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CONTOS REUNIDOS

MARQUES REBELO
(óleo de José Maria Dias da Cruz)
MARQUES REBELO

CONTOS
REUNIDOS
Prefácio de
JosUÉ MONTELLO

RI0/1977

li
em convênio com o
INSTITUTO NACIONAL DO LIVRO
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA
BRASÍLIA
Capa
EUGENIO HIRSCH

Copyright © 1977 by herdeiros de Marques Rebelo

Direitos desta edição reservados à


LIVRARIA JOSÉ OLYMPIO EDITORA S.A.
Rua Marquês de Olinda, 12
Rio de Janeiro - República Federativa do Brasil
Printed in Brazil I Impresso no Brasil

Rebelo, Marques, 1907-1973.


R234c Contos reunidos; prefácio de Josué Montello. Rio de Janeiro, J.
Olympio; Brasília, INL, 1977.
304 p. front.

Dados biobibliográficos do autor

1. Contos brasileiros I. Instituto Nacional do Livro 11.


Título.

CDD - 869.9301
CCF/SNEL/RJ-77-0100 CDU- 869.0(81)-34

1977 40.0 aniversano do


-

INSTITUTO NACIONAL DO LIVRO


SUMARIO

NOTA DA EDITORA:
DADOS BIOBIBLIOGRÁFICOS DO AUTOR vii
BIBLIOGRAFIA DE
MARQUES REBELO (Fernando Sales) ix
0 MESTRE DO CONTO (Josué Montello) xiii

CONTOS REUNIDOS

OSCAR/NA
Oscarina 5
Na Rua Dona Emerenciana 33
Em maio 38
Caso de mentira 43
A mudança 48
Um destino 51
Na tormenta 57
Felicidade 64
História de abelha 69
Uma senhora 74
Espelho 77
História 80
Tragédia 8 1
Uma véspera de Natal 84
Onofre, o Terrível, ou a sede de justiça 86
A última sessão do grêmio 90

TRES CAMINHOS
Vejo a lua no céu 97
Circo de coelhinhos 1 29
Namorada 134

v
STELA ME ABRIU A PORTA
Stela me abriu a porta 147
Depoimento simplório 152
Dois pares pequenos 154
A derrota 159
Serrana 162
Caprichosos da Tijuca 167
Almas no jardim 171
Labirinto 173
Um morto 178
A morta 179
Quatro momentos de um idílio 181
Episódio coreográfico 187
A moça e a Primavera 191
Composição de carnaval 196
Cenas da vida carioca
1933 199
1934 203
1943 206
1952 208
1953 211
Outra véspera de Natal 213
A árvore 215

AVULSOS
Conto à la mode 237
Acudiram três cavaleiros 260
O bilhete 279

vi
NOTA DA EDITORA
DADOS BIOBIBLIOGRÁFICOS
DO AUTOR

NASCIDO NO Rio DE JANEIRO, em Vila Isabel, bairro tradicional da


cidade em termos de vivência da classe média, a 6 de janeiro de 1907,
filho de Manuel Dias da Cruz Neto e Rosa Reis Dias da Cruz, Mar­
ques Rebelo - que no registro civil se chamava Eddy Dias da Cruz -
passou no Rio os primeiros anos da infância, interrompidos entre 1911
e 1918 por uma longa temporada em Barbacena, Minas Gerais. Vol­
tando ao Rio com 11 anos, quando se apagavam na Europa as últimas
chamas da Primeira Guerra Mundial, começou então os estudos de
humanidades no Colégio Pedro 11, sob o regime de preparatórios, que
terminou em 1920. Matriculando-se na Faculdade de Medicina em
1922, deixou o curso logo em começo, lançando-se à vida prática no
comércio, sua atividade durante longos anos, mais tarde acumulada com
o cargo de Inspetor de Ensino Secundário no Ministério de Educação
e Cultura.
Trazendo desde a adolescência o gosto pela leitura intensa e o co­
nhecimento de vários autores nacionais e estrangeiros existentes na
biblioteca paterna (Flaubert, Herculano, Balzac e outros geralmente
tidos como clássicos indispensáveis), já em 1926 o futuro romancista
sentiu despertar a vocação para as letras, estimulada pelo movimento
modernista de 22 e por algumas amizades entre jovens escritores que
então também se iniciavam, a exemplo de Francisco Inácio Peixoto,
um dos fundadores da revista Verde, de Cataguases.
Durante cinco anos (1926/31), a colaboração em periódicos, in­
cluindo poesia, e novas amizades com alguns nomes já importantes e
outros já consagrados, como A lberto de Oliveira, por exemplo, for­
maram o ambiente em que viveu Marques Rebelo, sem esquecer o
tempo de serviço militar prestado entre 26 e 27, que de certo modo
deixou marcas visíveis em seu primeiro livro - Oscarina- publicado
em 1931 como a revelação de um notável contista. A crítica da época,
aliás, não lhe regateou elogios, assinados entre outros por João Ribeiro,
A grippino Grieco, Tristão de A thayde, Manuel Bandeira e Otávio de
Faria. Seu segundo livro, Três caminhos, também de contos, ou novelas
segundo alguns críticos, publicado em 1933, embora revelando o ama­
durecimento de um legítimo ficcionista, defrontou-se no entanto com
o neo-realismo que vinha do Nordeste nesses anos de plena agitação
social, ficando assim um pouco à margem da corrente literária da
vii
época, como fruto de uma reação totalmente individualista do escritor,
retratista e psicólogo do mundo pequeno-burguês dos centros urbanos,
sobretudo carioca. Estreando no romance em 1935, com um livro
aliás premiado em concurso - Marafa - , Marques Rebelo iniciava
nova etapa em sua carreira literária, embora essa história do bas-fond
carioca não tivesse chegado a satisfazer seu próprio sentimento de
autocrítica. Mas já em 1939, com A estrela sobe, Marques Rebelo
atingia de fato o nível de grande romancista que, depois do apareci­
mento de Stela me abriu a porta (1942), seu último livro de contos,
seria o destino final de sua obra.
Na verdade, O espelho partido, romance cíclico que o escritor deixou
inacabado, e do qual saíram apenas os volumes iniciais - O Trapi­
cheiro, A mudança e A guerra está em nós, de um total de sete títulos
previstos (A paz não é branca, No meio do caminho, A tempestade e
Por um olhar de ternura ) , não representa apenas um grande painel
da vida brasileira entre 1936 e 1945, como poderia parecer à pri­
meira vista, mas sim um painel ainda mais vasto em termos de análise
da própria burguesia nacional a partir da transição entre os séculos
19 e 20, e onde o autor seria ao mesmo tempo agente e paciente,
sujeito e objeto de um mundo em crise, onde o homem assume toda
sua complexidade na queda e na ascensão, mas que ainda não me­
receu o estudo crítico em profundidade que sua importância realmente
exige.
Marques Rebelo, que era membro da Academia Brasileira de Letras
e bacharel em Direito, casou-se em 1933 com D. Alice Dora de Mi­
randa França, com a qual teve dois filhos, José Maria e Maria Cecília,
e voltou a casar-se em outubro de 1941, com Elza Proença, sua se­
cretária até o fim de sua vida. Escreveu ainda alguns volumes de
viagens pelo Brasil, Europa e América do Sul, uma peça de teatro e
uma biografia de Manuel Antônio de A lmeida. Marques Rebelo fa­
leceu a 26 de agosto de 1973.
O presente volume, editado com o apoio do Instituto Nacional do
Livro, no ano de seu 40.0 aniversário, reúne toda a produção con­
tistica do grande escritor carioca.

viü
BIBLIOGRAFIA
DE MARQUES REBELO

FERNANDO SALES

A. DO AUTOR

Oscarina. (Contos). Rio de Janeiro, Rosa). Rio de Janeiro, Cia. Nestlé,


Schmidt editor, 1931; 2. a edição, re­ 1938.
vista, Rio de Janeiro, Livraria José
A estrela sobe (Romance). Rio de Ja­
Olympio Editora, 1937; 3.8 edição,
neiro, Livraria José Olympio Editora,
Rio de Janeiro, Edições O Cruzeiw,
1939; 2.8 edição, Rio de Janeiro, Edi­
1948; 4.8 edição, São Paulo, Livraria
ções O Cruzeiro, 1949; 3.8 edição,
Martins Editora, 1960; 5.8 edição,
São Paulo, Círculo Literário, 1949;
Rio de Janeiro, Edições de Ouro,
4.8 edição, São Paulo, Livraria Mar­
1966; 6.8 edição. (Nota explicativa
tins Editora, 1957; 5.8 edição, Rio de
de Paulo Mendes de Almeida. Capa
Janeiro, Edições de Ouro [s/d]; 6.8
e ilustrações de Vicente di Grado.)
edição, Rio de Janeiro, Livraria José
São Paulo, Clube do Livro, 1973; 7.8 Olympio Editora, 1974; 7.8 edição,
edição, Rio de Janeiro Edições de
Rio de Janeiro, Edições de Ouro
Ouro [s/d] (0 conto que dá título [s/d].
ao livro foi publicado originariamente
na "Revista Sousa Cruz", em 1931, A casa das três rolinhas (Literatura
ganhando o prêmio, no gênero, insti­ infantil. Em colaboração com Arnaldo
tuído por aquele periódico). Tab�1iá). Porto Alegre, Livraria do
G!obo, 1939.
Três caminhos. (Contos). Rio de Ja­
neiro, Ariel Editora Ltda., 1933; 2.8 Pequena Tabuada de João e Maria
edição, in Oscarina; 3.8 edição, Rio (Literatura didática. Em colaboração
de Janeiro, Edições O Cruzeiro, 1948; com Santa Rosa). Rio de Janeiro,
3.8 edição, in Oscarina; 4.8 edição, Cia. Nestlé, 1939.
São Paulo, Livraria Martins Editora, Amigos e inimigos de João e Maria
1960; 4.8 edição, in Oscarina; 5.8 edi­ (Literatura didática. Em colaboração
ção, Rio de Janeiro, Edições de Ouro, com Santa Rosa). Rio de Janeiro,
[s/d]; 5.8 edição, Rio de Janeiro, Cia. Nestlé, 1939.
Edições de Ouro [s/d].
Rua Alegre, 12 (Teatro). Curitiba,
Marafa (Romance). Grande Prêmio de Editora Guaíra Limitada, 1940.
Romance Machado de Assis. São
Stela me abriu a porta (Contos). Por­
Paulo, Companhia Editora Nacional,
to Alegre, Edição da Livraria do
1935; 2.8 edição, Rio de Janeiro, Edi­
Globo, 1942.
ções O Cruzeiro, 1947; 3:8 edição,
revista, São Paulo, Livraria Martins A venturas de Barrigudinho (Literatura
Editora, 1957; 4.8 edição, Rio de Ja­ infantil. Em colaboração com Ar­
neiro, Edições de Ouro [s/d]; 5.8 naldo Tabaiá). 1942.
edição, Rio de Janeiro. Edições de
Pequena história de amor (Literatura
Ouro [s/d].
infantil. Em colaboração com Arnal­
ABC de João e Maria (Literatura di­ do Tabaiá). Rio de Janeiro, Editora
dática. Em colaboração com Santa Criança, 1942.

ix
Vida e obra de Manuel Antônio de Discursos de posse e de recepção (Su­
Almeida. Rio de Janeiro, Ministério cessão de Magalhães Azeredo. Em co­
da Educação e Saúde/Instituto Na­ laboração com Aurélio Buarque de
cional do Livro, 1943; 2.a edição, re­ Holanda). Separata do 19.0 volume
fundida, São Paulo, Livraria Martins de Discursos Acadêmicos, Rio de Ja­
Editora, 1963.
neiro, Academia Brasileira de Letras
20 artistas brasilefi.os (Catálogo). Edi­
[s/d]; in Discursos Acadêmicos, Tomo
ções do Museu Provincial de Belas
VII, Rio de Janeiro, Academia Brasi­
Artes, La Plata; Ministerio de Jus­
leira de Letras [s/d].
tida y Instrución Publica, Buenos
Aires, e Comisión Municipal de Cul­ O simples Coronel Madureira. Rio de
tura, Montevidéu, 1945. Janeiro, Biblioteca Universal Popular
Cenas da vida brasileira ("Suíte n .0 S.A., 1967.
1"). Rio de Janeiro, Irmãos Pongetti­ Rio de
A ntologia Escolar Brasileira.
Editores, 1944; 2.a edição, conjunta­ Janeiro, Ministério da Educação e
mente com a "Suíte n.0 2", Rio de Cultura/Campanha Nacional de Ma­
Janeiro, Edições O Cruzeiro, 1951;
terial de Ensino, 1967.
3.a edição (Prefácio de Herberto
Sales), Rio de Janeiro, Edições de Brasil, Terra e Alma - Guanabara.
Ouro [s/d]. Rio de Janeiro, Editora do Autor,
Bibliografia de Manuel Antônio de 1967.
Almeida. Rio de Janeiro, Ministério A guerra está em nós (Romance). São
da Educação e Saúde/Instituto Na­ Paulo, Livraria Martins Editora, 1968.
cional do Livro, 1951.
Rio (Texto do álbum fotográfico edi­
Cortina de ferro. São Paulo, Livraria
tado pela Agência Jornalística IMA­
Martins Editora, 1956.
GE). Rio de Janeiro, 1970.
Correio europeu. São Paulo, Livraria
Rio de
Antologia Escolar Portuguesa.
Martins Editora, 1959.
Janeiro, Ministério da Educação e
O trapicheiro (Romance. Prêmios Cultura/Fundação Nacional de Ma­
Jabuti, da Câmara Brasileira do Li­
terial Escolar, 1970.
vro, Carmen Dolores Barbosa e do
Instituto Nacional do Livro). São Discursos na Academia (Em colabora­
Paulo, Livraria Martins Editora, 1959. ção com Francisco de Assis Barbosa).
Cartilha Cruzeiro (Literatura didática. Rio de Janeiro, Livraria José Olym­
Em colaboração com Herberto Sales pio Editora, 1971.
e Santa Rosa). Rio de Janeiro, Edi­
Encontro na A cademia (Em colabora­
ções O Cruzeiro, 1959.
ção com Herberto Sales). Rio de Ja­
Pasteur, o inimigo da morte (Litera­ neiro, Edições O Cruzeiro, 1972.
tura infantil). São Paulo, Editora
Donato, 1960. Vejo a lua no céu (Vinhetas de Percy
Deanne). Rio de Janeiro, Fontana,
Florence Nightingale, a Dama da Lan­
1973.
terna (Litemtura infantil). São Paulo,
Editora Donato, 1960. Seleta (Organização, estudo e notas
A mudança (Romance). (Prêmio Lui­ do Professor Ivan Cavalcanti Proen­
za Cláudio de Sousa, do Pen Clube ça). Rio de Janeiro, Livraria José
do Brasil). São Paulo, Livraria Mar­ Olympio/MEC-Instituto Nacional do
tins Editora, 1962. Livro, 1974.

NO EXTERIOR

La estrela sube. Buenos Aires, Edito­ A estrela sobe. Lisboa, Edições "Li­
rial Hemisferio, 1952. wos do Brasil", 1968.
B. SOBRE O AUTOR

Adonias Filho. Modernos ficcionistas to. Rio de Janeiro, Academia Brasi­


brasileiros. Rio de Janeiro, Edições leim de Letras, 1958 [pp. 189-190].
O Cruzeiro, 1958 [pp. 169-178].
Bezerra de Freitas.
Forma e expressão
- O romance brasileiro de 30. Rio de no romance brasileiro. Rio de Janei­
Janeiro, Edições Bloch, 1969 [pp. ro, Irmãos Pongetti, Editores, 1974
135-143]. [p. 356].

Afonso Arinos de Melo Franco. Por­ Clarice Lispector. "Um romancista",


tuTano. São Paulo, Livraria Martins in Jornal do Brasil, Rio de Janeiro,
Editora, 1945 [pp. 54-61]. 30 jun. 1973.
- La literatura dei Brasil. Buenos Efemérides da Academia Brasileira de
Aires, lmprenta de la Universidad, Letras (1897-1972). Rio de Janeiro,
1945 [pp. 59-60]. Gráfica Editora Acadêmica Ltda.
Afrânio Coutinho. "O modernismo na [s/d].
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reção de Afrânio Coutinho), 2. a edi­ de Janeiro, Ano 5, N.0 58, dez. 1963
ção, Vol. V. "Modernismo". Rio de [p. 49].
Janeiro, Editorial Sul Americana S.A.,
1970 [pp. 223-225]. Fernando Sabino. "O espelho partido",
in Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 3
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sil. Rio de Janeiro, Livraria José
Olympio Editora, 1935 [pp. 110-119]. Francisco de Assis Barbosa. Le roman,
la nouvelle et le conte au Brésil. Pa­
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edição. Rio de Janeim, Livraria José 39-40].
Olympio Editora, 1947 [p. 236].
Hélio Alves de Araújo. Marques Re­
Almir de Andrade. Aspectos da cultu­ belo. Poeta morto. Florianópolis, Ca­
ra brasileira. Rio de JaneiTO, Schmidt dernos Sul, VI, 1956.
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Henrique Perdigão. Dicionário Univer­
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rie). Rio de Janeiro, Livraria José pes da Silva, 1940 [p. 876].
Olympio Editora, 1944 [pp. 197-205]. Herberto Sales. Baixo relevo. Rio de
Anuário da Academia Brasileira de Le­ Janeiro, Edições O Cruzeiro, 1954,
tras. Rio de Janeiro, Academia Bra­ [pp. 129-130].
sileira de Letras, 1960-1964 [pp. 59- Herman Lima. Variações sobre o con­
60]; 1965-1969 [pp. 63-64]; e 1970- to. Rio de Janeiro, Ministério da
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Arnaldo Tabaiá. "Os contos de Mar­
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ques Rebelo", in Boletim de Ariel,
sil, Tomo li. Rio de Janeiro, Minis­
Ano li, N.0 12, set. 1933 [p. 327].
tério da Educação e Cultura/Insti­
Augusto Frederico Schmidt. "O imor­
tuto Nacional do Livro, 1960 [p.
tal Rebelo", in O Globo, Rio de Ja­ 445].
neiro, 17 dez. 1964.
Jaime de Barros. Espelho dos livros.
Austregésilo de Athayde. "O moderno Rio de Janeiro, Livraria José Olym­
conto brasileiro", in Curso de Con- pio Editora, 1936 [pp. 295-301].

xi
João Ribeiro. O s modernos. Rio de Rio de Janeiro. Ministério da Educa­
Janeiro, Academia Brasileira de Le­ ção e Cultura/Serviço de Documen­
tras, 1952 [pp. 319-320]. tação, 1955 [pp. 291-292].
José Cândido de Carvalho. "Marques
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Rebelo, quem é você", in O Cruzeiro. belo: um conjunto premiado" in
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Suplemento do Livro do Jornal do
José Osório de Oliveira. Aspectos do Brasil, Rio de Janeiro, 19 jul. 1969.
romance brasileiro. Lisboa, 1943,
Paulo Francis. "Entrevista com Mar­
[pp. 24-25].
ques Rebelo", in MarquesRebelo, O
História Breve da Literatura Brasilei­ simples Coronel Madureira. Rio de
ra. São Paulo, Livraria Martins Edi­ Janeiro, Biblioteca Universal Popular
tora [pp. 155-156]. S.A., 1967 [pp. 9-18].
Josué Montello. "Um encontro de
Paulo Mendes de Almeida. "Nota ex­
companheiro", in Jornal do Brasil,
plicativa", in Oscarina, 5.a edição.
Rio de Janeiro, 13 fev. 1965.
São Paulo, Clube do Livro, 1973.
"O MestTe Rebelo", in Jornal do Bra­
sil, Rio de Janeiro, 4 set. 1973. - "Um escritor olha o mundo", in
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Lemos Brito. O crime e os criminosos
na literatura brasileira. Rio de Ja­ Pedro Dantas (Prudente de Morais,
neiro, Livraria José Olympio Edito­ Netto). "Cronicaliterária", in A Or­
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Lúcia Miguel Pereira. Cinqüenta anos 104-176].
de literatura. Rio de Janeiro, Minis­ Prudente de Morais, Netto. La novela
tério da Educação e Cultura/Serviço brasileíia. Rio de Janeiro, Ministério
de Documentação, 1952 [p. 27]. das Relações Exteriores/Divisão de
Luís Aníbal Falcão. O conto na lite­ Cooperación Intelectual, 1945 [pp.
ratura brasileira. Rio de Janeiro, 1.066-1.067].
1941 [pp. 35-36]. Raimundo de Menezes. Dicionário Li­
Luís Martins. "Marques Rebelo na terário Brasileiro (Ilustrado. Prefácio
Academia", in O Estado de S. Pau­ de Antônio Cândido), Vol. IV. São
lo, São Paulo, 12 dez. 1964. Paulo, Edição Saraiva, 1969 [pp.
Mário de Andrade. O empalhador de
1.066-1.067].
passarinho, 2.a edição. São Pau­ Renard Perez. Escritores brasileiras
lo, Livraria Martins Editora, 1955 contemporâneos (1. a série), 2. a edi­
[pp. 125-129]. ção, revista e atualizada. Rio de Ja­
"Marques Rebelo por ele mesmo," in neiro, Civilizaçã0 Brasileira, 1970
Senhor, Rio de Janeiro, Ano 3, N.0 [pp. 269-273].
4, abr. 1961 [pp. 24-26]. "Revista Brasileira", Fase IV. Rio de
Ministério das Relações Exteriores. De­ Janeiro, Ano I, N.0 1. out.-nov.-dez.
partamento Cultural e de Informa­ 1975 [pp. 9-306].
ções. Quem é quem nas artes e nas
Sérgio Milliet. Diário Crítico, Vol. V.
letras do Brasil. Rio de Janeiro, 1966,
São Paulo, Livraria Martins Editora,
[p. 335].
1949 [pp. 185-189].
Múcio Leão. "Autores e Livros". Rio
de Janeiro, Vol. VI, 12 mar. 1944 Suplemento Literário de Minas Gerais,
[p. 143]. N.0 66, Belo Horizonte, 2 dez. 1967.

Octavio de Faria. "Três caminhos", Tristão de Athayde. Estudos (5.a sé­


in Boletim de Ariel, Ano li, N.o 10, rie). Rio de Janeiro, Civilização Bra­
jul. 1933 [p. 285]. sileira S.A., 1933 [pp. 37, 41-42].
Otto Maria Carpeaux. Pequena biblio­ "última Hora". Rio de Janeiro, 8 fev.
grafia crítica da literatura brasileira. 1967.


O MESTRE DO CONTO

JOSUÉ MONTELLO

ANDEI RELENDO ULTIMAMENTE, com vistas a uma antologia da mo­


derna prosa de língua portuguesa, umas páginas antigas de Marques
Rebelo. A impressão que me ficou desse reencontro é que o mestre de
Oscarina, sem ter abdicado de sua originalidade pessoal, que de pronto
o individualizava, ficará nas letras brasileiras como a confluência har­
moniosa destas três vertentes: Manuel Antônio de Almeida, Machado
de Assis e Lima Barreto.
Desses três mestres, lidos com particular atenção, não herdou Rebelo
unicamente a ternura comum pela terra carioca, de que foram eméritos
panegiristas - com eles também se identificou na simplicidade da
escrita, como ideal de arte literária.
Vem a propósito recordar Montaigne: "De que serve ter a pança
cheia de carnes, se ela não se digere, se não se transforma em nós,
se não nos aumenta e fortifica?"
Esse reparo de Montaigne, a propósito de suas leituras e citações,
Marques Rebelo mo recordou mais de uma vez, referindo-se ao seu
gosto da leitura. A leitura sempre foi para ele a dimensão artística
da vida. Através dos textos impressos, sabia enriquecer-se, assimilando
a lição alheia, sobretudo de ingleses e americanos.
Mas as viagens por longes terras, no plano da cultura estritamente
literária, não o distanciaram de seus mestres brasileiros, a que fre­
qüentemente voltava, para os reencontros de si mesmo.
De outra feita, Rebelo me fez esta confissão: todos os anos relia
Alberto de Oliveira. O mestre parnasiano, com a solenidade de seu
verso, pareceria exatamente o oposto do mestre de Stela me abriu
a porta. E a verdade é que se harmonizavam plenamente o prosador e
o poeta, no cuidado da forma, no reconhecimento da arte como a
contemplação superior da vida, no enriquecimento quotidiano das letras
pelo tirocínio lúcido da existência.
Certa vez, vi em mãos de Rodrigo Melo Franco de Andrade um
exemplar de A estrela sobe, revisto e corrigido pelo seu autor. Não
havia ali uma linha sem retoque de Marques Rebelo. Dir-se-ia um
texto de Balzac ou Eça de Queirós, indicativo da ânsia de perfeição
do escritor, na luta pela palavra qrtisticamente concebida.
Ao apreciar a vocação do espírito clássico em Marques Rebelo, a
propósito de sua entrada na Academia Brasileira, tive oportunidade

xiü
de observar, num dos capítulos de Na Casa dos 40: "Moderno sem
ser modernista, Marques Rebelo estava dispensado de renegar os
valores por que se batera na mocidade, se pretendesse entrar na Aca­
demia. Acresce ainda a circunstância de que a Casa de Machado de
Assis, conciliando antagonismos literários desde que foi constituída,
tê-lo-ia admitido entre os seus sócios efetivos, mesmo que ele houvesse
participado da formidável vaia com que os Modernistas agrediram a
instituição, na tarde da conferência de Graça Aranha sobre o espírito
moderno."
Em outro trecho do mesmo estudo, acentuei ainda: "Em toda a sua
obra de contista, romancista, cronista e biógrafo, Rebelo sempre deixou
sentir a linha clássica de sua vocação literária."
Essa linha se acentua à medida que o escritor acumula seus livros.
Desse modo, os três tomos publicados de O espelho partido, que lhe
servem de remate à obra romanesca, correspondem ao altiplano de
perfeição de sua arte.
De certa forma, retoma Rebelo aí, pela forma do diário, a derra­
deira lição de Machado de Assis, no Memorial de Aires. Com esta
diferença fundamental: Machado, sempre que podia, disfarçava-se
diante do leitor, ao passo que Rebelo faz questão de que o reconhe­
çam, nas suas iras, nos seus amores e nas suas ternuras.
Convém guardar na memória, para bem apreciar o mestre de Três
caminhos, esta linha do primeiro tomo de O espelho partido: "Sou
leitor de mim mesmo. Isto é importante."
Nessa confidência ocasional, não se há de identificar o Narciso,
que se rejubila na contemplação de si mesmo, e sim o artista, que
repensa o que lhe saiu da pena e luta contra a própria fluência, para
que a densidade de seu pensamento fique contida nas palavras essen­
ciais. E é do mesmo livro esta lição de estilo: "O que se puder
escrever em duas linhas, nunca escrever em três."
A compreensão da literatura, na ordem dos valores clássicos, Rebelo
a sintetizou nestas palavras de O Trapicheiro: "A literatura é um baile
com casaca obrigatória. Um cavalheirb de terno branco pode forçar
a porta e entrar. E pode dançar, se divertir muito, e até ser citado
pelos cronistas elegantes, todavia estará sempre sujeito a ser posto
para fora do salão."
Compreende-se que, andando o tempo, o romancista que, em mais
de uma página risonha, e mesmo áspera, zombou da Academia e dos
acadêmicos, chega a envergar o fardão verde para ler o seu discurso
de posse, visto que cada um de nós, segundo a advertência do pro­
vérbio francês, acaba sempre por seguir a estrada que passou na
sua aldeia.
Eu próprio lhe disse, quando ele lá chegou com o aplauso de meus
votos, que a Academia é apenas um episódio solene na vida literária
e não um acontecimento na literatura. E ninguém mais exemplar
que Rebelo, na gravidade de sua poltrona. A Academia estava nele,

xiv
por uma inclinação natural de seu espírito. Seu caso tem analogia
com o de Manuel Bandeira e o de Alceu A moroso Lima, também
acadêmicos, não por luta ou empenho, mas por derivação natural,
no plano dos valores estéticos.
Pouco antes da morte de R ebelo, pedi-lhe que escrevesse dois .tra­
balhos: um, sobre o carnaval carioca,· outro, sobre Manuel Antônio
de Almeida. E ele, que andava com o tédio da escrita, logo encontrou
entusiasmo para tirar do tinteiro os dois estudos admiráveis.
Folião por gosto; sabendo integrar-se na multidão para acompa­
nhar-lhe os ritmos e as cantigas, só nos últimos tempos Marques R e­
belo pôs de lado o seu dominó festivo, que nunca julgou incompa­
tível com o seu fardão acadêmico. E que a alma carioca sempre
prevaleceu na sua sensibilidade, dando-lhe o gosto da terra e da gente,
no contorno inconfundível de suas paisagens e na pura alegria de
seus folguedos.
Essa mesma alma o aproximou de Manuel Antônio de Almeida,
de quem se fez o apologista e o biógrafo. Suas pesquisas relativas ao
romancista das Memórias de um Sargento de Milícias situam-se
no plano dos estudos fundamentais para o conhecimento da vida e
da obra do criador do Leonardo Pataca. Mas a inclinação maior de
seu espírito, aquela que falava mais alto, ele a reservou para o culto
a Machado de Assis - sobre o qual escreveu uma página de irre­
primível ternura, no segundo tomo de O espelho partido.
A técnica em mosaico, que Machado de Assis empregou na com­
posição dos seus melhores romances, era também a técnica de Rebelo.
Concordância de discípulo com o mestre? Algo mais profundo: ambos
teriam em grau superior o gênio da narrativa breve, que lhes deu a
mestria do conto urbano. Assim, na origem do romancista, estava
o contista, tanto no mestre de Dom Casmurro quanto no mestre de
Trapicheiro.
Reúnem-se neste volume os vários livros de contos de Marques
Rebelo. Esta visão de conjunto nos permite reconhecer que o conto
era efetivamente a sua vocação mais alta: permitia-lhe a síntese da
vida na síntese da página literária harmoniosamente trabalhada.
Lembro-me de ter ouvido Gracialiano Ramos recitar, ao fundo da
Livraria José Olympio, na Rua do Ouvidor, trechos inteiros de "Na
Rua Dona Emerenciand', de Oscarina. Sinal de que o prosador de
Vidas Secas encontrava nesse conto de Marques Rebelo o traço da
obra-prima. E esse traço realmente existe, não apenas aí, mas na
maioria dos contos que lhe saíram da pena torturada.
Ele é, na sua geração, o contista por excelência. E só não se liga
diretamente a Machado de Assis, como seu sucessor natural, porque
antes dele, e para uni-los, veio Lima Barreto.
Rio, novembro de 1976.

XV
CONTOS. RElTNIDOS
OSCA R/NA
TR2S CAMINHOS
STELA ME ABRIU A PORTA
AVULSOS
OSCARINA
OSCARINA

CHEGAVA a esmurrar a cabeça :


- Como há de ser, meu Deus, como há de ser? !
Jorge não atinava com a resposta e há três dias andava preocupa­
díssimo, emaranhado no denso cipoal das conjeturas, na esperança
duma solução honesta para a situação que ele próprio criara. Pas­
sava as noites em claro, noites !assas de verão, povoadas de mosquitos,
impertinentes, coçava a cabeça de minuto em minuto no escritório,
poeirento, antiquado, quente como um forno no rigor daquele fevereiro
bravio ; perdera o apetite, não comia direito, dormia em cima da
sopa, um grosso caldo de batatas com salsa e aletria boiando, em
que Dona Carlota era emérita. Seu Santos interpelou-o, o garfo cheio,
suspenso :
- Você não come, rapaz?
- Ah! - exclamou, acordando.
- Está no mundo da lua? ! . . . - muxoxeou o pai, agastando-se,
o que, por dá cá aquela palha, acontecia.
- Não.
- Pois parece.
Houve um silêncio no mastigar de Seu Santos que cruzara os talhe­
res, satisfeito - estou cheio! - e escolhia um palito no paliteiro de
vidro azul, a Fortuna com a sua abundante comucópia.
Subindo pela janela da área, o jasmineiro embalsamava a sala com
um perfume de entontecer. A mosca desapareceu com o safanão
higiênico de Dona Carlota, que imaginando lá com os seus botões:
Aqui há dente de coelho . . . - não ousava perguntar nada. Olhava
para o filho, olhava para o marido. . . Jorge se achava novamente a
cinqüenta léguas da vida, Seu Santos gostava de goiabada com farinha�
- Onde está a farinheira?
A mulher saiu correndo, medrosa :
- Já vai - e desculpava-se : - Não é que eu me esqueci! . . .

Preciso tomar fosfatos . Ando com a cabeça oca.


s
Jorge abismava-se nos seus pensamentos. Pedir conselhos? Tomar
conselhos? Ele que nunca fora de conselhos . . . E com quem? Só se
fosse com Seu Fontes. Dr. Fortunato também poderia, com Tenente
Afonso, porém, seria mais acertado. Sobrevinham-lhe embaraços ra­
zoáveis, dada a sua índole : como é que haveria de falar sendo Tenente
Afonso tão esquisito, tão seco, parecendo cumprimentar os outros
-
por favor? Era o diabo! . . . O melhor mesmo seria resolver por
conta própria. Afinal se decidiu : _ Puxa! iria assentar praça, como
voluntário, no Forte de Copacabana, onde diziam que o serviço era
mais folgado e havia banhos de mar.
Bebeu o cafezinho requentado, levantou-se, botou o chapéu na
cabeça e gritou do corredor, comprido e úmido :
- Bênção, papai. Bênção, mamãe.
Seu Santos, entretido com a Notícia, perto da janela onde havia
mais luz, que a sala já estava ficando escura, nem respondeu, mas
a mãe, que estava lavando pratos na cozinha, chegou até à porta
e implorou um favor em forma de pergunta :
- Você volta cedo, meu filho?
Acendeu um cigarro, bateu o portão com força para a peste do
Pirulito não fugir, e acenou :
- Alô, Henrique!
O rapazinho pálido respondeu do alpendre fronteiro :
- Ã.lô, Jorge! Vai dar a sua volta, hem!
- É.
- Está bonita a tarde - e olhava-a.
-
Jorge, pouco amante de belezas naturais, olhou também. A noite
de estio vinha tardiamente descendo dos morros, cálida e dolente;
cigarras vespertinas chiavam na distância, líricas, divinas ; entre risadas,
tocava-se piano no chalé da viúva Lamego, cuja fachada fora festiva­
mente pintada de verde para o casamento da Loló.
- Bem, té logo - ajeitou a palheta e tocou para a casa da namo­
rada, que era perto.
O rapazinho seguiu-o com os olhos mortos, uns olhos baços e enco­
vados. Era alto, um rosto infantil, os ossos furando-lhe a carne,
entrevado de nascença. Viu-o dobrar a esquina. Viu passar a filha
de Dona Dalva, que trabalhava na cidade, viu os meninos jogarem
gude, no jardim do 58, numa algazarra, "Marraio, feridor, sou rei",
"Fui eu! Não roube!" e recolheu-se, tão inútil se sentia - tão inútil e a
tarde tão linda, arrastando-se penosamente com o auxílio das muletas,
enquanto o riso dos pardais, despencando das folhas, ia atrás dele.

]]

Jorge dera um dia uma grande cabeçada, deixando de estudar para


ir ganhar a vida, outra vida melhor do que a que lhe dava o pai como
6
estudante, fácil, despreocupada, cinemas com abatimento, suas brin­
cadeiras à custa de colegas abonados como o Décio, um perdulário.
É o destino. Abandonara tudo para trabalhar, que se metera esta
idéia na cabeça, e entrou para Souza Almeida & Cia., negociantes
em grosso (fumos, cachimbos, artigos para fumantes em geral ) , um
sobradão na Rua do Rosário.
Souza Almeida, que já dobrara o cabo dos cinqüenta, claudicava
duma perna, era boa pessoa, gordo, amável com os empregados : "Seu
Jorge, faz favor", "Seu Jorge, olha o pedido da Charutaria Princesa.
Tenha a bondade de não se esquecer". Seu Jorge pra cá, seu Jorge
pra lá. Bem estava vendo que era a besta de carga, mas no fim do
mês contava receber grosso ; também, calculava, negociantes em grosso
eram eles, Souza Almeida & Cia.
Mas qual ! . . . Foi uma desilusão ! Cento e vinte mil-réis só. Deve
ser engano, matutou, que de enganos anda o mundo cheio. Tinha a
ingenuidade dos que saem dos carinhos caseiros, prenhes de facilidades
e larguezas .
Chegou-se para a alta escrivaninha onde Seu Gonçalo, guarda-livros,
velho como a casa, amarelo e sujo, trabalhava em pé :
- Está certo, Seu Gonçalo?
- Por que não? - perguntou-lhe Seu Gonçalo, cara de bobo,
arranhando a caspa com a caneta.
A pergunta valia por uma resposta, não há dúvida. Jorge meteu
o dinheiro no bolso, deixou o guarda-livros estranhando, conferindo
o Caixa, falando alto : Fui eu que contei o dinheiro . .. Fui eu . .. -
e foi pegar o bonde das seis e dez com uma fome canina.
O Largo de São Francisco regurgitava de povo na tarde quase­
noite. O anúncio luminoso acendia e apagava. Um cheiro forte de
chocolate errava no ar. Homens tossiam. Se o rádio não fosse tão
fanhoso, compreender-se-ia a letra do samba muito bem.
Estava repleto o bonde, gente pendurada nos balaústres. Dlém!
Dlém! o motorneiro batia a campainha, impaciente. Cavou um lugar
apertado no reboque e explodiu :
- Isso é que se chama uma injustiça! Cento e vinte mil-réis .. .
Parece incrível !
Teve ódio do velho Souza Almeida; sentiu ímpetos de voltar, entrar
pelo escritório adentro, aquele escuríssimo escritório, no fundo da
loja, onde a Nair, datilógrafa, definhava de tanto escrever cartas para
o interior, e estraçalhá-lo a murros e pontapés, quando se lembrou da
manhã em que fora tratar o emprego, uma manhã alegre, as casas
parecendo sorrir ao sol outonal. Tinha ido com a roupa azul-marinho,
a melhorzinha, que a mãe passara a ferro com cuidado. Souza Almeida
prodigalizou-lhe gentilezas :
- Quanto ao ordenado, meu caro, não tem que pensar, deixa isto
por minha conta. Trabalhe - e punha-lhe no ombro a mão esperta
- trabalhe é o que lhe digo, no fim do mês saberei recompensá-lo.
7
Bonita recompensa, não tem que ver! Exploração é o que era.
Fazia as contas : almoço, sessenta. Ficavam sessenta. Bonde, mais
doze. Sobravam quarenta e oito. Muito bem. Agora, cigarros, de­
zoito. Médias, outros dewito . Somando tudo : cento e oito. Resta­
vam-lhe doze! Doze ! -berrou - doze mil-réis ! O vizinho de banco
se espantou, um senhor com cara de honrado e embrulhos pacatos
para a família. Jorge encabulou, vermelho como um camarão . Ten­
tou assobiar. Olhou anúncios. O veículo comia ruas, cortava praças,
atravessava avenidas, jogando casas para trás, barulhento e desen­
gonçado. Acabou por voltar à sua indignação :
- Puxa, que safadeza igual a esta nunca vira! Mas eles me pa­
gam, ora se pagam! . . . Quero que me cortem a cabeça . . .
Sacudiu a campainha com energia, saltou sem esperar que o bonde
parasse, desceu a rua a passos largos, furioso. Na fúria em que ia
esbarrou com o quitandeiro que saía do 37 e foi grosseiro :
� Você está cego, seu galego?

Deixou o homem, humilde, gaguejando desculpas, não cumprimen­


tou Dona Filomena ( senhora do Seu Jacinto dos Telégrafos, com
um telefone de que toda a vizinhança se servia) , chegou em casa
como uma fera.
Contou tudo, aumentando : Eu faço isso, minha mãe, eu faço aqui­
lo, a correspondência, as notas de entrega - uma maçada! - o
protocolo . . .
Dona Carlota não sabia o que era protocolo, mas não perguntou,
fez-se de sabida, devia ser uma coisa importante naturalmente com
um nome daqueles - o protocolo.
Resumiu : Eu faço tudo - e encostou-se no etager, mudo, a ca­
beça enterrada nos punhos cerrados .
Dona Carlota choramingou - uma injustiça mesmo. Deu razão
ao filho : Que coisa, já se viu? Das sete da manhã às seis da tarde,
almoço fora e trabalho a valer - a correspondência, as notas -
não é? - o protocolo . Enchia a boca e repetia : o protocolo . . .
Qual! . . . Isso assim não tem cabimento . . . E balançava a cabeça.
Jorge mostrou-se mais contente, aliviado, esboçou até um sorriso
magro, abraçando frouxamente a velha :
- Paciência, minha mãe . . . - Fez-se de sacrificado, de resig­
nado : - A vida é assim, dura.
Precisava de qualquer coisa dura como a vida para ilustrar a sua
resignação. Deu, na mesa, um soco forte, de antigo extrema-esquerda
do Aimoré Esporte Clube: como isto .
O pai, que tinha ido fazer uma visitinha ao Antero, que estava de
cama com erisipela, chegou nesta hora. Era baixo, curioso e ter­
ceiro-oficial do Ministério da Marinha :
- Como isto o quê?
Dona Carlota enxugou, rápida, na ponta do avental de xadrezinho
as últimas lágrimas, Jorge refez, aperfeiçoadamente, a cara sinistra
8
com que viera e, ajudado pela mãe, foi verboso, teatral. O pai ouvia
calado, em pé, no meio da sala. Ele prosseguiu trágico e fecundo :
as injustiças, as lutas diárias . . . Ele pau para toda obra, sim
senhor. Precisavam de alguém para dar com os costados em caixa­
prego? Todos tiravam o corpo fora. Ele, não . Ia. E os dias intei­
ros na Alfândega, no Cais do Porto, no meio de estivadores, sujeitos
brutíssimos e perigosos?
Gostou do seu modo de falar, achando-se inteligente no discorrer
fácil e imaginativo das suas lutas, dos seus sacrifícios, dos seus es­
forços . Saboreou interiormente os gestos largos, solenes, ora acabru­
nhados de lutador vencido, ora triunfadores de herói pronto para
continuar, para suportar novos reveses, certo da vitória final. Por
um momento, até, passqu-lhe pela cabeça a idéia de ser ator de teatro
e já ia sonhar sucessos, seu nome em letras enormes no cartaz do
São José, quando o pai, esboçando um sorriso, pôs ponto final no
assunto, frio como um sorvete :
- A vida é isto.
- Que é isto sei eu - respondeu, meio malcriado, meio decep-
cionado. E olhou, com ódio, a mesa : dura!
Estava varado de fome. Quando era menino a mãe lhe dizia :
"Está com fome? Vai na rua, mata um homem, tira as tripas . . . "
Hoje . . . Não quis jantar; trancafiou-se no quarto pequeno, caiado,
arrumadinho. O pai não se impressionara com a arenga que fizera.
Idiota! Também . . . Também, analisando os fatos, a culpa fora dele :
para que aquela asneira de querer ganhar a vida? Tolice. Agira
como um babaquara tomando birra ao estudo à toa, porque tinha
até muita sorte : estudava pouco e passava em tudo quanto era exame.
Raspando, mas passava, e era o que valia. Tinha, porém, inveja
dos camaradas empregados que não estudavam, que não ficavam mais
magros por não saberem os teoremas de geometria, nem os verbos
irregulares ingleses, dos quais o Benzabat atulhava treze páginas, o
bandido, e tinham - felizardos! - a noite inteira para jogar na
gandaia. E as festas do Ginásio, do Orfeão, do Clube Euterpe! . . .
Aquilo, sim, é que era vida! Por aquilo é que ele ansiava. Não
quis acabar os preparatórios, faltando-lhe apenas três. Bobo ! Queria
ir para o comércio. O pai se opusera, com vontade que ele fosse
doutor, único filho, que diabo ! Valia a pena. Sempre era uma
honra para a família e para ele, principalmente, que era o chefe.
Devaneava :
- Apresento-lhe aqui o prezado amigo Augusto dos Santos, digno
progenitor do ilustre Doutor Jorge dos Santos . . .
Que gozo ! Doutor . . . Cantava-lhe nos ouvidos como uma música
do céu.
Fora quando a mãe, a medo, entrara pela primeira vez no meio da
resolução dum problema doméstico mais elevado :
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- É ajuizado o Jorge, Augusto. Estava pensando bem. Eles eram
pobres e a vida, cada dia, pior. Um curso era bonito, não tem que
ver, nem o Jorge negava - não é mesmo? - mas custava caro.
Podia se fazer um empréstimo, alguns sacrifícios, eu, por mim, ven­
dia o adereço que foi de mamãe com todo o gosto . . . Mas se ele
depois de formado não conseguisse clínica? É tão comum. Você
mesmo não diz que a repartição está cheia de doutores? Assim ia
cavando a vida desde logo. Cedo é que se começa, diz o ditado.
O pai achatou-se :
- Pois que fosse. Depois não se arrependesse . . .
E agora ele devia estar gozando, gozando e consertando o rádio
de galena da sala de jantar. Jorge só, sentado na cama, mastigando
um sanduíche de carne que a mãe lhe viera trazer escondida, "por­
que eram perigosos esses abalos morais com estômago vazio", sacudiu
os ombros num imenso desalento.
- Você quer um chocolate, meu filho, eu vou fazer?
Não respondeu - enroscou-se no travesseiro com desespero.
Dona Carlota teve ímpetos de abraçá-lo e consolá-lo, quis ficar com
ele nos braços, longamente, acalentando-o como quando era peque­
nino, "Dorme, dorme, meu anjinho, dorme, dorme, meu amor . . . "
Dona Carlota, porém, era tímida. Dona Carlota tinha medo. Insistiu
só, fracamente, com a voz trêmula :
- Quer?
- Nããã-o.
Saiu devagar, fechando a porta com cautela. Para que mais lágri­
mas? Fez-se forte para tomar chá. Seu Santos tirou o fone dos
ouvidos :
- Carlota!
- Que é?
- As torradas estão moles, moles.

III

Sozinho, Jorge olhou, na parede, o santinho emoldurado, lembrança


da sua primeira comunhão, e teve vontade de chorar. Apertou os
olhos - nem uma lágrima. Há tanto tempo não chorava! . . . Per­
dera o costume, que chorar também é questão de hábito, raciocinou.
Zita chorava tanto, tão sentimental, uma torneira aberta. Recorda­
ção da Zita, saudade dela propriamente talvez não, mas no tempo
em que brincavam juntos, marido e mulher (Sá Alexandrina, que
dentes brancos, se ria : estes pequenos ! . . . ) e ferravam brigas tolas
por causa do nome do filho, um boneco feio como jamais vira outro,
os braços quebrados, a roupa vermelha, presente de Papai Noel numa
noite de Natal.
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Que saudade desconhecida lhe veio daquele tempo passado, em
que, descuidado, pensava unicamente em brincar. Ralava-se também
um pouco, quando chegava a hora de ir para o Jardim da Infância
na escola pública do Bulevar, um casarão roído pelo tempo, com
azulejos verdes na fachada. Ralava-se sem motivo, que não era má
a vidinha da escola, b-a-bá, b-e-bé, em coro com a gurizada, o João,
o Lelé, o Chininha, cearense sabido como ele só. A merenda à uma
e meia, pão com goiabada todo santo dia, era um enjôo. Mas Dona
Alzira era boa, tão carinhosa, dava bolos, mariolas feitas em casa
- estas não fazem mal, as da rua sim - chocolates que mandava
comprar na padaria do Seu Tatão, que apelidaram o Bigodudo.
Tinha os braços brancos e longos . Mantinha por ela uma admiração
irresistível e secreta. Pronunciava, cheio de pejo, o seu nome. Re­
petia-o para si : Alzira. Separava-.!_he as sílabas, decompunha-lhe as
letras. Como seria a sua casa? Como seria a sua cama? E os seus
pais, que ela tanto dizia amar? Não lhe entrava na cabeça que ela
pudesse ter sido criança como ele e rido e saltado e brincado de
pique. Tremia todo quando ela cobria a sua mão com a dela, quente
como se estivesse com febre, para lhe ensinar como se fazia a perna
de um P. Comovia-se com a sua silhueta recortando-se esgalga no
quadro-negro, suspendendo-se na ponta dos pés, o giz se esboroando
quando o calcava com mais força, para marcar uma conta a ser
feita em casa, na quinta-feira, que era dia de descanso. Dava pal­
pites sobre o vestido com que viria, estimando que trouxesse sempre
o azul, riscadinho de branco, muito colante, muito decotado, com
uma flor de pano presa na cintura, bela como as mulheres que ele
vira no cinema. Quanta vez ela o punha no colo para ralhar:
"Então, como foi isso, Jorginho? Conte, vamos." Ele custava a
explicar só para ficar uma porção de tempo no seu colo cheio e
provocante, motivo da excessiva assiduidade do ins·petor-escolar, que,
apesar de casado, lançava a ele, sempre que podia, tão alvo, tão
macio, olhares que não admitiam duas significações.
Numa terça-feira de junho, chuviscava, ela, agasalhada, quando
acabou a aula, fez um pequeno discurso aos alunos pedindo que ti­
vessem sempre muito juízo, fossem bons para os pais, obedientes
às professoras e estudiosos, e acabou dizendo que aquela era a sua
última aula, pois fora transferida para outra escola. Não quisera
acreditar - mas por quê? No outro dia ela não veio. Tentou um
vão esforço para não chorar com vergonha dos colegas, mas não
se agüentou e chorou como um perdido, querendo ir atrás dela. Dona
Maria José rira : "Coitadinho!" Dona Hebe, a diretora, esganiçada
e meticulosa, também se rira e consolava-o :
- Você vai ficar com Dona Amália, que ainda é melhor - e
elogiava-lhe o coração de ouro.
Então, Dona Amália se chegara, um pouco corada, e fizera-lhe
festas nos cabelos :
11
- Que é isto? Um menino tão bonito chorando? Será que não
gosta de mim?
Não respondia, emburrado. Ela então se abaixara e dera-lhe beijos,
sorrindo, e ele sentia o perfume que ela usava, um perfume esquisito
e sufocante.
Dona Amália era boazinha também, mocinha ainda, mal comple­
tara vinte anos, magra, delicada, a voz muito fina :
- Agora está n a hora d a ginástica. Todos para o recreio!
O recreio era o terreiro sombrio, com árvores velhas, carunchosas,
enormes figueiras de troncos limosos onde o Gilberto apanhava la­
gartas. Tinha medo de atravessá-lo sozinho e, quando chovia, ficava
como um lago, onde nadavam os marrecos da servente.

IV

Toda pessoa a quem ele se afeiçoava ia embora. Dona Alzira, tia


Gugu, irmã do pai, invariavelmente de preto, que contava histórias
de bichos ; o Josué, pretinho, empregado que veio da roça, bobo só
vendo, nem sabia de que lugar era - donde você é, Josué? Da
roça - mas danado para imitar passarinhos ; e a Zita também, pois
o pai, que era oficial do Exército, passando a major, foi removido
para Boa Esperança, nos confins de Mato Grosso. Fizeram leilão
dos móveis .
- Boa Esperança? Longe como o diabo! Chega tudo quebrado,
estragado, eu bem sei como são estas mudanças - dissera o pai. É
bater o martelo.
Venderam os cacarecos e partiram logo após . Como era criança,
ela partiu alegre. Havia de voltar, dizia, Jorge que esperasse, e mos­
trava-lhe as malas :
- Vai tudo no trem, compreendeu? Depois é que a gente toma
o navio. Lá, sabe?
- Onde?
- Não sei. Papai é quem sabe.
Pulava em cima dos engradados, contente, um laço de fita desco­
munal nos cabelos castanhos :
- Uma lindeza, Seu Mané! - exclamava. - Não sei quantos
dias !
Ele ficara triste, jururu. Dona Elisa, a vizinha, que vivia de cos­
turar para fora, levava-o com os filhos à matinê, quase que inteira­
mente de fitas cômicas.
- É bom para distrair, Dona Carlota. Pobrezinho ! . . . Como
ele ficou sentido . . .
- Eram muito amiguinhos.
- Não, é que ele tem bom coração. Saiu à senhora.
Dona Carlota sorria, embaraçada.
12
Quando voltava do cinema, brincava de fita em série com o Lucas
e o Eudoro, moleque beiçudo, filho da lavadeira, que lhe ensinara
os primeiros nomes sujos, motivo para uns poucos tabefes do pai e
ameaças da mãe: "Um dia, eu perco a cabeça e boto um ovo quente
na boca deste pequeno!" Ele era o bandido e o Lucas, estando por
tudo, se contentava em ser polícia, apanhando nas lutas porque era
mais fraco.
E ia esquecendo.

Depois, a vida correu-lhe depressa. Terminado o curso primário,


entrou para o Ginásio Franco, economicamente como externo. Fez
os primeiros preparatórios, mas passou em todos, com muita sorte
e alguns pistolões, que Dona Carlota, pondo de parte a timidez, se
matava para arranjar empenhos.
Veio outro ano e ele passou em novos exames, e, rapazinho, co­
meçou a freqüentar bilhares, rodas de cafés, bailes, farrinhas, clubes
de futebol. Foi sócio-fundador e denodado extrema-esquerda do
Aimoré Esporte Clube, que acabou logo, pois o tesoureiro, o Canho­
tinho, que era ladrão como rato, meteu o pau no dinheiro.
Mas quantos aborrecimentos sofria, quantos cálculos se via na
necessidade de fazer para entrar nestas empresas todas, já que o
pai, ríspido, queria-o em casa às dez horas - nem mais um minuto,
hem! Os colegas caçoavam:
- Que milagre é este! Cinco para as dez e você ainda aqui! . ..

- Vai para casa, criança, que está na hora.


Ele tinha ganas de não ir, de ficar no café, na rua, onde fosse,
para provar que não era nenhum maricas como o julgavam. Mas o
pai. .. o respeito pela bengala do pai, um junco verdadeiro com
castão de ouro, muito gabado, presente do Sr. Correa, um homem
rico, milionário, amigo velho da família e que ele não conhecera.
Ora, dez horas, casa. Aquilo ia-lhe roendo por dentro. Deu para
estudar. Os rapazes amansaram, num respeito idiota pela aplicação.
"Meio maricas o Jorge, mas estudioso, isto é verdade. Estuda pra
burro! Não faz outra coisa", elogiavam. Ele ficava mais satisfeito:
que animais! Ria-se, intimamente, do jeito com que os obrigara a
mudar de opinião a seu respeito. E hipócrita: "Eu gosto de estu­
dar, que é que vocês querem?!" ... Estorcia-se, porém, de raiva
por ser tão fingido. De vez em quando se desesperava, entrava no
quarto, trancava-se por dentro, não pegava em livro - raios os le­
vassem! - ficava fumando, fumando, lendo romances de Zevaco,
aventuras de Búfalo-Bill, algum número atrasado da Maçã, que ele
roubava da gaveta do Seu Fonseca, bedel do Ginásio, o mais engui­
çado, recordista do respeito entre os alunos, sempre com o pincenê

13
preso à lapela por uma fitinha preta e máximas de absoluta morah­
dade na ponta da língua para uso da meninada.
Invadia-lhe uma inveja mórbida e constante dos vizinhos, o Jonjon
- que apelido! - o Cazuza, o Gabriel, que comprara uma barata
amarela. Estava escrito que aquilo de estudar não era para ele, não.
Precisava, quanto antes, mudar de vida, senão arrebentava. Cair na
gandaia como os outros, gozar enquanto era moço. Se ainda tivesse
dinheiro .. . A mesada do pai era uma miséria, sessenta mil-réis,
não chegava para nada. Reconhecia: coitado do pai, não podia dar
muito, já até dava demais. Mas se enfurecia imediatamente: se não
pudesse, que o deixasse livre, que ele não estava para viver com
sessenta mil-réis até o dia de se formar! Que não o empatasse com
a tal mania de querer que ele fosse doutor! Doutor . .. Grande
coisa! Todos eles uns jumentos!
Livre! Como seria outra a vida, que forra tiraria dos anos em
que vivera preso! Logo de saída procuraria um bom emprego, ga­
nharia bastante, seria da turma, do pessoal batuta e fregista do
Bilhar Primavera e do Café Pernambuco. Formaria uma trinca ma­
luca : ele, o Donga, assombro no cavaquinho, e o Bilu, uma das suas
sinceras admirações, por ser o sujeito mais peludo para pequenas
que conhecer à. Acabava com as farrinhas escondidas, farrinhas de
durante o dia, apertadas, cheias de temores e receios : Se papai
souber ... Se Seu Franco encontrar com papai e perguntar, com a
prolixidade irritante que lhe é peculiar, por que razão não fora ele
à aula prática de Física, tão interessante, tão recreativa, sobremodo
amena, a base propriamente dita de todo o ensino moderno no con­
ceito firmado dos mais eminentes pedagogos, a aula que o aluno
aprende com os olhos, só com olhos, sem cansar ...
Se trabalhasse, faria o que lhe desse na cabeça, ficaria na rua,
passaria a noite na pândega, voltaria para a casa de madrugada na
barata do Gabriel, comprada em terceira mão por uma bagatela,
alcunhada simultaneamente de Lacraia, Draga, Banheira, e que o
pró prio dono achava "mais indecente que Bocage". Trabalho duran­
te o dia ali no pesado, à noite quero gozar - argumentaria, e nin­
guém podia dizer nada que o argumento, vamos e venhamos, era
de peso e medida.
Foi quando principiou a dar sistematicamente em cima da mãe.
Ela não se entregou logo porque n_ão compreendia muito bem o que
ele queria. Acabou compreendendo: "Tinha razão. .. Pensava
bem .. ." Com o pai, o caso ficou mais fino que o homem tinha
lá seus planos formados, sabe Deus há quantos anos.
- Eu quero que você se forme, meu filho, tenha um título, não
pelo simples fato de ser doutor, que doutor não quer dizer ciência
- ah! isto, não - mas é que sempre um diploma vale qualquer
coisa nesta terra. É um mal, não nego, é um grande mal, mas o
certo é que há mais facilidades para se arranjar boas colocações,

14
às vezes até um bom casamento! . . . Olha o Dr. Borges! Era um
pronto quando eu o conheci, numa farmacinha muito à-toa do Ca­
tumbi, como prático. Prático nada, lavador de vidros! Defende dali,
defende dacolá - pergunta à sua mãe que ela sabe - meteu-se
na escola e se formou. Andou marombando ainda uns tempos e
conseguiu a tal sinecura na Saúde Pública. Entrou na linha do vento,
meu caro! Não fazia nada, vivia socado em cinemas, bailes, teatros,
e zás! arranjou a filha do Godói. Três mil contos, meu filho, em
dinheiro batido!
Jorge não acreditava nessas histórias: o que ele teve foi muita
sorte! - e continuou na obra de sapa. Afinal, Seu Santos se ren­
deu. Dona Carlota fora colossal para convencer o marido, que tive­
ra, então, a frase: "Depois não se arrependesse . . . "
- Arrepender, meu pai?! Eu?! . . . Pois se sou eu que quero! . . .
Cava daqui, cava dali, o irmão do seu padrinho, que estava no
Norte, interessou-se e arranjou-lhe o emprego - Souza Almeida &
Cia. Simpatizara com os modos de Seu Almeida, trabalhara com
uma energia sincera e, no fim do mês, era aquilo que se vira -
cento e vinte mil-réis. Adeus, farras sonhadas! Antes os sessenta
mil-réis da mesada, que ao menos eram sessenta bagarotes sem des­
pesa. Esteve aos três por dois para pedir ao pai. "Eu quero con­
-
tinuar os meus estudos." Que o pai abriria logo os braços, sabia
muito bem, mas temeu ver-lhe cortada a liberdade que adquirira e
preferiu ficar com ela, passando misérias, pedindo dinheiro à mãe,
que o tirava com dificuldade das despesas da casa, comprando me­
nos carne, atrasando um pouco a conta da padaria, inventando con­
sertos no fogão, de maneira que Seu Santos não desconfiasse.
Pensou em sair do emprego e arranjar com calma um outro, mas
pôs logo de parte este pensamento, que não traria uma solução cabal
para a sua vida, tão difíceis andavam os tempos, tantas queixas ouvia
da falta de trabalho. Melhor seria se agüentar até as coisas melho­
rarem e foi o que fez. Esfalfar-se é que não, uma ova! Para quê?
Cento e vinte mil-réis é dinheiro? Estava lá para ficar tuberculoso
por uma porcaria daquelas? Uma beleza o tal de trabalho dali por
diante. Calma no Brasil! Nada de fazer força inutilmente, nada
de canseiras sem proveito. Bastava a experiência que tivera. Agora
era tratar de não ser mais tolo. Uma pacova que ele fosse aos ban­
cos correndo, afobado como ia! . . . Pressa para quê, se não ia tirar
o pai da forca?
Souza Almeida, possuidor de largo tino comercial, não levava,
porém, para melhoria dos seus negócios, a sua sagacidade até à tra­
ma sutil dos pequenos acidentes de escritório, tanto assim que não
percebeu as artimanhas de Jorge, que, verdade seja dita, soube fazê-las
com finura.
"Muito bem educado este menino", elogiava por vezes ao ver o
interesse diplomático que Jorge mostrava por sua terrível dispepsia

15
e por suas contrariedades comerc1a1s. O socto, que falava por mo­
nossílabos, confirmava : É - e afundava-se nos cálculos do balancete
mensal. Seu Gonçalo era o eco do patrão. Jorge agradecia com
um sorriso modesto e rosnava pesadíssimas obscenidades que nin­
guém percebia.

VI

Ao fazer dois anos de casa, com o ordenado sempre crescente,


recebeu novo aumento e ficou com os seus duzentos e cinqüenta
mil-réis . Com casa e comida, conjeturava, era negócio, casa e co­
mida, se compreende, à custa do pai. Não tinha muito que se quei­
xar, pois, agora, a vida corria-lhe mais ou menos como ele a con­
cebera, vazia, vagabunda, com maxixes repinicados e chorosos em
clubes mambembes e noitadas orgíacas na Mere Louise (o automó­
vel pago põr vaquinha) muito regadas a chopes e ditos pornográficos
da Claudina, mulatinha do outro mundo, que já tomara lisol por
ciúme dum Sargento da Polícia.
Eis, porém, que a sua vida se transforma subitamente. É que a
Zita, uma moça já, voltara de Mato Grosso, definitivamente, porque
o pai, que se reformara, queria morar no Rio, farto da vida pastrana
e monótona do interior.
Apó s tantos anos de separação, a primeira vez que se encontravam
foi cheia de sincera emoção.
- Como mudaste, meu Deus ! - mirava-a bem - estás bonita!
Um pedaço! Mesmo da pontinha! - e fazia o gesto explicativo.
Ela ria francamente :
- Deixa de ser mentiroso . . .
Jorge bestificado, que ela estava mesmo bonita de verdade, morena,
muito queimada pelo sol, os olhos grandes, o cabelo farto e negro
( e tinha sido castanho ) só sabia dizer chulices de porta de cabaré.
Zita não reparava em tal :
- Nunca me esqueci de você . . . Pode crer . . . - sussurrou,
pondo os olhos no chão.
Jorge tomou-lhe a mão pequena, fina, delicada, apertou-a com
meiguice, ficaram, no meio da rua, sem reparar em ninguém, o tem­
po correndo, sem palavras.
Venceu o embaraço e procurou marcar um encontro :
- Onde?
Zita não pensou dois segundos :
- Sabe duma coisa?
- O quê?
- Melhor é você ir lá em casa, depois do jantar, assim pelas oito
horas, ouviu? Eu espero no portão.
- Mas teu pai?
16
- Eu falarei com ele - respondeu corajosa. - E depois nós
não fomos amiguinhos em pequenos? Não tem que reparar ...
Jorge ficou como doido, dando para amar que foi um descalabro.
Era trabalho e namorada. Trabalho? Qual o quê! Namorada só,
porque no escritório, ele que já não fazia quase nada, menos fez
ainda. Era só pensar nela, no sinalzinho que lhe marcava o pescoço,
no seu j eitinho molengo, no modo engraçado que aprendera em Mato
Grosso para dizer certas coisas, na sua admiração pelo Rio, tão
grande, tão diferente, cheio de avenidas , de arranha-céus, de luxos,
de novidades. Tirava da carteira o retratinho dela, recortado dum
grupo, num piquenique, disse-lhe, e ficava mirando-o enlevado, dis­
tante. Jantava voando, engolindo sem mastigar. Dona Carlota
observava-o :
- Você parece pato. Depois quando ficar com o estômago esbo­
degado levanta os braços pro céu.
- Não faz mal.
Saía à toda para a casa dela, que já o estava esperando, passeando
na calçada.
Teve uma idéia. Perguntou-lhe à queima-roupa :
- E se nós nos casássemos?
Ficou trêmula, muda, amassando a blusa, puxando e torcendo o
colar japonês fantasia.
- Quem cala, consente . . . - insinuou ele.
Levantou os olhos negros, redondos, sensuais :
- Você respondeu por mim.
Deu-lhe uma imensa vontade de beijá-la, tremia, avançou, ficou
colado ao seu corpo, mas estavam na rua, conteve-se, foram andan­
do devagar, mãos dadas, felizes, até à esquina, onde havia um
botequim.
Ela rompeu o silêncio para contar-lhe uma coisa que guardara :
- Sabe que titia disse?
- Que foi?
- Disse que você era muito antipático e que não me fiasse nas
suas promessas.
- Ela é besta.
- Não fale assim - afagou-lhe a mão. - Eu não dou importân-
cia ao que ela diz. Pensa que eu não conheço titia? Tem dessas e
até piores, mas no fundo é boa alma.
Esteve para desembuchar o que pensava da tia dela, uma cretina,
despeitada, invejosa. Para solteirona é assim mesmo - ninguém
presta. Todo mundo tem defeitos, todo mundo é à-toa, toda gente
tem podres, fez isso, fez aquilo, tudo porque não arranjou um des­
graçado que quissesse casar com ela. Tanto automóvel nas ruas e
nenhum para lhe dar uma cacarecada que arrebentasse logo. Zita,
porém, ficaria triste, era tia, não compreendia que se pudesse ser

17
desrespeitoso com gente do seu sangue, afinal, preferiu guardar, que
não faltaria ocasião para soltar a l íngua, tinha certeza.
As casas adormeciam, apita o guarda-noturno, brincam os raios
da lua nos galhos da amendoeira. Despediram-se.
- Adeusinho!
____..Adeus.
Ao chegar em casa, deitado na cama, pronto para dormir, é que
se lembrou da face financeira da proposta. Como poderia se casar
com duzentos e cinqüenta mil-réis por mês? Era o que percebia no
emprego, sem o protocolo, entregue, então, aos cuidados dum em­
pregadinha novo, imberbe e rosado, o Gouveia, que ele, com parte
de antigo, fazia de cristo, sem piedade.
Precisava duma saída para a entaladela em que se metera. Gostava
de Zitã, gostava, gostava até demais. E que esposa melhor do que
ela poderia encontrar? Casar com mulher rica é muito bom mas é
para os trouxas. Era bonita, bem feita de corpo, inteligente, não
era assanhada como essas melindrosas que andam por aí, conhece­
ra-a desde pequeno, sabia quem ela era. Mas como poderia casar
sem o suficiente para viver? Seria loucura. Teria que se movimentar
para obter uma colocação melhor. Assim, sim. Mas para que lado
havia de se mexer? Tudo tão difícil, tão negros os horizontes do
comércio. . . A crise, a crise! - era o fantasma de todos. Aí se
lembrou que não era reservista. . . Upa! Precisava tirar a cader­
neta quanto antes, senão poderia ser sorteado. Sorteado? Pronto,
tinha uma idéia! Uma idéia brilhante e salvadora! Iria assentar
praça no Exército como voluntário. Teria assim um ano e tanto de
espera forçada, quando saísse entraria para um ministério ... Ru­
minou isso três dias, acabando por se abrir com a namorada.
Zita pesou as coisas e ficou de acordo - está bem, sim __; mas
veio a ele o receio de expor ao pai a sua resolução. Era maior,
pensava, mesmo que ele não gostasse, pouco lhe daria e iria mesmo,
resolvendo a situação a parodiar a maneira de agir, pessoal e resoluta,
do Pereira, o cabeludo carregador da casa: "Achou ruim? Faz
meio-dia ! " Dominava-o ainda, porém, o respeito pela bengala, o cé­
lebre junco verdadeiro. . . Sebo ! Que o pai não se atreveria, ele
não era mais nenhuma criança ! Vá para o diabo o temor! Quem
não arrisca, não petisca. Arriscou e esperou o cataclisma, um ven­
daval, um tufão, pois quando o pai se zangava era uma tragédia,
perdia a cabeça, tinha asperezas lusitanas, reminiscências nítidas do
"'"'
avô : 'Dou-lhe uma tarracha que o escacho! Quebro-lhe o meu
junco nas costas, patife!" crescia a voz e colocava muito b em os
pronomes. Veio uma brisa mole: "Faz o que você entender, rapaz."
Pasmo! Ponderou, tirou conclusões. . . Ah ! Seu Santos andava nas
vésperas de ir para segundo-oficial na vaga de Seu Castro, o asmá­
tico, "que tinha ido - como ele dizia sarcástico e piedoso - para
o mundo dos anjinhos". Sentia-se, pois, nestas belas perspectivas,

18
muito feliz, duma grande benevolência, com projetos de, com o au­
mento, comprar um terreno, a prestações, no Encantado, para mais
tarde construir uma casinha, pequena, mas confortável. Bangalô é
que não. Queria uma casa decente. Interrogava a mulher : " Que é
que você diz disso, Carlota?"
Jorge chispou para a namorada. "Tudo às mil maravilhas, filhinha.
Como nós combinamos, acabado o tempo, já sabes, cavo um em­
prego público, que o comércio anda uma bagunça, e nos casamos."
- Você vai ficar muito feio fardado - brincou.
- Pois eu acho que não, vai ver.
- Você é um monte de ossos, e farda não tem enchimento! . . .
Caíram os dois às gargalhadas.
Na vizinhança, correu logo que estavam noivos. Ele gozou. Ela
confirmava, ruborizando-se:
- Sim, noivos intimamente, bem entendido, entre nós . . . Quando
acabar o tempo . . .
O coronel reformado é que torceu o nariz com aquelas intimidades,
mas não fez nenhuma oposição porque tinha absoluta confiança na
filha.

VII

Como Jorge afirmara que fora sorteado - uma espiga sem


nome! . . . - Souza Almeida prometeu guardar-lhe o lugar :
- Lei é lei, meu caro. Vá cumprir o seu dever. Nós o espe­
raremos.
- Muito obrigado! Nem sei como agradecer . . . - titubeara,
mas, mal se _apanhando com os pés na rua, jogou-lhe um gesto feio :
Espere sentado, meu idiota!

VIII

Jorge assentou praça no mesmo dia que se despediu do escritório.


Cara de fuinha e orelhas descomunais, inveterado no jogo do bicho,
Cabo Rocha Moura, que andou com ele, prestimosamente, dum lado
para outro a ensinar-lhe como recebia o fardamento, ou como faria
a inspeção de saúde no Quartel-General, garantiu-lhe com gestos
adequados e convincentes, "que aquilo era como se fosse um colé­
gio interno, com amigos, horários, saídas e recreações".
No segundo dia, implicou com a cabeça chata de nortista do Sar­
gento Pedrosa e os seus modos brutais : "Cala a boca, seu peste!
Vá pra faxina, cachorro!" - num furor disciplinar de sargento novo.
Cedo, porém, perdeu a antipatia, pois compreedeu que aquilo era
só palavras, excesso de palavras, boca suja, mais nada, um coração

19
de pomba no fundo, incapaz de matar uma mosca, perdoando todas
as faltas dos soldados, mas jurando, entre injúrias, "que para a ou­
tra vez era ali na batata!"
Aborrecimento de se ver obrigado a fazer exercícios, a sueca prin­
cipalmente, que o instrutor, Tenente Dantas, mais moço do que ele,
era um chato de primeira . Abominava os plantões forçados, a cair
de sono e de cansaço, nas noites frias como gelo. Enervava-se com
a pasmaceira das horas de folga, dentro da caserna, sem poder sair,
sem nada para fazer, vendo a cidade, lá longe, viver ao sol, rútila
e colorida, a sua agitação cotidiana. Gozo de matar na cabeça a
passagem do bonde, olhando do alto para o condutor xepa.
- Que é que você quer, portuga?
Não pagar. Não conhecia ainda, na vida de soldado, coisa melhor
do que a carona. Sem tostão no bolso, cismava de ir à cidade pas­
sear, tomava o bonde, ficava de pé atrás, e ia mesmo.
Culôte recortado, justinho e redondo, elegância muito gabada na
bateria pelos entendidos, passou por "crente", entre os soldados re­
laxados, por causa das perneiras paraná engraxadíssimas.
Tempo de recruta, de exercícios, meia-volta-volver, ordinário-mar­
che, formar por dois, "que é um canhão?", "quais são os deveres
do soldado?", "em quantas partes se divide um fuzil Mauser?" Borg.
tempo.
Passou a pronto. Cabo Maciel corneteiro, há oito anos seguros
tocando na bateria silêncio e alvoradas, caiu da sua altiva mudez :
- Agora, sim, você é soldado com todos os fff e rrr.
Reclamava a bóia, a gororoba, todos os dias : "Temos garopeta
outra vez?" Garopeta era cação ensopado, prato de resistência das
sextas-feiras. Sargento Curió, encarregado do rancho, abria uma fi­
leira de dentes alvíssimos : "Quá! Quá! Quá!" Os camaradas go­
zavam: "Este sujeito tem graça!" Começou a ficar desleixado, pe­
gou xadrez por estar assobiando a Dondoca na formatura para a
revista, abriu esbregue com o Louva-Deus, o Espinafre tomou as
dores do outro, foi um salseira no corpo da guarda, dormiu três
noites na solitária.

IX

Conheceu Oscarina no mafuá de Botafogo, defronte à barraquinha


das argolas .
- Dunía morena assim é que eu precisava lá em casa . . .
Osc�rina, rebolando, virou de lado, como quem não quer, mas
dando corda:
- Sai, pato! . . .
Ele não dormiu - foi-lhe atrás. Oscarina olhou para dentro da
barraquinha azul e pôs as mãos no peito feiticeiro:

20
- Ai! que lindo, meu Deus! - puxou a amiga: Veja aquele
pançudo, F1orinda! . . .
O pançudo era um cupido de celulóide, que estava na primeira
prateleira da barraca, enfeitada com papel de seda.
Chegou-se:
- Quanto é, hem?
- Não é para vender não - respondeu o homem, jogando a car-
tola mais para o alto da cabeleira - é para prêmio. E explicou:
Quem acertar dez bolas no buraco, naquele buraco do centro, está
vendo?
- Ahnn! . ..
- Cada bola um tostão. Não quer?
- Eu quero! - e Jorge avançou, entornando níqueis no balcão.
Perdeu a conta das que jogou, mas trouxe o boneco:
- Está aqui.
Oscarina, que ficara torcendo, só pôde dizer:
- Você tem uma mira . . .
Comprou-lhe sortes, ela tirou um paliteiro de metal, pagou refres­
cos, convidou-a para o circo. Loura e velha, a mulher que se equi­
librava no trapézio foi tratada por Oscarina de mocoronga. O mula­
to não se conteve e virando-se para o Jorge externou seu entusiasmo
pelo japonês, mas como fossem poucos os aplausos para o seu pre­
dileto, afirmou categoricamente (e Oscarina olhava-o de lado) que a
platéia era ignorante, não reconhecia os méritos, só gostava de pa­
chouchadas, não sabia o que era um artista de fato. Os palhaços
eram cinco. A pantomima que fechou o programa foi engraçada e
mereceu palmas e elogios. E, quando acabou a função, Oscarina tinha
tomado conta dele.
Pararam em frente ao palacete colonial, branco e sem luz. Ele
se admirou:
- Bonita. É aqui que você trabalha?
- É. Quer entrar? - encostava-se, balançando-se, na grade de
ferro, tentadora, provoc.ando.
- E os patrões?
- Estão em Petrópolis, veraneando. Eu estou tomando conta da
casa . . . - deu uma risadinha: Quer me ajudar?
Ficou receoso :
- Olhe lá, hem! . ..
Oscarina arrastou-o pelo braço:
- S'é bobo! Deixa de medo. Vem . . . - e virando-se para
avisar: Mas pise no cimento com jeito para os vizinhos não ouvirem.
Preferia morrer a perder uma sequer daquelas noites delirantes.
Sentia desvendado para ele o segredo da vida. Que de revelações,
que de êxtases, peito contra peito, desejo contra desejo, a sua moci­
dade e a juventude dela. Com que olhos diferentes via as manhãs
e as noites. Lua, grande lua - contemplava-a, na guarita ao dar
21
serviço - como te acho diversa, sublime, poética, agora que eu
conheço o amor!
Saudoso : que estará fazendo ela a esta hora? - martirizava-se em
interrogações, nas horas intermináveis do quartel.
Com que sofreguidão, à noite, se lançava nos braços mil vezes an­
tevistos e desejados durante o dia :
- Oscarina!
- Como é aquele samba mesmo, Jorge? - e chupava os dedos
lambuzados de cocada preta.
- Qual é? . . .
- Aquele de ontem, meu filho, da mulher ingrata.
- Ah! Já sei! . ..
Afinava a voz, pigarreando :
- Mas os vizinhos?
Eles que se danem! - retrucou decidida.

Maria . . . Maria . . .
A q uela ingrata
que roubou minha alegria . . .

Oscarina fazia dele gato-sapato, um pamonha que estava:


- Você tem de sair à paisana, benzinho.
- Se alguém me vê e der parte eu tomo cadeia.
- Você tem de sair - batia o pé. - Vê lá se eu vou ao clube
com um soldado! . . . - e fazia beicinho de desprezo.
- Bem, não precisa fazer escarcéu.
Dava, com dificuldade, o laço na gravata, que estava perdendo o
jeito de ser paisano e saía, se fosse para o xadrez - melhor. Caía na
dança. Oscarina suava acremente nos seus braços, reclamava quando
ele a apertava demasiadamente :
- Assim, não, que me amarrota o vestido de georgete! Fica como
se tivesse saído da boca dum cachorro . . .
- Eu dou outro.
- Só se for comprado com caroços de• tangerina. Você é um
pronto.
- Quá! Quá! Quá!
- E falando nisso, olhe, não pense que eu me esqueci daqueles
cinco mil-réis que emprestei, não. Tem de me pagar, está ouvindo?
- Quá! Quá! Quá!
- Se tem! Que é que você pensa?
Ao voltarem, eram carinhos sem ter fim. Pagava a pena.
Como deram passeios no Silvestre, no Saco de São Francisco e
em Paquetá ( onde ela nunca tinha ido e achou enjoado ) , deixou
por três domingos seguidos de ir em casa e recebeu um bilhete aflito
da mãe, indagando se estava doente e informando que a Zita tinha
ido saber notícias dele, já que não aparecia.

22
Ficou aborrecido, espichado na cama, machucando o papel nas
mãos ásperas de tanto lixar cano de carabina. Quase deserto o dor­
mitório. O Cobra D'água remexia a mala de courinho, cuja tampa,
internamente, era completamente forrada de gravuras coloridas, na
maioria mulheres nuas, que ele cortava das revistas. Peru, com uma
escova - de dentes, limpava as perneiras com meticulosos cuidados. O
sol entrava pela janela e iluminava em cheio o Altamiro, entre as
duas filas de camas, jogando boxe com a própria sombra. Moscas
zumbiam.
Peru forçou o silêncio:
- Você tem muitos percevejos na sua cama, Jorge?
Não lhe deu resposta. Desamarrotou a carta e releu-a:

. . .o Henrique morreu an teontem de meningite. Eu não vi, mas Dona A lice


disse que sofreu m uito, coitado . O m édico falou que foi uma felicidade para
ele e nós achamos tam b ém . Seu pai, que anda passando pior do nervoso, fez
uma grosseria, que me deixou envergonhada, não acompanhando o en terro.

Levantou-se e foi cavar uma licença com o tenente de dia, que


estava no cassino, ouvindo vitrola.
A mãe, alvoroçada, beijou-o com calor; apalpava-lhe o corpo em
busca duma lesão possível, que ela sabia muito arriscados os exer­
cícios que faziam os soldados, sujeitos a quedas perigosas :
- Você se machucou, meu filho?
- Que tolice, minha mãe! É que estou estudando para o con-
curso de cabo - e escarrapachou-se no canapé da sala.
Dona Carlota respirou : uff! - mas repreendeu-o logo :
- E não podia escrever um bilhetinho que fosse?
- Onde é que eu ia tirar tempo? Não posso nem me coçar. A
senhora não sabe o que é aquilo! . . . - Batia com a palma das
mãos nas pernas : Só os demônios das granadas, mais de dez dife­
rentes, se dividindo em não sei quantas peças e a gente ter de decorar
os nomes todos . . . .É de acabar com a paciência duma criatura! . . .
A senhora nem calcula que paulificação é a teoria.
O pai estava seco, perguntava as coisas assim por alto, tinha com­
pridos intervalos, raspando as unhas com o canivete, ou tirando fia­
pos das calças. Sentiu-se acanhado, fora de seu meio, como um
estranho na sua casa ; não compreendia os excessos da mãe em
aprontar-lhe um "cafezinho bem gostoso" - com pão de ovo, da­
quele que você tanto gosta, sabe? - não retribuía às festas intermi­
náveis do Pirulito, correndo, latindo, ora saltando-lhe no colo, bar­
riga para cima, as pernas abertas, se oferecendo a carícias.
Não quis ficar para jantar, alegando que dera uma fugida e podia
ser observado, o que era o diabo assim em véspera de exame, a mãe
ficou triste - "ora, que pena!", gemeu num tom lastimável - e foi
procurar a namorada a quem repetiu a mesma história.
- Para que você quer ser cabo? - interrogou-o.

23
Não perdeu a linha :
- Ê cá um plano que eu tenho. Mais tarde, faço exame para
sargento e peço transferência para a Escola de Contadores . S aio de
lá oficial intendente, com um ordenado que é uma mina! Não é boa
a idéia?
A Zita agradava-lhe a farda. O pai era militar, o avô também o
fora. Apoiou-o :
- Ê.
O interessante é que se meteu no concurso mesmo . Seus objetivos,
porém, eram outros . Oscarina andava exigente, reclamava a falta de
dinheiro, que vivia presa em casa como uma freira, não a levando a
lugar nenhum, ela que gostava tanto de se divertir . . .
- Por que você pensa, Jorge, que não cansa aturar o dia inteiro
Dona Flora? São visitas a não acabar mais . E o marido é o tipo
do suj eito ranzinza, impertinente, que acha tudo ruim, malfeito. De
noite, estava com a cabeça cheia.
- Mas se eu ganho só vinte e um mil-réis por mês, meu ben­
zinho? - explicava abraçando-a e beijando-lhe a face com ternura.
- Não quero saber de nada, procure ganhar mais ! . . . - e re­
pelia-o com a cara trombuda.
Pôs o relógio no prego, um relógio-pulseira, presente da mãe no
seu último aniversário, quis comprar um perfume Coty, mas o di­
nheiro não dava, comprou um Fanal, o caixeiro fez um embrulho
frajola, levou-o a Oscarina.
- Onde você arranjou dinheiro para isso, camundongo?
- Vendi o relógio. Não deu nada. Tanto que o perfume não é
grande coisa, mas você não repare, que foi dado de coração .
Oscarina se comoveu :
- Que loucura! Eu não pedi nada. Não faça mais dessas!
- E o que você disse ontem?
- Foi brincadeira, meu bem. Então você não viu logo? . . .
Ficou sem palavras, olhando-a, sem compreendê-la. Ela se chegou,
enlaçou-o, os braços pendurados no s eu pescoço :
- Você tem um bruto xodó por mim, não negue . . . Se eu
morresse . . .
- Não fale . . . - tapou-lhe a boca com um beijo profundíssimo .
Ela rendeu-se, caíram na cama, mordendo-se mutuamente, sob a
luz fraca da lâmpada.
Fazia calor . Um cheiro a mofo dominava o quarto.

- Amazonas, capital, Manaus . Pará, capital, Belém.


No dia do exame, um grande calor pesava dentro da sala. O ca­
pitão cochilava na poltrona. Constipado, Sargento Guimarães Gordo

24
( havia um outro magro ) fungava, lançava olhares inquietos sobre os
homens da turma que preparara, não fossem eles responder b estei­
ras e deixá-lo exposto a alguma repreensão severa dos superiores . O
Saracura tremia. Galinhas cacarej avam na casa do comandante.
- Três vezes seis, dezoito . Três vezes sete, vinte e um. Três vezes
oito, vinte e quatro . . . - a voz se arrastava como se a estivessem
puxando .
O 163 foi espinafrado porque respondeu cheio de vergonha, a cara
prestes a estourar de sangue, que três vezes oito eram vinte e
cinco . . . Houve risos incontidos . O capitão espertou. Remexia-se
na poltrona, não achava cômodo, passava o lenço no pescoço, im­
paciente, doido p ara acabarem logo com aquilo, mas Tenente Amé­
rica, muito compenetrado, fazia perguntas sobre perguntas .
- O verde da nossa bandeira significa a riqueza das nossas
matas sem fim . . .
- Muitó bem! - aplaudiu Tenente Cristóvão, um magricela, b a-
tendo com o lápis , aprovativamente, na mesa. - E o amarelo?
--; O nosso ouro !
Apresentaram-lhe o fuzil :
- Que peça é esta? - e apontavam.
Alça de mira .
- E aquilo ali?
- Ranhura.
A ãprovação foi lida de tarde, no boletim do dia. Seria cabo.
Seria, vírgula, j á se considerava cabo, tanto assim que, antes de pro­
movido, passeou arrogante, com as duas divisas pretas num braço
e a Oscarina no outro, pela Praia de Botafogo, fervendo de gente, no
domingo de regatas .
A promoção não demorou a vir, entre parabéns de uns e profecias
de outros : isto vai ficar um tesa que ninguém agüenta. Viva! Uma
bebedeira notável com Oscarina, que entrou firme na Hanseática, e
alugaram um quartinho no barracão de Seu Pinto bem no alto da
Vila Rica, porque os patrões dela já tinham descido da serra e es­
tavam ficando perigosos os encontros no seu quarto, ao fundo do
jardim , em cima da garagem. .
- Isto aqui é bonito, não? - fazia ele, se espreguiçando, a túni­
ca desabotoada, as pernas abertas, sentado no caixote de querosene .
Ela também achava.
As avenidas eram colares luminosos na orla do mar. A aragem
fazia tremer, brandamente, as folhas da goiabeira ; altas , puras no
céu, estrelas lucilavam.
Gargal!t ou a coruja na socada de bananeiras . Oscarina se arrepiou,
persignando-se :
- T'esconjuro !
Jorge sentiu o coração pequeno. Um frio de morte gelou-lhe o san­
gue nas veias . A lua era branca.

25
XI

Treinou com afinco e foi para o primeiro quadro de futebol. Era


ágil, veloz, tinha viradas perigosas e oportunas quando havia encrenca
fechada na porta do gol. A torcida arranjou-lhe logo parecenças
ilustres :
- Viradas dessas, entradas assim, cutucadas malucas no gol-quí­
per? Só o Gilabert, o Gilabert do Andaraí.
O Alísio, despeitado porque foi barrado, dizia que aquilo era pêlo,
que o Jorge era um fundo, que mais dia menos dia, haviam de ver,
iria enterrar o time.
Sentiu-se ofendido, teve vontade de dar uns bifes na cara do in-
decente, não deu porque Oscarina acalmou-o, aconselhando-o :
- Joga o desprezo nele, meu bem, e chuta com fé.
Daí para sempre virou Gilabert. Até o comandante fez a mudança :
- Cabo Gilabert, leve esta ordem no corpo da guarda. Depois
- olhe! - depois passe pelo cassino e traga o mapa que eu esqueci
lá. Deve estar no sofá.
Aliás, ele achava que Gilabert soava melhor. Gilabert . . . - mur­
murava repuxando a pele, no espelhinho de pendurar, fazendo a bar­
ba. Sentia-se outro, mais forte, mais homem . Deixou crescer as
costeletas . Foi à macumba da Gávea, levado pelo Cumbá, que tinha
o corpo ferrado, mandou tatuar o peito com tinta verde e amarel a :
a pomba voando levava u m coração n o bico, e dentro do coração
a flecha furava o nome adorado - Oscarina.

Xll

Um dia, dia de pagamento do soldo, bebeu demais e como era


fraco de cabeça pôs-se a fazer disparates . Esmurrou a porta do bar­
racão, entrou aos berros, fumando charuto Palhaço, enguiçou com
a comida :
- Não como esta porcaria!
- Se quer melhor, vai fazer!
- Que é que você disse? !
- Isto mesmo ! Se quer . . .
Não completou a frase. Jorge suspendeu o braço e deixou-o cair
de rijo na boca da amante. Ela quis reagir :
- Você está louco, desgraçado !
Procurou qualquer objeto à mão para se defender, viu a vassoura
atrás da porta e correu para apanhá-la mas ele persegui�a, alcan­
çou-a e bateu-lhe sem dó, cegamente, atirou-a ao chão, pisou-a.
- Toma pelo desgraçado ! Toma! Miserável !
Ameaçou-a ainda :
Apanha a vassoura, apanha, para você ver o que acontece ! . . .

26
Ela, porém, chorava, estirada no chão, descabelada, arfando, es-
condendo o rosto entre as mãos .
Depois da surra ficou pelo beiço :
- Gila . . .
Atirou-se a ele, devorou-lhe a cara com beijos ferozes .
- Deixa eu catar um piolhinho? - implorou, transbordante de
candura. - Deixa, hem?
Ele, estirado na enxerga, já ressonava, babando-se. Oscarina, en­
tão, sentando-se na cabeceira, começou a suspirar e contemplava-o.
Como estava ficando queimado do sol . Era de tantos exercícios .
Coitado d o meu bichinho ! - coçava-o .
Deixou definitivamente de ver a Zita. Ora a Zita! . . . Uma bo­
bagem, que a gente quando é criança faz muita besteira assim.
Comparava-a com Oscarina, dum lado para o outro do cômodo,
-
muito dengosa, os brincos de argolas caindo-lhe até os ombros,
ajeitando a todo instante a gaforinha alta, sedosa, à la garçonne, ar­
rumando as coisas, dando por falta de camisas dele, "aquela amareli­
nha com uns risquinhos" - quer ver que a Zeferina perdeu? ! . . .
e punha o dedo na boca.
Havia um pouco de parcialidade, mas o certo é que a Zita saía
perdendo.
Oscarina estacou :
- Estava para dizer uma coisa . . . - e fitou-o com uma cara
muito sonsa - mas tenho medo do seu gênio.
- Que é? - interrogou-a, levantando, brusco, da cadeira.
- Está vendo? Por isso é que eu não queria dizer nada ! Você
fica logo exaltado, como se isso adiantasse alguma coisa . . . Virgem
Santíssima! . . .
- Que é? - repetiu.
---< Você promete que não fará nada?

Ficou indeciso, "não sei" . . .


- Promete?
Não pôde com o olhar dela, um olhar mole, penetrante, como j a­
mais �ira igual, os olhos castanhos perfurando-lhe o coração como
uma verruma.
- Prometo .
- Jura? Olha que se não .
Que mundo de infortúnios havia naquele "se não" . . . Que de
desgraças passaram-lhe pela mente, ele abandonado, ela fugindo . . .
Cerrou os olhos :
- Juro !
- Pois o 1 23 - você já viu só? ! - aquele sujo sempre que você
sai, vem aqui, com parte de conversar, me conta uma porção de
histórias , diz que você é assim e assado, que eu abra os olhos , não
seja boba, fica até meio ousado, dando para mim uns olhares assim
um tanto aliás . . .

27
Soltou um suspiro fundíssimo de alívio, como se tivessem tirado
de cima dele um peso que o esmagasse : só isso? !
Mas roncou :
- Deixe ele comigo . . .
E não foi promessa vã. O 1 23 apanhou dez dias de xadrez, ali
no duro, porque Cabo Gilabert que em matéria de autoridade e dis­
ciplina, agora, não estava sopa não, deu, por caus a da limpeza do
rancho, uma parte dele que metia medo .

XIII

Coronel Gonçalves, pai da Zita, amargurava-se em conversas


íntimas :
- Mulher é mesmo o diabo ! . . . Pois não é que a Zitinha, afinal
de contas, não é para gabar, uma menina de boa família, que eu
eduquei com todo o carinho e sacrifício, prendada, instruída, que pode
arranj ar facilmente os melhores partidos , virou a cabeça, teimando
em querer casar com o Jorge, um malandro, que assentou praça por
preguiça de trabalhar?
- Eu sempre disse que aquele suj eitinho não prestava - acidulou
tia Alrnira . Eu nunca me engano! . . . - E enérgica : Mas você
também é um banana, meu irmão . Proíba-lhe de continuar com esta
tolice. Então, você não tem autoridade? Acabe logo com esta crian­
cice dela e vá s e preocupar com negócios mais importantes . Ah,
s e fosse comigo ! . . .
O coronel reformado adorava a filha . Morreria s e lhe causassse
um desgosto. Quando ficara viúvo, ela contava apenas dez anos .
Pensou em alugar uma governante. Resoluta, não consentiu e tomara
as rédeas do governo da casa. Era econômica, ativa, desembaraçada.
Ciumenta, não quis que ele novamente se casasse. "Você é só meu",
dizia e fazia violenta oposição, e não raras descortesias, às amigas
da casa, que poderiam merecer o papel de nova consorte, que ele
era bom, o major, e não lhe faltavam pretendentes . S abia-a amorosa
como ninguém, capaz dos maiores sacrifícios pelos entes que amava.
Aquilo, pois , não era coisa que facilmente s e extinguisse. Entregava
tudo ao tempo . Procurava distraí-la, levando-a aos cinemas , às festas ,
aos teatros. Na matinê da Tosca, já estava na porta, de chapéu na
cabeça, pronto, esperando, quando ela caíra-lhe nos braços soluçando :
- Papai, não quero ir. Não me obrigue, meu paizinho ! . . . Sin­
to-me tão triste . . . Não . . .
Perdia noites de sono, fumando longos cigarros goianos na salinha
de entrada que lhe servia de escritório, com a secretária e as estantes
de acaju, planejava chamá-la e falar-lhe seriamente, vinha-lhe um
pudor de parecer a ela injusto, pensava na sua viuvez. Ah, se Ro­
sinha estivesse viva ! . . .

