Você está na página 1de 56

"Porque sei que o tempo é sempre o tempo...

E que o espaço é sempre o espaço apenas".

T.S. Eliot
Quarta-feira de cinzas.

A primeira imagem
de que ele me falou...

foi a de três crianças


em uma estrada...

na Islândia, em 1965.

Ele disse que, para ele,


era a imagem da felicidade.

Ele tentara várias vezes


associá-la a outras imagens...

mas não conseguira.

Ele me escreveu:
Preciso colocá-la sozinha...

no início de um filme,
com uma tarja preta.

Se não virem a felicidade


na imagem...

ao menos verão o preto.

SEM SOL

Ele me escreveu: Volto


de Hokkaido, a ilha do norte.

Os japoneses ricos
e apressados tomam o avião.

Os outros tomam a barca.

A espera, a imobilidade,
o sono interrompido...

trazem-me de volta uma guerra,


passada ou futura:

trens noturnos, alarmes,


abrigos atômicos...

fragmentos de guerra
encaixados na vida corrente.

Ele amava a fragilidade


desses instantes suspensos...

essas lembranças
que serviam apenas...

para deixar lembranças.

Ele escreveu: Após dar


voltas ao mundo...

só a banalidade me interessa.

Eu a procurei, nesta viagem...

persistente como um
caçador de recompensas.

De madrugada,
chegaremos a Tóquio.

Ele me escreveu da África.

Ele opunha o tempo africano


ao europeu...

mas também ao tempo asiático.

Dizia que no séc. 19


a humanidade...

acertara as contas
com o espaço.

O desafio do séc. 20
era a coabitação do tempo.

A propósito, souberam dos


tumultos em Ile de France?

Contou que nas ilhas Bijagos


as moças escolhem o noivo...

e que nos arredores


de Tóquio...

há um templo
dedicado aos gatos.

Eu quisera saber falar


da simplicidade...

da ausência de afetação
daquele casal...

que veio depositar


no cemitério dos gatos...
uma caixa de madeira
coberta de caracteres.

Assim, sua gata Tora


estaria protegida.

Não, ela não morrera,


apenas fugira...

mas quando morresse


ninguém saberia orar por ela...

pedir à morte que


a chamasse por seu nome.

Então, era preciso que


eles viessem, sob a chuva...

cumprir o ritual que cerziria


o tecido esgarçado do tempo.

Ele escreveu:

Eu passaria a vida a indagar


sobre a função da lembrança...

que não é o oposto do


esquecimento, mas seu avesso.

Nós não lembramos, recriamos


a memória, como recriamos a história.

Como se lembrar da sede?

Ele não amava deter-se


sobre o espetáculo da miséria...

mas em tudo que


queria mostrar do Japão...

havia também os rejeitados


do Modelo.

Um mundo de miseráveis,
de bêbados, de coreanos.

Muito drogados,
eles se embebedam de cerveja...

de leite fermentado.

Esta manhã, em Namidabashi,


a 20 minutos do centro rico...

um cara se vingava da sociedade


dirigindo o trânsito.
O luxo, para eles, seria uma dessas
grandes garrafas de saquê...

que se despejam nos túmulos


no dia de Finados.

Eu fiz o tour do bistrô


de Namidabashi.

Esse tipo de lugar permite


a igualdade do olhar.

Sob esse teto todo homem


é igual ao outro...

e sabe disso.

Ele me falou da corrida


para embarcar...

na ilha do Fogo, em Cabo Verde.

Há quanto tempo eles estão


ali, à espera do barco?

Pacientes como pedras,


mas prontos para avançar.

É um povo de errantes,
de navegantes...

de viajantes pelo mundo.

Formou-se de mestiçagem,
nestes rochedos...

pausas dos portugueses


entre as colônias.

Povo do nada, povo do vazio...

povo vertical.

Francamente!

Existe algo mais ridículo


para se dizer às pessoas...

como se ensina
nas escolas de cinema...

para não olharem para a câmera?

Ele me escreveu:

O Sahel não é só o que nos


mostram quando é tarde demais.
É uma terra onde a seca
se infiltra...

como a água num barco furado.

Os animais, revividos
durante o carnaval em Bissau...

serão encontrados
petrificados...

quando outra onda transformar


uma savana em deserto.

É o estado de sobrevivência
que os países ricos esqueceram...

com exceção apenas,


você já adivinhou, do Japão.

Meu contínuo vai e vem


não é procura de contrastes...

é uma viagem aos dois


extremos da sobrevivência.

Ele me falou sobre


Sei Shônagon...

dama de honra da princesa


Sadako, no séc. 11...

no período de Heian.

Sabe-se lá onde se faz


a História!

Os governantes governavam...

afrontavam-se em estratégias
complicadas.

Mas o poder pertencia a uma


família de regentes hereditários.

Na corte do Imperador,
apenas intrigas e diversão.

E esse pequeno grupo


de ociosos...

deixou na sensibilidade
japonesa...

um traço mais marcante...


do que todas as imprecações
da classe política...

levando a tirar da contemplação


das menores coisas...

um tipo de reconforto
melancólico.

Shônagon tinha mania de listas:

lista das coisas elegantes...

das coisas tristes...

ou das coisas que


não valia a pena fazer.

Fez, até, a lista das coisas


que fazem bater o coração.

Não é um mau critério,


eu percebi isso ao filmar.

Eu saúdo o milagre econômico,


mas o que eu quero mostrar...

são as festas de bairro.

Ele me escreveu:

Eu volto pela costa de Chiba.

Eu penso na lista de
Shônagon...

em tudo que basta citar


que o coração bate.

Apenas citar.

Para nós, o sol só é sol


se estiver brilhante...

uma fonte, só se for límpida.

Aqui, adjetivar equivale


a colocar nas coisas etiquetas...

com o seu preço.

A poesia japonesa
não qualifica.

Há um modo de dizer
barco, rochedo, nevoeiro...
rã, urubu, granizo,
garça, crisântemo...

que os abrange a todos.

A imprensa está falando


de um homem de Nagoya.

A mulher que ele amava


morreu no ano passado.

Ele mergulhou no trabalho,


à japonesa, como louco.

Parece, mesmo, que fizera


uma descoberta importante...

em eletrônica.

E, no mês de maio,
ele se matou.

Diz-se que ele não suportava


ouvir a palavra primavera.

Ele me narrava seu reencontro


com Tóquio.

Como um gato que examina


a casa, ao voltar das férias.

Ele ia ver se tudo


estava no lugar.

A coruja de Ginza,
a locomotiva de Shimbashi...

o Templo da Raposa, no alto


da grande loja Mitsukoshi...

que ele encontrava tomado


por garotas e roqueiros.

Ele soube que eram as garotas


que davam e tiravam o sucesso.

Que os produtores tremiam


diante delas.

