Souza, “com Robert Frank, começou a perder força a herança ideológica
da objetividade que se havia introduzido no discurso fotodocumental e
(foto)jornalístico” (2000, p.148). A “fotografia-expressão” vem se contrapor à
“fotografia-documento” no que ela tinha de negação da subjetividade – tanto do
fotógrafo, quanto da relação com os modelos e as coisas fotografadas. Para Rouillé, “é o
inverso desses elementos que caracteriza com exatidão a fotografia-expressão: o elogio

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da forma, a afirmação da individualidade do fotógrafo e o dialogismo com os modelos


são seus traços principais. A escrita, o autor, o outro” (ROUILLÉ, 2009, p.161).
Já vimos que, em meados do século XIX, logo após o surgimento e registro das
primeiras experiências bem sucedidas de fotografia, técnicas diferentes se alinharam a
parcelas divergentes da sociedade, causando uma polarização entre a função mais
objetiva ou mais subjetiva da imagem. Importante reforçar, mais uma vez, que não nos
parece correto defender um ou outro lado, uma ou outra característica. A fotografia
inclui todas essas possibilidades. Pode ter funções de documentação ou de expressão,
pode ser indicial ou simbólica (ou os dois). Se um ou outro aspecto foi mais valorizado
ou mesmo serviu de base para fundamentações teóricas que marcaram uma época, foi
exatamente porque, dependendo dos anseios da sociedade, das pessoas envolvidas, das
limitações estruturais e tecnológicas, dos interesses da indústria, era o que o momento
permitia “ver”. Essas potencialidades seriam atualizadas de acordo com os estímulos ou
limitações de cada tempo.
Não vamos aqui arrolar todos os movimentos da história da fotografia, todas as
idas e vindas para cada um desses “polos”. Mas vale a pena lembrar do pictorialismo,
movimento surgido no final do século XIX, que, visando garantir à fotografia o status
de obra de arte, protagonizou uma espécie de manifesto “antifotográfico”, que negava o
mecanicismo, a exatidão, a nitidez, a reprodutibilidade. O pictorialismo se caracterizava
pela escolha de técnicas e materiais que proporcionassem desfoque ou texturas
diferenciadas em relação à fotografia comumente feita, além da manipulação e
intervenção dos negativos e das cópias, com o intuito de inserir a mão do artista, o olho,
o humano no processo e devolver uma característica de “obra-prima”, de não
reprodutível, original. Ora, se um dos “pecados artísticos” da fotografia era a
possibilidade de reprodução indiscriminada, nada mais natural, num movimento que
visa a aceitação artística, que a busca por quebrar essa característica.
Esse movimento pendular entre maior presença do homem ou da máquina
permeou e continua fazendo parte de toda a história da fotografia, até os dias de hoje.
Ora teve mais espaço a ideia da natureza se colocando diretamente nas imagens, em
outros momentos o fotógrafo era apenas uma engrenagem da máquina de capturar o real
sem falhas, ou as várias fases em que a subjetividade foi içada a níveis superiores. A

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reabilitação do homem como centro do ato fotográfico e a necessidade do diálogo com o


fotografado – com a possibilidade de interferência deste na construção da fotografia –
chegam sincronicamente às primeiras vacilações das mitologias industriais e modernas,
abrindo espaço para percepções intermediárias, possibilidades de hibridações e
rearranjos estruturais e formais. Um novo horizonte que permitiria não apenas
redefinições do lugar do sujeito no ato fotográfico, como até a implantação de novas
configurações desse sujeito: uma primeira abertura, talvez, para a aceitação do fazer
coletivo.
As polarizações que aconteceram em torno da técnica e do dispositivo, bem
como os estudos que traziam de forma determinante o aspecto mais indicial – Ontologia
da imagem fotográfica, de André Bazin, em 1958; A câmara clara, de Roland Barthes,
em 1980, entre outros –, deixavam de fora a possibilidade de uma conciliação entre
homem e máquina e a “fecundidade” dessa posição intermediária. Precisamos
experimentar tempos pós-industriais e as transformações sociais respectivas para
percebermos novas potencialidades a serem exercidas. Hoje é impossível se pensar a
produção de subjetividade distanciada de sistemas maquínicos. “Nenhum campo de
opinião, de pensamento, de imagem, de afectos, de narratividade pode, daqui para a
frente, ter a pretensão de escapar à influência invasiva da 'assistência por computador',
dos bancos de dados, da telemática etc” (GUATTARI, 1996, p.177). Guattari chega a
indagar-se se a própria essência do sujeito não estaria ameaçada por esta nova
“máquino-dependência” da subjetividade. Para ele, as máquinas são “formas
hiperdesenvolvidas e hiperconcentradas” de alguns aspectos de nossa própria
subjetividade, não tendo sentido algum que o homem queira desviar-se delas, das
máquinas. Flusser também nos alerta para essa ligação entre a tecnologia e o homem:
“sempre se supôs que os instrumentos são modelos de pensamento. O homem os
inventa, tendo por modelo seu próprio corpo. Esquece-se depois do modelo, 'aliena-se',
e vai tomar o instrumento como modelo do mundo, de si próprio e da sociedade” (2002,
p.73). Aprofundaremos as mudanças e as possibilidades trazidas pelas novas tecnologias
no capítulo 2.

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1.3 As experiências colaborativas na fotografia


Como vimos, a fotografia teve – e tem até hoje em alguns setores –
entendimentos divergentes no que diz respeito à aceitação do sujeito no seu ato
constitutivo. Não há unanimidade, nem ao longo da história, nem entre os praticantes,
nem entre os estudiosos. Uns defendem um espaço menor de subjetividade, outros
atacam. Poucos falam de um equilíbrio, de uma convivência pacífica. Se entender o
sujeito como parte integrante do fazer fotográfico não é algo assim tão natural e direto,
o fazer colaborativo também é cheio de nuances e, muitas vezes, não passa de um
ajuntamento de fazeres individualizados e estanques.
Na nossa busca por caracterizar os coletivos fotográficos contemporâneos,
precisamos nos debruçar sobre outras iniciativas que agruparam fotógrafos a partir de
objetivos em comum. Muitas vezes as polêmicas giram em torno de referências a essas
iniciativas. A pesquisadora e jornalista Simonetta Persichetti em seu blog Trama
Fotográfica (2008), por exemplo, levanta o assunto e é seguida por 31 comentários de
fotógrafos, coletivos e professores, muitos deles bastante extensos e trazendo opiniões
que chamam os coletivos de modismo ou de se tratar de uma estratégia de marketing,
para dizer o mínimo. Faz-se importante então, uma busca por delinear as características
das experiências precedentes, para uma posterior análise comparativa.
Ao observarmos a história (SOUZA, 2000; TAGG, 2005; NEWHALL, 2006),
é possível levantar algumas iniciativas que agruparam fotógrafos de maneira
organizada. Deixando de lado movimentos e “escolas”, podemos destacar o surgimento
dos fotoclubes e sociedades fotográficas, ainda na metade do século XIX; as agências e
cooperativas fotográficas, que, como veremos adiante, podem ser divididas em
subcategorias. Tomaremos licença também para incluir o Farm Security Administration
(FSA) como outro importante modelo de produção fotográfica coletivizada, como forma
de ampliar a discussão.

1.3.1 Fotoclubes
Os fotoclubes surgem já no século XIX e reúnem amantes da fotografia em
suas mais variadas relações com a linguagem: profissionais, amadores ou técnicos. São
sociedades fechadas. Um dos principais catalizadores desse movimento é o desejo de

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elevar a atividade fotográfica a um nível superior, de se diferenciar daquele “usuário


comum” que começava a aparecer com mais frequência, registrando suas viagens, sua
família. Vale lembrar que era um momento de disseminação de câmeras mais fáceis de
manusear, bem como o aparecimento de filmes e serviços que permitiam que qualquer
um fotografasse, a exemplo da Kodak com seu slogan: “você aperta o botão e nós
fazemos o resto”. “O movimento fotoclubista surgiu como uma reação amadorista à
massificação da produção fotográfica predominante” (COSTA; SILVA, 2004, p.22). No
início tiveram forte alinhamento com a corrente pictorialista e foi um fenômeno
internacional. No Brasil, surgiu nas principais capitais e em algumas cidades maiores do
interior e foi responsável por uma fatia importante da produção fotográfica nacional –
principalmente no contexto da fotografia moderna brasileira.

Desenho 1: os fotógrafos (círculos menores) estão ligados ao fotoclube,


mas mantém uma individualidade entre si e os objetivos estão voltados
para o centro do clube, sem ligações externas, necessariamente.

Nomes como Thomaz Farkas, Geraldo de Barros e German Lorca são alguns
exemplos provenientes do interior de fotoclubes como o Bandeirante, certamente o mais
importante no país, fundado em 1939 – em funcionamento até hoje. O

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experimentalismo – iniciando com o pictorialismo, mas passando até pelo surrealismo e


outras influências que eram trazidas do que se fazia no exterior – era uma característica
desses grupos e resultou em renovações e novas pesquisas técnicas e estéticas. A troca
de informações entre os integrantes era outro ponto forte. Mas o que o caracterizava
como um clube fechado, ou seja, a busca por uma diferenciação em relação a “outros
fotógrafos” era responsável por um marcante traço de competitividade interna. Além de
concursos, salões e outras formas de disputa, foram registrados até duelos fotográficos,
onde um integrante desafiava um outro rival para tirarem a limpo qual dos dois era
melhor fotógrafo: as regras eram definidas e os resultados eram julgados por uma banca
(idem, p.24).
O movimento fotoclubista aglutinou fotógrafos, gerou troca de informações e
amadurecimento das produções, estimulou a experimentação, com forte intercâmbio
entre clubes – tanto nacionalmente quanto internacionalmente – e foi responsável por
um grande número de salões, exposições e publicações. Mas, permeando tudo isso, “a
vida do fotógrafo no interior dos fotoclubes era marcada pela competição. Havia uma
hierarquia que classificava os sócios dos clubes em categorias, segundo o seu nível de
aperfeiçoamento” (idem, p. 23). Como é característica de um clube, embora promova a
junção de muitos fotógrafos, a individualidade é mantida – ou até exacerbada, como nos
traços competitivos observados. As atenções voltam-se para o centro do clube, mas as
ligações externas são feitas isoladamente. Se essas organizações surgem com o intuito
primeiro de se diferenciar das demais práticas fotográficas, não é difícil de constatar que
esse aspecto de distanciamento e exclusividade, de deixar demarcados os limites,
permeia todo o conceito e funcionamento dos fotoclubes.
Não devemos confundir esse modelo com associações e sindicatos, que não são
aqui analisados com maior profundidade pois já trazem nos seus objetivos uma maior
distância em relação às questões que estamos trabalhando. Embora, legalmente, uma
associação possa ser qualquer entidade sem fins lucrativos que reúna pessoas em torno
de objetivos em comum, uma definição que poderia muito bem comportar um coletivo,
as associações de fotógrafos atuam mais comumente no viés da defesa dos interesses
profissionais de uma categoria, como é o caso das várias Associações de Repórteres
Fotográficos (ARFOC) espalhadas pelo país, em geral ligadas ou trabalhando em

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parceria com sindicatos. Estes, por sua vez, possuem uma denominação mais
diretamente ligada aos direitos profissionais. Tais escopos fogem completamente da
proposta da atual pesquisa. Algumas agências fotográficas, no entanto, surgem também
com objetivos de defesa de direitos e valorização dos fotógrafos, porém no viés
produtivo ou de mercado e de articulação da linguagem.

1.3.2 Agências fotográficas


Os primeiros registros de agências fotográficas remontam ao final do século
XIX (KOBRÉ, 2011), mais precisamente com George Granthan Bain, em 1895. Bain,
que era fotógrafo e redator de jornal, inicia a Bain News Photographic Service, em NY a
partir da ideia de acumular fotografias e vendê-las a assinantes. Ele catalogava e
indexava fotografias que comprava de correspondentes e jornais de várias partes do
país. Fazia reproduções dessas imagens e enviava as cópias para sua lista de assinantes.
Seu negócio expandiu rapidamente e em 1905 ele já havia comprado mais de um milhão
de fotografias. Era um modelo focado na distribuição: comprava, reproduzia e
distribuía. O ponto chave aqui era a circulação. Não havia uma preocupação com a
produção, não temos referências aos fotógrafos responsáveis pela produção das
imagens. Estes eram apenas fornecedores de uma cadeia muito maior. Várias outras
experiências seguiram esse mesmo modelo de distribuição, a ponto de agências de
notícias começarem a incorporar o produto “fotografia” em seu menu de serviços
oferecidos aos clientes assinantes.
Já no século XX, é possível estabelecermos três principais categorias de
experiências sob a designação de agências fotográficas (HUMBERTO, 1983). A
primeira delas é representada pelas agências internacionais, grandes corporações
globalizadas, que fazem circular um volume monstruoso de imagens, originadas e
dirigidas a todas as partes do mundo. É um formato de trabalho que se assemelha à
experiência precursora de George Bain, citada anteriormente. O que interessa é o
potencial comercial da imagem, que está centrado no assunto, na agilidade, nos valores
de noticiabilidade. O fotógrafo não tem muita importância nessa relação: o que conta é
o produto ou serviço e ganha a imagem que chegar primeiro. Nesse modelo é comum o
uso de fotógrafos freelancers ou mesmo amadores e inclui a compra esporádica de

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imagens. Como exemplos, podemos citar a Agence France Presse (AFP) ou a Reuters.
Um segundo modelo é o das agências vinculadas a veículos de comunicação,
que comercializam o subproduto de suas editorias de fotografia, as sobras diárias, o
excedente do volume produzido para os jornais, revistas e portais do grupo. Enquanto
na categoria anterior o fluxo se dá em mão dupla, pois a agência capta material ao redor
do mundo para então distribuir aos assinantes, no modelo vinculado aos veículos o
fluxo segue uma lógica centrífuga de mão única, tendo como o centro o veículo
produtor das imagens. O objetivo é dar maior rentabilidade aos investimentos de
produção, ampliar a possibilidade de retorno.

Desenho 2: Os fotógrafos, aqui representados por círculos pequenos,


estão ligados à agência (círculo grande), que faz a mediação com o
mercado (quadrados), num modelo linear ou arborescente.
Algumas dessas agências, com o aumento de volume de circulação de suas
imagens, ampliaram seu relacionamento com o mercado mesclando características das
duas primeiras categorias, fundando um modelo híbrido que é vinculado a grupos de
comunicação e operam nessa lógica de comercialização de produção própria, mas que
aproveitam a articulação com a rede de assinantes para captar imagens de interesse de
seus veículos e incorporam tais imagens na sua oferta. São agências “nacionais” como a

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Agestado, ou Folhapress. Embora tenha parte de seu volume de negócios representado


por uma lógica de captação/distribuição, optamos por enquadrá-la na segunda categoria
pois o que predomina é o direcionamento do veículo ao qual está vinculada. Por
exemplo, essas empresas não fornecem – nem compram – material para os concorrentes
diretos de seus veículos: continuam sendo estruturas internas, condicionadas à
comercialização do subproduto, subordinadas ao grupo do qual fazem parte.
Por fim temos a experiência das agências formadas por fotógrafos, muitas delas
organizadas no modo de cooperativas. Estas trazem em seus objetivos uma maior
valorização e reconhecimento do fotógrafo e de sua atividade, colocam em pauta,
consequentemente, questões de respeito ao direito autoral. O principal exemplo é a
francesa Magnum, fundada em 1947 por fotógrafos como Robert Capa, Henri Cartier-
Bresson, David Seymor “Chim” e George Rodger. O surgimento da Magnum,
inspiradora até hoje de muitas outras iniciativas, se confunde com a história de Capa,
reconhecido como o maior fotógrafo de guerra de todos os tempos.
Húngaro, nascido com o nome de Endre Friedman – que depois virou André –,
Capa foge para a Alemanha por problemas políticos em seu país natal. Com a ascensão
de Hitler, sendo neto de judeus, foge novamente, dessa vez com destino à França. Sua
vontade era ser jornalista, mas a língua era uma barreira. Daí inicia a carreira de
fotógrafo. É com Gerda Taro, sua companheira de vida e de fotografia, que surge a ideia
de um fictício Robert Capa, fotógrafo americano cujo nome era de fácil memorização e
não remetia a uma nacionalidade específica. Alex Kershaw explica que Endre e Gerda
decidiram formar uma sociedade com três integrantes, onde ela era secretária e
representante comercial, ele era o laboratorista e os dois eram funcionários de “um rico,
famoso e talentoso (além de imaginário) fotógrafo americano chamado Robert Capa”,
que estaria visitando a França (KERSHAW, 2004, p.28). Eles passam a comercializar
seus trabalhos em nome desse personagem, o que valorizava o serviço e criava um
distanciamento entre o ato fotográfico e os procedimentos comerciais. É dessa época a
fotografia do soldado espanhol morto10, tão famosa quanto polêmica – existem versões
que defendem ser uma farsa ou encenação. Gerda morre durante a cobertura da Guerra

10 Uma das fotografias mais famosas de Robert Capa é a de um miliciano na Guerra Civil Espanhola,
supostamente fotografado no momento em que levava um tiro das forças inimigas (1936). Uma
grande polêmica se instaurou sobre essa imagem, que teve sua autenticidade questionada.

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Civil Espanhola e Endre assume de vez seu novo nome, com o qual entraria para a
história do fotojornalismo.
Essa história de Endre e Gerda, com um trabalho colaborativo, sob uma
assinatura conjunta, é um embrião para várias das questões que estariam permeando não
apenas a existência da agência Magnum, como também das práticas coletivas mais
atuais. Olhando com o distanciamento do tempo, a conclusão mais direta é de que foi
uma estratégia que driblava as dificuldades causadas por suas nacionalidades,
imprimindo uma marca e possibilitando a valorização de seu trabalho.
É de Robert Capa que emana o desejo maior de criação de uma estrutura que
permitisse lutar pelo reconhecimento dos fotógrafos, que possibilitasse a administração
dos direitos autorais, garantida pela posse dos negativos. Até então, era praxe que o
filme fosse entregue ao jornal ou revista assim que fosse exposto, onde seria revelado e
arquivado, sem que o fotógrafo tivesse domínio nem retorno sobre as utilizações
posteriores. A Magnum surge com esses objetivos, formando uma espécie de blindagem
que asseguraria uma independência de produção dos fotógrafos, associada a uma
logística de comercialização que garantisse retorno suficiente para o seu sustento
financeiro. É um modelo de viabilização comercial focado na valorização da atividade
fotográfica e do fotógrafo.
Ainda hoje o modelo da Magnum inspira novas iniciativas. A agência Noor,
sediada na Holanda é um exemplo. Formada por fotógrafos que já ocupavam boas
colocações no mercado mundial, ela surge em 2007, com reconhecida referência na
agência francesa de Capa11.
Assim como citamos o caso das agências ligadas a veículos, que existem como
forma de rentabilizar os excedentes de produção, uma outra prática comum no meio
fotográfico é o do banco de imagens. É natural que um fotógrafo ou uma agência
acumule um acervo de imagens, produzidas ao longo de sua existência. Fotógrafos,
jornais, agências, todos eles possuem seus próprios arquivos fotográficos, podendo
negociar tais imagens para o uso publicitário, editorial ou corporativo. Existem
empresas especializadas nesse tipo de material, trabalhando exclusivamente com

11 Ver entrevista com Stanley Greene, fundador da Noor. Na ocasião ele também faz uma crítica ao
modelo de “supermercado de imagens”. Em http://afdeautofoco.blogspot.com/2008/11/agncia-noor-
entrevista-com-stanley.html#links.

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fotografias de arquivo: os bancos de imagens, fotoarquivos ou stockphotos. Não


analisamos esse outro formato pois ele está completamente focado no produto, na
fotografia, e não no fotógrafo. Ele não nos remete a uma relação entre fotógrafos. Pode
ser confundido com o primeiro modelo de agência, aquele focado na distribuição. O
Sambaphoto (www.sambaphoto.com), o Kino (www.kino.com.br) e o LatinStock
(www.latinstock.com.br) são alguns exemplos de fotoarquivos atuantes no Brasil.

1.3.3 Farm Security Administration


Nesta nossa busca por observar modelos que agruparam fotógrafos,
gostaríamos de citar também o Farm Security Administration (FSA), que não é agência
nem fotoclube, mas que foi um importante exemplo de produção fotográfica coletiva,
responsável por um denso capítulo da história da fotografia americana. É curioso que
essa sigla se refira a um programa do New Deal 12, localizado mais especificamente no
Departamento de Agricultura. Sob a direção de Roy Stryker, empregou fotógrafos como
Walker Evans, Dorothea Lange e Gordon Parks, entre muitos outros, que tinham a tarefa
de viajar pelo interior dos EUA, registrando as pessoas, as construções, as paisagens, os
costumes, a miséria, enfim, nas palavras de seu diretor, “apresentar a América para os
americanos”. Acabou por ser uma das maiores coleções/produções de fotografia dos
EUA, hoje arquivada na Biblioteca do Congresso, com mais de 160 mil imagens.
Os fotógrafos do FSA seguiam para campo com uma extensa pauta definida
por Stryker, que chegava a pormenores como “imagens de homens, mulheres e crianças
que tenham verdadeira fé nos Estados Unidos”. Era Stryker também o primeiro a ver os
filmes revelados e editá-los de acordo com sua visão. Ele é acusado de ser, ao mesmo
tempo, o criador e o destruidor de um grande volume de imagens: se existe todo esse
material arquivado, outro tanto foi para o lixo, destruído logo após ser revelado e
editado. As fotografias produzidas eram destinadas à imprensa, a peças do governo e
também para o público em geral, que poderia adquirir essas imagens para uso pessoal.
“Como escreveu Stryker: 'o volume total, e é um volume assombroso, tem uma riqueza

12 Uma série de programas do governo Roosevelt, com o intuito de recuperar a economia americana da
Grande Depressão, após o Crash da Bolsa de Valores (1929), que incluía ações de vários tipos, como
diminuição da jornada de trabalho, fixação do homem no campo, reestruturação de pequenos
agricultores que foram à falência, entre outras.

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e uma distinção que não se desprende simplesmente das próprias imagens


individuais'13”(TAGG, 2005, p.220). Foi um projeto de documentação de uma
envergadura sem precedentes na história, que agrupou diversos fotógrafos em torno de
um objetivo específico e foi responsável por um acervo valioso de documentação.
Mesmo proporcionando um resultado coletivizado, a equipe era pautada e dirigida por
uma personalidade reconhecidamente centralizadora. Os fotógrafos do FSA tinham o
projeto como um cliente ou empregador: não havia integração entre eles, recebiam
pautas e as executavam de maneira independente.
Embora essas experiências abordadas tragam grupos de fotógrafos trabalhando
em objetivos comuns, em todas elas podemos observar a permanência de um fazer
individualizado na ponta do processo. Mesmo que a comercialização, ou a articulação
logística, ou os objetivos temáticos ou políticos sejam coletivizados, na outra ponta
existe a figura do indivíduo fotógrafo, responsável pelo produto final, entendido como
autor das imagens – mais ou menos valorizado dependendo da situação.
Temos aí, então, uma primeira diferença entre o nosso objeto de pesquisa – o
coletivo fotográfico contemporâneo – e as demais iniciativas: o entendimento tácito
entre os integrantes de que há um maior peso das discussões e amadurecimento dos
trabalhos via troca de ideias e de críticas. Mais do que isso, o reconhecimento das
contribuições do grupo na composição da obra. O resultado final é percebido como fruto
dessa interação e troca. O grupo tem uma participação ativa nos resultados, é assim que
o processo é entendido. O que nos remete a perceber um foco no processo e não na
estrutura ou no resultado: não é necessariamente uma razão social, um organograma ou
um produto que vão definir o coletivo. A resposta de “o que” são passa pelo “como”
são. Abordaremos o processo mais adiante. Essa diferença pode passar por acúmulos ou
sobreposições. O coletivo dá alguns passos adiante: ele pode ter um tratamento similar a
uma agência no que se refere à infraestrutura ou cadeia comercial, mas soma a isso o
compartilhamento do fotográfico, afasta ideias de individualidade, tão presentes no que
é mais comumente associado aos que fazem fotografia, aos fotógrafos.

13 Quando Tagg cita Stryker, há uma nota de rodapé fazendo referência a “Stryker, 'The FSA Collection
of Photographs', p.7, sem maiores detalhes da obra citada. Achamos por bem manter tais referências,
embora não nos tenha sido possível localizá-la.

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1.4 O fotógrafo individual


A fotografia é percebida como uma atividade individual por diversos vieses.
“Tirar fotos é uma técnica ilimitada de apropriar-se do mundo objetivo e também uma
expressão inevitavelmente solipsista do eu singular” (SONTAG, 2004, p. 138). Embora
várias das conceituações da autora pudessem ser estendidas conceitualmente à prática
coletiva, encontramos em diversos momentos de sua obra uma referência direta ao fazer
individual. A extensa pesquisa sobre o modelo de visualidade vigente no início do
século XIX, empreendida por Crary (1990), nos dá uma chave para o entendimento de
que naquele momento se promoveu uma redefinição da relação entre observador e
mundo, colocando o primeiro como isolado, fechado e autônomo, em seu confinamento
escuro. Embora não seja a questão central de sua obra – o autor defende, inclusive, que
existem mais diferenças do que semelhanças entre os modelos epistemológicos da
câmara obscura e a fotografia –, ela ilumina sobre um aspecto importante para
pensarmos a individualização do fazer fotográfico.
Podemos encontrar, em paralelo ao que já foi colocado, diversas outros
aspectos que atuam reforçando uma ideia de individualidade na fotografia, os quais vêm
sendo revistos, muito em função da atuação de grupos que questionam a noção de
autoria individual. Porém foram – e continuam sendo – responsáveis por uma percepção
que passa primeiramente por um fazer individual. Citemos alguns, sem a intenção de
esgotarmos o assunto. Existe o entendimento cotidiano de que o autor de uma fotografia
é aquele que “aperta o botão”. Se o dispositivo é acionado – e na maioria das vezes
operado, regulado, carregado – por um único indivíduo, recai sobre esse sujeito o
reconhecimento pelo produto fotográfico. Embora a legislação que rege o direito
autoral no Brasil – lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998 – admita a coautoria 14, é
comum que contratos e licenças façam menção apenas a um autor.
O crédito coletivo também é confundido com a falta de crédito. Não raro, nos
encontros, debates, ou mesmo em publicações especializadas, a assinatura em conjunto
é apontada como um retrocesso em relação a uma conquista histórica importante da

14 A lei dá cobertura apenas a pessoa física, o que significa que um grupo não pode ser reconhecido
como autor na condição de grupo. Mas é possível que várias pessoas físicas compartilhem a autoria de
uma obra, como é comum na música, por exemplo.

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categoria dos fotojornalistas: a obrigatoriedade do crédito15. Não deixa de ser curioso


observar isso num meio onde o uso de pseudônimo é prática corrente. O despreparo
para uma autoria coletiva também pode ser percebido nos editais de concursos e normas
de instituições. Por exemplo, o coletivo paulista Cia de Foto 16 passou, ao menos, por
duas situações que atestaram essa necessidade de adaptação. Ao serem convidados para
integrarem a Coleção Pirelli-Masp de fotografia, uma das mais conceituadas coleções
do país, foram solicitados a identificar a autoria de cada foto isoladamente, com o nome
do integrante “responsável” por cada imagem. Não havia, na comissão curadora da
coleção, abertura para uma atuação – e assinatura – coletiva. O desfecho foi a negação
da participação da Cia. Hoje a Coleção Pirelli-Masp possui obras da Cia, pois
modificaram seu regulamento, admitindo a participação de grupos.
Um outro episódio envolveu um dos principais prêmios mundiais de
fotojornalismo, o World Press Photo – WPP. Um ensaio produzido pela Cia de Foto foi
premiado, porém toda a veiculação, publicação, exposição do material seguiu com o
crédito de apenas um integrante, desrespeitando o fato de que aquele material é
resultado de um esforço colaborativo – outros concursos solicitam inscrição individual
para fins legais, mas reconhecem e creditam os resultados para o grupo. Personagens de
filmes, novelas e romances reforçam a ideia de um ser independente, individual –
beirando o egoísmo ou a solidão em muitos casos. Existe toda uma visão romantizada
em torno do fotógrafo, detentor de um olhar mágico, que dispara sua câmera
condensando informação e emoção num único clique. Esse tipo de imagem reforça um
ideário de individualidade.
Como vimos, o sujeito ora está mais ausente, ora está mais presente no fazer
fotográfico e mesmo quando está presente, aparece de forma mais individualizada. Até
quando falamos de experiências que agrupam diversos fotógrafos, percebemos uma
forte tendência à manutenção dessa condição de isolamento. Pelas experiências
estudadas, consideramos que o modelo “agência” é o que possui mais pontos de contato
com o “coletivo contemporâneo”, suas estruturas de funcionamento se confundem em

15 Na verdade essa obrigatoriedade é extensiva a todas as imagens, conforme a lei citada acima, porém é
no campo do fotojornalismo onde há uma maior adesão e respeito a tal norma, direito muitas vezes
reforçado por acordos sindicais específicos.
16 Nesta pesquisa faremos um estudo de caso mais aprofundado sobre a Cia de Foto.