28
XI V

Dona Carlota, crédula, mentia para as vizinhas :


- Está fazendo carreira. Quando completar o tempo preciso entra
para a Escola de Contadores . Sai, então, oficial. É uma carreira
muito bonita, não acha, Dona Zulmira?
A matrona não negava, mas achava muito perigosa com esta his­
tória de guerras e revoluções . Tinha uma parenta longe que perdera
o filho no Sul, tenente, muito distinto, num tiroteio .
Dona Carlota procurou sorrir, vinha o leiteiro, com a bolsa a tira­
colo, recolhendo as garrafas vazias , mudou de assunto, falando da
falta de leite.
Seu Santo s , na repartição, na nova escrivaninha, a que pertencera
ao Seu Castro, enquanto limpava os óculos não trabalhava e ficava
muito sério, pensando no fim que teria aquilo. Filho único . . . Como
ele o queria a seu modo ! . . . Como ele o amava ! . . . Jorge . . . A
repartição perdia para ele a realidade. Reconstruía a sua vida remota,
anos atrás , na avenida esburacada do Pedregulho, quando trabalhava
muito para ganhar uma insignificância na casa do Seu Freitas, um sovina
que, afinal, perdera tudo e morrera miseravelmente, contavam, num
hospital de alienados .
Que cachos tão louros tinha ele! . . . Esperava-o todas as tardes
no portão, quando vinha esfalfado do trabalho, e rindo, batendo pal­
mas, fazia-lhe queixas , mostrava-lhe a roupa nova, um pimpão de
chitinha.
Tinha, então, um único terno. Aos domingos não saía para poupá­
lo, mas nunca faltara em casa a água-de-colônia francesa e o sabonete
Reuter para os banhos diários do menino.
Quando Jorginho teve tifo, era pequenininho, ficou como louco,
passou quinze noites a fio acordado, velando-o, noites atrozes, em
que as horas pareciam que não queriam passar. Fora Dr. Pontes , j á
muito velho, que o salvara. Importunava-o, quase desvairado :
- Que é que acha, doutor?
- Vai melhor, vai melhor . ( Dr. Pontes tinha a voz arrastada e
tremia. ) O senhor é que precisa ter calma, repousar.
Nas manhãs feriadas, quando ficou bom, ia devagar com ele, todo
em rendas , muito rosado, muito tagarela, apanhar sol na Quinta, que
o médico aconselhara. Armavam-se piqueniques à sombra escura dos
bambuais . Rapazes, em mangas de camisa, remavam no lago, e o
lago era claro, co mo um espelho que refletisse o céu, mas se pas­
sava uma nuvem, as águas tornavam-se escuras, e ele ria porque
Jorge não compreendia esse milagre.
Enchia-se de orgulho se os olhos dos passantes, e eram muitos,
se voltavam para a beleza de seu filhinho. Jamais esquecera o acidente ;
a moça não falara alto, mas ele ouviu perfeitamente :

29
- Que criança linda! Veja - travou a companheira, que não
reparara e continuara a andar, e apontou : Será aquele o pai?
Ele também duvidava.
Comprara-lhe, num aniversário, uma roupinha à marinheira, ver­
melha, a gola e os punhos brancos. Presenteara-o também com uma
bengalinha. E ele ganhava pouco. Quantos pequenos sacrifícios !
Mas que íntimas satisfações !
No entanto, os cavalinhos duravam horas, as piorras com música
mal chegavam a funcionar, a bengalinha por um triz que não se
quebrou no primeiro dia. Carlota condenava-o : "Dinheiro posto fora.
Por que você não compra logo uma coisa boa, que tenha serventia?"
Ele se sentia feliz. Como o tempo corre. Isso tudo parece que foi
ontem! Como a gente muda! Onde os castelos arquitetados? Onde
os sonhos
- tecidos? Carlota decaía a olhos vistos. Tudo desfeito, tudo
ruído, tudo acabado! . . . Filho único . . .
O encarquilhadp_ Peixoto, um tuberculoso crônico, soltava pigarros
no fundo do salão. Dona Ester, dactilógrafa, pendurava-se no tele­
fone; o servente lia um jornal. Martins escrevia. Três horas. Atra­
vés da janela, a Ilha Fiscal levantava-se das águas, como uma apa­
rição mágica, sob 9 dia perfeito. E a vela deslizava no azul. Barcas
apitavam. Vozes subiam no pátio.

XV

Coitada da Zita que chora noite e dia, magra, abatida, as pálpebras


inchadas, um ar de dor infinita. As amigas tentam consolá-la:
- Um ingrato. Ora, você! . . . Esqueça . . .
- É muito bom de dizer . . .
As amigas calavam a boca, menos a Maria do Carmo, muito tolinha,
que atirava piadas insossas e inoportunas : a paixonite cura-se com
outra paixão. O pai é que não dava um pio - esperava. Titia era
feroz :
- Vagabundo!
Zita não dizia nada. Recolhia-se ao quarto. Ele vem. Jorge é
muito bonzinho! . . . Gosta dela. É por causa do serviço apertado.
Sua fotografia continua na mesinha de cabeceira, ao pé da lâmpada
de porcelana, num minúsculo porta-retratos. Mas quando vinha uma
crise mais forte, atirava-se na cama, mordia o travesseiro e, inundada
em lágrimas, pensava em ser freira, martirizava-se de jejuns.

XVI

Oscarina gastou seda estampada no baile das Mimosas Pastorinhas.


- É a última moda, Gila. Que tal? - e pavoneava-se defronte
do espelho.
30
Um cheiro pesado de transpirações impregnava o salão, enfeitado
de serpentinas, caindo do teto, como chuva de pontas multicores.
Cada um dançava duma maneira, isto é, cada qual sacudia-se a seu
modo, procurando acompanhar o compasso do pandeiro, o Pandeiro
Infernal, faladíssimo, um mulato de bigodinho.
O de pernas tortas levantou-se :
- Vou ver s e topo uma negra pra esta virada.
Enganchou-se na crioula gorda, que mais gorda ainda se fazia com
o vestido de organdi, quase arrastando.
O português estava de branco na varanda, despertando invejas no
sereno, se abanando, solando a mulata :
- Que calor!
A mulata era rebelde :
- Pra que veio cá?
Gilabert, que estava com o pé ainda dolorido da torção sofrida
no último treino com o Confiança, muitíssimo rigoroso, plantou-se no
bufê, mas Oscarina divertiu-se à grande e, longe dos olhos fisc aliza­
dores dele, tirou uns fiapos com Seu Rogério, o pianista, tipo do
invocante com aqueles óculos de tartaruga, a gravata larga, o cabelo
crescido, jogado para trás, à poeta.

XVII

Cabo Gilabert progride. Desarranchou-se, recebendo mais por isto.


Como Oscarina foi aumentada por Dona Flora, a patroa, que não se
ajeita com outra arrumadeira, "umas lambuzonas incapazes de servirem
um chá a uma visita de cerimônia", estão folgados. Canta, todo caído,
de noite, no silêncio do barracão : "Oscarina, eu vou morrer . . . "
acabando nuns gemidos canalhas, "uê, uê . . . minha nega".
- Estou caindo aos pedaços, meu anjo . . . - Esfrega a mão nos
olhos : Que sono! . . . - E abrindo a boca saliente : Vamos dormir?
___, Vamos lá pra fora. A noite está linda . . .
- Isto é valsa. Não vou no golpe.
Ele ri. Oscarina está quase nua. Das rendas da camisinha a carne
pula,
. redonda e quente. Cai-lhe de beijos, ela se arrepia - ai! . . .
ai., . . .

XVIII

Agora, os seus pileques são no quarto mesmo, junto com a cabrocha


que emagreceu e se saiu uma esponja de primeira grandeza. Oscarina
quando bebe fica exaltada, ele canta sambas, num berreiro :
A malandragem
Eu não posso deixááá . . .

31
Não deixa mesmo, que a vida para ele é vida de malandro. Ora
se . . .

XIX

Seu Pinto, certa noite, mandou reclamar o barulho. Gilabert ficou


enfezado :
- Espera um pouco que eu te estrago o capítulo, mondrongo sem
vergonha!
Foi lá e deu-lhe uns encontros :
- Que é que você faz?
Oscarina pôs a boca no mundo. Chovia, mas, no escuro do céu,
algumas estrelas brilhavam.
O incidente logo pela manhã transpirou no quartel. Talvez o 1 23,
que morava mais acima no morro, no barracão de Seu Rodrigues,
talvez o próprio Seu Pinto . . . Não se soube. Certo é que fizeram
rápida devassa e o comandante mandou a escolta buscar Gilabert, que
estava com uma licença de quatro dias.
Cabo Jeremias, que afinava o cavaquinho, quando viu s air os
homens eq�pados, expectorou a frase da moda no quartel para a
previsão de enrascadas :
- Batata vai assar! . . .
Ao que ajuntaram do fundo :
- Se vai! . . .
E se preparam para o coro do chorinho.

XX

Zita perdeu o noivo. Soldado não casa porque é proibido e Jorge,


definitivamente Gilabert para todos os efeitos e amásio de Oscarina,
que completara o tempo, engajou por mais dois anos .
- A vida é boa, não é, Oscarina? - consultara.
- Eu acho.
- Eu também. Nada de meias-voltas na vida. Ia era cavar para
o concurso de sargento.
Gatos miavam, luxuriosos, e alguém os espantou jogando-lhes água
fria.
- Sargento Gilabert! - e empertigava-se defronte de Oscarina,
espichada na enxerga : Que tal?
- Ganha mais, hem?
- Se ganha! Dinheiro pra burro!
Oscarina teve uma pausa pensativa :
- Então há de comprar um vestido para mim todinho de veludo,
não é, Gilabert?
- Dois até!
32
- Não diga . . .
Ensaiou uns passos requebrados de samba, firmou-se e saiu-se com
esta : ·
- Mulher, você me consome!
Oscarina enxotou no ar, como importuna, qualquer coisa que não
existia :
- Sai! . . .
Agora, eram cães que latiam, no alto do morro, para os lados da
caixa-d'água.

NA RUA DONA EMERENCIANA

CoMo ERA dia de pagamento no Tesouro, chegou em casa mais cedo


que de costume, não eram ainda duas horas batidas no carcomido
relógio de parede, cujas pancadas lentas soavam como um ranger de
ferros velhos. O pintassilgo debicava a cuiazinha de alpiste. Des­
cansou os embrulhos em cima da mesa nua, ocasionando um vôo pre­
cipitado de moscas, dobrou o jornal com cuidado, obedecendo às suas
dobras naturais, e escovava o chapéu, preto e surrado, quando Dona
Veva, pressentindo-o, perguntou da cozinha :
- Você recebeu, J erome?
- Recebi, filha - respondeu pendurando o feltro no cabide de
bambu j aponês, que atulhava o canto da sala, por baixo duma tricro­
mia, toscamente emoldurada, representando o interior dum submarino
inglês em atividade na Grande Guerra.
-· E trouxe tudo?
- Menos o pé-de-anjo da Juju porque me esqueci do número.
- Trinta-e-sete e de florinhas, vê lá se vai esquecer outra vez, seu
cabeça de galo ! . . . Olha que ela já faltou ontem e hoje à escola por
não ter sapatos . A professora até mandou saber por uma colega se
ela estava doente.
Não havia meio do garfo tomar brilho. A galinha cacarejou no
terreirinho cimentado. Dona Veva se esforçava passando pó de tijolo
e o diabinho da Fifina a bulir nos talheres.
- Tira a mão daí, menina, que você se corta!
Seu Jerome tossia, admirava o pintassilgo :
- Que é isso, seu marreco, então passarinho de papo cheio não
canta?
Dona Veva virou-se :
- E a V enosina, achou?
- No Gesteira, não tinha, comprei no Pacheco mesmo : treze e
quinhentos !
Dona Veva emudeceu com o preço : treze e quinhentos! Abriu a
torneira toda para lavar a panela. Seu J erome, pigarreando no fundo
33
da alcova, trocava os sapatos pelos chinelos de corda com âncoras
bordadas .
- Pode botar o café.
A Fifina saiu que nem foguete para ir buscar pão na padaria.
- f: preciso pagar a Seu Salomão sem falta - continuou Dona
Veva. - Ele já veio ontem, que era o dia marcado, eu pedi desculpas,
que você não tinha recebido ainda, o pagamento andava atrasado -
por causa dos feriados, expliquei - e marquei para passar hoje. Tinha
me esquecido de avisar. Fiz mal?
- Não, Veva. Quanto é?
- Assim de cabeça não sei, meu filho, só fazendo as contas .
Espere um pouquinho que eu já vou ver.
Enxugou as mãos ásperas no pano de pratos muito encardido,
guardou a louça no bufê enfeitado com papel de seda verde e recor­
tado, ele acavalou o pincenê azinhavrado no nariz flácido, e sentaram
à mesl! com o caderno, das despesas, exatamente quando a Fifina vol­
tava com o pão, suada e esbaforida.
Seu Azevedo, vizinho, um bom homem, de tardinha, palito nos dentes
e paletó de pijama listrado, vinha com a Lúcia e a Ninita, as pequenas,
gozar a fresca - digam lá o que disserem, não há como os subúrbios
para uma boa fresca! - comentar a Esquerda com seu Jerome, dar
dois dedos de prosa com a comadre, perguntar pela entrevadinha,
sempre da mesma maneira : e como vai a titia? - porque era ela uma
tia velhinha e paralítica, que Seu Jerome abrigava e prodigalizava
mudos cuidados . Mas, se Seu Azevedo era bom, era irredutível a
respeito dos políticos, "todos eles uns grandessíssimos piratas" .
- Uma calamidade, meu compadre, é o que e u lhe digo, uma
calamidade. Tudo perdido. Sim, perdido ! Não tem que estranhar a
expressão . Que é feito da dignidade? E da honestidade? Leia os
jornais , veja, e me responda! Não há mais brio, não há mais nada!
Uma caterva de ladrões ! Só ladrões ! E os políticos? Ah ! Ah ! Ah !
Num país assim, só Lampião como presidente, Jerome. Lampião,
ouviu? Lampião !
Parou vermelho e ofegante. Vinha do morro, salpicado de casebres
e de roupas a secar, uma brisa ligeira que trazia a cega-rega duma
última cigarra escondida no colorido vivo duma acácia imperial. Seu
Jerome ria: êh ! êh ! êh ! - risada pálida, quase forçada, curta, êh !
êh! êh ! , afinal a sua risada. A cigarra parou. Diminuiu a brisa. Dois
pombos doll!ésticos pousaram no telhado. As meninas estavam pres­
tando atenção ao rapaz que passava, de lá para cá, no portão da
avenida, fumando e lançando olhares furtivos.
- Para mim é o louro, com cara de alemão, que nos seguiu
domingo até aqui, quando saímos da matinê - falou baixo a Ninita,
disfarçando.
- Será? - fez a outra, duvidando. - Qual o quê. O outro tinha
a cara chupada e não andava assim.
34
- É porque você não prestou atenção.
- Se papai desconfia . . .
- Boba.
O pai declamava a pouca-vergonha na Recebedoria. Pois não sabia?
Seu Jerome conhecia por alto a encrenca do Martins, o que fazia
versos, desviando cerca de vinte contos. Não sabe da missa a metade,
meu caro! Eu sei, eu sei. Relatou, tintim por tintim, o caso do des­
falque, os nomes dos comprometidos, as intrigas, as costas-quentes
dos protegidos, o cinismo dos capachos negando tudo.
Dona Veva chegou à janela, cabelo cortado, grisalho e maltratado,
a falta de dentes abrindo-lhe no queixo curto uma ruga funda, impres­
sionada, um tanto, com a demora de Judite que tinha ido à cidade levar
uma encomenda de bordados. Só se Madame Franco não estava em
casa e ela ficou esperando . . .
Mãos nos bolsos da calça, abrindo no meio da calçadinha as pernas
esguias e ossudas, Seu Azevedo dirigiu-se a ela :
- E nós é que sofremos. Nós ! . . .
Dona Veva se espantou : Nós? Ora essa! Por quê? - ia perguntar.
Mas Seu Azevedo, fechando a cara, prosseguiu :
- É triste, muito triste . . . - e entrou a falar com abundância,
com ódio, com rancor, do estado de coisas que os punha pequenos e
pisado� - pisados, sim, senhora, é a expressão : pisados! - pelos
grandes, s em esperança, sem oportunidades, sem direito a um destino,
meros fantoches nas mãos hílares dos ousados e favorecidos.
- Boa tarde, vizinhos ! . . . - Dona Pequetita, casadinha de novo,
cumprimentou, muito mesureira, apontando no alpendre, com sua
caixa de costuras para, esperando o marido, aproveitar ainda mais um
pouco a luz do sol que se ia.
Responderam, e Seu Azevedo resumiu com indiferença, talvez com
bondade, acariciando o bigode :
- Este mundo é uma bola, Dona Veva. Este mundo é um circo . . .
Dona Veva, esfolando os cotovelos na janela, não ouviu bem ( a
voz d o Seu Azevedo era rouca) e ficou, com vergonha d e perguntar,
sem saber se o mundo era um circo ou se era um círculo. Então,
mudou de assunto, perguntando se Dona Maria andava melhor do
reumatismo com a receita do espírita. Seu Azevedo tinha aquele de­
feito - gostava de falar em doenças. Pegou no reumatismo da mulher
- até agora nada de melhoras, comadre, enfim . . . - e não parou
mais.
- Sabe duma coisa? - arregalou os olhos de tal jeito que a
comadre foi obrigada a dizer alto que não. - O Miranda, aquele
magro, que vinha sempre comigo no bonde, não se lembra?
- Magro?
- Sim, um que não largava o sobretudo, pai da Tudinha, uma
menina muito acanhada, que vinha, às vezes, brincar com a Ninita.
- Ah!
35
- Pois é. Não dura muito o pobre, é o que lhe digo. Tome nota!
Também . . . - balançava a cabeça tristíssimo. - E o Souza, conhece?
Coitado ! . . . Já não anda mais. Nem respira; dá uns arrancos, hum,
hum, hum -· e imitava - que corta o coração da gente. A arterios­
clerose está adiantadíssima. Foi o médico mesmo que me disse, muito
em particular, está visto, me fiz de surpreso - oh ! - mas bem que
eu estava vendo. Passa maus pedaços a filha, e ele só tem essa filha,
que a mulher morreu na espanhola, ótima criatura, e que doceira de
mão cheia! Sozinha, imagine, e para tudo. É uma abnegada! Nem
calcula o carinho com que ela trata o pai. Sensibiliza.
Limpinhos, penteadinhos, os dois meninos da penúltima casa, uma
gente do Paraná, saíram para brincar na porta.
- Cuidado, hem? E nada de correrias - aconselhou a mãe, pondo
-
severidade na voz melosa.
Seu Azevedo deu um passo para o lado, desfranziu os beiços :
- Mas para mim é um caso perdido, infelizmente. Uma bela alma,
o Souza! . . . E olhe que é muito mais moço do que eu. Em 85 . . .
Em 85, não, minto. Espere . . . - batia com o indicador na boca
fechada como em sinal de silêncio - em 86, quando eu estava morando
com o Fagundes, o José Carlos Fagundes, você se lembra dele, ó
Jerome?
O risinho esboçado pelo Jerome era maldoso : Se me lembro!
Patife . . .
Dona Veva ouvia. Padecia. Uma falta de ar, uma opressão no
peito, como um peso que cada vez fosse pesando mais, uma falta de
vontade, o corpo dolorido ao se levantar e as veias inchando dia a
dia.
Venosina era um sacrifício, um vidrinho com trinta pílulas, ela já
contara, treze e quinhentos para quem quiser e que se há de fazer
se era preciso? Tomava-a só na hora do jantar para durar mais tempo.
Era um recurso, além das promessas fervorosas a N.s.a do Perpétuo
Socorro, pois tinha cinco crianças para criar. De vez em quando,
ficava pensando numa sorte grande providencial, comprava bilhetes
na mão do Seu Pascoal, que já vendera muitas, saíam brancos, se
enchia de fundas melancolias. Por que não tirava? perguntava a si
própria, suspirando, batendo roupa no tanque, que o Alfredo com
essa história de futebol sujava calças que era um horror. Que terei
eu feito a Deus para que ele não me ajude? pensava. Ah, se tivesse
tirado! . . . Um final tão bonito, jacaré, que é o pai dos pobres . . . Não
diria a ninguém, só a Jerome, poria tudo na Caixa Econômica ren­
dendo, nem um tostão para ela; mas gozaria como se tivesse gasto
todo - estaria garantido o futuro dos filhos. Já não lhe sentiriam tanto
a falta se morresse, pois assim o J erome teria com que educá-los,
pondo-os internos num bom colégio. Mas nada. Fazia planos menores,
quando vinha o namorado da Juditinha, muito simples, muito bonzinho
e impagável, conversar, contar casos do escritório, que matavam a
36
namorada de tanto riso. Rogava a Deus, envolvendo-os num mesmo
olhar, que ajudasse a ele no seu emprego, para poder ganhar mais e
se casar logo. Não fazia mal que fossem tão crianças ; ele era muito
amoroso e muito esforçado, ela tinha bastante juízo, sem luxos, muito
caseira.
E Juditinha tardando.
Sentia-se cheia de sustos. Teria acontecido alguma coisa? Esticava
o pescoço na esperança de vê-la dobrar o portão. Fora com o vestido
vermelho de bolinhas. É agora. Nada. Só se Madame Franco . . .
Seu azevedo falava ainda, visado para Seu J erome, dos sofrimentos
do Melo, o bexigoso, proprietário na zona, que consultara todas as
sumid!!des sem que nenhuma lhe tivesse dado volta.
A trepadeira boa-noite que se pendurava no muro, meio derrubado,
abria a medo as brancas flores singelas. Já passara o "profeta", esque­
lético e diligente, acendendo os lampiões a gás, luz amortecida, ama­
rela e silvante, onde mariposas pardas vinham morrer. Ali e acolá,
no capinzal, que durante o dia era batido pelos mata-mosquitos à
procura de focos, brilhavam, por um instante, luzes azuis de vaga-lumes
e a Maria Heloísa, a filha do dentista Guimarães, no piano, começava
a tocar a valsa do Pagão para o noivo ouvir. Surgiu a lua.
*

Vozes abafadas se misturavam, o cachorro late, raivoso, encarcerado


no chuveiro, cintila no céu alto uma única estrela e faz frio ; vai pouco
além de cinco horas e escurece, quase noite tão cedo, que o inverno
é chegado. Resmungando, o cocheiro, encartolado, a sobrecasaca
coberta de nódoas, fustigou os animais e o enterro partiu, entre o
sussurro dos curiosos que se apinhavam no portão da vila, dois auto­
móveis atrás acompanhando.
Dona Veva não teve lágrimas para chorar. Parece incrível, meu
Deus ! - e atirou-se à toa na cadeira austríaca, que rangeu, ficou
como anestesiada na sala estreita, de janelas cerradas, cheirando a
flores e a cera, pensando no Seu J erome, que se fora para sempre,
tão bom, tão seu amigo, nos seus últimos cuidados, a voz quase
imperceptível, se extinguindo : Veva, cuida do montepio! - o montepio
que deixara, cento e vinte e cinco mil-réis, que o senhorio levaria
todo, e ainda faltaria.
Quem poderia ajudá-la agora? A Aninhas, sua irmã, casada com
o Dr. Graça, que estava tão bem? A Porcina, que ficara viúva e sem
filhos com a padaria que lhe rendia um dinheirão? Nem ao enterro
tinham vindo. Nem umas simples flores mandaram para o cunhado
que tanto lhes servira. Ah, meu Jerome! . . . Lá estava ele, a sorrir
em cima do porta-bibelôs, entre um anjinho de asa quebrada e um
prato com cartões-postais se desbotando. Lá estava ele a sorrir, no
retrato, junto dela - que felizes! - no dia do casamento. Ele em
pé, de preto, o bigode retorcido, a mão sobre o ombro dela, sentada,
37
um grande buquê contra o peito, a saia branca, comprida, a lhe cobrir
pudicamente os pés.
Seu Azevedo que dera, infatigável, as providências para o enterro
- o homenzinho da Santa Casa tinha sido um grosseirão - e que
mandara uma coroa de biscuí em nome das meninas e da mulher de
cama, coitada, com o choque, veio consolá-la, a voz mais rouca, como­
vido :
- Que a vida, a senhora sabe, Dona Veva, era aquilo mesmo. A
questão era não fraquejar, ter coragem, ser forte. E sempre não o
fora? Ah, Dona Veva, é doloroso, é muitíssimo doloroso, Dona Veva,
é terrível, eu sinto, pode crer - e batia no peito cavernoso palmadas
surdas - mas é preciso ter coragem! A vida não se acaba pela morte
dum soldado. A vida, não, a guerra. Guerra, luta, vida . . . - Seu
Azevedo se atrapalhou.
A paralítica, na cadeira de rodas, plantada no meio da cozinha
(estava se vendo da sala) , sacudida pelos soluços como um molambo
esquecido, pensava com heroísmo na tristeza do asilo, tendo um bolo
de crianças, choramingando talvez sem saber por quê, pendurado nas
suas saias pretas, castas, que escondiam umas pobres pernas sem vida.
A mosca impertinente traçou dois volteios no ar e Seu Azevedo
continuou :
----< Ele. se foi, é o nosso destino, comadre, uma vontade suprema a

que nada podemos opor, e como era bom com Deus está. Mas não
a deixou sozinha, pense bem. E os filhinhos? E . . .
Dona Veva espantou os olhos gastos para Seu Azevedo, que emu­
deceu, e, quando pensou nos seus cinco filhos, aí é que ela viu mesmo
que estava sozinha e de mãos para o céu começou a gritar.

EM MAIO

- BOA TARDE !
- Boa tarde, meu caro, divirta-se.
- Ora! . . .
Disse-me um adeus, superior, com a ponta dos dedos, abriu a des­
carga e o automóvel partiu numa velocidade ostensiva, um ranger de
freio ali, uma curva fechada na esquina mais adiante, que arrancou
gritos das mocinhas . São os meus passos que me conduzem neste
dia límpido de maio, depois da conversa rápida com o Carlos, o
gordo, o rico, o invejado, sobre os acontecimentos triviais que as
folhas noticiaram pela manhã. Já passei o bazar onde as montras estão
fechadas e ã casa de balas, onde a francezinha, que não é loura como
quisera, prazenteiramente, o meu amigo, vende também sorrisos ; j á
atravessei a rua d e maus paralelepípedos por onde passam o s bondes
barulhentos. Vou cruzar a avenida, mais larga, mais arejada, mais
38
batida de luz. Vivo, incandescente, um imenso sol inunda a praça
de ardores africanos . Ê domingo. O homem, que espera o bonde para
a cidade, já foi o meu padeiro. Chama-se Almeida, é magro e veio
da terra. Uma vez, voltando do Fluminense, cansado de gritar pelo
Vasco, foi abordado por um homem melancólico do Exército da Sal­
vação, que lhe falou copiosamente, numa esquina propícia, de coisas
que desconhecia. Como vinha confuso do campo, a exaltação ainda
não extinta dentro do peito, nada compreendeu, de quase nada se
lembrava. Como era a sua cara? Esquecera. E o timbre da sua voz?
Também. Só não lhe fugiram mais do pensamento aquelas palavras,
que afinal, por bem dizer, não sabia ao certo se eram de Jesus : "Ga­
nharás a vida com teu suor." Se ele ganhava! . . . Agora vai risonho,
leva contente o coração simples, gira a bengala airoso. Sua roupa cor
de tijolo espanta os olhos elegantes e exigentes. Veio para cá há
muitos anos, tem vontade de voltar, um dia, para se acabar dentro
da mesma paisagem minhota que o viu nascer e por única ambição
- ser gerente. Para isto não se poupa - apanha sol, apanha chuva,
dorme tarde e acorda cedo, agüenta sorridente as descomposturas da
freguesia. O doutor, que dá consultas grátis na farmácia, já lhe acon­
selhou com um gesto paternal : toma cuidado, rapaz!
*

A menina de boina escarlate e cabelo à ventania espera o namorado ;


depois irá com ele pelas ruas que se estendem por aí, à sombra das
copas empoeiradas, construindo castelos . Vestido coleante, os olhos
macerados avivados a bistre, amassando a carteira contra o peito chato,
por quem esperará a solteirona se o amor não passa? O guarda-civil
espera, muito calmo, a hora de entregar o serviço e ir para casa des­
cansar. Ele mora em Madureira, onde a vida é mais barata, onde
conheceu a Claudina, onde ele é respeitado e apontado "como troço
pra burro na polícia".
*

Entrei no jardim. As dálias não perfumam nada, mas são de mil


cores que gritam e que se alastram pelos canteiros ingleses . O banco
pintado de verde é convidativo. Aqui, há sombra, descortina-se a rua
e as amendoeiras se enfloram de pardais. Por trás, o arbusto verde­
garrafa tem a forma fácil de uma bola. Assemelha-se comigo. O
destino das bolas é rodar e esta está parada, presa pelo tronco frágil.
Eu precisava rodar também. Precisava e estou aqui, aqui neste banco,
onde o frescor é manso, esquecido por um momento da inutilidade da
minha vida cotidiana, da casa para o emprego, do emprego para casa,
do princípio ao fim da semana, por meses e anos, a escrever frases
fáceis, protocolares, sem nenhum outro esforço para uma libertação
necessária.
3 :]
Como hoje é domingo e a loja está fechada, eu poderia sair. Caem
amarelas, poucas, as folhas. O outono não o sentem estas amendoeiras
felizes, nem as roseiras floridas, nem o imigrante rechonchudo, que
cachimba na casa de loterias. Ele desconhece o outono, há tanto
que não o vê e esqueceu a rudeza do frio, não padeceu invernos nos
dias da nova pátria e as noites dormidas ao relento, nos bancos da
Praça 1 5 , quando chegou, não lhe trazem lembranças tormentosas de
sofrimento. Em cima, o céu azul, mais além, o mar rebrilha ao sol
e a praia é um comprido lençol abrasado. Aqui há paz. Os homens,
se estivessem sentados nos outros bancos vazios, sentir-se-iam con­
tentes, esgarçariam o olhar descuidoso e diriam : Que bom! . . . Mais
um pou co e virão as crianças inocentes, enxotando os pombos. O
guinhol é alegre, divertido, e as crianças riem.
Se viesse a morte agora, eu não fugiria da morte. Este lugar é
sossegado. Ao fundo, anima-se a paisagem. Não sei o nome daqueles
morros, mas que importa se os conheço desde menino? Um parece
roxo ( desconhecia-lhe esta atitude) na sombra do outro mais alto,
mais largo, com uma pedra na encosta limosa, que as ondas do mar
vão lamber incessantes.
Se ela viesse neste instante, eu diria: Bom dia, irmã! . . . Ela me
convidaria fatalmente, falaria das eternas sombras, riríamos, e eu iria.
As coisas seriam quietas na grande estrada, ela a me afagar com as
mãos descamadas, frias e puras. Não me morderiam remorsos dos
que deixei sozinhos, e somente sentiria, inexplicavelmente, uma sau­
dade vaga das horas de trabalho no escritório - o cantar das má­
quinas sob os dedos ágeis das datilógrafas, a janela, sempre escan­
carada, por onde entra a vista· dos arranha-céus e o ar carregado do
mar, o velho chefe a retorcer o bigode rebelde, fumando muito, ditando
cartas enérgicas para os agentes nos Estados, resolvendo negócios com­
plicados de fornecimentos.
Se viesse a chuva, eu não fugiria. Esta amendoeira é esgalhada,
mas parece proteger, estendendo seus braços verticais sobre mim.
f: imóvel, infunde amizade, não sorri como os amigos comuns. Se
chovesse, tenho a certeza de que não fugiria da chuva. Ficaria vendo-a
cair no jardim, ensopando a areia suja, sem marcas de passos recentes.
As dálias resistiriam que são fortes. As bátegas fustigariam o rosto
daquela estátua sem destaque, talvez que o corpo simples da dança­
rina, mais longe, em mármore cinza, tiritasse de frio quando soprasse
o vento. As pessoas desprevenidas se aninhariam sob o toldo pro­
tetor da farmácia, na esquina, e o cauteloso sorriria superiormente
suspendendo o cabo do guarda-chuva.
Mas é o sol que doura a torre da igreja e o sino parado, que à noite
cantará na adoração da Virgem. E vem o militar na calçada do sol,
refulgindo as platinas, retinindo as esporas. Para o militar, nunca
haverá guerras. Doce é um domingo como este, longe da monotonia
regulamentar da caserna. O cinema convida, os cartazes anunciando,
40
gente parada nas portas a olhar os que entram. O cinema é sonoro,
a música é melodiosa. Ele gosta daquelas canções numa língua que
desconhece e vai procurando adivinhar. A mulher, então, fascina-o.
Quando acabar o filme, e ela beijar o ator, sairá seduzido da sala
escura para a claridade do dia que à saída o estonteará mais. "I love
you! I love you!", a voz veludosa persiste a cantar-lhe no ouvido. Ela
fazia a boca em "u" para cantar a melodia fina. Por aquela mulher,
ele seria capaz de batalhar. Sente-se valente. Bate-lhe o coração
temerário. Poderia até morrer, numa poça de sangue, tendo um beijo
por laurel. Um momento ! Acendeu o cigarro, depois do café, no bar­
zinho pegado, modesto, onde o velhote cochilava, ouvindo os rapazes
discutirem futebol. Tenta varrê-la do espírito, mas persegue-o a visão
da mulher estranha de grandes olhos fundos, negros de paixões . Ela
mora na América, mas é branca, muito branca. Ela hoje é espanhola,
amanhã será parisiense num outro filme com outras canções pertur­
badoras, mas seus gestos de garça envolviam, envolviam . . . Volta
para casa a pé pela calçada do sol. A tarde está fresca. O ar é
cristalino. Janelas reverberam. Os filhos esperam-no brincando na
porta. A mais velha está vaidosa do seu laço de fita cor-de-rosa e é
raquítica e feiazinha. Ele a beija na face com amor. O menor não,
que está todo lambuzado de caramelo, gentileza dominical do padrinho.
Seu Couto, cada dia mais alquebrado e melancólico nas garras da
tuberculose que o vai levando devagar. A mulher ri, ajeitando o ves­
tido simples que mal esconde a gravidez, pergunta se ele gostou da
fita. Tem uma resposta heróica: Não!
Aquele desconhecido é um imprudente saltando do bonde em movi­
mento. Um segundo de incerteza e ele cairia sob as rodas velozes.
Alguém choraria num outro canto da cidade e ele nem pensa nisso ;
encontra o camarada, bate-lhe nas costas, diz-lhe uma graça banal,
entram no bilhar. Alguém choraria ; a mãe não, que aquele homem
não parece ter mãe. A irmã? A noiva? Não sei. Mas alguém haveria
de chorar sobre o seu corpo esfrangalhado, estendido na rua, coberto
com jornais, com duas velas à roda, acesas por mãos piedosas, en­
quanto não viesse o rabecão. E o céu é azul e ri, o sol é alegre e
esplêndido, a praia se prolonga alva e brilhante, para lá no fundo se
erguer o forte, uma muralha de concreto que se afunda nas vagas,
donde vem, metálico e vibrante, o toque para o rancho .
*

Você que passa aí, as gazes flutuando na aragem namorada -


ingrata! - você foi qualquer coisa de nítido na minha vida de acon­
tecimentos pálidos. Foi para você o meu primeiro suspiro de adoles­
cente e o meu primeiro olhar heróico de amor, quando passava, atra­
sada sempre, preguiçosa! para as aulas da Escola Normal, levando
debaixo do braço gordinho aquela História Natural, elementar, mas
que traz uma descrição tão bem feita da flor e do fruto.
41
Você vai agora para a matinê, que é o seu vício de domingo, assistir
à mesma fita que empolgou o militar e que o colegial agüentou indi­
ferente. Invejará a estrela porque é bela e você não é, calculará a
riqueza das toaletes que jamais você vestirá e como não tem um rapaz
apaixonado, para sussurrar junto à sua boca as frases embriagadoras
dos romances, sentirá tristeza onde todos se divertem, só tendo um
gesto bom ao comprar mariola para o maninho, que está aborrecido
porque não compreende absolutamente aquelas cenas longuíssimas de
beijos e abraços. A inquietude está com você, além da incerteza do
que será amanhã. E poderia ir assistir à mesma fita, tranqüila, pelo
meu braço. Quando começasse a inveja, eu saberia adivinhá-la e
haveria de dizer ao ouvido : Você é mais linda! Sorriria, balançando a
cabeça num consentimento mole : São teus olhos . . . - Vocé é a única
estrela no céu negro da minha existência - continuaria. Que lindo
pensamento! Volveria para mim os enormes olhos glaucos, onde bro­
tava a mais muda das admirações. E hoje é com o irmãozinho boche­
chudo que vai à matinê. Vai. Eu fico. Veja como muda o sol, de
momento em momento, no alto da abóbada sem fim. Ignoro as horas
do dia pelas situações do astro. Ignoro a vida como me correria pelo
afeto de Você, e os nomes dos filhos que teríamos e as privações que
poderíamos sofrer; ignoro as alegrias do Natal, quando tivéssemos brin­
quedos a repartir, à volta da árvore iluminada com velas pequeninas,
coloridas, e enfeitada de bolas reluzentes, multicores ; ignoro as neces­
sidades morais da vida doméstica, os melindres da nossa vontade, os
desejos insatisfeitos, as ambições irrealizáveis, a dor da partida, num
certo dia, de um de nós . . .
- Bom dia!
Meu cumprimento salta por cima das flores, mas a resposta não
me vem dos lábios do poeta. Bem que os seus olhos pousaram na
minha figura franzina, mas ele não me viu. Vai só, absorto, rumi­
nando uma rima mais lúcida para o próximo soneto impecável que o
Jornal das Moças publicará. Tudo nele, noto agora, é premeditado
- a roupa desalinhada, o pensamento, o cabelo desgrenhado, o timbre
da voz soturna, o amor pela gramática, a sujeira do colarinho. Não
vê o azul, nem as flores, não vê os maribondos que trabalham, a
zumbir, no beiral da casa baixa que ensombra seus passos, nem a graça
ondulante da mocinha que atravessa a praça, perseguida pelos raios do
sol e pelo olhar do homem. Não ouve a vitrola que, no bangalô
escondido entre a trepadeira cerrada, desmancha no ar a nostalgia
negra '!um blue. Não vê, não ouve, não sente. Vai fixo o pensamento
na sua procura porque "ele ama a Beleza, pela Beleza vive, pela
Beleza, um dia, morrerá".
Agora é o cego do realejo. Este homem não é um inútil como quer
o corretor, de olhar avaro, sentado na varanda do seu vilino, numa
contemplação mercantil para os terrenos junto à praia, que uma tabu­
leta anuncia a venda. Ele nos traz um consolo . Vê como ele roda a
42
manivela : é o Sonho de Valsa. E a gente sonha. Há duquesas remotas
neste sonho acordado. Ei-las gráceis, que vêm em sarabanda povoar
o jardim de risos estrangeiros. Ei-las a bailar aereamente na tarde
brasileira, os membros doces, fatigados, em volteios . . . Depois o
Trovador tudo dissipa e nos entristece um pouco, com uma tristeza
que nos faz bem. Chega gente nas janelas. Ganha dinheiro o homem
que tem grosso bigode inculto. Aqueles deram só para os outros
verem. Não importa - os níqueis se confundiram no pires do pobre
cego. Aqueles outros não deram nada porque precisam. Perdão! -
o cego não os vê. Vai embora pelas ruas cheias de gente domingueira,
a tocar, a tocar, pois ele precisa ganhar dinheiro porque a vida está
difícil e é preciso vivê-la. Os meninos invejam surdamente os moleques
que vão atrás dele, livremente, no azulado transparente da tarde.
Eu fico. Breve chegará a noite, rescenderão as magnólias e eu
contarei as estrelas sempre as mesmas . As vitrines da confeitaria já
se iluminaram. O bonde custou a fazer a curva. Vem um barulho de
talheres daquela pensão triste, que meus olhos devassam pela janela
esquecidamente aberta. Os besouros, as mariposas, as bruxas, atirar­
se-ão contra os lampiões e cairão. E ficarei quieto a ver, a sentir, à
luz plácida da lua.
Se vierem, porém, os Bombeiros tocar O Guarani para a simpatia
popular, então, eu fugirei. Quando entrar em casa, sentirei a mesma
quietude. Minha mãe cosendo, sentada no seu banquinho ao fundo
da sala, minha irmã, esquecidas as mãos no teclado amarelecido, num
fim de sonata, sonhando - bem o sei! . . . - com alguém que não
está. O retrato do amigo perdido pende da parede, desolado, sozinho.
A lâm,pada que ilumina o Senhor derrama uma luz tranqüila, que vai
suavemente esmaecer os ângulos dos móveis antigos. Minha mãe levan­
tará a cabeça quando eu bater à porta : Boa noite! Responderei : Boa
noite! Minha irmã acordará. Perguntarão se estou cansado, se eu
passeei muito, se eu quero comer alguma coisa. Nem sei o que res­
ponderei. Deveria haver lágrimas na minha voz. Escondo-as. Não
se deve turvar uma felicidade e eu sinto que existe uma felicidade
inefável dentro daquelas quatro paredes, mas eu sinto também, angus­
tiosamente, que dentro de tanta paz eu sou um homem sem motivo e
lá fora, na vida, um tímido que se aterra.

CASO DE MENTIRA

MoRÁVAMOS nós em São Francisco Xavier, perto da estação, numa


boa casa de dois pavimentos, jardinzinho com repuxo na frente e
fresca varanda do lado, onde nascia o sol, se bem que por essa época
não andasse ainda meu pai muito certo da sua vida para arrastar, sem
43
alguma dificuldade, o luxo de residência tão ampla e confortável, mas
temos que perdoar a ele, entre outras fraquezas, esta da ostentação,
já que a perfeição foi negada por Deus à alma das criaturas. Eis,
senão quando, meu irmão Aluísio, o demônio em figura de gente, ao
pratic ãr certa travessura arriscada na sala de visitas, aliás sempre
fechada à chave e que, a não ser aos sábados, para a limpeza, raras
vezes se abria para receber gente de fora, pois poucas eram as nossas
amizades, caiu e deitou por terra a elegante peanha de canela, que
ficava por trás do sofá de palhinha.
Isso, convenhamos, pouca importância teria se, sobre a peanha, não
estivesse, como em precioso nicho, o rico vaso, um legítimo Satzuma,
que papai freqüentemente gabava - isto é que é a verdadeira arte,
meninos ! - e que mamãe admirava por seu outro valor : ser das
únicas coisas que escaparam à voracidade de tio Alarico, um des­
miolado, quando foi feita a partilha dos bens do seu avô, que era
barão e morrera na Europa.
De tarde, papai chegando, ainda nem tinha tirado o chapéu de lebre,
que usava desabado, e já mamãe o punha ao corrente, com meticulosa
e�posição, do desgraçado acidente.
- Aluísio !
A voz de meu pai foi tão estranha, tão diversa e violenta, que
minha mãe, coitada, ficou branca, arrependida imediatamente de ter
nomeado, precipitada, o santo do milagre.
Aluísio, que se eclipsara mal praticado o ato, apareceu, lembro-me
como se fosse hoje, sem fazer barulho, de pé no chão, cabeça baixa,
com aquela cara que tia Alzira classificava de "cara de boi sonso" ;
chegando perto de papai, levantou o rosto de fuinha, encarou-o de
revés, cravando nele os olhos pequenos e irrequietos, o instante sufi­
ciente para sondá-lo com profunda sagacidade ; abaixou novamente a
cabeça, o cabelo nunca penteado, que mamãe ameaçava mandar cortar
à escovinha, a cair-lhe em farripas .pela testa enrugada e suja.
Todos nós tremíamos a bom tremer pela sua sorte, que papai, de
ordinário calmo, sossegado, muito brincalhão, sabia ser violentíssimo,
quando para tal lhe davam fortes motivos e na fúria de que se enchia
era fugir-lhe da frente, pois até pancada fazia parte da sua maneira de
ser severo. A preta Paulina, que nós chamávamos de Lalá, e que
trouxera o nosso herói ao colo desde o seu primeiro dia, chorava e
rezava no corredor, espiando.
- Como foi isso? - meu pai interpelou com o cenho carregado.
Aluísio era muito imaginativo e, sem titubear, inventou-lhe ali mesmo
não sei que história fantástica em que entrava um bandido, verdadeira­
mente o autor do lamentável desastre, fugindo logo após praticá-lo,
sem que ninguém visse, pois ele, Aluísio tinha sido a única pessoa
que presenciara tão misteriosos fatos, por acaso, acrescentava com
razoável do�e de modéstia, quando fora buscar na sala o álbum de
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retratos para folhear, o que, inexplicável dado o seu gênio incapaz de
ficar parado um segundo, era inegavelmente uma das suas maiores
distrações.
- Nada pôde fazer - continuou num tom diferente - porque
um medo, para que mentir?, um medo terrível tinha-o invadido, para­
lisando-lhe os movimentos, tirando-lhe a fala, tornando-o mudo, incapaz
de gritar por socorro como seria natural, não é mesmo?
Meu pai ouvia de boca aberta, numa admiração indisfarçável pela
inteligência fantasiosa do pequeno. Eu e mamãe estávamos bestificados,
Paulina, arregalando medonhamente os olhos, nem podia acreditar.
Aluísio descreveu ainda, com brilhante colorido e absoluta segurança
de ânimo, o aspecto do sujeito : trazia compridas suíças cor de fogo
- frisava, com aquele sutil amor pelo detalhe, um dos seus mais
brilhantes característicos - e uma meia-máscara roxa nos olhos ; as
botas vinham até aos joelhos, parece que estava armado, mas isto
não garantia porque uma imensa capa preta envolvia-o todo.
Depois, quando percebeu que poderia, sem receio, terminar, fez um
silêncio brusco, deixando cair os braços, que agitava adequadamente
no correr da sensacional narrativa.
Papai não se conteve - soltou uma tremenda gargalhada. Sentou­
se na cadeira mais próxima a se estorcer, chamou-o para junto de si,
passou.=-lhe a mão pela cabeça : Você ainda há de dar coisa na vida!
- sentenciou com legítimo orgulho paternal. Em frases truncadas,
sem continuidade, para o restrito e ainda boquiaberto auditório, traçou­
lhe um esplendoroso porvir, e mandou-o passear.
Pegando na palavra paterna, durante umas tantas semanas, Aluísio
pôs os livros de banda e não parou em casa, soltando papagaios no
morro, jogando gude, na rua, no meio da molecada. Chegou dia, porém,
em que tanta liberdade precisava ter um freio ; papai ralhou - va­
gabundo ! - e mamãe passou o cadeado no portão de ferro. O aci­
dente é que jamais foi esquecido, ficando conhecido na família, e
contado às visitas entre gargalhadas, como o caso do bandido, ao invés
do caso do vaso de faiança, como seria mais justo, dada a sua
origem.
Mas, origens e transformações, tudo são injustiças neste mundo, ró­
tulos de ouro e mercadorias baratas, tanto assim que falhei, redonda­
mente, na primeira ocasião que tentei empregar o mesmo método do
mano Aluísio, hoje advogado, e se, incontestavelmente bem colocado,
com uma bonita carreira na sua frente, nem por sombra tem aquele
portentoso futuro que profetizara meu pai, posto para sempre distante
do nosso afeto, bom pai, quando naquele ano, tão doloroso para a
minha gente, chegavam os primeiros rigores do verão.
Havia uma moringa em nossa casa, da qual somente papai bebia
a sua água. Ficava dia e noite, cheia, na varandinha da copa, à
sombra plácida da mangueira, para a água ficar mais fresca e se
impregnar do leve sabor a barro que papai tanto prezava. Em domin-
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gos de verão, se não era infalível, freqüentemente aparecia Seu Souza
para palestrar algumas horas ; mamãe achava-o extremamente cacete,
mas atendia-o com especiais finezas, porque o marido, que ela colo­
cava pouco abaixo das coisas celestes, elogiava-o, com sincero ardor,
como sendo um homem de peso e medida! Seu Souza não escondia,
como poderia fazer usando colarinhos mais altos, uma velha cicatriz
no pescoço e era bastante enjoado, não variando nunca de conversas
- questões de terrenos para vender - e de graças : Você tem água
gelada com gelo, compadre?
Papai respondia logo :
- Gelo é um perigo, seu burro! Mas tenho a minha bilha fres­
quinha - e gritava para dentro : Onde está a moringa? Olhem que
o Souza também quer.
Como se acabou de ver, este privilegiado senhor era o único mortal
com quem meu pai dividia o precioso conteúdo da sua moringa.
Este célebre objeto, externamente, não correspondia em absoluto a
tão sú_!Jitas distinções, comuníssima moringa, dessas que se encontram
nas menos sortidas quitandas . Talvez custasse poucos tostões mais,
não duvido, por ser pintada, porque lá isso era ela, com casinhas
e beija-flores, dentro de um oval que era uma espécie de grinalda
de florezinhas róseas e azuis. No mais, uma banalíssima moringa,
como já se disse.
Já que falamos de moringa, falemos também de peteca, o que à
primeira vista parecendo extravagante, senão absurdo, tem memorável
relação nos acontecimentos da minha existência.
Fora uma das minhas grandes ambições, ideal de criança, bem se
nota, mas , pela vida adiante, não creio que, das muitíssimas que me
vieram, todas tivessem sido maiores ou melhores que a da ingênua
posse duma peteca.
Numa loja de brinquedos, meus olhos ansiosos tudo punham de
parte, trens e velocípedes, jogos e rema-remas, para buscá-la humilde
e escondida. Como, quando ia à cidade, voltava para casa sempre
com as mãos abanando e sofria horrivelmente no bonde o fato de ter,
mais uma vez, deixado na sua vitrine o objeto dos meus caros sonhos,
o ir à cidade era motivo para mim de secretos padecimentos, e, infeliz­
mente, isso acontecia com certa regularidade semanal, pois mamãe,
não gostand9 de sair sozinha, e como eu era o filho mais velho, pre­
feria-me para acompanhá-la. Tem mais juízo ! - falava. Talvez por
isso mesmo fizesse o Aluísio tanta diabrura - não gostava de ir à
cidade. Preferia ficar em casa, longe dos ralhos da mãe, a fazer o que
lhe desse na cabeça - pedras nos quintais vizinhos, estripulias no alto
do muro, maldades até como no dia em que cortou, com o machado,
o rabo da gata malhada que Lalá tinha criado com papinhas.
Uma tragédia os meus passeios, porque mamãe não chamava de
outra J!! aneira as minhas saídas. Voltava sucumbido. À noite, sonhava
46
com ela, a peteca querida, via-a minha, pular no ar, ao bater das
palmadas estrepitosas, Iept, lept, com as penas vermelhas, lindíssima
peteca! Interessante é que não ousava pedi-Ia aos meus pais, sabendo
perfeitamente que pouco seria o seu preço para que eles ma negassem.
Idiota, poderão dizer, ilógico, poderão argumentar, levando em conta
a facilidade de pedir que é própria das crianças. Nada me fará mudar :
pura verdade é o que conto e a mim é quanto me basta.
Vivi assim, longo tempo, sonhando com petecas e ambicionando-as
nas montras quando um belo dia, um dos domingos do Seu Souza
- parece incrível - ele me presenteou com uma.
Nessa tarde excepcional, pude compreender o segredo difícil das
simpatias . Olhei de frente o velho amigo de meu pai e, se continuei
a achá-lo feio, é impossível esconder que achei-o infinitamente agra­
dável. A grosseira cicatriz do pescoço, longe de qualquer piedade
pela má aparência que causava, infundia-me, pelo seu dono, uma notá­
vel admiração, tentando ligá-la heroicamente a um episódio desco­
nhecido da sua vida, um ataque inopinado que sofrera, de inimigos
covardes, ficando aquele ferimento por lembrança, amarga e sempre
viva, da sua coragem, reagindo. Cheguei a rir das suas eternas piadas,
corria a buscar a moringa quando era hora, ficava perto dele, ouvindo-o
conversar (soube aí ser proprietário de não sei quantos terrenos em
Botafogo ) , esperava por ele no portão, levava-o até ao bonde quando
se ia, largos passos, que eu mal acompanhava, o chapéu-chile de abas
para cima.
Pois da moringa e da peteca nasceu uma desgraça: minha mão
inexperiente impeliu a última contra a primeira e esta ficou em cacos.
Ninguém se alarmou : moringas há milhões por este mundo, iguais
como as formigas - serenou-me minha mãe, que fazia comparações
engraçadas.
Tínhamos já acendido a luz, quando papai chegou, atrasado, para
jantar, e como fizera demasiado calor durante o dia, entrando suado,
com sede, gritou logo :
- Vejam a minha moringa!
Contaram que se quebrara e eu fora o culpado por andar jogando
peteca dentro de casa. Chamou-me. Dirigi-me a ele serenamente e
tratei de inventar a aventura de um gato que perseguindo um rato . . .
Eu era, porém, pouco imaginativo e até o meio da minha história,
trivialíssima, não conseguira encaixar nenhuma passagem de extraor­
dinário realce. Verdade seja dita, não passei além do meio ; papai
deu-me um tabefe na boca :
- Mentiroso !
Puxou-me pelas orelhas, levou-me para o quarto, sem jantar, disse­
me, com dureza, que um homem que mentia não era um homem, pôs­
me de castigo uma semana, preso em casa, sem pôr os pés fora, na
varanda que fosse. Aluísio, insensível à minha prisão, fõlgava, não
parecendo sentir a falta do companheiro. Era de vê-la a facilidade
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indiferente com que supria, nos seus brinquedos, a minha pessoa
ausente. Da j anela do meu quarto, enquanto descansava as mãos dolo­
ridas de copiar, com boa letra e sem nenhum erro, as trinta páginas
da minha geografia, que papai, pela manhã, antes de sair, inflexivel­
mente, me marcava, ficava vendo-o correr, subir às árvores, com
desembaraço e agilidade. E invejava-o surdamente. Tinha dez anos.

A MUDANÇA

A MUDANÇA foi repentina! As estrelas desapareceram bruscamente da


noite. Saindo não sei donde, nuvens, cada vez mais negras, amon­
toavam-se num canto e acabaram por tomar todo o céu. Negror.
Então, veio o vento e sacudiu o ar estático, abafado, vergou as árvores,
bateu janelas na vizinhança, trouxe gritos distantes para meus ouvidos
inquietos. Levantou-se a poeira nas ruas, rodopiou, subiu, entrou pelas
persianas sujando os móveis.
Mamãe, aflita, que estava na hora da poção, chegou como uma
sombra, cerrou as persianas, mas o vento era mais sutil e insinuando-se
por frestas des,percebidas balançava da mesma forma as bambinelas.
- As bambinelas estão dizendo adeus !
Nem sei como me acudiu logo o pensamento estranho : As bambi­
nelas estão me dizendo adeus ! Ou estarão me chamando? Sim, é
possível que estejam . Mas para onde? Sinto-me fraco, uma dormência
espetante como milhões de alfinetes paralisa as minhas pernas. E
elas continuam a acenar : Vem!
Embala-me, monótono, o tique-taque do relógio na sala onde minha
irmã pedia a São Bento para cortar a perna do vento, que eu podia
piorar.
E a febre na mesma. Trinta e sete e seis . E a tosse. O peito
doendo sempre, sensação angustiosa de asfixia - o teto caindo sobre
mim, me oprimindo, me esmagando. Poderia fugir, mas a dormência,
que me prendia as pernas, invadiu-me o corpo agora e me prostra
incapaz.
- Está melhor?
Mamãe dobrou-se sobre a minha face num beijo longo, afagou a
minha barba crescida. Seus cabelos grisalhos roçaram-me a testa
seca.
- Estou. Quero dormir.
Saiu na ponta dos pés, depois de compor o lençol que me cobria,
ficou na sala, folheando o jornal, fingindo que lia. Mina correu para
o quarto dos fundos, o feio, com papel vermelho, manchado de umi­
dade, se esbeiçando pelos cantos, e a janela estreita que dava para a
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área onde a pitangueira definhava. Chorar? O vento chorava, também,
no jardim despetalado, nos telhados, nas árvores sacudidas na rua.
Chiü - eram as folhas se arrastando, secas, na calçada. Pedir? Tere­
sinha de Jesus, no oratório branco da maninha, não fazia mais mila­
gres. Estava surda a todas as orações . Surda? Não. Era o vento, o
vento maldoso, com certeza, que levava todas as palavras boas para
as espalhar à toa pelas ruas sem ninguém.
A febre se elevou um pouco mais, o que não é natural. Talvez
seja impressão, apenas . Se pusesse o termômetro, lá viria o seu refrão :
trinta e sete e seis . Mas para que aquele abajur colorido, azul, rosa,
e os bichos bordados em preto? Que inutilidade! Nem era bonito ao
menos . . . Mas se ele crescesse como os gatos, as árvores e as crianças?
Ficasse grande, imenso, e cobrisse todo o mundo? E fosse endurecendo,
virasse bronze de tão duro e cantasse como um sino? Cantou! Ele
cantou! Não. Foi o relógio.
- Que horas são?
- Sete e meia. Está sentindo alguma coisa, meu filho?
___.. Nada.
Nada mesmo. Que tranqüilidade senti me invadir, que silêncio
pareceu se fazer. Até o mosquito sossegou.
- Tão cedo . . .
Tomara o leite às cinco e meia. Não o sentia mais no estômago e
só passaram duas horas? Não. Aquele relógio estava ficando velho,
caduco, não regulava mais . Forçosamente que era mais tarde. Nin­
guém passa na rua . . .
Calma imensa. Nem o vento lá fora assobiava mais. Sete e meia.
E um silêncio na casa.
Quantos anos tinha o relógio? Quando era menino, já existia, no
mesmo lugar, por cima do aparador, e já ia para os vinte e dois anos,
uma criança ainda, diziam, e no entanto sentia-me velho de tanto
sofrer.
Pensei no tempo do futebol na rua - o lampião era o gol, a meni­
nada convencidíssima. O Julinho ostentava chuteiras A tlas, inveja­
díssimas pelas travas em rodelas ; o Zé Maria agora era soldado e
uma vez viera visitá-lo : estava achando a vida difícil, tinha medo
de ficar desocupado, sem casa, sem dinheiro, já pensava em engajar.
O Russo, filho do quitandeiro, tinha morrido do peito. Os outros se
perderam por este mundo. Ah! e a escola pública! . . . Dona Maria
José, a professora que casara; e aquela menina! . . . Loura! Loura!
Tão loura! . . . L urdes . . . Perdera o seu retratinho, perdera-a tam­
bém . . . O pai dela bebia, vivia cambaleando nas esquinas do bairro,
batia-lhe. Era dócil, tristonha, trazia-lhe flores, dizia-lhe que ele era
o seu amor, tinha a boca carnuda e cor de sangue, um contraste
flagrante com o rosto pálido. Depois, os exames na Faculdade, o
velho professor condescendente, o porteiro filante e os cadáveres .
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Às oito horas em ponto, senti-me molhado, depois dum rápido
acesso de tosse : era sangue. Sangue, mais s angue. Morri . Na casa
toda, continuava o silêncio .

Na escrivaninha aberta, folhearam as minhas pagtnas . Poeta?


Ora! . . . Leram surpreendidos . Elogios . As velas queimando em volta
de mim, as flores cobriam o meu peito, sem pressão, descarnado, mas
eu não sentia os perfumes .
- Quem diria, hem?
- :É mesmo.
- Tão bom ! . . . Tão simples ! . . .
Contavam fatos :
- A última vez que o vi . . .
- "A noite é assim : silenciosa, fria." Bonito este poema! -
Cercaram o Souza que lia, o papel suspenso enfaticamente das mãos
gordas . "Um cheiro de suspeita na aragem traiçoeira, onde a trepadeira,
branca, se reclina . " Lindo, sim!
Eurico aprovava só com a cabeça.
- "Os pirilampos todos se sumiram."
Antônio não compreendia nada. Os pirilampos s e sumiram? Todos?
Que diabo !
- "Só ficaram os grilos no j ardim, cantando para as estrelas indi­
ferentes ."
- Admirável! Admirável !
Eu Õ s lia por dentro devassando-lhes todos os pensamentos ; cada
rosto era para mim uma janela aberta ; bastava me debruçar um pouco
e toda a casa s e me mostrava.
Luís, sempre desconfiara dele, namorava o meu Larousse na velha
estante desarrumada, mas haveria de passar bastante lisol nos volumes
porque aquilo pegava como visgo .
Minha irmã inexperiente, minha mãe imprestável, atirada na cama
numa crise violenta de nervos , que longe de excitá-la, prostrara-a
inerte, sem ação, como morta, foi Seu Cardoso - aborrecido, mas que
se há de fazer? - que tratou de tudo, com gorjetas somítegas para
o velhote da Santa Casa.
A primeira pá de cal foi do Oliveira - tão engraçado o Oliveira!
- após a despedida de amigo entre caras enfastiadas . Queixava-se
amargamente, com os seus botões, daquela vasta estopada - as
lágrimas , o enterro atrasadíssimo, ele sem j antar até àquela hora ;
imaginava já uma tuberculose também, proveniente duma gripe seriís­
sima apanhada naquela maldita tarde, gélida, úmida, terrível . A última
foi a do Mauro, que sempre se distraíra admirando as coroas , lendo
fitas : "Saudades da Dondoca" ( a prima loura que morava no Méier ) ,
"Seus colegas do 4.0 ano", a do Seu Ramalho da farmácia, enorme,

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de dálias , humilhando todas as outras, mesmo aquela pequena, tão
simples : "Tua mãe e tua irmã".
Quando tudo acabou, a cova cheia, os passos em cima da terra -
bem se ouviam - afastando, senti-me livre, só, aliviado . Enfim !
Uma ânsia, porém, s em limites se apossou de mim, agora que eu via
tudo, pois vi a minha casinha humilde na Rua Dona Constança, de­
serta de todos os meus sofrimentos . Vi e quis voltar para lá, para o
meu desespero, para a minha dor, a febre, o peito aflito, a asfixia
e esperar a hora da poção - esperança, esperança ! - que minha mãe
vinha dar, os olhos úmidos .

UM DESTINO

O CANARINHO-DA-TERRA parou de cantar na gaiola que a j anela emol­


durava e o grande sossego suburbano, invadindo a sala, contaminou
a cas a toda. O armário novo estalava. Antônio fechou os olhos com
moleza sincera sobre o jornal, fartamente literário, de domingo, en­
quanto o Sultão, alheio às pulgas, dormia no tapete barato, onde dra­
gões se engalfinhavam.
Nem cochilou . Bocejou, estendendo os braços numa preguiça ilimi­
tada, ficou pensando na sua vida, que tomara tal rumo que era impos­
sível mudar. Abandonara-se ao sabor dos acontecimentos fáceis . Re­
colher��:-se à religião consoladora : sej a tudo pelo que Deus quiser . . .
Deus quisera tudo como fora. "O destino é Deus quem dá . . . "
O sorveteiro pass ava na rua. Levantou-se e quis pedir um cafe­
zinho. Não pediu nada. Acendeu o cigarro, debruçou-se na janela,
quebrando e requebrando o fósforo entre os dedos. O sorveteiro virou
na travessa. Dona Amélia ia para a matinê com a criançada. Não
é que Seu Barbosa cortou mesmo o pé de buxo ! O casario velho do
morro tinh a uma graça de coisa nova, entre a folhagem, sob o sol
que faiscava ; no quintal a latada de maracujás defendia as legomes
do calor, subindo pela caramboleira que não havia meio de dar, e do
caramanchão, no vizinho, vinha uma conversa confusa e dominical
de namorados.
Tinha de ser. A culpa não fora dela, que a vida tem cambalhotas
e a dele nunca tivera outra coisa. Revoltou-se um momento : tinha
de ser, uma brisa! Bem que ela fora culpada . Quem faz a vida é a
gente mesmo e . . . parou. Sentiu que tudo era inútil agora. Tudo
já tinha acontecido. Águas passadas . . . Águas . . .
Sentou-se, outra vez, cabeça abandonada no espaldar alto, de palhi­
nha gasta, sob a impertinência das moscas .
Os livros, nas estantes atulhadas, não lhe ensinaram nada, de nada
lhe adiantaram. Tempo perdido fora aquele seu de esperar madru-

51
gadas, de gastar domingos inteiros e feriados, a estudar, enquanto os
primos iam para o futebol ou para o cinema. O Juca, muito cheio
de espinhas, estava como chefe ou subchefe, nem sabia, na Standyfor
Company; Miquelino, o mais moço, que casara com a Dulce, e era o
braço-direito do sogro no Sindicato Nacional do Café, já lhe falara
num bangalô em lpanema. Ele ficara no que era, pouco melhor com
a Tabela Lira, empregado na Central, com plantões noturnos e via­
gens forçadas que o fatigavam imenso. E não que foss e menos ativo
que o Juca e não que escrevesse absolutamente com b-i como o
Miquelino. Era uma injustiça pensar mal do Miquelino , tão bom,
tão esforçado, vivendo para a família. Ele também para muitos não
valia nada. Ingratidão sua, não há por onde escapar, pois o Miquelino
era muito seu amigo, queria-o até para padrinho do primeiro menino ,
esquecendo amigos ricos . Ele era ingrato e injusto com o Miquelino .
Ingratidão, injustiça, tudo em "in". E quem diria que não fosse invej a?
Não se formara, porque não quisera, pelo que ora se entristecia,
ora s e alegrava. Ficara sem título, com o que sabia, achando que já
era muito e o necessário . Enganara-se porque isso era na repartição
levado à conta de inferioridade e a primeira vez que sentira tal magoara­
se profundamente. Fora na discussão com o Dr. Madeira, um enge­
nheiro novo ainda na seção, e, porque fizera um curso de especiali­
zação nos Estados Unidos, chegara precedido de grande fama . Uma
notabilidade no assunto - informava sempre que era possível, o Mau­
rício Pontes ; me dou muito com ele - acrescentava - desde pequeno,
éramos vizinhos , estivemos no mesmo colégio ; é sobrinho do Senador
Madeira, um rapaz de muito talento, não é lá por ser amigo dele
que digo . Vocês vão ver.
Ele reduzia a coisa a pratos limpos, mostrando claramente o erro,
com as estatísticas na mão, na roda dos companheiros que os circun­
daram :
- Esta aqui - e batia no papel. - Eu logo vi que o senhor
estava errado : o cálculo tem de ser feito em metros.
Dr. Madeira, enrubescido, gaguej ara uma defesa, mas ele foi decisivo :
- Não acredita? Quer que eu faça os cálculos na sua frente?
Pois bem. - E ia buscar lápis � papel quando o Melo Cunha se inter­
pusera, adoçando a voz de dentes maus :
- Ora, você, Antônio, afinal de contas um rapaz inteligente, a
querer discutir com um doutor? ! . . . Tem paciência, meu velho . . .
O "é mesmo" foi geral. Ele não era doutor? Paciência . . . Meteu
a viola no saco e foi para a sua mesa acabar uns mapas . Ele não era
doutor . . . Ele não era nada - falava alto . O Castro abriu a boca
grotesca, espantado . Deus sabe o que faz. Deus . . . Deus . . . Um
amolecimento . . . Suava . . . Que calor! Ligou o ventilador. O Castro,
cauteloso, foi botar o paletó .
Toda a sua vida tinha sido um rosário de surpresas vexatórias . O
emprego düícil que arranjara, aos vinte anos, sem políticos por si,
52
num concurso com mil candidatos , não tentara Marita, que adivinhara
dificuldades e privações . Se foss e outra, talvez . . . Mas era ela, que
nunca as tendo sentido na vida de moça, não as queria depois na de
casada. Fincou pé : Vamos esperar mais . - Vamos.
Veio a comissão em Mato Grosso ; combinaram, naquele domingo
chuvoso, quando voltavam da casa de Dona Margarida, uma amiga
dela, que dera uma festinha de aniversário - ganha-se mais , ajunta-se,
é negócio . Ela achou que sim e ele foi . Veio a doença da tia Xinoca,
que o criara, e a levou em três dias . A caderneta do Banco Comercial
ficou reduzida a pouco mais de cinqüenta mil-réis . O procurador,
muito zeloso, informara que a casinha do Rio Comprido precisava de
consertos urgentes : "O muro caiu e há uma intimação da Saúde
Pública." Se fosse morar nela, não precisava tanto, que tudo com
gratificações ao fiscal se arranjaria. Você quer? Com o que ganho
viveremos . . . Achou que não, ela, numa carta em que a experiência
da mãê apareceu entre s audades duvidosas .
A comissão acabou naquele maio florido. Voltou magro , mais lívido,
mais alquebrado. Estás um esqueleto ! - explodiu o Almeida, muito
espalhafatoso, abraçando-o em plena rua. Falaram vagamente que ele
precisava tirar uma licença para se tratar : tinha direito ! Era de lei !
- grit� ram com autoridade quando sacudira os ombros. Na sua idade
uma fraqueza é coisa perigosa. Não é para se fazer pouco caso não .
Olha o Zezinho. Olha o Plínio da Maricota. Quer mais exemplos?
Dona Ismênia tinha metáforas : dás com o rabo na cerca, meu filho.
Acabaram por ser francos : Friburgo ou Campos do Jordão . Quem
já viu magreza igual? Assim era impossível casar!
Ficou na Praça da Cancela mesmo, junto com o primo . A cama
era um colchão sobre os caixões cheios de livros . O primo tinha uma
cama-de-vento e morria por conhecer Buenos Aires .
- Ainda hei de ir. Vais ver. Ainda hei de ir - dizia, botando
os olhos no abstrato.
- Nem tão difícil é assim . Basta comprar uma passagem . . .
- M as é que me falta o burro do dinheiro! - berrava dando
murros no ar.
Riam . As noites eram tranqüilas, ele nos seus livros, o primo nos
seus sonhos : a Avenida de Mayo abrindo-se aos seus olhos, o Rosedal,
os cabarés , os tangos, a vida . . .
A caderneta melhorava mês a mês . Você quer? - arriscara, em­
purrando-a contra a parede. Ia querendo. Vou te responder, sim?
- Quando? Encostou-se na estante, tema, pensativa, olhos postos nos
seus olhos : Um mês? - Está bem.
Foi arrumar uma encrenca do Gonçalves - aquele animal ! - na
linha do centro . Cois a de quinze dias no máximo, garantira, quando
se despedira, na cancelinha. Demorou-se vinte e um porque o Pinto,
o companheiro, sempre no mundo da lua, errara nos levantamentos .
Quando chegou, o médico ( chamado por causa duma indigestão do

53
maninho ) estava de namoro feito. Revirava por qualquer coisa o
fura-bolos que o anel de grau enobrecia : São hipertrofias .
Dona Maricota, titia, gozava :
- Que rãpaz distinto ! . . . Dá gosto ! . . . E que tino ! Não é mesmo,
Dona Mariquinhas?
Dona Mariquinhas sofria do estômago . Um embrulho depois do
almoço, do almoço só, isto é que era esquisito .
- Tome bicarbonato, minh a senhora. Uma pitadinha e pouca água.
E nada de coisas muito ácidas !
Remexia a gaveta dos retratos, afirmativa, suspendendo no ar a
fotografia de Marita no dia da sua primeira comunhão, que ela pouco
mudara, bonita, pois, desde menina; elogiando o café feito por Dona
Ismênia : isto é o que se chama um bom café! - tocava discos na
vitrola com liberdade.
- Sou doido por um fox - dizia. Até pareço criança, não?
- Qual o quê ! - retrucavam. - É tão natural ! Alegria.
Dona lsmênia era sincera : Eu cá por mim não gosto de gente triste .
O pai de Marita era muito alegre, o doutor nem imagina. Na véspera
mesmo de morrer, coitado, ainda foi a uma patuscada em casa do
Capitão Feij o .
Ele, então, fazia-se bom filho, terno, saudoso, e contava casos da
família no Rio Grande, do pai, dono duma grande estância, campos
a se p�rderem de vista, muito s evero com os filhos , da irmã - uma
pérola! -, da mãe que tinha morrido. Dona Ismênia, com o olhar
enternecido, chamava-o "meu filho".
Sorriu daquilo tudo. Nem perguntou pela resposta. Ficou espe­
rando na cadeira de balanço, que agora estava reformada, adivinhando
que ela não viria, s entindo-se esquerdo e desnecessário no meio da
alegria que dominava a casa. Cuidou de se despedir ( desculpar-se-ia :
tenho tanto que fazer! . . . ) mas temeu ser descortês , ferir melindres ,
ficou, entrando pouco na conversação . N o jantar houve indiretas : H á
sempre neste mundo criaturas que têm caveira de burro. Falaram d o
casamento da vizinha que fora transferido porque o noivo , empregado
no comércio, andava atrapalhado nos seus negócios . Foi pretexto :
Quem não pode não casa . . . nem empata - sentenciou Dona Ismênia,
acentuando as palavras . Doeu-lhe fundo . Houve um silêncio irre­
quieto e humilhante, que Dona Ismênia cortou, fazendo a voz maternal :
- Minha filha, você quer carne assada?
- . Não.
Os olhos dela, pestanudos, viraram para ele com ternura, talvez
com piedade - e nós? Piscaram dum jeito : - sei lá!
Nunca. Duas semanas depois, era o pedido, que os jornais noti­
ciaram, depois houve o brinde, com um anel de pérolas, presente dele,
muito gabado, a azáfama dos preparativos, cose-que-cos e o enxoval,
e o casamento três meses mais tarde, no mesmo dia - de um sol
esplêndido - em que ele, na repartição, era preterido pelo Carvalho,

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José de Albuquerque Carvalho, na vaga para ajudante de engenheiro­
chefe.
Ficou sozinho no quarto pequeno da Cancela, que ele achava enorme
agora que o primo o abandonara pela Pensão Nogueira, mais perto do
trabalho, "e com uma bóia decente" . Passava as noites à toa devas­
s ando o largo, da sacada, em pijama, indiferente ao vozear que vinha
do Café Vascaíno, na esquina, às estrelas que brilhavam para os lados
da Quinta. Remexia as suas gavetas, rasgando papéis inúteis , dando
um balanço nas coisas velhas da sua vida - cartas , contas , retratos,
pedaços de jornais, certidões . Pegou no velho cartão-postal que o
Adalberto lhe enviara há muito tempo, uma paisagem de Santos .
Santos . . . Ela j á passara p o r lá. Já vira aquelas montanhas, contem­
plara aquela praia extensa, vira a luz daquele farol, conhecera aquele
porto que a gravura reproduzia mal . Ela partira por aquele mar,
quando seguira para o Rio Grande, por um fim de tarde, triste, natu­
ralmente. Como deviam ser tristes as tardes em Santos ! . . . Sentia
uma melancolia estranha o invadir; sentia uma dor mansa, no fundo
-
da alm a, se misturar a uma saudade absurda das tardes morrentes de
Santos , que ele nunca vira. E deitava a cabeça na mesa num entorpe­
cimento, os olhos abertos para a noite lúcida que entrava pela janela.
Às vezes, atirava-se para cima da cama improvisada, o Liberty quei­
mando na ponta do braço indolente, estendido, e ficava, numa grande
ternura, os olhos rolando no teto, pensando nela, nos seus gostos, nos
vestidos que tinha - aquele de crepe vermelho que lhe ficava tão
bem! . . . - na covinha galante embelezando o queixo, nas suas ami­
zades , a Zuzu, a Santinha, a Eurídice, que casara e lhe escrevia sempre
cartas compridas, contando casos engraçados do marido, "um pândega
de marca maior, mas muito bonzinho" . E vinha-lhe a lembrança, mais
clara, dos passeios que deram juntos com a Eurídice, então noiva, muito
feliz, na Urca, no Leblon, na Quinta, o da Quinta principalmente, por
um sol luminoso de dezembro. Ele estava de roupa nova. Um almo­
fadinha, vej am só! - ela troçara. Gente humilde amava por debaixo
das sombras . Os cisnes, muito brancos, estendiam os pes coços lân­
guidos para a curiosidade dos basbaques . O sorvete Polar era gritado
pelo negro : É aqui! É aqui ! - batendo uma matraca com furor.
Depois, o beijo grande, o seu primeiro beijo, defronte à tartaruga, na
escuridão propícia do aquário.
Ficava repetindo : defronte à tartaruga. Defronte à tartaruga gigante
do Amazonas . . . Do Amazonas . . . E virava o espírito, sem querer,
para a riqueza perdida da Amazônia longínqua, no descaso dos go­
vernos, sem dinheiro, sem iniciativas, sem forças, como uma grande
vitória-régia se estiolando ao sol.
Então, levantava-se de súbito - que coisa mais estúpida é a gente
pensar! - e mesmo sem chapéu, o colarinho desalinhado, s aía para
a rua e ia andando, sem destino, até o Campo de São Cristóvão.

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Aos sábados, pela tardinha, Maria vinha-lhe trazer a roupa lavad a.
Enquanto conferia o rol, ela, sentada na mala, conversava com desem­
baraço, fazendo-lhe perguntas que ia respondendo à toa, com pena -
se ele trabalhava muito, se a pensão era cara ( não gostava da cara
da zinha, a dona) se tinha visto a "Ramona", uma fita muito bonita,
muito triste, no Cine-Parque-Brasil?
Veio-lhe depois aquilo, de repente, mais como uma necessidade.
Ficara ainda assim s e devia . . . Lembrava-se da primeira vez . . . Re­
solveu-se. Você quer? A resposta foi diversa e sincera : Quero .
Foram morar na casinha do Rio Comprido, muito maltratada pelo
-
último inquilino e que a palmeira, ao lado, diminuía mais . O pri­
meiro, muito clarinho, mas o segundo, o Luís, saíra bem à mãe.
Agora, era viver assim, deixa o barco correr, sem ambições, nem
desejos, facilmente, numa felicidade tão estúpida que ele nem sofria.
Com tudo Maria se contentava, para ela estava tudo muito bem. Menos
a pia '.!_a cozinha. Queria outra, uma nova, que aquela era uma por­
caria! . . . - Vou botar outra! Vou botar! Deixe acabar o conserto do
banheiro ! Você pensa que eu acho dinheiro na rua? - fazia ele, doido
por um desespero, por uma queixa.
O cachorro acordou assustado . Maria veio da cozinha, cantarolando,
o Luís pendurado no ombro mulato .
- T á falando sozinho, meu nego?
Nem respondeu. Sacudiu a almofada de chitão futurista. Espre­
guiçou-se. Pela porta, estava vendo, na sala de jantar, o quadrinho
do peixe no prato fora do lugar.
- Está pes ado do cozido, hem? Faz até lembrar meu pai. Ele
gostava muito . . .
Pesado do cozido, eu! Pesado. Mas que estúpida ! Nem desconfia ! . . .
Teve vontade de descompô-la. Teve ânsias de esmurrá-la . Ela con­
tinuava, encostada à parede, por baixo do Coração de Jesus , endi­
reitando os bibelôs na mesinha, a contar uma história do pai, por­
tuguês, com um patrício, o Seu Vicente. Penalizou-se : coitada! . ..

E ela acabou : meu pai era muito engraçado ! Fazia cada uma que
você nem imagina. Seu Vicente ficou todo molhado . Mas não se
zangou não, eram muito amigos. Eram lá da mesma terra e vieram
juntos, garotos, pra cá.
A varejeira atravessou o silêncio e as palavras foram-lhe atrás :
- Passei a ferro o seu temo, ouviu? O azul-marinho . Tirei a
nódoa também que estava indecente. Era graxa, seu porco !
- É? . . .
- Mas o Lauro me falou que se você não quiser mais . . .
Lauro era o irmão dela, chofer de praça, dono dum Studebaker que
ele comprara em segunda mão, novo, uma pechincha.
Faz o que você quiser - bocejou.
Não dou, não . Ainda serve muito . Pra dia de chuva, então ! . . .

56
O l,:uís embirrou com o Sultão : Sai ! - e quis ir com o papai.
Antônio, sem ação, com o pequeno no colo a brincar-lhe com a barba
espessa e malfeita, não atinava com uma graça, um brinquedo, uma
palavra.
- Sem j eito mandou lembrança - caçoou Maria.
- Você gosta de seu pai, meu filho, você gosta de seu pai?
O guri fazia com a cabeça ora que sim, ora que não. E Antônio
só s abia repetir : Você gosta de seu pai?
Abraçou, então, o filho, num desespero, fortemente contra o peito.
- Você mata esta criança! - acudiu Maria tirando-lhe o Lula
dos braços . - Parece tamanduá.
Teve desejo de dizer-lhe outra vez : Maria, você quer? Ela, porém,
sacudindo o seio farto, ria muito da sua pilhéria : Parece tamanduá!
Confundiu-se. A soalheira de dezembro desabava lá fora. A cigarra,
solitária, fazia-lhe lembrar outros verões .

NA TORMENTA

PAM, PAM, PAM, batem-lhe na porta, pancadas curtas, iguais, acostu­


madas .
- Já? ! . . .
Atirou para os pés da cama o lençol amarfanhado, mas deixou-se
ficar estendido, pernas abertas, nos braços uma lassidão de noite mal
dormida, sem se resolver.
Não tomou a adormecer, olhos postos no teto, mas foi como se
sonhasse. A tarde da véspera repetia-se dentro da sua imaginação
igual, sem tirar nem pôr, tão exata como se fosse ela mesma e não
uma reconstrução . Gritavam na luz morrente : Cerca! - e o cachor­
rinho, assustado, fugia. Crianças corriam-lhe atrás : Pega! Cerca! -
e mães inquietas debruçavam-se nas janelas, apreensivas, não fosse um
p
automóvel a anhar uma delas, mais imprudente. Cigarras vespertinas
chiavam, sons que desciam das folhas, que lhe infiltravam na alma a
s audade de outras tardes iguais , assim douradas, de suavidade assim.
Em pouco desceria sobre o bairro tranqüilo a noite, a noite boa, as
horas de descanso, quando todas as fábricas se fecham e a energia
dos homens se recolhe. Acender-se-iam as luzes nas s alas de j antar.
Tranqüilidade das sopas fumegantes e das conversas entre o tinir dos
talheres : "Pedrinho hoj e estava impossível . Você precisa ralhar com
ele, Armando ." "Os negócios melhoraram. Amanhã a féria será
melhor." "E o café, subiu? - Está subindo. " Viriam os homens para
as varandas depois, fumando, repousados ; pares distraídos s airiam pelas
calçadas, na frescura do tempo, alguns entrariam nos cinemas . Só ele
estava inquieto . Só ele via sombras e nuvens negras na noite límpida

57
que vinha. Nunca mais o luar de outubro, pensava, desenharia no chão
a sombra querida daquele corpo se extinguindo, preso na brancura
cuidadosa dos lençóis, à espera do último minuto - quando s eria?
- corpo que o protegera, alma que o afagara, coração que o perdoara
- não foi nada, esquece . . . braços que o levaram para o sol, ainda
bebê, nas praias matinais, onde o ar era puro e a areia era limpa.
Boca que lhe contara as histórias dos bichos que falavam, voz que
já perdeu o doce timbre, que a caracterizava, voz que naquela hora
só pedia a morte, e ela não vinha, vinha o médico com ópio, mais
ópio, que era um caso perdido, nada podia fazer, senão minorar
o sofrimento. Teimavam na luz morrente as cigarras vespertinas .
Tremeluzia a estrela perdida, a única, a brilhante, a pequenina estrela.
E os homens voltavam. Brincavam meninos no passeio : Estou na
casa da baleia e a baleia não me pega! No momento da despedida,
ele já não sofreria, de previsto que lhe era o desenlace. No entanto,
olhava o céu e pedia novas lágrimas p ara o momento da partida. Não
as teria, bem que adivinhava. Para onde foram as suas lágrimas , em
que dores inúteis se perderam? Pobre dele sem os seus afetos! Pobre
de seu coração sem ninguém para se amparar, para tentar explicar
as suas mágoas íntimas, os seus desesperos , as ambições e as queixas .
E o céu era puro de sossego e de luz, igual, homogênea, que se apa­
gava aos poucos, serenamente. Não buliam as folhas nas árvores da
rua. Passaram o automóvel, o soldado e a carrocinha. Gritos infantis
rasgaram o ar perfumado, s acudindo a paz, que vinha das distâncias ,
além, desconhecidas , paz que seu coração desej ava, paz luminosa dos
que se sentem protegidos e fortes .
Agora, é a voz esganiçada que, varrendo tudo, chama-o do corredor.
- J á passam das sete horas , Seu Luís ! . . . Seu Alfredo j á saiu.
- E os chinelos s e afastam, apressados .
- Que preguiça, pai do céu, que preguiça . . .
Esticou os braços extenuados, bocejou fundamente : Sete horas ! A
folhinha estava atrasada. O paletó pendia do cabide, no canto mais
escuro do quarto, azul, lustroso nas costas de tanto uso ; a calça no
chão caída, desleixadamente.
Era preciso trabalhar! Correu a mão pelo queixo num desalento .
A barba estava crescida, mas passava. E que não passasse! Fazê-la
é que não faria. Para que a gente tem barba? Para quê? Tantas
inutilidades neste mundo, tantas . . . B arbas, relógios . . . Para que
há relógios? Marcar o tempo? Então, não s abemos nós que o tempo
corre? Não temos, porventura, espelhos onde vemos desgraçadamente
que o tempo passa, dia sobre dia, ano após ano, e que mais um pouco
as horas s erão de outros, que as verão escoar como nós as vimos,
fatais, inexoráveis, sem preferências, nem distinções? A camisa é que
não tem botões . É botar o colete para não aparecer ; se fizer calor,
paciência. Onde puseram as minhas meias? Joana! ó Joana!

58
Um frio matinal entra pela s acada, balançando o cortinado de reps
barato, onde, sobre um fundo violeta, se estampa uma loucura de
pagodes e ventarolas, mandarins e crisântemos .
- Pode botar o café! - berrou do banheiro, já penteado, dando
o lacinho na gravata borboleta.
Joana prepara-o, entre um ruído de louça na cozinha. O caixeiro
gritou no portão : Olha as compras !
Pão com manteiga, tão nosso . . .
- Saí, mosca !
. . . de cada dia . . .
- A lavadeira vem hoje, Seu Luís . - , E mãos nas cadeiras, Joa-
na espera na porta .
. . . fruto difícil das nossas lutas de todos os dias . . .
- Ouviu, Seu Luís?
As pratinhas tilintam na mesa da cozinha .
. . . tenho ainda hoje . . .
Lá-lá-ri-lá-lááááá! . . . Joana é assim alegre e canta enquanto ga­
nha com dureza uma ajuda para o seu homem, o Manuel, que passou
dois meses sem trabalho, doente no hospital. Invejou-a de longe. O
timbre era estridente, a toada era de fado . Procura o esfregão, enxota
o gato. - Sai daí, Mimi ! - vai para o tanque com a trouxa da
roup a : lá-lá-rá-lá-lá.
-
Que vontade sentiu de ficar por ali, perto de Joana, longe do mun­
do, a cantar, a cantar tudo que lhe viesse à boca, sem outra razão
senão a de cantar! Talvez corresse para a praia depois, vagabundo,
livre, vendo o sol queimar-lhe a pele, respirando, libérrimo, o ar
s aturado de sal, feliz, leve, como se nem fosse desse mundo, fosse
uma sombra alegre que encontrasse um corpo sem destino, sem nada
de terrestre, sem preocupações, sem deveres, sem vexames , um ho­
mem sem tormenta !
Pôs o chapéu, desceu a sua rua, e m passos ligeiros, passou a far­
mácia, o s apateiro, o sobrado donde naquele ano tinha visto sair
três enterros, e conseguiu apanhar o bonde do costume, cujo condu­
tor, de encaracolado bigode, já o conhecia e o cumprimenta como
amigo.
- Que friozinho, pois não?
E o fulano, as mãos sujíssimas, traz na cabeça, sob o boné jogado
a esmo, os primeiros cabelos brancos . Certa vez falou-lhe :
_
- Pensei que o senhor fosse estrangeiro.
- Estrangeiro? !
- Não sabia bem por quê. Mas o j eito . . . O senhor s abe, pois
não? O jeito . . . Sempre com o seu livro, a ler . . .
Em outro dia, foi confidente : a Maria e a caderneta do Banco
·
Ultramarino . Guardava lá o s eu tostão . Tinha medo, porém, que
não o pudesse gozar, alquebrado que já se sentia, sujeito a umas
tonteiras - e diziam-lhe que era do fígado - e uns zumbidos nos

59
ouvidos . Mas o pior mesmo era aquela dor nos rins - aqui ! mos­
trava - que não o largava . Fora à Beneficência consultar com o
Dr. Madeira, não conhece? Um velhote j á? Não? Pois olhe que é
muito conhecido . Pusera-o de dieta o doutor. Nada de vinhos e
coisas pes adas , só canjiquinha e legumes - coisas leves, compreende?
Mas não tivera melhoras . Enfim, Deus é grande. Puxava a tabela,
conferia : tem trinta e oito no carro .
A manhã é áspera e friorenta, gente pouca e agasalhada, casas
ainda fechadas , embranquece as ruas uma névoa que um sol fraco e
medroso tenta romper. O jornaleiro salta nos balaústres . As cole­
giais riem ; a menina triste abre a pasta, mostra os mapas, apontando
com o dedo raquítico . Já fora assim, débil, colava-se às paredes ,
tímido que era, tremia ante o vulto monstruoso do professor de la­
tim, chamavam-lhe o Caniço. Tivera como aquelas meninas bondes
certos para não ser punido como atrasado, homem sem complacên­
cias o porteiro, incapaz de relevar uma falta ; ficava empertigado, a
cara hostil, sem responder aos bons dias dos meninos, como um
cérbero, no limiar do pesado portão de ferro, e, mal acabava de
soar a sineta das dez horas , ninguém mais entrava sem que tomasse
o nome para levar ao diretor. Hoj e, no escritório, também tinha hora
de entrada. Lá estava o ponto à sua espera. Bondes certos . . .
Horas certas . . . Tudo se repetia. Menos Seu Domingos . Nunca
conhecera outro. Ensinava caligrafia, pintava os cabelos, morava
perto do colégio, solitário, viúvo, numa casa que diziam própria ( não
era verdade) e que sublocava, baixa, antigüíssima, com quatro esta­
tuetas de porcelana no alto da fachada, representando as estações
do ano.
- Burro ! Seu grande burro ! - Pegava-lhe no caderno, mostran­
do-o à classe como exemplo - estão vendo? - do que não devia
ser imitado e descompunha-o : Isto é coisa que me traga? Então,
eu já não ensinei como se faz um talhe gótico? Responde : eu já
não ensinei? Afirmava que sim, sufocado, os soluços espremidos
na garganta. Ele afetava, tirando os óculos e limpando-os no lenço
de cambraia, uma benevolente piedade : "Nunca pass arás do que és .
Por que teu pai não te tira do colégio? Olha que é dinheiro posto
fora. Estupidamente . " A turma olhava-o, os que estavam mais longe
chegavam a ficar de pé, lágrimas dançavam nas suas pestanas .
As pequenas desceram . O anúncio convida, mas ele não tinha
tosse, tinha vontade de fumar. Remexeu os bolsos . Acabaram-se os
cigarros . Procurou, sem razão, os fósforos . Também não os tinha.
Bonito ! Se ainda ao menos lhe sobrasse a esperança! Espantou-se :
esperança de quê? Positivamente . . .
- Positivamente, esta situação é um beco s em saída.
Quem fala é Seu Barbosa, um companheiro de bonde . Fala e
explica :

60
- Porque, convenhamos , como poderei arranjar doze contos as­
sim de uma hora para outra, eu - está ouvindo? - para levantar a
hipoteca?
O amigo sacudiu os ombros e Seu Barbosa não atinava :
- Como? Vê se dá uma idéia, homem !
lnfelizmeiite, Seu Almeida não tinha nenhuma idéia, limitava-se a
sacudir os ombros e a rosnar : É o diabo, Barbosa, é o diabo !
E é um grande amigo, e magro, um princípio de calvície, o olhar
cavado, um amigo para as ocasiões . Basta lembrar a sua dedicação,
quando o Barbosa quebrou a perna no Largo de São Francisco.
Noites a fio e ele firme à cabeceira do compadre, porque o pessoal
de casa estava escavacado :
- Onde é que está doendo? Vê se dormes um pouco . Então,
cochila. Olha, vou apagar a luz . . . Não penses nisso, Barbosa,
coragem, há dores piores - e citava uma porção delas , consolativas .
Madame Barbosa por trás apoiava.
E nem uma idéia. Um martírio, sim s enhor! Remexia-se todo no
banco : eu não tenho . . É de desesperar uma criatura! Mas Seu
.