Disseram-lhe que uma mulher


desfigurada...

tirava a máscara diante


dos passantes e os agredia...

se eles não a achassem bela.


Tudo lhe interessava.

Ele, que nem olharia


um gol de Platini...

ou uma vitória
em corrida de cavalos...

interessava-se pela
classificação de Chiyonofuji...

no último torneio de sumô.

Ele pedia notícias


da família imperial...

do príncipe herdeiro,
do antigo gângster japonês...

que aparecia na TV ensinando


bondade às crianças.

As alegrias simples
da volta ao país...

ao lar, à casa da família,


que ele ignorava...

doze milhões de pessoas


anônimas poderiam dar-lhe.

Ele me escreveu:

Tóquio é uma cidade


cortada por trens...

costurada por fios elétricos.


Ela mostra suas veias.

Diz-se que a TV produz


analfabetos.

Mas eu nunca vi
tanta gente lendo na rua.

Talvez só leiam na rua...

ou, então, apenas finjam


que leem.

Eu voltei a Kinokunya,
a livraria de Shinjuku.

O gênio que permitiu ao Japão


inventar o cinemascópio...

dez séculos antes do cinema...


compensa a triste sorte
das heroínas dos gibis...

vítimas de desenhistas malvados


e de uma censura castradora.

Às vezes, elas me escapam...

e são encontradas nas paredes.

A cidade toda é um gibi.

É o planeta Mongo.

Como não reconhecer


essa estatuária...

que vai do barroco plastificado


ao lascivo-staliniano...

e esses rostos gigantes


cujo olhar pesado sentimos?

Pois aqueles que os olham


são também olhados...

por imagens maiores


do que eles.

Ao anoitecer, a megalópole
se divide em vilas...

com seus pequenos cemitérios


à sombra dos bancos...

suas estações e seus templos.

Cada bairro de Tóquio


volta a ser uma aldeia...

simples e limpa...

que se esconde entre as patas


dos arranha-céus.

O barzinho de Shinjuku lhe


lembrava uma flauta indiana...

cujo som só é ouvido


por quem a toca.

Ele poderia gritar, como


em Godard ou Shakespeare.

Mas de onde vem esta música?


Mais tarde, ele me contou...

ele jantou em um restaurante


de Nishi-Nippori...

onde o Sr. Yamada pratica


a arte da "action cooking".

Ele disse que só de observar


o Sr. Yamada...

e seu modo de misturar


os ingredientes...

poder-se-ia meditar sobre


noções fundamentais...

comuns à pintura, à filosofia


e às artes marciais.

Para ele, o Sr. Yamada


possuía...

e de modo admirável,
porque agia com humildade...

a essência do estilo...

e que, por consequência,


cabia a ele...

naquele primeiro dia


em Tóquio, colocar...

com seu pincel invisível,


a palavra FIM.

Eu passei o dia diante da TV,


caixa de lembranças.

Estive em Nara, em companhia


dos cervos sagrados.

Tirei uma foto...

sem saber que no séc. 15


Bashô escrevera:

"O salgueiro enxerga invertida


a imagem da garça."

O texto publicitário
parece um haikai...

aos acostumados às infâmias


ocidentais nesse domínio.
Não compreender
aumenta o prazer.

Eu tive a impressão um tanto


alucinatória de entender...

como o Sr. Fenouillard...

mas era um programa cultural


da NHK sobre Nerval.

São 8:40 no Camboja.

De Rousseau ao Khmer
vermelho...

coincidência ou sentido
da História?

Em "Apocalipse" Brando
dizia frases definitivas...

e incomunicáveis:

"O horror tem um nome


e um rosto.

É preciso fazer do horror


um aliado."

Para exorcizar o horror


que tem rosto e nome...

é preciso dar-lhe
outro nome e outro rosto.

Os filmes de terror
japoneses...

têm a beleza suspeita


de alguns cadáveres.

Fica-se, às vezes, pasmo


de tanta crueldade.

Procura-se a fonte na longa


intimidade com o sofrimento...

que exige que até a dor


seja enfeitada.

E depois vem a recompensa:

na derrota dos monstros,


a premissa de Natsume Masako.

A beleza absoluta também tem


um nome e um rosto.

Mas quanto mais se vê


a TV japonesa...

maior é a sensação
de ser visto por ela.

Que a mágica da objetiva


está no centro de tudo...

até o jornal televisivo


o confirma.

Estamos em tempo de eleição.

Os vencedores pintam de preto


o olho vazado de Daruma...

o espírito da sorte.

Os vencidos, despeitados,
deixam-no zarolho.

As imagens mais indecifráveis


são as da Europa.

Eu vejo a imagem de um filme...

cujo som virá apenas depois.

Na Polônia, levou seis meses.

Nenhuma dificuldade, porém,


com os terremotos locais.

Mas o de ontem à noite me


ajudou a decifrar o problema.

A poesia nasce da insegurança:

judeus errantes...

japoneses com medo.

Vivendo sobre um tapete prestes


a ser puxado pela natureza...

habituaram-se a evoluir em um
mundo de aparência frágil...

fugaz, mutável...

Trens que voam


de planeta em planeta...

samurais que lutam


em um passado imutável...

isso se chama
instabilidade das coisas.

Eu fiz o caminho todo,


até os programas noturnos...

ditos programas para adultos.

A mesma hipocrisia dos gibis,


mas codificada.

A censura não é a mutilação


do espetáculo...

ela é o espetáculo.

O código é a mensagem.

Ele mostra o absoluto


escondendo-o.

É o que as religiões
sempre fizeram.

Havia um rosto novo entre


os rostos das ruas de Tóquio:

Havia um rosto novo entre


os rostos das ruas de Tóquio:

o rosto do Papa.

Tesouros que nunca


tinham saído do Vaticano...

foram expostos no 7o. Andar


da loja Sogo.

Ele me escreveu:

A curiosidade e um laivo de
espionagem industrial nos olhos.

Eu os imagino lançando,
em dois anos...

uma versão mais barata


e melhor do Catolicismo.

Mas também a fascinação


que exerce o sagrado...

mesmo o dos outros.

Então, quando será a exposição


no 3o. Andar da Samaritaine...

dos símbolos sagrados japoneses


como os vemos em Josankei...

na Ilha de Hokkaido?

No início, sorrimos nesse


lugar que é um museu...

uma capela e um sex shopping.

No Japão, são muito estreitas


as paredes entre os reinos...

permitindo ver a um só tempo


uma escultura...

comprar uma boneca inflável...

e oferecer à deusa da
fecundidade a moedinha...

que sempre acompanha


suas imagens...

que tornariam incompreensíveis


os artifícios da TV...

se ela não dissesse


que um sexo só é visível...

quando separado de um corpo.