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alguns casos. Não raro veremos agências funcionando como coletivos e vice-versa. Mas
a observação dos outros modelos aqui analisados nos facilita um foco mais seletivo. O
fotoclube trouxe a pesquisa estética e a renovação para a fotografia. São fotógrafos com
características e paixões diferentes, trocando ideias e influências, num constante
amadurecimento e crescimento da linguagem fotográfica. Mas, ao mesmo tempo, eles
mantém um forte traço competitivo e individualista. Além disso, as relações externas
não acontecem, via de regra, pelo fotoclube, mas também numa relação direta entre o
fotógrafo e o mercado, ou mesmo não há esse desdobramento – o caso de amadores que
produzem para si e não possuem clientes ou não participam de exposições.
Traremos um maior detalhamento comparativo entre agências e coletivos, mas
antes é necessário que conheçamos o cenário no qual surge o novo modelo, pois
acreditamos que ele é um ingrediente importante nessa receita.

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Capítulo 2
O cenário pós-fotográfico

Using the camera only to provide answers and not


questions is to underestimate what the camera can do
Fred Ritchin

Escrevemos o Anti-Édipo a dois. Como cada


um de nós era vários, já era muita gente
Gilles Deleuze e Félix Guattari

A sociedade vem mudando. Os paradigmas da imagem – e da fotografia –


também acompanham essas mudanças. A fotografia hoje é outra, em relação àquela das
primeiras horas. Quais foram essas mudanças? Qual esse novo cenário que se
apresenta? Iremos destacar e relacionar alguns aspectos que consideramos importantes
na formação de um pano de fundo fundamental para o surgimento de novas articulações
no campo da imagem, do fazer fotográfico coletivizado. “A imagem não se reduz a sua
visualidade […]; participam processos que a produzem e pensamentos que a sustentam,
[…] cada sociedade necessita uma imagem à sua semelhança” (FONTCUBERTA, 2010,
p.12).
O lugar do sujeito na fotografia, como vimos, é algo que muda a cada época:
primeiro ele é deixado de fora, substituído pela máquina; depois se inscreve como
proprietário de um olhar único, pessoal. Hoje há uma expansão nos limites do nosso
entendimento sobre a fotografia: ela deixa de ser um recorte de tempo e espaço na
forma como foi até então pensado, insere no seu fazer tempos expandidos, relativiza
essas definições17, só para ficar nas mais elementares. Colocando em perspectiva sujeito
17 As anamorfoses cronotópicas de Arlindo Machado, a fotografia imersiva ou de 360 graus, a

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e processo, podemos afirmar que o coletivo fotográfico contribui para uma expansão do
lugar do sujeito, algo que acontece sincronicamente à diluição do autor na arte
contemporânea, por exemplo, ou em paralelo à liberação do polo emissor 18, do ponto de
vista da cibercultura, como veremos mais adiante. Se alguns autores fazem fotografia
lançando mão de imagens produzidas por outros fotógrafos, os coletivos operam nessa
inclusão de outros sujeitos já na sua organização e articulação com o meio.
A aparição do sujeito na fotografia, com maior ou menor importância, é
comparada a um movimento pendular por Rouillé (2009). A nosso ver, trata-se não de
um movimento do pêndulo de um relógio, que se desloca em uma trajetória
determinada, em um compasso, um ritmo, um vaivém milimetricamente programado:
ele não vai nem mais nem menos além do que aquele percurso definido. É melhor a
imagem de uma criança num balanço de um parquinho, onde ela se joga, de uma
maneira bem mais livre, em movimentos que vão de um lado para o outro, sem uma
rigidez, sem um limite. Na verdade ela está brincando com o limite, ela está
experimentando até onde vai, ora mais alto, ora com menos impulso. O fenômeno que
aqui abordamos também desenha trajetórias que se definem enquanto são desenhadas.
Também não queremos cair no erro de encarar as inovações como substituições da
tradição. Novas teorias, novas tecnologias se alimentam das anteriores, num rico
processo de negociação e mútua influência. Para Michel Callon, “o mundo novo resulta
de um empreendimento coletivo feito de vontades e interesses individuais que negociam
e, gradualmente, constroem uma casa comum” (2010, p.72).
O século XXI convive com o surgimento de um modelo de articulação que
lança novas questões para o campo da fotografia. Um fenômeno que, assim como os
outros abordados nesse trabalho, estão intimamente ligados, influenciados ou
estimulados pelas práticas sociais vigentes, pela interrelação direta com as tecnologias
em voga e, principalmente, com os usos sociais dessas tecnologias. Estamos falando dos
coletivos fotográficos contemporâneos. A prática do coletivo insere questões no que se
articulação com áudio, são apenas alguns exemplos de um fazer fotográfico que extrapola as
definições precedentes. A fotografia 360 graus revê, por exemplo, até mesmo conceitos como o
punctum de Barthes ou de enquadramento.
18 A liberação do polo emissor é uma das leis fundadoras da Cibercultura, segundo André Lemos (2005),
e tem como característica a passagem de um modelo de massificação da comunicação, onde a emissão
é concentrada na mão de poucos (o paradigma de um-todos), para uma democratização que possibilita
uma maior participação de todos na difusão de conteúdos comunicacionais (a lógica de todos-todos).

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refere a uma expansão do lugar do sujeito na fotografia da contemporaneidade. O


sujeito antes não existia, depois passa a ser o proprietário de um olhar transcendental,
pessoal, mágico. Agora ele amplia esse raio de operação para a inserção de vários
olhares, de vários momentos, de tempos diferentes, estamos expandindo esses limites. A
fotografia quebra a relação com o recorte – de um tempo, de um espaço –, ela relativiza
todos esses limites e essa expansão atinge também o papel do sujeito, na forma de
vários sujeitos sendo inseridos no ato. O coletivo é uma dessas possibilidades – outras
práticas contemporâneas também atuam nesse sentido. O coletivo é uma atualização de
um virtual (de um devir), que também é refletido em outras formas do fazer fotográfico
contemporâneo.
No nosso entendimento, o fenômeno que estudamos não poderia ter surgido em
um cenário diferente desse que se descortina no final do século XX e início do século
XXI: uma sociedade pós-industrial, fortemente estimulada pelos usos sociais de novas
tecnologias, onde as articulações em rede tomam proporções – e apropriações – antes
não imaginadas. Aqui nós não podemos ficar pensando em tecnologia como um
deslumbramento do aparato, do novo gadget, do novo aplicativo, mas sim tecnologia
como algo mais amplo. Se o advento da escrita ou da imprensa trouxe mudanças em
praticamente todas as esferas sociais, a digitalização e a consequente interconexão tem
operado transformações fabulosas em nossas maneiras de trabalhar, de sociabilizar, de
criar, de aprender e de pensar. Uma interconexão que acontece entre pessoas, mas
também entre linguagens. Apenas para ficar em um exemplo, lidamos com texto, foto,
som, matemática, tudo em um só aparato tecnológico. Quando trazemos tudo para um
denominador comum19, potencialiamos as formas de integração e de apropriação, de
troca e de conexão. “A sucessão da oralidade, da escrita e da informática como modos
fundamentais de gestão social do conhecimento não se dá por simples substituição, mas
antes por complexificação e deslocamento de centros de gravidade” (LÉVY, 2010, p.
10).

19 Ressalva importante: aqui nos referimos a um denominador comum em relação ao elemento


constituinte dos processos, ao fato de transformarmos imagem, som, texto, tudo em informação
digital, que pode ser processada por um mesmo equipamento. Há uma unificação do “material”, o que
permite uma multiplicidade inimaginável de resultantes.

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Consideramos importante tornar mais nítida a imagem deste cenário


contemporâneo, que acreditamos estimular o surgimento, com maior intensidade, dos
coletivos fotográficos. Traremos para a discussão alguns conceitos. As práticas
colaborativas abordadas no capítulo anterior – agências e fotoclubes - estão para a
lógica do industrial assim como os coletivos contemporâneos estão para a lógica pós-
industrial, da cibercultura, ou mesmo da pós-fotografia.

2.1 Cultura de convergência


Estamos observando grandes transformações tecnológicas, mercadológicas,
culturais e sociais. Henry Jenkins (2009) considera que um conceito consegue dar conta
de tais transformações: a convergência. Para ele, não devemos dar ouvidos
simplesmente à ideia de unir múltiplas funções num só aparelho, como é comumente
citado o termo, mas devemos pensar a convergência como um “fluxo de conteúdos
através de múltiplas plataformas de mídia, à cooperação entre múltiplos mercados
midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação”
(idem, p. 29). Não é nos aparelhos onde ocorre a convergência, mas nos cérebros dos
consumidores e nas interações sociais que eles promovem com os outros. Há uma
reconfiguração de nossa relação com as mídias, tanto no âmbito de consumo quanto de
produção, incentivando a inteligência coletiva e possibilitando novas formas de
participação e colaboração. “A convergência exige que as empresas de mídia repensem
antigas suposições sobre o que significa consumir mídias, suposições que moldam tanto
decisões de programação quanto de marketing” (idem, p.46). Isso diz respeito à ideia de
cultura participativa, em que o consumidor não é mais aquele ser passivo, que absorve
os conteúdos nele despejados, mas sim o que tem uma atuação interativa, que participa
da definição das regras e dos conteúdos, que adquire um poder de diálogo.
Essas mudanças estão relacionadas às novas tecnologias, tendo a internet como
uma de suas principais forças. Fernandes Jr (2009) afirmou que “é impossível pensar a
comunicação, e particularmente a fotografia, sem considerar a evolução tecnológica que
move o motor das nossas sensações. Não podemos dissociar a tecnologia e as
consequências que elas provocam em nossas percepções”. Para Crary (1990), existe
uma relação direta entre dispositivos técnicos, visualidade e formas de pensamento. Arte

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e ciência devem ser entendidas como parte de um mesmo campo de conhecimento e


prática. Não podemos dissociar um do outro: o dispositivo constrói o observador e vice-
versa.
A câmera obscura, por exemplo, nos séculos XVII e XVIII, era não apenas um
artefato que auxiliava pintores e desenhistas na produção de seus trabalhos, mas servia
também de modelo epistemológico para explicações sobre o funcionamento do olho
humano ou mesmo para racionalizações do pensamento vigente. Trazendo para os
nossos dias, não podemos pensar as novas configurações nas práticas do fotojornalismo
sem observar a sincronicidade com a cultura digital, com a reorganização em rede da
sociedade, com as mudanças trazidas, principalmente, pelas possibilidades da
comunicação mediada por computador. Assim como nos estudos empreendidos por
Crary sobre o século XIX, podemos entender que há uma mudança no regime da
visualidade sendo operada pelas pressões e influências – mútuas – da cultura de
convergência.
Segundo Castells (2003, p. 56), “a Internet está transformando a prática das
empresas em sua relação com fornecedores e compradores, em sua administração, em
seu processo de produção”. Além disso, a Internet também pode ser relacionada a um
aumento na vida social com a família e os amigos. “Se alguma coisa pode ser dita, é que
a Internet parece ter um efeito positivo sobre a interação social e tende a aumentar a
exposição a outras fontes de informação” (idem, p.102). A formação de redes, embora
uma prática antiga, foi energizada pela Internet. “Redes constituem a nova morfologia
social de nossas sociedades e a difusão da lógica de redes modifica de forma substancial
a operação e os resultados dos processos produtivos e de experiência, poder e cultura”
(CASTELLS, 2002, p. 565). Importante destacar que essas mudanças acontecem não
apenas no âmbito da divulgação de trabalhos, na difusão de conteúdos ou na
comunicação interpessoal, mas alcançam e influenciam novas lógicas de
relacionamento, de pensamento e de produção.
O conceito de rede mistura diferentes níveis de significação e complexidade.
Ele tanto comporta a conexão de elementos em interação, como também a imbricação
de estruturas de conexão, umas pelas outras, assim como a interligação entre sistemas
complexos. Podemos falar de redes formadas por redes secundárias e assim por diante.

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As redes “não são definidas por seus limites externos, mas por suas conexões internas”
(KASTRUP, 2010, p. 80), não possuem superfície ou fronteiras definidas. Suas
conexões e interconexões podem se reconfigurar em possibilidades múltiplas. Não
devemos aqui, para efeito do nosso estudo, permitir uma imagem de rede como algo
estático, predefinido, fechado. A rede se faz nas ligações entre os “nós”, nas linhas que
ligam os pontos.

2.2 Rizoma
Não podemos avançar numa discussão que envolve redes, pontos ligados por
linhas, nós, sem tocarmos no conceito de rizoma, desenvolvido por Gilles Deleuze e
Félix Guattari, em sua obra “Mil platôs” (1995). Embora o conceito de rizoma seja
comumente ligado às reflexões sobre redes, é importante reforçarmos aqui duas
ressalvas: primeiro, não podemos, deve-se repetir, pensar a rede como algo dado,
estático, onde necessariamente pontos específicos devam ser ligados eternamente (isso
seria um grande desvio e até oposição aos princípios do rizoma); segundo, o rizoma é
importantíssimo como pano de fundo para abordarmos as características da sociedade
contemporânea, objeto também deste capítulo. Os autores enumeram certas
características aproximativas do rizoma. A primeira delas é o princípio de conexão, que
estabelece que “qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e
deve sê-lo” (idem, p. 15). Este modelo traz em si diferenças à figura da raiz ou da
árvore, que possui um centro e uma ordem, onde os pontos seguem uma hierarquia ou
uma cronologia, uma linearidade. No modelo rizomático as conexões não seguem o
princípio de causa e efeito, não seguem desdobramentos estabelecidos por uma ligação
prévia, mas as ligações e a forma como elas se modificam a partir do contato é
determinado mesmo pela interação entre os pontos. O segundo princípio, o da
heterogeneidade, permite que, além da conexão de um ponto qualquer com outro ponto
qualquer, essas ligações não remetam necessariamente a naturezas mesmas: “ele põe em
jogo regimes de signos muito diferentes” (ibidem, p. 32). O rizoma não tem começo
nem fim, nem é feito de unidades de medidas, mas de variedades de medidas. Este é o
princípio de multiplicidade. “Uma multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto, mas
somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude a

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natureza” (ibidem, p. 16).


Um rizoma pode ser quebrado em qualquer ponto e retomado segundo uma ou
outra de suas linhas, de acordo com o quarto princípio, o da ruptura a-significante. Todo
rizoma é estratificado, territorializado, mas traz em si também “linhas de
desterritorialização” que permitem fugas. Sempre que uma linha segmentar é quebrada,
através das linhas de fuga, opera-se uma ruptura no rizoma. Porém essas linhas de fuga
também fazem parte do rizoma. “Faz-se uma ruptura, traça-se uma linha de fuga, mas
corre-se sempre o risco de reencontrar nela organizações que reestratificam o conjunto”
(ibidem, p.18). Por fim os autores trazem os princípios de cartografia e de
decalcomania, que são opostos entre si. O rizoma não pode ser objeto de reprodução,
daí a figura do mapa, cartografia, com suas construções, sua contribuição para a
“conexão dos campos”, em oposição à lógica do decalque, que repete algo dado. O
rizoma é mapa e não decalque. “O mapa é aberto, é conectável em todas as suas
dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações
constantemente” (ibidem, p.22). O mapa, e esta é uma das principais características do
rizoma, tem múltiplas entradas enquanto que o decalque faz referência sempre a algo já
estabelecido, a uma repetição, a um seguir, reproduzir. É interessante observarmos que
Deleuze e Guattari colocam a decalcomania como um princípio e não apenas como uma
oposição à cartografia. Isto porque “é preciso sempre projetar o decalque sobre o mapa”
(ibidem, p. 23), mas não de uma forma simétrica: ele injeta redundâncias, reproduz os
impasses e os pontos de estruturação.
O rizoma, pois, se faz nas ligações entre um ponto qualquer e outro ponto
qualquer, nas linhas que ligam esses pontos, mas também nas linhas de fuga, na
multiplicidade cuja variabilidade também interfere na natureza própria do todo. “Um
platô está sempre no meio, nem início nem fim. Um rizoma é feito de platôs” (ibidem,
p. 33). Virgínia Kastrup reforça essa ideia: “o rizoma não possui limites definidos, não é
uma forma, mas condição de existência das formas. É um tipo de 'estrutura' na qual os
elementos encontram-se reunidos numa simultaneidade não unificável” (2010, p. 84).
O rizoma se opõe ao modelo de árvore ou raiz, estruturado, hierárquico,
centrado. As agências fotográficas conforme definidas no capítulo 1 estão para o
modelo de árvore assim como os coletivos contemporâneos estão para o rizomático,

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conforme observaremos mais detalhadamente adiante.


Os conceitos de rede e de rizoma possuem alguns pontos de contato. Vistos de
determinado ângulo, as semelhanças podem parecer em maior proporção que as
diferenças. Não podemos, no entanto, encará-los como sinônimos. A rede também é
formada por 'nós' ligados por linhas – isso parece um rizoma. Mas, na figura mais
comumente desenhada das redes, esses pontos seguem uma sequência, possuem níveis,
hierarquia – opa, isso não é um rizoma. Para Kastrup a rede é uma encarnação, uma
versão empírica e atualizada do rizoma (2010, p. 84).
A rede está presente na sociedade há muito tempo. As redes ferroviária,
telefônica, de esgotos, elétrica, de estradas, são alguns exemplos que estão presentes na
nossa forma de entender o mundo, de construí-lo. “As redes são por demais reais”, nos
diz André Parente (2010, p.91), que continua mais adiante: “elas sempre tiveram o
poder de produção de subjetividade e do pensamento. Mas era como se as redes fossem
dominadas por uma hierarquização social que nos impedia de pensar de forma
rizomática” (idem). Para o autor, as redes estão na sociedade, no capital, no mercado, na
arte e na guerra, até mesmo no tempo, no espaço e na subjetividade. Citando Foucault,
Deleuze e Guattari, Parente nos remete ao entendimento de que a subjetividade depende
cada vez mais de sistemas maquínicos: “as diversas técnicas de comunicação e
informação formam um inconsciente maquínico que interage e transforma, hoje, os
inconscientes econômicos, psicológicos, linguísticos (ibidem, p. 96). A abertura das
redes, a explosão de apropriações e significações, isso se dá pela imbricação das
tecnologias e comunicação. Não podemos perder de vista que as máquinas trazem em si
a subjetividade daqueles que as constroem, como são estimuladoras de novas
subjetividades. Os aparatos respondem a necessidades apontadas pela sociedade, mas
são redefinidas pelos usos sociais, são reinterpretadas durante o uso. A dinâmica
coletiva estabelece usos nem sempre em concordância com o que foi projetado,
planejado.
Os coletivos fotográficos contemporâneos surgem num cenário fortemente
influenciado pela cultura de convergência, em que as transformações nas relações com
os meios de comunicação afetam não apenas essas relações mais diretas, mas nossa
maneira de interação social, de organização produtiva e de ligações internas e externas.

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O rizoma certamente é modelo imprescindível para o entendimento dos coletivos, que


se beneficiam do compartilhamento de conhecimento e do sentimento de comunidade.

2.3 Inteligência Coletiva


Um dos primeiros autores a sistematizar um estudo, ainda nos anos 1980, sobre
as modificações da sociedade mediada pelas novas tecnologias no interior das
comunidades virtuais foi Howard Rheingold, quando trata das mentes coletivas
populares e dos seus impactos no mundo material. Em meio a termos muitas vezes
herdados da ficção científica, percebemos, já na base do que depois viria a ser a
Internet, uma valorização e desenvolvimento de atos de cooperação como características
principais dessas comunidades.

Num mundo competitivo emergem grupos de indivíduos que


cooperam entre si por reconhecerem que há coisas que só podem
ganhar através da união. Determinar os bens colectivos de um grupo é
um modo de procurar os elementos que transformam elementos
isolados numa comunidade (RHEINGOLD, 1996, p.26).

A mente coletiva pode ser entendida como um processo contínuo de resolução


de problemas de indivíduos por um grupo. Rheingold estudou profundamente os
precursores dos hoje conhecidos grupos de discussão ou comunidades virtuais, naquela
época movidos por um “verdadeiro casamento de altruísmo e interesse próprio” (idem,
p. 79). Ele conta, por exemplo, como, lá pelos idos de 1986, às voltas com um problema
caseiro com sua filha de dois anos, conseguiu uma resposta satisfatória de um tal Dr.
Flash Gordon, apelido de um usuário da WELL20, muito mais rapidamente do que a
resposta do pediatra, também acionado pelo mesmo problema. Algumas descrições do
funcionamento dessas comunidades, ou mesmo da tecnologia envolvida, dão sono até
para os atuais internautas mais iniciantes. Em tempos de aplicativos complexos (para a
nossa época, logo ultrapassados), que contemplam som, imagem, simulação, tudo na
mobilidade de telefones celulares, tablets ou notebooks, as teleconferências dos anos
1980 ou 1990 parecem coisa de um passado muito mais distante. Mas o que Rheingold
20 Um sistema de teleconferência por computador que permitia a troca de correspondência privada via
correio eletrônico e também participação em conversas públicas (chats) com usuários espalhados
pelos EUA.

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traz de mais importante são os princípios que transformam nossas relações profissionais,
sociais e cognitivas. Estão ali os conceitos norteadores do que viria a se estabelecer na
cibercultura21, como as mudanças nos paradigmas comunicacionais, lógica de
interconexão, reconfiguração de práticas sociais. Estamos falando, entre outras coisas,
da mudança de uma cultura de massa – orientada pelo modelo um-todos – para uma
cultura de rede ou de convergência – que opera na lógica da circulação,
interdependência, complementariedade, participação.
Para Lévy (2000, p.11) “o atual curso dos acontecimentos converge para a
constituição de um novo meio de comunicação, de pensamento e de trabalho para as
sociedades humanas”. A inteligência coletiva coloca em sinergia os conhecimentos,
imaginações e desejos dos que estão conectados. Tira proveito do quanto cada um dos
pontos pode contribuir na construção de um todo. Uma rede de informações e de
conhecimento cujas ligações podem redirecionar a novas formas de aprendizado e de
conteúdo. Quebra o paradigma do especialista, aquele que detém um conhecimento,
numa lógica de exclusão – que se divide entre os que possuem e os que não possuem o
conhecimento – em favorecimento de uma construção de conhecimento de maneira
mais ilimitada, interdisciplinar e diversa (JENKINS, 2009, p. 87).
Compartilhar uma informação passa a fazer mais sentido do que guardá-la para
si. É, muitas vezes, no processo que permite a troca onde está a verdadeira importância,
não mais apenas num volume cristalizado. Vejamos o exemplo da Wikipedia, uma
enciclopédia online alimentada de maneira colaborativa. Ela se estabelece por um
sistema que permite a troca de informações, a complementação, o aprofundamento,
mais do que pelo peso dos autores ou consultores, na maioria das vezes anônimos – ou,
pelo menos, não tão ilustres. A Wikipedia traz em si o antídoto para seu próprio
“veneno”. Os críticos apontam para a falta de um corpo de consultores
reconhecidamente especialistas sobre os verbetes, como acontece numa enciclopédia
tradicional, como principal fator negativo de tal experiência, pois não dá respaldo aos
21 O termo ciberespaço vem da ficção científica de William Gibson e é definido por Lévy como “o novo
meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores” (o autor também usa o
termo em substituição a 'rede'). Porém cabe um alerta: não devemos resumir o ciberespaço à internet.
É o conjunto das redes, interligadas por computador, que forma o ciberespaço. Cibercultura é um
neologismo e especifica “o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de
modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do
ciberespaço” (LÉVY, 1999, p. 17).

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conteúdos veiculados. Já os defensores atentam para o fato de que os erros podem ser
facilmente corrigidos, em tempo real, e para todos os usuários, algo que não é possível
numa publicação impressa, onde algum erro ainda é consultado décadas depois, caso o
livro esteja disponível.
Numa mesma dinâmica, o fotógrafo detentor de todo o conhecimento
necessário para a obtenção do produto final deixa de ser tão importante. O
aproveitamento de ligações com outras especialidades mostra-se mais enriquecedor do
que ser o depositário exclusivo do reconhecimento pelo que faz. Permitir essas
articulações pode ser bem mais proveitoso do que anulá-las. O que está em jogo – ou a
melhor parte do jogo – é o processo, as alterações que se dão no “meio do caminho”, no
intermezzo, no entrelugar. É como Jenkins aborda a convergência, em geral, de uma
maneira redutora, tomada como a junção de várias aplicabilidades num só dispositivo.
Para este autor, a convergência acontece no cérebro das pessoas, nas suas atividades, “é
mais do que uma mudança tecnológica. A convergência altera a relação entre
tecnologias existentes, indústrias, mercados, gêneros e públicos […] a convergência
refere-se a um processo, não a um ponto final” (2009, p. 43). Jenkins afirma que a saída
para a sobrevivência está em trabalhar junto, coletivamente.
Podemos entender esse ambiente de interconexão, essa lógica de formação de
redes, essa abertura para práticas colaborativas como um campo fértil para o
aparecimento e fortalecimento dos coletivos fotográficos? Esta é a premissa com a qual
estamos trabalhando.
A cibercultura é definida por André Lemos (2005) como “uma nova relação
entre as tecnologias e a sociabilidade, configurando a cultura contemporânea” e suas
leis fundadoras são: liberação do polo emissor – qualquer um pode produzir e distribuir
conteúdo –, princípio de conexão em rede – tudo e todos estão interligados – e
reconfiguração de formatos midiáticos e práticas sociais.
A fotografia estabelece uma relação dialógica com esses princípios,
reconfigurando suas práticas. Os coletivos respondem diretamente a esses princípios. As
possibilidades de associação entre fotógrafos que surgem neste contexto incorporam
novas discussões no fazer fotográfico. Nossa premissa é de que o surgimento dos
coletivos fotográficos com mais ênfase na última década está ligada diretamente às

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reconfigurações de nossa sociedade estimulada pelas novas tecnologias. Reforçamos


que esse cenário atual estimula o estabelecimento, ou a intensificação, de algumas
ligações e articulações. A cultura de convergência trabalha sobre a lógica de uma
inteligência coletiva, algo que não surgiu recentemente. Lévy destaca que
podemos acompanhar o surgimento de uma inteligência coletiva
da humanidade global desde o século XVI. Esse movimento se
acelera na última década do século XX, com o início da
unificação política do planeta, o sucesso das abordagens liberais,
a fusão da comunidade universitária e da indústria, a explosão
do ciberespaço e a virtualização da economia (LÉVY, 2010a, p.
188).
O crescimento do ciberespaço, porém, não garante o desenvolvimento de uma
inteligência coletiva – pois não se trata de um determinismo: é possível o isolamento, a
dominação ou exploração. O ciberespaço é uma espécie de ferramenta que permite a
conexão de várias comunidades diferentes em grupos inteligentes, articuladores de um
conhecimento coletivo. A rede conectada por computadores (também tablets, celulares
etc) é um dos muitos circuitos de comunicação que estimulam a coletividade.
Opera-se, a partir desses pressupostos, uma alteração na nossa relação com o
saber. A aquisição, a necessidade, o acúmulo do conhecimento se dá em outros eixos.
Há, cada vez mais, a necessidade de renovação – ou atualização – de nossas habilidades.
Se outrora uma profissão podia ser passada de pai para filho e ser desempenhada por
uma mesma família ao longo de gerações, hoje é cada vez mais comum que um
indivíduo mude de profissão durante a sua vida produtiva. Que dirá outras habilidades
mais corriqueiras. Trabalhar não mais significa repetir um conhecimento adquirido
durante toda uma carreira. Trabalhar hoje está mais ligado a uma ideia de circulação,
criação, renovação, aprendizado e ensino de novos saberes. Por outro lado, “o
ciberespaço suporta tecnologias intelectuais que amplificam, exteriorizam e modificam
numerosas funções cognitivas humanas” (LÉVY, 1999, p. 159), a saber: memória,
imaginação, percepção, raciocínios. Bancos de dados, programas de simulação,
dispositivos de leitura e captação, inteligência artificial, mecanismos de busca
associados a histórico de participação, entre muitos outros exemplos, são tecnologias
intelectuais presentes no ciberespaço, assim como a escrita, o uso da mitologia, ou os
rituais estiveram relacionados a outras épocas. Numa sociedade onde a transmissão de

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conhecimento se dá pela oralidade, cânticos ou narrações cumprem papéis que incluem


a memória e a absorção da informação. Já a cultura escrita trouxe a descontextualização
entre emissor e receptor, que, não mais necessariamente, compartilhavam um mesmo
espaço ou tempo – e, com isso, teve de incorporar características de uma universalidade,
de não mais depender desse contexto antes presente na cultura oral, por exemplo. Não
se trata, como já foi dito, de pensar em termos de substituições. O mito e a escrita
coexistem também no ciberespaço.
As possibilidades do conhecimento por simulação e o imbricamento entre
realidade e simulação vão trazer mudanças reestruturadoras no nosso relacionamento
com o mundo, com o tempo e com o espaço. Além da reorganização da cadeia de
produção, circulação e consumo do saber, de bens culturais, vivenciamos uma revisão
de conceitos que passam pela realidade, com grandes consequências para alguns dos
usos da fotografia e principalmente para o entendimento desta linguagem. Hoje, a partir
de fórmulas e simuladores, é possível antecipar desde resultados financeiros complexos,
até mesmo a ação de ventanias sobre estruturas metálicas ou mesmo a visualização da
ação do envelhecimento a partir de retratos de pessoas – com o cruzamento de
características hereditárias, costumes alimentares e cuidados médicos. As tecnologias
intelectuais, das mais antigas às mais recentes, agem na ampliação das potencialidades
de articulação de ideias, recuperação de dados armazenados, velocidade de cálculo e
processamento. Toda tecnologia intelectual já pressupõe uma inteligência coletiva, pois
as construções já partem de um conhecimento previamente acumulado ou repassado.
Seja no conteúdo em si, seja nos processos e mecanismos. “O pretenso sujeito
inteligente nada mais é que um dos micro atores de uma ecologia cognitiva que o
engloba e restringe” (LÉVY, 2010, p. 137).

