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REBELO Marques - Contos Reunidos (Conto - Composição de Carnaval) - Compressed
REBELO Marques - Contos Reunidos (Conto - Composição de Carnaval) - Compressed
MARQUES REBELO
(óleo de José Maria Dias da Cruz)
MARQUES REBELO
CONTOS
REUNIDOS
Prefácio de
JosUÉ MONTELLO
RI0/1977
li
em convênio com o
INSTITUTO NACIONAL DO LIVRO
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA
BRASÍLIA
Capa
EUGENIO HIRSCH
CDD - 869.9301
CCF/SNEL/RJ-77-0100 CDU- 869.0(81)-34
NOTA DA EDITORA:
DADOS BIOBIBLIOGRÁFICOS DO AUTOR vii
BIBLIOGRAFIA DE
MARQUES REBELO (Fernando Sales) ix
0 MESTRE DO CONTO (Josué Montello) xiii
CONTOS REUNIDOS
OSCAR/NA
Oscarina 5
Na Rua Dona Emerenciana 33
Em maio 38
Caso de mentira 43
A mudança 48
Um destino 51
Na tormenta 57
Felicidade 64
História de abelha 69
Uma senhora 74
Espelho 77
História 80
Tragédia 8 1
Uma véspera de Natal 84
Onofre, o Terrível, ou a sede de justiça 86
A última sessão do grêmio 90
TRES CAMINHOS
Vejo a lua no céu 97
Circo de coelhinhos 1 29
Namorada 134
v
STELA ME ABRIU A PORTA
Stela me abriu a porta 147
Depoimento simplório 152
Dois pares pequenos 154
A derrota 159
Serrana 162
Caprichosos da Tijuca 167
Almas no jardim 171
Labirinto 173
Um morto 178
A morta 179
Quatro momentos de um idílio 181
Episódio coreográfico 187
A moça e a Primavera 191
Composição de carnaval 196
Cenas da vida carioca
1933 199
1934 203
1943 206
1952 208
1953 211
Outra véspera de Natal 213
A árvore 215
AVULSOS
Conto à la mode 237
Acudiram três cavaleiros 260
O bilhete 279
vi
NOTA DA EDITORA
DADOS BIOBIBLIOGRÁFICOS
DO AUTOR
viü
BIBLIOGRAFIA
DE MARQUES REBELO
FERNANDO SALES
A. DO AUTOR
ix
Vida e obra de Manuel Antônio de Discursos de posse e de recepção (Su
Almeida. Rio de Janeiro, Ministério cessão de Magalhães Azeredo. Em co
da Educação e Saúde/Instituto Na laboração com Aurélio Buarque de
cional do Livro, 1943; 2.a edição, re Holanda). Separata do 19.0 volume
fundida, São Paulo, Livraria Martins de Discursos Acadêmicos, Rio de Ja
Editora, 1963.
neiro, Academia Brasileira de Letras
20 artistas brasilefi.os (Catálogo). Edi
[s/d]; in Discursos Acadêmicos, Tomo
ções do Museu Provincial de Belas
VII, Rio de Janeiro, Academia Brasi
Artes, La Plata; Ministerio de Jus
leira de Letras [s/d].
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Aires, e Comisión Municipal de Cul O simples Coronel Madureira. Rio de
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Editores, 1944; 2.a edição, conjunta Janeiro, Ministério da Educação e
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3.a edição (Prefácio de Herberto
Sales), Rio de Janeiro, Edições de Brasil, Terra e Alma - Guanabara.
Ouro [s/d]. Rio de Janeiro, Editora do Autor,
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cional do Livro, 1951.
Rio (Texto do álbum fotográfico edi
Cortina de ferro. São Paulo, Livraria
tado pela Agência Jornalística IMA
Martins Editora, 1956.
GE). Rio de Janeiro, 1970.
Correio europeu. São Paulo, Livraria
Rio de
Antologia Escolar Portuguesa.
Martins Editora, 1959.
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Paulo, Livraria Martins Editora, 1959. ção com Francisco de Assis Barbosa).
Cartilha Cruzeiro (Literatura didática. Rio de Janeiro, Livraria José Olym
Em colaboração com Herberto Sales pio Editora, 1971.
e Santa Rosa). Rio de Janeiro, Edi
Encontro na A cademia (Em colabora
ções O Cruzeiro, 1959.
ção com Herberto Sales). Rio de Ja
Pasteur, o inimigo da morte (Litera neiro, Edições O Cruzeiro, 1972.
tura infantil). São Paulo, Editora
Donato, 1960. Vejo a lua no céu (Vinhetas de Percy
Deanne). Rio de Janeiro, Fontana,
Florence Nightingale, a Dama da Lan
1973.
terna (Litemtura infantil). São Paulo,
Editora Donato, 1960. Seleta (Organização, estudo e notas
A mudança (Romance). (Prêmio Lui do Professor Ivan Cavalcanti Proen
za Cláudio de Sousa, do Pen Clube ça). Rio de Janeiro, Livraria José
do Brasil). São Paulo, Livraria Mar Olympio/MEC-Instituto Nacional do
tins Editora, 1962. Livro, 1974.
NO EXTERIOR
La estrela sube. Buenos Aires, Edito A estrela sobe. Lisboa, Edições "Li
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B. SOBRE O AUTOR
xi
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Janeiro, Academia Brasileira de Le ção e Cultura/Serviço de Documen
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José Cândido de Carvalho. "Marques
Paulo César de Araújo. "Marques Re
Rebelo, quem é você", in O Cruzeiro. belo: um conjunto premiado" in
Rio de Janeiro, 7 out. 1967.
Suplemento do Livro do Jornal do
José Osório de Oliveira. Aspectos do Brasil, Rio de Janeiro, 19 jul. 1969.
romance brasileiro. Lisboa, 1943,
Paulo Francis. "Entrevista com Mar
[pp. 24-25].
ques Rebelo", in MarquesRebelo, O
História Breve da Literatura Brasilei simples Coronel Madureira. Rio de
ra. São Paulo, Livraria Martins Edi Janeiro, Biblioteca Universal Popular
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Josué Montello. "Um encontro de
Paulo Mendes de Almeida. "Nota ex
companheiro", in Jornal do Brasil,
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São Paulo, Clube do Livro, 1973.
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Voga, Rio de Janeiro, 31 mar. 1951.
Lemos Brito. O crime e os criminosos
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neiro, Livraria José Olympio Edito Netto). "Cronicaliterária", in A Or
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Mário de Andrade. O empalhador de
1.066-1.067].
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Sérgio Milliet. Diário Crítico, Vol. V.
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Múcio Leão. "Autores e Livros". Rio
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[p. 143]. N.0 66, Belo Horizonte, 2 dez. 1967.
xü
O MESTRE DO CONTO
JOSUÉ MONTELLO
xiü
de observar, num dos capítulos de Na Casa dos 40: "Moderno sem
ser modernista, Marques Rebelo estava dispensado de renegar os
valores por que se batera na mocidade, se pretendesse entrar na Aca
demia. Acresce ainda a circunstância de que a Casa de Machado de
Assis, conciliando antagonismos literários desde que foi constituída,
tê-lo-ia admitido entre os seus sócios efetivos, mesmo que ele houvesse
participado da formidável vaia com que os Modernistas agrediram a
instituição, na tarde da conferência de Graça Aranha sobre o espírito
moderno."
Em outro trecho do mesmo estudo, acentuei ainda: "Em toda a sua
obra de contista, romancista, cronista e biógrafo, Rebelo sempre deixou
sentir a linha clássica de sua vocação literária."
Essa linha se acentua à medida que o escritor acumula seus livros.
Desse modo, os três tomos publicados de O espelho partido, que lhe
servem de remate à obra romanesca, correspondem ao altiplano de
perfeição de sua arte.
De certa forma, retoma Rebelo aí, pela forma do diário, a derra
deira lição de Machado de Assis, no Memorial de Aires. Com esta
diferença fundamental: Machado, sempre que podia, disfarçava-se
diante do leitor, ao passo que Rebelo faz questão de que o reconhe
çam, nas suas iras, nos seus amores e nas suas ternuras.
Convém guardar na memória, para bem apreciar o mestre de Três
caminhos, esta linha do primeiro tomo de O espelho partido: "Sou
leitor de mim mesmo. Isto é importante."
Nessa confidência ocasional, não se há de identificar o Narciso,
que se rejubila na contemplação de si mesmo, e sim o artista, que
repensa o que lhe saiu da pena e luta contra a própria fluência, para
que a densidade de seu pensamento fique contida nas palavras essen
ciais. E é do mesmo livro esta lição de estilo: "O que se puder
escrever em duas linhas, nunca escrever em três."
A compreensão da literatura, na ordem dos valores clássicos, Rebelo
a sintetizou nestas palavras de O Trapicheiro: "A literatura é um baile
com casaca obrigatória. Um cavalheirb de terno branco pode forçar
a porta e entrar. E pode dançar, se divertir muito, e até ser citado
pelos cronistas elegantes, todavia estará sempre sujeito a ser posto
para fora do salão."
Compreende-se que, andando o tempo, o romancista que, em mais
de uma página risonha, e mesmo áspera, zombou da Academia e dos
acadêmicos, chega a envergar o fardão verde para ler o seu discurso
de posse, visto que cada um de nós, segundo a advertência do pro
vérbio francês, acaba sempre por seguir a estrada que passou na
sua aldeia.
Eu próprio lhe disse, quando ele lá chegou com o aplauso de meus
votos, que a Academia é apenas um episódio solene na vida literária
e não um acontecimento na literatura. E ninguém mais exemplar
que Rebelo, na gravidade de sua poltrona. A Academia estava nele,
xiv
por uma inclinação natural de seu espírito. Seu caso tem analogia
com o de Manuel Bandeira e o de Alceu A moroso Lima, também
acadêmicos, não por luta ou empenho, mas por derivação natural,
no plano dos valores estéticos.
Pouco antes da morte de R ebelo, pedi-lhe que escrevesse dois .tra
balhos: um, sobre o carnaval carioca,· outro, sobre Manuel Antônio
de Almeida. E ele, que andava com o tédio da escrita, logo encontrou
entusiasmo para tirar do tinteiro os dois estudos admiráveis.
Folião por gosto; sabendo integrar-se na multidão para acompa
nhar-lhe os ritmos e as cantigas, só nos últimos tempos Marques R e
belo pôs de lado o seu dominó festivo, que nunca julgou incompa
tível com o seu fardão acadêmico. E que a alma carioca sempre
prevaleceu na sua sensibilidade, dando-lhe o gosto da terra e da gente,
no contorno inconfundível de suas paisagens e na pura alegria de
seus folguedos.
Essa mesma alma o aproximou de Manuel Antônio de Almeida,
de quem se fez o apologista e o biógrafo. Suas pesquisas relativas ao
romancista das Memórias de um Sargento de Milícias situam-se
no plano dos estudos fundamentais para o conhecimento da vida e
da obra do criador do Leonardo Pataca. Mas a inclinação maior de
seu espírito, aquela que falava mais alto, ele a reservou para o culto
a Machado de Assis - sobre o qual escreveu uma página de irre
primível ternura, no segundo tomo de O espelho partido.
A técnica em mosaico, que Machado de Assis empregou na com
posição dos seus melhores romances, era também a técnica de Rebelo.
Concordância de discípulo com o mestre? Algo mais profundo: ambos
teriam em grau superior o gênio da narrativa breve, que lhes deu a
mestria do conto urbano. Assim, na origem do romancista, estava
o contista, tanto no mestre de Dom Casmurro quanto no mestre de
Trapicheiro.
Reúnem-se neste volume os vários livros de contos de Marques
Rebelo. Esta visão de conjunto nos permite reconhecer que o conto
era efetivamente a sua vocação mais alta: permitia-lhe a síntese da
vida na síntese da página literária harmoniosamente trabalhada.
Lembro-me de ter ouvido Gracialiano Ramos recitar, ao fundo da
Livraria José Olympio, na Rua do Ouvidor, trechos inteiros de "Na
Rua Dona Emerenciand', de Oscarina. Sinal de que o prosador de
Vidas Secas encontrava nesse conto de Marques Rebelo o traço da
obra-prima. E esse traço realmente existe, não apenas aí, mas na
maioria dos contos que lhe saíram da pena torturada.
Ele é, na sua geração, o contista por excelência. E só não se liga
diretamente a Machado de Assis, como seu sucessor natural, porque
antes dele, e para uni-los, veio Lima Barreto.
Rio, novembro de 1976.
XV
CONTOS. RElTNIDOS
OSCA R/NA
TR2S CAMINHOS
STELA ME ABRIU A PORTA
AVULSOS
OSCARINA
OSCARINA
]]
III
IV
13
preso à lapela por uma fitinha preta e máximas de absoluta morah
dade na ponta da língua para uso da meninada.
Invadia-lhe uma inveja mórbida e constante dos vizinhos, o Jonjon
- que apelido! - o Cazuza, o Gabriel, que comprara uma barata
amarela. Estava escrito que aquilo de estudar não era para ele, não.
Precisava, quanto antes, mudar de vida, senão arrebentava. Cair na
gandaia como os outros, gozar enquanto era moço. Se ainda tivesse
dinheiro .. . A mesada do pai era uma miséria, sessenta mil-réis,
não chegava para nada. Reconhecia: coitado do pai, não podia dar
muito, já até dava demais. Mas se enfurecia imediatamente: se não
pudesse, que o deixasse livre, que ele não estava para viver com
sessenta mil-réis até o dia de se formar! Que não o empatasse com
a tal mania de querer que ele fosse doutor! Doutor . .. Grande
coisa! Todos eles uns jumentos!
Livre! Como seria outra a vida, que forra tiraria dos anos em
que vivera preso! Logo de saída procuraria um bom emprego, ga
nharia bastante, seria da turma, do pessoal batuta e fregista do
Bilhar Primavera e do Café Pernambuco. Formaria uma trinca ma
luca : ele, o Donga, assombro no cavaquinho, e o Bilu, uma das suas
sinceras admirações, por ser o sujeito mais peludo para pequenas
que conhecer à. Acabava com as farrinhas escondidas, farrinhas de
durante o dia, apertadas, cheias de temores e receios : Se papai
souber ... Se Seu Franco encontrar com papai e perguntar, com a
prolixidade irritante que lhe é peculiar, por que razão não fora ele
à aula prática de Física, tão interessante, tão recreativa, sobremodo
amena, a base propriamente dita de todo o ensino moderno no con
ceito firmado dos mais eminentes pedagogos, a aula que o aluno
aprende com os olhos, só com olhos, sem cansar ...
Se trabalhasse, faria o que lhe desse na cabeça, ficaria na rua,
passaria a noite na pândega, voltaria para a casa de madrugada na
barata do Gabriel, comprada em terceira mão por uma bagatela,
alcunhada simultaneamente de Lacraia, Draga, Banheira, e que o
pró prio dono achava "mais indecente que Bocage". Trabalho duran
te o dia ali no pesado, à noite quero gozar - argumentaria, e nin
guém podia dizer nada que o argumento, vamos e venhamos, era
de peso e medida.
Foi quando principiou a dar sistematicamente em cima da mãe.
Ela não se entregou logo porque n_ão compreendia muito bem o que
ele queria. Acabou compreendendo: "Tinha razão. .. Pensava
bem .. ." Com o pai, o caso ficou mais fino que o homem tinha
lá seus planos formados, sabe Deus há quantos anos.
- Eu quero que você se forme, meu filho, tenha um título, não
pelo simples fato de ser doutor, que doutor não quer dizer ciência
- ah! isto, não - mas é que sempre um diploma vale qualquer
coisa nesta terra. É um mal, não nego, é um grande mal, mas o
certo é que há mais facilidades para se arranjar boas colocações,
14
às vezes até um bom casamento! . . . Olha o Dr. Borges! Era um
pronto quando eu o conheci, numa farmacinha muito à-toa do Ca
tumbi, como prático. Prático nada, lavador de vidros! Defende dali,
defende dacolá - pergunta à sua mãe que ela sabe - meteu-se
na escola e se formou. Andou marombando ainda uns tempos e
conseguiu a tal sinecura na Saúde Pública. Entrou na linha do vento,
meu caro! Não fazia nada, vivia socado em cinemas, bailes, teatros,
e zás! arranjou a filha do Godói. Três mil contos, meu filho, em
dinheiro batido!
Jorge não acreditava nessas histórias: o que ele teve foi muita
sorte! - e continuou na obra de sapa. Afinal, Seu Santos se ren
deu. Dona Carlota fora colossal para convencer o marido, que tive
ra, então, a frase: "Depois não se arrependesse . . . "
- Arrepender, meu pai?! Eu?! . . . Pois se sou eu que quero! . . .
Cava daqui, cava dali, o irmão do seu padrinho, que estava no
Norte, interessou-se e arranjou-lhe o emprego - Souza Almeida &
Cia. Simpatizara com os modos de Seu Almeida, trabalhara com
uma energia sincera e, no fim do mês, era aquilo que se vira -
cento e vinte mil-réis. Adeus, farras sonhadas! Antes os sessenta
mil-réis da mesada, que ao menos eram sessenta bagarotes sem des
pesa. Esteve aos três por dois para pedir ao pai. "Eu quero con
-
tinuar os meus estudos." Que o pai abriria logo os braços, sabia
muito bem, mas temeu ver-lhe cortada a liberdade que adquirira e
preferiu ficar com ela, passando misérias, pedindo dinheiro à mãe,
que o tirava com dificuldade das despesas da casa, comprando me
nos carne, atrasando um pouco a conta da padaria, inventando con
sertos no fogão, de maneira que Seu Santos não desconfiasse.
Pensou em sair do emprego e arranjar com calma um outro, mas
pôs logo de parte este pensamento, que não traria uma solução cabal
para a sua vida, tão difíceis andavam os tempos, tantas queixas ouvia
da falta de trabalho. Melhor seria se agüentar até as coisas melho
rarem e foi o que fez. Esfalfar-se é que não, uma ova! Para quê?
Cento e vinte mil-réis é dinheiro? Estava lá para ficar tuberculoso
por uma porcaria daquelas? Uma beleza o tal de trabalho dali por
diante. Calma no Brasil! Nada de fazer força inutilmente, nada
de canseiras sem proveito. Bastava a experiência que tivera. Agora
era tratar de não ser mais tolo. Uma pacova que ele fosse aos ban
cos correndo, afobado como ia! . . . Pressa para quê, se não ia tirar
o pai da forca?
Souza Almeida, possuidor de largo tino comercial, não levava,
porém, para melhoria dos seus negócios, a sua sagacidade até à tra
ma sutil dos pequenos acidentes de escritório, tanto assim que não
percebeu as artimanhas de Jorge, que, verdade seja dita, soube fazê-las
com finura.
"Muito bem educado este menino", elogiava por vezes ao ver o
interesse diplomático que Jorge mostrava por sua terrível dispepsia
15
e por suas contrariedades comerc1a1s. O socto, que falava por mo
nossílabos, confirmava : É - e afundava-se nos cálculos do balancete
mensal. Seu Gonçalo era o eco do patrão. Jorge agradecia com
um sorriso modesto e rosnava pesadíssimas obscenidades que nin
guém percebia.
VI
17
desrespeitoso com gente do seu sangue, afinal, preferiu guardar, que
não faltaria ocasião para soltar a l íngua, tinha certeza.
As casas adormeciam, apita o guarda-noturno, brincam os raios
da lua nos galhos da amendoeira. Despediram-se.
- Adeusinho!
____..Adeus.
Ao chegar em casa, deitado na cama, pronto para dormir, é que
se lembrou da face financeira da proposta. Como poderia se casar
com duzentos e cinqüenta mil-réis por mês? Era o que percebia no
emprego, sem o protocolo, entregue, então, aos cuidados dum em
pregadinha novo, imberbe e rosado, o Gouveia, que ele, com parte
de antigo, fazia de cristo, sem piedade.
Precisava duma saída para a entaladela em que se metera. Gostava
de Zitã, gostava, gostava até demais. E que esposa melhor do que
ela poderia encontrar? Casar com mulher rica é muito bom mas é
para os trouxas. Era bonita, bem feita de corpo, inteligente, não
era assanhada como essas melindrosas que andam por aí, conhece
ra-a desde pequeno, sabia quem ela era. Mas como poderia casar
sem o suficiente para viver? Seria loucura. Teria que se movimentar
para obter uma colocação melhor. Assim, sim. Mas para que lado
havia de se mexer? Tudo tão difícil, tão negros os horizontes do
comércio. . . A crise, a crise! - era o fantasma de todos. Aí se
lembrou que não era reservista. . . Upa! Precisava tirar a cader
neta quanto antes, senão poderia ser sorteado. Sorteado? Pronto,
tinha uma idéia! Uma idéia brilhante e salvadora! Iria assentar
praça no Exército como voluntário. Teria assim um ano e tanto de
espera forçada, quando saísse entraria para um ministério ... Ru
minou isso três dias, acabando por se abrir com a namorada.
Zita pesou as coisas e ficou de acordo - está bem, sim __; mas
veio a ele o receio de expor ao pai a sua resolução. Era maior,
pensava, mesmo que ele não gostasse, pouco lhe daria e iria mesmo,
resolvendo a situação a parodiar a maneira de agir, pessoal e resoluta,
do Pereira, o cabeludo carregador da casa: "Achou ruim? Faz
meio-dia ! " Dominava-o ainda, porém, o respeito pela bengala, o cé
lebre junco verdadeiro. . . Sebo ! Que o pai não se atreveria, ele
não era mais nenhuma criança ! Vá para o diabo o temor! Quem
não arrisca, não petisca. Arriscou e esperou o cataclisma, um ven
daval, um tufão, pois quando o pai se zangava era uma tragédia,
perdia a cabeça, tinha asperezas lusitanas, reminiscências nítidas do
"'"'
avô : 'Dou-lhe uma tarracha que o escacho! Quebro-lhe o meu
junco nas costas, patife!" crescia a voz e colocava muito b em os
pronomes. Veio uma brisa mole: "Faz o que você entender, rapaz."
Pasmo! Ponderou, tirou conclusões. . . Ah ! Seu Santos andava nas
vésperas de ir para segundo-oficial na vaga de Seu Castro, o asmá
tico, "que tinha ido - como ele dizia sarcástico e piedoso - para
o mundo dos anjinhos". Sentia-se, pois, nestas belas perspectivas,
18
muito feliz, duma grande benevolência, com projetos de, com o au
mento, comprar um terreno, a prestações, no Encantado, para mais
tarde construir uma casinha, pequena, mas confortável. Bangalô é
que não. Queria uma casa decente. Interrogava a mulher : " Que é
que você diz disso, Carlota?"
Jorge chispou para a namorada. "Tudo às mil maravilhas, filhinha.
Como nós combinamos, acabado o tempo, já sabes, cavo um em
prego público, que o comércio anda uma bagunça, e nos casamos."
- Você vai ficar muito feio fardado - brincou.
- Pois eu acho que não, vai ver.
- Você é um monte de ossos, e farda não tem enchimento! . . .
Caíram os dois às gargalhadas.
Na vizinhança, correu logo que estavam noivos. Ele gozou. Ela
confirmava, ruborizando-se:
- Sim, noivos intimamente, bem entendido, entre nós . . . Quando
acabar o tempo . . .
O coronel reformado é que torceu o nariz com aquelas intimidades,
mas não fez nenhuma oposição porque tinha absoluta confiança na
filha.
VII
VIII
19
de pomba no fundo, incapaz de matar uma mosca, perdoando todas
as faltas dos soldados, mas jurando, entre injúrias, "que para a ou
tra vez era ali na batata!"
Aborrecimento de se ver obrigado a fazer exercícios, a sueca prin
cipalmente, que o instrutor, Tenente Dantas, mais moço do que ele,
era um chato de primeira . Abominava os plantões forçados, a cair
de sono e de cansaço, nas noites frias como gelo. Enervava-se com
a pasmaceira das horas de folga, dentro da caserna, sem poder sair,
sem nada para fazer, vendo a cidade, lá longe, viver ao sol, rútila
e colorida, a sua agitação cotidiana. Gozo de matar na cabeça a
passagem do bonde, olhando do alto para o condutor xepa.
- Que é que você quer, portuga?
Não pagar. Não conhecia ainda, na vida de soldado, coisa melhor
do que a carona. Sem tostão no bolso, cismava de ir à cidade pas
sear, tomava o bonde, ficava de pé atrás, e ia mesmo.
Culôte recortado, justinho e redondo, elegância muito gabada na
bateria pelos entendidos, passou por "crente", entre os soldados re
laxados, por causa das perneiras paraná engraxadíssimas.
Tempo de recruta, de exercícios, meia-volta-volver, ordinário-mar
che, formar por dois, "que é um canhão?", "quais são os deveres
do soldado?", "em quantas partes se divide um fuzil Mauser?" Borg.
tempo.
Passou a pronto. Cabo Maciel corneteiro, há oito anos seguros
tocando na bateria silêncio e alvoradas, caiu da sua altiva mudez :
- Agora, sim, você é soldado com todos os fff e rrr.
Reclamava a bóia, a gororoba, todos os dias : "Temos garopeta
outra vez?" Garopeta era cação ensopado, prato de resistência das
sextas-feiras. Sargento Curió, encarregado do rancho, abria uma fi
leira de dentes alvíssimos : "Quá! Quá! Quá!" Os camaradas go
zavam: "Este sujeito tem graça!" Começou a ficar desleixado, pe
gou xadrez por estar assobiando a Dondoca na formatura para a
revista, abriu esbregue com o Louva-Deus, o Espinafre tomou as
dores do outro, foi um salseira no corpo da guarda, dormiu três
noites na solitária.
IX
20
- Ai! que lindo, meu Deus! - puxou a amiga: Veja aquele
pançudo, F1orinda! . . .
O pançudo era um cupido de celulóide, que estava na primeira
prateleira da barraca, enfeitada com papel de seda.
Chegou-se:
- Quanto é, hem?
- Não é para vender não - respondeu o homem, jogando a car-
tola mais para o alto da cabeleira - é para prêmio. E explicou:
Quem acertar dez bolas no buraco, naquele buraco do centro, está
vendo?
- Ahnn! . ..
- Cada bola um tostão. Não quer?
- Eu quero! - e Jorge avançou, entornando níqueis no balcão.
Perdeu a conta das que jogou, mas trouxe o boneco:
- Está aqui.
Oscarina, que ficara torcendo, só pôde dizer:
- Você tem uma mira . . .
Comprou-lhe sortes, ela tirou um paliteiro de metal, pagou refres
cos, convidou-a para o circo. Loura e velha, a mulher que se equi
librava no trapézio foi tratada por Oscarina de mocoronga. O mula
to não se conteve e virando-se para o Jorge externou seu entusiasmo
pelo japonês, mas como fossem poucos os aplausos para o seu pre
dileto, afirmou categoricamente (e Oscarina olhava-o de lado) que a
platéia era ignorante, não reconhecia os méritos, só gostava de pa
chouchadas, não sabia o que era um artista de fato. Os palhaços
eram cinco. A pantomima que fechou o programa foi engraçada e
mereceu palmas e elogios. E, quando acabou a função, Oscarina tinha
tomado conta dele.
Pararam em frente ao palacete colonial, branco e sem luz. Ele
se admirou:
- Bonita. É aqui que você trabalha?
- É. Quer entrar? - encostava-se, balançando-se, na grade de
ferro, tentadora, provoc.ando.
- E os patrões?
- Estão em Petrópolis, veraneando. Eu estou tomando conta da
casa . . . - deu uma risadinha: Quer me ajudar?
Ficou receoso :
- Olhe lá, hem! . ..
Oscarina arrastou-o pelo braço:
- S'é bobo! Deixa de medo. Vem . . . - e virando-se para
avisar: Mas pise no cimento com jeito para os vizinhos não ouvirem.
Preferia morrer a perder uma sequer daquelas noites delirantes.
Sentia desvendado para ele o segredo da vida. Que de revelações,
que de êxtases, peito contra peito, desejo contra desejo, a sua moci
dade e a juventude dela. Com que olhos diferentes via as manhãs
e as noites. Lua, grande lua - contemplava-a, na guarita ao dar
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serviço - como te acho diversa, sublime, poética, agora que eu
conheço o amor!
Saudoso : que estará fazendo ela a esta hora? - martirizava-se em
interrogações, nas horas intermináveis do quartel.
Com que sofreguidão, à noite, se lançava nos braços mil vezes an
tevistos e desejados durante o dia :
- Oscarina!
- Como é aquele samba mesmo, Jorge? - e chupava os dedos
lambuzados de cocada preta.
- Qual é? . . .
- Aquele de ontem, meu filho, da mulher ingrata.
- Ah! Já sei! . ..
Afinava a voz, pigarreando :
- Mas os vizinhos?
Eles que se danem! - retrucou decidida.
Maria . . . Maria . . .
A q uela ingrata
que roubou minha alegria . . .
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Ficou aborrecido, espichado na cama, machucando o papel nas
mãos ásperas de tanto lixar cano de carabina. Quase deserto o dor
mitório. O Cobra D'água remexia a mala de courinho, cuja tampa,
internamente, era completamente forrada de gravuras coloridas, na
maioria mulheres nuas, que ele cortava das revistas. Peru, com uma
escova - de dentes, limpava as perneiras com meticulosos cuidados. O
sol entrava pela janela e iluminava em cheio o Altamiro, entre as
duas filas de camas, jogando boxe com a própria sombra. Moscas
zumbiam.
Peru forçou o silêncio:
- Você tem muitos percevejos na sua cama, Jorge?
Não lhe deu resposta. Desamarrotou a carta e releu-a:
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Não perdeu a linha :
- Ê cá um plano que eu tenho. Mais tarde, faço exame para
sargento e peço transferência para a Escola de Contadores . S aio de
lá oficial intendente, com um ordenado que é uma mina! Não é boa
a idéia?
A Zita agradava-lhe a farda. O pai era militar, o avô também o
fora. Apoiou-o :
- Ê.
O interessante é que se meteu no concurso mesmo . Seus objetivos,
porém, eram outros . Oscarina andava exigente, reclamava a falta de
dinheiro, que vivia presa em casa como uma freira, não a levando a
lugar nenhum, ela que gostava tanto de se divertir . . .
- Por que você pensa, Jorge, que não cansa aturar o dia inteiro
Dona Flora? São visitas a não acabar mais . E o marido é o tipo
do suj eito ranzinza, impertinente, que acha tudo ruim, malfeito. De
noite, estava com a cabeça cheia.
- Mas se eu ganho só vinte e um mil-réis por mês, meu ben
zinho? - explicava abraçando-a e beijando-lhe a face com ternura.
- Não quero saber de nada, procure ganhar mais ! . . . - e re
pelia-o com a cara trombuda.
Pôs o relógio no prego, um relógio-pulseira, presente da mãe no
seu último aniversário, quis comprar um perfume Coty, mas o di
nheiro não dava, comprou um Fanal, o caixeiro fez um embrulho
frajola, levou-o a Oscarina.
- Onde você arranjou dinheiro para isso, camundongo?
- Vendi o relógio. Não deu nada. Tanto que o perfume não é
grande coisa, mas você não repare, que foi dado de coração .
Oscarina se comoveu :
- Que loucura! Eu não pedi nada. Não faça mais dessas!
- E o que você disse ontem?
- Foi brincadeira, meu bem. Então você não viu logo? . . .
Ficou sem palavras, olhando-a, sem compreendê-la. Ela se chegou,
enlaçou-o, os braços pendurados no s eu pescoço :
- Você tem um bruto xodó por mim, não negue . . . Se eu
morresse . . .
- Não fale . . . - tapou-lhe a boca com um beijo profundíssimo .
Ela rendeu-se, caíram na cama, mordendo-se mutuamente, sob a
luz fraca da lâmpada.
Fazia calor . Um cheiro a mofo dominava o quarto.
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( havia um outro magro ) fungava, lançava olhares inquietos sobre os
homens da turma que preparara, não fossem eles responder b estei
ras e deixá-lo exposto a alguma repreensão severa dos superiores . O
Saracura tremia. Galinhas cacarej avam na casa do comandante.
- Três vezes seis, dezoito . Três vezes sete, vinte e um. Três vezes
oito, vinte e quatro . . . - a voz se arrastava como se a estivessem
puxando .
O 163 foi espinafrado porque respondeu cheio de vergonha, a cara
prestes a estourar de sangue, que três vezes oito eram vinte e
cinco . . . Houve risos incontidos . O capitão espertou. Remexia-se
na poltrona, não achava cômodo, passava o lenço no pescoço, im
paciente, doido p ara acabarem logo com aquilo, mas Tenente Amé
rica, muito compenetrado, fazia perguntas sobre perguntas .
- O verde da nossa bandeira significa a riqueza das nossas
matas sem fim . . .
- Muitó bem! - aplaudiu Tenente Cristóvão, um magricela, b a-
tendo com o lápis , aprovativamente, na mesa. - E o amarelo?
--; O nosso ouro !
Apresentaram-lhe o fuzil :
- Que peça é esta? - e apontavam.
Alça de mira .
- E aquilo ali?
- Ranhura.
A ãprovação foi lida de tarde, no boletim do dia. Seria cabo.
Seria, vírgula, j á se considerava cabo, tanto assim que, antes de pro
movido, passeou arrogante, com as duas divisas pretas num braço
e a Oscarina no outro, pela Praia de Botafogo, fervendo de gente, no
domingo de regatas .
A promoção não demorou a vir, entre parabéns de uns e profecias
de outros : isto vai ficar um tesa que ninguém agüenta. Viva! Uma
bebedeira notável com Oscarina, que entrou firme na Hanseática, e
alugaram um quartinho no barracão de Seu Pinto bem no alto da
Vila Rica, porque os patrões dela já tinham descido da serra e es
tavam ficando perigosos os encontros no seu quarto, ao fundo do
jardim , em cima da garagem. .
- Isto aqui é bonito, não? - fazia ele, se espreguiçando, a túni
ca desabotoada, as pernas abertas, sentado no caixote de querosene .
Ela também achava.
As avenidas eram colares luminosos na orla do mar. A aragem
fazia tremer, brandamente, as folhas da goiabeira ; altas , puras no
céu, estrelas lucilavam.
Gargal!t ou a coruja na socada de bananeiras . Oscarina se arrepiou,
persignando-se :
- T'esconjuro !
Jorge sentiu o coração pequeno. Um frio de morte gelou-lhe o san
gue nas veias . A lua era branca.
25
XI
Xll
26
Ela, porém, chorava, estirada no chão, descabelada, arfando, es-
condendo o rosto entre as mãos .
Depois da surra ficou pelo beiço :
- Gila . . .
Atirou-se a ele, devorou-lhe a cara com beijos ferozes .
- Deixa eu catar um piolhinho? - implorou, transbordante de
candura. - Deixa, hem?
Ele, estirado na enxerga, já ressonava, babando-se. Oscarina, en
tão, sentando-se na cabeceira, começou a suspirar e contemplava-o.
Como estava ficando queimado do sol . Era de tantos exercícios .
Coitado d o meu bichinho ! - coçava-o .
Deixou definitivamente de ver a Zita. Ora a Zita! . . . Uma bo
bagem, que a gente quando é criança faz muita besteira assim.
Comparava-a com Oscarina, dum lado para o outro do cômodo,
-
muito dengosa, os brincos de argolas caindo-lhe até os ombros,
ajeitando a todo instante a gaforinha alta, sedosa, à la garçonne, ar
rumando as coisas, dando por falta de camisas dele, "aquela amareli
nha com uns risquinhos" - quer ver que a Zeferina perdeu? ! . . .
e punha o dedo na boca.
Havia um pouco de parcialidade, mas o certo é que a Zita saía
perdendo.
Oscarina estacou :
- Estava para dizer uma coisa . . . - e fitou-o com uma cara
muito sonsa - mas tenho medo do seu gênio.
- Que é? - interrogou-a, levantando, brusco, da cadeira.
- Está vendo? Por isso é que eu não queria dizer nada ! Você
fica logo exaltado, como se isso adiantasse alguma coisa . . . Virgem
Santíssima! . . .
- Que é? - repetiu.
---< Você promete que não fará nada?
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Soltou um suspiro fundíssimo de alívio, como se tivessem tirado
de cima dele um peso que o esmagasse : só isso? !
Mas roncou :
- Deixe ele comigo . . .
E não foi promessa vã. O 1 23 apanhou dez dias de xadrez, ali
no duro, porque Cabo Gilabert que em matéria de autoridade e dis
ciplina, agora, não estava sopa não, deu, por caus a da limpeza do
rancho, uma parte dele que metia medo .
XIII
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XI V
29
- Que criança linda! Veja - travou a companheira, que não
reparara e continuara a andar, e apontou : Será aquele o pai?
Ele também duvidava.
Comprara-lhe, num aniversário, uma roupinha à marinheira, ver
melha, a gola e os punhos brancos. Presenteara-o também com uma
bengalinha. E ele ganhava pouco. Quantos pequenos sacrifícios !
Mas que íntimas satisfações !
No entanto, os cavalinhos duravam horas, as piorras com música
mal chegavam a funcionar, a bengalinha por um triz que não se
quebrou no primeiro dia. Carlota condenava-o : "Dinheiro posto fora.
Por que você não compra logo uma coisa boa, que tenha serventia?"
Ele se sentia feliz. Como o tempo corre. Isso tudo parece que foi
ontem! Como a gente muda! Onde os castelos arquitetados? Onde
os sonhos
- tecidos? Carlota decaía a olhos vistos. Tudo desfeito, tudo
ruído, tudo acabado! . . . Filho único . . .
O encarquilhadp_ Peixoto, um tuberculoso crônico, soltava pigarros
no fundo do salão. Dona Ester, dactilógrafa, pendurava-se no tele
fone; o servente lia um jornal. Martins escrevia. Três horas. Atra
vés da janela, a Ilha Fiscal levantava-se das águas, como uma apa
rição mágica, sob 9 dia perfeito. E a vela deslizava no azul. Barcas
apitavam. Vozes subiam no pátio.
XV
XVI
XVII
XVIII
31
Não deixa mesmo, que a vida para ele é vida de malandro. Ora
se . . .
XIX
XX
que nada podemos opor, e como era bom com Deus está. Mas não
a deixou sozinha, pense bem. E os filhinhos? E . . .
Dona Veva espantou os olhos gastos para Seu Azevedo, que emu
deceu, e, quando pensou nos seus cinco filhos, aí é que ela viu mesmo
que estava sozinha e de mãos para o céu começou a gritar.
EM MAIO
- BOA TARDE !
- Boa tarde, meu caro, divirta-se.
- Ora! . . .
Disse-me um adeus, superior, com a ponta dos dedos, abriu a des
carga e o automóvel partiu numa velocidade ostensiva, um ranger de
freio ali, uma curva fechada na esquina mais adiante, que arrancou
gritos das mocinhas . São os meus passos que me conduzem neste
dia límpido de maio, depois da conversa rápida com o Carlos, o
gordo, o rico, o invejado, sobre os acontecimentos triviais que as
folhas noticiaram pela manhã. Já passei o bazar onde as montras estão
fechadas e ã casa de balas, onde a francezinha, que não é loura como
quisera, prazenteiramente, o meu amigo, vende também sorrisos ; j á
atravessei a rua d e maus paralelepípedos por onde passam o s bondes
barulhentos. Vou cruzar a avenida, mais larga, mais arejada, mais
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batida de luz. Vivo, incandescente, um imenso sol inunda a praça
de ardores africanos . Ê domingo. O homem, que espera o bonde para
a cidade, já foi o meu padeiro. Chama-se Almeida, é magro e veio
da terra. Uma vez, voltando do Fluminense, cansado de gritar pelo
Vasco, foi abordado por um homem melancólico do Exército da Sal
vação, que lhe falou copiosamente, numa esquina propícia, de coisas
que desconhecia. Como vinha confuso do campo, a exaltação ainda
não extinta dentro do peito, nada compreendeu, de quase nada se
lembrava. Como era a sua cara? Esquecera. E o timbre da sua voz?
Também. Só não lhe fugiram mais do pensamento aquelas palavras,
que afinal, por bem dizer, não sabia ao certo se eram de Jesus : "Ga
nharás a vida com teu suor." Se ele ganhava! . . . Agora vai risonho,
leva contente o coração simples, gira a bengala airoso. Sua roupa cor
de tijolo espanta os olhos elegantes e exigentes. Veio para cá há
muitos anos, tem vontade de voltar, um dia, para se acabar dentro
da mesma paisagem minhota que o viu nascer e por única ambição
- ser gerente. Para isto não se poupa - apanha sol, apanha chuva,
dorme tarde e acorda cedo, agüenta sorridente as descomposturas da
freguesia. O doutor, que dá consultas grátis na farmácia, já lhe acon
selhou com um gesto paternal : toma cuidado, rapaz!
*
CASO DE MENTIRA
A MUDANÇA
50
de dálias , humilhando todas as outras, mesmo aquela pequena, tão
simples : "Tua mãe e tua irmã".
Quando tudo acabou, a cova cheia, os passos em cima da terra -
bem se ouviam - afastando, senti-me livre, só, aliviado . Enfim !
Uma ânsia, porém, s em limites se apossou de mim, agora que eu via
tudo, pois vi a minha casinha humilde na Rua Dona Constança, de
serta de todos os meus sofrimentos . Vi e quis voltar para lá, para o
meu desespero, para a minha dor, a febre, o peito aflito, a asfixia
e esperar a hora da poção - esperança, esperança ! - que minha mãe
vinha dar, os olhos úmidos .
UM DESTINO
51
gadas, de gastar domingos inteiros e feriados, a estudar, enquanto os
primos iam para o futebol ou para o cinema. O Juca, muito cheio
de espinhas, estava como chefe ou subchefe, nem sabia, na Standyfor
Company; Miquelino, o mais moço, que casara com a Dulce, e era o
braço-direito do sogro no Sindicato Nacional do Café, já lhe falara
num bangalô em lpanema. Ele ficara no que era, pouco melhor com
a Tabela Lira, empregado na Central, com plantões noturnos e via
gens forçadas que o fatigavam imenso. E não que foss e menos ativo
que o Juca e não que escrevesse absolutamente com b-i como o
Miquelino. Era uma injustiça pensar mal do Miquelino , tão bom,
tão esforçado, vivendo para a família. Ele também para muitos não
valia nada. Ingratidão sua, não há por onde escapar, pois o Miquelino
era muito seu amigo, queria-o até para padrinho do primeiro menino ,
esquecendo amigos ricos . Ele era ingrato e injusto com o Miquelino .