Gostaríamos de acreditar
num mundo anterior ao pecado...

inacessível ao puritanismo...

do qual a ocupação americana


impôs um simulacro...

onde as pessoas que se reúnem


em torno da fonte votiva...

e a mulher que a toca


num gesto amigável...

participam da mesma
inocência cósmica.

A segunda parte do museu,


com animais empalhados...

seria o Paraíso Terrestre


como sempre o sonhamos.
Não tenho certeza.

A inocência animal pode ser


para burlar a censura...

ou pode ser o espelho de


uma reconciliação impossível.

E mesmo
sem o pecado original...

o paraíso terrestre pode ser


um paraíso perdido.

Sob o esplendor dos


gentis animais de Josankel...

eu leio o corte fundamental


da sociedade japonesa...

que separa os homens


das mulheres.

Na vida, ele parece


manifestar-se de dois modos:

o crime sanguinário
ou uma discreta melancolia...

próxima daquela de Shônagon...

que os japoneses exprimem


com uma só palavra...

aliás intraduzível.

E esse nivelamento
do homem ao animal...

contra o qual bradavam


os Pais da igreja...

torna-se o desafio dos animais


à pujança das coisas...

a uma melancolia
que posso descrever-lhe...

copiando um texto
de Samura Koichi:

Quem disse que o tempo


cura todas as feridas?

Seria melhor dizer que o tempo


cura tudo...
exceto as feridas.

Com o tempo, a ferida da


separação perde os contornos.

Com o tempo...

o corpo desejado
não existirá mais...

e se o corpo que deseja cessou


de existir para o outro...

o que resta...

é uma ferida sem corpo.

Ele me escrevia
que o segredo japonês...

essa pujança das coisas,


segundo Lévi-Strauss...

supunha a faculdade de
comunhão com as coisas...

de entrar nelas,
ser elas num momento.

Era normal que, por sua vez,


elas fossem como nós...

transitórias e imortais.

Ele me escreveu:

O animismo é comum na África,


e mais raro no Japão.

Que crença, então, é essa de que


qualquer fragmento da criação...

tem seu correspondente


invisível?

Ao construir uma usina


ou edifício...

começa-se por apaziguar


o deus do terreno...

com uma cerimônia.

Há uma cerimônia para


os pincéis, as panelas...

até mesmo para


os alfinetes enferrujados.

A25 de setembro, há uma...

para o repouso
das bonecas quebradas.

Levadas ao templo de Kiyomizu,


consagrado a Kannon...

a deusa da compaixão...

nossa Kwan-Yin...

as bonecas são queimadas


em público.

Eu observei os participantes.

Acho que os que viam


partir os camicases...

tinham a mesma fisionomia.

Ele disse que sobre


as imagens de Guiné-Bissau...

deveria colocar-se
uma música de Cabo Verde...

como contribuição à unidade


sonhada por Amilcar Cabral.

Por que um país tão pequeno


e tão pobre...

interessaria ao resto do mundo?

Eles fizeram
o que foi possível.

Eles se libertaram,
expulsaram os portugueses...

traumatizaram o exército
português a ponto...

de esse iniciar o movimento


que derrubou a ditadura...

e fazer crer em uma


nova revolução europeia.

Quem se lembra de tudo isso?

A História joga pela janela


suas garrafas vazias.
Estive no cais de Pidjiguiti,
onde tudo começou em 1959...

quando tombaram
os primeiros mortos na luta.

É difícil reconhecer a África


nessa névoa de chumbo...

tal como luta na atividade


lenta dos estivadores tropicais.

Deu-se a todos os líderes


do Terceiro Mundo...

após a independência,
a mesma réplica:

Agora começam
os verdadeiros problemas.

Cabral não teve tempo


de dizê-la, foi morto antes.

Mas os problemas começaram,


continuaram, e continuam.

São pouco excitantes para


o romantismo revolucionário:

trabalhar, produzir,
distribuir...

vencer o esgotamento
que segue a guerra...

as tentações do poder
e do privilégio.

Mas a História só é amarga


para os que a querem doce.

Meu problema pessoal


era mais circunscrito:

como filmar
as mulheres de Bissau?

A magia da objetiva
parecia agir contra mim.

Foi nos mercados de Bissau


e de Cabo Verde...

que encontrei a igualdade


do olhar...
e essa série de figuras tão
próximas do ritual da sedução:

eu a vejo...

ela me viu...

ela sabe que eu a vejo.

Ela me oferece seu olhar...

mas de um ângulo que parece


não se dirigir a mim...

e, afinal, um verdadeiro
olhar...

direto...

que durou 1/25 de segundo...

o tempo de uma foto.

Todas as mulheres guardam


algo de indestrutível...

e o trabalho dos homens é


evitar que elas o percebam.

Os homens africanos também


são dotados para esse exercício.

Mas se observarmos bem


as mulheres africanas...

eu não diria que


eles sempre vencem.

Ele me contou a história


do cão Hachiko.

Um cão esperava seu dono


todos os dias na estação.

Um dia, o dono morreu,


o cão não soube...

e continuou a esperá-lo
a vida toda.

As pessoas, comovidas,
davam-lhe de comer.

Após a sua morte,


fizeram uma estátua dele...
diante da qual colocam
sushis e bolos de arroz...

para que a alma fiel de


Hachiko nunca sinta fome.

Há muitas lendas de animais


mediadores em Tóquio.

O leão de Mitsukoshi guarda


o império do Sr. Okada...

amante da pintura francesa...

que comemorou em Versalhes


o centenário de suas lojas.

Eu vi, no departamento
de computadores...

jovens japoneses exercitarem


os músculos cerebrais...

como os jovens atenienses


na palestra.

Eles têm uma guerra a ganhar.

A História do futuro
contará, talvez...

a batalha dos circuitos


integrados...

no mesmo nível
de Salamine ou Azincourt.

Vou honrar o adversário infeliz,


deixando-lhe outros terrenos:

a moda masculina da estação


baseia-se em John Kennedy.

"Não pergunte o que seu país


pode fazer por você".

"Pergunte o que você


pode fazer por seu país".

Como velha tartaruga


no canto de um campo...

ele via todos os dias


o Sr. Akao...

presidente do
Partido Patriótico Japonês...
em seu carro-palanque,
condenar o complô comunista.

Ele me escreveu:

Os carros da extrema direita


com bandeiras e megafones...

fazem parte da paisagem


de Tóquio.

O Sr. Akao é o seu centro.

Acho que ele terá uma estátua,


como a do cão Hachiko...

na esquina de onde ele só sai


para falar nos campos de luta.

Ele estava em Narita


nos anos 60.

Era Roissy em Larzac.

Os habitantes lutavam contra


o aeroporto em suas terras...

e o Sr. Akao via a mão de


Moscou em tudo que se mexia.

Yurakucho é o espaço político


de Tóquio.

Eu já vi ali um bonzo rezar


pela paz no Vietnã.

