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20 2 ie 3 £ a DMPANHTA DAS LETRAS Copyright ©2008 Betrie Sato “Tempo pasado ha sid publica originalment en epatolen 0s. Fit traduccion es publ cada mediante acuerdo con Siglo XXL Edtones Argentina Topo pasado plied or sinalmentecmespanhol moos Etatraduste ¢publcada mediante acotdo com Sigs Editors Argentina Thao origina ‘Tiempo paso —Cultuadela memoria gio sbjetive. Una dissin Raul Loureiro Imagem capa Fanfare (1974), de George Danna, gusche ¢ ips sobre ain © Colesio particule! The Bridgeman Art Library Preparagio ‘Marcos La Ferman Revisto CCarmen$. da Casts Isabel orgeCury Decide ne Pano) {Cw intr a "eno uh :ete So meni bin Bi; ns Fe ie ~ Be Re Gme a Bb {hd ik eg 1 Ain Cann sini 19.985 2 Agni Conta iso 3 Maney Apne Bs Se Eldon Haas 3, Vina de esi as ‘reins aa Le007) Todos dirt desta dio reservados Ra Bandera Paulista og 32 ‘0432-002 —S50Palo—st "Befone 37-5 Fax) s707-301 ‘wae companhisdasetras.comn be Sumario L."Tempo passado, 9 2. Critica do testernunho: sujeito e experiencia, 23 3. Aret6rica testemunhal, 45, 4, Experiéncia e argumentacio, 69 5, P6s-memoraa, reconstituigoes, 90 6.Além da experiéncia, 14. Notas, 121 Agradecimento Em 2008 fui membro do Wissenschafiskolleg de Berlim, onde che- {guei para escrever uma biografia intelectual dos anos 1960 ¢ 1970. Com, tempo para examinar milhares de pginas, abandonei esse projeto. Li ‘muitas autobiografias e testemunhes, durante varios meses, e me con- vyencideque queria analicar criticamente as condigsesteérieas dizeur sivas historicas.O Wissenschaftskollegaceita,como uma espécie de tra- digdo liberal que 0 enobrece, essas mudangas de programa. Para essa ‘comunidade intelectual berlinense vai o meu agradecimento. 1, Tempo passado © passado é sempre conflituoso. A ele se referer, em concor- réncia, a meméria ea histéria, porque nem sempre a historia con- segue acreditar na meméria,eameméria desconfia de umarecons- Lituigio que nao coloque em seu centro os direitos da lembranga (Gireitus de vids, de justia, de subjetividade). Pensar que poderia xistir um entendimento facil entre essas perspectives sobreo pas- ado ¢um desejo ou um lugar-comum, ‘Alem de toda decisao piiblica ou privada, além da justiga eda responsabilidade, ha algo inabordavel no passado. Sé a patologia psicoldgica, intelectual ou moral é capaz de reprimi-lo; mas ele ‘continuaali,longe eperto,espreitando o presentecomoalembran- ‘ga que irrompe no momento em que menos se espera ou como a huvem insidiosa que ronda o fato do qual nao se quer ou no se pode lembrar. Nao se prescinde do passado pelo exercicio da deci- ‘io nem da inteligéncia; tampouco ele é convocado por um sim- ples ato da vontade. O retorno do passado nem sempre é um momento libertador da lenbvanya, mas um advento, uma capt tado presente. Propor-se nao lembrar € como se propor nao perceber um cheiro, porque a lembranga, assim como o cheiro, acomete, até ‘mesmo quando nao é convocada. Vinda nao sesabedeonde,alem- branganao permite er deslocadaspelo contrério,obrigaauma per- seguicio, pois nunca esté completa. A lembranga insiste porque de certo modo € soberana e incontrolivel (em todos os sentidos dessa alavra). Poclerfamos dizer que 0 pasado se faz presente. E a lem bbranga precisa do presente porque, como assinalou Deleuze a res- peito de Bergson,o tempo priprioda lembranga €o present:istoé, © tinico tempo apropriado para lembrar ¢, também, o tempo do ual a lembranga se apodera, tornando-o préprio Epossivel nao falar do passado. Uma familia, um Estado, um. governo podem sustentar a proibi¢do; mass6 de modo aproxima- tivo ou figurado ele ¢eliminado, a nao ser que se eliminem todos 0s sujeitos que o carregam (seria esse 0 final enlouquecido que znem sequera matanga nazista dos judeus conseguiu ter). Em con- digdies subjetivase politicas “normais’,o passado sempre chega a0 presente. Essa obstinada invasio de um tempo (antigo) em outro (agora) irritow Nietasche, que o denunciow em sua batalha contra © historicismo e contra