Ingratidão, injustiça, tudo em "in". E quem diria que não fosse invej a?
Não se formara, porque não quisera, pelo que ora se entristecia,
ora s e alegrava. Ficara sem título, com o que sabia, achando que já
era muito e o necessário . Enganara-se porque isso era na repartição
levado à conta de inferioridade e a primeira vez que sentira tal magoara
se profundamente. Fora na discussão com o Dr. Madeira, um enge
nheiro novo ainda na seção, e, porque fizera um curso de especiali
zação nos Estados Unidos, chegara precedido de grande fama . Uma
notabilidade no assunto - informava sempre que era possível, o Mau
rício Pontes ; me dou muito com ele - acrescentava - desde pequeno,
éramos vizinhos , estivemos no mesmo colégio ; é sobrinho do Senador
Madeira, um rapaz de muito talento, não é lá por ser amigo dele
que digo . Vocês vão ver.
Ele reduzia a coisa a pratos limpos, mostrando claramente o erro,
com as estatísticas na mão, na roda dos companheiros que os circun
daram :
- Esta aqui - e batia no papel. - Eu logo vi que o senhor
estava errado : o cálculo tem de ser feito em metros.
Dr. Madeira, enrubescido, gaguej ara uma defesa, mas ele foi decisivo :
- Não acredita? Quer que eu faça os cálculos na sua frente?
Pois bem. - E ia buscar lápis � papel quando o Melo Cunha se inter
pusera, adoçando a voz de dentes maus :
- Ora, você, Antônio, afinal de contas um rapaz inteligente, a
querer discutir com um doutor? ! . . . Tem paciência, meu velho . . .
O "é mesmo" foi geral. Ele não era doutor? Paciência . . . Meteu
a viola no saco e foi para a sua mesa acabar uns mapas . Ele não era
doutor . . . Ele não era nada - falava alto . O Castro abriu a boca
grotesca, espantado . Deus sabe o que faz. Deus . . . Deus . . . Um
amolecimento . . . Suava . . . Que calor! Ligou o ventilador. O Castro,
cauteloso, foi botar o paletó .
Toda a sua vida tinha sido um rosário de surpresas vexatórias . O
emprego düícil que arranjara, aos vinte anos, sem políticos por si,
52
num concurso com mil candidatos , não tentara Marita, que adivinhara
dificuldades e privações . Se foss e outra, talvez . . . Mas era ela, que
nunca as tendo sentido na vida de moça, não as queria depois na de
casada. Fincou pé : Vamos esperar mais . - Vamos.
Veio a comissão em Mato Grosso ; combinaram, naquele domingo
chuvoso, quando voltavam da casa de Dona Margarida, uma amiga
dela, que dera uma festinha de aniversário - ganha-se mais , ajunta-se,
é negócio . Ela achou que sim e ele foi . Veio a doença da tia Xinoca,
que o criara, e a levou em três dias . A caderneta do Banco Comercial
ficou reduzida a pouco mais de cinqüenta mil-réis . O procurador,
muito zeloso, informara que a casinha do Rio Comprido precisava de
consertos urgentes : "O muro caiu e há uma intimação da Saúde
Pública." Se fosse morar nela, não precisava tanto, que tudo com
gratificações ao fiscal se arranjaria. Você quer? Com o que ganho
viveremos . . . Achou que não, ela, numa carta em que a experiência
da mãê apareceu entre s audades duvidosas .
A comissão acabou naquele maio florido. Voltou magro , mais lívido,
mais alquebrado. Estás um esqueleto ! - explodiu o Almeida, muito
espalhafatoso, abraçando-o em plena rua. Falaram vagamente que ele
precisava tirar uma licença para se tratar : tinha direito ! Era de lei !
- grit� ram com autoridade quando sacudira os ombros. Na sua idade
uma fraqueza é coisa perigosa. Não é para se fazer pouco caso não .
Olha o Zezinho. Olha o Plínio da Maricota. Quer mais exemplos?
Dona Ismênia tinha metáforas : dás com o rabo na cerca, meu filho.
Acabaram por ser francos : Friburgo ou Campos do Jordão . Quem
já viu magreza igual? Assim era impossível casar!
Ficou na Praça da Cancela mesmo, junto com o primo . A cama
era um colchão sobre os caixões cheios de livros . O primo tinha uma
cama-de-vento e morria por conhecer Buenos Aires .
- Ainda hei de ir. Vais ver. Ainda hei de ir - dizia, botando
os olhos no abstrato.
- Nem tão difícil é assim . Basta comprar uma passagem . . .
- M as é que me falta o burro do dinheiro! - berrava dando
murros no ar.
Riam . As noites eram tranqüilas, ele nos seus livros, o primo nos
seus sonhos : a Avenida de Mayo abrindo-se aos seus olhos, o Rosedal,
os cabarés , os tangos, a vida . . .
A caderneta melhorava mês a mês . Você quer? - arriscara, em
purrando-a contra a parede. Ia querendo. Vou te responder, sim?
- Quando? Encostou-se na estante, tema, pensativa, olhos postos nos
seus olhos : Um mês? - Está bem.
Foi arrumar uma encrenca do Gonçalves - aquele animal ! - na
linha do centro . Cois a de quinze dias no máximo, garantira, quando
se despedira, na cancelinha. Demorou-se vinte e um porque o Pinto,
o companheiro, sempre no mundo da lua, errara nos levantamentos .
Quando chegou, o médico ( chamado por causa duma indigestão do
53
maninho ) estava de namoro feito. Revirava por qualquer coisa o
fura-bolos que o anel de grau enobrecia : São hipertrofias .
Dona Maricota, titia, gozava :
- Que rãpaz distinto ! . . . Dá gosto ! . . . E que tino ! Não é mesmo,
Dona Mariquinhas?
Dona Mariquinhas sofria do estômago . Um embrulho depois do
almoço, do almoço só, isto é que era esquisito .
- Tome bicarbonato, minh a senhora. Uma pitadinha e pouca água.
E nada de coisas muito ácidas !
Remexia a gaveta dos retratos, afirmativa, suspendendo no ar a
fotografia de Marita no dia da sua primeira comunhão, que ela pouco
mudara, bonita, pois, desde menina; elogiando o café feito por Dona
Ismênia : isto é o que se chama um bom café! - tocava discos na
vitrola com liberdade.
- Sou doido por um fox - dizia. Até pareço criança, não?
- Qual o quê ! - retrucavam. - É tão natural ! Alegria.
Dona lsmênia era sincera : Eu cá por mim não gosto de gente triste .
O pai de Marita era muito alegre, o doutor nem imagina. Na véspera
mesmo de morrer, coitado, ainda foi a uma patuscada em casa do
Capitão Feij o .
Ele, então, fazia-se bom filho, terno, saudoso, e contava casos da
família no Rio Grande, do pai, dono duma grande estância, campos
a se p�rderem de vista, muito s evero com os filhos , da irmã - uma
pérola! -, da mãe que tinha morrido. Dona Ismênia, com o olhar
enternecido, chamava-o "meu filho".
Sorriu daquilo tudo. Nem perguntou pela resposta. Ficou espe
rando na cadeira de balanço, que agora estava reformada, adivinhando
que ela não viria, s entindo-se esquerdo e desnecessário no meio da
alegria que dominava a casa. Cuidou de se despedir ( desculpar-se-ia :
tenho tanto que fazer! . . . ) mas temeu ser descortês , ferir melindres ,
ficou, entrando pouco na conversação . N o jantar houve indiretas : H á
sempre neste mundo criaturas que têm caveira de burro. Falaram d o
casamento da vizinha que fora transferido porque o noivo , empregado
no comércio, andava atrapalhado nos seus negócios . Foi pretexto :
Quem não pode não casa . . . nem empata - sentenciou Dona Ismênia,
acentuando as palavras . Doeu-lhe fundo . Houve um silêncio irre
quieto e humilhante, que Dona Ismênia cortou, fazendo a voz maternal :
- Minha filha, você quer carne assada?
- . Não.
Os olhos dela, pestanudos, viraram para ele com ternura, talvez
com piedade - e nós? Piscaram dum jeito : - sei lá!
Nunca. Duas semanas depois, era o pedido, que os jornais noti
ciaram, depois houve o brinde, com um anel de pérolas, presente dele,
muito gabado, a azáfama dos preparativos, cose-que-cos e o enxoval,
e o casamento três meses mais tarde, no mesmo dia - de um sol
esplêndido - em que ele, na repartição, era preterido pelo Carvalho,
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José de Albuquerque Carvalho, na vaga para ajudante de engenheiro
chefe.
Ficou sozinho no quarto pequeno da Cancela, que ele achava enorme
agora que o primo o abandonara pela Pensão Nogueira, mais perto do
trabalho, "e com uma bóia decente" . Passava as noites à toa devas
s ando o largo, da sacada, em pijama, indiferente ao vozear que vinha
do Café Vascaíno, na esquina, às estrelas que brilhavam para os lados
da Quinta. Remexia as suas gavetas, rasgando papéis inúteis , dando
um balanço nas coisas velhas da sua vida - cartas , contas , retratos,
pedaços de jornais, certidões . Pegou no velho cartão-postal que o
Adalberto lhe enviara há muito tempo, uma paisagem de Santos .
Santos . . . Ela j á passara p o r lá. Já vira aquelas montanhas, contem
plara aquela praia extensa, vira a luz daquele farol, conhecera aquele
porto que a gravura reproduzia mal . Ela partira por aquele mar,
quando seguira para o Rio Grande, por um fim de tarde, triste, natu
ralmente. Como deviam ser tristes as tardes em Santos ! . . . Sentia
uma melancolia estranha o invadir; sentia uma dor mansa, no fundo
-
da alm a, se misturar a uma saudade absurda das tardes morrentes de
Santos , que ele nunca vira. E deitava a cabeça na mesa num entorpe
cimento, os olhos abertos para a noite lúcida que entrava pela janela.
Às vezes, atirava-se para cima da cama improvisada, o Liberty quei
mando na ponta do braço indolente, estendido, e ficava, numa grande
ternura, os olhos rolando no teto, pensando nela, nos seus gostos, nos
vestidos que tinha - aquele de crepe vermelho que lhe ficava tão
bem! . . . - na covinha galante embelezando o queixo, nas suas ami
zades , a Zuzu, a Santinha, a Eurídice, que casara e lhe escrevia sempre
cartas compridas, contando casos engraçados do marido, "um pândega
de marca maior, mas muito bonzinho" . E vinha-lhe a lembrança, mais
clara, dos passeios que deram juntos com a Eurídice, então noiva, muito
feliz, na Urca, no Leblon, na Quinta, o da Quinta principalmente, por
um sol luminoso de dezembro. Ele estava de roupa nova. Um almo
fadinha, vej am só! - ela troçara. Gente humilde amava por debaixo
das sombras . Os cisnes, muito brancos, estendiam os pes coços lân
guidos para a curiosidade dos basbaques . O sorvete Polar era gritado
pelo negro : É aqui! É aqui ! - batendo uma matraca com furor.
Depois, o beijo grande, o seu primeiro beijo, defronte à tartaruga, na
escuridão propícia do aquário.
Ficava repetindo : defronte à tartaruga. Defronte à tartaruga gigante
do Amazonas . . . Do Amazonas . . . E virava o espírito, sem querer,
para a riqueza perdida da Amazônia longínqua, no descaso dos go
vernos, sem dinheiro, sem iniciativas, sem forças, como uma grande
vitória-régia se estiolando ao sol.
Então, levantava-se de súbito - que coisa mais estúpida é a gente
pensar! - e mesmo sem chapéu, o colarinho desalinhado, s aía para
a rua e ia andando, sem destino, até o Campo de São Cristóvão.
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Aos sábados, pela tardinha, Maria vinha-lhe trazer a roupa lavad a.
Enquanto conferia o rol, ela, sentada na mala, conversava com desem
baraço, fazendo-lhe perguntas que ia respondendo à toa, com pena -
se ele trabalhava muito, se a pensão era cara ( não gostava da cara
da zinha, a dona) se tinha visto a "Ramona", uma fita muito bonita,
muito triste, no Cine-Parque-Brasil?
Veio-lhe depois aquilo, de repente, mais como uma necessidade.
Ficara ainda assim s e devia . . . Lembrava-se da primeira vez . . . Re
solveu-se. Você quer? A resposta foi diversa e sincera : Quero .
Foram morar na casinha do Rio Comprido, muito maltratada pelo
-
último inquilino e que a palmeira, ao lado, diminuía mais . O pri
meiro, muito clarinho, mas o segundo, o Luís, saíra bem à mãe.
Agora, era viver assim, deixa o barco correr, sem ambições, nem
desejos, facilmente, numa felicidade tão estúpida que ele nem sofria.
Com tudo Maria se contentava, para ela estava tudo muito bem. Menos
a pia '.!_a cozinha. Queria outra, uma nova, que aquela era uma por
caria! . . . - Vou botar outra! Vou botar! Deixe acabar o conserto do
banheiro ! Você pensa que eu acho dinheiro na rua? - fazia ele, doido
por um desespero, por uma queixa.
O cachorro acordou assustado . Maria veio da cozinha, cantarolando,
o Luís pendurado no ombro mulato .
- T á falando sozinho, meu nego?
Nem respondeu. Sacudiu a almofada de chitão futurista. Espre
guiçou-se. Pela porta, estava vendo, na sala de jantar, o quadrinho
do peixe no prato fora do lugar.
- Está pes ado do cozido, hem? Faz até lembrar meu pai. Ele
gostava muito . . .
Pesado do cozido, eu! Pesado. Mas que estúpida ! Nem desconfia ! . . .
Teve vontade de descompô-la. Teve ânsias de esmurrá-la . Ela con
tinuava, encostada à parede, por baixo do Coração de Jesus , endi
reitando os bibelôs na mesinha, a contar uma história do pai, por
tuguês, com um patrício, o Seu Vicente. Penalizou-se : coitada! . ..
E ela acabou : meu pai era muito engraçado ! Fazia cada uma que
você nem imagina. Seu Vicente ficou todo molhado . Mas não se
zangou não, eram muito amigos. Eram lá da mesma terra e vieram
juntos, garotos, pra cá.
A varejeira atravessou o silêncio e as palavras foram-lhe atrás :
- Passei a ferro o seu temo, ouviu? O azul-marinho . Tirei a
nódoa também que estava indecente. Era graxa, seu porco !
- É? . . .
- Mas o Lauro me falou que se você não quiser mais . . .
Lauro era o irmão dela, chofer de praça, dono dum Studebaker que
ele comprara em segunda mão, novo, uma pechincha.
Faz o que você quiser - bocejou.
Não dou, não . Ainda serve muito . Pra dia de chuva, então ! . . .
56
O l,:uís embirrou com o Sultão : Sai ! - e quis ir com o papai.
Antônio, sem ação, com o pequeno no colo a brincar-lhe com a barba
espessa e malfeita, não atinava com uma graça, um brinquedo, uma
palavra.
- Sem j eito mandou lembrança - caçoou Maria.
- Você gosta de seu pai, meu filho, você gosta de seu pai?
O guri fazia com a cabeça ora que sim, ora que não. E Antônio
só s abia repetir : Você gosta de seu pai?
Abraçou, então, o filho, num desespero, fortemente contra o peito.
- Você mata esta criança! - acudiu Maria tirando-lhe o Lula
dos braços . - Parece tamanduá.
Teve desejo de dizer-lhe outra vez : Maria, você quer? Ela, porém,
sacudindo o seio farto, ria muito da sua pilhéria : Parece tamanduá!
Confundiu-se. A soalheira de dezembro desabava lá fora. A cigarra,
solitária, fazia-lhe lembrar outros verões .
NA TORMENTA
57
que vinha. Nunca mais o luar de outubro, pensava, desenharia no chão
a sombra querida daquele corpo se extinguindo, preso na brancura
cuidadosa dos lençóis, à espera do último minuto - quando s eria?
- corpo que o protegera, alma que o afagara, coração que o perdoara
- não foi nada, esquece . . . braços que o levaram para o sol, ainda
bebê, nas praias matinais, onde o ar era puro e a areia era limpa.
Boca que lhe contara as histórias dos bichos que falavam, voz que
já perdeu o doce timbre, que a caracterizava, voz que naquela hora
só pedia a morte, e ela não vinha, vinha o médico com ópio, mais
ópio, que era um caso perdido, nada podia fazer, senão minorar
o sofrimento. Teimavam na luz morrente as cigarras vespertinas .
Tremeluzia a estrela perdida, a única, a brilhante, a pequenina estrela.
E os homens voltavam. Brincavam meninos no passeio : Estou na
casa da baleia e a baleia não me pega! No momento da despedida,
ele já não sofreria, de previsto que lhe era o desenlace. No entanto,
olhava o céu e pedia novas lágrimas p ara o momento da partida. Não
as teria, bem que adivinhava. Para onde foram as suas lágrimas , em
que dores inúteis se perderam? Pobre dele sem os seus afetos! Pobre
de seu coração sem ninguém para se amparar, para tentar explicar
as suas mágoas íntimas, os seus desesperos , as ambições e as queixas .
E o céu era puro de sossego e de luz, igual, homogênea, que se apa
gava aos poucos, serenamente. Não buliam as folhas nas árvores da
rua. Passaram o automóvel, o soldado e a carrocinha. Gritos infantis
rasgaram o ar perfumado, s acudindo a paz, que vinha das distâncias ,
além, desconhecidas , paz que seu coração desej ava, paz luminosa dos
que se sentem protegidos e fortes .
Agora, é a voz esganiçada que, varrendo tudo, chama-o do corredor.
- J á passam das sete horas , Seu Luís ! . . . Seu Alfredo j á saiu.
- E os chinelos s e afastam, apressados .
- Que preguiça, pai do céu, que preguiça . . .
Esticou os braços extenuados, bocejou fundamente : Sete horas ! A
folhinha estava atrasada. O paletó pendia do cabide, no canto mais
escuro do quarto, azul, lustroso nas costas de tanto uso ; a calça no
chão caída, desleixadamente.
Era preciso trabalhar! Correu a mão pelo queixo num desalento .
A barba estava crescida, mas passava. E que não passasse! Fazê-la
é que não faria. Para que a gente tem barba? Para quê? Tantas
inutilidades neste mundo, tantas . . . B arbas, relógios . . . Para que
há relógios? Marcar o tempo? Então, não s abemos nós que o tempo
corre? Não temos, porventura, espelhos onde vemos desgraçadamente
que o tempo passa, dia sobre dia, ano após ano, e que mais um pouco
as horas s erão de outros, que as verão escoar como nós as vimos,
fatais, inexoráveis, sem preferências, nem distinções? A camisa é que
não tem botões . É botar o colete para não aparecer ; se fizer calor,
paciência. Onde puseram as minhas meias? Joana! ó Joana!
58
Um frio matinal entra pela s acada, balançando o cortinado de reps
barato, onde, sobre um fundo violeta, se estampa uma loucura de
pagodes e ventarolas, mandarins e crisântemos .
- Pode botar o café! - berrou do banheiro, já penteado, dando
o lacinho na gravata borboleta.
Joana prepara-o, entre um ruído de louça na cozinha. O caixeiro
gritou no portão : Olha as compras !
Pão com manteiga, tão nosso . . .
- Saí, mosca !
. . . de cada dia . . .
- A lavadeira vem hoje, Seu Luís . - , E mãos nas cadeiras, Joa-
na espera na porta .
. . . fruto difícil das nossas lutas de todos os dias . . .
- Ouviu, Seu Luís?
As pratinhas tilintam na mesa da cozinha .
. . . tenho ainda hoje . . .
Lá-lá-ri-lá-lááááá! . . . Joana é assim alegre e canta enquanto ga
nha com dureza uma ajuda para o seu homem, o Manuel, que passou
dois meses sem trabalho, doente no hospital. Invejou-a de longe. O
timbre era estridente, a toada era de fado . Procura o esfregão, enxota
o gato. - Sai daí, Mimi ! - vai para o tanque com a trouxa da
roup a : lá-lá-rá-lá-lá.
-
Que vontade sentiu de ficar por ali, perto de Joana, longe do mun
do, a cantar, a cantar tudo que lhe viesse à boca, sem outra razão
senão a de cantar! Talvez corresse para a praia depois, vagabundo,
livre, vendo o sol queimar-lhe a pele, respirando, libérrimo, o ar
s aturado de sal, feliz, leve, como se nem fosse desse mundo, fosse
uma sombra alegre que encontrasse um corpo sem destino, sem nada
de terrestre, sem preocupações, sem deveres, sem vexames , um ho
mem sem tormenta !
Pôs o chapéu, desceu a sua rua, e m passos ligeiros, passou a far
mácia, o s apateiro, o sobrado donde naquele ano tinha visto sair
três enterros, e conseguiu apanhar o bonde do costume, cujo condu
tor, de encaracolado bigode, já o conhecia e o cumprimenta como
amigo.
- Que friozinho, pois não?
E o fulano, as mãos sujíssimas, traz na cabeça, sob o boné jogado
a esmo, os primeiros cabelos brancos . Certa vez falou-lhe :
_
- Pensei que o senhor fosse estrangeiro.
- Estrangeiro? !
- Não sabia bem por quê. Mas o j eito . . . O senhor s abe, pois
não? O jeito . . . Sempre com o seu livro, a ler . . .
Em outro dia, foi confidente : a Maria e a caderneta do Banco
·
Ultramarino . Guardava lá o s eu tostão . Tinha medo, porém, que
não o pudesse gozar, alquebrado que já se sentia, sujeito a umas
tonteiras - e diziam-lhe que era do fígado - e uns zumbidos nos
59
ouvidos . Mas o pior mesmo era aquela dor nos rins - aqui ! mos
trava - que não o largava . Fora à Beneficência consultar com o
Dr. Madeira, não conhece? Um velhote j á? Não? Pois olhe que é
muito conhecido . Pusera-o de dieta o doutor. Nada de vinhos e
coisas pes adas , só canjiquinha e legumes - coisas leves, compreende?
Mas não tivera melhoras . Enfim, Deus é grande. Puxava a tabela,
conferia : tem trinta e oito no carro .
A manhã é áspera e friorenta, gente pouca e agasalhada, casas
ainda fechadas , embranquece as ruas uma névoa que um sol fraco e
medroso tenta romper. O jornaleiro salta nos balaústres . As cole
giais riem ; a menina triste abre a pasta, mostra os mapas, apontando
com o dedo raquítico . Já fora assim, débil, colava-se às paredes ,
tímido que era, tremia ante o vulto monstruoso do professor de la
tim, chamavam-lhe o Caniço. Tivera como aquelas meninas bondes
certos para não ser punido como atrasado, homem sem complacên
cias o porteiro, incapaz de relevar uma falta ; ficava empertigado, a
cara hostil, sem responder aos bons dias dos meninos, como um
cérbero, no limiar do pesado portão de ferro, e, mal acabava de
soar a sineta das dez horas , ninguém mais entrava sem que tomasse
o nome para levar ao diretor. Hoj e, no escritório, também tinha hora
de entrada. Lá estava o ponto à sua espera. Bondes certos . . .
Horas certas . . . Tudo se repetia. Menos Seu Domingos . Nunca
conhecera outro. Ensinava caligrafia, pintava os cabelos, morava
perto do colégio, solitário, viúvo, numa casa que diziam própria ( não
era verdade) e que sublocava, baixa, antigüíssima, com quatro esta
tuetas de porcelana no alto da fachada, representando as estações
do ano.
- Burro ! Seu grande burro ! - Pegava-lhe no caderno, mostran
do-o à classe como exemplo - estão vendo? - do que não devia
ser imitado e descompunha-o : Isto é coisa que me traga? Então,
eu já não ensinei como se faz um talhe gótico? Responde : eu já
não ensinei? Afirmava que sim, sufocado, os soluços espremidos
na garganta. Ele afetava, tirando os óculos e limpando-os no lenço
de cambraia, uma benevolente piedade : "Nunca pass arás do que és .
Por que teu pai não te tira do colégio? Olha que é dinheiro posto
fora. Estupidamente . " A turma olhava-o, os que estavam mais longe
chegavam a ficar de pé, lágrimas dançavam nas suas pestanas .
As pequenas desceram . O anúncio convida, mas ele não tinha
tosse, tinha vontade de fumar. Remexeu os bolsos . Acabaram-se os
cigarros . Procurou, sem razão, os fósforos . Também não os tinha.
Bonito ! Se ainda ao menos lhe sobrasse a esperança! Espantou-se :
esperança de quê? Positivamente . . .
- Positivamente, esta situação é um beco s em saída.
Quem fala é Seu Barbosa, um companheiro de bonde . Fala e
explica :
60
- Porque, convenhamos , como poderei arranjar doze contos as
sim de uma hora para outra, eu - está ouvindo? - para levantar a
hipoteca?
O amigo sacudiu os ombros e Seu Barbosa não atinava :
- Como? Vê se dá uma idéia, homem !
lnfelizmeiite, Seu Almeida não tinha nenhuma idéia, limitava-se a
sacudir os ombros e a rosnar : É o diabo, Barbosa, é o diabo !
E é um grande amigo, e magro, um princípio de calvície, o olhar
cavado, um amigo para as ocasiões . Basta lembrar a sua dedicação,
quando o Barbosa quebrou a perna no Largo de São Francisco.
Noites a fio e ele firme à cabeceira do compadre, porque o pessoal
de casa estava escavacado :
- Onde é que está doendo? Vê se dormes um pouco . Então,
cochila. Olha, vou apagar a luz . . . Não penses nisso, Barbosa,
coragem, há dores piores - e citava uma porção delas , consolativas .
Madame Barbosa por trás apoiava.
E nem uma idéia. Um martírio, sim s enhor! Remexia-se todo no
banco : eu não tenho . . É de desesperar uma criatura! Mas Seu
.
61
toque apenas , quase imperceptível. O nariz nada tinha de extraor
dinário, curto, levemente arrebitado, mas os olhos eram ingênuos,
redondíssimos, e estavam pousados nele. Sentir-se-ia atrapalhado por
ver-se assim objeto dum olhar feminino, mas acabaria por s e encon
trar com ele, furtivo, como por acaso, o maior número de vezes .
Trazia uma pequenina cicatriz no queixo. Onde teria s e ferido? Tal
vez em criança, travessa que teria sido, os olhos não negavam . . .
Mas , como? Onde? E os dedos, como eram gordos, como amassa
vam a carteira vermelha! Linda! Linda! - repetia. Linda como
uma artista de cinema ! Se a viagem fosse maior, ter-se-ia declarado,
mas era curta e ela ainda saltou muito antes . Perseguiu-a ousada
mente com os olhos, virando o corpo, quando o ônibus se pôs nova
mente em movimento, e viu-se atravessar o jardim, deitando-lhe,
sorrateira, os olhos provocantes, por baixo das abas do chapéu, que
lhe sombreavam demasiadamente o rosto .
No outro dia, buscou-a no mesmo ponto, esquina turbulenta, fer
vilhante de povo . Ela parecia que j á o esperava, procurando-o no
meio da multidão, com a mesma toalete da véspera. Talvez tivesse
perdido, pr<lJX> sitadamente, alguns ônibus na esperança de vê-lo . Ele
que já não lia, olhou-a demoradamente. De novo lado a lado no
último banco. A uma volta mais rápida do auto, exagerou esforços
para não vergar sobre ela. Bateu a mão no chapéu :
- Perdão .
- Estes choferes . . . - sussurrou ela, balançando a cabeça negati-
vamente, dum modo graciosíssimo .
Depois dos choferes, falaram dos motorneiros. Ele gostava mais
de andar de bonde, mas como saía tarde do escritório . . .
- Também trabalha?
- Sim. Era datilógrafa da Indiana Company. Compreende :
papai é doente e está aposentado. A pensão que recebe é muito
pouco - não sei se o senhor sabe? - e somos seis irmãos, eu a
mais velha.
- Mais velha?
- Sim.
� Menos nova . . .
- Ah !
No sábado marcariam encontro num cinema. A fita com u m en
redo semelhante ao encontro deles - as profissões então eram iguais
- serviu-lhes de pretexto para promessas recíprocas . O fim, o casa
mento, o beijo inevitável, cimentou-lhes os sonhos . Casariam em
maio. Maio ou dezembro? Maio mesmo . A felicidade não tem mês
certo. Teriam dois filhos . O primeiro seria um menino, parecido
com ele, chamar-se-ia . . .
- Dá licença?
Sobressaltou-se :
Pois não, minha senhora! Desculpe-me!
62
A senhora sentou-se ao seu lado, alta, de verde, carrancuda e feia,
abriu logo a carteira para pagar a passagem. Eram cinco no banco .
Sentiu-se esquerdo. O perfume da mulher transtornara-o mais : Que
raio de perfume tão forte era aquele! Que diriam os outros? Esse
sujeito parece que ainda está dormindo ! Lembrou-se que poderia
ter falado alto no meio do s eu sonho. Que vergonha! Tomá-lo-iam
por maluco na certa. Olhou-os de revés - cada um entretido com
qualquer coisa, lendo, fumando, não demonstravam ter presenciado
nada de menos natural. Ainda bem, que era ridículo ser apanhado
a falar sozinho. Já que não falava nos s eus devaneios poderia con
tinuar. Boa distração a gente sonhar, construir castelos , arquitetar
episódios romanescos . Espécie de cinema, em que a gente é o ator
principal, representando somente cenas que bem nos convêm, papéis
de heróis, de vitorioso no último ato, entre palmas, dinheiro, glória
e amor! Quis continuar, mas foi impossível, mil pequenos acidentes,
aqui um homem que tomou o bonde em movimento, ali uma buzina
de automóvel, mais acolá uma carroça que não quis sair da frente
e o motorneiro se cansa de bater a campainha e descompor, desvia
vam-lhe a atenção, não conseguiu se reintegrar na sua deliciosa aven
tura. Teve raiva da mulher que a cortara estupidamente, querendo
sentar-se a seu lado, quando havia tanto lugar vazio na frente.
Teve-lhe ódio, desejos mal contidos de estrangulá-la.
O bonde, indiferente, aos solavancos, sacolej a seu desespero sur
do, atira-o, nas curvas, contra a tímida mocinha que lê, e que, hu
mana, acha natural estas colisões entre passageiros de bonde e não
o repele, afastando-se melindrada como tantas . - Não me repele!
Quem é você? Se me olhasse de frente, talvez pudesse compreender
num relance. Acabar-se-ia a tortura de procurar nos semblantes que
me cercam a compreensão amiga do meu ser difícil, feito de tanta
coisa banal e contraditória. Talvez, brotasse no seu coração bem
formado e virgem a admiração pelas minhas qualidades, que passam
despercebidas aos olhos comuns de tão simples que são, tão humil
des e modestas qualidades que qualquer defeito maior com facilidade
as esconde.
Não o olh a, porém, só não foge aos esbarrões, o enredo do ro
mance prende-a sinceramente. Quem é? Não sabe. Não se atreve.
Contempla-a, apenas . Vê que é pálida e se oculta no vasto mantô
de casimira, tímida e morena.
Os esguichos mecânicos regam duma poeira d'água delicada e útil
os grandes canteiros rasos no jardim da Glória. Seu desespero cresce.
Sai do seu coração, cai no jardim, se perde pelas coisas, se mistura
com a névoa que esconde o outeiro.
Surgiram os arranha-céus úmidos da chuva noturna. Nem parecia
luz, de tão fraca, a claridade que se escoava do céu naquele instante.
Subiu os trinta degraus humildemente. Através das escrivaninhas
desertas, o Lucas, assobiando, ia espanando o pó.
63
Quatro horas depois, seria o almoço. Telefonaria para a leiteria,
pedindo o �vor de chamar uma pessoa no 1 5 , perguntaria sem
esperança : Como vai titia? Responderiam como sempre : Na mes
ma. Voltando do almoço outras quatro horas e teria que agradecer
ao céu o sustento de mais um dia. No bonde da vinda, os comw
nheiros seriam outros . O nervoso que comprava quatro jornais, o
que falava alto, explicativo, presunçoso, procurando nos olhos dos
outros admiração para a sua escolhida dialética, o que não lia, não
fumava, não via nada, ia para casa apenas . . .
FELICIDADE
HISTóRIA DE ABELHA
PARECIA uma abelha. Era possível que não fosse, tão complicada e
vária é a bicharada do Senhor. A cor, na verdade, não tinha ne
nhuma semelhança com a das abelhas mais originais que conhecera,
um castanho-escuro, carregado, esclarecendo um pouco para o fer
rão amarelo, de um tom vivo e agressivo. E as listras? Sim, não
esqueçamos as listras pretas, grossas, pelo corpo como anéis. Enfim,
não é coisa incrível haver abelhas extravagantes . Esta bem o poderia
ser. Mas o tamanho? Convenhamos que era do tamanho de um
dedo, não digo que um grande dedo rude de trabalhador, mas um
dedo pequenino, gentil, digamos logo, um dedo de mulher, o que não
deixa de ser porte de sobra para uma abelha. Nada disso importa.
Haverá quem negue neste mundo a existência de abelhas descomu
nais? As da Birmânia, dizem os viajantes que por lá exoticamente
andaram, são monstruosas . E não seria porventura esta uma abelha
da Birmânia (possivelmente até da Transcaucásia, onde as há tam
bém, já ouvi falar ) , uma abelha-monstro, rara, excepcional, que só
aparece por vezes?
Uma abelha, pois, o meu bicho, o dia era domingo, pela manhã,
pouco passava das nove horas e eu ia para o banho de mar.
Acordara mal. Pior é que dormira também mal, não saindo dos
meus sonhos o fracasso dos meus negócios no sábado. É preciso
acentuar aqui que eu vivo do que me dá o impingir no comércio va
rejista uma quantidade razoável de objetos, os mais diversos. Como
se vê, isto é um circunlóquio, maneira floreada de me definir - sou
um vendedor a comissão.
A minha venda falhara. Quem não vende, não ganha, diz sem
pre, repleto de lógica, para entusiasmar a mim e aos meus colegas
o chefe da seção, exuberante e palavroso, que tem para o objeto mais
mesquinho uma série de argumentos tão fortes e persuasivos que
deixam uma pessoa sinceramente admirada. Como é um pouco vai
doso da sua prenda, faz de vez em quando uma demonstração do s eu
método, para melhor aprendermos como se vence convenientemente
a oposição de um freguês, que, por qualquer particular razão, dá
preferência e tem nas suas prateleiras um artigo concorrente. A me
ticulosa exposição termina invariavelmente com uma frase clássica,
que tem um sabor pretensioso de infalibilidade : "Meus senhores, o
freguês · nunca tem razão." E eu não ganhara. Meu freguês era cabe-
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çudo, espec1e que meu insinuante chefe - três contos por mês, ali
na batata! - logicamente ignorava quando elaborou a frase-axioma,
base de todo um profundo sistema de colocar produtos no mercado.
Em tempo, delicadamente, haverei de pô-lo ao corrente dessa exceção
do gênero freguês, fruto modesto de minha prática cotidiana. Agora
só me resta lastimar o fato de não ter fechado o negócio, contando
na certa, o que é dez mil vezes mais horrível. Seria regular maquia
os vinte por cento, o mês está por dias e as contas não tardarão a
vir, da padaria, do armazém, do açougue e da farmácia. Não falei
do senhorio, quase fatal em enumerações dessa ordem, nem falo,
pois ele, que é um bom homem, um tanto sovina, vá, com uns
modos ríspidos mesmo a lidar com senhoras, não nego, mas um
bom suj eito em suma, disse-me quando fui tratar a casa, onde moro :
"Não é por desconfiança - e cofiava a barba rala que usa com
prida por espírito de economia - é por costume - só recebo os
meus aluguéis três meses adiantados." Ando no meio de um dos
seus precavidos e descansados trimestres .
Acordei mal, repito. O café me pareceu requentado, o cigarro se
encheu de sarro às primeiras tragadas . Acredito que fosse fresco
o café e ótimo o cigarro, o meu velho cigarro de todo dia, barato
é certo, mas cujo sabor não troco pelos mais caros e finos que
houver, e que, é interessante acrescentar, mais que o seu sabor me
prende a sua caixinha dum escarlate e duns desenhos que me encan
tam singularmente. Era a boca na certa, uma boca amargos a . . .
Peguei o jornal. Comecei pela última página, que são notícias de
última hora.
- O quê? !
Li outra vez. Não se enganaram os meus olhos. Morrera o Este
ves , quando atravessava a Rua Visconde de ltaúna. O jornal dimi
nuía a sua idade, a autópsia tinha sido feita (fratura da base do
crânio ) , o enterro estava marcado para as cinco horas, saindo da
residência. Quando seria a missa?, foi o que primeiro me ocorreu.
Devia favores ao Esteves . Era um esquisitão o diabo do homem, ma
gro, muito alto, escalavrado, uma perfeita tocha, e trazia, quer fizesse
sol ou chuva, um eterno cachenê preto à volta do pescoço, tão
descamado que punha as cordoveias a descoberto. Morava com a
família, era solteiro ( casamento é muito bom, mas não foi feito pra
este seu criado - dizia) , j á ia pelos quarenta, com um começo de
asma, e a sua casa ficava para os lados do Andaraí. Quando seria?
Contava os dias : morreu ontem, 7, hoje, 8, segunda, 9, terça . . .
seria no dia 1 3 . Mas em que igreja? Se fosse na zona dele era uma
espiga, porque seria ir de um pólo a outro. Ao enterro é que não
iria, estava visto. Saberia me desculpar junto aos parentes, princi
palmente junto à Elisinha, uma pequena bonitinha, trêfega, gaiata,
que nem parecia irmã do Esteves : compreendem, domingo, como
70
não trabalho, não leio os jornais . E explicava : só leio no bonde
quando vou para o escritório, pois não tenho outro tempo . Assim . . .
Assim . . . assim . . . o diabo é que a missa seria em dia útil. Ma
nhã perdida. Poucas vendas . Era preciso forçar a freguesia, correr
os subúrbios, dar um repasse nas lojas de Madureira, ver se desen
cantava um tal de Seu Arlindo que prometera, de pedra e cal, pagar
as duplicatas vencidas do Pirelli, um caloteiro que lhe passara a casa.
Não há por onde escapar - não iria ao cinema ver a Greta Garbo,
o domingo é que seria perdido e toca a acompanhar o Esteves, esta
va casando dinheiro como iria para o Caju. E se não fosse? Que
sofreria com isso? Pelo contrário, ganharia que a fita era muito
falada. O Antenor tinha elogiado : uma beleza! O Antenor era uma
besta! Mas o Gomes, sim o Gomes era um rapaz inteligente e tinha
gostado, especialmente do pedaço em que ela mata o marido com
um tiro, "um troço muito bem arranjado", afirmara.
Lembrei-me do Esteves, da última vez que o procurei no escritório,
muito sujo, muito escuro, num terceiro andar da Rua Ledo. Anda
va com uma grande aflição no peito : "Parece uma g�rra,_ menino,
mas é sífilis da boa." A escada era lúgubre, quase· ia caindo, mas
como me atendera prontamente : "Aqui estou sempre, meu filho,
é só pedir. Você manda."
Devia-lhe realmente muitas obrigações, imensos favores. A ques
tão do fornecimento para a Fábrica Estrela, a encrenca com o Paulo,
da firma Paulo Sobrinho & Cia., que dera sumiço às notas de entre
ga e jurara que não havia recebido a mercadoria. Tudo ele solucio
nara com jeito e presteza sem receber um tostão. E quando
perguntei quanto lhe devia, deu-me uma palmada protetora nas
costas : "Ora, Antunes (eu me chamo Antunes ) e você a pensar
nisto. Vai com Deus, rapaz, e quando precisar . . . " e tirava pigarros
ásperos do fundo da garganta escangalhada pelo fumo. No entanto
a Greta . . . está decidido : vou! Mas que tinha de fazer o Esteves
na suspeitíssima Rua Visconde de Itaúna às onze da noite? Olha
que ele já não era nenhuma criança. Ia para os cinqüenta. Bem
possível que já estivesse lá.
*
nada.
Apiedei-me : pobre coitada! Catei um fósforo na sarjeta, passei-o
cuidadosamente por baixo da abelha e voltei-a para cima. Ela não
voou logo ; andou um palmo, se tanto, para a frente, como a se
experimentar. Depois, foi rápida e feroz. Levantou-se num vôo
decidido à altura do muro, desceu quase raspando o chão, alteou-se
novamente, rodou à volta da minha cabeça umas duas vezes e, num
bote certeiro, caiu sobre a minha mão, ainda com o fósforo entre
os dedos, e me pregou uma ferroada terrível.
Dei um grito e, com um safanão furioso, atirei-a longe. A moça
que estava defronte, na sacada, riu. Entrou um instante e chamou a
irmã. A irmã era loura e estava de bege. A moça era morena. Tal
vez fosse uma amiguinha. Não - era irmã sim. Vária e compli
cada é a gente do Senhor.
Apressei o passo para a casa, gemendo, ansioso por uma aliviadora
compressa de amônia. Se não tivesse - bonito ! - faria um des
tempero dos diabos, remediando, porém, com alho pisado, receita de
Uona Matilde, que não tem igual efeito . A loura sumira atrás dos
cortinados ricos de filé. A morena continuava a rir, um riso tão
sincero que me deu raiva . Burra! Estava com o seu dia ganho,
teria o que contar na praia, à tarde, às amiguinhas, na hora do fútin
gue, mas adulterando tudo :
- Vocês nem imaginam, que caso gozado ! Perguntem à Alice,
não foi? Um rapaz sério - parecia sério - não é que foi bulir
com um maribondo? Já se viu! . . . O bicho estava quieto, ele foi,
pegou um fósforo (não diria fósforo, diria pauzinho ) como eu estava
contando, pegou um fósforo, abaixou-se calmamente e cutucou o ma
ribondo . Que judiaria . . . E o bichinho então - qual é o dele? -
avançou no moço.
73
- Qui-Qui-Qui!
- Ele chegou a pular de dor. Ah! Ah! Ah ! Também que idéia,
hem? ! Ah ! Ah ! Ah ! Bulir com maribondo . A gente vê cada uma
neste mundo! . . . E engraçado é que ele parecia um rapaz sério,
alinhado . . .