Hoje, jovens ativistas


de direita...

condenam a anexação das


ilhas do norte à Rússia.

Eles ouvem que as relações


comerciais do Japão...

com o abominável
ocupante do Norte...

são mil vezes melhores


do que com o aliado americano...

que reclama da agressão


econômica.

Nada é simples.
Na outra calçada,
a palavra é da esquerda.

O oponente católico coreano


Kim Dae Jung...

sequestrado em Tóquio, em 73,


pela Gestapo sul-coreana...

é ameaçado de uma
condenação à morte.

Um grupo começou
uma greve de fome.

Jovens militantes tentam


recolher assinaturas de apoio.

Voltei a Narita no aniversário


de uma vítima da luta.

Uma manifestação irreal...

a impressão de representar
Brigadoon...

de acordar dez anos depois,


no meio dos mesmos atores...

com os mesmos policiais


em azul...

os mesmos adolescentes
de capacete...

os mesmos slogans...

as mesmas bandeirolas...

o mesmo objetivo:
lutar contra o aeroporto.

Um acréscimo apenas:
exatamente o aeroporto.

Mas com sua pista única


e as cercas que o sufocam...

ele parece mais cercado


do que vitorioso.

Meu amigo Hayao Yamaneko...

encontrou uma solução:

se as imagens do presente
não mudam...
mudemos as imagens do passado.

Tratou as imagens dos tumultos


dos anos 60 no sintetizador.

Imagens menos enganosas, diz


com a convicção dos fanáticos...

do que as que vemos na TV.

Ao menos, elas se mostram


como são, imagens...

não na forma compacta de uma


realidade já inacessível.

Hayao chama o mundo


de sua máquina de Zona...

em homenagem a Tarkovski.

Aquilo de que Narita me dava


um fragmento intacto...

como um holograma quebrado...

era a imagem da geração


dos anos 60.

Se amar é amar sem ilusão,


posso dizer que a amei.

Muitas vezes,
ela me exasperava...

eu não aceitava a sua utopia,


de unir na mesma luta...

os que não aceitam a miséria


e os que não aceitam a riqueza.

Mas ela dera o grito


primordial...

que vozes menos ajustadas


não sabiam ou ousavam dar.

Reencontrei lá os camponeses
que se encontraram na luta.

Ela tinha fracassado


no concreto.

Também, tudo que ganharam


em abertura para o mundo...
em conhecimento de si mesmos...

apenas a luta poderia


ter-lhes trazido.

Entre os estudantes, alguns


se massacraram entre si...

nas montanhas, em nome


da pureza revolucionária...

e outros estudaram tão bem


o capitalismo, para combatê-lo...

que acabaram lhe fornecendo


os maiores executivos.

O Movimento teve seus palhaços


e seus arrivistas...

inclusive os arrivistas
do martírio...

mas ele englobou os que


diziam, com Che Guevara...

que tremiam de indignação


com cada injustiça cometida.

Eles queriam dar um sentido


político a sua generosidade...

e sua generosidade duraria


mais do que sua política.

Eis por que nunca deixarei


dizerem...

que os 20 anos não são


a melhor idade da vida.

A juventude que se reúne nos


fins de semana em Shinjuku...

sabe que não está na rampa de


lançamento de uma vida real...

que ela própria é uma vida...

a consumir depressa,
como as groselhas.

É um segredo muito simples...

que os velhos camuflam


e os jovens desconhecem.
Amenina de 10 anos
que jogou a amiga do 13o. Andar...

porque ela falou mal


de sua classe...

não o tinha descoberto.

Os pais que pedem


linhas telefônicas especiais...

para evitar o suicídio


de crianças...

percebem um pouco tarde


que eles o tinham escondido.

O rock é uma linguagem global


para propagar o Segredo.

Tóquio tem outra, particular.

Para os Takenoko, 20 anos


é a idade da aposentadoria.

São bebês marcianos...

que aos domingos vou ver


dançarem no parque de Yoyogi.

Eles procuram se mostrar...

e parecem não ver


que são vistos.

Eles estão em um
tempo paralelo...

uma parede invisível os separa


da multidão que atraem.

Posso passar a tarde toda


vendo a garota que aprende...

talvez pela primeira vez,


os costumes do planeta.

Além disso, eles têm


placas de identificação...

funcionam ao sopro do apito,


a Máfia os explora...

e, exceto um único grupo


formado por garotas...

é sempre um garoto que comanda.


Um dia, ele me escreveu:

Descrição de um sonho.

Frequentemente meus sonhos


se passam nas lojas de Tóquio...

nas galerias subterrâneas


que duplicam a cidade.

Um rosto aparece, desaparece...

encontro um traço...

ele se perde...

todo o folclore do sonho tão


presente que depois, acordado...

eu percebo que continuo


procurando, nos subsolos...

a presença delineada
na noite anterior.

Começo a me perguntar
se tais sonhos são meus...

ou se fazem parte
de um conjunto...

um gigantesco sonho coletivo...

do qual a cidade inteira


seria uma projeção.

Bastaria, talvez, desligar


um dos inúmeros telefones...

para ouvir uma voz familiar


ou o bater de um coração...

como no final de
"Os Visitantes da Noite".

O de Sei Shônagon, por exemplo.

Todas as galerias levam


a estações...

as mesmas firmas
possuem as lojas...

e a ferrovia, que leva


seu nome, Kelio, Odakyu...
nomes de portos.

O trem, cheio de pessoas


que dormem...

junta todos os fragmentos


de sonho...

e faz deles um único filme,


o filme absoluto.

Os bilhetes do distribuidor
tornam-se tíquetes de entrada.

Ele me falou da luz de janeiro


nos degraus das estações.

Disse que esta cidade


é como uma partitura.

Podemos nos perder nas


grandes massas orquestrais...

e no acúmulo de detalhes...

e isso dava a imagem vulgar


de Tóquio:

superpovoada,
megalômana, desumana.

Ele pensava perceber nela


ciclos mais firmes, ritmos...

flagrantes de rostos
pegos de passagem...

tão diferentes e precisos


como grupos de instrumentos.

Às vezes, a composição musical


coincidia com a realidade:

a escada Sony em Ginza era


ela própria um instrumento...

cada degrau, uma nota.

Tudo se encaixava como as vozes


de uma fuga complicada...

mas bastava pegar uma


e não perdê-la.

A das telas de TV, por exemplo.

Elas próprias desenhavam


um itinerário...

que às vezes se fechava


em caracóis inesperados.

Era tempo do campeonato


de sumô...

e quem vinha ver as lutas


nas salas mais chiques de Ginza...

eram justamente
os mais pobres de Tóquio...

que não tinham televisor.

Ele via desembarcarem lá


os pobres de Hamidabashi...

com quem ele bebera saquê,


em uma manhã de sol...

há quanto tempo, já?