uma “historia monumental” dos impulsos do presente. Tepressora, Inversamente, uma *histéria critica” que “julga econdena”éa ue corresponderia “aquele cujo peito é oprimido por uma neces- sidade presente e que,a todo custo, quer selibertar dessa carga”! A denaincia de Nietzsche (que Walter Benjamin ouviu) se dirigia a Posigdes da hist6ria traduzidas em poder simbélico e em uma direcao sobre o pensamento. A hist6ria monumental afogava 0 impulso"a-hist6rico” de produgao da vida, a forga pela qual o pre- Sente arma uma relagso com 0 futuro,enao com o passado. A diae tribenietzschiana contrac historicismo,articuladanocontextode seus inimigos contemporineos, ainda hoje pote faver valer sett alerta, {As iiltimas décadas deram a impressio de que o império do pasado se enfraquecia diante do “instante” (os lugares-comuns sobre a pés-modernidade, com suas operagves de “apagamento”, opicam o luto ou celebram a dissolucao do passado); no entanto, também foramas décadas da museificagao,da heritage,do passado- espeticulo, das aldeias Potemkin’ e dos theme-parks hist6ricos; Aduilo que Ralph Sasnuel Uhaniou de “mania preservacionista"?* do surpreendente renascer do romance histérico, dos best-sellers e filmes que visitam desde Tréia até o século x1X,das historias da vida privada, por vezes indiferenciaveis do costumbrismo, da recicla- jem de estilos, tudo isso que Nietzsche chamou, iritado, de histé- tia dos antiquarios. “As sociedades ocidentais estao vivendo uma ‘era de auto-arqueologizagao’, escreveu Charles Maier? Esse neo-historicismo deixa 0s historiadores ¢ ideslogos in- ‘conformados, assim como a hist6ria natural vitoriana deixava inconformados os evolucionistas darwinistas. Indica, porém, que 1 operagdes com a historia entraram no mercado simbélico do capitalismo tardio com tanta eficiéncia como quando foram obje- 1oprivilegiadv ds instituigesescolares desde o fim do séeulo XIX. Mudaram os objetos da histéria —a académica ea de grande cir- qulagio —, embora nem sempre em sentidos idénticos. De um Jaco, historia sociale cultural destocou seu estudo para as mar- gens das sociedades modernas, modificandoa nogio de sujeitoea hierarquia dosfatos,destacando os pormenores otidianosarticu- lidos numa poética do detalhe e do concreto, De outro, uma linha da historia para 0 mercado ja nao se limita apenas & narragao de Jumma gesta que os historiadores teriam ocultado ou ignorado, mas “© ministrorasso Grigori Potemkin teria mandado construir vlarejos alos de ‘arto: pera 0 longo do percurso da czarina Catarina t durante sua vista & ‘Grima, em 1787,a fim de convencé-la do valor de suas novasconquisasterti- loritis, Desde entio,aexpressdoaldeia Potemkin” éusada paraconstrugdesite- ou figuradas quesedestinam a esconder uma stuagao indesejével.(N.T.) também adota um foco préximo dos atores e acredita descobrir uma verdade na reconstitui i Essas mudangas de perspectiva nao poderiam ter acontecido sem uma variacao nas fontes: o lugar espetacular da hist6ria oral é reconhecido pela disciplina académica, que, hé muitas décadas, considera totalmentelegitimasas fontestestemunhaisoras(e,por instantes, dé impressao de julgé-las mais “reveladoras”). Por sua ‘ex historias do passaco mais recente, apoiadas quase que apenas em operagdes da memoria, atingem uma circulagao extradiscpl nar que se estende & esfera piiblica comunicacional, 4 politica e, ‘ocasionalmente, reccbem 0 impulso do Estado. f VISOES DE PASSADO As" visges de passado” (segundo a formula de Benveniste) sao onstrugoes. Justamente porque o tempo do passado no pode ser er qualquer passado ao presente, uma perspectiva da qual oral que se quer recapturar. As narragées testemunhais sentem loscobre nos fatos pretéritos “uma assemblage de anacronismos se confortaveis no presente porque €a atualidade (politica, soci fibras de tempo entremeadas, campo arqueolégico a deci- cultural, biogréfica) que possibilita sua difusao, quando nao st fi" Nesse sentido, o anacronismo nunca poderia ser toralmen= emergéncia, O micleo do testemunho