A abelha, nunca mais a vi. Era grande, castanha, listrada de preto,
notável ; talvez nem fosse abelha, um maribondo, quem sabe?
UMA SENHORA
74
no colégio das Irmãs, uma bicha no francês, cearense, um talento!
Mandar lembranças para ela equivalia a dizer: Olha que são meus
filhos, Margarida; os filhos da tua amiga Quinota . . .
E os exames estavam perto, com prêmios de cadernetas da Caixa
Econômica dados pelo prefeito, ridicularizados pelos jornais oposi
cionistas, elogiados pelos do governo - a Folha dizia que era um gesto
de Mecenas mas enfim fartamente anunciados em todos os jornais
para incentivo da meninada estudiosa. Ela queria ser mordida por
um macaco se não arranjasse três cadernetas para casa. Os filhos
é que não faziam fé.
Bordava para fora, cuidava do Joli, o bichano para sujar a casa
era um desespero, e sobrava tempo ainda para ter ciúmes do marido
com as vizinhas, principalmente Dona Consuelo, uma descarada, é
certo, mas muito chique, confessava.
Chegando o carnaval, tirava a forra.
As economias acumuladas saíam do B anco Popular juntas com os
juros. Não ficava nada. Metia-se numa fantasia de baiana e inundava
a capota do automóvel com seus oitenta e cincn quilos honestíssimos.
As meninas iam de baianas também, menos saias, mais berloques, e
o menino de pierrô, cada ano de uma cor, porque não é para outra
coisa que o dono do Tinto[ gasta aquele dinheirão em anúncios. Ti
rava do cabide a casaca do casamento, dezesseis anos por isso (como
o tempo corre! ) , dava um jeito na� manchas :
- No automóvel, ninguém repara, meu filho - dizia com um
sorriso, ora para a casaca, ora para o marido, que se traduzia :
lembras-te?
Ele, então, com uma faixa vermelha na cintura, brincos em forma
de argola, pendentes das orelhas demasiadas, enfiava na cabeça um
turbante de seda branca com pérolas em profusão, e ia em pé, no
carro, de rajá diplomata.
No terceiro dia, graças a Deus não choveu em nenhum dos três,
perguntava para o marido :
- Quanto temos ainda?
Ele remexia a carteira (bolso de casaca é o tipo da coisa encren-
cada! ) , fura-bolos trabalhava passado na língua, e cantava a quantia :
- Duzentos e oitenta.
- E os oitocentos do automóvel?
- Já estão fora.
- Ah! Bem . . . - Para fazer contas no ar era um assombro :
. . . pode gastar mais cento e cinqüenta.
O resto ficava para gastar depois do carnaval - mas entrava na
verba dele - com o fígado do marido, porque depois da pândega
( a experiência de Dona Quinota é que falava) Seu Juca tinha rebor
dosas, vômitos biliosos, uma dor do lado danada, de tanta canseira,
tanta serpentina e tanta cerveja gelada.
Não faz mal. Não fazia não. A vida era aquilo mesmo : três dias
75
- falava. Mas pensava : por ano . Podia dizer, mas não dizia. Deixa
va ficar lá dentro . O "lá dentro" de Dona Quinota era uma coisa
complicada, complicadíssima, que ninguém compreendia. Só ela
mesma e o marido, às vezes.
Desciam do automóvel à porta de casa, quando o vizinho veio vindo
com o rancho da filharada.
---< Brincaram muito? - fez Seu Adalberto, com um jeito de
despeitado .
- Assim, assim . . .
Dona Quinota dizia aquele "assim-assim" de propósito . Que lhe
importava os outros saberem se ela tinha gozado ou não? Quem go
zava era ela. Mas gostava de ficar deliciando-se por dentro com a
inveja dos vizinhos : assim, assim . . . Ah ! Ah ! Ah !
Seu Adalberto exultava :
- É isso mesmo. Faz-se despesas enormes ( e Dona Quinota sor
ria) e não se diverte nada. ( Dona Quinota olhava para o céu. ) É
sempre assim. Pois olh e : nós fomos a pé mesmo. Estivemos ali na
Avenida na esquina do Derbi, apreciamos o baile do Clube Naval,
muita fantasia rica, muita, vimos perfeitamente as sociedades, toma
mos refrescos, brincamos à grande. Não foi?
As mocinhas fizeram que sim, humilhadas, mas os guris foram
sinceros :
- Aquele carro do girassol que rodava, hem, papai!
Seu Adalberto corrigiu logo :
- Girassol, não, Artur; crisântemo.
Depois que corrigiu, ficou azul, sem saber ao certo se era crisân
temo ou crisantemo - quer ver que eu disse besteira?
Seu Juca não havia meio de encontrar o raio da chave. Esses bol
sos de casaca! . . .
- O ano que vem - Dona Quinota falou firme - nós iremos
também a pé.
O marido até se virou. Ficou olhando, espantado. Que diabo é
isto? - ia perguntando. Por um triz que não perguntou. Mas ficou
assim . . . Compreendeu? Parece . . . Esta Quinota! . . .
Foi quando Seu Adalberto, evidentemente mortificado, se refez e
sentenciou como experiente na matéria, apesar de nunca ter entrado
num automóvel pelo carnaval : é melhor mesmo.
A tribo sumiu pela porta do 3 7 . A maçaneta fechou por dentro.
Torreco, torreco. Agora foi a chave - duas voltas. O pigarro do
Seu Adalberto, ainda com o acento do crisântemo a fuzilar-lhe na
cabeça, veio até cá fora se misturar com um resto de choro, pandeiro
e chocalhos, do bonde que passava mais longe. Passos apressados
no fundo da rua. O burro do inglês estava na janela do apartamento
fumando para a lua. Dona Quinota ficou olhando-o um pouco, de
pois cerrou a porta bem e fixou o marido que dava por falta dum
brinco : Que cretinos!
76
Seu Juca parou no meio do corredor, cara de ressaca, pernas aber
tas, o turbante nas mãos e esperou mais . Mas Dona Quinota era
hermética. O resto ficou lá dentro onde ninguém ia buscar, por
que o marido, o único interessado na ocasião, mais morto do que
vivo, preferiu tirar o colarinho e a casaca.
Dona Quinota atirou-se na cama escangalhada e feliz, só acordan
do na quarta-feira de cinzas ao meio-dia.
Quando o resto da família se levantou, o almoço (feito por ela)
já estava na mesa, e Dona Quinota se desesperava porque tinha lido
no Jornal do Brasil que foram os Fenianos que pegaram o primeiro
prêmio, quando todo mundo viu perfeitamente que só o carro-chefe
dos Democráticos . . .
ESPELHO
Agora, porém, a clareza da sua vida futura foi tão imprevista que
não lhe permitiu traçar logo, com aquele imponderável bom-senso de
que se sentia senhor, a linha reta do seu proceder. E qualquer reso
lução sua, funda, formal, decisiva, poderia passar aos olhos dos que
o cercavam como a mais absurda das coisas . Ele bem sabia que a
boa Dona Lola jamais acreditaria que aquele magro hóspede, fun
cionário de fraca categoria no Banco Germânico, pudesse ter tragé
dias interiores, necessidades dolorosas de cérebro e coração, rasgos
estranhos de libertação. Tais coisas eram naquela pensão familiar
do Andaraí, cheia de cadeiras de vime e reposteiros de chitão, apa
nágio exclusivo do Dr. Fontes, viúvo, que além de mandão na Corte
de Apelação era maçudo colaborador da Revista dos Tribunais e
pagava com as notas mais limpas e novas do Tesouro, no fim de
cada mês, três vezes mais do que ele, fora ainda os extraordinários,
que só em banhos mornos para o seu nervoso, iam longe.
Era inútil aquela boa vontade do sol de entrar pelas janelas e
78
aclarar o quarto pobre. Eram perfeitamente inúteis aquelas borbo
letas andarem esvoaçando no j ardim de Dona Lola, repleto naquela
época de hortênsias azuis, que as mãos de Dona Luíza, a filha, tão
leves, tão delicadas, regavam pela manhã. Nem havia necessidade
absolutamente daquele fundo cromai - pelo monte acima subirem,
entrelaçados nos verdes, aqueles bangalôs ingleses, engraçados e pe
queninos como brinquedos. Ele não era homem de ambientes exte
riores. Uma paisagem não o consolava, o encanto de uma flor não
diminuía o travo das suas dores, nem o canto de um passarinho
fazia-lhe esquecer que ele vivia sozinho. Para que, pois, aquela graça
da vida em volta dele, se a sua vida real, a sua vida verdadeira,
aquela que ele vivia, longe de todos, longe de tudo, sem lar, sem
parentes, sem amigos, apenasmente dentro do seu coração e dentro
da sua inteligência, não representava nada de definitivo?
TRAGÉDIA
- SR. CARLOS !
Era pela segunda vez que o Sr. Castro tonitruava no Vilino Miloca,
chamando por seu filho .
Mas o tratamento de senhor, feito po r seu pai, era s i n al para o
Carlinhos, um sabido, de descompostura grossa, e como tinha íntimas
culpas no cartório, deixou-se ficar onde estava, isto é, no minarete,
que o arquiteto português garantiu ser puro renascença e cuja escada
81
em caracol o reumatismo do Sr. Castro com prudência evitava, escon
dido e parodiando, lá a seu modo, a decadente metáfora das varas
verdes.
Mas uma vez ainda, para inteirar talvez o número da contagem
célebre, a voz do Sr. Castro ribombou pelas paredes do palacete, pro
fusamente decoradas com paisagens imaginárias, de muito gosto, como
elogiavam todas as visitas, especialmente Dr. Lessa, que viajara muito
pela Europa, usava pincenê defumado e era muito entendido em
assuntos de arte. Vendo, porém, que era perfeitamente inútil o des
perdício de cólera vocal, esperou melhor ocasião, fugindo de ir pro
curá-lo para não perder completamente a dignidade.
Às cinco horas, o relógio carrilhão andava um pouco atrasado, o
encontro na sala de jantar foi inevitável.
O frio de junho caíra com a tarde sobre o minarete e sobre o
Carlinhos veranicamente de palm-beach . A fome apertara. Carlinhos
não agüentou mais e desceu para farej ar a geladeira. Aretuza, em
família Zuzu, tinha ido para o chá-dançante se encontrar com o namo
rado. A mãe, por ir com ela, estava convencidíssima que ia acom
panhá-la. Sr. Castro, que chegou de repente, vendo as coisas assim
e dando de cara com o esquivo Carlinhos, aproveitou a ocasião e,
fazendo mais uma vez aquela profundíssima inflexão de voz, que era
o terror dos empregados relaxados da firma Castro, A lmeida & Cia.
Ltda., chamou-o para o escritório, aquele sóbrio escritório criado pelo
Leandro Martins, caríssima maternidade onde sua inteligência partu
rejava, laboriosamente, os planos dos seus negócios, todos com o
governo.
A dignidade da família, Castro bisavô, Castro avô - uma menta
lidade, ouviu? - e outros Castras, todos de Pernambuco e de notória
importância ascendente, foi a base da chorumela, que o Carlinhos
agüentou firme e arrasado, como convinha a uma vergôntea espúria
de tão soberbo tronco.
A idéia, então, de que ele tinha desgraçado a moça - fato inédito
na história da família, que Castro pai enegrecia mais ainda à força de
portentosos e shakespearianos adjetivos - deixou-o meio zonzo.
- Eu me caso, papai . . . Eu me caso . . . - gemeu num abati
mento sincero de fazer dó.
- Mas você não pode casar! E a Marieta? . . .
Carlinhos não era burro, não. Na encrenca toda seu digno pai só se
lembrava da Marieta, a filha do Maranhão, a menina dos dois mil
contos.
Fez a cara mais sórdida que lhe era possível :
- É mesmo . . . E a Marieta? . . . - e pôs-se seno, profunda
mente sério, como empenhado na resolução dum problema transcen
dente.
Então o pai, reacendendo o charuto, mais calmo, como quem tem
na cabeça uma saída qualquer, por aí abaixo indagou da história
82
toda, que depois - deixasse com ele - se arranjaria tudo. Mas
queria saber antes, desde o princípio, como se dera aquilo, para
poder agir com prudência e critério.
- Com todos os pormenores, está ouvindo?
Espichou-se na poltrona e foi gozando os pormenores pela boca do
Carlinhos, trêmula, não se sabe se de fingimento ou de vergonha.
Os telefonemas, os encontros, a primeira brincadeira no cinema, o
célebre passeio na Tijuca. Onde? - Na Tijuca. - Ah ! - Também
o senhor sabe, ela não tinha pai, nem mãe, nem tias velhas, nem
nada.
Era a criatura mais feliz do mundo por isso . Castro pai, porém,
não entendeu a história desta maneira ou fingiu que não entendeu,
e obrigou ao filho a promessa de levá-la, no outro dia sem falta, ao
escritório, na companhia, bem entendido, porque ele não queria -
e lançou para fora da boca um "absolutamente", como o Carlinhos
nunca tinha ouvido igual - que em casa soubessem.
No outro dia nenhum faltou à entrevista, mas o Sr. Castro, pelo
jeitão da menina, achou melhor que o filho se retirasse, que ele, pai,
e ela, a coitada, perfeitamente arranj ariam as coisas .
Como as coisas foram arranjadas, o Carlinhos só soube verdadeira
mente um mês depois, quando, por boca de amigo, teve a notícia de
que ela estava de casa montada em Santa Teresa por conta de Castro
pai, porque o velho - e com que cara de dignidade sarada, de zelador
impoluto da pureza ancestral - garantiu que a tinha mandado para
São Paulo, com alguns contos de réis ( nada de miséria em fatos desta
natureza! ) e uma carta de recomendação para um velho amigo, pessoa
de muitíssimo respeito, que haveria de arranjar para ela um emprego
em condições, que queria trabalhar agora a doidinha. Falou mais :
que tudo isso fizera, como um verdadeiro pai, pelo amor do futuro
de seu filho, e também, franqueza, que diabo! pela graça da menina,
muito delicada, cordata, muito boazinha, muito viva, uma santa, enfim,
vítima da falta dos carinhos maternais, como ele muito bem com
preendia.
Como todas as noites o Sr. Castro tinha negócios importantíssimos
e urgentes, assembléias, conferências comerciais, entrevistas com sena
dores para "futuras negociatas muito rendosas", dizia displicentemente,
chuchurreando o cafezinho do j antar, voltando para casa alta madru
gada, Carlinhos não teve mais dúvidas em dar como verdadeira a
informação .
Mas a menina era maluca mesmo. Enjoou-se depressa dos carinhos
do velho, da vitrola ortofônica, com discos tão bons do Francisco
Alves, do bangalô bucólico, da vista batuta do terraço sobre a Guana
bara, e um belo dia desapareceu, quase que honestamente, porque de
tudo que ele lhe dera, ela só levou os vidros de perfumes que, afinal,
eram o reclame mais sensacional da sua pessoa.
83
O velho, quando chegou em Santa Teresa e encontrou a casa vazia
com a criada alemã, friiulein Berta, chorando muito, deu o desespero,
e para diminuir a extensão do desastre amoroso, como era finório,
aproveitou as quinquilharias restantes, que não eram poucas, como
já se viu, e mandou carregá-las todas para casa, onde, debaixo da
expectãtiva geral jamais vista no Vilino, as ofereceu a Dona Miloca,
comovidíssima.
De p.oite Dona Marocas, uma velha amiga, foi visitar Dona Miloca;
então Dona Miloca mostrou tudo a Dona Marocas . Aretuza apro
veitou um descuido e roubou um porta-retratos, todo em madrepérola,
para encaixar a fotografia tremida do seu querido Loló, tirada no
banho de mar, que escondia da mãe, porque ela acharia indecente, e
pipocá-lo assim mais lindamente de beijos, nas horas solitárias de
dormir. Dona Marocas ficou para o chá, ouviu Chopin ao piano pela
Zuzu, quinto ano do Instituto e muito sentimento, e saiu, como é
natural, com muita inveja de tudo.
De papo para o ar, repimpado fartamente na ,poltrona de couro,
com uma série adequada de expressões no rosto viril e nobre, que iam
do brejeiro ao grave, o Sr. Castro passou em revista aqueles recen
tíssimos acontecimentos de sua operosa vida, lembrando-se com sau
dades, muitíssimo razoáveis, das formas redondinhas, redondinhas da
menina, tão perdidamente longe das virtuosas pelancas da mãe do
Carlinhos, que um íntimo pudor, naquela hora, não permitiu chamar
de sua cara-metade.
A menina alugou um quarto no Catete, mobiliou-o a rigor, com
prando a mobília em prestações puxadíssimas no Mobiliador Cosmo
polita. Quatro meses depois pagou a mobília entre os sorrisos do
Abraão Miglechivich, que previa um calote na certa. Pagou ainda ao
médico da Farmácia Previdente, um moço louro, recém-formado, e
que por isto fazia tudo que lhe caía nas mãos, a bagatela de oitocentos
mil-réis pelos estragos do ofício, e a conta da modista também, Madame
France, que foi uma roubalheira de se tirar o chapéu. Mas não pôs
dinheiro na Caixa Econômica, como queria, porque o danado do
Carlinhos deu com a casa dela e sempre que ia lá, já sabe, saía cheio
das notas, que ia gastar no Lamas, entre os colegas da Faculdade
de Direito, onde vadiava no terceiro ano, porque o seu Maranhão -
um homem dos antigos - não se fartava de dizer que a sua filha, a
Marieta, só se casaria com um doutor.
VENTAVA, mas a noite era quente, luzindo estrelas por cima do recorte
dos morros. O grilo cantava no meio da grama, no jardinzinho quieto.
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Ele ouvia, pensativo. Quando o grilo sossegou, saiu da janela, acendeu
outro cigarro, chegou-se para a poltrona onde ela se reclinava e venceu
o silêncio que se prolongara.
- Não te vais vestir?
Continuou com a cabeça loura tristemente apoiada na mão, e res-
pondeu sem entusiasmo :
- Vou. Tem tempo. Que horas são?
- Dez.
- Já?
Mostrou-lhe o relógio-pulseira, chegou-se mais e beijou-a :
- Estás triste?
Deu um suspiro, fitou-o longamente :
- Não. Por quê?
- Não sei.
Não sabia mesmo. Parecia, porém, que estava, tão distante se
mostrava. Pegou-lhe na mão alva e pequenina e acariciou-a :
- Gostaste do presente?
- Muito ! - e suspendeu a mão, revirou-a, mirando o anel.
- Papai Noel é pobre . . .
- Você duvida, meu bem?
- Duvido duma coisa.
- De quê?
- Da tua memória.
- Memória? ! - até se espantou, virando os olhos verdes e fundos.
- Sim, memória. Queres ver? Vej amos : que é que aconteceu há
sete anos?
Riu com meiguice : bobo. Chamou-o para junto de si, estreitou-o
contra o peito, beijou-o e fugiu para o quarto.
- Vou me vestir, ouviu? É um minutinho.
Ficou só na salinha, que o abajur de crepe tenuemente iluminava,
de smocking, pronto, esperando-a para irem ao réveillon. A noite seria
alegre, amigos os esperavam, um fecho divertido para aquele dia que
lhe correra tão bem. Recebera a gratificação, trouxera um bonito
presente, j antaram entre flores . Fazia justamente sete anos que se
conheceram, casando pouco depois . Tivera alguns maus dias, pade
cera privações, mas sempre encontrara o apoio da esposa, que não o
fizera fraquejar. Sete anos já se iam, e conservavam-se sempre unidos,
muito amigos, sempre amorosos . Somos um casal feliz, dizia, às vezes .
E Dona Cidoca, a prestimosa vizinha, não perdia ocasião para firmar
"que a vida deles era uma eterna lua-de-mel" . Não compreendia, pois,
a melancolia de que Maria se achava .possuída e que não conseguira,
apesar das negativas, dissimular. Também, raciocinava, jantaram tão
solitários . . . Fizera mal não convidar alguém. Estava um jantarzinho
tão bom! Ao menos, tia Lulu, tão amiga deles, tão bondosa . . . Poderia
parecer-lhe ingratidão. A história dela teimar em não ter telefone
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dava daquelas. Pouco importa. Poderia tê-la avisado de outra forma.
Fora mesmo um grande esquecimento que ·não se repetiria. Enfim,
iriam para o réveillon. Lá, sim, entre amigos, não faltaria alegria.
Sentiu-se inquieto, apressado :
- A minha princesa �inda demora muito?
Ela aparecia radiosa, linda no seu vestido azul, comprido, quase
escondendo os pés . Teve um sincero orgulho da esposa. Não se
conteve :
- Estás encantadora! Maravilhosa!
Correu para ela e enlaçou-a :
- Vamos dançar muito, estás ouvindo? Havemos de nos divertir
bastante para desanuviar este coraçãozinho !
E marcando o compasso das palavras com o dedo conselheira! :
- Faz hoje sete anos . . .
Ela abaixou os olhos, ele acompanhou-os com os seus, foram pousar
na capa da revista, sobre a mesinha, uma singela alegoria - crianças
brincando à volta duma árvore de Natal.
Compreendeu tudo num relance. Que tolice pensar em tia Lulu, em
amigos, em danças, em réveillon. Ver passar, como passavam, aquela
noite feita para outras, tão diversas alegrias, era realmente doloroso.
Tirou os olhos da revista e gemeu desconsoladamente :
- Eu não tenho culpa.
Ela também não tinha. Agasalhou-se no mantô, deu-lhe um beijo
triste :
- Deus não quer.
Ficou parado, sem palavras, sem gestos, sem saber o que fazer.
Ela, então, gritou para a criada :
- Fecha tudo direito, Francisca. Olha que andam muitos ladrões
por aí!
E, enchendo-se de doçura, virou-se para ele :
- Não vai chamar o automóvel?
ONOFRE, O TERRíVEL,
OU A SEDE DE JUSTIÇA
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Então Onofre se perturbou : e os mosquitos? Os mosquitos que con
tinuariam a morder, a sugar, atacariam os pobres também, transmi
tindo-lhes o mal ! Pobres dos seus pobres . Os mosquitos seriam tantos
que nada os exterminaria. Pobreza não vacina ninguém contra a febre
amarela. Pobres dos seus pobres ! . . .
Os soluços vinham sinceros, fraternais, do fundo do seu coração
desolado. Os mesmos urubus molengos, disformes, desengonçados, que
se fartaram na mortandade dos ricos, se regalariam agora na carne dos
pobres, dos seus amigos, dos seus irmãos. O Luza, com as tripas
para fora, tinha uma contração no rosto amarelo-ocre que o amal
diçoava. O Nelson do Cavaquinho, tão bom, tão engraçado, coitado,
lá estava mais longe, montado por um urubu imenso, um urubu-rei,
de pescoço branco, horrível, que lhe devorava as entranhas já viscosas,
putrefatas. Perdão ! Perdão ! pediria, as lágrimas jorrando dos seus
olhos sinceros. Eu não fiz por mal ! . . . Que louco ! Era para o bem
de vocês, era para o bem! Mas o Anacleto, seu primo, no fundo duma
s arjeta, os olhos comidos, vermes escorregando pelo canto da boca,
lhe mostraria o punho crispado prometendo vingança.
Tudo seria deserto, vazio, na sua frente. Os cinemas fechados, o
circo da Rua da Passagem era um monte de trapos e sarrafos . Só
o último cartaz, A honra do marujo - um drama que fazia chorar!
- resistia ainda, pregado no muro por cima do buraco da bilheteria.
Nas ruas não passava uma pessoa e somente os pardais, que não
apanham febre amarela, continuavam a chilrear, indiferentes, no meio
das ramadas compactas, quando vinha o crepúsculo . . .
A Babilônia abandonada, os casebres a cair. Acabaram-se os choros,
flauta, cavaquinho e violão ( ele arrancando a cadência do pandeiro
com guizos ) de noite, na porta do Zé Malussa, até à madrugada,
quando os galos amiudavam o canto, e lá no fundo do céu indeciso,
para os lados do mar, vinha apontando uma réstia rósea e tímida do
sol.
Não haveria ensaios para a saída do rancho no carnaval. Ele não
mais seria príncipe. Ele não mais seria cruzado, a cruz no peito, o
escudo prateado, a lança erguida, defendendo a Jurema, de cristã, que
os mouros queriam roubar, na concepção que o Pedro Martins, mestre
sala, estava planejando para este ano. Fechado o Corbeille das Flores,
fechado os A mantes da A rte, fechado os Caprichosos da Chacrinha.
Mortas, talvez, a Marilda, a Leonor, a Paulina, a Floripedes . . .
O chefe da turma acordou-o do p esadelo :
- Então, Seu Onofre, como é? . . .
Onofre, ainda tonto, debruçou-se e derramou o Estegomiol, assas
sinando as larvas .
- Agora faz uma meia hora para o almoço, ouviu? Eu volto já
pra gente atacar a travessa e a avenida que está uma sujeira.
O chefe entrou na casa-de-pasto, ele sentou-se na c alçada mesmo
sob a frescura dos oitizeiros. Os urubus continuavam a voltejar serenos,
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negros, muito nítidos, no alto do azul imaculado . O bondinho do Pão
de Açúcar ia subindo tão tranqüilo, tão firme, como se fosse para
o céu.
Desembrulhou a marmita, ficou lendo umas notícias truncadas no
pedaço de jornal, enquanto comia, solitário, o feijão frio com carne
que a mana Balbina lhe preparara. Vinha o automóvel no fundo da
rua levantando poeira. Passou. Acompanhou-o com o olhar, uma
limusine - que bom a gente ser rico! . . . - dobrou a esquina, sumiu,
foi embora. Mordia o pão . Que angústia desconhecida o oprimia! . . .
Que moleza, meu Deus, sentia escorrer dos seus membros . Uma
fadiga, um amolecimento, parecia que nem existia, parecia que flu
tuava. Depois, aquele suor frio. Dir-se-ia morrer de tão frio, de tão
fraco . Engoliu com dificuldade o resto da banana. A poeira, pouco a
pouco, voltou ao chão . Lembrou-se, sem motivo, do Valdemiro . Onde
ele estaria? Fora sorteado . Por quê? Vinha a brisa do mar, lá longe,
refrescando . . .
O primeiro fósforo não acendeu o cigarrinho lolanda. Talvez vol
tasse a pé para casa, o pagamento andava atrasado, os últimos duzentos
réis jogara no cachorro . Talvez também um dia . . . ah ! um dia . . .
Então a brisa do mar veio mais forte e enxotou o farrapinho de
sonho que teimava.
FAZ FRIO, frio de julho, úmido, sem defesa, que sobe do soalho e se
infiltra pelo corpo. As moscas , em cachos, dormem no fio da lâm
pada de vinte e cinco velas, luz escassa e amarela que quase não ilu
mina a sala, com grandes manchas verdes de bolor nas paredes altas,
triste e improvisada. Sussurrava-se nos cantos, aos grupos .
Quando o mumificado secretário calculou que fossem oito horas e
meia, o presidente, cabeça grande e ossuda, cabelo jogado para trás,
como de um golpe, uma sujeira premeditada no colarinho marvelo,
mandou-o fechar a porta, levantou-se e deu um brado formidando,
que trazia no âmago qualquer coisa de trágico e doloroso :
- Está aberta a sessão !
Ninguém se mexeu com o trovão vocal do maioral, acostumados
ao ribombo, pois já estavam na quinta reunião. Na primeira, sim,
fora horrível. Os rapazes nunca tinham ouvido uma voz tão feroz,.
reforçada por adjetivos tão profundos . Na segunda ainda tremeram.
pálidos do susto, mas na terceira entraram nos eixos .
A trágica dor que pungia o presidente vinha da inutilidade de seu
timbre, única coisa que trouxera do berço como dom genial e que já
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não impressionava mais os rapazes indiferentes . Engoliu o fel sincero
do despeito e para satisfazer a vaidade pessoal repetiu : Está aberta
a sessão! - no mesmo tom, como reminiscência deliciosa do pavor que
há tão pouco tempo infundia sua voz, superioridade efêmera que se
fora para nunca mais.
Começou por chamar os rapazes de VV. SS. :
- Permiteis que ouse o verbo meu - e punha a destra na altura
da boca rasgada - para dizer - e olhava torvamente para o vago,
para o indefinido que ficava além do teto - para dizer, repetia, que
aqui há um traidor. Fez um gesto circular : aqui !
Pela frieza com que o pessoal recebeu esta considerável afirmação,
pode-se crer que já há muito participasse do fato, sem lhe ligar a
mínima importância, mas ele não percebeu esta frieza e por um longo
minuto de soberbo silêncio paralisou o dedo espetado e a palavra
nos lábios fáceis. A luz tremelicava. O magro tossiu, fez menção de
fechar a janela pois o vento fininho vinha de fora, perigoso e cor
tante. Uma pneumonia é o diabo! - soprou ao ouvido do gordo
que confirmou com a cabeça : se é. Bateram na porta com pudor.
Abriram - era um retardatário. O presidente nem o viu, perdido no
alto da sua indignação, alheado a tudo que era terrestre, rasteiro e
mesquinho.
Ele sentou-se ressabiado, sentindo intimamente que havia lesado o
presidente num dos seus maiores gozos - o da escacha olímpica com
que brindava os faltosos do grêmio. Sentou-se e ouviu o presidente
denunciar o traidor, acusando-o de "pouquidade mental". Trovejou
um "empós" para continuar insultando o amigo do traidor, "um
poetastro de seborrenta musa" . Fulminou o crítico que o elogiara -
uma azêmola, senhores ! Prosseguiu a estraçalhar vivos e mortos, aca
bando, as veias do pescoço muito inchadas do esforço, a esmurrar
a mesa, por maltratar os próprios camaradas com repetidos : compre
endeis, compreendeis? - como se todos eles formassem na sua frente
uma cambada de idiotas .
Sofreu um vexame quando, aparteando, o magricela disse que "de
boche" era galicismo e "casco dasno" não soava bem.
Defendeu o deboche que Camilo - o mestre dos mestres ! - já
usara (e citava ) mas emudeceu com o casco dasno que não soava
bem.
Este aparte é que não lhe soava bem no fundo do coração . Ten
tava reconstruí-lo : o poetazinho pernóstico, que ele tinha descoberto
e trazido para o grêmio, se levantara, repuxara a calça cinzenta lis
trada - senhor presidente : quero crer que casco dasno não . . .
Bandido ! como ousava atacá-lo, aquele ingrato ! Com que desplante
arregaçara a voz : senhor presidente, quero crer que casco dasno . . .
Via mais longe - aquilo era o princípio . Ah ! e quem diria que
já não fosse o fim? Quem diria que não era o termo de mais um
sonho, um último sonho que se ia por água abaixo . levando-lhe a
91
melhor, a sua única esperança - ter um auditório, uma platéia, um
público pequeno, sim, mas seu, já que todas as revistas se fechavam
à sua colaboração, já que fora um grande sacrifício vão a publicação
do seu livro de versos, produto das suas vigílias tormentadas, rimas que
lhe eram a única felicidade.
Recalcou dentro do peito largo a mágoa imensa, acendeu dentro do
coração uma chama de esperança : talvez sej a ilusão minha . . .
E passou à ordem do dia - a questão ortográfica.
A questão ortográfica era o seu prato de substância, o preferido,
o prato que ele confeccionara para o menu obrigatório de todas as
sessões .
- Prosseguindo nos meus profundos estudos, vou profligar umas
protervas ejaculações sofísticas dum desconhecido que me repugna
pronunciar o nome, mas que por boca menos pura, podereis saber.
Senhor segundo-secretário, quem é o ignóbil que me ataca?
Alguns riram, que o diabo do homem de vez em quando tinha
graças ! E a boca menos pura do segundo-secretário, que era o poeta
mavioso dos Versos ao meu amor, escarrou o nome do desgraçado :
- Antônio Pereira.
O presidente sorriu grosso, refazendo-se do gozo em que se afo
gara :
- Está aí! Agora chega de imundícies ! - malhou uma palmada
sólida na mesa. - Passemos à questão ortográfica! Dizia o Sr. Cândido
de Figueiredo . . .
Mas era o fim, bem adivinhara. Era o fim, o desprezo pelo seu
esforço, a inutilidade de seus sacrifícios para a fundação do grêmio,
uma asse mbléia onde ele pudesse expor seu pensamento voltado para
o amor das velhas formas, para a pureza dos trechos clássicos, para
o culto de Camilo, de Castilho, de Herculano.
O grêmio precisava de . gente e ele apertara com calor a mão do
poeta Gonçalves , Artur Gonçalves, com quem tivera em tempos vio
lenta discussão na porta da confeitaria. Procurara o Castelo e solicitara
lhe o apoio, pedindo esquecer - águas passadas não movem mÔinhos,
Castelo, o que lá vai lá vai - a briga por causa de pronomes e do
Mário de Andrade - um burro ! Procurara o diretor do jornal que
o barrara dentre os colaboradores - que importa? é olvidar! - e
pedira para o grêmio a publicação das atas . Arranjara a sala, cavara
ofertas para a biblioteca. Tudo fizera, desperdiçando forças, nervoso,
querendo fazer tudo ao mesmo tempo, humilhara-se até, porque sabia
que tudo seria para melhor e no fim de tanta lida lá estaria o seu
público, ouvintes para as suas .poesias, risadas para os seus sarcasmos .
E agora, tão cedo, tudo lhe fugia, ele bem sentia, perdia-se o sonho
difícil que arquitetara. Fora-se o entusiasmo dos primeiros dias, só
ele era o mesmo. Já se bocej ava quando ele lia os poemas da sua
lavra, cheios de florões e blasfêmias às mulheres . Já não ouvia, depois
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das sessões, na rua, no café da esquina, falar do seu sarcasmo que
queimava.
Deu uma sacudidela violenta no cabelo como que acordando. Mudou
de repente de assunto - propôs dissolver o grêmio!
Ninguém se espantou. Acharam até natural. Pôs em votação.
- Apesar do voto ser secreto - disse - voto pela dissolução !
Os rapazes já sabiam que eram melhores as noites lá fora, no
bilhar, o bilhar do Quincas, um sujeito ventrudo, com piadas engra
çadíssimas, na praia, entre as pequenas, no cinema, do que ali na
quelas sessões estéreis, a ouvir sem cessar a voz do presidente vomitar
contra tudo, homens e obras, coisas e divindades, a onda do seu
despeito, num elogio desvairado e mórbido do que era seu.
Perguntou secamente ao bibliotecário :
- Quantos volumes temos?
- Vinte e um.
- Amanhã devolva-os aos doadores e está tudo acabado.
Levantaram-se. Apanharam os chapéus, as capas, e foram saindo.
O tropel pela escada chegava, entre risos, aos ouvidos do presidente,
ainda sentado no lugar de honra, ereto, superior.
- De que s e ririam?
Esboçou um sorriso amargo :
- Imbecis !
E levantou-se também, desceu a escada pisando forte, caiu na rua,
s em chapéu, a onda dos cabelos elevando-se revolta sobre a cabeça
grande.
93
TRÊ S CAMINHOS*
97
Abstinha-se de carnes e salgados por via das dúvidas - sofrera um
ataque de ácido úrico que bastante o abatera. Entregava-se aos legu
mes, tomava pós medicinais, falava dos negócios - operários doentes,
preços da matéria-prima, sempre subindo ! encomendas feitas, merca
dorias entregues.
- Mais doze grosas daquelas de baguete, que você gostou, Filoca.
Doze! Para o "Paraíso das Damas", sabe? Se continuar assim, resga
tarei a hipoteca antes do prazo.
- Deus o ouça - esperançava mamãe.
Nós nem um pio - criança não fala na mesa. Catarina tinha um
vício : ovo cozido. Guardava, na beira do prato, os pedacinhos para
comer no fim. Eu fazia, escondido, bolinhas de miolo de pão, atirava
as contra a parede.
- Que barulho foi esse?
Ninguém sabia. Mariana carregava os pratos, deixava cair talheres
no corredor.
'li
99
de zuarte, continuava encostado na casinha de madeira, chupitando
o cachimbo de barro que representava a cabeça coroada de uma mulher.
Descíamos o caminho íngreme, serpenteante, ouvindo arrulhos quei
xosos na profundeza das folhas e estalidos de chão pisado, atraves
sávamos a pontezinha de pedra. O ar era puro jasmim-do-cabo.
Catarina, que nos esperava no portão com dois mastins de louça nos
pilares, corria a buscar os chinelos e o paletó de alpaca de pa:pai.
Margarida, que terminava o curso da Escola Normal, já se encontrava
de livro aberto, lendo meio alto, para decorar, as mãos fincadas na
cabeça. Papai, sem fazer barulho, acomodava-se na cadeira de lona,
abria A Noite para ler as notícias da guerra, acompanhando com o
dedo os mapas das batalhas. O bico de gás ardia em chiado surdo e
dele caía, enfeitando-o, um balãozinho de croché que as moscas
ofendiam.
Nós aparecíamos à porta, metidos no macacão de dormir com
cheirinho de malva.
- Bênção, papai!
Ele abaixava o jornal, olhava-nos por cima dos óculos amarelados :
- Boa noite, meus filhos, Deus os abençoe - e só tornava à
leitura quando nos via desaparecer no corredor, onde, saindo das fres
tas do rodapé, baratas passeavam.
Ili
O alarido das rãs vinha morrer nos meus ouvidos. Dorotéia dormia
de boca aberta, dava repelões com os braços, afastando as cobertas,
debatia-se, ficava em posições incríveis. O vento trazia a angústia
do Salgueiro, num batuque desenfreado. As vozes bárbaras, negras,
soturnas, crescem nos meus ouvidos, diminuem, quase se extinguem
para voltarem depois mais altas, mais trágicas, na força de novas
rajadas.
Insone, remexia-me na cama : Alemanha, Alemanha. Sim, era pre
ciso não ter medo. Os soldados alemães eram terríveis. Furavam olhos,
arrancavam línguas, comiam gente viva, atrelavam mulheres aos seus
carros, matavam sem piedade! E er!lj preciso não ter medo . . . Como
assim? Melhor seria enganá-los : eu também sou alemão - diria. Se
eles, um dia, desconfiassem . . . Também, para que ir para a Ale
manha? Para quê? Que idéia aquela de papai, querendo que eu estu
dasse química? ! Que era química? Ele declamava, convicto : "É o futuro
do Brasil, o futuro do mundo ! " Não compreendia. Mamãe me expli
cava mal : "São misturas de remédios, meu filho. Seu Pedro é que
sabe."
Seu Pedro . . . Encerrava-se nesse respeito de mamãe por papai a
norma da nossa vida. Papai é quem mandava. Obedecíamos cega-
1 00
mente. Uma única vez, no correr de um jantar, uma voz desrespeitara-o
- a do Fernando, meu irmão mais velho, que queria se casar.
Papai negara-lhe - "Você ainda não tem juízo, nem recursos para
tal. Não consinto. Espere."
Conformado, durante meses aguardara, debalde, o consentimento
pedido. Papai não tocava no assunto. Era como se de nada soubesse.
Foi no célebre jantar :
- Papai, eu fui hoje aumentado.
- Bravo! Dou-lhe os meus parabéns.
Todos fizeram coro, satisfeitos :
- Parabéns !
- E o senhor dá o consentimento?
Papai, sem interromper o bolinho que cortava, respondeu :
- Meu filho, ainda é cedo. Espere. Não insista.
Na vida da família jamais se vira loucura como a que se seguiu.
Fernando levantou-se e gritou, os olhos como brasas :
- Pois eu me caso!
Ficamos paralisados. Ouvia-se uma mosca voar. Fernando caiu em
si : Papai . . . - estava em pé ainda, mamãe tremia, Margarida tremia,
nós tremíamos, não tornou a se sentar.
O senhor é um insensato. Case, case! Mas suma-se da minha
vista. E nunca mais me :ponha os pés aqui! Está ouvindo? Nunca!
- Pai . . . - e as lágrimas caíam.
- Já!
Fernando cambaleou para a porta, tentou voltar, mas o olhar duro
de papai o enxotava, mudo. Desapareceu no varandim. A tarde caía
num sossego doloroso. O gramofone rangeu próximo, "Varre, varre,
vassourinha . . . " Não sabíamos que fazer. "Vem varrer meu coração."
Papai dirigiu-se a mamãe :
- Filoca, ponha mais caldo de feijão aqui - e estendia o prato.
A concha na mãó de mamãe é que tremia. Ele fingiu não ver, nem
o tremor, nem as lágrimas que deslizavam pelo rosto acabado. Era
como se nada acontecera, o semblante tranqüilo de sempre. Naquela
tarde, porém, não saiu. Levantou-se, enfiou os punhos duros que
saltavam das mangas, pigarreou, agarrou Catarina pela cabeça, puxou-a
contra o peito, foi empurrando-a para a sala de visitas.
- Vá tocar um pouco para eu ouvir.
Catarina sentou-se na banqueta, tão confusa que nem a abaixou,
ficou com as pernas penduradas no ar, longe dos pedais, os olhos
medrosos buscando o teclado, as tranças caídas nas costas, com laci
nhos de fita vermelha.
Era uma valsa. As notas falhavam, os dedos perdiam a força,
engrolavam a melodia, mesmo assim era uma valsa e papai ouvia-a,
encostado à janela, olhando.
Nunca mais se pronunciou o nome de Fernando na sua frente. No
101
porta-bibelô de jacarandá continuou, todavia, o retrato dele, tirado
quando fez dez anos, cabelo à escovinha, roupa à caçadora, e o braço
apoiado na peanha. Papai, de vez em quando, parava e olhava-o.
IV
VI
106
disso lá nos fundos?" Passavam as noites, noites breves, que dor
míamos cedo .
Férias saudosas ! Dias felizes ! Agora aquela solidão de quinta-feira
sem aula. Se ao menos houvesse meninos . . . Que desejo de descer
pela L�deira do Bom-Pastor, ir lá para baixo, perto da fábrica de
chitas, _ brincar no meio da molecada! Mas papai era severo. Se ele
soubesse . . . Por mamãe eu ia, mas ele . . . Não ousava. Ficava do
alto, espiando-os, ouvindo-lhes os berros, as disputas, as' brigas, o
entusiasmo da peleja com bola de meia.
Terminado o almoço, vagava pelo porão, remexia malas velhas,
revistas, traparias bolorentas, caixas de charutos repletas de retratos
se esvaecendo, gente do tempo do onça, de vetustos balandraus, meus
avós, minhas avós, penteados mirabolantes, gravatas repolhudas, todo
um passado enterrado.