Barbosa é calmo, vagueia o olhar pelos passageiros, demora-se mais


na viúva - boa mulher! - espera que brote uma solução :
- Como é? Como é?
- Como é? Como é? O s enhor não se resolve? - Luís tem
vontade de interpelar, agressivo, o empregado de banco, que há nove
meses o irrita namorando a empregadinha de escritório, sempre com
um costume cinza, loura, olhos azuis, tão azuis, sem se definir.
Não desconfia, o estúpido, que mundo prometem aqueles olhos
azuis - tantos filhos, uma grande sinceridade, s acrifícios e privações
p elo ideal duma casinha a prestações no Graj aú .
Haveria algum dia de encontrar uma criatura assim, que tomasse
conta da sua vida, consertando-lhe as ambições e as camisas, num
carinho solícito e sincero? Loura? Se fosse morena . . . Loura, que
importava? Se ele a encontrasse! . . . Que novo rumo tomaria a sua
existência solitária, que novos horizontes rasgar-se-iam na sua frente,
talvez uma desejada tranqüilidade viesse ser a base dos seus dias .
Seria numa esquina o primeiro encontro. Estaria no meio de ou­
tros homens, muitos homens, ela, porém, só notaria a ele. Admirá­
lo-ia na sua timidez, no seu acanhamento ante as moças que passa­
vam diante dos olhos, no moreno pálido da sua face, no seu ar sofredor,
na atenção com que lia o romance, marcando-lhe os trechos a lápis .
Tomariam o mesmo ônibus, s entar-se-iam no mesmo banco . Como
o balanço do veículo proibiss e a leitura, fecharia o volume, observa­
ria o estado do tempo - vai chover - ficaria vendo as árvores
passar, as árvores e os postes, homens e automóveis , rapidamente se
sucedendo. Distraía o olhar pelos passageiros . Só então a notaria,
de branco, um vestido simples de linho, o chapéu também branco,
sem enfeites, nem artifícios ; os lábios não teriam quase rouge, um

61
toque apenas , quase imperceptível. O nariz nada tinha de extraor­
dinário, curto, levemente arrebitado, mas os olhos eram ingênuos,
redondíssimos, e estavam pousados nele. Sentir-se-ia atrapalhado por
ver-se assim objeto dum olhar feminino, mas acabaria por s e encon­
trar com ele, furtivo, como por acaso, o maior número de vezes .
Trazia uma pequenina cicatriz no queixo. Onde teria s e ferido? Tal­
vez em criança, travessa que teria sido, os olhos não negavam . . .
Mas , como? Onde? E os dedos, como eram gordos, como amassa­
vam a carteira vermelha! Linda! Linda! - repetia. Linda como
uma artista de cinema ! Se a viagem fosse maior, ter-se-ia declarado,
mas era curta e ela ainda saltou muito antes . Perseguiu-a ousada­
mente com os olhos, virando o corpo, quando o ônibus se pôs nova­
mente em movimento, e viu-se atravessar o jardim, deitando-lhe,
sorrateira, os olhos provocantes, por baixo das abas do chapéu, que
lhe sombreavam demasiadamente o rosto .
No outro dia, buscou-a no mesmo ponto, esquina turbulenta, fer­
vilhante de povo . Ela parecia que j á o esperava, procurando-o no
meio da multidão, com a mesma toalete da véspera. Talvez tivesse
perdido, pr<lJX> sitadamente, alguns ônibus na esperança de vê-lo . Ele
que já não lia, olhou-a demoradamente. De novo lado a lado no
último banco. A uma volta mais rápida do auto, exagerou esforços
para não vergar sobre ela. Bateu a mão no chapéu :
- Perdão .
- Estes choferes . . . - sussurrou ela, balançando a cabeça negati-
vamente, dum modo graciosíssimo .
Depois dos choferes, falaram dos motorneiros. Ele gostava mais
de andar de bonde, mas como saía tarde do escritório . . .
- Também trabalha?
- Sim. Era datilógrafa da Indiana Company. Compreende :
papai é doente e está aposentado. A pensão que recebe é muito
pouco - não sei se o senhor sabe? - e somos seis irmãos, eu a
mais velha.
- Mais velha?
- Sim.
� Menos nova . . .

- Ah !
No sábado marcariam encontro num cinema. A fita com u m en­
redo semelhante ao encontro deles - as profissões então eram iguais
- serviu-lhes de pretexto para promessas recíprocas . O fim, o casa­
mento, o beijo inevitável, cimentou-lhes os sonhos . Casariam em
maio. Maio ou dezembro? Maio mesmo . A felicidade não tem mês
certo. Teriam dois filhos . O primeiro seria um menino, parecido
com ele, chamar-se-ia . . .
- Dá licença?
Sobressaltou-se :
Pois não, minha senhora! Desculpe-me!

62
A senhora sentou-se ao seu lado, alta, de verde, carrancuda e feia,
abriu logo a carteira para pagar a passagem. Eram cinco no banco .
Sentiu-se esquerdo. O perfume da mulher transtornara-o mais : Que
raio de perfume tão forte era aquele! Que diriam os outros? Esse
sujeito parece que ainda está dormindo ! Lembrou-se que poderia
ter falado alto no meio do s eu sonho. Que vergonha! Tomá-lo-iam
por maluco na certa. Olhou-os de revés - cada um entretido com
qualquer coisa, lendo, fumando, não demonstravam ter presenciado
nada de menos natural. Ainda bem, que era ridículo ser apanhado
a falar sozinho. Já que não falava nos s eus devaneios poderia con­
tinuar. Boa distração a gente sonhar, construir castelos , arquitetar
episódios romanescos . Espécie de cinema, em que a gente é o ator
principal, representando somente cenas que bem nos convêm, papéis
de heróis, de vitorioso no último ato, entre palmas, dinheiro, glória
e amor! Quis continuar, mas foi impossível, mil pequenos acidentes,
aqui um homem que tomou o bonde em movimento, ali uma buzina
de automóvel, mais acolá uma carroça que não quis sair da frente
e o motorneiro se cansa de bater a campainha e descompor, desvia­
vam-lhe a atenção, não conseguiu se reintegrar na sua deliciosa aven­
tura. Teve raiva da mulher que a cortara estupidamente, querendo
sentar-se a seu lado, quando havia tanto lugar vazio na frente.
Teve-lhe ódio, desejos mal contidos de estrangulá-la.
O bonde, indiferente, aos solavancos, sacolej a seu desespero sur­
do, atira-o, nas curvas, contra a tímida mocinha que lê, e que, hu­
mana, acha natural estas colisões entre passageiros de bonde e não
o repele, afastando-se melindrada como tantas . - Não me repele!
Quem é você? Se me olhasse de frente, talvez pudesse compreender
num relance. Acabar-se-ia a tortura de procurar nos semblantes que
me cercam a compreensão amiga do meu ser difícil, feito de tanta
coisa banal e contraditória. Talvez, brotasse no seu coração bem
formado e virgem a admiração pelas minhas qualidades, que passam
despercebidas aos olhos comuns de tão simples que são, tão humil­
des e modestas qualidades que qualquer defeito maior com facilidade
as esconde.
Não o olh a, porém, só não foge aos esbarrões, o enredo do ro­
mance prende-a sinceramente. Quem é? Não sabe. Não se atreve.
Contempla-a, apenas . Vê que é pálida e se oculta no vasto mantô
de casimira, tímida e morena.
Os esguichos mecânicos regam duma poeira d'água delicada e útil
os grandes canteiros rasos no jardim da Glória. Seu desespero cresce.
Sai do seu coração, cai no jardim, se perde pelas coisas, se mistura
com a névoa que esconde o outeiro.
Surgiram os arranha-céus úmidos da chuva noturna. Nem parecia
luz, de tão fraca, a claridade que se escoava do céu naquele instante.
Subiu os trinta degraus humildemente. Através das escrivaninhas
desertas, o Lucas, assobiando, ia espanando o pó.
63
Quatro horas depois, seria o almoço. Telefonaria para a leiteria,
pedindo o �vor de chamar uma pessoa no 1 5 , perguntaria sem
esperança : Como vai titia? Responderiam como sempre : Na mes­
ma. Voltando do almoço outras quatro horas e teria que agradecer
ao céu o sustento de mais um dia. No bonde da vinda, os comw­
nheiros seriam outros . O nervoso que comprava quatro jornais, o
que falava alto, explicativo, presunçoso, procurando nos olhos dos
outros admiração para a sua escolhida dialética, o que não lia, não
fumava, não via nada, ia para casa apenas . . .

FELICIDADE

OLHOU para o céu, certificando-se de que não ia chover.


- Passa já pra dentro, Jaú. Olha a carrocinha!
Jaú, costelas à mostra e rabinho impertinente, continuou impassí­
vel a se espichar ao sol, num desrespeito sem nome à sua dona e
numa ignorância santa das perseguições municipais .
Clarete também teve o bom-senso de não insistir, o que aliás era
uma das suas mais evidentes qualidades. Carregou mais uma vez
a boina escarlate sobre o olhar cinemático, bateu a porta com força
- té logo, mamãe ! - e desceu apressada, sob um sol de rachar
pedras, a extensa ladeira para apanhar o bonde, pois tinha de estar
às oito e meia, sob pena de repreensão, na estação Sul da Cia.
Telefônica.
No bonde, afinal, tirou da bolsa o reloginho-pulseira e deu-lhe
corda. Era um bom relógio aquele. Também, era Lõngines e no
rádio do vizinho, que se mudara, um sujeito mal-encarado, ouvira
sempre dizer que era o relógio mais afamado do mundo inteiro . Fora
presen!e de Seu Rosas quando ela morava na avenida. E, à falta
de outra coisa, foi remexendo o seu passado pequenino com a lem­
brança do Seu Rosas .
Rosas . Que nome ! Não lhe entrava na cabeça que uma pessoa
pudesse se chamar Rosas. Nem Rosas, nem Flores . Que esquisitice,
já se viu?
Arregalou os olhos fotogênicos.
- Que amor!
Uma senhora ocupava o banco da frente, com um chapéu, rico,
de feltro, enterrado até às sobrancelhas .
O solavanco da curva não a deixou ter inveja. Calculou o preço,
assim por alto : cento e poucos mil-réis, no mínimo . Quase seu orde­
nado. Quase . . . E sem querer voltou a Seu Rosas .
Fora ele quem lhe dera aquele reloginho. A mãe torcera o nariz,
nada, porém, dissera. Devia contudo ter pensado dela coisas bem
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feias . Clarete sorriu. O rapaz da ponta, com o Rio Esportivo aberto
nas mãos e os olhos pregados nela, sorriu também. Clarete arrumou­
lhe em cima um olhar que queria dizer : idiota! e o rapaz zureta
afundou os óculos de tartaruga na entrevista do beque carioca sobre
o jogo contra os paulistas.
Uma noite Seu Rosas não veio conversar com ela. Noutra noite
também. E mais outra, atrás de outras, uma semana, duas, um mês .
Ela, enquanto ajudava a mãe no arranjo da casa, pensava : por que
será que ele não vem? Olhava para o São José, que era uma das
devoções da mãe, e ele não respondia. Na folhinha de parede, boas­
festas do açougue do Seu Gonçalves, um cromo complicado, borbo­
letas esvoaçavam sobre flores que pareciam orquídeas . Já tinha lido
um soneto no Jornal das Moças em que o poeta chamava as borbo­
letas de levianas . Seu Rosas era borboleta também. Borboleta? !
Não . Ora, que bobagem! Seu Rosas era Seu Rosas mesmo. Ria.
Batiam sete horas no relógio da vizinha, que era muito intrigante.
Ela se aprontava e corria para o portão na noite mal iluminada. Seu
Rosas nada. Aborreceu-se :
- Aquele mocorongo . . .
Ficava pensativa, perguntando a si mesma por que razão Seu Rosas
levara aquele sumiço?
Acabou por se desesperar :
- Pois que se dane o tal de Seu Rosas! Não aparece, não dá
notícias, talvez nem se lembre mais de mim, e eu aqui feito uma
boba só pensando nele! Que leve o diabo ! Morreu, pronto, está
acabado ! Não se fala mais nisso.
Aquela saída para o desaparecimento de Seu Rosas entrou-lhe na
cabeça como um sol.
- É mesmo. Devia ter morrido. Senão . . .
Engraçado é que não sentia tristeza alguma, achava até muito na­
tural que ele morresse. Já estava velho . . . Tinha uns cabelos bran­
cos aqui e ali, rugas sulcando-lhe a face. Ora, Seu Rosas ! . . . Re­
cordava-se perfeitamente do dia em que lhe dera o reloginho . Viera
de azul-marinho, uma roupa nova, e muito bem barbeado .
- Bom dia, Clarete.
Tinha a voz muito meiga :
- Felicidade, muitas felicidades - ouviu? - pelo dia dos seus
anos . Você não repare a pequena lembrança que . . .
Praia de Botafogo. Meu Deus ! Pendurou-se nervosamente na
campainha, saltou e atravessou a rua sob o olhar perseguidor da ra­
paziada que ia no bonde.
Houve tempo em que Clarete se chamava simplesmente Clara.
Tinha, então, os cabelos compridos, pestanas sem rímel, sobrancelhas
cerradas, uma magreza de menina que ajuda a mãe na vida difícil
e um desejo indisfarçável de acabar com as sardas que lhe pintalga­
vam as faces e punham no narizinho arrebitado uma graça brejeira.
65
Trabalhava numa fábrica de caixas de papelão e vinha para a
casa às quatro e meia, quando não havia serão, doidinha de fome e
recendendo a cola de peixe.
Quando ela passava, os meninos buliam na certa:
- Ovo de tico-tico ! Ovo de tico-tico !
Ela arredondava-lhes um palavrãozinho que aprendera na fábrica
com a Santinha e continuava a subir a ladeira comprida, rebolando,
provocante. Os meninos riam, chupavam o nome feio como se fosse
um caramelo e trocavam reminiscências :
- Vocês -se lembram quando ela usava aquele vestido roxinho?
- Quando o vento deu eu vi as pernas dela até aqui - e mostrava.
Verdade é que eles a chamavam de ovo de tico-tico, menos pelas
sardas do que por despeito . Ela não dava confiança a nenhum -
vê lá! . . . - e no coração deles andava uma loucura por Clarete.
Ai! s e ela quisesse! . . . - suspiravam todos intimamente. Ela,
porém, não queria, estava mais que visto. E eles ficavam se rega­
lando amoravelmente com o palavrãozinho jogado assim num des­
prezo superior, pela boca minúscula que todas as noites aparecia,
tentadoramente se ofertando, nos seus sonhos juvenis .
Aos domingos, quando não tinha serviço extraordinário, ia almo­
çar no palacete da madrinha, Madame Oliveira, muito rica, mas que,
muito somítega, a não ser conselhos, só lhe dava uns mil-réis, muito
chorados, para ela se divertir. Sua diversão era o cinema, a matinê
barulhenta do Guanabara. Ria moderadamente, nas fitas cômicas,
chorava sentidamente pelas desgraças das estrelas e entusiasmava-se
com as peripécias das fitas em série, aos gritos de "entra, mocinho! "
fartamente soltados, pela meninada, amante de tiros, murros e
bandidos.
Depois , com o uso meticuloso do Bylbet-Cream, de que lera anún­
cios coloridos em revistas emprestadas, conseguiu ver-se livre da
metade justa das sardas, o que a tornou bem mais interessante, pois
as poucas que lhe ficaram punham-lhe no rosto uma vontade garota
de beijos repetidos e complicados . Foi quando começou a exigir que
a chamassem de Clarinha. Pintava os l ábios com displicência, sonhava
ser artista, imaginando uma vida gostosíssima em Hollywood, junto
com a Coleen Moore, a Billie Dove e o Douglas . Apaixonou-se pelo
Eugene O'Brien, saiu da fábrica, foi s er telefonista, tirou o segundo
lugar no concurso de beleza do bairro. Daí, irremediavelmente,
Clarete.
Estudava poses até de esperar o bonde, virando e revirando a som­
brinha. Cabelo sempre cortado pela última moda. Duas horas para
o arranjo irrepreensível da toalete ; não dava, do que ganhava, um
tostão à mãe ; gastava tudo em vestidos colantes que os seios peque­
ninos e duros furavam agressivamente, em chapéus e meias de seda,
através das quais desnudavam-se as suas pernas, irrequietas e
sensuais .
66
O Cazuza apareceu-lhe como aparecem todas as coisas desse mun­
do. A intimidade foi rápida, que ele se soube fazer insinuante. Pas ­
seavam pela Praia de Botafogo quando ela saía d o trabalho e vinham
para casa juntos . Dançavam, apertadinhos, no Lido, apinhado de
gente suarenta e divertida, pelas noites de verão.
Clarete, perdida pelos diminutivos, chamava-o de Cazuzinha, e ele,
perdido por Clarete, pouco s e incomodava que o chamassem assim
ou assado.
Na estação telefônica, Mister Shaw, que era o subdiretor e não
falava com ninguém, perguntou secamente à telefonista-chefe quem
era aquela. Dona Zulmira queimou-se com a secura, mas respondeu :
- É a Clarete.
Mister Shaw nem agradeceu. Caiu na sua meditação habitual, aliás
profundíssima meditação como depois se verá, e, afundando-se na
poltrona, sufocou o gabinete da subdiretoria com a fumaça navycut
do seu cachimbo de nogueira.
Todas as tardes Mister Shaw, no seu caríssimo Packard, acompa­
nhava o bonde em que ia Clarete com o Cazuza. Ela, às vezes,
reparava e invocava com o chofer, que era japonês .
Duas vezes por semana Clarete trabalhava até às dez horas da
noite. Cazuza a esperava encostado num poste, assobiando a Ma­
landrinha numa atitude cafajeste.
- Eu tenho um medo, meu bem, de subir esta ladeira no
escuro . . . - dizia ela brincando.
Cazuzinha, que era meio tapado, fazia a voz adocicada para
repreendê-la :
___, Ora, neguinha, que besteira! . . . Então eu não estou aqui? . . .
- Os seus beijos me dão coragem, sabe? - ria.
Iam subindo a escuridão .
Quando a deixava, acendia um cigarro para se acalmar. Limpava
com o lenço de seda, surrupiado da irmã, a boca toda avermelhada
pelo baton dela, Coty, tipo baunilha, e vinha preparando vantagens
para contar na roda do Café Glória do Sul. Ao chegar cá embaixo
o Packard de Mister Shaw, que o esperava pacientemente, arrancava
silencioso. Cazuza não via e ia a pé para o café, que era perto,
onde a turma o esperava, tomar a sua média para refortalecer, dizia.
Mostrava rindo o lenço todo sujo e para os camaradas lubricamente
atentos afirmava que Clarete . . .
Clarete, nua defronte do espelho, dançava o charleston, mas dava­
lhe uma tristeza repentina, e, se afundando nos lençóis, tinha algu­
mas crises de choro . No outro dia acordava de olheiras e queixava-se
à mãe que naquela noite não pudera dormir com uma dor de dentes
cachorra. Dona Carolina olhava-a fixamente, suspirava e não dizia
nada.
Uma noite - estava chovendo e vinham abraçados sob o único
67
guarda-chuva - o Cazuzinha, corajoso, segredou-lhe qualquer pro­
posta ao ouvido. Clarete pulou dos braços dele.
- Você é · besta, Cazuzinha? Você pensa que eu sou alguma
idiota?
Ele parece que pensava.
No outro dia foi chamada ao gabinete do subdiretor.
- Que diabo quererá de mim este bife? . . . Enfim . . .
Consultou o espelhinho. Ajeitou o cabelo e foi. Os tapetes caros
silenciaram o tique-taque datilográfico dos seus passinhos miúdos.
Mister Shaw foi britanicamente ao assunto . Falou-lhe claramente
simplificando o mais que era possível as suas idéias . Que era rico -
ela já sabia - e gostava dela. Aí ela ficou surpreendida. Gostava
muito. Muito? Yes. Queria casar com ela. Amparou-se na secretária :
comigo? Ele continuou : mas que era preciso ter juízo - e batia, com­
passadamente, palmadinhas sonoras na testa. Era preciso que ela
deixasse de assanhamentos. Mister Shaw, que vinte anos de Brasil
não fizeram falar decentemente o português, não dizia assanhamento,
dizia outra coisa qualquer que não se parecia absolutamente. Mas
Clarete compreendeu tudo às mil maravilhas . Pesou ali mesmo os
inconvenientes e as conveniências - Madame Shaw, dezoito anos,
uma casa alinhadíssima, um passeiozinho pelos Estados Unidos . . .
Chegou em casa e pôs as mãos· na cintura :
- Sabe duma coisa?
Dona Carolina não sabia de nada.
- Vou me casar!
Dona Carolina não desmaiou porque era mulher forte e já acos­
tumada a todas as loucuras da filha e da vida.
Casou-se um mês depois , numa igreja protestante, sob uma chuva
de arroz. Mister Shaw pediu oito dias de licença, mas, como era
comodista, não saiu do Rio. Foi fazer a lua-de-mel num apartamento
do Glória com diária de duzentos mil-réis . Clarete, que fez um
mundo de extraordinários, como o mister pôde ver ao pagar a conta,
proporcionou-lhe, todavia, agradáveis momentos. Pelo menos foi o
que disse em inglês a Mister Brayller, que era colega, na subdiretoria,
bem entendido. Clarete, com a manicura francesa pendurada nos
seus dedos a quinze mil-réis por hora, jurou que nunca haveria de
traí-lo, a não ser que o Eugene O'Brien . . . Mas isso era outra
história . . .
Rasgou os retratinhos do Cazuza que encontrou no meio de velhas
bugigangas, freqüenta quase diariamente o Country Club, onde joga
tênis razoavelmente mal, dança muito, fuma cigarros Camel, finge
que lê o Times - seção para damas - e recebe, nas bochechas do
marido, os galanteios dum amigo dele, um outro mister, mais louro,
mais moço e mais imbecil.
Visita a mãe, de quando em quando, levando frutas , conversando
sobre a sorte infeliz das ex-vizinhas - uma casada com o Pedro da
68
padaria - gastando muitos yess pelos quais está mais perdida do
que pelos diminutivos, e acha, agora, a cara do chofer japonês muito
menos invocante.

HISTóRIA DE ABELHA

PARECIA uma abelha. Era possível que não fosse, tão complicada e
vária é a bicharada do Senhor. A cor, na verdade, não tinha ne­
nhuma semelhança com a das abelhas mais originais que conhecera,
um castanho-escuro, carregado, esclarecendo um pouco para o fer­
rão amarelo, de um tom vivo e agressivo. E as listras? Sim, não
esqueçamos as listras pretas, grossas, pelo corpo como anéis. Enfim,
não é coisa incrível haver abelhas extravagantes . Esta bem o poderia
ser. Mas o tamanho? Convenhamos que era do tamanho de um
dedo, não digo que um grande dedo rude de trabalhador, mas um
dedo pequenino, gentil, digamos logo, um dedo de mulher, o que não
deixa de ser porte de sobra para uma abelha. Nada disso importa.
Haverá quem negue neste mundo a existência de abelhas descomu­
nais? As da Birmânia, dizem os viajantes que por lá exoticamente
andaram, são monstruosas . E não seria porventura esta uma abelha
da Birmânia (possivelmente até da Transcaucásia, onde as há tam­
bém, já ouvi falar ) , uma abelha-monstro, rara, excepcional, que só
aparece por vezes?
Uma abelha, pois, o meu bicho, o dia era domingo, pela manhã,
pouco passava das nove horas e eu ia para o banho de mar.
Acordara mal. Pior é que dormira também mal, não saindo dos
meus sonhos o fracasso dos meus negócios no sábado. É preciso
acentuar aqui que eu vivo do que me dá o impingir no comércio va­
rejista uma quantidade razoável de objetos, os mais diversos. Como
se vê, isto é um circunlóquio, maneira floreada de me definir - sou
um vendedor a comissão.
A minha venda falhara. Quem não vende, não ganha, diz sem­
pre, repleto de lógica, para entusiasmar a mim e aos meus colegas
o chefe da seção, exuberante e palavroso, que tem para o objeto mais
mesquinho uma série de argumentos tão fortes e persuasivos que
deixam uma pessoa sinceramente admirada. Como é um pouco vai­
doso da sua prenda, faz de vez em quando uma demonstração do s eu
método, para melhor aprendermos como se vence convenientemente
a oposição de um freguês, que, por qualquer particular razão, dá
preferência e tem nas suas prateleiras um artigo concorrente. A me­
ticulosa exposição termina invariavelmente com uma frase clássica,
que tem um sabor pretensioso de infalibilidade : "Meus senhores, o
freguês · nunca tem razão." E eu não ganhara. Meu freguês era cabe-
69
çudo, espec1e que meu insinuante chefe - três contos por mês, ali
na batata! - logicamente ignorava quando elaborou a frase-axioma,
base de todo um profundo sistema de colocar produtos no mercado.
Em tempo, delicadamente, haverei de pô-lo ao corrente dessa exceção
do gênero freguês, fruto modesto de minha prática cotidiana. Agora
só me resta lastimar o fato de não ter fechado o negócio, contando
na certa, o que é dez mil vezes mais horrível. Seria regular maquia
os vinte por cento, o mês está por dias e as contas não tardarão a
vir, da padaria, do armazém, do açougue e da farmácia. Não falei
do senhorio, quase fatal em enumerações dessa ordem, nem falo,
pois ele, que é um bom homem, um tanto sovina, vá, com uns
modos ríspidos mesmo a lidar com senhoras, não nego, mas um
bom suj eito em suma, disse-me quando fui tratar a casa, onde moro :
"Não é por desconfiança - e cofiava a barba rala que usa com­
prida por espírito de economia - é por costume - só recebo os
meus aluguéis três meses adiantados." Ando no meio de um dos
seus precavidos e descansados trimestres .
Acordei mal, repito. O café me pareceu requentado, o cigarro se
encheu de sarro às primeiras tragadas . Acredito que fosse fresco
o café e ótimo o cigarro, o meu velho cigarro de todo dia, barato
é certo, mas cujo sabor não troco pelos mais caros e finos que
houver, e que, é interessante acrescentar, mais que o seu sabor me
prende a sua caixinha dum escarlate e duns desenhos que me encan­
tam singularmente. Era a boca na certa, uma boca amargos a . . .
Peguei o jornal. Comecei pela última página, que são notícias de
última hora.
- O quê? !
Li outra vez. Não se enganaram os meus olhos. Morrera o Este­
ves , quando atravessava a Rua Visconde de ltaúna. O jornal dimi­
nuía a sua idade, a autópsia tinha sido feita (fratura da base do
crânio ) , o enterro estava marcado para as cinco horas, saindo da
residência. Quando seria a missa?, foi o que primeiro me ocorreu.
Devia favores ao Esteves . Era um esquisitão o diabo do homem, ma­
gro, muito alto, escalavrado, uma perfeita tocha, e trazia, quer fizesse
sol ou chuva, um eterno cachenê preto à volta do pescoço, tão
descamado que punha as cordoveias a descoberto. Morava com a
família, era solteiro ( casamento é muito bom, mas não foi feito pra
este seu criado - dizia) , j á ia pelos quarenta, com um começo de
asma, e a sua casa ficava para os lados do Andaraí. Quando seria?
Contava os dias : morreu ontem, 7, hoje, 8, segunda, 9, terça . . .
seria no dia 1 3 . Mas em que igreja? Se fosse na zona dele era uma
espiga, porque seria ir de um pólo a outro. Ao enterro é que não
iria, estava visto. Saberia me desculpar junto aos parentes, princi­
palmente junto à Elisinha, uma pequena bonitinha, trêfega, gaiata,
que nem parecia irmã do Esteves : compreendem, domingo, como
70
não trabalho, não leio os jornais . E explicava : só leio no bonde
quando vou para o escritório, pois não tenho outro tempo . Assim . . .
Assim . . . assim . . . o diabo é que a missa seria em dia útil. Ma­
nhã perdida. Poucas vendas . Era preciso forçar a freguesia, correr
os subúrbios, dar um repasse nas lojas de Madureira, ver se desen­
cantava um tal de Seu Arlindo que prometera, de pedra e cal, pagar
as duplicatas vencidas do Pirelli, um caloteiro que lhe passara a casa.
Não há por onde escapar - não iria ao cinema ver a Greta Garbo,
o domingo é que seria perdido e toca a acompanhar o Esteves, esta­
va casando dinheiro como iria para o Caju. E se não fosse? Que
sofreria com isso? Pelo contrário, ganharia que a fita era muito
falada. O Antenor tinha elogiado : uma beleza! O Antenor era uma
besta! Mas o Gomes, sim o Gomes era um rapaz inteligente e tinha
gostado, especialmente do pedaço em que ela mata o marido com
um tiro, "um troço muito bem arranjado", afirmara.
Lembrei-me do Esteves, da última vez que o procurei no escritório,
muito sujo, muito escuro, num terceiro andar da Rua Ledo. Anda­
va com uma grande aflição no peito : "Parece uma g�rra,_ menino,
mas é sífilis da boa." A escada era lúgubre, quase· ia caindo, mas
como me atendera prontamente : "Aqui estou sempre, meu filho,
é só pedir. Você manda."
Devia-lhe realmente muitas obrigações, imensos favores. A ques­
tão do fornecimento para a Fábrica Estrela, a encrenca com o Paulo,
da firma Paulo Sobrinho & Cia., que dera sumiço às notas de entre­
ga e jurara que não havia recebido a mercadoria. Tudo ele solucio­
nara com jeito e presteza sem receber um tostão. E quando
perguntei quanto lhe devia, deu-me uma palmada protetora nas
costas : "Ora, Antunes (eu me chamo Antunes ) e você a pensar
nisto. Vai com Deus, rapaz, e quando precisar . . . " e tirava pigarros
ásperos do fundo da garganta escangalhada pelo fumo. No entanto
a Greta . . . está decidido : vou! Mas que tinha de fazer o Esteves
na suspeitíssima Rua Visconde de Itaúna às onze da noite? Olha
que ele já não era nenhuma criança. Ia para os cinqüenta. Bem
possível que já estivesse lá.
*

Na página dos esportes, recheada de clichês e entrevistas, a re­


capitulação da derrota da equipe brasileira no Uruguai foi-me infini­
tamente desagradável. As minúcias dos telegramas eram dolorosas,
feriam. A história de justificar o fracasso com o frio - não sei
quantos graus abaixo de zero - podia ser cabível, mas não me
consolava. Fossem para o inferno ! Perder por perder todo o mundo
perde, mas agora é que não podia ser. Os paulistas tinham negado
o seu auxílio, não enviando seus jogadores, após uma - série de en­
crencas. Fizemos mil sacrifícios, selecionamos uns tantos rapazes,
71
fomos e logo no primeiro jogo somos batidos. Positivamente, não há
castigo. Outro cigarro. Onde é que puseram meus fósforos? Esta­
vam bem na ponta do nariz, na mesinha de cabeceira, em cima de
mais um livro de Menotti, o último, imitando os romances de Wells,
República dos 3 .000, sem favor o pior livro do mundo.
As notícias policiais não conseguiram me alegrar. Otários e viga­
ristas teimavam em não se encontrar. A zona estragada não forne­
cia nada, numa paz absoluta. A expulsão do cáften era banalíssima,
sem pormenores que interessassem. O incêndio premeditado havia
sido apagado a tempo pelos bombeiros. Passei-me para a terceira
página. Aí, o humorista, cada vez mais trágico, tentava ironizar o
atraso dos vencimentos na Prefeitura. Ora bolas ! . . . Nem quis saber
das páginas restantes ; atirei o jornal e pensei num banho de mar -
está aí, boa idéia!
A idéia era boa, a manhã é que estava feia, mas aventurei. Fui
andando. Os alemães iam na minha frente, conversando, dando risa­
das, poucos gestos. Passaram pelo muro de pedra e não viram nada.
Como são as coisas nesta vida! Eu passei e vi a abelha. A abelha
não estava no muro, estava na calçada, pernas para o ar, se agitando
incessantemente na ânsia de se levantar. Esforço inútil. Naturalmen­
te, tem uma asa quebrada, pode ser que as duas, por algum golpe
malvado de toalha, que é a maneira mais usual de se matar abelhas,
pensei, passando adiante, depois de ter observado convenientemente
o seu tamanho, a sua cor e as suas listras. Os alemães tinham sumido,
a criança chorava e a abelha ficou a espernear.
Não havia banho que o mar estava de ressaca. Os banhistas do
serviço de salvamento tinham, prudentemente, colocado bandeiras
vermelhas nos postos de observação e voltado tranqüilos para as suas
casas, menos o Joviano, um camarada pardo, todo marcado de be­
xiga, com duas paixões violentas - a cachaça e o Botafogo Futebol
Clube. Qual casa, qual nada! Meteu-se na tendinha: "Um duzentão
dela, Seu Fernandes", e cuspinhava para o lado. O homem obeso
veio pesadamente do . fundo e encheu-lhe o cálice rachado, que ele
virou de um trago. Quem fosse maluco que caísse n'água e morresse
sozinho. Ele não tinha nada que ver com isso. "Dobra a parada,
Seu Fernandes ! Puxa, que está friozinho, hem? É por causa do
sudoeste."
A praia estava deserta, lambida pelas ondas esparramadas que vi­
nham morrer no cais . E nada de sol, um dia tristonho, pesado de
nuvens ameaçadoras, cor de chumbo, mais carregadas para o norte
onde encobriam o mar, o horizonte e as ilhas .
Nem banho de mar, nem banho de sol. Positivamente, naquele
domingo os acontecimentos tinham se reunido para me contrariar.
Então, voltei. O casal de ingleses, no terreno devoluta, ensinava
habilidades ao fox-terrier- buscar a bola, onde está o lenço? O
72
cachorro ia aprendendo, pulava, latia; eles, em trajes de tênis, riam
e animavam : Very good! Very good!
O rapaz passou quase nu, um simples calção, na bicicleta. Bonita
aquela barata que a moça vai guiando, mãos caídas sobre o volante,
numa indiferença superior e calculada. Será Chrysler? Se fosse mi­
nha pintava as rodas de vermelho também. O arranha-céu se cons­
truindo não dava descanso aos operários . Lá estavam eles, mesmo
sendo domingo, lidando com a rangedora máquina de misturar o ci­
mento às pedras, enchendo de concreto as grandes formas de madeira.
A eletrola enchia completamente a esquina com o Sonny Boy, a his­
tória tristíssima dum menino que morre nos braços do pai, cantor
de jazz, quando o ninava, mas que, apressado o compasso, é um
fox bem divertido e bisado nos cabarés.
- Puxa! Você ainda está aí? - cheguei a perguntar, estacando.
Era a abelha, a minha abelha, que não se livrara ainda e que,
tenaz, sem desanimar, continuava a se debater. Já havia mesmo, de
tanto se mexer, mudado de lugar, mas de virar a barriga é que
·

nada.
Apiedei-me : pobre coitada! Catei um fósforo na sarjeta, passei-o
cuidadosamente por baixo da abelha e voltei-a para cima. Ela não
voou logo ; andou um palmo, se tanto, para a frente, como a se
experimentar. Depois, foi rápida e feroz. Levantou-se num vôo
decidido à altura do muro, desceu quase raspando o chão, alteou-se
novamente, rodou à volta da minha cabeça umas duas vezes e, num
bote certeiro, caiu sobre a minha mão, ainda com o fósforo entre
os dedos, e me pregou uma ferroada terrível.
Dei um grito e, com um safanão furioso, atirei-a longe. A moça
que estava defronte, na sacada, riu. Entrou um instante e chamou a
irmã. A irmã era loura e estava de bege. A moça era morena. Tal­
vez fosse uma amiguinha. Não - era irmã sim. Vária e compli­
cada é a gente do Senhor.
Apressei o passo para a casa, gemendo, ansioso por uma aliviadora
compressa de amônia. Se não tivesse - bonito ! - faria um des­
tempero dos diabos, remediando, porém, com alho pisado, receita de
Uona Matilde, que não tem igual efeito . A loura sumira atrás dos
cortinados ricos de filé. A morena continuava a rir, um riso tão
sincero que me deu raiva . Burra! Estava com o seu dia ganho,
teria o que contar na praia, à tarde, às amiguinhas, na hora do fútin­
gue, mas adulterando tudo :
- Vocês nem imaginam, que caso gozado ! Perguntem à Alice,
não foi? Um rapaz sério - parecia sério - não é que foi bulir
com um maribondo? Já se viu! . . . O bicho estava quieto, ele foi,
pegou um fósforo (não diria fósforo, diria pauzinho ) como eu estava
contando, pegou um fósforo, abaixou-se calmamente e cutucou o ma­
ribondo . Que judiaria . . . E o bichinho então - qual é o dele? -
avançou no moço.
73
- Qui-Qui-Qui!
- Ele chegou a pular de dor. Ah! Ah! Ah ! Também que idéia,
hem? ! Ah ! Ah ! Ah ! Bulir com maribondo . A gente vê cada uma
neste mundo! . . . E engraçado é que ele parecia um rapaz sério,
alinhado . . .
A abelha, nunca mais a vi. Era grande, castanha, listrada de preto,
notável ; talvez nem fosse abelha, um maribondo, quem sabe?

UMA SENHORA

DoNA QUINOTA não se importava com a aspereza do ano inteiro . Com


ela era ali no duro - trabalho, trabalho e mais trabalho. O orde­
nado das empregadas, na verdade, era uma pouca-vergonha que a
polícia devia pôr um paradeiro. Não punha. Vivia metida com a
maldita da política. Falta duma boa revolução! . . . Ah, se ela fosse
homem! . . . Enquanto a revolução não vinha para botar tudo nos
eixos, obrigando-a a endireitar as empregadas, fazia de criada -
cozinhava, varria, cosia. Encerava a casa também, aos sábados, de­
pois que disseram pelo rádio ser higiênico e muito econômico.
- Econômico? Então se encera mesmo.
O marido, que já estava acostumado àquelas resoluções, largou no
melhor pedaço o segundo volume de Os Miseráveis, meteu sobre o
pijama a gabardine cheirando a gasolina na gola e foi telefonar para
a loja de ferragens, pedindo duas latas de cera - da boa, vê lá! -
chorando um abatimentozinho na escova e na palha de aço : está
ouvindo, Seu Fernandes?
Estava sempre para tudo, que, graças a Deus, era mulher forte.
Saíra à mãe, que também o fora, morrendo velha de desastre, desas­
tre doméstico, uma chaleira de água fervendo para o escalda-pé do
marido, um coronel reformado, que lhe virou por cima do corpo.
Nunca se queixava da vida. Não ia à cidade passear, as suas
compras eram em regra feitas pelo marido, precisava que a fita fos!:'J
muito falada para ela se abalar até ao cinema do bairro, onde cochi­
lava a bom cochilar; contavam-se os domingos em que ia à missa,
não fazia visitas, nem recebia.
Não reclamava o trabalho que lhe davam os filhos, três desmaze­
lados que andavam na escola pública, Élcio, Élcia e Elcina, respecti­
vamente quinze, quatorze e treze anos, o que atesta bem a força do
marido e dá idéia o que seria depois de dez anos de casada, se de­
pois da Elcina não tomasse as devidas precauções.
- Não se esqueçam de dar lembranças à Dona Margarida -
aconselhava na hora da saída, enquanto punha nas bolsas as bananas
e o pão com manteiga da merenda. Dona Margarida fora sua amiga

74
no colégio das Irmãs, uma bicha no francês, cearense, um talento!
Mandar lembranças para ela equivalia a dizer: Olha que são meus
filhos, Margarida; os filhos da tua amiga Quinota . . .
E os exames estavam perto, com prêmios de cadernetas da Caixa
Econômica dados pelo prefeito, ridicularizados pelos jornais oposi­
cionistas, elogiados pelos do governo - a Folha dizia que era um gesto
de Mecenas mas enfim fartamente anunciados em todos os jornais
para incentivo da meninada estudiosa. Ela queria ser mordida por
um macaco se não arranjasse três cadernetas para casa. Os filhos
é que não faziam fé.
Bordava para fora, cuidava do Joli, o bichano para sujar a casa
era um desespero, e sobrava tempo ainda para ter ciúmes do marido
com as vizinhas, principalmente Dona Consuelo, uma descarada, é
certo, mas muito chique, confessava.
Chegando o carnaval, tirava a forra.
As economias acumuladas saíam do B anco Popular juntas com os
juros. Não ficava nada. Metia-se numa fantasia de baiana e inundava
a capota do automóvel com seus oitenta e cincn quilos honestíssimos.
As meninas iam de baianas também, menos saias, mais berloques, e
o menino de pierrô, cada ano de uma cor, porque não é para outra
coisa que o dono do Tinto[ gasta aquele dinheirão em anúncios. Ti­
rava do cabide a casaca do casamento, dezesseis anos por isso (como
o tempo corre! ) , dava um jeito na� manchas :
- No automóvel, ninguém repara, meu filho - dizia com um
sorriso, ora para a casaca, ora para o marido, que se traduzia :
lembras-te?
Ele, então, com uma faixa vermelha na cintura, brincos em forma
de argola, pendentes das orelhas demasiadas, enfiava na cabeça um
turbante de seda branca com pérolas em profusão, e ia em pé, no
carro, de rajá diplomata.
No terceiro dia, graças a Deus não choveu em nenhum dos três,
perguntava para o marido :
- Quanto temos ainda?
Ele remexia a carteira (bolso de casaca é o tipo da coisa encren-
cada! ) , fura-bolos trabalhava passado na língua, e cantava a quantia :
- Duzentos e oitenta.
- E os oitocentos do automóvel?
- Já estão fora.
- Ah! Bem . . . - Para fazer contas no ar era um assombro :
. . . pode gastar mais cento e cinqüenta.
O resto ficava para gastar depois do carnaval - mas entrava na
verba dele - com o fígado do marido, porque depois da pândega
( a experiência de Dona Quinota é que falava) Seu Juca tinha rebor­
dosas, vômitos biliosos, uma dor do lado danada, de tanta canseira,
tanta serpentina e tanta cerveja gelada.
Não faz mal. Não fazia não. A vida era aquilo mesmo : três dias
75
- falava. Mas pensava : por ano . Podia dizer, mas não dizia. Deixa­
va ficar lá dentro . O "lá dentro" de Dona Quinota era uma coisa
complicada, complicadíssima, que ninguém compreendia. Só ela
mesma e o marido, às vezes.
Desciam do automóvel à porta de casa, quando o vizinho veio vindo
com o rancho da filharada.
---< Brincaram muito? - fez Seu Adalberto, com um jeito de
despeitado .
- Assim, assim . . .
Dona Quinota dizia aquele "assim-assim" de propósito . Que lhe
importava os outros saberem se ela tinha gozado ou não? Quem go­
zava era ela. Mas gostava de ficar deliciando-se por dentro com a
inveja dos vizinhos : assim, assim . . . Ah ! Ah ! Ah !
Seu Adalberto exultava :
- É isso mesmo. Faz-se despesas enormes ( e Dona Quinota sor­
ria) e não se diverte nada. ( Dona Quinota olhava para o céu. ) É
sempre assim. Pois olh e : nós fomos a pé mesmo. Estivemos ali na
Avenida na esquina do Derbi, apreciamos o baile do Clube Naval,
muita fantasia rica, muita, vimos perfeitamente as sociedades, toma­
mos refrescos, brincamos à grande. Não foi?
As mocinhas fizeram que sim, humilhadas, mas os guris foram
sinceros :
- Aquele carro do girassol que rodava, hem, papai!
Seu Adalberto corrigiu logo :
- Girassol, não, Artur; crisântemo.
Depois que corrigiu, ficou azul, sem saber ao certo se era crisân­
temo ou crisantemo - quer ver que eu disse besteira?
Seu Juca não havia meio de encontrar o raio da chave. Esses bol­
sos de casaca! . . .
- O ano que vem - Dona Quinota falou firme - nós iremos
também a pé.
O marido até se virou. Ficou olhando, espantado. Que diabo é
isto? - ia perguntando. Por um triz que não perguntou. Mas ficou
assim . . . Compreendeu? Parece . . . Esta Quinota! . . .
Foi quando Seu Adalberto, evidentemente mortificado, se refez e
sentenciou como experiente na matéria, apesar de nunca ter entrado
num automóvel pelo carnaval : é melhor mesmo.
A tribo sumiu pela porta do 3 7 . A maçaneta fechou por dentro.
Torreco, torreco. Agora foi a chave - duas voltas. O pigarro do
Seu Adalberto, ainda com o acento do crisântemo a fuzilar-lhe na
cabeça, veio até cá fora se misturar com um resto de choro, pandeiro
e chocalhos, do bonde que passava mais longe. Passos apressados
no fundo da rua. O burro do inglês estava na janela do apartamento
fumando para a lua. Dona Quinota ficou olhando-o um pouco, de­
pois cerrou a porta bem e fixou o marido que dava por falta dum
brinco : Que cretinos!
76
Seu Juca parou no meio do corredor, cara de ressaca, pernas aber­
tas, o turbante nas mãos e esperou mais . Mas Dona Quinota era
hermética. O resto ficou lá dentro onde ninguém ia buscar, por­
que o marido, o único interessado na ocasião, mais morto do que
vivo, preferiu tirar o colarinho e a casaca.
Dona Quinota atirou-se na cama escangalhada e feliz, só acordan­
do na quarta-feira de cinzas ao meio-dia.
Quando o resto da família se levantou, o almoço (feito por ela)
já estava na mesa, e Dona Quinota se desesperava porque tinha lido
no Jornal do Brasil que foram os Fenianos que pegaram o primeiro
prêmio, quando todo mundo viu perfeitamente que só o carro-chefe
dos Democráticos . . .

ESPELHO

DEPOIS no AJANTARADO, esticado na cama, amolecido pelo calor e


farto da peixada com que a amável Dona Lola brindava, dominical­
mente, seus hóspedes, seus olhos sonolentos foram se pregar no qua­
dro em tricromia. Então, o quadro foi ficando grande, grande, cada
vez maior, e a movimentar-se, e a mudar de cores. A moça de azul
ficou encarnada, atirou fora as cerejas e veio saindo da moldura. A
voz era cantante e meiga: Dá licença? Desceu, com meticulosa
delicadeza, levantando levemente a saia já bastante curta do vestido,
uma escada que não existia, fitou-o longamente, os olhos profundíssi­
mos, doces e castanhos, mas mudando de repente de atitude, carregou
ferozmente o semblante e começou a andar pelo quarto, gesticulando,
exaltada. O quarto aí também não era mais o quarto. Era a sala da
casa dela, com o abajur de gaze verde caindo em pontas, onde mos­
cas formavam cachos, o retrato do moço amigo da família, que
morreu de tifo, dormindo no aparador, o papel grená, que já não
forrava mais nada, se esbeiçando pelos cantos . Só o relógio engra­
çado, era diferente - um relógio sem tique-taque, sem ponteiros,
sem pêndulo . Mas a voz da vizinha era a mesma e cantava.
Ela queria, queria, queria. Batia com o pé: Eu vou!
Foi quando ele compreendeu - era a cena da véspera, do sába­
do. O vestido vermelho - ela dentro, nervosa - movia-se para
todas as direções, multiplicava-se, ocupava toda a sala como se não
fosse um, mas cem, mil, um milhão de vestidos vermelhos e impa­
cientes a exigir uma coisa impossível, a gritar que queria, que queria!
Parou no meio da sala, mãos nas cadeiras, resoluta : É isto mesmo.
Se não quiser, melhor.
Quis. "Vai." Ela foi. Ele ficou só na sala. Na sala, não, no
quarto que era quarto outra vez, com tudo nos seus lugares - o
77
quadro na parede, com a moça de azul sorrindo para as cerejas, o
lavatório de metal e o espelho ferrugento, manchado . Só a sombra
do cabide tinha mudado no chão porque o sol andara um bocadinho.
Foi então, dentro da realidade, que ele sentiu, pela primeira vez,
com uma certeza absoluta, a inferioridade patente da sua vontade
ante as investidas . Sentira-se fraco para arcar com a violência de uma
negativa. Sentira-se forte para contrariar-se e satisfazê-la. Forte?
Teve, aí, num repente de tristeza sem limites, a cinematização nítida,
sem pontos obscuros nem dúvidas, daquela vida que seria, dagora
em diante, a sua vida. Sorria para a vida futura, de dentro da sua
tristeza resignada, com a mesma sinceridade que sorria sempre, de
dentro da sua alegria, para os homens que o cercavam.
Lá longe era o panorama de sempre - um cenário que ele criara
e que haveria de ser, sem mudar, o cenário do seu interior. A com­
preensão das coisas futuras não o deixava alarmado. Resolvia tudo
miraculosamente bem. Não haveria tropeços que não conseguisse
burlar com a simples perspectiva da sua felicidade. Depois, ele fazia
por acreditar que haveria uma paz inevitável naquelas vidas peque­
nas das quais ele já se sentia o criador, o Jeová louro e caixa­
d'óculos, sem nada de divino, que burguesmente se contaminava com
todos os condutores de bonde, com todas as mesinhas de café e com
todas as necessidades de vida comum.
- Belinha, Belinha! . . . Onde estão meus suspensórios?
O chiado dos ovos se fritando vinha de dentro das caçarolas . A
casa teria jardim. O galinheiro ficaria no fundo, escondido na som­
bra, protegendo as legornes do calor. O sol do subúrbio mais os
pardais estragariam as couves .
*

Agora, porém, a clareza da sua vida futura foi tão imprevista que
não lhe permitiu traçar logo, com aquele imponderável bom-senso de
que se sentia senhor, a linha reta do seu proceder. E qualquer reso­
lução sua, funda, formal, decisiva, poderia passar aos olhos dos que
o cercavam como a mais absurda das coisas . Ele bem sabia que a
boa Dona Lola jamais acreditaria que aquele magro hóspede, fun­
cionário de fraca categoria no Banco Germânico, pudesse ter tragé­
dias interiores, necessidades dolorosas de cérebro e coração, rasgos
estranhos de libertação. Tais coisas eram naquela pensão familiar
do Andaraí, cheia de cadeiras de vime e reposteiros de chitão, apa­
nágio exclusivo do Dr. Fontes, viúvo, que além de mandão na Corte
de Apelação era maçudo colaborador da Revista dos Tribunais e
pagava com as notas mais limpas e novas do Tesouro, no fim de
cada mês, três vezes mais do que ele, fora ainda os extraordinários,
que só em banhos mornos para o seu nervoso, iam longe.
Era inútil aquela boa vontade do sol de entrar pelas janelas e
78
aclarar o quarto pobre. Eram perfeitamente inúteis aquelas borbo­
letas andarem esvoaçando no j ardim de Dona Lola, repleto naquela
época de hortênsias azuis, que as mãos de Dona Luíza, a filha, tão
leves, tão delicadas, regavam pela manhã. Nem havia necessidade
absolutamente daquele fundo cromai - pelo monte acima subirem,
entrelaçados nos verdes, aqueles bangalôs ingleses, engraçados e pe­
queninos como brinquedos. Ele não era homem de ambientes exte­
riores. Uma paisagem não o consolava, o encanto de uma flor não
diminuía o travo das suas dores, nem o canto de um passarinho
fazia-lhe esquecer que ele vivia sozinho. Para que, pois, aquela graça
da vida em volta dele, se a sua vida real, a sua vida verdadeira,
aquela que ele vivia, longe de todos, longe de tudo, sem lar, sem
parentes, sem amigos, apenasmente dentro do seu coração e dentro
da sua inteligência, não representava nada de definitivo?

Envergonhou-se. A moça ingênua do quadro adivinharia o seu


pensamento?_ Sentiu-se acanhado e julgou-se de uma imbecilidade
alarmante, que o fazia pôr a si próprio no grupo dos outros rapazes
da pensão, o Joaquim, o Heraldo, o Manduca, que remavam no
clube, freqüentavam chás-dançantes e discutiam futebol e gravatas
com uma graça que deixava todas as moças da pensão num estado
lastimável.
- Você ouviu, Bizunga? Bonito, não é?
- :É.
Na verdade, Seu Pinheiro exibia a sua Decca portátil. Dona Maria
das Dores elogiava à toa. O silêncio se enchia de fox-trots.
Ele teria, também, fox-trots musicando preguiças dominicais?
*

Pensou que seria melhor aproveitar aquele domingo esplêndido para


ensaiar a felicidade, correndo ao encontro da própria felicidade. Mas
onde está a felicidade? Tiram tudo dos lugares. Naturalmente, foi a
Joaquina, a arrumadeira estúpida. E ficou indeciso também se seria
possível, a ele, fazer-se feliz por um esforço de vontade. A indeci­
são, estava evidente, era uma das suas características, que tanto como
a mania de falar mal dos outros, ele já tinha notado, mas fingia não
perceber com uma otimista opinião própria lugar-comum. Então, resol­
veu, para fugir das incertezas da sua inteligência, das incertezas tre­
mendas da sua vontade e das incertezas, tão mansas, do seu coração,
dormir. Dormir por aquele domingo, todo luz e harmonia lá fora,
emendando o dia com a noite, que ele calculava tão linda como o dia,
dormir à toa até à manhã apressada da segunda-feira, quando ele
tivesse de escovar os dentes e ir para o banco.
E dormiu mesmo. O cabide não tinha mais sombra.
79
HISTóRIA

DoNA RosiNHA que era a nossa professora, nervosa, facilmente exci­


tável, eternamente de preto, só tinha uma frase para definir o Tutuca :
este pequeno parece que engoliu o capeta. O capeta era o diabo e
Dona Rosinha, a moça mais religiosa daquela cidadezinha, de maneira
que a definição era altamente séria.
A sua religião, porém, era muito engraçada. Missa que não fosse
das cinco horas não era missa para ela. Um católico fervoroso deve
ter a obrigação de acordar cedo, dizia batendo com os nós dos dedos
na vasta mesa de pinho .
Tinha preferências escandalosas por determinados santos. Por
exemplo : o primeiro aluno da aula, que por muito tempo foi o Pedrinho,
sobrinho do coletor federal, trazia sempre no peito, pendurada numa
fita azul, uma medalha que era Santo Antônio, enquanto que o segundo
recebia uma medalha muito maior que era São Geraldo. Porque
na sua opinião Santo Antônio valia muito mais que São Geraldo, razão,
mais ou menos, de dois São Geraldos para cada Santo Antônio.
Também a gurizada não era assim tão boba, que não soubesse fazer
pilhérias à custa de tais predileções. E a gente dizia, de boca pequena,
com uma ironia bem pouco infantil, que Dona Rosinha gostava de
Santo Antônio porque Santo Antônio era casamenteiro.
Era solteira, mas tinha uma vontade indisfarçável de casar. Então,
quando ela passava .para fazer em casa uma porção de contas e um
verbo todo para copiar, a gente, num assomo de raiva coletiva, corria
à igreja do Rosário e fazia ingênuas promessas a Nossa Senhora do
Carmo, rogando à santa que Dona Rosinha morresse solteira.
Mas - para que negar? - era uma bela alma e quando nós tínha­
mos exame com o inspetor, que era um sujeito alto, de óculos e
medonho de mau, ela soprava tudo porque a gente não sabia nada.
No fim do ano, dava sempre uma festa cheia de recitativos e come­
diazinhas que na terra chamavam de teatrinho, talvez porque, para
a sua realização, fosse praxe se armar no salão da Câmara Municipal,
que era gentilmente cedido, um pequeno palco, enfeitado com velhas
colchas bordadas e variadíssimas flores de papel. Chorava sincera­
mente quando chegavam as férias e enchia a todos de prêmios -
medalhas de santos, livros de histórias e copos dourados com palavras
douradas : Amizade, Felicidade . . .
Uma vez, saiu do sério e deu ao Juquinha da Miranda, que fizera
um exame muito elogiado pelo inspetor, um estojo de courinho com
réguas, lápis, canetas, borrachas e um copo complicado de alumínio
para beber água.
Tinha uma irmã chamada Dona Marta, muito mais moça do que
ela, quinze anos, uma criança ainda, uns olhos azuis que todO' o colégio
80
namorava. Era muito fraca, muito leve, leve como uma pena, e parece
que foi de tão leve que ela subiu ao céu.
Uma manhã, quando nós chegamos para a aula, o colégio estava
fechado. A Mariana, velha, empregada de Dona Rosinha, disse, com
os olhos vermelhos de tanto chorar, que naquele dia não haveria aula
porque Dona Marta tinha morrido, só porque fizera muita força para
puxar uma mala. O médico, que era Dr. Jorge, falou na farmácia
do Seu Caetano - e o Nequinho ouviu - que ela tinha morrido do
coração.
Nós fomos todos ao enterro, roupa branca, sapatos brancos, tudo
branco, em filas, na frente do caixão, com flores na mão e um sorriso
satisfeito nos lábios. No cemitério, que ficava no alto dum morro,
por trás da Igreja da Boa Morte, Seu Juca tabelião, que era poeta,
falou, falou e falou. Nós não compreendíamos nada. Dona Zulmira,
vizinha de Dona Rosinha, chorando muito desfiava um rosário, aga­
salhava, com o xale de croché, o peito cavado, que o vento de in­
verno soprava fino e perigoso entre os ciprestes compactos . Logo
que Seu Juca acabou começaram os coveiros a encher a cova de terra.
Pouco tempo ouvimos aquele b arulho surdo, po rque Dona Zulmira
tirou-nos todos dali dizendo "que era um espetáculo muito triste" .
Nós saímos contrariadíssimos, pois queríamos ver tudo até o fim.
Dona Rosinha ficou muito acabada, apareceu-lhe, dum dia para o
outro, uma larga faixa de cabelos brancos, e nos deu oito dias de
férias - oito dias de férias ! - naquele bonito mês de maio, em
que as noites eram tão claras, que a gente nem podia brincar de
esconder!
- Por que - dizia o Joãozinho, o pior menino da aula - não
morre Seu Tatão também?
Seu Tatão era o pai de Dona Rosinha. Fumava cachimbo, tinha
uma voz grossa que amedrontava, e sempre que acabavam as aulas
e a gente saía aos berros , pelo Beco 1 3 de Maio, ele agarrava a
Dorinha, que era loura mesmo como Dona Marta, com olhos azuis
como Dona Marta, tão leve como Dona Marta, e lhe fazia, com os
olhos cheios de lágrimas, uma porção de festas no rosto.

TRAGÉDIA

- SR. CARLOS !
Era pela segunda vez que o Sr. Castro tonitruava no Vilino Miloca,
chamando por seu filho .
Mas o tratamento de senhor, feito po r seu pai, era s i n al para o
Carlinhos, um sabido, de descompostura grossa, e como tinha íntimas
culpas no cartório, deixou-se ficar onde estava, isto é, no minarete,
que o arquiteto português garantiu ser puro renascença e cuja escada

81
em caracol o reumatismo do Sr. Castro com prudência evitava, escon­
dido e parodiando, lá a seu modo, a decadente metáfora das varas
verdes.
Mas uma vez ainda, para inteirar talvez o número da contagem
célebre, a voz do Sr. Castro ribombou pelas paredes do palacete, pro­
fusamente decoradas com paisagens imaginárias, de muito gosto, como
elogiavam todas as visitas, especialmente Dr. Lessa, que viajara muito
pela Europa, usava pincenê defumado e era muito entendido em
assuntos de arte. Vendo, porém, que era perfeitamente inútil o des­
perdício de cólera vocal, esperou melhor ocasião, fugindo de ir pro­
curá-lo para não perder completamente a dignidade.
Às cinco horas, o relógio carrilhão andava um pouco atrasado, o
encontro na sala de jantar foi inevitável.
O frio de junho caíra com a tarde sobre o minarete e sobre o
Carlinhos veranicamente de palm-beach . A fome apertara. Carlinhos
não agüentou mais e desceu para farej ar a geladeira. Aretuza, em
família Zuzu, tinha ido para o chá-dançante se encontrar com o namo­
rado. A mãe, por ir com ela, estava convencidíssima que ia acom­
panhá-la. Sr. Castro, que chegou de repente, vendo as coisas assim
e dando de cara com o esquivo Carlinhos, aproveitou a ocasião e,
fazendo mais uma vez aquela profundíssima inflexão de voz, que era
o terror dos empregados relaxados da firma Castro, A lmeida & Cia.
Ltda., chamou-o para o escritório, aquele sóbrio escritório criado pelo
Leandro Martins, caríssima maternidade onde sua inteligência partu­
rejava, laboriosamente, os planos dos seus negócios, todos com o
governo.
A dignidade da família, Castro bisavô, Castro avô - uma menta­
lidade, ouviu? - e outros Castras, todos de Pernambuco e de notória
importância ascendente, foi a base da chorumela, que o Carlinhos
agüentou firme e arrasado, como convinha a uma vergôntea espúria
de tão soberbo tronco.
A idéia, então, de que ele tinha desgraçado a moça - fato inédito
na história da família, que Castro pai enegrecia mais ainda à força de
portentosos e shakespearianos adjetivos - deixou-o meio zonzo.
- Eu me caso, papai . . . Eu me caso . . . - gemeu num abati­
mento sincero de fazer dó.
- Mas você não pode casar! E a Marieta? . . .
Carlinhos não era burro, não. Na encrenca toda seu digno pai só se
lembrava da Marieta, a filha do Maranhão, a menina dos dois mil
contos.
Fez a cara mais sórdida que lhe era possível :
- É mesmo . . . E a Marieta? . . . - e pôs-se seno, profunda­
mente sério, como empenhado na resolução dum problema transcen­
dente.
Então o pai, reacendendo o charuto, mais calmo, como quem tem
na cabeça uma saída qualquer, por aí abaixo indagou da história
82
toda, que depois - deixasse com ele - se arranjaria tudo. Mas
queria saber antes, desde o princípio, como se dera aquilo, para
poder agir com prudência e critério.
- Com todos os pormenores, está ouvindo?
Espichou-se na poltrona e foi gozando os pormenores pela boca do
Carlinhos, trêmula, não se sabe se de fingimento ou de vergonha.
Os telefonemas, os encontros, a primeira brincadeira no cinema, o
célebre passeio na Tijuca. Onde? - Na Tijuca. - Ah ! - Também
o senhor sabe, ela não tinha pai, nem mãe, nem tias velhas, nem
nada.
Era a criatura mais feliz do mundo por isso . Castro pai, porém,
não entendeu a história desta maneira ou fingiu que não entendeu,
e obrigou ao filho a promessa de levá-la, no outro dia sem falta, ao
escritório, na companhia, bem entendido, porque ele não queria -
e lançou para fora da boca um "absolutamente", como o Carlinhos
nunca tinha ouvido igual - que em casa soubessem.
No outro dia nenhum faltou à entrevista, mas o Sr. Castro, pelo
jeitão da menina, achou melhor que o filho se retirasse, que ele, pai,
e ela, a coitada, perfeitamente arranj ariam as coisas .
Como as coisas foram arranjadas, o Carlinhos só soube verdadeira­
mente um mês depois, quando, por boca de amigo, teve a notícia de
que ela estava de casa montada em Santa Teresa por conta de Castro
pai, porque o velho - e com que cara de dignidade sarada, de zelador
impoluto da pureza ancestral - garantiu que a tinha mandado para
São Paulo, com alguns contos de réis ( nada de miséria em fatos desta
natureza! ) e uma carta de recomendação para um velho amigo, pessoa
de muitíssimo respeito, que haveria de arranjar para ela um emprego
em condições, que queria trabalhar agora a doidinha. Falou mais :
que tudo isso fizera, como um verdadeiro pai, pelo amor do futuro
de seu filho, e também, franqueza, que diabo! pela graça da menina,
muito delicada, cordata, muito boazinha, muito viva, uma santa, enfim,
vítima da falta dos carinhos maternais, como ele muito bem com­
preendia.
Como todas as noites o Sr. Castro tinha negócios importantíssimos
e urgentes, assembléias, conferências comerciais, entrevistas com sena­
dores para "futuras negociatas muito rendosas", dizia displicentemente,
chuchurreando o cafezinho do j antar, voltando para casa alta madru­
gada, Carlinhos não teve mais dúvidas em dar como verdadeira a
informação .
Mas a menina era maluca mesmo. Enjoou-se depressa dos carinhos
do velho, da vitrola ortofônica, com discos tão bons do Francisco
Alves, do bangalô bucólico, da vista batuta do terraço sobre a Guana­
bara, e um belo dia desapareceu, quase que honestamente, porque de
tudo que ele lhe dera, ela só levou os vidros de perfumes que, afinal,
eram o reclame mais sensacional da sua pessoa.
83
O velho, quando chegou em Santa Teresa e encontrou a casa vazia
com a criada alemã, friiulein Berta, chorando muito, deu o desespero,
e para diminuir a extensão do desastre amoroso, como era finório,
aproveitou as quinquilharias restantes, que não eram poucas, como
já se viu, e mandou carregá-las todas para casa, onde, debaixo da
expectãtiva geral jamais vista no Vilino, as ofereceu a Dona Miloca,
comovidíssima.
De p.oite Dona Marocas, uma velha amiga, foi visitar Dona Miloca;
então Dona Miloca mostrou tudo a Dona Marocas . Aretuza apro­
veitou um descuido e roubou um porta-retratos, todo em madrepérola,
para encaixar a fotografia tremida do seu querido Loló, tirada no
banho de mar, que escondia da mãe, porque ela acharia indecente, e
pipocá-lo assim mais lindamente de beijos, nas horas solitárias de
dormir. Dona Marocas ficou para o chá, ouviu Chopin ao piano pela
Zuzu, quinto ano do Instituto e muito sentimento, e saiu, como é
natural, com muita inveja de tudo.
De papo para o ar, repimpado fartamente na ,poltrona de couro,
com uma série adequada de expressões no rosto viril e nobre, que iam
do brejeiro ao grave, o Sr. Castro passou em revista aqueles recen­
tíssimos acontecimentos de sua operosa vida, lembrando-se com sau­
dades, muitíssimo razoáveis, das formas redondinhas, redondinhas da
menina, tão perdidamente longe das virtuosas pelancas da mãe do
Carlinhos, que um íntimo pudor, naquela hora, não permitiu chamar
de sua cara-metade.
A menina alugou um quarto no Catete, mobiliou-o a rigor, com­
prando a mobília em prestações puxadíssimas no Mobiliador Cosmo­
polita. Quatro meses depois pagou a mobília entre os sorrisos do
Abraão Miglechivich, que previa um calote na certa. Pagou ainda ao
médico da Farmácia Previdente, um moço louro, recém-formado, e
que por isto fazia tudo que lhe caía nas mãos, a bagatela de oitocentos
mil-réis pelos estragos do ofício, e a conta da modista também, Madame
France, que foi uma roubalheira de se tirar o chapéu. Mas não pôs
dinheiro na Caixa Econômica, como queria, porque o danado do
Carlinhos deu com a casa dela e sempre que ia lá, já sabe, saía cheio
das notas, que ia gastar no Lamas, entre os colegas da Faculdade
de Direito, onde vadiava no terceiro ano, porque o seu Maranhão -
um homem dos antigos - não se fartava de dizer que a sua filha, a
Marieta, só se casaria com um doutor.

UMA VÉSPERA DE NATAL

VENTAVA, mas a noite era quente, luzindo estrelas por cima do recorte
dos morros. O grilo cantava no meio da grama, no jardinzinho quieto.
84
Ele ouvia, pensativo. Quando o grilo sossegou, saiu da janela, acendeu
outro cigarro, chegou-se para a poltrona onde ela se reclinava e venceu
o silêncio que se prolongara.
- Não te vais vestir?
Continuou com a cabeça loura tristemente apoiada na mão, e res-
pondeu sem entusiasmo :
- Vou. Tem tempo. Que horas são?
- Dez.
- Já?
Mostrou-lhe o relógio-pulseira, chegou-se mais e beijou-a :
- Estás triste?
Deu um suspiro, fitou-o longamente :
- Não. Por quê?
- Não sei.
Não sabia mesmo. Parecia, porém, que estava, tão distante se
mostrava. Pegou-lhe na mão alva e pequenina e acariciou-a :
- Gostaste do presente?
- Muito ! - e suspendeu a mão, revirou-a, mirando o anel.
- Papai Noel é pobre . . .
- Você duvida, meu bem?
- Duvido duma coisa.
- De quê?
- Da tua memória.
- Memória? ! - até se espantou, virando os olhos verdes e fundos.
- Sim, memória. Queres ver? Vej amos : que é que aconteceu há
sete anos?
Riu com meiguice : bobo. Chamou-o para junto de si, estreitou-o
contra o peito, beijou-o e fugiu para o quarto.
- Vou me vestir, ouviu? É um minutinho.
Ficou só na salinha, que o abajur de crepe tenuemente iluminava,
de smocking, pronto, esperando-a para irem ao réveillon. A noite seria
alegre, amigos os esperavam, um fecho divertido para aquele dia que
lhe correra tão bem. Recebera a gratificação, trouxera um bonito
presente, j antaram entre flores . Fazia justamente sete anos que se
conheceram, casando pouco depois . Tivera alguns maus dias, pade­
cera privações, mas sempre encontrara o apoio da esposa, que não o
fizera fraquejar. Sete anos já se iam, e conservavam-se sempre unidos,
muito amigos, sempre amorosos . Somos um casal feliz, dizia, às vezes .
E Dona Cidoca, a prestimosa vizinha, não perdia ocasião para firmar
"que a vida deles era uma eterna lua-de-mel" . Não compreendia, pois,
a melancolia de que Maria se achava .possuída e que não conseguira,
apesar das negativas, dissimular. Também, raciocinava, jantaram tão
solitários . . . Fizera mal não convidar alguém. Estava um jantarzinho
tão bom! Ao menos, tia Lulu, tão amiga deles, tão bondosa . . . Poderia
parecer-lhe ingratidão. A história dela teimar em não ter telefone
85
dava daquelas. Pouco importa. Poderia tê-la avisado de outra forma.
Fora mesmo um grande esquecimento que ·não se repetiria. Enfim,
iriam para o réveillon. Lá, sim, entre amigos, não faltaria alegria.
Sentiu-se inquieto, apressado :
- A minha princesa �inda demora muito?
Ela aparecia radiosa, linda no seu vestido azul, comprido, quase
escondendo os pés . Teve um sincero orgulho da esposa. Não se
conteve :
- Estás encantadora! Maravilhosa!
Correu para ela e enlaçou-a :
- Vamos dançar muito, estás ouvindo? Havemos de nos divertir
bastante para desanuviar este coraçãozinho !
E marcando o compasso das palavras com o dedo conselheira! :
- Faz hoje sete anos . . .
Ela abaixou os olhos, ele acompanhou-os com os seus, foram pousar
na capa da revista, sobre a mesinha, uma singela alegoria - crianças
brincando à volta duma árvore de Natal.
Compreendeu tudo num relance. Que tolice pensar em tia Lulu, em
amigos, em danças, em réveillon. Ver passar, como passavam, aquela
noite feita para outras, tão diversas alegrias, era realmente doloroso.
Tirou os olhos da revista e gemeu desconsoladamente :
- Eu não tenho culpa.
Ela também não tinha. Agasalhou-se no mantô, deu-lhe um beijo
triste :
- Deus não quer.
Ficou parado, sem palavras, sem gestos, sem saber o que fazer.
Ela, então, gritou para a criada :
- Fecha tudo direito, Francisca. Olha que andam muitos ladrões
por aí!
E, enchendo-se de doçura, virou-se para ele :
- Não vai chamar o automóvel?

ONOFRE, O TERRíVEL,
OU A SEDE DE JUSTIÇA

O MATA-MOSQUITO Onofre Pereira da Silva acendeu a lâmpada-por­


tátil e viu - epa! . . . - as larvas fervilharem na poça d'água, que os
verdes tinhorões escondiam naquele recanto rico e abandonado do
j ardim.
Ajeitou as duas caprichosas pastinhas do cabelo rebelde e duro, que
a brilhantina domesticava à força de doses cavalares, e mecanicamente
pegou na lata de Estegomiol para liquidá-las .
86
Mais um dia, pensou, talvez uma hora, seriam mosquitos que, como
uma nuvem, picando amarelentos, invadiriam as casas, disseminando a
morte.
Parou ansiado pelo pensamento . A poça era pequena para refleti-lo,
mas pouco importava, pois ele estava se vendo perfeitamente. Via-se
grande, enorme, portentoso, pela grandeza da sua profissão . Era o
nobre e eloqüente. Não era mais o Onofre Pereira da Silva, o magro,
escanifrado Onofre, mas qualquer coisa de divino, de onipotente sob a
farda cáqui com o distintivo vermelho da Saúde Pública - sentinela
avançada da população. Estava na argúcia dos seus olhos farejadores
de estegomias e na inflexibilidade de seus braços, que os borrifava
impiedosamente de Estegomiol, o sossego daquela cidade.
- Aqui há mosquitos, Onofre! - gritava uma voz amedrontada.
E ele lá ia, devastando-os .
Mais adiante imploravam :
- Aqui, Onofre, aqui! Pelo amor de Deus !
Ele acudia, solícito, uma serenidade imperturbável, uma alegria
absoluta, indômito :
- Para trás, facínoras ! Para trás !
E eles fugiam . Fugiam, não . Ele os matava, não deixando nenhum
para contar a história.
E era a própria morte, raciocinando bem, que ele matava, a morte
que pairava sobre a cidade, espreitando. Ele matava a morte ! Ele,
Onofre Pereira da Silva, o 1 1 6 da turma de Botafogo !
Era demais ! Ficou extático, o gesto suspenso, a lata de Estegomiol
na ponta do gesto, a brisa que vinha do mar roçando-lhe caridosa a
cabeça ousada, a pastinha da direita, a maior, a preferida, a de mais
cuidados na hora difícil do pentear, se estofando, desobediente às
camadas de vaselina perfumada.
Sucumbiu-se logo, porém, com a lembrança do seu salário, mise­
rável, irrisório . Ficou mais miserável ainda ao confrontá-lo com a
grandeza da sua ação, ao sol, à chuva, sem domingos, sem feriados,
sem hora, sem nada.
Enquanto isso, quanto ganhava o diretor? Sim, senhores, quanto
ganhava? Contos ! Muitos contos! Quantos? Nem sabia! Um mundo !
E para quê? - o sorriso superior dançou-lhe nos lábios escarninhos.
- Para assinar papéis . . . Defender uma cidade, aniquilar a morte,
destruir o estegomia, assinando papéis . . . Ridículo ! . . . E contos de
réis pelos rabiscos que ninguém entendia. Ele sim, ele que ganhava
uma ninharia é que defendia, afastava o perigo, dominava os focos,
ele o herói obscuro, o ignorado, o mal pago . Nos ombros dele, Onofre,
é que descansava um milhão de almas .
Acelerou o raciocínio : muitos como ele. Quantos? Os operários não
têm conta. Os humildes, os fracos, os desprotegidos, em resumo, os
pobres ! Sim, os pobres, sofrendo do destino injusto a opressão dos
ricos. Trabalhando, se esfalfando, se 'Dl.atando, para que com os bene-
87
fícios de tanto suor, de tantas lutas e tantas dores, os magnatas pudes­
sem ir envelhecendo sorrindo à sombra do conforto, com seus auto­
móveis, as suas jóias, as suas mulheres, na fartura e na felicidade.
Felicidade, sim senhor! Fe-li-ci-da-de! ( alongava bem as sílabas . ) Que
era então a felicidade? !
O homenzinho arfava com violência. Os raios do sol, caindo sobre
ele, inflamavam mais ainda a cabeça exaltada pela avalanche eston­
teante de pensamentos nobres . Em vão o suor, que lhe porejava da
testa, se esforçava para moderar o fogo interior. Em vão. Ele era
todo um anseio de revolta, um esfomeado de justiça!
Quando chegaria a hora da vindita? Quando terminaria a hora dos
oprimidos? Talvez bem pouco - tremia - se ele . . . Tremia todo
numa comoção viril de libertador. Os olhos se esbugalhavam.
Bastaria proteger as larvas deixando dentro da lata o Estegomiol
inseticida. Bastaria . . . Como era sutil e doce o gesto dos que vingam
os fracos ! . . . Como era manso, suave, inocente, quase infantil . . .
Bastaria deixar o Estegomiol na lata e seguir adiante . . . E mais
um dia, talvez uma hora, as larvas seriam mosquitos, seriam uma
nuvem - e que nuvem! - que levaria a morte nas suas asas , nos
s eus ferrões, pelas casas dos ricos para ceifar, para ceifar.
Urubus, malandros, num estender plácido de asas , nem voavam,
equilibravam-se, descuidosos, no espaço azul, estridente, luminoso por
sobre o campo de futebol, por sobre o asilo todo cercado de palmeiras,
por sobre os bangalôs que americanizavam a Urca.
E ele já via os mesmos urubus voando, a grasnar, sobre a carniça
abandonada nas ruas silenciosas, ao peso da desgraça que devastava
os lares opulentos . Já via os urubus molengos disputarem a bicada os
corpos insepultos, aqui o Castro e o Teixeira - da loja de ferragens
- ali o Dr. Medeiros ( osso só! ) e o deputado Alvim, mais acolá
o Valfredo, um ricaço que ele nem sabia onde ganhava tanto dinheiro,
mais à frente o Viçosa, o Dr. Stênio, o Major Albuquerque, em suma,
todos os graúdos que ele conhecia.
Aí acabaria a pobreza. Os pobres desceriam da Babilônia, do Pinto,
da Ladeira do Leme, para invadir as casas . Desceriam como em pro­
cissões, vagarosas, quatro a quatro, levando estandartes , imagens de
santos, palmas, louvando Deus nas alturas, soltando foguetes de cinco
bombas, cantando loas a São Benedito :

Meu São Benedito, oooi . . .

Meu São Benedito, oooi . . .

Ele, de longe, sorria, abençoando, perdoando tanta ignorância. Fui


eu! - bastaria dizer para aquela multidão atirar-se aos seus pés
agradecendo, rindo e chorando ao mesmo tempo na confusão deliciosa
de quem ganha a felicidade, chamando-o "o profeta" . Mas não
diria . . .

88
Então Onofre se perturbou : e os mosquitos? Os mosquitos que con­
tinuariam a morder, a sugar, atacariam os pobres também, transmi­
tindo-lhes o mal ! Pobres dos seus pobres . Os mosquitos seriam tantos
que nada os exterminaria. Pobreza não vacina ninguém contra a febre
amarela. Pobres dos seus pobres ! . . .
Os soluços vinham sinceros, fraternais, do fundo do seu coração
desolado. Os mesmos urubus molengos, disformes, desengonçados, que
se fartaram na mortandade dos ricos, se regalariam agora na carne dos
pobres, dos seus amigos, dos seus irmãos. O Luza, com as tripas
para fora, tinha uma contração no rosto amarelo-ocre que o amal­
diçoava. O Nelson do Cavaquinho, tão bom, tão engraçado, coitado,
lá estava mais longe, montado por um urubu imenso, um urubu-rei,
de pescoço branco, horrível, que lhe devorava as entranhas já viscosas,
putrefatas. Perdão ! Perdão ! pediria, as lágrimas jorrando dos seus
olhos sinceros. Eu não fiz por mal ! . . . Que louco ! Era para o bem
de vocês, era para o bem! Mas o Anacleto, seu primo, no fundo duma
s arjeta, os olhos comidos, vermes escorregando pelo canto da boca,
lhe mostraria o punho crispado prometendo vingança.
Tudo seria deserto, vazio, na sua frente. Os cinemas fechados, o
circo da Rua da Passagem era um monte de trapos e sarrafos . Só
o último cartaz, A honra do marujo - um drama que fazia chorar!
- resistia ainda, pregado no muro por cima do buraco da bilheteria.
Nas ruas não passava uma pessoa e somente os pardais, que não
apanham febre amarela, continuavam a chilrear, indiferentes, no meio
das ramadas compactas, quando vinha o crepúsculo . . .
A Babilônia abandonada, os casebres a cair. Acabaram-se os choros,
flauta, cavaquinho e violão ( ele arrancando a cadência do pandeiro
com guizos ) de noite, na porta do Zé Malussa, até à madrugada,
quando os galos amiudavam o canto, e lá no fundo do céu indeciso,
para os lados do mar, vinha apontando uma réstia rósea e tímida do
sol.
Não haveria ensaios para a saída do rancho no carnaval. Ele não
mais seria príncipe. Ele não mais seria cruzado, a cruz no peito, o
escudo prateado, a lança erguida, defendendo a Jurema, de cristã, que
os mouros queriam roubar, na concepção que o Pedro Martins, mestre­
sala, estava planejando para este ano. Fechado o Corbeille das Flores,
fechado os A mantes da A rte, fechado os Caprichosos da Chacrinha.
Mortas, talvez, a Marilda, a Leonor, a Paulina, a Floripedes . . .
O chefe da turma acordou-o do p esadelo :
- Então, Seu Onofre, como é? . . .
Onofre, ainda tonto, debruçou-se e derramou o Estegomiol, assas­
sinando as larvas .
- Agora faz uma meia hora para o almoço, ouviu? Eu volto já
pra gente atacar a travessa e a avenida que está uma sujeira.
O chefe entrou na casa-de-pasto, ele sentou-se na c alçada mesmo
sob a frescura dos oitizeiros. Os urubus continuavam a voltejar serenos,

89
negros, muito nítidos, no alto do azul imaculado . O bondinho do Pão
de Açúcar ia subindo tão tranqüilo, tão firme, como se fosse para
o céu.
Desembrulhou a marmita, ficou lendo umas notícias truncadas no
pedaço de jornal, enquanto comia, solitário, o feijão frio com carne
que a mana Balbina lhe preparara. Vinha o automóvel no fundo da
rua levantando poeira. Passou. Acompanhou-o com o olhar, uma
limusine - que bom a gente ser rico! . . . - dobrou a esquina, sumiu,
foi embora. Mordia o pão . Que angústia desconhecida o oprimia! . . .
Que moleza, meu Deus, sentia escorrer dos seus membros . Uma
fadiga, um amolecimento, parecia que nem existia, parecia que flu­
tuava. Depois, aquele suor frio. Dir-se-ia morrer de tão frio, de tão
fraco . Engoliu com dificuldade o resto da banana. A poeira, pouco a
pouco, voltou ao chão . Lembrou-se, sem motivo, do Valdemiro . Onde
ele estaria? Fora sorteado . Por quê? Vinha a brisa do mar, lá longe,
refrescando . . .
O primeiro fósforo não acendeu o cigarrinho lolanda. Talvez vol­
tasse a pé para casa, o pagamento andava atrasado, os últimos duzentos
réis jogara no cachorro . Talvez também um dia . . . ah ! um dia . . .
Então a brisa do mar veio mais forte e enxotou o farrapinho de
sonho que teimava.

A úLTIMA SESSÃO DO GRÊMIO

FAZ FRIO, frio de julho, úmido, sem defesa, que sobe do soalho e se
infiltra pelo corpo. As moscas , em cachos, dormem no fio da lâm­
pada de vinte e cinco velas, luz escassa e amarela que quase não ilu­
mina a sala, com grandes manchas verdes de bolor nas paredes altas,
triste e improvisada. Sussurrava-se nos cantos, aos grupos .
Quando o mumificado secretário calculou que fossem oito horas e
meia, o presidente, cabeça grande e ossuda, cabelo jogado para trás,
como de um golpe, uma sujeira premeditada no colarinho marvelo,
mandou-o fechar a porta, levantou-se e deu um brado formidando,
que trazia no âmago qualquer coisa de trágico e doloroso :
- Está aberta a sessão !
Ninguém se mexeu com o trovão vocal do maioral, acostumados
ao ribombo, pois já estavam na quinta reunião. Na primeira, sim,
fora horrível. Os rapazes nunca tinham ouvido uma voz tão feroz,.
reforçada por adjetivos tão profundos . Na segunda ainda tremeram.
pálidos do susto, mas na terceira entraram nos eixos .
A trágica dor que pungia o presidente vinha da inutilidade de seu
timbre, única coisa que trouxera do berço como dom genial e que já
90
não impressionava mais os rapazes indiferentes . Engoliu o fel sincero
do despeito e para satisfazer a vaidade pessoal repetiu : Está aberta
a sessão! - no mesmo tom, como reminiscência deliciosa do pavor que
há tão pouco tempo infundia sua voz, superioridade efêmera que se
fora para nunca mais.
Começou por chamar os rapazes de VV. SS. :
- Permiteis que ouse o verbo meu - e punha a destra na altura
da boca rasgada - para dizer - e olhava torvamente para o vago,
para o indefinido que ficava além do teto - para dizer, repetia, que
aqui há um traidor. Fez um gesto circular : aqui !
Pela frieza com que o pessoal recebeu esta considerável afirmação,
pode-se crer que já há muito participasse do fato, sem lhe ligar a
mínima importância, mas ele não percebeu esta frieza e por um longo
minuto de soberbo silêncio paralisou o dedo espetado e a palavra
nos lábios fáceis. A luz tremelicava. O magro tossiu, fez menção de
fechar a janela pois o vento fininho vinha de fora, perigoso e cor­
tante. Uma pneumonia é o diabo! - soprou ao ouvido do gordo
que confirmou com a cabeça : se é. Bateram na porta com pudor.
Abriram - era um retardatário. O presidente nem o viu, perdido no
alto da sua indignação, alheado a tudo que era terrestre, rasteiro e
mesquinho.
Ele sentou-se ressabiado, sentindo intimamente que havia lesado o
presidente num dos seus maiores gozos - o da escacha olímpica com
que brindava os faltosos do grêmio. Sentou-se e ouviu o presidente
denunciar o traidor, acusando-o de "pouquidade mental". Trovejou
um "empós" para continuar insultando o amigo do traidor, "um
poetastro de seborrenta musa" . Fulminou o crítico que o elogiara -
uma azêmola, senhores ! Prosseguiu a estraçalhar vivos e mortos, aca­
bando, as veias do pescoço muito inchadas do esforço, a esmurrar
a mesa, por maltratar os próprios camaradas com repetidos : compre­
endeis, compreendeis? - como se todos eles formassem na sua frente
uma cambada de idiotas .
Sofreu um vexame quando, aparteando, o magricela disse que "de­
boche" era galicismo e "casco dasno" não soava bem.
Defendeu o deboche que Camilo - o mestre dos mestres ! - já
usara (e citava ) mas emudeceu com o casco dasno que não soava
bem.
Este aparte é que não lhe soava bem no fundo do coração . Ten­
tava reconstruí-lo : o poetazinho pernóstico, que ele tinha descoberto
e trazido para o grêmio, se levantara, repuxara a calça cinzenta lis­
trada - senhor presidente : quero crer que casco dasno não . . .
Bandido ! como ousava atacá-lo, aquele ingrato ! Com que desplante
arregaçara a voz : senhor presidente, quero crer que casco dasno . . .
Via mais longe - aquilo era o princípio . Ah ! e quem diria que
já não fosse o fim? Quem diria que não era o termo de mais um
sonho, um último sonho que se ia por água abaixo . levando-lhe a
91
melhor, a sua única esperança - ter um auditório, uma platéia, um
público pequeno, sim, mas seu, já que todas as revistas se fechavam
à sua colaboração, já que fora um grande sacrifício vão a publicação
do seu livro de versos, produto das suas vigílias tormentadas, rimas que
lhe eram a única felicidade.
Recalcou dentro do peito largo a mágoa imensa, acendeu dentro do
coração uma chama de esperança : talvez sej a ilusão minha . . .
E passou à ordem do dia - a questão ortográfica.
A questão ortográfica era o seu prato de substância, o preferido,
o prato que ele confeccionara para o menu obrigatório de todas as
sessões .
- Prosseguindo nos meus profundos estudos, vou profligar umas
protervas ejaculações sofísticas dum desconhecido que me repugna
pronunciar o nome, mas que por boca menos pura, podereis saber.
Senhor segundo-secretário, quem é o ignóbil que me ataca?
Alguns riram, que o diabo do homem de vez em quando tinha
graças ! E a boca menos pura do segundo-secretário, que era o poeta
mavioso dos Versos ao meu amor, escarrou o nome do desgraçado :
- Antônio Pereira.
O presidente sorriu grosso, refazendo-se do gozo em que se afo ­
gara :
- Está aí! Agora chega de imundícies ! - malhou uma palmada
sólida na mesa. - Passemos à questão ortográfica! Dizia o Sr. Cândido
de Figueiredo . . .
Mas era o fim, bem adivinhara. Era o fim, o desprezo pelo seu
esforço, a inutilidade de seus sacrifícios para a fundação do grêmio,
uma asse mbléia onde ele pudesse expor seu pensamento voltado para
o amor das velhas formas, para a pureza dos trechos clássicos, para
o culto de Camilo, de Castilho, de Herculano.
O grêmio precisava de . gente e ele apertara com calor a mão do
poeta Gonçalves , Artur Gonçalves, com quem tivera em tempos vio­
lenta discussão na porta da confeitaria. Procurara o Castelo e solicitara­
lhe o apoio, pedindo esquecer - águas passadas não movem mÔinhos,
Castelo, o que lá vai lá vai - a briga por causa de pronomes e do
Mário de Andrade - um burro ! Procurara o diretor do jornal que
o barrara dentre os colaboradores - que importa? é olvidar! - e
pedira para o grêmio a publicação das atas . Arranjara a sala, cavara
ofertas para a biblioteca. Tudo fizera, desperdiçando forças, nervoso,
querendo fazer tudo ao mesmo tempo, humilhara-se até, porque sabia
que tudo seria para melhor e no fim de tanta lida lá estaria o seu
público, ouvintes para as suas .poesias, risadas para os seus sarcasmos .
E agora, tão cedo, tudo lhe fugia, ele bem sentia, perdia-se o sonho
difícil que arquitetara. Fora-se o entusiasmo dos primeiros dias, só
ele era o mesmo. Já se bocej ava quando ele lia os poemas da sua
lavra, cheios de florões e blasfêmias às mulheres . Já não ouvia, depois

92
das sessões, na rua, no café da esquina, falar do seu sarcasmo que
queimava.
Deu uma sacudidela violenta no cabelo como que acordando. Mudou
de repente de assunto - propôs dissolver o grêmio!
Ninguém se espantou. Acharam até natural. Pôs em votação.
- Apesar do voto ser secreto - disse - voto pela dissolução !
Os rapazes já sabiam que eram melhores as noites lá fora, no
bilhar, o bilhar do Quincas, um sujeito ventrudo, com piadas engra­
çadíssimas, na praia, entre as pequenas, no cinema, do que ali na­
quelas sessões estéreis, a ouvir sem cessar a voz do presidente vomitar
contra tudo, homens e obras, coisas e divindades, a onda do seu
despeito, num elogio desvairado e mórbido do que era seu.
Perguntou secamente ao bibliotecário :
- Quantos volumes temos?
- Vinte e um.
- Amanhã devolva-os aos doadores e está tudo acabado.
Levantaram-se. Apanharam os chapéus, as capas, e foram saindo.
O tropel pela escada chegava, entre risos, aos ouvidos do presidente,
ainda sentado no lugar de honra, ereto, superior.
- De que s e ririam?
Esboçou um sorriso amargo :
- Imbecis !
E levantou-se também, desceu a escada pisando forte, caiu na rua,
s em chapéu, a onda dos cabelos elevando-se revolta sobre a cabeça
grande.

93
TRÊ S CAMINHOS*

* "Vejo a lua no céu", "Circo de coelhinhos" e "Namorada" representam


capítulos imperfeitos de três romances tentados, onde cada pequenino herói
estava no seu caminho.
Se não os prossegui, não foi por negligência ou incapacidade. Falou mais
forte a piedade de não lhes dar destinos.
M. R.
VEJO A LUA NO CEU

No TEMPO da Grande Guerra tinha eu sete anos . Papai, de grande


gogó e inveterado no cigarrinho de palha, era homem metódico . As
quatro e meia, saídos os últimos operários, fechava ele mesmo a
cadeado o portão da pequena fábrica de meias e minutos após estava
em casa.
A casa era no Trapicheiro, velha casa de feitio colonial, no centro
do terreno plantado de árvores frutíferas, mangueiras, sapotizeiros,
laranjeiras , mamoeiros, uma caramboleira sobretudo, de ramaria tão
basta que nela os pássaros faziam ninhos sem que se distinguisse
nenhum. (Havia também um coqueiro por trás, cuj a coroa se abria
altiva além do telhado de telha cova e suave declive. Atingido por
um raio numa tarde de famoso temporal, nada dele restou que um
metro de tronco apodrecendo, onde pendurávamos samambaias cho­
ronas . ) Cinco sacadas de ferro trabalhado para a frente com azulejos
portugueses, um varandim ao lado, porão alto e escuro, reservado aos
brinquedos nos dias de mau tempo, dela se ouvia o murmúrio seco do
rio, fio d'água que descia do morro, esbarrando nas pedras cinzentas.
- Boa tarde, Filoca - punha papai o chapéu no cabide.
Mamãe respondia de onde estivesse :
- Boa tarde, Seu Pedro .
- Alguma novidade?
- Nenhuma.
- Bem - pigarreava.
Tomava o seu banho quente, cantarolando árias de óperas, de que
fora, em rapaz, devoto e entusiasta freqüentador, barbeava-se com meti­
culosidade e sentava-se à mesa para o jantar com o pescoço duro no
colarinho engomado, a gravata branca, de fustão . O relógio, legado
de vovô, solene peça de mogno e pesos , não andava mais exato.
Pam! badalava. Cinco e meia. A sopeira vinha fumegando nas mãos
gastas de Mariana, que tinha um olho furado e vira mamãe nascer
na Comarca de Magé.

97
Abstinha-se de carnes e salgados por via das dúvidas - sofrera um
ataque de ácido úrico que bastante o abatera. Entregava-se aos legu­
mes, tomava pós medicinais, falava dos negócios - operários doentes,
preços da matéria-prima, sempre subindo ! encomendas feitas, merca­
dorias entregues.
- Mais doze grosas daquelas de baguete, que você gostou, Filoca.
Doze! Para o "Paraíso das Damas", sabe? Se continuar assim, resga­
tarei a hipoteca antes do prazo.
- Deus o ouça - esperançava mamãe.
Nós nem um pio - criança não fala na mesa. Catarina tinha um
vício : ovo cozido. Guardava, na beira do prato, os pedacinhos para
comer no fim. Eu fazia, escondido, bolinhas de miolo de pão, atirava­
as contra a parede.
- Que barulho foi esse?
Ninguém sabia. Mariana carregava os pratos, deixava cair talheres
no corredor.