Ele me escreveu:

Até no fundo das lojinhas


de componentes eletrônicos...

com que os extravagantes


fazem bijuterias...

há na partitura de Tóquio
um timbre especial...

cuja raridade, na Europa,


me condena ao exílio sonoro.

É a música dos videogames.

Eles estão incrustados


em mesas...

pode-se beber ou almoçar


sem deixar de jogar.

Eles estão ao nível da rua.

Escutando-os, pode-se
jogar de memória.

Eu vi esses jogos nascerem


no Japão.

Depois eu os encontrei
no mundo inteiro...
só com uma variante:

no início, era um jogo comum,


algo antiecológico...

onde se devia bater


nas cabeças...

de seres que não sei se eram


dinossauros ou bebês focas.

Agora, a variante japonesa:

em vez de animais...

cabeças humanas identificadas


com etiquetas.

No alto, o presidente,
diretor geral.

Abaixo, o vice-presidente
e diretores.

Na primeira fila, chefes de


secção e chefe de pessoal.

O cara que eu filmei...

e que batia com


uma energia incrível...

confessou que para ele


o jogo não era alegórico...

que ele pensava


em seus superiores.

Eis por que o boneco


do chefe de pessoal...

foi tão seguida


e ferozmente surrado...

que se quebrou...

e foi preciso substituí-lo


por um bebê foca.

Hayao Yamaneko inventa


videogames em sua máquina.

Para me agradar...

ele coloca neles


meus animais familiares...
o gato e a coruja.

Ele diz que só a eletrônica


pode tratar o sentimento...

a memória e a imaginação.

O Arséne Lupin de Mizoguchi,


por exemplo...

ou os não menos imaginários


Burakumin.

Como representar uma categoria


de japoneses que não existem?

Sim, eles estão lá...

eu os vi em Osaka,
dormindo no chão.

Desde a Idade Média, fazem


os trabalhos sujos e ingratos.

Mas desde a era Meiji...

nada os distingue
oficialmente...

e seu verdadeiro nome,


os Etas, é palavra tabu...

impronunciável.

Eles são não-pessoas.

Como mostrá-los senão


sob a forma de não-imagens?

Os games são um plano de ajuda


das máquinas aos humanos...

o único plano que oferece


um futuro à inteligência.

No momento, a filosofia de
nosso tempo está no Pac-Man.

Eu não sabia que, com minhas


moedas de 100 ienes...

ele ia conquistar o mundo.

Talvez por ser ele a metáfora


gráfica da condição humana.

Ele representa,
na dose justa...

as relações de força entre


o indivíduo e o meio...

e ele nos anuncia claramente...

que se existe honra em vencer


grande número de assaltos...

no fim das contas


isso sempre termina mal.

Ele gostava de ver crisântemos


tanto em enterros humanos...

como nos de animais.

Ele me descreveu a cerimônia


pelos animais mortos no ano...

no zoológico de Uenan.

Há dois anos a data se enluta


pela morte de um panda...

pior, segundo os jornais,


do que a do Primeiro-Ministro.

No ano passado, as pessoas


choravam de verdade.

Agora elas parecem


conformadas...

de a morte levar
um panda por ano...

como fazem os dragões dos


contos, com as meninas.

Eu ouvi esta frase:

A parede que separa


a vida da morte...

não nos parece tão espessa


quanto a um ocidental.

O que mais vi nos olhos


daqueles que iam morrer...

era a surpresa.

Hoje o que vejo nos olhos


das crianças japonesas...
é a curiosidade.

Elas tentam, para entender


a morte de um animal...

enxergar através da parede.

Eu volto de um país
onde a morte...

não é um muro a atravessar


mas um caminho a seguir.

Não é um muro a atravessar


mas um caminho a seguir.

O grande Ancestral do
arquipélago das Bijagos...

nos descreveu o itinerário


dos mortos...

e como eles se deslocam


de ilha em ilha...

segundo um protocolo
rigoroso...

até a última praia...

onde eles esperarão o barco


para o outro mundo.

Se por acaso os encontramos,


não devemos reconhecê-los.

As Bijagos fazem parte


da Guiné-Bissau.

Em um documento antigo,
A. Cabral disse adeus ao rio.

Ele tinha razão,


nunca mais o veria.

Luiz Cabral fez o mesmo


15 anos depois...

na piroga que nos levava.

Na época, a Guiné Bissau


tornava-se nação...

Luiz era seu Presidente.

Todos que se lembram da guerra


lembram-se dele.
Era meio-irmão de Amilcar.

Como ele, tinha sangue


guineano e cabo-verdiano.

Como ele, era membro fundador


de um partido diferente...

o PAICC...

que uniu dois países colonizados


em uma mesma luta...

prefigurando a federação
dos dois Estados.

Ouvi relatos de antigos


guerrilheiros...

que lutaram em condições


sub-humanas...

que eles lamentavam


que soldados portugueses...

passassem pelo mesmo


que eles passavam.

Isso, eu ouvi...

com muitas outras coisas...

e dava vergonha de usar


de modo frívolo...

mesmo uma única vez, mesmo por


desatenção...

o termo guerrilha para designar


um modo de fazer filmes.

Um termo que na época


se liga a debates teóricos...

também a terríveis derrotas


em campos de batalha.

A. Cabral foi o único


que a conduziu à vitória...

e não apenas quanto


ao avanço militar.

Ele conhecia seu povo,


estudara-o por muito tempo.
Ele queria que a região
fosse uma sociedade diferente.

Os países socialistas enviam


armas aos combatentes...

os socialdemocratas,
artigos para lojas populares.

E que a extrema esquerda


o perdoe à História...

mas se a guerrilha é
como veneno na água...

é um pouco graças à Suécia.

Amilcar não temia


ambiguidades...

ele conhecia as armadilhas.

Ele escreveu:

Dir-se-ia que estamos diante


de um rio caudaloso e tempestuoso...

com pessoas que tentam passar


e se afogam...

mas elas não têm alternativa,


precisam atravessar.

Acena agora nos leva


a Cassaca, 17 / 02 / 1980.

Para entendê-la, é preciso


avançar no tempo.

Em um ano, o Pres. Cabral


estará na prisão...

e o homem que ele homenageia


e que chora...

o Comandante Nino,
terá tomado o poder.

O partido se esfacelará...

guineanos e cabo-verdianos lutarão


pela herança de Amilcar.

Teremos aprendido que


por trás dessa cerimônia...

que perpetuava, aos olhos


dos visitantes, a fraternidade...

havia os dissabores do
dia seguinte à vitória...

e que as lágrimas de Nino


não eram emoção do guerreiro...

mas orgulho ferido do herói


que se acha igual aos outros.

E sob cada um desses rostos,


uma memória.

E onde se gostaria que


houvesse uma memória coletiva...

há mil memórias de homens...

que desfilam suas feridas


pessoais...

na grande ferida da História.