No quintal refrescava o espírito do mofo revolvido. Passarinhos
libertos ruflavam pelos galhos . Ratos atrevidos saíam dos buracos.
Via a água correr, correr, espiava a casa do aviador, voltava ao porão.
Um sentimento estranho me arrastava para aquele armazenamento de
bugigangas. Evocavam-me a vida de meus pais na fazenda de Magé,
que eu sabia através das conversas nos serões, através da Mariana
fácil em reminiscências . A morte de vovô Alexandre, muito rico, em
circunstâncias imprevistas, o avança na partilha, os ódios daí gerados,
que obrigaram meu pai à aventura arriscada da capital, sem um tostão
no bolso . Visões tristes do fim da escravatura (Mariana fora cativa) ;
rebenques, açoites, troncos, e a fila curvada dos negros pelas encostas
do cafezal em decadência. A opulência da baixela avoenga nos jan
tares de cem convivas, o caso das cobras que apareceram soltas no
quarto de vovô, nojentas e agressivas, e a devassa cruel que sofrera
a senzala. O incêndio no paiol, a contenda armada com os Cerqueiras,
por causa da cerca divisória, a alma do tio de papai, que morreu,
muito moço, na guerra do Paraguai e que surgia ensangüentada, ge
mendo, nas noites de sexta-feira, no moinho d'água que construíra ao
pé do curral. O primeiro negócio de papai na caieira de Paquetá ( onde
Margarida nasceu) , o fracasso, a vinda definitiva �ra o Rio, o
emprego no Arsenal.
O quintal recebia-me outra vez no cansaço das minhas evocações .
Ouvia-se o bater de roupa. Onde era? Doró, no varandim, cozinhava,
no fogãozinho de lata, comidinhas para as bonecas recortadas de
figurinos . Catarina . . . Por que não combinávamos? Por quê? Não
que brigássemos. Não. Mas era tão indiferente, que nem parecia
presa a mim por laços do mesmo sangue, mero conhecimento apenas .
Margarida, calada, vivia com seus livros, ajudava mamãe, cuidava da
roupa miúda, que tempo lhe sobrava para me dedicar? Fernando, sim,
Fernando era outra coisa. Brincava, ria, soltava bichas chilenas e
rodinhas nas noites festivas de São João, puxava por mim, levava-me
para o seu quarto, me ensinava brinquedos divertidos . E se fora.
1 07
Nunca mais o vira. Como estaria? Magro ainda? Com as costeletas
se elevando pela saliência dos malares, os ombros curvos para a frente,
o andar gingado, a agilidade do falar quase incompreensível? Soubera
que se casara mesmo e tinha uma filhinha. Sentia saudade! Nunca nos
quisera ver. Conhecia o gênio do pai. Nós, crianças, poderíamos
bater com a língua nos dentes . . . Evitav� que apanhássemos castigos
por uma imprudência sua. Mamãe via-o. Medrosa, às escondidas,
escapulia e ia, muito sem jeito, pois nunca saíra sem o maridó, pro
curá-lo no banco, ou na sua casa, aos sábados, quando fazia semana
inglesa. Sentia saudade ! O quintal falava bem dele. Lá estava o
balanço que armara na mangueira, fonte divertida de tantos tram
bolhões. Lá se abandonava a paralela, em que fazia exercícios, pro
metendo-me ensiná-los quando eu pudesse. Lá estava o tanque dos
patos gordos que criava e a bica para enchê-lo, feita dum cano amas
sado de chumbo. Certa manhã encontrara-se a cobra na borda do
tanque. Jamais se me apagou da memória as peripécias do aconteci
mento. Verde, verde desmaiado, clara para a barriga, a língua vibrante,
enroscava-se em atitude espantada de defesa. Mariana deu o alarme :
- Jesus, uma cobra!
Acudiram todos de casa ao grito de socorro. Mamãe nos segurava :
__:_ Pra cá, meninos ! Pra cá! Não cheguem perto!
Papai não estava, vieram vizinhos em alarido : "Que é? Que não é?
É venenosa! Não é, é de vidro! Mata! Mata! " Uma balbúrdia em que
ninguém se resolvia. Dona Nina (mudou-se pouco depois ) encara
pitada no muro, é um monte de medos ridículos. Fernando, que
estava no chuveiro, surgiu afinal com o pau corajoso na mão e o
farmacêutico (da Farmácia Bom-Pastor) levou a bicha pelo rabo para
botar num vidro com álcool. Dona Nina tapava o nariz, sestrosa:
- Que nojo, Seu Bonifácio. Não sei como o senhor tem coragem.
O boticário, rompendo a onda de curiosos no portão, é todo orgulho
e temeridade segurando o réptil morto :
- É para estudar, minha senhora. Acima de tudo a ciência!
Subia. Mamãe fazia rosquinhas de sal e amoníaco, surrando a massa
na pedra-mármore da pia. Consultava o relógio, ia até à rua, inquieto
pela passagem das horas, uma palpitação dolorosa e fina no coração
à lembrança de Dô. Quatro horas, afinal! Dava uma fugida ao poste
do bonde, para aguardar a amiguinha que voltava :
- Alô!
VII
- Dôôô!
- Prontôôô! - e ela despencava pela escadinha do alpendre, numa
revoada de cabelos e de gestos. - Ia ficando velha de esperar! Mais
um pouco não chegava mais, caramba!
1 08
- Todo domingo você diz a mesma coisa, mas eu não falto nunca.
Você é que dá bolos.
- Eu não.
- E domingo passado?
- Dor de dentes.
- Eu sei . . .
Caminhávamos . As ruas pareciam que tinham sido lavadas de tão
limpas . !amos para a matinê pelo caminho mais longo, com apostas
do jogo de biva - quem visse mais cavanhaques :primeiro, ganhava.
Ganhava o quê? Coisa nenhuma. Todavia, por esta vitória sem prêmio
porfiávamos muito, discutindo, brigando muitíssimo.
O largo fervia com o povaréu que ia para as corridas, para o futebol,
para a cidade flanar. Parávamos nas vitrines, projetando compras dos
mais disparatados objetos. Goderávamos as montras das confeitarias,
comprávamos rebuçados de Lisboa, recomendados para a tosse. Armá
vamos ideais pequeninos - coleções de caixas de fósforos marca
B andeira ( eu conseguira mais de cem diferentes ) , de papéis dourados
que embrulhavam os peixes de chocolate, de retratinhos de artistas que
vinham nos saquinhos de sortes de que as padarias tentadoramente se
atulhavam.
- Quando eu for para a Alemanha, você vai sentir?
- Sei lá.
- Não sabe?
- Como posso saber? Daqui até lá! . . . Se nós brigarmos?
- Brigarmos? !
O delírio ambulatório terminava nos empurrões para comprar en
tradas, ao tilintar intérmino da campainha. O porteiro distribuía balas .
Max Linder apanhava indigestões devorando pratos de pastéis na
festa da namorada, Bigodinho sovado pela mulher, Carlitos fugindo
do grandalhão furioso, Chico Bóia quebrando louças na cozinha, nos
faziam arrebentar de riso. Os Mistérios de Nova Iorque apaixonara
a platéia miúda. Um admirável senso de justiça levava-nos a aplaudir,
frenéticos, batendo cadeiras, aos berros, aos coices, ensurdecedora
mente, cada tentativa frustrada de morte ao detective francês - Jus
tino Clarel - pelo mascarado corcunda, que era tão vaiado e execrado
quanto o chinês, seu cúmplice, que lançava plumas envenenadas so
prando num canudinho. Riso, riso, emoções e mais emoções pelas
ciladas armadas aos nossos ídolos, saíamos abalados, nervosos, pertur
bados da sala escura para a tarde na rua de sol marcial, os olhos
inchados da projeção tremida.
VIII
1 09
vinha da escola para casa, sem outro interesse que não as aulas e
as lições, sem amigas, solitária, silenciosa. Ele fora o nosso traço de
união com a rua, com o mundo, com a vida. Os acontecimentos
vinham para nós pela sua linguagem despachada. Estava a par da
última novidade, fosse anedota de português ou palavra de gíria, fosse
letra de modinha ou boato político.
Eu ficava no extremo da mesa, fora do halo de luz. Papai suspendia
a cabeça :
- Você não estuda, menino?
- Já estudei tudo, papai.
A sala mergulhou-se na paz mal turvada pela tesoura de Margarida
cortando moldes em jornais.
A barata passeava na parede, forrada por um papel que eu não
me cansava de interpretar, contornando com o olhar os desenhos esta
pafúrdios . Parou na torre do castelo, subiu até à montanha (papai
passou para a Oltima Hora ) foi mais além, às nuvens, desceu depois,
susteve-se um momento sobre os chifres do veado a fugir do tiro
assassino, passou por cima do caçador, caiu no lago onde cisnes na
davam. Eu seguia-a sempre. A baratinha estava varrendo, diligente, a
sua choupana, quando encontrou um vintém. Estou rica! gritou -
Estou rica! - Também hei de ser rico, Dô, para encher você de
presentes ! Então a baratinha resolveu correr mundo. Se nós fugíssemos,
Dô! Se nós fugíssemos no aeroplano . . . Você tinha medo? Mas a
baratinha precisava dum marido para defendê-la. Quer casar comigo?
- perguntava aos bichos que passavam. Quero. Como é que você
faz de noite? E o boi de retorcidos cornos : Muuuu . . . Vamos fugir
para casar, Dô? Com que dinheiro, Edgar? Então você não conhece
aquela história dos garotos que deram volta ao mundo com dois
vinténs? . . . Ahn! . . . ( a barata agora está no mármore do bufê ) .
Que tal, Dô? Vamos. O barulho do aeroplano põe narizes no ar
truuu . . .
- Barata assanhada, sinal de chuva - fez Catarina, espertando a
sala.
A barata esbarrava no teto . As pálpebras de Doró não ficavam
um segundo quietas. Mamãe sabia :
- É o João Pestana que está chegando.
Levantou-se do tricô e foi preparar o chá com biscoitos unha-de
gato da padaria. Margarida largou os moldes e atirou-se atrás :
- Deixa, mamãe. Eu faço.
Virei-me para papai. Encontrei-o com o olhar posto em mim.
IX
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XI
Xll
XIII
XIV
XV
XVI
XVII
XVIII
XIX
XX
Pouco passava das quatro horas e papai brotou em casa. Aos olhos
interrogantes respondeu abrindo o telegrama que recebera na fábrica :
"Venha urgente. Fernando".
- Que terá acontecido, meu Deus? ! - fez mamãe amedrontada.
Papai manteve-se duro :
- Não há de ser nada, Filoca. Talvez precipitação do Fernando.
Você sabe como ele é. Exagera tudo.
Mamãe não prosseguiu. Papai foi para a secretária, resistente tras
te de mobiliário antigo, abriu a gaveta do dinheiro.
- Arranje-me aí umas camisas, Filoca. Uns lenços também.
Não havia mala de mão. Fez-se um pacote reforçado, com alças
de barbante.
- Está muito bem.
Engoliu um rápido café ( "Não quero mais nada, estou meio in
disposto . . . " ) beijou-nos e partiu para apanhar o noturno das seis
horas .
- Eu volto logo, Filoca, não demoro . O Fernando é precipitado.
Mas você pode resolver tudo na minha ausência. O que fizer está
bem f�ito. Quanto à fábrica, não se incomode, já dei ordens ao
Euzébio a respeito.
Foi uma noite difícil. Mamãe mandou trancar o porão mais cedo
com medo dos ladrões . Reunimo-nos na sala, quase mudos, teme
rosos . O silêncio, na falta de papai, que pela primeira vez se sepa
rava uma noite de nós, parecia maior, bem maior, campo vasto para
o ranger dos pesos no relógio indiferente. Mamãe rezava, impercep
tivelmente. Dorotéia achou o baralho e pôs-se a fazer castelos sobre
a mesa. Pouco firmes, as mãos infantis os derrubavam mal se levan
tavam. Eu pensava. Pensava em Fernando, em Dô - onde esta
ria? - em papai. Papai estava no trem. Eu nunca andara de trem.
Mamãe levantou-se. Margarida atalhou :
- Quer alguma coisa, mamãe? Eu vou buscar.
- Vou ver se as crianças estão direitinhas .
Os netinhos dormiam no quarto de papai, defumado com alfazema.
1 20
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XXIII
XXV
XX VI
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fugir às crianças. Não conversavam muito, evitando que se cansasse,
e como os afazeres os solicitavam, deixavam-no só.
Através da po rta cerrada ele ouvia o rumor da vida caseira, de
que não podia participar. Saía, apenas, para as refeições, momentos
rápidos de convívio, de lenço à boca, falando pouco. Depois, havia a
curiosidade dos olhares sobre o seu estado físico, piedosa curiosidade
a que não podia escapar e mais o amargurava. Via-se no espelho.
Realmente era para apavorar - esquálido, amarelo como cera, barba
desleixada, peito chupado.
Conversava comigo da janela :
- Como vamos de estudos?
- Vou indo.
Interessava-se :
- Deve-se aplicar bem à aritmética.
Eu não gostava. Ele insistia:
- Sem aritmética, meu mano, não se dá um passo na vida.
Brincava com os filhos também :
- Então, não gostam mais de mim?
- Não !
Ele sorria, fraco, chocado.
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XX VIII
XXIX
1 27
completara os dez. Então, a calada Margarida sacrificou por nós a
sua mocidade. Resoluta, tomou as rédeas da família.
Havia dívidas . A casa, além de grande demais para nós, era fértil
de dolorosas recordações. Daria bom aluguel - calculou.
Retirou alguns móveis e mobiliou a casinha alugada junto à fá
brica. Do resto fez leilão.
O leiloeiro percorreu a casa elogiando - linda casa, senhorita -
avaliando os móveis, os utensílios, calculando as possibilidades.
- Estes aqui são bons . Móveis do Império. Jacarandá legítimo.
Obra de preço. Hei de frisar nos anúncios. Mas aqueles acolá não
valem grande coisa. É só beleza, obra fraca, estilo moderno . . .
Margarida cortou-lhe o comentário :
- Eu ficarei com eles, Senhor Gonçalves - e emendou : - Vou
montar uma casinha e necessito de certos trastes, certos objetos . . .
Aquela cômoda, por exemplo, eu levarei. É grande, cabe toda a
roupa . . .
Senhor Gonçalves foi gentil :
- Pois faça uma lista, senhorita, faça uma lista. Ou melhor,
separe logo tudo que quiser. A casinha . . .
- Já está por minha conta, desde hoje.
- Pois então simplifiquemos. Separe o que quiser. Amanhã man-
darei dois carregadores logo cedo. Eles lhe farão a mudança.
- Muito obrigada, Senhor Gonçalves . Fica magnífico assim.
- Não tem que agradecer, senhorita. O lucro é meu. Quanto
mais depressa se fizer o leilão, tanto melhor.
- É meu também, então . . .
Senhor Gonçalves riu, satisfeito, esplanou pelas paredes a mão
gorda, estendida :
- Preciso abrir uns lugares para colocar os encalhes do arma
zém. Completar a casa, sabe? Por exemplo : a sala de visitas . É
uma bela sala, não há dúvida, mas a senhorita leva o piano. Pois
eu tenho um no armazém mesmo a calhar : - preto, de cauda, um
rico banco estofado . . . Tenho um gramofone superior também.
Artigo francês . E bronzes , quadros assinados, estatuetas, objetos de
arte, enfim. Percebe, não é? A sala ficará uma jóia. Verá!
Andava. Nós acompanhando.
- Aqui para a sala de jantar eu trarei uma marquesa. Põe-se
ali no canto, embaixo um bom tapete . . . Persa, talvez . . . É lote
pago ali na batata, vai ver, senhorita! Eu conheço o meu ofício . . .
- ria, vaidoso. - Olhe, ali no corredor sapecarei um oratório colo
nial e umas lindas arcas espanholas . Ah! Ah ! Ah ! Eu conheço o
meu ofício ! . . .
Senhor Gonçalves foi relativamente sério nas contas apresentadas.
Margarida, com o recebido, saldou todos os compromissos. A velha
casa foi alugada a um coronel do Exército e a renda dava para pagar
1 28
a nova casa e sobrava. Margarida, previdente, acumulava uma parte
para atender a impostos e reformas .
- Por este lado estamos garantidos - dizia. - Agora, a fábrica.
Ela tem de dar lucro de qualquer maneira!
E não s e poupou. Geria-a, ficava até alta madrugada fazendo
contas no papel, escrevendo cartas, revendo os arquivos de notas que
papai deixara.
Seu Euzébio foi-lhe dedicado, continuando no mesmo posto, com
o mesmo amor ao trabalho que papai tanto lhe admirava e recom
pensara com interesse nos lucros . Tinham conversas intermináveis
a propósito dos negócios , ela sempre de lápis em punho, tomando
apontamento.
- Acha que vai, Seu Euzébio?
- Ora, Dona Margarida, que pergunta! . . .
Margarida não ficava nisso. Dirigia ainda a casinha, no que Ca
tarina muito auxiliava (Mariana, coitada, estava caduca ) , lecionava
a domicílio, batalhava comigo, todas as noites, nas minhas lições para
eu, que entrara para o ginásio, não perder ano nenhum.
Os filhos de Fernando - uns diabretes ! - chamavam-na de vovó.
Ela sorria.
CIRCO DE COELHINHOS
1 29
vendava aos outros meninos - o das obrigações . É que a escola
para mim fora suave. Longas as férias, poucas as aulas no pavilhão
aberto dos menores, que assistia quando bem queria. Nas mãos
inteligentes de Dona Judite, maternal, paciente, os métodos modernos
dulcificavam asperezas. E havia, sobretudo, a ordem expressa de titia,
que "não puxassem" por mim. Foram el'i s, repita-se, que me trou
xeram a noção das primeiras obrigações, 'b;. as, longe de me rebelar
contra elas, com que amor e alegria a elas me entreguei ! "Está na
hora de botar água para os coelhos" - e cataclisma nenhum teria
a força de me impedir. Penteava-os, catava-os, levava-os a passear
no jardim, roseiras, só roseiras, que no reino das flores era a paixão
de titia; recusava ao Taninho passeios dominicais no automóvel de
seu pai, uma Benz, ficava com eles, móveis fontes dos meus meti
culosos cuidados. Um escravo, um escravo, confesso, fiquei das suas
necessidades, pequeninos tiranos inocentes.
Não só de tiranos, também de sábios aventurarei chamá-los aqui
(adivinhe-se lá sob tanta brancura quantos segredos traziam! ) , tanto
assim que não deixaram parar no mundo das obrigações a série de
revelações que a mim, naturalmente, se propuseram, e trouxeram-me
o amor.
Amei-os com a ternura dum namorado. Enfartava-os de carícias.
Aos meus sôfregos abraços desabava a chuva de protestos de titia :
"Você, um dia acaba matando estes bichos de tanto os espremer."
Cobria-os de beijos, deixava-me nos cantos solitários da casa, igno
rante das horas, em intermináveis conversas com eles, respondendo
lhes coisas como se mas perguntassem. Perdi a realidade, deixei de
distingui-los, fundia-oSíiü'm único coelho, um coelho maior que todos
os coelhos jamais vistos, quase do meu tamanho, vivendo como gente,
falando e rindo como gente, vestindo-se à marinheira como eu.
Veio com o amor o séquito das suas dores . Que de torturadas
horas da minha meninice, vocês, adorados bicharocos, foram a causa!
Amava-os demais para não sofrer com o meu amor. O ciúme fez
a sua estréia no meu coração e, fero, me consumia. Também não era
para menos : tinha um rival, e de que força, anjos do céu! - um rival
terrível, Silvino, molequinho dois anos mais velho do que eu, que
tia Bizuca tomara para criar, com três dias apenas, por morte da mãe,
preta que, fielmente lhe servindo, gastara sem usura a mocidade.
Se na casa eu tinha o prestígio do sangue, ele mantinha o do tempo,
de que se servia com sucesso, principalmente entre a criadagem. "Isso
se deu antes do senhor ter vindo pra cá", diziam-me quando se falava
de acontecimentos passados. "O Silvino é que sabe tudo direitinho."
Realmente sabia e, olhando-me de lado, um sorriso zombeteiro que
mal se percebia, contava, tintim por tintim, detalhado, supérfluo,
pois não ignorava que assim fazendo me humilhava. Era o antigo,
era, não se podia negar - aproveitava-se disso. Defendia-se do in
truso, afinal, o intruso que era eu, finório e humaníssimo Silvino.
1 30
Terrível rival, astuto como possam sê-lo os mais, rival das opor
tunidades esquivas, como me lembro dele, agora, os olhos bisbilhotei
ros, a cara redonda de mico, a carapinha muito rente, a esperteza
dos trejeitos gaiatos, a dentadura soberba de fortaleza e alvura.
Doeu-lhe o presente do chacareiro. Por que não ganhara também?
Que fizera eu para merecê-lo? Ele, sim, teria direito. Ajudava o
Manuel na chácara, carregando estrume no carrinho de mão, var
rendo a estufa das begônias, levando-lhe a comida, regando-lhe as
plantas, auxiliando-o na podação sistemática dos ficus benjamim,
tapume verde e compacto que defendia o terreno dos olhos devassa
dores da vizinhança. Era justo. E fora eu que recebera o presente,
eu, - grande patite o Manuel, miserável chaleira, quando tinha raiva
de português não era à toa! Só porque eu era o sobrinho, só. Ah!
não ganhara? Que importa? ! Saberia disputar a mim o afeto dos
bichos . Saberia e soube. Se, por exemplo, eu lhes dava alface, ele
a substituía logo pela que corria a buscar, pois que somente ele co
nhecia, na horta que não lhe guardava segredos, o canteiro em que
vicejavam as folhas mais frescas, os grelos mais tenros.
Na luta aberta, tomava o meu partido - eram meus, não eram?
Pois então, tome, bacurau beiçola! E trazia-os ao colo, dia e noite,
não consentindo que ele lhes tocasse com um dedo. "Visse com os
olhos ! " Afagava-os na sua frente para lhe fazer pirraça : "Meus an
jinhos ." Que ele sofria, sofria, mas não se dava por achado e sor
ria-me - dia virá, pensava. A paciência foi premiada e o dia veio,
negro dia em que tive de ir para o colégio, um colégio diferente, sério,
rigoroso, com horários a que não podia fugir, pois, como dizia tia
Bizuca, já estava um marmanjão, era preciso entrar feio e forte no
estudo para ser gente na vida.
Como padeci, Deus o sabe. Intermináveis aulas de Seu Silva, que
ensinava tudo, menos ginástica, explicando sempre, aborrecidamente,
numa lição o que iria tomar na outra. Gramática, geografia, que me
importava saber verbos e substantivos, se o mundo era redondo ou
quadrado, que me importava, se o meu mundo era os meus coelhos!
Seu Silva falava alto, eu, porém, não o ouvia; meu pensamento mer
gulhava-se na dúvida cruel : que estará fazendo o Silvino com os
meus coelhos? Devorava com os olhos impacientes o implacável re
lógio do corredor, infinito corredor sonoro, com dez janelas para o
recreio, pista de astúcia onde os bedéis se exercitavam, surgindo ines
peradamente na porta das classes, surpreendendo os desprevenidos
alunos faltosos . Que estará fazendo? E os ponteiros não andavam.
Perdia-me no labirinto das conj ecturas : estará carinhando-os , coçan
do-os, levando-os para pastar no quintal? . . . Das problemáticas su
posições, Seu Silva me despertava :
- De que é que estou tratando, Seu Francisco?
Não sabia. Ganhava castigos.
Em casa, mal chegando, sacola para um lado, um beijo apress&do
131
em titia, e corria a vê-los. A brancura dos pêlos não guardava a
marca das pretas mãos odiadas . Os olhos vermelhos nada denuncia
vam. Batia-lhes, Ciumento, furioso. Amedrontavam-se, queriam
fugir, orelhas caídas, eu os abraçava, quase chorando, com loucura.
No serão da sala de jantar, titia tricotando, eu preso aos deveres
passados para fazer em casa, era ele, o bandido, que puxava o assunto
para me ferir:
- Eu hoje - sabe, Seu Francisco? - fui com os seus coelhos
até à padaria.
Eu me mordia :
- E? . . .
Silvino via que a chaga estava aberta, sangrando, e remexia-a mais,
deliciando-se com a minha agonia :
- Tá bom, vou até l'embaixo ver se eles estão direitinho - e
saía devagar, empurrando as mãos nos bolsos, um esgar de vingança
satisfeita no canto da boca.
Meu desespero chegava ao auge. Um pouco mais e estourava. A
caneta na mão nervosa fazia uma letra mil vezes pior do que verda
deiramente era; pulava palavras na cópia do "Coração", trinta e nove
menos quinze davam doze no problema das laranjas .
NAMORADA
1 34
mil maneiras de suicídio, absorvia-se pela crônica policial dos jor
nais, onde apareciam, diariamente, os mais absurdos meios, como se
elas fossem um figurino indispensável para a sua escolha perfeita.
Fugia para lugares solitários, ruas des ertas, ladeiras desconhecidas,
onde, no meio do mato, ralo, guaximba, erva-de-são-caetano, tiririca,
s aíam pedaços de alicerces, o que restava de antigas casas derrocadas
e que o enchia dum vago medo misterioso, temendo ver brotar dali
as almas dos remotos moradores , homens sinistros, rígidos e barbudos ,
mulheres que foram mártires escaveiradas e tenebrosas nos seus ves
tidos pretos, escravos cobertos de sangue, sangue vivo, vermelho e
servil, que escorrera nos troncos aos chicotes do feitor. Perdia-se nas
sombras vazias do Jardim Zoológico, bambuais que gemiam quando o
vento soprava, lagos quase secos em que folhas mortas boiavam.
Plantava-se junto ao cercado sujo dos jacarés , ficava largo tempo
vendo-os amontoados , numa imobilidade de estátua, asquerosos , dor
mitando aos raios do sol escaldante, e, arrastado por caprichosas
associações da fantasia, sonhava mortes aventureiras nos sertões inós
pitos da África, perseguido por tribos canibais , triturado nas mandí
bulas dum crocodilo, num pantanal de águas venenosas .
"Isto passa, é dar tempo ao tempo", achava tia Polu, que era sua
madrinha e para casa de quem foi morar. Miúda, insignificante, an
dar leve e saltitante de passarinho, com tais e tantos especiais desvelos
o tratou que, mais depressa do que se poderia esperar, abandonou
os trágicos projetos e cuidou só de viver, que a vida lhe pareceu
linda. Tinha quinze anos aí . Tia Polu já passava dos quarenta, sofria
da vista, levava uma vida sedentária e era muito devota de Nossa
Senhora do Carmo, que tinha rica imagem armada no melhor lugar
do oratório, todo de vidro, no corredor, extenso e claro corredor
·
1 35
Era um chalé baixo, o 27, com enfeites de madeira nos beirais e
bolas de vidro azul, caprichosamente penduradas pela varanda, uma
varanda também de madeira, quase ao rés-do-chão, onde armavam
redes preguiçosas, para gozar a viração do morro, nos domingos em
que o calor se mostrava mais forte e as cigarras, sem parar, chiavam
na mangueira de galhos protetores que assoberbava a casa modesta,
o galinheiro escondido, o jardim de ruazinhas úmidas e limosas, o re
puxo, seco, de cimento e de conchinhas.
Embora da mesma idade, Dulce sabia parecer mais velha do que
ele, guardando um ar recatado de senhora, quase um ar de mulher
vivida que declina.
De noite, em vez de estudar, Antônio escrevia-lhe extensas cartas,
atochadas de metáforas idílicas que entregava com mil cuidados e ru
bores, logo pela manhã, quando ia para a aula particular do Doutor
Macedo, que, de bigode pintado e pincenê de aros pretos, preparava-o
para o vestibular da Faculdade de Direito, "muito difícil, pequeno,
muito difícil, que é que você pensa? ! "
Erro dos erros d o zeloso professor, Antônio não pensava em nada.
Para que pensar? Tia Polu é que, pensando por ele, queria-o advo
gado. Um sonho que formara, um sonho prático, sobretudo. Have
ria de tratar dos seus papéis - "uma atrapalhada, meu filho, que
nem sei a quantas anda!" lamentava - e cuidar dos seus bens, que
eram dele afinal, dizia. Dizia isto e ainda mais, a bondosa senhora :
que quando chegasse ao terceiro ano, venderia a chácara e compra
ria um palacete em Botafogo ( que tivesse escadaria de mármore era
o detalhe ) para ele poder entrar na sociedade, como convinha a um
moço formado. Antônio retrucara dada ocasião, muito honesto, na
certeza dos seus conhecimentos vestibulares :
- Mas titia, e se eu nunca chegar ao terceiro ano? Se eu mesmo
não passar no vestibular?
Tia Polu olhou-o de alto a baixo por cima dos óculos, e, como os
seus vidros tivessem a penetração dum raio-X, respondeu-lhe com a
segurança de quem, vendo por dentro, conhecia o peso da sua sólida
ciência :
- Para mim você já está formado.
Cumpre dizer que Dulce não respondia aos botes literários da in
flamada pena, e Antônio, ferido na vaidade, várias vezes reclamou-lhe
a indiferença.
- Por que você não me escreve também?
Balançava os ombros débeis : não sei. Mas quando insistia, zan
gava-se docemente :
- Não, já disse. Para que você há de ser teimoso?
Dava, em troca, retratos e cromos, que ele colava prodigamente nos
compêndios de filosofia, os únicos que levava para a aula, para abri
los no bonde, com juvenil e desculpável pretensão ; segredava-lhe pro
messas, cochichava esperanças : - "Um dia, hem? ! " Sim, um dia te-
1 36
riam uma linda casa, pequenina, igual às que ela admirava no cinema,
fachada de pedra rústica, com muitos abajures dentro e velinhas ace
sas na hora do jantar de serviço à francesa. As criadas andariam de
preto, com toucas e aventais brancos, trazendo cartas em bandejas, e,
quando ele voltasse do escritório, a pasta dos negócios debaixo do
braço, haveria de esperá-lo com um penhoar creme, de arminhos
na gola e cauda se arrastando pelos tapetes da entradinha. Antônio
condenava : nada de penhoar! Um vestido esporte, bleise, saia curta,
sapatos de tênis. Ela acedia, mas achava que, ao menos pela manhã,
o penhoar tomava-se indispensável :
- É muito decente, Antonico, que nariz torcido é este?
- Está bem . . . Assim para a manhã, vá lá . . .
Enchia-se de ciúmes infundados que o lisonjeavam imenso, empres
tando-lhe um ar sumamente agradável de D. Juan, ele que não co
nhecia outra pequena que não ela. Contava, deixando os olhos ras
gados fora da vida, "que se tivesse um filhinho, haveria de se chamar
Fernando Luís".
- Fernando Luís?
- Sim. Não acha bonito, Antonico?
Achava, mas gostava mais de Sérgio.
- Sérgio? - punha o dedo na boca, pensativa. - Sérgio? . . . É.
Não é feio. Sérgio . . .
E falava, então, de amigas que se casaram muito moças e - pobres
coitadas! - eram muitíssimo infelizes . Uma até apanhava, "o marido
era um bárbaro, não prestava para nada e ela tão boazinha, tão engra
çadinha, só você vendo" . Outra, chamava-se Heloísa e morava no
2 1 , tinha morrido de parto na véspera do Ano Bom.
- Parto? !
- Parto, sim, ou você está pensando que eu sou alguma bocosó?
Bocosó? ! Santo Deus ! Antônio estava a mil léguas deste feio pen
samento. Pensava nos seus braços finos e naturalmente vagarosos nos
gestos . Pensava nas suas pernas grossas, em desacordo notável e
provocante com o corpo débil, infantil, com uma cintura de borboleta.
Pensava nos seus cabelos crespos, que ela alisava com óleo de coco :
- "É moda, sabe? A Luizinha usa assim." Luizinha, a filha do
Doutor Neves, morava na esquina e era a chique da rua, a discutida, a
invejada, o modelo de elegância do quarteirão, a pequena que mais
aparecia no "Beliscando", seção feita pelo prático da Farmácia Mi
nerva (onde o Doutor dava consultas grátis à pobreza) no jomalzinho
do bairro.
A quinta-feira amanhecera úmida e nevoenta. Veio uma ameaça
de sol lá :pelas nove horas, mas o chuvisco venceu-o e, peneirante e
frio, varou o dia e entrou pela noite.
Foi com um tempo assim, desagradável, mau, que se encontrando
na matinê do Excelsior, ele que concebera o amor sentimento tão
1 37
fácil e natural, que bastava duas criaturas se quererem para se com
preenderem perfeitamente recebeu de Dulce a primeira revelação
desconcertante.
É o caso que, quando o leão da Metro bocejou para a platéia, ela,
compondo o vestido de georgete, de modo que não se amarrotasse,
encostou-se ao seu ombro.
- Você um dia vai me esquecer, não vai?
- Que bobagem, benzinho, que bobagem. Onde é que você foi
buscar essa idéia?
- Cá eu sei.
Olhou-a bem nos olhos, olhos que não eram verdes, nem azuis,
deu-lhe palmadinhas na mão abandonada :
- Não fale assim . . . Eu gosto tanto de você! . . .
- Tanto ou muito? - perguntou arrastando as sílabas .
- Muito !
Colou-se a ele, gemeu em voz de criança :
- Meu amor.
Teve vontade de repetir como um eco :
- Meu amor.
Mas a ele, que nas suas cartas fazia aparecer estas duas palavras,
de quatro em quatro linhas, faltou-lhe coragem para dizê-las em viva
voz. Sentiu-se encabulado . Fatalmente perderiam com o seu timbre
a força de sinceridade, tal como nos teatros a gente ouve o galã ex
clamar : Eu te amo! - mas percebe que aquilo não foi dito com o
tom da verdade, foi recitado porque estava na peça e nada mais . Posi
tivamente ele não representava nenhuma comédia. Sentia-se sincero,
justificava-se interiormente : Que tolice! E as palavras, no entanto,
bem as sentia penduradas dos lábios, loucas para saltar. Que tolice!
- insistiu consigo mesmo . Ela me compreenderá. Ela é mulher . . .
( eram os romances que o fortaleciam ) . E os meus olhos não mentem.
Os olhos, as atitudes . . . Ficou mudo.
Dulce arrancou-se dele e cravou-lhe o olhar, séria, dum sério feroz
e elevado. Esteve para lhe dizer algumas palavras duras, certamente.
O rosto afogueara-se e a boca tremia-lhe. Não disse. Veio-lhe uma
ternura, como que uma fraqueza que a fosse tomando, tomando lenta
mente, qual um narcótico . A face perdeu as feições enérgicas . Amo
leceu. Esboçou um sorriso triste, depois colou-se novamente ao corpo
do namorado, humilde, pequenina, e suspirou :
- Ah ! se eu fosse rica! . . .
- Que é isto?! - saltou ele da cadeira. - Você não me com-
preende? !
Fez um gesto de infinita superioridade :
- Compreendo perfeitamente. Não sou tão ignorante assim! Mas
talvez fosse melhor que não compreendesse.
Atirou-se contra ela :
- Mas você ! . . .
1 38
Dulce levantou-se :
- Vamos!
Também estavam no fim : na tela o cínico de casaca apanhava do
mocinho. A gurizada urrava.
Dulce achou-o muito bonito . (Não disse que você faria? ) Aquela
imagem da s audade, então, era uma beleza ! Sabia-o de cor.
139
- Desculpe os trajes, doutor, desculpe, mas é que sei que o doutor
não é de cerimônias .
O bom homem, pelo menos, não gostava disso . Nunca fora de
salamaleques e etiquetas, acreditasse. Tinha até raiva, compreende? -
fechava os punhos : raiva! Com ele, e irradiava um sorriso, era ali
na simplicidade! Era franco : "Quem não gostasse . . . " E, mesureiro,
convidava para entrar : "Casa de pobre . . . " Antônio recusava, verme
lhíssimo. Seu Rodrigues, então, ficava no portão, cruzava as pernas
com jovialidade e vinha num nunca mais se acabar de casos do seu
tempo de rapaz (tocara violão ) . Falava de selos, era entendido, cole
cionava-os há muitos anos.
- Igual ao meu álbum de selos do Brasil, só do Brasil, veja bem!
não é pra contar prosa, mas não vira outro. Vale um dinheirão! . . .
O Antunes . . . Não sei se o doutor conhece o Antunes da Casa Fila
télica? Não? Pois o Antunes não se farta de me dizer : - Quando
você quiser se desfazer, Rodrigues, já sabe!
Com ele não havia silêncio que durasse :
- Ah, meu tempo ! . . . - suspirava para enchê-lo. E relembrava
logo os carnavais passados. - Ah, o último que ele brincara sol
teiro! . . . Nem era bom falar! . . . Fora um pagode! - gargalhava e
repetia : Um pagode! Nesse tempo os préstitos passavam pela Rua do
Ouvidor (a Avenida ainda não fora aberta pelo grande Passos, nem
se sonhava mesmo - informava ) e eram apertões, apertões - o
doutor calcula, a rua estreita como é . . . - as senhoras gritavam,
davam até ataques, sufocações, e a rapaziada nada, tome limão-de
cheiro ! Tome bisnaga ! Um pagode!
Antônio arriscava :
- O carnaval era diferente.
- Diferente? ! Outra coisa, doutor! Era o entrudo . O doutor nem
faz uma idéia. Olha, vinham :para a rua bacias, jarros, tinas . . .
Ocorriam-lhe depois as encrencas do escritório, as piadas do "D.
Quixote" - eram do Bastos Tigre, não precisava dizer mais nada! -
e as doenças da filha que lhe trouxeram cabelos brancos, o doutor
nem imagina! . . .
- Não é mesmo, filhota?
Acariciava-lhe o queixo, pequeno e saliente, com a mão cabeluda
e grossa, a unha do dedo mindinho propositadamente comprida pelas
necessidades do seu ofício. Ela reclinava a cabeça no ombro dele e
respondia que sim.
Depois de São Pedro, quando, muito habilidoso, fez e soltou um
balão gigante de mais de trinta gomos, com a falência da fábrica de
calçados de que era guarda-livros, Seu Rodrigues achou-se sem em
prego e até, murmuravam, meio comprometido.
Ficou visivelmente abatido . Emagreceu, a barba crescia-lhe deslei
xadamente, fugia de encontrar Antônio, não tinha mais hora certa
de chegar em casa.
1 40
Um dia levou a coleção de selos para o Antunes, vendeu os poucos
móveis que possuía, um piano entre eles, "o piano de Dulce", em
que ela tocava valsas lentas no tombar das tardes cálidas, e foi morar,
por favor, em casa de um irmão, funcionário dos Correios, nos confins
do Riachuelo.
Dona Zulmira tinha um traço característico que a marcava : a con
formação. Todo e qualquer desastre que acontecesse parecia-lhe pouco.
Balançou os ombros (os seios gastos se sacudiam) :
- Podia ser pior.
Inflexionava esperanças na voz de dentes postiços :
- Um dia se conserta a viola. Se não consertar, paciência . . .
Muito religiosa, não ia à missa porque não tinha tempo. Ia ao
mês de Maria, às vezes, nas noites melhores - maio é tão frio e o
seu reumatismo não dormia - com um vestido de voai estampado,
um xale preto agasalhando-lhe a cabeça e o pescoço, pelo braço da
filha que ouvia piadas dos rapazes ao atravessar o jardim.
No dia da mudança - o azul do céu abismava - foi se despedir de
Dona Polu, se bem que nunca tivessem trocado visitas, simples ami
zades de cumprimentos.
Transparecia-lhe das palavras um dado tom de sinceridade que
Antônio não lhe conhecera até aí :
- Vinte anos perdidos, Dona Polu, vinte anos perdidos . . .
Acentuou, assim por alto, alguns planos do marido :
- Tinha umas escritas avulsas, pensava em criar galinhas para
vender, vamos ver se dá certo!
Ofereceu muito a casa :
- Não é minha, Seu Antonico, mas é como se fosse. Apareça.
Olhe que Dulcinha gosta muito do senhor! . . .
Tia Polu passou um olhar no sobrinho, sorriu :
- Há de aparecer, o Antonico não é ingrato.
Dona Zulmira retrucou qualquer coisa, mas ele Ja não a ouvia.
Chegara-se para Dulce, que se mostrava sucumbida, fingindo apreciar
o espelho veneziano da sala, raramente aberta, onde nunca entrara.
Requebrou-se toda :
- Você se lembra?
- Como poderia esquecer?
Ela mostrava-lhe, da janela avarandada em que se refugiaram, o
capinzal, ponto dos seus primeiros encontros. Não diziam palavra.
Recapitulavam o passado : lá estava ele, o capinzal dos seus amores!
Ali conversaram pelas primeiras vezes, ele confuso, mastigando per
guntas, misturando interrogações perfeitamente idiotas, se contradizendo
a cada instante, pueril e sem graça, ela mais c alma, mais refletida,
procurando manter as entrevistas num certo pé de naturalidade, que
dele não poderia vir:
- Tem estudado muito?
141
Confessava que não, e ela motejava :
- Que malandro! Também . . . - e piscava um olho, brejeira -
com tanto cinema, tantos divertimentos, tantas pequenas . . .
- Pequenas, não ! - protestava.
Ela não insistia. Perguntava-lhe pelos canários que ela ouvia de
casa, alto, alto, uns carusos !
Antônio rompeu o silêncio :
- E você se lembra, depois, daquele dia que eu . . .
- Sei, pediu um beijo.
- :E: . . .
- E eu dei? - riu.
- Não!
- Você já estava ficando pirata, hem?
- Eu? !
Pirata! Sentiu-se deliciosamente lisonjeado . Pirata! Quis prolongar a
sensação :
- E me dá hoje?
- Não.
- Jura?
- Não ! - e chegava-se para ele, de mãos para trás, a boca que
era um sonho, uma amora, um . . .
Tia Polu tossiu e eles se amedrontaram, maldita bronquite! O sol
se encobria, passava bem das quatro. Do lado ímpar da rua fazia
sombra. Dona Zulmira se levantou.
- Você nos leva até à esquina, Antonico?
- Como não, Dulce?