'li

Na sobremesa de doce de leite, papai perguntava pelas coisas domés-


ticas :
- Pagou a Seu Francisco, Filoca?
- Paguei, Seu Pedro . O recibo botei na sua mesa. Não viu?
- Não. Mas vou ver. Seu Aragão mandou o salitre?
- Está no porão.
- Bem. E os pequenos como se portaram hoje? - virava-se para
nós .
- Doró fez uma bruta manha e o Edgar azucrinou os meus ouvidos
batendo latas aí no terreiro todo santo dia.
- Era batalhão, papai!
- Batalhão de demônios - ria mamãe envolvendo-nos num olhar
abençoante.
- Isto quer dizer que estão uns endiabrados, não? A senhora então
tome providências - fingia-se sério - pois a mim não estão puxando.
- É. Não. A mim que estão saindo . . .
- Ah! Ah ! Ah ! Passe o açúcar, minha carabu, que amarga basta
a vida!
Corria a mão pelo queixo da Doró, a caçula, que ficava ao seu lado
numa cadeirinha alta, dava-lhe beliscões no cangote - uma pulga! .
Ela ria, gritava : Ai! Ai ! Ele falava gravemente, continuando a
beliscá-la :
- Você precisa botar creolina no banho desta pequena, Filoca.
Cheia de pulgas !
Chupava, sobre o cafezinho ralo, o cigarro barbacena. fazendo con­
cha com a mão. Levantava-se :
98
- Vamos, pequeno , dizia-me - e íamos passear no caminho da
caixa-d'água para fazer a digestão.
Sentados à beira da pequena represa, aromas vegetais tomavam o
ar, pássaros cantavam, ficávamos vendo o lençol escuro, com ciscos
à tona, onde nossos rostos (papai tinha rugas ) se refletiam.
O barulho igual e constante da água, jorrando dos escapatórios , aba-
fava nossas vozes .
- Papai, o senhor sabe donde vem tanta água?
- Vem do morro .
E pormenorizava como a captavam da nascente, que era nascente,
que eram os filtros para os micróbios não passarem .
- O micróbios mordem?
Sorri a :
- Espícula d e rabinho d e rodinha . . . Você dava bem para
padre . . . - e explicava tudo , calmo, compassado, simplificante.
- E é fundo esse poço, não?
- Isso n ão é poço, mas é fundo . Cuidado !
Eu olhava-o de longe - tinha medo .
Adivinhava-me :
- Um homem não deve ter medo, meu filho. Nunca! Deve ser
cauteloso, prudente . . .
Apoiado ao seu joelho, eu ouvia : que era cauteloso, prudente? Um
vago sentido apenas das significações fazia-me compreender.
Ele prosseguia, pausado :
- Assim, quando você for para a Alemanha. Vai ficar sozinho,
mas não pode ter medo .
- Mas quando eu for, vou grande, n ão é?
Riu :
- Sim, já um homenzinho. Daqui a uns sete anos . Vou fazer
ainda o pecúlio.
- Que é pecúlio, papai?
- Pecúlio é que está caindo a noite, a noite está fria e s ão horas
do s enhor ir para a cama.
Misteriosas sombras envolviam, no descambar do sol, as margens
silvestres da estrada. O cheiro de mato ficava mais forte, mais fino,
irritava as narinas num formigamento hostil . Eu tinha medo, não lar­
gava a cabeluda e áspera mão protetora. Que bichos haveria na espes­
sura daquela mata? Cobras? Onças? Talvez nem bichos somente, índios
também, índios e soldados alemães de bigodes virados e pontudos. que
nem alfinetes . De certas árvores esguias caíam folhas dentadas , que,
secas , retorcidas , s emelhavam, pardas , no chão, peludas aranhas gi­
gantes , que me apavoravam, perseguindo-me nos meus pesadelos e de
que mamãe me salvava, sacudindo-me e acordando-me : que foi? que
foi?
O vigia da caixa-d'água ( tinha uma perna de pau ) tirava o boné

99
de zuarte, continuava encostado na casinha de madeira, chupitando
o cachimbo de barro que representava a cabeça coroada de uma mulher.
Descíamos o caminho íngreme, serpenteante, ouvindo arrulhos quei­
xosos na profundeza das folhas e estalidos de chão pisado, atraves­
sávamos a pontezinha de pedra. O ar era puro jasmim-do-cabo.
Catarina, que nos esperava no portão com dois mastins de louça nos
pilares, corria a buscar os chinelos e o paletó de alpaca de pa:pai.
Margarida, que terminava o curso da Escola Normal, já se encontrava
de livro aberto, lendo meio alto, para decorar, as mãos fincadas na
cabeça. Papai, sem fazer barulho, acomodava-se na cadeira de lona,
abria A Noite para ler as notícias da guerra, acompanhando com o
dedo os mapas das batalhas. O bico de gás ardia em chiado surdo e
dele caía, enfeitando-o, um balãozinho de croché que as moscas
ofendiam.
Nós aparecíamos à porta, metidos no macacão de dormir com
cheirinho de malva.
- Bênção, papai!
Ele abaixava o jornal, olhava-nos por cima dos óculos amarelados :
- Boa noite, meus filhos, Deus os abençoe - e só tornava à
leitura quando nos via desaparecer no corredor, onde, saindo das fres­
tas do rodapé, baratas passeavam.

Ili

O alarido das rãs vinha morrer nos meus ouvidos. Dorotéia dormia
de boca aberta, dava repelões com os braços, afastando as cobertas,
debatia-se, ficava em posições incríveis. O vento trazia a angústia
do Salgueiro, num batuque desenfreado. As vozes bárbaras, negras,
soturnas, crescem nos meus ouvidos, diminuem, quase se extinguem
para voltarem depois mais altas, mais trágicas, na força de novas
rajadas.
Insone, remexia-me na cama : Alemanha, Alemanha. Sim, era pre­
ciso não ter medo. Os soldados alemães eram terríveis. Furavam olhos,
arrancavam línguas, comiam gente viva, atrelavam mulheres aos seus
carros, matavam sem piedade! E er!lj preciso não ter medo . . . Como
assim? Melhor seria enganá-los : eu também sou alemão - diria. Se
eles, um dia, desconfiassem . . . Também, para que ir para a Ale­
manha? Para quê? Que idéia aquela de papai, querendo que eu estu­
dasse química? ! Que era química? Ele declamava, convicto : "É o futuro
do Brasil, o futuro do mundo ! " Não compreendia. Mamãe me expli­
cava mal : "São misturas de remédios, meu filho. Seu Pedro é que
sabe."
Seu Pedro . . . Encerrava-se nesse respeito de mamãe por papai a
norma da nossa vida. Papai é quem mandava. Obedecíamos cega-
1 00
mente. Uma única vez, no correr de um jantar, uma voz desrespeitara-o
- a do Fernando, meu irmão mais velho, que queria se casar.
Papai negara-lhe - "Você ainda não tem juízo, nem recursos para
tal. Não consinto. Espere."
Conformado, durante meses aguardara, debalde, o consentimento
pedido. Papai não tocava no assunto. Era como se de nada soubesse.
Foi no célebre jantar :
- Papai, eu fui hoje aumentado.
- Bravo! Dou-lhe os meus parabéns.
Todos fizeram coro, satisfeitos :
- Parabéns !
- E o senhor dá o consentimento?
Papai, sem interromper o bolinho que cortava, respondeu :
- Meu filho, ainda é cedo. Espere. Não insista.
Na vida da família jamais se vira loucura como a que se seguiu.
Fernando levantou-se e gritou, os olhos como brasas :
- Pois eu me caso!
Ficamos paralisados. Ouvia-se uma mosca voar. Fernando caiu em
si : Papai . . . - estava em pé ainda, mamãe tremia, Margarida tremia,
nós tremíamos, não tornou a se sentar.
O senhor é um insensato. Case, case! Mas suma-se da minha
vista. E nunca mais me :ponha os pés aqui! Está ouvindo? Nunca!
- Pai . . . - e as lágrimas caíam.
- Já!
Fernando cambaleou para a porta, tentou voltar, mas o olhar duro
de papai o enxotava, mudo. Desapareceu no varandim. A tarde caía
num sossego doloroso. O gramofone rangeu próximo, "Varre, varre,
vassourinha . . . " Não sabíamos que fazer. "Vem varrer meu coração."
Papai dirigiu-se a mamãe :
- Filoca, ponha mais caldo de feijão aqui - e estendia o prato.
A concha na mãó de mamãe é que tremia. Ele fingiu não ver, nem
o tremor, nem as lágrimas que deslizavam pelo rosto acabado. Era
como se nada acontecera, o semblante tranqüilo de sempre. Naquela
tarde, porém, não saiu. Levantou-se, enfiou os punhos duros que
saltavam das mangas, pigarreou, agarrou Catarina pela cabeça, puxou-a
contra o peito, foi empurrando-a para a sala de visitas.
- Vá tocar um pouco para eu ouvir.
Catarina sentou-se na banqueta, tão confusa que nem a abaixou,
ficou com as pernas penduradas no ar, longe dos pedais, os olhos
medrosos buscando o teclado, as tranças caídas nas costas, com laci­
nhos de fita vermelha.
Era uma valsa. As notas falhavam, os dedos perdiam a força,
engrolavam a melodia, mesmo assim era uma valsa e papai ouvia-a,
encostado à janela, olhando.
Nunca mais se pronunciou o nome de Fernando na sua frente. No
101
porta-bibelô de jacarandá continuou, todavia, o retrato dele, tirado
quando fez dez anos, cabelo à escovinha, roupa à caçadora, e o braço
apoiado na peanha. Papai, de vez em quando, parava e olhava-o.

IV

O rio descrevia uma curva no largo da amendoeira, onde, durante


o dia, os vendedores ambulantes vinham descansar um instante na
soalheira implacável. Depois da volta desaparecia no vão da ponte e,
reaparecendo, ia passar no fundo da nossa casa, dividindo quintais.
O nosso muro era largo de três palmos, . feito de pedra, úmido e
muito mais baixo para o lado de dentro. Debruçando-me via a água
escassa correr. Assim me punha horas esquecidas, como embalado
pelo cochichar da fraca corrente, vendo os cascudos de chatas escamas
que moravam na lama, vendo os cameleões quentando ao sol, imóveis
e alerta sobre as pedras . Quando havia enchente o rio subia, sepultava
as pedras, arrastava paus e bichos mortos, ficava roncando rente ao
muro. Várias vezes ultrapassou-o e inundou o quintal, onde depois
se encontravam rãs espertas aos pinotes . Por causa disso construíram
o galinheiro sobre um palanque.
Do outro lado do rio ficava a casa do aviador, homem riquíssimo,
sabia-se dono duma confeitaria na cidade, educado na Europa, casado
com uma francesa, que aparecia de tarde, na varanda, com lindos rou­
pões de seda bordada, loura, alvíssima, fumando.
O aeroplano jamais vi voar. Era um pequeno monoplano cor de
café com leite. Estava sempre coberto por uma lona com letras pin­
tadas, sob um telheiro, feito especialmente para alojá-lo, aproveitando
a parede da garagem.
O aviador de vez em quando vinha ao jardim ver o aeroplano.
Vinha vestido à paisana ( eu espreitava-o : que diabo! esse homem não
tem farda de aviador? ! ) olhava, dava uma volta, tomava a olhar,
remexia nos ferros, mandava os criados limparem as asas - pas­
sem óleo! - tomava o landaulet, ia embora, para a cidade, passear.
Nunca voava. Quem o fazia era eu!
Certo, era eu que voava, levando Dô no banquinho de trás. Subía­
mos às nuvens que os urubus não alcançavam, subíamos tão alto que
entrávamos no céu; dávamos volta à lua, bola sólida de prata, Nosso
Senhor dentro, sentado no trono de ouro, cercado de anjos tangendo
liras, cantando como na igreja. O mundo diminuía na vertigem da
altura. Os bondes ficavam menores que formigas. Os homens nem
se viam. Olha o rio, Dô! (Um fio de cabelo. ) Olhe a fábrica de
papai, olha o relógio, a caramboleira, olha a sua casa, Dô!
A casa dela ficava defronte à nossa. No jardim três anõezinhos de
barro ; um deitado na grama, acariciando a barba e o cachimbo, outro
empurrando o carrinho de mão, o terceiro de s aco às costas entrando
1 02
na gruta de cimento, no canto do muro. Da torrezinha que se elevava
num extremo da fachada, ela mal passando o braço pela seteira, me
dizia adeus .
Dô! Tinha os cabelos quase encacheados, redonda a cara, o nariz
desmanchado, os olhos cor de azeitona. Nunca dizia "sim", dizia "ié",
e nunca perguntava "o quê", fazia "uóte?" Não andava - deslizava
pelo chão, sem esforço, sem rumor, como tocada por um vento sutil.
Viera do Flamengo, onde tomara banhos de mar.
- É bom, Dô?
Ié.
Salgado mesmo?
Ié.
E você não tinha medo das ondas?
- Não.
- Mentira.
- Verdade. Estou dizendo. Pergunte a mamãe.
Não perguntava. Não tinha vergonha de Dona Zizi, mas evitava-a.
Achava-a esquisita, tão diferente de mamãe, com aqueles braços eter­
namente de fora, o rosto emplastado de pomadas, o decote mostrando
o colo alvo, o cabelo cortado quase como homem. Falava francês
na mesa com os criados, ia todas as tardes tomar chá na cidade com
as amigas, o vestido apertado na cintura, o andar afetado, o véu
caindo do chapéu de plumas, as botinas de vinte botões, aparecendo
as biqueiras sob a saia roçagante.
Dô voltava do colégio mais tarde do que eu, um colégio inglês no
Alto da Boa Vista. Mal via-a apontar no fim da rua, pela mão da
governanta, saia escocesa vermelha, blusa branca, cabelo despenteado,
os dedos sujos de tinta, atirava-me para ela :
- Tenho uma coisa para você.
- Uóte?
- Ah ! não digo! . . .
- Eu não quero.
Arremedava-a :
- Ié? ! . . .
Queria sim. Famosos os sapotis do nosso quintal, descomunais,
cobrindo uma palma de mão.
- Guardei dois para você. Estão escondidos no galho de cima, bem
na ·ponta, madurinhos, madurinhos . Catarina não viu. Só se sanhaço
beliscou :
Pegava no bambu e botava-os abaixo :
- Vamos ver, apanhe. Olhe, lá vai.
Plócot! despencava o bruto, estourando no chão.
- Mão mole.
- Fiquei com medo, Edgar.
- Medo, medo de sapoti. Você tem medo de tudo, Dô. Queria
ver só no aeroplano !
1 03
v

Em página de armar, o Tico-Tico trazia o presepe.


Emprestada, a mesa da copa vinha para a sala de visitas, depois
duma ginástica difícil pelo corredor. Cobria-a de terra. Musgos,
pedrinhas, conchas, vasos de begônias, tudo servia para enfeitar. Com
serragem traçava caminhos por onde iam os reis magos, as ovelhas e
os pastores. Uma lata de marmelada fazia de lago, com um peixe
encarnado de celulóide dentro, quase maior que ele. Aliás, a com­
posição era assim um tanto bisonha. Carneiros maiores que as casi­
nhas, um trem de ferro de corda, que achava indispensável, baianas
de pano por imposição atendida de Doró. São José e a Virgem Maria,
de papelão, ao passo que o Menino Jesus, sobre um feixe de palhinha,
puro biscuí, resto dum presepe de mamãe. Os reis magos somavam
seis em adoração, três do Tico-Tico, três de massa, do antigo presepe
da fazenda.
Papai troçava da piedosa sarrabulhada. Eu ficava ressabiado, olhan­
do a obra, sem ver defeitos, achando-a excelente. Entristecia-me. Ele
percebia e vinha para mim:
- Comeu batata-roxa no almoço, meu filho?
Prendia Doró entre as pernas :
- Caturrita!
Entre as meninas notava-se, em papai, certa preferência por ela,
talvez por ser a menorzinha, talvez por ser a mais. bonita, minúscula,
preciosa.
DorÕtéia era engraçada :
- Papai, anão faz anos?
- Faz, catita.
- Então, por que não cresce?

VI

Manhã de quinta-feira sem aula, oca, brumosa, com cheiro de


almoços se fazendo. O quitandeiro vai aos saltos equilibrando os
balaios nas pontas do pau como conchas duma balança. Grita o
vassoureiro - a mulher chama-o, regateia, compra o espanador.
O Tico-Tico da véspera foi lido e relido, caiu no domínio de
Doró que vê as figuras, histórias do Zé Macaco e da Faustina, aven­
turas do Chiquinho de roupa vermelha, que, tendo por comparsas Lili,
Benjamim e Jagunço, terminavam infalivelmente em palmadas. Que
fazer? Na rua a penúria de meninos era uma lástima.
Manhã sem graça, do portão para o quintal, do quintal para dentro
de casa (mamãe enxotando, Margarida enxotando, Dorotéia só gosta
de bonecas ) novamente para o portão.
1 0<4
Silenciosa a casa de Dô, janelas escancaradas com colchas e tra­
vesseiros ao sol. Ricas são as colchas, os travesseiros bordados . . .
Os anõezinhos lá estão nos seus lugares . . . Dô faz falta.
A sua folga é aos sábados, colégio inglês, colégio do diabo! Que
bom seria passar a manhã brincando juntos. Saudades das férias, dias
inteiros de liberdade, no jardim, catando caramujos entre avencas e
tinhorões, riscando vermelhinhas na calçada.
- Caiu no inferno, Dô.
- Não, não !
- Caiu. Não roube.
- Não. Foi fora da linha.
- Foi em cima. Eu vi.
- Não brinco mais.
Amuo de minutos. Os canteiros inchados são um tesouro inesgotável
de pequeninos mistérios, flores, folhas, frutos, insetos coloridos. Tecia
grinaldas de maravilhas :
- Vou coroar você.
- Ié?
- Deixe de tanto ié. Não se mexa, fique sena.
- Pronto. Estou séria - arregalava os olhos.
Eu fitando-a não adiantava um gesto.
- Que é que você olha tanto nos meus olhos?
- Nada.
- Quem nada é peixe.
A coroa ficava maior do que a cabeça, descia ao pescoço (o pescoço
tinha sinaizinhos ) virava colar.
- Vou fazer uma para você também. Espere.
A mãe, de papelotes, brilhante de cremes, assomava à janela, zan-
-
gava-s e de bom modo :
- Deixem de judiar das plantas, seus malvados.
Nós gozávamos .
A grade de lanças enferrujadas era o balaústre do bonde, que nós
tomávamos e saltávamos, fingindo que ele estava em movimento, um
sem-número de vezes.
O caramanchão era o navio, a rua - o mar. Nas. manhãs quentes,
cigarras estridulavam, borboletas amarelas volitavam e, pelo nosso
mar, os gatos de rabo em pé perseguiam os peixeiros.
Os vendedores passavam apregoando :
- Não quer nada hoje, freguesa?
- Laranja seletra! . . .
- Olha a boa melancia! . . .
Odiávamos o mascate das rendas, toque, toque, com o metro na
caixa de pau. Forjávamos horrores a seu respeito - espancava a
mãe, roubava crianças, tinha postiça a inculta bigodeira só para enganar
a polícia que andava atrás para prendê-lo. Ele passava, humilde, nos
cumprimentava. Nós protegidos pelas grades :
1 05
- Sai, azar !
Ficávamos vendo o morro escuro de sombras que não conseguíamos
explicar, e o céu cobalto, ardente, ilimitado .
- Que haverá lá em cima, hem?
- Urubus .
- Bobo !
E acompanhávamos o vôo deles , no alto, curvas lentas , tranqüilas,
infinitas .
- Qual será o rei?
- Tem o pescoço branco.
Procurávamos . Nada.
- Quem foi que disse?
- Papai Alfredo . _

Era o p adrasto, um homem robusto , cara rapada, roupas largas ,


modos de estrangeiro, pródigo em presentes caros. Não morava em
casa. Vinha, às vezes , tarde da noite, sempre de táxi . Evitava cumpri­
mentos e nunca se via, quando saía pela manhã. Intrigava-me :
- Por que é que seu padrasto não mora em casa?
- Não pode. Trabalha muito .
- O meu pai também.
E viaj a muito . Prefere morar em hotel .
- Foi ele quem disse?
- Não . Foi mamãe .
Embatucava.
Voltávamos para as flores , mundo sutil e delicado, em que nos
abismávamos . Cores, corolas , recortes, perfumes, trama inexplicável,
frágil aos dedos curiosos .
- P or que a boa-noite só abre de tarde?
- Preguiça.
Colhíamos flores . Os botões de beijinhos rebentavam, ao aperto
dos nossos dedos, com estalos gostosíssimos . O corre-dinheiro circun­
dava os canteiros com bordas de cimento imitando troncos de árvores.
No verde das folhas se ocultavam tatuzinhos e gongolos . Retraíam-se
os tatuzinhos, defendendo-se, formando bolinhas . Nós ríamos .
- Que sem-vergonhas, hem? - e, deitados no chão, ficávamos
observando-os .
Eles iam se desbolando ( trocávamos olhares ) preparavam-se para
andar. Zás ! tocávamos com o dedo e eis que se tornavam em bolas
novamente. Os gongolos enchiam-nos de dúvidas e admirações .
- Para que um bichinho desses tem tantas pernas? Nós é que
devíamos ter, não é mesmo, Edgar?
E as manhãs escoavam-se. Passavam as tardes, tardes mortas do
Trapicheiro, radiosas, galos acordando a paz dos galinheiros, caracóis
riscados a carvão na calçada, que Dona Zizi achava uma imundície
inominável - "Parece frente de estalagem. Por que não vão brincar

106
disso lá nos fundos?" Passavam as noites, noites breves, que dor­
míamos cedo .
Férias saudosas ! Dias felizes ! Agora aquela solidão de quinta-feira
sem aula. Se ao menos houvesse meninos . . . Que desejo de descer
pela L�deira do Bom-Pastor, ir lá para baixo, perto da fábrica de
chitas, _ brincar no meio da molecada! Mas papai era severo. Se ele
soubesse . . . Por mamãe eu ia, mas ele . . . Não ousava. Ficava do
alto, espiando-os, ouvindo-lhes os berros, as disputas, as' brigas, o
entusiasmo da peleja com bola de meia.
Terminado o almoço, vagava pelo porão, remexia malas velhas,
revistas, traparias bolorentas, caixas de charutos repletas de retratos
se esvaecendo, gente do tempo do onça, de vetustos balandraus, meus
avós, minhas avós, penteados mirabolantes, gravatas repolhudas, todo
um passado enterrado.
No quintal refrescava o espírito do mofo revolvido. Passarinhos
libertos ruflavam pelos galhos . Ratos atrevidos saíam dos buracos.
Via a água correr, correr, espiava a casa do aviador, voltava ao porão.
Um sentimento estranho me arrastava para aquele armazenamento de
bugigangas. Evocavam-me a vida de meus pais na fazenda de Magé,
que eu sabia através das conversas nos serões, através da Mariana
fácil em reminiscências . A morte de vovô Alexandre, muito rico, em
circunstâncias imprevistas, o avança na partilha, os ódios daí gerados,
que obrigaram meu pai à aventura arriscada da capital, sem um tostão
no bolso . Visões tristes do fim da escravatura (Mariana fora cativa) ;
rebenques, açoites, troncos, e a fila curvada dos negros pelas encostas
do cafezal em decadência. A opulência da baixela avoenga nos jan­
tares de cem convivas, o caso das cobras que apareceram soltas no
quarto de vovô, nojentas e agressivas, e a devassa cruel que sofrera
a senzala. O incêndio no paiol, a contenda armada com os Cerqueiras,
por causa da cerca divisória, a alma do tio de papai, que morreu,
muito moço, na guerra do Paraguai e que surgia ensangüentada, ge­
mendo, nas noites de sexta-feira, no moinho d'água que construíra ao
pé do curral. O primeiro negócio de papai na caieira de Paquetá ( onde
Margarida nasceu) , o fracasso, a vinda definitiva �ra o Rio, o
emprego no Arsenal.
O quintal recebia-me outra vez no cansaço das minhas evocações .
Ouvia-se o bater de roupa. Onde era? Doró, no varandim, cozinhava,
no fogãozinho de lata, comidinhas para as bonecas recortadas de
figurinos . Catarina . . . Por que não combinávamos? Por quê? Não
que brigássemos. Não. Mas era tão indiferente, que nem parecia
presa a mim por laços do mesmo sangue, mero conhecimento apenas .
Margarida, calada, vivia com seus livros, ajudava mamãe, cuidava da
roupa miúda, que tempo lhe sobrava para me dedicar? Fernando, sim,
Fernando era outra coisa. Brincava, ria, soltava bichas chilenas e
rodinhas nas noites festivas de São João, puxava por mim, levava-me
para o seu quarto, me ensinava brinquedos divertidos . E se fora.
1 07
Nunca mais o vira. Como estaria? Magro ainda? Com as costeletas
se elevando pela saliência dos malares, os ombros curvos para a frente,
o andar gingado, a agilidade do falar quase incompreensível? Soubera
que se casara mesmo e tinha uma filhinha. Sentia saudade! Nunca nos
quisera ver. Conhecia o gênio do pai. Nós, crianças, poderíamos
bater com a língua nos dentes . . . Evitav� que apanhássemos castigos
por uma imprudência sua. Mamãe via-o. Medrosa, às escondidas,
escapulia e ia, muito sem jeito, pois nunca saíra sem o maridó, pro­
curá-lo no banco, ou na sua casa, aos sábados, quando fazia semana
inglesa. Sentia saudade ! O quintal falava bem dele. Lá estava o
balanço que armara na mangueira, fonte divertida de tantos tram­
bolhões. Lá se abandonava a paralela, em que fazia exercícios, pro­
metendo-me ensiná-los quando eu pudesse. Lá estava o tanque dos
patos gordos que criava e a bica para enchê-lo, feita dum cano amas­
sado de chumbo. Certa manhã encontrara-se a cobra na borda do
tanque. Jamais se me apagou da memória as peripécias do aconteci­
mento. Verde, verde desmaiado, clara para a barriga, a língua vibrante,
enroscava-se em atitude espantada de defesa. Mariana deu o alarme :
- Jesus, uma cobra!
Acudiram todos de casa ao grito de socorro. Mamãe nos segurava :
__:_ Pra cá, meninos ! Pra cá! Não cheguem perto!
Papai não estava, vieram vizinhos em alarido : "Que é? Que não é?
É venenosa! Não é, é de vidro! Mata! Mata! " Uma balbúrdia em que
ninguém se resolvia. Dona Nina (mudou-se pouco depois ) encara­
pitada no muro, é um monte de medos ridículos. Fernando, que
estava no chuveiro, surgiu afinal com o pau corajoso na mão e o
farmacêutico (da Farmácia Bom-Pastor) levou a bicha pelo rabo para
botar num vidro com álcool. Dona Nina tapava o nariz, sestrosa:
- Que nojo, Seu Bonifácio. Não sei como o senhor tem coragem.
O boticário, rompendo a onda de curiosos no portão, é todo orgulho
e temeridade segurando o réptil morto :
- É para estudar, minha senhora. Acima de tudo a ciência!
Subia. Mamãe fazia rosquinhas de sal e amoníaco, surrando a massa
na pedra-mármore da pia. Consultava o relógio, ia até à rua, inquieto
pela passagem das horas, uma palpitação dolorosa e fina no coração
à lembrança de Dô. Quatro horas, afinal! Dava uma fugida ao poste
do bonde, para aguardar a amiguinha que voltava :
- Alô!

VII

- Dôôô!
- Prontôôô! - e ela despencava pela escadinha do alpendre, numa
revoada de cabelos e de gestos. - Ia ficando velha de esperar! Mais
um pouco não chegava mais, caramba!

1 08
- Todo domingo você diz a mesma coisa, mas eu não falto nunca.
Você é que dá bolos.
- Eu não.
- E domingo passado?
- Dor de dentes.
- Eu sei . . .
Caminhávamos . As ruas pareciam que tinham sido lavadas de tão
limpas . !amos para a matinê pelo caminho mais longo, com apostas
do jogo de biva - quem visse mais cavanhaques :primeiro, ganhava.
Ganhava o quê? Coisa nenhuma. Todavia, por esta vitória sem prêmio
porfiávamos muito, discutindo, brigando muitíssimo.
O largo fervia com o povaréu que ia para as corridas, para o futebol,
para a cidade flanar. Parávamos nas vitrines, projetando compras dos
mais disparatados objetos. Goderávamos as montras das confeitarias,
comprávamos rebuçados de Lisboa, recomendados para a tosse. Armá­
vamos ideais pequeninos - coleções de caixas de fósforos marca
B andeira ( eu conseguira mais de cem diferentes ) , de papéis dourados
que embrulhavam os peixes de chocolate, de retratinhos de artistas que
vinham nos saquinhos de sortes de que as padarias tentadoramente se
atulhavam.
- Quando eu for para a Alemanha, você vai sentir?
- Sei lá.
- Não sabe?
- Como posso saber? Daqui até lá! . . . Se nós brigarmos?
- Brigarmos? !
O delírio ambulatório terminava nos empurrões para comprar en­
tradas, ao tilintar intérmino da campainha. O porteiro distribuía balas .
Max Linder apanhava indigestões devorando pratos de pastéis na
festa da namorada, Bigodinho sovado pela mulher, Carlitos fugindo
do grandalhão furioso, Chico Bóia quebrando louças na cozinha, nos
faziam arrebentar de riso. Os Mistérios de Nova Iorque apaixonara
a platéia miúda. Um admirável senso de justiça levava-nos a aplaudir,
frenéticos, batendo cadeiras, aos berros, aos coices, ensurdecedora­
mente, cada tentativa frustrada de morte ao detective francês - Jus­
tino Clarel - pelo mascarado corcunda, que era tão vaiado e execrado
quanto o chinês, seu cúmplice, que lançava plumas envenenadas so­
prando num canudinho. Riso, riso, emoções e mais emoções pelas
ciladas armadas aos nossos ídolos, saíamos abalados, nervosos, pertur­
bados da sala escura para a tarde na rua de sol marcial, os olhos
inchados da projeção tremida.

VIII

Nos s erões quase sem palavras é que a falta de Fernando, o tagarela


da família, mais se fazia sentir. Margarida ia de casa para a escola,

1 09
vinha da escola para casa, sem outro interesse que não as aulas e
as lições, sem amigas, solitária, silenciosa. Ele fora o nosso traço de
união com a rua, com o mundo, com a vida. Os acontecimentos
vinham para nós pela sua linguagem despachada. Estava a par da
última novidade, fosse anedota de português ou palavra de gíria, fosse
letra de modinha ou boato político.
Eu ficava no extremo da mesa, fora do halo de luz. Papai suspendia
a cabeça :
- Você não estuda, menino?
- Já estudei tudo, papai.
A sala mergulhou-se na paz mal turvada pela tesoura de Margarida
cortando moldes em jornais.
A barata passeava na parede, forrada por um papel que eu não
me cansava de interpretar, contornando com o olhar os desenhos esta­
pafúrdios . Parou na torre do castelo, subiu até à montanha (papai
passou para a Oltima Hora ) foi mais além, às nuvens, desceu depois,
susteve-se um momento sobre os chifres do veado a fugir do tiro
assassino, passou por cima do caçador, caiu no lago onde cisnes na­
davam. Eu seguia-a sempre. A baratinha estava varrendo, diligente, a
sua choupana, quando encontrou um vintém. Estou rica! gritou -
Estou rica! - Também hei de ser rico, Dô, para encher você de
presentes ! Então a baratinha resolveu correr mundo. Se nós fugíssemos,
Dô! Se nós fugíssemos no aeroplano . . . Você tinha medo? Mas a
baratinha precisava dum marido para defendê-la. Quer casar comigo?
- perguntava aos bichos que passavam. Quero. Como é que você
faz de noite? E o boi de retorcidos cornos : Muuuu . . . Vamos fugir
para casar, Dô? Com que dinheiro, Edgar? Então você não conhece
aquela história dos garotos que deram volta ao mundo com dois
vinténs? . . . Ahn! . . . ( a barata agora está no mármore do bufê ) .
Que tal, Dô? Vamos. O barulho do aeroplano põe narizes no ar ­
truuu . . .
- Barata assanhada, sinal de chuva - fez Catarina, espertando a
sala.
A barata esbarrava no teto . As pálpebras de Doró não ficavam
um segundo quietas. Mamãe sabia :
- É o João Pestana que está chegando.
Levantou-se do tricô e foi preparar o chá com biscoitos unha-de­
gato da padaria. Margarida largou os moldes e atirou-se atrás :
- Deixa, mamãe. Eu faço.
Virei-me para papai. Encontrei-o com o olhar posto em mim.

IX

A rua despertou com o bate-boca confuso. A voz masculina que


ofendia aclarou-se. Era do Seu Alfredo.
1 10
- Cínica ! Ordinária! Fique pra aí!
- Fala baixo, bandido ! Olha a vizinhança!
- Falo alto, bem alto. Arranje outro! (a cadeira caiu . )
- Quer escândalo, não é?!
- Quero é que todos fiquem sabendo quem você é, cínica!
A porta b ateu, furiosa. Dona Zizi implorou :
- Alfredo !
Mas os passos desesperados ecoavam na calçada sonora da madru­
gada.
A vizinhança ferveu de comentários ao escândalo. Mamãe aven-
turou na mesa do café, s ervindo leite :
- Bem me parecia que ela não era s éria.
Papai interveio :
- Deixe a pobre mulher, Filoca. Não julgue pelas aparências .
Dô não se despediu. A casa foi fechada. Falava-se vagamente que
Dona Zizi voltara para o Flamengo.

Catarina mira-se no espelho do guarda-casaca. Tem as faces coradas,


a boca leve, o buçozinho trigueiro . Está mais alta, mais forte, mais
gorda, a pele tostada.
- Estou mais morena, não estou, mamãe?
- O que você está é muito vaidosa.
- Eu? ! Que mentira! . . .
Papai dorme na tranqüilidade do domingo. A rua dorme ao sol.
Dormem os morros ermos, verdes, no dia dormente. Urubus pingam
o céu.
- Está na hora, Edgar? - perguntou Catarina.
- Está, sim.
lamos para a matinê agora juntos. No tempo que Dô ia comigo,
nunca quisera :
- Não gosto de cinema.
Não gostava era de Dô. Achava-a insuportável com os "iés" e os
"merci", os agasalhos de Paris e a martinha para o pescoço :
- Prosa!
Não via nisso uma razão decidida. Como é que eu gostava? E não
atinava com a causa da inimizade. Dô, por seu turno, não ia com
Catarina :
- Parece uma maria-mijona com aqueles vestidos.
Eu defendia :
- Foi mamãe quem fez.
- Toca piano como a cara dela.
- Por que você não gosta dela, hem, Dô?
- Que é que você tem que saber? ! - enfurecia-se.

111
XI

Matinal como um galo, amava o silêncio friorento das madmgadas,


o orvalho nas folhas, rutilando, os primeiros movimentos da vida
cotidiana.
Seu Manuel, ao trazer o pão, quentinho, de provença, pilheriava
comigo : _

- Já de pé, ô menino? Está a estudar para padeiro?


No quintal, as galinhas cacarejavam, reclamando a ração. Mariana
trazia milho no avental remendado, atirava pelo arame : pruuu . . .
pruuu . . . Formava-se o tumulto de bicos e asas.
Naquela manhã ( estava em férias ) , deixei-me ficar na cama, num
sono fundo. Mamãe, que me cuidava na rua, brincando, só às nove
horas deu comigo no quarto ainda a dormir.
Como na véspera tivéramos visita, padrinho, que só saiu tarde da
noite e foi obrigação minha, morrendo de sono, aturar-lhe a intermi­
nável discussão com papai, que era germanófilo, a propósito do torpe­
deamento de não sei que navio, acreditou que fosse de cansaço e
sacudiu as cobertas :
- Pula daí, preguiçoso ! Quero arrumar o quarto.
Despertei e despertando senti-me enjoado, forte ânsia de vômito,
dor to�ando a nuca, uma pontada no ventre :
- Nem posso abrir os olhos, mamãe. A luz dói na VÍ.'ita.
Torceu o nariz :
- Hum . . .
Certificou-se pondo a mão na minha testa :
- Você está com febre.
Tive um anseio :
- O balde! O balde! Mamãe, quero vomitar!
Ela se alarmou :
- Voa n a fábrica, Margarida, e chama teu pai depressa.
Margarida fez menção de mudar o vestido.
- Vai assim mesmo.
Papai sentou-se ao pé da cama, enquanto Doutor Vítor me exami­
nava.
- Dói aqui? Responde quando eu perguntar. (Mamãe me fazia
sinais - não tivesse medo. Margarida espiava da porta. ) E aqui?
Vire um pouquinho.
Obedecia.
- Assim. Está com medo? - apalpava. - Não? Rapaz valente!
Assim é que eu gosto de ver. Encolha a perna agora. Mais. Não pode?
Muito bem.
- Acha que é, doutor? - aparteou meu pai.
- Da boa!
Então, faca!
1 12
Mamãe pôs-se lívida, gelada. Margarida sumiu chorando. Papai
continuava :
- É. Isso é coisa que não se contemporiza.
Pensei que ia morrer. Mamãe se acabava dum lado para o outro :
- Valha-me, santo Deus!
Amarrava trouxas de roupas :
- Acha que precisa tanta, Seu Pedro?
Papai, no telefone da padaria, providenciava, urgente, a ambulância.
Chegava na porta do qua�o, olhava-me, vinha até mim, afagava-me
a cabeça :
- Não é nada, meu filho. Não tenha medo.
Margarida postara-se à minha cabeceira, atendia-me.
- Vou morrer, Margarida.
- Que bobagem, Edgar - passou-me a mãe pelo rosto. - Dorme!
Eu escaldava. Seu olhar brilhava, úmido, na meia-luz do quarto.
- Está sentindo alguma dor?
Dô!

Xll

Os enfermeiros conduziram a maca com precauções. Desceram a


escada do varandim, alcançaram o portão, suspendi o lençol que me
cobria o rosto. O azul que rompia o céu entrou-me dolorosamente
nos olhos. Gritei. Cobriram-me novamente. Havia um vozear surdo
à minha volta. Estaria fechada ainda a casa de Dô? Vou morrer!
Atraquei-me ao pau da maca:
- Mamãe!
- Estou aqui!
Chorava :
- Vou morrer! . . .
O doutorando disse que eu estava muito nervoso. A ambulância
rodava.

XIII

Fiquei magnss1mo. Doutor Vítor mandou :


- Agora que o perigo passou, comida e repouso.
Eu tinha fome e não fazia excessos. Papai destacou um servente
da fábrica para me acompanhar. Ele me punha no colo (eu não podia
descer escadas ) levava-me para o quintal. Armaram uma rede. Nela
passava os dias, dormindo, comendo frutas, conversando com o preto.
Tião era muito burro.
Por vezes me entristecia. Passados os dias perigosos da minha enfer­
midade, voltara por parte de minhas irmãs a mesma indiferença por
113
mim. Falavam-me por alto, viviam as suas vidas afastadas . Sobrava­
me apenas o consolo de ter sabido que no fundo elas me amavam
muito, amorosas, incansáveis, dedicadíssimas, nos transes por que
passara. Contudo, achava pouco. Pedia mais . Pedia que falassem
comigo ( Fernando falava) , participassem dos meus brinquedos (Dô
participara) , abraçassem-me ao menos. Dô me abraçava. Dô ria co­
migo. Dô conversava muito. Mas Dô também tinha sido ingrata. Dô
não viera me ver quando estivera de cama. Talvez não soubesse . . .
Onde estaria? imaginava.
A perereca dá saltos verdes, incríveis, na moita de taiobas. Mais
um salto mortal e desaparece. Desaparece, leviano, pintado, o par
amoroso de borboletas . Ronca o maribondo. Acompanho as nuvens
que caminham .para o sul. O morro sombreia-se. A cabeça cai :
Dô! . . . Sobem pelo tronco da mangueira, em cordão, as providas
formigas infatigáveis.

XIV

Tião mentia, Tião roubava, bebia cachaça duma garrafa escondi­


da, adulava, descarado, mamãe e papai, fazendo-me festas, agrados,
gatimonhas, quando os percebia à janela. Peias costas amaldiçoava :
- Pajear criança ! . . . Estão soltos . Isso é trabalho pra mulher!
Se entornava mais a garrafa, ficava impossível. Resmungava, im­
plicava com as galinhas, rogava pragas, me amedrontava com histórias
de lobisomens e assombrações, estirava-se no chão, roncava.
Ficava vendo-o ressonar. Pulo, beiço caído, nariz esborrachado,
tinha jeito, o patife, para fazer, quando queria, brinquedos toscos
de pau, trapezistas, macacos que trepavam pelo cordão a um simples
puxão, carretéis que projetavam hélices de folha-de-flandres, zuni­
claramente para o ar. Perdoava as malcriações pela prenda.

XV

Vinha a lembrança de Dô.


Mordia o lábio inferior, cacoete que denunciava nela os momentos
difíceis :
- Edgar, o paturi morreu.
- Morreu? !
- Agorinha mesmo.
Tinha sido presente duma amiga da mãe, uma senhora do norte, o
patinho furta-cor.
- Foi o gato?
1 14
� Não, foi tristeza. Mamãe é que disse. Só vive aos casais.
Sentávamos na calçada. O capinzinho prosperava na sarjeta. O
vestido muito curto subia mais, ficava com as coxas todas de fora,
brancas, redondas, azuladas.
- Amanhã vou no dentista.
- Eu não ia.
- Mas depois mamãe me leva na Colombo para tomar sorvete.
Deitados no cimento do jardim, barriga para o ar, mãos atrás, na
nuca, descansamos.
- Conte aquela história que você sabe para dormir.
- . . . e veio outro gafanhoto e carregou outro grão de milho . . .
e veio outro gafanhoto e carregou outro grão de milho . . .
Dona Zizi impressionava-se, chegando à janela :
- Que é que vocês estão fazendo aí tão calados?

XVI

Seu Euzébio veio visitar-me, arroxado no terno saqao azul-mari­


nho, encontrou-me, de pé, no tope do varandim, debruçado, entretido
com as evoluções do bombeiro, na esquina, para atracar a mulatinha.
- Como, o patrãozinho j á assim rijo, pronto para outra?
Deu-me o pacote de balas :
- São de alteia, pode chupar sem receio.
Aboletou-se com simplicidade na sala de jantar :
- Então, Dona Filoca, que susto o nosso Edgar lhe pregou, hem?
Se bem que pouco nos visitass�, era considerado de casa. Primo
remoto de mamãe, fora companheiro de infância de papai, andaram
no mesmo colégio, de que se recordavam com boas gargalhadas :
- Você, Euzébio, aprendeu o bê-a-bá com um bom lastro de
palmatória.
- Cabeça dura, não? Bom tempo ! . . .
Muito amigo de papai, tinha-lhe, porém, grande respeito. Viera
de Magé, onde vegetava como capataz duma fazenda arruinada, cha­
mado por ele, para a falida empreitada de Paquetá, onde queria
um homem de confiança. Desde aí acompanhava-o . Montada a fá­
brica, modestíssima, improvisara-se de contramestre :
- Eu não entendo nada dessa atrapalhada, Seu Pedro. Nunca vi
um tear.
- A honestidade faz tudo, Euzébio . Você é honesto. Está pelo
sacrifício?
Desempenhou-se do encargo .
Se tinha respeito, não o levava a ponto de sufocar ante as opiniões
de papai as suas próprias opiniões . Pelo contrário discutiam.
Dava a vida :por uma discussão sobre política.
1 15
- Não tem razão, Seu Pedro. :S paixão sua.
- Qual paixão, Euzébio ! O Wenceslau é uma múmia.
- Que múmia!
- Múmia, sim! Está muito bom ,para Itajubá, lá com os seus
lambaris, seus coronéis, mas o Rio é coisa muito diferente, meu velho.
- Um estadista!
- Que estadista, Euzébio, que estadista - um paspalhão de
gaiola! Então você acha de estadista a declaração de guerra à Ale­
manha? Diga, vamos. Você acha?
- Patriotismo.
- Que patriotismo ! . . .
- Patriotismo, sim. E os nossos navios torpedeados, Seu Pedro? E
o nosso pavilhão?
- Que pavilhão, que patriotismo, que nada! Patriotismo teria sido
se ele não declarasse guerra, esta guerra ridícula de opereta! Patrio­
tismo teria sido se deixasse o Brasil neutro, de portos livres, vendendo
aos dois contendores. Entraria dinheiro - como estava entrando,
aliás - produção para fora, ouro ! ouro ! Disso é que precisamos.
Nosso país é paupérrimo, atrasadíssimo. Dinheiro é progresso, meu
velho, é alavanca, é sangue! Pois que entrasse ouro ! Isso é que seria
patriotismo. E nós com essas barretadas palermas à Europa! Que
somos nós para ela? Um mercado que se explora! Um mercado
apenas. País de canibais.
Seu Euzébio, perturbado, calava-se. Mariana equilibrava a bandeja.
- Então, não está com saudades da terra, minha velha?
Ela ria embuchada, como resposta. Seu Euzébio virou-se :
- Tem sabido notícias d a terra, Seu Pedro?
___. Não tenho, nem quero . Peço um terremoto que a liquide.
- Não diga tal, Seu Pedro. :S filho de lá. Teve lá seus desgostos,
eu sei, também tive os meus, mas a terra não é tão ruim assim.
- Qual, Euzébio, Magé? Má terra, má gente, mau porto e má
maré.

XVII

Fernando ! Nós o vimos novamente, três anos depois . Pareceu-nos


outro, magro, escalavrado, impressionante.
Vimo-lo na mesma sala de que fora expulso e chamado por papai.
Na véspera, a noite foi grave. Papai soubera de tudo : Fernando
estava tuberculoso, lutando com mil dificuldades, com dois filhos já,
numa avenida ínfima de São Cristóvão .
- Filoca, por que você me escondeu?
- Não escondi, Seu Pedro, eu não sabia.
1 16
- Não minta, Filoca. Por que você me escondeu? - e a voz de
papai é sentida.
Mamãe desabou em pranto. Ele abraçou-a.
- Amanhã, logo cedo, você vá procurá-lo. Diga-lhe que quero-o
aqui à hora do jantar. Antes é inútil. Durante o dia darei as provi­
dências. Pobre filho ! . . . Vou liquidar-lhe as dívidas, procurar o seu
médico, mandá-lo, conforme, o estado, para Palmira com a mulher.
Palmira é um ótimo clima. As crianças ficarão com a gente.
Mamãe não se conteve. Enlaçou-o, fortemente, a única vez que o
fazia na nossa presença. Papai sorriu :
___.. Nossos novos filhos, não é, minha velha? Estava escrito que
você nunca descansaria.
Olhou-a bem : um caco ! - Disfarçou a comoção visível :
- Como é o nome do menino?
Ela sussurrou :
- Pedro.
Papai não agüentou mais . Saiu da sala.

XVIII

Fernando abraçou-nos no varandim. "Que saudades ! Como vocês


estão crescidos !" Tornava a nos abraçar, rindo, feliz. Saiu dos nossos
braços para os de papai, que falou alegremente :
- Senta aí, meu filho !
Apontava-lhe o mesmo lugar de antigamente, de costas para o bufê.
Achava-se florido! Idéia de Catarina.
- Você! . . . - bateu-lhe na face. - Querida . . .
Catarina enrubesceu. Fernando sentou-se. Vimo-lo melhor então.
Trazia no rosto, encovado, o esverdinhado dos mortos . Virou o prato
- lívidas as mãos. Sim, devia estar muito doente, pensávamos. No
entanto o jantar foi festivo e demorado. Mariana se esforçava na
perna manca de reumatismo. Papai começou :
- Amanhã você não irá mais ao banco. Entendi-me com o seu
chefe. É um inglês simpático, moço, fez excelentes referências suas :
"Uma rapaz muito distinta" - imitava.
- Nós rimos. Fernando riu :
- Um unha-de-fome, papai. Não aumenta ninguém.
- É? Pois não parece. Dispensou-me muita atenção, concordou
com uma licença por prazo indeterminado . . . De modo que fica
sabendo - amanhã venha pra cá com a mulher e os garotos.
- Mas, papai . . .
- Já sei. Negócios de dívidas, não é? Não seja bobo, rapaz . . .
Venha pra cá, foi o que eu lhe disse, o resto, não se incomode -
deixe por minha conta.
117
Fernando quis ainda objetar, mas papai não deixou :
- Estive com o Doutor Rocha também. Saí do banco, passei no
consultório. Aconselhei-me a seu respeito. Vi que ele é muito seu
amigo. Acha que você está fraco e deve ir para fora, para um clima
seco. Pensei logo em Palmira, e ele aprovou : magnífico ! Você vai.
Vai com sua mulher, o clima é bom, tenho amigos lá, assim ficará
melhor, não acha?
Fernando concordou, retraído :
- Sim. É melhor . . .
- Os garotos ficarão aqui com a gente. Você, e sua mulher não
menos, precisa descansar. Passa lá uma temporada, três meses, seis,
um ano, o que for preciso, enfim, fazendo regime, bebendo bastante
leite, respirando ar puro - remédio é bobagem! - e nada de extra­
vagância, está a ver, e voltará outro.
Entrou-se na sobremesa. Papai limpava os óculos com o lenço,
insinuava macio :
- Ficando bom, mas bom de fato, seria conveniente não voltar
logo ao banco. Irá para a fábrica, me ajudar, trabalho calmo, s em
se matar . . . Quem sabe que você até se acostume lá? Eu gostaria.
Ela vai indo, meu filho, mas necessita de gente nova, ativa, com
outro sangue, outras idéias . . . Eu já estou cansado.
Fernando concordou :
- Oh, meu pai, com todo gosto ! Ficarei. Por que não?
Antes do café se despediu. Papai mandava-o embora : "O tempo
não está seguro, é perigoso, e mesmo sua mulher pode ficar aflita."
Quando se ouviu o bater do portão (tinha havido um silêncio )
papai pousou a mão no meu ombro :
- A Alemanha para você, meu filho, ficará num chinelo .
Não se compreendeu. Entreolhávamo-nos . Ele levantou-se com
manifesto esforço, empinou o corpo, carregou Catarina para o piano :
- Anda, sua preguiçosa, vai tocar para distrair teu pai. Toca
aquela música que eu gosto .
- Qual, papai? O tanguinho do Nazaré?
- Não, filha. A valsa bonita, que acaba fininho, esqueceste?
- Ah, não! Eu sei : Vejo a lua no céu.
- Como?
- Vejo a lua no céu.
Papai repetiu :
- Vejo a lua no céu . . . - chegou para a janela, amparou-se
ao portal.
A melodia rolou imperfeita pela sala escura. Escura, também, a
noite lá fora. Céu, montanha, se uniam num mesmo negror. E havia
vento. Rajadas sufocantes de tempestade próxima traziam, da mon­
tanha, o ramalhar das árvores, grosso e ininterrupto como o fragor
118
duma cascata. A melodia continuava. Agora vem a passagem de
notas baixas, que Catarina interpretava mal. Que importa? Papai
ouve. Fuzila. Cada clarão recorta-lhe, no vão da janela, o perfil
imóvel, distante. Cada relâmpago mostra melhor o nariz reto, os
lábios secos, o bigode à inglesa. Os olhos serenos, sob os óculos, têm
brilho d'água.

XIX

Fui transferido para o turno da tarde, porque no da manhã não


havia quarto ano.
As quatro horas cantava-se, em fila, o Hino Nacional, enquanto
a bandeira era arriada pela Luisinha, a primeira · da classe.
Fugindo, tímido, à algazarra da saída, apressava-me pela Rua José
Higino abaixo, a bolsa de couro nas costas como se fosse mochila.
Um passo, dois, um, dois, um, dois - acreditava-me soldado e mar­
chava para a guerra. A luta é lá na frente, mas a imaginação inven­
tava emboscadas nas folhagens dos jardins pacatos . Balas silvavam.
Os tanques são bondes pesados de operários . Balões cativos afron­
tavam a fúria dos canhões, pum! pum! Belgas morriam ao meu lado,
belgas e zuavos, escoceses e canadenses, os alemães não poupavam,
pam! pam! invulneráveis e invisíveis como espíritos . Tombavam os
aliados, mas eu não. Sobrevivia aos embates mais duros, ao bom­
bardeio mais dizimador, o peito coberto de medalhas que matavam de
inveja o Caxinxa, colega de carteira, campeão absoluto de gude, fosse
triângulo, buraca ou tilosca, nos recreios do pátio exíguo, que não
permitia o futebol. Trincheira é pau. Batalhar é no raso. Então,
tome espada, tome baioneta, tome facão, um furar esgrimista e he­
róico de peitos e barrigas. Mais um pouco e tomaríamos de assalto
o palácio dourado onde o Kaiser, escondido, comia criancinhas assa­
das no espeto. Era só o grito do general - avança! - e eu zás!
entraria de baioneta em punho.
- Bênção, papai!
Papai confabulava com Seu Euzébio. Eu corria os barracões com
cheiro misturado de máquina e alinhagem. Insetos se afogavam nos
tanques de tinta. Os teares descansavam. Os operários se vestiam,
taramelando por trás dum tabique, saíam. Algumas mulheres iam
grávidas, disformes . Eu olhava.
- Vamos? - papai perguntava, apanhando a corrente com
cadeado.
Voltávamos devagar. Que fazer em casa? Um deserto a casa
para mim. A casa e a rua. Dô fazia falta. E a sua casa continuava
abandonada. Não voltaria mais? O capim invadia os canteiros .
1 19
Mamãe perguntava logo :
- Fernando escreveu?
Pedrinho vinha correndo, de braços abertos :
- Vovô!
Pulou-lhe no colo. Papai suspendeu-o, sacudindo-o no ar, beijou-o :
- Meu camundonguinho, todo sujo . . .
- Vovô, eu vi o bonde!

XX

Pouco passava das quatro horas e papai brotou em casa. Aos olhos
interrogantes respondeu abrindo o telegrama que recebera na fábrica :
"Venha urgente. Fernando".
- Que terá acontecido, meu Deus? ! - fez mamãe amedrontada.
Papai manteve-se duro :
- Não há de ser nada, Filoca. Talvez precipitação do Fernando.
Você sabe como ele é. Exagera tudo.
Mamãe não prosseguiu. Papai foi para a secretária, resistente tras­
te de mobiliário antigo, abriu a gaveta do dinheiro.
- Arranje-me aí umas camisas, Filoca. Uns lenços também.
Não havia mala de mão. Fez-se um pacote reforçado, com alças
de barbante.
- Está muito bem.
Engoliu um rápido café ( "Não quero mais nada, estou meio in­
disposto . . . " ) beijou-nos e partiu para apanhar o noturno das seis
horas .
- Eu volto logo, Filoca, não demoro . O Fernando é precipitado.
Mas você pode resolver tudo na minha ausência. O que fizer está
bem f�ito. Quanto à fábrica, não se incomode, já dei ordens ao
Euzébio a respeito.
Foi uma noite difícil. Mamãe mandou trancar o porão mais cedo
com medo dos ladrões . Reunimo-nos na sala, quase mudos, teme­
rosos . O silêncio, na falta de papai, que pela primeira vez se sepa­
rava uma noite de nós, parecia maior, bem maior, campo vasto para
o ranger dos pesos no relógio indiferente. Mamãe rezava, impercep­
tivelmente. Dorotéia achou o baralho e pôs-se a fazer castelos sobre
a mesa. Pouco firmes, as mãos infantis os derrubavam mal se levan­
tavam. Eu pensava. Pensava em Fernando, em Dô - onde esta­
ria? - em papai. Papai estava no trem. Eu nunca andara de trem.
Mamãe levantou-se. Margarida atalhou :
- Quer alguma coisa, mamãe? Eu vou buscar.
- Vou ver se as crianças estão direitinhas .
Os netinhos dormiam no quarto de papai, defumado com alfazema.
1 20
XXI

Despertei com a lamúria, na rua, das sanfonas enamoradas, cava­


quinho, bandolim, flauta, na valsa tristíssima. Abrem-se janelas . O
cantor principia. E a serenata passa, sobe, vai-se perdendo no cami­
nho do rio, ao luar claro e frio da madrugada.
Doró fungou.

XXIJ

Papai voltou, uma semana depois, arrasado, de gravata preta. Nós


recebêramos antes a notícia e celebráramos missa no altar menor da
Igreja do Bom-Pastor - falecera a mulher de Fernando, quase ful­
minantemente, duma pneumonia dupla.
- E Fernando? - foi a nossa pergunta.
Bem mal, abaladíssimo pelo choque, passava melhor agora, con­
formado com o desastre. Metera-o no sanatório. Sozinho na casinha
que alugara não poderia ficar. Trazê-lo para casa era imprudência.
Se nãõ mais tinha hemoptises, não estava ainda consolidada a cura.
No sanatório estaria melhor. Conforto, sossego, assistência . . . O
especialista, que o examinara, tinha muitas esperanças dum restabele­
cimento, afirmara.
Mamãe, que preferia tê-lo entre os braços, quis dissuadir papai :
- Mas a despesa? O sanatório é caríssimo . . . Poderá agüentar,
Seu Pedro?
Papai desalentou-se :
- Veremos .

XXIII

Foram-se as andorinhas . Vagou-se a casa pegada - um chalé.


Realugou-se ao casal de velhos. Ela, baixinha, atarracada, de rega­
dor em punho no jardim, apaixonava-se por parasitas, mil parasitas,
distribuídos pela varanda. O marido colecionava borboletas . Pediu-me
que lhe arranjasse bonitas, que me pagaria. Não arranjei, fugia dele
quanto podia. Tomava rapé, era importuno :
- Não se esqueça, pequeno. Bonitas ! É fácil para quem anda
aí pelo mato.
Foi-se o carnaval. Papai não nos levou à cidade, na terça-feira,
para vermos os préstitos como de costume.
Um caminhão, coberto de girassóis de papel fino, que saiu da Rua
José Higino, veio fazer a volta defronte à nossa casa. O pessoal,
dentro, fantasiado, cantava, batendo palmas . A moça atirou serpen­
tinas. Eu apanhei-as e enfeitei a grade do varandim. Papai não
ralhou.
121
XXIV

A porta ficara aberta. Abri os olhos e vi na claridade a sombra


alta se afastando.
- Seu Pedro.
O corpo veio, obediente, sentou-se na cama :
- Pensei que estivesse dormindo.
- Não.
Mamãe alongou o braço nu, a mão parou na testa grisalha.
- Não vem dormir? Olha que é tarde. Passa das três.
- Não. Estou sem sono.
- Ou está se sentindo indisposto?
- Não, Filoca.
- Está, sim. Que é? Estômago? Talvez o camarão lhe fizesse
mal . . . Não?
Houve uma ansiedade no quarto, sem palavras . Mamãe sentou-se,
abraçou-o :
- É melhor mandar chamar logo o Doutor Vítor. A Mariana . . .
- Não ! - agarrou-a.
As lágrimas, lágrimas verdadeiras, rolaram à toa, enormes, pelo
rosto de papai. Mamãe abraçou-o numa piedade transbordante.
- Que é que tem, Seu Pedro? Que é que aconteceu? - alisava-lhe
o rosto que as lágrimas marcavam.
Ele deixava-se abraçar, não respondia, chorava mais, seco, sem
soluços . Mamãe insistia :
- Conte . . . Vamos, conte . . .
Papai escondeu a cabeça no peito que se abria.
- Eu fui culpado de tudo, de tudo !
- Foi a vontade de Deus .
- Fui eu! Eu! Pobre filho !
Súbito, ficaram alerta, respiração suspensa! Pedrinho choramin­
gava, meio dormindo . Mamãe acudiu, aconchegando o cobertor,
acalentou-o : "Dorme, dorme, meu amor . . . " Ele sossegou. Veio o
silêncio com grilos, com sapos, com galos .

XXV

A última carta de Fernando reforçava, veemente, as anteriores .


Não queria mais ficar sozinho, entre gente estranha, longe de tudo
quanto amava. Não suportava. A saudade dos filhos matava mais
que a doença. Desesperava-se, nas linhas finais, rogando por miseri­
córdia que o tirassem de lá. Queria vir para casa.
Mamãe apoiava :
- Deve ser horrível, assim longe, só . . . Coitado !
- Mas é uma imprudência, Filoca. E os pequenos? Pense bem.
1 22
- O que tem de ser, Seu Pedro, tem muita força.
Papai não queria embarcar facilmente na canoa do fatalismo
materno :
- É um perigo.
- :E: nosso filho!
Papai calou-se. Mamãe teve pena. Para que abrir mais a ferida
que tanto lhe sangrava e pungia? Levou a questão para outro rumo :
- E mesmo não se agüenta mais, Seu Pedro. Tem se compro­
metido bastante já. Anda embaraçado nos seus negócios . Para que
mais? O sacrifício não tem compensado em coisa alguma. Onde as
melhoras que prometiam?
Papai perdera a inflexibilidade das suas ações :
- Pois está bem, Filoca. Você tem razão. Seja pelo que Deus
quiser.

XX VI

Fernando dorme. Seu sono é inquieto na noite que o tique-taque


do relógio não perturba. Sacode-se como se libertando de um sonho
mau, treme, alaga-se de suor, suor abundante que embebe o pijama
e atravessa o lençol.
Agora ele acorda, sobressaltado com o galo - maldito ! - que
vibrou no terreiro. Acorda e tosse; a tosse é breve e fraca.
Abre a janela. No sanatório elas dormiam escancaradas para o
ar, fino e balsâmico, que vinha das serranias, entrar como um cor­
dial pelos pulmões avariados, e amanheciam molhadas friamente pela
geada que embranquecia os campos, róseos em outubro pelas flores
dos pessegueiros. A luz dúbia da manhãzinha, povoada de padeiros
e leiteiros, penetrou no quarto em desalinho, cheirando a remédios
e a roupas enxovalhadas. A aragem da montanha feria as folhas
do mamoeiro. O rio corria em tênue rumor de vazante.
Consultou o relógio· sobre a mesinha : cinco horas . Devia ser mais .
Mariana, feito o café, já andava às voltas com a criação. Distribuía
milho, espertamente, aos punhados, para poder contar as cabeças .
Punhado para um lado, punhado para o outro, evitava assim que elas
se amontoassem num lugar só. Dormira demais . "Pintada, Carijó!
Pruuu . . . ( Elas atendiam. ) Onde está a Pintada? ! " Entretanto sen­
tia-se extenuado, os membros dormentes, doloridos como se tivesse
levado uma surra. A boca amargava-lhe, a cabeça pesada como se
fosse de chumbo. Caiu no canapé de florinhas azuis .
Há três dias que voltara da serra, execrando a vida de sanatório,
e encontrava-se aqui, falho de esperança, sem forças para resistir ao
mal que o minava.
Para que resistir? Para que prolongar à toa a vida, se sabia que
dela nada poderia esperar? Morrera-lhe a mulher, mulher que ado-
1 23
rava, companheira encantadora, pedaço do seu coração, tão subita­
mente arrancado. Os filhos, nem os podia beijar! . . . Fora uma
imposição do pai :
- Compreenda, meu filho, com inteligência e resignação o seu
estado.
Aceitara. Achava justo :
- Está direito, papai. Obedecerei.
Via-os de longe, inocentes, rindo em diabruras . Marília é o retra­
to da mãe. Pedrinho, rechonchudo. Saltam, correm, não choram.
São felizes . Não sentiriam a sua falta. Mimados, queridos, estavam
amparados . Que melhor proteção lhes desejaria? A mãe se entrega­
va a eles de corpo e alma. O pai gastara a dureza de outras épocas .
Dedicava-se aos netos com um jeito que deixava adivinhar, para
o futuro, uma benevolência que não tivera com os filhos. Que lhe
importava, pois, a vida?
Os internados procuravam se distrair. Formavam grupos, liam,
conversavam nos intervalos dos longos descansos a que o regime do
estabelecimento obrigava. Ele fugia, ficava de longe, vendo-os, aga­
salhados, passearam pela colina ondulante e ajardinada, alguns tão
corados e joviais, que mais pareciam visitantes que tivessem vindo ver
parentes enfermos para enchê-los de alegria e de coragem.
- Quando eu voltar, vocês vão ver a vida que eu vou levar.
O cadavérico adivinhava, piscava o olho frascário, expectorava :
- Se sei, hem? ! . . .
Riam, trocavam planos. O ar gelado e seco navalhava as orelhas.
A sineta marcava horários que o rapaz de Sorocaba transgredia -
não mais saía do quarto, o penúltimo do corredor esquerdo, extin­
guia-se com balões de oxigênio, implorando, nos momentos mais
cruéis, por uma vaga Heloísa, que amava. Quando diminuía a crise
( o médico não se continha : que resistência! ) traziam-no para a va­
randa, ficava horas e mais horas, repousado na cadeira de lona, a
face transparente. Sorria para os que passavam no parque, onde
havia o repuxo com ninfas, dizia-lhes que breve iria descer também.
Morreu numa tarde de tempestade. De segundo em segundo, clarões
riscavam o céu de breu, ribombos se prolongavam indefinidamente
pelas quebradas. O Almeida, que jogava futebol, um boêmio, meio
cínico, profetizava, traquejado :
- Vamos ter trem especial.
Realmente, às onze horas da noite, que se fez um vergel de es­
trelas puras, partia um trem especial, levando o morto e as lágrimas
da mãe inconsolável.
Nos acessos de tosse procurava no lenço vestígios de sangue. Nada.
Mas que importância tinha, se os exames continuavam positivos? O
quarto, de paredes brancas, caiadas, não guardava vestígios das he­
moptises dos que lhe antecederam. O banco perdido, debaixo do
124
eucalipteiro, no fundo do pomar, onde laranjas se ofereciam como
frutos proibidos, era o seu lugar predileto, escondido. Dali dominava
o seu pequeno mundo. Via de longe a cidade, humilde, roceira, poli­
tiqueira, trepar nos morros como puxada pelas igrejas, brancas e
velhas, que se erguiam nos cimos . Via, entre cercas de chuchu, a
casinha da Rua do Córrego, onde morara, com a mulher, cheio de
esperanças, os primeiros meses de estada. Via o cemitério entriste­
cido de ciprestes compactos, esconder-se por trás da Igreja da Boa­
Morte, de torres redondas como tubos, mudas, sem sino, que as lendas
do lugar davam como esconderijo de cobras ferozes e gigantescas .
Via as tropas , entre nuvens de poeira, carregadas, chegarem à cidade
pelo caminho sinuoso do matadouro, e os esbarrancados, onde pás­
saros pretos faziam ninhos, s e esboroarem numa terra vermelha, dia
a dia. Via os enterros subirem as ladeiras, calçadas de grandes pe­
dras desiguais, sob o funéreo dobrar espaçado dos sinos, que depois
foi proibido. porque impressionava os doentes mais graves. Proces­
sionais e pretos - fraques e sobrecasacas - lá iam uns, os da gente
da terra, com o padre à frente; curtos e rápidos eram os dos que
morriam no sanatório, pessoas estranhas à simpatia da cidade, mal
acompanhadas pelo pessoal subalterno do instituto ; com véus e va­
garosos eram outros, os de donzelas que andavam como uma fita
que se fosse desenrolando sobre o pó amarelo, na tarde azul, serena,
sem umidade.
Desesperava-se na ação paliativa dos morruatos e dos cálcios.
Queria voltar. Uma saudade doida dos seus perturbava-lhe o repoUiO,
comia-lhe o sono, revoltava-o. Piorava.
Foi uma libertação! No cemitério, flores sobre a cruz que ficava.
O trem partiu. Ficou em pé na plataforma do carro, olhando o ce­
mitério de muros derrocados . Toque, toque, o trem ganhava veloci­
dade. Casas passam, casas, jardins, hortas, postes e o cemitério no
alto. Gente, valas , homens, o pontilhão, homens a cavalo, menos
casas, a cadeia, toque, toque, some-se o cemitério lá atrás . Mulheres
acenam dos casebres (lágrimas borbulham ) , cachorros perseguem o
trem, latindo. Depois o campo, o campo, o riacho, a árvore, árvores,
o dia magnífico, sempre o campo.
O pai esperava-o na estação agitada. Os carregadores agrediram
as janelinh as . Sentiu como que uma felicidade ao pisar a cidade natal,
de inverno tão doce, que os homens atravessavam-no de roupa branca.
Esbarrava, tonto, nos transeuntes . Tomaram o táxi. O sotaque por­
tuguês perguntou :
- Para onde?
Foi o pai que informou. Ele nem podia falar. O cheiro açucarado
da gasolina valia por um perfume. Os bondes solancavam. Os jor­
naleiros berravam nos estribos .
No outro dia, passageira, a alegria dissipou-se. Começou o suplício.
Somente o pai e a mãe vinham ao quarto em que se prendia para

1 25
fugir às crianças. Não conversavam muito, evitando que se cansasse,
e como os afazeres os solicitavam, deixavam-no só.
Através da po rta cerrada ele ouvia o rumor da vida caseira, de
que não podia participar. Saía, apenas, para as refeições, momentos
rápidos de convívio, de lenço à boca, falando pouco. Depois, havia a
curiosidade dos olhares sobre o seu estado físico, piedosa curiosidade
a que não podia escapar e mais o amargurava. Via-se no espelho.
Realmente era para apavorar - esquálido, amarelo como cera, barba
desleixada, peito chupado.
Conversava comigo da janela :
- Como vamos de estudos?
- Vou indo.
Interessava-se :
- Deve-se aplicar bem à aritmética.
Eu não gostava. Ele insistia:
- Sem aritmética, meu mano, não se dá um passo na vida.
Brincava com os filhos também :
- Então, não gostam mais de mim?
- Não !
Ele sorria, fraco, chocado.

XXVII

Eu escapei à vigilância e entrei no quarto, pulando do varandim


para a janela.
Fernando zangou-se :
- Vai embora!
Teimei, avançando :
- Não, Fernando, não ! Só um pouquinho . . .
Pôs o dedo na boca :
- Psss ! . . . Fale baixo. Fique de longe.
Conversamos .
- Você se lembra, Fernando?
Ele esmagou o riso no lenço . Eu recordava a encrenca do cigarro
que me dera para brincar e que eu acendera.
- Agora vai embora.
Pus-me à vontade no canapé :
Mais um pouco, Fernando . . .

XX VIII

Papai chamou-me ao seu quarto :


--< Você tem estado no quarto de seu irmão, desobedecendo ordens
minhas, não querendo que ninguém entre lá.
Titubeei.
1 26
- Não negue, esteve . Vem cá : você está ficando um homenzinho.
Vamos falar sério . Fernando está muito doente, meu filho, muito, e
a sua doença pega, compreendeu? Você indo lá pode apanhá-la e
pass á-la para os outros - compreende? - para Catarina, Margarida,
para as crianças . . .
Pediu que eu n ão fosse mais lá. Fê-lo sem severidade, pedindo-me
por favor, como se falasse a um amigo .
- Estamos entendidos?
Afirmei com a cabeça. Ele s aiu para a fábrica, atrasado . Fiquei
no quarto, s entei-me na cama de ferro esmaltado, estreita, pensando.
As folhas da caramboleira tremiam. A cigarra estridulava no meio-dia
límpido, límpido .
Faltei à promessa . Voltei ao quarto de Fernando pelo mesmo ca­
minho, nada lhe contando do ocorrido . Papai soube, de novo me
chamou; foi breve, cravando-me o olhar sério e triste :
- Edgar, você faltou ao favor que lhe pedi . Não pedirei duas
vezes. Amanhã, antes e depois do colégio, ficará comigo na fábrica,
compreendeu?

XXIX

Dolorido, sereno, resignado, papai viu morrer Fernando .


A agonia foi prolongada. Andava-se no bico dos pés, cochicha­
va-se . . . Papai e mamãe não pregaram olho um minuto . As crian­
ças ficaram trancadas , com Catarina, no quarto dos fundos . Doutor
Vítor tirara o paletó, não se arredava da cabeceira do moribundo, aba­
tido, apelando para todos os expedientes . Mandaram da farmácia
um arsenal de medicamentos . Seu Bonifácio, muito atencioso, vinha
pessoalmente :
- Precisando; Seu Pedro, a qualquer hora, s ab e como é - toque
a campainha.
O ar impregnava-se de lisol .
Dolorido, s ereno, resignado, papai, pouco tempo depois, viu mor­
rer mamãe também, abraçada a ele, nos últimos dias da espanhola,
que em nossa cas a botou com todos na cama.
Deixou-nos , por sua vez, em um dia sombrio de agosto . Foi, como
j amais o víramos, desesperado, revolto. Gesticulava. Não queria
morrer. O ar faltava-lhe. Escancararam-se as j anelas . Nada - a
asfixia agravara-se . Ofegava, olhos saltando das órbitas , procurando­
me numa ânsia. Os travesseiros calçavam-lhe as costas . Agarrava-se
ao braço do Doutor Vítor. Não queria morrer. Procurava-me . Não
podia morrer ! A voz saía-lhe aos arrancos roucos . E os seus filhos? !
Como poderiam . . .
Verdade, eu, o único homem, tinha aí doze anos . Dorotéia mal

1 27
completara os dez. Então, a calada Margarida sacrificou por nós a
sua mocidade. Resoluta, tomou as rédeas da família.
Havia dívidas . A casa, além de grande demais para nós, era fértil
de dolorosas recordações. Daria bom aluguel - calculou.
Retirou alguns móveis e mobiliou a casinha alugada junto à fá­
brica. Do resto fez leilão.
O leiloeiro percorreu a casa elogiando - linda casa, senhorita -
avaliando os móveis, os utensílios, calculando as possibilidades.
- Estes aqui são bons . Móveis do Império. Jacarandá legítimo.
Obra de preço. Hei de frisar nos anúncios. Mas aqueles acolá não
valem grande coisa. É só beleza, obra fraca, estilo moderno . . .
Margarida cortou-lhe o comentário :
- Eu ficarei com eles, Senhor Gonçalves - e emendou : - Vou
montar uma casinha e necessito de certos trastes, certos objetos . . .
Aquela cômoda, por exemplo, eu levarei. É grande, cabe toda a
roupa . . .
Senhor Gonçalves foi gentil :
- Pois faça uma lista, senhorita, faça uma lista. Ou melhor,
separe logo tudo que quiser. A casinha . . .
- Já está por minha conta, desde hoje.
- Pois então simplifiquemos. Separe o que quiser. Amanhã man-
darei dois carregadores logo cedo. Eles lhe farão a mudança.
- Muito obrigada, Senhor Gonçalves . Fica magnífico assim.
- Não tem que agradecer, senhorita. O lucro é meu. Quanto
mais depressa se fizer o leilão, tanto melhor.
- É meu também, então . . .
Senhor Gonçalves riu, satisfeito, esplanou pelas paredes a mão
gorda, estendida :
- Preciso abrir uns lugares para colocar os encalhes do arma­
zém. Completar a casa, sabe? Por exemplo : a sala de visitas . É
uma bela sala, não há dúvida, mas a senhorita leva o piano. Pois
eu tenho um no armazém mesmo a calhar : - preto, de cauda, um
rico banco estofado . . . Tenho um gramofone superior também.
Artigo francês . E bronzes , quadros assinados, estatuetas, objetos de
arte, enfim. Percebe, não é? A sala ficará uma jóia. Verá!
Andava. Nós acompanhando.
- Aqui para a sala de jantar eu trarei uma marquesa. Põe-se
ali no canto, embaixo um bom tapete . . . Persa, talvez . . . É lote
pago ali na batata, vai ver, senhorita! Eu conheço o meu ofício . . .
- ria, vaidoso. - Olhe, ali no corredor sapecarei um oratório colo­
nial e umas lindas arcas espanholas . Ah! Ah ! Ah ! Eu conheço o
meu ofício ! . . .
Senhor Gonçalves foi relativamente sério nas contas apresentadas.
Margarida, com o recebido, saldou todos os compromissos. A velha
casa foi alugada a um coronel do Exército e a renda dava para pagar
1 28
a nova casa e sobrava. Margarida, previdente, acumulava uma parte
para atender a impostos e reformas .
- Por este lado estamos garantidos - dizia. - Agora, a fábrica.
Ela tem de dar lucro de qualquer maneira!
E não s e poupou. Geria-a, ficava até alta madrugada fazendo
contas no papel, escrevendo cartas, revendo os arquivos de notas que
papai deixara.
Seu Euzébio foi-lhe dedicado, continuando no mesmo posto, com
o mesmo amor ao trabalho que papai tanto lhe admirava e recom­
pensara com interesse nos lucros . Tinham conversas intermináveis
a propósito dos negócios , ela sempre de lápis em punho, tomando
apontamento.
- Acha que vai, Seu Euzébio?
- Ora, Dona Margarida, que pergunta! . . .
Margarida não ficava nisso. Dirigia ainda a casinha, no que Ca­
tarina muito auxiliava (Mariana, coitada, estava caduca ) , lecionava
a domicílio, batalhava comigo, todas as noites, nas minhas lições para
eu, que entrara para o ginásio, não perder ano nenhum.
Os filhos de Fernando - uns diabretes ! - chamavam-na de vovó.
Ela sorria.

CIRCO DE COELHINHOS

ISABEL, Beatriz dos olhos cor de mel, e Loló e Silvino, na farândula


infantil dos meus amores, dançaram com Dodô e dois coelhos .
Sim, dois coelhos. Chegaram numa cesta de tampa em certo do­
mingo momo de novembro, quando na casa de tia Bizuca, onde eu
morava e que era no Andaraí, apontavam nos ramos do pomar os
primeiros sapotis inchados .
- São de raça - disse Seu Manuel chacareiro, valorizando o
presente que me trazia. - Angorás legítimos - mostrava, suspenden­
do-os pelas orelhas, que ao meu protesto por tamanha barbaridade f�i
e�plicado ser o processo usu al e correto de se pegar coelhos .
Angorás, ou não, jamais houve coelhos tão queridos, lindos que
eu os achava, brancos, peludos, olhos vermelhos, orelhas róseas -
dois amores !
Minha vida até aí era um suceder de brinquedos e mais brinquedos,
pique, cabra-cega, traquinadas na chácara que subia até o morro, ba­
rulhentas correrias nas salas vazias do porão habitável, nem eu podia
acreditar que outra fosse a finalidade das crianças . Foram eles, aque­
les alvíssimos pompons, que me fizeram ver, além do mundo despreo­
cupado dos folguedos, um outro mundo maior, que o colégio des-

1 29
vendava aos outros meninos - o das obrigações . É que a escola
para mim fora suave. Longas as férias, poucas as aulas no pavilhão
aberto dos menores, que assistia quando bem queria. Nas mãos
inteligentes de Dona Judite, maternal, paciente, os métodos modernos
dulcificavam asperezas. E havia, sobretudo, a ordem expressa de titia,
que "não puxassem" por mim. Foram el'i s, repita-se, que me trou­
xeram a noção das primeiras obrigações, 'b;. as, longe de me rebelar
contra elas, com que amor e alegria a elas me entreguei ! "Está na
hora de botar água para os coelhos" - e cataclisma nenhum teria
a força de me impedir. Penteava-os, catava-os, levava-os a passear
no jardim, roseiras, só roseiras, que no reino das flores era a paixão
de titia; recusava ao Taninho passeios dominicais no automóvel de
seu pai, uma Benz, ficava com eles, móveis fontes dos meus meti­
culosos cuidados. Um escravo, um escravo, confesso, fiquei das suas
necessidades, pequeninos tiranos inocentes.
Não só de tiranos, também de sábios aventurarei chamá-los aqui
(adivinhe-se lá sob tanta brancura quantos segredos traziam! ) , tanto
assim que não deixaram parar no mundo das obrigações a série de
revelações que a mim, naturalmente, se propuseram, e trouxeram-me
o amor.
Amei-os com a ternura dum namorado. Enfartava-os de carícias.
Aos meus sôfregos abraços desabava a chuva de protestos de titia :
"Você, um dia acaba matando estes bichos de tanto os espremer."
Cobria-os de beijos, deixava-me nos cantos solitários da casa, igno­
rante das horas, em intermináveis conversas com eles, respondendo­
lhes coisas como se mas perguntassem. Perdi a realidade, deixei de
distingui-los, fundia-oSíiü'm único coelho, um coelho maior que todos
os coelhos jamais vistos, quase do meu tamanho, vivendo como gente,
falando e rindo como gente, vestindo-se à marinheira como eu.
Veio com o amor o séquito das suas dores . Que de torturadas
horas da minha meninice, vocês, adorados bicharocos, foram a causa!
Amava-os demais para não sofrer com o meu amor. O ciúme fez
a sua estréia no meu coração e, fero, me consumia. Também não era
para menos : tinha um rival, e de que força, anjos do céu! - um rival
terrível, Silvino, molequinho dois anos mais velho do que eu, que
tia Bizuca tomara para criar, com três dias apenas, por morte da mãe,
preta que, fielmente lhe servindo, gastara sem usura a mocidade.
Se na casa eu tinha o prestígio do sangue, ele mantinha o do tempo,
de que se servia com sucesso, principalmente entre a criadagem. "Isso
se deu antes do senhor ter vindo pra cá", diziam-me quando se falava
de acontecimentos passados. "O Silvino é que sabe tudo direitinho."
Realmente sabia e, olhando-me de lado, um sorriso zombeteiro que
mal se percebia, contava, tintim por tintim, detalhado, supérfluo,
pois não ignorava que assim fazendo me humilhava. Era o antigo,
era, não se podia negar - aproveitava-se disso. Defendia-se do in­
truso, afinal, o intruso que era eu, finório e humaníssimo Silvino.
1 30
Terrível rival, astuto como possam sê-lo os mais, rival das opor­
tunidades esquivas, como me lembro dele, agora, os olhos bisbilhotei­
ros, a cara redonda de mico, a carapinha muito rente, a esperteza
dos trejeitos gaiatos, a dentadura soberba de fortaleza e alvura.
Doeu-lhe o presente do chacareiro. Por que não ganhara também?
Que fizera eu para merecê-lo? Ele, sim, teria direito. Ajudava o
Manuel na chácara, carregando estrume no carrinho de mão, var­
rendo a estufa das begônias, levando-lhe a comida, regando-lhe as
plantas, auxiliando-o na podação sistemática dos ficus benjamim,
tapume verde e compacto que defendia o terreno dos olhos devassa­
dores da vizinhança. Era justo. E fora eu que recebera o presente,
eu, - grande patite o Manuel, miserável chaleira, quando tinha raiva
de português não era à toa! Só porque eu era o sobrinho, só. Ah!
não ganhara? Que importa? ! Saberia disputar a mim o afeto dos
bichos . Saberia e soube. Se, por exemplo, eu lhes dava alface, ele
a substituía logo pela que corria a buscar, pois que somente ele co­
nhecia, na horta que não lhe guardava segredos, o canteiro em que
vicejavam as folhas mais frescas, os grelos mais tenros.
Na luta aberta, tomava o meu partido - eram meus, não eram?
Pois então, tome, bacurau beiçola! E trazia-os ao colo, dia e noite,
não consentindo que ele lhes tocasse com um dedo. "Visse com os
olhos ! " Afagava-os na sua frente para lhe fazer pirraça : "Meus an­
jinhos ." Que ele sofria, sofria, mas não se dava por achado e sor­
ria-me - dia virá, pensava. A paciência foi premiada e o dia veio,
negro dia em que tive de ir para o colégio, um colégio diferente, sério,
rigoroso, com horários a que não podia fugir, pois, como dizia tia
Bizuca, já estava um marmanjão, era preciso entrar feio e forte no
estudo para ser gente na vida.
Como padeci, Deus o sabe. Intermináveis aulas de Seu Silva, que
ensinava tudo, menos ginástica, explicando sempre, aborrecidamente,
numa lição o que iria tomar na outra. Gramática, geografia, que me
importava saber verbos e substantivos, se o mundo era redondo ou
quadrado, que me importava, se o meu mundo era os meus coelhos!
Seu Silva falava alto, eu, porém, não o ouvia; meu pensamento mer­
gulhava-se na dúvida cruel : que estará fazendo o Silvino com os
meus coelhos? Devorava com os olhos impacientes o implacável re­
lógio do corredor, infinito corredor sonoro, com dez janelas para o
recreio, pista de astúcia onde os bedéis se exercitavam, surgindo ines­
peradamente na porta das classes, surpreendendo os desprevenidos
alunos faltosos . Que estará fazendo? E os ponteiros não andavam.
Perdia-me no labirinto das conj ecturas : estará carinhando-os , coçan­
do-os, levando-os para pastar no quintal? . . . Das problemáticas su­
posições, Seu Silva me despertava :
- De que é que estou tratando, Seu Francisco?
Não sabia. Ganhava castigos.
Em casa, mal chegando, sacola para um lado, um beijo apress&do
131
em titia, e corria a vê-los. A brancura dos pêlos não guardava a
marca das pretas mãos odiadas . Os olhos vermelhos nada denuncia­
vam. Batia-lhes, Ciumento, furioso. Amedrontavam-se, queriam
fugir, orelhas caídas, eu os abraçava, quase chorando, com loucura.
No serão da sala de jantar, titia tricotando, eu preso aos deveres
passados para fazer em casa, era ele, o bandido, que puxava o assunto
para me ferir:
- Eu hoje - sabe, Seu Francisco? - fui com os seus coelhos
até à padaria.
Eu me mordia :
- E? . . .
Silvino via que a chaga estava aberta, sangrando, e remexia-a mais,
deliciando-se com a minha agonia :
- Tá bom, vou até l'embaixo ver se eles estão direitinho - e
saía devagar, empurrando as mãos nos bolsos, um esgar de vingança
satisfeita no canto da boca.
Meu desespero chegava ao auge. Um pouco mais e estourava. A
caneta na mão nervosa fazia uma letra mil vezes pior do que verda­
deiramente era; pulava palavras na cópia do "Coração", trinta e nove
menos quinze davam doze no problema das laranjas .

Maio plácido, ameno, maio das sinetas tocando para a bênção,


pelo tombar das tardes, na capela do Asilo, maio trouxe, na casa de
titia, além da muda dos canários, algumas tangerinas temporãs e um
infausto acontecimento - a morte de Silvino, atropelado pelo cami­
nhão do gelo, quando fora à praça botar uma carta no Correio.
Nao morreu logo . Veio berrando lancinantemente nos braços de
transeuntes solícitos, o caixeiro da venda à frente, abrindo caminho,
gesticulando, explicando o acidente.
À noite delirou e o delírio fê-lo autor confess á duma infinidade
de malandragens miúdas, tijolos de goiabada furtados da despensa,
carretéis de linha que voavam da cesta de costura, colherinhas de
prata enterradas no terreiro . Mais ainda, fez aclarar o grande mis­
tério das rosas . E que, durante meses, diariamente aparecia juncado
de pétalas o chão do roseiral, sem que nenhum vento noturno tivesse
soprado, destruidor. Como o roseira! era fechado por altos muros,
a repetição cotidiana do fato preocupava bastante tia Bizuca, que já
aceitava a suposição de Dona Marocas Silveira, espírita, que fosse
obra de algum espírito gaiato e mistificador. E era ele, Silvino, o
vândalo das flores, que, possuído de não sei que estranha volúpia,
ia, na calada das madrugadas, pois acordava com os galos, oculta­
mente desfolhá-las, sem que ninguém o apanhasse.
Titia chegou a rir com a inesperada descoberta :
- Ah, gibi sonso, então era você, hem, seu pândego? . . . Deixe
ficar bom que vai ver só . . . - ameaçou-o.
1 32
Ela ignorava a gravidade do acidente. Soube-a no outro dia, pela
manhã, quando o raio-X confirmou o diagnóstico do seco Doutor
Gouveia, que abanava a cabeça :
- Nada, minha senhora, nada é possível fazer, além do que está
feito. Só um milagre - fratura da bacia, interessando seriamente a
espinha . . . - só um milagre! - repetia com um nítido acento ma­
terialista.
- Mas, doutor . . .
Ele atalhou, piedoso :
- Vou lhe dar morfina para que sofra menos .
Titia, então, dedicou-se-lhe toda. Incansável, extremosa, dum lado
para o outro, vê isto, vê aquilo, o dia inteiro, velou-o quatro noites,
sem pregar olho.
Na quinta noite, seriam onze horas, a lâmpada envolta com um
papel pardo, porque ele não suportava a luz, Silvino despertou da
pesada letargia que lhe provocara a última injeção.
- Madrin - sussurrou.
- Que é? Estou aqui - e titia, rápida, saiu da sombra, donde,
encolhida num banquinho, ficara, insone, vigiando-o.
- Sei. Me dá a sua mão.
Deu-lhe e ele levou-a, dificilmente, aos lábios . Lágrimas escor­
riam-lhe dos olhos que foram tão redondos e espertos e se mostra­
vam naquele instante tão esbugalhados e baços.
- Bênção.
Titia adivinhou qualquer coisa :
- Que tolice, meu filho, dorme.
Filho? Silvino fez um esforço, procurou a boca que se confessava
maternal e repetiu :
- Bênção. Estou cansado de sofrer, madrinha.
Apertou-lhe a mão com mais força, apertou-lhe, largou-a brusca­
mente. A cabeça tombara para o lado da parede.
- Francisco ! Alexandrina! Meu Deus ! Uma vela!
Todos correram. Titia já se encontrava ajoelhada. Caímos de
joelhos também, rezando. A vela começou a arder, branca, muito
branca, trêmula e brilhante, na mão crioula do pequenino morto.
Titia soluçava alto.

Tia Bizuca, olheiras roxas, marcadas, mais magra, mais acabada,


no largo vestido preto, nada poupou para o enterro. "Pobre Silvino" !
- chorava pelos cantos, entre os abraços consolativos das vizinhas .
A casa se encheu, que o traquinas, muito alegre, muito serviçal, era
estimado nas redondezas.
Acompanhei-o até ao lnhaúma, no primeiro táxi após o coche,
levando no rosto o prazer da novidade, através das ruas em que os
homens se descobriam. Lá o deixei para sempre, na tarde tépida,
opalina, sorridente, lá o deixei coberto com rosas, com todas as rosas
133
que o roseira! precioso de titia ofereceu naquele dia, rosas brancas
irmãs das que ele, por tanto tempo, tão prodigamente despetalara.
Na casa deserta das suas gargalhadas , rascantes, comprimidas -
hi, hi, hi - me s enti único no amor dos meus coelhos. Pouco,
porém, durou a alegria da exclusividade. A falta de concorrência me
tirou, talvez, o apaixonado estímulo, talvez o futebol a que, então,
me entreguei com ardor, não posso dizer, certo foram ficando aban­
donados os alvos obj etos da minha primeira paixão. Aliás , já não
se mostravam possuidores da famosa brancura dos passados dias de
rivalidade . Sujos, maltratados, vagavam esquecidos pelo quintal, pela
horta, onde quisessem, livres, se emporcalhando na lama, no pó, no
depósito de carvão, pegado ao galinheiro .
Deixei de vê-los, nem mais ia ao quintal . . O Manuel, quando me
encontrava na cozinha, não mudava a chap a :
- Seu Francisco está ficando um moço . Não quer saber mais
de coelhos - e piscava o olho com sobrancelhas carregadas.
- É, é - respondia confuso e, me esquivando pelo corredor, pas­
sei a fugir dele às léguas .

Morreram, um dia, cegos ; os olhos como contas vistosas perderam


a cor, se cobriram de um véu opaco . Morreram, um dia, cheios de
calombos na barriga, que amedrontavam titia : "Será bubônica, Virgem
Santíssima? ! " Não, era velhice - explicou o Manuel que, ao que
parece, tudo sabia a respeito de semelhantes animais . Morreram. Titia,
penalizada, esperou que também me entristecesse. Como, porém, não
sentisse tristeza alguma, procurei esconder-lhe este indício de perigosa
insensibilidade :
- Foi melhor assim, minha tia. Coitados, estavam sofrendo tanto.
Titia se afastou :
- Tem razão, meu filho . Foi melhor assim .
No íntimo, o que eu sentia era uma completa libertação . A bola
era minha idéia fixa. Jogava de beque, jogava mal, jogava como
criança, mas jogava.

NAMORADA

SE FOI DE SAUDADE, nunca se soube, nunca, certo é que Antônio per­


deu o pai, homem duro, calado e afeito às violências da vida, pouco
menos de dois meses após ter visto morrer sua mãe, de morte dolorosa
e repentina, quando, ainda moça e extremamente bela, acabava de
voltar duma temporada de verão numa estação de águas.
Quando se tem quinze anos, e ele ainda nem os tinha, golpes des­
ses, se são rudes, pouco duram. Pensou em morrer também, planejou

1 34
mil maneiras de suicídio, absorvia-se pela crônica policial dos jor­
nais, onde apareciam, diariamente, os mais absurdos meios, como se
elas fossem um figurino indispensável para a sua escolha perfeita.
Fugia para lugares solitários, ruas des ertas, ladeiras desconhecidas,
onde, no meio do mato, ralo, guaximba, erva-de-são-caetano, tiririca,
s aíam pedaços de alicerces, o que restava de antigas casas derrocadas
e que o enchia dum vago medo misterioso, temendo ver brotar dali
as almas dos remotos moradores , homens sinistros, rígidos e barbudos ,
mulheres que foram mártires escaveiradas e tenebrosas nos seus ves­
tidos pretos, escravos cobertos de sangue, sangue vivo, vermelho e
servil, que escorrera nos troncos aos chicotes do feitor. Perdia-se nas
sombras vazias do Jardim Zoológico, bambuais que gemiam quando o
vento soprava, lagos quase secos em que folhas mortas boiavam.
Plantava-se junto ao cercado sujo dos jacarés , ficava largo tempo
vendo-os amontoados , numa imobilidade de estátua, asquerosos , dor­
mitando aos raios do sol escaldante, e, arrastado por caprichosas
associações da fantasia, sonhava mortes aventureiras nos sertões inós­
pitos da África, perseguido por tribos canibais , triturado nas mandí­
bulas dum crocodilo, num pantanal de águas venenosas .
"Isto passa, é dar tempo ao tempo", achava tia Polu, que era sua
madrinha e para casa de quem foi morar. Miúda, insignificante, an­
dar leve e saltitante de passarinho, com tais e tantos especiais desvelos
o tratou que, mais depressa do que se poderia esperar, abandonou
os trágicos projetos e cuidou só de viver, que a vida lhe pareceu
linda. Tinha quinze anos aí . Tia Polu já passava dos quarenta, sofria
da vista, levava uma vida sedentária e era muito devota de Nossa
Senhora do Carmo, que tinha rica imagem armada no melhor lugar
do oratório, todo de vidro, no corredor, extenso e claro corredor
·

para onde se abriam todos os quartos .


Sendo viúva, sem filhos, e possuindo qualquer coisa de seu, que
lhe permitia viver em abundância na casa própria da Rua Barão do
Bom Retiro ( que ela chamava de chácara, pois o terreno era fundo
e subia, cultivado, até o morro, com um coqueiro no cimo ) , fazia
absoluta questão de trajá-lo com apuro, guardando assim velhas con­
vicções do tempo do Comendador Ribeiro, s eu pai, "que o pau se
conhece pela casca" .
Antônio era esbelto e pálido, e como mantivesse um começo de
buço, que não lhe ficava de todo mal, ao beij á-la para s air - o
que fazia invariavelmente depois do j antar para voltas malandras , com
o Osvaldo, pelos bilhares da zona - tia Polu obrigava-o a rodar na
sua frente como um manequim giratório, para receber a sua bênção
espécie de crítica, sempre a mesma, maternal e boa - "estás um
biju".
Talvez fosse bem mais p ara Dulce, que não era nem tia, nem
madrinha, a magra e loura Dulce, que lhe pusera olhos ternos da
janela do 27.