2.4 Pós-fotografia
Para Santaella (2005), é possível estabelecermos três paradigmas da imagem, a
partir das transformações operadas no modo de produção: o pré-fotográfico, o
fotográfico e o pós-fotográfico. O uso dos termos “pré” e “pós” nos remete
invariavelmente para uma ideia de tempo, de ordem das coisas, de sequência, mas é
importante para a nossa pesquisa frisarmos que eles dizem respeito a paradigmas e não a

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épocas ou eras históricas. Os três paradigmas podem coexistir, podem se sobrepor ou se


prolongar uns sobre os outros, mas o surgimento de cada um deles influencia nossa
relação com as imagens. Ou seja, não tratam de épocas distintas, porém de formas de
entendimento diferentes na nossa relação com as imagens, o que acreditamos fazer
diferença no presente estudo.
O pré-fotográfico engloba todas as imagens produzidas artesanalmente e que
dependem, por isso, da habilidade manual de um indivíduo. Como exemplos podemos
citar as imagens na pedra, desenho, pintura, gravura e escultura. Este paradigma traz
como característica o objeto único, resultante de um processo que acontece aos poucos:
pincelada após pincelada, no caso da pintura. Existe aqui uma importância da
composição material da imagem. “Nessa imagem instauradora, fundem-se num gesto
indissociável, o sujeito que a cria, o objeto criado e a fonte de criação” (2005, p. 299).
No fotográfico, nós podemos perceber a dependência de uma máquina de
registro e a respectiva necessidade de objetos reais preexistentes: são imagens
produzidas por conexão dinâmica e captação física de fragmentos do mundo visível. A
fotografia, o cinema, a TV, o vídeo e a holografia são representantes desse paradigma.
Santaella destaca a fotografia como resultado da combinação entre câmara obscura e um
suporte sensível à luz, linha de pensamento que se orienta pelo entendimento de uma
captura automática, que retira do processo a habilidade humana e reforça uma visão de
objetividade. A autora nos fala de um “ato de tomada”, como “instante decisivo e
culminante de um disparo, relâmpago instantâneo. Dado este golpe, tudo está feito,
fixado para sempre. Enquanto a imagem artesanal é, por sua própria natureza,
incompleta, inacabada” (2005, p. 300). Veremos mais adiante como François Soulages
(2010) defende a articulação entre o irreversível e o inacabável como singularidade da
fotografia – ou fotograficidade, nos seus termos. Mas existem sim o golpe e a tomada de
decisões irreversíveis, um ato que não pode ser retomado – pode até ser tentado
novamente, mas como um novo ato.
Já o terceiro paradigma, o pós-fotográfico, trata das imagens sintéticas ou
infografias, aquelas inteiramente produzidas por computação, imagens numéricas,
binárias, fruto de uma programação, que podem até ser confundidas com uma
fotografia, mas que trazem em si esta característica fundamental: são simulações. Nela

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não há a relação física com o material, como no caso das artesanais do pré-fotográfico,
nem com o referente, como no fotográfico. “As imagens infográficas ou sintéticas
inauguram uma nova era na produção de imagens com características radicalmente
diversas das imagens de projeção ótica, dependentes da luz, que vai da fotografia até o
vídeo” (SANTAELLA, 2005, p. 297).
O modo de produção de cada um desses paradigmas traz consequências para
toda a cadeia que envolve armazenamento, agente produtor, natureza da imagem,
relação da imagem com o mundo, meios de transmissão e papel do receptor. Ou seja,
podemos perceber distinções nesses paradigmas também nas outras esferas da produção,
circulação e recepção das imagens. Se o pós-fotográfico se caracteriza por uma
“derivação da visão via matriz numérica”, enquanto o fotográfico traz a “autonomia da
visão via próteses óticas” (SANTAELLA, 2005 p. 302), o seu agente produtor não mais
captura o real, mas age sobre ele, é um sujeito manipulador e não mais pulsional.
O meio de produção é determinante nesta concepção, suas características se
desdobram em consequências nas outras esferas já citadas. Mas essas modificações não
surgem apenas no interior de cada paradigma. Não devemos pensar em termos de
substituição, mas bem sabemos das alterações operadas a partir de cada novo modelo.
Os modos de produção do paradigma pré-fotográfico foram modificados após o
surgimento da fotografia. Assim como a fotografia também mudou com o advento do
pós-fotográfico. Podemos observar com razoável clareza as modificações no papel do
produtor, bem como na relação da imagem com o mundo. Mas não apenas nisso. Silva
Junior nos dá uma visão de algumas dessas mudanças, mais focadas no campo do
fotojornalismo, mas que podem ser ampliadas para a fotografia como um todo. “A
capacidade de se adaptar, adquirir gramáticas, trabalhar em cooperação e em rede,
interagir com sistemas que não exclusivos da fotografia, parece ser a chave a ser
acionada para o enquadramento profissional da fotografia de notícia” (2011, p.113). Não
é apenas um ou outro aspecto que se modifica, mas nossa relação com a imagen, a
forma como a produzimos e a percebemos.
As mudanças acontecem num mesmo tempo e de forma articulada, interligada.
Não nos é possível analisar separadamente as influências que o surgimento da imagem
de síntese operou sobre a produção de fotografias, uma vez que isso acontece em meio a

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modificações em todos os outros processos sociais e culturais. Mas poderíamos afirmar,


com segurança, que seriam muitas e grandes essas influências.

Pré-fotográfico Fotográfico Pós-fotográfico


Meios de produção expressão da visão via autonomia da visão via derivação da visão via
mão próteses óticas matriz numérica

processos artesanais de processos automáticos de processos matemáticos


criação da imagem captação da imagem de geração de imagem

suporte matérico suporte químico ou modelos, programas,


eletromagnético simulação, virtualidade
Papel do agente imaginação para a percepção e prontidão cálculo e modelização
figuração
captura do real agir sobre o real
gesto idílico
olho da câmera e ponto de olhar de todos e de
olhar do sujeito vista do sujeito ninguém
Natureza da imagem figuração por imitação capturar por conexão simular por variações de
parâmetro
cópia de uma aparência registro do confronto entre
imaginarizada sujeito e mundo substrato simbólico e
experimento
Imagem e mundo aparência duplo simulação

metáfora metonímia metamorfose

ideal de simetria ideal de conexão ideal de autonomia


Papel do receptor contemplação observação interação

nostalgia reconhecimento imersão

aura identificação navegação

Tabela 1: No quadro acima trazemos um resumo das características de cada


paradigma. Santaella faz um detalhamento bem mais extenso. Optamos por destacar
alguns aspectos que se relacionam mais diretamente com a nossa pesquisa.

A imagem de síntese abre o horizonte das imagens para a simulação. A


digitalização, por sua vez, ajuda a destruir algumas “mitologias” do processo
fotográfico. “A crença mais ou menos generalizada de que a câmera não mente, de que a
fotografia é, antes de qualquer coisa, o resultado imaculado de um registro dos raios de
luz refletidos pelo mundo […] está fadado a desaparecer rapidamente” (MACHADO,
2005, p. 312). Por um lado temos o aumento da possibilidade de uma manipulação

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“mais fina”, pois passa a ser exercida ao nível do pixel, do menor ponto constituinte da
imagem. Por outro lado, observamos a trivialidade com que essa ação de manipulação e
retoque passou a ser exercida no âmbito amador, caseiro, com a ampliação do acesso a
essas tecnologias – mais baratas, mais presentes no dia a dia, mais próximas de todos.
Este novo estado de proximidade com a manipulação da imagem, quebra
completamente a crença na fotografia como reflexo do real, espelho imparcial dos
acontecimentos. Além do que, mais importante para a direção que apontamos nosso
estudo, amplia e torna familiares as possibilidades de interferência no processo
fotográfico. O que nos interessa aqui não é a discussão sobre a “verdade” da fotografia,
mas a inserção do sujeito comum nas várias fases e a ampliação da participação no fazer
fotográfico.
Quando falamos na explosão das redes informacionais e telemáticas, nas
práticas mediadas por computador como estímulo a algumas mudanças culturais, nesta
cultura permeada pelas novas tecnologias, estamos tratando deste fenômeno de
digitalização, das possibilidades que são trazidas quando passamos a lidar com os vários
tipos de informação – sonora, escrita, visual – a partir de um mesmo elemento
constituinte, o bit ou a informação numérica.
“A fotografia não vive […] uma situação especial nem particular: ela
apenas corrobora um movimento maior, que se dá em todas as esferas
da cultura, e que poderíamos caracterizar resumidamente como sendo
um processo implacável de 'pixelização' […] e de informatização de
todos os sistemas de expressão, de todos os meios de comunicação do
homem contemporâneo” (MACHADO, 2005, p. 311).

A fotografia passa a ser outra, quando passamos do paradigma do fotográfico


para o do pós-fotográfico. Perde-se certa ingenuidade, porém ganha-se num
aprofundamento de algumas articulações que passam a ser melhor exploradas nas suas
potencialidades. A pixelização, como citado por Machado, ou a digitalização – a
transposição de toda informação para uma base digital – faz a questão da manipulação
fotográfica virar uma ação corriqueira, acessível e acessada por leigos, não mais um
trabalho para especialistas, que dominem procedimentos específicos, reféns de
estruturas também específicas: laboratórios fotográficos, ampliadores, técnicas de
retoque etc. Isso reconfigura nossa relação com o estatuto de verdade tão defendido

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durante boa parte da história da fotografia e responsável pela difusão desta linguagem
em alguns círculos e usos, que tinham na mecanicidade da técnica seu maior trunfo.
Diminui o peso da automaticidade, assim como a concentração do processo na mão de
um único autor. Mesmo que ainda se pense no fotógrafo como o acionador do obturador
– algumas digitais nem mesmo possuem esse dispositivo – abre-se mais uma brecha
para a produção coletiva.
Mas o fenômeno de digitalização – da sociedade e que alcança a fotografia –
também redefine conceitos caros aos produtores de imagens, artistas ou não: cópia e
original passam a não fazer tanto sentido na fotografia digital. Nesta, tudo é cópia.
Mesmo um arquivo “original” é transferido de um lugar a outro através de cópias: do
cartão de memória para o computador, do computador para o backup e assim
sucessivamente. É possível lidarmos com a até então estranha situação de termos vários
exemplares de um original, que é a lógica do backup ou cópias de segurança 22. Na
fotografia analógica, a reprodução de uma imagem acarretava no salto entre “gerações”
da imagem, com distinções, mesmo que imperceptíveis, entre o original e a cópia, a
cópia e a cópia da cópia. No digital, as cópias são sempre idênticas.
A fotografia operou um salto parecido, no campo da imagem, como o que
significou o advento da escrita: a fotografia promoveu a descontextualização entre o
observador e a cena. Claro, outros tipos de ilustração já faziam isso, de maneira mais
aproximada à metáfora da escrita, mas a fotografia carregava o discurso de uma ligação
física com o referente. A digitalização quebra esse entendimento ao transformar a
fotografia num mosaico de milhões de pixels que podem ser trabalhados
individualmente, rearrumados e passam a ser apenas informações numéricas, sem essa
ligação física exposta anteriormente.
Outra característica do meio digital é a não linearidade e interatividade. Se um
LP é pensado numa ordem certa das faixas, lado A e lado B, compondo um conjunto
com começo-meio-fim, em tempos de MP3 ou CD ouve-se as músicas aleatoriamente,
permitindo com mais facilidade que pessoas diferentes tenham experiências diferentes.
22 Backups são cópias de seguranças feitas em mídias diferentes, preferencialmente arquivadas em locais
distintos (fisicamente), como medida para se evitar a perda de um arquivo importante. Mais do que
uma situação teórica, a cópia de segurança é condição primordial de segurança e conservação dos
arquivos digitais, fazendo parte de todo e qualquer fluxo do fotógrafo digital. O original único passa a
ser exceção, uma possibilidade que está mais para um descuido do que para uma regularidade.

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A experiência de um álbum online de fotos, como o Flickr 23, por exemplo, é muito
diferente de um álbum físico, com folhas de papel-cartão, fotografias coladas, com
papel de seda separando uma página da outra. No formato digital, é possível visualizar
seguindo uma ordem que vai das fotos mais recentes para as mais antigas, ou
acompanhando sequências definidas por aquele que organizou o álbum, ou através da
navegação por palavras-chave. Uma foto pode ser ligada a outra por um comentário de
outro usuário, ou pelo simples uso de tags 24 em comum. Vemos aqui o princípio do
hipertexto, onde um ponto de uma imensa rede pode ser ligado a outro ponto – rizoma
– e essas ligações criam significações na medida em que são formadas. Incluem,
igualmente, linhas de fuga.
Fred Ritchin, em seu livro “After photography” (2010), aborda as mudanças
ocorridas na pós-fotografia. A fotografia cria novas realidades, o mundo nunca é o
mesmo depois de fotografado. Por outro lado, quando as imagens substituem o mundo –
esta é uma das discussões trazidas pelo autor –, a fotografia perde muito da sua razão de
existir (ibidem, p. 23). Ritchin usa diversos casos colhidos na mídia para se aprofundar
em alguns dos paradoxos, se não criados, ao menos trazidos à tona ou exacerbados pela
digitalização. Citando uma fotografia de capa da revista National Geographic, onde uma
pirâmide foi “levemente” deslocada para permitir um melhor resultado visual, ou
mesmo o caso de O. J. Simpson, que aparece mais escuro na revista Time, passando por
uma série de outras situações onde aconteceram manipulações da imagem na etapa de
pós-produção25, afirma que, em determinadas situações, parece estar havendo uma
diminuição da importância tanto do fotógrafo profissional quanto até mesmo do
assunto, por conta dos processos atuais de manipulação. Muitas vezes são modificações
banais em relação às escolhas feitas pelo fotógrafo e que compõem o repertório e a

23 Plataforma online de gerenciamento e compartilhamento de imagens muito popular entre fotógrafos


amadores e profissionais, que permite a criação de galerias, álbuns, inserção de tags, publicação de
comentários e outras maneiras de interação. Através do sistema de contatos e de marcações, o usuário
pode acompanhar a publicação de material de outro usuário ou mesmo formar recortes pessoais nos
trabalhos alheios.
24 Tags, palavras-chave e outros recursos são formas de vincular as imagens a palavras que podem
remeter a outras imagens.
25 O conceito de pós-produção é entendido como a etapa de tratamento da imagem. Está perdendo o
sentido uma vez que esta etapa é parte integrante do processo de produção de uma imagem digital,
mas continua sendo usado pelo meio profissional, englobando todo o trabalho de revelação digital,
tratamento e até manipulação (fusão, acréscimo ou retirada de elementos da imagem etc).

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construção do discurso fotográfico: enquadramento, foco, ângulo etc. Estas questões são
objeto de resistência nas gerações acostumadas ao entendimento de uma fotografia
produzida pela sensibilização de sais de prata a partir da ação da luz. Talvez para as
novas gerações, criadas completamente mergulhadas nos princípios da digitalização,
essa discussão, mais do que ultrapassada, será incompreensível. Voltamos a afirmar: a
fotografia não perdeu o estatuto de objetividade com o advento da digitalização. Bayard,
com seu auto-retrato “afogado” (vide capítulo 1) já jogava às favas qualquer ligação
com o real. Para Ritchin, o ceticismo em relação à confiança na fotografia como
instrumento da verdade traz vantagens e desvantagens.

Ilustração 1: O uso de vinheta – cantos escurecidos – e alteração de


contraste e brilho dão outra conotação à fotografia de origem policial.

Perde espaço em algumas aplicações, mas permite que a linguagem amadureça,


expandindo suas possibilidades de discurso, deixando de lado uma câmera que tem
apenas o poder de provar, colocando em seu lugar a possibilidade de criar. Modifica-se
a relação de poder e de geração de conhecimento – não estamos aqui afirmando que a
importância do fotógrafo no processo de criação fotográfica começa a ser observada
com o advento da digitalização, na verdade esta valorização remonta a muitas décadas
antes, como bem sabemos. Um paradoxo, entre tantos outros, é que de um lado a

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digitalização pode dar mais uma contribuição na ruptura com a fotografia objetiva, mas,
por outro lado, relativiza o conceito de autoria, ao intensificar um processo composto
por uma rede de funções, conhecimentos, habilidades e pessoas diferentes, onde a
apropriação e reorganização é parte integrante. Há um deslocamento do ponto de
gravidade, estimulado, também, pelas possibilidades abertas no momento em que agora
lidamos com imagens baseadas em pixels.
Estamos ainda aprendendo a lidar com tais mudanças, ao mesmo tempo em que
novas articulações se tornam possíveis. Citando o caso Brian Walski 26, Ritchin afirma
que não houve uma alteração na informação, não houve uma mudança no relato do
acontecimento, ao contrário de outras situações, conhecidas como photo ops
(opportunities)27, para concluir que há uma preferência generalizada na mídia
(jornalística) em publicar fotos “verdadeiras” de eventos artificiais, não aceitando a
relação oposta, que seriam fotografias construídas de fatos reais (ibidem, p. 35).
Situações forjadas unicamente com o objetivo de serem fotografadas são permitidas,
aceitas. Para o autor, eis aí mais um paradoxo. Tais manipulações, tanto as que atuam no
fato em si, quanto as acontecidas no momento da revelação digital, estão ligadas a uma
busca pela “imagem perfeita”, possivelmente influenciada por outros campos, como a
televisão, o cinema ou a publicidade. Convive-se, cada vez mais, com imagens bem
produzidas, esteticamente bem trabalhadas, com boas soluções de luz. Elas estão nos
anúncios das revistas, nos outdoors, nos livros, na internet. É possível, por exemplo,
perceber que até mesmo utilizações mais “caseiras”, como os perfis nas redes sociais ou
apresentações escolares, já acompanham uma preocupação por um resultado visual mais
acurado. Aparelhos celulares trazem, além de suas câmeras acopladas, aplicativos

26 Em 2003, o fotógrafo Brian Walski foi demitido do Los Angeles Times pois um leitor percebeu que a
fotografia de sua autoria, publicada na capa do jornal, era resultado da fusão de duas imagens. Guerra
do Iraque, um campo onde um soldado britânico manda que um homem com criança no colo se
mantenha abaixado. A cena é a mesma, mas o fotógrafo cola parte da foto em que o soldado está
“mais expressivo”, com a foto onde o homem está “melhor”, em busca de uma imagem onde os dois
personagens principais estejam mais bem representados.
27 As photo ops são as situações onde uma “cena” é combinada para dar oportunidade à produção de
imagens para imprensa. Por exemplo, o aperto de mão de dois líderes mundiais reunidos na Casa
Branca: a assessoria combina um momento para produção de imagens que irão ilustrar as matérias
sobre o encontro, que acontece a portas fechadas. Outro exemplo são as simulações de ações militares
nas guerras “espetacularizadas”, como as recentes do Golfo ou do Afeganistão. Esses episódios são
exaustivamente cobertos pela mídia, embora envolvam um grau de manipulação da notícia maior do
que no caso citado de Brian Walski.

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simplificados para tratamento das imagens. Quem, ao saber que está sendo fotografado
numa festa de aniversário, não passa a mão no cabelo, ou corrige a postura num ato
quase que automático?28 Encenamos um personagem para o álbum de família,
organizamos situações para registro e difusão pela imprensa, compomos nossas fotos
incluindo elementos e deixando outros de fora, mas ainda estranhamos quando alguns
tipos de manipulação são feitas depois do acionamento do obturador, depois do
momento do clique.

Ilustração 2: A foto maior é resultado da montagem de partes das duas


imagens menores. Esse artifício foi percebido por um leitor do Los Angeles
Times, onde o material foi publicado, rendendo a demissão do fotógrafo
Brian Walski.

A mídia surge para explorar um mundo, que muda simplesmente pelo fato de
ser observado por ela. Novas invenções acontecem em resposta a novas necessidades da
sociedade, mas, além de alterar esta mesma sociedade, atua diretamente na criação de
novas demandas. As câmeras fotográficas digitais profissionais passaram a produzir
vídeos para atender a uma demanda dos fotógrafos, ou os fotógrafos começaram a
produzir vídeos em resposta a uma nova possibilidade apresentada pela indústria?
Nenhuma das duas opções ou as duas opções juntas: esta seria a resposta certa, mesmo
que um tanto paradoxal.

28 Como disse Barthes: “ora, a partir do momento que me sinto olhado pela objetiva, tudo muda: ponho-
me a 'posar', fabrico-me instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em
imagem. (BARTHES, 1984, p.22).

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Ritchin faz referência ao curador John Szarkowski que, em 1978, afirmou


existirem duas categorias nas quais a maior parte das fotografias poderiam ser incluídas:
a de espelho (da personalidade dos fotógrafos) ou a de janela (para o mundo). Uma
dicotomia entre a expressão e a exploração (RITCHIN, 2010, p.69). Além da metáfora
do espelho e da janela, o ambiente digital faz emergir uma outra, a do mosaico (ibidem,
p. 70), mais relacionada à lógica de hipertexto. Não mais um objeto tangível, mas um
ladrilho efêmero feito de pixels, onde cada um desses pequenos elementos pode ser
reconfigurado, permitindo aberturas a outras articulações.
O pesquisador e fotógrafo catalão Juan Fontcuberta trata desses assuntos e
articulações à sua maneira, sempre permeada por anedotas ou acontecimentos pessoais.
Ele, que defende que a fotografia digital deveria ser chamada de outra coisa, pois traz
muito mais diferenças em relação à fotografia chamada analógica do que similaridades,
destaca que a fotografia nasceu como consequência de uma determinada cultura visual,
a qual ela mesma contribuiu para fortalecer e impor” 29, remetendo às influências mútuas
entre sociedade, aparatos técnicos e linguagem, já tratados no presente trabalho. O autor
destaca alguns efeitos da junção entre a fotografia e o computador, entre eles a
interatividade ou criação compartilhada “rápida e fácil entre artistas, obras e público. O
artista deixa de oferecer uma obra petrificada, fóssil, para, em troca, facilitar um diálogo
aberto com o espectador” (FONTCUBERTA, 1997, p.151), forçando uma revisão de um
“autoritário” conceito de autoria. Esta revisão não está atrelada apenas a uma divisão de
tarefas e à inclusão de outros atores ao processo de produção, o que para muitos
significa um enfraquecimento da função-autor. Fontcuberta, que tem um interesse forte
em discutir as relações ambíguas entre fotografia e verdade, fala também da
transferência da credibilidade, que antes estava depositada no testemunho fiel de uma
objetividade mecânica do aparato, agora nas mãos do fotógrafo autor. A fotografia como
uma representação visual atrelada ao ponto de vista do sujeito que opera a câmera, ou
que é responsável pelo resultado final.
Se Ritchin aborda a questão da manipulação destacando o paradoxo da
fotografia real de um fato irreal, Fontcuberta trata de três instâncias onde acontecem as

29 Tradução livre para “la fotografía nació como consecuencia de una determinada cultura visual a la que
ella misma contribuyó a fortalecer e imponer” (FONTCUBERTA, 1997, p.146)

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manipulações: nos âmbitos da mensagem, do objeto e do contexto. A fotomontagem,


que se insere na instância da manipulação da mensagem, é um recurso utilizado desde
muito tempo, para fins políticos ou artísticos, entre outros, e nem sempre é uma
ferramenta a serviço da distorção. É “condição sine qua non da criação” (ibidem, p.
126). Fez parte da base de alguns movimentos, como os dadaístas. Segundo o autor, a
tecnologia digital, neste sentido, não inventou nada de novo, porém tornou muito mais
fácil e mais rápido. As manipulações do objeto e do contexto parecem não despertar
maiores interesses ou celeumas. Se o autor afirma que “toda fotografia é uma ficção que
se apresenta como verdadeira” (idem, p. 15), reforçando que não há exceções – toda a
fotografia é pura invenção –, a chave está em amadurecer essa relação entre imagem
fotográfica e verdade. O caminho está em perceber as mudanças que atingem não
apenas o estatuto da imagem, como seu processo de criação e sua articulação com
outros meios e mensagens. “O mundo torna-se um grande teatro, já não há divórcio
entre realidade e representação. As conferências de imprensa, as convenções políticas,
os acontecimentos esportivos, as grandes comemorações, até algumas guerras, foram
convertidas em elaboradíssimas dramaturgias” (idem, p. 178).
As facilidades trazidas pela manipulação digital, mais acessível, trouxe
mudanças na esfera da recepção. Se a manipulação sempre existiu, a diferença agora é a
familiarização do público com essas técnicas, tendo como consequência uma “nova
consciência crítica por parte dos espectadores” (FONTCUBERTA, 2010, p.64). Numa
outra linha de ataque, a tecnologia digital desmaterializa a fotografia e abre perspectivas
para a difusão e interação coletiva.

2.5 Criação em rede


Criador e criação: não dá para falar de um dissociado do outro. Ou, melhor
dizendo, um não existe sem o outro. Entre os dois está o processo criativo. Michel
Foucault (1992), quando se debruça sobre a questão “o que é um autor?”, nos remete à
relação entre obra e autor: “o que é essa curiosa unidade que se designa com o nome de
obra? De que elementos está composta? Uma obra não é aquilo que foi escrito por
aquele que é um autor?”(idem). A função-autor, por sua vez, ainda acompanhando as
ideias de Foucault, não é definida simplesmente pela atribuição de um discurso a seu

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produtor, mas é resultado de operações complexas, que envolvem a própria legitimação


deste produtor como autor. Em outras palavras, nem tudo o que um artista produz é
criação artística e, embora duas pessoas diferentes possam usar processos parecidos e
chegar a resultados semelhantes, dois produtos, parecidos na forma ou no processo,
podem ter estatutos diferentes. “O que importa quem fala?”, instiga, inspirado em
Beckett (idem). Foucault também nos fala de acúmulos e desdobramentos, a função-
autor vai além de sua própria obra, uma vez que ela resvala em outras criações. A
criação que resulta em e é resultado de ligações – conscientes e inconscientes, anteriores
e posteriores – com outras criações, indivíduos e fenômenos.
Entendemos que a autoria seja resultado de uma construção histórica, uma
espécie de marca que engloba toda essa complexidade citada por Foucault. Exige
negociações e legitimações. Teve grande impulso na necessidade legal de determinar a
origem de textos, principalmente com o aumento da circulação proporcionado pela
imprensa, uma vez que o escrito estabelece uma quebra de vínculo entre quem fala e
quem ouve – ou emissor e receptor. Na fotografia, que possui desde o início uma
relação com a indústria – seja nos ideais, seja na mecanicidade –, o reconhecimento da
autoria também se dá por questões legais-comerciais. Tagg (2005, p.145) nos mostra
como primeiro a fotografia é equiparada a um meio de natureza mecânica que, por isso,
não pode ter o seu resultado entendido como fruto de uma propriedade intelectual. Ou
seja, a fotografia era excluída do “círculo encantado” que unia a individualidade, a
criatividade e a propriedade. O fotógrafo era visto como um operário e a fotografia
como uma criação de uma máquina, desprovida de direitos como sujeito ante a lei. A
conversão de uma máquina sem alma em meio para expressão criativa de um sujeito
acontece através da pressão econômica da indústria fotográfica: as relações de produção
exigiam que o servil fotógrafo fosse considerado um artista e criador.
A autoria na fotografia também é fruto de tais negociações e construções, mas
geralmente é determinada pelo operador da câmera, por aquele que coloca o olho no
visor e o dedo no disparador. Mas como pensar dessa maneira num mundo com tantas
conexões e num processo que abrange tantas etapas e ligações externas? É possível
resumir a autoria a apenas um ator?

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Cecilia Almeida Salles, principalmente em sua obra “Redes de criação” (2008),


defende que nunca estamos sozinhos quando criamos. O processo de criação passa por
uma lógica de rede, que é formada por referências, pesquisa e estudo, mas que também
tem seus “nós” na forma de conversas com amigos, críticas, sonhos, acaso e erros.
Assim, existem inúmeros “nós” nessa rede, ligados entre si: são elementos de interação.
Encontros, combinações, que permitem os fenômenos de organização. As interações são
infinitas e formam um conjunto complexo. São desdobramentos possíveis, como
possíveis sempre são novas versões de uma obra “acabada”.
Como afirma Rubens Fernandes Junior,
ao mergulharmos no universo do processo criativo, nos
deparamos com uma rede de interrelações e de conexões, da
qual não é possível detectar com muita precisão o exato
momento que detonou a escolha do detalhe que vemos
exuberante na imagem finalizada. Encontramo-nos quase
sempre no meio do caminho dessa complexa trama inventiva da
qual nunca acessamos o verdadeiro percurso da criação (2011).