Comovida, agradecida, deixou cair os olhos ame�doados, reagiu
contra o choro prestes a romper. Desejou-lhe felicidades . a sorrir, "que
estudasse bastante para não ficar um advogado burro, não é mesmo,
Dona Polu? "
A tia admirava-a. Estavam na varanda. Disseram ainda adeus do
portão, pois que Dona Polu não descera.
Foram carregadas de embrulhos para a espera do bonde. Antônio
prometia que no primeiro domingo, sem falta . . .
- Hoje é quinta.
- Domingo estarei rente.
- Olhe lá! . . .
- Vão ver.
Acenaram com os lenços quando o veículo partiu, rangendo, pelos
trilhos que se estendiam. A escola pública despejava crianças em ala
rido. Antônio viu-se só no meio da rua. O bonde continuava; parou,
tomou a rodar, meninos tomaram-lhe a traseira, o condutor enxotava
os, eles saltavam em vaias, e o bonde, verde, ia ficando menor na
distância arborizada. Sentiu-se estranho, tonto, aéreo. Desconhecia
1 42
as casas . Olhava : não compreendia. Onde estava? Os meninos gri
tavam, gritavam mais alto, mais . Sentiu que tudo gritava e quis gritar
também. Dulce, Dulce! A voz fugiu-lhe. Depois foi como se uma
névoa lhe tomasse os olhos - via tudo branco na sua frente, branco,
leitoso, suspenso.
Nunca mais viu sua primeira namorada.
143
STELA ME ABRIU A PORTA *
O tempo conserva de preferência
aquilo que é pouco seco.
JACQUES CHARDONE
*
Edição revista e aumentada.
STELA ME ABRIU A PORTA
1 50
avoada na escola. Muito distraída, diziam as professoras . O padrinho
queria que ela fosse depois para a Escola Normal, saísse professora,
tivesse o futuro garantido. Era bom. Mas, infelizmente, o padrinho
morreu de repente, do coração, quando ela ia acabar o curso primário,
aos quatorze anos. A madrinha ficou mal de vida. Era de São Paulo,
voltou para lá, pois tinha ainda os pais vivos. Adeus, estudos ! Foi
obriga�a a trabalhar. Mas não para lavar. A mãe não consentiu. Fosse
costurar. Dona Amélia costurava para a vizinhança, tinha boa fre
guesia. Aceitou-a como aprendiz. Três meses depois estava afiada.
Costurar é fácil. Um pouco de jeito, um pouco de paciência, um
pouquinho de gosto, o resto vai sozinho. Mas Dona Amélia não queria
ainda pagá-la. Era uma exploração! Procurou outro lugar. Foi para
um ateliê no Estácio. Depois - a patroa era muito implicante -
s aiu e foi trabalhar na "Mariposa Azul", na Rua Sete. Agüentou-se
um ano aí, mas trabalhava demais, comia mal, gastava muito dinheiro
em bonde . . . Assim, tratou de arranjar um emprego mais perto, no
bairro mesmo. Esteve pouco tempo nele. Também não havia pequena
que parasse lá. Os donos eram uns gringos, gente danada! Só vendo.
Andara ainda em duas outras casas, agora estava com Madame Graça.
Madame era muito boa. Lá se iam três meses .
Uma noite, voltávamos do cinema, ela me diss e :
- Não sei por que, tenho vontade d e fugir. Parece que é o sangue
de papai.
Eu olhava seu corpo, não respondi. Mas sentia que ela fugiria
mesmo, um dia, para nunca mais. Não sei por que, nada fazia para
prendê-la. Aceitava a idéia da fuga como um acontecimento que
não podia deixar de ser. As mãos dela eram quentes, apertavam. Os
seus olhos eram bem o chamado do mar, o chamado das ondas do
mar, o chamado das ondas de um mar desconhecido, verde, funda
mente verde, misterioso. Sentia-me fraco. Por que não faria nada
para prendê-la, para tê-la sempre ao meu lado, já que sentia que a
amava? Não sei. Está tão distante tudo isso, hoje, e o mesmo mis
tério perdura. Por onde andará Stela? Em que mares de homens se
perdeu?
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- :E: uma moça direita - dissera ao homem. - Séria.
- bestas vêm cá às dúzias.
Era português, com um sotaque muito carregado, um olhar sórdido
que me arrepiou. Rebati com raiva :
� Mais respeito! O senhor está muito enganado!
O homem abaixou-se como um tapete. "Desculpasse-o . . . Não tinha
a menor intenção de faltar ao respeito. Mas é que . . . " Não quis
saber de mais nada. Saí. Estava tudo combinado. As nove, nove e
meia, estaria lá com ela.
Fomos indo. Tomamos um bonde, descemos. Andamos alguns
minutos sem dizer uma palavra. Jamais pude saber se era por enten
dimento tácito, por medo do destino, ou por nojo antecipado do depois.
Sei que ela me disse, de repente, com a voz mais rouca, os olhos
mais verdes, apertando-me a mão com mais calor :
- Não devia ter vindo.
Eu tremi e paramos numa pequena ponte, como se, muda e previa
mente, tivéssemos combinado parar, não ir para a frente, ficarmos
ali para sempre pregados . A lua é paz, é pálida, e nós tão pálidos.
As horas correm, o barulho do rio correndo tinha uma tristeza de
morte.
Duas velhinhas desceram a rua, vagarosas, de preto, escondidas nos
xales . Passaram outras pessoas, formas vagas, que não pareciam deste
mundo. E os sinos tocavam, tocavam . . .
- Vamos? - perguntou ela, rompendo um silêncio que parecia
ser eterno.
Não fomos . Ficamos, pregados na pequena ponte, ouvindo o barulho
do rio e o barulho dos sinos, vendo as estrelas na altura, esquecidos,
perdidos, como restos de um naufrágio.
DEPOIMENTO SIMPLóRIO
Eu coNTO :
Ia .prestar o meu exame final de português, quando papai, após me
fazer umas tantas e quantas perguntas sobre a matéria, explodiu num
daqueles rompantes que só ele tinha :
- Você não sabe nada, nada, absolutamente nada! Uma vergonha!
Não pode fazer exame assim!
Protestei com energia :
- Posso !
- Não pode!
Pensei ganhar a partida :
- Mas o meu professor disse que eu estava preparado.
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- Seu professor é uma besta-quadrada!
E o resultado prático desta categórica definição foi não consentir
que me apresentasse à chamada e me arranjar um explicador - um
excelente homem, apesar de aparentemente rabugento, e de muita fama,
tanto por seus altos conhecimentos gramaticais como pela sua inso
ciabilidade.
Um ano de aulas noturnas, a dez mil réis cada uma, e veio outro
dezembro, que era o mês fatídico dos exames . Fui aprovado, mas
a nota alcançada constituiu uma legítima decepção paternal, e como
não pÕdia negar o valor do novo mestre, que ele conhecia e escolhera,
num triste franzir de beiços meu pai externou a sua desprezadora
opinião sobre a minha capacidade intelectual . Não me importei. Fechei
decididamente a Gramática Expositiva e a Antologia Naciona� e voltei
me para as matérias que me faltavam para terminar o curso de prepa
ratórios, pois via no fim dele uma espécie de liberdade ( que franca
mente, ao chegar, foi uma desolação ) . Mas continuei a freqüentar a
casa do professor, preso pela amizade do filho, um rapazinho magro,
mais moço do que eu, terrível devorador dos livros do pai, que enchiam
umas treze reforçadas estantes espalhadas pela casa toda, já que o
escritório e a sala de visitas eram de reduzidas proporções .
Dois, três, quatro anos se foram, até que uma noite o professor
recebeu um livro embrulhado, coisa que acontecia diariamente, aliás,
pois ele era muito acatado nas rodas literárias de então. Abriu o
embrulho, desajeitadamente, rasgando o papel cor-de-rosa, abriu o
livro : o Poeta admirava sinceramente o gramático e enviava-lhe a pro
dução com uma singular dedicatória. Lendo por cima dos espessos
óculos, folheou-o alguns segundos e jogou-o na cesta de papéis : -
Mais um futurista ! - e atirou-se num trabalho tremendo sobre o
gerúndio, que haveria de fazer f\lror em Portugal.
O filho era menos apriorístico nas opiniões . Dobrou as pernas de
cegonha e apanhou o livro na cesta. Se era menos apriorístico, dava
na mesma - seus julgamentos formavam pela bitola paterna. Chamou
também o Poeta de futurista, teve uma frase áspera para defini-lo, e
arrumou o livro, não na cesta, mas num canto da sala, onde ele ficou
caído como um pássaro de asas abertas . Aí abaixei-me, peguei o
infeliz volume, de capa branca e título modesto, abri-o :
Vou levar este livro para mim - disse fechando o livro e en
costando-o inexplicavelmente contra o coração .
- É um favor que está prestando .
Senti-me ferido, pensei no Poeta, olhei com piedade para o meu
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amigo que se espichara no sofá. E ele se mostrava tão tranqüilo que
não houve mais lugar para piedade. Tive-lhe ódio, um ódio imenso.
- Manuel !
Manuel, rosto inchado, abria os olhos pegajosos :
- Hem?
- São horas .
- Hora de quê? - perguntava, tonto.
Era um grande dorminhoco . Custava a despertar, uma hora depois
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de fazê-lo ainda não estava perfeitamente desanuviado - respondia
coisas no ar, perguntava outras sem propósito .
Era hora de estudar. Estudávamos cedo as lições , depois descan
s ávamos e, às onze e pouco, saíamos para o colégio, uma escola pública
na Rua dos Araújos, onde freqüentávamos o segundo turno, que come
çava ao meio-dia. Era um método instituído por papai. Dava-o como
muito higiênico e pedagógico . "Respiram o bom ar da manhã e as
cabeças estão mais frescas para os problemas ."
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Madalena virou-se numa fúria intempestiva :
- Não se enxerga, Pinga-fogo?
- Não !
Nós rimos. Madalena saiu num repelão do grupo. Ele, como se
nada tivesse acontecido, perguntou o meu nome.
- Edgar - respondi .
- E eu, Eurico . E o outro?
- Manuel.
- E a lourinha?
- Cristina.
- E ela? - e com beiço esticado indicou Madalena que se dis-
tanciara.
- Madalena.
Cuspiu para o lado um pedacinho de fósforo que já o encontrára
mos a mastigar ;
- Regular . . .
- É o nome de nossa mãe.
Vocês têm mãe?
- Temos . Mãe e pai.
- Eu não tenho . Só tenho pai. - E depois de um breve silên-
cio : - Mas tenho madrasta.
Fomos andando, Madalena sempre distanciada, olhando para trás
de vez em quando . Cristininha quis saber :
- Madrasta é ruim, não é?
Eurico sacudiu os ombros e perguntou :
- Fazendo gazeta?
Respondemos entre risos, que sim.
- É bom - e arrancou com um gesto indiferente uma flor que,
através da grade de um j ardim, pendia para a rua. - Eu faço sem
pre. Estou fazendo .
- Mas onde deixou os livros?
- Deixei em casa.
- Mas ninguém desconfia?
Arrancou outra flor imprudente :
- Sabem.
- E não falam nada? !
Mostrou os dentes de carnívoro, num riso curto :
- Não . Papai diz que fez muitas e que nem por isso deixou de
ser trabalhador. Diz que seria pior se eu não fizesse.
- Camarada, não é? (E nós admiramos aquele pai, invejamos
aquele filho ) .
Eurico olhava para Madalena, que retardara o passo.
- Quantos anos tem ela? - perguntou.
- Ela quem?
Esticou o beiço para Madalena que parara.
Doze - respondi.
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- Eu tenho quatorze, e você?
- Treze.
- Cristininha tem onze, não é?
- Não. Vai fazer dez. · E o Manuel vai fazer nove.
Madalena chegou-se. Perguntou baixinho certas coisas à Cristi
ninha.
- Minha irmã tem treze como você, mas é mais baixa - diss e
Eurico dando u m chute numa bola invisível.
- Você tem irmã?
- Uma.
- Não tem irmãos?
- Não . Sou eu s ó . Eu e ela.
- Como se chama?
- Eurico, não já te disse? !
- Eu sei. Estou falando dela.
- Ah ! sim. Chama-se Hélia.
Madalena chegou-se :
- Eu vou voltar daqui, Edga r. Nasci sem rabo.
Eurico é que respondeu :
- Não é preciso . Volto eu. Até outra vez, Edgar. Gostei de você.
Eu também simpatizara com Eurico. Agarrei-o : - Não ! Vem
com a gente. - E zanguei com Madalena : - Que bobagem a tua!
Deixa disso. Que é que ele te fez?
- Não gosto de gente intrometida.
- Ele não é intrometido. Você é que é implicante. Você é que
foi malcriada com ele.
Madalena_ foi uma surpresa :
- Peço desculpas .
Eurico enfiou as mãos nos bolsos das calças :
- Fui intrometido, sim. Mas não se fala mais nisso. Vamos -
e caminhou.
Nós o seguimos alegremente. Quanta coisa s abia ele ! - Os nomes
de todos os pássaros, e imitava-lhes os cantos ; os nomes de todas as
árvores, de todas as plantas, de todos os insetos. Sabia subir em
árvores s em se sujar, galgar pedras e barrancos difíceis s em escorregar
nem cair; sabia os recantos mais lindos, mais sombrios, mais sosse
gados, mais cheios de flores e de frutas . Conhecia a mata, palmo a
palmo. Era como se ela foss e um pequeno jardim de sua propriedade.
A represa velha era misteriosa e úmida. Tinha um frio de coisa
abandonada, de coisa morta coberta de limo. As lavandeiras voavam
à flor da água parada e escura. Subimos . pelo leito dum riacho . . Rãs
pulam medrosas aos nossos passos . Madalena solta gritos alarmados .
Eurico ri. Todos riem. Mosquitos nos atacam. Só Eurico é insen
sível às suas picadas finas e dolorosas . A cascatinha despenca. A
poeira d'água, levava-a o vento, em nuvens brancas , esgarçadas .
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Ficamos mais alegres, excitados pelo fragor da queda, pela poeira
d'água que nos molha. Eurico sabia tudo :
- Vocês gostam de grumixamas?
Se gostávamos ! E batemos para as grumixamas .
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- Não acho tanto assim - e a voz de Madalena era levemente
despeitada.
Ele sorriu :
- Vai ver.
A DERROTA
1 59
ao lado, podia aparecer de repente . . . Afastou-se e dirigiu-se para
a porta do quarto :
- Como é, Mário, você fica pronto ou não?
- Estou quase.
Entrou no quarto , o desalinhado quarto do amigo solteirão . Ele
dava o laço na gravata.
- Só falta meter a papelada no bolso.
- Está bem.
Olhou-se no espelho - por que só agora via, deprimido, humilhado,
as têmporas marcadas pelos primeiros cabelos brancos? E Magnólia
entrou atrás, como se nada houvera acontecido .
- Quis arrumar o quarto, sabe? Mas o Mário não admitiu. Me
expulsou daqui com uns desaforos bem pesados .
Mário riu :
- Cada um com a sua ordem . . .
- Não . A coisa é outra : cada porco com o seu chiqueiro .
Renato não s abia onde pôr os olhos . Riu forçadamente. Magnólia
dirigiu-se a ele :
- Você não está com boa cara hoj e, rapaz . . . ( tratava-o sempre
por rapaz ) . Que é que está sentindo?
Renato tremeu :
- Eu? ! Nada. Isto é, uma pequena dor de cabeça . . .
- Cafiaspirina - recomendou Mário, enfiando nos bolsos uma
infinidade de papéis .
- Ou carinho - emendou Magnólia.
Renato não se conteve :
- Depende de quem . . .
Ela derrotou-o em toda a linha :
- Para que é que o rapaz então é casado? - e riu gostosamente,
encarando-o com os olhos atrevidos, olhos verdes, levemente estrábicos ,
aos quais a s sobrancelhas arqueadas emprestavam u m a beleza maior.
Recolheu-se mais tarde do que de costume, passava de meia-noite.
(Ficara esticado no divã da pequena sala de entrada, pensando, pen
sando, tentando explicar a si próprio o que tinha acontecido . Mas
veio um cansaço pesado demais. Tinha trabalhado tanto durante o
dia, tinha pensado tanto durante o dia . . . Fechou o livro, do qual
não lera um à única página, caminhou para o quarto . ) Pela j anela
aberta vinha um raio de lua e pousava na cama. Dulce dormia já.
Ele deitou-se também, com cuidado para não acordá-la. Ela, porém,
falou baixinho, meio dormindo :
- É você?
Ele sorriu - quem h averia de ser? - e respondeu :
- Sou.
Ela puxou mais um pouco para o rosto a coberta e entrou de novo
num sono tranqüilo. Ele fechou os olhos. Magnólia veio vindo -
para que é que o rapaz então é casado? E ela vinha com os olhos
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verdes e a boca vermelha, infinitamente vermelha, com os seios empi
nados, com as mãos dum calor de sol de tarde, e vinha, e vinha, e
vinha - o sono custou a chegar.
SERRANA
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passeios cheios de descansos, aqui numa pedra, ali sobre um barranco,
onde pássaros pretos faziam ninhos .
O ar seco, fino como um punhal, entra nos pulmões enfraquecidos
como um remédio de Deus . O azul do céu deslumbra. Os pássaros
cantam, voam. Há estalos no mato, misteriosos rumores . . . E as
folhas ainda guardam, rutilantes , o branco véu de geada que a noite
gélida lhes trouxe.
Caminhava vagarosamente, respirava fundamente - sim, era bom
respirar, sentir o peito cheio, expirar com energia uma nuvem de
vapor. Os pensamentos são lúcidos, tranqüilos. As formigas são
minhas irmãs . . . Uma bondade de convalescente enche o meu cora
ção. Uma alegria de convalescente enche os meus olhos . :E: para mim
que as borboletas voam, é para mim que o regato murmura, que as
nuvens fazem-se e se desfazem, que os bois vagueiam nos prados com
os seus grandes olhos tristes. As sombras são frias. Azuis, brancas,
amarelas, modestas florezinhas sem nome desabrocham na beira da
estrada sua escondida beleza sem perfume. Os passantes me cumpri
mentam, humildes , tirando o chapéu, me desejando saúde. E lá vão, de
pé no chão, roupas de riscado . Todos com os s eus porretes lustrosos,
pitando cigarros de palha, trazendo bornais a tiracolo.
Ladeada por cercas de chuchu, a casinha perto do córrego, rente à
estrada, me fala docemente ao coração . Foi ali . . . Fazia os meus
primeiros passeios . Ela era morena, enfezadinha, tinha um j eito arisco
de corça. Olhava-me s empre, sonsa, com o rabo dos olhos, quando eu
passava. Seguia-me com o olhar, mas escondia-se, rápida, abafando
risadinhas, se eu me virava para vê-la.
Um dia, eu lhe dirigi uma pergunta. Ela fugiu. Mas no outro
dia me esperava como sempre. Ficamos amigos. Parava todas as
manhãs ali para descansar e era o mais longo dos meus descansos .
Sentava-me no tronco derrubado, púnhamo-nos de prosa. Ela não se
sentava nunca - ficava em pé na minha frente, os braços cruzados
sobre o peito que n ascia, alisando com os pés desc alços a poeira
macia do c�ão . Estava de pouco no lugar. Era de um arraial próximo.
- Bonito?
- Feio toda vida!
Viera com o pai, que era oleiro, depois que a mãe morrera.
- De que morreu sua mãe?
Confundiu-se - morrera de doença, uma pontada na barriga que
respondia nas costas . . . Não explicava bem, parecia querer esconder
qualquer coisa. Desconfiei que ela mentia e não insisti.
E um dia ela me perguntou :
- O Rio é bonito?
- É.
- Mais bonito que Barbacena?
- :E: maior . . .
1 63
Ela parecia não acreditar muito . Não sabia ler, tinha quatorze anos
( eu lhe dava mais ) e uns olhos meio verdes, meio azuis, que tinha
muito dos olhos dos gatos .
- Você gosta muito de Barbacena, não é?
- Demais !
- E do Rio, você gostaria?
- Não sei. Nunca provei . . .
CAPRICHOSOS DA TIJUCA
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- É aquele rancho que passou ontem por aqui?
- Não, doutor. Não foi. O nosso rancho ainda não saiu na rua.
Está em ensaios internos ainda. Deve ter sido os Formigas - e a
voz trazia um tom de evidente desprezo .
- Rivais, não é?
- Mais ou menos, doutor. Mas o nosso é mais antigo.
Resolvi cortar a conversa :
- Pois, pelo que suponho, o senhor deseja um auxílio, não é?
- É, doutor. Estamos tirando no bairro. Todos os anos fazemos
assim - e apresentou uns papéis : - Faça o favor de ler.
- É a licença?
- Não doutor. É o pedido da diretoria.
A polícia avisara insistentemente pelos jornais e pelo rádio que só
atendessem aos pedidos dos clubes devidamene licenciados por ela.
Deviam os angariadores apresentar a competente licença.
- E o senhor tem licença?
O homem se perturbou : ter, não tinha. A licença estava com o
Eliziário, que era o diretor da comissão. Mas parecia que não preci
sava. O clube era muito conhecido .
- Mas se o doutor está desconfiado, eu trago a licença para o
doutor ver.
Fiquei meio atrapalhado . O homem parecia sério . Mas há tanto
malandro com cara de sério . . . E o diabo é que não trazia licença.
Dez, vinte mil réis que perdesse não era nada, afinal de contas . Mas
era triste ser embrulhado por um espertalh io sem colarinho, de tamanco
e com cara de honesto . Procurei dar um Jeito.
- Não estou desconfiado, absolutamente. Mas é que agora estou
desprevenido. O senhor não pode passar amanhã?
- Posso, doutor. À mesma hora?
- À mesma.
- Se eu não puder vir, vem o Bastinho pessoalmente. Eu vou
falar com ele.
- É seu companheiro de comissão?
- Não. - É o presidente do clube. - Depois que disse, fez uma
cara de incredulidade : - O senhor não conhece o Bastinho?
- Não . Não tenho o prazer.
O homem mostrou um semblante severo :
- Pois me admiro, doutor. É muito conhecido. Não há ninguém
que não conheça o Bastinho aqui no bairro.
Remendei :
- Então é por isso . Me mudei faz pouco tempo para cá. Morava
no centro .
Ele mostrou-se satisfeito :
- Sim, então é por isso. Mas ele é muito conhecido. Mora aqui
há mais de trinta anos . Foi quem fundou o clube. O clube é velho .
O comércio daqui para ele não nega. É só entrar e pedir. O doutor
1 68
gostaria de conhecê-lo. Ele tem estudos . É de c or, mas tem estudos.
Vou falar para ele mesmo vir aqui. O doutor vai gostar.
Agradeci e ele tornou :
- Mas agora é que estou me lembrando : se o senhor veio para
cá de pouco não conhece os Caprichosos .
- Realmente - atalhei - não conheço e tinha gosto de conhecer.
Já tenho ouvido falar muito dele.
- É o mais antigo, doutor. Tem os Formigas aí no morro. Foi o
que o doutor viu ontem. Tem o Estrela da Tijuca mais acima. Mas
os Caprichosos é o melhor. Tem muitos campeonatos. No ano pas
sado mesmo levamos a taça de Harmonia. No ano retrasado pegamos
a taça de Evoluções . Muitos prêmios. Está tudo lá na sede, muito
bem arranjado. Por que o doutor não vai visitar a sede? Era uma
honra para nós .
- Perfeitamente, meu amigo . Quando o senhor quiser.
- Pois pode ser amanhã mesmo, doutor. Amanhã tem ensaio às
nove horas . O doutor vai apreciar. O pessoal é afiado. E pode levar
a sua senhora, sem medo . A sociedade é familiar, doutor. Gente pobre,
mas decente. O Bastinho faz questão. As filhas dele estão lá também.
Formam junto com a gente.
- Pois, então, está feito . Amanhã estarei lá. Mas onde é?
- Não tem que errar, doutor. Sabe onde é a fábrica de rendas?
- Sei.
- Pois é defronte. Naquele terreno grande, perto do rio. O doutor
vê logo. É um sobrado. Tem um mastro na sacada com o escudo
do clube. O doutor vê logo. Mas se se atrapalhar é só perguntar no
botequim, na farmácia, na padaria. Lhe mostram logo onde é.
- Pois estarei lá.
- Conto com o doutor. Vou falar com o Bastinho. Ele não
começará sem o doutor chegar.
E estendeu-me a mão . Era uma mão calosa. Senti vontade de pedir
que esperasse, ir lá dentro, voltar com uma nota para os1 Caprichosos.
Mas já que tinha mentido, não quis me desmentir. Apertei-a com
calor:
- Pode contar. E não me esquecerei do auxílio. Não será muito,
minhas posses são modestas, mas será dado de boa vontade.
- Ora, doutor! . . . O senhor dá o que quiser e o que der será
agradecido. E muito obrigado, doutor, pela sua bondade. Até amanhã
às nove. Desculpe a maçada. Lindolfo Alves, um seu criado.
- Não tem nada que agradecer, Seu Lindolfo. Disponha.
E ele partiu, batendo os tamancos no cimento da calçada.
Minha mulher descera, perguntou quem era. Contei-lhe a conversa
toda, rimos, ficamos de ir ao ensaio dos Caprichosos no outro dia.
- Deve ser engraçado - palpitou ela.
- Acredito que sim.
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Mas no outro dia cheguei em casa com extraordinárias disposições.
Os personagens mexiam-se na minha cabeça furiosamente. Queriam
sair, tinham que viver, precisavam viver. Uma cena que me parecera
difícil e que, desesperado, abandonara no meio, veio clara, perfeita,
exatamente como deveria ser. Era só escrevê-Ia . . . Comi pouco e
às pressas e caí no romance. Cena puxa cena. E diálogos, situações,
descrições, conceitos, tudo escorria fácil e aproveitável. Poucos reto
ques mereceriam mais tarde. Fui me entusiasmando. As horas pas
saram. Minha mulher não me interrompeu. Esqueci-me do mundo,
absorvido pelo mundo que ia compondo. Quando dei fé de mim,
passava da meia-noite. Lembrei-me dos Caprichosos - que diabo!
- Por que você não me chamou? - queixei-me à minha mulher.
Havia prometido e não tenho o hábito de faltar à minha palavra.
- Bem que eu me preparei, mas vi você tão entretido, tão disposto,
que não tive coragem de te chamar. Afinal, você não tem que se
zangar. Primeiro, o romance.
Dei-lhe frouxamente razão :
- Sim, primeiro o romance.
Requisitei um cafezinho e voltei para a obra com o mesmo apetite.
Os Caprichosos ficariam para o dia seguinte. Foi impossível. No
outro dia tivemos amigos para jantar. Velhos amigos, talvez bons
amigos, chegaram de repente, num grande pagode, trazendo garrafas
de cerveja. Era uma precaução, afirmavam. Se a nossa comida não
desse, defender-se-iam com elas . Deu para todos . A cerveja alegrou
os ânimos . A noite correu depressa. Nem me lembrei dos Caprichosos .
Talvez nunca mais me lembrasse, se na noite seguinte, pelas oito horas,
não me batessem no portão . Cheguei à janela - era o Lindolfo.
- Boa noite, doutor. Vim lhe buscar para o ensaio - falou alegre
mente. - O Bastinho está à sua espera para começar.
Fui eu próprio abrir-lhe o portão, quis que entrasse, ele recusou,
esperaria na varandinha mesmo. Eu me desfiz em desculpas : - Fora
inteiramente impossível, tivera muito que trabalhar, não imaginasse . . .
Ele atalhou :
- Eu sei, doutor. Eu sei. O doutor é um homem de trabalho.
Nós vimos .
- Vimos? - me admirei.
- Vimos sim, doutor. Eu lhe conto . De primeiro o Bastinho ficou
zangado com a sua falta. Pudera! - riu. - Preparara o pessoal,
formara a diretoria para receber o doutor, bateu nove, bateu nove e
meia, bateu dez horas e doutor nada! Ele me perguntou mais de cem
vezes : - Mas ele prometeu, Lindolfo? - Jurava que sim. Quando
bateu dez e meia, ele gritou : - Pouco caso ! - E mandou principiar o
ensaio. Eu fiquei assim. Falei com ele : - Eu acho que não foi
desprezo do doutor, Seu Bastinho. O doutor é homem de ocupações.
Quem sabe que não pôde vir? . . . Ele não queria saber : - Pouco
caso, sim, dizia e redizia. Afinal tivemos uma azeda. Ele teimava
1 70
para um lado, eu teimava para outro . Resolvemos tirar a teima. Vi
ríamos até aqui ver se o doutor estava em casa, se o doutor tinha
saído, apurar a questão . Chegamos, espiamos pela j anela, o doutor
nem deu sentido de nós . Estava escrevendo, escrevendo, nem levantava
a cabeça. O Bastinho só disse uma cois a : - Deve ser uma causa
urgente. E me perguntou se o doutor era do crime. Eu não sabia.
Ele explicou tudo à diretoria - o doutor estava abafado ! . . . Ontem
não havia ensaio, não adiantava vir lhe importunar. Hoje vale a pena.
É ensaio geral.
Fui. _ Fui com minha mulher. A diretoria me esperava formada na
escada. Deram vivas, houve saudações com cerveja, fui obrigado
a fazer um pequeno discurso de agradecimento. B astinho fez outro
por cima do meu : que agradecimento ali só podia haver um - o da
sociedade, que se orgulhava de receber em seus salões uma figura da
inteligência, etc., etc. Preto, alto e gordo, Bastinho era uma simpatia
transbordante. Apertei o mês em cas a mas deixei cem mil réis no
Livro de Ouro .
ALMAS NO JARDIM
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uma amável solidão . Lá estamos todas as tardes, eu e ela, tecendo o
delicado tecido das esperanças, frágil teia que não resiste ao menor
sopro contrário .
- Você gosta de mim?
- Adoro !
Se eu morresse . . .
Bobo !
Então eu não posso morrer?
Não !
Sacudo os ombros :
- Pois morrerei . Morrerás . Morreremos.
Ela - que tem medo da morte! - treme :
- Não tem mais nada para dizer, não?
Tenho. Tenho um mundo de coisas doces e ternas, ó miragens,
ó sonhos, ó devaneios ! E tenho um mundo de coisas graves também.
Coisas graves e sérias, mas que jamais sairão, jamais confessarei, fica
rão sempre dentro do meu peito inquieto, turbilhonantes, confusas -
oh, extremamente e dolorosamente confusas e opressoras ! - porque
tudo crestariam, pior que o vento da pequena praça, como um vento
de fogo .
E ela talvez adivinhe as minhas coisas graves e sérias. Põe em
mim os olhos cheios de amor :
- Amo-te com todos os mistérios da tua vida.
E é melhor assim.
Hoje não vimos Liró ( o nome foi posto por nós no primeiro dia
que viemos à pequena praça ) . Perguntamos ao guarda por ele. Com
voz surda, voz gasta, voz sem dentes, respondeu que não sabia. Sumira
desde a véspera, pouco depois de nos termos ido embora.
Ficamos tristes, inquietos ( os pardais chilreavam insensíveis ) . Se
tiver sido apanhado pela carrocinha, combinamos, irei resgatá-lo no
depósito público. Se tiver sido vítima dum automóvel - e ela ficou
com os olhos úmidos - não voltaremos mais à pequena praça. Porque
Liró é a vida da pequena praça, convencemo-nos . Toda a vida.
LABIRINTO
Nunca pensara que ele pudesse morrer. Que agouro ! Nunca pen-
sara e nunca pensaria :
- Doente todo mundo fica, João . Toma remédio e fica bom.
- Mas eu j á tomei, j á tomei tantos, qual! . . .
- Não acertaram, mas acabam acertando. As coisas não podem
ser sempre como a gente as quer. Tem fé em Deus, João !
Tinha. :a o que ele tinha, felizmente. Olhou para o crucifixo de
ferro pendurado na cabeceira da cama - veio-lhe aquela vaga espe
rança de que podia ter uma melhora. ELE era misericordioso, ELE
1 74
era o senhor de todas as almas , o condutor de todos os destinos,
ELE tudo podia.
Agora, não eram mais tonteiras somente. Sofria uma espécie de
susto, sem que houvesse o menor motivo . Ia muito bem, de repente o
coração pulava, depois parava, doía numa fisgada fina e vacuosa como
se ele descesse um elevador em forte velocidade. E após as refeições
passou a ter perturbações - o olhar se turvava, sentia ânsias de
vomitar - ânsia só! - pressão na cabeça, mal-estar, um suor gelado
pelas têmporas - pensava em congestão .
O médico das consultas grátis sabi a :
- É d o vago-simpático. V a i tomar u m calmante apropriado e
isso passa logo . Não é nada. Fique descansado .
Tomou - era azedinho - melhorava, piorava . . . Deu para contar
os seus males na rua. O amigo Bentes já tivera o mesmo .
- Verdade? !
O amigo era digno :
- Verdade. Tudo óculos .
- óculos? ! . . .
- É o que lhe estou dizendo . óculos! óculos fracos !
Realmente podia ser. Quatro anos feitos que não mudava as lentes
do seu tartaruga. Pensou em ir logo ao oculista. Mas andava sem
dinheiro, apertado, os negócios fracos - ó, miserável vida!
Falou à mulher. Ela lembrou :
- E os quinhentos e três mil réis da Caixa?
- Esses são seus , Maria. Estão no seu nome. - E fez ironia
amargurada : - É tudo que tem após dez anos de casada.
- Não diga isso, João.
- Sim, podia ser pior. Mendigo tem menos .
No outro dia, apesar da relutância, a mulher foi com ele à Caixa,
ficaram na caderneta quatrocentos e cinqüenta e três mil réis .
- O senhor relaxou demais , meu amigo . Está com a miopia
dobrada e o astigmatismo progrediu muito. Muito mesmo. O senhor
não desconfiou que estava vendo só numa posição , meio de lado?
- Com os diabos ! É verdade, doutor. Reparei. Reparei, mas não
dei importância. No cinema principalmente, só ficava de banda . . .
Mas quando eu havia de pensar que . . .
Levou a receita para a ótica Norte-Americana, por indicação ex-
pressa do médico - uma casa de absoluta confiança !
- Amanhã de tarde, sem falta, estarão prontos .
- Quanto é?
- Sessenta, cavalheiro .
- Adiantados?
O caixeiro sacudiu a cabeça, distintíssimo :
- É indiferente, cavalheiro !
Fosse ou não fosse, não os tinha. Tirara da Caixa somente os cin
qüenta mil-réis da consulta. Dona Maria do Carmo voltou à cidade,
1 75
a caderneta desceu para trezentos e noventa e três mil réis e os óculos
ficaram bons, aproveitando a armação antiga, que o comerciante re
forçara graciosamente com um parafuso novo na haste.
( A morte de Seu Gomes foi uma afobação, tão generoso, tão amá
vel. Era o fiador da casa. Seu João ficou aturdido . Correu os
amigos que podiam. Todos davam o contra, era impossível, era im
possível, sentiam muito, muitíssimo . . . Por que não fazia depósito?
- perguntaram alguns . - Era prático, não trazia complicações . . .
Mas com que ele iria fazer depósito? Os amigos balançavam os om
bros - se era assim . . . E afinal arranjou Seu Farjala, da Sapataria
Nero . "Fui muito amigo do seu pai, João. Muito! Alma grande,
boníssima! " )
- Está sentindo alguma coisa, meu filho?
- Não, isto é, as tonteiras .
- É nervoso.
Seu João suspirou. A ventania entrava pela janela, balançava as
franjas do abajur, feitas de ampolas, balançava as folhas do tinhorão
do vaso, trazia vozes de rádios da vizinhança. No céu escuro as
estrelas brilhavam com palpitante fulgor.
Conversavam :
- Que disga, hem?
- Danada.
Riram :
- Quando nos casamos, lembra? Pensávamos economizar um tan
to por mês . Dez mil réis que fosse. Tudo para "a nossa casinha".
Nunca se fez.
- Nunca se deu.
- Quinhentos e três mil réis em dez anos! E que já foram mexidos .
Riram mais :
- Felizmente não temos filhos .
- É.
Houve um silêncio, como se um grande mal-estar tivesse p es ado
subitamente sobre as suas almas . O vento continua forte, balançando
a cortina, as folhas do tinhorão . E as estrelas brilhando. Brilhando
imensamente distantes, distantes e impassíveis no céu escuro, no céu
misterioso, no céu infinito. O céu infinito . . . que haveria no céu?
Astros, astros rolando, almas talvez, almas dos que morreram. Morte!
Veio um arrepio - Seu João tremeu . É o vento que balança, é a
morte . . . Morte ! Uma angústia pungente toma-lhe o peito e o si
lêncio é demais . Foge do silêncio como se fugisse da morte :
- Maria . . .
- Que é?
Seu João ia falar, ia falar um mundo de coisas que gemiam no
1 76
seu peito cansado, no seu peito medroso. Mas o homem bateu na
janela :
- Estão chamando ao telefone.
- Muito obrigada.
Seu João ficou sozinho, sentindo coisas, sentindo medo. Afinal
Dona Maria do Carmo voltou da padaria :
- É Dora, João. Está doente, de cama, com muita febre. Pede
para eu ir dormir lá.
O medo fugiu. É todo cólera :
- Que vá plantar favas ! Você não é enfermeira nem criada de
ninguém! Para que é que ela tem marido?
- O Júlio entrou de plantão à última hora.
- Eu sei bem o plantão dele como é. Sebo ! Só dão maçadas ,
aporrinhações . Se fosse para um teatro, para uma festa, nem se lem
brariam . Convidariam o Casus a e a mulher. Mas como é para ter
trabalho, para passar noite em claro . . . Se arranjem! Eu também
estou doente e não dou trabalho a ninguém .
Dona Maria do Carmo ficou interdita :
- Vou?
- Vamos , pílulas ! É sua irmã, afinal.
Lá se foram, ele se queixando das tonteiras, do zumbido nos ouvi-
dos . . . - Parece um besouro, Maria.
- Também você fuma tanto, João . . .
- Não, Maria. Não pode continuar assim !
Não podia, não. Aquilo não era vida. Não podia contar consigo
para coisa nenhuma. Era um imprestável, um inválido, uma pobre
coisa miserável e sem remédio. As tonteiras persistiam, os tremores,
os sustinhas, tudo continuava, e cada vez pior. Melhor era morrer
logo duma vez!
- Meu filho !
Voltou ao oculista :
- Estou na mesma, doutor. O senhor disse que eu melhoraria
com as lentes novas . Nada! . . .
O oculista, que estava com o rosto sombrio, não respondeu. Era
metódico. Foi consultar primeiro a ficha do cliente. A enfermeira
trouxe o papelão azul. Ele leu e releu, balançou a cabeça :
- Custa um pouco, meu amigo . O senhor durante quatro anos
não mudou de lentes . Vai pouco a pouco. Calma. Duram muito essas
perturbações . As vezes vão a meses . São perturbações do labirinto.
Seu João riu amargo :
- Num labirinto vivo eu , doutor!
O médico abaixou os olhos pequenos que ( João reparou bem )
pareciam ter chorado :
- Também eu, meu amigo, também eu. Todos nós andamos num
labirinto .
1 77
E sentou-se desoladoramente na cadeira de ferro, pintada de branco,
com a ficha na mão.
UM MORTO
178
frágil herança da tia nobre voltou ao seu sagrado lugar sobre a cô
moda e até hoje lá está. Mas como eu o tivesse levado ao bonde,
um bonde que às duas horas da manhã costumava ser quase mitoló
gico naquelas paragens, na espera prolongada, não pude deixar de lhe
contar o fato. Rimo-nos bastante. E ele me contou em troca, abo
toando o paletó contra o ventinho · que descia fino da mataria do
morro, qualquer incidente semelhante, que infelizmente não me lem
bro. E o bonde veio, e ele se foi, e embora nunca mais tivéssemos
uma outra palestra (há coisas verdadeiramente inacreditáveis neste
mundo ! ) sempre que nos encontrávamos, trocando cumprimentos s in
ceramente amáveis, ele tinha oportunidade de perguntar sorrindo :
- Como vão elas?
Eu já sabia por quem ele perguntava. E respondia rindo :
- Muito bem, muito obrigado. Continuas o único !
A MORTA
NÃo! Nunca pensei que Loló morresse. Nunca pensei. Tinha tanta
vida, tanta alegria, era tão moça . . . Apanhou um golpe de ar na
volta de um baile ( estávamos no inverno ) e em menos de um mês
a tuberculose consumiu-a como o fogo consome uma pequena palha.
( Taparam-lhe o rosto com um lenço de espessa seda branca, postou
se sempre alguém da família ao lado do caixão para que ninguém
levantasse o lenço e da morta, inteiramente coberta de flores , só s e
viam a s mãos descarnadas, amarradas por uma fita, amarelas como
se fossem de marfim velho, emergindo das violetas . )
Magra, ágil, elegante, Loló era feia de rosto, mas os olhos -
somente os olhos ! - grandes, imensamente negros, faziam-na bela.
O pai era rico, bastante rico, a sua casa, recém-construída, era a
mais bonita da rua, branca, com os beirais azuis, um j eito de casa
de boneca. Fora educada em colégios caros , j á estivera na Europa
duas vezes, falava francês e inglês corretamente, vestia-se com muito
gosto e era muito simples . Travamos relações na praia, por acaso.
Depressa ficamos camaradas, conversávamos horas a fio, passeando
na calçada. Durou quase dois anos a nossa amizade - banhos de
mar juntos, cinema juntos, footing aos domingos no Posto 4 e muitos
livros emprestados mutuamente :
- Você já leu o Rosário?
- Não .
- Ah! é lindo .
- Não é romance para moças?
- É. Mas é lindo . Leia. Eu tenho. Tem que ler. Depois fale.
E eu li.
1 79
Certa noite, certa noite de maio , Loló, encapotada, cortou brusca-
mente uma conversa sobre os costumes da Bretanha, que ela adorara :
- :E: pena você ser um tanto pirata.
- Pirata, eu? ! . . .
- Pirata, sim. Eu sei.
- Mas o que é que você sabe?
- Tudo .
----� Mas tudo o quê?
- Tudo, tudo !
Inutilmente pedi, implorei que dissesse o que sabia. Negou-se ter
minantemente . Sabia, sabia, não precisava dizer, era de todo con
veniente não dizer. Procurei vencê-la pela esperteza :
- Mas que interesse tem você, então, que eu seja ou não seja
pirata?