1 35
Era um chalé baixo, o 27, com enfeites de madeira nos beirais e
bolas de vidro azul, caprichosamente penduradas pela varanda, uma
varanda também de madeira, quase ao rés-do-chão, onde armavam
redes preguiçosas, para gozar a viração do morro, nos domingos em
que o calor se mostrava mais forte e as cigarras, sem parar, chiavam
na mangueira de galhos protetores que assoberbava a casa modesta,
o galinheiro escondido, o jardim de ruazinhas úmidas e limosas, o re­
puxo, seco, de cimento e de conchinhas.
Embora da mesma idade, Dulce sabia parecer mais velha do que
ele, guardando um ar recatado de senhora, quase um ar de mulher
vivida que declina.
De noite, em vez de estudar, Antônio escrevia-lhe extensas cartas,
atochadas de metáforas idílicas que entregava com mil cuidados e ru­
bores, logo pela manhã, quando ia para a aula particular do Doutor
Macedo, que, de bigode pintado e pincenê de aros pretos, preparava-o
para o vestibular da Faculdade de Direito, "muito difícil, pequeno,
muito difícil, que é que você pensa? ! "
Erro dos erros d o zeloso professor, Antônio não pensava em nada.
Para que pensar? Tia Polu é que, pensando por ele, queria-o advo­
gado. Um sonho que formara, um sonho prático, sobretudo. Have­
ria de tratar dos seus papéis - "uma atrapalhada, meu filho, que
nem sei a quantas anda!" lamentava - e cuidar dos seus bens, que
eram dele afinal, dizia. Dizia isto e ainda mais, a bondosa senhora :
que quando chegasse ao terceiro ano, venderia a chácara e compra­
ria um palacete em Botafogo ( que tivesse escadaria de mármore era
o detalhe ) para ele poder entrar na sociedade, como convinha a um
moço formado. Antônio retrucara dada ocasião, muito honesto, na
certeza dos seus conhecimentos vestibulares :
- Mas titia, e se eu nunca chegar ao terceiro ano? Se eu mesmo
não passar no vestibular?
Tia Polu olhou-o de alto a baixo por cima dos óculos, e, como os
seus vidros tivessem a penetração dum raio-X, respondeu-lhe com a
segurança de quem, vendo por dentro, conhecia o peso da sua sólida
ciência :
- Para mim você já está formado.
Cumpre dizer que Dulce não respondia aos botes literários da in­
flamada pena, e Antônio, ferido na vaidade, várias vezes reclamou-lhe
a indiferença.
- Por que você não me escreve também?
Balançava os ombros débeis : não sei. Mas quando insistia, zan­
gava-se docemente :
- Não, já disse. Para que você há de ser teimoso?
Dava, em troca, retratos e cromos, que ele colava prodigamente nos
compêndios de filosofia, os únicos que levava para a aula, para abri­
los no bonde, com juvenil e desculpável pretensão ; segredava-lhe pro­
messas, cochichava esperanças : - "Um dia, hem? ! " Sim, um dia te-
1 36
riam uma linda casa, pequenina, igual às que ela admirava no cinema,
fachada de pedra rústica, com muitos abajures dentro e velinhas ace­
sas na hora do jantar de serviço à francesa. As criadas andariam de
preto, com toucas e aventais brancos, trazendo cartas em bandejas, e,
quando ele voltasse do escritório, a pasta dos negócios debaixo do
braço, haveria de esperá-lo com um penhoar creme, de arminhos
na gola e cauda se arrastando pelos tapetes da entradinha. Antônio
condenava : nada de penhoar! Um vestido esporte, bleise, saia curta,
sapatos de tênis. Ela acedia, mas achava que, ao menos pela manhã,
o penhoar tomava-se indispensável :
- É muito decente, Antonico, que nariz torcido é este?
- Está bem . . . Assim para a manhã, vá lá . . .
Enchia-se de ciúmes infundados que o lisonjeavam imenso, empres­
tando-lhe um ar sumamente agradável de D. Juan, ele que não co­
nhecia outra pequena que não ela. Contava, deixando os olhos ras­
gados fora da vida, "que se tivesse um filhinho, haveria de se chamar
Fernando Luís".
- Fernando Luís?
- Sim. Não acha bonito, Antonico?
Achava, mas gostava mais de Sérgio.
- Sérgio? - punha o dedo na boca, pensativa. - Sérgio? . . . É.
Não é feio. Sérgio . . .
E falava, então, de amigas que se casaram muito moças e - pobres
coitadas! - eram muitíssimo infelizes . Uma até apanhava, "o marido
era um bárbaro, não prestava para nada e ela tão boazinha, tão engra­
çadinha, só você vendo" . Outra, chamava-se Heloísa e morava no
2 1 , tinha morrido de parto na véspera do Ano Bom.
- Parto? !
- Parto, sim, ou você está pensando que eu sou alguma bocosó?
Bocosó? ! Santo Deus ! Antônio estava a mil léguas deste feio pen­
samento. Pensava nos seus braços finos e naturalmente vagarosos nos
gestos . Pensava nas suas pernas grossas, em desacordo notável e
provocante com o corpo débil, infantil, com uma cintura de borboleta.
Pensava nos seus cabelos crespos, que ela alisava com óleo de coco :
- "É moda, sabe? A Luizinha usa assim." Luizinha, a filha do
Doutor Neves, morava na esquina e era a chique da rua, a discutida, a
invejada, o modelo de elegância do quarteirão, a pequena que mais
aparecia no "Beliscando", seção feita pelo prático da Farmácia Mi­
nerva (onde o Doutor dava consultas grátis à pobreza) no jomalzinho
do bairro.
A quinta-feira amanhecera úmida e nevoenta. Veio uma ameaça
de sol lá :pelas nove horas, mas o chuvisco venceu-o e, peneirante e
frio, varou o dia e entrou pela noite.
Foi com um tempo assim, desagradável, mau, que se encontrando
na matinê do Excelsior, ele que concebera o amor sentimento tão
1 37
fácil e natural, que bastava duas criaturas se quererem para se com­
preenderem perfeitamente recebeu de Dulce a primeira revelação
desconcertante.
É o caso que, quando o leão da Metro bocejou para a platéia, ela,
compondo o vestido de georgete, de modo que não se amarrotasse,
encostou-se ao seu ombro.
- Você um dia vai me esquecer, não vai?
- Que bobagem, benzinho, que bobagem. Onde é que você foi
buscar essa idéia?
- Cá eu sei.
Olhou-a bem nos olhos, olhos que não eram verdes, nem azuis,
deu-lhe palmadinhas na mão abandonada :
- Não fale assim . . . Eu gosto tanto de você! . . .
- Tanto ou muito? - perguntou arrastando as sílabas .
- Muito !
Colou-se a ele, gemeu em voz de criança :
- Meu amor.
Teve vontade de repetir como um eco :
- Meu amor.
Mas a ele, que nas suas cartas fazia aparecer estas duas palavras,
de quatro em quatro linhas, faltou-lhe coragem para dizê-las em viva
voz. Sentiu-se encabulado . Fatalmente perderiam com o seu timbre
a força de sinceridade, tal como nos teatros a gente ouve o galã ex­
clamar : Eu te amo! - mas percebe que aquilo não foi dito com o
tom da verdade, foi recitado porque estava na peça e nada mais . Posi­
tivamente ele não representava nenhuma comédia. Sentia-se sincero,
justificava-se interiormente : Que tolice! E as palavras, no entanto,
bem as sentia penduradas dos lábios, loucas para saltar. Que tolice!
- insistiu consigo mesmo . Ela me compreenderá. Ela é mulher . . .
( eram os romances que o fortaleciam ) . E os meus olhos não mentem.
Os olhos, as atitudes . . . Ficou mudo.
Dulce arrancou-se dele e cravou-lhe o olhar, séria, dum sério feroz
e elevado. Esteve para lhe dizer algumas palavras duras, certamente.
O rosto afogueara-se e a boca tremia-lhe. Não disse. Veio-lhe uma
ternura, como que uma fraqueza que a fosse tomando, tomando lenta­
mente, qual um narcótico . A face perdeu as feições enérgicas . Amo­
leceu. Esboçou um sorriso triste, depois colou-se novamente ao corpo
do namorado, humilde, pequenina, e suspirou :
- Ah ! se eu fosse rica! . . .
- Que é isto?! - saltou ele da cadeira. - Você não me com-
preende? !
Fez um gesto de infinita superioridade :
- Compreendo perfeitamente. Não sou tão ignorante assim! Mas
talvez fosse melhor que não compreendesse.
Atirou-se contra ela :
- Mas você ! . . .
1 38
Dulce levantou-se :
- Vamos!
Também estavam no fim : na tela o cínico de casaca apanhava do
mocinho. A gurizada urrava.

Na rua de inverno, escura, os bondes passavam iluminados , salpi-


cando lama. As tabuletas do armazém combatiam a carestia.
Antônio quis voltar ao assunto :
- Dulce . . .
Teve um movimento de impaciência :
- Não quero saber de nada.
- Mas . . . - tomou-lhe o braço .
Agitou-se toda sob o guarda-chuva marrom :
- Me deixe!
- Mas , Dulcinha . . .
Virou-se bruscamente, os olhos fuzilando :
- O melhor é nós acabarmos logo com isso tudo !
Não acabaram. Antônio comprou-lhe uma santinha, uma plaquinha
de ouro com o nome dela, um vidro de perfume, perfume extraor­
dinário, escarlate quase, dentro dum frasco na forma de um coração.
Deu-lhe também um álbum para poesias , capa castanha, frisos dou­
rados, acabando, perdulariamente, com o dinheiro da mesada.
Ela copiou mais de cem sonetos com uma letra visivelmente flo­
reada, os títulos em tinta roxa, e deixou a primeira em branco :
- Esta é para você escrever um também, mas feito por você - está
ouvindo? - senão eu devolvo o presente.
- Mas eu não sei fazer, Dulce, eu não sou poeta! . . .
- Que não sabe o quê ! Deixe de fita. Você é tão inteligente.
Suou três noites a fio, noites de frio e chuva, frio que amedrontava
os ninhos e o reumatismo de tia Polu, chuva que encharcava os can­
teiros das dálias despontantes . Teco, teco, monotonizava a goteira na
folha do tinhorão, teco, teco, as rimas acudiram afinal como pingos de
inspiração, que não chegou a ser chuva. Se não foi torrente, sempre
deu para um soneto : "Pensando em ti . . . "

Dulce achou-o muito bonito . (Não disse que você faria? ) Aquela
imagem da s audade, então, era uma beleza ! Sabia-o de cor.

Dona Zulmira, sua mãe, baixa e gorda, consentia mole e protetora


nas conversas do portão . A vizinha da esquerda, Dona Chiquinha
Pacheco { protestante) , achando um escândalo, comentava-as com fero­
cidade. Ferocidade perdida. Boas aquelas horas de assuntos miúdos :
intrigas da Rosinha, mentiras do Virosca (filho de Dona Chiquinha ) ,
esperanças , esperanças . . .
Raramente eram interrompidas pelo pai, homem grisalho e acabado,
que aparecia de pij ama e chinelos de corda, gastando pessoal e apro­
priada mímica, tratando Antônio por doutor.

139
- Desculpe os trajes, doutor, desculpe, mas é que sei que o doutor
não é de cerimônias .
O bom homem, pelo menos, não gostava disso . Nunca fora de
salamaleques e etiquetas, acreditasse. Tinha até raiva, compreende? -
fechava os punhos : raiva! Com ele, e irradiava um sorriso, era ali
na simplicidade! Era franco : "Quem não gostasse . . . " E, mesureiro,
convidava para entrar : "Casa de pobre . . . " Antônio recusava, verme­
lhíssimo. Seu Rodrigues, então, ficava no portão, cruzava as pernas
com jovialidade e vinha num nunca mais se acabar de casos do seu
tempo de rapaz (tocara violão ) . Falava de selos, era entendido, cole­
cionava-os há muitos anos.
- Igual ao meu álbum de selos do Brasil, só do Brasil, veja bem!
não é pra contar prosa, mas não vira outro. Vale um dinheirão! . . .
O Antunes . . . Não sei se o doutor conhece o Antunes da Casa Fila­
télica? Não? Pois o Antunes não se farta de me dizer : - Quando
você quiser se desfazer, Rodrigues, já sabe!
Com ele não havia silêncio que durasse :
- Ah, meu tempo ! . . . - suspirava para enchê-lo. E relembrava
logo os carnavais passados. - Ah, o último que ele brincara sol­
teiro! . . . Nem era bom falar! . . . Fora um pagode! - gargalhava e
repetia : Um pagode! Nesse tempo os préstitos passavam pela Rua do
Ouvidor (a Avenida ainda não fora aberta pelo grande Passos, nem
se sonhava mesmo - informava ) e eram apertões, apertões - o
doutor calcula, a rua estreita como é . . . - as senhoras gritavam,
davam até ataques, sufocações, e a rapaziada nada, tome limão-de­
cheiro ! Tome bisnaga ! Um pagode!
Antônio arriscava :
- O carnaval era diferente.
- Diferente? ! Outra coisa, doutor! Era o entrudo . O doutor nem
faz uma idéia. Olha, vinham :para a rua bacias, jarros, tinas . . .
Ocorriam-lhe depois as encrencas do escritório, as piadas do "D.
Quixote" - eram do Bastos Tigre, não precisava dizer mais nada! -
e as doenças da filha que lhe trouxeram cabelos brancos, o doutor
nem imagina! . . .
- Não é mesmo, filhota?
Acariciava-lhe o queixo, pequeno e saliente, com a mão cabeluda
e grossa, a unha do dedo mindinho propositadamente comprida pelas
necessidades do seu ofício. Ela reclinava a cabeça no ombro dele e
respondia que sim.
Depois de São Pedro, quando, muito habilidoso, fez e soltou um
balão gigante de mais de trinta gomos, com a falência da fábrica de
calçados de que era guarda-livros, Seu Rodrigues achou-se sem em­
prego e até, murmuravam, meio comprometido.
Ficou visivelmente abatido . Emagreceu, a barba crescia-lhe deslei­
xadamente, fugia de encontrar Antônio, não tinha mais hora certa
de chegar em casa.
1 40
Um dia levou a coleção de selos para o Antunes, vendeu os poucos
móveis que possuía, um piano entre eles, "o piano de Dulce", em
que ela tocava valsas lentas no tombar das tardes cálidas, e foi morar,
por favor, em casa de um irmão, funcionário dos Correios, nos confins
do Riachuelo.
Dona Zulmira tinha um traço característico que a marcava : a con­
formação. Todo e qualquer desastre que acontecesse parecia-lhe pouco.
Balançou os ombros (os seios gastos se sacudiam) :
- Podia ser pior.
Inflexionava esperanças na voz de dentes postiços :
- Um dia se conserta a viola. Se não consertar, paciência . . .
Muito religiosa, não ia à missa porque não tinha tempo. Ia ao
mês de Maria, às vezes, nas noites melhores - maio é tão frio e o
seu reumatismo não dormia - com um vestido de voai estampado,
um xale preto agasalhando-lhe a cabeça e o pescoço, pelo braço da
filha que ouvia piadas dos rapazes ao atravessar o jardim.
No dia da mudança - o azul do céu abismava - foi se despedir de
Dona Polu, se bem que nunca tivessem trocado visitas, simples ami­
zades de cumprimentos.
Transparecia-lhe das palavras um dado tom de sinceridade que
Antônio não lhe conhecera até aí :
- Vinte anos perdidos, Dona Polu, vinte anos perdidos . . .
Acentuou, assim por alto, alguns planos do marido :
- Tinha umas escritas avulsas, pensava em criar galinhas para
vender, vamos ver se dá certo!
Ofereceu muito a casa :
- Não é minha, Seu Antonico, mas é como se fosse. Apareça.
Olhe que Dulcinha gosta muito do senhor! . . .
Tia Polu passou um olhar no sobrinho, sorriu :
- Há de aparecer, o Antonico não é ingrato.
Dona Zulmira retrucou qualquer coisa, mas ele Ja não a ouvia.
Chegara-se para Dulce, que se mostrava sucumbida, fingindo apreciar
o espelho veneziano da sala, raramente aberta, onde nunca entrara.
Requebrou-se toda :
- Você se lembra?
- Como poderia esquecer?
Ela mostrava-lhe, da janela avarandada em que se refugiaram, o
capinzal, ponto dos seus primeiros encontros. Não diziam palavra.
Recapitulavam o passado : lá estava ele, o capinzal dos seus amores!
Ali conversaram pelas primeiras vezes, ele confuso, mastigando per­
guntas, misturando interrogações perfeitamente idiotas, se contradizendo
a cada instante, pueril e sem graça, ela mais c alma, mais refletida,
procurando manter as entrevistas num certo pé de naturalidade, que
dele não poderia vir:
- Tem estudado muito?
141
Confessava que não, e ela motejava :
- Que malandro! Também . . . - e piscava um olho, brejeira -
com tanto cinema, tantos divertimentos, tantas pequenas . . .
- Pequenas, não ! - protestava.
Ela não insistia. Perguntava-lhe pelos canários que ela ouvia de
casa, alto, alto, uns carusos !
Antônio rompeu o silêncio :
- E você se lembra, depois, daquele dia que eu . . .
- Sei, pediu um beijo.
- :E: . . .
- E eu dei? - riu.
- Não!
- Você já estava ficando pirata, hem?
- Eu? !
Pirata! Sentiu-se deliciosamente lisonjeado . Pirata! Quis prolongar a
sensação :
- E me dá hoje?
- Não.
- Jura?
- Não ! - e chegava-se para ele, de mãos para trás, a boca que
era um sonho, uma amora, um . . .
Tia Polu tossiu e eles se amedrontaram, maldita bronquite! O sol
se encobria, passava bem das quatro. Do lado ímpar da rua fazia
sombra. Dona Zulmira se levantou.
- Você nos leva até à esquina, Antonico?
- Como não, Dulce?
Comovida, agradecida, deixou cair os olhos ame�doados, reagiu
contra o choro prestes a romper. Desejou-lhe felicidades . a sorrir, "que
estudasse bastante para não ficar um advogado burro, não é mesmo,
Dona Polu? "
A tia admirava-a. Estavam na varanda. Disseram ainda adeus do
portão, pois que Dona Polu não descera.
Foram carregadas de embrulhos para a espera do bonde. Antônio
prometia que no primeiro domingo, sem falta . . .
- Hoje é quinta.
- Domingo estarei rente.
- Olhe lá! . . .

- Vão ver.
Acenaram com os lenços quando o veículo partiu, rangendo, pelos
trilhos que se estendiam. A escola pública despejava crianças em ala­
rido. Antônio viu-se só no meio da rua. O bonde continuava; parou,
tomou a rodar, meninos tomaram-lhe a traseira, o condutor enxotava­
os, eles saltavam em vaias, e o bonde, verde, ia ficando menor na
distância arborizada. Sentiu-se estranho, tonto, aéreo. Desconhecia
1 42
as casas . Olhava : não compreendia. Onde estava? Os meninos gri­
tavam, gritavam mais alto, mais . Sentiu que tudo gritava e quis gritar
também. Dulce, Dulce! A voz fugiu-lhe. Depois foi como se uma
névoa lhe tomasse os olhos - via tudo branco na sua frente, branco,
leitoso, suspenso.
Nunca mais viu sua primeira namorada.

143
STELA ME ABRIU A PORTA *
O tempo conserva de preferência
aquilo que é pouco seco.
JACQUES CHARDONE

*
Edição revista e aumentada.
STELA ME ABRIU A PORTA

HAVIA ALGUNS MESES que · nós nos conhecíamos e jamais o tempo


passou tão rápido para mim. Ela era ajudante de costureira no ateliê
modestíssimo de Madame Graça, velha amiga de minha mãe. Meu
irmão Alfredo, que morreu aos vinte anos, estupidamente, duma pneu­
monia dupla, era um rapazinho importante : não gostava de fazer
recados, de carregar embrulhos, de comprar coisas para casa na cidade.
Mamãe respeitava-lhe a vaidade. E eu fui buscar um vestido que ela
mandara reformar - a seda estava perfeita, valia a pena. Quem me
atendeu foi Stela. Madame Graça havia saído e ela não sabia do
vestido. Madarne Graça não lhe prevenira nada. Mas não poderia
esperar? - perguntou. Madame fora ali pertinho, não demoraria. Eu
disse que esperaria. Ela me ofereceu uma cadeira, voltou para o
seu trabalho e pusemo-nos a conversar.
Stela era espigada, dum moreno fechado, muito fina de corpo. Tinha
as pernas e os braços muito longos e uma voz ligeiramente rouca.
Falava com desembaraço, mas escolhendo um pouco os termos, não
raro pronunciando-os erradamente.
- Está aqui há pouco tempo, não é? - perguntei.
- Não faz um mês .
- E . . . Eu não a conhecia ainda.
- Vem muito aqui, então?
- Muito, muito, não. Mas venho.
Stela levantou-se para apanhar um carretel de linha e novamente
voltou para a tarefa, ao lado do manequim encardido. A luz do sol,
rala, branda, coando-se através da cortina de musselina branca, caía­
lhe aos pés, e na doce penumbra suas mãos ágeis trabalhavam. Tinha
os dedos grossos, marcados de espetadelas, as unhas cortadas bem
rentes.
- A senhora sua mãe é amiga de Madame Graça? - indagou
depois de trincar a linha preta nos dentes .
- Desde menina.
- Ah!
1 47
Houve uma pausa em que a tesoura entrou em ação.
- Muito boa madame, não lhe parece? - perguntou sem me olhar.
- Muito.
- Tenho gostado muito dela. Nunca manda, pede. E pede por
favor. Não se zanga nunca, está sempre alegre, disposta, animando a
gente . . . Dá prazer trabalhar com uma pessoa assim, não é mesmo?
Achei discretamente que sim, ela apurou mais um detalhe de sua
obra, depois continuou :
""""""� A última patroa que eu tive era dura de se aturar. Não foi
possível agüentá-la mais . Tudo achava ruim, mal feito. Não falava
melhor com a gente, era como se estivesse lidando com escravos . O
senhor já teve algum patrão assim?
- Não. Eu nunca tive patrão. Sou estudante.
- Ah, sim! . . . De quê?
- Verdadeiramente de nada. Estou acabando os preparatórios.
· Acabo este ano. Depois é que não sei o que vou fazer.
- Deve continuar a estudar, ora! Se formar. Não há nada como
a gente se formar. Meu padrinho sempre dizia isso. Queria que eu
fosse professora. Eu comecei a estudar, mas era um pouco malandra ­
riu. - Mas ia indo. Depois é que tudo desandou. Meu padrinho
morreu, madrinha ficou em dificuldades e eu me vi obrigada a aban­
donar os estudos. Fui trabalhar. Como sabia dar meus pontos, meti-me
de costureira. É coisa um pouco ingrata. Trabalha-se demais, não há
folga. Acaba-se um vestido, pega-se logo outro. Mas pode ser que
um dia . . .
- Acredito que sim.
Ela levantou a cabeça :
- Tudo depende da sorte, pois não é mesmo?
Quando eu ia responder, o alfinete caiu e me abaixei para procurá-lo.
Ela fez um gesto :
- Deixe!
Mas apanhei-o e entreguei-o :
- Aqui está.
- Muito obrigada. Mas devia ter deixado no chão. São mil que
caem .por dia. De tarde, quando se varre a sala, acham-se todos . :B
mais prático do que se abaixar a todo o momento, não a�ha?
- Sim, é mais prático. Mas para mim agora foi um prazer . . .
Ela sorriu :
- Há gosto para tudo.
O relógio cantou lá dentro com voz rachada - quatro horas. E
Madame Graça chegava com seu sorriso aberto, seus modos despa­
chados, sua gordura demasiada. Queixava-se de mamãe. Uma ingrata!
Assim também era demais . Há um ano que não a via (há menos
de quinze dias mamãe tinha ido visitá-la de noite) . Jurava que não
poria os pés em nossa casa enquanto mamãe não fosse vê-la.
1 48
- É que mamãe anda muito ocupada, Madame Graça. Muito
cansada. É tanta lida lá em casa . . .
- Eu sei, histórias ! . . . - E me entregando o vestido : - Diga
a sua mãe que se não estiver como ela quer é só mandá-lo de volta.
E eu me retirei, não sem olhar demoradamente, mas disfarçadamente,
para Stela, que me sorriu.

Aquele sorriso, aqueles olhos me perseguiram dois dias, ao fim


dos quais nos encontramos novamente. Ela saía às seis horas da casa
de Madame Graça. As cinco e quinze já estava na esquina esperando
por ela. Uma tremura forte e irresistível sacudia as minhas per­
nas e o meu coração - se ela não viesse? Procurava reagir
andando de um lado para outro, fumando cigarro sobre cigarro, ten­
tando recordá-la, já que as suas feições pareciam ter-se desfeito na
minha memória.
Passou absorvida, apressada, não me veria na certa, se não me
adiantasse. As pernas tremiam mais . A voz tremeu também :
- Boa tarde . . .
Ela abriu um sorriso perfeito e estacou :
- Que surpresa!
Fechando os olhos, plantado à sua frente, disse quase inconsciente-
mente que a esperava.
Por mim? !
Sim.
Verdade?
Verdade.
Ela amassou a modesta carteira contra o peito, ligeiramente pertur-
bada e indecisa se continuava parada ou prosseguia.
- Fiz mal?
Replicou prontamente :
- Não.
Eu estava suspenso no ar :
- Porque se fiz, não tenha o menor acanhamento de me dizer.
Eu não me zango.
---" Não ! Falo a verdade.
- Sinto-me feliz por isto. Imensamente feliz.
Ela pôs-se então a andar e eu perguntei :
- Vai para casa, não vai?
Ela olhava o chão :
- Parece, pelo menos.
Uma sensação agradável de segurança me enchia todo aí :
- Podia ir mais devagar do que de costume?
Ela continuou com os olhos baixos, mas retardou os passos .
Passamos a fazer o mesmo caminho todas as tardes, e cada dia
demorávamos mais a percorrê-lo. Ao fim de uma semana íamos de
1 49
mãos dadas, perdíamo-nos por mil ruas antes de chegarmos à ladeira
onde ela morava, no Rio Comprido. Nascera ali, numa casinha de
três comodos, atrás de um armazém que prosperara. Ali perdera o
pai, que era embarcadiço, conhecera o mundo a :palmo, outras gentes .
Os japoneses comiam arroz com pauzinhos ; os chineses adoravam
filhotes de rato fritos em manteiga; num lugar não sabia onde, os
indígenas matavam os pais quando estes ficavam velhos ; na Africa,
as mulheres é que trabalhavam, os homens ficavam dormindo em casa,
bebendo, fumando e se abanando por causa do calor! Deixava-a falar
e ela falava muito. Sabia eu por que ela se chamava Stela? Ah! -
ria - por causa duma canoa. Foi a primeira canoa que o pai teve,
menino ainda, construída por ele mesmo. Sempre amara o mar, a
aventura, o desconhecido. Seu desejo era ver o mundo, conhecer todo
o mundo. E um dia foi-se ao mar! Acabara num cargueiro - o Sereia.
Tinha o casco preto, baixo, um ar de navio fantasma, muito vagaroso.
No mar das Antilhas, uma tromba-d'água deu conta dele. Não se
salvou ninguém. Eram quarenta homens . Ela tinha oito anos . A
mãe ficou como louca, não queria acreditar. Ninguém jamais pensara
que o pai se casasse com ela. Conheciam-se desde pequenos, tinham
sido vizinhos muitos anos numa praia de Paquetá, onde o pai dela era
administrador duma caieira. Um dia ele chegou de uma viagem, foi
procurá-la, dizendo que queria a certidão dela para tratar dos papéis .
E quinze dias após estavam casados . Um mês depois, ele partiu. Seis
meses mais tarde, voltou. Mais quinze dias e lá se foi . Quando veio
de novo ela ( Stela) tinha uma semana de nascida, era muito gorda -
uma bola! A mãe escolhera o nome : Lourdes. Ele não disse nada
e foi registrá-la . De volta é que se viu - registrara-a com o nome
de Stela.
Tinha ela seis para sete anos, quando ele veio muito doente de
uma viagem. Era um reumatismo muito forte, que quase não o deixava
dormir. Ao fim de alguns dias estava livre das dores, já podia dormir,
mas o médico recomendou que tomasse cuidado e fizesse, se possível,
um tratamento mais demorado. Ele tinha seus cobres juntos, e seis
meses pôde ficar em casa, tratando-se. Foi um tempo feliz! Recor­
dava-se, comovida, umas lágrimas furtivas nos olhos . Ele era muito
bom! Amava-a muito. Passeavam juntos, iam à praia, ao cinema,
comprava-lhe uma porção de brinquedos, enchia-a de sorvetes, balas,
gulodices, vestidos novos. O padrinho, que era engenheiro, ralhava
com ele : você acaba estragando esta pequena de todo o jeito . Ele
ria : estragava o que era dele. :E:, retrucava o padrinho, estraga o que
é seu, mas quando for embora quem agüenta são os que ficam.
Quando ele morreu, a mãe ficou alucinada, queria morrer também.
O padrinho protegeu-as . A mãe trabalhava como uma moura, lavando
para umas famílias melhores das redondezas. Era ela, Stela, no prin­
cípio, quem entregava a roupa. Mas estava na escola. Fora um pouco

1 50
avoada na escola. Muito distraída, diziam as professoras . O padrinho
queria que ela fosse depois para a Escola Normal, saísse professora,
tivesse o futuro garantido. Era bom. Mas, infelizmente, o padrinho
morreu de repente, do coração, quando ela ia acabar o curso primário,
aos quatorze anos. A madrinha ficou mal de vida. Era de São Paulo,
voltou para lá, pois tinha ainda os pais vivos. Adeus, estudos ! Foi
obriga�a a trabalhar. Mas não para lavar. A mãe não consentiu. Fosse
costurar. Dona Amélia costurava para a vizinhança, tinha boa fre­
guesia. Aceitou-a como aprendiz. Três meses depois estava afiada.
Costurar é fácil. Um pouco de jeito, um pouco de paciência, um
pouquinho de gosto, o resto vai sozinho. Mas Dona Amélia não queria
ainda pagá-la. Era uma exploração! Procurou outro lugar. Foi para
um ateliê no Estácio. Depois - a patroa era muito implicante -
s aiu e foi trabalhar na "Mariposa Azul", na Rua Sete. Agüentou-se
um ano aí, mas trabalhava demais, comia mal, gastava muito dinheiro
em bonde . . . Assim, tratou de arranjar um emprego mais perto, no
bairro mesmo. Esteve pouco tempo nele. Também não havia pequena
que parasse lá. Os donos eram uns gringos, gente danada! Só vendo.
Andara ainda em duas outras casas, agora estava com Madame Graça.
Madame era muito boa. Lá se iam três meses .
Uma noite, voltávamos do cinema, ela me diss e :
- Não sei por que, tenho vontade d e fugir. Parece que é o sangue
de papai.
Eu olhava seu corpo, não respondi. Mas sentia que ela fugiria
mesmo, um dia, para nunca mais. Não sei por que, nada fazia para
prendê-la. Aceitava a idéia da fuga como um acontecimento que
não podia deixar de ser. As mãos dela eram quentes, apertavam. Os
seus olhos eram bem o chamado do mar, o chamado das ondas do
mar, o chamado das ondas de um mar desconhecido, verde, funda­
mente verde, misterioso. Sentia-me fraco. Por que não faria nada
para prendê-la, para tê-la sempre ao meu lado, já que sentia que a
amava? Não sei. Está tão distante tudo isso, hoje, e o mesmo mis­
tério perdura. Por onde andará Stela? Em que mares de homens se
perdeu?

As nove horas, eu esperava por Stela na esquina combinada. Era


uma véspera de Natal, bastante quente, de um céu muito claro. Ela
chegou e me disse, calma, resoluta, com uma grande indiferença pelo
destino :
- Aqui estou.
- Querida!
Fomos andando, resolvidos . Tudo estava preparado por mim, com
uma meticulosidade que me assombrava a mim mesmo. Tinha tratado
o quarto. Tinha discutido com o homem do hotelzinho, combinado a
chegada.

151
- :E: uma moça direita - dissera ao homem. - Séria.
- bestas vêm cá às dúzias.
Era português, com um sotaque muito carregado, um olhar sórdido
que me arrepiou. Rebati com raiva :
� Mais respeito! O senhor está muito enganado!
O homem abaixou-se como um tapete. "Desculpasse-o . . . Não tinha
a menor intenção de faltar ao respeito. Mas é que . . . " Não quis
saber de mais nada. Saí. Estava tudo combinado. As nove, nove e
meia, estaria lá com ela.
Fomos indo. Tomamos um bonde, descemos. Andamos alguns
minutos sem dizer uma palavra. Jamais pude saber se era por enten­
dimento tácito, por medo do destino, ou por nojo antecipado do depois.
Sei que ela me disse, de repente, com a voz mais rouca, os olhos
mais verdes, apertando-me a mão com mais calor :
- Não devia ter vindo.
Eu tremi e paramos numa pequena ponte, como se, muda e previa­
mente, tivéssemos combinado parar, não ir para a frente, ficarmos
ali para sempre pregados . A lua é paz, é pálida, e nós tão pálidos.
As horas correm, o barulho do rio correndo tinha uma tristeza de
morte.
Duas velhinhas desceram a rua, vagarosas, de preto, escondidas nos
xales . Passaram outras pessoas, formas vagas, que não pareciam deste
mundo. E os sinos tocavam, tocavam . . .
- Vamos? - perguntou ela, rompendo um silêncio que parecia
ser eterno.
Não fomos . Ficamos, pregados na pequena ponte, ouvindo o barulho
do rio e o barulho dos sinos, vendo as estrelas na altura, esquecidos,
perdidos, como restos de um naufrágio.

DEPOIMENTO SIMPLóRIO

Eu coNTO :
Ia .prestar o meu exame final de português, quando papai, após me
fazer umas tantas e quantas perguntas sobre a matéria, explodiu num
daqueles rompantes que só ele tinha :
- Você não sabe nada, nada, absolutamente nada! Uma vergonha!
Não pode fazer exame assim!
Protestei com energia :
- Posso !
- Não pode!
Pensei ganhar a partida :
- Mas o meu professor disse que eu estava preparado.
1 52
- Seu professor é uma besta-quadrada!
E o resultado prático desta categórica definição foi não consentir
que me apresentasse à chamada e me arranjar um explicador - um
excelente homem, apesar de aparentemente rabugento, e de muita fama,
tanto por seus altos conhecimentos gramaticais como pela sua inso­
ciabilidade.
Um ano de aulas noturnas, a dez mil réis cada uma, e veio outro
dezembro, que era o mês fatídico dos exames . Fui aprovado, mas
a nota alcançada constituiu uma legítima decepção paternal, e como
não pÕdia negar o valor do novo mestre, que ele conhecia e escolhera,
num triste franzir de beiços meu pai externou a sua desprezadora
opinião sobre a minha capacidade intelectual . Não me importei. Fechei
decididamente a Gramática Expositiva e a Antologia Naciona� e voltei­
me para as matérias que me faltavam para terminar o curso de prepa­
ratórios, pois via no fim dele uma espécie de liberdade ( que franca­
mente, ao chegar, foi uma desolação ) . Mas continuei a freqüentar a
casa do professor, preso pela amizade do filho, um rapazinho magro,
mais moço do que eu, terrível devorador dos livros do pai, que enchiam
umas treze reforçadas estantes espalhadas pela casa toda, já que o
escritório e a sala de visitas eram de reduzidas proporções .
Dois, três, quatro anos se foram, até que uma noite o professor
recebeu um livro embrulhado, coisa que acontecia diariamente, aliás,
pois ele era muito acatado nas rodas literárias de então. Abriu o
embrulho, desajeitadamente, rasgando o papel cor-de-rosa, abriu o
livro : o Poeta admirava sinceramente o gramático e enviava-lhe a pro­
dução com uma singular dedicatória. Lendo por cima dos espessos
óculos, folheou-o alguns segundos e jogou-o na cesta de papéis : -
Mais um futurista ! - e atirou-se num trabalho tremendo sobre o
gerúndio, que haveria de fazer f\lror em Portugal.
O filho era menos apriorístico nas opiniões . Dobrou as pernas de
cegonha e apanhou o livro na cesta. Se era menos apriorístico, dava
na mesma - seus julgamentos formavam pela bitola paterna. Chamou
também o Poeta de futurista, teve uma frase áspera para defini-lo, e
arrumou o livro, não na cesta, mas num canto da sala, onde ele ficou
caído como um pássaro de asas abertas . Aí abaixei-me, peguei o
infeliz volume, de capa branca e título modesto, abri-o :

Eu faço versos como quem chora


De desalento . . . de desencanto . . .
Fecha o meu livro se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Vou levar este livro para mim - disse fechando o livro e en­
costando-o inexplicavelmente contra o coração .
- É um favor que está prestando .
Senti-me ferido, pensei no Poeta, olhei com piedade para o meu
1 53
amigo que se espichara no sofá. E ele se mostrava tão tranqüilo que
não houve mais lugar para piedade. Tive-lhe ódio, um ódio imenso.

DOIS PARES PEQUENOS

FOI NO MELHOR DA VIDA, tempo remoto, sempre lembrado, foi no


melhor da vida! Eu, Madalena, Cristininha, Manuel - uma esca­
dinha - ignorávamos o mal como ignorávamos o bem . M al e bem,
esperança e desesperança, desafogo ou aflição - não tinham para nós,
então, nenhum significado. O mundo ia pouco além do quarteirão de
poucas casas e largos terrenos devolutas, onde o lixo subia, onde o
capim crescia, onde catávamos melões-de-s ão-caetano, onde os piri­
lampos surgiam aos milhares ao cair da tarde, onde o orvalho bri­
lhava como pedras preciosas nas belas manhãs de inverno . O gênero
humano pouco passava da gente de cas a : papai, mamãe, tio Gastão,
prima Mariquinhas, muito pobre e que morava conosco, a velha criada
Florezina e os amigos de p apai, parceiros de um pôquer aos sábados
- Seu Antenor, que nos trazia balas, Seu Mateus e Doutor América,
que tinha um olho que olhava para ontem, como dizia, sem nenhuma
piedade, prima Chiquinha, que de vez em quando descia de M agé,
com seu reumatismo, sua caixa de homeopatia e seu terço de contas
pretas, para passar uns tempos conosco.
O pôquer, que ia até a madrugada, e em que se descompunham
feroz e cordialmente, começava quando nos era dada a ordem severa
e inexorável de ir dormir. Formávamos um coro de vozes chorosas :
- Bênção, papai !
- Bênção, meus filhos . Durmam com Deus .
Lá íamos. E vinham para a mesa os montes de fichas, quadradas,
redondas, verdes , roxas , azuis , um mundo tentador de cores e for­
matos . Do quarto , que ficava no fundo do corredor, ouvia-s e o
barulho s eco e distante das fichas, o calor das apostas, silêncios expec­
tativas de jogadas felizes, exclamações, risos e desaforos . Dormíamos
ao som dessa música esquisita. Dormíamos s em sonhos . Grilos s er­
ravam o silêncio do mato atrás da casa. A água do rio era um chiado
manso e repousante, batendo nas pedras, escorrendo, escorrendo, com
a suavidade ondulante das serpentes .

- Manuel !
Manuel, rosto inchado, abria os olhos pegajosos :
- Hem?
- São horas .
- Hora de quê? - perguntava, tonto.
Era um grande dorminhoco . Custava a despertar, uma hora depois

154
de fazê-lo ainda não estava perfeitamente desanuviado - respondia
coisas no ar, perguntava outras sem propósito .
Era hora de estudar. Estudávamos cedo as lições , depois descan­
s ávamos e, às onze e pouco, saíamos para o colégio, uma escola pública
na Rua dos Araújos, onde freqüentávamos o segundo turno, que come­
çava ao meio-dia. Era um método instituído por papai. Dava-o como
muito higiênico e pedagógico . "Respiram o bom ar da manhã e as
cabeças estão mais frescas para os problemas ."

Um dia ..,...- que linda manhã fazia! - resolvemos um grande pro­


blema. Houve prós e houve contras . Ousadias e temores . Madalena,
a segunda do lote, doze anos feitos, achou a princípio "que era um
perigo, uma loucura! " Cristininha fazia uma cara de quem está a par
de um s egredo tenebroso. O problema era este : vamos fazer uma
gazeta hoj e? Se como questão não apresentava nenhuma transcen­
dência, para nós tinha a força de ser inédita. Mas onde? Manuel, o
caçula, propôs irmos passar o dia na outra rua, proposição muito
vaga como se vê. Vaga e perigosa, ajuntei eu. Era muito perto de
casa. Papai . . .
Foi Madalena que solucionou a düiculdade. Descia-se até a praça,
depois iríamos subindo a Rua Conde de Bonfim até o Alto da Tijuca.
Reforçaríamos a merenda, levaríamos o dinheiro do cofrezinho de
madeira para comprar frutas, b alas , doces, vir de bonde. Assim disse,
com ela concordamos, e esperamos as onze horas .
As onze horas custaram a chegar. Havia uma ansiedade incrível,
havia uma vontade de falar, de repisar o assunto, o que fazíamos em
cochichos misteriosos pelos cantos, tão misteriosos e em tão abundante
quantidade que mamãe desconfiou :
- Que é que vocês tanto conspiram?
Madalena respondeu pela pecadora coletividade. Deu uma desculpa
tão simples e tão natural, que nem dela me recordo hoje. Nós admi ­
ramos a sua desfaçatez e mamãe, descuidada, entregou-se aos misteres
de dona de casa pobre, que não eram poucos nem leves .
As onze horas, com aflita pontualidade, nós partimos para a aventura.
Não passamos do pequeno vale da Estrada Velha, cortado por um
riacho. Houve o ataque às framboesas . Madalena zela :
- Olhem bem! Cuidado com os bichos dentro.
Aí éramos cinco . Um novo companheiro ia conosco. Era sardento,
tinha os dentes espaçados e o cabelo cor de cenoura, era desleixado
na roupa. Aderiu-se a nós na metade do caminho.
- Onde vão vocês? - perguntara.
Madalena parou, mirou-o de alto a baixo, inspeção que terminou
por um franzir de nariz, que traduziu um absoluto desprezo .
- Não temos que dar satisfações a moleques - dissera, pondo-se
novamente a andar.
- Bravinha, hem ! . . .

1 55
Madalena virou-se numa fúria intempestiva :
- Não se enxerga, Pinga-fogo?
- Não !
Nós rimos. Madalena saiu num repelão do grupo. Ele, como se
nada tivesse acontecido, perguntou o meu nome.
- Edgar - respondi .
- E eu, Eurico . E o outro?
- Manuel.
- E a lourinha?
- Cristina.
- E ela? - e com beiço esticado indicou Madalena que se dis-
tanciara.
- Madalena.
Cuspiu para o lado um pedacinho de fósforo que já o encontrára­
mos a mastigar ;
- Regular . . .
- É o nome de nossa mãe.
Vocês têm mãe?
- Temos . Mãe e pai.
- Eu não tenho . Só tenho pai. - E depois de um breve silên-
cio : - Mas tenho madrasta.
Fomos andando, Madalena sempre distanciada, olhando para trás
de vez em quando . Cristininha quis saber :
- Madrasta é ruim, não é?
Eurico sacudiu os ombros e perguntou :
- Fazendo gazeta?
Respondemos entre risos, que sim.
- É bom - e arrancou com um gesto indiferente uma flor que,
através da grade de um j ardim, pendia para a rua. - Eu faço sem­
pre. Estou fazendo .
- Mas onde deixou os livros?
- Deixei em casa.
- Mas ninguém desconfia?
Arrancou outra flor imprudente :
- Sabem.
- E não falam nada? !
Mostrou os dentes de carnívoro, num riso curto :
- Não . Papai diz que fez muitas e que nem por isso deixou de
ser trabalhador. Diz que seria pior se eu não fizesse.
- Camarada, não é? (E nós admiramos aquele pai, invejamos
aquele filho ) .
Eurico olhava para Madalena, que retardara o passo.
- Quantos anos tem ela? - perguntou.
- Ela quem?
Esticou o beiço para Madalena que parara.
Doze - respondi.

1 56
- Eu tenho quatorze, e você?
- Treze.
- Cristininha tem onze, não é?
- Não. Vai fazer dez. · E o Manuel vai fazer nove.
Madalena chegou-se. Perguntou baixinho certas coisas à Cristi­
ninha.
- Minha irmã tem treze como você, mas é mais baixa - diss e
Eurico dando u m chute numa bola invisível.
- Você tem irmã?
- Uma.
- Não tem irmãos?
- Não . Sou eu s ó . Eu e ela.
- Como se chama?
- Eurico, não já te disse? !
- Eu sei. Estou falando dela.
- Ah ! sim. Chama-se Hélia.
Madalena chegou-se :
- Eu vou voltar daqui, Edga r. Nasci sem rabo.
Eurico é que respondeu :
- Não é preciso . Volto eu. Até outra vez, Edgar. Gostei de você.
Eu também simpatizara com Eurico. Agarrei-o : - Não ! Vem
com a gente. - E zanguei com Madalena : - Que bobagem a tua!
Deixa disso. Que é que ele te fez?
- Não gosto de gente intrometida.
- Ele não é intrometido. Você é que é implicante. Você é que
foi malcriada com ele.
Madalena_ foi uma surpresa :
- Peço desculpas .
Eurico enfiou as mãos nos bolsos das calças :
- Fui intrometido, sim. Mas não se fala mais nisso. Vamos -
e caminhou.
Nós o seguimos alegremente. Quanta coisa s abia ele ! - Os nomes
de todos os pássaros, e imitava-lhes os cantos ; os nomes de todas as
árvores, de todas as plantas, de todos os insetos. Sabia subir em
árvores s em se sujar, galgar pedras e barrancos difíceis s em escorregar
nem cair; sabia os recantos mais lindos, mais sombrios, mais sosse­
gados, mais cheios de flores e de frutas . Conhecia a mata, palmo a
palmo. Era como se ela foss e um pequeno jardim de sua propriedade.
A represa velha era misteriosa e úmida. Tinha um frio de coisa
abandonada, de coisa morta coberta de limo. As lavandeiras voavam
à flor da água parada e escura. Subimos . pelo leito dum riacho . . Rãs
pulam medrosas aos nossos passos . Madalena solta gritos alarmados .
Eurico ri. Todos riem. Mosquitos nos atacam. Só Eurico é insen­
sível às suas picadas finas e dolorosas . A cascatinha despenca. A
poeira d'água, levava-a o vento, em nuvens brancas , esgarçadas .

1 57
Ficamos mais alegres, excitados pelo fragor da queda, pela poeira
d'água que nos molha. Eurico sabia tudo :
- Vocês gostam de grumixamas?
Se gostávamos ! E batemos para as grumixamas .

Paramos ao fim de certo tempo para repousar. As merendas saíram


das sacolas. Apesar das framboesas, dos morangos, dos tamarindos,
das grumixamas, dos cocos-de-catarro , de que nos atulhamos, ainda
houve fome para os pães com manteiga e goiabada. Eurico entrou
num pedaço de cada um :
- Me dá uma tasca só.
- Tira mais .
- Não. Chega.
Madalena foi a última a ser solicitada. Estava mais mansa, tro­
cara umas poucas palavras com ele na correria pelo bosque, olhava-o
muito de soslaio.
- Quer me dar também? - pediu ele.
O pão de Madalena estava intacto :
- Fica com tudo.
- Não. Tudo não.
- Pode ficar. Não tenho vontade.
- Tudo, não .
- Eu não quero.
- Metade ao menos, Madalena.
Ela sacudiu os ombros :
- Vou jogar fora a minha parte. Para os passarinhos .
- Pois jogue. Tudo não quero, j á disse.
Madalena não jogou. Passou a comê-la devagar, deitada de lado,
no capim rasteiro, uma das mãos apoiando a cabeça. A saia curta
repuxava e mostrava as coxas roliças . Tinha o cabelo à inglesa, com
forte redemoinho na altura da testa. Os seios despontavam. Pequenas
bagas de suor escorriam-lhe pelo canto da face, junto às orelhas, como
bagas de orvalho sobre uma folha penugenta. Sentado ao lado dela,
apoiando as costas no tronco de uma árvore, Eurico contemplava-a.
Nós, espalhados em volta deles, comíamos.
A voz de Eurico era de quem pedia perdão :
- Está cansada?
Madalena levantou os olhos castanhos :
- Mais ou menos.
Eu falei :
- a a primeira vez que nós fazemos gazeta.
- Ah, ah, ah! - riu. - Não será a última.
Madalena arregalou os olhos :
- Por que diz isso?
A voz de Eurico era vaga, muito vaga:
- Toma-se gosto. a bom.

158
- Não acho tanto assim - e a voz de Madalena era levemente
despeitada.
Ele sorriu :
- Vai ver.

O sol descia. Descia mais, descia s empre. Madalena deu o sinal


de retirada.
- Vamos embora, pessoal . Passa das quatro j á, eu acho.
Eurico olhou o céu :
- Quatro e meia.
- Meu Deus ! - gritou Madalena. - Vamos chegar atrasados .
Que horror!
- Não chegam não . Tem bonde agora mesmo. Daqui até a
praça são dez minutos no máximo .
- E você não vai? - perguntei.
Não . Ainda ficaria. Esperaria a noite.
----1 Mas por quê? - perguntou-lhe Madalena.
- Porque gosto. - E afastou-se de nós sem s e despedir, trepou
numa pedra, debaixo da qual a água corria, ligeira, em coleios,
gritou de lá : - Até sexta-feira !
E ficou nos olhando. Nós descemos a estrada. Veio a primeira
curva. Voltamo-nos . Ele continuava olhando para nós, com as pernas
abertas, as mãos nos bolsos, o pescoço enterrado. O sol dava nele
em cheio. O seu cabelo fulgia. Suspendeu o braço num adeus . Nós
respondemos .
Eurico sabia tudo. Tomamos gosto, sim. Na sexta-feira seguinte
fazíamos a nossa segunda gazeta. Eurico esperava por nós , calma­
mente, mastigando um pauzinho, no mesmo lugar do nosso primeiro
encontro. Dirigiu-se à Madalena :
- Eu não disse?
Tinha um sorriso leve no canto da boca de lábios gros sos. Mada­
lena abaixou os olhos :
- Como vai, Pinga-fogo?

A DERROTA

SENTIU NOS OMBROS a pressão das pequenas mãos de Magnólia. Depois


- e ele estava junto à janela olhando o pequeno quintal cimentado,
fechado ao fundo por um muro cinzento e hostil - depois as coxas
quentes, o ventre, os seios empinados de virgem, tudo ele sentiu colado
às suas costas . Por um momento fechou os olhos ao doce calor, num
relaxamento que tinha muito de sonho . Mas o amigo estava no quarto

1 59
ao lado, podia aparecer de repente . . . Afastou-se e dirigiu-se para
a porta do quarto :
- Como é, Mário, você fica pronto ou não?
- Estou quase.
Entrou no quarto , o desalinhado quarto do amigo solteirão . Ele
dava o laço na gravata.
- Só falta meter a papelada no bolso.
- Está bem.
Olhou-se no espelho - por que só agora via, deprimido, humilhado,
as têmporas marcadas pelos primeiros cabelos brancos? E Magnólia
entrou atrás, como se nada houvera acontecido .
- Quis arrumar o quarto, sabe? Mas o Mário não admitiu. Me
expulsou daqui com uns desaforos bem pesados .
Mário riu :
- Cada um com a sua ordem . . .
- Não . A coisa é outra : cada porco com o seu chiqueiro .
Renato não s abia onde pôr os olhos . Riu forçadamente. Magnólia
dirigiu-se a ele :
- Você não está com boa cara hoj e, rapaz . . . ( tratava-o sempre
por rapaz ) . Que é que está sentindo?
Renato tremeu :
- Eu? ! Nada. Isto é, uma pequena dor de cabeça . . .
- Cafiaspirina - recomendou Mário, enfiando nos bolsos uma
infinidade de papéis .
- Ou carinho - emendou Magnólia.
Renato não se conteve :
- Depende de quem . . .
Ela derrotou-o em toda a linha :
- Para que é que o rapaz então é casado? - e riu gostosamente,
encarando-o com os olhos atrevidos, olhos verdes, levemente estrábicos ,
aos quais a s sobrancelhas arqueadas emprestavam u m a beleza maior.
Recolheu-se mais tarde do que de costume, passava de meia-noite.
(Ficara esticado no divã da pequena sala de entrada, pensando, pen­
sando, tentando explicar a si próprio o que tinha acontecido . Mas
veio um cansaço pesado demais. Tinha trabalhado tanto durante o
dia, tinha pensado tanto durante o dia . . . Fechou o livro, do qual
não lera um à única página, caminhou para o quarto . ) Pela j anela
aberta vinha um raio de lua e pousava na cama. Dulce dormia já.
Ele deitou-se também, com cuidado para não acordá-la. Ela, porém,
falou baixinho, meio dormindo :
- É você?
Ele sorriu - quem h averia de ser? - e respondeu :
- Sou.
Ela puxou mais um pouco para o rosto a coberta e entrou de novo
num sono tranqüilo. Ele fechou os olhos. Magnólia veio vindo -
para que é que o rapaz então é casado? E ela vinha com os olhos

1 60
verdes e a boca vermelha, infinitamente vermelha, com os seios empi­
nados, com as mãos dum calor de sol de tarde, e vinha, e vinha, e
vinha - o sono custou a chegar.

Era a primeira manhã fria do inverno carioca. Uma névoa baixava


sobre as ruas, a umidade entrava até os ossos. Ainda não eram sete
horas, quando saiu. Como fazia todos os dias, foi buscar o amigo.
O motor custara a pegar, os pneus um tanto gastos derrapavam no
asfalto molhado.
Chegou, foi entrando . O jardinzinho morria sem cuidados. Com
a mão nervosa virou a maçaneta íntima, caiu na sala, onde tudo lhe
era familiar; o grupo estofado de pano-couro, o tapete desfiando-se,
o abajur com flores, a mancha de chuva na pintura da parede, o rádio
sobre a estantezinha sem livros, o busto da moça olhando: uma cereja.
Ela estava na sala, como se esperasse por ele.
- Veio cedo, hem, rapaz . . . (Ele sentiu medo e ela tinha um
sorriso de quem se vê vitoriosa . )
O coração batia agitado :
- Cedo?
Ela parecia que frisava as palavras, tão devagar falou :
- Nunca vem a esta hora. Acho que nem passa das sete . . .
Procurou ser natural :
- Então estou com o relógio adiantado. Pensei que j á passasse
bem das sete.
Ela levantou-se e caminhou para ele :
- Não tem importância. Seu relógio devia andar sempre assim.
- E encostando-se nele : - Quanto mais cedo, melhor.
- E Mário? - gemeu.
- Está no banho ainda.
O rosto dela uniu-se ao seu. A cabeleira solta, loura, dum louro
que o banho de mar queimara um pouco, palpitava num perfume de
árvore em flor, num calor de travesseiro macio, num frêmito de asa
de pássaro.
Ele ainda lutara :
- Mas o Mário pode aparecer . . . Que loucura!
As palavras entravam-lhe no ouvido com a pungência da traição :
- Ele está no banho . . . ele está no banho. Para que tanto medo?
E sentiu a mordidela na orelha. Depois a boca rasgada escorregou
pelo pescoço, desceu, subiu, as bocas se uniram. E o sangue quei­
mava, e a carne queimava, e tudo parecia rodar, e a sala era o céu
e o chão faltava-lhe.
Afastou-se bruscamente - ouvira os passos de Mário. E Mário
entrou :
- Que cara é esta, homem?
Não soube depois como conseguiu dizer aquilo :
161
- Estou sentindo uma vertigem. Parece que vou cair.
Mário correu para ele, amparou-o, fê-lo sentar no divã, desabotoou­
lhe o colarinho.
- Café, Magnólia. Depressa, uma xicrinha de café.
E a mão do amigo afagava-lhe a testa, e o lenço do amigo secava
o suor que escorria frio como o suor da morte.
- Mas como foi? Você saiu bem de casa?
Continuou a mentir :
- Saí. Foi de repente. Não sei explicar. Parecia que eu ia cair.
- Que diabo!
- f:.
- Você nunca teve isso?
- Nunca.
Magnólia trouxe o café. Cada gole como que lhe custava a passar
na garganta. E Mário insistia:
- Bebe, Renato. f: para levantar as forças . Talvez s ej a uma ver­
tigem de fraqueza. Você tomou café em casa?
Renato fez com a cabeça que sim. E Magnólia explicava com
muitos gestos :
- Entrou, parecia que estava tão bem, estávamos conversando,
depois ele começou a passar a mão na testa, parecia que ia cair, eu
ia s egurá-lo . . .
E ele não podia fitar Magnólia. Engoliu o último gole, como s e
engolisse veneno. Magnólia tomou-lhe a xícara com um sorriso que
só ele viu.
E Mário levantou-se :
- Está melhor?
- Estou.
A voz do amigo era muito clara, muito decidida :
- Mas não vai trabalhar, não. Fica aqui até ficar bom de todo.
Depois toma um táxi e vai para casa. Eu levo o teu carro, depois,
de tarde. Vou nele para o escritório . Se s entir qualquer coisa -
ouviu, Magnólia? - manda chamar o Doutor Pereira ali na farmácia.
Não está bem assim?
Ele diss e apenas :
- Está bem.
E pensou que iria ficar sozinho com Magnólia. E s entiu-se imensa­
mente infeliz.

SERRANA

NAs MANHÃS CICATRIZANTES, a tortuosa estrada de terra vermelha me


recebia como uma amiga generosa para os longos passeios a pé,

1 62
passeios cheios de descansos, aqui numa pedra, ali sobre um barranco,
onde pássaros pretos faziam ninhos .
O ar seco, fino como um punhal, entra nos pulmões enfraquecidos
como um remédio de Deus . O azul do céu deslumbra. Os pássaros
cantam, voam. Há estalos no mato, misteriosos rumores . . . E as
folhas ainda guardam, rutilantes , o branco véu de geada que a noite
gélida lhes trouxe.
Caminhava vagarosamente, respirava fundamente - sim, era bom
respirar, sentir o peito cheio, expirar com energia uma nuvem de
vapor. Os pensamentos são lúcidos, tranqüilos. As formigas são
minhas irmãs . . . Uma bondade de convalescente enche o meu cora­
ção. Uma alegria de convalescente enche os meus olhos . :E: para mim
que as borboletas voam, é para mim que o regato murmura, que as
nuvens fazem-se e se desfazem, que os bois vagueiam nos prados com
os seus grandes olhos tristes. As sombras são frias. Azuis, brancas,
amarelas, modestas florezinhas sem nome desabrocham na beira da
estrada sua escondida beleza sem perfume. Os passantes me cumpri­
mentam, humildes , tirando o chapéu, me desejando saúde. E lá vão, de
pé no chão, roupas de riscado . Todos com os s eus porretes lustrosos,
pitando cigarros de palha, trazendo bornais a tiracolo.
Ladeada por cercas de chuchu, a casinha perto do córrego, rente à
estrada, me fala docemente ao coração . Foi ali . . . Fazia os meus
primeiros passeios . Ela era morena, enfezadinha, tinha um j eito arisco
de corça. Olhava-me s empre, sonsa, com o rabo dos olhos, quando eu
passava. Seguia-me com o olhar, mas escondia-se, rápida, abafando
risadinhas, se eu me virava para vê-la.
Um dia, eu lhe dirigi uma pergunta. Ela fugiu. Mas no outro
dia me esperava como sempre. Ficamos amigos. Parava todas as
manhãs ali para descansar e era o mais longo dos meus descansos .
Sentava-me no tronco derrubado, púnhamo-nos de prosa. Ela não se
sentava nunca - ficava em pé na minha frente, os braços cruzados
sobre o peito que n ascia, alisando com os pés desc alços a poeira
macia do c�ão . Estava de pouco no lugar. Era de um arraial próximo.
- Bonito?
- Feio toda vida!
Viera com o pai, que era oleiro, depois que a mãe morrera.
- De que morreu sua mãe?
Confundiu-se - morrera de doença, uma pontada na barriga que
respondia nas costas . . . Não explicava bem, parecia querer esconder
qualquer coisa. Desconfiei que ela mentia e não insisti.
E um dia ela me perguntou :
- O Rio é bonito?
- É.
- Mais bonito que Barbacena?
- :E: maior . . .
1 63
Ela parecia não acreditar muito . Não sabia ler, tinha quatorze anos
( eu lhe dava mais ) e uns olhos meio verdes, meio azuis, que tinha
muito dos olhos dos gatos .
- Você gosta muito de Barbacena, não é?
- Demais !
- E do Rio, você gostaria?
- Não sei. Nunca provei . . .

Encontrei-a numa volta de estrada, muito antes da casinha.


- Você por aqui?
� Estava lhe esperando.
- Esperando? Por quê?
- :É melhor. O povo já está falando muito . Já estou de ouvido
quente.
Sorri :
- Mas falando o quê?
- Falando, uai! . . . Que é que o povo havia de falar? . . .
- Povinho danado ! . . .
- Medonho !
Eu peguei-lhe na mão :
- E se fosse verdade o que o povo anda dizendo?
Ela fugiu :
- O senhor é que sabe . . .
Subimos por uma trilha, fomos nos sentar sob um ipê. O córrego
serpenteava lá embaixo, a pequena vargem de cana se estendia na
direção da estrada de ferro! Um bambual coroava um morro, bois pas­
tavam na encosta oposta. E no azul muito vivo do céu voavam urubus .
Um pouco comovido, falei :
- Boa terra esta, não é?
- Nem por isso . . . Do outro lado do bambual, sim, é que ela é
boa. Terra de plantação. Tudo do Zeca B atista, um unha-de-fome
desgraçado !
Eu me ri, peguei-lhe na mão e ela agora não fugiu. E era mão
áspera, os dedos todos rachadinhos, encardida. Ela percebeu :
- :a d e sabão d a terra. Arrebenta com a s mãos d a gente.
- Use outro sabão.
- Onde o pai vai caçar dinheiro?
Houve um silêncio demorado. O vento abafava seus cabelos. Foi
ela que veio :
- Perdeu a fala, homem? ! . . .
Diomar tinha sardas de sol no nariz petulante, um cheiro de palha
de milho nos cabelos, que ela prendia com uma fitinha preta. O
santinho de alumínio era pendurado por um alfinete de fralda à beira
do corpinho. Esticara-se no chão, eu me estendera ao lado, o ipê
nos protegia.
1 64
- Por que é que você fugia de mim no princípio, hem?
Mostrava os dentinhos miúdos de rato, ligeiramente acavalados,
ligeiramente amarelados :
- Fugir não é não gostar . . .
- Mas por que ria então?
- Achava você engraçado.
- Engraçado? Engraçado como?
- Não sei não ! Você parece padre.
- Padre é assim?
- E. Não sabia não?
- Não . Nunca me confessei.
- Faz mal. Devia. Homem sem religião não presta . . .
- Muito obrigado .
Ela ria de banda :
- Não tem nada de agradecer.
- Você sabe o que é uma criatura sarcástica?
- Como é? !
- Sarcástica.
- Não sei o que é isso não.
- Ainda bem.
- É coisa feia?
- Depende . . .
- Está me xingando, bem?
Eu ri, abracei-a :
- Você sabe o que é uma criatura adorável?
- Só sei o que é adorável.
- Diga.
- Marca da cachaça do Manuel Inácio.
Espremi-a nos meus braços :
- Você vai me pagar estas zombarias todas com um beijo, sabe?
Ela fingia se esquivar :
- Não sei não.
- Pois vai pagar.
- Beijo não paga nada. É esmola.

Pedia que eu lhe contasse como era o mar. É salgado, Diomar.


(- Eu sabia. ) Tem ondas, ora é manso, ora é furioso, como o
coração dos homens . . . (- Não brinca. Fale direito. ) Não estou
brincando, Diomar. O mar é assim : um dia é manso como uma
pomba, no outro destrói tudo . Ela já tinha visto numa revista -
jogou um muro enorme no chão . Mas de que cor ele é? queria saber.
Varia, Diomar. Varia muito. Ora é azul, azul-claro, azul-escuro . . .
Ora é verde, verde-claro, verde-escuro . . . Algumas vezes fica cin­
zento.
- Cinzento-claro, cinzento-escuro?
- Isso.
1 65
- E os navios?
- Que é que você quer saber dos navios?
- São grandes?
- São grandes, pequenos, de todos os tamanhos.
- Mas os grandes são do tamanho de um trem?
- Muito maiores, Diomar. Do tamanho de dez trens.
- Você está mangando de mim!
- Por que mangando?
- Dez trens?
- Dez trens, Diomar.
- E o mar não tem fim?
- Fim tem, mas é tão longe, tão longe, que é como se não tivesse
fim mesmo.
Diomar fica pensando.

Veio uma quinzena de chuva intérmina. Os dias tinham a duração


de séculos para mim, preso em casa, vendo _através das vidraças de
guilhotina a chuva cair, cair sem cessar, encharcando a estrada ( onde
os cavalos patinavam arriscadamente na lama alta de três palmos) ,
escondendo os morros com o seu manto dum branco sujo e triste.
Os livros não me acalmavam, e não era desespero o que eu sentia.
Viera para ficar bom, precisava ficar bom, seria incapaz de uma impru­
dência. Mas sentia falta de Diomar, uma falta física, a necessidade
de sua presença para encher o vazio da vida que levava naquele vasto
casarão deserto, naquele casarão de cura de altas e lisas paredes
caiadas, de amplas janelas antigas, de teto de esteira e iluminação de
querosene. Vagava pelas salas vazias como um pobre fantasma. Revis­
tava cômodas e armários, descia ao porão onde guardavam milho, onde
uma cadela perdigueira protegia a sua ninhada com rosnares amea­
çadores . Punha-me à frente do papagaio, ficava observando os seus
olhos desconfiados, ouvindo as tolices que dizia e que nem engraçadas
eram. E a chuva caía. Caía sem parar. E eu me lembrava de Diomar,
me perguntava por que ela não me viera ver, ela que sabia onde eu
estava, ela que sabia que eu não podia me arriscar num mau tempo,
ela que . . . Encostava-me à vidraça. A água escorria dos vidros como
o pranto dum gigante invisível. As galinhas arrepiadas ciscavam sob
o telheiro da lenha. O terreiro era um lago. As trepadeiras pareciam
tremer de frio. Punha os olhos na estrada numa esperança vaga. O
dia escorria. Escorria como a água do céu de chumbo. E Diomar
não aparecia.
Quinze dias ! e afinal o sol surgiu como uma redenção. E quando
a lama ainda não secara na estrada, eu saí. O caminho estava escor­
regadio, o ar tinha um cheiro diferente, o córrego transbordara, e lá ia
com sons roucos na sua cheia, cobrindo pedras, desmanchando bar­
rancos, ameaçando pinguelas.
1 66
A volta da estrada em que ela passara a me esperar todos os di�
estava triste sem ela. Olhei para o nosso ipê - nada! Fui para a
frente. A casinha estava fechada, silenciosa, deserta. Voltei desolado.
Mas no outro dia me enchi de coragem e fui me informar na
casa próxima.
- "Se mudaram-se" - me disseram.
___, Mas para onde? - perguntei um pouco s em graça.
Responderam-me com risinhos - tinham ido para Vasconcelos, de
repente, pois o pai arranjara melhor trab alho lá. Afastei-me sob os
risinhos . Senti-me ridículo. Pensei em ir a Vasconcelos no outro dia,
sonhei com Diomar, mas adiei a viagem.

CAPRICHOSOS DA TIJUCA

ERAM OITO HORAS e acabara de j antar. Minha mulher subira para o


quarto e eu, ouvindo o rádio, fumando espichado no velho sofá de
palhinha, fazia hora para me meter à obra num romance que ando
escrevendo e que me parece infindável. Foi quando bateram palmas
no portão . Indiana foi ver quem era e voltou informando que se tratava
"de um homem que queria falar com o dono da casa".
- Mas não disse o que quef?
- Eu perguntei, sim senhor, mas ele disse que queria falar com o
dono da casa mesmo .
Levantei-me :
- Pois vamos vê-lo.
Era um sujeito magro, pescoço alto de galo de briga, grande nariz
bicudo. Tinha o chapéu na mão, não trazia colarinho . Pensei com
os meus botões : temos facada.
- Sou eu o dono da casa, meu amigo. Que deseja o s enhor?
Ele, com rústica delicadeza, lamentou me incomodar e se apre­
sentou como membro da comissão angariadora de auxílios para o
carnaval dos Caprichosos da Tijuca.
Na véspera, por volta da meia-noite, passara um rancho pela minha
rua, em passeata de ensaio, com cadência bem marcada, vozes afinadas,
um mundo de cuícas e tamborins fechando o cortejo. O barulho acor­
dou os pequenos.
- Que é, mamãe? - perguntou assustado o Zeca, que vai para
os três anos .
- São os m alandros ; dorme - respondeu ela.
Zeca não dormiu, ela também não, ninguém na rua dormiu antes
que a música se perdesse, grave e comovente, em ruas mais além.
Foi a razão por que eu perguntei :

1 67
- É aquele rancho que passou ontem por aqui?
- Não, doutor. Não foi. O nosso rancho ainda não saiu na rua.
Está em ensaios internos ainda. Deve ter sido os Formigas - e a
voz trazia um tom de evidente desprezo .
- Rivais, não é?
- Mais ou menos, doutor. Mas o nosso é mais antigo.
Resolvi cortar a conversa :
- Pois, pelo que suponho, o senhor deseja um auxílio, não é?
- É, doutor. Estamos tirando no bairro. Todos os anos fazemos
assim - e apresentou uns papéis : - Faça o favor de ler.
- É a licença?
- Não doutor. É o pedido da diretoria.
A polícia avisara insistentemente pelos jornais e pelo rádio que só
atendessem aos pedidos dos clubes devidamene licenciados por ela.
Deviam os angariadores apresentar a competente licença.
- E o senhor tem licença?
O homem se perturbou : ter, não tinha. A licença estava com o
Eliziário, que era o diretor da comissão. Mas parecia que não preci­
sava. O clube era muito conhecido .
- Mas se o doutor está desconfiado, eu trago a licença para o
doutor ver.
Fiquei meio atrapalhado . O homem parecia sério . Mas há tanto
malandro com cara de sério . . . E o diabo é que não trazia licença.
Dez, vinte mil réis que perdesse não era nada, afinal de contas . Mas
era triste ser embrulhado por um espertalh io sem colarinho, de tamanco
e com cara de honesto . Procurei dar um Jeito.
- Não estou desconfiado, absolutamente. Mas é que agora estou
desprevenido. O senhor não pode passar amanhã?
- Posso, doutor. À mesma hora?
- À mesma.
- Se eu não puder vir, vem o Bastinho pessoalmente. Eu vou
falar com ele.
- É seu companheiro de comissão?
- Não. - É o presidente do clube. - Depois que disse, fez uma
cara de incredulidade : - O senhor não conhece o Bastinho?
- Não . Não tenho o prazer.
O homem mostrou um semblante severo :
- Pois me admiro, doutor. É muito conhecido. Não há ninguém
que não conheça o Bastinho aqui no bairro.
Remendei :
- Então é por isso . Me mudei faz pouco tempo para cá. Morava
no centro .
Ele mostrou-se satisfeito :
- Sim, então é por isso. Mas ele é muito conhecido. Mora aqui
há mais de trinta anos . Foi quem fundou o clube. O clube é velho .
O comércio daqui para ele não nega. É só entrar e pedir. O doutor
1 68
gostaria de conhecê-lo. Ele tem estudos . É de c or, mas tem estudos.
Vou falar para ele mesmo vir aqui. O doutor vai gostar.
Agradeci e ele tornou :
- Mas agora é que estou me lembrando : se o senhor veio para
cá de pouco não conhece os Caprichosos .
- Realmente - atalhei - não conheço e tinha gosto de conhecer.
Já tenho ouvido falar muito dele.
- É o mais antigo, doutor. Tem os Formigas aí no morro. Foi o
que o doutor viu ontem. Tem o Estrela da Tijuca mais acima. Mas
os Caprichosos é o melhor. Tem muitos campeonatos. No ano pas­
sado mesmo levamos a taça de Harmonia. No ano retrasado pegamos
a taça de Evoluções . Muitos prêmios. Está tudo lá na sede, muito
bem arranjado. Por que o doutor não vai visitar a sede? Era uma
honra para nós .
- Perfeitamente, meu amigo . Quando o senhor quiser.
- Pois pode ser amanhã mesmo, doutor. Amanhã tem ensaio às
nove horas . O doutor vai apreciar. O pessoal é afiado. E pode levar
a sua senhora, sem medo . A sociedade é familiar, doutor. Gente pobre,
mas decente. O Bastinho faz questão. As filhas dele estão lá também.
Formam junto com a gente.
- Pois, então, está feito . Amanhã estarei lá. Mas onde é?
- Não tem que errar, doutor. Sabe onde é a fábrica de rendas?
- Sei.
- Pois é defronte. Naquele terreno grande, perto do rio. O doutor
vê logo. É um sobrado. Tem um mastro na sacada com o escudo
do clube. O doutor vê logo. Mas se se atrapalhar é só perguntar no
botequim, na farmácia, na padaria. Lhe mostram logo onde é.
- Pois estarei lá.
- Conto com o doutor. Vou falar com o Bastinho. Ele não
começará sem o doutor chegar.
E estendeu-me a mão . Era uma mão calosa. Senti vontade de pedir
que esperasse, ir lá dentro, voltar com uma nota para os1 Caprichosos.
Mas já que tinha mentido, não quis me desmentir. Apertei-a com
calor:
- Pode contar. E não me esquecerei do auxílio. Não será muito,
minhas posses são modestas, mas será dado de boa vontade.
- Ora, doutor! . . . O senhor dá o que quiser e o que der será
agradecido. E muito obrigado, doutor, pela sua bondade. Até amanhã
às nove. Desculpe a maçada. Lindolfo Alves, um seu criado.
- Não tem nada que agradecer, Seu Lindolfo. Disponha.
E ele partiu, batendo os tamancos no cimento da calçada.
Minha mulher descera, perguntou quem era. Contei-lhe a conversa
toda, rimos, ficamos de ir ao ensaio dos Caprichosos no outro dia.
- Deve ser engraçado - palpitou ela.
- Acredito que sim.
1 69
Mas no outro dia cheguei em casa com extraordinárias disposições.
Os personagens mexiam-se na minha cabeça furiosamente. Queriam
sair, tinham que viver, precisavam viver. Uma cena que me parecera
difícil e que, desesperado, abandonara no meio, veio clara, perfeita,
exatamente como deveria ser. Era só escrevê-Ia . . . Comi pouco e
às pressas e caí no romance. Cena puxa cena. E diálogos, situações,
descrições, conceitos, tudo escorria fácil e aproveitável. Poucos reto­
ques mereceriam mais tarde. Fui me entusiasmando. As horas pas­
saram. Minha mulher não me interrompeu. Esqueci-me do mundo,
absorvido pelo mundo que ia compondo. Quando dei fé de mim,
passava da meia-noite. Lembrei-me dos Caprichosos - que diabo!
- Por que você não me chamou? - queixei-me à minha mulher.
Havia prometido e não tenho o hábito de faltar à minha palavra.
- Bem que eu me preparei, mas vi você tão entretido, tão disposto,
que não tive coragem de te chamar. Afinal, você não tem que se
zangar. Primeiro, o romance.
Dei-lhe frouxamente razão :
- Sim, primeiro o romance.
Requisitei um cafezinho e voltei para a obra com o mesmo apetite.
Os Caprichosos ficariam para o dia seguinte. Foi impossível. No
outro dia tivemos amigos para jantar. Velhos amigos, talvez bons
amigos, chegaram de repente, num grande pagode, trazendo garrafas
de cerveja. Era uma precaução, afirmavam. Se a nossa comida não
desse, defender-se-iam com elas . Deu para todos . A cerveja alegrou
os ânimos . A noite correu depressa. Nem me lembrei dos Caprichosos .
Talvez nunca mais me lembrasse, se na noite seguinte, pelas oito horas,
não me batessem no portão . Cheguei à janela - era o Lindolfo.
- Boa noite, doutor. Vim lhe buscar para o ensaio - falou alegre­
mente. - O Bastinho está à sua espera para começar.
Fui eu próprio abrir-lhe o portão, quis que entrasse, ele recusou,
esperaria na varandinha mesmo. Eu me desfiz em desculpas : - Fora
inteiramente impossível, tivera muito que trabalhar, não imaginasse . . .
Ele atalhou :
- Eu sei, doutor. Eu sei. O doutor é um homem de trabalho.
Nós vimos .
- Vimos? - me admirei.
- Vimos sim, doutor. Eu lhe conto . De primeiro o Bastinho ficou
zangado com a sua falta. Pudera! - riu. - Preparara o pessoal,
formara a diretoria para receber o doutor, bateu nove, bateu nove e
meia, bateu dez horas e doutor nada! Ele me perguntou mais de cem
vezes : - Mas ele prometeu, Lindolfo? - Jurava que sim. Quando
bateu dez e meia, ele gritou : - Pouco caso ! - E mandou principiar o
ensaio. Eu fiquei assim. Falei com ele : - Eu acho que não foi
desprezo do doutor, Seu Bastinho. O doutor é homem de ocupações.
Quem sabe que não pôde vir? . . . Ele não queria saber : - Pouco
caso, sim, dizia e redizia. Afinal tivemos uma azeda. Ele teimava
1 70
para um lado, eu teimava para outro . Resolvemos tirar a teima. Vi­
ríamos até aqui ver se o doutor estava em casa, se o doutor tinha
saído, apurar a questão . Chegamos, espiamos pela j anela, o doutor
nem deu sentido de nós . Estava escrevendo, escrevendo, nem levantava
a cabeça. O Bastinho só disse uma cois a : - Deve ser uma causa
urgente. E me perguntou se o doutor era do crime. Eu não sabia.
Ele explicou tudo à diretoria - o doutor estava abafado ! . . . Ontem
não havia ensaio, não adiantava vir lhe importunar. Hoje vale a pena.
É ensaio geral.
Fui. _ Fui com minha mulher. A diretoria me esperava formada na
escada. Deram vivas, houve saudações com cerveja, fui obrigado
a fazer um pequeno discurso de agradecimento. B astinho fez outro
por cima do meu : que agradecimento ali só podia haver um - o da
sociedade, que se orgulhava de receber em seus salões uma figura da
inteligência, etc., etc. Preto, alto e gordo, Bastinho era uma simpatia
transbordante. Apertei o mês em cas a mas deixei cem mil réis no
Livro de Ouro .

ALMAS NO JARDIM

CERCADA por uma muralha de morros negros e tristes, silenciosa, limpa,


a pequena praça fica num bairro distante, no fim de uma rua nova
mas abandonada. Tem dois mesquinhos repuxos ao gosto municipal,
quatro tabuleiros ingleses de grama dum verde que o vento e o sol
fustigam e queimam, e vários fícus ostentando, tesos, figuras recor­
tadas por tesouras de reduzida originalidade. Tem duas pérgulas
também, duas ridículas pérgulas de madeira pintada de branco, onde
umas trepadeiras , que s e abrem em agressivos cachos solferinos , s e
enroscam mais o u menos raquiticamente. Sob cada pérgula, um banco .
Não são incômodos, mas que fossem ! não há bancos incômodos para
os casãis de namorados.
Nessa pequena praça, ouvindo a música medíocre dos repuxos, ora
numa, ora noutra pérgula, diariamente, ao cair da tarde, eu me
encontro com ela, com ela que é branca como uma açucena, que é
mansa como uma sombra, que é doce como um favo, com ela, cuja
voz é uma fonte cantando e cujo olhar traz para mim o mesmo
mistério do céu noturno .
Por esta hora, nesse bairro distante que o sol custa a deixar e cujo
vento é qualquer coisa de extraordinariamente notável, a pequena
praça é pouco freqüentada. Raramente crianças vêm brincar nas
retas ruazinhas de fino saibro, entre os quatro canteiros urbanos, em
volta dos repuxos . Para um casal apaixonado é uma solidão propícia,

171
uma amável solidão . Lá estamos todas as tardes, eu e ela, tecendo o
delicado tecido das esperanças, frágil teia que não resiste ao menor
sopro contrário .
- Você gosta de mim?
- Adoro !
Se eu morresse . . .
Bobo !
Então eu não posso morrer?
Não !
Sacudo os ombros :
- Pois morrerei . Morrerás . Morreremos.
Ela - que tem medo da morte! - treme :
- Não tem mais nada para dizer, não?
Tenho. Tenho um mundo de coisas doces e ternas, ó miragens,
ó sonhos, ó devaneios ! E tenho um mundo de coisas graves também.
Coisas graves e sérias, mas que jamais sairão, jamais confessarei, fica­
rão sempre dentro do meu peito inquieto, turbilhonantes, confusas -
oh, extremamente e dolorosamente confusas e opressoras ! - porque
tudo crestariam, pior que o vento da pequena praça, como um vento
de fogo .
E ela talvez adivinhe as minhas coisas graves e sérias. Põe em
mim os olhos cheios de amor :
- Amo-te com todos os mistérios da tua vida.
E é melhor assim.

Cai freqüentes vezes, ela, num contemplativo mutismo, o queixo


apoiado na mão e o braço apoiado no meu ombro .
Em que está pensando? - pergunto.
Em você.
Ora ! . . . Fala.
Gosto mais de te ouvir.
Abre o amável sorriso de claros dentes, responde numa moleza:
- Adoro! . . .
E amor é isto : se está triste, amo a sua tristeza, se está alegre, amo
a sua alegria ; e há palavras que parecem sem sentido, mas que caem
fundo no coração ; e há silêncios que valem por todas as palavras ; e
ora é um sorriso que nos leva para o céu, ora é um baixar de olhos
que nos traz o céu com mil estrelas .
Além de nós, uma vez por outra, um outro casal ocupa a pérgula
fronteira. Olham para nós, sorriem, compreendendo, e como nós de­
senrolam a eterna história dos corações. Mas são casais intermitentes .
Constantes, constantes como o vento, somos nós. Nós, os pardais, o
guarda e Liró.
Os pardais são inumeráveis - ciscam, chilreiam, voam, brigam,
amam . . . O guarda é um polícia municipal que deve andar pelos
1 72
quarenta anos, mas a quem se pode dar muito mais . Tem o porte
muito pouco marcial (o pagamento anda sempre atrasado ) e o andar
de quem já não tem mais pernas . Com seu cinzento capacete colonial,
escondendo um rosto avermelhado, gretado e melancólico, faz olho
morto e complacente aos nossos beijos, aos nossos abraços demasiados .
Já que o vento não consente na primavera dos canteiros, que ao menos
nos nossos corações - deve pensar ele - haja flores e outras mani­
festações primaveris. Atira pedrinhas aos esquivos peixinhos verme­
lhos no tanque, peixinhos japoneses cuja cauda tem a transparência
das medusas, fica horas e horas numa contemplação, não sei se estúpida
ou poética, dos repuxos que não se cansam na sua música monótona,
medíocre, inútil. Com uma continência conivente e frouxa, cumpri­
menta-nos quando chegamos às quatro e quando saímos às sete, mais
ou menos, hora em que a pequena praça começa a sofrer a noturna
invasão dos namorados do bairro .
Liró é o contraste do guarda. Liró é alegre. Liró é brincalhão .
Liró é saltitante� Mal apontamos, ele corre ao nosso encontro com
os olhos transbordantes de simpatia. Quando partimos , nos leva reli­
giosamente até a esquina mais próxima. Liró, sabemos, é realmente
nosso àmigo . Tem o fraco difícil das verdadeiras e desinteressadas
amizades .

Hoje não vimos Liró ( o nome foi posto por nós no primeiro dia
que viemos à pequena praça ) . Perguntamos ao guarda por ele. Com
voz surda, voz gasta, voz sem dentes, respondeu que não sabia. Sumira
desde a véspera, pouco depois de nos termos ido embora.
Ficamos tristes, inquietos ( os pardais chilreavam insensíveis ) . Se
tiver sido apanhado pela carrocinha, combinamos, irei resgatá-lo no
depósito público. Se tiver sido vítima dum automóvel - e ela ficou
com os olhos úmidos - não voltaremos mais à pequena praça. Porque
Liró é a vida da pequena praça, convencemo-nos . Toda a vida.

LABIRINTO

UM DIA era uma dor de cabeça, manhosa, impertinente, que o punha


zonzo ; noutro, uma pontada do lado ; lá vinha então um humilhante
desarranjo no fígado, que o obrigava a ficar em casa, acamado,
tomando salinos, perdendo negócios certos, numa época em que eles
se tornavam raros.
A mulher, macia sobre os chinelos de corda, chegava-se com um
suspirõ, acarinhava-o, cobria-o, triste e delicada :
- Você ainda gosta de mim?
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- Que pergunta!
Gostava mesmo, mas naquela hora o que ele gostaria era de ficar
bom e aqueles carinhos, aqueles temos olhares, todo aquele zelo suspi­
roso, deixavam-no insensível e até um tanto irritado.
Depois, vieram-lhe as tqnteiras . Quase que caía na escada do em­
prego, uma escada lúgubre, imunda, em três lances . Apoiava-se às
paredes . Via tudo tremer. Receava atravessar as ruas .
O médico garantiu-lhe que era lues, e receitou-lhe bismuto - no
princípio vai ficar mais excitado, mas depois . . .
Excitou-se. Chegou a berrar em casa, ele que era tão calmo, tão
delicado, tão paciente. Como prevenira, a mulher dobrou de tolerância
- é o bismuto que está agindo . . .
As injeções doíam que era uma barbaridade, sentava-se atravessado,
fartou-se de compressas quentes para desfazer os nódulos, agüentou
tudo na esperança de melhorar. Nada! Engordara só um pouco, mais
corado, melhor apetite. Danou-se. A mulher consolava-o :
- Você melhorou bem, João . Quem sabe se as injeções não foram
poucas? Por que você não toma mais uma caixa?
- Eu? Está louca!
Dona Maria do Carmo emudeceu ( era o bismuto agindo ) . Não :
era estupidez, brutalidade, doudice - abraçou-a :
- Me perdoe.
- Não tinha nada que perdoar, ora! . . .
Continuou abraçado, numa lamúria doce. Tinha medo da morte.
( Tolice, João. ) Tinha medo, sim - para que mentir? Ficar frio,
amarelo, duro, desaparecer . . . Virar pó, virar terra, nunca mais
voltar! E o enterro? ! . . . Todo aquele espetáculo, que já tantas vezes
presenc iara, lhe metia medo, um medo constante, terrível, mais forte
que tudo. Procurava disfarçá-lo, colocando a sua morte sob outro
plano:
- Como você ficaria se eu morresse aí de uma hora para outra?
Quinhentos e três mil réis na Caixa Econômica. Quinhentos e três
mil réis e nada mais, s enão os pobres cacarecos rebentados por oito
mudanças nos dez anos de casados .
Ela zangava-se, zangava-se e ria balançando os seios fartos :
___, Mas que idéia!

Nunca pensara que ele pudesse morrer. Que agouro ! Nunca pen-
sara e nunca pensaria :
- Doente todo mundo fica, João . Toma remédio e fica bom.
- Mas eu j á tomei, j á tomei tantos, qual! . . .
- Não acertaram, mas acabam acertando. As coisas não podem
ser sempre como a gente as quer. Tem fé em Deus, João !
Tinha. :a o que ele tinha, felizmente. Olhou para o crucifixo de
ferro pendurado na cabeceira da cama - veio-lhe aquela vaga espe­
rança de que podia ter uma melhora. ELE era misericordioso, ELE
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era o senhor de todas as almas , o condutor de todos os destinos,
ELE tudo podia.
Agora, não eram mais tonteiras somente. Sofria uma espécie de
susto, sem que houvesse o menor motivo . Ia muito bem, de repente o
coração pulava, depois parava, doía numa fisgada fina e vacuosa como
se ele descesse um elevador em forte velocidade. E após as refeições
passou a ter perturbações - o olhar se turvava, sentia ânsias de
vomitar - ânsia só! - pressão na cabeça, mal-estar, um suor gelado
pelas têmporas - pensava em congestão .
O médico das consultas grátis sabi a :
- É d o vago-simpático. V a i tomar u m calmante apropriado e
isso passa logo . Não é nada. Fique descansado .
Tomou - era azedinho - melhorava, piorava . . . Deu para contar
os seus males na rua. O amigo Bentes já tivera o mesmo .
- Verdade? !
O amigo era digno :
- Verdade. Tudo óculos .
- óculos? ! . . .
- É o que lhe estou dizendo . óculos! óculos fracos !
Realmente podia ser. Quatro anos feitos que não mudava as lentes
do seu tartaruga. Pensou em ir logo ao oculista. Mas andava sem
dinheiro, apertado, os negócios fracos - ó, miserável vida!
Falou à mulher. Ela lembrou :
- E os quinhentos e três mil réis da Caixa?
- Esses são seus , Maria. Estão no seu nome. - E fez ironia
amargurada : - É tudo que tem após dez anos de casada.
- Não diga isso, João.
- Sim, podia ser pior. Mendigo tem menos .
No outro dia, apesar da relutância, a mulher foi com ele à Caixa,
ficaram na caderneta quatrocentos e cinqüenta e três mil réis .
- O senhor relaxou demais , meu amigo . Está com a miopia
dobrada e o astigmatismo progrediu muito. Muito mesmo. O senhor
não desconfiou que estava vendo só numa posição , meio de lado?
- Com os diabos ! É verdade, doutor. Reparei. Reparei, mas não
dei importância. No cinema principalmente, só ficava de banda . . .
Mas quando eu havia de pensar que . . .
Levou a receita para a ótica Norte-Americana, por indicação ex-
pressa do médico - uma casa de absoluta confiança !
- Amanhã de tarde, sem falta, estarão prontos .
- Quanto é?
- Sessenta, cavalheiro .
- Adiantados?
O caixeiro sacudiu a cabeça, distintíssimo :
- É indiferente, cavalheiro !
Fosse ou não fosse, não os tinha. Tirara da Caixa somente os cin­
qüenta mil-réis da consulta. Dona Maria do Carmo voltou à cidade,

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a caderneta desceu para trezentos e noventa e três mil réis e os óculos
ficaram bons, aproveitando a armação antiga, que o comerciante re­
forçara graciosamente com um parafuso novo na haste.

( A morte de Seu Gomes foi uma afobação, tão generoso, tão amá­
vel. Era o fiador da casa. Seu João ficou aturdido . Correu os
amigos que podiam. Todos davam o contra, era impossível, era im­
possível, sentiam muito, muitíssimo . . . Por que não fazia depósito?
- perguntaram alguns . - Era prático, não trazia complicações . . .
Mas com que ele iria fazer depósito? Os amigos balançavam os om­
bros - se era assim . . . E afinal arranjou Seu Farjala, da Sapataria
Nero . "Fui muito amigo do seu pai, João. Muito! Alma grande,
boníssima! " )
- Está sentindo alguma coisa, meu filho?
- Não, isto é, as tonteiras .
- É nervoso.
Seu João suspirou. A ventania entrava pela janela, balançava as
franjas do abajur, feitas de ampolas, balançava as folhas do tinhorão
do vaso, trazia vozes de rádios da vizinhança. No céu escuro as
estrelas brilhavam com palpitante fulgor.
Conversavam :
- Que disga, hem?
- Danada.
Riram :
- Quando nos casamos, lembra? Pensávamos economizar um tan­
to por mês . Dez mil réis que fosse. Tudo para "a nossa casinha".
Nunca se fez.
- Nunca se deu.
- Quinhentos e três mil réis em dez anos! E que já foram mexidos .
Riram mais :
- Felizmente não temos filhos .
- É.
Houve um silêncio, como se um grande mal-estar tivesse p es ado
subitamente sobre as suas almas . O vento continua forte, balançando
a cortina, as folhas do tinhorão . E as estrelas brilhando. Brilhando
imensamente distantes, distantes e impassíveis no céu escuro, no céu
misterioso, no céu infinito. O céu infinito . . . que haveria no céu?
Astros, astros rolando, almas talvez, almas dos que morreram. Morte!
Veio um arrepio - Seu João tremeu . É o vento que balança, é a
morte . . . Morte ! Uma angústia pungente toma-lhe o peito e o si­
lêncio é demais . Foge do silêncio como se fugisse da morte :
- Maria . . .
- Que é?
Seu João ia falar, ia falar um mundo de coisas que gemiam no

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seu peito cansado, no seu peito medroso. Mas o homem bateu na
janela :
- Estão chamando ao telefone.
- Muito obrigada.
Seu João ficou sozinho, sentindo coisas, sentindo medo. Afinal
Dona Maria do Carmo voltou da padaria :
- É Dora, João. Está doente, de cama, com muita febre. Pede
para eu ir dormir lá.
O medo fugiu. É todo cólera :
- Que vá plantar favas ! Você não é enfermeira nem criada de
ninguém! Para que é que ela tem marido?
- O Júlio entrou de plantão à última hora.
- Eu sei bem o plantão dele como é. Sebo ! Só dão maçadas ,
aporrinhações . Se fosse para um teatro, para uma festa, nem se lem­
brariam . Convidariam o Casus a e a mulher. Mas como é para ter
trabalho, para passar noite em claro . . . Se arranjem! Eu também
estou doente e não dou trabalho a ninguém .
Dona Maria do Carmo ficou interdita :
- Vou?
- Vamos , pílulas ! É sua irmã, afinal.
Lá se foram, ele se queixando das tonteiras, do zumbido nos ouvi-
dos . . . - Parece um besouro, Maria.
- Também você fuma tanto, João . . .
- Não, Maria. Não pode continuar assim !
Não podia, não. Aquilo não era vida. Não podia contar consigo
para coisa nenhuma. Era um imprestável, um inválido, uma pobre
coisa miserável e sem remédio. As tonteiras persistiam, os tremores,
os sustinhas, tudo continuava, e cada vez pior. Melhor era morrer
logo duma vez!
- Meu filho !

Voltou ao oculista :
- Estou na mesma, doutor. O senhor disse que eu melhoraria
com as lentes novas . Nada! . . .
O oculista, que estava com o rosto sombrio, não respondeu. Era
metódico. Foi consultar primeiro a ficha do cliente. A enfermeira
trouxe o papelão azul. Ele leu e releu, balançou a cabeça :
- Custa um pouco, meu amigo . O senhor durante quatro anos
não mudou de lentes . Vai pouco a pouco. Calma. Duram muito essas
perturbações . As vezes vão a meses . São perturbações do labirinto.
Seu João riu amargo :
- Num labirinto vivo eu , doutor!
O médico abaixou os olhos pequenos que ( João reparou bem )
pareciam ter chorado :
- Também eu, meu amigo, também eu. Todos nós andamos num
labirinto .

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E sentou-se desoladoramente na cadeira de ferro, pintada de branco,
com a ficha na mão.