Um percurso em que é difícil – ou impossível – determinar onde está


localizado seu início e o seu fim. Temporal e conceitualmente falando, as possibilidades
de combinação são infinitas. Um escritor traz na sua obra, por exemplo, mesmo que
inconscientemente, referências a leituras acumuladas durante toda uma vida. Ao mesmo
tempo o processo de revisões pode ser interminável, onde cada passagem pelo texto
pode remeter a ajustes, correções de percurso, exclusões de trechos: “publicamos para
não passar a vida corrigindo” (CARLYLE, apud SALLES, 2008, p. 21). Da mesma
forma que não há um “expediente” para a criação, ela acontece a todo o tempo, mesmo
que o artista organize horários específicos para trabalhar e use algumas dinâmicas para
deflagrar o processo de produção de uma obra em determinados momentos, ou mesmo
atendendo a encomendas com prazos fixados.
Tomando por base a análise que Salles faz do processo de criação em rede
(SALLES, 2008), relacionando às especificidades da fotografia, destacaremos alguns
aspectos que consideramos relevantes para a discussão aqui proposta. Na fotografia,
muitas vezes as possibilidades dadas parecem se repetir, já preexistir, porém é na forma
com que elas se associam entre si e com todo seu entorno que a obra transforma-se em
algo próprio e complexo. A criação é fruto de trabalho, de ideias, de escolhas que

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transformam. “A obra não é fruto de uma grande ideia localizada em momentos iniciais
do processo, mas está espalhada pelo percurso” (SALLES, 2008, p.36). O ponto central
é entender a criação como uma rede de conexões formada por pessoas, por tempos, por
espaços. Nunca estamos sozinhos quando criamos.
O processo criativo também é formado por esperas. Há o tempo do autor, o
tempo da obra, o tempo do material: matérias-primas diferentes exigem tempos
diferentes e abrem espaço para novas interferências, que podem agir de maneira
desordenada, simultânea ou aleatória, sem ordens determinadas. A intervenção do acaso,
do erro ou do imprevisto podem redirecionar a condução do processo e resultar em uma
obra diferente do inicialmente planejado: “aceitar a intervenção do imprevisto implica
compreender que o artista poderia ter feito aquela obra de modo diferente daquele que
fez” (idem, p.22). Isso significa dizer que não é o procedimento que faz a obra. Ou que
as tendências trazidas pelo processo – o virtual – pode dar lugar a resultados distintos.
As relações embutidas no processo criativo trazem em si potencialidades múltiplas que
podem se concretizar de maneiras díspares, todas elas encerrando uma aceitação
possível como obra.
O local também traz suas influências. Na fotografia isso pode acontecer por
conta das condições de luz presentes no local de trabalho ou mesmo de termos o local
como constituinte da imagem, como no caso das paisagens ou fotografias de arquitetura.
A lógica de rede, de interligações também está presente na pesquisa e na busca por
referências externas, naturais ao processo criativo. São aberturas – conscientes ou não –
que propiciam um pensamento relacional, uma criação que não seria possível sem a
participação do outro. O lugar da criação não é a imaginação de um só indivíduo, mas
locais múltiplos de criatividade onde todos interagem. Mesmo que um fotógrafo
trabalhe só, confinado em seu estúdio, por exemplo, e seja responsável por todas as
etapas envolvidas na produção de uma imagem – planejamento, iluminação, captação,
tratamento do arquivo, pós-produção, finalização (ou revelação, ampliação, para
processos analógicos) – mesmo que ele fique à frente de todas as tarefas que culminam
na fotografia final, mesmo assim observaremos uma participação de outros atores, em
geral reconhecidos como referências ou influências.

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Salles é uma autora do campo da estética e chega a suas conclusões a partir do


acompanhamento do processo criativo de escultores, desenhistas e escritores. Seria
possível tomar tais ideias também para a fotografia “não artística a priori”, como a
fotografia documental? No nosso entendimento tais conceitos e estrutura de pensamento
são perfeitamente observáveis na lida documental ou fotojornalística. O fotógrafo
dessas áreas também estão sujeitos a influências externas, referências, limitações,
exigências e outras variáveis como tempo e condições climáticas. Já os coletivos, esses
parecem tensionar e explorar tais variáveis, trazendo para o centro de seus processos a
potencialidade das diversidades.

2.6 O irreversível e o inacabável


Qual a especificidade da fotografia? O que a torna específica? Para Soulages
(2010), que trabalha o conceito de “fotograficidade” – ou o que é fotográfico na
fotografia –, a resposta para esta questão está na “surpreendente articulação do
irreversível e do inacabável – irreversível obtenção do negativo e inacabável trabalho
com o negativo” (p. 123). Mas o autor não alcança tal articulação sem antes investigar o
que ele chama de “três realidades” da fotografia: as condições de possibilidade de uma
foto30, suas condições de produção e suas condições de recepção.
Uma vez que a recepção depende dos sujeitos receptores, de sua história
pessoal, de sua bagagem e interpretação, não poderíamos obter “afirmações
universalizáveis, válidas para qualquer recepção de qualquer foto” (p. 125). Para
Soulages, então, não é no estudo das condições de recepção onde está a chave para o
entendimento da fotograficidade. Sobre as condições de possibilidade de uma foto, é
preciso que nos debrucemos sobre o objeto a ser fotografado, sobre o sujeito que
fotografa e sobre o material fotográfico. O autor trata da impossibilidade do objeto-
essência, do objeto como oportunidade de encenação, da busca pelo objeto-problema e
da ilusão do objeto realidade. Sobre o sujeito que fotografa, é singular demais para
poder ser generalizável – como no caso da recepção. Soulages defende que também não
é a partir das condições de possibilidade que se pode especificar a fotografia. A

30 Soulages se refere a “foto” quando se trata da materialidade, da imagem material resultante de um


processo fotográfico. Usa “fotografia” quando quer se referir ao procedimento, à técnica ou à arte
fotográfica.

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fotograficidade está, pois, nas condições de produção de uma foto. Está no processo e
nas articulações que este traz em sua essência. “A fotograficidade designa a propriedade
abstrata que faz a singularidade do fato fotográfico” (p. 129), que permite pensarmos
não apenas na fotografia real, mas também na fotografia possível, a ser realizada.
O cerne da questão está não no objeto a ser fotografado, nem no receptor da
foto, nem no sujeito que fotografa, mas na relação entre a matriz inicial e o produto que
dela resulta, uma relação que contém infinitas possibilidades. Soulages afirma que
podemos analisar a fotografia a partir de uma abordagem humanista – o vivido pelo
sujeito fotógrafo – ou a partir do processo fotográfico. Nos dois casos, há um corte, uma
divisão em duas etapas: o tempo do homem com a câmera e o tempo do homem no
laboratório; ou, do ponto de vista materialista, da primeira exposição até a secagem do
negativo (primeira etapa) e da exposição à secagem da cópia. Embora o autor se refira
ao processo analógico, com todos os banhos (revelador, fixador, lavagens etc), o
esquema apresentado é perfeitamente transportável para o processo digital, onde
teremos a produção do arquivo e o trabalho com o arquivo. Essa divisão é crucial para
tratarmos da irreversível obtenção do negativo e do inacabável trabalho com o negativo.
A fotograficidade está na articulação dessas duas características. “A fotografia é, pois, a
articulação entre o que se perde e o que permanece” (p. 132).
A primeira etapa é caracterizada pela impossibilidade de reversão. Podemos
fazer novas tomadas, repetir o tema, refazer uma foto, mas nunca voltar ao filme
virgem. “Uma vez realizado, o ato fotográfico é irreversível, não se pode mais agir
como se ele não existisse” (p. 131). Aqui estamos tratando da obtenção do negativo ou
do arquivo matriz, levamos em conta o processo analógico ou digital, respectivamente.
Já o trabalho com o negativo, a segunda etapa, é marcada pela possibilidade inacabável
de novas abordagens. É possível retrabalhar um negativo infinitamente. Não estamos
aqui nos atendo a questões materiais de deterioração, afinal nossa busca é por traços
conceituais. Também não se trata aqui do potencial de reprodutibilidade, tão caro à
fotografia. Não estamos falando de produzir cópias fieis, mas sim de podermos fazer
fotos totalmente diferentes a partir de um mesmo negativo e esse potencial é inacabável.
A imprensa, o molde, o carimbo ou a gravura, todos esses processos já permitem uma
reprodução, mas aqui estamos falando da obtenção de resultados diferentes a partir de

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uma mesma matriz. Seja pela escolha da matriz a ser trabalhada (um entre tantos
negativos ou arquivos “clicados”), seja pelo reenquadramento ou corte da imagem, seja
pelos diferentes procedimentos e materiais utilizados no processo, abrimos para um
leque de possíveis resultados.
É possível percebermos pontos de contato entre as articulações trazidas por
Cecília Almeida Salles (2008) e a ideia de fotograficidade de Soulages, que afirma:
no trabalho do inacabável da fotografia, podem intervir não só o
fotógrafo criador do negativo, mas qualquer pessoa, ou um outro
fotógrafo, um curador de exposição, um criador de livro, um diretor de
teatro, em resumo, qualquer mediador, ou melhor, qualquer receptor
que, por sua vez, é o intérprete e o recriador da foto (2010, p. 146).

Os conceitos de perda e permanência, as condições de retrabalho por outras pessoas e


não apenas o fotógrafo responsável pela captação inicial, são muito importantes para
algumas das relações características dos coletivos fotográficos. O inacabável permite
novos desdobramentos, novas ligações, linhas de fuga, retrabalhadas por outros atores
do processo: outros fotógrafos, tratadores de imagem, curadores etc. Aqui são elencados
também os fatores como as referências externas, as críticas, os acasos e erros, como
potencialidades de desvios e de novos caminhos a serem trilhados. A distância entre
uma foto pensada, planejada e o resultado final; o entendimento de que muitas outras
obras poderiam ser alcançadas a depender das ligações geradas no interior do processo
criativo. Pontos que se ligam a outros e cujo processo se constrói nestas ligações.
Um termo muito utilizado na história da fotografia e nos manuais técnicos é o
de “imagem latente”. Refere-se à imagem formada pela exposição dos sais de prata, mas
que ainda não foi revelada. Um registro que está lá, mas ainda não pode ser visualizado
e corre o risco de se perder – um filme exposto pode ser velado (queimado pela luz) ou
simplesmente ter uma nova exposição, alterando a sensibilização anterior. Para
Soulages, mais do que uma imagem latente, um filme ou um arquivo matriz traz em si
uma infinidade de imagens possíveis, pelas variáveis já abordadas aqui.
O importante é perceber que nunca lidamos com autores isolados, ou imagens
isoladas. É sempre na relação que se encontram as principais questões. É preciso
relacionar a fotografia ao longo de todo seu processo com sujeitos, com objetos, com
contextos, com histórias, com os “nós” que marcam essa coletividade na sua criação.

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Todas as etapas de escolha ao longo dessa construção, seja antes, durante ou depois da
“finalização” de uma imagem fotográfica, “abrem-nos para infinitos de infinitos”
(SOULAGES, 2010, p.151).

2.7 Novos arranjos


Procuramos, nesse capítulo, iluminar o cenário, naqueles aspectos que
consideramos serem mais importantes para tratar do objeto de nossa pesquisa, o
surgimento dos coletivos fotográficos contemporâneos. A fotografia vem passando por
diversas transformações. Mudanças que acontecem no campo do fazer, mas também em
suas faculdades ontológicas. Novos arranjos são necessários nas mais variadas esferas,
da produção à circulação, do financiamento à gestão.
O fotojornalismo, por exemplo, está saindo das redações. Este gênero, embora
sejam vários os exemplos práticos de experiências 'independentes' – como agências e
revistas com equipes terceirizadas, autônomas –, é entendido e estudado no seu vínculo
com o veículo. Agora novas formas de organização vêm se firmando com mais força,
como também alternativas de financiamento, a exemplo do crowdfunding 31. Os
coletivos fotográficos também agregam características de reestruturação organizacional,
num diálogo com os princípios de uma cultura de convergência.
A tecnologia talvez não seja o elemento que fundamenta a existência dos
coletivos, mas certamente está presente nas trocas simbólicas, afetivas e mesmo
organizacionais da base desses grupos. A digitalização – e sua inserção na fotografia – é
muito mais do que uma mudança apenas de ordem técnica ou de procedimento. Traz
consequências e rearranjos no que se refere à posição do sujeito no fazer fotográfico, no
estatuto de autoria, nas construções de significados e no conceito de obra. A
digitalização age na sociedade como um todo e intensifica as relações em rede. O
conceito de rizoma, um ponto sendo ligado a outro ponto, as linhas de fuga, tudo isso

31 Crowdfunding – financiamento por multidão, numa tradução direta – é uma forma de viabilidade
financeira que ganhou força principalmente com a explosão das redes sociais e mecanismos baseados
na internet. Qualquer pessoa pode apresentar seus projetos e arrecadar doações coletivas, em geral
estimuladas por algum tipo de recompensa, que pode ser simplesmente o resultado material do
projeto. Shows de bandas internacionais, por exemplo, podem ser viabilizados por um grupo que
resolva comprar antecipadamente lotes de ingressos. Isso tem permitido diversas ações independentes
de grandes financiadores ou de órgãos oficiais. Para mais detalhes, acessar:
http://exame.abril.com.br/pme/noticias/fenomeno-do-crowdfunding-ganha-forca-no-brasil.

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permeia a ideia de hipertexto e, por prolongamento ou apropriação, à ideia de uma


hiperfotografia. Realidade e representação passam a ser encaradas mais na forma como
se relacionam do que como campos distintos. O conceito de rede e as relações
rizomáticas são anteriores ao advento da internet e das chamadas novas tecnologias,
mas não podemos deixar de perceber o quanto foram energizadas e intensificadas nesses
novos meios mais interativos e menos lineares.
O cenário que envolve a cultura de convergência, que estimula a inteligência
coletiva, que potencializa as trocas, que reconfigura as relações de poder e de
conhecimento, que facilita e torna familiares reordenações e apropriações, esse cenário
é o pano de fundo para o que caracteriza o coletivo fotográfico contemporâneo, no que
se diferencia de outras iniciativas precedentes de agrupamentos de fotógrafos. Esse
cenário age diretamente na expansão de pontos de abertura. Torna porosas as barreiras,
constrói dutos de comunicação entre áreas, funções e atuações distintas. Na fotografia,
tais expansões e deslocamentos surgem, também, na forma dos coletivos.
A liberação do polo emissor, a percepção das várias participações externas no
processo de criação, a ideia de uma fotograficidade que se articula no inacabável – e,
consequentemente, reconstruído, ressignificado, apropriado por terceiros –, tudo isso
forma um ambiente propício para a inclusão de novos sujeitos no fazer fotográfico.

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Capítulo 3
O coletivo fotográfico contemporâneo

Não chegar ao ponto em que não se diz mais EU,


mas ao ponto em que já não tem qualquer
importância dizer ou não dizer EU
Gilles Deleuze e Félix Guattari

Nos capítulos precedentes, lançamos mão de todo um percurso que


consideramos crucial para o entendimento dos coletivos fotográficos na atualidade:
desde a relação entre sujeito e fotografia, até conceitos que tratam das articulações em
rede, do processo criativo que se utiliza dessas articulações, dos paradigmas da pós-
fotografia e da hiperfotografia, fortemente influenciados pelas possibilidades de
reconfigurações, manipulações e revisões de antigos modelos epistemológicos e
organizacionais.
Agora entraremos mais a fundo na conceituação dos coletivos, na diferenciação
deles em relação aos outros modelos – agências, fotoclubes etc. Buscaremos responder a
questões chave de nossa pesquisa que passam por investigar as causas do surgimento
desse novo modelo, com maior intensidade na primeira década dos anos 2000, bem
como articular com os conceitos dos capítulos anteriores. Faremos isso atentos à nossa
premissa de que o cenário pós-fotográfico, imerso em uma cultura de convergência,
potencializador da lógica do rizoma em oposição a estruturas lineares ou arborescentes,
responde por um papel estimulante na abertura para esse horizonte de um fazer
coletivizado da forma como estamos estudando. Não uma coletivização de estruturas ou
de objetivos em comum, não apenas – embora também – uma saída comercial ou
organizacional, mas uma coletivização em níveis ainda mais amplos, atingindo esferas
de criação. Analisaremos a organização e o trabalho de dois coletivos: o Cia de Foto e o

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Pandora. O primeiro é brasileiro, com sede em São Paulo e o segundo é espanhol, com
sede em Barcelona.

3.1 O termo
A denominação “coletivo fotográfico contemporâneo” traz em si alguns
problemas32. A decisão de usá-la parte do fato de ser um termo que já aparece no campo
da prática. Ou seja, optamos por nos apropriarmos de um termo já existente e utilizado
em alguns círculos, porém ainda sem maiores delimitações. Se fizemos ao longo de todo
o texto a escolha pela terminologia, precisamos deixar claro que ele deve ser entendido
no conjunto e nas suas relações com o meio. Vejamos as contradições que podem ser
levantadas e que comumente o são em instâncias cotidianas ou empíricas. O termo
“coletivo” permite confusões com outras formas coletivas de fazer fotografia. Não
seriam as agências também coletivos de fotografia? Não necessitamos de muita
pesquisa para encontrar um sem número de argumentações, em geral em oposição aos
coletivos contemporâneos, que seguem este raciocínio. Eles não estão errados em
afirmar que uma agência fotográfica como a Magnum e tantas outras são formas
coletivas de fazer fotografia. Já mostramos algumas como as agências fotográficas ou os
fotoclubes33. No entanto observamos que os processos coletivizados nesses casos estão
restritos à comercialização das obras, ao compartilhamento de infraestrutura ou
organização política, não atingindo o fazer fotográfico propriamente dito.
O uso da palavra “contemporâneo” também trará alguns problemas uma vez
que, etimologicamente falando, contemporâneo significa estar em um tempo ou época
comum ao outro: duas pessoas podem ser contemporâneas - ou seja, habitam o mesmo
tempo uma da outra; ou também quando dizemos que algo é contemporâneo a nós, seja
alguém ou algum fenômeno, estamos nos referindo ao fato de ele existir agora, neste
tempo ou nesta época em que estamos. Ou seja, tudo é contemporâneo em relação a
outra coisa. Por outro lado, o uso recorrente de expressões agrega novos significados

32 Ao longo de todo o texto, optamos por usar a palavra coletivo apenas em relação ao modelo que aqui
estamos estudando. Seria inviável sempre que tratássemos deste modelo usar o termo inteiro (coletivo
fotográfico contemporâneo). Sendo assim, quando nos referimos a outras formas coletivas, usamos
expressões como 'grupos', 'iniciativas' etc. A palavra “coletivo” sendo usada isoladamente e fazendo
referência a um grupo ou modelo deve ser subentendida na sua ligação com a prática estudada nesta
pesquisa apenas.
33 Ver capítulo 2.

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ou, pelo menos, cria camadas de significações que extrapolam a etimologia, o seu
sentido primeiro. É neste sentido que utilizamos o termo “contemporâneo”. Não
estamos aqui utilizando seu significado temporal, mas conceitual. Não significa que
todas as formas de produção fotográfica contemporânea – atuais – estejam abarcadas no
nosso estudo e na conceituação de que pretendemos dar conta. Estamos nos apropriando
de um termo já utilizado empiricamente, mas devemos entender que ele nos remete a
um conceito específico que vai além dos conceitos isolados de cada palavra que o
compõe. Quando falamos de “coletivo fotográfico contemporâneo”, estamos nos
referindo a um modelo específico, objeto de nosso estudo e cuja delimitação e
investigação é o objetivo deste trabalho.
Feita a ressalva, avancemos em nossa busca, mas não sem antes tornarmos a
questão um pouco mais complexa. Devemos pensar o coletivo não como uma técnica,
não como um resultado, não como uma organização formal, mas como processo.
Podemos encontrar coletivos formalizados como empresas, organizações não
governamentais (ONGs) ou cooperativas. O que importa aqui é a trama que envolve o
fazer. Tagg (2005, p.45) nos dá uma interessante visão de compartimentalização da
produção através do circuito artista-galerista-crítico-museu, bem como das
normatizações e padronizações (normas técnicas, protocolos, hábitos, divisões de
trabalho etc). Ou seja, há uma junção de atores não apenas quando reunimos grupos
interessados em trabalhar juntos, mas também nos processos e organizações mais
cotidianas. Quando entramos num mercado e seguimos normas técnicas, protocolos ou
mesmo hábitos, já estamos incorporando formatos estabelecidos por outrem.
Compartimentar os processos, criando novas etapas na produção de um bem –
ou serviço – está na base do método industrial: do mais simples ao mais complexo
objeto, a produção acontece seguindo uma cadeia de etapas, em geral executadas por
operários distintos, que detêm conhecimento apenas de sua parte no processo. Os louros
da produção – seja na forma de lucro ou de reconhecimento – ficam concentrados nos
proprietários da fábrica ou da ideia, quando falamos da lógica industrial-capitalista.
Algo similar ao que acontece quando tomamos por exemplo a produção, coletiva por
natureza, de uma obra cinematográfica: ela não poderia acontecer sem a articulação de
todas as especialidades envolvidas ao se construir um filme, mas existe aquele que

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detém o reconhecimento ou a assinatura pelo resultado geral, normalmente o produtor


ou o diretor. Ou quando voltamos ao formato da agência, o reconhecimento recai sobre
o fotógrafo que está na ponta do processo, o idealizador e produtor da imagem.
Ou seja, o compartilhado, interligado com outros atores, já estaria presente não
apenas nos grupos que são formados, mas também por qualquer indivíduo que siga o
modelo capitalista-industrial ou que atenda a normas técnicas, legislações e outras
formas de regulamentação impostas. Sem deixar de levar em conta os aspectos
abordados por Salles (2008)34, que nos remete ao processo criativo permeado pela noção
de rede. Mas isso não significa dizer que tudo é coletivo, que há colaboração em todos
os processos e, por isso, não haveria sentido em falar numa diferenciação entre o
fotográfico de um indivíduo ou de um grupo, nem que não haveria distinção entre as
várias formas de criação na coletividade. Mesmo nos processos ditos individuais é
possível identificarmos uma série de fatores e construções compartilhadas, mas isso não
significa nivelar indistintamente todos os modelos como formas colaborativas de
produção e reflexão. A diferença, por exemplo, não está no fato de existir um tratador de
imagem no meio da cadeia produtiva de fotógrafos, mas do papel que esta função
desempenha na criação, no fazer, e, principalmente, no reconhecimento como parte
integrante do resultado. Podemos – e devemos – manter distinções entre a criação dita
individual, o modelo de uma agência e o de um coletivo contemporâneo, mesmo que em
todos os casos existam compartilhamentos, colaborações e divisão de tarefas. Quando a
função é subordinada a um autor central e quando ela é colaborativa? Quando há trocas
em mão dupla, de maneira equilibrada e quando há apenas o atendimento a uma
encomenda?

3.2 Individualidades diluídas


A nosso ver, a pesquisa empreendida nos permite afirmar existir diferenças
significativas entre as diversas formas de agrupamentos entre fotógrafos, podendo
considerar especificidades características do modelo que aqui denominamos de
“coletivo fotográfico contemporâneo”. Iniciemos pela seguinte delimitação:
1. Grupos de fotógrafos - que podem ter entre seus integrantes especialistas de
outras áreas como design, tratamento de imagens, jornalismo, artes visuais;
34 Ver capítulo 2.

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2. Onde há um reconhecimento da participação e da importância de cada um


dos componentes não apenas na elaboração do produto final, mas no que há de
fotográfico nesta elaboração;
3. Têm como elemento de aglutinação não apenas objetivos – comerciais,
produtivos, profissionais – em comum, mas também o viés da afetividade, o
compartilhamento da experiência;
4. Caracterizam-se por uma forte presença da discussão e da crítica durante o
processo de produção – do planejamento à finalização – em que as individualidades são
diluídas em prol da construção de uma identidade coletiva, independentemente se a obra
resultante é assinada com ou sem referência a um fotógrafo específico;
5. Atrelam alternativas de articulação com o universo externo que também se
dão de maneira coletiva. Tais alternativas passam por modos de financiamento
(crowdfunding, editais etc), mas também pelas demais articulações com o universo
exterior ao grupo, como novas conexões ou espécies de linhas de fuga.
Não há uma fórmula fechada, em que cada componente ou característica
apareça em porções previamente definidas. Nem tampouco a necessidade de que todas
as características citadas façam parte da composição ou organização de um coletivo
contemporâneo. Mas veremos como tais aspectos se relacionam na formação de um
modelo que traz diferenciações – e por isso não pode ser confundido – em relação a
experiências precursoras.
Para falar de um coletivo, partimos do pressuposto óbvio de se tratar de um
grupo. Mas algo importante no primeiro ponto é o fato de este grupo não ser,
necessariamente, formado apenas por fotógrafos e sim trabalhar com a possibilidade de
agregar outras especialidades, tendo essas funções específicas um papel fundamental na
construção da obra fotográfica final. Estamos falando de designers, tratadores de
imagens ou diretores de audiovisual, que são áreas afins, que lidam com imagens, que já
manipulam fotografia nas suas respectivas áreas. Mas estamos falando também de
experiências em que funções administrativas também são arroladas na “composição” da
obra. A diferença em relação a outros grupos é que essas funções não são
compreendidas apenas como atividades “meio”, como funções necessárias às

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organizações, mas com uma abertura para a absorção desses profissionais no núcleo do
grupo.

Desenho 3: No coletivo, todos os integrantes se ligam uns aos outros,


formando um corpo onde as individualidades não são o mais importante.

Esses exemplos dizem respeito diretamente ao segundo ponto listado, que trata
do reconhecimento como ingrediente de um coletivo. Laboratoristas, tratadores de
imagens, designers, administradores, todas essas funções podem fazer parte – e é
comum que façam – de agências, por exemplo. Ou mesmo no fluxo organizacional de
um fotógrafo individual, que usa os serviços de um laboratório ou de um birô de
impressão – com pós-produção, tratamento. Mas não há o reconhecimento de que esta
função específica esteja atrelada ao processo criativo, seja parte integrante da criação. O
mais comum é que ela seja parte de uma engrenagem movida pelo fotógrafo-autor, que
seja uma função que atende ao pedido de um fotógrafo, que segue suas ordens e não que
haja uma contribuição efetiva na criação da obra. Nos coletivos contemporâneos a
integração de diversos atores e funções diferentes acontece também no fazer
fotográfico, diferentemente do que é visto em outras organizações onde isso fica restrito
a atividades comerciais ou estruturais. Como no caso da agência francesa Magnum, que
foi criada como uma espécie de redoma, distanciando os fotógrafos da relação

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comercial e burocrática, dando a eles maior liberdade de criação e aprofundamento nos


temas fotografados. Há um compartilhamento da estrutura comercial, mas a criação é
mantida na mão de indivíduos, que em muitos exemplos nem se falam entre si.
Aumentemos o contraste entre os dois modelos, para facilitar a delimitação. Na
agência nós temos um agrupamento de diferentes especialistas, enquanto que no
coletivo contemporâneo há a busca por uma sinergia que tire proveito das
potencialidades de cada um, porém na formação de uma inteligência coletiva. Nos dois
grupos os conhecimentos específicos são utilizados, porém a grande diferença é que
quando isso é feito de maneira integrada o resultado pode ser maior do que
simplesmente a soma dos valores isolados. Se derivarmos um pouco para um exemplo
exterior à fotografia, poderíamos observar a diferença entre uma orquestra sinfônica e
um grupo de jazz. Claro que é possível encontrar exemplos que fujam ao que vamos
trazer aqui, mas, em geral, teríamos de um lado uma hierarquia estruturada – com
papéis bem definidos entre compositor, partituras, regente, músicos, solistas etc – e de
outro o improviso, a alternância entre papéis, numa composição bem menos linear. Os
dois grupos são capazes de criações magníficas, contam com indivíduos geniais e
fizeram história no campo da música. Mas são modelos muito diferentes em suas
maneiras de organização e de criação. De Masi fala da criação de “gênios coletivos
compostos de sujeitos individuais não necessariamente geniais” (DE MASI, 2003, p.
585). O segredo seria instaurar
“um clima favorável, que multiplica e enriquece a troca de
informações em todos os níveis, elimina as ameaças e os medos,
potencializa a coragem de tentar e errar, atrai do exterior os melhores
cérebros, protege os participantes com personalidades mais fracas e os
ajuda a permanecer no grupo, determina a sintonia e a 'extensão de
onda' comum, graças às quais é mais fácil colher as mais sutis
intuições, que frequentemente se revelam resolutivas” (idem, p.590)

Estas características estão em conformidade com o conceito de inteligência coletiva,


que é, segundo Jenkins (2006), um dos pilares da cultura de convergência. Neste
conceito35, que se contrapõe à ideia de especialista, cada pessoa tem algo a contribuir
para a construção do conhecimento, as questões são mais interdisciplinares, fronteiras
de conhecimento são quebradas e a hierarquia (quando existe) entre os participantes
tende a ser mais flexível ou mais simplificada (com menos níveis e diferenciações).
35 O conceito “inteligência coletiva” é de Pierre Lévy (2000).