Foi ela' que me venceu :
- Nenhum! - e retomou a convers a interrompida.
Mas a verdade é que uma semana depois , se tanto, quando mal
pressentíamos , estávamos de mãos dadas . Sentávamos na porta de
uma casa desabitada (hoj e um sombrio apartamento ) e conversáva
mos a princípio trêmulos, assustados, sobre assuntos muito diferentes
do assunto que nossas mãos conversavam. Uma estrela cadente riscou
o céu da noite.
Pense uma coisa boa. Depressa.
- Que coisa?
- Uma coisa boa. Um desejo! - e apertou mais a minha mão.
Largas manhãs de domingo à sombra da barraca listrada. O mar
não cansa. Alisávamos a areia com a mão, escrevíamos os nossos
nomes . A irmã mais velha zombava um pouco de nós, desmanchava
os nossos nomes, desenhava um nariz enorme ( o nariz de Loló ) e
outro nariz enorme (o meu nariz ) e escrevia por baixo : "dois bicudos
não se beij am" .
Loló ria :
- Inveja pura !
Apagava os narizes e traçava círculos, um ao lado do outro :
- Compreende, não é?
- Não se enxerga! - replicava a irmã.
E riam muito - era um símbolo que só elas sabiam o significado
- e eu ficava um tanto sem j eito e por mais que fizesse jamais con
seguia arrancar de Loló a explicação daqueles círculos.
Uma vez, uma única, ela repousou a cabeça no meu ombro como
se estivesse ferida . Foi uma só vez e quase um só instante. A irmã
mais velha gritava por ela para jantar :
- Loló! Loló! Papai já chegou.
Desprendeu-se :
1 80
- Já vou! Já vou! Até amanhã.
- Até logo.
Até amanhã. Hoje tenho que ajudar papai. (Na cqleção de
___..
moedas . )
- Se é assim, até amanhã - conformei-me.
- Sonhe comigo.
- Vou sonhar.
No outro dia foi o baile fatal.
- Que pena você não ir - disse-me de tarde. - Eu gostaria
tanto que você fosse . . .
- Bem, eu também gostaria. Você sabe. Mas eu não tenho
smoking e mesmo se tivesse não sou sócio do clube.
- É . . . e eu tei1ho que ir. Todos vão .
- E por que não ir? Vai sim. Amanhã você me conta tudo.
Exceto, naturalmente, os flertes que teve . . .
Ela franziu o nariz exagerado :
- Enjoado !
Não ! Os olhos não morrem. E, tantos anos depois, eu vi hoje,
de relance, os olhos de Loló num bonde que cruzou com o meu!
QUATRO MOMENTOS
DE UM IDlLIO
181
- Acha?
- Acho.
Riram. Se ele lhe desse a mão? - e o coração tremeu como um
pássaro assustado . Mas Aurora adiantou-se e ele seguiu-a. Sultão
pulava e latia à volta deles . O porquinho passou, rabinho torcido,
redondo, rebolante, fungando.
- :E: de raça, Tonjco - disse com certo orgulho. - Custou um
bom dinheiro .
- Buldogue ou fox-terrier?
- Raça do seu nariz.
- Então deve ser raça distinta . . .
- Ah ! muito.
Na sombra da j aqueira, o ventinho era fraco. Os parasitas, p en-
durados no tronco, floriam.
- O quê?
- Vem ver, homenzinho, não amole .
Andaram dez passos, ela puxando p o r ele, como s e o levasse para
brincar de roda. Parou bruscamente e apontou-lhe a laranjeira.
- Veja!
- O que, Aurora?
- Bote uns óculos. Aqui! - e apontou com o dedo .
Ele viu - era seu apelido, Tonico, aberto a canivete no tronco .
Foi você !
- Não. Nasceu assim.
1 82
- Eu não acredito muito em coisas fáceis, você sabe.
- Há criaturas que nasceram com o único fim de complicar as
coisas.
- Muito ferina.
- Muito verdadeira.
Sentaram-se à luz flébil que tremia e o cheiro que s e desprendia
do lampião despertava em Antônio um sentimento de humildade, de
vida simples , jamais sentido . Aurora espalhou as cartas gastas, gor
das , manchadas .
---. Parece um pouco com a escapa. Você sabe escapa?
- Não.
- Também você não sabe nada! . . . Mas olhe : o cassino é o
dez de ouros. O cassininho é o dois de ouros. Cada um vale um
ponto . O ás de ouros também vale um ponto. Guarde bem. Quem
fizer mais cartas marca um ponto. Quem fizer mais ouros, marca
outro ponto . Está ouvindo?
- Estou .
- Bem. São quatro cartas na mesa para começar o jogo. A
gente tem de ir casando : rei com rei, valete com valete, dama com
dama . . . E somando também os valores : um quatro com um três,
sete, e se você tiver um sete, arrasta.
Aurora embaralhava :
- Já sabe tudo . Agora é prática e inteligência.
- Vamos ver.
- Não me desiluda.
As mãos distribuíam, queimadas de sol, maltratadas - uma, duas,
três cartas - tão diferentes de que eram outrora - quatro, cinco . . .
- Comece você.
- Sou eu? !
- Distraído antes do tempo, Tonico?
- Não, é que eu não sabia que era eu que começava.
Pacheco se chegou, arrastando os chinelos, os óculos de metal ba-
rato pendurados na ponta do nariz brilhante e arroxeado :
- Quero entrar nessa dança também. Vocês não convidam?
---. Depois; papai. Ainda estou ensinando .
- Seu Tonico então não sabe?
- Nem estou vendo muito jeito de aprender.
- Vai-se com calma.
- É o que não me falta.
A luz oscila. Dona Rita cochila na espreguiçadeira. Tonico se
atrapalha nos golpes . Aurora queixa-se :
- Você em jogo é uma negação !
O pai ri, acompanha os lances, pisca o olho para Tonico
procurando auxiliá-lo. O s sapo s na treva, lá fora, continuam.
O grilo canta.
1 83
Pancadas enérgicas na porta do quarto :
- Deixe os cobertores, dorminhoco ! Aqui não se emenda a noite
com o dia, não .
- Já vou. :E: u m minutinho . Estou pronto . S ó falta m e pentear.
- Eu te conheço, saracura . Vamos, pula da cama logo .
Entrava pelos vidros da guilhotina o sol lúcido de inverno .
- Está chovendo?
Aurora riu :
- Como cabelo de sapo.
Veio o café com leite na sala fresca, defronte de Aurora, diligente,
Aurora que está mais sadia, mais cheia de corpo, uma moça já.
- Ande daí, Seu Zé Preguiça. Tenho que ir dar milho às galinhas,
colher os ovos , soltar os carneiros . . . ( Eles berravam no fundo do
quintal . ) Ou você está pensando que isto aqui é câmara dos depu
tados, onde ninguém faz nada?
- Você assim acaba tuberculosa . . .
- E você paralítico!
Dona Rita chegou da cozinha :
- Você está aperreando muito Seu Tonico . Ele veio para des
cansar, não foi, Seu Tonico?
Aurora não o deixou responder :
- Descanso aqui é de noite. De dia tem que pegar no pesado .
Anda, vamos, seu malandro. Vem me ajudar.
Patos, perus, galinhas, marrecos os rodearam ávidos, pinicando o
chão que ela cobria de grãos.
- Esta garnisé que está aí perto de você é a mascote da casa.
:E: mansinha, mansinha. E bota que é uma beleza!
Abaixou-se e apanhou-a :
- Veja como ela é mimosa.
- :E: bonitinha, sim.
- Quase morreu há um mês mais ou menos . Ficou caída, não
queria comer, a cabeça cobertinha de piolhos. Custei a dar jeito
nela, p ensei que não escapasse, mas afinal ficou firme. Me deu
trabalho .
- Que é que você fez para ela ficar boa?
- Ah! uma porção de coisas . Azul-de-metileno na água; mas era
obrigada � meter a água pelo bico, pois ela não queria beber. Passa
va querosene na cabeça para matar os piolhos . . .
As goiabeiras vingavam, o abacateiro j á era uma árvore, o cajueiro
subia. A vala, limpa, tinha nas beiras o tapete de agriões . Um
pequeno rego levava a água aos canteiros viçosos das alfaces, das
celgas, das couves, das hortelãs . As bananeiras cresciam na terra
preta.
- Aurora . . .
Que foi?
1 84
- Quer ir até lá?
- Lá, onde? !
- Na laranjeira.
- Não, Tonico . Nada de laranjeira agora. Vamos colher os ovos .
Tome, faça algum serviço útil - segure o cesto. Está com a mão
mole?
O cabazinho ficou até as bordas . Ela catava-os, agachada, revol
vendo a palha, entrando no galinheiro fechado ( por causa dos gam
bás ) , passando-os pelos vãos do tabuado :
- Tome mais este.
- Ainda não acabou?
- Tem mais este.
- Grande, hem !
Saiu cansada, vermelha, o cabelo correndo para a testa, mais bela,
infinitamente bel a :
- Porque é d e pata.
- E os carneiros, não põem?
- Põem, sim. Mas ainda não está no tempo . Lá para setembro.
Anda, grande humorista, vamos para a sala contar e separar isto .
- Para que tanta pressa?
- Isto é dinheiro, Tonico ! Nós vendemos. Vão j á para a cidade.
- Não sabia.
- Você acha que aqui vivemos de brisa? ·
Aurora separava-os :
- Vinte e dois , vinte e três , vinte e quatro . . . Este é de pata.
Este também . Vinte e cinco . . . Este é de peru.
- Peru ou perua?
- Não seja engraçado . Vinte e seis, vinte e sete, vinte e oito . . .
Outro de perua - está ouvindo? Vinte e nove . . . Este é de . . .
1 85
daraí, a mãe áspera e tão boa, as brigas com o irmão - pareciam
·
1 86
- Hoj e é domingo?
- ó, Tonico, vá amolar o boi!
EPISúDIO COREOGRAFICO
JÁ ouvi de um poeta que cada quadra da vida tem uma cor distinta.
Era um poeta gordo, sinistro, sem talento, mas também os poetas
medíocres dizem verdades, e, a acreditar nele, suponho que a minha
fosse azul aí por volta de 1 922. Eu era um rapazola e dançava. Pos
sivelmente fazia-o mal . Mas como a idade não comportava auto
críticas, não desconfiava disso. E era feliz. Os bailes eram fre
qüentes, os convites muito regateados, e eu não perdia uma dança.
Ao voltar para casa, a madrugada rompendo, vinha tonto . Se disser
que era de tanto rodar, minto . Porque por esse tempo imperava o
one-step, isto é, um marchar sincopado para a frente e para trás ,
como o andar dos caranguejos, sem mais fantasias que um voltejo
nas curvas . Mas havia louras, morenas, indefinidas . Explicar é difícil.
A pena emperra em muitos casos . Este, um deles . Ser sumário é
melhor. Quem já teve dezessete anos compreenderá logo . Uma
vertigem!
Armando não dançava, bom Armando, que a vida levou para longe,
casado, carregado de filhos , como magro professor de aritmética,
álgebra e geometria numa cidade do interior. Se me perguntarem
o nome dela, não saberei responder. Apenas sei vagamente, por ter
ceiros, que é em Minas , no alto duma serra, com clima restaurador
para os doentes do peito. Tal ignorância tem a sua desculpa -
depois de homens feitos nunca nos procuramos . As duras contin
gências da vida levaram-nos para ambientes bem diversos, modifica
ram-nos o temperamento, separaram-nos de modo irremediável . Que
ele se tenha esquecido de mim não acredito, mas se tal acontecer,
não há que condená-lo. Não é ingratidão, garanto . São gênios . Eu,
por exemplo, não o esqueço.
Fomos amigos, quase inseparáveis . Morava no mesmo quarteirão,
filho único e órfão de pai. Juntos estudávamos . Juntos fizemos o
princípio da nossa formação literária, dupla bebedeira de Eça, Ma
chado, Pompéia, Dickens, Daudet, Hugo, Balzac, Flaubert e Mau
passant. Juntos declamávamos . Eu mal e pouco, ele bem e muito.
Memória fabulosa, que a nicotina não obscurecia, sabia de cor todo
o Guerra Junqueiro, todo o Castro Alves , todo Bilac, todo o Cesário
Verde. Os sonetos ficavam na sua cabeça como livros numa estante
arrumada. Se tinha memória, tinha também espontânea propriedade
de gestos e de tons . Com voz soturna e punhos ameaçadores , can-
1 87
tava os horrores da escravidão. Com voz satânica, dava Baudelaire
traduzido por um vate português . Com voz trêmula, o olhar que
brado, esvaindo-se em suspiros, falava de beijos e raios de lua, folhas
de outono e pálidas donzelas sobre coxins dourados . Era da poesia.
Como chegou às matemáticas diz a necessidade que opera prodígios .
Tinha as pernas longas, um andar desengonçado, o cabelo rebelde
e negro invadindo a testa curta, abusava do cigarro. A amizade ate
nua o realismo, razão por que eu amenizo a verdade dizendo que
Armando amava pouco a limpeza. Amava pouco a limpeza, mas a
mãe amava muito o filho e o atormentava com imposições higiênicas .
Ele, para contrabalançar, atacava-lhe a pintura, os trejeitos elegantes,
as toaletes um tanto espaventosas . Com isto deixamos claro que eram
como irmãos e que Dona Marta, se não era nova, se não era mesmo
conservada, era coquete é como tal deixava-se possuir pelos capri
chos da moda. A moda aí era dança, mas a dança americana, que
expulsou dos saraus a valsa, a polca, o chótis, já que o samba nesse
tempo era propriedade da ralé, indecente, exagerado e indesejável,
disfarçando-se em maxixes para uso exclusivo dos clubes carnavalescos
e cabarés.
Ora, se dançar o one-step era o último e supremo chique, infeliz
mente Dona Marta não o praticava. Não por ser um tanto cheia de
corpo, não por não saber dançar, pois fora até disputada valsista
nos salões dos seus vinte anos, sendo mesmo, numa festa do Clube X,
que, perdido por seus encantos, o Doutor Marcos lhe propôs casa
mento, casamento feliz realizado meses após e desfeito pela gripe, que
em 1918 carregou desta para melhor o ex-apaixonado valsista depois
de três dias de delírio. É. que simplesmente não se ajeitava ao com
passo novo, "muito prosaico, muito pouco romântico", dizia. Bem
que tentara. Fora um desastre. Pior, o Fluminense pedia a sua pre
sença num chá-dançante de caridade. A festa comportava uma nota
de alta originalidade ( alvitre de Sinhazinha Flores) - as patronesses
alugar-se-iam aos cavalheiros . Depois de cada dança (fatalmente
one-step), o cavalheiro depositaria na sàcola de seda da dama quanto
lhe mandasse o cavalheirismo, a piedade, ou a conveniência. O pro
duto reverteria para os cofres de proteção às obras da igreja de São
Domingos, em adiantada construção. Para destino tão útil e elevado,
os corações tinham de ser generosos. E Dona Marta era patronesse . . .
Era para desesperar! Não por vaidade, mas por piedade, o coração
lhe mandava que a sua sacola fosse das mais favorecidas .
Dona Marta sofria. Tivera ímpetos de socorrer-se de uma escola
de dança. Mas tinham tão má fama que não passou de projeto.
Dona Marta era virtuosa. Era principalmente irmã de São Domingos
e lembremos o que há de incompatível entre essa pia irmandade e o
assoalho suspeito de uma escola de dança. Era horrível ! Há rugas
de contrariedades . Dona Marta criou duas para se juntarem às que,
188
apesar dos cremes, lhe tinha trazido o tempo, que é a maior e a
mais inconsolável das contrariedades . Criaria outras se não fosse o
filho. Amado filho ! Inspirado Armando ! Se tanto o recriminara -
bobo! desajeitado ! imprestável! - por não saber dançar, tudo per
doou (quanto pode um coração agradecido ! ) , tudo perdoou quando
ele perguntou se não gostaria que eu lhe ensinasse os passos da dança
nova. Se gostaria! . . .
Foi assim que, embora afirmasse com modéstia não saber dançar
bem, foi assim que a sala de jantar de Dona Marta tomou um as
pecto diferente e didático, porque ensinar o one-step não deixa de ser
instrução.
A mesa e as cadeiras foram encostadas a um canto, o tapete saiu
enrolado para um outro, a vitrola veio da saleta, que fazia de sala
de visita, imprópria pela exigüidade para o exercício de uma varie
dade coreográfica que pedia relativo espaço. No assoalho encerado
foi passada - para maior conveniência e propriedade - uma dose
respeitável de espermacete. Escorregava e brilhava - era sabão e
espelho ao mesmo tempo . Nele se refletia, ansiosa e ruborizada pela
emoção, a bondosa senhora que se pusera num vestido leve "para
facilitar", embora eu não visse relação alguma entre um vestido tão
transparente, tão decotado, tão braços nus e aulas de one-step, tanto
mais que estávamos no inverno, um inverno bem chuvoso e bem
frio. Nele se refletiam as minhas botinas de bico-agulha e cano de
camurça cinzenta - que era o furor do chique sapata!! - a minha
gravata-borboleta em estilo de petipuá, a minha calça curta e estreita
na barra, tão estreita que calçado não a podia tirar, o que represen
tava um infalível teste de elegância para os requintados da época.
Abotoei o único botão do paletó comprido, muito cintado, e a aula
começou. Tomei a sua mão esquerda na minha ( era uma mão gor
da, macia, bem tratada), enlacei-a com o braço direito e expliquei
as posições.
- É assim, Dona Marta. Bem junto. Quase colando ao cavalheiro.
Dona Marta estremeceu :
- Quase colando?
- Sim, quase colando. E as pernas um pouquinho abertas .
Dona Marta teve um risinho nervoso, fugiu com o corpo e para
se acalmar, penso eu hoje, foi que perguntou :
- Como?
Eu repeti a figura. Ela deixou cair o braço flácido sobre o meu
ombro, comprimindo os lábios. Armando, sem palavra, fumando,
apreciava as manobras, esparramado num poltrona de molas .
- Vamos - fez ela, com um sinal de cabeça complementar.
Procurei trazê-la mais para mim. Dona Marta, porém, apesar do
emoliente perfume que lhe era peculiar, ficou dura, distante, resis
tindo. Eu corrigi-a:
189
- Não fuja com o corpo, Dona Marta. Bem encostada, faça a
cintura mole.
Ela descomprimia os lábios, sombreados por um buço alourado :
- Sim.
Encostou-se com suficiência, seu perfume sufocava, eu firmei ainda
mais o braço na sua cintura. Mas a cintura continuava dura, dura
por causa da cinta com que Dona Marta prudentemente se esbelti
zava. A vitrola já andava no meio da "Gigolete". Eu relaxei:
- Muito bem, Dona Marta. Agora vamos mesmo.
Ela sorriu, graciosa, dócil. Dei o primeiro passo. E fui para a
frente, mas Dona Marta também avançou. Foi um esbarro, ficamos
no mesmo lugar. Rimos. Armando não riu. Dona Marta estava
vermelha.
- Meu filho tem a quem sair . . .
- Qual, Dona Marta! . . É questão de um pouco de paciência.
.
- Dá suas panes . . .
- Mais cuba-libre?
- Pode ser.
- Tem programa para amanhã?
- Depende . . .
- Depende de quê?
- Da conversinha . . .
E assim começaram. (Inclina-se pelos homens mais velhos, não
muito mais velhos, é óbvio! Desde guria é assim - gostava de ser
acarinhada pelos amigos do pai, que ainda estava legal, achava os
rapazes muito enjoados, muito bobocas, uns presumidos, nem ligavam
para ela, como se fosse um rebaixamento total olhar para uma me
nina, embora bonita, pois ela sabia que era bonita - se era! ) Mas
Antônio Carlos tinha óculos. Por que é que os óculos emprestam
mais idade a um homem do que mil cabelos brancos? Não podia
era gostar da armação que ele usava, sem aro e de hastes metálicas
muito fininhas, armação que punha no seu rosto arredondado uma
claridade gritante, como certos closes de cinema, um jeito de profes
sor, ai, como tinham sido chatos os seus professores, todos, menos o
professor de inglês - um doce! - maneiroso, contador de anedotas
de subentendida bandalheira, não perdendo vez de devassar decotes,
de dar roçadinhas nas alunas, de pegar na mão delas quando iam ao
quadro-negro - e Bebete tinha sido pilhada com ele em love na
Barra da Tijuca, a sonsa! Mesmo não estavam na moda - quem
mais usaria uma velharia daquelas? Só por pirraça, como ele ! Por
que é que não a trocava - e tantas vezes ela insinuara, pedira, exi
gira, e ele neca! - por uma armação moderna, italiana, dessas que
escondem as sobrancelhas, ensombram a face e dão um toque de
vigor, de firmeza, de atualidade? óculos, estava visto, eram como
unhas pintadas: tinham de acompanhar a inoda, hoje vermelhas,
amanhã róseas, depois escarlates, brancas, roxas, prateadas - o in
finito! Eram como o penteado que tem de se ir variando - "Não
adianta bufar, Antônio Carlos, eu danço conforme a música!" -
192
para não correr o ris�.:o de ficar muito da saquarema. E Antônio
Carlos fingia não compreender isso, só por picardia, só pra chatear,
pois compreendia tudo o que era moderno e oportuno, sabia distin
guir perfeitamente tudo quanto era de bom ou mau gosto, não se
iludia, nunca! com as aparências e circunstâncias ; se dizia de uma
cois a : "Não presta", ela pulava, ficava furiosa, deblaterava, porém
acabava vendo que não prestava mesmo. Fazia, com ar pré-vitorioso,
um tantinho de pos e :
Não vai nesta, morena, que é grossura . . .
- Ah, já vem você com a sua antipatia . . .
- Grossura, grossura . . . Total !
Ou então :
Muito quadrado, filhota.
- Que quadrado ! Divino!
- Quadrado, quadrado . . . Quadradíssimo !
Ou ainda :
- Um bagulhame!
- Que bagulhame! É o fino da bossa!
- Isso não é música, benzoca, é só barulho. Válvula de privada
também faz barulho.
- Muito limpa a comparação . . .
- De acordo com o que ouvimos . . .
No entanto os óculos anacrônicos continuavam . . . e como era trn
tante vê-lo a os limpar, demoradamente, demoradamente, com papel
Yes, de que sempre trazia provisão no bolso. Os óculos e a voz in
corrigível. Bem, como poderia comparar a voz de caixa de Antônio
Carlos - trá, trá, trá - com a voz ondulante, oleosa, escorregadia
de Abelardo, aquela voz que só tinha sons macios e surdos como
se todas as suas frases fossem uma declaração de amor?
____. Márcia, Márcia . . .
COMPOSIÇÃO DE CARNAVAL
Ai seu Mé!
Ai seu Mé!
Lá no Palácio das Águias
Olé!
Nunca hás de pôr o pé!
Ai seu Mé!
Ai seu Mé!
Lá no Palácio das Águias
Olé!
Nunca hás de pôr o pé!
197
Maria Rosa tem pouca direção nos seus golpes - a serpentina
verde passa longe do meu alcance, a violeta bate no pára-brisas, a
branca atreve-se a deslizar pelo grande bigode do chofer ao meu lado
- quantas se perdem pelo chão, escondendo-se no tapete de confetes,
esmagadas pelos pés dos mascarados e pelas rodas dos carros!
Mas mesmo assim os nossos carros vão se unindo na trama rápida
e enamorada das fitas de papel - sou rico de serpentinas, de entu
siasmo, de desejo. Os pierrôs que a acompanham - três de preto,
imensas golas escarlates de tarlatana e guizos - vivem o seu mo
mento carnavalesco em pé no automóvel. Do meu lado os compa
nheiros têm olhos para outros acontecimentos . E estamos como que
sós no meio da desordenada batalha e os carros chegaram a ficar tão
juntos que nos falamos.
Debrucei-me no pára-brisa :
- Como é o seu nome?
Passa o caminhão de crianças e girassóis, como um imenso cara
manchão, num alarido :
Insisti :
- Como é o seu nome?
Apurou o ouvido :
- Quê?
- Como é o seu nome? - e o chofer me olhava de soslaio.
Trazia a boca pintada em forma de coração :
- Meu nome? Para que saber?
Atrevidíssimo, delirante :
- Porque gostei de você.
Tão brejeira :
- Oh!
Os carros arrancam em estampidos e fumaça, o liame de serpen
tinas resiste ao retesamento, os relâmpagos amiúdam-se, se escurece
não é só a tarde, é a tempestade de verão que vem e é preciso apro
veitar todos os minutos.
- Não quer dizer?
Fazia trejeitos : que não .
- Por quê?
Jogou mais serpentinas, soprou uma corneta de papelão, cochichou
com os três pierrôs . De braço com um dominó, a caveira passa com
a curva foice arrepiando os medrosos - sai azar! O urso sacode o
corpanzil de saco de aniagem - se acendessem um fósforo era uma
vez um folião! Uma velha canção brota de todas as almas:
198
ó pé de anjo!
ó pé de anjo!
És rezador, és rezador,
Tens um pé tão grande,
Que és capaz de pisar Nosso Senhor!
Aí eu já implorava :
- Não quer dizer?
Era linda ! Os dentes miúdos como bagos de milho branco, man
chas de sol ao longo dos braços trigueiros, o corpete tão justo que
fazia uma marca no peito, o suor escorrendo pelas faces de carmim.
A faísca serrou o céu. As primeiras gotas, enormes, estalaram, oh!
rugiu a Avenida inteira - chuva!
- Maria Rosa! - gritou ela no meio do oh! imenso e retum
bante como trovão .
A chuva caiu como um sólido, fulminante, diluvial, batia no chão
e levantava-se branca como vapor. Num átimo as sarjetas se enche
ram, os ralos entupidos de confetes e serpentinas afogadas . Em de
bandada o povo fugia para apinhados e precários abrigos .
O automóvel dela, destro, enfiou pela primeira rua. Ia encharcada
já, acenando com o braço de sol. O nosso, por estupidez do chofer,
continuou ainda, para fugir afinal por outra rua adiante.
SEu MARTINS, que, com uns cabelos brancos aqui e ali, navega na
casa dos quarenta, j á teve bons e maus mares, mas como é carioca
da gema não há tristeza que lhe pegue. Dona Alzira, que é um
autêntico despertador, bota-o para fora dos lençóis :
- Levanta, homem, que já está na hora!
- Vai preparando o café, que eu já vou indo - respond e de olhos
fechados .
- Está pronto há mais de meia hora.
Não há outro remédio - Seu Martins abre os olhos, espreguiça-se,
senta na cama (sonhou com pavão), torna a espreguiçar-se. Faz
uma manhã magnífica, luminosa, transparente. Ainda bem. Tapa um
bocejo : Vamos para a luta. Vai para o banheiro arrastando os chi
nelos, fica remancheando - tem tempo .
A navalha está desgraçada de ruim, mas ele não liga. Vai arran
cando barba e pele, deitando, pela janela, olhadelas para a gaiola
pendurada numa so mbra do quintal, conversando com o saltitante
·
passarinho como se ele fosse gente : - Perdeu o pio? Está com dor
de dentes? Você precisa se casar, rapaz!
Banho é de chuveiro, com sabonagem demorada - tem tempo -
199
e acompanhamento de assobio e canto. Há de tudo : valsas remotas,
canções da mocidade - "ú minha carabu, dou-te meu coração",
"Perdão, Emília, vou partir chorando" . . . - mas o forte é o samba
mesmo. Não há samba novo que ele não saiba. O ritmo do "Barraco
abandonado" é do balaco !
- Perdeu o bonde!
Seu Martins dá um beijo apressado na patroa, dá um beijo apres
sadíssimo no caçula - té logo, Anália! - e vai voando. Sai sempre
atrasado de casa, mas nunca perdeu a hora de entrada no escritório,
onde trabalha dobrado porque trabalha sorrindo.
1934
1943
1952
1 953
A ÁRVOR E
230
sindicância do edifício acabara, por artes do demônio, muito apro
veitador das eleições de condomínio, nas mãos do doutorzinho, que s e
revelou um ativo reformador, mormente d o que não precisava ser
reformado, e como não fica mal respigar exemplos do reformismo
desnecessário, informamos ter trocado, na portaria, a l áctea bacia de
vidro, suspensa do teto por três azinhavradas correntes, por uma
lanterna de brilhante latão que, sem que ficasse mais estética, diminuía
consideravelmente o poder iluminante da econômica lâmpada de ses
s enta velas que o severo racionamento exigia; ter dispensado um faxi
neiro, por quem nutria partidária antipatia, admitindo para o lugar um
sarará que mosqueava no diretório de bairro do seu partido, e ter
posto cadeado nas portinholas dos medidores de luz e gás , providência
geradora de tal reclamação por parte dos humildes e apressados mar
cadores que foi rapidamente abolida. Mas seus operosos olhos sin
dicais fixaram-se, principal e recalcadamente, no flamboyant, cuj a
galharia, segundo a sua opinião, ia importunar os moradores do se
gundo andar, como ainda sujava com o cair das pequeninas folhas ,
qual dourada chuva de confetes, o n ã o muito assiduamente varrido
cimento que cercava o comprido canteiro . E de tal nefanda sujidade
fez expositiva menção a alguns pares , e o jovem médico foi o único
que contestou, aliás de maneira metafórica :
- Há homens que suj am esta cidade muito mais . . .
O doutorzinho, que tinha ostensivas preferências políticas e colava
cartazes eleitorais nas suas vidraças , fez-se de desentendido .
23 1
Pouco depois , à noitinha, chegava Ardogênio, vermelho como um
camarão, e sendo a entrada do apartamento por dentro do edifício,
não viu de imediato o sacrilégio. Viu, porém, a ambulância esta
cionada no pátio do prédio, e comentou :
- Quem s erá que está passando mal?
- Talvez o velhote do s exto andar - respondeu a esposa, de
lenço estampado na cabeça, carregando o samburá da matalotagem.
Ao entrar no corredor, constatou que a porta do apartamento de
Seu Ananias estava aberta e de lá vinha um rumor desusado . Nem
abriu a sua porta, correu para a outra - que teria acontecido ao
amigo? - e embarafustou-se pelo quarto . Ananias olhou-o como
carneiro ferido, gemeu :
- Cortaram a árvore.
Ardogênio cuidou que delirava, consultou com o olhar o médico,
pedindo uma explicação, e Ananias tomou :
- A nossa árvore . . .
Ardogênio, então, compreendeu :
- Não ! ! !
- Cortaram. Aqui não fico mais . Não posso ficar num covil
de monstros . - E o médico, à cabeceira, bateu delicadamente na mão
do enfermo, tentando acalmá-lo .
- Desgraçados ! Miseráveis ! Mas isso não fica assim não ! Não
fica! - e Ardogênio saiu como uma fúria.
Os filhos de Seu Ardogênio até aqui pouco entraram neste relato
arrabaldino . Entrarão agora : continuavam marcando passo no colégio,
cujas matrículas subiram substancialmente cada ano, desinteress ados de
qualquer ocupação, salvo a da ardorosa torcida flamenga, contentando
se com a mesada paterna, s eguidamente majorada; usavam blue-jeans
coçadíssimos, sapatos sem meias, cabelos sem ver tesoura, afinavam-se
·
com as invenções da bossa-nova, que feriam os ouvidos entupidos p ela
cera tradicional. Apesar das aparências , não eram maus rapazes,
apenas um pouquinho desajustados, desajuste em que Dona Maria do
Carmo cooperara e cooperava de forma categórica. Mas solidários
com o pai, ah, isso eles eram ! - e foram no encalço dele, escada
acima, pois Ardogênio nem pensou em esperar o elevador um s egundo
sequer. Pulando degraus , lépido como um jovem, enquanto os rapazes
botavam os bofes pela boca, chegou ao quinto andar, apertou raivosa
e prolongadamente a campainha do s índico - ninguém atendeu. Es
murrou a porta - nada! Alucinado, deu um valente pontapé nela,
um chute no capacho, que foi parar longe, e outro na mesinha de
tampo de vidro, que guarnecia a entradinha de marmorite, e o inocente
tampo s e desfez fragorosamente em estilhaços . E aí surgiram cabeças
curiosas, alarmadas ou medrosas, de condôminos e um deles, de slack,
esclareceu, receoso :
Não tem ninguém. Foram passar a Semana Santa fora .
232
- Ah, é? ! . . . - e Ardogênio, com o punho de aço, deu tamanho
murro no espelho de galalite da campainha, que a estraçalhou. -
Vamos!
Seguido dos filhos, despencou pela escada, desembocou no saguão
de entrada. O porteiro, aos ecos do bafafá, estava de orelha em pé :
- Que foi, Seu Ardogênio? ! Que foi? !
---. Quem foi o calhorda que cortou a árvore? Quero quebrar-lhe
as costelas ! arrebentar-lhe a cara ! - e brandia os punhos .
O homenzinho gaguejou - não fora ele, tinha sido ordem do
síndico, mas o doutor estava fora.
- Aquele cachorro estava fora quando cortaram a árvore? !
Novo gaguejamento :
- Sim, estava. Deixou ordens .
- Covarde! Nós também estávamos fora. Se estivéssemos aqui
queria ver quem teria o topete de cortar a árvore! Queria ver! - E
apossou-se dele uma outra onda de cólera, precisava se vingar em
alguém : - E quem foi o miserável que cortou a árvore?
O porteiro tremeu nas bases, gaguejava ainda mais . Ardogênio pas-
sou a mão no pescoço dele :
- Diga, infeliz!
A voz saiu espremida :
- Foi o Aristides .
- Ah, foi aquele sarará de titica? ! Pois vai pagar por conta do
patrão, que é da raça dele! Depois eu me avenho com o doutorzinho
de borra!
E voou, filhos atrás, para o quarto do faxineiro, situado no extremo
da garagem. Deu azar que o faxineiro estava, mas trancafiado, adivi
nhando a causa do rebuliço, lembrando-se, em cólicas, da determinação
do protetor e correligionário :
- Foice naquela porcaria de árvore, Aristides ! Não deixe nem
cheiro dela! - E rindo : - Os dois estafermos vão ficar danados.
Eles que se fumentem!
Agora ele é quem iria pagar o pato ! E pagou. Não lhe valeram
as duas voltas na chave. A porta era frágil, com dois esbarros a
fechadura foi para o beleléu e os três invadiram o cubículo, com um
escudo do Vasco pregado na parede, o que assanhou terrivelmente
os rapazes .
- Pelo amor de Deus ! - implorou o pobre-diabo, apavorado. -
Pelo amor de Deus !
Deus , porém, não atendeu ao improvisado lenhador. Verdade seja
dita, somente Ardogênio entrou em ação, os filhos apenas espiavam,
na expectativa duma reação contra o velho. Que reação ! O vascaíno
apanhou de criar bicho, ficou estendido no chão, pisado, ensangüen
tado, quase sem poder falar.
Ardogênio deu-lhe uma derradeira pancada :
233
- Verme imundo ! Agora corta outra árvore, patife! E diga ao
seu doutorzinho de merda que ele vai ficar como você, quando eu o
encontrar. Pior! Muito pior!
O doutorzinho, contudo, escapou. O coronel reformado chamara a
Radiopatrulha e lá se foi Ardogênio encanado para o distrito, apesar
da onda que já se formara a seu favor; o comiss ário era enrolado,
queria abrir processo, mandou o sarará a exame de corpo de delito,
do que resultou um laudo no qual as equimoses contadas eram tão
numerosas quanto os poros da vítima ; mas o advogado, que tinha uma
pinima com o síndico, ofereceu os seus serviços profissionais graciosa
mente e começou logo a chicanar, e o coronel acabou do lado do
acusado :
- É um camarada simpático, esse baixinho! - comentava, rindo,
na rodinha de biriba, no apartamento do jornalista. - Fez essa bagunça
toda por causa de uma árvore . . .
E o processo não foi adiante, apenas houve um termo de modus
vivendi, assinado pelo doutorzinho com caneta tremida e passando a
fugir do vizinho como o demo da cruz, depois de ter resignado a
sindicância em favor do vice-síndico .
O advogado gozava-o :
- Ficou mais sujo do que pau de galinheiro ! . . .
Ardogênio, porém, era bicho de couro duro. Mal ficou livre da
aporrinhação policial, foi buscar outro flamboyant no Horto Florestal
e plantou-o ostensivamente no mesmo local :
- Agora, meu chapa, é esperar que cresça. Vai crescer! Vai ficar
mais alto do que o Pão de Açúcar, isso eu juro ! Ai de quem puser
o dedo nele! O pau vai comer! - E prometia : - E não vai ficar em
bofetão só, não. Vai sair defunto !
Ananias sorria, ainda em uso de tranqüilizantes :
- Você é de morte, compadre!
234
AVUL S OS
CONTO À LA MODE
238
- Muitos pecados? - e o patrão piscou o olho esquerdo, que
parecia maior que o outro .
- Alguns sim, senhor - riu confusa.
- Os para o gasto, n ão é? :E: bom ficar livre deles . . . Muito bem.
Pecado é fogo !
Pecados tinha ele muitos, sabia, mas era bagagem que acumulava
sem se preocupar, como não o preocupava ainda, senão vagamente,
o medo da morte, descendente que era de gente longeva. O colégio
de padres fatigara-o de práticas religiosas - caramba, a quantas
missas agüentara caindo de sono, a quantas novenas assistira de joelhos
dormentes , quantas hóstias papara de boca s alobra pelo longo jejum !
Ademais a padrecada . . . Bem . . . - e pousou os olhos na Ceia
adquirida em Florença e douradamente emoldurada - era uma re
produção decente ! Acendeu o cigarro de filtro - só fumava cigarro
americano , comprado no contrabandista, no qual adquiria também o
s eu uísque e o seu chá - levantou-se :
- útimo, Zulmira!
- Deus o ouça!
E, em sendo domingo - o dia mais chato da s emana ! - substituíra
a leitura do divertido vespertino pela de um matutino menos patusco,
mas também conservador, e gordo pelas vinte p áginas de anúncios
graúdos e miúdos, que lhe proporcionavam uma agradável e segura
s ensação do progresso da oferta e da procura. Deu uma olhada no
artigo de fundo, que atacava rijamente o governo pelos perigosos
caminhos em que ele s e despencava sem atender aos s entimentos
cristãos do nosso povo - é isto mesmo ! do jeito que vamos estaremos
com o comunismo às portas . . . Deu uma olhada na crônica social
na esperança de encontrar o s eu nome, coisa que, quando acontecia,
tocava singularmente a sua vaidade, mas só havia o da besta do Fa
gundes, que recepcionara no novo apartamento da Avenida Rui Bar
bosa decorado pelo tal marquês italiano - vai ver que o carcamano
não é marquês coisa nenhuma! Deu uma olhada na seção esportiva
- o Fluminense não ia lá das pernas . . . também com aquele técni
co! . . E cansou-se, e depositou o jornal mal dobrado na p apeleira,
.
239
mesmo de se tirar o chapéu! Criavam tantas e tantas dificuldades
jurídicas que o freguês acabava recebendo mesmo metade, ou um
terço, do conserto, nem mais um tostão ! e ainda s aía satisfeito . . .
E estes alentadores, confortadores cismares foram interrompidos pelo
aparecimento de Rufininho e Heitor, de sunga e sandálias japonesas,
caras esgrouviadas , cabelos enormes , e Heitor tão queimado de sol
que não se conteve :
- Puxa, você parece um zulu !
Os jovens não lhe dispensaram a menor confiança. Tascaram um
biscoito, despej aram pela goela abaixo o suco de laranj a, acenderam
o cigarrinho da moda, iam meter um banho de mar no Castelinho,
onde tinham as suas rodas certas - deram no pé. Mas não seria nos
calcantes, e Rufininho avisou :
Vou pegar o s eu carro, pai .
- O meu? E o de vocês?
- Pifou. Deixei ontem na retífica. Oito mil, sabe?
Ficou sabendo, franziu a testa de dois dedos - mais uma parcela
para a soma dos prejuízos de sábado . Enfim, o mundo é assim, seu
Serafim . . . como dizia o avô s enador - conformou-se. Confor
mou-se, mas ainda abriu o bico :
- E quando voltam, poderia saber? Tenho que sair.
Antes das duas estaremos aqui.
- O almoço é às duas .
- Estamos fartos de saber.
Foram-s e muito lampeiros. Tinham-lhe dado algumas dores de
cabeça os filhos - filho é fogo ! Rufininho fora reprovado três anos
seguidos em exame vestibular, armara encrenca em tudo quanto é
inferninho e, não contente, atropelara um velho aposentado na Ave
nida Nossa Senhora de Copacabana, desgraça que rendeu e ainda
bem que o velhote não morrera com a trombada, bicho duro que
era ! Heitor, que gostava de entornar o copo, dera vários escândalos ,
abusara duma garota e o advogado da firma, um bocado velhaco,
tivera de se virar para provar que o broto dava sopa! Agora, com
a graça de Deus , estavam mais calmos, mais acomodado s . Rufininho
desistira de escola superior e auxiliava-o mais ou menos satisfatoria
mente na companhia, mas com muito vale no caixa - não sabia
onde ele gastava tanto dinheiro ! - Heitor conseguira s e meter num
:.curso de economia - uma carreira de grande futuro ! - e funcio
n ava de contrabaixo num conjunto amador de bossa-nova - uma
música de encher o saco ! - mas que o psiquiatra achara um bom
derivativo e realmente parecia que estava dando resultado. Ana
Lúcia é que era o problema grave de então - muito grave e para
o qual não via solução, salvo a de um bom casamento, coisa porém
duvidosa e nada imediata. Não quisera estudar, parara no ginasial
feito aos pontapés, vivia em cabeleireiros, em modistas , em passeatas,
em namoriscos, cada semana s aindo com um coca-cola diferente a
240
tiracolo . Uma vez, chegando em casa de repente, encontrara-a atra
cada no divã com um louraço . . . Desgrudaram-se rapidamente,
disfarçaram o quanto puderam, ele ficara sem s aber o que fazer ou
que dizer, refugiara-se no quarto, abalado e confuso, o rapaz deu
logo o fora, podia ser que estivesse enganado, podia, mas era capaz
de jurar que boa coisa não estavam fazendo .
E é Ana Lúcia que surge, de roupão de praia, muito ·curto, biquíni
vermelho, cabelo escorrido, as pernas firmes e esguias lembrando as
da mãe quando era moça e tomava banho no Flamengo , só que não
nua daquele j eito !