UM MORTO

ERA vrvo, inteligente, sarcástico, não se amedrontando nunca com o


tamanho dos medalhões . Pobre, lutara muito para se formar em Me­
dicina e, seis meses depois de formado, levava-o uma tuberculose ga­
lopante apanhada na miséria das pensões e das redações. Tinha vinte
e seis anos e cerrou os olhos serenamente na sua terra natal , entre os
pinheiros que tanto amava.
Admirando-o tanto, cumprimentando-o sempre com a melhor ale­
gria do meu coração, coisa curiosa, só uma única vez conversamos.
Também, conversamos mais de cinco horas seguidas . Foi à minha
casa, na tranqüilidade do Trapicheiro, numa noite calma de dezembro,
para me tomar uma entrevista a propósito de estilo literário, o que é,
convenhamos, uma das matérias mais difíceis de se explicar.
Em quinze minutos a entrevista estava feita, isto é, tinha dito tudo
o que poderia dizer, mas el e ficou sentado na minha frente, inteira­
mente à vontade. E a noite foi passando e nós, alheados do tempo,
pusemos para fora uma porção de sentimentos que às vezes não con­
fessamos aos amigos mais íntimos.
Um caso engraçado, principalmente, marcou essa noite amiga. Será
bom contá-lo : Uma tia velha, que veio da extinta nobreza monár­
quica, legou-me, entre outros obj etos antigos , duas famosas xícaras
do mais fino Sevres . "Ninguém jamais usou estas xícaras" , dizia-me,
para reforçar mais ainda o valor dos obj etos, que já era notável. E
continuaram virgens dos lábios humanos essas duas delicadezas, que
eu conservava, para o precioso encanto das visitas, em cima da cômo­
da de jacarandá, na sala de jantar. Na noite em que ele me visitou,
estava só em casa, entregue ao anestesiante cuidado de colar selos.
Para servir qualquer coisa ao visitante, requisitei os préstimos de uma
outra tia, que morava perto, duas ruas adiante, e que não é, como a
tia presenteadora de saudosa memória, de origem nobiliárquica. A
boa velha veio e preparou um café admirável, pois ela foi fazendeira
muitos anos em terras prósperas, hoj e decadentes, da baixada flumi­
nense. Mas pronta a bebida, deu-se o impasse - o que nunca ficou
muito bem aclarado - n ão sei se não havia xícaras em casa, ou se a
tia não as encontrou na minha copa, que, na ausência da família, não
era positivamente um modelo de ordem. Mas a tia não se apertou.
Sem que eu desse fé, foi à sala de j antar e arrebatou-me as famosas
xícaras de Sevres . Depois que ele saiu, tendo louvado o café para
vaidade da minha tia e louvado as xícaras para minha vaidade, a

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frágil herança da tia nobre voltou ao seu sagrado lugar sobre a cô­
moda e até hoje lá está. Mas como eu o tivesse levado ao bonde,
um bonde que às duas horas da manhã costumava ser quase mitoló­
gico naquelas paragens, na espera prolongada, não pude deixar de lhe
contar o fato. Rimo-nos bastante. E ele me contou em troca, abo­
toando o paletó contra o ventinho · que descia fino da mataria do
morro, qualquer incidente semelhante, que infelizmente não me lem­
bro. E o bonde veio, e ele se foi, e embora nunca mais tivéssemos
uma outra palestra (há coisas verdadeiramente inacreditáveis neste
mundo ! ) sempre que nos encontrávamos, trocando cumprimentos s in­
ceramente amáveis, ele tinha oportunidade de perguntar sorrindo :
- Como vão elas?
Eu já sabia por quem ele perguntava. E respondia rindo :
- Muito bem, muito obrigado. Continuas o único !

A MORTA

NÃo! Nunca pensei que Loló morresse. Nunca pensei. Tinha tanta
vida, tanta alegria, era tão moça . . . Apanhou um golpe de ar na
volta de um baile ( estávamos no inverno ) e em menos de um mês
a tuberculose consumiu-a como o fogo consome uma pequena palha.
( Taparam-lhe o rosto com um lenço de espessa seda branca, postou­
se sempre alguém da família ao lado do caixão para que ninguém
levantasse o lenço e da morta, inteiramente coberta de flores , só s e
viam a s mãos descarnadas, amarradas por uma fita, amarelas como
se fossem de marfim velho, emergindo das violetas . )
Magra, ágil, elegante, Loló era feia de rosto, mas os olhos -
somente os olhos ! - grandes, imensamente negros, faziam-na bela.
O pai era rico, bastante rico, a sua casa, recém-construída, era a
mais bonita da rua, branca, com os beirais azuis, um j eito de casa
de boneca. Fora educada em colégios caros , j á estivera na Europa
duas vezes, falava francês e inglês corretamente, vestia-se com muito
gosto e era muito simples . Travamos relações na praia, por acaso.
Depressa ficamos camaradas, conversávamos horas a fio, passeando
na calçada. Durou quase dois anos a nossa amizade - banhos de
mar juntos, cinema juntos, footing aos domingos no Posto 4 e muitos
livros emprestados mutuamente :
- Você já leu o Rosário?
- Não .
- Ah! é lindo .
- Não é romance para moças?
- É. Mas é lindo . Leia. Eu tenho. Tem que ler. Depois fale.
E eu li.

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Certa noite, certa noite de maio , Loló, encapotada, cortou brusca-
mente uma conversa sobre os costumes da Bretanha, que ela adorara :
- :E: pena você ser um tanto pirata.
- Pirata, eu? ! . . .
- Pirata, sim. Eu sei.
- Mas o que é que você sabe?
- Tudo .
----� Mas tudo o quê?

- Tudo, tudo !
Inutilmente pedi, implorei que dissesse o que sabia. Negou-se ter­
minantemente . Sabia, sabia, não precisava dizer, era de todo con­
veniente não dizer. Procurei vencê-la pela esperteza :
- Mas que interesse tem você, então, que eu seja ou não seja
pirata?
Foi ela' que me venceu :
- Nenhum! - e retomou a convers a interrompida.
Mas a verdade é que uma semana depois , se tanto, quando mal
pressentíamos , estávamos de mãos dadas . Sentávamos na porta de
uma casa desabitada (hoj e um sombrio apartamento ) e conversáva­
mos a princípio trêmulos, assustados, sobre assuntos muito diferentes
do assunto que nossas mãos conversavam. Uma estrela cadente riscou
o céu da noite.
Pense uma coisa boa. Depressa.
- Que coisa?
- Uma coisa boa. Um desejo! - e apertou mais a minha mão.
Largas manhãs de domingo à sombra da barraca listrada. O mar
não cansa. Alisávamos a areia com a mão, escrevíamos os nossos
nomes . A irmã mais velha zombava um pouco de nós, desmanchava
os nossos nomes, desenhava um nariz enorme ( o nariz de Loló ) e
outro nariz enorme (o meu nariz ) e escrevia por baixo : "dois bicudos
não se beij am" .
Loló ria :
- Inveja pura !
Apagava os narizes e traçava círculos, um ao lado do outro :
- Compreende, não é?
- Não se enxerga! - replicava a irmã.
E riam muito - era um símbolo que só elas sabiam o significado
- e eu ficava um tanto sem j eito e por mais que fizesse jamais con­
seguia arrancar de Loló a explicação daqueles círculos.

Uma vez, uma única, ela repousou a cabeça no meu ombro como
se estivesse ferida . Foi uma só vez e quase um só instante. A irmã
mais velha gritava por ela para jantar :
- Loló! Loló! Papai já chegou.
Desprendeu-se :

1 80
- Já vou! Já vou! Até amanhã.
- Até logo.
Até amanhã. Hoje tenho que ajudar papai. (Na cqleção de
___..

moedas . )
- Se é assim, até amanhã - conformei-me.
- Sonhe comigo.
- Vou sonhar.
No outro dia foi o baile fatal.
- Que pena você não ir - disse-me de tarde. - Eu gostaria
tanto que você fosse . . .
- Bem, eu também gostaria. Você sabe. Mas eu não tenho
smoking e mesmo se tivesse não sou sócio do clube.
- É . . . e eu tei1ho que ir. Todos vão .
- E por que não ir? Vai sim. Amanhã você me conta tudo.
Exceto, naturalmente, os flertes que teve . . .
Ela franziu o nariz exagerado :
- Enjoado !
Não ! Os olhos não morrem. E, tantos anos depois, eu vi hoje,
de relance, os olhos de Loló num bonde que cruzou com o meu!

QUATRO MOMENTOS
DE UM IDlLIO

AuRORA se mostrava mais alegre do que o sol, e o sol era radioso e


imenso, sol que lhe dourava a pele clara, sol vivificante e puro, que
sazonava os frutos nos ramos, que caía igual sobre o campo que o
regato corta, sobre os montes verdes que se perdiam azuis no fundo
harmonioso do horizonte. Parou :
- Aqui é o cercado dos carneiros.
Eles vieram, encaracolados, para ela que chegava. Puseram-se de
pé, mansinhos, fincando as patas dianteiras na grade de arame, fare­
jando, balindo .
- Estão doentes, Aurora?
- Doentes? ! . . . - e arregalou os grandes olhos castanhos .
- Sim. Parecem tão magros . . .
- Magros? ! . . . Você está brincando, não, meu filho?
- Olhe as pernas deles , Aurora. Que finura !
- Boa! Eles têm as pernas finas assim mesmo . Você nunca viu
um carneiro?
Só de figura. Parece incrível, mas é absoluta verdade.
- Tudo é possível neste mundo . Tudo. A sua vinda, por exemplo.

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- Acha?
- Acho.
Riram. Se ele lhe desse a mão? - e o coração tremeu como um
pássaro assustado . Mas Aurora adiantou-se e ele seguiu-a. Sultão
pulava e latia à volta deles . O porquinho passou, rabinho torcido,
redondo, rebolante, fungando.
- :E: de raça, Tonjco - disse com certo orgulho. - Custou um
bom dinheiro .
- Buldogue ou fox-terrier?
- Raça do seu nariz.
- Então deve ser raça distinta . . .
- Ah ! muito.
Na sombra da j aqueira, o ventinho era fraco. Os parasitas, p en-
durados no tronco, floriam.
- O quê?
- Vem ver, homenzinho, não amole .
Andaram dez passos, ela puxando p o r ele, como s e o levasse para
brincar de roda. Parou bruscamente e apontou-lhe a laranjeira.
- Veja!
- O que, Aurora?
- Bote uns óculos. Aqui! - e apontou com o dedo .
Ele viu - era seu apelido, Tonico, aberto a canivete no tronco .
Foi você !
- Não. Nasceu assim.

Tudo é treva agora que as sanfonas pararam, só os sapos persistem


na noite frígida de julho . Como era diferente das noites da cidade !
O coração oprimia-se ante o silêncio misterioso e desconhecido (só
o bater dos sapos ! ) em que os campos se afundavam.
Aurora percebeu, já sentira muito aquilo :
- A noite aqui é isto que você está vendo, Tonico . Acha pau?
- Não . Acho triste. Triste demais, talvez, mas a gente se acos-
tuma, não é?
Que remédio . . .
- E acaba gostando.
- Eu pelo menos acabei.
O cheiro do mato noturno perturbava-o estranhamente. Vaga-lumes
luziam. Chegou-se para ela como para um abrigo conhecido. Aurora
fugiu, convidando :
- Vamos jogar? E. o que fazemos para matar o tempo . Diverte.
- Vamos .
Saíram da janela. O grilo começava.
- Sabe jogar cassino?
- Pode ser que saiba, mas assim de nome . . .
- Se não souber, aprende. É muito fácil.

1 82
- Eu não acredito muito em coisas fáceis, você sabe.
- Há criaturas que nasceram com o único fim de complicar as
coisas.
- Muito ferina.
- Muito verdadeira.
Sentaram-se à luz flébil que tremia e o cheiro que s e desprendia
do lampião despertava em Antônio um sentimento de humildade, de
vida simples , jamais sentido . Aurora espalhou as cartas gastas, gor­
das , manchadas .
---. Parece um pouco com a escapa. Você sabe escapa?
- Não.
- Também você não sabe nada! . . . Mas olhe : o cassino é o
dez de ouros. O cassininho é o dois de ouros. Cada um vale um
ponto . O ás de ouros também vale um ponto. Guarde bem. Quem
fizer mais cartas marca um ponto. Quem fizer mais ouros, marca
outro ponto . Está ouvindo?
- Estou .
- Bem. São quatro cartas na mesa para começar o jogo. A
gente tem de ir casando : rei com rei, valete com valete, dama com
dama . . . E somando também os valores : um quatro com um três,
sete, e se você tiver um sete, arrasta.
Aurora embaralhava :
- Já sabe tudo . Agora é prática e inteligência.
- Vamos ver.
- Não me desiluda.
As mãos distribuíam, queimadas de sol, maltratadas - uma, duas,
três cartas - tão diferentes de que eram outrora - quatro, cinco . . .
- Comece você.
- Sou eu? !
- Distraído antes do tempo, Tonico?
- Não, é que eu não sabia que era eu que começava.
Pacheco se chegou, arrastando os chinelos, os óculos de metal ba-
rato pendurados na ponta do nariz brilhante e arroxeado :
- Quero entrar nessa dança também. Vocês não convidam?
---. Depois; papai. Ainda estou ensinando .
- Seu Tonico então não sabe?
- Nem estou vendo muito jeito de aprender.
- Vai-se com calma.
- É o que não me falta.
A luz oscila. Dona Rita cochila na espreguiçadeira. Tonico se
atrapalha nos golpes . Aurora queixa-se :
- Você em jogo é uma negação !
O pai ri, acompanha os lances, pisca o olho para Tonico
procurando auxiliá-lo. O s sapo s na treva, lá fora, continuam.
O grilo canta.

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Pancadas enérgicas na porta do quarto :
- Deixe os cobertores, dorminhoco ! Aqui não se emenda a noite
com o dia, não .
- Já vou. :E: u m minutinho . Estou pronto . S ó falta m e pentear.
- Eu te conheço, saracura . Vamos, pula da cama logo .
Entrava pelos vidros da guilhotina o sol lúcido de inverno .
- Está chovendo?
Aurora riu :
- Como cabelo de sapo.
Veio o café com leite na sala fresca, defronte de Aurora, diligente,
Aurora que está mais sadia, mais cheia de corpo, uma moça já.
- Ande daí, Seu Zé Preguiça. Tenho que ir dar milho às galinhas,
colher os ovos , soltar os carneiros . . . ( Eles berravam no fundo do
quintal . ) Ou você está pensando que isto aqui é câmara dos depu­
tados, onde ninguém faz nada?
- Você assim acaba tuberculosa . . .
- E você paralítico!
Dona Rita chegou da cozinha :
- Você está aperreando muito Seu Tonico . Ele veio para des­
cansar, não foi, Seu Tonico?
Aurora não o deixou responder :
- Descanso aqui é de noite. De dia tem que pegar no pesado .
Anda, vamos, seu malandro. Vem me ajudar.
Patos, perus, galinhas, marrecos os rodearam ávidos, pinicando o
chão que ela cobria de grãos.
- Esta garnisé que está aí perto de você é a mascote da casa.
:E: mansinha, mansinha. E bota que é uma beleza!
Abaixou-se e apanhou-a :
- Veja como ela é mimosa.
- :E: bonitinha, sim.
- Quase morreu há um mês mais ou menos . Ficou caída, não
queria comer, a cabeça cobertinha de piolhos. Custei a dar jeito
nela, p ensei que não escapasse, mas afinal ficou firme. Me deu
trabalho .
- Que é que você fez para ela ficar boa?
- Ah! uma porção de coisas . Azul-de-metileno na água; mas era
obrigada � meter a água pelo bico, pois ela não queria beber. Passa­
va querosene na cabeça para matar os piolhos . . .
As goiabeiras vingavam, o abacateiro j á era uma árvore, o cajueiro
subia. A vala, limpa, tinha nas beiras o tapete de agriões . Um
pequeno rego levava a água aos canteiros viçosos das alfaces, das
celgas, das couves, das hortelãs . As bananeiras cresciam na terra
preta.
- Aurora . . .
Que foi?

1 84
- Quer ir até lá?
- Lá, onde? !
- Na laranjeira.
- Não, Tonico . Nada de laranjeira agora. Vamos colher os ovos .
Tome, faça algum serviço útil - segure o cesto. Está com a mão
mole?
O cabazinho ficou até as bordas . Ela catava-os, agachada, revol­
vendo a palha, entrando no galinheiro fechado ( por causa dos gam­
bás ) , passando-os pelos vãos do tabuado :
- Tome mais este.
- Ainda não acabou?
- Tem mais este.
- Grande, hem !
Saiu cansada, vermelha, o cabelo correndo para a testa, mais bela,
infinitamente bel a :
- Porque é d e pata.
- E os carneiros, não põem?
- Põem, sim. Mas ainda não está no tempo . Lá para setembro.
Anda, grande humorista, vamos para a sala contar e separar isto .
- Para que tanta pressa?
- Isto é dinheiro, Tonico ! Nós vendemos. Vão j á para a cidade.
- Não sabia.
- Você acha que aqui vivemos de brisa? ·

Aurora separava-os :
- Vinte e dois , vinte e três , vinte e quatro . . . Este é de pata.
Este também . Vinte e cinco . . . Este é de peru.
- Peru ou perua?
- Não seja engraçado . Vinte e seis, vinte e sete, vinte e oito . . .
Outro de perua - está ouvindo? Vinte e nove . . . Este é de . . .

- Meu não é, que eu sei.


Ela gostou :
- Afinal teve uma que se aproveitasse. E trinta! Bastante, não é?
-
.S .

- Vicente ! ú, Vicente! Mamãe, onde está o Vicente? Os ovos


já estão contados para levar.
Dona Rita respondeu da cozinha :
- Ele já vai . Foi buscar lenha.
- Que moleque! Não toma j eito . Ontem eu mandei pôr, mamãe.
- Pôs verde, verde.
Aurora abriu o armário :
- A sobra é cá para nós. Ande, Zé das Dúzias, sai dessa leseira,
me ajude um pouco .
. De cócoras, ia guardando os ovos , que ele lhe passava. O pintas­
silgo cantava. Tonico escutava-o embevecido . A saudade de toda
uma época da sua vida acudiu de súbito . Saudades da casa no An-

1 85
daraí, a mãe áspera e tão boa, as brigas com o irmão - pareciam
·

cão e gato - os canários trinando na varanda . . .


Aurora, como que adivinhando, despertou-o :
- E os teus canários, Tonico? Você n ão me disse e eu me es­
queci de perguntar.
- Morreram, Aurora. Com a balbúrdia da morte de mamãe, eu
me descuidei . Morreram, coitados. Tudo morre, Aurora, tudo morre.
De vez em quando . . .
Ela segurou-lhe as mãos :
- Que é isso, Tonico?
Olhou-a - era a mesma Aurora, Aurora dos olhos que prometiam,
Aurora boa, a irmã que não tivera, a amiga que faltara, Aurora de
outrora. Aurora de sempre.
- Não, tudo não. - E enlaçou-a.
Pacheco chorava ao abraçá-los - tinha a lágrima fácil. Eu s empre
disse, não é? Eu sempre disse. Mas seria melhor acabar o curso
primeiro, não achavam? Todos concordavam. Faltava um ano só.
Um ano passa depressa. Que fossem dois ! O tempo voa - s en­
tenciou, rindo, os olhos vermelhos, abrindo os braços - o tempo
voa !
Dona Rita repetiu como u m eco :
- O tempo voa!
Abriu o livro de rezas e foi vendo os santinhos guardados entre
as páginas. Alguns tinham dedicatórias - "da tua Daducha" .
- Quem é Daducha?
- É uma amiga de colégio. Uma grande amiga.
- Como é que você nunca me falou nela?
- Há coisas que a gente gosta de esconder.
- Mas não devia esconder de mim.
Ela pôs nele os olhos castanhos, muito séria :
- Você não tem coisas que nunca me contou, que nunca me
contará?
Houve um silêncio.
- Não há grandes amigos.
- Para você.
- Não há mesmo .
- Eu sei que não sou nada para você mesmo .
Pararam no adro luminoso, que dominava a praça poeirenta do
lugarejo. Aurora ia no seu vestido novo, as formas um tanto gordas,
a boca carnuda, as pernas grossas e plebéias, as mesmas sardas que
pintalgavam a mãe como a marca de uma fábrica. Linda!
· - Ficou zangada?
- Eu? Não . Eu sei como você é.
Ainda bem .
___.

Tirou o domingo para me cacetear?

1 86
- Hoj e é domingo?
- ó, Tonico, vá amolar o boi!

EPISúDIO COREOGRAFICO

JÁ ouvi de um poeta que cada quadra da vida tem uma cor distinta.
Era um poeta gordo, sinistro, sem talento, mas também os poetas
medíocres dizem verdades, e, a acreditar nele, suponho que a minha
fosse azul aí por volta de 1 922. Eu era um rapazola e dançava. Pos­
sivelmente fazia-o mal . Mas como a idade não comportava auto­
críticas, não desconfiava disso. E era feliz. Os bailes eram fre­
qüentes, os convites muito regateados, e eu não perdia uma dança.
Ao voltar para casa, a madrugada rompendo, vinha tonto . Se disser
que era de tanto rodar, minto . Porque por esse tempo imperava o
one-step, isto é, um marchar sincopado para a frente e para trás ,
como o andar dos caranguejos, sem mais fantasias que um voltejo
nas curvas . Mas havia louras, morenas, indefinidas . Explicar é difícil.
A pena emperra em muitos casos . Este, um deles . Ser sumário é
melhor. Quem já teve dezessete anos compreenderá logo . Uma
vertigem!
Armando não dançava, bom Armando, que a vida levou para longe,
casado, carregado de filhos , como magro professor de aritmética,
álgebra e geometria numa cidade do interior. Se me perguntarem
o nome dela, não saberei responder. Apenas sei vagamente, por ter­
ceiros, que é em Minas , no alto duma serra, com clima restaurador
para os doentes do peito. Tal ignorância tem a sua desculpa -
depois de homens feitos nunca nos procuramos . As duras contin­
gências da vida levaram-nos para ambientes bem diversos, modifica­
ram-nos o temperamento, separaram-nos de modo irremediável . Que
ele se tenha esquecido de mim não acredito, mas se tal acontecer,
não há que condená-lo. Não é ingratidão, garanto . São gênios . Eu,
por exemplo, não o esqueço.
Fomos amigos, quase inseparáveis . Morava no mesmo quarteirão,
filho único e órfão de pai. Juntos estudávamos . Juntos fizemos o
princípio da nossa formação literária, dupla bebedeira de Eça, Ma­
chado, Pompéia, Dickens, Daudet, Hugo, Balzac, Flaubert e Mau­
passant. Juntos declamávamos . Eu mal e pouco, ele bem e muito.
Memória fabulosa, que a nicotina não obscurecia, sabia de cor todo
o Guerra Junqueiro, todo o Castro Alves , todo Bilac, todo o Cesário
Verde. Os sonetos ficavam na sua cabeça como livros numa estante
arrumada. Se tinha memória, tinha também espontânea propriedade
de gestos e de tons . Com voz soturna e punhos ameaçadores , can-

1 87
tava os horrores da escravidão. Com voz satânica, dava Baudelaire
traduzido por um vate português . Com voz trêmula, o olhar que­
brado, esvaindo-se em suspiros, falava de beijos e raios de lua, folhas
de outono e pálidas donzelas sobre coxins dourados . Era da poesia.
Como chegou às matemáticas diz a necessidade que opera prodígios .
Tinha as pernas longas, um andar desengonçado, o cabelo rebelde
e negro invadindo a testa curta, abusava do cigarro. A amizade ate­
nua o realismo, razão por que eu amenizo a verdade dizendo que
Armando amava pouco a limpeza. Amava pouco a limpeza, mas a
mãe amava muito o filho e o atormentava com imposições higiênicas .
Ele, para contrabalançar, atacava-lhe a pintura, os trejeitos elegantes,
as toaletes um tanto espaventosas . Com isto deixamos claro que eram
como irmãos e que Dona Marta, se não era nova, se não era mesmo
conservada, era coquete é como tal deixava-se possuir pelos capri­
chos da moda. A moda aí era dança, mas a dança americana, que
expulsou dos saraus a valsa, a polca, o chótis, já que o samba nesse
tempo era propriedade da ralé, indecente, exagerado e indesejável,
disfarçando-se em maxixes para uso exclusivo dos clubes carnavalescos
e cabarés.
Ora, se dançar o one-step era o último e supremo chique, infeliz­
mente Dona Marta não o praticava. Não por ser um tanto cheia de
corpo, não por não saber dançar, pois fora até disputada valsista
nos salões dos seus vinte anos, sendo mesmo, numa festa do Clube X,
que, perdido por seus encantos, o Doutor Marcos lhe propôs casa­
mento, casamento feliz realizado meses após e desfeito pela gripe, que
em 1918 carregou desta para melhor o ex-apaixonado valsista depois
de três dias de delírio. É. que simplesmente não se ajeitava ao com­
passo novo, "muito prosaico, muito pouco romântico", dizia. Bem
que tentara. Fora um desastre. Pior, o Fluminense pedia a sua pre­
sença num chá-dançante de caridade. A festa comportava uma nota
de alta originalidade ( alvitre de Sinhazinha Flores) - as patronesses
alugar-se-iam aos cavalheiros . Depois de cada dança (fatalmente
one-step), o cavalheiro depositaria na sàcola de seda da dama quanto
lhe mandasse o cavalheirismo, a piedade, ou a conveniência. O pro­
duto reverteria para os cofres de proteção às obras da igreja de São
Domingos, em adiantada construção. Para destino tão útil e elevado,
os corações tinham de ser generosos. E Dona Marta era patronesse . . .

Era para desesperar! Não por vaidade, mas por piedade, o coração
lhe mandava que a sua sacola fosse das mais favorecidas .
Dona Marta sofria. Tivera ímpetos de socorrer-se de uma escola
de dança. Mas tinham tão má fama que não passou de projeto.
Dona Marta era virtuosa. Era principalmente irmã de São Domingos
e lembremos o que há de incompatível entre essa pia irmandade e o
assoalho suspeito de uma escola de dança. Era horrível ! Há rugas
de contrariedades . Dona Marta criou duas para se juntarem às que,
188
apesar dos cremes, lhe tinha trazido o tempo, que é a maior e a
mais inconsolável das contrariedades . Criaria outras se não fosse o
filho. Amado filho ! Inspirado Armando ! Se tanto o recriminara -
bobo! desajeitado ! imprestável! - por não saber dançar, tudo per­
doou (quanto pode um coração agradecido ! ) , tudo perdoou quando
ele perguntou se não gostaria que eu lhe ensinasse os passos da dança
nova. Se gostaria! . . .
Foi assim que, embora afirmasse com modéstia não saber dançar
bem, foi assim que a sala de jantar de Dona Marta tomou um as­
pecto diferente e didático, porque ensinar o one-step não deixa de ser
instrução.
A mesa e as cadeiras foram encostadas a um canto, o tapete saiu
enrolado para um outro, a vitrola veio da saleta, que fazia de sala
de visita, imprópria pela exigüidade para o exercício de uma varie­
dade coreográfica que pedia relativo espaço. No assoalho encerado
foi passada - para maior conveniência e propriedade - uma dose
respeitável de espermacete. Escorregava e brilhava - era sabão e
espelho ao mesmo tempo . Nele se refletia, ansiosa e ruborizada pela
emoção, a bondosa senhora que se pusera num vestido leve "para
facilitar", embora eu não visse relação alguma entre um vestido tão
transparente, tão decotado, tão braços nus e aulas de one-step, tanto
mais que estávamos no inverno, um inverno bem chuvoso e bem
frio. Nele se refletiam as minhas botinas de bico-agulha e cano de
camurça cinzenta - que era o furor do chique sapata!! - a minha
gravata-borboleta em estilo de petipuá, a minha calça curta e estreita
na barra, tão estreita que calçado não a podia tirar, o que represen­
tava um infalível teste de elegância para os requintados da época.
Abotoei o único botão do paletó comprido, muito cintado, e a aula
começou. Tomei a sua mão esquerda na minha ( era uma mão gor­
da, macia, bem tratada), enlacei-a com o braço direito e expliquei
as posições.
- É assim, Dona Marta. Bem junto. Quase colando ao cavalheiro.
Dona Marta estremeceu :
- Quase colando?
- Sim, quase colando. E as pernas um pouquinho abertas .
Dona Marta teve um risinho nervoso, fugiu com o corpo e para
se acalmar, penso eu hoje, foi que perguntou :
- Como?
Eu repeti a figura. Ela deixou cair o braço flácido sobre o meu
ombro, comprimindo os lábios. Armando, sem palavra, fumando,
apreciava as manobras, esparramado num poltrona de molas .
- Vamos - fez ela, com um sinal de cabeça complementar.
Procurei trazê-la mais para mim. Dona Marta, porém, apesar do
emoliente perfume que lhe era peculiar, ficou dura, distante, resis­
tindo. Eu corrigi-a:
189
- Não fuja com o corpo, Dona Marta. Bem encostada, faça a
cintura mole.
Ela descomprimia os lábios, sombreados por um buço alourado :
- Sim.
Encostou-se com suficiência, seu perfume sufocava, eu firmei ainda
mais o braço na sua cintura. Mas a cintura continuava dura, dura
por causa da cinta com que Dona Marta prudentemente se esbelti­
zava. A vitrola já andava no meio da "Gigolete". Eu relaxei:
- Muito bem, Dona Marta. Agora vamos mesmo.
Ela sorriu, graciosa, dócil. Dei o primeiro passo. E fui para a
frente, mas Dona Marta também avançou. Foi um esbarro, ficamos
no mesmo lugar. Rimos. Armando não riu. Dona Marta estava
vermelha.
- Meu filho tem a quem sair . . .
- Qual, Dona Marta! . . É questão de um pouco de paciência.
.

Procure apanhar o compasso e me obedecer.


Ela mostrou o fio claro de dentes que o tempo respeitava e fez-se
resoluta:
- Toca para a frente!
Outro passo, novo esbarro. Dona Marta era um tanto cheia de
·corpo, já disse. Além disso era mais alta do que eu, que, franzino,
não tinha forças para comandá-la, conduzi-la, contê-la ao menos. Não
fossem os dois copos de cerveja e a aula teria sido impossível. Porque
Dona Marta, antes de começarmos, numa cortesia feliz, abrira cer­
veja. Duas garrafas. Bebi dois copos cheios . Mas eu tenho a ca­
beça fraca. Dois copos, e a alegria jorra, a consciência do ridículo
desaparece. Foi sob esse benéfico influxo que demos um terceiro
esbarro. Pusemos novamente o disco que terminara e lá fomos aos
solavancos pelo ringue da nossa disputa, eu teimando em dirigi-la, ela
mandando realmente com o corpo de chumbo, que não abrigava a
menor parcela do "instinto do one-step".
Após uma hora, alagado em suor, desalinhado, o braço dormente,
as botinas miseravelmente arranhadas, desabei no sofá. Dona Marta
caiu ao meu lado, não menos suada, não menos extenuada, mas
feliz.
- Agora sei - disse com o melhor e mais sincero sorriso. -
Agora eu sei. Não farei feio !
Não sei se fez. Não fui ao chá, nem conhecia ninguém que tivesse
ido para me informar. Sei que Armando me perguntou na rua:
- Você acha que mamãe aprendeu?
A pergunta foi séria, mas eu me ri, ele também, porque se é
que Dona Marta aprendeu foi com ela mesma. Durante uma hora,
apesar dos meus bons esforços em contrário, ela dançou o que bem
entendeu como sendo one-step. E, se houve um aluno, este fui eu.
Aprendi que caridade e cerveja eliminam o ridículo, o que é mora­
lidade e alta moralidade.
190
.A MOÇA E A PRIMAVERA

A VIZINHA parara de solfejar, lição bissemanal de canto que não pro­


metia muito para a aluna, garota, aliás chatérrima. No edüício em
início de construção prosseguiam, espaçadas, as reboantes pancadas
do estacamento, que matinalmente tanto afligiam o pai sem obriga­
ção de acordar cedo:
- Que inferno! Não se pode dormir mais nesta casa!
E o calor enlanguescia, imprevisto calor, pesado de mormaço, sem
vestígio de brisa. A revista apenas folheada - leitura dava-lhe sono
- ficara aberta e abandonada na suave concha da barriga, os seios
doíam um pouquinho, a blusinha desabotoada, amarela, de mangas
enroscadas até o antebraço penugento. Márcia fez oscilar a rede com
uma leve pressão do pé bem tratado, tão leve, imperceptível movimen­
to pelo temor de que ele pudesse enxotar os pensamentos como um
gesto brusco ou inútil faz debandar o bando de rolinhas, rolinhas
mimosas, uns amores de bichinhos, de olhinhos redondos como con­
tas, que confiantes ou atrevidas vêm pousar no peitoril da janela e
nos ferros da cortina de correr, onde ficam pinicando as penas cor
de barro, ou observando o ambiente com a cabecinha arisca. Os
cabelos finos, lisos, escorriam pelos ombros em trigueiro desalinho,
um braço sob a nuca, o outro estendido ao longo da coxa, o corpo
esbelto e perfeito se afunda nas malhas da rede como peixe vencido,
os olhos rasgados e castanhos estão pregados no teto da varanda -
tem dezoito anos, feitos naquele inverno que se despedia, inverno
extremamente movimentado, com contínuas noitadas e esticadas que
os pais , sem força para reprimir, acabaram tacitamente por aceitar
com sub-reptícias admoestações do tipo :
- Leva a chave?
- Vai assim tão à frescata?
- Quando chegar, por favor, faça menos barulho!
Seus pensamentos não são claros - têm também dezoito anos.
Antônio Carlos é baixo, quase louro, mãos delicadas, um tanto sobre
o gordo, conhecera-o na exposição - um chute! - do barbado e
guedelhudo pintor abstrato, bicha infernal que se mandou para Paris
com uma bolsa de estudos.
- E já vai tarde! - dissera Antônio Carlos, que colecionava
gravuras e livros raros, muito orgulhoso disso se sentindo, e mos­
trava-os dessorando estesia: - Veja que beleza! Veja que categoria!
Não é mesmo de deixar a gente babada?
E ela, tão monossilábica, como convinha para esfriar entusiasmos:
- Tá . . .
- Pérolas para porcos ! - rosnara quase rancoroso.
- Gostei, como não gostei? ! - repelira. - Não preciso cair de
joelhos, nem desmaiar de gozo !
191
E ele, muito cruel:
- Você nunca desmaiará de gozo!
Abelardo, galante e bom no copo, é alto, moreno, enxuto, pintoso,
com os lábios muito grossos e dois ou três fios brancos já - ela viu!
- se escondem no cabelo cortado rente - "Pra não usar pente,
morou?" - e era relação travada numa turbulenta jam session do
Mansion House Country Clube, de que fora incorporador e agora era
animado maioral:
- Este saxe é uma brasa!
- O outro é mais violento. Bárbaro !
- Veio com eles?
- Vim. Sou da turminha.
- Turminha igual . . .

- Dá suas panes . . .
- Mais cuba-libre?
- Pode ser.
- Tem programa para amanhã?
- Depende . . .
- Depende de quê?
- Da conversinha . . .
E assim começaram. (Inclina-se pelos homens mais velhos, não
muito mais velhos, é óbvio! Desde guria é assim - gostava de ser
acarinhada pelos amigos do pai, que ainda estava legal, achava os
rapazes muito enjoados, muito bobocas, uns presumidos, nem ligavam
para ela, como se fosse um rebaixamento total olhar para uma me­
nina, embora bonita, pois ela sabia que era bonita - se era! ) Mas
Antônio Carlos tinha óculos. Por que é que os óculos emprestam
mais idade a um homem do que mil cabelos brancos? Não podia
era gostar da armação que ele usava, sem aro e de hastes metálicas
muito fininhas, armação que punha no seu rosto arredondado uma
claridade gritante, como certos closes de cinema, um jeito de profes­
sor, ai, como tinham sido chatos os seus professores, todos, menos o
professor de inglês - um doce! - maneiroso, contador de anedotas
de subentendida bandalheira, não perdendo vez de devassar decotes,
de dar roçadinhas nas alunas, de pegar na mão delas quando iam ao
quadro-negro - e Bebete tinha sido pilhada com ele em love na
Barra da Tijuca, a sonsa! Mesmo não estavam na moda - quem
mais usaria uma velharia daquelas? Só por pirraça, como ele ! Por
que é que não a trocava - e tantas vezes ela insinuara, pedira, exi­
gira, e ele neca! - por uma armação moderna, italiana, dessas que
escondem as sobrancelhas, ensombram a face e dão um toque de
vigor, de firmeza, de atualidade? óculos, estava visto, eram como
unhas pintadas: tinham de acompanhar a inoda, hoje vermelhas,
amanhã róseas, depois escarlates, brancas, roxas, prateadas - o in­
finito! Eram como o penteado que tem de se ir variando - "Não
adianta bufar, Antônio Carlos, eu danço conforme a música!" -
192
para não correr o ris�.:o de ficar muito da saquarema. E Antônio
Carlos fingia não compreender isso, só por picardia, só pra chatear,
pois compreendia tudo o que era moderno e oportuno, sabia distin­
guir perfeitamente tudo quanto era de bom ou mau gosto, não se
iludia, nunca! com as aparências e circunstâncias ; se dizia de uma
cois a : "Não presta", ela pulava, ficava furiosa, deblaterava, porém
acabava vendo que não prestava mesmo. Fazia, com ar pré-vitorioso,
um tantinho de pos e :
Não vai nesta, morena, que é grossura . . .
- Ah, já vem você com a sua antipatia . . .
- Grossura, grossura . . . Total !
Ou então :
Muito quadrado, filhota.
- Que quadrado ! Divino!
- Quadrado, quadrado . . . Quadradíssimo !
Ou ainda :
- Um bagulhame!
- Que bagulhame! É o fino da bossa!
- Isso não é música, benzoca, é só barulho. Válvula de privada
também faz barulho.
- Muito limpa a comparação . . .
- De acordo com o que ouvimos . . .
No entanto os óculos anacrônicos continuavam . . . e como era trn­
tante vê-lo a os limpar, demoradamente, demoradamente, com papel
Yes, de que sempre trazia provisão no bolso. Os óculos e a voz in­
corrigível. Bem, como poderia comparar a voz de caixa de Antônio
Carlos - trá, trá, trá - com a voz ondulante, oleosa, escorregadia
de Abelardo, aquela voz que só tinha sons macios e surdos como
se todas as suas frases fossem uma declaração de amor?
____. Márcia, Márcia . . .

A música lânguida, pegajosa, no escurinho estreito e enfumaçado


da boate, e a voz macia e surda, cheirando a uísque, escorregava-lhe
pelos ouvidos, vinha cair quente no coração, fazia-a trêmula, em­
briagada, como se tivesse tomado um pilequinho - ai, seus pilequi­
nhos ! -e os passos, como se empenhadamente houvessem ensaiado,
estavam sempre completamente certos no compasso - completamen­
te! - enquanto a crooner cantava em surdina o blue "Meu coração
brinca com o teu", um pouco bitolada, tombando triste sobre o mi­
crofone, com seu decote, seus colares, suas pulseiras, seus brincos
imensos, podres, P<?dres ! Mas também ficara trêmula, emocionada,
na tarde no jardim em que se encontrara com Antônio Carlos, e
não por puro acaso, como ele dera a entender. O sol era uma festa,
o mar nunca foi tão azul e tão plácido, os gramados nunca se esten­
deram tão verdes, as montanhas lá longe jamais foram tão espeta­
cularmente nítidas contra o céu sem uma manchinha de nuvem, e
havia gaivotas pairando e mergulhando. Iam devagar - sentia-se
193
tão maravilhosa no redingote de seda pura, que ele não elogiara,
mas vira nos olhos dele que gostara, como o vira fazer nariz torcido
para a excessiva pintura das pálpebras. O saibro estalava aos seus
pés, a estátua dormia o glorioso sono de bronze ameaçado pelos
gatunos . Foi sob o oitizeiro, as raízes como imensas minhocas sus­
pendem a terra :
- Márcia, Márcia, você sabe . . . - e ele tinha os olhos no chão,
o passo incerto, um perfume de água-de-colônia tão masculino e
sedutor.
Sim, ela sabia, e a voz de caixa, como máquina emperrada que
tentasse se mover, dizia-lhe que . . . Não ! não lhe dera a mão enlu­
vada como ele pedira, quando . por tantas vezes o fizera. Era preciso
que ele sofresse antes um pouquinho . . . Antônio Carlos não insistira
- que velhaco ! Os pardais estavam doidos no gramado. Os minutos
voavam.
- Vou dar o pinote, bem. Estou na hora.
- As mulheres nunca estão na hora.
- Mas agora estou.
- Que se há de fazer . . .
- Obrigação é obrigação, tá?
- Bolas para as obrigações ! Que se lixem!
- Você não diz que devemos ser exatos, pontuais, não diz?
- As vezes . . . Não exagere.
E tomaram o elevador para a igrejinha da Glória, onde ia se reali­
zar o c asamento da amiga de colégio, colega de carteira, tão burrinha,
_
coitada! tão mixuruquinha de miolo, mas tão prestativa, atenciosa,
educadinha, com a carteirinha sempre pronta para atender às neces­
sidades das companheiras, que não pagavam nunca, sem que ela ja­
mais reclamasse . . .
Desceram, olharam - uma pequena multidão de convidados plan­
tava-se tagarelante à espera dos noivos na porta da igreja, marcada
pela fuligem das velas votivas.
- Que ostentação ! Que estupidez ! . . . - zombou a voz de caixa.
- Lindérrimo ! - retrucou ela.
- Há gosto para tudo . . .
- Não há quem duvide . . .

- Fico por aqui . Não estou nem convidado nem conveniente-


mente paramentado para enfrentar este subgrãfinismo todo. - Fez
uma pausa : - Posso ofender o olhar gelado dos que vivem sós . . .
Ela boiou, mas não se deu por achada, sorriu como quem entendia
e ele tirando o maço de cigarros do bolso :
- Quer?
- Agora, não.
- Mulher nunca deveria fumar, é a verdade. (Estava com um
paletó esverdeado, as calças cinzentas, os sapatos de camurça cor de
rapadura. )
194
- Não vejo mal algum.
- Não é por mal. É sujo apenas.
Deram alguns passos, em direção ao palanque vermelho e florido
onde os noivos receberiam os cumprimentos , o ventinho soprava da
barra, um grande navio branco vinha entrando .
- E então?
Ela não respondeu, ele p�rou no adro, gostava tanto daquelas pe­
dras antigas, daquele sobradão no fundo da igreja, daquele poço
vedado, daquelas árvores e bananeiras, do ar de passado que ali se
respirava - já ali tinham ido umas duas vezes - e tanta gente
chegando, tantas jóias mirabolantes, tantos mirabolantes chapéus de
plumas alugados :
- São de arrepiar, confessa?
Ela riu, ele acendeu o cigarro finalmente :
- Quer que espere? - e os olhos desviavam-se para o mar, para
o branco navio, para a silhueta do Aeroporto .
- Não ! - e queria dizer sim.
Abotoou o paletó :
- Bem, inté . . . - e virou-se e foi embora pela ladeira sem
olhar para atrás - o bandido! - cabeça levantada, o andar de pés
levemente espalhados, como o andar dos patos .
- Olá!
Bebete avançou para beijocá-la, mais verde do que um periquito.
Maria Lúcia trazia peruca nova. Que lixo a maquilagem de Marta
Palhares ! E Dulce Limoeiro jamais saberia comprar um sapato! . . .
Na nave os convivas se acotovelavam. E as velas acesas, e o
cheiro perturbador da cera como na capela do primeiro colégio em
que estivera e onde Mere Louise, a superiora, lhe vaticinara um futu­
ro terrível, e o cheiro das flores, do incenso, e o canto nupcial, os
violinos, o órgão rolando como música celestial, e a voz feminina
quebrando-se contra as paredes de azulejos e cal como um chamado
absurdo, e aquela mordente vontade de ser ela a noiva e ajoelhar-se
submissa e angelical aos pés do padre vermelho como pimentão, com
um véu que seria tão comprido, que, quando ela estivess e no altar,
a cauda ainda estaria, alva e rendada, se arrastando pela passadeira
grená até os degraus da entrada! O coração pesou-lhe. Por que dissera
"não"? Alguém deveria dizer : - "Márcia, decide-te, a vida é um
momento. " Mas ninguém lhe diz nada e ela, afinal, não sabe mesmo
o que é melhor: se uma sessão de cinema com Antônio Carlos (­
"Nunca vi fita tão besta! " - "Adorável!" - "Vocês engolem qual­
quer droga. ") , se um banho de mar com Adalberto, os bichinhos da
areia pinicando-lhe a carne nas barracas do Arpoador e os olhos dele
comendo o seu corpo suado : "Manera, meu praça, manera . . . " E
o mais complicado é que Adriano, campeão de boliche, é um pão, tem
um carro muito do bacana e vai aos States todos os anos, Luís Cláu­
dio e Nonô Silveira são para lá de simpáticos, de camaradas, de le-
195
gais, tão ao seu paladar para um papinho ou para uma badalada
pela aí, e Joãozinho Boa Pinta gasta as camisas esporte mais absolutas
deste mundo, dança divinamente - uma gamação .
De repente a mãe grita de dentro :
- Márcia! Almoço !
Cortou-se o fio de tudo :
- Já vou. ( Esta minha mãe não se manca! )
E a mãe está irritada :
____. Vem logo! Você não sabe que estamos sem empregada?!
- Né novidade . . .
- Nem eu aqui dando duro, malcriada! Só eu! Anda logo!
- Já vou! Já vou! ( E teria de enfrentar a lavação de pratos para
ajudar - é fogo ! )
Levanta-se, mole, espreguiçando-se, enfia as sandálias douradas , os
seios doíam mais, e um sol magro joga no ladrilho a sombra defor­
mada no corpo queimado e em flor, que ela tanto gostava de admi­
rar, nu, no espelho do guarda-vestidos. Mas antes de entrar dá uma
espiada lá para baixo, para a rua, como um vício a que não pode
fugir. Um homem de blusão, outro homem, duas crianças e um
cachorrinho atrás deles, muito alegre, de rabinho torcido, o fusca
verdinho do Major Jurandir falhando - devia ser do carburador; an­
dava de azar o bonitão - em vinte dias, duas batidas ! Dá um
suspiro :
- Matusquela que eu sou!
Em vão as azáleas solferinas do vaso teimavam na varanda do
apartamento colado à pedreira, com uma nesga só de mar para afa­
gar a vista. As outras varandas, todas as varandas, estavam silencio­
sas e sem flores como túmulos esquecidos. Ninguém percebia que
era o primeiro dia da Primavera. (Uma névoa espessa, leitosa, es­
condia os morros, o mar, as ilhas, atrapalhava os aviões, e os jornais
da tarde noticiariam laconicamente a morte de dois pilotos civis, que
não encontraram o campo de treinamento ao tentar descer em vôo
cego . )

COMPOSIÇÃO DE CARNAVAL

MARIA RosA ficava no fim da serpentina, cabelos deslumbrantes de


alvoroço e dourado, bailarina azul, solitária sobre a capota descida
do trepidante automóvel.
O corso rodava, vagaroso, com tripla fila, com amplas e seguidas
paradas, entre alas· de ditos e fantasias - havia corso, então, foi há
tanto tempo que os automóveis ainda não eram fechados para os
196
donos não sofrerem frio ou poeira e esconderem melhor seus misté­
rios de amor.
Em parábolas, as serpentinas cortavam o ar da Avenida, desagua­
douro dos foliões de todos os bairros, compacto manto feliz de narizes
falsos, máscaras grotescas, vozes de falsete, cantos, rodopios, reco­
recos .
A serpentina não findara. Maria Rosa recolheu no regaço de filó
o rolo quase intacto; num gesto difícil, desajeitado, devolveu a fita
amarela com o beijo na ponta que veio estalar no coração juvenil, e
que ainda hoje ecoa com a mesma cor e fragrância na entrada de
um outro carnaval sem corso e sem serpentinas.

Ai seu Mé!
Ai seu Mé!
Lá no Palácio das Águias
Olé!
Nunca hás de pôr o pé!

Das sacadas pejadas de gente tombava o confete, gotas multicores


de papel, que escondiam o chão ; o céu ameaçador para os lados do
mar estremecia de relâmpagos ; o calor como onda misturada de éter
perfumado não diminuía o furor da alegria; e o chii dos lança-per­
fumes e os gritinhos nervosos das moças atingidas pelo friozinho
folião e gentil.
A serpentina parecia inextinguível. No meio de mil outras, minha
e amarela, ligava dois desejos fugazes por suas pontas frágeis. Nova­
mente cortou o espaço a caminho do regaço azul. Parou ao meio,
finda afinal, ficou vibrando no ar como desesperada bandeira com­
pridíssima. Ah ! abriu a boca pintadíssima - outra! outra!
Voou ao maravilhoso apelo a serpentina azul, que se confundiu no
saiote da bailarina por três dias e as pernas alvas cerraram-se para
contê-la.
Vem serpentina azul, vai serpentina vermelha, os estandartes im­
provisados requebram no meio do povaréu, os trombones usam toda
a voz, os pandeiros, os chocalhos, os instrumentos improvisados com
latas e caixas de charuto atordoam, todas as bocas, milhares de bocas
sabem de repente a mesma canção, um único ritmo como que sacode
a Avenida de ponta a pónta, e Maria Rosa canta também e sacode-se,
bamboleia, bate palmas, mexe com os desconhecidos e segura-se me­
drosa aos ferros da capota, quando o carro dá um arranco para parar
dois metros adiante.

Ai seu Mé!
Ai seu Mé!
Lá no Palácio das Águias
Olé!
Nunca hás de pôr o pé!

197
Maria Rosa tem pouca direção nos seus golpes - a serpentina
verde passa longe do meu alcance, a violeta bate no pára-brisas, a
branca atreve-se a deslizar pelo grande bigode do chofer ao meu lado
- quantas se perdem pelo chão, escondendo-se no tapete de confetes,
esmagadas pelos pés dos mascarados e pelas rodas dos carros!
Mas mesmo assim os nossos carros vão se unindo na trama rápida
e enamorada das fitas de papel - sou rico de serpentinas, de entu­
siasmo, de desejo. Os pierrôs que a acompanham - três de preto,
imensas golas escarlates de tarlatana e guizos - vivem o seu mo­
mento carnavalesco em pé no automóvel. Do meu lado os compa­
nheiros têm olhos para outros acontecimentos . E estamos como que
sós no meio da desordenada batalha e os carros chegaram a ficar tão
juntos que nos falamos.
Debrucei-me no pára-brisa :
- Como é o seu nome?
Passa o caminhão de crianças e girassóis, como um imenso cara­
manchão, num alarido :

O povo só quer a goiabada


campista.
Rolinha desista,
Abair:e essa crista ...

Insisti :
- Como é o seu nome?
Apurou o ouvido :
- Quê?
- Como é o seu nome? - e o chofer me olhava de soslaio.
Trazia a boca pintada em forma de coração :
- Meu nome? Para que saber?
Atrevidíssimo, delirante :
- Porque gostei de você.
Tão brejeira :
- Oh!
Os carros arrancam em estampidos e fumaça, o liame de serpen­
tinas resiste ao retesamento, os relâmpagos amiúdam-se, se escurece
não é só a tarde, é a tempestade de verão que vem e é preciso apro­
veitar todos os minutos.
- Não quer dizer?
Fazia trejeitos : que não .
- Por quê?
Jogou mais serpentinas, soprou uma corneta de papelão, cochichou
com os três pierrôs . De braço com um dominó, a caveira passa com
a curva foice arrepiando os medrosos - sai azar! O urso sacode o
corpanzil de saco de aniagem - se acendessem um fósforo era uma
vez um folião! Uma velha canção brota de todas as almas:
198
ó pé de anjo!
ó pé de anjo!
És rezador, és rezador,
Tens um pé tão grande,
Que és capaz de pisar Nosso Senhor!

Aí eu já implorava :
- Não quer dizer?
Era linda ! Os dentes miúdos como bagos de milho branco, man­
chas de sol ao longo dos braços trigueiros, o corpete tão justo que
fazia uma marca no peito, o suor escorrendo pelas faces de carmim.
A faísca serrou o céu. As primeiras gotas, enormes, estalaram, oh!
rugiu a Avenida inteira - chuva!
- Maria Rosa! - gritou ela no meio do oh! imenso e retum­
bante como trovão .
A chuva caiu como um sólido, fulminante, diluvial, batia no chão
e levantava-se branca como vapor. Num átimo as sarjetas se enche­
ram, os ralos entupidos de confetes e serpentinas afogadas . Em de­
bandada o povo fugia para apinhados e precários abrigos .
O automóvel dela, destro, enfiou pela primeira rua. Ia encharcada
já, acenando com o braço de sol. O nosso, por estupidez do chofer,
continuou ainda, para fugir afinal por outra rua adiante.

CENAS DA VIDA CARIOCA


1933

SEu MARTINS, que, com uns cabelos brancos aqui e ali, navega na
casa dos quarenta, j á teve bons e maus mares, mas como é carioca
da gema não há tristeza que lhe pegue. Dona Alzira, que é um
autêntico despertador, bota-o para fora dos lençóis :
- Levanta, homem, que já está na hora!
- Vai preparando o café, que eu já vou indo - respond e de olhos
fechados .
- Está pronto há mais de meia hora.
Não há outro remédio - Seu Martins abre os olhos, espreguiça-se,
senta na cama (sonhou com pavão), torna a espreguiçar-se. Faz
uma manhã magnífica, luminosa, transparente. Ainda bem. Tapa um
bocejo : Vamos para a luta. Vai para o banheiro arrastando os chi­
nelos, fica remancheando - tem tempo .
A navalha está desgraçada de ruim, mas ele não liga. Vai arran­
cando barba e pele, deitando, pela janela, olhadelas para a gaiola
pendurada numa so mbra do quintal, conversando com o saltitante
·

passarinho como se ele fosse gente : - Perdeu o pio? Está com dor
de dentes? Você precisa se casar, rapaz!
Banho é de chuveiro, com sabonagem demorada - tem tempo -
199
e acompanhamento de assobio e canto. Há de tudo : valsas remotas,
canções da mocidade - "ú minha carabu, dou-te meu coração",
"Perdão, Emília, vou partir chorando" . . . - mas o forte é o samba
mesmo. Não há samba novo que ele não saiba. O ritmo do "Barraco
abandonado" é do balaco !

Não quero mais saber da orgia,


Preciso ser trabalhador.

Dona Alzira bate na porta:


- Anda, Martins, está na hora.
Engole o resto do samba, faz voz grossa :
- Já vou.
Depois de procurar uma porção de objetos que estavam bem na
ponta do nariz, depois de espalhar roupa por todos os cantos do quar­
to, senta-se à mesa, pronto e satisfeito, a xícara de café com leite
fumegando na sua frente.
- Manteiguinha ordinária, livra!
- Pois é de Petrópolis .
- Quem não come, acredita.
Mas vai passando-a no pão como se a reclamação fosse para outra
manteiga que não aquela. De repente, franze a testa :
- Por onde anda o Nélson, que eu não o vi? (Trata-se do caçula,
mimadíssimo. )
- Está no jardim tomando sol - responde Dona Alzira.
Fita inquieto a mulher :
- Olhe lá se ele foge para a rua! . . .
Ela acalma-o :
- Não tem perigo. A Anália está vigiando-o.
A testa volta ao natural . Anália, mulata trintona que veio da
roça, e está há dez anos na casa, é considerada como pessoa da famí­
lia. Sossegado, Seu Martins bebe um gole e volta :
- E os pequenos j á foram para o colégio?
- Há mais de uma hora.
Mas Seu Martins gosta de saber tudo :
- Levaram boa merenda?
- Que haviam de levar? Pão com goiabada e bananas .
Seu Martins aproveita mentalmente a letra do samba, "banana tem
vitamina, menina!", e alto :
- E a Marília tomou o remédio que o Doutor Coelho mandou?
- Custou, mas foi.
- Essa pequena está me ficando muito cheia de chiquê.
- É, mas trate de voar senão você perde o bonde.
- Perde o quê! Tem tempo! - e corta calmamente mais uma
fatia de pão. - Afinal - não é, Alzira? - Seu Gonçalves tomou
vergonha na cara e está fornecendo um pão mais decente.
200
A mulher concorda, ele bebe outro gole e pergunta :
- Quer que traga alguma coisa da cidade?
Dona Alzira, que está em pé na frente dele, esfregando as costas
da cadeira com a mão, esperava pela pergunta.
- Já ia pedir. Olhe, você me traz uma fava de baunilha, bem
gorda! Duas latas de salsichas do Rio Grande - paulistas não que­
ro ! - uma latinha de fermento em pó, do bom, e uma nova forma
de alumínio, das grandes, que a nossa não dá mais nada. Me traz
duzentas e cinqüenta gramas de ameixa preta também. Ouviu bem?
Vê lá se vai esquecer de alguma coisa.
- Se esquecer, logo se vê.
- Deixa de brincadeira. Quero fazer uns doces para amanhã,
que é feriado, e talvez o Doutor Medeiros venha cá.
- Daquele livro de receitas que você ganhou na Feira de Amostras?
- É.
- São boas?
- Você não gostou daquele pudim de creme e chocolate ontem?
- Formidável !
- Pois é dele.
- Melhor que uma mulher bem nua!
- Lá vem você com indecências ! . . .
Seu Martins dá uma gargalhada um tanto patife :
- Você não compreende o Belo!
Agora é Dona Alzira que ri :
- Você sempre safado.
O relógio bate sete e meia. Seu Martins dá um pulo, Dona Alzira
·
grita pela centésima vez no ano:
·

- Perdeu o bonde!
Seu Martins dá um beijo apressado na patroa, dá um beijo apres­
sadíssimo no caçula - té logo, Anália! - e vai voando. Sai sempre
atrasado de casa, mas nunca perdeu a hora de entrada no escritório,
onde trabalha dobrado porque trabalha sorrindo.

Às quatro horas, a moça frisadíssima do telefone chamou-o:


- É para o senhor, Seu Martins .
Ele pega o fone com energia:
- Alô! É o Martins - e, quando ia perguntar "quem fala ", reco­
nheceu a voz da mulher.
Dona Alzira está telefonando da padaria porque Seu Martins não
tem telefone em casa. Quarenta mil-réis por mês é loucura! Quarenta
mil réis dão para oito jogos de futebol (sozinho), quatro cinemas no
bairro ( com a mulher e filhos), dão para uma prestação qualquer -
tal é o seu raciocínio. Só não dão para economizar. Economizar
quarenta mil réis é asneira. Economia só vale de um conto de réis
para cima. E como nunca tem um conto de réis limpo, a caderneta
da Caixa Econômica existe pró-forma.
201
- Que é que há, Alzira?
A mulher informa com voz macia que a Marina - coitada! . . .
trouxera a filhinha para ela ver na hora do almoço. ( Seu Martins
almoça na cidade, numa pensão da Rua General Câmara, segundo
andar sem elevador, dois e quinhentos por refeição. ) Marina é afi­
lhada do casal. Afilhada de batismo . A mãe fora uma pobre costu­
reira, vizinha do casal Martins, no Méier. Morrera, a menina fora
para a casa de uma tia no Engenho de Dentro, mas passava meses
com os padrinhos . Agora estava casada, tinha uma filhinha que era
um encanto, mas perdera cedo o leite, dera leite de vaca engrossado
com aveia, a conselho de uma vizinha, e a menina teve uma diarréia
dos diabos. Correu aflita para a casa da madrinha. Seu Martins levou-a
ao Doutor Coelho, um velho amigo, que tratava dos seus filhos .
- Isto não é nada. Sua netinha vai ficar boa logo - disse o
médico brincando.
- Neta, uma ova!
Doutor Coelho riu muito e receitou uma farinha cujo preço não era
para a bolsa do novel casal, modestíssimo comerciário . A menina
sarou e Seu Martins pagou tudo . Pagou de boa cara. Gostava da
menina - uma tetéia ! - como gostava de todas as crianças.
Agora, Dona Alzira contava-lhe que o Doutor Coelho mudara o
regime para uma outra farinha, ainda mais cara. Marina viera pedir
o favor de continuar a protegê-l a. Seu Martins tentou uma advertência :
- Você não acha que nós já fizemos bastante, Alzira?
A mulher respondeu com um oh ! de condenação. Seu Martins não
discutiu :
- Está certo, mulher. Diga à Marina que pode contar com a
gente.
- Então eu vou dar ordem ao Seu Joaquim da farmácia para ela
levar as latas que precisar, ouviu?
- Está bem, Alzira. Regule o assunto aí como você quiser. Té
logo. Estou muito ocupado.
Enterra mais contra os olhos a pala quebra-luz e se engolfa nova­
mente na soma meticulosa dos lucros dos patrões.
Abajur futurista para ajudar a leitura dos vespertinos de oposição,
feita em pijama e chinelos na cadeira de balanço, Dona Alzira cose.
O rádio toca. Os pequenos fingem que estudam na ponta da mesa
com cisne de louça no meio . O caçula choraminga um pouco no
quarto. Anália vai lá e ele torna a dormir.
O velho relógio dá dez horas . Seu Martins, que já leu todos os crimes,
todos os acidentes de rua, todas as notícias esportivas, todos os im­
passes políticos, todas as descomposturas no governo, todos os anúncios,
desperta do cochilo que coroou a prolongada leitura :
- Está na hora do meu leite com canela, Alzira.
O filho mais velho corrige o pronome :
Do nosso, papai.
202
Seu Martins dá um balanço na cadeira :
- Mas vire esse rádio aí, menino. ópera é música para boi dormir.

1934

O lixeiro já passou com o programa diário : bater de latas na cal­


çada, pigarros tremendos, reclamações, berros entre ferozes e amorosos
para a mula da carroça : "Pra frente, Simpatia! Tá te fazendo de
engraçada hoje, peste!"
Agora as obras da vizinhança estão chamando os operanos, num
malhar sonoro de ferro - pem ! pem! pem! São sete horas.
Dona Consuelo é a primeira a se levantar. Seu Alfredo vem muito
depois. É funcionário público, só entra às onze na repartição, de ma­
neira que tem tempo de sobra.
É ela quem tira os filhos da cama :
---i Está na hora do colégio, crianças.

Luís Fernando e Maria Lúcia não gostam muito nem de acordar


cedo nem de colégio, mas são coisas que a vida obriga e não há
remédio senão acostumar. Enquanto estão no banho, Dona Consuelo
está na cozinha. Ela é quem faz tudo em casa. Empregada nos tempos
que correm é esse desespero que se sabe : não há nenhuma que preste,
todas umas lambuzonas, umas malcriadas muito grandes e um dinhei­
rão para quem quiser!
A água está no fogo para o café. Dona Consuelo assobia, canta,
mexe nisto, mexe naquilo, naquela atividade matinal de todos os dias.
- Onde está o al;lridor de latas? Quer ver que este pequeno andou
mexendo nele . . .
Vai se informar com os garotos, que não sabem do objeto . Seu
Alfredo já está acordado, mas, segundo o hábito de quatorze anos de
funcionalismo, está deitado na cama, em posição relaxada, de olhos
abertos, "gozando a manhã".
- Você viu o abridor de latas, Alfredo?
Ele responde seco, com preguiça :
- Não.
Dona Consuelo dá uma batida em regra no armário. Procura que
procura, afinal dá com o maldito ferro num cantinho, atrás da lata
de mate.
A água já está fervendo, o bico da chaleira fumega. Prepara o
café, abre a lata de leite condensado, carrega tudo para a sala de
jantar, onde os príncipes - conforme a própria expressão de Dona
Consuelo - já estão aboletados, brincando com as colheres.
- Colher não é brinquedo, larga isso, menino !
Enche xícaras de meter medo e via de regra sujeitas a repetição.
Enquanto comem, temos conversas de vários tipos.
Higiênicas :
203
- Vocês lavaram os dentes, crianças?
- Lavamos, sim senhora.
Escolares :
- Vocês estudaram as lições direito?
� Estudamos, sim senhora.
Econômicas:
- Seu Gonçalves cada vez manda o pão menor. Uma vergonha!
Acaba a gente só vendo ele com uma lente.
O coro fica mudo, mastigando.
- Bote mais um pouco de leite aqui, mamãe - pede Luís Fer­
nando.
- Pra mim também, mamãe - emenda Maria Lúcia.
Dona Consuelo, que tem um certo orgulho do apetite dos filhos,
reenche as xícaras . O relógio (meio carrilhão ) previne que faltam
quinze para as oito.
- Depressa, pequenos !
Há a debandada afobada. De casa para o colégio é um bom pedaço
a pé e as aulas começam às oito na exata.

Nove horas. Dona Consuelo já atendeu ao quitandeiro, brigou com


o caixeiro, reclamou a carne do açougueiro - nervo só, não tem cabi­
mento. Se continuar assim, mudo outra vez para o açougue de Seu
Caetano.
Seu Alfredo aparece, segurando a calça de andar em casa, recla­
mando:
- Onde é que está meu cinto velho?
Revista na casa. Foi encontrado debaixo do étagere. Dona Con­
suelo, que protege muito o Sultão, disse:
- Isto é arte de Luís Fernando.
Seu Alfredo, barbeado, e com um banho de chuveiro, que é uma
tradição de família, senta-se na mesa (dá-se ao luxo de torradas) para
tomar o seu mate, porque o mate é o chá brasileiro, muito· melhor
que o chá, mais fresco, mais diurético, mais barato, mais patriótico,
etc. E temos nova sessão de perguntas e respostas, com Dona Con­
suelo em pé, encostada na mesa.
- Você já pagou o armazém?
- Já.
- Tudo?
- Tudo.
- E Seu Alexandre?
- Também.
- Madalena telefonou?
- Não.
O telefone de que se utilizam é o da farmácia, pertinho, e Madalena
é a filha mais velha, louca por cinema. Está na casa da madrinha,
em Copacabana, sob o pretexto de tomar banhos de mar, porque está
204
muito anem1ca, precisando de sol, mas na verdade para ficar livre
dos velhos, andar quase nua, flertar à grande, tomar sorvetes, dançar,
fumar, e fazer outras coisas chiques . Os dois pensam, mas não dizem
- ingrata!
Às dez horas é que começa a lufa-lufa.
- Onde é que está a minha camisa? Não tenho camisa, Consuelo?
Bem que tinha. Dona Consuelo chega e mostra :
- Está cego?
Seu Alfredo também não tinha meias, nem lenços. Tinha tudo.
Dona Consuelo ia ver - está aqui. E afinal vai para a mesa e engole
o almoço com sobremesa de bariana frita, açúcar e canela ; chupa o
cafezinho requentado, acende um Clássico ovalado ( cheques, cheques
e mais cheques ! ) e sai para apanhar o bonde do horário, onde cumpri­
menta uma boa quantidade de passageiros .
Dona Consuelo fica absoluta nos seus domínios .

Meio-dia e meia. Regresso da dupla escolar com uma fome mons­


truosa. Novo almoço, mais um prato de bananas fritas. Depois a
dupla some-se pela vizinhança. Maria Lúcia metida na casa das ami­
guinhas, e Luís Fernando, segundo Dona Consuelo, "sempre no meio
da molecada ".

Três horas . Quem visse os dois na hora do lanche imaginaria que


não comiam há uma semana. O prato de mingau dá para alimentar,
folgadamente, um regimento. Raspados os pratos, novo sumiço.
Dona Consuelo j á está com o jantar no fogo. Deu uma conversinha
com Dona Matilde, pelo muro do lado direito . Outra palestrinha com
Dona Filomena, pelo muro do lado esquerdo. Com Dona Eulália, que
fica no muro dos fundos, a palestra é mais difícil, pois tem o galinheiro
e as goiabeiras para atrapalhar; a conversa fica mais por sinais do que
por palavras . Depois vai se sentar no banquinho de costuras, porque
o mando está com as camisas em petição de miséria, Maria Lúcia
precisa de vestido novo para sair (matinê de domingo no cinema
.Maracanã ) e Luís Fernando anda num relaxamento com a roupa que
não há ninguém que agüente.

Quatro e meia. Nova aparição da dupla, com um convite para


banho e roupa limpa. É quando eles se dedicam um pouco às tarefas
escolares, mas como a mesa fica perto da janela, é um minuto de olho
no livro e dez na rua.

Cinco horas. Toalete de Dona Consuelo. Banho com água-de-colô­


nia, vestido de bolinhas, com avental por cima para defendê-lo, e
sapatos tipo sandália, todo aberto, muito cômodo. Sem meias por
calor e economia.
Seis e meia. Entrada triunfal de Seu Alfredo, com vespertinos de-
205
baixo do braço, embrulhos ( café, pão da Padaria Francesa, remédio
para o nervoso), queixando-se do calor na cidade - horrível ! - e
do chefe da repartição - um bandido ! Passa pelo banheiro, lava o
rosto para desafogar, muda o pijama depressa e vai voando para
ver: as galinhas chocas .
O último que entra é o Sultão ( trinta raças misturadas), rabo em
pé, com uma fome danada. Passa os dias na rua. Inimigo de banhos,
responsabilizado unanimemente pelas pulgas da casa.

O jantar é a única refeição que todos fazem juntos durante a


semana e durante o qual os filhos são repreendidos de várias maneiras
e por variadíssimas causas. Mas, como a fome é conciliadora, tudo
acaba muito bem às sete horas para Seu Alfredo, que vai tirar a
tora na varanda, na cadeira de balanço, e para os garotos, que
voltam para o seu verdadeiro domicilio - a rua. Para Dona Con­
suelo, não. Tem que tratar ainda da cozinha, lavar os pratos, guardar
a louça, arear as panelas . . . O rádio está ligado para a Estação do
Povo - sambas, marchinhas, coisa decente, piadas de matuto, por­
tuguês, turco e italiano. Dona Consuelo chega a parar os seus afazeres
para apreciar e rir. De vez em quando dá um palpite�
- Boa, hem?
Seu Alfredo é mais refinado :
- Assim, assim.
Oito horas, mais ou menos . Dona Consuelo, depois de catar os
filhos na vizinhança, dá uma prosa de portão com Dona Isabel, Dona
Matilde, Seu Albuquerque ( marido de Dona Matilde) e outras figuras
da vizinhança. Nariz torcido para Dona Florzinha, que é a intrigante
da rua, e que fez com ela uma de se tirar o chapéu!
Os garotos entregam-se aos livros por uma hora apenas, porque
o cansaço chega depressa. Os olhos de Maria Lúcia começam a
piscar e Luís Fernando abre a boca de minuto a minuto .
Às dez horas, depois de um copo de leite com biscoito de fubá,
cuja receita é do tempo da vovó, recolhe-se ao berço a famfiia feliz,
para, no outro dia, com a graça de Deus. recomeçar a vida, com a
mesma boa vontade de viver.

1943

O que o atrapalhava agora era aquele dente da frente ( melhor


seria dizer "a falta do dente da frente"). Mas o canino de ouro era
infernal!
- Não, meu filho, não quero . Obrigado.
Tratava-se da fava perfumada, que eu recusara comprar - per­
fumada demais . . . E estávamos num café movimentado do Castelo,
às cinco horas da tarde. Defronte da mesinha, o espelho.
206
Ele :
- Gostei da palavra! É isso mesmo : meu filho. (Os olhos ver­
melhos, o jeito mulato, os cabelos mulatos, e a atração do espelho,
falando mais com o espelho do que comigo, falando mesmo só com
o espelho, fazendo gestos, gostando dos seus gestos, admirando-os pro­
fundamente. ) É a sentimentalidade que a gente tem profunda, com­
preende, não é? C_9mo a morte, como o mar, como o vento . Não
é a boca que diz, é a coisa lá dentro, o êxtase sensível da criatura.
Corri mundo, meu filho - batia no peito . O mundo estava aqui -
o espelho refletia a mão esquerda batendo firme contra o coração
- e aqui - e o espelho refletia dedo grosso, de unha suja, repu­
xando a pálpebra do olho direito, matreiro, puxa! sanguíneo, sabido,
que tinha visto coisas, tantas coisas como o olho esquerdo! Deus é
quem viu, nem adianta não acreditar em Deus - deu a risada, me
envolvendo num hálito de cachaça, mostrando as gengivas tão conges­
tionadas, e o canino de ouro brilhante como uma jóia. Deus é quem
viu - ordenança do General Rondon, ficou perdido no meio do mato,
floresta brava, ele e um índio. Falava o guarani (falava também
inglês), furou pelo mato, cipó como pó, deu no pouso de aviões do
Tocantins, sabe não? do Tocantins . De Hamburgo a Bremen foi
pendurado se agarrando por baixo de um carro de carga, ele e Kolo­
voski, cabra bom, doido, o polaco! No bolso nem um tusta. Botou
a vista - não havia sombra de navio brasileiro no porto. Tinha
era navio grego - ia para a lndia. Faltavam dois moços de convés,
sabe o que é? Pois é, comeu muita galinha com açafrão ( com a mão),
o calor derrubava o povo, até cobra na rua havia. Elefante é mato,
e o inglês velho mandando. O polaco morreu - água de poço é
aquela desgraça. Nada de voltar para Hamburgo . O "Brazilian Prin­
cess" era um navio conhecido . Navio bom. Engaja? Engaja. Faltava
um moço de convés . Serve? Serve. Quem lhe dissera foi um caboclo
da Paraíba, que estava no "Princess". Ele o conhecia do Havre, numa
casa de mulheres - mais de cinco mil francos ! Foi para o comandante.
"Are you an Indian sailor?" "No, I'm brazilian. I'm from South
America." "Oh, yes, brazilian! " Caprichava na pronúncia, o suor
descia pelo rosto, passou o lenço imundo.
Front. O mesmo que frontão aqui. Diz-se front como se a gente
dissesse : vou para o front. Pois é. Uma pule, meio dólar. (Dizia
meia dólar.) Lepte ! - deu uma lambada com os dedos - dois
mil dólares ! O primo estava dependurado no West Side. Vamos para
o Brasil. Que Brasil, rapaz! Vamos é comprar tudo em cachaça no
primeiro navio brasileiro que aparecer. Ganhou dewito dólares . Em
cada garrafa, explicou. Gringo bebe pra chuchu. Fez uma paus a :
Dinheiro n o bolso é que é a história. Mais d e doze contos n o bolso.
Se visse no chão uma nota de quinhentos, nem pegava.
- Baiano, meu filho ! (Riso e espelho. )
207
Trinta e sete, estava bem, não é? Quem é que dizia que ele tinha
trinta e sete anos? E tinha corrido o mundo. O que as autoridades,
não as autoridades militares, porque o militarismo era no mundo
um evangelho agora, o que as autoridades civis precisavam era isso
- conhecer mundialmente o mundo, porque só o conhecimento das
coisas é que dava para eles enxergarem, para poderem julgar, porque
bofetada na cara, parei ! não era assim que se julgava um homem
( espelho). Bofetada na cara, aí sim, e esse negócio de cadeia é para
isso.
Deu aquele suspiro fundo de virar os olhos - conhecia o mundo.
Favas do Pará? Riu. O senhor não foi no golpe. Bom, ele também
ali não estava mentindo . Não adianta mentir, o senhor viu logo.
Poxa, mas no mundo há besta pra chuchu ! Enfiava uma fava dentro
d'água-de-cheiro, deixava a bicha secar, partia na cara do bicho, o
bicho tomava o cheiro - Pará, meu filho - o bicho comprava. O
senhor é do Pará?
- Não, sou daqui.
- B em, conhece as coisas . Favas . . . Agora eram favas, mas ele
vendia o diabo ! Risinho : abafava os troços - homem é isso, meu
filho ! Roubava, afanava, dava um jeito, vendia. Só na Bahia vendera
noventa e cinco máquinas de fotografia moambadas em Nova Iorque.
Daquelas pequenas de caixão, não sabe? Por quanto, diga lá? Faça
preço bem baixo .
- Quarenta.
Muxoxo, espelho, três passos pra trás :
- Nove ! O cabra de bordo dizia, você é doido, rapaz, custam
aqui sessenta ! Num gesto tranqüilo : foi tudo por nove!
Pôs na voz um tom de quem fazia uma declaração de amor:
- Ai, eu gostaria de contar minha vida. Sabe como? Debaixo
duma gameleira, enorme, com uma boa vitrola, tocando ao lado uma
ópera bem profunda. Ah, suspirava - assim é que eu gostaria de
contar a minha vida! . . . Em volta, um barril de chope, um barril
de cachaça, meu Deus ! . . .
Mas de repente ficou agitado : Roubar? - espalmou a mão enorme
no peito - puxa! deu um solavanco. Compreende, não é? foi o
Lloyd que deu jeito na coisa, sabe, era brasileiro. Sing-Sing . . . -
e arrancou para sumir. Arrancou, mas voltou : Olhe, ladrão é rico !
homem sério não vale neste mundo . Ladrão, meu filho, ladrão ! E
sumiu para sempre com suas favas cheirosas . No fundo da rua, entre
os homens, ainda o vi um instante - atracando um homem.

1952

A maior inimigazinha do homem era dessas que merecem confete


dourado, mesmo depois do carnaval. Por um nadinha seria loura, é
208
que a mão não fora muito precisa na dose da tintura capilar e, se o
cabeleireiro tivesse cortado um milímetro a mais, teríamos a cabeça de
um efebo como está na moda agora. Com mais dez gramas seria
gorda, mas com as que tinha seu talhe poderia ser incluído vantajosa­
mente entre os caules mais gracis da botânica citadina. E os dentes,
ah ! os dentes eram como pérolas esparsas, gotas sólidas de leite, pingos
de alabastro, baguinhos de milho branco ou quantas mil outras com­
parações, poéticas ou triviais, de que seja capaz o ingente engenho
humano, sempre presto a comparar.
Esperava o ônibus e o ponto de parada passou a ter a alegria e o
perfume de um jardim. Porque puras eram as cores do vestido, do
bolero, do cinto, da bolsa, da sandália aberta. Porque emanava per­
fume, não perfume francês de vidro caro, mas perfume verdadeiro,
perfume de coisa nova e fresca, de broto, de aurora surgindo trêmula
por trás dos montes.
Conquistador nato e irresistível, executei três sedutores passos de
tango para estacar junto dela à sombra da mesma desfolhada amen­
doeira. O sol tinia. O mar parecia mais mar de tão azul e os traba­
lhadores, entre nus e esfarrapados, afundavam na inocente calçada
imensos canos de cimento que levarão água para Copacabana, no dia
sempre esperado em que houver água.
E os ônibus passavam e, embora com lugares, ela não embarcava.
E como não embarcava, eis-me que continuo mal protegido pelos
braços da árvore, mas capitalizando tempo para entrar em intimidade.
- Esse diabo está custando, hoje ! - comecei quando já capitali-
zara bastante.
O peixinho caiu na rede do pescador:
- São atrozes esses ônibus 9 ! . . .
- São de pôr a gente de cabelos brancos - reforcei como se não
tivesse nenhum.
Automaticamente ela pousou os olhos de esperança nos meus
cabelos, cujo corte militar camufla, da maneira mais decente e marcial
possível, o avanço aliás nada prematuro das cãs e, ao dar com elas
à altura das têmporas, como que se sentiu diante de um cavalheiro
de respeito, de um cavalheiro direito, de um cavalheiro no qual podia
confiar. E, levada pela confiança, perguntou :
- O senhor também está esperando o 9?
- Exatamente, senhorita - menti com a maior sinceridade.
E como os olhos dela se acendessem de repente num brilho de
contentamento, senti que vinha o 9. E o 9 parou. Fora primorosa­
mente azul e branco há uns seis meses passados, quando saíra dum
armazém do cais do porto para a linha Mourisco-Praça da Harmonia.
Mas seis meses é quase um século na vida de um ônibus carioca e
os arranhões, as batidas, as mossas imensas, o sujo do pó, do piche,
da graxa, os vidros rachados e sujos, faziam dele uma bem triste
209
carruagem. Mas que carruagem podemos nós ter o desplante de
achar triste quando vamos tomá-la em companhia de uma moça bonita?
Tomamo-la. Eu e ela, que já me confessara que se chamava Ero­
nilde e ia visitar a tia, que fora operada no Hospital dos Servidores .
Os fados são sutis e imperscrutáveis - havia dois lugares, apenas­
mente dois, no mesmo banco .
Manda a distinção que se ofereça a janela às damas. Como princesa
que sabe dos seus direitos, ela aceitou. Era um lugar de sol e os raios
que vinham de trilhões e trilhões de léguas não morriam ao pousar
nos seus cabelos ; confundiam-se com eles e deles recebiam um calor
que o sol nunca terá.
Não se pode dizer tudo de uma vez e cabe no momento, só neste
momento, assinalar que o bolero de linho não tem mangas e, na nu­
dez do braço que contemplo, desenham-se lustrosas marcas de vacinas .
- De que foi operada sua tia, senhorinha?
- Da vesícula, senhor. Tinha pedras. Sofria horrivelmente!
- É uma operação bastante melindrosa - disse com a mais hi-
pócrita imbecilidade.
- Bem, atualmente parece que é uma coisa corriqueira, tão banal
quanto uma apendicite - retrucou com o ar de quem está bastante
informada das conquistas da cirurgia. - Dentro de oito dias já vol­
tará para casa, foi o que disse o médico.
- Mas quando ela foi operada? - inquiriu demonstrando o mais
científico interesse.
- Há três dias. Mas correu tudo normalmente, embora a vesícula
estivesse totalmente obstruída. Imagine o senhor que tinha cento e
quatorze pedras .
- Quantas?! - e caprichei na fisionomia espantada, como se ela
me desvendasse o segredo da pedra filosofai.
Houve um indisfarçável sentimento de orgulho :
- Cento e quatorze. - Mas como a modéstia, ou melhor, a ve­
racidade era positivamente uma das prendas do seu caráter, apres­
sou-se a ajuntar : - Também há algumas pedras que só são cha­
madas de pedras pelos médicos . São pequeninas como grãos de areia.
- Mesmo assim é extraordinário !
O edificante diálogo, porém, foi interrompido por uma freada bru­
tal que atirou os passageiros uns contra os outros . E quando nos rea­
nimamos do susto, que foi coletivo, com gritos de senhoras esparsas,
a sua pequenina mão macia e bem cuidada estava presa na minha.
Mas, ao dar conta do seu gesto inconsciente de susto, foi vítima
daquele descontrole sanguíneo que incandesce as faces e que os su­
jeitos graves chamam de pudor.
- Oh, perdoe! - apressou-se a dizer, escapando com a mão. -
Foi um susto horrível .
Felizmente foi só um susto, senhorinha e já passou.
210
O ônibus continuava feliz, em precipitadas curvas, como se nada
houvera acontecido - os transeuntes que saíssem da frente. Mas
como não há mal que sempre dure, ei-lo que surge, nas suas linhas
de mau gosto, no seu melancólico revestimento de pó de pedra, o
Hospital dos Servidores .
Descemos. Ela para ver a tia, eu ·para acompanhá-la, pois j á nos
sentíamos íntimos . As flores do magro jardim - eram poucas - do­
braram-se invisivelmente para saudá-la. Aventuramo-nos no movimen­
tado e escorregadio saguão, dirigimo-nos para o guichê de informa­
ções . Eram quarenta ou cinquenta pessoas que se informavam e so­
mente dois funcionários, ora irritados, ora displicentes, estavam para
atendê-las.
Quarenta minutos depois Eronilde estava atendida e a preciosa
mãozinha apertava, como tesouro inestimável, o cartão cor-de-rosa
que lhe dava direito, durante vinte minutos, a ver a tia que já não
tinha mais vesícula.
Os elevadores não funcionavam, mas uma sobrinha amorosa e de
dezoito anos não teme as escadas de um hospital, tanto mais que a
sorte alojara a sua querida parenta no quarto andar. Disfarcei como
pude o cansaço da escalada pelas escadas sujas, pelo tráfego intenso
da enfermagem.
A secretária do andar foi gentil, embora não tão americanizada
como todo o padrão do hospital. Recebeu o cartão e perguntou :
- Sabe o número do quarto?
Eronilde sabia, pois já lá estivera uma vez. Pediu-me que a es­
perasse, porquanto não se demoraria muito. E realmente demorou
menos do que consentia o cartão cor-de-rosa.
Os elevadores continuavam enguiçados . Médicos, enfermeiras, ser­
ventes e visitantes esbofavam-se pelos degraus . Como para baixo to­
dos os santos ajudam, portei-me dignamente, embora que entre o
segundo e o primeiro andar fizesse uma estratégica parada.
- Sua tia está passando bem?
- Felizmente está, mas está um pouco rabugenta. Queixou-se
muito da comida e o senhor sabe que é uma injustiça, pois a comida
do hospital é maravilhosa. Quanto a pequenas faltas, como pão,
manteiga e leite, são faltas que podem acontecer em qualquer hospital
nos dias que correm. E só a rabugice mesmo de um doente pode
mencioná-Ias com acrimônia. Não lhe parece?
- Você é um anjo, Eronilde! - limitei-me a dizer.

1 953

Havia chovido, um repentino aguaceiro de verão, os beirais pingavam


lentas, espaçadas gotas, as poças faziam os transeuntes dar saltos e
211
soltar pragas, mas o calor persistia intenso, provocando mais pragas
ainda.
Ela espiava para um lado e para o outro, esperando, impaciente,
o pescoço moreno e fino saía triste de um decote redondo, sóbrio,
quase puritano. Não lhe ficava bem aquela roupa, positivamente não
ficava, era uma mulher que precisava de cores, de sol, de carne
à mostra. Mas estava de preto e molhada. E isso deixava-a sem
moldura e desamparada.
Quando ele chegou, porém, ela ficou subitamente nova e forte :
Olá!
Olá, meu bem!
Que chuva, hem!
Que chuva !
Houve um beijo rápido na face, tomou-lhe a mão, sorriu-lhe, ela
respondeu com outro sorriso, e foram caminhando de braço dado
com uma graça de namorados do passado, uma graça que parecia
extinta. No ponto do bonde pararam, sempre muito juntos, calados.
E aí a chuva voltou forte, bem mais forte, e nenhum dos dois tinha
guarda-chuva, como se um guarda-chuva parecesse deslocado cobrindo
aquela felicidade.
Ponto de parada de bonde, na cidade, às seis horas da tarde, cons­
titui lugar de trancas, repelões, empurrões, pisadelas, safanões, numa
completa e perfeita demonstração do nosso estranho mundo de com­
petições . Quem vai lá, ou é naturalmente dado a disputas, ou terá
que compreender e praticá-las para não ser passado para trás . Quem
não empurra com deliberação e energia não conseguirá tomar o
bonde, muito menos sentar-se nele.
O ditoso casal não se importava absolutamente com os circuns­
tantes que se sucediam, como se em outro mundo vivesse. Continuava
estático, sentindo a presença um do outro, mãos embrulhadas, corpos
colados, poucas palavras, embevecidos .
Transcorrido algum tempo, e o jornaleiro oferecera-lhes inutilmente
a sua mercadoria, fizeram uma tentativa de tomar a condução. Houve
uma correria, ele conseguiu defendê-la, na refrega, sem nenhum esforço
ostensivo, pelo simples fato de ser grande, ter braços fortes e ombros
largos .
Depois, tentaram nova investida. Não havia, porém, lugar para
ambos no mesmo banco . Entreolharam-se e desistiram, enquanto a
mulher com tantos embrulhos, gorda, terrível, furiosa, ocupou o lugar,
empurrando agressivamente a vizinha. Uns dez minutos após veio outro
bonde da mesma linha e a cena repetiu-se com a vitória de um senhor
de pasta e sem gravata. E repetiu-se ainda algumas vezes, enquanto
nos intervalos eles se olhavam cada vez mais dentro dos olhos e fica­
vam cada vez mais perto um do outro, como se formassem uma única
pessoa.
212
O vestido dela estava encharcado, pegado ao corpo, denunciando
formas recônditas ; do cabelo dele a água escorria, deslizava pelo pes­
coço, e ntrava pelo colarinho que mais mole se tornava. Ao fim de
uma hora, apareceu um bonde vazio . Devia ser de uma linha estranha,
nova, levando a um bairro onde ainda pouca gente morava. Ela disse
qualquer coisa, ele respondeu :
- Mas, amor, esse não serve .
A moça apertou-lhe o braço, falou baixinho, e quem poderia ouvir?
Tomaram o veículo, sentaram-se juntos num aconchego sereno e lá
se foram, enquanto alguns circunstantes mais atentos ficaram seria­
mente meditando nas possíveis vantagens de se tomar um bonde
errado.

OUTRA VÉSPERA DE NATAL

No MEIO DA SALA Teresa sorri. Suas mãos finas, sempre crianças,


esvoaç am como dois pássaros alegres - está tudo pronto .
As nove horas - e a noite está quente, estrelada, um hálito
perfumado de mato entra pelas janelas escancaradas - às nove horas
iremos acordar as crianças para verem a Arvore de N atai.
No ano passado elas eram ainda muito pequenas, nada compreen­
deriam. Deixamos para este ano a grande revelação, e há um mês
que Teresa vem preparando-as para o acontecimento : "A Arvore será
linda, linda, meus filhos - um sonho' E Papai Noel, que é muito
velhinho, tem barbas muito compridas e brancas e é muito bom para
as crianças bem comportadas , virá com seu saco enorme cheio de
presentes para vocês ."
- Ele vem de noite, não é? - pergunta minha filha, que já se
considera muito crescida.
- Sim, quando vocês estiverem dormindo ele virá na ponta dos
pés e encherá os seus sapatinhos de tudo quanto vocês gostam.
Como entre as coisas que minha filha gosta estão umas. faladíssimas
balas redondas e de cores, balas que viu numa confeitaria, balas que
nunca chupou mas que constituem umas das suas decididas seduções,
a pergunta é fatal :
- E vai trazer balas de bolinhas, não é?
Teresa garante que sim, mas só no caso de que ela, minha filha,
coma direito tudo quanto lhe puserem no prato, o que é uma indireta
muito bem compreendida pela garota, que deu para ter uma incom­
preensível ojeriza por abobrinha.
A menina torce o delicado caso com uma desfaçatez que me parece
bem pouco infantil, perguntando se Papai Noel também vai trazer
presentes para a Josefina, a nossa cachorrinha bassê, fidelíssima com-
213
panheira em cujos olhos encontro sempre uma dedicada ternura que
falta aos olhos humanos.
Meu filho não pergunta nada, nada deseja. Limita-se a repetir mil
vezes por dia : - Papai Eel.
Às nove horas irão ver a árvore. Muito verde, carregada de bolas
e velinhas coloridas, coberta por uma teia de fios dourados, com um
brilhante cometa de lantejoulas no ramo mais alto, reconheço que
está bela, mesmo para os meus olhos, pobres olhos já um tanto
estafados pelos duros espetáculos da vida. É pequena, está sobre a
cômoda de jacarandá, cômoda que foi dos meus avós, entre verdes
castiçais de cristal que foram dos meus avós .
Vai, o sonho me arrebata nas suas asas mágicas e me leva ao
passado, a uma outra véspera de Natal, numa outra casa, quando
eu tinha onze anos.
A noite - e eu bem me lembro ! - era também estrelada e quente,
e também pelas j anelas escancaradas entrava um hálito perfumado de
mato. A árvore é que era outra, maior, dum verde mais sólido, feita
que era de um galho cortado de pinheiro. Vergava ao peso gracioso
dos enfeites e dos brinquedos. As velinhas brilhavam, trêmulas, à
brisa rala. Vozes queridas, vozes perdidas, formavam um coro feliz
à volta dos seus ramos, nos quais fiapos de algodão fingiam neve.
A caixinha de música desenrolava, escondida, extintas melodias gentis
de gavotas, mazurcas, minuetos. A vasta travessa de rabanadas corria
entre os presentes pelas mãos das negras . E as castanhas, e os figos
melosos de Portugal e o vinho farto, e as ameixas e as nozes . . E
.

o riso de todos, e a alegria de todos - Feliz Natal ! Feliz Natal ! E


os gritos : - Filipinas, filipinas ! Os felizes achadores de amêndoas
gêmeas obrigavam os outros a pagarem prenda. O sono tinha ido
embora dos olhos infantis . Mas era tarde j á, era preciso dormir. Lá
fomos para o quarto, depois de termos posto os nossos sapatos atrás
da porta para Papai Noel, com seu saco vermelho, enchê-los no mis­
tério da grande noite. E ela, a árvore, ficou na sala, queimando as
suas velinhas, pesada ao brilho dos seus adornos, com seus flocos de
algodão, suas rutilantes estrelas . Visão maravilhosa da flora do país
das fadas, imorredoura visão, foi a última Árvore de Natal da minha
infância.
Tudo mudou. Um vento mau soprou impiedoso sobre a nossa casa
do Trapicheiro . Adeus, Cristininha, minha irmã! Adeus, papai e
mamãe! Muitas vozes se calaram para sempre. Muitos risos nunca
mais foram ouvidos . Vidas se dispersaram . Todas as alegrias da
infância se perderam . O mundo veio me aparecendo outro, feroz, sem
ilusões, sem encantos. Mas a Árvore ficou para sempre dormindo no
meu coração como uma semente de paz, de poesia, de fidelidade
e amor, que um dia haveria de frutificar.
São nove horas batidas no velho relógio amigo cujas pancadas
214
têm uma graça de cadência antiga. Teresa, que ficara me olhando,
muda - ela sabe bem quando o sonho me pega nas suas asas -
levantou-se, pôs em mim os seus olhos rasgados onde há tanto perdão
para as minhas fraquezas :
- Está na hora, meu filho .
Eu me levanto :
- Está sim.
Encaminhamo-nos para o quarto das crianças. Uma comoção funda,
irreprimível, me sacode - que, pela graça de Deus, elas tenham em
todos os anos da sua infância a sua Árvore de Natal e todas as alegrias
do Natal. Elas e os seus filhos, e os filhos dos seus filhos, indefini­
damente.