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Como afirma Ronaldo Entler, os coletivos “exploram em profundidade aquele


que parece ser o maior potencial desse tipo de experiência: a criação colaborativa”
(2011). Eles trazem para dentro de seus círculos a lógica de uma criação em rede,
aceitando e tirando proveito das ligações possíveis, reverberando no seu interior as
“características aproximativas do rizoma”, com todas as suas inerentes articulações com
pontos externos. “Seu caráter complexo e múltiplo se define pelo 'fora', porque sempre
encontram suas 'linhas de fuga', mas essas linhas continuam sendo parte do rizoma, num
movimento de 'desterritorialização' e 'reterritorialização' ” (idem).
Tais linhas de fuga e ligações externas, não raro, acontecem na forma de
trabalhos desenvolvidos em conjunto com outras equipes – estendendo para fora do
coletivo seu método de funcionamento – ou através da participação efetiva em debates
conceituais ou políticos. Eduardo Brandão (2008) destaca um diferencial para ele
crucial: a discussão e a crítica são incorporadas ao trabalho durante a fase de produção,
enquanto que no processo individual, isso só passa a estar presente depois da obra
finalizada. “Com essa capacidade de produzir conexões, sua atuação política pode ser
efetiva, sem ser necessariamente escandalosa ou panfletária” (ENTLER, 2011). O
coletivo fotográfico contemporâneo não é um movimento político cuja bandeira seria a
revisão do estatuto do autor. “Mesmo que os coletivos aceitem e estimulem esse debate,
mesmo que isso defina algumas de suas práticas […] e, por fim, mesmo que tomemos o
problema da autoria como foco desta reflexão, é importante evitar tal exagero”
(ENTLER, 2011). A discussão sobre autoria não é o objetivo da criação de um coletivo,
mas acaba sendo incorporada naturalmente às questões levantadas por essa prática. Sua
organização interna, abertura para a crítica e para o diálogo em todas as fases do
planejamento e da produção, abertura para o reconhecimento dos vários atores como
coautores, quebra a estrutura que orbita em torno de um gênio criador – ou que, pelo
menos, o tem numa das pontas da cadeia.
Os coletivos estão para a lógica do rizoma assim como as agências estão para o
modelo arborescente. A figura da árvore estabelece uma estrutura hierárquica e estável,
com ramificações estabelecidas dentro de uma ordem prévia e rígida. O rizoma se forma
pelas ligações e sempre que alguma conexão é quebrada, opera-se uma ruptura, uma
linha de fuga. Essas rupturas, porém, ao contrário do que se poderia imaginar, também

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fazem parte do rizoma, formam-se aí, novas ligações. Movimentos de


desterritorializações e reterritorializações (DELEUZE & GUATTARI, 1995).

Desenho 4: O círculo maior representa o coletivo, que possui no seu


interior outros círculos menores representando os seus integrantes. Eles
formam um só corpo: há uma diluição de suas individualidades. Este, por
sua vez, se liga a atores externos (galerias, produtoras, clientes, outros
fotógrafos etc) de diversas formas.

Todo grupo é formado a partir de afinidades, que podem acontecer como


compartilhamento de objetivos comerciais ou de pesquisas estéticas. Quando
entendemos que o coletivo contemporâneo atua num viés mais amplo de articulação, é
natural que a afetividade também seja um componente importante de aglutinação. Ao
observar o funcionamento desses grupos, percebemos que existe uma espécie de
amálgama que vai além de relações profissionais ou comerciais. Alguns chegam a
assinar coletivamente, deixando de lado qualquer referência específica àqueles que
estiveram diretamente envolvidos no desenvolvimento de um projeto. Em outros casos,
embora o crédito de um trabalho seja dado a um indivíduo – ao fotógrafo responsável –
há um reconhecimento de que o trabalho não seria o mesmo se não fosse a participação
indireta do coletivo.

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Na tabela a seguir trazemos de modo esquemático alguns dos aspectos que


tratamos ao longo da pesquisa como distinção entre os dois modelos.

Agência fotográfica Coletivo fotográfico contemporâneo


Lógica industrial Lógica pós-industrial
Árvore Rizoma
Criação individual Criação em rede
Modelo um-todos Modelo todos-todos
Paradigma do fotográfico Paradigma do pós-fotográfico
Especialista Conhecimento compartilhado

3.3 O universo dos coletivos contemporâneos


Para observarmos os coletivos, lançamos o olhar para publicações e encontros
que enfocam este modelo, de forma a trazer uma visão mais geral deste universo, útil
para a contextualização dos grupos que estudamos mais detalhadamente. A convivência
direta com o meio, o acompanhamento, mesmo que de forma empírica, da atuação dos
diversos grupos no mercado, bem como em festivais, palestras e publicações, também
foram muito importantes na busca por contradições ou confirmações dos dados
coletados. Abaixo uma breve descrição de dois eventos, uma revista e um livro-
catálogo que nos serviu para desenharmos o mapa atual do fenômeno:

Encontro de Coletivos Fotográficos Ibero-Americanos


São Paulo, 2008, reuniu 10
coletivos de sete países. Composto
por palestras, debates, exposições e
desenvolvimento de projetos, foi o
primeiro evento enfocando especificamente os coletivos fotográficos
contemporâneos. Ver www.laberintodemiradas.net/encontro.

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Encuentro de Colectivos Fotográficos Euroamericanos


Madri e Soria (Espanha),
2010, reuniu 20 coletivos de
20 países (alguns coletivos
possuem mais de um país
em sua formação). Teve
como objetivo criar um
espaço de reflexão e dar
dimensão à forma de trabalho desses grupos. Site:
http://www.fotoeco.es.

Laberinto de Miradas
Livro catálogo de projeto de mesmo título, que
levou uma série de exposições a diversos
países das América Latina e da Europa. O
projeto aborda a fotografia documental
Iberoamericana por três vieses, sendo um
deles o dos coletivos fotográficos. Possui o
curador e idealizador Claudi Carreras em
comum com os dois encontros aqui listados.

Zmâla
Revista francesa, com tiragem anual,
especializada nos coletivos fotográficos. Até
o momento de redação desta dissertação,
foram lançados três números, em 2009, 2010
e 2011. Além de artigos enfocando trabalhos
desenvolvidos pelos grupos, traz
informações mais objetivas no sentido de
“quem é quem”. Dá um espaço maior aos

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coletivos franceses. Acesse www.zmala.net, para conhecer um pouco


mais.

Através da sobreposição das listas de coletivos apresentados por cada um


desses espaços, chegamos a 51 coletivos. Esse volume de grupos permite uma primeira
constatação que sugere a necessidade de melhor delimitação do modelo. A listagem
incluiu escolas e projetos sociais que foram anexados à exposição Laberinto de Miradas,
que fogem do formato aqui estudado. A inclusão da Zmâla, embora importante pelos
enfoque especializado que ela traz, implicou na inclusão de um número maior de
coletivos franceses. Constatados esses desvios, optamos por aplicar um filtro que
levasse em conta os grupos mais referenciados, que foram citados por pelo menos três
das quatro fontes consultadas. Sendo assim, enxugamos para nove coletivos: Blank
Paper (Espanha), Cia de Foto (Brasil), Kameraphoto (Portugal), Mondaphoto (México),
Nophoto (Espanha), ONG (Venezuela), Pandora (Espanha), Sub Coop (Argentina) e
Supay Photo (Peru)36. Desses, apenas um foi fundado antes de 2003, o que confirma
nossa premissa de surgimento com maior intensidade nos últimos 10 anos.
Tal constatação é importante na medida em que trabalhamos com a premissa de
que os coletivos surgem num cenário fortemente influenciado pela cultura de
convergência (JENKINS, 2006). A crescente digitalização que a sociedade vive permite
que diversos processos e linguagens sejam trazidos para um denominador comum no
que diz respeito às plataformas de trabalho. Num mesmo dispositivo, seja um
computador ou um celular, podemos trabalhar som, imagem, texto. Quando dizemos
trabalhar, estamos nos referindo a captar, editar, transmitir. Estamos falando em não
apenas consumir, mas também em produzir ou interferir. Nada disso foi inventado pela
internet ou pelos tablets. Se hoje “rede social” é sinônimo de alguns sites, portais ou
aplicativos ambientados na web, é apenas uma forma de expressão, completamente
amparada pela ideia de rede social presente nos círculos presenciais-físicos-tradicionais,
como clubes, escolas, igrejas, bairros etc. Ou seja, reconfiguramos nossas relações
sociais a partir das possibilidades de interação que se abrem com esses novos ambientes
e tecnologias.
36 Para conhecer mais sobre os coletivos não detalhados na pesquisa: www.blankpaper.es/;
kameraphoto.com; mondaphoto.com; nophoto.org; organizacionnelsongarrido.com; www.sub.coop;
www.supayfotos.com.

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A cultura da atualidade, permeada pela interatividade e digitalização, é


ambiente propício para o desenvolvimento de inteligências e formas de produção
coletivas. Seja na Wikipedia, seja no Facebook, nos deparamos com um volume
incalculável de conteúdo totalmente produzido, disponibilizado, publicado, editado
pelos próprios usuários. Veículos tradicionais buscam acompanhar tais características
desenvolvendo plataformas onde a interatividade seja possível. Ou mesmo incorporando
aos seus produtos conteúdos produzidos pelos leitores/espectadores.
Os coletivos fotográficos atuam nesta mesma lógica de compartilhamento,
trazendo para dentro de seus processos a permeabilização das fronteiras entre as várias
funções desempenhadas pelos seus participantes. Se a industrialização trabalha na
compartimentalização – um produto é fruto da ação interdependente de vários atores
que atuam isoladamente nas suas várias especialidades – o coletivo age no sentido
inverso em que tais limites são diluídos, muitas vezes confundidos. “Interatividade.
Hipertextualidade. Convergência. São conceitos e práticas postos no cenário das
comunicações nos últimos anos. A mudança chave, nesse percurso de mudanças pode
ser percebida, em termos gerais, na mudança da relação com os meios de comunicação”
(SILVA JUNIOR, 2011). Saímos do modelo de comunicação massificada do “um-todos”
para o de interatividade melhor definido pela lógica do “vários-vários”.

3.4 Cia de Foto


O coletivo paulista Cia de Foto foi fundado em 2003, inicialmente num modelo
que se aproximava mais ao de uma agência fotográfica tradicional, com maior foco no
fotojornalismo diário. Pio Figueiroa e Rafael Jacinto contam que já havia algo se
formando desde 2000 numa direção que podemos chamar de embrionária em relação ao
formato que a Cia adotaria depois. Eles participaram da equipe que trabalhou nas
edições piloto do jornal Valor Econômico37. Já era possível identificar ali alguns
aspectos que surgiriam com mais clareza no modelo de ação amadurecido
posteriormente na Cia. “Eu e o Pio já ensaiávamos o que seria um trabalho coletivo
dentro do próprio jornal. Se estávamos tranquilos, íamos juntos às pautas, fazíamos
pausas em cafés e livrarias, buscávamos referências, trocávamos pautas, cobríamos um
37 Jornal diário especializado em economia, fundado em 2000, que chegou com um projeto gráfico e de
imagem arrojado em relação ao segmento, cuja maior referência até então era a Gazeta Mercantil (que
não trabalhava com fotografia nem cor).

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ao outro quando tinha um freela, assinando como tal” (JACINTO, 2011). A prática de
um fotógrafo “dar cobertura” a outro não é tão rara no meio fotojornalístico. Como
vimos, estava lá no início do percurso de Robert Capa, fundador da agência Magnum 38,
quando ele e sua companheira Gerda Taro produziam sob o mesmo pseudônimo. Ou
também acontece quando, numa pauta importante, um fotógrafo tem algum problema e
usa uma foto cedida por um colega para suprir sua lacuna. Assim como o uso de
pseudônimos ou nomes artísticos em substituição ao seu nome de nascença também é
uma prática comum. Essa observação é importante uma vez que uma das resistências
sofridas pelos coletivos se materializa num discurso contra o crédito coletivo, com
argumentos de que isso seria um retrocesso em relação a conquistas importantes da
categoria, como a obrigatoriedade de referência ao autor da imagem nos veículos
jornalísticos.
A experiência na criação do que seria a fotografia do novo jornal foi um
importante laboratório também para o que eles viriam a fazer “em oposição” ao jornal.
Tentemos explicar melhor. O jornal iria ser lançado, havia uma busca por criar algo
inovador, existia uma liberdade de se inventar um modelo que não precisaria ser uma
reprodução das redações já existentes. Na equipe, profissionais experientes, numa
mescla que envolvia desde um modelo de competição interna bastante comum nos
veículos tradicionais até fotógrafos em busca de formatos diferentes de trabalho. “Isso
se deu em um regime isento das obrigações e dos prazos de uma publicação diária, pois
era uma época em que o Valor não ia para rua. Acho que foi ali o despertar da vontade
de 'projetar' em fotografia mais que executar um dia a dia profissional previsível”
(FIGUEIROA, 2011). Passada a fase piloto, agora com o jornal “na rua”, circulando,
perde-se um pouco da liberdade e há um enquadramento nas práticas usuais, na
reprodução de fórmulas aprovadas.
A Cia de Foto é formalizada em 2003 para funcionar como uma editoria de
fotografia terceirizada do Valor Econômico. Mas essa fase dura apenas seis meses,
quando a equipe de prestadores é reincorporada ao jornal e a agência, agora resumido
aos sócios fundadores, vai buscar seu rumo. Vale a ressalva: aqui a Cia de Foto ainda
funcionava no modelo que neste trabalho estamos considerando como agência,
diferentemente do formato que eles viriam a atuar depois, alinhado ao que chamamos de
38 Ver capítulo 1.

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coletivo contemporâneo. Estamos no primeiro semestre de 2004, quando João Kehl


entra para o grupo. Inicialmente foi chamado para ser assistente num contrato que
duraria cerca de três meses. “João simbolizava quase que o objetivo de se criar a Cia.
Ele refletia um potencial que a gente tinha mas, até então, tratávamos sem muito método
ou pertinência. João começou a significar a possibilidade de desenvolvermos o exercício
da linguagem como expressão pessoal” (idem).
Em pouco tempo as dinâmicas internas foram se ajustando num formato de
trabalho que integrava os fotógrafos em um compartilhamento maior dos projetos, a
ponto de perder o sentido a manutenção dos nomes individuais acima do grupo. “No
começo, éramos uma junção de diferentes pontos de vista, mas a nossa sinergia se
tornou tão grande que, atualmente, a gente se confunde sobre quem é o autor das fotos.
Tudo é decidido em conjunto, ficamos o dia todo juntos”, conta Rafael Jacinto (ELIAS,
2008). Essa prática de fotografarem juntos trouxe um “problema fundamental” para a
assinatura do trabalho, como nos explica Pio Figueiroa:
dividíamos qualquer demanda que surgia. Nessa época, a Cia de Foto
acontecia mesmo no momento do clique fotográfico. [...] Então
produzir fotos na Cia de Foto, sobre o regime que nascia ali, não
poderia promover [uma] forma convencional de assinatura. Uma foto
não deveria mais ser creditada a um trabalho individual. Veio então a
decisão consequente pelo crédito coletivo.

O regime ao qual Pio se refere é o do crédito autorial individual, que permite um


reconhecimento no mercado através de um nome e sobrenome associado à imagem. Ele
chega a afirmar que não guarda trabalhos significativos da época anterior ao coletivo.
Em dezembro de 2006 a Cia de Foto recebe Carol Lopes, que entra para suprir
uma necessidade do grupo de ter uma pessoa mais especializada no tratamento das
imagens. Alguém que ampliaria a pesquisa dentro do coletivo voltada para a pós-
produção e o tratamento, sendo formada e contribuindo para um método de captação e
fluxo das imagens já iniciado na Cia. “Carol demorou um ano para ter um bom nível
técnico, e mais dois para começar a somar com uma contribuição autoral. Nesse
momento ela virou sócia do grupo. Isso se deu, inclusive, para lhe garantir os direitos
patrimoniais do que estava sendo criado”, conta Pio, levantando um aspecto importante
quando se fala em autoria coletiva, uma vez que as leis que regem esse campo do

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direito39 recaem sobre a pessoa física, sem espaço para grupos formal ou informalmente
compostos.
Hoje a Cia de Foto é formada por um núcleo de criação fixo, composto por
Carol, João, Pio e Rafael, todos sócios, além de uma equipe de apoio composta por uma
coordenadora da área comercial, uma gerente e um assistente de fotografia. Mas o
coletivo mantém uma série de articulações externas, algumas de longa data, com outros
profissionais, agências ou agentes dos mercados onde atuam. Algumas destas parcerias
são “quase fixas” tamanha a quantidade de projetos em comum.
A Cia de Foto não se basta como coletivo. Nossas pesquisas sempre
envolvem mais gente. É bem difícil um projeto que seja realizado
somente pelos quatro integrantes. Por exemplo, toda pesquisa que
envolve música tem a parceria autoral de Guab, um amigo DJ. Outra
relação intensa que temos é com alguns pesquisadores como Ronaldo
Entler, Lívia Aquino, Claudia Linhares Sanz, Maurício Lissovsky,
com quem nos identificamos com as pesquisas. (FIGUEIROA, 2011)

O núcleo central é responsável por todas as decisões e direcionamentos do


coletivo. Fotografam juntos, discutem projetos, definem o posicionamento do grupo
frente aos vários mercados onde atuam. Embora os papéis se alternem, é possível
identificarmos algumas áreas de atuação mais específicas de cada integrante. São
aproveitamentos das aptidões particulares ou mesmo do interesse de cada um. Mas não
se trata de uma divisão rígida, são direcionamentos, apenas. Um integrante pode ter
funções completamente diferentes dependendo do projeto. Ou pode até não participar de
determinados trabalhos. Não existe um organograma fixo, linear, como na maioria dos
modelos organizacionais. Há uma constante participação com opiniões e críticas,
independente de sua função. Rafael destaca: “tudo isso é muito misturado. Somos
sócios. Todos têm direito de opinar em tudo, independente dessa obrigação mais direta
ou da porcentagem da sociedade”.
Como dito ao longo do texto, é muito importante destacar que a tabela a seguir
não tem o intuito de enquadrar os participantes em funções específicas, uma vez que
eles se revezam e muitas vezes participam de todas ao mesmo tempo, mas de pensarmos
como o coletivo pode potencializar as qualidades individuais de cada componente em
busca de um resultado comum.
39 No Brasil, o direito autoral é regido pela lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Embora seja
admitida a coautoria, ou seja, uma obra pode ser produto de mais de um autor, não é reconhecida a
autoria de grupos ou instituições. Apenas pessoa física pode ser autor protegido por tal legislação.

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Conteúdos ou áreas de maior contribuição ou interesse


Carol Lopes Tratamento de imagem, pós-produção, atuação nos
projetos expositivos e posicionamento no mercado de
arte.
João Kehl Fluxo da produção fotográfica, pesquisa na pós-edição,
direcionamento financeiro.
Pio Figueiroa Articulação com a pesquisa teórica e com o campo da
arte. Porção de instabilidade no coletivo. Juntamente
com Rafael, cuida do posicionamento mais geral do
grupo.
Rafael Jacinto Papel de estabilizar o grupo, responsável pelo
posicionamento e valorização frente ao mercado.
Domina a parte tecnológica e de edição de vídeo. Como
integrante fundador, cuida do posicionamento mais geral
do grupo.

A Cia de Foto atua nos mercados editorial, de publicidade e de arte. Os


trabalhos publicitários são responsáveis pela maior fatia do faturamento e,
consequentemente, são o que sustenta o grupo financeiramente. A coordenadora da área
comercial e sua assistente são responsáveis pelo atendimento a agências, captação e
administração dos trabalhos neste meio. A Cia também atende ao mercado de filmes
publicitários com direção de cena e direção de fotografia. Neste caso são representados
pela ParanoidBR, uma produtora que reúne 17 diretores no Brasil, responsável por toda
a parte comercial administrativa relacionados a esse nicho específico. Em publicidade,
já atendeu a clientes como Itaú, Nikon, Vivo, Nike e Brastemp. Para o meio editorial,
tem atendido com mais ênfase veículos estrangeiros, como Newsweek, Times, National
Geographic e Colors. No mercado de arte, são representados pela Galeria Vermelho e
possuem um histórico repleto de mostras nacionais e internacionais, além de terem uma
forte participação em eventos e debates sobre fotografia, demonstrando uma busca
constante por uma pesquisa teórica e conceitual sobre fotografia. Seus projetos visam,
em muitos casos, trazer discussões sobre o próprio ato fotográfico ou questionamentos
acerca do papel da imagem no mundo contemporâneo. “Dentro da Cia, temos uma
cultura de tratar a Cia como nosso principal cliente, ou seja, tudo o que produzimos,

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produzimos primeiro pra gente. Todo resultado é fruto de uma negociação e só vai pro
mundo depois de uma certa "aprovação interna" (KEHL, 2011).
Um mesmo trabalho pode transitar entre territórios nem sempre amigáveis da
comunicação e arte, saindo de um projeto pessoal, para ilustrar uma matéria jornalística,
compor um anúncio publicitário e posteriormente ser vendido numa galeria de arte.
Como podemos ler no post intitulado “Transitando entre mercados”, publicado no blog
da Cia em abril de 2011 40: “Nunca houve na gente a possibilidade de separar a relação
de uma produção comercial de uma autoral. Aliás, a hora em que faltou dinheiro muita
coisa deu errado, interferindo em nosso humor e em nossa capacidade criativa. O que
acontece hoje em dia é que lidamos com diferentes meios, e todos eles são mercados!”.
Ao mesmo tempo que a Cia tem participado de diversos eventos ao redor do mundo,
tem atuado no território da web, produzindo conteúdo nos seus espaços próprios (site,
blog, Flickr etc) e colaborando com outros ambientes, levantando questões, criticando
ou dividindo opiniões. Como se “devolvessem” essa característica internalizada de
discussão para outros territórios.
Isso que estamos chamando de “devolução”, como um caminho de volta,
significa a aplicação de um princípio, que identificamos como pertencente ao cenário de
convergência: a participação ativa dos vários atores, a discussão, a via de mão dupla. Os
coletivos, da forma como estamos tratando aqui, surgem envoltos num ambiente em que
perde-se o sentido pensar numa comunicação massificada, que segue apenas um
sentido, o do um-todos. É uma característica não apenas dos coletivos, mas de toda a
sociedade permeada pela cultura de convergência, essa lógica da colaboração, da
interatividade, da contribuição e apropriação em mão dupla. Um fluxo em que a divisão
emissor/receptor não é tão clara como já foi um dia. A Cia existe como um rizoma,
resultado mesmo da ligação de vários pontos formados não apenas por pessoas, mas
também por ideias, referências etc. E é também um ponto que se liga a muitos outros,
externalizando seu modo de operação nas ligações que faz através das colaborações com
blogs, debates, em trabalhos colaborativos e eventos.
Um exemplo disso foi o trabalho São Paulo de Muitos. No aniversário de 456
anos da cidade de São Paulo, em 2010, a editora da Revista da Folha, do jornal Folha de
S.Paulo, convidou a Cia de Foto para ocupar duas páginas em homenagem à cidade
40 Ver http://ciadefoto.com.br/blog/?p=4232

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aniversariante. Em vez de pesquisar material de arquivo ou mesmo de produzir um


ensaio especial, eles lançaram o convite para que fotógrafos de qualquer lugar
participassem desse espaço enviando fotografias sobre São Paulo. Em cinco dias, prazo
para o fechamento da revista, receberam mais de 200 imagens. Todas elas foram
publicadas não apenas na versão impressa, mas também na forma de vídeo disponível
no site do jornal41. O DJ Guab, parceiro em muitos dos projetos do coletivo, compôs
uma trilha especialmente para o vídeo. Ronaldo Entler, ao comentar essa ação, torna
clara a ligação direta entre os coletivos e os princípios relacionados à cultura de
convergência. “O coletivo já é em si uma rede, espécie de microcosmo análogo ao
cosmo da internet, que por sua vez é análogo ao macrocosmo que chamamos de cultura”
(ENTLER, 2010).

Ilustração 3: reprodução da página com o projeto São Paulo de Muitos – Cia de Foto

O DJ Guab também esteve presente em outro projeto da Cia que merece ser
citado: Carnaval42. Desta vez não seria o ambiente editorial, de uma revista, que

41 A Cia de Foto criou um site específico para abrigar o SP de Muitos. Inclui todas as imagens,
comentários e o vídeo publicado. Acesse: http://ciadefoto.com.br/spmuitos.
42 http://www.ciadefoto.com/#1696669/CARNAVAL

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abrigaria a obra, mas sim o de uma galeria de arte. A captação das imagens foi feita na
Bahia, em pleno carnaval, durante os desfiles de trios elétricos, símbolo dessa festa
baiana, que arrasta multidões, massivamente fotografado e televisionado ano após ano.
Mas, limitar este trabalho ao momento da captação seria reforçar uma visão da
fotografia à qual todo o discurso e articulação dos coletivos procuram se contrapor. A
obra passa realmente a existir nas intervenções e construções a partir da captação. O
conjunto da obra é composto por imagens pinçadas dessa multidão extasiada, que,
descontextualizadas pelo recorte e tratamento de imagem – dessaturadas, contrastadas,
densas – não nos remetem de forma alguma ao carnaval baiano como estamos
acostumados a ver.

Ilustração 4: Carnaval - Cia de Foto

São fotografias escuras, sem o colorido pasteurizado – e, em geral, de tons


cítricos – dos blocos e as expressões nos rostos muitas vezes chegam mais perto de um

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sofrimento do que da “irreverência e alegria” 43 tão disseminada pelos veículos de


comunicação. A trilha que acompanha as imagens, envolvendo o ambiente da galeria, é
uma tradução sonora da informação binária das fotografias. Não se trata de uma
interpretação ou inspiração, mas de uma pesquisa diretamente no código fonte das
imagens, se assim podemos dizer. Guab e Cia foram buscar nessa base digital comum às
linguagens de cada um deles – música e fotografia, respectivamente – a matéria
(imaterial) de trabalho. Mexem com questões relativas ao processo de digitalização,
conforme visto no capítulo anterior, na sua essência. Tocam no ponto de que tudo isso
que chamamos de convergência não se trata apenas de transpor meios – levar do
impresso para o eletrônico – ou juntar funcionalidades num mesmo dispositivo – um
smartphone que faz tudo. O pós-fotográfico modifica a nossa maneira de lidar com o
fotográfico.
Os coletivos fotográficos contemporâneos atuam a partir de um paradigma pós-
fotográfico (SANTAELLA, 2005), são hiperfotográficos (RITCHIN, 2010), seguem
uma lógica hipertextual, não linear, com múltiplas possibilidades combinatórias na
construção de discursos. No “São Paulo de muitos” esses links se formaram através da
Internet – que possibilitou a rápida disseminação e consequente participação de tantos
colaboradores em tão pouco tempo. Em “Carnaval”, temos o código digital como
ingrediente primário para a elaboração da obra. São muitas as maneiras como o cenário
atual influencia – num fluxo de apropriação mútua – a ação dos coletivos, não apenas no
viés tecnológico mais direto e pragmático, mas, principalmente, conceitual. Eles “são”
esse universo, estão impregnados e atuam diretamente nas reconfigurações da
sociedade. As experimentações e reflexões passam também pelas suas próprias relações
pessoais, fotográficas, afetivas.

3.5 Caixa de sapato


O projeto que, a nosso ver, traz mais articulações com as características aqui
analisadas é o “Caixa de sapato”, cujo nome faz referência a algo comum nas famílias e
grupos sociais, que é aquele amontoado de fotos da família, dos amigos, de pessoas
próximas, muitas vezes guardadas numa caixa – de sapato ou não – embaixo da cama,
na prateleira mais alta do armário, num cantinho da cômoda. São uma espécie de
43 Expressão pegajosa presente na quase totalidade das narrações das TVs e rádios durante o carnaval.

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inventário da existência dessas afetividades, produzido por pessoas diferentes, na


maioria das vezes sem nenhuma referência ao autor. Ali estão pessoas, situações,
lugares e objetos retratados num tempo incerto, anexados à memória também num
momento cujo registro temporal não segue a ordem cronológica dos acontecimentos
reais. Algumas famílias organizam suas fotografias contendo informações mais
objetivas, outras simplesmente acumulam imagens que formam ligações nem sempre
reais, embaçadas pelas lembranças e pelos esquecimentos. Numa caixa de sapato, novas
narrativas se formam, novas ligações surgem e outras desaparecem.

Ilustração 5:
Caixa de Sapato - Cia de Foto

No projeto da Cia de Foto, o que vemos é um imenso imbricamento de


sentimentos e vivências, num relato cotidiano dos integrantes e do universo circundante
do coletivo. Um universo de afetos e de coletividade fotografado também por uma
coletividade. Estão lá os fotógrafos, a família, os amigos, a Cia de Foto, a rua, as
viagens, as confraternizações, as alegrias, as tristezas, perdas e nascimentos. Algumas
pessoas podem ser reconhecidas em várias das fotografias, em momentos diferentes,
embora muitas outras não sejam reconhecíveis por conta de desfoque, borrados, de
estarem em áreas escuras ou escondidas de alguma forma.
Neste trabalho, não é o viés estético que dá amarração ao conjunto. O Caixa de
sapato é alinhavado pela abordagem temática. As situações retratadas vão de um
prosaico passeio de final de semana na vizinhança a reuniões e celebrações entre
amigos, passando por relações sexuais ou retratos mais posados. Várias são as cenas em
banheiros, cozinhas, corredores. Estão lá o andar, o dormir, o acordar, o comer, o tomar

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banho, o dançar, o brincar e até o urinar do mundo da Cia de Foto. São os fazeres
cotidianos, aqueles sobre os quais não se fala muito, mas que passaram a ser tema da
produção cotidiana de fotografias ainda com mais intensidade com o advento da
digitalização44 (ARAUJO; CRUZ, 2011).

Ilustração 6: Caixa de Sapato


Cia de Foto

Podemos comprar uma cópia impressa com fotografias do Caixa de Sapato,


assistir a um vídeo ou mesmo reconhecer algumas das imagens em anúncios
publicitários ou ilustrando matérias em revistas. Mas é o Flickr 45 o ambiente “original”
deste projeto que exercita amplamente a quebra de fronteiras – não apenas entre os
âmbitos público e privado, mas também entre áreas que vão da documentação à
publicidade e mercado de arte. Observando o material no Flickr, não se percebe uma
regra em relação à regularidade de publicação de novas imagens. Pode passar mais ou
44 A fotografia digital não é responsável pelo advento do registro íntimo ou privado. A temática cotidiana
pode ser percebida nas produções fotográficas desde sempre e vários foram os avanços tecnológicos
responsáveis por uma maior disseminação dessa prática. Sem estender muito, podemos citar o
lançamento das câmeras Kodak no final do século XIX, entre muitos outros exemplos.
45 Já definimos o Flickr no capítulo 2. Para conhecer o Flickr do Caixa de Sapato, acesse:
http://www.flickr.com/photos/ciadefoto.