- Alô, pai.
- Alô, minha filha.
Ela chocha, ele mais caloroso um pouquinho, e ficaram na telefô
nica saudação como se um mútuo constrangimento os impedisse de
ir além. E aquela era a sua filha, mas que distância sentia existir
entre eles ! distância que via crescer cada hora, formando um arenoso
deserto, sem ;caminhos e sem oásis, ilimitado horizonte que acabaria
por tornar impossível qualquer gesto de aproximação e entendimento .
Como se fosse filha doutra pessoa, embora traços fisionômicos comuns
logo identificassem a filiação ; como se fosse estrangeira, outra língua
falasse e nenhum laço os unisse. Tinha culpa? Assistira-a convenien
temente? Sentia-se perturbado - sempre tratara os filhos com tole
rância e paciência, procurando que nada lhes faltasse, sempre aten
dera-os e os perdoara nas suas confusões - e ele também não as
tivera na sua mocidade? - mas talvez não fosse o certo e o bastante,
e faltasse um óleo, que desconhecia, capaz de azeitar as rodas da
emperrada máquina familiar, talvez lamentavelmente falhasse como
maquinista e as fugas para os negócios, para a vida social, para as
viagens ao estrangeiro, para o jogo e para os escondidos e com
plicados amores fossem barreiras que ele próprio levantara contra a
perfeita aprendizagem da função, que a todos parece tão fácil e
natural !
Ana Lúcia s entou-se à mesa, cruzou as pernas, beliscou uma fruta,
os lábios polpudos, enfastiada :
__. Não tem café?
- Tem . Já vou trazer. Tá no banho-maria - e Zulmira apres
sou-se, nas pernas varicosas, a ir bus<Cá-lo .
- A Odaléia n ão está?
- É dia de folga dela, Ana Lúcia - e o tratamento das crianças
s em senhoria era uma das suas modestas conquistas .
- Que folga tem essa gente !
Era coisa que Zulmira não desfrutava, caseira por natureza. Raro,
raro, aproveitava um feriado e, infalivelmente, ia passar o dia em
Sapicuruna com uma vaguíssima comadre, e da visita voltava com um
embrul�o de limões-galegos, que generosamente incluía no farto
abasteci mento da casa. E Ana Lúcia prosseguiu :
241
- Qualquer dia a gente é que vai para a cozinha, vai varrer a
casa, vai tirar o pó, tem que servir a mesa . . .
Zulmira não compreendeu :
- A tia dela está doente. Muito doente. Teve um inchaço brabo
na altura dos peitos. Está que não pode nem se mexer.
Ana Lúcia passou o guardanapo na boca sem pintura, levantou-se,
ajustando o roupão felpudo e escarlate, ajeitando a larga fita de elás
tico que prendia os cabelos .
- Vou-me indo.
- Onde você vai? - aventurou o pai.
- A praia, é claro.
- Vai sozinha? - e sabia o quanto era vaga e inútil a pergunta.
� Que idéia? Vou com o César Augusto. Ele vem me apanhar.
Está combinado . Vou esperar na porta do edifício. ( la dizer que ali
estava chatíssimo, mas não disse. ) Prometeu passar às onze e qual
quer coisa. Onze já são. Não deve demorar.
Ela falava mais que do costume, inconsciente estratagema para
encher um tempo de penoso contato, para esconder seus verdadeiros
passos, suas verdadeiras intenções . César Augusto? Quem era César
Augusto? - pensou ele em perguntar, quando nada para enfestar
màis um pouco a conversinha, todavia Ana Lúcia já torcia a maça
neta após uns passos em que havia vestígios de twist aprendido na
milimétrica pista de dança do Black Horse:
- Tchau.
- Tchau.
Repetia os cumprimentos dela como um eco - já bem notara, sem
conseguir se conter, arrastado por impulso insopitável, o seu incons
ciente estratagema para forçar a aproximação e a intimidade fugidias.
A porta se fechou macia, o elevador foi chamado. Ficou só. A vida
vivemo-la só - suspirou interiormente - e precisamos vivê-la . . .
Esticou a perna dormente, manejou o isqueiro de ouro num golpe
seco e decisivo. Ficara no ar um perfume, emoliente e caro, que
tentou identificar, coçando o queixo fino, pois os perfumes traziam
lhe sempre pecaminosas e acre-saudosas lembranças femininas .
Olhou a janela - o azul! o azul! E de azul, carregado azul, surgiu
Iracema, as ancas largas, a face lustrosa de creme, que os tinha para
todas as horas e precauções, a rede imperceptível contendo os cabelos
pintados dum preto sem brilho, os anéis de diamante e platina pe
sando nos dedos, anéis que não tirava nem para tomar banho, o ar
cansado :
- Zulmira!
A negra trouxe a dieta da patroa, dieta científica, isenta de hidra
tos de carbono, a derradeira a que se entregava com um entusiasmo
exagerado e ridículo : pão de glúten, ovo 'cozido, queijo prato, aba
cate e melancia, sacarina, só sacarina - calorias não engordam! -
242
e a cada momento apalpando a cintura e os braços flácidos, confe
rindo nos espelhos a derrota da celulite, que se mostrava rebelde.
O marido abandonou o mutismo com que cercou a lenta refeição
da mulher :
- Ana Lúcia saiu com um tal de César Augusto . Você conhece
esse cara?
- Conheço. Muito distinto . É filho do Almirante Sousa.
Os bordados do almirante serenaram as suas apreensões :
- Ah, não sabia.
- Pois é.
Houve uma pausa. Zulmira recolhia a louça, o avental molhado.
Surdo, subia até eles o marulho das ondas, mais vivo, um vago vo
zerio esportivo, e o sol entrava até o tapete persa, outra impulsiva
aquisição européia. E Dr. Fifinho voltou.
- Que apito toca?
- Quem? - inquiriu Iracema, aérea.
- O tal César Augusto, ora.
- Ah ! não sei.
Dr. Fifinho sorriu - já esperava por aquela - a mulher nunca
sabia as coisas senão pela metade, ou baralhava-as, ou confundia-as,
irritando-o quanta vez a ponto de chegar a palavras bruscas, que ela
não compreendia e retrucava com lágrimas fáceis . E Iracema, em
tardos movimentos, dirigiu-se para a cadeira de balanço junto às
janelas, onde o ficus italiano amarelecia e definhava - era o segundo
que compravam :
- A Página Feminina está aí, Fifinho?
A Página Feminina era a ilustrada enciclopédia em que ela sema
nal, mas não assiduamente, abastecia a sua cultura, recQrdando con
selhos e receitas de variada espécie, que imediatamente perdia. O
marido separou-a do corpo do jornal, foi entregá-la sem convicção :
- Toma.
Mas a esposa mudou de idéia com ar sofredor:
- Depois cu leio. Estou com os olhos muito pesados, ardendo.
Parece que têm areia - e colocou o suplemento sobre a banqueta
ao pé da cadeira. - Dormi muito mal. Malíssimo ! Acordei não
sei quantas vezes .
Era mania sua garantir, com a maior veemência e desfaçatez, que
não pregara olho a noite inteira, quando o marido, melhor do que
ninguém, s abia quanto seu sono era de chumbo, levemente roncado.
Nova e dilatada pausa, silêncio quase hostil, fruto do extremo can
saço a que chegam as longas intimidades não ligadas pelo cimento
do perfeito amor - casamento não insensato, mas precipitado e de
interesse, em que o viço da esposa, apenas engraçadinha, apenas
graciosa quando arrastando comprido véu subia ao altar da Candelá
ria, tão rapidamente feneceu ao desgaste de três partos consecutivos,
antes que a experiência os impedisse - silêncio que entre o casal
243
cada dia mais se impunha, secreto e precavid o recurso p ara que tudo
não s e desmoronasse e guardadas fossem as necessárias aparências
que a economia comum exigia. A mosca fazia importunas evoluções,
ele enxotou-a mais uma vez :
- Será que não há flit nesta casa? ( E a incerteza gramatical re
petia-se : nesta ou nessa? )
Iracema não é nada sutil para as dificuldades do idioma, nem s ab e
mesmo o que é idioma, e as raras cartas que penos amente escrevia
com letra infantil, achas para manter a chama do convívio social, eram
patentes exemplos de tal ignorância. Contudo, a reclamação na qual
sentia um oculto espinho para feri-la, deixa margem a uma reclama
ção de autodefesa :
- Não m e venha com histórias ! Você s abe perfeitamente que isto
não é comigo . É com Zulmira. Fale com ela. Cada macaco no seu
galho . Não tenho tempo para estas coisas .
Dr. Fifinho agastou-se :
- B em, você não tem tempo para coisa nenhuma, isto é o que
é! Se r. ão fosse mesmo a Zulmira, esta casa andava à matraca . Uma
verdadeira bagunça!
- Nós pa�amos empregados é para que nos sirvam .
- Exatamente ! Exatamente ! Não queira ensinar o padre�nosso
ao vigário . . . Mas uma dona de casa tem a obrigação de supervisio
nar. ( Supervisio nar era verbo que largamente consumia no escritó
rio . ) Você sabe quanto se gastou este mês aqui em casa? Sabe?
- Não sei, nem quero saber. Dinheiro foi feito para se gastar!
- Isto estaria muito bem s e fosse você quem o ganhasse.
Gostava de encher a boca com o dote que trouxera :
- Meu pai . . .
- Seu pai que vá para o diabo que o carregu e ! - interrompeu-a.
- O que ele te deu, eu não meti o pau não ! M ultipliquei ! Multi-
pliquei por ,cem ! E não é para atirar pela j anela !
Iracema não era boa esgrimista verbal, na verdade era pé ssima, e
visceralmente covarde . Vieram-lhe as lágrimas aos olhos , bateu em
retirada :
- Abomino domingo ! Maldito dia! Não há um em que você
logo de manhã não venha com aborrecimentos, com destemperos , com
reclamações . Que vida ! - E levantou-se, refugiou-se no quarto,
preparando-se para a fatal enxaqueca.
Dr. Fifinho mais uma vez ficou só. Só como numa pnsao sem
grades . Aves riscaram o retângulo azul. Gaivotas ou urubus? -
sabe lá. Leve, um fiapo de arrependimento toca-lhe o coração -
a mulher era idiota e idiota morreria. Pensou em ir vê-Ia, dissolver
o desentendimento com palavras não muito precisas , tal acontecera
em outras ocasiões , porém não foi, que um peso mais forte prendia-o
à estofada cadeira . Acendeu um cigarro, consumiu-o, d epois foi é
tomar uma drágea antidistônica das quais, de tempos para cá, abusa-
244
va. E enfiou-se no banheiro para fazer a barba e tomar a sua morna
chuveirada - as torneiras estavam secas . . . Bufou de raiva :
- Zulmira! ú Zulmira! A água já acabou?
Ela acudiu-o :
- Cortaram ela hoje mais cedo, Dr. Fifinho.
- E nem para me avisarem ! Essa não !
A negra sentiu-se culpadíssima :
- Me esqueci, Dr. Fifinho. Me esqueci. Me adiscurpe! É tanta
coisa na minha cabeça . . .
- Era só o que faltava!
- Eu enchi uns baldes para lavar a louça. Vou trazer um pouco
para o doutor fazer a barba. Se quiser tomar um banho de cuia,
eu dou um jeito . . .
- Que merda de cidade! - rugiu, furibundo. - Não aumentaram
o preço da água, não . Aumentaram foi o preço da falta da água!
Cinco mil por cento !
outro. Com outro, não, com outros ! Que os deixarão de rabo quente!
Com essa gente - e se tinha uma virtude era a da feroz sinceridade
- não há que ter contemplação, não ! Precisamos nos unir, nos mo
bilizar, e você também precisa estar conosco. Não é só dando di
nheiro, não, é trabalhando, agindo, se dedicando, compenetrando-se
253
do seu dever para com a sociedade, a Pátria - um por tàdos e todos
por um! Deixa esta moleza, esta apatia! É com elas que eles contam
para nos vencer. Mas não irão tê-las, posso jurar. Vão ter contra
ofensiva pela proa! Receberá seu dinheiro com juros, meu querido
Rufino. Juros altos. Juros de tranqüilidade! Este país precisa traba
lhar! Precisa paz porque só em paz se trabalha e se progride. Para
que damos esmolas à Igreja? Não é pelos belos olhos dos padres,
está visto. É para que ela se sustenha, subsista, vença a heresia e o
materialismo, mantenha a ordem moral, sem a qual nada se constrói.
É a mesma coisa. A mesmíssima! Gastamos para sobreviver! Para
que nossos filhos sejam livres ! Para que nossos netos sejam livres !
Cada qual tem que entrar com a sua quota! E mandar brasa! -
despediu-se.
O indeciso comandante de securitários reanimou a disposição
belicosa :
- É isso mesmo ! Conte comigo! É para valer! Vamos pra
cabeça!
E, para início do papel militante, tratou com ostensiva frialdade
o calado contínuo, que servia café, em quem pressentiu um inimigo
embuçado - era o primeiro que desaparecia quando havia greves !
- e traçou para a secretária um largo gráfico verbal, espinafrando
galhardamente o Jango e a cambada que o cercava, da atual conjuntura
político-social brasileira - delicadíssima! - que ela, trasandando a
Miss Dior, aprovara com a cabeça e com os brincos espaventosos e
compridos de roçar os ombros. Decidido a enfrentar a empregadinha,
fossem quais fossem as conseqüências, e nada aconteceu para seu
alívio, pois ela havia saído a mandados, pregou um sermão em regra
a Aldete, engastando as candentes palavras de Vasconcelos na perora,
como pedras preciosas, bisou-o em casa, ao jantar, enriquecido de
mais contribuições pessoais, que espontaneamente lapidou. Aldete
não só não bocejou, tal como acontecia quando, por acaso, ele dis
corria sobre negócios, como refutou-o agilmente em duas ou três
oportunidades, perturbando-o um pouco, porquanto os argumentos do
aviador civil, absolutamente contrários aos do novo miliciano, tinham
maior poder de persuasão, mais finura explicativa e mais machiche nos
intervalos. Os filhos acharam gaiato o intempestivo entusiasmo cívico,
sem interrompê-lo, nem contrariá-lo, por não discreparem de tais
idéias e até convictos adeptos se declaravam do boquirrotismo do
Governador, que era quem mais teatralmente esperneava contra os
desmandos federais e explorando um pretenso mas frustrado atentado
à sua pessoa. Iracema, esta sim, aprovou-o, benzeu-se, rebenzeu-se,
colaborou com casos que a vizinha lhe contara horrorizada e até
arrebatou-se com o calor marital, surpresa que o encheu de um certo
orgulho, chegando a admitir que a idiotice da cara-metade não fosse
realmente total.
254
Garantido por forças do Exército, três mil homens, diziam, o co
mício, com o comparecimento presidencial, foi de arromba - faixas,
cartazes , archotes queimando petróleo nacional, oradores inflamadís
simos, povo a perder de vista na praça imensa, sob uma tarde ma
ravilhosa e uma noite de estrelas, como se o tempo quisesse ostensi
vamente colaborar na manifestação popular e o Presidente, do alto
do palanque, com veemência, exigindo as reformas, ele que já
encampara as refinarias particulares , sacudia diante do povo os decre
tos que assinara naquele dia memorável sobre a desapropriação de
terras à margem das rodovias e ferrovias, como primeiro passo
decisivo para a reforma agrária, e sobre o tabelamento dos aluguéis,
que era um golpe de morte na exploração dos proprietários inidôneos.
Os adversários tremeram nas bases - a profusa propaganda contra,
as velas católicas mandadas acender, em sinal de protesto e luto,
nas janelas indignadas, mais um ponto facultativo estadual decretado
em cima da hora para esvaziar a cidade, o recurso da paralisação
de certos meios de transporte na populosa Zona Norte e um que
outro sino dobrando mais corajosamente a finados, tudo não parecera
ter dado resultado e a praça transbordara, febril, ululante, desafia
dora. Dr. Fifinho não escapou à tremura e interpelou Vasconcelos,
a quem elegera seu oráculo político na desorientadora emergência :
- Tinha gente que não era brincadeira, meu velho ! Falaram
grosso ! Estou vendo as coisas feias. O decreto sobre os aluguéis é
fogo! E prometem outros . . .
- Ora, não se afobe, homem de Deus ! Os decretos que vão para
aquela parte! . . . Tenha fé! Tenha esperança! Só peço que não
tenha caridade na hora H . . . Com vermelhos não há que ter cari
dade. É fazer como eles fazem onde põem as garras . E acalme-se,
repito. Não estamos dormindo de touca . . . O tempo da chupeta já
acabou. Espere pela volta. Vai ter volta, já te disse e repito. E vai
ser de lascar! - Riu : - Escolheram mal o dia . . . Sexta-feira, 1 3 , é
dia de azar . . . Vão pular que nem cabritos !
Dr. Fifinho era supersticioso, mas esperou arrefecido, algo desa
nimado, vendo o alvoroço bancário, o retraimento dos seguros, vendo
-
o dólar subir a alturas nunca vistas, as cotações descerem aos tram
bolhões na Bolsa de Valores - ele que tinha um monte de ações
próprias e conjugais ! - vendo o decreto sobre aluguéis ameaçando os
seus quatro apartamentos alugados, e com os inquilinos passando di
nheiro por fora do contrato, desânimo que transmitiu à secretária : -
Vamos entrar pelo cano ! - dando tratos à bola para o caso forçado
de adesão, que tinha que ser honrosa. E reencetou o intercâmbio
camaradesco com Oripes, o contínuo :
- As reformas são necess árias . . . Temos que vencer a barreira
do subdesenvolvimento . . .
- É sim, senhor.
- As condições do povo têm que ser melhoradas sem delongas .
255
Combater o analfabetismo, elevar o seu nível de vida, acabar com
as favelas . . .
- :É sim, senhor.
Há muita miséria! muita miséria mesmo!
- É sim, senhor.
- O Papa já definiu claramente a sua desassombrada postçao
no grave problema social e os nossos bispos já estão trabalhando
ativa e corajosamente em prol das classes menos favorecidas . . .
- f: sim, senhor.
Dr. Fifinho desistiu - daquele mato não saía coelho ! Seguramen
te fora ao comício . . . Quem não fora? Estava duro de gente! E
ordenou :
- Um copo d'água, Oripes . Mas bem gelada!
A reação, porém, não dormia de touca, como Vasconcelos cate
draticamente anotara. Passados os primeiros momentos do impacto, a
confiança voltou, os ânimos se revigoraram e se arregimentaram, e
um movimento redentor começou a ser freneticamente articulado -
imensa passeata de repúdio cristão à penetração comunista na cúpu
la do governo, na administração em geral, nas autarquias, sindicatos
e, pior que tudo, no seio da tropa, passeata cognominada um tanto
extensamente Desfile da Cruz e da Família pela Liberdade, no êxito
da qual Dr. Fifinho não confiava nem um tico, apesar dos crescentes
e públicos pronunciamentos favoráveis das mais ativas ou arquivadas
personalidades :
- Não vai haver . . . Não há condições . :É conversa fiada. Quem
tem peito? - E acrescentou : - São uns poltrões ! - como se fosse
um poço de coragem.
A secretária corroborou nos reais temores :
- Estão com tudo, Dr. Rufino ! Não vai ser mole, não . . . As
armas estão com eles !
O contador-geral não é de idêntico parecer :
- Você se engana, menina! - mas, transparentemente, se dirigia
era ao patrão tremelicante. - Pura ilusão ! As Forças Armadas estão
fiéis à Democracia. Mormente a Armada.
Dr. Fifinho irritou-se :
- Não vai me dizer que sabe d e fonte limpa . . .
O contador-geral conhecia o seu degrau na escada :
- Perdão, Dr. Rufino ! :É uma questão de ponto de vista meu. E
oxalá não esteja errado !
E na espera, a Semana Santa chegou, senegalesca e agitada. Logo
na Quarta-feira de Trevas, a família dispersou conforme vinha sendo
da praxe nos últimos anos. Ana Lúcia foi para a vivenda de uma
amiguinha em ltaipava, com campo de vôlei e piscina - o filho do
almirante iria para uma casa de campo ao lado ; Rufininho bateu para
Cabo Frio, muito em foco com a presença de Brigitte Bardot - andava
começando a se interessar por pesca submarina e comprara alguns
256
apetrechos caríssimos ; Heitor aceitou o convite de um colega musical
e guedelhudo, que tinha chalé no Alto da Boa Vista, p ara ensaios
gerais do conjunto e composições de parceria; Iracema aproveitou a
oportunidade para p assar uns dias com a irmã viúva - Moema -
na G âvea, uma casa tão triste que, segundo Ana Lúcia, bastava a
gente pôr o pé na porta para imediatamente chorar! Dr. Fifinho é
que resolveu ficar no domicílio mesmo, advertindo que a hora era
grave e de sacrifícios, pretextando obrigações contraídas com o Vas
concelos - para a boa causa, frisava - e enfiou-se praticamente dia
e noite no j eitoso apartamento de Aldete, que estreou uma bonita série
de baby-dolls, já descuidado a respeito da empregadinha, que s e mos
trara nada vigarista, até rigorosamente discreta, chamando-o respeitosa
e amiudadamente de Dr. Rufino - vej a como a gente pode s e enganar!
E foi no adorável recanto, chupitando o seu uísque, que usava só puro
com gelo, Aldete tão candidamente recostada no divã, lembrando-lhe
um quadro que vira não sabia em que raio de museu! foi naquela paz
que a indisciplina dos marinheiros do Arsenal o apanhou . Desarvo
rado, procurou telefonicamente Vasconcelos, e não foi fácil localizá-lo .
Afinal, encontrou-o numa mesa de biriba a cem cruzeiros o ponto, na
residência do Manuel Inácio, c avaleiro lusitano e um dos baluartes
do truste dos antibióticos . O dínamo da Acc é vivo :
- Começou a derrocada! E inventada por eles mesmo s . As Forças
Armadas não podem aceitar de j eito nenhum a quebra da hierarquia
e da disciplina. De j eito nenhum ! É assunto basilar ! Sem hierarquia
nem disciplina não há Forças Armadas ! Não há, aliás , nada! É o
coringa que nós esperávamos para fazer a canastra . . .
Tranqüilizou-se, verdadeiramente tranqüilizou-se - ótimo ! largou
o fone e virou-se para a amante, que se conservara na mesma doce e
grácil posição :
- A inana vai começar!
A distinta não olvidara as compridas conversas politizadoras do
impetuoso aviador civil - onde estaria o bacana àquela hora? - e
s orriu :
- Vai . . .
- Se vai . . . - e Dr. Fifinho, em cuecas , as per'las finas e arquea-
das , o suor escorrendo pelo peito com pêlos já grisalhos, ingenua
mente principiou a explicar.
Na Sexta-Feira da Paixão, e Zulmira correra as sete igrej as da de
voção p ara beij ar o Senhor Morto, parecia tudo debelado ; o Presi
dente viera de São Borja, para onde se fora passar a Semana Santa,
e resolvera a parada; a panela, porém, fervia por baixo do pano, tanto
assim que se viu obrigado a recuar logo em s eguida em determinadas
decisões iniciais , o que equivalia a meia derrota ante os galões feridos
das três armas . E no s ábado de Aleluia, Dr. Fifinho, encafifado com
o desfecho da insubordinação da maruj a, mas certo de que a inana
257
continuava, foi levar à Aldete o seu ovo de Páscoa, sob a forma retan
gular e verde de um chequczinho nada desprezível :
- Está contente?
- Contentíssima! - e bateu palmas , quas e infantil . - Você é
uma cois a !
- Q u e coisa? - riu.
- Um anjo caído do céu !
O varão mostrava-se generoso e estendeu à discreta empregadinha
a sua liberalidade p ascal - a virtude recompensada! - uma vistos a
258
resistência, prontamente sufocado . Tudo acabou . . . Surgiu um novo
B rasil, um B rasil zero quilômetro, conforme afirmavam os vencedores
- s em um tiro, sem uma gota de sangu e derramado, dentro da rotina
brasileira. E de Norte a Sul, então, os sindicatos foram varejados ,
houve alguns incêndios e empastelamentos, as prisões não tiveram
conta - o aviador civil, apanhado no Sindicato dos Aeroviários, ficou
incomunicável e Aldete desesperava-se, b anhada em pranto de dor e
raiva - a denúncia passou a ser moeda de larga circulação, o medo
instalou-se em milhões de corações, e já se falava em cassar mandatos
e direitos políticos e o Alto-Comando é que regia tudo soberanamente.
O Desfile da Cruz e da Família pela Liberdade, que andara para ser
transferido ou cancelado, foi monumental, com chuvisco, céu pesado
e Hino Nacional, meio milhão de salvadores da pátria, convictos ou
aderentes não importa, mas meio milhão, o que forneceu ótima pano
râmica para as objetivas da reportagem - e tome sinos , tome foguetes ,
tome lenços brancos, tome buzinas e sirenes , tome chuva de papel
picado tombando dos arranha-céus como na Broadway!
Dr. Fifinho recolocou Vasconcelos no trono da sua admiração - é
um crânio ! um cabra s arado ! um bicho de visão ! - e não queria
deixar de ser visto , de participar em carne e osso da marcha da
vitória :
- Todos nós temos que ir! - comandou em casa. - É um dia
único na nossa História! Ficamos livres do comunismo . - E repetiu
a fras e de um líder direitista : - Deus é bom!
Pela primeira vez a família se uniu, obedeceu coesa à sua voz, acre
ditando piamente que ele andara a par de tudo e de que muito
eficazmente cooperara para o feliz resultado .
- Ach a que devemos l evar velas? - timidamente perguntou Ira
cema, contemplando o discreto herói e liberta d a tremenda dor de
cabeça que a assaltara na confusão.
- Não . É exagerado - retrucou como um perfeito mestre-de
cerimônias .
É muito j eca! - acrescentou Ana Lúcia p ara fortalecê-lo.
- Tem toda a razão, minha filha! - aplaudiu ele. - É muito
jeca!
E foram todos, inclusive a curiboca Odaléia, dispens ada com mag
nitude :
- Vá com Deus ! Comeremos na rua. - E para os seus : - Hoje
a função é no Bife de Ouro !
Somente Zulmira não foi . O apartamento não podia ficar s em nin
guém - os ladrões andavam à solta, assaltando e matando. Fechou
bem as portas , certificou-se que estavam bem fechadas , esteve um
pouco à j anela vendo o povo passar, entre risos e aclamações, depois
recolheu-se ao quartinho, onde a imagem de São Jorge, pavorosa,
coitada! tinha destacado lugar, e, mais cedo do que costumava, des
fiou o ros ário, que Dr. Fifinho trouxera de Roma, como era hábito
259
noturno . E dormiu com o coração em paz - cedinho teria que ir à
sua miss a.
260
quartos , todos com chuveiro, ponto predileto dos caixeiros-viaJ antes
que percorrem a zona, o cinema-teatro bem pouco visitado por com
p anhias itinerantes, uma concha acústica onde por vezes galharda
mente se exibe a B anda Filarmônica Carlos Gomes, regida pelo maestro
Fidó, conspícuo continuador da saudosa batuta do maestro Picorelli,
italiano de n ascimento e sapateiro de profissão ; e ao centro, cercada
por redondo canteiro de agressivas coroas-de-cristo, ergue-se a herma
de um notável e extinto chefe político talhada em bronze imortal . Fa
moso é o Hospital Santa Rita de Cássia, que po ssui a mais moderna
aparelhagem de raios X, adquirida diretamente nos Estados Unidos,
Meca de obrigatórios e algo desgraçados diagnósticos em vinte léguas
ao derredor. Famosos são o Mercado Modelo e a Estação Rodoviária,
tais como a Matriz, em estilo moderno. Famoso é certo bairro resi
dencial à sombra da pedreira, bairro dos potentados, é claro , império
do luxo arquitetônico, com ousadias modernistas em meio aos bangalôs
e mais de dez piscinas rigorosamente particulares . Famoso é o seu
parque industrial, que já dá trabalho a cerca de oitocentos operários
e empregados diversos : a fábrica de pregos, a usina de açúcar, a
fábrica de macarrão, a fábrica de balas , a fábrica de papelão, a fábrica
de tecidos de algodão, a serraria, a olaria, a fábrica de cachaça Sete
Estrelas , um primor de pureza, tida e h avida como inigualável aperitivo ,
para só falar dos principais estabelecimentos.
Essa eloqüente grandeza industrial não se criou de uma hora para
outra - foi paciente e refletidamente construída em quase duas dé
cadas . Iniciou-se por ocasião da Segunda Grande Guerra, quando o
clarividente pioneirismo de alguns capitalistas locais , antes inteira
mente dedicados a hipotecas e empréstimos sob promissórias a juros
unanimemente considerados escorchantes, dotou a paróquia com a
fábrica de pregos, comprovada a escassez do material no mercado
estaduano . Veio depois a usina de açúcar, após descobrir-se que as
aprazíveis várzeas do Passarinho, além de magníficas para a caça de
capivaras e galinhas-d'água, eram propícias à cultura da cana e os
extensos canaviais daí em diante vieram, em certos trechos, disciplinar
a tropical e desordenada paisagem. Seguiu-se a fábrica de macarrão,
quando um inventiva cérebro paroquiano imaginou reduzir o preço da
manufatura, sem diminuir o da venda, ajuntando uma alentada porcen
tagem de farinha de mandioca ao trigo importado, batizando o exce
lente e patriótico produto com o nome comercial, registrado, de . M a
carrão Vitória, em iniludível homenagem aos Aliados, e cujo consumo
rapidamente se estendeu às cidades e vilas vizinhas . O mesmo inven
tivo cidadão, aliás natural de Trás os Montes, montou a fábrica de
balas Passarinho, coloridas como o mais colorido beij a-flor e delícia
da gurizada roceira, habilmente aproveitando a produção da usina
açucareira, da qual os cunhados do idealista eram sócios majoritários
e ele mesmo tinha lá uns cobrinhos . E ano não se pass ava que nova
indústria não se incorporasse, sempre dos capitais dos mesmos c ava-
261
lheiros, até atingir a plenitude fabril que esmagava de invej a os outros
centros urbanos da região e repercutia vantajosamente por todo o
Estado e até fora do Estado como é o caso daquela revista carioca que
dedicou oito páginas de ilustrada louvação à terra guarantimbense,
mediante módica subvenção .
Quem não quis er desagradar a um guarantimbense, j amais diga que
Guarantimba é quente no inverno e quentíssima no verão - fere pro
fundamente os s entimentos, provoca reações até pouco corteses , tão
s eguros estão da amenidade do clima. Mas dá-se que esta condição
termométrica do plano s enegalesco faculta tanto uma certa modorra ao
meio do dia, responsável pela imens a quantidade de redes, quanto
uma fácil esquentação de cabeças em assuntos políticos , que em épocas
venturos amente pass adas tinham muita solução pelo ronco dos b aca
martes . E o parque industrial, embora trazendo prosperidade e re
nome para o burgo , veio contribuir para que as cabeças mais se
esquentassem, pondo em jogo aberto a questão social. O que era p ací
fica situação patriarcal passou, paulatinamente, a ser agitação antipa
tronal. A inquietação entrou a lavrar no s eio do proletariado, aumen
tou, tomou perigoso caráter reivindicatório . Não adiantou a artimanha
de fundar a Cooperativa 1 .0 de Maio, que barateava o feij ão e a
carne-seca do proletariado . Não adiantaram os panos quentes do Lac
tário Isabela Mendonça, que entrou a distribuir graciosamente leite
às criancinhas, cujo altíssimo índice de mortalidade era resignadamente
recebido como vontade do Céu. Não adiantou dotar de arquibancadas
condignas e de perfeito gramado o campo do Esporte Clube Operário
- o glorioso ECO ! - nem de se contratar no Rio , para o adestra
mento dos jogadores, os bons ofícios do técnico Ramirez, que já fora
campeão em Buenos Aires . Nada adiantou porque Genésio Gra
macho, arvorado em agitador vermelho, acendia os ânimos dos ope
rários tal como um abano mantém vivas as brasas de um borralho .
Mulato disfarçado, filho n atural de um fazendeiro que já velho s e
mudara para o Paraná e nunca m ais s e soubera dele, Genésio Gra
macho tinha a pinta de condutor de massas - verbo fácil, ação sub
reptícia, capacidade de lidar com o zé-povinho . Trabalhar mesmo,
nunca trabalhara - vivera de biscates ; concluído o curso ginasial,
prestara s erviços redatoriais à situação, muito fluente e metafórico
nos discursos, alistara dezenas de eleitores que mal s abiam garatuj ar
o nqme, conhecera o município palmo a palmo, acompanhara os chefes
em certas visitas à capital do Estado, onde conseguira fazer amizades,
e assim facilitava as gestões dos mais broncos ou desaj eitados . Pas
sado para trás em certas pretensões a um cargo de fiscal de obras
públicas, que acabou s endo dado a um primo do Prefeito, rompera
com a situação e, aproveitando o crescente aumento do proletariado,
pus era a defender-lhe as causas e necessidades, incentivando os sin
dicatos, aos quais conseguira imprimir mais vida e eficácia, e em pouco
agia como verdadeiro repres entante da pobreza.
262
- Este sacana está precisando de entrar numa surra ! - prometia
o líder das classes conservadoras , investido pela segunda vez no cargo
de Prefeito, o popular Zéfredo, José Alfredo de Mendonça, neto do
Mendonça do Largo .
A iniciação de Zéfredo, temos que dizer, n ão fora política, fora
esportiva, relegando os livros do ginásio pela bola . Agilíssimo no
tratamento da pelota, tornara-se em invencível atacante do Olímpico
Atlético Clube, terror dos adversários do Vale do Passarinho, até que
um beque do Independente, de Varzeópolis , aplicara-lhe tal sarrafada
que o alij ara da prática do esporte. E encerrada a carreira futebolís
tica, não tendo outras aptidões , valeu-se do nome de família e inteira
e devotadamente se dedicara à política de campanário .
Prometia a surra, mas não a cumpria, apesar dos contínuos ofere
cimentos de Calambau, pardavasco e guarda-costas , com alto prestígio
nas pensões alegres da cidade . É que os tempos haviam mudado, os
bacamartes haviam sido encostados, o poder do povo ganhava altura,
amparado por leis trabalhistas, estribado em tribunais que nem sem
pre era possível corromper - precisava-se agir com calma. E Genésio
arrotava força nos cafés da Praça Rui Barbos a, nas rodinhas do bar
bilhar, nos sindicatos cada dia com mais associados . Conseguida com
esperteza, tinha nas mãos uma máquina tremenda - A VOZ PO
PULAR - principalmente depois que metera na redação uma rapa
ziada meio literária e totalmente desabusada, que não se conformava
com o reacionarismo dos donos da cidade e insuflava greves nas colunas
do jornal. O GUARANTIMBA, folha oficial da Prefeitura, sem dire
tor competente, com dois redatores fossilizados , sem a publicidade que
o outro angariava, com minguados assinantes , não podia oferecer
resistência à oposição firme de A VOZ POPULAR. Na última eleição
quase iam perdendo. Perderam mesmo, e assustadoramente, na sede do
município - se n ão fosse o dinheirão q ue derramaram em Guarantá
e Limoal, mais a pressão que com o subdelegado exerceram em Gua
rantindiba, teriam entrado pelo cano ! Uma sucessão de desgraças des
pej ava-se em cima deles . O 1 3 .0 salário - aquela pouca-vergonha !
- esvaziava os cofres . De meia centena d e processos instalados contra
empregados, ou pelos empregados, e recorridos ao Tribunal Superior
do Trabalho, no Rio, não ganharam um só! e ainda foram esculachados
por um ministro ! Do Imposto de Renda caíra, como chuva de gafa
nhotos, uma série de autos de infração, que o Delegado local, amigalhão
na gaveta deles, não conseguira evitar e foi uma bombada de mais
de três milhões em multas ! Os domingos, quando saía A VOZ PO
PULAR, vinham sendo dias de desespero para Zéfredo, em parti
cular, e para os correligionários em geral - o artigo de fundo era
de arder! os ferinos e ridicularizantes sueltos de deixar todos zonzos !
E como s e não bastasse, nos últimos meses , pontualmente quinzenal,
estava sendo distribuída, gratuita aos operários e a quem mais qui
sesse, A AÇÃO DEMOCRÁTICA, pasquim de quatro páginas ferozes ,
263
redigido por jovens conterrâneos que estudavam no Rio, cotizados p ara
imprimi-lo, turma vermelha que esclarecia o proletariado, denunciava
explorações, ditava diretrizes e zurzia as classes produtoras de Gua
rantimba, não poupando nem a famílias de alguns , como aquela insu
portável insistência com que s e insultava a cunhada do deputado
estadual Magalhães, neto do Magalhães do grupo escolar, reconhecida
mente dadivos a.
E se as coisas andavam pretas, mais pretas ficaram quando, depois
do Plebiscito, o Presidente Jango deixou-se envolver completamente
pelas correntes extremistas , cercando-se de declarados e manjados
comunistas, como toda gente boa de Guarantimba sabia. Ameaçavam
a segurança do anonimato bancário, davam mão-forte aos sindicatos,
os dissídios coletivos eram concedidos aos montões , acenavam com
a Reforma Agrária, que retalharia os l atüúndios, ora a força, ora a
preço de mel coado, formavam-se Ligas Camponesas e Grupos d e
Onze, treinados por agentes cubanos , para intimidar os proprietários
rurais, invadir as suas plantações , chaciná-los sem piedade ; a s ar
gentada se assanhava, até certos padres andavam de braço dado com a
canalha comunista - um fim de mundo !
Mas se pensavam que o democrático povo de Guarantimba i a
entregar a rapadura assim s e m mais n e m menos, estavam muitíssimo
enganados ! Zéfredo recebera precisas informações e determinações
superiores - organizava-s e a reação e para valer ! Que se preparasse
também . E começou a fazê-la com excitação . Percorreu o município
se entendendo com os alarmados chefes políticos e fazendeiros, abriu
listas de socorro urgente e com o produto delas comprou e distribuiu
armas , mobilizou gente. E como a rádio düusora estava nas suas
unhas , jamais os alto-falantes, multiplicados pela cidade e pela zon a
rural, rugiram mais fortemente contra o perigo vermelho, o assassinato
dos honrados pais de família, o estupro das damas, a violação das
donzelas, o assalto aos bancos, a desapropriação das casas, a profa
nação das igrej as ! E, depois duma demorada conversa com o vigário ,
pôs na rua uma procissão, que, com pelotões de quatro fiéis de vela
acesa na mão, ia da igreja do Rosário até a Estação, extens ão que
levou o advogado Oliveira, discretamente incluído entre os adver
sários , a comentar, coçando o queixo :
- É povo que não é brincadeira ! Não é mole derrubar tantos
séculos de misticismo e servidão .
Em contrapartida, Genésio Gramacho promovia passeatas e comí
cios na Praça Rui B arbosa e na Praça Getúlio Vargas, que ficava perto
do Matadouro, p araíso dos urubus, distribuía volantes conclamando
o povo a se reunir contra os usurpadores, e recebia apreciáveis ade
sões, mantinha os sindicatos em reuniões permanentes , organizava
brigadas de choque e comissões estudantis - a Escola Técnica d e
Comércio estava toda com e l e - enchia o ar de foguetes retumbantes
264
a cada notícia alvissareira que chegava do Rio, epicentro dos nacionais
acontecimentos .
Zéfredo, recebendo um misterioso telefone de São Paulo , para l á
incontinenti s e dirigiu, acompanhando-se d o pardavasco Calambau, e
com ele s e revezando no volante do Aero-Willys . Voltou logo, de
ânimo erguido, com um rol de p rovidências, muita esperança de b reve
vitória, pois estava se tramando uma conspiração já com francos e
decididos apoios, e mais a informação de certa lista de fuzilamentos ,
apanhada numa devassa que a polícia secreta p aulistana fizera num
foco esquerdista.
- O "paredão" irá funcionar se não arrebentarmos com esses
miseráveis ! - declarou enfaticamente à grei reunida no s eu escritório.
- Vi a lista. São páginas e páginas .
- Leu toda?
- Não, é claro ! Seria mesmo que ler uma Lista Telefônica do
Rio de Janeiro . . . Mas dei uma olhada geral e demorei-me no que
nos toca diretamente. É gente pra burro !
- Eu estou na lista? - quis saber o deputado estadual Maga-
lhães, não disfarçando o egoísmo e o temor.
Foi impiedoso e s arcástico :
- Exatamente na letra M .
O nobre representante d o povo guarantimbense sentiu u m arrepio
correr-lhe pela espinha, bastante flexível .
265
E não brincava mesmo . Estava feroz. Empastelou A VOZ PO
PULAR, quando a Rua Sete de Setembro assistiu à crepitante fogueira
de alguns cacarecos redacionais e de um monte de papelório, e, levado
pelo mesmo delírio incendiário , vasculhando a Livraria e Papelaria
Progresso, incinerou uma centena de livros que considerava subver
sivos ; interditou a Escola Técnica de Comércio , fechou os sindicato s ,
dissolveu a s brigadas de choque, os Grupo de Onze, as comissões de
estudantes ; entendeu-se com os diretores das fábricas, que despediram
sumariamente um respeitável lote de operários e empregados que lhes
davam dores de cabeça, distribuiu homens armados por vários pontos
e estabelecimentos da cidade, policiou as estradas de rodagem, pintou
o caneco ! As prisões foram numerosas e sem resistência, exemplar
mente espancados vários agitadores mais ativos e odiado s . O marce
neiro João Almeida Militão protestava inocência, o tecelão Xanduca,
tão exaltado antes, incitador de tanta greve, caiu em pranto, aj oelhou
se pedindo clemência, e ambos foram arrastados para a Cadeia, cujo
deplorável estado de conservação, uma verdadeira pocilga, não con
dizia com os foros civilizados de Guarantimba. Mas todos os encar
cerados eram peixes miúdos em relação a Genésio Gramacho. Pre
cisava pegá-lo logo - tinham contas a ajustar!