Em Portugal, também revoltado


pela perda de Bissau...

Miguel Torga, que sempre lutara


contra a ditadura, escrevia...

"Cada um desses companheiros


representa só a si mesmo."

Em vez de uma mudança


do panorama social...

ele busca apenas...

na luta revolucionária...

a sublimação
de sua imagem pessoal.

É assim, em geral,
que caem os sem bandeira...

e de modo tão previsível...

que é preciso crer em


uma certa amnésia do futuro...

que a História fornece...

por misericórdia ou cálculo,


àqueles que ela recruta.

Amilcar assassinado
pelos companheiros...

as regiões libertadas
dominadas por ditadores cruéis...

liquidados, por sua vez,


pelo poder central...

o mundo crendo em estabilidade


até o golpe de estado militar...

É assim que avança


a História...

tapando a memória
como se tapam os ouvidos.

Luiz exilado em Cuba...

Nino descobrindo, por sua vez,


complôs contra ele...

tudo isso poderá ser citado


diante dela...

ela não ouve nada...

ela tem apenas um aliado...

aquele de que Brando falava


em "Apocalipse":

o horror, que tem um nome


e um rosto.

Eu lhe escrevo tudo isso


de um outro mundo...

o mundo das aparências.

De certo modo,
os dois se comunicam.

A memória é para um
o que a História é para outro:

uma impossibilidade.

As lendas nascem da necessidade


de decifrar o indecifrável.

As memórias devem
contentar-se de seu delírio...

de sua falta de rumo.

Qualquer parada queimaria como


uma imagem de filme bloqueada.

A loucura protege,
como a febre.

Eu invejo Hayao e sua Zona.

Ele joga com os sinais


de sua memória...

ele os pendura e os enfeita


como insetos fugidos do Tempo...

que ele poderia contemplar


do exterior do Tempo...

a única eternidade
que nos resta.

Eu olho suas máquinas.

Eu penso em um mundo
em que cada memória...

poderia criar
sua própria lenda.

Para ele, que um único filme


soubera falar...

da memória impossível, louca:

"Um Corpo que Cai"


de Hitchcock.

Na espiral inicial, ele via


o Tempo, em plano que cresce...

à medida que se afasta...

um ciclone que contém,


imóvel, o olho.

Ele percorrera, em S. Francisco,


os locais de filmagem.

O florista Podesta Baldocchi...

de onde James Stewart


espiona Kim Novak.

Ele o caçador, ela, a presa.

Ou seria o contrário?

O piso não mudara.


Percorrera de carro
as colinas de S. Francisco...

onde James Stewart/Scottie


seguiu Kim Novak/Madeleine.

Parecia uma questão


de espionagem, de crime.

Na verdade, tratava-se
de poder e de liberdade...

de melancolia
e de deslumbramento...

tão bem codificados


no interior da Espiral...

que nos poderíamos enganar...

e não descobrir logo


que essa vertigem do espaço...

significa, na verdade,
a vertigem do tempo.

Ele seguira as pistas até


o cemitério da Mission Dolores...

onde Madeleine rezava por


uma mulher há muito falecida...

que ela não deveria


ter conhecido.

Como Scottie,
ele seguira Madeleine...

ao Museu da Legião de Honra...

diante do retrato de alguém


que ele não deveria conhecer.

E no retrato,
como no cabelo de Madeleine...

a espiral do Tempo.

O pequeno hotel
onde Madeleine desaparecia...

desaparecera também.

O asfalto fora substituído


na esquina de Eddie e Gough.

Mas a sequoia ainda estava


em Muir Woods.

Madeleine mostraria a proximidade


de duas linhas concêntricas...

que medem a idade da árvore


e dizia:

Minha vida se passou


neste pequeno espaço.

Ele se lembrava de outro filme


que citava essa passagem:

a sequoia estava no
Jardin des Plantes, em Paris...

e a mão mostrava um ponto


fora da árvore...

no exterior do Tempo.

O cavalo pintado
de São João Batista...

seu olho parecido


com o de Madeleine...

Hitchcock nada inventara,


tudo estava lá.

Ele correra sob os arcos


da Missão...

como Madeleine correra


para a morte...

Mas... seria a morte dela?

De uma torre falsa,


único acréscimo de Hitchcock...

ele imaginara Scottie


enlouquecendo de amor...

na impossibilidade de viver
com a memória...

a não ser que a falseasse...

criando um dublê de Madeleine,


em outra dimensão do Tempo...

uma Zona só dele...

de onde poderia decifrar


a história indecifrável...
que começara na Golden Gate...

quando retirara Madeleine


da Baía de São Francisco...

salvando-a da morte,
antes de devolvê-la a ela.

Ou teria sido o contrário?

Em São Francisco, peregrinei


por um filme que vi 19 vezes.

Na Islândia, pus a 1a. Peça


de um filme imaginário.

Naquele verão, encontrei


três crianças numa estrada...

e um vulcão saía do mar.

Mais um golpe do Aglutinador.

Astronautas americanos,
antes da Lua, treinavam...

neste local parecido com ela.

Eu via um cenário
de ficção científica...

a paisagem de outro planeta...

ou melhor, não...

o nosso, visto por


alguém vindo de fora...

de muito longe.

Eu o imagino avançando
por estas terras vulcânicas...

com o peso de escafandrista.

De repente, ele cambaleia...

e o passo seguinte
será um ano mais tarde.

Ele anda numa trilha


perto da fronteira holandesa...

ao longo de uma reserva


de pássaros marinhos.
Eis o ponto de partida.

Agora, por que esse corte


no tempo, essas lembranças?

Ele não consegue compreender.

Ele não vem de outro planeta,


vem de nosso futuro...

4001, quando nosso cérebro


trabalha em sua totalidade.

Tudo marcha à perfeição, por


deixarmos muita coisa dormir...

aí incluída a memória.

Consequência lógica:

uma memória total


é uma memória anestesiada.

Após muitos casos de homens


que perderam a memória...

eis o de um homem
que perdeu o esquecimento...

e que, por uma bizarrice


de sua natureza...

em vez de se orgulhar disso...

e de desprezar a humanidade
do passado e suas trevas...

ele se interessa por ela,


por curiosidade...

depois por compaixão.

No mundo de onde ele vem,


chamar uma lembrança...

emocionar-se diante
de um retrato...

ou ao ouvir uma música são


sinais da pré-história dolorosa.

Ele quer compreender.

Essas doenças do Tempo


ele considera uma injustiça...

e reage a ela como Che...


como os jovens dos anos 60...

com indignação.

É um terceiro-mundista do Tempo.

A ideia de que a infelicidade


existiu no passado de seu planeta...

é tão insuportável para ele


quanto para aqueles...

a existência da miséria
em seu presente.