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menos tempo de intervalo entre uma fotografia e outra, mas o álbum continua sendo
abastecido constantemente. As fotografias não recebem nenhum tipo de legenda ou
identificação sobre as pessoas e situações retratadas, apenas uma numeração crescente.
Em novembro de 2011 já acumulava mais de 400 fotografias. A primeira postagem foi
de maio de 2008, embora algumas tenham sido produzidas anteriormente.
Quando assistimos ao vídeo46 somos levados por uma narrativa – sequência,
tempo, música – que não é a mesma do Flickr. Neste último, podemos ver da mais
recente até as mais antigas (em data de publicação), mas também podemos seguir
navegações aleatórias ou ligadas por tags em comum. Quando temos contato com séries
de imagens, ao invés de uma imagem única, novos significados são construídos através
da associação desses vários registros. Mesmo que eles não tenham ligação entre si. Mas,
sem que percebamos, somos levados a conectar situações, pessoas e construímos
histórias que, embora tenham um fundo biográfico, real, registro de existências, podem
tomar traços ficcionais nesses novos enredos.
Assim como acontece nos arquivos familiares, não importam tanto os autores e
muitas informações mais factuais se perdem ao longo do tempo, permanecendo os laços
afetivos e as significações. Para Jaguaribe (2006, p. 112), “através de diários, cartas,
fotografias, vídeos e souvenires, sedimentamos as peças que compõem um enredo maior
cujo final não podemos antever”. O trabalho da Cia traz uma experiência que passa pela
própria externalização do ideário do coletivo fotográfico, em que as identidades
individuais são diluídas em prol de um resultado plural, em que a afetividade é um
importante ingrediente dessa aglutinação, em que a produção de conteúdo não se dá
num espaço – geográfico e temporal – estanque. O coletivo vem quebrar algumas
fronteiras do fazer fotográfico e essas questões estão presentes no Caixa de Sapato. Vida
e trabalho estão juntos. Família, amizade e ambiente profissional se misturam.
Permeados por objetivos em comum e laços afetivos. “O ponto claro de nossa pesquisa
é a ausência de algo decisivo. É a formação de um espaço por uma duração e, o que
queremos nesse trabalho, é confirmarmos uma construção de existência” (CIA DE
FOTO, 2009).

46 Vídeo produzido em parceria com o editor Alex Carvalho, com trilha sonora de Guab, para o MAM-
SP, em outubro de 2008. Para ver o vídeo: http://www.youtube.com/watch?v=-dYnKUyoyg8

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Um outro aspecto interessante como proposição do Caixa de Sapato diz


respeito à autoria e formação de redes. Existe, em sua essência, a presença de uma
criação coletiva por parte dos integrantes do grupo. Um projeto que já parte do princípio
de colaboração na sua concepção, mas que estimula um desdobrar deste fazer coletivo
através de apropriações por outros artistas e fotógrafos. A Cia de Foto o deixou aberto
para que qualquer pessoa possa usar as imagens deste ensaio em outros trabalhos, num
movimento que remete às construções simbólicas que são feitas por cada pessoa ao ver
um álbum de família. Uma artista baseada em Paris, Elisa V. Randow, produziu
refotografias – fotografou algumas das imagens do Caixa de Sapato através da tela do
computador, dando novos cortes, imprimindo novas texturas, causando ressignificações.
Ações como essa, mesmo não sendo uma invenção recente, são práticas comuns tanto
na arte contemporânea – em que se fala da diluição do autor –, quanto na cultura de
convergência, que é fortemente influenciada pelas possibilidades de interação trazidas
pelas novas tecnologias.
Interessante perceber que esse projeto também tem uma importância de
pesquisa interna. Além de tensionar angústias inerentes à relação ali estabelecida, é
também espaço para experiências estéticas, como afirma Carol Lopes: “O 'Caixa de
Sapato' é um veiculo que usamos muito para experimentações... testar uma luz, um
grão, um enquadramento, um tratamento diferente”.
O Caixa de Sapato pode ser entendido como um laboratório, um ambiente onde
se dá a experiência do fazer coletivo, permeado pelo afeto, em que o cotidiano é o
principal ingrediente para a construção de significados, através de camadas de
apropriações. Há aí uma produção de saber, que se dá em rede. Há uma escrita, que
acontece não apenas pelos fotógrafos produtores das imagens, mas pelos que estão
nelas, nos seus fazeres mais corriqueiros. O interesse que esse trabalho desperta no
público não está na celebridade dos protagonistas – são pessoas comuns – nem no
extraordinário dos acontecimentos – são eventos comuns. Está numa potência de vida.

3.6 Eleições
Um outro trabalho que consideramos importante para dar corpo às questões
trazidas pelo coletivo e abordadas aqui é o “Eleições”, desenvolvido para o caderno

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especial do jornal Folha de S.Paulo sobre a campanha eleitoral para a prefeitura paulista
em 2008. O jornal convidou diversos fotógrafos a desenvolverem ensaios enfocando os
três principais candidatos daquele pleito: Geraldo Alckmin, Marta Suplicy e Gilberto
Kassab. O trabalho foi publicado na forma de séries de três fotografias sobre cada
candidato, captadas durante a campanha em situações comuns, como caminhadas ou
visitas a mercados públicos. A maneira escolhida pela Cia para desenvolvimento do
pequeno ensaio, no entanto, levantou algumas questões. Os três fotógrafos
acompanhavam o candidato simultaneamente, captando imagens de posicionamentos
distintos. Os fotógrafos sincronizaram suas ações e montaram o ensaio sempre
mostrando um momento do candidato por três pontos de vista. É possível vermos nessas
imagens até mesmo o posicionamento dos demais fotógrafos – não apenas do coletivo,
mas também dos outros veículos de imprensa presentes no evento.

Ilustração 7: fac-símile da capa do caderno especial


da Folha de S.Paulo, com os ensaios produzidos pela
Cia de Foto.

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A ação envolvia uma complexidade muito maior nas camadas conceituais e de


reflexão do que em termos de tecnologia e infraestrutura, embora o jornal não tenha
perdido a oportunidade de destacar na legenda das imagens que os fotógrafos haviam
utilizado um sistema de rádio para sincronizar os disparos 47. Ao incluir a atuação dos
próprios fotógrafos e cinegrafistas de imprensa no campo da imagem, ficou aparente a
prática recorrente neste tipo de cobertura em que, através de angulação e
enquadramento, as imagens nos passam uma informação que não condiz com a real
situação.
No ensaio enfocando a candidata Marta Suplicy, era possível ver a cobertura
mais usual, produzida pelos repórteres fotográficos presentes ao evento: a candidata
rodeada de crianças e eleitores, com faixas, cartazes e bandeiras, numa caminhada. Em
outra foto, no entanto, vemos que essa imagem é uma farsa uma vez que essa
“multidão” não passava de alguns poucos cabos eleitorais. É, num só instante, uma
crítica aos políticos, aos jornais e aos fotógrafos, ao desbancar uma prática corrente da
imprensa, quando o resultado estético e pré-formatado se sobrepõe à importância
jornalística e ao conteúdo informativo. Este ensaio é citado por Alejandro Castellote,
curador e pesquisador espanhol, em sua aula de encerramento do Encontro de Coletivos
Fotográficos Ibero-Americanos, como uma das imagens mais inteligentes como
proposta de uma nova produção fotográfica (CASTELLOTE, 2008).

Ilustração 8: detalhe do ensaio com a candidata Marta Suplicy. Aqui também


podemos observar o crédito coletivo.

47 Esse fato é curioso pois remonta à necessidade constante de relacionamentos entre a tecnologia e a
importância da ação.

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Também podemos observar nesta publicação uma outra característica da Cia de


Foto, já citada anteriormente porém ainda envolta em muita polêmica no meio
fotojornalístico: a assinatura coletiva em todas as obras. Independentemente de quem
esteja participando de um projeto, eles assinam sempre como coletivo, sem referência a
nenhum nome de nenhum fotógrafo. “Ao negar a autoria individual da imagem, o grupo
traz para seu processo de criação não apenas negociações referentes às questões técnicas
e estéticas mas também posturas políticas e sociais. O grupo faz desse procedimento um
espelho das relações sociais” (BRANDÃO, s/d). Interessante observar que isso acontece
até mesmo quando um único integrante produz um trabalho em condições “isoladas”,
fora do país. No entendimento mais tradicional da autoria fotográfica, num caso como
esse, não haveria dúvida em afirmar que o autor seria aquele fotógrafo em viagem. No
entendimento da Cia, porém, mesmo não havendo uma atuação mais direta ao longo do
desenvolvimento de um projeto, as discussões e críticas estão presentes, compõem a
base sobre a qual é construída a obra e não haveria como dissociar o resultado dessa
participação colaborativa. É mais “honesto”, nas palavras de Rafael: “pensamos muito
antes, realizamos as ideias progressivamente e qualquer imagem que seja produzida por
nós é resultado disso”. Uma forma diferente de lidar com a criação, na contracorrente de
toda uma tradição fotográfica que concentra no momento de acionamento do obturador
da câmera o ato constituidor de uma obra.
A assinatura compartilhada também nos remete a um outro plano, que é o da
criação de uma marca, de um selo. No início do coletivo, era comum que os clientes se
dirigissem diretamente a um dos fotógrafos, cujo trabalho já conheciam, muitas vezes
querendo que a encomenda fosse atendida especificamente por aquele profissional.
“Para driblar essas exigências [...] a Cia foi impondo a assinatura coletiva, uma marca,
um selo de garantia que atestava que o trabalho seria realizado da melhor maneira
possível, independente de quem fotografasse” (KEHL, 2011). Quando nos debruçamos
sobre a questão da autoria, percebemos que ela também se equipara à formação de uma
marca, à construção de uma entidade: o autor.
Se no meio fotojornalístico é possível perceber um certo desencontro de
opiniões envolvendo o crédito coletivo, podemos arrolar outros fatos da recente história
da Cia de Foto que ilustram a necessidade de adaptação dos meios legitimadores para o

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fazer coletivo. A Cia já teve um ensaio premiado no prestigiado concurso World Press
Photo48, mas, se algum internauta for ao site da fundação homônima procurar tal
trabalho, não bastará colocar o nome do coletivo no sistema de busca. Se fizer isso, nada
encontrará. É que, em 2006, para participar do prêmio, eles precisaram fazer sua
inscrição em nome de apenas um dos integrantes, no caso João Kehl.
Numa outra instância, uma coleção de fotografia vinculada a um museu, foi
preciso que fossem revistas regras para que o coletivo paulista passasse a fazer parte do
acervo. Estamos nos referindo a uma das principais coleções de fotografia do Brasil, a
Coleção Pirelli-Masp, pertencente a um museu de arte, ambiente – o das artes –
geralmente citado como onde a discussão sobre criação coletiva já estaria ultrapassada,
não faria mais sentido. Pois a Cia de Foto foi convidada a integrar a importante coleção
com a condição de explicitarem a autoria individual de cada fotografia que passaria a
fazer parte do acervo. O grupo argumentou que a criação era coletiva, que não havia
autores individuais. Esperaram alguns anos para fazer parte da coleção, só depois de
uma revisão das diretrizes que definiam as condições de ingresso de novas obras, que
passaram a considerar a possibilidade de criação compartilhada.
A Cia teve seu momento quando “acontecia” de uma maneira mais ligada ao
clique. Quando era na captação que eles concentravam sua criação. E ali
experimentaram compartilhar o fotografar, sair para a rua e fazer coberturas juntos.
Depois partiram para pesquisas no tratamento e pós-produção. Ampliaram a experiência
para a fase posterior à captação. Num ato contínuo – ou em paralelo – intensificaram a
pesquisa teórica e a reflexão, algo que permeia todo o processo, do planejamento à
apresentação.
Observando a atuação do coletivo nos encontros de fotografia, debates,
publicações e blogs, ou simplesmente ouvindo seus integrantes, é possível perceber
como a pesquisa teórica e conceitual tem tido cada vez mais importância na dinâmica da
Cia de Foto. Muitas vezes chamando para uma discussão em torno da assinatura
coletiva ou sobre aspectos mais objetivos do processo de produção – até mesmo

48 Premiação concedida pela World Press Photo Foudation desde 1955, é um dos principais prêmios do
fotojornalismo mundial, concedido anualmente, dividido em diversas categorias. Atua, ao mesmo
tempo, no reconhecimento e no agendamento de coberturas relevantes, recebendo, numa única edição,
mais de 100 mil fotografias, inscritas por cerca 6 mil fotógrafos de 125 países (SILVA JUNIOR,
2011b).

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focando a questão do tratamento de imagem, de técnicas utilizadas – o coletivo


aproveitou essas oportunidades para discutir questões da fotografia que passavam por
dúvidas ou crises internas. Se aceitarmos a ideia de que se operou um desenvolvimento
do formato “coletivo”, que não foi algo premeditado ou simplesmente a reprodução de
uma fórmula externa, mas uma influência mútua e um envolvimento com as
possibilidades que esse compartilhar apresentava, percebemos um movimento de
intensificação das características já enunciadas. A reflexão acompanhou essa trajetória.
Em muitos momentos eles foram colocados contra a parede, precisando defender suas
escolhas perante públicos nem sempre comedidos. João Kehl afirma que, por conta da
forte crítica recebida pelo coletivo, houve uma necessidade de “olhar com mais atenção
e cuidado” para o que estavam fazendo e os “obrigou a construir argumentos fortes para
defender [essa] postura” (2011).
Numa espécie de ciclo virtuoso, quanto mais participavam de debates, mais
chances tinham de testar e exercitar suas referências, suas reflexões acerca da fotografia
e do atuar coletivamente na fotografia. Segundo Pio, “as principais fontes de informação
são as pesquisas em universidades, filmes e trabalhos de arte contemporânea. É muito
difícil acessar trabalhos nas universidades. Exige uma busca diária”. Carol
complementa:
Muitas vezes motivados por algum texto as ideias acabam surgindo.
Vemos muita fotografia, filmes, revistas e exposições. Temos uma
ampla biblioteca com livros de fotógrafos e teóricos que também é um
lugar que sempre recorremos. Normalmente o processo se dá por
alguma inquietação de alguém do grupo. Surgem as primeiras
imagens, começamos a pensar, lemos, discutimos. Trazemos textos,
escrevemos. O nosso ambiente de trabalho também colabora muito
para essa interação de ideias. Trabalhamos todos juntos numa mesma
sala super ampla. Com isso a troca de ideias acaba sendo constante
(2011).

Essa opinião também é compartilhada por João Kehl, que ilustra o sentimento
de um ambiente propício à criação da seguinte forma:
O ambiente de trabalho da Cia de Foto é muito dinâmico. Isso quer
dizer que a todo instante, existem ideias e assuntos sendo discutidos.
Costumamos falar que as ideias na Cia estão sempre vivas, meio que
suspensas numa nuvem e são colocadas em prática quando se
encaixam dentro de algum tema ou trabalho que começamos a
desenvolver. Muitas vezes, uma ideia aparece meio sem lugar ou
tempo definido e fica pairando nessa nuvem e só vai encontrar seu

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lugar quando colocada em acordo ou oposição com uma nova ideia


(2011).

Já havia lá antes do início formal da Cia vontades e afinidades “intuídas” por


seus futuros fundadores. Tais intuições encontraram reverberações através das ligações
com outros pontos que formariam esse rizoma chamado coletivo. Na medida em que as
ideias reverberavam, encontravam eco noutros atores, foram sendo consolidadas e
ampliadas. Um processo que se constrói no seu próprio desenvolvimento, tomando
partido das possibilidades de articulações, mas que precisam de um elemento ligante,
uma espécie de cola ou ligamento, composto por ingredientes que vão além do objetivo
formal, mas que passam pela subjetividade de uma relação de afetividade. Daí que essas
construções não sejam feitas de uma hora para outra, mas seguindo o tempo mesmo de
decantação necessário ao surgimento de um relacionamento mais bem afinado. Muitos
colaboradores, funcionários e parceiros já passaram pela Cia. Alguns não fazem mais
parte da equipe, mas continuam como colaboradores ou simplesmente fãs do grupo. O
núcleo central lentamente ganha corpo e maturidade. O entendimento mesmo de ser
composto por um núcleo central já nos parece ser fruto de um amadurecimento.

3.7 Colectivo pero no siempre


Vejamos agora uma outra experiência, desta vez sediada na Espanha: o
Pandora. Eles se definem como um coletivo de fotógrafos documentaristas que, em
2007, resolveram unir seus olhares para mostrar aspectos distintos do mundo
contemporâneo. Combinam trabalhos individuais com coletivos, tanto em fotografia
quanto em vídeo49. É formado por cinco fotógrafos: Sergi Cámara, Tatiana Donoso,
Héctor Mediavilla, Fernando Moleres e Alfonso Moral. A sua forma de organização
difere do exemplo anterior, principalmente por um aspecto. Vejamos, primeiro, as
semelhanças. Também surgiram com a aproximação de dois fotógrafos que começaram
– em 2005 – a conversar sobre a necessidade de união para a produção de projetos em
comum. Eles eram Sergi Cámara e Héctor Mediavilla. Dois anos depois, Pandora é
fundado com mais dois fotógrafos – Fernando e Alfonso. Tatiana entra para o grupo
posteriormente e atualmente se dedica a questões mais relacionadas à curadoria.

49 Segundo o site do Pandora: http://www.pandorafoto.com/es/menu/esquerre/Pandora.

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Não existe um organograma fechado, estático: estão sempre repensando a


organização interna. Héctor Mediavilla cuida da gestão financeira, mas as demais
funções são divididas de acordo com a necessidade e com a disponibilidade de cada
integrante no momento. Da mesma forma, as demandas de cada trabalho vão sendo
definidas de acordo com as circunstâncias pessoais e socioeconômicas. Agora chegamos
num diferencial importante de ser destacado: os projetos coletivos acontecem apenas no
que eles chamam de âmbito cultural, ou seja, exposições, festivais, oficinas. No dia a
dia, cada fotógrafo desenvolve seus trabalhos individuais, atende ao mercado, segue
uma “carreira solo”. Muitas vezes assinam coletivamente, mas apenas nos projetos que
foram desenvolvidos pelo Pandora, aqueles mais ligados a exposições e outras
demandas não comerciais50.
Interessante perceber que houve um desenvolvimento mesmo no nome da
atividade desse grupo. Mediavilla nos explica que “os nomes sempre se confundem.
Inicialmente pensamos que era mais apropriado chamarmos agência. Agora nos
chamamos coletivo, pois pensamos que está mais de acordo com nossa atividade”
(2011).
Assim como no aspecto organizacional, o processo criativo também é
compartilhado apenas em alguns projetos, em geral os assinados coletivamente. Os
membros seguem suas referências pessoais para os projetos individuais. Seja por uma
demanda externa, como um convite para uma exposição ou para o desenvolvimento de
um audiovisual, seja atendendo a instigações que surgem no grupo, eles se reúnem e
discutem o desenvolvimento de um projeto, onde há debate e construção conjunta desde
o planejamento até a exibição. Eles – tanto o Pandora quanto cada integrante – também
possuem em seus históricos alguns trabalhos desenvolvidos com outros coletivos ou
profissionais.
Héctor Mediavilla, por exemplo, também participa de um projeto de
documentação audiovisual chamado “Penélopes Mexicanas”. Neste caso, se associou à
escritora mexicana Yesenia García para abordar uma face pouco tratada quando se fala

50 Aqui usamos uma distinção presente na própria apresentação do coletivo: “trabalhos de cunho
cultural”. Entendemos que exposições também estão inseridos num mercado e, portanto, seguem
preceitos comerciais, mas há uma distinção no mercado que considera como comercial as encomendas
do mercado editorial e publicitário, porém artístico ou cultural as demandas ligadas a exposições,
cursos e livros.

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em imigração: o lado de quem espera aquele que atravessou a fronteira. No site do


projeto51, podemos encontrar um vasto material audiovisual composto por entrevistas,
ensaios e histórias de vida, material que se confunde na forma e na abordagem a muitos
outros projetos ancorados no Pandora. Assim como o mesmo Mediavilla também faz
parte de uma agência, a Picturetank, que funciona nos moldes de uma produtora-banco
de imagens, representando dezenas de autores. Curioso notar que a Picturetank
representa diversos coletivos, mas não representa o Pandora – como organização – mas
é possível perceber o crédito do Pandora junto ao nome de Mediavilla nos seus
trabalhos. Não há nenhuma contradição nisso, uma vez que o coletivo existe apenas nos
trabalhos “autorais”.

Ilustração 9: reprodução do site do Pandora, onde podemos observar


diversos trabalhos. Nem todos são assinados coletivamente.

Tal diferenciação fica clara quando observamos o currículo de cada integrante,


acompanhamos o desdobramento de alguns trabalhos editoriais ou mesmo observamos
como o grupo lida com determinadas situações. O site do Pandora possui um link para a
venda de fotos. Na página específica, temos instruções para o pedido de cópias
ampliadas em tamanho 20x30cm. Caso o interesse seja por cópias com dimensões
51 http://www.penelopesmexicanas.org.

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Coletivo fotográfico contemporâneo e a prática colaborativa na pós-fotografia

maiores, o contato deve ser feito diretamente com os autores. Eles afirmam que os
rendimentos dos projetos coletivos são revertidos para o Pandora. No caso da venda de
cópias, há um padrão para que determinado volume de vendas aconteça pelo grupo (as
ampliações no tamanho citado) enquanto as que fogem desse padrão seguem num
relacionamento individualizado.
O tratamento diferente entre o que eles chamam de ação cultural e trabalhos
comerciais também fica patente quando observamos o portfólio do coletivo. Todos os
trabalhos apresentados no espaço dedicado a exposições são creditados unicamente
como Pandora, enquanto que, quando falamos de reportagens, a grande maioria
aparecem com o crédito dos fotógrafos. Num total de 46 trabalhos de reportagem
apresentados, apenas quatro possuem o crédito do Pandora, sendo dois deles produzidos
em colaboração com outros dois coletivos (Cia de Foto e Mondaphoto, já citados).

Ilustração 10: Fotografias do ensaio E-Waste, do Pandora.

Assim como nos outros níveis de relacionamento da contemporaneidade, temos


uma flexibilidade maior das relações e é interessante perceber que o Pandora se ajustou
ao modelo coletivo naquilo – ou naquele momento – em que ele pode agregar ou
aproveitar potencialidades, sem que haja um endurecimento da organização. Um
fotógrafo fazer parte de vários grupos, ser representado por diversas agências ou
galerias diferentes, misturar trabalhos ou alternar parceiros, isso tudo não é novidade.
Não é disso que estamos falando. Mas sim como o modelo coletivo pode ser acionado
também como apenas um dos nós dessa grande rede de articulação que cada indivíduo
tece nos mais variados âmbitos.

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Coletivo fotográfico contemporâneo e a prática colaborativa na pós-fotografia

O Pandora funciona segundo os preceitos aqui estudados em relacionamento


aos coletivos fotográficos contemporâneos, mas seus integrantes não seguem apenas
essas diretrizes. É um coletivo integral, completo, porém participa parcialmente da vida
de seus fotógrafos. Condição que reforça a ideia de uma formação que existe em si
mesma, se forma no ato em si e não por algum condicionamento prévio. Diferente, bom
frisar, de um projeto pontual, uma ação de um grupo criado em torno de uma
experiência específica, que se desfaz depois de sua execução ou existência. Aqui
estamos falando de um agrupamento perene, regular, formado por diversos
profissionais, assim como na Cia de Foto já analisada, mas que se configura como mais
um nó na grande rede formada por tais pessoas.
Um estudo de caso não se presta a generalizações estatísticas. Não devemos
buscar repetições, frequências apenas. Mas é uma estratégia indicada para se investigar
“um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto da vida real, especialmente
quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão claramente definidos” (YIN,
2005, p.32). Nosso foco de interesse está nas evidências qualitativas, na forma como os
fenômenos se desenvolvem. Embora seja possível observar diversos pontos de contato
com o coletivo Cia de Foto, a abordagem do Pandora não tem como objetivo reforçar,
referenciar ou confirmar aspectos analisados no grupo brasileiro. A importância de sua
inclusão no estudo se dá por um ponto que dialoga diretamente com algumas das
características observadas no modelo que ora delimitamos, em articulação com
preceitos que passam por uma flexibilização das estruturas de organização e produção.
Aqui nós podemos perceber um tensionamento de tempo, de permanência. O Pandora é
um coletivo contemporâneo: traz vários daqueles aspectos analisados. Mas ele só existe
quando tais fatores se congregam. Quando os pontos se ligam: aí temos o coletivo.

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Considerações finais

Olhar se tornava um divertimento, um espetáculo;


não o olhar uma coisa ou outra: o olhar.
Italo Calvino

Formar um coletivo fotográfico contemporâneo, na maneira como estamos


usando o termo aqui, é mais do que agrupar um certo número de fotógrafos em torno de
um objetivo ou de uma estrutura em comum. Em geral esse é o primeiro passo, mas não
é suficiente. Os agrupamentos em que as individualidades são mantidas de maneira
estanque, sem uma maior porosidade entre os sujeitos criadores, isso não combina com
o modelo aqui trabalhado. Também não é garantia de que terão bons resultados
fotográficos. O resultado da conta pode ser diferente da soma das potencialidades
individuais. Para mais ou para menos. Não há uma fórmula. O conjunto se dá no
momento mesmo de sua junção. As linhas se constroem pelas ligações que formam. O
que o caracteriza está nessas ligações, na forma como elas acontecem e não num
resultado como obra.
Não podemos defender alguma conclusão que aponte na direção de uma
especificidade formal na obra realizada por um coletivo. A distinção não está na
fotografia-imagem-impressão-objeto, porém na fotografia-linguagem-aparelho52.
Embora possamos identificar facilmente alguns trabalhos de um coletivo pelo resultado
estético, por alguma paleta de cor característica do grupo, não poderíamos afirmar que
um fotógrafo individual não pudesse alcançar aquele mesmo resultado visual. Mas
determinadas tensões provocadas pelo fazer coletivo, abordadas aqui nesta pesquisa, são
resultado direto de sua atuação.

52 Aparelho aqui pensado conforme Flusser, a “engrenagem” do fotográfico e não num sentido mais
restrito, da câmera, da máquina.