Não foi fácil, embora a .:: ::: n úncia rolasse franca, e somente ao ter
ceiro . dia de incans ável procura era encontrado - estava escondido
na casa de Neco Fogueteiro, que havia caído no mato aos primeiros
minutos da derrota . A mulher de Neco, barrigão de oito meses , botou
a boca no mundo, levou uns encontrões , acabou s e calando e o
homiziado foi conduzido para a Cadeia, levando no meio dos impro
visados patriotas o ar majestoso de um Tiradentes sem barbas .
- Agora é que vamos ver se você é macho só no nome ! - gritou
lhe Zéfredo . E como precisava desmoralizá-lo completa e publicamente,
virou-se para Chico Prata : - Arrume um penico .
O penico rapidamente apareceu e o próprio Chico Prata, crioulo
e carroceiro da Limpeza Urbana, encarregou-se de enchê-lo discreta
e moderadamente.
- Beba, filho duma égu a ! É mijo de homem !
Chico Prata riu, lisonj eado, e Genésio, que j á fora posto nu, como
os demais p risioneiros que se misturavam com os andrajosos detentos,
retrucou :
- Logo s e vê que não é seu . . .
Chico Prata escondeu a alegria da confirmação dos seus méritos
masculinos e Zéfredo enfureceu-se :
- Beba, cachorro !
O preso olhou-o com superioridade, não respondeu. E Zéfredo co
mandou :
- Calambau !
O pardavasco, que já esperava pela deixa, desceu o rabo-de-tatu
no lombo do agitador - lambada de chiar! Genésio gemeu e outras
266
se seguiram com mais vigor e pontaria. Lá pela décima, Genésio
arriou, desmaiado . Chico Prata atemorizou-se :
- Ele morreu, Seu Zéfredo !
O valente Prefeito não se alarmou :
- Água fria n este calhorda !
A água n ão era fria. Era uma água de abril em Guarantimba -
morna. Mesmo assim deu para despertar o desacordado .
- Bebe ou não bebe? - rugiu o ex-atacante do Olímpico Atlético
Clube. E repetiu, possesso : - Bebe ou n ão bebe? Bebe ou n ão bebe?
Perdido por perdido, Genésio Gramacho fez valer a velha honra
jamais enxovalhada e, pelo menos, seria um exemplo p ara os pósteros
guarantimbenses :
- Dá pra sua mãe!
Entre os presos correu um contido frêmito de orgulho - era
machão de verdade ! O algoz estava lívido :
- Mais rabo-de-tatu, Calambau ! Acabe com este desgraçado !
Neste exato momento parou uma viatura à porta da Cadeia. Era
um jipão com chapa branca da GB. Desceram três oficiais , farda do
Exército, farda de campanha, armados, um deles com metralhadora
na mão pronta para ser descarregada. Subiram a escadinha de p edra,
entraram marcialmente na sala, quando Genésio, que levara mais
umas cinco forçudas chibatadas , caiu esticado, duro, a fio comprido,
no chão gasto e sujo de ladrilho, as costas roxas de s angue pisado .
O mais alto dos oficiais avisou com voz forte :
- Ao menor movimento levam bala!
Ninguém se mexeu e não eram poucos os que estavam lá. Ele
ordenou :
- Tenente Walfrido, desarme este homem .
Zéfredo deu um passo à frente :
- Sou o Prefeito !
- Não estou perguntando quem é. Aqui só se fala quando eu
perguntar. Desarme-o, tenente.
Zéfredo foi des armado e estava meio tonto com o acontecimento .
- Tenente Adelmar, desarme este cabra aí de chicote.
Calambau foi despojado do trabuco e do chicote. O militar dedicou
se a Genésio caído :
- Você aí, socorra este homem.
A ordem era para Chico Prata, que ainda estava parvamente com
o penico n a mão . Largou o vaso e debruçou-se sobre o ferido com
carinho subitamente m aternal :
---; Genésio, Genésio, sou eu . . .
E o prepotente intruso dignou-se, então, a fazer a sua apresentação :
- Capitão Arquimínio Dourado. - E apontando os companheiros :
- Tenente Walfrido Matoso e Tenente Adelmar Siqueira Lemo s . Por
ordem do Alto Comando Revolucionário . Houve informes sobre as
inúmeras i rregularidades e tropelias verificadas na cidade e aqui
267
estamos encarregados de restabelecer a ordem, impor a legítima auto
ridade revolucionária, tranqüilizar a população, garantir os direitos
dos cidadão s . A Revolução - e enchia a boca - n ão pode admitir
tais processos indignos de homens de bem. Veio precisamente para
s alvaguardar os Direitos Humanos. Será que não têm vergonha dos
inqualificáveis atos que praticaram?
Não teve resposta e prosseguiu :
- Quem comanda o destacamento policial?
Cabo Galo, de crista baixa, adiantou-se :
- Eu, capitão .
- Perfile-se ! E abotoe a túnica !
Cabo Galo perfilou-se, abotoou-se . O capitão perguntou :
- Como se chama?
- Galo . Cabo José Galo .
- Acho que é galinha. ( Houve risos espremidos . ) Quantas praças
tem?
Oito .
Só vejo quatro .
Estão de s erviço na rua. Recebi orden s .
Imagino q u e serviço ! . . . Quero-os todos aqui sem demora.
Para receberem ordens decentes . Quem dá ordens agora aqui sou eu !
E ai de quem piar!
- Sim, capitão. Vou chamá-los .
- Não há um sargento instrutor no Tiro de Guerra? Onde está?
Zéfredo aventurou-s e :
- Está detido na Prefeitura. Atuava como elemento subversivo .
Achei prudente detê-lo .
- Detido? ! . . . Quem é você para deter um sargento do Exército? !
Quero a imediata presença dele. Irá assumir o comando do destaca
mento policial . Você, cabo, ficará à minha disposição. Anda, vai em
frente !
Cabo G alo partiu como um pé-de-vento . O capitão continuou man
dando :
- Vejam as roupas dessa gente toda . Não quero ninguém pelado
aqui . Nem um minuto mais ! Bonito espetáculo ! Parece um strip
tease! Vamos, cabra! - e dirigia-se a Calambau - vá tratando disso .
Na prisão só fica quem estava cumprindo pena. Soltem o resto . Onde
está o escrivão?
Juruena apresentou-se, borrando-se de medo :
- Sou eu, capitão. Antônio Juruena, um seu criado .
- Tome o nome de todos e mande-os embora. Depois serão cha-
mados para interrogatório .
Calambau não p erdera um segundo - apareceram as roupas , a
porta de ferro do xadrez fora aberta, os presos começaram a se vestir,
procurando os s eus traj es misturados na pilha de roupas que o capa-
268
dócio jogara no chão . Zéfredo seguia-o, furioso, com os olhos -
mulatão de merda!
- Você aí, praça - e o capitão apontou um suado e espan
dongado soldado -, reviste este cabra.
Calambau parou como uma estátua e o soldado, um tanto timida
mente, foi tirando coisas dos bolsos dele - cigarros, fósforos, a car
teira de dinheiro, um canivete de duas lâminas . . .
- Dê a carteira e o canivete aí ao Tenente Adelmar. Estou vendo
que a carteira está recheada . . . Muito bem. Devolva os cigarros e
os fósforo s . Irá precisar . . . Muito bem. Agora trancafie este bicho
na solitária . Vai responder a processo por sevícias .
Genésio se reanimara, s entado fora, amparado por Chico Prata e
outro sujeito, num banco comprido e sem encosto, que havia a um
canto da sala, e com dificuldade vestira a calça. O Tenente Walfrido
falou :
- Não acha bom chamar um médico para examinar o espancado,
capitão? O estado dele é lamentável.
- Bem lembrado. Chame-se um médico . Atenderá o homem e
fará o laudo pericial para dar início ao processo. - Acercou-se do
banco : - Como é seu nome?
- Genésio Gramacho.
- Vai haver justiça, Genésio Gramacho. - E, voltando-se, emen-
dou : - E não há delegado nesta terra?
Macedinho, cumpincha de Zéfredo, esclareceu :
- Quebrou a perna e umas costelas há uns quatro dias , num
desastre de jipe, e está no Hospital engessado .
- Pois fique lá. E o Juiz de Direito?
É o Dr. Estêvão Costa - informou Macedinho . - Está em
casa.
Pois vá lá intimá-lo para comparecer à Prefeitura com urgência.
Fique nos esperando . Lá chegaremos. E que ele vá convocando os
vereadores para um sessão extraordinária. Sei que houve cassados .
Continuarão cassados.
Zéfredo respirou aliviado :
- Eu cassei-os dentro dos dispositivos do Ato Institucional .
- Cale-se !
Zéfredo enfiou a viola n o saco e o capitão caprichou no pausado :
- Os suplentes serão empossados e o vice-prefeito assumirá a
direção da Mesa. - Encarou severamente Zéfredo : - Você não é
mais Prefeito . Está preso por determinação do Alto Comando Revo
lucionário . Por muito favor ficará detido na Prefeitura. Para lá irá
conosco .
Houve sorrisos , Zéfredo desej ava a morte . Aí chegava, esbaforido,
o s argento instrutor, já a par do extraordinário sucesso, contado e
aumentado pelo Cabo Galo no trajeto, e diante da Cadeia encontrava
um povaréu aglomerado, que rompeu a empurrões :
269
Pronto , capitão ! Sargento Cabral, às suas ordens !
Onde está o quepe?
Ficou em casa quando fui preso. Me levaram à força . Um
ato de violência! Para seu governo, capitão, h á outros detidos na Pre
feitura .
Fingiu-se surpreendido :
- Outros? ! . . .
- Sim. Estudantes e p rofessores do Ginásio e da Escola Técnica . . .
- E quem os vigia?
- Uma capangada que Seu Zéfredo arrumou em Limoal . Um
povinho triste. Mas que já ficou de pulga atrás da orelha quando o
cabo foi me s oltar . . .
- Pois que fiquem detidos mais um pouco . Lá iremos depois .
Tudo vai a s eu tempo. Nada de balbúrdias . Basta a confusão que
já houve. Quanto à capangada e aos mandantes , terão o seu prêmio,
o seu prêmio, deixa estar . . . - Buscou Zéfredo com os olhos esper
tos : - Você me saiu melhor do que a encomenda . . . - E prosseguiu
se entrosando com o sargento : - Mande buscar o quep e . E mande
trazer seu armamento também. V ai comandar o destacamento.
A alegria estampou-se na cara do inferior :
- Perfeitamente, capitão .
- Acho que dispõe de poucos homens . Precisamos de mais . Temos
que manter a ordem em todo o município . Não conhece pessoas de
confiança, que possam servir como voluntários?
- O Vespasiano, capitão . É pessoa de toda confiança.
- Que faz ele?
- É tintureiro .
- Chame o tintureiro, arme-o e que fique ao seu s erviço. Mas um
só é pouco . Não h á outros também capazes? Na rapaziada do Tiro
de Guerra não encontraria mais gente habilitada e leal?
- Sim, capitão, há rapazes muito bons soldados . O Luís Cláudio,
o Jacir, o Douglas, o Lelé Gonzaga . . .
- Então ponha todos em função . Distribua armas e munição . E
que aguardem ordens aqui do Tenente Adelmar. O policiamento ficará
sob a responsabilidade do Tenente Adelmar.
O médico chegava, de blusão, suadíssimo, examinou prontamente
Genésio .
- Capitão . . .
- Arquimínio Dourado .
- Capitão Arquimínio, o paciente não parece inspirar cuidados
maiores . Não apresenta sintomas de fraturas ou de lesões internas .
Contudo acho de bom alvitre interná-lo no Hospital para observação
menos perfuntória. O choque emocional foi profundo . E as equimoses
poderão ser tratadas para não doerem tanto .
- Tem toda a razão . Que seja internado . Mas quero o laudo
pericial com presteza, doutor. Assinado por três médicos .
270
- Constituirei uma junta, capitão.
- Obrigado. E mande o relatório logo em seguida cá para o
escrivão.
- Logo em seguida mandarei.
Genésio, amparado pelo médico e por Chico Prata, as pernas trô
pegas, corcovado, foi conduzido para o Hospital e, ao passar por Zé
fredo, deitou-lhe um olhar que o inimigo recebeu, humilhado, batido,
como mortal punhalada.
- Ufa! que calorzinho faz nesta terra! É de lascar! - exclamou
o Capitão Arquimínio indo se sentar na cadeira com almofada do
delegado : - Mas com calor ou sem calor, vamos às operações! Já
estão atrasadas . . . Tenente Walfrido vai com quatro praças emba
ladas à Companhia Telefônica. Antes de ordem em contrário, nenhum
telefonema para longa distância pode ser dado sem minha expressa
autorização. Quanto a ligações de fora não devem ser em absoluto
completadas, salvo se forem para mim ou para os tenentes . Que a
telefonista nos procure onde estivermos! Nem será difícil, creio .
- Em caso de qualquer desobediência ou relutância, capitão? -
perguntou o tenente.
- Prisão ou fogo ! Como achar melhor.
- Assim será.
- Bem. Deixe um soldado na Telefônica, que a seu tempo será
rendido. Sargento Cabral cuidará da medida. Depois o Tenente Wal
frido irá ao Correio e Telégrafo. As determinações são idênticas. Antes
da oportuna liberação, nenhum telegrama será expedido sem o nosso
visto . E os que chegarem passarão por nossa vista, antes de serem
entregues . Para desafogo e metodização do trabalho, acho mais prá
tico que tal incumbência fique inteiramente sob a sua responsabilidade,
tenente. Verá como pode fazer as coisas da melhor maneira.
- Não há embaraço, capitão. Resolverei o problema.
- Deixe um soldado lá também. Em seguida vá para a Estação
Rodoviária. Estão suspensas as viagens até depois de amanhã. Que
nenhum ônibus saia, mesmo vazio. Quanto aos passageiros que che
garem, sejam identificados na Estação. Explicando mais claramente :
a cada ônibus que chegue, faça-se a identificação rigorosa dos passa
geiros e que a lista sej a imediatamente remetida cá para o Sargento
·
272
dois para a função na Prefeitura, enquanto Tenente Walfrido ficará
aqui na Cadeia supervisionando as ações .
Banhados , barbeados e comidos, o Capitão Arquimínio e o Tenente
Adelmar às oito horas - e o calor não diminuíra com a descida da
noite - enquanto Tenente Walfrido ia para o plantão da Cadeia,
davam entrada n a Prefeitura, furando a onda de povo que na frente
do edifício murmurantemente s e acotovelava. O Juiz de Direito lá
estava, s afado da vida, esperando h á mais de quatro horas ! e nem
desculpas recebeu . Na sala da tesouraria, com sentinela na porta,
encontrava-se Zéfredo para ali enviado sob escolta, quando o capitão
deixara a Cadeia rumo ao Hotel, e com visíveis sintomas de completa
desmoralização . Quanto aos detidos, haviam sido liberados pelo Juiz
de Direito, a mando telefônico do capitão, após terem sido convenien
temente arrolados para futuras averiguações . A capangada azulara .
Na sala de sessões, o capitão foi tomando a palavra :
- Meus senhores : Não sei fazer discursos, s erei breve e objetivo .
Falta idoneidade e s erenidade ao Senhor José Alfredo de Mendonça,
que não herdou as tradições de seu ilustre avô, para exercer o cargo
de Prefeito . Que o Vice-Prefeito assuma a direção dos trabalhos . Re
considerando minha idéia inicial, recomendo que seja feita a revisão
das cassações efetuadas, assegurando a permanência dos injustamente
perseguidos e empossando os suplentes dos que foram realmente con
siderados corruptos e subversivos. Tudo tem de ser absolutamente
legal. Ponha depois em votação o impedimento do Prefeito . Vai ficar
sem imunidades para responder ao processo criminal por abuso do
poder e comprovada prática de s evícias . Que sejam iniciados os
trabalhos ! - comentou. - Eu e o Tenente Adelmar, como represen
tantes do Alto Comando Revolucionário, mais o Senhor Juiz de Di
reito, ficaremos de parte, como simples observadores e respeitadores
da Lei.
Em meia hora, os cassados haviam sido reconduzidos ao cargo,
menos um, que desaparecera, tendo sido convocado o seu suplente
presentíssimo, e Zéfredo perdeu o mandato por unanimidade .
O capitão levantou-se e pediu a palavra :
- Creio, Senhores , que a progressista Guarantimba inicia o retorno
à calma e ao bom-senso, de que se viu momentaneamente privada
por circunstâncias que s eriam inúteis enunciar. Pude de visu comprová
lo através do procedimento dos dignos representantes do povo, nesta
memorável sessão . Agora . . .
Aí tilintou a campainha do telefone que havia na mesa, no lugar da
presidência. Era para o capitão .
- Com licença - desculpou-se e p egou no fone que lhe estendia
o Vice-Prefeito . - Alô ! Alô ! É o C apitão Arquimínio. Como? O
general? Boa noite, Excelência . Um momento . - Tapou o bocal com
a mão, virou-se para a assembléia : - Senhores, queiram fazer silêa
cio . É uma comunicação .
273
Todos estavam mudos, olhos pregados no capitão, e mudos perma
neceram. Ele destampou o fone : - Pronto, meu general. Podemos
falar . . . Sim . . . Sim . . . Perfeitamente, meu general . . . Operação
cumprida dentro do esquema traçado pelo Alto Comando . . .
Tenente Walfrido falava-lhe da Telefônica, tendo por ouvinte a
telefonista da noite, quarentona de óculos e cabelos frisados :
- Percorri toda a cidade, capitão, como era da minha atribuição.
Reina a mais completa ordem. Todas as fábricas que tinham serão
estão com tais serviços normalmente restabelecidos. Aqui na Tele
fônica não foi feita nenhuma ligação de fora ou para fora . . . ( A
telefonista balançou a cabeça afirmativamente. ) E os telegramas
chegados estão já com visto para serem entregues. Os a transmitir
aguardam a sua decisão, capitão . . .
E o capitão :
- A situação está dominada. Inteiramente dentro das determina
ções recebidas . Não comuniquei ao QG, pois ainda se processam
algumas ações e porque tivemos dificuldades com o transmissor.
Não . . . Pequeno imprevisto, general . . . Mas resolveremos o empe
cilho com presteza . . .
Tenente Walfrido :
- Quais são as suas determinações? Muito bem. Muito bem . . .
Entendi perfeitamente . . . Serão cumpridas . . .
O capitão :
- Não, general. Não houve reação. O povo é pacífico e com
preensivo. Sim . . . Sim . . . Absoluta receptividade. O que havia era
uma série de mal-entendidos e abuso do poder. E alguns elementos
reconhecidamente vermelhos estão na nossa mira . . . Sim, não esca
parão, general . . .
Tenente Walfrido :
- Sargento Cabral incorporou doze reservistas do Tiro. Bem . . .
Bem . . . Me parecem rapazes convictos do dever. Temos agora ho
mens suficientes . . .
O capitão :
- Sim, afastamos o Prefeito . O Vice-Prefeito entrou em exercício
( e o Vice-Prefeito apurou o ouvido ) com o senso de responsabilidade
que sabia lhe caber. A Câmara Municipal (e os vereadores redobraram
de atenção) agiu dentro dos melhores princípios democráticos. Exa
tamente . . . O Juiz de Direito ( e Doutor Estêvão Costa ficou de
orelha em pé) cooperou de maneira completa e eficaz. Como? Sim,
qualquer acontecimento extraordinário eu comunicarei . . . Não, não
precisarei de reforços. O Tiro de Guerra local apresentou-se maciça
mente para cooperar com a Revolução.
Tenente Walfrido :
- Então vou cumprir a recomendação . Compreendi perfeitamente.
Obrigado. Com a sua permissão, capitão, vou desligar.
O capitão :
274
- Não me esquecerei, meu general . . . Muito boa noite, Exce
lência . . . Tudo marcha normal aí? . . . É o que esperava . . . Aqui
também, como dei ciência. Agradecido, Excelência . . . Transmitirei
aos companheiros . . . Boa noite . . . - Pousou o fone e, muito seguro
de si, reencetou a falação : - Se fui simples e objetivo nas minhas
primeiras palavras neste recinto, objetivo pretendo continuar agora,
mas um pouco mais prolixo. O momento é de liberação nacional. Libe
ração e recuperação. Andávamos a ponto duma guerra civil, que as
Forças Armadas evitaram. Os brasileiros precisam urgentemente se
unir, superar os ressentimentos, levantar as energias e possib il idades
infindas, caminhar para um futuro radiante, que é o legítimo destino
de nossa Pátria! Precisam, sobretudo, ser práticos, realistas, positivos !
Guarantimba é um núcleo reconhecido como progressista e ordeiro e
tudo deve fazer para confirmar o elevado conceito de que desfruta.
O que passou, passou. - Elevou a voz : - Os culpados serão punidos
como exemplo! Mas os homens de boa vontade, e os porventura
iludidos, devem formar num exército único e forte para a crescente
grandeza da terra e para a crescente prosperidade de cada um de
tais soldados ! Vamos nos unir. A união faz a força! Devemos,
antes de mais nada, superar as divergências entre povo e classes
produtoras. O povo passa necessidades. A vida está difícil, temos que
reconhecer. (Algumas cabeças sacudiram afirmativamente . ) Não de
vemos pensar em esmola. Devemos pensar em socorro. Dar a mão
a quem precisa de amparo e proteção . Socorrer os irmãos menos
afortunados é dever cristão de todo cidadão probo e consciente e
não é outra coisa o que preconiza o Santo Papa João XXIII na sua
admirável mensagem de fé e de amor ao próximo . Proponho, por
tanto, como início dum amplo movimento de aproximação das classes,
a criação de um Fundo de Assistência Popular, cujas finalidades e
atuação serão motivo de conferências, entre os homens proeminentes
da cidade e a minha pessoa modestamente representando o Alto
Comando Revolucionário, cujo programa vai imprimir outro horizonte
aos problemas brasileiros. - Deixou o tom oratório, um tanto na
base do camelô, entrou no coloquial : - Para início de atividades,
organizemos uma Comissão da qual o Doutor Estêvão Costa seria o
Presidente e que começaria a angariar donativos . Há quem discorde
da escolha?
Ninguém se opôs. E ele :
- Muito bem. Rogava ao Doutor Estêvão que indicasse um cidadão
reconhecidamente idôneo para integrar a Comissão.
O Juiz de Direito deu uma olhada em volta e parou no vereador
Guimarães, idoso, encanecido, cirurgião-dentista, que não admitia no
poeirento consultório da Rua 1 5 de Novembro qualquer novidade
odontológica.
- Proponho o Doutor Anacleto Guimarães.
275
A aprovação foi geral e o dentista de broca de pé sacudiu a cabeça
satisfeito com o pronunciamento .
- Mas como uma boa Comissão deve ter três membros, em meu
nome e nos dos meus companheiros, indico a pessoa do Vice-Prefeito
para terceiro membro.
A aprovação foi outra vez geral .
- ótimo ! Entrego ao Doutor Guimarães a incumbência de ser o
Tesoureiro . Todas as quantias arrecadadas ficarão sob a custódia do
Doutor Guimarães . A Comiss ão percorrerá as fábricas , todas , e as
principais casas de comércio, somente as principais , faço empenho de
encarecer, salvo se outras , menores, espontaneamente se ofereçam.
Cada membro deverá obrigatoriamente passar recibo d a importância
doada, que servirá de documento hábil para efeito de justificação junto
ao Imposto de Renda. Se por acaso receberem em cheque, devem
descontá-lo logo . Doutor Guimarães terá, em livro especial e devida
mente rubricado, as entradas rigorosamente atualizadas e nominais ,
mas na Caixa não cabe nomes . - Subiu ao tom oratório : - O
dinheiro deve ser anônimo ! O que é dado para fins altruísticos n ão
pertence mais a quem deu, transforma-s e em bem comum, em gene
roso patrimônio a ser dividido pelos que, sem discriminações , neces
sitem ser amparados e com isso saneados estarão muitos campos de
conflito social que a ninguém interessam! - Retornou ao coloquial :
- Contudo a campanha da Comiss ão ficaria incompleta se não ape
lássemos para a cooperação das damas , cujo espírito caritativo e c apa
cidade de ação piedosamente achacadora, sej amos francos, são infini
tamente superiores ao s exo forte. ( Risos . ) Para pleno êxito do nosso
empreendimento, criemos, por conseguinte, um Comitê Feminino, que
poderia, a critério próprio, s e subdividir em vários outros, a fim de
mais p rontamente obter os resultados que almejamos . ( Alguns aplau
sos . ) Proponho para Presidenta do Comitê a Excelentíssima esposa
do Juiz de Direito .
- Infelizmente sou viúvo - declarou, compungido, o magistrado.
- Com mil perdões ! - e o capitão curvou-s e como se apresentasse
atrasadas condolências . - Então sugiro que a presidência do Comitê
recaia na s enhora do Vice-Prefeito . ( Palmas . ) Assessorada p ela
esposa do Doutor Guimarães e pela esposa do deputado Magalhães .
( Mais palmas . ) Creio que é um Comitê de escol. ( Ainda mais pal
mas . ) Caberia às damas conseguir com a sua gentil e infalível lábia
( Risos . ) gêneros alimentícios, remédios , brinquedos velhos, roupas
us adas e jóias . Quanta roupa usada n ão está atulhando inutilmente
armários e gavetas? Quantos brinquedos quebrados ou abandonados
p ela gurizada não estão atravancando quartos de guardados? Quantos
pares de brincos n ão ficaram reduzidos a um só, quantos anéis há nos
escrínios e que não mais s ão usados, quantas correntinhas e pulseiras
não estão partidas , quantos broches quebrados , quantas medaihas s em
a argolinha? ! . . . E tudo isso, que está esquecido ou superado, tem
276
valor. Verão que tem valor! Dentro de poucos dias faremos um primeiro
leilão, numa das belas praças da cidade, e a generosidade guarantim
bense poderá se evidenciar, arrematando tais berloques com espírito
filantrópico, numa emulação que só poderá ser bem vista aos olhos
de Deus . Os gêneros e as roupas conseguidas poderão ficar arma
zenados na casa do senhor Vice-Prefeito. Quanto às jóias, já que
s ão valores, modestos que sej am, ficarão entregues ao Doutor Guima
rães , devidamente arroladas em livro adequado . E agora, tendo dito
o que pretendia, peço desculpas se me alonguei demasiadamente e
vamos meter mãos à obra ! B o a noite, s enhores !
O Capitão Arquimínio conquistou a praça . O Comitê Feminino -
Dona Consuelo, Dona Maria da Glória Guimarães e Dona Estelinha
Magalhães - parlamentou animadamente com ele, traçando grandes
planos assistenciais , e foram dois dias de febril entusiasmo e arreca
dação . Doutor Estêvão Costa, Anacleto Guimarães e o deputado
Magalhães -=--- logo chamados de "Os Três Mosqueteiros" - arranca
ram dinheiro de quem podia e de quem não podia. A residência do
Vice-Prefeito parecia um armazém e Dona Consuelo mais despótica s e
mostrava; Doutor Guimarães suspendeu os clientes , n ã o tinha mãos a
medir, e Dona Maria da Glória não parava um minuto em casa. Na
noite do segundo dia, o capitão marcou o primeiro leilão, que seria
na Praça Rui Barbosa, o leiloeiro em palanque especial, circundado
de escoteiros , e o maestro Fidó, na concha acústica, regendo a Filar
mônica, também gaiatamente conhecida como "A Furiosa" . Para maior
brilhantismo, a Luz e Energia compareceria com a mais feérica ilutrJ.i
nação possível.
- Quero muitas lâmpadas coloridas ! - intimava o capitão .
- Vai tê-la s! - garantia o diretor da empresa, que assinara pol-
pudos cheques em nome dela c em seu próp rio nome.
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lá. A um quilômetro da cidade, encoste o fusca e espere. Lá irei,
não se preocupe com a demora. Saberá, então, o que irá fazer depois.
Tem algum inconveniente?
- Nenhum! - e os olhos de Genésio fulguraram.
- Então, vá em frente. E boca fechada, hem !
- Não precisa dizer . . . Boca de siri!
E logo o Tenente Adelmar foi enviado com recado para o Doutor
Guimarães - que aguardasse a visita ; iria procurá-lo entre 6 e 7
horas e que não saísse sem que ele chegasse.
Sargento Cabral! - chamou.
- Pronto, capitão !
- Hoje mande render a guarda das estradas mais cedo. Retire
o soldado da estrada de Varzeópolis . Vou fazer uma experiência.
Quanto à rendição dos homens na Telefônica, no Telégrafo e na Rádio,
deixe-a a cargo do Tenente Walfrido . Entendido?
- Entendido !
- Vou dar uma volta na Praça Rui Barbosa para ver como andam
os preparativos para o leilão . Combinaremos mais tarde o policiamento
da festança. Vai ser uma festança que deixará saudades . . .
O BILHE TE *
*
Publicado em Ele Ela ( 1 966 ) .
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passeadores, da ligação, foi mais uma vez à j anela - as árvores estavam
empoeiradas pela longa estiagem, a nesga entre os edifícios era uma
fresta para o mar e para o parque do Aterro, e nada da figurinha espe
rada, esguia, gentil, de fino andar. Voltou para o sofá-cama de afun
dadas molas, deu uma centésima olhada à velha pêndula, tão velha
e tão regular, incansável coração metálico que o acompanhava há
tantos anos. Seis horas e quinze já e ela tardava. Saía às cinco do
escritório no Castelo . Por mais difícil que estivesse o trânsito , meia
hora daria - s empre deu ! - para chegar ao apartamento de quarto
e sala, misto de ateliê, naquele recanto do Flamengo . Aquilo o irri
tava profunda e surdament e . N ão era a primeira, nem a s egunda vez
que acontecia . Vinha s e tornando quase uma constante. Que des
culpa daria desta vez? Não era ciúme, não se sentia passado para trás,
tinha absoluta confiança nela, mas agoniava-o aquela mudança de pro
cedimento que não conseguia explicar e que prenunciava uma nuvem
maior, que não trouxesse tempestade, talvez, m as que toldasse a clari
dade da sua vida - sim, Heloís a era uma luz para ele, como podia
ser um farol para o pescador perdido . Curtir, pacífica, as várias ,
quotidianas privações - as vendas eram escassas e mal pagas -,
não lamentava seus insucessos, confiava na sua vitória, ouvia entu
siasmada as suas compridas, exaltadas preleções sobre o que fazer
e como fazer, sobre temáticas e materiais , incentivava-o com calor, e
achava belas e honestas as coisas que pintava. Três anos se passaram
assim, mas ultimamente . . .
Afinal ela chegou :
- Olá, bem !
Nem quis consultar a pêndula para fixar a hora exata, como mais
um elemento para a sua secreta queixa e reprovação ; vencia-o a afli
ção de saber logo que desculpa esfarrapada ela trari a na ponta da
língua e contra as quais nada dissera até então - excesso de trabalho,
dentista, costureira, calista, convers a com uma amiga . . .
- Que houve?
- Na última hora, um monte de contratos para bater e xerografar
- e jogou a bols a sobre . a mesa redonda de j acarandá de múltipla
serventia.
Aceitou-a sem relutância :
- Mas aqueles desgraçados s ó têm contratos para bater n a hora
de s air?
- Nem mais, nem menos. São os cavacos do ofício .
- Devia reclamar. Não fazer. Você não é uma escrava!
- Talvez, quem s abe? Mas que adianta a liberdade sem o emprego?
- E ele fez uma tal careta de desprezo, que ela ajuntou, nsonha : -
Você me arranj aria o dinheiro que ganho? Arranjaria? Afinal n ão é
lá tanto assim . . .
- Não me venh a com ironias ! B em que podia arrumar outra
colocação menos . . . menos escravizadora.
280
- Talvez pudesse. Porém não s eria fácil . Tenho minha prática.
Há mais s ecretárias do que patrões . . . Melhor é ficar com estes
mesmos, aturando as chatices . E não só h á inconvenientes, fique
s ab endo . Há compensações também.
- Eu imagino que grandes compensações ! . . .
- Não precisa gastar tanta suficiência, meu filho. Ê inútil ! Eu cá
é que sei a linha com que me coso . Não sou tão parva que n ão avalie
as compensações. Afinal não foi o meu único emprego . Há uma
conveniência, especialmente, que você ignora : me respeitam!
Não que ela fos s e excepcional esgrimista, mas ele foi tocado no
ponto sensível :
- Tinha graça que ainda fossem conquistadores . Aí era hora de
eu entrar em cena!
Sabia-o de quanto era capaz - foi muito calma, quase meiga :
- Acha que me queixaria a você? Não ! Perdoe, mas não preci
saria. Sei me defender.
Ele embatucou - não ignorava o quanto era corajosa, séria, ciosa
dos seus deveres , inabordável a conquistadores baratos. Ela não deixou
o silêncio se prolongar - os silêncios s ão traiçoeiros . E, sem olhar
para trás, muito empertigada, encaminhou-se para o pequeno banheiro
muito desarrumado :
- Preciso duma boa chuveirada.
Tirou o vestido estampado , que precisava mandar para a tinturaria
- estava simplesmente podre ! Não houvera expediente extra nenhum,
por exceção até fora um dia em que tivera muito pouco s erviço, quase
uma pasmaceira. Às cinco horas em ponto saíra e ficara flanando pelas
ruas congestionadas, anestesiando-se com o enchimento sempre sedutor
das vitrines, dando uma olhadela na b anca do j ornaleiro, tomara um
refresco no Bob's, esticando a hora i nevitável de voltar para a casa
que há três anos era a sua. Tirou o soutien, mirou-se nua no grande
espelho pregado à porta - era muito magra, os seios pequeninos ,
as pernas demasiado finas -, tirou a diminuta calcinha, enfiou-se no
boxe de encardidos ladrilhos , colocou a touca de plástico - um
b anho frio a estimularia por certo .
Seu casamento fora mal sucedido, por culpa exclusiva do marido
- um aventureiro - e dois anos após estava desquitada, desquite
amigável e nunca mais soubera do ex-consorte, de quem não guardava
maiores rancores e que fora para São Paulo continuar sua visceral
carreira de tratantadas . Muito orgulhosa, recusara a pensão, mesmo
porque que pensão poderia esperar de tal traste? Ver-se livre dele
já era um ótimo n egócio - vão-se os anéis, ficam os dedos . . .
Como trabalhava, esforçou-se mais ainda, s egura de que no trabalho
encontraria paz, sustento, independência de ação, uma afirmação enfim
de personalidade. Mas a vida nem s empre se pode fazer sozinha.
Conheceu Oscar numa exposição .
28 1
Ele não expunha, mas com que aguda vivacidade e ironia criticava
o exposto! Com o dedo inquisidor apontava as imperfeições, os
canhestrismos, os truques, as escamoteações . Cada peça recebia o seu
quinhão depreciativo - a Arte tem que ser séria, pesquisada, calculada,
minha amiga, com o cimento da comunicação, porque a comunica
ção . . . E não parecia amargo mesmo. Ria com bons dentes :
- Está tudo errado, minha cara! São uns anjinhos todos eles, com
o olho nos marchands, mas na verdade na unha deles . . . Não s abem
nem escolher molduras . Aceitam tudo. Veja como elas brigam com
os quadros! É uma verdadeira guerra!
Convidada, aceitou, a noite estava quente, e foram tomar uns chopes
na famosa e imunda cervejaria da Praça General Osório, onde ele
cumprimentou muita gente com gestos um tanto uniformes e com
um perceptível toque de superioridade. Oscar se vestia com colorida
informalidade, mais como um ingênuo rapazola, quando já passara
dos quarenta. O cabelo era enorme e desgrenhado como se jamais
tivesse visto pente ; as costeletas cerradas e largas vinham quase ao
queixo ; o bigodão cobria a boca e toda a pilosidade já com prema
turos e não poucos fios prateados.
- Por que você não usa paletó e gravata?
- É anacrônico, quadrado.
É decente.
- Você me acha indecente? ·
- Não. Acho apenas que é quadrado o seu modo. O quadratismo
não está em se abolir paletó e gravata e não cortar o cabelo . O
quadratismo é assunto menos superficial.
Ele ria :
- Você parece uma velha de trinta anos . . .
- De trinta e um . . . Mas é menos desfrutável que pretender
ser um jovem de quarenta.
Passaram a se encontrar todas as noites . Iam muito ao cinema -
e ele era apaixonadamente versado em cinematografia, analisando os
filmes com uma minúcia exaustiva, descobrindo sutilezas onde ela
não conseguia encontrar nada de especial. Iam ao teatro - e ele
sempre criticava os cenários e a indumentária. Freqüentavam pe
quenos bares e restaurantes modestos - e ele bebia comedidamente,
mas comia com modos pouco requintados e apressados , tratando o
garfo e a faca como objetos desprezíveis . Ora abraçados, ora de mãos
dadas, faziam longos passeios pelas ruas e praias noturnas, numa paro
lagem extremamente agradável para ela.
Uma vez perguntara sinceramente curiosa :
Por que você não pinta retratos?
- É assunto superado. Não faltam fotógrafos por aí e até muito
bons . Os caminhos agora são outros.
Não lhe acudiram argumentos contrários e não voltou nunca mais
à questão .
282
Doutra feita protestou contra um colar de couro que ele trazia :
- Feminil e cafajeste!
- Falou, está falado ! - e num gesto teatral e engraçado arrancou-o
do pescoço e jogou-o no mar do alto das pedras rlo Arpoador. -
Iemanjá vai pensar que é oferenda . . .
- E cobrirá você de favores . . .
Insinuante :
- Um bastava . . .
- Tudo é possível - retrucou ela alegremente.
Acreditava nele. Na sua honestidade, na sua intransigência, nos seus
propósitos - sabia falar, fluente, desembaraçado, mas repisava muito
certos conceitos, como se, no íntimo, duvidasse do que afirmava. Ao
cabo de dois meses e pouco não resistiu e deixou o quarto que alugava
em casa amiga, no Lido, e foi morar com ele, que era solteiro .
Não me amarrei porque fiquei esperando por você . ..
E se eu não chegasse?
Dava-se um jeito . . .
Ainda bem que confessa!
Acordava feliz, sempre em cima da hora. Às pressas engolia o
café para não chegar atrasada no escritório - tchau! Ele ficava
dando duro nos pincéis, um cheiro oleoso de tinta dominava o am
biente. Aliás era madrugador. Quando ela despertava, já encontrava
o café feito por ele, que de muito estava diante do cavalete, outras
vezes sobre a prancha desenhando com a testa franzida : o desenho
é o esqueleto da coisa, minha querida. Sem esqueleto o corpo não
fica em pé.
Acabou por perceber melancolicamente que quem não ficava em
pé era ele próprio . Não conseguia se impor aos donos de galerias,
mesmo os mais modestos, embora não se cansasse de freqüentá-las,
presença obrigatória em todas exposições, recebesse ou não convite.
Não se firmara junto ao público, ele que falava tanto em comunicação,
e, nos leilões, cada dia mais numerosos, jamais vira uma peça sua
ser arrematada, leilões onde tanta porcaria era vendida e até dispu
tada. Só participara de mostras coletivas, com seus trabalhos mal
colocados, como se houvesse uma premeditada intenção de escondê-lo,
e fora recusado uma vez no Salão de Arte Moderna, corte que rece
bera com uma explosão de cólera e que o levou à decisão irrevogável
de não mais se apresentar - eram comissões compostas de calhordas,
de desmunhecados, uma panelinha da mais vil espécie! Nenhum crí
tico o elogiava e, se raramente o citavam, era de cambulhada com
uma porção de nomes reconhecidamente inexpressivos. No Dicionário
de A rtistas Brasileiros seu verbete não ia além de cinco sucintas
linhas . . . E, pior, não parecia compreender a sua limitação, não se
entregava, pelo contrário, se empenhava mais numa ânsia de conseguir
algo sem nenhum resultado positivo, defendendo o seu suado labor
com infindáveis arengas que tinham ela como único ouvinte. Como
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as mãos se distanciavam do c é rebro ! Que abismo havia entre o sonho
e a realização ! Léguas de abismo ! Ele se atormentava e ela sofria,
conquanto não se manifestasse senão JXlr palavras carinhosas de estí
mulo, mas
- que iam diminuindo sensivelmente pela crescente convicção
de que nada adiantariam. Uma decepção, então, calara fundo nela e
foi como gota que enche o cálice da desilusão : Oscar deixara-lhe um
bilhete, pois tivera que sair e avisava que chegaria tarde. Aquelas
poucas linhas, salpicadas de erros de ortografia e de concordância,
pareciam a primária redação de um colegial medíocre e desatento. Com
um gesto piedoso rasgara o triste testemunho, mas o texto vinha-lhe
dolorosa e freqüentemente ao pensamento, sem que encontrasse ne
nhuma desculpa para o rabiscador.
Vestiu o roupão sobre a pele ainda úmida e saiu do banheiro . Sobre
a estante, com os livros em desordem, estava a conta da luz. Pegou-a,
leu-a com atenção e disse com toda naturalidade :
- Vence-se amanhã, Oscar.
Ele, do sofá-cama, cofiando a bigodeira, levantou os olhos :
- É. Não se afobe. O papai aqui dará um jeito. Vou falar amanhã
com o David. Ele tem um freguês em perspectiva. Que perspectiva
coisa nenhuma! Certo ! E pode me adiantar uns trocados.
Ela conhecia de sobra a marca dos fregueses certos que David -
da Galeria Arte Viva - arranjava :
- Não precisa. Deixe comigo. Não estou dura. Mandarei o boy
pagar logo cedo.
- Está bem. Você é um anjo! Mais uma vez : obrigado.
Ela deixou a conta no lugar onde a encontrara, depois avançou para
a cozinha mínima com uma pilha de quadros na prateleira, encalhe
duma larga produção, pois as paredes se tornaram poucas para pen
durá-la:
- Vamos tratar do jantar.
- Que teremos?
- Macarrão e salsichas. Não está bem?
- Está ótimo, Helô ! Mas antes venha cá.
Ela foi. As almas se cansam. A dela estava cansada. Mas não se
opôs. Foi uma entrega insossa e triste. E beijou-o - pobre artista
fracassado!
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Este livro
foi composto e impresso nas oficinas gráficas da
lMPRES - COMPANHIA BRASILEIRA DE IMPRESSÃO E PROPAGANDA
Rua do Cadete, 209, São Paulo, para a
LIVRARIA JOSÉ Ü LYMPIO EDITORA,
Rua Marquês de O linda, 1 2 ( B o t afogo ) , Rio,
em março de 1 977
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Cód . JO : 0 1 927