Obviamente, ele fracassará.

A infelicidade que ele descobre


lhe é tão inacessível...

quanto inimaginável é a miséria


de um país pobre...

para as crianças
de um país rico.

Ele escolheu renunciar


a seus privilégios...

ele nada pode contra


o privilégio de ter escolhido.

Ele carrega apenas


a origem de sua pesquisa:

uma coleção de músicas


de Moussorgski.

São ainda cantadas no séc. 40.

Perdeu-se o sentido delas...

mas foi ali que,


pela primeira vez...

ele sentiu a presença


daquilo que não entendia...

que tinha a ver com


a infelicidade e a memória...

que ele precisava


tentar entender...

e, para isso, com o peso


de um escafandrista...
ele se pusera a andar.

Claro que não farei tal filme.

No entanto,
eu guardo os cenários...

eu invento passagens...

ali disponho minhas criaturas


preferidas...

e lhe dei, mesmo, um título...

exatamente o das melodias


de Moussorgski:

SEM SOL.

A 15 de maio de 1945,
às 7 horas da manhã...

o 382o. Regimento de infantaria


americano...

tomou uma colina de Okinawa,


rebatizada de Dick Hill.

Acho que pensavam


que era terra japonesa...

e que desconheciam
a civilização dos Ryukyus.

Eu também apenas sabia...

que os rostos das mulheres


do mercado de Itoman...

me falavam mais de Gauguin


do que de Utamaro.

Durante séculos
de submissão sonhadora...

o Tempo não alterara


o arquipélago.

Depois veio a ruptura.

Será próprio das ilhas confiar


a memória às mulheres?

Como nas Bijagos, são elas


que transmitem o saber mágico:
cada comunidade tem
sua sacerdotisa...

a Noro...

que preside todos os ritos,


exceto os funerais.

Os japoneses defenderam
passo a passo a posição.

No fim do dia, a Companhia L...

só avançara metade da colina.

Uma colina semelhante à que


eu subia com os aldeões...

até uma cerimônia


de purificação.

A Noro se comunica
com os deuses do mar...

da chuva, da terra, do fogo.

Ela lhes fala como a membros


de sua própria família.

Todos se inclinam diante


da deusa irmã, reflexo...

de uma relação privilegiada


entre o irmão e irmã.

Mesmo após sua morte, a irmã


tem o predomínio espiritual.

Na madrugada,
os americanos estacaram.

Levou um mês de combate


para a ilha se entregar...

e voltar-se para
o mundo moderno.

Após 27 anos de ocupação


americana...

e a volta à soberania japonesa


contestada...

a 2 km de boliches
e de postos de gasolina...

a Noro continua a dialogar


com os deuses.

Depois dela, o diálogo cessará.

Os irmãos não saberão que


a irmã morta vela por eles.

Filmando essa cerimônia,


eu sabia ver o fim de algo.

As culturas mágicas
desaparecidas deixam marcas.

Esta não deixará nenhuma.

A ruptura da História
foi violenta demais.

Eu a senti,
no alto da colina...

como eu a sentira
perto da fossa...

onde 200 moças se suicidaram


com granadas, em 1945...

para não caírem vivas


nas mãos dos americanos.

As pessoas tiram fotos


diante da fossa.

Em frente, vendem-se
isqueiros...

em forma de granadas.

Na máquina de Hayao,
a guerra parece cartas queimadas...

que ele mesmo rasga


sobre o fogo.

O código de Pearl Harbour


era Tora, tora, tora...

o nome da gata por quem


o casal de Go To Ku Ji rezava.

Assim, tudo recomeçaria...

por um nome de gata


pronunciado três vezes.

Ao largo de Okinawa...
os camicases se jogavam
sobre a frota americana.

Eles se tornariam uma lenda.

Serviam melhor a isso


do que as secções especiais...

que expunham seus prisioneiros


à neve da Manchúria...

e depois à água quente...

para medir com que rapidez


a carne se desprende dos ossos.

Em cartas dos camicases, vemos


que nem todos eram voluntários.

Nem todos eram


samurais fanáticos.

Antes de beber sua última dose


de saquê...

Ryoji Uebara escrevera:

Sempre pensei que o Japão


devia viver livremente...

para viver eternamente.

Isso hoje parece idiotice


sob um regime totalitário.

Nós, pilotos camicases...

somos máquinas,
nada temos a dizer...

só pedir a nossos compatriotas


que realizem nosso sonho.

No avião, eu sou uma máquina...

um pedaço de ferro imantado


que se fixará num porta-aviões.

Mas em terra
sou um ser humano...

com sentimentos e paixões.

Perdoem-me esses pensamentos


desordenados.

Eu talvez lhes deixe


uma imagem melancólica...

mas no fundo de mim mesmo


estou feliz.

Eu falei francamente.

Perdoem-me.

A cada retorno da África...

ele fazia escala


na Ilha do Sal...

um rochedo de sal
no meio do Atlântico.

Depois de Santa Maria e do


cemitério de tumbas pintadas...

basta ir em frente
para encontrar o deserto.

Ele me escreveu:

Eu entendi as visões.

De repente, se entra no deserto


como na noite.

Tudo que não é ele não existe.

Nas imagens que aparecem,


não queremos acreditar.

Já lhe escrevi que há


tumultos na Ile de France?

O nome Ile de France


soa esquisito na Ilha do Sal.

Minha memória sobrepõe


dois planos...

o do castelo em ruínas,
em Montpelloy...

que serviu de paradouro


a Joana d'Arc...

e o do farol
da ponta sul de Sal...

um dos últimos faróis ainda


funcionando a petróleo.

A presença de um farol em Sal


parece uma colagem...

enquanto não se vê o mar...

no limite da areia e do sal.

Tripulações de aviões de
longo percurso mudam em Sal.

Seu clube os traz até aqui,


um toque de balneário...

que torna o resto


ainda mais irreal.

Eles alimentam os cães


que vivem na praia.

Meus cães estavam


muito agitados à noite.

Brincavam com o mar como


eu nunca vira antes.

Mais tarde, ouvindo


a Rádio Hong Kong, entendi:

era o primeiro dia


do novo ano lunar...

e pela primeira vez,


em 60 anos...

o signo do Cachorro
cruzava o signo da Água.

Lá, a 18 mil km, só uma


sombra permanece imóvel...

entre as que a luz de janeiro


movimenta no chão de Tóquio:

a sombra do bronze de Asakusa.

Porque o ano do Cão


começa também no Japão.

Os templos se enchem
de visitantes que jogam moedas...

e oram à japonesa:

uma prece que se insere


na vida sem interrompê-la.

Perdido no fim do mundo,


sobre a minha ilha do Sal...
em companhia de meus cães
todo enfeitados...

eu me lembro daquele janeiro


em Tóquio...

ou das imagens que filmei


em janeiro, em Tóquio.