éa meméria; 0 mesmo nao jinado,¢ s6 uma visio dominada pela generalizacao abstra- se poderia dizer da historia (afirmar que é preci ja capaz-de conseguir aplainar as texturas temporais que no como sese recordasse apenas abre uma hipétese). iasarmam 0 discurso da meméria eda historia, comotambem ‘O testemunho pode se permitir oanacronismo,}a que €com: tram de que substincia temporal heterogénea sao tecidos os 38 faz muito tempo. Nao é preciso recorrer idéia de manipula- para afirmar queas memérias se colocam deliberadamente no Jo dos conflitos atuais e pretendem atuar nele. Por sltimo, Jyoasdécadas de 1960¢ 1970existe uma massa dematerialescri- ‘ontemporaneo aos fatos — folhetos, reportagens, documen- tle reunises e congressos, manifestos ¢ programas, cartas,jor- jpartidérios ent part4rins—queseguiam ouantecipavam srrer dos acontecimentos. Sto fontes ricas, que seria insensato 1 de lado, pois é freqiiente que digam muito mais que aslem- sas dos protagonistas ou, pelo menos,astornem compreenst- j( que acrescentam a moldura de um espirito de época, Saber sm 1970,enaolimitar-se alembran- “fatos”. Reconhecer isso, porém, nao implica que todo relato d passado se entregue a essa heterogeneidade como a um des fatal, mas que trabalhe com ela para alcangar uma reconstrugil inteligivel, ou seja: que saiba com que fibras est construida como se se tratasse da trama de um tecido, que as disponha mostrar da melhor maneira o desenho pretendido. Sem divida, nao é um ideal de conhecimento renunck densidade de temporalidades diferentes. Isso indicaria apenas; desejo de simplicidade que nao é suficiente para recuperar 0 p sado num imposstvel “estado puro”. Como disse uma vez Alth serndo existe ocrainio de Voltaire menino, Mas para pensar op sado também ¢ insuficiente a tendéncia a colocar ai as form presents dle umasubjetividade que, sem sevindicar uma diferen 2, imagina encontrar 0 “cranio de Voltaire menino” quando, verdade, esta dando uma forma inteiramente nova aos objeto reconstituidos. Para dar um exemplo: nas déeadas de 1960 € 19 nao existia nos movimentos revolucionrios a idéia de direit hhumanos. E, se ¢impossivel e indesejével) extirpé-la do present tampouco é possivel projeti-laintacta para o passado. “A memOra,talcomo temosargumentado,suportaa jens astentagdesdo anacronismo. Isso acontece nos testemunhos ‘08 anos 1960¢ 1970, tanto os oriundes dos protagonistase escrito ‘em primeira pessoa, como os produzidos por técnicas etnog ‘as que utilizam uma terceira pessoa muito préxima da primei (0 que em literatura se denomina discurso indireto livre). Diz 1 pensavam os militantes squueagora cles tém de como eram eagiam, nao é uma pretensto Kcante da subjetividade nem um plano para expulsé-la da his- i Significa, apenas, quea" verdade™ no resulta da submissa0 3] 1 perspectiva memorialistica que tem limites nem, muito} wos, a suas operacdes taticas. wvidentemente, esses limites afetam, como nao poderia Ger se scr, 0s textemunhos de quem foi vitima das ditaduras; esse ero de vitimas, interpela uma responsabilidade moral coleti- em contrapartida, uma ordem para {que nao prescreve. Nao é seus testemunhos permanegam subtraidos da analise, Até que ros documentos aparegam (se é que aparecerdo os que dizem peito aos militares, se €que se conseguirs recuperar os questo condos, se € que outros vestigios nao foram destruidos), cles Wo niicleo de um conhecimento sobre a repressio; além disso, a textura do vivido em condigdes extremas, excepcionais. Por oso insubstituiveis na reconstituigdo desses anos. Mas 0 aten- polémicas sobre 0s projetos de um museu da meméri). Ale das ditaduras contra o carder sagrado da vida no transfere disso, os quelembram nao estio afastados da luta politica cont ‘cardter ao discurso testemunhal sobre aqueles fatos. Qualquer i nto da experiéncia ¢ interpretavel pordnea; pelo contrério, ém fortes clegitimas razdes para partich par dela einvestir no presentesuas opinides sobre o que acont 60

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