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Coletivo fotográfico contemporâneo e a prática colaborativa na pós-fotografia

O coletivo se diferencia de modelos como o da agência fotográfica ou o do


fotoclube. Essas experiências precedentes contêm elementos de compartilhamento ou de
colaboração em seus processos, em sua formação. Mas são limitados a determinadas
etapas ou funções. Ora temos um compartilhamento de estrutura física ou comercial –
como nas agências –, ora isso acontece no campo da troca de conhecimento e
experiências – como nos fotoclubes. Um fotógrafo autônomo também pode se valer de
outros atores na sua cadeia produtiva, sejam fornecedores, sejam funcionários ou
prestadores de serviço. Mas tais funções são complementares ou acessórias, não
participam – ou não são reconhecidas – como determinantes no processo.
Já nos coletivos, as individualidades são diluídas, há um apagamento em
função da criação de um ente formado pelo todo. Mas não um apagamento imposto. Na
verdade uma perda do sentido de se falar em individualidades. O entrosamento
naturalmente age nessa mudança. O coletivo é rizomático. As ligações acontecem para
dentro e para fora. A tentativa de desenhar um diagrama pode não ser a mais frutífera:
precisaríamos de estruturas com mais dimensões do que o papel nos permite, incluindo
dimensões temporais e subjetivas, possibilidades de novos desenhos ou de linhas que se
rompem em novas direções. Embora fotográficos, estão abertos à participação de outros
profissionais, seguem o princípio da heterogeneidade. Operam na multiplicidade,
abrem-se a possibilidades, não estão fechados numa estrutura rígida. Características que
se articulam diretamente com conceitos como inteligência coletiva. “O pensamento não
é arborescente e o cérebro não é uma matéria enraizada nem ramificada” (DELEUZE;
GUATTARI, 1995, pág. 25).
Nem todos os grupos que se denominam coletivos estão abarcados nas
delimitações que surgiram com esta pesquisa. Assim como muitos coletivos na essência
são apresentados sob a denominação de agência, como é o caso do Pandora, que por
muito tempo se denominava agência e depois passou a ser coletivo.
Quando partimos para uma pesquisa que visa entender melhor um fenômeno,
podemos levar em conta categorias empiricamente estabelecidas, mas é preciso buscar
um distanciamento que nos permita observar regularidades, pontos de contato,
repetições, padrões e diferenças nos casos analisados. Se na nossa introdução já
assumíamos o desejo de não alimentarmos a ilusão de um esgotamento do tema é

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porque sabíamos da impossibilidade de tal façanha e acreditávamos na riqueza que as


aberturas podem nos proporcionar.
Mas conseguimos reunir e articular uma série de aspectos que nos permite
perceber o coletivo fotográfico contemporâneo como um fenômeno específico, distinto
das demais experiências que agruparam fotógrafos ao longo da jovem história da
fotografia. Assim como nos é possível afirmar que o seu surgimento acontece com
maior ênfase na primeira década dos anos 2000, também por influência do cenário de
convergência ou no paradigma pós-fotográfico. Um ambiente que potencializa a
conexão em rede, a criação em conjunto, seja na forma de colaboração, no
compartilhamento de conhecimento e formação de inteligências coletivas, seja na
apropriação e ressignificação ou hibridismo. Um espaço potencializado pela
digitalização e pela mediação por computador, que nos obriga a rever conceitos como o
de autoria ou de indicialidade automática.
Os coletivos contemporâneos colocam questões através de seu comportamento,
acionam novas funcionalidades no aparato fotográfico, reconfiguram o aparelho. Vilém
Flusser usou a fotografia como paradigma filosófico: “a filosofia da fotografia pode vir
a ser o ponto de partida para toda disciplina que tenha como objeto a vida do homem
futuro”(2002, p. 70). Entre outros conceitos, ele criticou a existência do funcionário,
que é aquele que age em função do aparelho, que apenas realiza as possibilidades
configuradas. Já o fotógrafo, “age em prol do esgotamento do programa e em prol da
realização do universo fotográfico. (…) O fotógrafo não trabalha com o aparelho, mas
brinca com ele” (2002, p. 23). O esgotamento do programa é o mais decisivo na relação
com os aparelhos. Mais adiante, no final do livro, ele reforça essa ideia ao resumir assim
o que seria o fotógrafo: “pessoa que procura inserir na imagem informações não
previstas pelo aparelho fotográfico” (p. 77).
Os coletivos nos parecem jogar na direção da inscrição de novas programações
no aparelho fotográfico, sua práxis tenta obrigar o aparelho a produzir imagens não
programadas. Embora muitas de suas ações sejam conscientes e deliberadas, muitos dos
desdobramentos alcançam questões além do inicialmente percebido ou planejado. Mas
seriam essas funções realmente novas ou estariam elas também programadas no

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aparelho da fotografia? Seriam atualizações de um virtual já inscrito, possíveis apenas a


partir de conjunções presentes na cultura de convergência?
A fotografia vem sofrendo pressões vindas de várias direções. São tensões
provocadas por fenômenos como a liberação do polo emissor, a expansão da lógica de
redes, a convergência, a potencialidade da inteligência coletiva, a revisão do estatuto de
autor e mudança do comportamento dos consumidores de imagens, entre outros. Tais
fenômenos não atingem apenas a fotografia, modificam a sociedade como um todo. Mas
essas pressões causam uma espécie de transbordamento, como se apertássemos a
fotografia por todos os lados e ela rompesse suas fronteiras, avançasse em novos
espaços ou territórios. Um desses transbordamentos se dá na forma dos coletivos
contemporâneos.
Quando o coletivo incorpora a discussão sobre o processo de criação,
absorvendo a existência de vários sujeitos, criando alternativas de financiamento,
assumindo a rotatividade e polivalência dos indivíduos na organização e produção, ele
está, indiretamente contribuindo para a porosidade já citada das fronteiras. Está
caminhando junto – sendo influenciado e fortalecendo, contaminando e sendo
contaminado pelo mesmo agente – daquilo que contribui para que o fotojornalismo saia
das redações ou para que a fotografia documental assuma a contribuição mais subjetiva:
há um relaxamento dos lugares de referência clássicos.
Um aspecto importante de ser considerado aqui é a presença de um viés
autoral53 alinhavando apropriações estéticas nos trabalhos comerciais, discussões
conceituais ou mesmo direcionamentos de projetos. Falando de outra maneira, há uma
relação de redimensionamento envolvendo a autoria, mas, mais uma vez, numa via de
mão dupla: a autoria coletiva também altera o processo e as decisões. O Pandora existe
nos projetos “autorais”, essa é sua razão de ser. Obras “autorais” como o Caixa de
sapato, da Cia da Foto, são laboratórios para experiências estéticas posteriormente
transpostas para trabalhos “comerciais”.
53 Termo controverso no campo da fotografia, “autoral” está ligado à maior contribuição dos anseios e
escolhas do fotógrafo no seu trabalho, em oposição a encomendas e outras determinantes. Controverso
por conta de que tais determinantes podem fazer parte de um trabalho dito autoral. A arte também é
um mercado e sofre as influências das encomendas, dos prazos, das disponibilidades como já tratado
no presente trabalho. Esse termo, no entanto é usado tanto para o trabalho mais independente –
também confundido com “projetos pessoais” – como trabalhos que, mesmo inseridos em cadeias
como o fotojornalismo ou a fotografia publicitária, trazem uma inserção maior das ideias e conceitos
do fotógrafo.

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Coletivo fotográfico contemporâneo e a prática colaborativa na pós-fotografia

Acreditamos que esta pesquisa avança numa reorientação das práticas


colaborativas na fotografia, nos modelos gregários de junção de fotógrafos. Um campo
ainda pouco presente como objeto de reflexão na academia. Acreditamos que a
dissertação em questão traz contribuições para a discussão sobre o fenômeno dos
coletivos, embora tenhamos a certeza que demos apenas os passos iniciais nessa
exploração. Esperamos que tais passos possam servir de apoio para novos avanços,
construções ou redefinições no estudo sobre o universo do fotográfico.

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Coletivo fotográfico contemporâneo e a prática colaborativa na pós-fotografia

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Coletivo fotográfico contemporâneo e a prática colaborativa na pós-fotografia

Anexos

Entrevistas

As entrevistas foram listadas na íntegra, conforme estrutura de resposta adotada pelo


entrevistado. Ajustamos a formatação para facilitar a diferenciação entre perguntas e
respostas, permitindo uma melhor localização do leitor. A estrutura de perguntas
enviada aos dois coletivos seguiu uma mesma matriz. Houve uma pequena variação
entre as questões enviadas ao coletivo espanhol e ao brasileiro, mas todos os integrantes
deste último receberam o mesmo questionário. Foi respeitada, na transcrição, a opção
por responder em blocos de perguntas separadamente ou, como no caso de Pio
Figueiroa, em texto corrido abordando todas as questões.

Rafael Jacinto – Cia de Foto (coletivo brasileiro).


Entrevista concedida por e-mail em 7/11/11.

Como foi a ideia inicial de formar a Cia?


Essa é fácil. Bom, eu e Pio trabalhávamos no Valor. Nos conhecemos lá, no inicio de
2000, fazendo "números zero" do jornal. Desde o comecinho rolou uma empatia e nos
aproximamos. Éramos os mais novos da equipe, que contava com fotojornalistas mais
velhos, mais factuais, alguns fotógrafos de revistas, mais especializados em retratos,
incluindo o Pio, e eu, o mais novo, que tinha saído de um jornal popular e de um Curso
Abril. Eu e Pio não nós encaixávamos muito no perfil da equipe. Mas enfim, levamos
numa boa. O que nos deixava mais deslocados era um clima de competição interna, uma
forma de sobreviver garantindo que o erro nunca fosse atribuído a você. Eu já tinha
vivido isso na Folha (trabalhando no NP e frilando para outros jornais de lá), e tinha
comprado briga, garantindo meu espaço com um trabalho consistente e muita energia.
Mas não via necessidade disso num jornal que começava do zero, completamente
inovador, procurando uma linguagem específica, poucas pautas por dia, etc. Tentávamos
criar um ambiente mais relaxado, mais inteligente, que fizesse trabalhos em grupo, um
ajudasse o outro, mas não rolava muito. Depois de um ou dois anos, a equipe começou a
mudar. Alguns fotógrafos saíram e nós conseguimos chamar pessoas que tinham mais a
ver com a gente, como a Carla Romero, Carol Carquejeiro etc. Mesmo assim, era muito
esforço e pouco desenvolvimento. Eu e Pio já ensaiávamos o que seria um trabalho
coletivo dentro do próprio jornal. Se estávamos tranquilos, íamos juntos às pautas,
fazíamos pausas em cafés e livrarias, buscávamos referências, trocávamos pautas,
cobríamos um ao outro quando tinha um freela, assinando como tal, mas sem avisar o
resto da galera. Observávamos movimentos de agências internacionais e nacionais.
Consumíamos o que se produzia na Magnum, Lumiar (sério) etc. A crise veio e o jornal
teve que cortar pessoas (mais ou menos fim de 2002). O Pio, que tinha passado uns
meses fora, em licença não remunerada, foi cortado da equipe. Dentre algumas
modificações, eu assumi a pauta do jornal e entrei para o lado negro da força, hehe.
Brincadeiras à parte, foi quando comecei a estreitar ideias e conversar mais seriamente
com o Pio, que era o freela que mais trabalhava pra mim. Não por nada, mas porque
fazia bem o que era fácil e depois ia tocando uma vida de novos clientes e tal. Como

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pauteiro, tive muita dificuldade em criar uma rede de fornecedores que agregassem algo
mais que uma pauta bem feitinha. Comecei a ver um potencial em uma estrutura que o
Pio já tinha em mente mas não sabia o que era tb.bém. Algo que resolvesse a dia-a-dia,
que trouxesse novidade. A nova geração tava crescendo mal formada pela velha. Desde
a primeira pauta no Valor, eu e o Pio sacamos que era um veículo que nos abria muitas
portas. Muita assessoria, agência, ligava para pedir indicação de fotógrafo para fazer
relatórios anuais, retratos de executivo, etc. Oficialmente, não podíamos fazer isso, mas
rolava um pouco mesmo assim. Quando o Pio saiu e eu tava na coordenação da editoria,
pronto. Toda vez que ligavam pra lá e pediam indicação, mandava para o Pio e assim ia
crescendo uma rede que sustentou o Cia por muito tempo depois. Em 2003, ainda no
balanço da crise, o diretor de fotografia, Silas, sinalizava que o futuro não era muito
promissor para nós lá dentro. Sabendo da minha relação com o Pio, propôs que nos
organizássemos para realizar o que seria uma editoria de fotografia fora do jornal para
as pautas de São Paulo. Ele foi um grande incentivador, visando também um terreno
seguro caso as coisas escurecessem pro lado dele também. Ele ajudou no inicio, me
mandou embora, pensou em estratégias que não foram levadas adiante e fez a ponte
para que trabalhássemos para o Valor durante os primeiros 6 meses de vida dessa coisa,
chamada Cia de Foto. Mas, depois de 6 meses coordenando uma equipe que ele tinha
que aprovar, lidando com um dia-a-dia tenebroso, suado, correndo de um lado para o
outro, percebemos que, apesar de sair do jornal, estávamos trabalhando só para ele.
Resolvemos "fechar o cu" e mandar tudo pros ares. O jornal assumiu a equipe que
tínhamos como prestadores de serviço e, de um dia pro outro, um escritório com 7
pessoas, rotina etc., fazia eco comigo e com Pio lá dentro. Mas estávamos tranquilos e
começamos a levar as coisas como sempre quisemos, com conversas, acordos, passos
curtos e tal. Isso era o primeiro semestre de 2004 e o João, que tinha sido negado pelo
Silas para trabalhar pro Valor, foi chamado para nos ajudar em um projeto muito
interessante de retratos para uma operadora de cartões de crédito. E daí foi ficando.
Fomos pegando trabalhos que rendiam menos, mas que ele dava conta e se sustentava lá
dentro. Começamos a ter tempo para experimentar. João começou a trazer fotos que nos
lembravam como era bom quando não precisávamos ganhar dinheiro com fotografia e
etc. Depois de alguns anos, veio a Carol (final de 2006) e o resto da história você sabe,
não?

Quando surgiu?
Oficialmente, em 04 de agosto de 2003.

Quantos integrantes fazem parte da Cia hoje?


Somos 4. Eu, Pio, João, Carol, fixos. Os flutuantes são: Flávia, coordenadora de
trabalhos fotográficos comerciais, Deborah, assistente dela e "gerente" do espaço e
Kosuke, nosso assistente de foto e de tudo o mais.

Quais as áreas/especialidades destes integrantes?


Eu, Pio, João, Carol tomamos as decisões, fotografamos, decidimos projetos,
posicionamento etc. Além disso, temos algumas especificidades: Eu e Pio pensamos
mais na postura da Cia em relação a grandes trabalhos comerciais e projetos autorais,
sempre com aval dos outros dois. João tem cuidado do dia-a-dia financeiro, e também
dá pitaco em tudo. Carol trata todas as imagens, edita, e começou a cuidar de montagens

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de exposições, idas a festivais, saída de material, etc. Tudo isso é muito misturado.
Somos sócios. Todos têm direito de opinar em tudo, independente dessa obrigação mais
direta ou da porcentagem da sociedade.

Quais os principais setores e clientes que a Cia atende?


Hoje, comercialmente é publicidade (fotografias e filmes). Fotografamos campanhas,
dirigimos filmes, buscamos trabalhos, etc. Um pouco de editorial, principalmente de
veículos internacionais. Somos representados pela Galeria Vermelho no mercado de
arte. Participamos de festivais, encontros, damos workshops, palestras etc. Mas o que
importa mesmo é que nós somos independentes e trabalhamos muito pra satisfazer
nossas vontades. Precisamos de grana, então trabalhamos, mas também gostamos de
trabalhar e aprendemos com tudo que fazemos.

Quando começou (e por que) a ideia de assinar coletivamente? Como foi esse processo,
uma vez que os integrantes já faziam parte de um mercado onde a assinatura individual
era a regra (já haviam passado por jornais, por fotoarquivos, já possuíam um currículo
pessoal)?
Na verdade, só eu e o Pio tínhamos um "passado". João era estudante e nunca tinha
trabalhado com fotografia, e Carol entrou com uma função e adquiriu outras. Acho que
porque a Cia respondeu tão rápido a nossas necessidades, que tudo que tinha sido
anterior ficou enfraquecido como individualidades. A vivência em grupo foi tão
produtiva, que nos fez adotar o seu inicio como o inicio de nossas carreiras mais uma
vez. Não esquecemos, nunca, o que aconteceu antes, até porque foi uma desilusão com
o mercado e com a cena que estávamos que nos fez tomar essa atitude. Temos muito
orgulho dos jornais que passamos, dos perrengues que enfrentamos, da humildade que
adquirimos nessas redações. Estávamos infelizes, tínhamos ideia do que queríamos, mas
não sabíamos direito. De 2003 ao inicio de 2006, não produzimos nenhum trabalho que
apresentamos hoje como nosso. Tivemos um tempo de maturação, entendimento,
tentativas, erros. Hoje, se tivéssemos que fazer currículos individuais, seriam assim:
Nome, formação. Integrante do coletivo Cia de Foto. Depois é tudo igual. A fato da
assinatura coletiva foi naturalmente acontecendo. Se pensarmos no que fazíamos ainda
no jornal, que nos passávamos um pelo outro pra não perder o trabalho, foi uma
evolução natural. Além disso, do ponto de vista conceitual, nossa fotografia não é
apegada ao conceito de algo individual ou genial, que depende do momento certo, e da
decisão de um clique. Pensamos muito antes, realizamos as ideias progressivamente e
qualquer imagem que seja produzida por nós é resultado disso. É mais honesto, sabe?
Me lembro de fotógrafos realizando ideias de outros e porque foi ele que apertou o
botão, era dono dela. Sempre achei isso esquisito. Costumo dizer que foi a forma mais
honesta e democrática de realizarmos nosso trabalho. A assinatura da Cia em um
trabalho carrega todo mundo que participou dele, e responsabiliza também, direta ou
indiretamente. Se, por qualquer motivo, não participei do momento de clicar de um
projeto que estamos trabalhando há meses ou, no nosso caso, anos, não faço mais parte,
ou não sou responsável?

Como é a divisão de trabalho internamente na Cia hoje? Como são tomadas as


decisões? Quem é responsável pelo fechamento de contratos? Quem resolve que
fotógrafos estarão envolvidos com determinado trabalho? Quem faz a edição? Quem

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faz a revelação digital? Quem busca e/ou decide sobre a abertura de novas frentes,
sobre novos projetos?
Acho que respondi um pouco acima, mas posso acrescentar algo mais. Somos
flutuantes, nos revezamos, também. Nem sempre estamos todos em São Paulo, e isso
naturalmente faz com que alguém fique de fora de um trabalho ou um projeto. Temos
tempos diferentes na vida também Em alguns momentos, fico mais de fora, cuido de
projetos grandes, depois volto, cuido do dia-a-dia. Exposições, trabalhos autorais, que é
o que a gente realmente tem tesão, tem um tempo em que você pode sair e voltar ainda
no processo, mas se não der tempo, confiamos um no outro e por aí vai. Como o
processo é diário e tudo é resultado de uma convivência, isso é natural. O que é muito
claro é que nós 3, fotógrafos, clicamos e Carol trata as imagens. Mas isso é só a parte
prática. Todo mundo vai a campo, todo mundo edita. Todo mundo opina e todo mundo
falha. Faz parte.

Seria possível falar um pouco sobre o organograma da Cia? Do chefe mais alto até a
base? É um organograma estático, rígido ou podem haver flexibilizações de acordo
com o projeto envolvido? Seria possível desenhar este organograma com as pessoas,
funções e ligações?
Não existe um organograma fixo. Já passamos por fases em que tivemos um sócio
capitalista, que não se envolvia na parte criativa, mas não funcionou. Já tivemos,
também, equipe de fotógrafos. Hoje, estamos no formato ideal. Somos os fundadores, os
dois sócios que vieram depois (João e Carol), uma coordenadora para trabalhos
comerciais (Flávia), dois assistentes (Deborah, que ajuda a Flávia e cuida da “sede” e
Kosuke, assistente de fotografia (que aqui tem um sentido mais amplo - a fotografia).
Eu, Pio, João, Carol – Sócios. Eu, Pio, João - Sócios, fotógrafos, que produzem
imagens, pensam os trabalhos e tomam decisões relacionadas a grana, posicionamento,
postura no mercado, prospecção, etc. Somos os mais responsáveis por tudo. Eu e o Pio
ainda mais, porque somos os mais velhos, naturalmente mais preocupados com o nome
do coletivo. João tem cuidado do fluxo de grana, pagamento e divisão dos sócios e dos
assistentes (é assistido pela Deborah). Carol não fotografa, mas cuida de todo
tratamento, edição, de fotos e vídeo. Está começando a representar a Cia em festivais e
cuidando de produção para exposições etc. Acompanha impressão, finalização de filmes
comerciais, etc. Flávia - Ela é uma coordenadora de trabalhos publicitários de foto. Ela
também faz um papel de atendimento e vende a Cia em agências. A Deborah também
ajuda ela em produzir o que precisa para a foto e vai no set também
Kosuke - Ë nosso assistente de fotografia. Ele cuida do equipamento, fica aqui no
estúdio, ajuda na foto, organiza o material fotografado, etc. Quando não tem trabalho
prático, organiza os arquivos e ajuda a Carol. Todos - Tão aqui pra tudo. Tem um
exercício enorme de cuidar do própria Cia. Quando se tem muitos “donos”, o natural é
“deixar” pro outro.

Como se dá o processo criativo na Cia? Onde vocês buscam referências? Quais as


fontes de informação?
Ah, são fases. Temos evoluído na questão da pesquisa. Somos multidisciplinares no ato
fotográfico e, consequentemente na pesquisa. Tivemos fases de mirar outros fotógrafos,
depois, arte contemporânea. Ver como faziam, entender o processo. Temos fases de
avaliar cinema, por causa dos trabalhos em vídeo que estamos fazendo. Depois fomos

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estudar cor e arquivos digitais. E começamos a misturar tudo. Já faz um tempo, a teoria
começou a permear nossas referências. Muito por causa do Pio, que buscou
embasamento teórico para algumas questões dele em relação à fotografia. Hoje temos
consciência de que é preciso estudar sempre. E não só fotografia. Além disso, cada um
tem uma preferência de aprofundamento. Eu gosto muito de ver o que estão fazendo
com vídeos experimentais, com musica, inovações na narrativa. Enfim.

Como é tratada a questão do direito autoral? Se um integrante sai do coletivo, como


ficam os direitos sobre uma obra que teve a sua participação? Como é tratado o
pagamento de valores referentes à comercialização de uma obra coletiva?
Não temos muito essa preocupação. Nós 3 estamos muito tranquilos em relação a isso,
até porque somos uma empresa, com contrato, somos os produtores, com conhecimento
da produção, etc. Acho que se acontecesse, seria um acordo entre partes, sem bases
estipuladas. Há um tempo, começamos uma pesquisa de direitos para a Carol que,
teoricamente, de acordo com a lei brasileira, tem direito a nada, porque não fotografou.
Achamos isso um absurdo e queremos que ela tenha direito sobre tudo que ficar como
patrimônio. Essa pesquisa está parada, por causa de outras brigas na justiça, com um
banco de imagens que nos reapresentava. Resumindo, somos bem dedicados a tudo,
desde parte criativa até parte prática. Temos um advogado que sempre contratamos para
questões contratuais e de direitos. Ele também pesquisa a evolução dessas leis de
direitos e etc. Temos nosso nome registrado em Patentes e Marcas. Começamos uma
assessoria financeira.

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Pio Figueiroa - Cia de Foto (coletivo brasileiro).


Entrevista concedida por email em 8/11/11.
*o entrevistado preferiu desenvolver um texto corrido englobando todas as questões a
ele enviadas.

A Cia de Foto começou, muito provavelmente, depois de uma experiência que tivemos
como parte da equipe que trabalhou na formação do Jornal Valor Econômico. Nós
tivemos, durante um tempo, a tarefa da construção de uma fotografia de retrato, para ser
um diferencial daquele novo jornal. E, para isso, deveríamos misturar a nossa
experiência de trabalho em redações, com uma estética mais elaborada. E isso se deu em
um regime isento das obrigações e dos prazos de uma publicação diária, pois era uma
época em que o Valor não ia para rua. Acho que foi ali o despertar da vontade de
“projetar” em fotografia mais que executar um dia-a-dia profissional previsível. Tanto
que quando o Valor começou a ser publicado, essa atmosfera acabou-se
assustadoramente rápida, e essa publicação partidarizou-se pelo comum.

Começamos daí a pensar em um projeto que tivesse uma ordem mais experimental. Um
ambiente mais dinâmico que, ao mesmo tempo, pagasse nossas contas e qualificasse o
nosso tempo. A organização de um grupo permitiria que a gente incorporasse mais
tempo livre à rotina profissional e foi o que gerou espaço para começarmos a estudar, o
que gerou, como consequência, uma certa crítica à nossa própria produção e também ao
meio em que estávamos,

Essa fase que descrevi até agora começou no final de 1999 e durou até março de 2004.
Até então, essa formação do projeto da Cia se deu por Rafa e por mim. Até que João
entrou para o grupo.

Inicialmente ele era um assistente que veio vinculado a um trabalho grande que duraria
uns 3 meses. Porém, começamos a perceber que aquela experiência que tivemos no
começo do Valor, de alguma forma, se refletia em João, uma pessoa completamente
livre dos condicionamentos do mercado – vale lembrar que Rafa e eu somos de uma
geração formada pelo mercado, onde o repertório técnico e as aplicações da fotografia
eram muito restritas a uma rotina pouco criativa, onde o maior valor de acerto se media
por uma foto de fácil assimilação e de pouca elaboração técnica. Nosso treino era menos
de criação e mais de execução de clichês. João simbolizava quase que o objetivo de se
criar a Cia. Ele refletia um potencial que a gente tinha mas, até então, tratávamos sem
muito método ou pertinência. João começou a significar a possibilidade de
desenvolvermos o exercício da linguagem como expressão pessoal. Nessa hora,
percebemos que estava ali o nosso projeto, até então pautado por uma intuição meio
cega e tateante.

Começamos uma prática super divertida, a de fotografarmos juntos. Dividíamos


qualquer demanda que surgia. Nessa época, a Cia de Foto acontecia mesmo no
momento do clique fotográfico. Dessa prática surgiu um problema fundamental em
relação à assinatura do trabalho. No mercado em que atuávamos, o crédito autoral era
obrigatório e, de certa forma, isso simbolizava uma grande conquista: ter um nome e um
sobrenome conhecidos no mercado. É curioso pois se você me pedir algum trabalho

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desenvolvido nessa época, quase não há. Um ensaio, uma foto pessoal, quase nada
ficou, a não ser alguma coisa em torno de um nome e de um sobrenome. Resultado hoje
visto como alegórico. Então produzir fotos na Cia de Foto, sobre o regime que nascia
ali, não poderia promover essa forma convencional de assinatura. Uma foto não deveria
mais ser creditada a um trabalho individual. Veio então a decisão consequente pelo
crédito coletivo.

A Cia de Foto começou informalmente no início do Jornal Valor, 1999/2000;


formalizou-se em 04 de agosto de 2003; recebeu João no projeto em março de 2004 e
Carol em dezembro de 2006. Essa é a formação do coletivo.

Carol entrou na Cia no momento em que a nossa pesquisa havia migrado daquela época
em que o clique era a parte fundamental do processo para as etapas de edição e pós-
edição. Estávamos estudando muito o Photoshop e outros softwares de organização. A
essa altura tínhamos conseguido criar um método de captação e tratamento de nossas
imagens. E isso merecia uma dedicação maior do grupo. O ideal então seria acharmos
uma pessoa que pudesse se especializar para que essa pesquisa fosse ampliada.

Carol demorou um ano para ter um bom nível técnico, e mais dois para começar a
somar com uma contribuição autoral. Nesse momento ela virou sócia do grupo. Isso se
deu, inclusive, para lhe garantir os direitos patrimoniais ao que estava sendo criado.

Os nossos papéis na Cia se alternam até hoje. Mas dá para arriscar que Rafa tem um
papel prático importante. Ele consegue estabilizar a Cia, impor uma postura em relação
ao mercado, qualificar nossos preços, etc. Ele também domina a parte tecnológica e é o
“nerd”do grupo. A parte de edição de vídeos também é com ele.

João é o melhor fotógrafo. Aquele que sai a campo e sintetiza o que está sendo
estressado lá dentro como pesquisa. Ele é muito técnico e liderou toda pesquisa de pós-
edição da Cia de Foto. Acho que ainda lidera... Carol está quase lá, mas João tem
sempre uma palheta a mais.

Carol é muito especial e vem sendo formada pelo grupo. Nesse ano ela começou a
assumir uma certa responsabilidade no mercado artístico, e com isso, viajou para
festivais, acompanhou montagens de exposições, ministrou workshops, etc. Na parte do
mercado publicitário, ela ainda é tímida, e se coloca mais como corpo técnico, mas essa
postura deve mudar com o tempo. Ela tem sido determinante ao projeto numa crescente
muito significativa.

No meu caso, a minha especialidade talvez seja não ter uma! Eu sou o mais impaciente
para fazer os deveres de casa. O que mais produz e ao mesmo tempo o mais
desorganizado, e assim, o que demanda mais assistência, custos, hds, enfim. Acho que
sou uma peça de instabilidade na Cia, alguém que não deixa o ambiente decantar e isso
me deixa numa função de planejamento, de sonho, de ideias e de experimentos. Por
isso, sou mais ligado aos processos artísticos da Cia.

A Cia de Foto atua no mercado de fotografia publicitária, de onde vem a nossa principal

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renda. Para isso, temos Flávia como coordenadora. Flávia é ajudada pela Déborah, que
fica na Cia diariamente entre 10h e 19h e é quem cuida das coisas, paga as contas...

Outra área de atuação é o mercado de filmes publicitários. Somos representados pela


ParanoidBr e fazemos parte de um time de 13 diretores. Nesse caso, á a Paranoid que
prospecta, produz, etc. Nosso trabalho é só como diretores de cena e diretores de
fotografia.

Fazemos, também, parte do mercado de arte, onde somos representados pela Galeria
Vermelho. Esse é um mercado bem complexo, tanto que tem até um certo melindre em
chamá-lo assim de mercado... Mas de fato é, e com regras de funcionamento bem fáceis
de serem comparadas a esses outros.

As divisões de trabalho se alternam nas funções que dizem respeito a Rafa, a João e a
mim, tendo horas em que um fotografa e outro assume mais uma condução (reuniões,
apresentação etc) ou em filmes, onde um assume a direção de cena e outro a direção de
fotografia. As outras funções, que se relacionam com as outras pessoas do grupo, são
mais fixas.

Entre os três, não há um planejamento e sim, um regime mais espontâneo onde se define
quem cuida do quê. Geralmente alguém está mais próximo de uma demanda e a toca a
partir daí. Os outros vão se envolvendo a medida que são solicitados, no momento em
que as dúvidas aparecem, nas tomadas de decisões etc.

Quem fecha os contratos em fotopublicidade é Flávia, em filmes é a Paranoid e no


mercado de arte é a Vermelho.

Não há um chefe na Cia de Foto e a condução do grupo se faz pelos três mais antigos
(Pio, Rafa e João). E dentre os três, acho que eu e o Rafa detemos um poder maior de
decisão, mas isso ocorre mais por estilo (João é um cara mais quieto...) do que por
estatuto. Há também uma diferença de idade. João e Carol são 7 anos mais novos que a
gente, o que gera um peso diferente nas decisões.

Tem uma hierarquia nos segmentos de trabalho. Então, quando é trabalho comercial,
que envolve ganhar dinheiro em um prazo curto, torna-se uma prioridade, e é para onde
toda a energia do grupo termina se voltando. E aí, dependendo da complexidade do
trabalho, isso envolve a todos.

O chefe mais poderoso da Cia é o “Trabalho” que dê mais liquidez, pois sem essa
energia do dinheiro, todos os outros projetos não funcionariam.