Elas foram substituídas


em minha memória...

elas são minha memória.

Pergunto-me como se lembram


as pessoas que não filmam...

que não tiram fotos,


que não gravam.

Como fazia a humanidade


para se lembrar?

Eu sei, ela escrevia a Bíblia.

A nova Bíblia será


a fita cassete...

de um Tempo que será relido


sem cessar...

para se saber que ele existiu.

Esperando o ano 4001


e sua memória total...

os oráculos poderiam tirar


das caixas no Ano Novo...

um pouco mais de poder


para essa memória...

que vai de paradouro em paradouro,


como Joana d'Arc.

Que um anúncio nas ondas curtas


da Rádio Hong Kong...

ouvido na ilha do Cabo Verde


recorde Tóquio...

e que a lembrança
de uma certa cor na rua...

me projete em outro país,


em outra distância...
em outra música,
sem nunca acabar.

No fim do caminho da memória...

os ideogramas da Ile de France


são tão enigmáticos...

os ideogramas da Ile de France


são tão enigmáticos...

quanto os kanji de Tóquio...

na luz milagrosa do Ano Novo.

É o inverno indiano.

Como se o ar fosse o primeiro


elemento a ser purificado...

quando os japoneses se lavam


de um ano e entram em outro.

Eles não têm todo um mês


para sua polidez com o Tempo.

A cerimônia mais interessante


é a compra, no templo de Tenjin...

do pássaro Uso que,


segundo a tradição...

come todas as suas mentiras


no ano que entra...

ou, segundo outros,


as transforma em verdades.

Mas o colorido das ruas


em janeiro...

o que as torna diferentes...

é a aparição dos quimonos.

Nas ruas, nas lojas,


nos escritórios, na Bolsa...

as jovens usam quimonos


de inverno, com gola de pele.

Nesta época do ano...

outros japoneses podem


inventar a TV de tela plana...
suicidar-se ou conquistar
o mercado dos semicondutores.

Em vão! Só elas são notadas.

A 15 de janeiro,
o Dia dos Vinte Anos...

celebração obrigatória
na vida das jovens.

As prefeituras distribuem
sacolinhas com presentes...

agendas, conselhos...

como ser boa cidadã,


boa mãe ou esposa.

As garotas de 20 anos podem


telefonar de graça à família...

em qualquer lugar do Japão.

Trabalho, família, pátria...

é a ante-câmara da idade adulta.

O mundo de Takenoko e roqueiros


se afasta como um foguete.

Oradores explicam o que


a sociedade espera delas.

Quanto tempo será preciso


para esquecer o Segredo?

Quando todas as festas


acabam...

só falta recolher
os enfeites...

os acessórios da festa...

e, ao queimá-los,
fazer uma festa.

É o Dondo-yaki...

uma bênção shintoísta


sobre os detritos...

que merecem a imortalidade,


como a bonecas de Ueno.

O último estado,
antes do desaparecimento...

da pujança das coisas.

Daruma, o espírito zarolho...

experimenta importância
sobre a fogueira.

É preciso que o abandono


seja uma festa...

que a destruição
seja uma festa...

que o adeus ao que se perdeu


receba uma cerimônia.

No Japão, Montherlant poderia


ver seu desejo realizado:

que o divórcio
seja um sacramento.

O único momento frustrante


desse ritual...

foi a roda das crianças


batendo seus bastões.

Deram-me uma explicação


original...

embora para mim ela pudesse


ser algo simbólico:

é para afastar as toupeiras.

Foi ali que,


por iniciativa própria...

introduziram-se minhas
três crianças da Islândia.

Eu retomei o plano
em sua totalidade...

acrescentando esse fim


um pouco fluido...

o quadro tremendo sob


a força do vento na falésia...

tudo que eu cortara


para limpar...

e que melhor descrevia


o que eu estava vendo...

porque eu o mantinha,
à força, com o zoom...

até o 1/25 de segundo.

A cidade de Helmaey
estendia-se abaixo de nós...

e 5 anos depois, quando Tazieff


me mandou o que filmara...

só me faltava o nome...

para saber que a natureza


faz seus próprios Dondo-yaki.

O vulcão da ilha despertara.

Eu recuperei essas imagens...

e foi como se todo o ano de 65


se cobrira de cinzas.

Bastava, pois, esperar...

e o próprio planeta mostraria


o trabalho do Tempo.

Eu revi aquilo que fora


minha janela...

vi emergirem tetos
e sacadas familiares...

as marcas dos passeios que


fazia na cidade e nas falésias...

onde eu encontrara as crianças.

O gato de meias brancas que


Garouk filmara para mim...

com certeza encontrara


o seu lugar...

e eu pensei que das preces


ao Tempo jamais ditas...

a mais justa era


a da dama de Go Ku Ji...

que dizia simplesmente


à gata Tora:

Querida gata,
que onde você estiver...

sua alma encontre a paz.

Depois a viagem,
por sua vez, entrou na Zona.

Hayao me mostrou as imagens


atingidas pelo líquen do Tempo...

libertadas da mentira que


prolongara aqueles instantes...

engolidas pela Espiral.

Quando a primavera vinha...

e para anunciá-la o urubu


gritava meio-tom acima...

eu tomava o trem verde


da Yamanote Line...

e descia na estação
de Tóquio...

vizinha do Correio Central.

Mesmo que a rua


estivesse vazia...

eu parava no sinal vermelho,


à japonesa...

para deixar passar os espíritos


dos carros quebrados.

Mesmo que não esperasse


nenhuma carta...

eu parava diante
da posta restante...

porque devemos honrar


as cartas rasgadas...

e diante do guichê
do correio aéreo...

para saudar os espíritos


das cartas não enviadas.

Eu media a insuportável
vaidade do Ocidente...

que sempre privilegiou


o ser sobre o não ser...
o dito sobre o não dito.

Eu andava ao longo
das barracas de roupas...

e ouvia, ao longe,
a voz do Sr. Akao...

levada pelos alto-falantes...

que também subira meio-tom.

Enfim, eu descia ao porão


do amigo maníaco...

que se agita diante


de seus grafites eletrônicos.

No fundo, sua linguagem


me toca...

porque se dirige
àquela parte de nós...

que insiste em desenhar


nas paredes das prisões.

Um giz a seguir os contornos


do que não existe...

não existe mais,


ou ainda não existe.

Uma escrita com a qual


cada um fará sua lista...

das coisas que fazem


o coração bater...

para ofertá-la
ou para apagá-la.

Nesse momento, a poesia será


feita por todos...

e haverá tumultos na Zona.

Ele me escreve do Japão...

escreve-me da África.

Escreve que agora pode fixar


o olhar da mulher do mercado...

que duraria apenas


o tempo de uma foto.
Haverá, algum dia,
uma última carta.

Você também pode gostar