A ÁRVOR E

O sol é grande. Zinem as


cigarras em laranjeiras
MANUEL BANDEIRA

AssENTADA na base do morrote que a Rua Alice serpenteando escala


até se enfiar como gigantesca cobra cinzenta e mansa no túnel do Rio
Comprido, a casa azul, daquele inocente azul, bastante vivo, de que
tanto gostavam os mestres-de-obra de antanho, a casa azul - doçura,
harmonia e acaçapamento - com seu covo e musgoso telhado, suas
pinhas de louça portuguesa e seu alpendre de ferro fundido, os degraus
um pouco gastos e algumas bolas de vidro pendidas quais estranhos
frutos, remanescências do que já constituíra sensacional decoração ao
tempo dos seus primeiros e finados moradores , a casa azul tinha
quatro janelas de guilhotina para o vale das Laranjeiras, sem vestígios
dos laranjais que lhe deram o nome, vale por onde suavemente se
espraiava o bairro de aristocrático tom, infiltrado no arvoredo de mil
verdes diversos e inesperados e cada dia mais eriçado por antenas
de televisão que lembravam armações de sombrinhas, quatro janelas
como quatro olhos retangulares, que não se fechavam nem noite alta,
atentos à lua, ao cantar dos galos, ao ladrar dos cães, ao roncar dos
motores no Aeroporto, que as horas silentes aproximavam, e aos
encompridados apitos dos vagos vigilantes, de boné amassado, cujos
passos repercutiam tão pouco policialmente no silêncio noturno, que
é o império dos grilos, mas que precavidamente emudeciam ao abrigo
de uma soleira providencial, nas noites de chuva, aliás mais freqüentes
na zona que na maioria dos pontos da cidade.
Viam muito esses olhos indormidos - as nobres e altivas palmeiras
ao lado, em linha dupla, idosas de terem conhecido o Imperador na
2 15
sua berlinda bojuda, pintada de verde e amarelo, as galhudas man­
gueiras, no âmago das quais brincam os micos em guinchos e cabriolas,
as imensas figueiras de retorcidas raízes poderosas que derrubavam
muros e levantavam as pedras das calçadas, as paineiras, as cássias,
os mulungus, os ipês, as quaresmeiras com o roxo encantado da sua
floração, o Rio das Caboclas, também chamado Carioca, corrente min­
guada e poluída, que já não comportava lavadeiras, corno é da crônica,
sumindo de repente sob a pavimentação da rua, a Bica da Rainha,
onde as rainhas, loucas ou sensatas, não vêm mais beber da pura
água ferruginosa, famosa antigamente por virtudes medicinais, muito
especialmente para a pobreza do sangue. Viam o penhasco de Dona
Marta, dama de quem não se sabe muito a vida, exceto que foi rica
proprietária e benfeitora da Misericórdia, cocuruto que de urna banda
é pedra a pique, de outra relvoso declive escorrendo para a distinguida
Rua São Clemente, o urnbroso e úmido Silvestre com os seus recantos
idílicos, suas estradas limosas, seu cheiro ácido de clorofila, sua vetusta
caixa-d'água marcada por singular tristeza, e no qual infelizmente a
favelazinha ganha corpo devastando a mataria e provocando incêndios
estivais, logo apagados pelos Bombeiros que se anunciam com alar­
mante sirene, que faz tremer o pacífico bairro todo, como o fazem
tremer os aviões em baixo vôo . Viam o trenzinho de cremalheira a
subir o Corcovado, com o Cristo de braços abertos no topo, viam o
celibatário Gastão Cruls, o chapelão dernodê, a infalível piteira em
riste, o semblante carrancudo, o andar apressado, o aspecto de ave
pernalta, dando urna prosa com Arnérico Facó ou Dante Milano, vizi­
nhos e fraternais amigos - dois Poetas , poetas ! Viam Cornélio Pena,
enquanto pôde, passeando ao sol com passos trôpegos, firmando-se no
braço da esposa dedicada e na mão invisível do Salvador, que o
empolgou, afinal, para tê-lo eternamente junto ao seu seio amantíssimo.
Viam o sertanejo Austregésilo de Athayde, com olho d'água nos fundos
da invejável casa, prateada cabeleira ao léu, sandália cangaceira, ginasta
em marcha matinal e algo ascética para se conservar em forma ou
organista doméstico para tranqüilizar a alma inquieta, viam o Professor
Silva Melo, que tem as janelas da insigne biblioteca dando para o
Largo do Boticário, recanto grã-fino e muito fotografado, e viam o
Morro da Graça com a sua graça infinda, reconhecida até pelo frio
caudilho Pinheiro Machado, que instalou nele a sua morada por largo
tempo, a Meca dos políticos, romaria que teve fim quando urna punha­
lada o prostrou. Viam as sinuosas ladeiras do Ascurra e do Cerro
Corá, que perpetuavam heróicos episódios guerreiros, grimpando o
Morro do Inglês, viam a Rua Srnith de Vasconcelos, a meio da qual a
castelã Cecília Meireles tem o seu torreão de Poesia, viam a poetisa
Ana Arnélia, na sua mansão de rendadas sacadas, que é um museu,
viam os altos do Pão de Açúcar, só os altos, e o travesso bondinho
quando chegava lá em cima, gostariam de ver o mar, como gostariam!
ao menos por uma nesga de vez em vez cortada por uma enfunada
216
vela branca, de pescaria ou de esporte, mas contentavam-se com o
vôo distante planante das gaivotas, que lhes traziam uma idéia não
muito nítida de peixe e de mar. Viam o fragoroso bonde ranger na
curva do Cosme Velho, prolongamento feito de antigas chácaras e
que foi anexado tácita e naturalmente ao bairro, as meninas do Sion,
diferenciadas por coloridos cordões na cintura, as conversações em
gesto dos alunos do Instituto de Surdos-Mudos, que é um prédio
com pretensões à imponência, a algazarrante garotada da Escola Ro­
drigues Alves, ex-solar dos perdulários Haritoffs, autêntico palácio
sombreado por espessas árvores, de imensos salões rica e finamente
decorados com o melhor gosto parisiense da época, o principal forrado
de reps cor de vinho e ornado com painéis de seda azul, bordados
pela mais esquisita imaginação chinesa, como escreve um comentarista,
as janelas guarnecidas de cortinas de cetim azul-celeste, as portas com
pesados reposteiros de veludo grená, salões onde se reunia, nos derra­
deiros anos da monarquia e nos primeiros republicanos, a flor da socie­
dade carioca em recepções e bailes de inesquecível grandiosidade,
requinte e fidalguia ._ ó flautas! ó violinos ! ó requintas ! em valsas,
mazurcas e quadrilhas esquecidas - reuniões que os cronistas sociais
não se cansavam de exaltar com a pena da admiração ou da lisonja
- ó casacas ! ó decotes! ó adereços e penteados gentis ! debandando
entre risos e suspiros nas carruagens, que pacientemente os aguar­
davam, quando a aurora, com seus dedos róseos, já brandamente se
insinuava no bucolismo do vale.
Viam as passeatas dos Canarinhos nos prelúdios do carnaval, vozes
e instrumentos que ficavam vibrando nos peitos sensíveis muito depois
da sua passagem nas sombras da noite, os padeiros empurrando car­
rocinhas na madrugada, os namoros de gargarejo e de portão, com
tão quentes e apaixonadas promessas , além dos beijos, e viam, com
inequívoco desprezo, as lentas obras da basílica de São Judas Tadeu,
redonda como bolo de má confeitaria, blasfêmia arquitetônica contra
Deus, em sentido lato, e contra o mártir da Mesopotâmia em parti­
cular, que profetizava para os blasfemos uma tempestade de trevas
por toda a eternidade.
Isso o que viam, se não quisermos ser prolixos. Já viram, porém,
mais coisas, muitas, muitas, olhos antigos que eram como certas ruas,
casas e pernas que mereciam a exclamação machadiana, pela boca
de Dom Casmurro, quando este transitava pela Rua Nova da Prin­
cesa, um dos elos do Catete com o mar, levando a pecadora e capitosa
Capitu no coração . Viram o próprio e ático Machado de Assis, pon­
tualmente esperando o bondinho que o levaria à federal repartição,
onde esmerava-se nos memorandos, não raro afagando os cabelos de
:�lguma criança vizinha - o menino Alceu, por exemplo - com a
-calada e retraída ternura dos que não têm filhos, e voltando ao
crepúsculo, o pincenê perscrutador, os lábios pronunciados, a bar­
bicha grisalha, livros debaixo do braço, às vezes mais cedo, combalido
2 17
e desgraçado no fundo de um tílburi, de conhecido e discreto cocheiro,
para o modesto chalé donde saiu para sempre dois anos depois da
sua amada Carolina, chalé que teve placa comemorativa da notável
residência e que mais tarde se encarregaram de demolir sob pre­
texto urbanístico, pois há sempre pretextos para os vandalismos e as
ingratidões. Viram Pereira Passos, erecto, sisudo, senhoril, barba
branca, colete branco, guarda-sol branco, vistoriar obras públicas, ele
que revolucionou a cidade marcada ainda por um deplorável ranço
colonial, e idealizou, com Teixeira Soares, a Estrada de Ferro Corco­
vado, a primeira construída no Brasil para fins exclusivamente turís­
ticos, ou higienicamente fazer o quilo vesperal, morador que era da
Rua das Laranjeiras, com palacete perto do Largo do Machado, que
resistiu valentemente a todos os nomes que lhe punham e que sempre
foi o coração comercial do bairro. Viram Portinari, com a sua carinha
de anjo barroco, inspecionar o seu íngreme quintal em platôs, no qual
insistia em fazer vicejar uma horta, ou vir trazer, gesticulando nervo­
samente, o grosso cigarro pendurado no canto da boca, o calmo amigo
Santa Rosa até o portão de ferro, vedado por folhas de zinco. Viram
os alunos do famoso colégio do Barão de Macaúbas, situado na Rua
lpiranga, casarão depois transformado em asilo, e que Raul Pompéia
retratou imortalmente no A teneu. Viram, lá pelas cercanias do Palácio
Guanabara, em canhestros chutes, elevar-se no pálido anil da tarde
cristalina a primeira bola de futebol, desporto importado e que redun­
daria em paixão avassaladora dos cariocas e dos brasileiros, viram
a exaltação do primeiro Campeonato Sul-Americano conquistado no
estádio do Fluminense, viram o Flamengo mudar seu campo da Rua
Paissandu para a Gávea, como viram nas escadarias daquele palácio,
com tão belo parque e em cuja amplidão a Princesa Isabel e o Conde
D'Eu fizeram a sua inicial vidinha de casados, com freqüentes saraus
de música e dança, muito mais música do · que dança, o Presidente
Getúlio Vargas defender-se de revólver na mão, contra o assalto dos
integralistas . Viram Coelho Neto, miúdo, vibrando, modelo de escritor
profissional, infatigável escrevendo dia e noite na casa da Rua do
Raso, que também derrubaram, viram os serões na casa de Francisco
Otaviano, na Rua Cosme Velho, onde faleceu - e quiseram home­
nagear o ilustre morto, dando seu nome ao logradouro, coisa que não
pegou - serões nos quais se falava de livros, de coisas do espírito,
poesia, filosofia, história ou da vida de nossa terra, entremeando a
tertúlia com anedotas e recordações pessoais, viram o enterro de um
outro jornalista - Ferreira de Araújo - que não teve igual em
acompanhamento e coroas, e viram as orgulhosas chaminés da fábrica
Aliança, a maior do país no século passado, e o espremido casaria
em volta, onde se abrigavam mil famílias tecelãs, tombarem para dar
lugar a um novo arruamento - pequeno bairro dentro do bairro -
mais lucrativo do que os panos que fabricava.
21 8
Viram, viram muito, agudos, atentos, sensíveis, mas jamais bisbi­
lhoteiros, jamais . Um dia, porém, eles se cerraram, não vítimas de
nenhum mal oftálmico, e salvo o vizinho fronteiro, que era míope e
devotado amante de livros, ninguém lamentou a falta deles, ninguém!
e foi até como se nem tivessem existido, e existido uma longa vida de
vidraças abaixadas ou suspensas, embora por tantos anos - tal é a
falaz memória dos homens das grandes cidades, cujo evolver é inces­
sante, desordenado e às vezes cego - tivessem servido de referência
topográfica :
- É u m pouco antes d a casa azul - informava um.
- Fica mais ou menos na altura da casa azul - informava outro .
- O senhor sabe onde fica a casa azul, não sabe? Pois a rua
que o senhor procura é a primeira depois dela, quem vai para a
Estação do Corcovado - informava um terceiro .
Aconteceu que o elegante corretor de imóveis, elegante, simpático,
de boa conversa, cumpridor irreprochável de todas as etiquetas mun­
danas, que vivia farejando lucros, somou bem somado com a sua
prática profissional, amplamente reconhecida e honrada, todavia assaz
desalmada, o desperdício daqueles cem metros rasos de terreno que
a casa azul tinha pela frente, até a rua, jardim que fora belo outrora,
com caminhos de fino saibro, com repuxo de conchas, cacos de louça
e pedras roliças misturadas na argamassa, o caramanchão coberto
de j asmins, os hibiscos escarlates , os brincos-de-princesa, as cristas­
de-galo, as alamandas, os lençóis de margaridas, os tapetes de crotons,
e os cheirosos manacás, as rosas, cravos e cravinas, os canteiros de
amores-perfeitos, que eram a flor predileta dos namorados, jardim
que ficara reduzido pelo abandono a um melancólico destroço floral,
no qual até lixo da vizinhança descaradamente se jogava. E, de copo
de uísque na mão, habilmente atacou os beneficiários do espólio, gente
que se bandeara, dividida, para Copacabana, não suportando aquele
viver semi-urbano e semi-silvestre, numa casa cheirando a mofo, com
os encanamentos todos vazando e deploráveis instalações sanitárias,
só se sentindo bem, e realizada, no burburinho, congestionamento e
promiscuidade do bairro praiano, que tinha uma nova batida de vida,
com as tentadoras atrações do mundanismo e da futilidade e todo um
inumerável comércio à porta dos apartamentos .
- Que pretendem fazer da casa azul?
Na verdade não sabiam, estavam para decidir . . .
- Mas não poderão postergar indefinidamente a decisão. Aban­
donada no jeito que vai, acabará virando cabeça-de-porco, como tan­
tas outras por aí.
Todos estavam concordes. E ele, matreiro :
- Reformar a velha casa patriarcal seria ótimo, teria um sentido
alta e generosamente sentimental, teria, mas convenhamos que não se­
ria brincadeira! Não ! nem por sombra! Tem que ser uma reforma em
regra. Ela está caindo aos pedaços e os tempos estão bicudos !
219
Era o que intimamente pensava o único saudosista da familia, sem
possibilidades nem coragem para fazê-lo, melancolicamente remexen­
do o gelo com o dedo.
Há argumentos decisivos :
- Ou será que são querem ganhar dinheiro?
Era precisamente o que queriam todos, inclusive o saudosista, que
vivia um tanto liricamente na base da mordedura e do empréstimo. E
aderiram :
- Se você se encarrega de encontrar uma solução vantajosa . . .
- Não será doutra forma, podem ficar sossegados . E muito agra-
deço a confiança. Deixem a coisa comigo. Não é outro meu trabalho
nesta vida.
E o negócio, rapidamente entabulado, mais rapidamente se efetuou.
A companhia incorporadora mandou expeditos engenheiros e arquite­
tos, que mediram, remediram, calcularam e prepararam a planta do
edifício de apartamentos, dez andares em que o terreno era apro­
veitado ao máximo, e que a Prefeitura imediatamente aprovou. Houve
anúncios de meia página nos jornais, suspenderam uma grande tabu­
leta no local com convidativos dizeres, e mãos à obra! Vieram as
impiedosas picaretas demolidoras, vieram os pesados caminhões para
conduzir aquele entulho venerável - havia uma grade de varanda
maravilhosa! havia os azulejos da copa e a pia da sala de jantar,
que eram um sonho! havia uma banheira de mármore italiano, com
pés de garra, que era de endoudecer! - e lá se foram os quatro
olhos retangulares, olhos da casa azul, casa com vastas salas, uma
alcova com clarabóia, esquadrias de vinhático e cabiúna, assoalho de
pinho-de-riga, e quatro metros de pé-direito! Vieram as escavadeiras,
as betoneiras, as serras mecânicas, que atormentavam os ouvidos e
nervos circunvizinhos com seu uivo metálico e prolongado, veio uma
legião de operários, a mor parte dos quais, nordestinos, dormia na
obra em redes multicores armadas por entre os andaimes, as lajes
de concreto foram subindo cada mês e em três anos estava pronto
o edifício, com um excesso de vidro e de pastilhas cor de chocolate na
fachada, que recebeu os moradores orgulhosos da novidade e da pai­
sagem, e do jardim somente restaram duas paineiras, mais barriguda
uma, mais empinada outra, espinhentas ambas, cuja volátil paina ia
propiciar aos médicos muitas rendosas alergias nas redondezas ·e
que serviram, principalmente, para batizar o prédio - Edüício Duas
Paineiras. Para decoro, na diminuta metragem reservada ao ajardina­
mento foram feitos dois canteiros assimétricos com folhagens orna­
mentais, e um terceiro, mais estreito e comprido, que acompanhava o
edifício na extensão de um dos seus lados e que terminava junto à
granítica amurada, aproveitamento da primitiva, obra máscula de
braços escravos, que suportava o escorregadio barro do morrote, can­
teiro que não mereceu mais do que modesta grama, muito sacrificada
pelos pés nem sempre inocentes da criançada condominal.
220
Os apartamentos variavam de preço - financiados a longo prazo,
em suaves prestações pela tabela Price - conforme o andar e o tipo,
e havia três tipos alfabeticamente designados pelos dinâmicos incor­
poradores : A, B e C. Os mais baratos eram os do pavimento térreo,
tipo C, é óbvio, e dois deles, de fundos, paralelos ao aludido canteiro,
cada um com uma varandinha ao rés-do-chão, com espaço justo para
uma mesinha redonda e duas cadeiras, e facilmente utilizável pelos
pula-ventanas, ocupados foram pelos respectivos proprietários logo
a seguir ao "habite-se", cuj a demora de quase um mês nos compli­
çados guichês municipais afligiu-os sobremodo, ansiosos que estavam
para desfrutá-los, livrando-se de aluguéis, de senhorios e da Lei do
Inquilinato, que é arma de dois gumes.
Um dos proprietários, magro e giboso, era postalista aposentado,
mas não podendo se dar ao luxo de gozar todas as horas da aposen­
tadoria com os parcos cruzeiros que recebia dos cofres da União, como
jamais pudera se agüentar com o que percebia na atividade postal.
dedicava-se ao biscate de escritas avulsas de modestas firmas - bote­
quins, varejos, pequenas oficinas - trazendo pletórico papelório para
debulhar a domicílio, escrituração que um companheiro, contador
diplomado, assinava mediante razoável comissão ; Ananias Pinheiro se
chamava e só tinha uma filha, casada muito jovem e moradora em
Niterói para onde se abalavam, ele e a mulher, via de regra, uma
vez por semana para ver os netos . O outro, Ardogênio Ferreira,
sanguíneo e retaco, sócio e gerente era duma loja de tintas na Cidade
Nova e tinha dois filhos , rapazolas troncudos como o pai, pouco encon­
tradiços em casa, que faziam sem muita convicção e resultados o curso
colegial e que empenhavam todo o ardor vital em torcer pelo Fla­
mengo, com aquele fanatismo que caracteriza os aficcionados rubro­
negros.
As mudanças foram feitas no mesmo dia, uma sexta-feira, dia crite­
riosamente escolhido, quando seriam aproveitados o sábado e o domingo
para colocar as coisas todas logo nos eixos, com a tradicional confusão
dos lusos carregadores, que não se fartaram de trocar objetos dos
dois apartamentos.
- :E:, Seu Manuel ! esta cadeira é minha - protestava Ardogênio.
- Ai, ié? ! - admirava-se o brutamontes com candura.
- São de morte! - ria Seu Ananias .
Evidenciou-se a incapacidade do débil aposentado em prestar auxílio
na arrumação dos trastes, tarefa que Dona Matilde ia comandando com
mais eficiência, enquanto o vigor de Ardogênio substancialmente se
manifestou, esvaziando caixotes, enchendo prateleiras, empilhando pa­
cotes, arrastando móveis, experimentando várias posições deles até
acertar com o local mais adequado, e, muito solícito, dando uma mão­
zinha às dificuldades do vizinho, quando os carregadores, com os
caminhões vazios, consideraram terminado seu serviço.
221
Ficaram amigos . Seu Ananias conseguiu, por milagre de um com­
padre, funcionário da Telefônica, que seu aparelho fosse transferido
em uma semana! - e durante meio ano colocou-o à disposição do
vizinho com toda a solicitude. Espichando o pescoço, chamava da
varandinha, que era contígua à outra e, de resvés, dava para ver os
patinhos de louça, em fila indiana, pregados na parede :
- Dona Maria do Carmo, ó Dona Maria do Carmo !
Ela punha de fora a cabeça cheia de rolozinhos de plástico, o arti­
fício doméstico e econômico para ondular os cabelos :
- Eu ! . . .
- Seu Ardogênio mandou avisar que irá chegar mais tarde. Tem
que ir a Olaria.
- Já sei. Vai ver o Lemos. Vou despachar a janta dos meninos.
Muito obrigada pela maçada, Seu Ananias.
- Que maçada nenhuma, Dona Maria do Carmo!
Doutras feitas era chamada para o próprio Ardogênio, que vinha
atender de blusão e chinelos:
- Dá licença? . . .
- Que licença! vai entrando, a casa é sua. - E suspendendo a
colher de sopa, que sem sopa Seu Ananias não passava : - Está ser­
vido?
- Bom apetite! - e se pendurava no aparelho, ora discutindo com
o Lemos, que era sócio dele e andava acamado - um ameaço de
enfarte - ora insistindo com um dos vendedores da firma para não
perder o contato com determinado empreiteiro.
Foi numa dessas que Seu Ardogênio constatou o precário estado
do armário de cozinha do novo amigo, trouxe uma lata de superior
esmalte branco e ele próprio, com experiente trincha, em apurada tarefa
dominical, deixou o manchado e escalavrado movelzinho praticamente
como se tivesse vindo da loja. Dona Matilde, mais: destra em culinária,
mimoseou Dona Maria do Carmo com um pão-de-lá e a competente
receita, pão-de-lá sem manteiga, vejam só, verdadeiramente delicioso !
Dona Maria do Carmo, mais dedicada às artes da agulha, retribuiu a
delicadeza com uns panos de prato bordados, em ponto de haste, com
espantadas carinhas de gato, lavor que foi muitíssimo apreciado.
Ficaram amigos, repita-se, e daí muita conve�sa, ora numa varan­
dinha, ora noutra, de preferência depois dos programas humorísticos
de televisão, que imensamente divertiam o comerciante - não sei
onde esses diabos vão buscar tanta coisa engraçada! - e antes que
Ananias se entregasse a completar o que de dia começara ou dera
andamento no campo da contabilidade.
Ardogênio, que não passara do quarto ano primário, uma escola
pública da Rua Barão do Bom Retiro, começara a trabalhar cedo, nem
buço tinha, cedo e por baixo, caixeiro-vassoura numa loja de ferragens
da Rua dos Ourives, muito afreguesada no interior, mas muito afre­
guesada mesmo !
222
- Hoje é uma sopa, compadre! Com horários, férias, semana in­
glesa, aposentadorias, uma série de regalias, justíssimas cá pra nós !
Quando comecei, não tinha disso não, era puxado, das sete da manhã
às sete da noite, ali no duro, e a gente nem sabe como é que as pernas
agüentavam! Quem diz que chegava um minuto atrasado? Quem diz
que saía antes das sete da noite, fosse inverno ou verão, fizesse chuva
ou bom tempo? E quantos feriados passei eu até às cinco da tarde,
conferindo e botando preço em mercadorias, empacotando-as, balan­
ceando as prateleiras, dando cabo das baratas cascudas, que eram uma
nojeira! acondicionando caixotes de fregueses, quantos ! Se fosse contar,
perdia a conta . . . Quinze anos andara naquela dobadoura, os últimos
beneficiados por umas leis trabalhistas que caíram do céu, até que
conseguiram crédito, ele e o Lemos, que fora por igual tempo seu
companheiro de solanca, e abriram uma casa de tintas, artigo de que
tinham tarimba, primeiro na Rua Machado Coelho, casinha duma porta
só, depois progredindo, no Estácio, mais ampliada e sortida, com uma
clientela de melhor quilate.
Também por baixo principiara Ananias - que tivera mais estudo,
roçara bancos ginasianos - como auxiliar de escritório de um des­
pachante aduaneiro, onde criara gosto e prática pelos mistérios do
Deve e do Haver, até que um deputado, cabra gozado, muito femeeiro
mas muito boa-praça, metera-o, com um simples cartão de apresen­
tação para o Ministro, nos Correios e Telégrafos, na condição de ter­
ceiro escriturário, onde foi galgando postos, por antiguidade e mere­
cimento, até a aposentadoria, com trinta e cinco anos daquilo nos
costados.
- Não precisou vir a filha p ara ver que daquele atoleiro não
tirava um sustento decente. E ainda noivo, me agarrei ao que sabia,
aproveitando as horas vagas, e comecei minha faina de escrita. Ah, se
não fossem elas, estaria frito !
- Você, Seu Ananias, foi feliz com a filha.
- :É. Graças a Deus, sempre foi menina ajuizada, está casada
direitinho, o marido é muito trabalhador, dentista, o senhor já sabe.
- Sei. - E Ardogênio tirou um suspiro do peito : - Os meus
meninos é que parecem não tomar jeito. Não querem estudar, viv em
repetindo ano e é um dinheirão de colégio ! O que não tive , quis
dar a eles e eles não dão importância. Nenhuma! E se não estudam,
também em trabalhar não falam, no entanto sabem que teriam um
lugar garantido lá no negócio, que afinal é deles mesmo. Mas não
piam . . .
- Qual, são bons rapazes . A mocidade costuma ser assim, depois
toma jeito.
- Bem, mal-educados não são. Mas são duma moleza que me
exaspera. Nunca fui assim. Veja como ainda dou duro!
- Então não sei? !
223
- Acho que é por causa da mãe, que passa muito a mão pela
cabeça deles.
- Deixa passar! Coração de mãe não se engana.
- Bem fez o senhor hoj e que não saiu de casa, Seu Ananias. ( Foi
prinCípio de outra conversa.) Deu-se um engarrafamento ali na Rua
Alice e o tráfego ficou atravancado até o Largo do Machado . Foi
um caro custo para chegar aqui. Desci do ônibus e vim gramando nos
calcantes , do contrário acho que até agora não tinha chegado.
- A rua é estreita e esses lotações não respeitam a mão . Vão
metendo a cara! Então, a toda hora, estão dando essas confusões.
- Falta de policiamento . . .
- Falta de tudo ! Este país não toma jeito, não. Sem ordem e
sem administração. Não adianta votar, perder tempo, se aborrecer
e se decepcionar. É tudo uma corja só, uma cambada de vigaristas !
- Está melhorando, amigo, está melhorando, que é que há? . . .
Apesar dos políticos, é lógico. Mas enquanto eles dormem, ou comem
o seu milho, o Brasil caminha . . . No meu ramo, por exemplo, eu
vejo que está progredindo, e ninguém pode negar. Antigamente era
tudo artigo estrangeiro, se é que o freguês não queria porcaria, porque
havia uns moambeiros fabricando besteiras por aí. Agora, já temos
ótimo material nacional. Mas ótimo mesmo ! Igual ou melhor que
muito estrangeiro.
- Lá pelo progresso material, não falo. Estamos marchando . É
de progresso moral que ele precisa.
- Compreendo, compreendo, Seu Ananias . É preciso decência,
senso de responsabilidade, não é?
Lá veio a borboleta azul - e isso foi numa tarde de feriado, lumi­
nosa, diáfana - lá veio a borboleta azul, imensa, adejando pesada­
mente, cortou o ar em ziguezague, afundou-se no mato, onde as roli­
nhas alinhavam-se no galho mais desfolhado da umburana.
- É linda, não é?
Seu Ardogênio foi levado no arrastão poético :
- Parece uma jóia.
- Estão desaparecendo . No meu tempo de criança, eram aos
milhares !
- Ainda são muitas .
- Nem o cheiro do que eram!
- Essa nossa Laranjeiras ainda guarda muita coisa do velho Rio.
Ananias largou num queixume, espichando as pernas magras, vendo
através da porta aberta do quarto dos meninos a flâmula flamenga
pregada na parede :
- Guarda. Mas dia virá que nada, ou quase nada, restará . . .
Não imagina o que já vi desaparecer! Um monte de coisas !
Nascera e se criara na Rua Marquesa de Santos, dominada pela
torre alta e quadrada da Matriz da Glória, cujas missas eram freqüen­
tadíssimas pela elegância católica das cercanias e marcada pela sineta
.
224
do Patronato de Menores que soava tão fina e tristemente, numa casi­
nha de porta e janela, a última de um correr delas, nas fraldas do
Morro de Nova Cintra, onde de pé no chão e atiradeira feita de tiras
de pneumático perseguira muito tico-tico e muito camaleão e onde,
mais para os lados da pedreira, empinara muito papagaio com rabo
tricolor. Depois de casado, e conhecera a mulher numa barulhenta
matinê do Cinema Politeama, é que fora para a Rua Dois de Dezem­
bro, e lá ficara anos e anos, até que o proprietário - dono de uma
sapataria no Catete, português, baixote e de retorcida bigodeira -
arrastado pelo generalizado ímpeto imobiliário, achou por bem derru­
bá-la para construir um grande prédio ; tinham ficado amigos, entraram
em entendimentos, recebeu uns cobres sem constrangimento e, como
tinha umas economias na Caixa Econômica, pôde enfrentar a compra
do apartamento na planta e o senhorio fora bastante camarada, espe­
rando aquele tempão todo :
- Não é a matar, Senhoire Ananias, não é a matar! Sei perfeita­
mente que o senhoire vai sair e ainda lá estão uns gajos que meteram
advogado e me estão futricando a paciência. Comigo não tiram teima!
A eles não darei um tostão! Nem que morra! Meti advogado também.
Poderão pular que nem cabritos, mas acabarão no olho da rua, sem
me levar um níquel!
Já Ardogênio era filho do Andaraí Grande, criara-se nas bordas do
antigo Jardim Zoológico, bosque propício às traquinadas, e a adoção
das Laranjeiras como domicílio fora mera casualidade - um dos
empreiteiros do edifício, pessoa do peito, falara-lhe da obra como
sendo verdadeira galinha-morta, dado o local e o acabamento ; fora
conferir, a patroa gostara do lugar, que lhe parecera muito distinto,
muito sossegado, e ele entrara garbosamente na incorporação . Morara
antes, e por largo tempo, num sobradinho da Esplanad a do Senado,
quente como forno no verão, onde tinha a vantagem de ficar perto
do trabalho, quando em duas pernadas estava em casa para almoçar;
mas tanto o sobradinho estava dando o prego, com infiltrações em tudo
quanto era parede - e já tinham até cogitado seriamente de mudança
- como a zona estava ficando meio velhaca, a esquina se transformara
em ponto de prostitutas, transviados e maconheiros, de sorte que o
alvitre do empreiteiro amigo viera mesmo a calhar. Agora sentia-se
muito bairrista :
- :E: um bairro privilegiado este nosso, Seu Ananias . Que noites
para dormir! A gente chega cansado e é um regalo se meter na cama.
Da Rua Soares Cabral para cá já se pode sentir a diferença de tempe­
ratura, pelo menos quatro graus para baixo, quando o calor está
feio na cidade. :E: uma satisfação . . . Sem falar da água, que não
é problema.
Dona Maria do Carmo garantia que melhorara consideravelmente
das dores nos ossos e Ardogênio gabava, outrossim, os melhoramentos
que estavam realizando na zona, um pouco a passo de cágado :
225
- Quando ficar pronto o túnel Catumbi__:.Laranjeiras, em cinco
minutos eu estou na loja. É fantástico !
- Ainda demora. Está cheirando a obra de Santa Engrácia.
- Mas acabam terminando, ora!
- Lá isso é.
E foi num bate-papo de domingo, depois do ajantarado - feijoada
completa, em que Dona Matilde era consumada - o sol rachando, a
escondida cigarra, estrídula, arranhando a atmosfera translúcida, que
Ananias, pondo os óculos no canteiro mofino, cuja grama rareava em
vários sítios, voltou à idéia:
- Faz falta uma árvore, não faz? Daria sombra, frescura, seria
pouso de passarinhos, enfeitaria este corredor de cimento, pois não
passa de um corredor de cimento muito do mixuruca, não é verdade?
- Nem mais nem menos - concordou Ardogênio, empanzinado
e amolecido pelas batidas de limão, com que prefaciara o feijão. -
Mais pelado do que bola de bilhar.
Voltara a idéia, já que fora ela ventilada em sessão; do condomínio.
A taxa de condomínio era relativa à área ocupada por cada aparta­
mento e a primeira reunião do condomínio, que votara tal obrigato­
riedade, criando logo com isso três castas de co-proprietários, havia
sido agitada, cada qual querendo tirar brasa para a sua sardinha,
contudo sempre chegaram a um acordo nesta e em outras pertinências,
exceto na que concerne à melhora do canteiro comprido, árida ser­
ventia, para a qual Ananias, tomando a palavra pela ordem, um
pouquinho compenetrado, porém com um bom lastro de humildade,
pedira um reforço de vegetação, pelo menos idêntico ao que os
canteiros da frente mereceram. Sob a alegação de que acarre taria
aumento na despesa, o assunto foi repelido pelo síndico em exercício
- moço pachola, autoritário, mas inegavelmente esforçado - e apro­
vado por rasgada maioria que gastava para as votações parciais da
matéria em pauta um ar parlamentar um tanto parvo. Ananias, todavia,
não perdeu a esperança :
- Bem, mas se nós plantássemos uma árvore? Apenas uma árvore,
uma bonita árvore? Uma árvore não dá despesa na conservação, prati­
camente cresce sozinha.
- O prezado senhor não acha que em Laranjeiras já há árvores
demais? - aparteou, com sorriso irônico, o doutorzinho, exibindo
elegante camisa esporte de cambraia amarela.
- Eu acho que no Brasil já há árvores de menos - retorquiu.
- São opiniões - respondeu o aparteante, fazendo cara de cha-
teado e manobrando gentilmente o cigarro de filtro.
- Não, doutor . . . como é a sua graça?
- Albuquerque, Antão Albuquerque.
- Não, Doutor Albuquerque. É fato comprovado e lamentado.
Há muitas estatísticas interessantíssimas a respeito. Estima-se em tre-
226
zentos milhões as árvores que são abatidas anualmente, sem que se
replantem nem cinqüenta . . .
- Nem cinqüenta? ! - estranhou o velhote.
- Cinqüenta milhões - corrigiu o postalista.
- Ah !
Albuquerque, então, esmagando a guimba n o cinzeiro d e propa­
ganda, decidiu levar o companheiro de condomínio na gozação :
- Felicito-o, sinceramente, por seus conhecimentos estatísticos . . .
Ardogênio, que admirava a falação do vizinho, não gostou e
rosnou :
- Acho que vou engrossar . . .
Ananias sossegou-o, baixinho :
- Tenha calma. Trata-se de um pateta, não vê logo? - E mais
alto, para a assembléia : - Haveria inconveniente em se plantar uma
árvore? Eu me encarregaria de fazê-lo, sem nenhuma despesa para o
condomínio.
Houve algumas manifestações aprovativas, a pretensão caminhava
evidentemente para a revisão e a aquiescência geral, quando o doutor­
zinho, que parecia estar com a corda toda da ironia, pôs o caldo a
perder.
- Como é a sua graça?
- Ananias Pinheiro.
- Parece-me, Senhor Pinheiro, que pelo fato de ter árvore no
sobrenome, acha que deve botar átvore em todos os lugares .
Houve risos, Ananias empalideceu, Ardogênio não se conteve :
- Olha cá, seu pilantra ! - e pôs-se de pé, falando de dedo duro :
- O Senhor Ananias, como qualquer um aqui, tem direito a falar,
a propor medidas, e o que falar tem que merecer respeito, todo o
respeito. Se querem levar a proposta dele para a galhofa, aqui está
quem não consente, absolutamente não consente! e ao primeiro pio
galhofento, não tenho conversa, saio é no braço!
O doutorzinho repeliu :
- Não seja besta, carroceiro !
- Carroceiro é a mãe! - berrou Ardogênio.
- A sua! - berrou também o outro.
O síndico botou autoridade, batendo na mesa com o lápis :
- Que é isso, senhores? Contenham-se. Não estamos numa taverna!
Ardogênio, porém, não ouviu e, embalado, contraindo o pescoço
como boi que vai dar marrada, atirou-se contra o pelintra, sem que
Ananias conseguisse detê-lo :
- Vou amassar-lhe as fuças, seu safado!
O tabefe atingiu o doutorzinho, que se levantara, em plena cara,
estalando como palmada em bunda de menino ; ele, aturdido, tropeçou
na cadeira, que tombou com estrondo, levou mais uns trompaços,
aí j á Ardogênio descarregando pancadas a torto e a direito com o
punho fech ado ; o jornalista do quinto andar, metido a poeta e muito
227
reacionário, querendo intervir, apanhou umas sobras, que desajustaram
a sua dentadura, outras cadeiras caíram, lavrou a confusão, a viúva
teve um princípio de faniquito :
- Meu Deus ! Meu Deus ! Acudam!
Quando, afinal, apartaram os contendores, Ardogênio tinha um
sangrento lanho na testa, o doutorzinho estava com uns dez na cara
e no pescoço e a bela camisa de cambraia sofrera irremediável rasgão.
O coronel da reserva e o velhote conduziram o doutorzinho por
um la do, co m ademanes de solidariedade acalmando as suas promessas
de vindita, Ananias carregou o amigo por outro :
- Que maluquice! Onde estava com a cabeça?
- No lugar de sempre ! Esses grã-finos precisam de levar umas
porradas de vez em quando para entrar na linha. Não foi a primeira
nem será a última em que eu dei duro com um deles. Pensam que
são mais do que os outros - uma ova! Viu como ele estava com
pinta de lorde? - riu : - Perdeu o rebolado . . .
Ananias intimamente deliciava-se com a derrapagem do doutor:
- Foi de lascar!
A reunião realizara-se na garagem para onde transportaram mesa,
cadeiras e um quadro-negro para demonstrações, moda que os dema­
gogos da televisão lançaram com grande êxito ; a balbúrdia ecoou pelo
edifício, Dona Maria do Carmo já vinha correndo ver o que acon­
tecera. Ao dar com o marido de sangue na testa, ficou aflitíssima :
- Nossa Senhora!
- Não foi nada! Um arranhão à-toa.
- Que à-toa! . . . Você está todo ensangüentado, Ardogênio. Va-
mos a uma farmácia depressa fazer um curativo.
- Não vou a farmácia nenhuma!
- Pode dar tétano, homem de Deus ! Unha é venenosíssima!
- Não encha, mulher!
E agora, quase dois meses passados, Ananias, nostálgico, voltava
com a idéia da árvore, que tanta baderna provocara :
- Ficaria uma coisinha condigna, não ficaria?
Ardogênio, saindo da modorra, penitenciou-se :
- Ficaria bacana. E não foi assunto resolvido po r minha exclusiva
culpa. Perdi os freios.
- Que culpa, qual nada! São coisas que acontecem.
Ardo gênio fitou-o com decisão :
- E sabe duma coisa? Vamos plantá-la. No peito e na raça!
__, � uma boa idéia - sorriu, animado, Ananias. - Mas se o
síndico empombar?
O comerciante parecia rugir :
- Isso já são outros quinhentos mil réis!
O postalista animou-se :
- Bravos ! Vou trazer uma muda d a casa do meu genro, em Nite­
rói. Amanhã mesmo ! Ele tem um quintal que dá gosto!
228
- Não! Deixa isso comigo. Faço questão. Questão fechada! Não
será muda, não. Será uma árvore bem crescidinha. Vou escolher a
capricho . . . Amanhã eu pego a caminhonete da loja e vou ao Horto
Florestal buscar. Eles dão de graça, eu conheço um cara lá que é
meu freguês velho. Mas mesmo que custasse cem mil cruzeiros eu
trazia - crescidinba!
E no outro dia, triunfante, trouxe-a - j á de metro e meio de
altura, esbelta, muito viçosa. Era um flamboyant.
- O cara me disse que essa bicha sobe mais depressa do que
avião!
Trouxe a árvore e trouxe enxada. Suando em bicas, cavoucou o
terreno e, numa cova de quas e três palmos, plantou o flamboyant,
fincou uma escora para que ele se firmasse - o vento aqui é fogo !
-, regou-o, usando a chaleira, num ir e vir sem conta, para que
ficasse bem regado :
- O cara me disse que regasse bem. Árvore quer água.
Ananias, auxiliando-o · com os olhos, babava-se de prazer - era
linda a diabinha, parecia uma girafinha . . . Dona Matilde achava,
com os seus botões , que não era flamboyant, era uma acácia. Ardo­
gênio deu por terminada a tarefa :
- Agora vamos ver! - lançou em desafio.
Ninguém disse nada e no outro dia o flamboyant estava meio murcho
e o improvisado jardineiro deitou-lhe mais água na raiz; no segundo,
piorou, e Ardogênio deu-lhe mais de beber ; depois, apesar de todos os
cuidados, perdeu a bonita folhagem que trouxera e as pequeninas
.
folhas, como gotas amareladas, juncaram o canteiro e o triste cimento
que o envo lvia. Ananias mostrou-se apreensivo :
- Menino ! Eu acho que ela vai morrer . . .
Ardogênio trouxera ainda precisas informações do Horto :
- Não vai morrer, não. É assim mesmo. É que ela sente um
pouco a transplantação . Talvez tenha sentido demasiadamente. Mas
não há de ser nada. Depois verá os brotos virem com toda a força.
- Deus o ouça!
- Deus não tem nada que ver com a história. É a natureza. A
natureza tem as suas fofocas .
E foi realmente o que se deu. O tempo, que andara surpreendente­
mente seco, molhou-se. Foi uma semana inteira de chuvinha manhosa,
incessante, as sarjetas transmudadas em eventuais regatos que os ralos
sugavam, os morros escondidos naquela pasta de algodão acinzentada
e úmida que deprimia os corações amantes do sol, chuva que irritava
os nervos, que zombava das previsões meteorológicas, avidàmente
consultadas, passada a qual, como se uma química sutil se tivesse pro­
cessado no seio da terra generosa, os brotos do flamboyant explodiram
vigorosos, pintados de um verde vivo e lustroso .
Ananias não cabia em si de contente :
- Que maravilha!
229
Ardogênio sentia-se muito vaidoso dos seus conhecimentos botânicos
adquiridos em meia hora do Horto Florestal :
- Eu não disse?
Dona Maria do Carmo, que fora ao dentista na cidade, chegara
atrasada :
- Um caminhão e uma Kombi deram uma trombada defronte da
Maternidade. Foi um engarrafamento em regra!
O marido adivinhou :
- Aposto minha cabeça que era mulher guiando, não era?
- Era - e ela riu, sacudindo a s acola onde caberia folgadamente
uma criança.
Ardogênio tinha pontos de vista convictamente firmados :
- Mulher no volante é fogo !
Ananias só pensava na árvore :
- A s enhora viu que beleza, Dona Maria do Carmo? Estão saindo
os broto s . Agora ela vai ! - E declamou colegialmente :

Não choremos, am igo, a mocidade!


Envelheçamos rindo! envelheçamos
Como as árvores fortes envelhecem:
Na glória da alegria e da bondade,
Agasalhando os pássaros nos ramos,
Dando sombra e consolo aos que padecem

De quem é esse troço? - perguntou o comerciante.


___.De Bilac . O nosso grande Bilac ! - E como gostava de enunciar
o nome todo do po eta, numa pequenina e perdoável exibição cultural :
- Olavo B rás Martins dos Guimarães Bilac .
- Ah, bacaníssimo! - E gracej ando : - Só que essa coisa de
envelhecer rindo não é de meu agrado, não . . . Envelheço, mas é
bufando ! Ou mais ! . . .
Os anos correm, meus caros leitores - os anos correm! Correram
dois, pouco mais que dois, céleres , complicados, efervescentes , com
a vida subindo assustadoramente de preço .
- Do j eito que vamos não sei onde iremos parar! - protestava
Dona Matilde, às voltas com as despesas da casa.
- Iremos para a cucuia ! - respondia Ananias com pessimismo .
- J?o chão não passaremos . . . - aduzia Ardo gênio com otimismo .
E a árvore cresceu com eles, assistida pelo permanente e desvelado
carinho dos plantadores, engrossando o tronco liso e rijo, pondo o s
galhos delgados à altura das j anelas d o segundo andar, árvore tran­
qüila, poleiro das rolinhas, poleiro de bem-te-vis, poleiro de pardais ,
p alco de cigarras cantadeiras , renda de folhas miúdas por onde per­
passavam os marimbondos, as abelhas e os elétricos b eij a-flores . O
postalista tivera aumento nos proventos de aposentado - uma micha­
ria! -, o comerciante comprara um Volkswagen, que s endo "o bom
s enso sobre rodas", era sonho longamente acalentado e debatido, e a

230
sindicância do edifício acabara, por artes do demônio, muito apro­
veitador das eleições de condomínio, nas mãos do doutorzinho, que s e
revelou um ativo reformador, mormente d o que não precisava ser
reformado, e como não fica mal respigar exemplos do reformismo
desnecessário, informamos ter trocado, na portaria, a l áctea bacia de
vidro, suspensa do teto por três azinhavradas correntes, por uma
lanterna de brilhante latão que, sem que ficasse mais estética, diminuía
consideravelmente o poder iluminante da econômica lâmpada de ses­
s enta velas que o severo racionamento exigia; ter dispensado um faxi­
neiro, por quem nutria partidária antipatia, admitindo para o lugar um
sarará que mosqueava no diretório de bairro do seu partido, e ter
posto cadeado nas portinholas dos medidores de luz e gás , providência
geradora de tal reclamação por parte dos humildes e apressados mar­
cadores que foi rapidamente abolida. Mas seus operosos olhos sin­
dicais fixaram-se, principal e recalcadamente, no flamboyant, cuj a
galharia, segundo a sua opinião, ia importunar os moradores do se­
gundo andar, como ainda sujava com o cair das pequeninas folhas ,
qual dourada chuva de confetes, o n ã o muito assiduamente varrido
cimento que cercava o comprido canteiro . E de tal nefanda sujidade
fez expositiva menção a alguns pares , e o jovem médico foi o único
que contestou, aliás de maneira metafórica :
- Há homens que suj am esta cidade muito mais . . .
O doutorzinho, que tinha ostensivas preferências políticas e colava
cartazes eleitorais nas suas vidraças , fez-se de desentendido .

Chegou a Semana Santa, quando numerosos crentes aproveitam a


ocasião para flanar não muito piedosamente fora da cidade, em campo,
serra, ou praia. Ananias e patroa bateram asas para Niterói, a p assá-la
no pombal da filha, ninho acolchoado com todos os esgarçados algodões
burgueses, no qual mais um netinho pipilava. Ardogênio na prolon­
gada l Ü a-de-mel com o carro, meteu mulher e prole no dito, que apeli­
dara de "o poderoso" e zarpou, revezando-se no volante com os
rapazes , tão barbeiros quanto ele, para um circuito fluminense com
estágio forçado _em Macaé, onde Dona Maria do Carmo tinha um
irmão empenhado em empreitadas rodoviárias .
Ananias voltou primeiro, e era domingo, escancarou a porta dupla
da varandinha, deu com a árvore cortada, rente à raiz, e sentiu como
se um machado cruel o tivess e também abatido :
- Criminosos ! - gritou num desespero, e veio aquela dor no
peito, aquela náusea invencível, aquela imensa angústia, uma revolta
orgânica, refugiou-se na cama, amparado pela mulher e tão mal pas­
s ava, tão mal, que o Pronto-Socorro Cardíaco foi chamado, veio num
átimo, fizeram um eletrocardiograma, aplicaram-lhe inj eções e espera­
ram o efeito .
- É bom observar um pouco - declarou o médico de imaculado
avental.

23 1
Pouco depois , à noitinha, chegava Ardogênio, vermelho como um
camarão, e sendo a entrada do apartamento por dentro do edifício,
não viu de imediato o sacrilégio. Viu, porém, a ambulância esta­
cionada no pátio do prédio, e comentou :
- Quem s erá que está passando mal?
- Talvez o velhote do s exto andar - respondeu a esposa, de
lenço estampado na cabeça, carregando o samburá da matalotagem.
Ao entrar no corredor, constatou que a porta do apartamento de
Seu Ananias estava aberta e de lá vinha um rumor desusado . Nem
abriu a sua porta, correu para a outra - que teria acontecido ao
amigo? - e embarafustou-se pelo quarto . Ananias olhou-o como
carneiro ferido, gemeu :
- Cortaram a árvore.
Ardogênio cuidou que delirava, consultou com o olhar o médico,
pedindo uma explicação, e Ananias tomou :
- A nossa árvore . . .
Ardogênio, então, compreendeu :
- Não ! ! !
- Cortaram. Aqui não fico mais . Não posso ficar num covil
de monstros . - E o médico, à cabeceira, bateu delicadamente na mão
do enfermo, tentando acalmá-lo .
- Desgraçados ! Miseráveis ! Mas isso não fica assim não ! Não
fica! - e Ardogênio saiu como uma fúria.
Os filhos de Seu Ardogênio até aqui pouco entraram neste relato
arrabaldino . Entrarão agora : continuavam marcando passo no colégio,
cujas matrículas subiram substancialmente cada ano, desinteress ados de
qualquer ocupação, salvo a da ardorosa torcida flamenga, contentando­
se com a mesada paterna, s eguidamente majorada; usavam blue-jeans
coçadíssimos, sapatos sem meias, cabelos sem ver tesoura, afinavam-se
·
com as invenções da bossa-nova, que feriam os ouvidos entupidos p ela
cera tradicional. Apesar das aparências , não eram maus rapazes,
apenas um pouquinho desajustados, desajuste em que Dona Maria do
Carmo cooperara e cooperava de forma categórica. Mas solidários
com o pai, ah, isso eles eram ! - e foram no encalço dele, escada
acima, pois Ardogênio nem pensou em esperar o elevador um s egundo
sequer. Pulando degraus , lépido como um jovem, enquanto os rapazes
botavam os bofes pela boca, chegou ao quinto andar, apertou raivosa
e prolongadamente a campainha do s índico - ninguém atendeu. Es­
murrou a porta - nada! Alucinado, deu um valente pontapé nela,
um chute no capacho, que foi parar longe, e outro na mesinha de
tampo de vidro, que guarnecia a entradinha de marmorite, e o inocente
tampo s e desfez fragorosamente em estilhaços . E aí surgiram cabeças
curiosas, alarmadas ou medrosas, de condôminos e um deles, de slack,
esclareceu, receoso :
Não tem ninguém. Foram passar a Semana Santa fora .

232
- Ah, é? ! . . . - e Ardogênio, com o punho de aço, deu tamanho
murro no espelho de galalite da campainha, que a estraçalhou. -
Vamos!
Seguido dos filhos, despencou pela escada, desembocou no saguão
de entrada. O porteiro, aos ecos do bafafá, estava de orelha em pé :
- Que foi, Seu Ardogênio? ! Que foi? !
---. Quem foi o calhorda que cortou a árvore? Quero quebrar-lhe
as costelas ! arrebentar-lhe a cara ! - e brandia os punhos .
O homenzinho gaguejou - não fora ele, tinha sido ordem do
síndico, mas o doutor estava fora.
- Aquele cachorro estava fora quando cortaram a árvore? !
Novo gaguejamento :
- Sim, estava. Deixou ordens .
- Covarde! Nós também estávamos fora. Se estivéssemos aqui
queria ver quem teria o topete de cortar a árvore! Queria ver! - E
apossou-se dele uma outra onda de cólera, precisava se vingar em
alguém : - E quem foi o miserável que cortou a árvore?
O porteiro tremeu nas bases, gaguejava ainda mais . Ardogênio pas-
sou a mão no pescoço dele :
- Diga, infeliz!
A voz saiu espremida :
- Foi o Aristides .
- Ah, foi aquele sarará de titica? ! Pois vai pagar por conta do
patrão, que é da raça dele! Depois eu me avenho com o doutorzinho
de borra!
E voou, filhos atrás, para o quarto do faxineiro, situado no extremo
da garagem. Deu azar que o faxineiro estava, mas trancafiado, adivi­
nhando a causa do rebuliço, lembrando-se, em cólicas, da determinação
do protetor e correligionário :
- Foice naquela porcaria de árvore, Aristides ! Não deixe nem
cheiro dela! - E rindo : - Os dois estafermos vão ficar danados.
Eles que se fumentem!
Agora ele é quem iria pagar o pato ! E pagou. Não lhe valeram
as duas voltas na chave. A porta era frágil, com dois esbarros a
fechadura foi para o beleléu e os três invadiram o cubículo, com um
escudo do Vasco pregado na parede, o que assanhou terrivelmente
os rapazes .
- Pelo amor de Deus ! - implorou o pobre-diabo, apavorado. -
Pelo amor de Deus !
Deus , porém, não atendeu ao improvisado lenhador. Verdade seja
dita, somente Ardogênio entrou em ação, os filhos apenas espiavam,
na expectativa duma reação contra o velho. Que reação ! O vascaíno
apanhou de criar bicho, ficou estendido no chão, pisado, ensangüen­
tado, quase sem poder falar.
Ardogênio deu-lhe uma derradeira pancada :
233
- Verme imundo ! Agora corta outra árvore, patife! E diga ao
seu doutorzinho de merda que ele vai ficar como você, quando eu o
encontrar. Pior! Muito pior!
O doutorzinho, contudo, escapou. O coronel reformado chamara a
Radiopatrulha e lá se foi Ardogênio encanado para o distrito, apesar
da onda que já se formara a seu favor; o comiss ário era enrolado,
queria abrir processo, mandou o sarará a exame de corpo de delito,
do que resultou um laudo no qual as equimoses contadas eram tão
numerosas quanto os poros da vítima ; mas o advogado, que tinha uma
pinima com o síndico, ofereceu os seus serviços profissionais graciosa­
mente e começou logo a chicanar, e o coronel acabou do lado do
acusado :
- É um camarada simpático, esse baixinho! - comentava, rindo,
na rodinha de biriba, no apartamento do jornalista. - Fez essa bagunça
toda por causa de uma árvore . . .
E o processo não foi adiante, apenas houve um termo de modus
vivendi, assinado pelo doutorzinho com caneta tremida e passando a
fugir do vizinho como o demo da cruz, depois de ter resignado a
sindicância em favor do vice-síndico .
O advogado gozava-o :
- Ficou mais sujo do que pau de galinheiro ! . . .
Ardogênio, porém, era bicho de couro duro. Mal ficou livre da
aporrinhação policial, foi buscar outro flamboyant no Horto Florestal
e plantou-o ostensivamente no mesmo local :
- Agora, meu chapa, é esperar que cresça. Vai crescer! Vai ficar
mais alto do que o Pão de Açúcar, isso eu juro ! Ai de quem puser
o dedo nele! O pau vai comer! - E prometia : - E não vai ficar em
bofetão só, não. Vai sair defunto !
Ananias sorria, ainda em uso de tranqüilizantes :
- Você é de morte, compadre!

234
AVUL S OS
CONTO À LA MODE

ZULMiRA escancarou as janelas que eram molduras para o céu azul


- uma, duas, três janelas, grandes, de correr, os trilhos levemente
empenados pela ação da maresia, que corroera a televisão e o ar
condicionado do quarto do casal, e foi um dinheirão de reforma -
um dinheirão ! Escancarou as janelas, a brisa salgada entrou varrendo
o ar confinado como fresca vassoura e ela deu uma espiada lá para
baixo com os esbugalhados olhos, tristes e submissos . Sete horas
eram, o sol de verão já forte se mostrava, e os banhistas seminus
começavam a encher a estreita e tão promovida faixa praiana, suja
pela demasiada freqüência algo suburbana aos domingos e que aumen­
taria a cada instante fazendo com que, ao meio-dia, não restasse um
palmo livre de areia, extenso e afrodisíaco molhe de coxas, de espáduas ,
de seios e nádegas mal contidas nos maiôs e nos biquínis, pintalgado
pelas cores vivas das barracas, enquanto pela pista de asfalto, sem
sombra de árvore, as filas de automóveis se alongariam, vagarosas,
entre buzinadas, estampidos de motores e agressivos e estúpidos esca­
pamentos abertos, que a inerte Inspetoria de Veículos não conseguia
coibir. Escancarou as j anelas e foi apagar o abajur que deixaram aceso
toda a noite, indiferentes ao racionamento, como se ele nem existisse,
um abajur de canto, sobre a mesinha antiga que um antiquário empur­
rara por alto preço, abajur branco, de opalina, e quase privativo da
poltrona de leitura de Dr. Fifinho, leitura aliás escassa, resumindo-se
à do vespertino reacionário com a sua página de histórias em quadri­
nhos, aventuras e humorismo importados, que s atisfaziam plenamente
as suas necessidades mentais .
Zulmira, que já fora à missa na sombria e feia igrej a da praça, cheia
de ecos côncavos e de mofo, sem missal, pois não sabia ler, vestido
escuro, véu na carapinha e confessando-se e comungando, como diaria­
mente fazia, já temperara a carne para o obrigatório assado dominical
e preparara os desjejuns da família, frutas descascadas para uns, suco
de laranja para outros e, para Dr. Fifinho, se alinhavam os apetrechos
para o clássico chá genuinamente inglês, era a única pessoa que acor­
dava cedo naquele apartamento de décimo andar, com sancas, vestí-
237
b ulo de mármores, b anheiros de cor, soalho vitrificado, el evador social
privativo e, em cima da porta de entrada, o azulejo florido com o
dístico : "Deus está nesta casa", dístico que Dr. Fifinho, sem . s e
externar, desconfiava estar errado - nesta ou nessa? E r a a única que
acordava cedo, como era a única empregada que resistira ao estouva­
mento e concupiscência juvenil dos rapazes, à implicância e alopração
da mocinha, às impertinências de madame, inconsolável com a cega
impertinência dos anos, pois só Dr. Fifinho era morador que não
aborrecia nem destratava empregados, gastando, quando na pior das
hipóteses , uma distante e senhorial superioridade com alguns deles .
Há mais de quinze anos que ali estava, desde que viera da roça em
;Minas , perto de Paraopeba, e nunca mais soubera dos pais , agregados
dum velho fazendeiro mais interessado na política municipal do que
'
em agricultura ou pastoreio, gozando de algumas considerações, espe­
cialmente da parte de Dr. Fifinho, que não escondia de ninguém a
sua confiança : - "Com a Zulmira a gente pode deixar ouro em pó! "
- confiança que imensamente a desvanecia . Não vira as crianças
nascerem, mas as encontrara bem pequenas, necessitando de cuidados,
dada a indolência materna, e vira uma centena, ou mais , de empre­
gadas desfilarem pela copa e pela cozinha. Fora babá, fora arruma­
deira, fora cozinheira, fora lavadeira, e como as crianças suj avam
roupa! - agora era um pouco de tudo, até enfermeira, até eventual
confidente dos ciúmes fundados ou climatéricos de madame - pau
para toda obra.
Dr. Fifinho - Rufino Osório da Silva Costa, neto de um senador
pelo Piauí, latifundiário de sesmarias, falecido em 1 9 3 6 e não antes
de arranjar muito satisfatoriamente os filhos , o s genros e até os netos
- era quem mais cedo s aía da cama ( de baldaquim ) entre os m em­
bros da família e, às dez horas , aparecia de roupão de seda e pantufas
de pelica preta, a espes s a b arba por fazer :
- Zulmira, o meu chá !
Assim era todos os dias e, num piscar de olhos, estava servido,
s aboreava a beb eragem com unção, vício que herdara do pai, que
borboleteara na Inglaterra quando moço, entremeando-a com uma
prosa sem conseqüência, como se desta forma exercitasse matinalmen­
te o uso da palavra :
- Foi à miss a , Zulmira?
- Fui sim, s enhor.
A das seis?
A das cinco, Dr. Fifinho ! Como s empre.
Estava bonita?
Então não havia de estar, Dr. Fifinho? Uma beleza !
Confessou-se direitinho?
- Confessei sim, senhor. Confessei e comunguei. - E ela esfre­
gou as mãos ásperas, negras e quadradas no avental imaculadamente
branco.

238
- Muitos pecados? - e o patrão piscou o olho esquerdo, que
parecia maior que o outro .
- Alguns sim, senhor - riu confusa.
- Os para o gasto, n ão é? :E: bom ficar livre deles . . . Muito bem.
Pecado é fogo !
Pecados tinha ele muitos, sabia, mas era bagagem que acumulava
sem se preocupar, como não o preocupava ainda, senão vagamente,
o medo da morte, descendente que era de gente longeva. O colégio
de padres fatigara-o de práticas religiosas - caramba, a quantas
missas agüentara caindo de sono, a quantas novenas assistira de joelhos
dormentes , quantas hóstias papara de boca s alobra pelo longo jejum !
Ademais a padrecada . . . Bem . . . - e pousou os olhos na Ceia
adquirida em Florença e douradamente emoldurada - era uma re­
produção decente ! Acendeu o cigarro de filtro - só fumava cigarro
americano , comprado no contrabandista, no qual adquiria também o
s eu uísque e o seu chá - levantou-se :
- útimo, Zulmira!
- Deus o ouça!
E, em sendo domingo - o dia mais chato da s emana ! - substituíra
a leitura do divertido vespertino pela de um matutino menos patusco,
mas também conservador, e gordo pelas vinte p áginas de anúncios
graúdos e miúdos, que lhe proporcionavam uma agradável e segura
s ensação do progresso da oferta e da procura. Deu uma olhada no
artigo de fundo, que atacava rijamente o governo pelos perigosos
caminhos em que ele s e despencava sem atender aos s entimentos
cristãos do nosso povo - é isto mesmo ! do jeito que vamos estaremos
com o comunismo às portas . . . Deu uma olhada na crônica social
na esperança de encontrar o s eu nome, coisa que, quando acontecia,
tocava singularmente a sua vaidade, mas só havia o da besta do Fa­
gundes, que recepcionara no novo apartamento da Avenida Rui Bar­
bosa decorado pelo tal marquês italiano - vai ver que o carcamano
não é marquês coisa nenhuma! Deu uma olhada na seção esportiva
- o Fluminense não ia lá das pernas . . . também com aquele técni­
co! . . E cansou-se, e depositou o jornal mal dobrado na p apeleira,
.

limpou no roupão as mãos suj as da tinta de imprensa, e acendeu


outro cigarro, e ficou pensando no prejuízo da noite passada -
45 mil bagarotes ! - no pif-paf na casa do cunhado promotor -
vão ter sorte assim nas profundas do inferno ! E não fora o único
do s ábado - contabilizava. A amante, que começara naturalmente
como secretária na companhia de seguros que presidia, tomara-lhe,
assim na bucha, 80 mil pratas para a reforma do guarda-roupa, re­
forma que estava se tornando exageradamente semanal - quem
acabaria precisando de uma reforma de base era ele ! Prejuízos . . .
prejuízos . . . Felizmente - e foi tomado insensivelmente por um
s enso de eqüidade - a companhia era uma mina. Aquela bolação
dos s eguros contra batidas de automóveis fora genial! uma coisa

239
mesmo de se tirar o chapéu! Criavam tantas e tantas dificuldades
jurídicas que o freguês acabava recebendo mesmo metade, ou um
terço, do conserto, nem mais um tostão ! e ainda s aía satisfeito . . .
E estes alentadores, confortadores cismares foram interrompidos pelo
aparecimento de Rufininho e Heitor, de sunga e sandálias japonesas,
caras esgrouviadas , cabelos enormes , e Heitor tão queimado de sol
que não se conteve :
- Puxa, você parece um zulu !
Os jovens não lhe dispensaram a menor confiança. Tascaram um
biscoito, despej aram pela goela abaixo o suco de laranj a, acenderam
o cigarrinho da moda, iam meter um banho de mar no Castelinho,
onde tinham as suas rodas certas - deram no pé. Mas não seria nos
calcantes, e Rufininho avisou :
Vou pegar o s eu carro, pai .
- O meu? E o de vocês?
- Pifou. Deixei ontem na retífica. Oito mil, sabe?
Ficou sabendo, franziu a testa de dois dedos - mais uma parcela
para a soma dos prejuízos de sábado . Enfim, o mundo é assim, seu
Serafim . . . como dizia o avô s enador - conformou-se. Confor­
mou-se, mas ainda abriu o bico :
- E quando voltam, poderia saber? Tenho que sair.
Antes das duas estaremos aqui.
- O almoço é às duas .
- Estamos fartos de saber.
Foram-s e muito lampeiros. Tinham-lhe dado algumas dores de
cabeça os filhos - filho é fogo ! Rufininho fora reprovado três anos
seguidos em exame vestibular, armara encrenca em tudo quanto é
inferninho e, não contente, atropelara um velho aposentado na Ave­
nida Nossa Senhora de Copacabana, desgraça que rendeu e ainda
bem que o velhote não morrera com a trombada, bicho duro que
era ! Heitor, que gostava de entornar o copo, dera vários escândalos ,
abusara duma garota e o advogado da firma, um bocado velhaco,
tivera de se virar para provar que o broto dava sopa! Agora, com
a graça de Deus , estavam mais calmos, mais acomodado s . Rufininho
desistira de escola superior e auxiliava-o mais ou menos satisfatoria­
mente na companhia, mas com muito vale no caixa - não sabia
onde ele gastava tanto dinheiro ! - Heitor conseguira s e meter num
:.curso de economia - uma carreira de grande futuro ! - e funcio­
n ava de contrabaixo num conjunto amador de bossa-nova - uma
música de encher o saco ! - mas que o psiquiatra achara um bom
derivativo e realmente parecia que estava dando resultado. Ana
Lúcia é que era o problema grave de então - muito grave e para
o qual não via solução, salvo a de um bom casamento, coisa porém
duvidosa e nada imediata. Não quisera estudar, parara no ginasial
feito aos pontapés, vivia em cabeleireiros, em modistas , em passeatas,
em namoriscos, cada semana s aindo com um coca-cola diferente a

240
tiracolo . Uma vez, chegando em casa de repente, encontrara-a atra­
cada no divã com um louraço . . . Desgrudaram-se rapidamente,
disfarçaram o quanto puderam, ele ficara sem s aber o que fazer ou
que dizer, refugiara-se no quarto, abalado e confuso, o rapaz deu
logo o fora, podia ser que estivesse enganado, podia, mas era capaz
de jurar que boa coisa não estavam fazendo .
E é Ana Lúcia que surge, de roupão de praia, muito ·curto, biquíni
vermelho, cabelo escorrido, as pernas firmes e esguias lembrando as
da mãe quando era moça e tomava banho no Flamengo , só que não
nua daquele j eito !
- Alô, pai.
- Alô, minha filha.
Ela chocha, ele mais caloroso um pouquinho, e ficaram na telefô­
nica saudação como se um mútuo constrangimento os impedisse de
ir além. E aquela era a sua filha, mas que distância sentia existir
entre eles ! distância que via crescer cada hora, formando um arenoso
deserto, sem ;caminhos e sem oásis, ilimitado horizonte que acabaria
por tornar impossível qualquer gesto de aproximação e entendimento .
Como se fosse filha doutra pessoa, embora traços fisionômicos comuns
logo identificassem a filiação ; como se fosse estrangeira, outra língua
falasse e nenhum laço os unisse. Tinha culpa? Assistira-a convenien­
temente? Sentia-se perturbado - sempre tratara os filhos com tole­
rância e paciência, procurando que nada lhes faltasse, sempre aten­
dera-os e os perdoara nas suas confusões - e ele também não as
tivera na sua mocidade? - mas talvez não fosse o certo e o bastante,
e faltasse um óleo, que desconhecia, capaz de azeitar as rodas da
emperrada máquina familiar, talvez lamentavelmente falhasse como
maquinista e as fugas para os negócios, para a vida social, para as
viagens ao estrangeiro, para o jogo e para os escondidos e com­
plicados amores fossem barreiras que ele próprio levantara contra a
perfeita aprendizagem da função, que a todos parece tão fácil e
natural !
Ana Lúcia s entou-se à mesa, cruzou as pernas, beliscou uma fruta,
os lábios polpudos, enfastiada :
__. Não tem café?
- Tem . Já vou trazer. Tá no banho-maria - e Zulmira apres­
sou-se, nas pernas varicosas, a ir bus<Cá-lo .
- A Odaléia n ão está?
- É dia de folga dela, Ana Lúcia - e o tratamento das crianças
s em senhoria era uma das suas modestas conquistas .
- Que folga tem essa gente !
Era coisa que Zulmira não desfrutava, caseira por natureza. Raro,
raro, aproveitava um feriado e, infalivelmente, ia passar o dia em
Sapicuruna com uma vaguíssima comadre, e da visita voltava com um
embrul�o de limões-galegos, que generosamente incluía no farto
abasteci mento da casa. E Ana Lúcia prosseguiu :

241
- Qualquer dia a gente é que vai para a cozinha, vai varrer a
casa, vai tirar o pó, tem que servir a mesa . . .
Zulmira não compreendeu :
- A tia dela está doente. Muito doente. Teve um inchaço brabo
na altura dos peitos. Está que não pode nem se mexer.
Ana Lúcia passou o guardanapo na boca sem pintura, levantou-se,
ajustando o roupão felpudo e escarlate, ajeitando a larga fita de elás­
tico que prendia os cabelos .
- Vou-me indo.
- Onde você vai? - aventurou o pai.
- A praia, é claro.
- Vai sozinha? - e sabia o quanto era vaga e inútil a pergunta.
� Que idéia? Vou com o César Augusto. Ele vem me apanhar.
Está combinado . Vou esperar na porta do edifício. ( la dizer que ali
estava chatíssimo, mas não disse. ) Prometeu passar às onze e qual­
quer coisa. Onze já são. Não deve demorar.
Ela falava mais que do costume, inconsciente estratagema para
encher um tempo de penoso contato, para esconder seus verdadeiros
passos, suas verdadeiras intenções . César Augusto? Quem era César
Augusto? - pensou ele em perguntar, quando nada para enfestar
màis um pouco a conversinha, todavia Ana Lúcia já torcia a maça­
neta após uns passos em que havia vestígios de twist aprendido na
milimétrica pista de dança do Black Horse:
- Tchau.
- Tchau.
Repetia os cumprimentos dela como um eco - já bem notara, sem
conseguir se conter, arrastado por impulso insopitável, o seu incons­
ciente estratagema para forçar a aproximação e a intimidade fugidias.
A porta se fechou macia, o elevador foi chamado. Ficou só. A vida
vivemo-la só - suspirou interiormente - e precisamos vivê-la . . .
Esticou a perna dormente, manejou o isqueiro de ouro num golpe
seco e decisivo. Ficara no ar um perfume, emoliente e caro, que
tentou identificar, coçando o queixo fino, pois os perfumes traziam­
lhe sempre pecaminosas e acre-saudosas lembranças femininas .
Olhou a janela - o azul! o azul! E de azul, carregado azul, surgiu
Iracema, as ancas largas, a face lustrosa de creme, que os tinha para
todas as horas e precauções, a rede imperceptível contendo os cabelos
pintados dum preto sem brilho, os anéis de diamante e platina pe­
sando nos dedos, anéis que não tirava nem para tomar banho, o ar
cansado :
- Zulmira!
A negra trouxe a dieta da patroa, dieta científica, isenta de hidra­
tos de carbono, a derradeira a que se entregava com um entusiasmo
exagerado e ridículo : pão de glúten, ovo 'cozido, queijo prato, aba­
cate e melancia, sacarina, só sacarina - calorias não engordam! -
242
e a cada momento apalpando a cintura e os braços flácidos, confe­
rindo nos espelhos a derrota da celulite, que se mostrava rebelde.
O marido abandonou o mutismo com que cercou a lenta refeição
da mulher :
- Ana Lúcia saiu com um tal de César Augusto . Você conhece
esse cara?
- Conheço. Muito distinto . É filho do Almirante Sousa.
Os bordados do almirante serenaram as suas apreensões :
- Ah, não sabia.
- Pois é.
Houve uma pausa. Zulmira recolhia a louça, o avental molhado.
Surdo, subia até eles o marulho das ondas, mais vivo, um vago vo­
zerio esportivo, e o sol entrava até o tapete persa, outra impulsiva
aquisição européia. E Dr. Fifinho voltou.
- Que apito toca?
- Quem? - inquiriu Iracema, aérea.
- O tal César Augusto, ora.
- Ah ! não sei.
Dr. Fifinho sorriu - já esperava por aquela - a mulher nunca
sabia as coisas senão pela metade, ou baralhava-as, ou confundia-as,
irritando-o quanta vez a ponto de chegar a palavras bruscas, que ela
não compreendia e retrucava com lágrimas fáceis . E Iracema, em
tardos movimentos, dirigiu-se para a cadeira de balanço junto às
janelas, onde o ficus italiano amarelecia e definhava - era o segundo
que compravam :
- A Página Feminina está aí, Fifinho?
A Página Feminina era a ilustrada enciclopédia em que ela sema­
nal, mas não assiduamente, abastecia a sua cultura, recQrdando con­
selhos e receitas de variada espécie, que imediatamente perdia. O
marido separou-a do corpo do jornal, foi entregá-la sem convicção :
- Toma.
Mas a esposa mudou de idéia com ar sofredor:
- Depois cu leio. Estou com os olhos muito pesados, ardendo.
Parece que têm areia - e colocou o suplemento sobre a banqueta
ao pé da cadeira. - Dormi muito mal. Malíssimo ! Acordei não
sei quantas vezes .
Era mania sua garantir, com a maior veemência e desfaçatez, que
não pregara olho a noite inteira, quando o marido, melhor do que
ninguém, s abia quanto seu sono era de chumbo, levemente roncado.
Nova e dilatada pausa, silêncio quase hostil, fruto do extremo can­
saço a que chegam as longas intimidades não ligadas pelo cimento
do perfeito amor - casamento não insensato, mas precipitado e de
interesse, em que o viço da esposa, apenas engraçadinha, apenas
graciosa quando arrastando comprido véu subia ao altar da Candelá­
ria, tão rapidamente feneceu ao desgaste de três partos consecutivos,
antes que a experiência os impedisse - silêncio que entre o casal
243
cada dia mais se impunha, secreto e precavid o recurso p ara que tudo
não s e desmoronasse e guardadas fossem as necessárias aparências
que a economia comum exigia. A mosca fazia importunas evoluções,
ele enxotou-a mais uma vez :
- Será que não há flit nesta casa? ( E a incerteza gramatical re­
petia-se : nesta ou nessa? )
Iracema não é nada sutil para as dificuldades do idioma, nem s ab e
mesmo o que é idioma, e as raras cartas que penos amente escrevia
com letra infantil, achas para manter a chama do convívio social, eram
patentes exemplos de tal ignorância. Contudo, a reclamação na qual
sentia um oculto espinho para feri-la, deixa margem a uma reclama­
ção de autodefesa :
- Não m e venha com histórias ! Você s abe perfeitamente que isto
não é comigo . É com Zulmira. Fale com ela. Cada macaco no seu
galho . Não tenho tempo para estas coisas .
Dr. Fifinho agastou-se :
- B em, você não tem tempo para coisa nenhuma, isto é o que
é! Se r. ão fosse mesmo a Zulmira, esta casa andava à matraca . Uma
verdadeira bagunça!
- Nós pa�amos empregados é para que nos sirvam .
- Exatamente ! Exatamente ! Não queira ensinar o padre�nosso
ao vigário . . . Mas uma dona de casa tem a obrigação de supervisio­
nar. ( Supervisio nar era verbo que largamente consumia no escritó­
rio . ) Você sabe quanto se gastou este mês aqui em casa? Sabe?
- Não sei, nem quero saber. Dinheiro foi feito para se gastar!
- Isto estaria muito bem s e fosse você quem o ganhasse.
Gostava de encher a boca com o dote que trouxera :
- Meu pai . . .
- Seu pai que vá para o diabo que o carregu e ! - interrompeu-a.
- O que ele te deu, eu não meti o pau não ! M ultipliquei ! Multi-
pliquei por ,cem ! E não é para atirar pela j anela !
Iracema não era boa esgrimista verbal, na verdade era pé ssima, e
visceralmente covarde . Vieram-lhe as lágrimas aos olhos , bateu em
retirada :
- Abomino domingo ! Maldito dia! Não há um em que você
logo de manhã não venha com aborrecimentos, com destemperos , com
reclamações . Que vida ! - E levantou-se, refugiou-se no quarto,
preparando-se para a fatal enxaqueca.
Dr. Fifinho mais uma vez ficou só. Só como numa pnsao sem
grades . Aves riscaram o retângulo azul. Gaivotas ou urubus? -
sabe lá. Leve, um fiapo de arrependimento toca-lhe o coração -
a mulher era idiota e idiota morreria. Pensou em ir vê-Ia, dissolver
o desentendimento com palavras não muito precisas , tal acontecera
em outras ocasiões , porém não foi, que um peso mais forte prendia-o
à estofada cadeira . Acendeu um cigarro, consumiu-o, d epois foi é
tomar uma drágea antidistônica das quais, de tempos para cá, abusa-

244
va. E enfiou-se no banheiro para fazer a barba e tomar a sua morna
chuveirada - as torneiras estavam secas . . . Bufou de raiva :
- Zulmira! ú Zulmira! A água já acabou?
Ela acudiu-o :
- Cortaram ela hoje mais cedo, Dr. Fifinho.
- E nem para me avisarem ! Essa não !
A negra sentiu-se culpadíssima :
- Me esqueci, Dr. Fifinho. Me esqueci. Me adiscurpe! É tanta
coisa na minha cabeça . . .
- Era só o que faltava!
- Eu enchi uns baldes para lavar a louça. Vou trazer um pouco
para o doutor fazer a barba. Se quiser tomar um banho de cuia,
eu dou um jeito . . .
- Que merda de cidade! - rugiu, furibundo. - Não aumentaram
o preço da água, não . Aumentaram foi o preço da falta da água!
Cinco mil por cento !

O escritório de Dr. Fifinho, na Esplanada do Castelo, reformado


pela sensibilidade de um decorador afeminado mas encantador, reco­
mendado pelo diretor do Banco Esperança - que ficara um estouro!
- era refrigerado, atapetado em verde-garrafa, tinha poltronas cor de
laranja duma maciez de peito de moça, telefone JK também cor de
laranja, cortinas de alumínio tendendo para o brick e ostentava, em
cima do divã de severíssimo castanho, um enorme óleo abstrato do
paulistano Tzuku Nakaki, artista premiado aqui e além-mar, que
fazia furor nas colunas da vanguardeira crítica especializada e que
Heitor considerava o fino !
- Você compreende esta joça? - perguntara, quando o quadro
chegou, à nova secretária, que tinha charme, inconfundíveis reque­
bros, busto soberbo, maquilagem irrepreensível e não se esquivava a
piadas entradeiras, nítida vereda para futuras e mais concretas inti­
midades.
- Eu não! - retrucou a beldade com calor e desenvoltura, o
vestido de jérsei em cima da pele. - É arte de araque!
Compartilhava plenamente da abalizada opinião secretaria!, embora
que com outro fraseado :
- É duma burrice gritante! Uma empulhação ! Só o Heitor é
que gosta dessa bobagem. Bossa-nova . . .
Mas o amigo banqueiro, que lhe inculcara o decorador, companheiro
do Country, do Jockey e do almoço diário no Clube Internacional -
somente para cavalheiros ! - que estava por trás duma galeria mo­
derna, facilitando com tabela Price o financiamento para os cristãos­
novos da tal mercadoria artística, impusera-o como magnífico empre­
go de capital - valorização batata! - nesta época de rendosa
inflação para alguns, e como estava também e, principalmente, de
comparsa na companhia seguradora, e até ao conselho fiscal dela
245
pertencia, fortalecendo pública e notoriamente a respeitabilidade da
empresa, entregou o rabo à seringa - vá lá! - e foi uma rombuda
sangria de um milhão ! Mas serena e calculadamente espalhou que
foram dois, "pois é preciso que até as asneiras rendam juros", como
confidenciou ao contador-geral, que ficara boquiaberto quando a fa­
tura da galeria, por sinal um luxuosíssimo trabalho gráfico, passou
pelo guichê mais acostumado ao receber do que ao pagar.
O carnaval se fora, conquanto reminiscências dele ainda perduras­
sem nas revistas, que folheava nas horas de trabalho, quando sua
mais árdua função era a de supervisionar, e no corpo da secretária,
portador de equimoses suspeitíssimas, tanto se esbaldara ela nos
bailes do Glória, do Copacabana e do Municipal, com um sarong de
lamé que foi um sucesso. E via que as futricas políticas tornavam
com mais intensa e inquietadora intensidade, as greves se multipli­
cando, o cruzeiro se aviltando, o dólar subindo estratosfericamente,
as ações baixando, a demagogia roncando, e as esquerdas agindo
aberta e ameaçadoramente, amparadas de longe pelo próprio Presiden­
te da República de braço dado com a praga dos sindicatos, e sindi­
cato constituía monstruosidade que nunca lhe entrara na cabeça -
uma das malandragens de Getúlio! Era para fundados receios, sim,
para justíssimos receios, receios que já externara superficialmente à
secretária com palpitante decote, receios que ela imediatamente com­
partilhara, pois seu lema, aliás infalível, era agradar com ou sem
decotes palpitantes . Na realidade, Dr. Fifinho não se interessava
muito por política, como se com o avô senador, dos saudosos tempos
das eleições à base da caneta, tivessem morrido as suas aspirações,
vantagens e intuições partidárias ; votava por votar, votava porque era
obrigatório, se aporrinhando cordialmente na fila eleitoral, e o fazia
conforme restritas pressões de amigos e consócios, mas a onda revo­
lucionária estava engrossando e era preciso pôr um freio a ela, pôr
um paradeiro aos agitadores profissionais da tranqüilidade pública,
esmagar a hidra das ideologias exóticas, como muito bem classificavam
os seus jornais preferidos . A entidade patronal a que pertencia ape­
lara para a conjuração do perigo a que estavam expostos os sócios
em particular e a sociedade em geral - não podiam ficar de braços
cruzados, enquanto o inimigo avançava! Não se negara a cooperar para
o extermínio do câncer - outro diagnóstico dos seus jornais, parti­
dários de drástica terapêutica - seria até um suicídio não fazê-lo,
contudo, volvido para outros lados e outras solicitações, enredado na
sua preguiça e nos seus prazeres, não freqüentava as reuniões convo­
cadas, não fiscalizava a utilização da sua contribuição e nem sabia,
isto era positivo ! o que faziam do dinheiro que mensal e pontualmente
fornecia à Ação Contra o Comunismo, organismo mais conhecido nos
muros, nas manchetes e na boca dos confrades por ACC . E foi pre­
cisamente sobre a sadia instituição que o contador-geral, modesto
escoteiro da sigla, veio lhe falar :
246
- A ACC rogou que aumentássemos a contribuição, Dr. Rufino.
As coisas estão pretas . Precisam de cobre.
- Mas nós já não demos bastante?
- Pediram mais, Dr. Rufino. Precisam de mais . Sem combustí-
vel a locomotiva não anda . . . E tem que andar.
Não gostou da imagem, remexeu-se na cadeira de marroquim e
molejo :
- Mais quanto?
- Mais trezentos mil, Dr. Rufino.
- Trezentos mil? ! - e a voz saiu furiosa. - Não tem cabimento !
f: uma barbaridade! uma loucura!
- Trezentos mil - confirmou o t:ontabilista quase impassível. -
Conta redonda.
- Mas eu não fabrico dinheiro, caramba! Quem fabrica dinheiro
é o governo . . . E às pampas ! Não há hora que não ponha uma
emissão na rua! - Transmudou a fisionomia para um ar de decep­
ção : - Ora, com quem casei minha filha! . . . Assim acabamos abrin­
do falência!
O rosto envelhecido e ratoneiro do contador-geral era o mais au­
torizado a dizer que não. Dr. Fifinho compreendeu-o, acalmou-se -
afinal era apenas uma sangria a mais, como a do quadro abstrato,
como a do Volkswagen da amante. Mas era um lutador. E lutou :
- Mas afinal quem é que pediu?
- O Dr. Vasconcelos .
- Ah, foi o Vasconcelos? Por que não me disse antes? Então,
com mil diabos, não se discute, dê!
- Vou fazer o cheque, Dr. Rufino. Vai sair como propaganda.
Como sempre.
- Isto é lá com você ! Cada macaco no seu galho. Não tenho
tempo para essas coisas . Tenho muito em que pensar. E vê se ficam
nisto pelo menos por estes dois meses mais próximos . f: só pedir
dinheiro - ia dizer extorquir, mas não disse - e de prático nada.
É greve sobre greve, baderna sobre baderna, é confusão sobre con­
fusão, é . . . - interrompeu-se meio engasgado.
- Sim. Conversarei sobre as nossas dificuldades .
- Claro ! Diga que são imensas . Só o novo salário mtmmo . . .
- Tá bem - concordou o contador-geral com matreirice. E
mais decidido : - A luta é de vida ou morte, Dr. Rufino. De vida
ou morte! O senhor não compreende não? .
Aí as palavras do contador-geral foram o fósforo humilde que acen­
deu a flébil candeia do entendimento naquele cérebro refratário a
certas realidades - era assunto de vida ou morte, sim! É que os
lucros líquidos e certos da companhia, cujos balanços eram muito
penteados para escapar aos assaltos do imposto sobre a renda, e mais
os pingues dividendos que, sem o mínimo esforço, colhia em algumas
sociedades nas quais depositara razoáveis capitais, além duma inata
247
lerdeza para os problemas ditos soctats, que considerava abaixo do
seu sangue e das suas prerrogativas de casta, faziam com que a elas
se conservasse alheio e indiferente, recebendo-as com mais ou menos
frieza quando consumadas . E eis que acorda do descansado letargo
- vida ou morte! Encarou fixamente o contador-geral - aquele
marreco ! Tudo fazia para manter o subalterno em apagado lugar,
envergonhado da própria falta de descortino e de malícia comercial,
qualidades que o velho e calejado empregado possuía para dar e
vender, mas tinha agora que reconhecer e agradecer-lhe a adver­
tência, mais que advertência - verdadeiro alarme.
� Você tem razão . - Contudo, pelo arraigado costume, não pôde
deixar de diminuí-lo, adjudicando também ao alto dirigente da Acc,
seu amigo do peito e seu igual, a importância do aviso : - O Vas­
concelos tem razão. É questão de vida ou morte !
E, subitamente, sentiu-se muito soldado, melhor, muito general,
queria entrar logo em ação guerreira, aniquilar a politicagem ma­
zorqueira, escavacar · a canalha comunista e sindical, estrãçalhar a
pelegada de fancaria, produto desta porcaria chamada Ministério do
Trabalho, que só servia para arrancar dinheiro e para indispor os
operários contra os patrões, as classes obreiras contra os capitães-de­
indústria, impedir a livre iniciativa, atrasar o progresso do país. E
tocou, nervoso, a campainha chamando a secretária :
- Me ligue com o Vasconcelos. Quero falar com ele.
Ele dobrou-se, como de hábito, sobre a escrivaninha de tampo de
fórmica, com o deliberado propósito de desvendar-lhe uma tentadora
nesga das suas opulentas profundezas carnais :
- O Sr. Vasconcelos da Siderúrgica Nova Aurora, Dr. Rufino?
- Não, mulherzinha! O Vasconcelos da Organização Compre
Tudo.
- Um minutinho !
Não foi um minutinho - seria milagre! Foram perto de quinze,
de fone no ouvido, com brincos descomunais, e dedinho insistindo
no disco, pois àquela hora da tarde as linhas da estação ficavam
ocupadas que era um horror.
- São os danados dos oicheiros funcionando - resmungou ele,
batendo com a esferográfica uns sinais Morse de impaciência.
É um inferno !
O contador-geral é típico exemplar da classe média :
- Com o dinheiro dos contraventores o Governador está cons-
truindo escolas. Escolas e hospitais.
- O homem é sabido .
- É um patriota, Dr. Rufino !
Resolveu chatear um pouco o prestimoso auxiliar :
- Mas enche demais na televisão. Fala pelas tripas do Judas !
Parece que engoliu agulha de vitrola . . .
O homenzinho era um crente :
248
- É preciso esclarecer o povo, Dr. Rufino .
Mas uma alfinetada, parafraseando, sem saber, o colunista pertinaz
agressor do governante :
- Mas também é preciso não mistificar os palermas, nem seduzir
as donzelas !
O subalterno espumou de cólera por dentro, mas não se atreveu
a replicar. E, por fim, a ligação foi feita. Vasconcelos, porém, não
se encontrava, nem voltaria mais ao escritório naquela tarde - tinha
uma reunião importantíssima na Associação dos Produtores de Ma­
deiras Compensadas, que não podiam manter o nível dos preços e
exigiam um aumento imediato de 5 0 % , sujeito a posterior revisão.
E com .0 desencontro, o guerreiro esmoreceu :
- Está bem. Amanhã eu falarei. Não se esqueça, ouviu, pe­
quena? Amanhã, logo cedo, me desencante o Vasconcelos .
- OK ! - e a moça saiu, rebolando acintosamente.
Dr. Fifinho ficou só, embalado pelo ronronar do aparelho de ar
condicionado . Mas foi por pouco tempo - a solidão o amargurava,
punha em seu coração a opressão de um sentimento que não sabia
ser de culpa. Consultou o relógio-pulseira - três e um quarto. Deu
por terminado o expediente - aquela lida! - e rumou para o apar­
tamento do Russell ruminando o justo relaxamento que o aguardaria
no caloroso, perfumado e clandestino ninho, que tão dispendiosamen­
te mobiliara. Guiava o Impala cinzento com excessiva velocid�de e
percebeu, com uma ponta de irritação, uns grilos na carroceria -
quando os meninos botavam as patas no carro era aquela miséria!
Tinha a chave da porta, foi entrando :
- Aldete!
Ninguém respondeu e ficou de pulga atrás da orelha - ela não
telefonara . . . V arejou a cozinha minúscula e escura, o quartinho de
empregados, quase sem ventilação - a empregadinha também não
estava. Sentiu-se roubado, ofendido, enganado - estava sendo pas­
sado para trás, não havia dúvidas ! Entornou um copo d'água gela­
díssima, tirou o paletó, afrouxou a gravata, desabotoou o colarinho,
despejou-se na poltrona-do-papai, uma brincadeira de Aldete, presente
de Natal, que saíra do seu próprio bolso, é óbvio ! ficou entregue aos
mais desencontrados e humilhantes pensamentos, os olhos atraídos
para a biqueira dos sapatos. O barulho na porta dos fundos o des­
pertou ; era a empregadinha chegando, suada, com o saco das compras
- fora ao mercadinho . Fez a cara mais feroz que pôde :
Onde foi Dona Aldete?
Foi à costureira, seu doutor.
A que horas saiu?
Saiu logo depois do almoço .
Depois do almoço? !
Logo depois, Dr. Rufino .
E não disse a que horas voltava?
249
- Não disse não, senhor.
Lógico que Aldete não iria dizer aonde fora - era um imbecil!
um imbecil chapado ! E o olhar caiu na cabrocha, como já em tantas
outras vezes - gostosa, cabelos pintados de louro, louro tisnado, gor­
dinha, o narizinho petulante, o peitinho cheio, tão apetecível! A
amortecida chama guerreira reacendeu em flama lúbrica e vingadora.
Tomou-lhe a mão, atrevido :
- Como é, você não tem namorado?
A escolada pombinha percebeu a manobra, negaceou, tomando
logo liberdade de chamá-lo pelo apelido :
- Pra que namorado, Dr. Fifinho? Eu, hem !
O desejo era invencível - quem não tem cão, caça com gato -
e não teve mais hesitações, nem mediu conseqüências. Avançou, en­
laçou-a, dobrou-a. Ela reagia frouxamente :
- Dr. Fifinho ! Que é isto, Dr. Fifinho? Pode vir gente . . .
Estava cego, empolgado, tentando arrancar a calcinha de nylon:
- Dane-se!
- Não . . .
Acabou deixando - não era virgem. Tudo com rapidez de galo,
no quartinho de empregados, atulhado, de porta aberta, cheirando a
roupa usada, a sabonete barato, o pequeno rádio de pilha, mudo, na
mesinha de cabeceira.
- Se viesse gente havia de ser muito bonito . . . - compunha-se
ela, e, quando falava em gente, referia-se especificamente à trêfega
patroa.
Ele fingiu que não compreendia, compôs-se também, largou uma
abobrinha na mão dela, que não se fez de rogada, resolveu se mandar :
- Para todos os efeitos, não estive aqui, percebeu? Não se
manque.
Ela devolveu-lhe um risinho maroto de cumplicidade :
- Boca de siri . . .
Saiu, sentindo-se desoprimido, leve de alma, desforrado . Somente
na rua, e o carro custou a pegar, é que reconsiderou o seu ato, per­
deu a momentânea euforia - que besteira! E se a danadinha batesse
com a língua nos dentes? Não ! A pequena não era boba, era até
bem sabida, logo se via. Mas se começasse a achacá-lo? - estre­
meceu. Não, não tinha pinta de pistoleira, a marafoninha. Em todo
o caso, de onde menos se espera . . . E arrependido, amedrontado,
sentindo-se infeliz, entregou tudo a Deus, muito fatalista.