Estamos em uma constante pesquisa em torno da linguagem fotográfica, sempre


produzindo e, de um tempo para cá, expondo muito. Aliás começamos a ter uma agenda
de exposições um ano a frente, o que determina muito a nossa agenda diária.

A Cia de Foto não se basta como coletivo. Nossas pesquisas sempre envolvem mais
gente. É bem difícil um projeto que seja realizado somente pelos 4 integrantes. Por

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exemplo, toda pesquisa que envolve música tem a parceria autoral de Guab, um amigo
DJ. Outra relação intensa que temos é com alguns pesquisadores como Ronaldo Entler,
Lívia Aquino, Cláudia Linhares Sanz, Maurício Lissovsky, com quem nos identificamos
com as pesquisas.

Hoje há um movimento na Cia de uma volta aos estudos. Estamos começando alguns
projetos de sistematização de estudos lá dentro, como grupos, mestrados etc. O
ambiente de Galeria e de produtora de filmes também é muito dinâmico. São ambientes
que despertam ideias.

As principais fontes de informação são as pesquisas em universidades, filmes e


trabalhos de arte contemporânea. É muito difícil acessar trabalhos nas universidades.
Exige uma busca diária pois trata-se de um ambiente muito corporativo que não liga
para quem está fora dele.

A Cia de Foto é muito recente. O grupo se formou mesmo agora, com a entrada de
Carol, então não temos a experiência da saída de alguém. Defendemos no entanto, que
tudo que é feito lá dentro da Cia de Foto, seja compartilhado entre os quatro. Eu acho
que aí tem uma questão que é super complexa, pois, a essa altura do campeonato, é
muito difícil projetar o que seria perder um integrante desse grupo. Tudo lá dentro é
interdependente. Penso que se um dia saísse da Cia, teria um processo muito
complicado de readaptação. Talvez isso seja realmente um drama... melhor não contar
com essa possibilidade!

Recentemente começamos uma consultoria, muito interessante, de gestão para a Cia de


Foto, com uma profissional que tem formação em psicologia e administração de
empresas. Ela é especializada em projetos não convencionais de negócio. Estou bem
otimista com essa consultoria, ao ponto de achar que a entraremos em uma fase bastante
promissora. Algo que me deixa ainda mais resistente em pensar em um fim para
qualquer parte desse projeto.

Nós temos salários, e eles são definidos por percentuais. Esse valores são ajustados em
acordo com os custos de vida dos integrantes. A ideia é sempre deixar a Cia de Foto
forte financeiramente, mantendo os integrantes em um padrão médio de vida para a
zona oeste de SP.

Todo tipo de comércio ou serviço que se faz na Cia entra para um caixa comum. As
decisões de investimentos são tomadas coletivamente. Trata-se de um projeto caro, que
exige um desenvolvimento empresarial criativo e persistente. Porém temos uma força de
adaptação muito grande. Nós somos uma empresa que começou sem nenhum capital de
investimento. Cada passivo da Cia foi comprado pela verba gerada com serviços.

Um significante gasto que temos é com a nossa pesquisa. Há uma saída significante na
produção de ensaios, na compra de livros, etc. Essa parte não gera um retorno de
curto/médio prazo, o que também exige uma consciência.

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Carol Lopes – Cia de Foto (coletivo brasileiro).


Entrevista concedida por e-mail em 22/11/11.

Como foi a ideia inicial de formar a Cia?


Posso falar resumidamente, mas acho que o Rafa e o Pio podem falar melhor. Rs. O
Rafa e o Pio trabalhavam juntos no jornal Valor Econômico. Eles sentiram uma
necessidade de ter um espaço, fora do ambiente vicioso de uma redação de jornal. Um
lugar mais criativo onde pudessem trabalhar juntos, desenvolver os trabalhos tendo
domínio e consciência de todas as etapas do mesmo (pré, produção e pós).

Quando surgiu?
Em 2003.

Quantos integrantes fazem parte da Cia hoje?


Hoje temos 7 pessoas envolvidas diretamente no projeto.

Quais as áreas/especialidades destes integrantes?


O Pio, Joâo e Rafa além de fotografarem tomam frente de outras partes do processo.
João, cuida de toda a parte financeira da CIA. É o homem do dinheiro.. Ele sabe como
estamos de grana, se podemos investir em algo ou não. Pio, normalmente está à frente
dos processos ligados ao trabalho conceitual. Inscrições em prêmios. salão, concurso,
elaboração dos textos. Rafa, tem uma boa relação com a parte tecnológica Sempre esta
de olho em novos software, hardware etc. Normalmente é ele quem toma um pouco a
frente da relação com a Paranoid BR. Essas funções também não são tão especificas de
cada um. Existe abertura para opinarem nessas áreas Foi só um movimento natural que
acabou acontecendo no decorrer dos anos. Carol, responsável pela pós produção, edição
dos trabalhos, arquivamento. Tanto dos arquivos de vídeo como dos de foto. Também
faz a ponte com o nosso printer, o Millard. Flávia, coordena os nossos trabalhos
publicitários É responsável pelos orçamentos, produção e coordenação dos trabalhos.
Também cabe a ela fazer prospecção de novos trabalhos junto a novos clientes.
Deborah, assiste tanto ao João como a Flavia. Cabe a ela efetuar os pagamentos,
atualizar a planilha de gasto/custo da CIA; ajudar a Flavia em tudo que for preciso na
produção/coordenação dos trabalhos. Kosuke, é um assistente geral, tanto meu como
dos meninos. Também faz peças de vídeo simples, cuida do nosso website e indexa os
arquivos da Cia. Ele também fotografa pautas mais simples, cuida dos equipamentos
fotográficos e do estúdio.

Quais os principais setores e clientes que a Cia atende?


A Cia hoje esta inserida em vários mercados. Publicidade - fazemos direção de filmes
publicitários Somos representados pela Paranoid BR. Também fazemos fotografia still
para várias agências importante do mercado. Banco de imagens - somos representados
pela Latinstock. Eles detêm uma parte de nosso arquivo. As pessoas podem comprar via
site. Editorial -fazemos ensaios encomendados por revistas de fora: Newsweek, Times,
Daz Magazin, National Geograph, Colors. Além de revistas nacionais também.
Fotojornalismo - também fazemos alguns projetos especiais, principalmente junto à
Folha de SP. Mas, atualmente, essa demanda tem sido um pouco menor. Mas por uma
opção nossa mesmo. Arte - somos representados pela Galeria Vermelho e temos um

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vasto currículo de exposições nacionais e internacionais. Workshop/aula/palestra-


também ministramos workshops, cursos e muitas vezes somos convidados para dar
palestras. Normalmente são vinculados a alguma instituição ou a algum festival de
fotografia.

Quando começou (e por que) a ideia de assinar coletivamente? Como foi esse processo,
uma vez que os integrantes já faziam parte de um mercado onde a assinatura individual
era a regra?
O rafa e o Pio quando trabalhavam no jornal Valor Econômico já faziam pautas juntos,
quando um não podia ir o outro ia no lugar etc… já tinham uma relação de trabalho em
conjunto, de certa maneira. Mas foi principalmente com a entrada do João que passou a
ter grande influência na fotografia dos meninos, que começou a não fazer mais sentido
assinar individualmente. O João, jovem, vindo da universidade, entrou na CIA sem os
vícios do mercado e totalmente aberto a experimentações. Foi nesse momento também
que a pós produção da Cia começou a ser elaborada e desenvolvida. Com isso o João
passou a ter uma influencia direta na fotografia que vinha sendo feita. A partir de então,
de fato, não fazia mais sentido excluí-lo desse processo. Dai, assinar coletivamente foi
só uma consequência coerente com o processo que estava já estava acontecendo
internamente. Após 2 anos de treinamento e adaptação, a função que tenho também
passou a ser determinante no processo. Isso fez com que eu fosse absorvida pelo grupo
também. Hoje já não faz mais nenhum sentido uma assinatura individual, visto que todo
o processo, desde concepção, execução e finalização do projetos são sempre muito bem
negociados e discutidos entre todos.

Como é a divisão de trabalho internamente na Cia hoje? Como são tomadas as


decisões?Quem é responsável pelo fechamento de contratos?. Quem resolve que
fotógrafos estarão envolvidos com determinado trabalho? Quem faz a edição? Quem
faz a revelação digital? Quem busca e/ou decide sobre a abertura de novas frentes,
sobre novos projetos?
Com relação a que trabalhos comerciais que devemos fazer e como fazemos,
normalmente as decisões são tomadas mais pelo Pio, João e Rafa… mas, existe abertura
para opinar. Os trabalhos autorais, comissionados ou não, são conversados e discutidos
entre nós 4. (eu, João, Pio, Rafa). Na área comercial , a Flávia é responsável pelos
fechamentos de contratos e orçamentos mas sempre sob a supervisão dos meninos.
Quanto a quem vai fotografar que trabalho.. muito é escolhido por afinidade. Ou
também por quem esta à frente do trabalho. Existe também o caso de se um de nós tiver
mais afinidade com a pessoa que contratou o trabalho, às vezes, é natural que essa
pessoa tome a frente do projeto. Varia muito. Normalmente os projetos são fotografados
em duplas. Se todos estiverem livres vão os 3. Tanto João, como Pio e o Rafa fazem
edição. Mas normalmente, em trabalhos comerciais, eu faço uma pre edição, envio para
o cliente que seleciona as imagens finais. A edição dos trabalhos autorais é feita em
conjunto, sob muita negociação e dialogo entre os 4 (eu, joão, Pio e rafa). Nossas
ampliações são feitas com um único printer, o Millard. Ele já conhece como gostamos
das nossas fotos, e normalmente não temos problema com isso. Printamos sempre em
papel de algodão impressora ink jket. Esse trabalho de prospecção muito é feito pelo Pio
e o Rafa. A Flávia também acumula essa função na área comercial, embora a maior
parte seja feito pelos meninos mesmo.

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Seria possível falar um pouco sobre o organograma da Cia? Do chefe mais alto até a
base? É um organograma estático, rígido ou podem haver flexibilizações de acordo
com o projeto envolvido? Seria possível desenhar este organograma com as pessoas,
funções e ligações?
Se for pensar numa espécie hierarquia, acima de todos estão os três: Pio, Rafa e João O
Pio e o Rafa acabam assumindo uma postura um pouco mais de "chefe" que o João O
João por outro lado, está super focado na a parte financeira. Ele é quem administra
tudo. Eu tenho autonomia na parte de gerenciamento das imagens: processos de backup,
indexação, edição, organização... acabo supervisionando muito o Kosuke no trabalho
dele. A Deborah está subordinada aos 5 (eu, Pio, João, Rafa e Flávia)... mas ela trabalha
mais diretamente com a Flávia e o João Como ela está direto na Cia, acaba sendo meio
uma assistente de todos para assuntos administrativos. O Kos, é um assistente geral,
então acaba ajudando a todos um pouco. Ele trabalha muito ligado a mim. Normalmente
eu repasso para ele o que tem de ser feito. Sim, existe uma flexibilização, em
determinados projetos um ou outro toma mais a frente. Mas sempre um dos meninos,
Pio, Rafa ou o João

Como se dá o processo criativo na Cia? Onde vocês buscam referências? Quais as


fontes de informação?
Estamos sempre lendo livros e blogs de pessoas da área Principalmente da área
acadêmica. Fotografamos muito e também experimentamos sempre novas formas: de
tratamento de imagem, de formato, etc. O “Caixa de Sapato” é um veiculo que usamos
muito para experimentações... testar uma luz, um grão, um enquadramento, um
tratamento diferente. Muitas vezes motivados por algum texto as ideias acabam
surgindo. Vemos muita fotografia, filmes, revistas e exposições Temos uma ampla
biblioteca com livros de fotógrafos e teóricos que também é um lugar que sempre
recorremos. Normalmente o processo se dá por alguma inquietação de alguém do grupo.
Surgem as primeiras imagens, começamos a pensar, lemos, discutimos. Trazemos
textos, escrevemos. O nosso ambiente de trabalho também colabora muito para essa
interação de ideias. Trabalhamos todos juntos numa mesma sala super ampla. Com isso
a troca de ideias acaba sendo constante. Algumas vezes também somos comissionados a
fazer algum trabalho. Daí o mesmo processo acontece, mas pautado pelo tema a ser
trabalhado. Logo que chegam imagens, trabalhamos na pós produção e em paralelo já
tentamos fazer associações com textos dos autores que costumamos ler. É um processo
intenso e super negociado. Estar em grupo facilita por haver troca de ideias o tempo
inteiro… mas também é um exercício de extrema negociação. Um trabalho da Cia que
sai para a rua já foi discutido ao seu extremo pelos membros do grupo.

Como é tratada a questão do direito autoral? Se um integrante sai do coletivo, como


ficam os direitos sobre uma obra que teve a sua participação? Como é tratado o
pagamento de valores referentes à comercialização de uma obra coletiva?
No meu caso, se eu saio do coletivo, como não estou no contrato social, eu não tenho
direito a nada. Não que isso vá acontecer. Há algum tempo houve uma conversa com os
nossos advogados para fazer uma espécie de contrato de gaveta com uma clausula sobre
isso. Quanto ao pagamento, aqui na CIA todos tem salário fixo. Tudo que entra tanto de
trabalho comercial como autoral vai para a conta da Cia. Não existe divisão de lucros. O

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dinheiro que sobra fica guardado na conta da Cia ou é aplicado em algum tipo de
rendimento.

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João Kehl - Cia de Foto (coletivo brasileiro).


Entrevista concedida por e-mail em 30/11/11.

Como foi a ideia inicial de formar a Cia? Quando surgiu?


A Cia surgiu da necessidade de criar-se um ambiente onde a fotografia fosse o principal
ponto de discussão. Um espaço aberto, onde as ideias pudessem ser debatidas e as
qualidades e habilidades de cada indivíduo potencializadas. Foi fundada em 2003 por
Pio Figueiroa e Rafael Jacinto, que após anos trabalhando em redações de jornais e
revistas sentiram a necessidade de desenvolver um método de trabalho baseado na
colaboração, em oposição ao ambiente altamente competitivo ao qual estavam
acostumados. Eu me juntei a eles no ano seguinte, saindo da faculdade de fotografia e
com pouquíssima experiência profissional. Essa junção do meu "amadorismo" com a
experiência profissional dos dois, aliada a uma paixão muito grande pela fotografia,
formaram a base do que hoje é a Cia de Foto. Em 2007, Carol se juntou ao grupo pra
cuidar da pós-produção das imagens e fechar o que chamamos de núcleo duro da Cia.

Quantos integrantes fazem parte da Cia hoje? Quais as áreas/especialidades destes


integrantes?
Hoje, existem 7 pessoas trabalhando na Cia de Foto. Somos 3 fotógrafos: João, Pio e
Rafael; tem a Carol que cuida de todo o departamento de pós-produção. O Kosuke, um
japonês vindo de Kyoto, que é assistente de fotografia, fotógrafo em alguns trabalhos e
organizador do nosso acervo. Para trabalhos principalmente na área de publicidade
temos a Flávia, que funciona como coordenadora, atendimento e produção,
intermediando a relação com clientes e agências de publicidade. Por último, tem a
Deborah que acumula algumas funções, entre elas assistência de coordenação e funções
administrativas.

Quais os principais setores e clientes que a Cia atende?


Ao longo de sua trajetória, a Cia atuou de diferentes maneiras no mercado. A princípio
se sustentou por uma relação direta com o retrato fotográfico, principalmente para os
mercados editorial e corporativo, resultado das relações comerciais estabelecidas pelo
Pio e pelo Rafa nos anos de redação. Num segundo momento a Cia se colocou como
uma produtora para soluções fotográficas, assumindo responsabilidade sobre todos os
processos da produção fotográfica para alguns clientes específicos. Nesse momento
foram de grande importância a relação com a revista da TAM e o instituto Itau Cultural.
Na revista da TAM, a Cia assinava o expediente, participando ativamente na produção
das pautas e edição final das fotografias. com o Itau Cultural, a Cia trabalhou durante
muito tempo junto à comunicação interna do instituto, cobrindo todo tipo de eventos e
apresentando soluções para produtos específicos como revistas, livros e catálogos. Esses
dois clientes fixos pagaram uma parte significativa dos custos da Cia durante alguns
anos. Paralelamente, nessa mesma época, a Cia foi muito procurada para desenvolver
trabalhos de branding, que envolvem a renovação da maneira como as marcas se
comunicam, implicando num uso mais experimental da fotografia. é um trabalho de
criação de diretrizes que depois serão utilizadas na maneira como a empresa se
comunica . Realizamos trabalhos grandes para o Banco Real, Natura, Grupo Suzano e
TAM. No mercado de fotojornalismo, a Cia tem dado preferência a clientes
internacionais, que permitem uma maior liberdade e uma remuneração mais justa. são

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exemplos publicações como a Newsweek, Time e National Geographic. Nos últimos


dois anos, a Cia entrou de maneira mais ativa no mercado publicitário, realizando
campanhas grande para clientes como Vivo e TAM. Nesse mesmo período, a Cia foi
convidada para integrar o pool de diretores da Paranoid, uma produtora de filmes
publicitários, onde já dirigiu mais de 15 filmes publicitários. Além disso, a Cia possui
uma importante relação com a galeria Vermelho que nos representa no mercado de arte.
Dentro da Cia, temos uma cultura de tratar a Cia como nosso principal cliente, ou seja,
tudo o que produzimos, produzimos primeiro pra gente. Todo resultado é fruto de uma
negociação e só vai pro mundo depois de uma certa "aprovação interna".

Quando começou (e por que) a ideia de assinar coletivamente? Como foi esse processo,
uma vez que os integrantes já faziam parte de um mercado onde a assinatura individual
era a regra (já haviam passado por jornais, por fotoarquivos, já possuíam um currículo
pessoal)?
A ideia de assinar coletivamente, surgiu naturalmente com a interação dos componentes
do grupo. Na época do Valor Econômico, o Pio e Rafa costumavam realizar pautas
juntos ou em algumas situações fotografar e assinar em nome do outro, quando existiam
problemas de conflito na agenda. Quando a Cia começou a assinatura coletiva partiu de
uma necessidade comercial. No início, a demanda de trabalho ainda chegava muito
pelos celulares pessoais e os clientes queriam que um fotógrafo específico
(principalmente o Pio e Rafa) realizasse o trabalho. Pra driblar essas exigências e poder
atender um numero maior de demandas a Cia foi impondo a assinatura coletiva, uma
marca, um selo de garantia que atestava que o trabalho seria realizado da melhor
maneira possível, independente de quem fotografasse. Quando eu entrei pro grupo esse
necessidade se intensificou. Eu vinha da faculdade e ainda não tinha um nome no
mercado. Era muito difícil explicar pra um cliente que um moleque de 22 anos ia fazer a
foto dele. O que acontecia é que muitas vezes eu realizava grande parte do trabalho mas
isso não poderia "vazar" pro cliente. Além disso em muitos dos trabalhos nós íamos os 3
pro campo, além de compartilhar o processo de edição e tratamento das imagens. O
último passo pra afirmação definitiva da assinatura coletiva, foi a entrada da Carol, que
passou a determinar na pós-produção muito da identidade visual do coletivo. A Cia foi
muito criticada pelos diversos mercados e principalmente por uma geração anterior de
fotógrafos que encaravam o crédito como uma conquista valiosa de seus antecessores
Esse repúdio foi importante porque nos fez olhar com mais atenção e cuidado para o
que estávamos fazendo e nos obrigou a construir argumentos fortes pra defender nossa
postura.

Como é a divisão de trabalho internamente na Cia hoje? Como são tomadas as


decisões? Quem é responsável pelo fechamento de contratos? Quem resolve que
fotógrafos estarão envolvidos com determinado trabalho? Quem faz a edição? Quem
faz a revelação digital? Quem busca e/ou decide sobre a abertura de novas frentes,
sobre novos projetos? Seria possível falar um pouco sobre o organograma da Cia? Do
chefe mais alto até a base? É um organograma estático, rígido ou podem haver
flexibilizações de acordo com o projeto envolvido? Seria possível desenhar este
organograma com as pessoas, funções e ligações?

Na Cia, a divisão interna do trabalho é muito determinada pela demanda e visa

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principalmente o bem estar financeiro da empresa. Ou seja, pagar as contas é sempre


prioridade, principalmente porque o custo fixo do coletivo é muito alto. Todas as
decisões importantes referentes ao rumo da empresa são tomadas e debatidas
principalmente por mim, Pio e Rafa. Além disso, existem áreas que tem uma certa
independência. A Flávia, por exemplo, é quem cuida da nossa prospecção e da relação
com agências de publicidade. Ela tem alguma autonomia no modo como trabalha e na
confecção de orçamentos e planejamento de cada trabalho, mas sempre nos consulta
quando existem decisões importantes a serem tomadas. Ela normalmente cuida das
burocracias referentes aos contratos dos trabalhos realizados nessa área específica.
Dentro do processo fotográfico, o trabalho de edição é um dos mais importantes
realizados hoje em dia dentro da Cia, porque costumamos fotografar bastante. Assim, o
trabalho de edição assume um papel importante no resultado final, sendo um dos
momentos mais debatidos dentro de cada projeto... todos participam ativamente.
Desde que a Carol entrou na Cia, ela foi conquistando seu espaço e adquirindo
autonomia. Todo trabalho de pós-produção, seja de fotos ou mesmo vídeos, é realizado
por ela. O que acontece muitas vezes, é que, antes de iniciar o trabalho de finalização,
discutimos entre os quatro, que “cara” aquele trabalho deve ter. A partir dai vamos
apresentando versões e a Carol trabalha em cima da versão aprovada por todos para
chegar na imagem final. O envolvimento de cada fotógrafo nos trabalhos é definido
muito pela conveniência do momento e pela agenda, humor e vontade de cada um em
participar ou não do trabalho. É um acordo que leva em conta o que consideramos
melhor pro projeto e leva em conta as habilidades de cada um. Desde 2009, iniciamos
um trabalho maior de gestão do departamento financeiro, que eu assumi. Até então, não
possuíamos planilha de gastos e nem um planejamento a médio e longo prazo.
Percebemos que o único jeito de crescer, seria dando a devida atenção a este
departamento. Esse ano iniciamos uma consultoria que se estenderá até meados do ano
que vem.

Como se dá o processo criativo na Cia? Onde vocês buscam referências? Quais as


fontes de informação?

O ambiente de trabalho da Cia de foto é muito dinâmico. Isso quer dizer que a todo
instante, existem ideias e assuntos sendo discutidos. Costumamos falar que as ideias na
Cia estão sempre vivas, meio que suspensas numa nuvem e são colocadas em prática
quando se encaixam dentro de algum tema ou trabalho que começamos a desenvolver.
Muitas vezes, uma ideia aparece meio sem lugar ou tempo definido e fica pairando
nessa nuvem e só vai encontrar seu lugar quando colocada em acordo ou oposição com
uma nova ideia. As referências vem dos mais variados lugares. Temos uma vasta
biblioteca de livros de fotografia e arte, por exemplo. A Cia é muito conectada, então
acessamos muita informação através da web, seja por blogs ou sites de referência.
Também assinamos a Foam que é uma das revistas de fotografia mais importantes
atualmente no mundo. Além disso vemos muitos filmes, escutamos muita música e
viajamos bastante. Tudo isso contribui pra manter a Cia bem alimentada de referências.

Como é tratada a questão do direito autoral? Se um integrante sai do coletivo, como


ficam os direitos sobre uma obra que teve a sua participação? Como é tratado o
pagamento de valores referentes à comercialização de uma obra coletiva?

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Infelizmente, a lei de direito autoral no brasil, no que diz respeito a produção fotográfica
não contempla a produção coletiva. O detentor dos direitos intelectuais de cada
fotografia, é quem fez o clique e esse direito é inalienável. Dentro desse pensamento, a
Carol, que é muito responsável pelo nosso resultado fotográfico, não possui direito
algum sobre nada do que é produzido aqui dentro, porque ela não clica. Estamos
tentando elaborar com nosso advogado, um contrato de gaveta que de a todos direitos
patrimoniais iguais sobre o que é produzido dentro da Cia. A Cia trabalha com um
estrutura societária e os sócios recebem pró-labore fixo proporcional a participação na
sociedade. Todos os pagamentos referentes ao que é produzido na empresa entram na
conta da Cia. Portanto, ninguém na Cia recebe pagamentos referentes a uma obra
específica.

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Héctor Mediavilla – Pandora Fotografia Documental (coletivo espanhol).


Entrevista concedida por e-mail em 27/11/11.
Colocamos entre colchetes uma tradução livre das respostas.

Como foi a ideia inicial de formar o Pandora?


Sergi Cámara y yo empezamos a hablar en 2005 que sería interesante unirnos para
realizar algunos proyectos juntos.
[Sergi Cámara e eu começamos a falar em 2005 que seria interessante nos unirmos para
realizarmos alguns projetos juntos.]

Quando surgiu? Quantos integrantes fazem parte do coletivo hoje?


Los 4 fundadores: Sergi Cámara, Héctor Mediavilla, Alfonso Moral, Fernando Moleres
y Tatiana Donoso, que actualmente se dedica a cuestiones relacionadas con "curadoria".
[Os quatro fundadores: Sergi Cámara, Héctor Mediavilla, Alfonso Moral, Fernando
Moleres e Tatiana Donoso, que atualmente se dedica a questões relacionadas com
“curadoria”].

Quais as áreas/especialidades destes integrantes?


Hemos cambiado varias veces la organización. Actualmente, yo me encargo de la parte
financiera y el resto de aspectos nos los distribuimos según la carga de trabajo
individual.
[Temos mudado várias vezes a organização. Atualmente eu me encarrego da parte
financeira e o resto das funções nós as distribuímos segundo a carga de trabalho
individual].

Quais os principais setores e clientes que o coletivo atende?


Nosotros seguimos trabajando individualmente. Los proyectos de Pandora suelen ser en
el ámbito cultural (exposiciones, festivales, etc.).
[Nós seguimos trabalhando individualmente. Os projetos do Pandora são geralmente no
âmbito cultural (exposições, festivais etc)].

Como você vê a questão da assinatura coletiva ao invés da assinatura individual? O


Pandora se denomina uma agência. Você vê diferenças entre o formato “agência” e o
formato “coletivo”?
Los nombres siempre confunden. Incialmente pensamos que era más apropiado
llamarnos agencia, ahora nos llamamos colectivo, pues pensamos que es más acorde con
nuestra actividad. Generalmente firmamos individualmente salvo en los proyectos
colectivos.
[Os nomes sempre confundem. Inicialmente pensamos que era mais apropriado
chamarmos agência, agora nós chamamos coletivo, pois pensamos que está mais de
acordo com nossa atividade. Geralmente assinamos individualmente, salvo nos projetos
coletivos].

Como é a divisão de trabalho internamente no coletivo hoje? Como são tomadas as


decisões? Quem é responsável pelo fechamento de contratos? Quem resolve que
fotógrafos estarão envolvidos com determinado trabalho? Quem faz a edição? Quem
faz a revelação digital? Quem busca e/ou decide sobre a abertura de novas frentes,

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sobre novos projetos?


Como dije, hemos cambiado varias veces de organización. Ahora mismo, estamos
repensando el organigrama.
[Como disse, temos mudado várias vezes de organização. Agora mesmo, estamos
repensando o organograma].

Seria possível falar um pouco sobre o organograma do Pandora? Do chefe mais alto
até a base? É um organograma estático, rígido ou podem haver flexibilizações de
acordo com o projeto envolvido? Seria possível desenhar este organograma com as
pessoas, funções e ligações?
Como he dicho, es flexible. Actualmente, no tenemos un modelo definitivo. Vamos
adaptándonos a las circunstancias personales y socioeconómicas.
[Como foi dito, é flexível. Atualmente não temos um modelo definitivo. Vamos nos
adaptando às circunstâncias pessoais e socioeconômicas].

Como se dá o processo criativo no coletivo Pandora? Onde vocês buscam referências?


Quais as fontes de informação?
Me veo incapaz de responder a esta pregunta. Varía según los casos, todos los miembros
tenemos nuestras referencias y continuamos trabajando individualmente. El proceso
creativo de Pandora depende de cada proyecto. En algunos casos viene de fuera,
ejemplo exposición "Motherland" para el festival Internacional de Roma 2011, en el que
"Masasam, espacios de creación", trabajan mano a mano con un responsable de
proyecto (en este caso yo) para diseñar una exposición colectiva.
[Me vejo incapaz de responder a esta pergunta. Varia de acordo com os casos, todos nós
temos nossas referências e continuamos trabalhando individualmente. O processo
criativo do Pandora depende de cada projeto. Em alguns casos vem de fora, por
exemplo a exposição “Motherland” para o Festival Internacional de Roma 2011, no qual
o Masasam Espacios de Creación trabalham de mãos dadas com um coordenador de
projeto (neste caso eu) para planejar uma exposição coletiva].

Como é tratada a questão do direito autoral? Se um integrante sai do coletivo, como


ficam os direitos sobre uma obra que teve a sua participação?
No tenemos problemas en este aspecto. Funcionamos como he explicado antes. La obra
fotográfica siempre es de quien la produjo, después dependiendo del soporte y la
ocasión se organiza el proyecto colectivo. Los resultados/ingresos de ese proyecto
colectivo es para el colectivo.
[Não temos problemas neste aspecto. Funcionamos como foi explicado antes. A obra
fotográfica sempre é de quem a produziu, depois, dependendo do suporte e da ocasião,
se organiza o projeto coletivo. Os resultados/receitas desse projeto coletivo é revertido
para o coletivo].

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