Um banho lava o coração! E havia água . . . Lavado, empoado,


de roupa limpa, e desodorante nas axilas, afivelada a máscara para
o carnaval doméstico, presidiu a refeição, servida meio à francesa, com
algumas palavras forçadas e vagas sobre o perigo de certos falsos
avanços sociais, falsos porque contrários à formação brasileira, de
índole pacífica e cristã, palavras às quais a família dedicou ouvidos
250
de mercador, cada membro interessado nos seus particulares proble­
mas e todos ansiosos para que a refeição terminasse, como se inti­
mamente lhes repugnasse o tom de comédia que representava. Re­
clamou, para dar impressão de zelo pela manutenção caseira :
- Que raio de café é este que vocês estão usando, Zulmira?
- O mesmo de sempre, Dr. Fifinho.
- Pois não parece!
Só após o jantar, e jantavam relativamente tarde, quando os filhos
saíram para os seus respectivos programas e Iracema foi pegar uma
segunda sessão de cinema em companhia duma vizinha da mesma
idade e bitola mental - uma fita faladíssima! - Dr. Fifinho telefo­
nou para Aldete. Poderia ter ido vê-la, como era freqüente, dando
mil razões à esposa para as fugas noturnas, todavia não se animou a
enfrentar naquele mesmo dia a presença da fácil empregadinha -
seguro morreu de velho ! é cedo para o criminoso voltar ao local do
crime . . .
Telefonou, desculpando-se por não ter ido de tardinha assinar o
ponto, alegando assuntos urgentes, assuntos que entraram pela noite
adentro - estava se safando deles naquela exata horinha . . .
- Eu estranhei, coração. Fiquei até aflita! Por que você não
telefonou? Ficaria tranqüila . . .
- Foi impraticável, filhota. Pensei que seria coisa rápida, mas
fiquei preso, que a estopada rendeu, parecia que não acabava mais.
Você sabe como são estas conferências . . .
- Pois fiquei te esperado, morrendo de saudades . . . ( O coração
dele bateu mais forte. ) Saí, mas às cinco e pouco estava chegando,
afobada, o tráfego estava de morte!
- Ah, você saiu? Por que não me avisou?
- Oh, querido! cansei de telefonar! Estava sempre em comunica-
ção. Desisti, pois ia sair por um instantinho só. Dei um pulinho na
costureira . . .
Tinha que engolir a rpílula :
- Mais vestido, hem!
- Pudera! Estou quase nua! Ou você me quer maltrapilha? -
e ela, sem esperar resposta, quis saber que assuntos tão urgentes
o impediram.
- Política, meu anjo. Política.
- Uai! . . . você agora anda metido nisto?
- Não! Não é metido. Deus me livre e guarde! Cada macaco
no seu galho . . . Mas é que a situação, você sabe, anda meio velhaca
e o Vasconcelos precisava cá dos meus palpites e fomos discutir cer­
tas deliberações prementes na ACC .
- Que Vasconcelos é este?
- Você não conhece o Vasconcelos? - admirou-se, já que ela
fora sua secretária durante mais de ano.
251
- Sei lá quem é! há tantos Vasconcelos no mundo ! - retrucou,
um pouco grossa.
Teve de explicar, inventar, colocando nas alturas o democrático
cidadão - um camarada de ação e coragem, o cérebro dos Armazéns
Compre Tudo e da ACC, elogios que Aldete recebeu com suficiente
desinteresse. Disse ainda que tinha de ler uns papéis que trouxera
para opinar ( do outro lado da linha a vampirozinho sorriu, tanto
o conhecia) e estava morrendo de fadiga. Mas prometeu que no
uutro dia iria almoçar com ela, sem falta!
- Tá! Mas então vamos comer fora para ventilar a cabeça. No
Chinês. Está bem? É infernal !
Dr. Fifinho detestava a comida do Chinês, uma porcariada sem
nome! porém ardilosamente aquiesceu :
- Boa idéia! Combinado. - E como sempre seria prudente dila­
tar o encontro com a empregadinha, propôs : - Eu telefono quando
sair do escritório e você fica me esperando na porta.
- Certo. Então, uma beijoca e até amanhã! Se você não tiver mais
assuntos urgentes . . .
Talvez houvesse alguma ironia nas palavras, mas encaixou-as di­
reitinho, qual traquejado boxista :
- Ora, essas coisas não acontecem todos os dias, morena. Gra­
ças a Deus ! E uma beijoca para você também.
Pousado o fone, tomou uma drágea sedativa e tratou de ir dormir
- os ossos precisavam de cama - enquanto ela, livre e desembara­
çada, em casa é que não ficou, uma ova! foi dar a sua badalada com
um aviador civil da sua privada corriola, com camarões fritos na
Barra da Tijuca e duas horas desvairadamente recreativas no discreto
apartamentozinho dele. E, no dia seguinte, Dr. Fifinho almoçar foi
no Chinês, conforme o prometido, e achou-a tão alegre, carinhosa, fa­
ceira, gulosa e inocente - você não acha bárbaro nós podermos
estar aqui, juntinhos, gozando a vidinha? você não acha meu vesti­
dinho lindérrimo? você não acha que galinha com amêndoas é um
prato divino? - que, tonto, não sabia se tudo não passara de pura
impressão de traição ou se a perfídia feminina era matéria sem limi­
tes e sem remédio. E, sob os influxos do agradável tête-à-tête, teria
se esquecido do admirável Vasconcelos se não fora a sofisticada efi­
ciência da secretária, que adorava com1,1nicar-se com pessoas impor­
tantes - Vips, como ela dizia.
Vasconcelos começara como ativo pracista duma firma atacadista
de cereais na Rua São Bento, morando em ínfima pensão do Catete
servida por banheiro único e infecto e esporádicos percevejos no es­
trado com colchão de capim ; crescera como testa-de-ferro de amplos
investimentos estrangeiros, nem todos muito limpos, habitando casa
decente alugada em Botafogo, já casado e com numerosa prole; pre­
sentemente a eles aliava vantajosamente os seus amealhados capitais,
desfrutava severo palacete de sua propriedade, em centro de ter-
252
reno, no J aidim Botânico, participava aberta ou ocultamente de vá­
rias empresas e geria com mão do mesmo metal a extensa rede dos
Armazéns Compre Tudo, que explorava o slogan "Compre Tudo e
P ague como Puder", e cuja propaganda na televisão era popularíssima
pela série de programas humorísticos em legítimo estilo chanchada e
por uma outra em que sorteavam-se milhares de prêmios, automóveis
inclusive! Enérgico, realista, mais duro do que pedra com os empre­
gados e os concorrentes, não tendo, em trinta e tantos anos de Rio,
perdido de todo o simpático e pitoresco sotaque nordestino, distin­
guia-se ainda pelo supremo dom de encostar os interlocutores contra
a parede, misturando convicção, arrogância, intrepidez e argúcia -
uma lídima vocação de chefe. Facílimo foi, portanto, assustar o ami­
go e consócio com a tempestade bolchevista que via solta por aí,
minando as instituições democráticas, ameaçando a propriedade pri­
vada, destruindo os alicerces da família, criando um furúnculo na
América do Sul.
- Temos que espremê-lo, Rufino ! Espremê-lo até sair o carne­
gão! E não pense que é tarefa fácil ! Qual o quê! É preciso muito
tutano! Os inimigos são perseverantes e traiçoeiros, não têm meias
medidas, valem-se de todos os expedientes, são capazes de tudo ! Se
ficarmos frouxos, ouça o que eu digo, se ficarmos frouxos, acabare­
mos no paredão, meu caro, no paredão ! Olha Cuba!
Viver, apesar de todas as mazelas e desilusões, é bom, e a perspec­
tiva do paredão não é nada alentadora. Dr. Fifinho sentiu um leve
calafrio percorrer-lhe a espinha, procurou tranqüilizar-se :
- Você não está exagerando, Vasconcelos?
- Exagerando, eu? - pulou. - Então você não me conhece?
Sou lá homem para me assombrar com fantasmas? Você é que parece
cego, Rufino. Não tem lido os jornais? os jornais decentes, bem en­
tendido. Não tem visto a propaganda subversiva que espalham
com o maior desplante nas nossas barbas? Não tem visto a ação
do governo cheio de comunas? Eles estão preparando um grande co­
mício com o pretexto das reformas de base, você vai ver, para deflagrar
oficialmente a desordem, como se já não fosse oficial a que lavra
por aí desabaladamente. Eu não sou contra as reformas, ninguém
de bom senso é contra as reformas, nossa estrutura precisa de uma
cabal reformulação, mas queremos que sejam feitas dentro da ordem,
da moralidade e dos preceitos constitucionais . Na Constituição não
se mexe! É sagrada! Não é só a Petrobrás que é intocável, não! Pois
olhe, vão arreganhar os dentes no tal comício. Se estão blefando,
pagaremos para yer! . . Ah, ah, ah ! E saberemos repicar o jogo com
.

outro. Com outro, não, com outros ! Que os deixarão de rabo quente!
Com essa gente - e se tinha uma virtude era a da feroz sinceridade
- não há que ter contemplação, não ! Precisamos nos unir, nos mo­
bilizar, e você também precisa estar conosco. Não é só dando di­
nheiro, não, é trabalhando, agindo, se dedicando, compenetrando-se
253
do seu dever para com a sociedade, a Pátria - um por tàdos e todos
por um! Deixa esta moleza, esta apatia! É com elas que eles contam
para nos vencer. Mas não irão tê-las, posso jurar. Vão ter contra­
ofensiva pela proa! Receberá seu dinheiro com juros, meu querido
Rufino. Juros altos. Juros de tranqüilidade! Este país precisa traba­
lhar! Precisa paz porque só em paz se trabalha e se progride. Para
que damos esmolas à Igreja? Não é pelos belos olhos dos padres,
está visto. É para que ela se sustenha, subsista, vença a heresia e o
materialismo, mantenha a ordem moral, sem a qual nada se constrói.
É a mesma coisa. A mesmíssima! Gastamos para sobreviver! Para
que nossos filhos sejam livres ! Para que nossos netos sejam livres !
Cada qual tem que entrar com a sua quota! E mandar brasa! -
despediu-se.
O indeciso comandante de securitários reanimou a disposição
belicosa :
- É isso mesmo ! Conte comigo! É para valer! Vamos pra
cabeça!
E, para início do papel militante, tratou com ostensiva frialdade
o calado contínuo, que servia café, em quem pressentiu um inimigo
embuçado - era o primeiro que desaparecia quando havia greves !
- e traçou para a secretária um largo gráfico verbal, espinafrando
galhardamente o Jango e a cambada que o cercava, da atual conjuntura
político-social brasileira - delicadíssima! - que ela, trasandando a
Miss Dior, aprovara com a cabeça e com os brincos espaventosos e
compridos de roçar os ombros. Decidido a enfrentar a empregadinha,
fossem quais fossem as conseqüências, e nada aconteceu para seu
alívio, pois ela havia saído a mandados, pregou um sermão em regra
a Aldete, engastando as candentes palavras de Vasconcelos na perora,
como pedras preciosas, bisou-o em casa, ao jantar, enriquecido de
mais contribuições pessoais, que espontaneamente lapidou. Aldete
não só não bocejou, tal como acontecia quando, por acaso, ele dis­
corria sobre negócios, como refutou-o agilmente em duas ou três
oportunidades, perturbando-o um pouco, porquanto os argumentos do
aviador civil, absolutamente contrários aos do novo miliciano, tinham
maior poder de persuasão, mais finura explicativa e mais machiche nos
intervalos. Os filhos acharam gaiato o intempestivo entusiasmo cívico,
sem interrompê-lo, nem contrariá-lo, por não discreparem de tais
idéias e até convictos adeptos se declaravam do boquirrotismo do
Governador, que era quem mais teatralmente esperneava contra os
desmandos federais e explorando um pretenso mas frustrado atentado
à sua pessoa. Iracema, esta sim, aprovou-o, benzeu-se, rebenzeu-se,
colaborou com casos que a vizinha lhe contara horrorizada e até
arrebatou-se com o calor marital, surpresa que o encheu de um certo
orgulho, chegando a admitir que a idiotice da cara-metade não fosse
realmente total.
254
Garantido por forças do Exército, três mil homens, diziam, o co­
mício, com o comparecimento presidencial, foi de arromba - faixas,
cartazes , archotes queimando petróleo nacional, oradores inflamadís­
simos, povo a perder de vista na praça imensa, sob uma tarde ma­
ravilhosa e uma noite de estrelas, como se o tempo quisesse ostensi­
vamente colaborar na manifestação popular e o Presidente, do alto
do palanque, com veemência, exigindo as reformas, ele que já
encampara as refinarias particulares , sacudia diante do povo os decre­
tos que assinara naquele dia memorável sobre a desapropriação de
terras à margem das rodovias e ferrovias, como primeiro passo
decisivo para a reforma agrária, e sobre o tabelamento dos aluguéis,
que era um golpe de morte na exploração dos proprietários inidôneos.
Os adversários tremeram nas bases - a profusa propaganda contra,
as velas católicas mandadas acender, em sinal de protesto e luto,
nas janelas indignadas, mais um ponto facultativo estadual decretado
em cima da hora para esvaziar a cidade, o recurso da paralisação
de certos meios de transporte na populosa Zona Norte e um que
outro sino dobrando mais corajosamente a finados, tudo não parecera
ter dado resultado e a praça transbordara, febril, ululante, desafia­
dora. Dr. Fifinho não escapou à tremura e interpelou Vasconcelos,
a quem elegera seu oráculo político na desorientadora emergência :
- Tinha gente que não era brincadeira, meu velho ! Falaram
grosso ! Estou vendo as coisas feias. O decreto sobre os aluguéis é
fogo! E prometem outros . . .
- Ora, não se afobe, homem de Deus ! Os decretos que vão para
aquela parte! . . . Tenha fé! Tenha esperança! Só peço que não
tenha caridade na hora H . . . Com vermelhos não há que ter cari­
dade. É fazer como eles fazem onde põem as garras . E acalme-se,
repito. Não estamos dormindo de touca . . . O tempo da chupeta já
acabou. Espere pela volta. Vai ter volta, já te disse e repito. E vai
ser de lascar! - Riu : - Escolheram mal o dia . . . Sexta-feira, 1 3 , é
dia de azar . . . Vão pular que nem cabritos !
Dr. Fifinho era supersticioso, mas esperou arrefecido, algo desa­
nimado, vendo o alvoroço bancário, o retraimento dos seguros, vendo
-
o dólar subir a alturas nunca vistas, as cotações descerem aos tram­
bolhões na Bolsa de Valores - ele que tinha um monte de ações
próprias e conjugais ! - vendo o decreto sobre aluguéis ameaçando os
seus quatro apartamentos alugados, e com os inquilinos passando di­
nheiro por fora do contrato, desânimo que transmitiu à secretária : -
Vamos entrar pelo cano ! - dando tratos à bola para o caso forçado
de adesão, que tinha que ser honrosa. E reencetou o intercâmbio
camaradesco com Oripes, o contínuo :
- As reformas são necess árias . . . Temos que vencer a barreira
do subdesenvolvimento . . .
- É sim, senhor.
- As condições do povo têm que ser melhoradas sem delongas .
255
Combater o analfabetismo, elevar o seu nível de vida, acabar com
as favelas . . .
- :É sim, senhor.
Há muita miséria! muita miséria mesmo!
- É sim, senhor.
- O Papa já definiu claramente a sua desassombrada postçao
no grave problema social e os nossos bispos já estão trabalhando
ativa e corajosamente em prol das classes menos favorecidas . . .
- f: sim, senhor.
Dr. Fifinho desistiu - daquele mato não saía coelho ! Seguramen­
te fora ao comício . . . Quem não fora? Estava duro de gente! E
ordenou :
- Um copo d'água, Oripes . Mas bem gelada!
A reação, porém, não dormia de touca, como Vasconcelos cate­
draticamente anotara. Passados os primeiros momentos do impacto, a
confiança voltou, os ânimos se revigoraram e se arregimentaram, e
um movimento redentor começou a ser freneticamente articulado -
imensa passeata de repúdio cristão à penetração comunista na cúpu­
la do governo, na administração em geral, nas autarquias, sindicatos
e, pior que tudo, no seio da tropa, passeata cognominada um tanto
extensamente Desfile da Cruz e da Família pela Liberdade, no êxito
da qual Dr. Fifinho não confiava nem um tico, apesar dos crescentes
e públicos pronunciamentos favoráveis das mais ativas ou arquivadas
personalidades :
- Não vai haver . . . Não há condições . :É conversa fiada. Quem
tem peito? - E acrescentou : - São uns poltrões ! - como se fosse
um poço de coragem.
A secretária corroborou nos reais temores :
- Estão com tudo, Dr. Rufino ! Não vai ser mole, não . . . As
armas estão com eles !
O contador-geral não é de idêntico parecer :
- Você se engana, menina! - mas, transparentemente, se dirigia
era ao patrão tremelicante. - Pura ilusão ! As Forças Armadas estão
fiéis à Democracia. Mormente a Armada.
Dr. Fifinho irritou-se :
- Não vai me dizer que sabe d e fonte limpa . . .
O contador-geral conhecia o seu degrau na escada :
- Perdão, Dr. Rufino ! :É uma questão de ponto de vista meu. E
oxalá não esteja errado !
E na espera, a Semana Santa chegou, senegalesca e agitada. Logo
na Quarta-feira de Trevas, a família dispersou conforme vinha sendo
da praxe nos últimos anos. Ana Lúcia foi para a vivenda de uma
amiguinha em ltaipava, com campo de vôlei e piscina - o filho do
almirante iria para uma casa de campo ao lado ; Rufininho bateu para
Cabo Frio, muito em foco com a presença de Brigitte Bardot - andava
começando a se interessar por pesca submarina e comprara alguns
256
apetrechos caríssimos ; Heitor aceitou o convite de um colega musical
e guedelhudo, que tinha chalé no Alto da Boa Vista, p ara ensaios
gerais do conjunto e composições de parceria; Iracema aproveitou a
oportunidade para p assar uns dias com a irmã viúva - Moema -
na G âvea, uma casa tão triste que, segundo Ana Lúcia, bastava a
gente pôr o pé na porta para imediatamente chorar! Dr. Fifinho é
que resolveu ficar no domicílio mesmo, advertindo que a hora era
grave e de sacrifícios, pretextando obrigações contraídas com o Vas­
concelos - para a boa causa, frisava - e enfiou-se praticamente dia
e noite no j eitoso apartamento de Aldete, que estreou uma bonita série
de baby-dolls, já descuidado a respeito da empregadinha, que s e mos­
trara nada vigarista, até rigorosamente discreta, chamando-o respeitosa
e amiudadamente de Dr. Rufino - vej a como a gente pode s e enganar!
E foi no adorável recanto, chupitando o seu uísque, que usava só puro
com gelo, Aldete tão candidamente recostada no divã, lembrando-lhe
um quadro que vira não sabia em que raio de museu! foi naquela paz
que a indisciplina dos marinheiros do Arsenal o apanhou . Desarvo­
rado, procurou telefonicamente Vasconcelos, e não foi fácil localizá-lo .
Afinal, encontrou-o numa mesa de biriba a cem cruzeiros o ponto, na
residência do Manuel Inácio, c avaleiro lusitano e um dos baluartes
do truste dos antibióticos . O dínamo da Acc é vivo :
- Começou a derrocada! E inventada por eles mesmo s . As Forças
Armadas não podem aceitar de j eito nenhum a quebra da hierarquia
e da disciplina. De j eito nenhum ! É assunto basilar ! Sem hierarquia
nem disciplina não há Forças Armadas ! Não há, aliás , nada! É o
coringa que nós esperávamos para fazer a canastra . . .
Tranqüilizou-se, verdadeiramente tranqüilizou-se - ótimo ! largou
o fone e virou-se para a amante, que se conservara na mesma doce e
grácil posição :
- A inana vai começar!
A distinta não olvidara as compridas conversas politizadoras do
impetuoso aviador civil - onde estaria o bacana àquela hora? - e
s orriu :
- Vai . . .
- Se vai . . . - e Dr. Fifinho, em cuecas , as per'las finas e arquea-
das , o suor escorrendo pelo peito com pêlos já grisalhos, ingenua­
mente principiou a explicar.
Na Sexta-Feira da Paixão, e Zulmira correra as sete igrej as da de­
voção p ara beij ar o Senhor Morto, parecia tudo debelado ; o Presi­
dente viera de São Borja, para onde se fora passar a Semana Santa,
e resolvera a parada; a panela, porém, fervia por baixo do pano, tanto
assim que se viu obrigado a recuar logo em s eguida em determinadas
decisões iniciais , o que equivalia a meia derrota ante os galões feridos
das três armas . E no s ábado de Aleluia, Dr. Fifinho, encafifado com
o desfecho da insubordinação da maruj a, mas certo de que a inana

257
continuava, foi levar à Aldete o seu ovo de Páscoa, sob a forma retan­
gular e verde de um chequczinho nada desprezível :
- Está contente?
- Contentíssima! - e bateu palmas , quas e infantil . - Você é
uma cois a !
- Q u e coisa? - riu.
- Um anjo caído do céu !
O varão mostrava-se generoso e estendeu à discreta empregadinha
a sua liberalidade p ascal - a virtude recompensada! - uma vistos a

pelega, que ela empalmou com um compreensivo piscar de olho :


- Obrigadinha, Dr. Rufino. Boa Páscoa para o s enhor tam­
bém . . .
Era o seio de Abraão ! Mas na s egunda-feira houve a programada
festividade dos sargentos e o Presidente, finalizando a rumoro s a sole­
nidade - Manda brasa! Manda bras a ! - abriu fogo com canhão de
longo alcance e grosso calibre. Dr. Fifinho, já reunido com a família,
embora não toda presente, assistiu à discurseira de cabo a rabo pela
televisão e era tal o canhoneio que novamente s entiu-se perdido, mas
não apelou para o famoso Vasconcelos, pelo contrário, invectivou-o
- matusquela ! tapeador ! não sabe de nada! E para Iracema, que não
pescava patavina daquela falatório sargental, grunhiu :
- A coisa engrossou! Dez mil s argentos não é brincadeira ! É
fogo ! Fogo na roupa! O homem está forte !
Não estava, gastava apenas os s eus cartuchos, que logo viu s erem
de festim . A guarnição de Minas Gerais se levantou, acorde com o
manhoso poder civil montanhês , resultado de s ábia conspirata em que
entrou muita gente até insuspeita. E os tanques e carros blindados
sortiram dos quartéis para as ruas cariocas com fragor e aparato, o
Presidente no Palácio das Laranj eiras querendo resolver a embrulhada
e embrulhando-se mais , o Governador, mudo e entrincheirado no
Guanabara pintado de novo, com uma linha de caminhões de lixo e
carros-pipa barrando as cercanias , e os seus auxiliares desfechando
tiros de guerra psicológica, adoudada b alística que acertava e que re­
movia posições . Soldados avançavam e recuavam, as notícias eram
desencontradas . Foi uma noite de vigília cívica, um torneio de emis­
soras de rádio e televisão, por onde desfilava a verborréia dos anta­
gonistas , Dr. Fifinho em casa, preso ao noticiário, com a candura de
quem tivess e nascido ontem :
- É a guerra civil !
Não foi . Em 24 horas tudo estava resolvido com o 11 Exército
dando o xeque-mate às margens do Ipiranga - é que o enigmático
comandante, amigo pessoal do Presidente, entre a amizade e a Pátria,
decidia-se pela Pátria! - o Presidente retirava-se, primeiro para B ra­
s ília, lôgo depois para lugar ignorado. O quartel-general da CGT foi
desbaratado, poucos escaparam. Os Estados que não estavam na
história s e entregavam . Só no Rio Grande do Sul havia um foco de

258
resistência, prontamente sufocado . Tudo acabou . . . Surgiu um novo
B rasil, um B rasil zero quilômetro, conforme afirmavam os vencedores
- s em um tiro, sem uma gota de sangu e derramado, dentro da rotina
brasileira. E de Norte a Sul, então, os sindicatos foram varejados ,
houve alguns incêndios e empastelamentos, as prisões não tiveram
conta - o aviador civil, apanhado no Sindicato dos Aeroviários, ficou
incomunicável e Aldete desesperava-se, b anhada em pranto de dor e
raiva - a denúncia passou a ser moeda de larga circulação, o medo
instalou-se em milhões de corações, e já se falava em cassar mandatos
e direitos políticos e o Alto-Comando é que regia tudo soberanamente.
O Desfile da Cruz e da Família pela Liberdade, que andara para ser
transferido ou cancelado, foi monumental, com chuvisco, céu pesado
e Hino Nacional, meio milhão de salvadores da pátria, convictos ou
aderentes não importa, mas meio milhão, o que forneceu ótima pano­
râmica para as objetivas da reportagem - e tome sinos , tome foguetes ,
tome lenços brancos, tome buzinas e sirenes , tome chuva de papel
picado tombando dos arranha-céus como na Broadway!
Dr. Fifinho recolocou Vasconcelos no trono da sua admiração - é
um crânio ! um cabra s arado ! um bicho de visão ! - e não queria
deixar de ser visto , de participar em carne e osso da marcha da
vitória :
- Todos nós temos que ir! - comandou em casa. - É um dia
único na nossa História! Ficamos livres do comunismo . - E repetiu
a fras e de um líder direitista : - Deus é bom!
Pela primeira vez a família se uniu, obedeceu coesa à sua voz, acre­
ditando piamente que ele andara a par de tudo e de que muito
eficazmente cooperara para o feliz resultado .
- Ach a que devemos l evar velas? - timidamente perguntou Ira­
cema, contemplando o discreto herói e liberta d a tremenda dor de
cabeça que a assaltara na confusão.
- Não . É exagerado - retrucou como um perfeito mestre-de­
cerimônias .
É muito j eca! - acrescentou Ana Lúcia p ara fortalecê-lo.
- Tem toda a razão, minha filha! - aplaudiu ele. - É muito
jeca!
E foram todos, inclusive a curiboca Odaléia, dispens ada com mag­
nitude :
- Vá com Deus ! Comeremos na rua. - E para os seus : - Hoje
a função é no Bife de Ouro !
Somente Zulmira não foi . O apartamento não podia ficar s em nin­
guém - os ladrões andavam à solta, assaltando e matando. Fechou
bem as portas , certificou-se que estavam bem fechadas , esteve um
pouco à j anela vendo o povo passar, entre risos e aclamações, depois
recolheu-se ao quartinho, onde a imagem de São Jorge, pavorosa,
coitada! tinha destacado lugar, e, mais cedo do que costumava, des­
fiou o ros ário, que Dr. Fifinho trouxera de Roma, como era hábito

259
noturno . E dormiu com o coração em paz - cedinho teria que ir à
sua miss a.

ACUDIRAM TRf:S CAVALEIROS

Q UEM, P OR MERA CURIOSIDADE, perguntar a um filho de Guaran­


timba - e todos orgulhosamente o s ão - quantos habitantes tem a
cidade, receberá imediata e convictamente a resposta : - Quarenta
mil !
Realmente tem dezoito mil . E toda a população do município, com
seus três prósperos distritos, infelizmente s ervidos por péssimas estra­
das municipais - Guarantindiba, Guarantá e Limoal - não vai além
de vinte e cinco mil almas, da qual a metade, l amentamos acrescentar,
não sabe ler. Mas não é inverdade bairrista o cognome que lhe puse­
ram os guarantimbenses e largamente s e espalhou - "Pérola do Pas­
sarinho" - pois ao longo do Rio Passarinho, só navegável por caíques ,
tão cheio de curvas quanto de lambaris, e que corta a cidade em duas
partes desiguais , ligadas por duas pontes, a primeira velha e metálica,
a segunda, nova e de cimento armado, não há outra mais bela e
progressista, não há, e para lá acorrem muitos casais em lua-de-mel
das cercanias para gozar dos seus renomados esplendores . Famosos
s ão o Largo Coronel Mendonça, com fonte luminosa que funciona
nas noites de sábado, domingo , dias santos e feriados e mais conhe­
cido é por Largo da Matriz, e a própria Matriz, em arroj ado estilo
moderno, que a princípio sofreu severas ou irreverentes críticas , a torre
semelhando bala de canhão, o telhado de cobre escorrendo azinhavre, a
fachada com um imenso painel de azulej os, obra de consagrado artista
nacional, que afugentaria o diabo se ele tivess e a petulância de aparecer
por aquelas católicas bandas . Famosa é a Praça Rui B arbosa, que lá
fez memorável discurso ao tempo da histórica pregação civilista, e daí
o crisma, porquanto primitivamente s e chamava Praça Dr. Lopes
Magalhães, ilustre varão, respons ável pela propaganda abolicionista e
republicana naqueles sítios e que, j amais esquecido, passou a ser nome
de grupo escolar; retangular, espaçosa, tendo num dos cantos as três
gameleiras que milagrosamente escaparam à s anha de um adminis­
trador inimigo de árvores , é o palpitante coração da urbe, com cinco
movimentadas agências bancárias , dois cafés, o bar-bilhar demasiada­
mente barulhento pelas gargalhadas dos freqüentadores e pelo fanhoso
alto-falante que sobre uma das suas portas s e instalou, com "A B rasi­
leira", de Fuad & Fuad, loj a que vende desde o modesto alfinete
até a cobiçada geladeira de 1 2 pés cúbicos, com o Clube Guarantim­
bense, círculo de reunião da fina flor da sociedade para danças men­
sais e carteado diário, e mais o Hotel Guarantimba, grande de sessenta

260
quartos , todos com chuveiro, ponto predileto dos caixeiros-viaJ antes
que percorrem a zona, o cinema-teatro bem pouco visitado por com­
p anhias itinerantes, uma concha acústica onde por vezes galharda­
mente se exibe a B anda Filarmônica Carlos Gomes, regida pelo maestro
Fidó, conspícuo continuador da saudosa batuta do maestro Picorelli,
italiano de n ascimento e sapateiro de profissão ; e ao centro, cercada
por redondo canteiro de agressivas coroas-de-cristo, ergue-se a herma
de um notável e extinto chefe político talhada em bronze imortal . Fa­
moso é o Hospital Santa Rita de Cássia, que po ssui a mais moderna
aparelhagem de raios X, adquirida diretamente nos Estados Unidos,
Meca de obrigatórios e algo desgraçados diagnósticos em vinte léguas
ao derredor. Famosos são o Mercado Modelo e a Estação Rodoviária,
tais como a Matriz, em estilo moderno. Famoso é certo bairro resi­
dencial à sombra da pedreira, bairro dos potentados, é claro , império
do luxo arquitetônico, com ousadias modernistas em meio aos bangalôs
e mais de dez piscinas rigorosamente particulares . Famoso é o seu
parque industrial, que já dá trabalho a cerca de oitocentos operários
e empregados diversos : a fábrica de pregos, a usina de açúcar, a
fábrica de macarrão, a fábrica de balas , a fábrica de papelão, a fábrica
de tecidos de algodão, a serraria, a olaria, a fábrica de cachaça Sete
Estrelas , um primor de pureza, tida e h avida como inigualável aperitivo ,
para só falar dos principais estabelecimentos.
Essa eloqüente grandeza industrial não se criou de uma hora para
outra - foi paciente e refletidamente construída em quase duas dé­
cadas . Iniciou-se por ocasião da Segunda Grande Guerra, quando o
clarividente pioneirismo de alguns capitalistas locais , antes inteira­
mente dedicados a hipotecas e empréstimos sob promissórias a juros
unanimemente considerados escorchantes, dotou a paróquia com a
fábrica de pregos, comprovada a escassez do material no mercado
estaduano . Veio depois a usina de açúcar, após descobrir-se que as
aprazíveis várzeas do Passarinho, além de magníficas para a caça de
capivaras e galinhas-d'água, eram propícias à cultura da cana e os
extensos canaviais daí em diante vieram, em certos trechos, disciplinar
a tropical e desordenada paisagem. Seguiu-se a fábrica de macarrão,
quando um inventiva cérebro paroquiano imaginou reduzir o preço da
manufatura, sem diminuir o da venda, ajuntando uma alentada porcen­
tagem de farinha de mandioca ao trigo importado, batizando o exce­
lente e patriótico produto com o nome comercial, registrado, de . M a­
carrão Vitória, em iniludível homenagem aos Aliados, e cujo consumo
rapidamente se estendeu às cidades e vilas vizinhas . O mesmo inven­
tivo cidadão, aliás natural de Trás os Montes, montou a fábrica de
balas Passarinho, coloridas como o mais colorido beij a-flor e delícia
da gurizada roceira, habilmente aproveitando a produção da usina
açucareira, da qual os cunhados do idealista eram sócios majoritários
e ele mesmo tinha lá uns cobrinhos . E ano não se pass ava que nova
indústria não se incorporasse, sempre dos capitais dos mesmos c ava-

261
lheiros, até atingir a plenitude fabril que esmagava de invej a os outros
centros urbanos da região e repercutia vantajosamente por todo o
Estado e até fora do Estado como é o caso daquela revista carioca que
dedicou oito páginas de ilustrada louvação à terra guarantimbense,
mediante módica subvenção .
Quem não quis er desagradar a um guarantimbense, j amais diga que
Guarantimba é quente no inverno e quentíssima no verão - fere pro­
fundamente os s entimentos, provoca reações até pouco corteses , tão
s eguros estão da amenidade do clima. Mas dá-se que esta condição
termométrica do plano s enegalesco faculta tanto uma certa modorra ao
meio do dia, responsável pela imens a quantidade de redes, quanto
uma fácil esquentação de cabeças em assuntos políticos , que em épocas
venturos amente pass adas tinham muita solução pelo ronco dos b aca­
martes . E o parque industrial, embora trazendo prosperidade e re­
nome para o burgo , veio contribuir para que as cabeças mais se
esquentassem, pondo em jogo aberto a questão social. O que era p ací­
fica situação patriarcal passou, paulatinamente, a ser agitação antipa­
tronal. A inquietação entrou a lavrar no s eio do proletariado, aumen­
tou, tomou perigoso caráter reivindicatório . Não adiantou a artimanha
de fundar a Cooperativa 1 .0 de Maio, que barateava o feij ão e a
carne-seca do proletariado . Não adiantaram os panos quentes do Lac­
tário Isabela Mendonça, que entrou a distribuir graciosamente leite
às criancinhas, cujo altíssimo índice de mortalidade era resignadamente
recebido como vontade do Céu. Não adiantou dotar de arquibancadas
condignas e de perfeito gramado o campo do Esporte Clube Operário
- o glorioso ECO ! - nem de se contratar no Rio , para o adestra­
mento dos jogadores, os bons ofícios do técnico Ramirez, que já fora
campeão em Buenos Aires . Nada adiantou porque Genésio Gra­
macho, arvorado em agitador vermelho, acendia os ânimos dos ope­
rários tal como um abano mantém vivas as brasas de um borralho .
Mulato disfarçado, filho n atural de um fazendeiro que já velho s e
mudara para o Paraná e nunca m ais s e soubera dele, Genésio Gra­
macho tinha a pinta de condutor de massas - verbo fácil, ação sub­
reptícia, capacidade de lidar com o zé-povinho . Trabalhar mesmo,
nunca trabalhara - vivera de biscates ; concluído o curso ginasial,
prestara s erviços redatoriais à situação, muito fluente e metafórico
nos discursos, alistara dezenas de eleitores que mal s abiam garatuj ar
o nqme, conhecera o município palmo a palmo, acompanhara os chefes
em certas visitas à capital do Estado, onde conseguira fazer amizades,
e assim facilitava as gestões dos mais broncos ou desaj eitados . Pas­
sado para trás em certas pretensões a um cargo de fiscal de obras
públicas, que acabou s endo dado a um primo do Prefeito, rompera
com a situação e, aproveitando o crescente aumento do proletariado,
pus era a defender-lhe as causas e necessidades, incentivando os sin­
dicatos, aos quais conseguira imprimir mais vida e eficácia, e em pouco
agia como verdadeiro repres entante da pobreza.

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- Este sacana está precisando de entrar numa surra ! - prometia
o líder das classes conservadoras , investido pela segunda vez no cargo
de Prefeito, o popular Zéfredo, José Alfredo de Mendonça, neto do
Mendonça do Largo .
A iniciação de Zéfredo, temos que dizer, n ão fora política, fora
esportiva, relegando os livros do ginásio pela bola . Agilíssimo no
tratamento da pelota, tornara-se em invencível atacante do Olímpico
Atlético Clube, terror dos adversários do Vale do Passarinho, até que
um beque do Independente, de Varzeópolis , aplicara-lhe tal sarrafada
que o alij ara da prática do esporte. E encerrada a carreira futebolís­
tica, não tendo outras aptidões , valeu-se do nome de família e inteira
e devotadamente se dedicara à política de campanário .
Prometia a surra, mas não a cumpria, apesar dos contínuos ofere­
cimentos de Calambau, pardavasco e guarda-costas , com alto prestígio
nas pensões alegres da cidade . É que os tempos haviam mudado, os
bacamartes haviam sido encostados, o poder do povo ganhava altura,
amparado por leis trabalhistas, estribado em tribunais que nem sem­
pre era possível corromper - precisava-se agir com calma. E Genésio
arrotava força nos cafés da Praça Rui Barbos a, nas rodinhas do bar­
bilhar, nos sindicatos cada dia com mais associados . Conseguida com
esperteza, tinha nas mãos uma máquina tremenda - A VOZ PO­
PULAR - principalmente depois que metera na redação uma rapa­
ziada meio literária e totalmente desabusada, que não se conformava
com o reacionarismo dos donos da cidade e insuflava greves nas colunas
do jornal. O GUARANTIMBA, folha oficial da Prefeitura, sem dire­
tor competente, com dois redatores fossilizados , sem a publicidade que
o outro angariava, com minguados assinantes , não podia oferecer
resistência à oposição firme de A VOZ POPULAR. Na última eleição
quase iam perdendo. Perderam mesmo, e assustadoramente, na sede do
município - se n ão fosse o dinheirão q ue derramaram em Guarantá
e Limoal, mais a pressão que com o subdelegado exerceram em Gua­
rantindiba, teriam entrado pelo cano ! Uma sucessão de desgraças des­
pej ava-se em cima deles . O 1 3 .0 salário - aquela pouca-vergonha !
- esvaziava os cofres . De meia centena d e processos instalados contra
empregados, ou pelos empregados, e recorridos ao Tribunal Superior
do Trabalho, no Rio, não ganharam um só! e ainda foram esculachados
por um ministro ! Do Imposto de Renda caíra, como chuva de gafa­
nhotos, uma série de autos de infração, que o Delegado local, amigalhão
na gaveta deles, não conseguira evitar e foi uma bombada de mais
de três milhões em multas ! Os domingos, quando saía A VOZ PO­
PULAR, vinham sendo dias de desespero para Zéfredo, em parti­
cular, e para os correligionários em geral - o artigo de fundo era
de arder! os ferinos e ridicularizantes sueltos de deixar todos zonzos !
E como s e não bastasse, nos últimos meses , pontualmente quinzenal,
estava sendo distribuída, gratuita aos operários e a quem mais qui­
sesse, A AÇÃO DEMOCRÁTICA, pasquim de quatro páginas ferozes ,

263
redigido por jovens conterrâneos que estudavam no Rio, cotizados p ara
imprimi-lo, turma vermelha que esclarecia o proletariado, denunciava
explorações, ditava diretrizes e zurzia as classes produtoras de Gua­
rantimba, não poupando nem a famílias de alguns , como aquela insu­
portável insistência com que s e insultava a cunhada do deputado
estadual Magalhães, neto do Magalhães do grupo escolar, reconhecida­
mente dadivos a.
E se as coisas andavam pretas, mais pretas ficaram quando, depois
do Plebiscito, o Presidente Jango deixou-se envolver completamente
pelas correntes extremistas , cercando-se de declarados e manjados
comunistas, como toda gente boa de Guarantimba sabia. Ameaçavam
a segurança do anonimato bancário, davam mão-forte aos sindicatos,
os dissídios coletivos eram concedidos aos montões , acenavam com
a Reforma Agrária, que retalharia os l atüúndios, ora a força, ora a
preço de mel coado, formavam-se Ligas Camponesas e Grupos d e
Onze, treinados por agentes cubanos , para intimidar os proprietários
rurais, invadir as suas plantações , chaciná-los sem piedade ; a s ar­
gentada se assanhava, até certos padres andavam de braço dado com a
canalha comunista - um fim de mundo !
Mas se pensavam que o democrático povo de Guarantimba i a
entregar a rapadura assim s e m mais n e m menos, estavam muitíssimo
enganados ! Zéfredo recebera precisas informações e determinações
superiores - organizava-s e a reação e para valer ! Que se preparasse
também . E começou a fazê-la com excitação . Percorreu o município
se entendendo com os alarmados chefes políticos e fazendeiros, abriu
listas de socorro urgente e com o produto delas comprou e distribuiu
armas , mobilizou gente. E como a rádio düusora estava nas suas
unhas , jamais os alto-falantes, multiplicados pela cidade e pela zon a
rural, rugiram mais fortemente contra o perigo vermelho, o assassinato
dos honrados pais de família, o estupro das damas, a violação das
donzelas, o assalto aos bancos, a desapropriação das casas, a profa­
nação das igrej as ! E, depois duma demorada conversa com o vigário ,
pôs na rua uma procissão, que, com pelotões de quatro fiéis de vela
acesa na mão, ia da igreja do Rosário até a Estação, extens ão que
levou o advogado Oliveira, discretamente incluído entre os adver­
sários , a comentar, coçando o queixo :
- É povo que não é brincadeira ! Não é mole derrubar tantos
séculos de misticismo e servidão .
Em contrapartida, Genésio Gramacho promovia passeatas e comí­
cios na Praça Rui B arbosa e na Praça Getúlio Vargas, que ficava perto
do Matadouro, p araíso dos urubus, distribuía volantes conclamando
o povo a se reunir contra os usurpadores, e recebia apreciáveis ade­
sões, mantinha os sindicatos em reuniões permanentes , organizava
brigadas de choque e comissões estudantis - a Escola Técnica d e
Comércio estava toda com e l e - enchia o ar de foguetes retumbantes

264
a cada notícia alvissareira que chegava do Rio, epicentro dos nacionais
acontecimentos .
Zéfredo, recebendo um misterioso telefone de São Paulo , para l á
incontinenti s e dirigiu, acompanhando-se d o pardavasco Calambau, e
com ele s e revezando no volante do Aero-Willys . Voltou logo, de
ânimo erguido, com um rol de p rovidências, muita esperança de b reve
vitória, pois estava se tramando uma conspiração já com francos e
decididos apoios, e mais a informação de certa lista de fuzilamentos ,
apanhada numa devassa que a polícia secreta p aulistana fizera num
foco esquerdista.
- O "paredão" irá funcionar se não arrebentarmos com esses
miseráveis ! - declarou enfaticamente à grei reunida no s eu escritório.
- Vi a lista. São páginas e páginas .
- Leu toda?
- Não, é claro ! Seria mesmo que ler uma Lista Telefônica do
Rio de Janeiro . . . Mas dei uma olhada geral e demorei-me no que
nos toca diretamente. É gente pra burro !
- Eu estou na lista? - quis saber o deputado estadual Maga-
lhães, não disfarçando o egoísmo e o temor.
Foi impiedoso e s arcástico :
- Exatamente na letra M .
O nobre representante d o povo guarantimbense sentiu u m arrepio
correr-lhe pela espinha, bastante flexível .

Foram dias confusos, nervosos, movimentados , os populistas soltos


na cidade como diabos assanhados , os outros mais confiantes nas
perspectivas da luta que lá fora se travava, dado que o govemicho
populista avançara demais . A noite de 3 1 de março culminou de
agitação e incertezas , tão desencontradas eram as notícias que o rádio
espalhava, já que a televisão não atingia Guarantimba, dizem que por
incompetência de um técnico, apaniguado de Zéfredo, que levantara,
através de grossa subscrição, uma altíssima antena no cimo do morro
da Piedade e ela não captava s enão uns rabiscoS! luminosos . No outro
dia, porém, tudo se esclarecia - a revolução vencera! - e o popu­
lacho enfiou o rabo entre as pernas , e as forças burguesas voltaram
a dominar.
Estava na hora da desforra ! Zéfredo enfiou as botas, afivelou a
cartucheira na cintura, armou-se com um velho Colt, reuniu a Câmara
Municipal e cassou os vereadores da oposição usando dos dispositivos
do Ato Institucional, procedimento que o Juiz de Direito mansamente
engoliu como legalíssimo . Transformando a Prefeitura em Quartel­
General das vitoriosas forças revolucionárias , daí fez sair as suas
patrulhas punitivas em grupos de mais de onze, pois a sua gente,
que estivera meio encolhida, compareceu unânime e vingativa.
-
- Vão comer o pão que o diabo amassou ! Com José Alfredo
de Mendonça não se brinca !

265
E não brincava mesmo . Estava feroz. Empastelou A VOZ PO­
PULAR, quando a Rua Sete de Setembro assistiu à crepitante fogueira
de alguns cacarecos redacionais e de um monte de papelório, e, levado
pelo mesmo delírio incendiário , vasculhando a Livraria e Papelaria
Progresso, incinerou uma centena de livros que considerava subver­
sivos ; interditou a Escola Técnica de Comércio , fechou os sindicato s ,
dissolveu a s brigadas de choque, os Grupo de Onze, as comissões de
estudantes ; entendeu-se com os diretores das fábricas, que despediram
sumariamente um respeitável lote de operários e empregados que lhes
davam dores de cabeça, distribuiu homens armados por vários pontos
e estabelecimentos da cidade, policiou as estradas de rodagem, pintou
o caneco ! As prisões foram numerosas e sem resistência, exemplar­
mente espancados vários agitadores mais ativos e odiado s . O marce­
neiro João Almeida Militão protestava inocência, o tecelão Xanduca,
tão exaltado antes, incitador de tanta greve, caiu em pranto, aj oelhou­
se pedindo clemência, e ambos foram arrastados para a Cadeia, cujo
deplorável estado de conservação, uma verdadeira pocilga, não con­
dizia com os foros civilizados de Guarantimba. Mas todos os encar­
cerados eram peixes miúdos em relação a Genésio Gramacho. Pre­
cisava pegá-lo logo - tinham contas a ajustar!
Não foi fácil, embora a .:: ::: n úncia rolasse franca, e somente ao ter­
ceiro . dia de incans ável procura era encontrado - estava escondido
na casa de Neco Fogueteiro, que havia caído no mato aos primeiros
minutos da derrota . A mulher de Neco, barrigão de oito meses , botou
a boca no mundo, levou uns encontrões , acabou s e calando e o
homiziado foi conduzido para a Cadeia, levando no meio dos impro­
visados patriotas o ar majestoso de um Tiradentes sem barbas .
- Agora é que vamos ver se você é macho só no nome ! - gritou­
lhe Zéfredo . E como precisava desmoralizá-lo completa e publicamente,
virou-se para Chico Prata : - Arrume um penico .
O penico rapidamente apareceu e o próprio Chico Prata, crioulo
e carroceiro da Limpeza Urbana, encarregou-se de enchê-lo discreta
e moderadamente.
- Beba, filho duma égu a ! É mijo de homem !
Chico Prata riu, lisonj eado, e Genésio, que j á fora posto nu, como
os demais p risioneiros que se misturavam com os andrajosos detentos,
retrucou :
- Logo s e vê que não é seu . . .
Chico Prata escondeu a alegria da confirmação dos seus méritos
masculinos e Zéfredo enfureceu-se :
- Beba, cachorro !
O preso olhou-o com superioridade, não respondeu. E Zéfredo co­
mandou :
- Calambau !
O pardavasco, que já esperava pela deixa, desceu o rabo-de-tatu
no lombo do agitador - lambada de chiar! Genésio gemeu e outras

266
se seguiram com mais vigor e pontaria. Lá pela décima, Genésio
arriou, desmaiado . Chico Prata atemorizou-se :
- Ele morreu, Seu Zéfredo !
O valente Prefeito não se alarmou :
- Água fria n este calhorda !
A água n ão era fria. Era uma água de abril em Guarantimba -
morna. Mesmo assim deu para despertar o desacordado .
- Bebe ou não bebe? - rugiu o ex-atacante do Olímpico Atlético
Clube. E repetiu, possesso : - Bebe ou n ão bebe? Bebe ou n ão bebe?
Perdido por perdido, Genésio Gramacho fez valer a velha honra
jamais enxovalhada e, pelo menos, seria um exemplo p ara os pósteros
guarantimbenses :
- Dá pra sua mãe!
Entre os presos correu um contido frêmito de orgulho - era
machão de verdade ! O algoz estava lívido :
- Mais rabo-de-tatu, Calambau ! Acabe com este desgraçado !
Neste exato momento parou uma viatura à porta da Cadeia. Era
um jipão com chapa branca da GB. Desceram três oficiais , farda do
Exército, farda de campanha, armados, um deles com metralhadora
na mão pronta para ser descarregada. Subiram a escadinha de p edra,
entraram marcialmente na sala, quando Genésio, que levara mais
umas cinco forçudas chibatadas , caiu esticado, duro, a fio comprido,
no chão gasto e sujo de ladrilho, as costas roxas de s angue pisado .
O mais alto dos oficiais avisou com voz forte :
- Ao menor movimento levam bala!
Ninguém se mexeu e não eram poucos os que estavam lá. Ele
ordenou :
- Tenente Walfrido, desarme este homem .
Zéfredo deu um passo à frente :
- Sou o Prefeito !
- Não estou perguntando quem é. Aqui só se fala quando eu
perguntar. Desarme-o, tenente.
Zéfredo foi des armado e estava meio tonto com o acontecimento .
- Tenente Adelmar, desarme este cabra aí de chicote.
Calambau foi despojado do trabuco e do chicote. O militar dedicou­
se a Genésio caído :
- Você aí, socorra este homem.
A ordem era para Chico Prata, que ainda estava parvamente com
o penico n a mão . Largou o vaso e debruçou-se sobre o ferido com
carinho subitamente m aternal :
---; Genésio, Genésio, sou eu . . .
E o prepotente intruso dignou-se, então, a fazer a sua apresentação :
- Capitão Arquimínio Dourado. - E apontando os companheiros :
- Tenente Walfrido Matoso e Tenente Adelmar Siqueira Lemo s . Por
ordem do Alto Comando Revolucionário . Houve informes sobre as
inúmeras i rregularidades e tropelias verificadas na cidade e aqui

267
estamos encarregados de restabelecer a ordem, impor a legítima auto­
ridade revolucionária, tranqüilizar a população, garantir os direitos
dos cidadão s . A Revolução - e enchia a boca - n ão pode admitir
tais processos indignos de homens de bem. Veio precisamente para
s alvaguardar os Direitos Humanos. Será que não têm vergonha dos
inqualificáveis atos que praticaram?
Não teve resposta e prosseguiu :
- Quem comanda o destacamento policial?
Cabo Galo, de crista baixa, adiantou-se :
- Eu, capitão .
- Perfile-se ! E abotoe a túnica !
Cabo Galo perfilou-se, abotoou-se . O capitão perguntou :
- Como se chama?
- Galo . Cabo José Galo .
- Acho que é galinha. ( Houve risos espremidos . ) Quantas praças
tem?
Oito .
Só vejo quatro .
Estão de s erviço na rua. Recebi orden s .
Imagino q u e serviço ! . . . Quero-os todos aqui sem demora.
Para receberem ordens decentes . Quem dá ordens agora aqui sou eu !
E ai de quem piar!
- Sim, capitão. Vou chamá-los .
- Não há um sargento instrutor no Tiro de Guerra? Onde está?
Zéfredo aventurou-s e :
- Está detido na Prefeitura. Atuava como elemento subversivo .
Achei prudente detê-lo .
- Detido? ! . . . Quem é você para deter um sargento do Exército? !
Quero a imediata presença dele. Irá assumir o comando do destaca­
mento policial . Você, cabo, ficará à minha disposição. Anda, vai em
frente !
Cabo G alo partiu como um pé-de-vento . O capitão continuou man­
dando :
- Vejam as roupas dessa gente toda . Não quero ninguém pelado
aqui . Nem um minuto mais ! Bonito espetáculo ! Parece um strip
tease! Vamos, cabra! - e dirigia-se a Calambau - vá tratando disso .
Na prisão só fica quem estava cumprindo pena. Soltem o resto . Onde
está o escrivão?
Juruena apresentou-se, borrando-se de medo :
- Sou eu, capitão. Antônio Juruena, um seu criado .
- Tome o nome de todos e mande-os embora. Depois serão cha-
mados para interrogatório .
Calambau não p erdera um segundo - apareceram as roupas , a
porta de ferro do xadrez fora aberta, os presos começaram a se vestir,
procurando os s eus traj es misturados na pilha de roupas que o capa-

268
dócio jogara no chão . Zéfredo seguia-o, furioso, com os olhos -
mulatão de merda!
- Você aí, praça - e o capitão apontou um suado e espan­
dongado soldado -, reviste este cabra.
Calambau parou como uma estátua e o soldado, um tanto timida­
mente, foi tirando coisas dos bolsos dele - cigarros, fósforos, a car­
teira de dinheiro, um canivete de duas lâminas . . .
- Dê a carteira e o canivete aí ao Tenente Adelmar. Estou vendo
que a carteira está recheada . . . Muito bem. Devolva os cigarros e
os fósforo s . Irá precisar . . . Muito bem. Agora trancafie este bicho
na solitária . Vai responder a processo por sevícias .
Genésio se reanimara, s entado fora, amparado por Chico Prata e
outro sujeito, num banco comprido e sem encosto, que havia a um
canto da sala, e com dificuldade vestira a calça. O Tenente Walfrido
falou :
- Não acha bom chamar um médico para examinar o espancado,
capitão? O estado dele é lamentável.
- Bem lembrado. Chame-se um médico . Atenderá o homem e
fará o laudo pericial para dar início ao processo. - Acercou-se do
banco : - Como é seu nome?
- Genésio Gramacho.
- Vai haver justiça, Genésio Gramacho. - E, voltando-se, emen-
dou : - E não há delegado nesta terra?
Macedinho, cumpincha de Zéfredo, esclareceu :
- Quebrou a perna e umas costelas há uns quatro dias , num
desastre de jipe, e está no Hospital engessado .
- Pois fique lá. E o Juiz de Direito?
É o Dr. Estêvão Costa - informou Macedinho . - Está em
casa.
Pois vá lá intimá-lo para comparecer à Prefeitura com urgência.
Fique nos esperando . Lá chegaremos. E que ele vá convocando os
vereadores para um sessão extraordinária. Sei que houve cassados .
Continuarão cassados.
Zéfredo respirou aliviado :
- Eu cassei-os dentro dos dispositivos do Ato Institucional .
- Cale-se !
Zéfredo enfiou a viola n o saco e o capitão caprichou no pausado :
- Os suplentes serão empossados e o vice-prefeito assumirá a
direção da Mesa. - Encarou severamente Zéfredo : - Você não é
mais Prefeito . Está preso por determinação do Alto Comando Revo­
lucionário . Por muito favor ficará detido na Prefeitura. Para lá irá
conosco .
Houve sorrisos , Zéfredo desej ava a morte . Aí chegava, esbaforido,
o s argento instrutor, já a par do extraordinário sucesso, contado e
aumentado pelo Cabo Galo no trajeto, e diante da Cadeia encontrava
um povaréu aglomerado, que rompeu a empurrões :

269
Pronto , capitão ! Sargento Cabral, às suas ordens !
Onde está o quepe?
Ficou em casa quando fui preso. Me levaram à força . Um
ato de violência! Para seu governo, capitão, h á outros detidos na Pre­
feitura .
Fingiu-se surpreendido :
- Outros? ! . . .
- Sim. Estudantes e p rofessores do Ginásio e da Escola Técnica . . .
- E quem os vigia?
- Uma capangada que Seu Zéfredo arrumou em Limoal . Um
povinho triste. Mas que já ficou de pulga atrás da orelha quando o
cabo foi me s oltar . . .
- Pois que fiquem detidos mais um pouco . Lá iremos depois .
Tudo vai a s eu tempo. Nada de balbúrdias . Basta a confusão que
já houve. Quanto à capangada e aos mandantes , terão o seu prêmio,
o seu prêmio, deixa estar . . . - Buscou Zéfredo com os olhos esper­
tos : - Você me saiu melhor do que a encomenda . . . - E prosseguiu
se entrosando com o sargento : - Mande buscar o quep e . E mande
trazer seu armamento também. V ai comandar o destacamento.
A alegria estampou-se na cara do inferior :
- Perfeitamente, capitão .
- Acho que dispõe de poucos homens . Precisamos de mais . Temos
que manter a ordem em todo o município . Não conhece pessoas de
confiança, que possam servir como voluntários?
- O Vespasiano, capitão . É pessoa de toda confiança.
- Que faz ele?
- É tintureiro .
- Chame o tintureiro, arme-o e que fique ao seu s erviço. Mas um
só é pouco . Não h á outros também capazes? Na rapaziada do Tiro
de Guerra não encontraria mais gente habilitada e leal?
- Sim, capitão, há rapazes muito bons soldados . O Luís Cláudio,
o Jacir, o Douglas, o Lelé Gonzaga . . .
- Então ponha todos em função . Distribua armas e munição . E
que aguardem ordens aqui do Tenente Adelmar. O policiamento ficará
sob a responsabilidade do Tenente Adelmar.
O médico chegava, de blusão, suadíssimo, examinou prontamente
Genésio .
- Capitão . . .
- Arquimínio Dourado .
- Capitão Arquimínio, o paciente não parece inspirar cuidados
maiores . Não apresenta sintomas de fraturas ou de lesões internas .
Contudo acho de bom alvitre interná-lo no Hospital para observação
menos perfuntória. O choque emocional foi profundo . E as equimoses
poderão ser tratadas para não doerem tanto .
- Tem toda a razão . Que seja internado . Mas quero o laudo
pericial com presteza, doutor. Assinado por três médicos .

270
- Constituirei uma junta, capitão.
- Obrigado. E mande o relatório logo em seguida cá para o
escrivão.
- Logo em seguida mandarei.
Genésio, amparado pelo médico e por Chico Prata, as pernas trô­
pegas, corcovado, foi conduzido para o Hospital e, ao passar por Zé­
fredo, deitou-lhe um olhar que o inimigo recebeu, humilhado, batido,
como mortal punhalada.
- Ufa! que calorzinho faz nesta terra! É de lascar! - exclamou
o Capitão Arquimínio indo se sentar na cadeira com almofada do
delegado : - Mas com calor ou sem calor, vamos às operações! Já
estão atrasadas . . . Tenente Walfrido vai com quatro praças emba­
ladas à Companhia Telefônica. Antes de ordem em contrário, nenhum
telefonema para longa distância pode ser dado sem minha expressa
autorização. Quanto a ligações de fora não devem ser em absoluto
completadas, salvo se forem para mim ou para os tenentes . Que a
telefonista nos procure onde estivermos! Nem será difícil, creio .
- Em caso de qualquer desobediência ou relutância, capitão? -
perguntou o tenente.
- Prisão ou fogo ! Como achar melhor.
- Assim será.
- Bem. Deixe um soldado na Telefônica, que a seu tempo será
rendido. Sargento Cabral cuidará da medida. Depois o Tenente Wal­
frido irá ao Correio e Telégrafo. As determinações são idênticas. Antes
da oportuna liberação, nenhum telegrama será expedido sem o nosso
visto . E os que chegarem passarão por nossa vista, antes de serem
entregues . Para desafogo e metodização do trabalho, acho mais prá­
tico que tal incumbência fique inteiramente sob a sua responsabilidade,
tenente. Verá como pode fazer as coisas da melhor maneira.
- Não há embaraço, capitão. Resolverei o problema.
- Deixe um soldado lá também. Em seguida vá para a Estação
Rodoviária. Estão suspensas as viagens até depois de amanhã. Que
nenhum ônibus saia, mesmo vazio. Quanto aos passageiros que che­
garem, sejam identificados na Estação. Explicando mais claramente :
a cada ônibus que chegue, faça-se a identificação rigorosa dos passa­
geiros e que a lista sej a imediatamente remetida cá para o Sargento
·

Cabral. Está entendendo, sargento?


- Completamente!
- Vespasiano poderá lhe ajudar.
- Eu cá me defendo, esteja tranqüilo, capitão.
- Muito bem. O Tenente Walfrido já compreendeu que deve deixar
um soldado na Rodoviária?
- Claro, capitão.
- Então dali o tenente irá à Rádio. Altere a programação. Ao
chegarmos constatamos o mundo de vitupérios que estava sendo dito
ao microfone. Vitupérios e sandices ! Nem uma palavra mais ! Somente
27 1
s erão irradiadas músicas, de preferência patrióticas . Marchas , dobra­
dos, coisas assim . . . Elaboraremos mais tarde dois ou três comuni­
cados diários para serem transmitidos em horário também estabelecido .
Vamos organizar um comitê de redação . Apelaremos para alguns jor­
nalistas ou cidadãos de boa vontade. Afinal não podemos fazer tudo .
Só temos uma cabeça e duas mãos . . .
- E deixo o último soldado lá, não?
- Exatamente . O recrutamento de que precisamos já por aí estará
sendo feito . Sargento Cabral dará conta do recado. - E o Capitão
Arquimínio inquiriu os circunstantes : - Há radioamadores cá na
cidade?
- Não . Não há - responderam . - Havia um rapaz que mexia
com isto, mas mudou-s e para Varzeópolis .
Fez uma cara constrangida :
- Devíamos ter trazido o transmissor de campanha . . .
- Eu é que fui culpado ! - apressou-se a dizer o Tenente Adelmar.
- Na verdade me esqueci . Mas foi tanta a pressa de sairmos . . .
O capitão sorriu :
- Que o general não s aiba . . . Bem, haveremos de dar um j eito.
- E batendo com a palma da mão n a mes a : - Vá em frente, tenente !
E obre ligeiro . Para facilitar, requisite aí um automóvel . O jipão
fica à minha disposição .
- Requisito, não tenha dúvida.
Cabo Ga fo insinuou :
- O Aero-Willys do Seu Zéfredo está na porta . . .
- Serve. É boa marca . . . - e o Tenente Walfrido reuniu os
quatro soldados, equipados como podiam, e saiu . O capitão dirigiu-se
ao Tenente Adelmar :
- Com os outros quatro soldados, que por enquanto contamos,
vá controlar as saídas da cidade. São quatro, como verificamos ao
estudar o mapa da região. Ponha um em cada estrada, suj eito a ren­
dição , e Sargento Cabral vai resolver tal parada com a rapaziada do
Tiro . Não passa ninguém motorizado ou a pé, mesmo que s e trate
de morador das cercanias , sem salvo-conduto tirado aqui na Cadeia.
Sargento Cabral ficará providenciando a questão. Deve conhecer o
povo todo daqui , não é?
- Conheço mais ou menos . Qualquer ignorância eu tirarei a limpo.
- É isso mesmo . Suspeito não pode passar.
Sargento Cabral não tinha a menor idéia de quem pudess e ser
suspeito, mas garantiu que a suspeitos não daria o salvo-conduto .
- Depois de espalhar os soldados nas bocas de estrada, o tenente
dará uma passagem na Luz e Energia. Já deve encontrar l á um
soldado, que Sargento Cabral designará. Converse com o diretor da
joça. Dê garantias e obtenha informações . E, como arremate, vá
ao Hotel e consiga acomodações. Se n ão houver, desaloj e gente ! Pre­
cisamos de banho e bóia. Depois de banhados e comidos, iremos nós

272
dois para a função na Prefeitura, enquanto Tenente Walfrido ficará
aqui na Cadeia supervisionando as ações .
Banhados , barbeados e comidos, o Capitão Arquimínio e o Tenente
Adelmar às oito horas - e o calor não diminuíra com a descida da
noite - enquanto Tenente Walfrido ia para o plantão da Cadeia,
davam entrada n a Prefeitura, furando a onda de povo que na frente
do edifício murmurantemente s e acotovelava. O Juiz de Direito lá
estava, s afado da vida, esperando h á mais de quatro horas ! e nem
desculpas recebeu . Na sala da tesouraria, com sentinela na porta,
encontrava-se Zéfredo para ali enviado sob escolta, quando o capitão
deixara a Cadeia rumo ao Hotel, e com visíveis sintomas de completa
desmoralização . Quanto aos detidos, haviam sido liberados pelo Juiz
de Direito, a mando telefônico do capitão, após terem sido convenien­
temente arrolados para futuras averiguações . A capangada azulara .
Na sala de sessões, o capitão foi tomando a palavra :
- Meus senhores : Não sei fazer discursos, s erei breve e objetivo .
Falta idoneidade e s erenidade ao Senhor José Alfredo de Mendonça,
que não herdou as tradições de seu ilustre avô, para exercer o cargo
de Prefeito . Que o Vice-Prefeito assuma a direção dos trabalhos . Re­
considerando minha idéia inicial, recomendo que seja feita a revisão
das cassações efetuadas, assegurando a permanência dos injustamente
perseguidos e empossando os suplentes dos que foram realmente con­
siderados corruptos e subversivos. Tudo tem de ser absolutamente
legal. Ponha depois em votação o impedimento do Prefeito . Vai ficar
sem imunidades para responder ao processo criminal por abuso do
poder e comprovada prática de s evícias . Que sejam iniciados os
trabalhos ! - comentou. - Eu e o Tenente Adelmar, como represen­
tantes do Alto Comando Revolucionário, mais o Senhor Juiz de Di­
reito, ficaremos de parte, como simples observadores e respeitadores
da Lei.
Em meia hora, os cassados haviam sido reconduzidos ao cargo,
menos um, que desaparecera, tendo sido convocado o seu suplente
presentíssimo, e Zéfredo perdeu o mandato por unanimidade .
O capitão levantou-se e pediu a palavra :
- Creio, Senhores , que a progressista Guarantimba inicia o retorno
à calma e ao bom-senso, de que se viu momentaneamente privada
por circunstâncias que s eriam inúteis enunciar. Pude de visu comprová­
lo através do procedimento dos dignos representantes do povo, nesta
memorável sessão . Agora . . .
Aí tilintou a campainha do telefone que havia na mesa, no lugar da
presidência. Era para o capitão .
- Com licença - desculpou-se e p egou no fone que lhe estendia
o Vice-Prefeito . - Alô ! Alô ! É o C apitão Arquimínio. Como? O
general? Boa noite, Excelência . Um momento . - Tapou o bocal com
a mão, virou-se para a assembléia : - Senhores, queiram fazer silêa­
cio . É uma comunicação .

273
Todos estavam mudos, olhos pregados no capitão, e mudos perma­
neceram. Ele destampou o fone : - Pronto, meu general. Podemos
falar . . . Sim . . . Sim . . . Perfeitamente, meu general . . . Operação
cumprida dentro do esquema traçado pelo Alto Comando . . .
Tenente Walfrido falava-lhe da Telefônica, tendo por ouvinte a
telefonista da noite, quarentona de óculos e cabelos frisados :
- Percorri toda a cidade, capitão, como era da minha atribuição.
Reina a mais completa ordem. Todas as fábricas que tinham serão
estão com tais serviços normalmente restabelecidos. Aqui na Tele­
fônica não foi feita nenhuma ligação de fora ou para fora . . . ( A
telefonista balançou a cabeça afirmativamente. ) E os telegramas
chegados estão já com visto para serem entregues. Os a transmitir
aguardam a sua decisão, capitão . . .
E o capitão :
- A situação está dominada. Inteiramente dentro das determina­
ções recebidas . Não comuniquei ao QG, pois ainda se processam
algumas ações e porque tivemos dificuldades com o transmissor.
Não . . . Pequeno imprevisto, general . . . Mas resolveremos o empe­
cilho com presteza . . .
Tenente Walfrido :
- Quais são as suas determinações? Muito bem. Muito bem . . .
Entendi perfeitamente . . . Serão cumpridas . . .
O capitão :
- Não, general. Não houve reação. O povo é pacífico e com­
preensivo. Sim . . . Sim . . . Absoluta receptividade. O que havia era
uma série de mal-entendidos e abuso do poder. E alguns elementos
reconhecidamente vermelhos estão na nossa mira . . . Sim, não esca­
parão, general . . .
Tenente Walfrido :
- Sargento Cabral incorporou doze reservistas do Tiro. Bem . . .
Bem . . . Me parecem rapazes convictos do dever. Temos agora ho­
mens suficientes . . .
O capitão :
- Sim, afastamos o Prefeito . O Vice-Prefeito entrou em exercício
( e o Vice-Prefeito apurou o ouvido ) com o senso de responsabilidade
que sabia lhe caber. A Câmara Municipal (e os vereadores redobraram
de atenção) agiu dentro dos melhores princípios democráticos. Exa­
tamente . . . O Juiz de Direito ( e Doutor Estêvão Costa ficou de
orelha em pé) cooperou de maneira completa e eficaz. Como? Sim,
qualquer acontecimento extraordinário eu comunicarei . . . Não, não
precisarei de reforços. O Tiro de Guerra local apresentou-se maciça­
mente para cooperar com a Revolução.
Tenente Walfrido :
- Então vou cumprir a recomendação . Compreendi perfeitamente.
Obrigado. Com a sua permissão, capitão, vou desligar.
O capitão :
274
- Não me esquecerei, meu general . . . Muito boa noite, Exce­
lência . . . Tudo marcha normal aí? . . . É o que esperava . . . Aqui
também, como dei ciência. Agradecido, Excelência . . . Transmitirei
aos companheiros . . . Boa noite . . . - Pousou o fone e, muito seguro
de si, reencetou a falação : - Se fui simples e objetivo nas minhas
primeiras palavras neste recinto, objetivo pretendo continuar agora,
mas um pouco mais prolixo. O momento é de liberação nacional. Libe­
ração e recuperação. Andávamos a ponto duma guerra civil, que as
Forças Armadas evitaram. Os brasileiros precisam urgentemente se
unir, superar os ressentimentos, levantar as energias e possib il idades
infindas, caminhar para um futuro radiante, que é o legítimo destino
de nossa Pátria! Precisam, sobretudo, ser práticos, realistas, positivos !
Guarantimba é um núcleo reconhecido como progressista e ordeiro e
tudo deve fazer para confirmar o elevado conceito de que desfruta.
O que passou, passou. - Elevou a voz : - Os culpados serão punidos
como exemplo! Mas os homens de boa vontade, e os porventura
iludidos, devem formar num exército único e forte para a crescente
grandeza da terra e para a crescente prosperidade de cada um de
tais soldados ! Vamos nos unir. A união faz a força! Devemos,
antes de mais nada, superar as divergências entre povo e classes
produtoras. O povo passa necessidades. A vida está difícil, temos que
reconhecer. (Algumas cabeças sacudiram afirmativamente . ) Não de­
vemos pensar em esmola. Devemos pensar em socorro. Dar a mão
a quem precisa de amparo e proteção . Socorrer os irmãos menos
afortunados é dever cristão de todo cidadão probo e consciente e
não é outra coisa o que preconiza o Santo Papa João XXIII na sua
admirável mensagem de fé e de amor ao próximo . Proponho, por­
tanto, como início dum amplo movimento de aproximação das classes,
a criação de um Fundo de Assistência Popular, cujas finalidades e
atuação serão motivo de conferências, entre os homens proeminentes
da cidade e a minha pessoa modestamente representando o Alto
Comando Revolucionário, cujo programa vai imprimir outro horizonte
aos problemas brasileiros. - Deixou o tom oratório, um tanto na
base do camelô, entrou no coloquial : - Para início de atividades,
organizemos uma Comissão da qual o Doutor Estêvão Costa seria o
Presidente e que começaria a angariar donativos . Há quem discorde
da escolha?
Ninguém se opôs. E ele :
- Muito bem. Rogava ao Doutor Estêvão que indicasse um cidadão
reconhecidamente idôneo para integrar a Comissão.
O Juiz de Direito deu uma olhada em volta e parou no vereador
Guimarães, idoso, encanecido, cirurgião-dentista, que não admitia no
poeirento consultório da Rua 1 5 de Novembro qualquer novidade
odontológica.
- Proponho o Doutor Anacleto Guimarães.
275
A aprovação foi geral e o dentista de broca de pé sacudiu a cabeça
satisfeito com o pronunciamento .
- Mas como uma boa Comissão deve ter três membros, em meu
nome e nos dos meus companheiros, indico a pessoa do Vice-Prefeito
para terceiro membro.
A aprovação foi outra vez geral .
- ótimo ! Entrego ao Doutor Guimarães a incumbência de ser o
Tesoureiro . Todas as quantias arrecadadas ficarão sob a custódia do
Doutor Guimarães . A Comiss ão percorrerá as fábricas , todas , e as
principais casas de comércio, somente as principais , faço empenho de
encarecer, salvo se outras , menores, espontaneamente se ofereçam.
Cada membro deverá obrigatoriamente passar recibo d a importância
doada, que servirá de documento hábil para efeito de justificação junto
ao Imposto de Renda. Se por acaso receberem em cheque, devem
descontá-lo logo . Doutor Guimarães terá, em livro especial e devida­
mente rubricado, as entradas rigorosamente atualizadas e nominais ,
mas na Caixa não cabe nomes . - Subiu ao tom oratório : - O
dinheiro deve ser anônimo ! O que é dado para fins altruísticos n ão
pertence mais a quem deu, transforma-s e em bem comum, em gene­
roso patrimônio a ser dividido pelos que, sem discriminações , neces­
sitem ser amparados e com isso saneados estarão muitos campos de
conflito social que a ninguém interessam! - Retornou ao coloquial :
- Contudo a campanha da Comiss ão ficaria incompleta se não ape­
lássemos para a cooperação das damas , cujo espírito caritativo e c apa­
cidade de ação piedosamente achacadora, sej amos francos, são infini­
tamente superiores ao s exo forte. ( Risos . ) Para pleno êxito do nosso
empreendimento, criemos, por conseguinte, um Comitê Feminino, que
poderia, a critério próprio, s e subdividir em vários outros, a fim de
mais p rontamente obter os resultados que almejamos . ( Alguns aplau­
sos . ) Proponho para Presidenta do Comitê a Excelentíssima esposa
do Juiz de Direito .
- Infelizmente sou viúvo - declarou, compungido, o magistrado.
- Com mil perdões ! - e o capitão curvou-s e como se apresentasse
atrasadas condolências . - Então sugiro que a presidência do Comitê
recaia na s enhora do Vice-Prefeito . ( Palmas . ) Assessorada p ela
esposa do Doutor Guimarães e pela esposa do deputado Magalhães .
( Mais palmas . ) Creio que é um Comitê de escol. ( Ainda mais pal­
mas . ) Caberia às damas conseguir com a sua gentil e infalível lábia
( Risos . ) gêneros alimentícios, remédios , brinquedos velhos, roupas
us adas e jóias . Quanta roupa usada n ão está atulhando inutilmente
armários e gavetas? Quantos brinquedos quebrados ou abandonados
p ela gurizada não estão atravancando quartos de guardados? Quantos
pares de brincos n ão ficaram reduzidos a um só, quantos anéis há nos
escrínios e que não mais s ão usados, quantas correntinhas e pulseiras
não estão partidas , quantos broches quebrados , quantas medaihas s em
a argolinha? ! . . . E tudo isso, que está esquecido ou superado, tem

276
valor. Verão que tem valor! Dentro de poucos dias faremos um primeiro
leilão, numa das belas praças da cidade, e a generosidade guarantim­
bense poderá se evidenciar, arrematando tais berloques com espírito
filantrópico, numa emulação que só poderá ser bem vista aos olhos
de Deus . Os gêneros e as roupas conseguidas poderão ficar arma­
zenados na casa do senhor Vice-Prefeito. Quanto às jóias, já que
s ão valores, modestos que sej am, ficarão entregues ao Doutor Guima­
rães , devidamente arroladas em livro adequado . E agora, tendo dito
o que pretendia, peço desculpas se me alonguei demasiadamente e
vamos meter mãos à obra ! B o a noite, s enhores !
O Capitão Arquimínio conquistou a praça . O Comitê Feminino -
Dona Consuelo, Dona Maria da Glória Guimarães e Dona Estelinha
Magalhães - parlamentou animadamente com ele, traçando grandes
planos assistenciais , e foram dois dias de febril entusiasmo e arreca­
dação . Doutor Estêvão Costa, Anacleto Guimarães e o deputado
Magalhães -=--- logo chamados de "Os Três Mosqueteiros" - arranca­
ram dinheiro de quem podia e de quem não podia. A residência do
Vice-Prefeito parecia um armazém e Dona Consuelo mais despótica s e
mostrava; Doutor Guimarães suspendeu os clientes , n ã o tinha mãos a
medir, e Dona Maria da Glória não parava um minuto em casa. Na
noite do segundo dia, o capitão marcou o primeiro leilão, que seria
na Praça Rui Barbosa, o leiloeiro em palanque especial, circundado
de escoteiros , e o maestro Fidó, na concha acústica, regendo a Filar­
mônica, também gaiatamente conhecida como "A Furiosa" . Para maior
brilhantismo, a Luz e Energia compareceria com a mais feérica ilutrJ.i­
nação possível.
- Quero muitas lâmpadas coloridas ! - intimava o capitão .
- Vai tê-la s! - garantia o diretor da empresa, que assinara pol-
pudos cheques em nome dela c em seu próp rio nome.

No dia do leilão, marcado para as 8 da noite, a lufa-lufa era grande,


e por volta das 5 o capitão mandou que Sargento Cabral fosse buscar
Genésio no Hospital . Veio ainda meio mole, mas positivamente satis­
feito .
- Está melhor do massacre, meu amigo? - perguntou o capitão
com um sorriso .
- Ainda sinto minhas dores , mas estou.
- Ainda bem . Tenho um serviço para você. Sabe dirigir auto-
móvel?
- Sei .
- Tanto melhor. Pegue o fusca vermelho que está aí na porta -
e deu-lhe a chave do carro - vá em casa, arrume sua mala, bem
arrumada que é viagem para demorar, rape o dinheiro que puder e às
6 e pouco se mande para a estrada de Varzeópolis, pela rua de baixo,
de maneira que não se faça notar muito . Já n ão encontrará sentinela

277
lá. A um quilômetro da cidade, encoste o fusca e espere. Lá irei,
não se preocupe com a demora. Saberá, então, o que irá fazer depois.
Tem algum inconveniente?
- Nenhum! - e os olhos de Genésio fulguraram.
- Então, vá em frente. E boca fechada, hem !
- Não precisa dizer . . . Boca de siri!
E logo o Tenente Adelmar foi enviado com recado para o Doutor
Guimarães - que aguardasse a visita ; iria procurá-lo entre 6 e 7
horas e que não saísse sem que ele chegasse.
Sargento Cabral! - chamou.
- Pronto, capitão !
- Hoje mande render a guarda das estradas mais cedo. Retire
o soldado da estrada de Varzeópolis . Vou fazer uma experiência.
Quanto à rendição dos homens na Telefônica, no Telégrafo e na Rádio,
deixe-a a cargo do Tenente Walfrido . Entendido?
- Entendido !
- Vou dar uma volta na Praça Rui Barbosa para ver como andam
os preparativos para o leilão . Combinaremos mais tarde o policiamento
da festança. Vai ser uma festança que deixará saudades . . .

As 6,30 Tenente Walfrido apareceu no Correio, dispensou o soldado


e os postalistas para comparecerem à festa, prendeu o telegrafista na
privada imunda e destramente cortou os fios telegráficos ; bateu para a
Telefônica, mandou o soldado e os empregados embora - Vão para
a festa, que vai ser de arromba! - e inutilizou a mesa telefônica; daí,
dirigiu-se à Rádio, prendeu o pessoal numa sala, ordenou que o sol­
dado se recolhesse ao quartel e arrebentou com quanta aparelhagem
encontrou. Feito isto, tocou a caminhonete para a estrada de Varzeó­
polis, onde já encontrou Genésio, fumando, de olho na estrada, e que
logo perguntou :
- E o capitão? !
- Está chegando. Não demora.
Era um quarto para as 7, quando o capitão e o Tenente Adelmar,
que portava uma maleta, chegaram à casa do cirurgião-dentista, cujo
cheiro de ácido fênico se sentia ao abrir a porta :
- A senhora está?
Guimarães era todo sorrisos e mesuras :
- Não, capitão . . . Está rodando por aí. - Riu : - Não pára
mais em casa . . . Estou sozinho. Nem a criada está. Foi trafegar com
mand ãdos da Maria da Glória . .
··-

- Tanto melhor . . . Tanto melhor . . . Senhor Tesoureiro, vamos


conferir a caixa. - Puxou o revólver : - Se não quer morrer, fique
calado.
Guimarães não relutou. Num relance a maleta estava cheia do
dinheiro, das jóias e mais alguns haveres do dentista.
278
- O doutor é um admirável Tesoureiro ! . . . Mas vamos meter uma
bucha nesta boquinha e amarrá-lo no consultório muito bem amar­
radinho . . . Seguro morreu de velho . . .
E foram se encontrar com Tenente Walfrido e Genésio. O sol se
escondia na serra, quando chegaram. Não perderam tempo - atra­
-
vessaram o fusca e a caminhonete na estrada, espalharam estopa em
baixo deles, ensoparam tudo de gasolina, tocaram fogo .
- Cortada a retirada! - riu o capitão .
- Vamos sair de , perto pois poderão explodir logo ! - avisou
Adelmar.
- Vamos ! - gritou o capitão. - E você vai também, amigo Ge­
nésio. Se ficar aqui não dou um tostão furado por seu esqueleto nas
unhas de Zéfredo ! Ele não tem boas entranhas . . .
Entraram no jipão, Walfrido tomou a direção, partiram a toda
brida, o ar era puro capim-gordura. Rodaram umas três horas, entra­
ram numa cidadezinha adormecida, encostaram o carro na estação
deserta.
- Agora vamos nos separar, amigo Genésio. Pegue um trem aqui
e tome o rumo que quiser. Ande sempre de trem. Não se meta em
ônibus. Onibus é uma espécie de beco sem saída.
- Seguirei o conselho . . . Vou me enfiar em casa de uns parentes
no Espírito Santo.
- Que o Espírito Santo te proteja . . . Você, Genésio, é um bom
camarada. Simpatizamo-nos com você.
- Obrigado . O mesmo aconteceu comigo. Vocês são uns anjos !
E chegaram na hora . . .
E saímos na hora . . .
- Sim. E para onde vão?
- Vamos fazer outra praça.
Genésio riu :
- Qual?
Walfrido deu arranque no motor :
- Segredo profissional.

O BILHE TE *

DIANTE no CAVALETE cambaio e sujo por mil dedadas de tinta, olhou


a tela inacabada - tantos vermelhos, o fundo confuso, a composição
sem nexo - mais uma tentativa inútil! Mais uma! Que vazio ! Estava
de sandália e camisa rasgada. Esmagou no cinzeiro de pedra-sabão
comprado com Heloísa em Ouro Preto, nos primeiros tempos, algo

*
Publicado em Ele Ela ( 1 966 ) .
279
passeadores, da ligação, foi mais uma vez à j anela - as árvores estavam
empoeiradas pela longa estiagem, a nesga entre os edifícios era uma
fresta para o mar e para o parque do Aterro, e nada da figurinha espe­
rada, esguia, gentil, de fino andar. Voltou para o sofá-cama de afun­
dadas molas, deu uma centésima olhada à velha pêndula, tão velha
e tão regular, incansável coração metálico que o acompanhava há
tantos anos. Seis horas e quinze já e ela tardava. Saía às cinco do
escritório no Castelo . Por mais difícil que estivesse o trânsito , meia
hora daria - s empre deu ! - para chegar ao apartamento de quarto
e sala, misto de ateliê, naquele recanto do Flamengo . Aquilo o irri­
tava profunda e surdament e . N ão era a primeira, nem a s egunda vez
que acontecia . Vinha s e tornando quase uma constante. Que des­
culpa daria desta vez? Não era ciúme, não se sentia passado para trás,
tinha absoluta confiança nela, mas agoniava-o aquela mudança de pro­
cedimento que não conseguia explicar e que prenunciava uma nuvem
maior, que não trouxesse tempestade, talvez, m as que toldasse a clari­
dade da sua vida - sim, Heloís a era uma luz para ele, como podia
ser um farol para o pescador perdido . Curtir, pacífica, as várias ,
quotidianas privações - as vendas eram escassas e mal pagas -,
não lamentava seus insucessos, confiava na sua vitória, ouvia entu­
siasmada as suas compridas, exaltadas preleções sobre o que fazer
e como fazer, sobre temáticas e materiais , incentivava-o com calor, e
achava belas e honestas as coisas que pintava. Três anos se passaram
assim, mas ultimamente . . .
Afinal ela chegou :
- Olá, bem !
Nem quis consultar a pêndula para fixar a hora exata, como mais
um elemento para a sua secreta queixa e reprovação ; vencia-o a afli­
ção de saber logo que desculpa esfarrapada ela trari a na ponta da
língua e contra as quais nada dissera até então - excesso de trabalho,
dentista, costureira, calista, convers a com uma amiga . . .
- Que houve?
- Na última hora, um monte de contratos para bater e xerografar
- e jogou a bols a sobre . a mesa redonda de j acarandá de múltipla
serventia.
Aceitou-a sem relutância :
- Mas aqueles desgraçados s ó têm contratos para bater n a hora
de s air?
- Nem mais, nem menos. São os cavacos do ofício .
- Devia reclamar. Não fazer. Você não é uma escrava!
- Talvez, quem s abe? Mas que adianta a liberdade sem o emprego?
- E ele fez uma tal careta de desprezo, que ela ajuntou, nsonha : -
Você me arranj aria o dinheiro que ganho? Arranjaria? Afinal n ão é
lá tanto assim . . .
- Não me venh a com ironias ! B em que podia arrumar outra
colocação menos . . . menos escravizadora.

280
- Talvez pudesse. Porém não s eria fácil . Tenho minha prática.
Há mais s ecretárias do que patrões . . . Melhor é ficar com estes
mesmos, aturando as chatices . E não só h á inconvenientes, fique
s ab endo . Há compensações também.
- Eu imagino que grandes compensações ! . . .
- Não precisa gastar tanta suficiência, meu filho. Ê inútil ! Eu cá
é que sei a linha com que me coso . Não sou tão parva que n ão avalie
as compensações. Afinal não foi o meu único emprego . Há uma
conveniência, especialmente, que você ignora : me respeitam!
Não que ela fos s e excepcional esgrimista, mas ele foi tocado no
ponto sensível :
- Tinha graça que ainda fossem conquistadores . Aí era hora de
eu entrar em cena!
Sabia-o de quanto era capaz - foi muito calma, quase meiga :
- Acha que me queixaria a você? Não ! Perdoe, mas não preci­
saria. Sei me defender.
Ele embatucou - não ignorava o quanto era corajosa, séria, ciosa
dos seus deveres , inabordável a conquistadores baratos. Ela não deixou
o silêncio se prolongar - os silêncios s ão traiçoeiros . E, sem olhar
para trás, muito empertigada, encaminhou-se para o pequeno banheiro
muito desarrumado :
- Preciso duma boa chuveirada.
Tirou o vestido estampado , que precisava mandar para a tinturaria
- estava simplesmente podre ! Não houvera expediente extra nenhum,
por exceção até fora um dia em que tivera muito pouco s erviço, quase
uma pasmaceira. Às cinco horas em ponto saíra e ficara flanando pelas
ruas congestionadas, anestesiando-se com o enchimento sempre sedutor
das vitrines, dando uma olhadela na b anca do j ornaleiro, tomara um
refresco no Bob's, esticando a hora i nevitável de voltar para a casa
que há três anos era a sua. Tirou o soutien, mirou-se nua no grande
espelho pregado à porta - era muito magra, os seios pequeninos ,
as pernas demasiado finas -, tirou a diminuta calcinha, enfiou-se no
boxe de encardidos ladrilhos , colocou a touca de plástico - um
b anho frio a estimularia por certo .
Seu casamento fora mal sucedido, por culpa exclusiva do marido
- um aventureiro - e dois anos após estava desquitada, desquite
amigável e nunca mais soubera do ex-consorte, de quem não guardava
maiores rancores e que fora para São Paulo continuar sua visceral
carreira de tratantadas . Muito orgulhosa, recusara a pensão, mesmo
porque que pensão poderia esperar de tal traste? Ver-se livre dele
já era um ótimo n egócio - vão-se os anéis, ficam os dedos . . .
Como trabalhava, esforçou-se mais ainda, s egura de que no trabalho
encontraria paz, sustento, independência de ação, uma afirmação enfim
de personalidade. Mas a vida nem s empre se pode fazer sozinha.
Conheceu Oscar numa exposição .

28 1
Ele não expunha, mas com que aguda vivacidade e ironia criticava
o exposto! Com o dedo inquisidor apontava as imperfeições, os
canhestrismos, os truques, as escamoteações . Cada peça recebia o seu
quinhão depreciativo - a Arte tem que ser séria, pesquisada, calculada,
minha amiga, com o cimento da comunicação, porque a comunica­
ção . . . E não parecia amargo mesmo. Ria com bons dentes :
- Está tudo errado, minha cara! São uns anjinhos todos eles, com
o olho nos marchands, mas na verdade na unha deles . . . Não s abem
nem escolher molduras . Aceitam tudo. Veja como elas brigam com
os quadros! É uma verdadeira guerra!
Convidada, aceitou, a noite estava quente, e foram tomar uns chopes
na famosa e imunda cervejaria da Praça General Osório, onde ele
cumprimentou muita gente com gestos um tanto uniformes e com
um perceptível toque de superioridade. Oscar se vestia com colorida
informalidade, mais como um ingênuo rapazola, quando já passara
dos quarenta. O cabelo era enorme e desgrenhado como se jamais
tivesse visto pente ; as costeletas cerradas e largas vinham quase ao
queixo ; o bigodão cobria a boca e toda a pilosidade já com prema­
turos e não poucos fios prateados.
- Por que você não usa paletó e gravata?
- É anacrônico, quadrado.
É decente.
- Você me acha indecente? ·
- Não. Acho apenas que é quadrado o seu modo. O quadratismo
não está em se abolir paletó e gravata e não cortar o cabelo . O
quadratismo é assunto menos superficial.
Ele ria :
- Você parece uma velha de trinta anos . . .
- De trinta e um . . . Mas é menos desfrutável que pretender
ser um jovem de quarenta.
Passaram a se encontrar todas as noites . Iam muito ao cinema -
e ele era apaixonadamente versado em cinematografia, analisando os
filmes com uma minúcia exaustiva, descobrindo sutilezas onde ela
não conseguia encontrar nada de especial. Iam ao teatro - e ele
sempre criticava os cenários e a indumentária. Freqüentavam pe­
quenos bares e restaurantes modestos - e ele bebia comedidamente,
mas comia com modos pouco requintados e apressados , tratando o
garfo e a faca como objetos desprezíveis . Ora abraçados, ora de mãos
dadas, faziam longos passeios pelas ruas e praias noturnas, numa paro­
lagem extremamente agradável para ela.
Uma vez perguntara sinceramente curiosa :
Por que você não pinta retratos?
- É assunto superado. Não faltam fotógrafos por aí e até muito
bons . Os caminhos agora são outros.
Não lhe acudiram argumentos contrários e não voltou nunca mais
à questão .

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Doutra feita protestou contra um colar de couro que ele trazia :
- Feminil e cafajeste!
- Falou, está falado ! - e num gesto teatral e engraçado arrancou-o
do pescoço e jogou-o no mar do alto das pedras rlo Arpoador. -
Iemanjá vai pensar que é oferenda . . .
- E cobrirá você de favores . . .
Insinuante :
- Um bastava . . .
- Tudo é possível - retrucou ela alegremente.
Acreditava nele. Na sua honestidade, na sua intransigência, nos seus
propósitos - sabia falar, fluente, desembaraçado, mas repisava muito
certos conceitos, como se, no íntimo, duvidasse do que afirmava. Ao
cabo de dois meses e pouco não resistiu e deixou o quarto que alugava
em casa amiga, no Lido, e foi morar com ele, que era solteiro .
Não me amarrei porque fiquei esperando por você . ..

E se eu não chegasse?
Dava-se um jeito . . .
Ainda bem que confessa!
Acordava feliz, sempre em cima da hora. Às pressas engolia o
café para não chegar atrasada no escritório - tchau! Ele ficava
dando duro nos pincéis, um cheiro oleoso de tinta dominava o am­
biente. Aliás era madrugador. Quando ela despertava, já encontrava
o café feito por ele, que de muito estava diante do cavalete, outras
vezes sobre a prancha desenhando com a testa franzida : o desenho
é o esqueleto da coisa, minha querida. Sem esqueleto o corpo não
fica em pé.
Acabou por perceber melancolicamente que quem não ficava em
pé era ele próprio . Não conseguia se impor aos donos de galerias,
mesmo os mais modestos, embora não se cansasse de freqüentá-las,
presença obrigatória em todas exposições, recebesse ou não convite.
Não se firmara junto ao público, ele que falava tanto em comunicação,
e, nos leilões, cada dia mais numerosos, jamais vira uma peça sua
ser arrematada, leilões onde tanta porcaria era vendida e até dispu­
tada. Só participara de mostras coletivas, com seus trabalhos mal
colocados, como se houvesse uma premeditada intenção de escondê-lo,
e fora recusado uma vez no Salão de Arte Moderna, corte que rece­
bera com uma explosão de cólera e que o levou à decisão irrevogável
de não mais se apresentar - eram comissões compostas de calhordas,
de desmunhecados, uma panelinha da mais vil espécie! Nenhum crí­
tico o elogiava e, se raramente o citavam, era de cambulhada com
uma porção de nomes reconhecidamente inexpressivos. No Dicionário
de A rtistas Brasileiros seu verbete não ia além de cinco sucintas
linhas . . . E, pior, não parecia compreender a sua limitação, não se
entregava, pelo contrário, se empenhava mais numa ânsia de conseguir
algo sem nenhum resultado positivo, defendendo o seu suado labor
com infindáveis arengas que tinham ela como único ouvinte. Como
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as mãos se distanciavam do c é rebro ! Que abismo havia entre o sonho
e a realização ! Léguas de abismo ! Ele se atormentava e ela sofria,
conquanto não se manifestasse senão JXlr palavras carinhosas de estí­
mulo, mas
- que iam diminuindo sensivelmente pela crescente convicção
de que nada adiantariam. Uma decepção, então, calara fundo nela e
foi como gota que enche o cálice da desilusão : Oscar deixara-lhe um
bilhete, pois tivera que sair e avisava que chegaria tarde. Aquelas
poucas linhas, salpicadas de erros de ortografia e de concordância,
pareciam a primária redação de um colegial medíocre e desatento. Com
um gesto piedoso rasgara o triste testemunho, mas o texto vinha-lhe
dolorosa e freqüentemente ao pensamento, sem que encontrasse ne­
nhuma desculpa para o rabiscador.
Vestiu o roupão sobre a pele ainda úmida e saiu do banheiro . Sobre
a estante, com os livros em desordem, estava a conta da luz. Pegou-a,
leu-a com atenção e disse com toda naturalidade :
- Vence-se amanhã, Oscar.
Ele, do sofá-cama, cofiando a bigodeira, levantou os olhos :
- É. Não se afobe. O papai aqui dará um jeito. Vou falar amanhã
com o David. Ele tem um freguês em perspectiva. Que perspectiva
coisa nenhuma! Certo ! E pode me adiantar uns trocados.
Ela conhecia de sobra a marca dos fregueses certos que David -
da Galeria Arte Viva - arranjava :
- Não precisa. Deixe comigo. Não estou dura. Mandarei o boy
pagar logo cedo.
- Está bem. Você é um anjo! Mais uma vez : obrigado.
Ela deixou a conta no lugar onde a encontrara, depois avançou para
a cozinha mínima com uma pilha de quadros na prateleira, encalhe
duma larga produção, pois as paredes se tornaram poucas para pen­
durá-la:
- Vamos tratar do jantar.
- Que teremos?
- Macarrão e salsichas. Não está bem?
- Está ótimo, Helô ! Mas antes venha cá.
Ela foi. As almas se cansam. A dela estava cansada. Mas não se
opôs. Foi uma entrega insossa e triste. E beijou-o - pobre artista
fracassado!

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Este livro
foi composto e impresso nas oficinas gráficas da
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Rua do Cadete, 209, São Paulo, para a
LIVRARIA JOSÉ Ü LYMPIO EDITORA,
Rua Marquês de O linda, 1 2 ( B o t afogo ) , Rio,
em março de 1 977

111
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