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DICIONÁRIO
EOtf§C
Editora da Universidade do Sagrado Coração
TEMÁTICO DO OCIDENr-fE

MEDIEVAL
Coordenação Geral
Ir. Elvira Milani

Coordenação Editorial
Ir. Jacinta Turolo Garcia

da Cv.J-:qã:1 Ptural
1:'~I(i~'[~_-n,,7dor
Luiz Fu~,,~ioVéS"'0
v o L u Iv\ I

COCodenaçao Executiva
Luzia Bianchi

Comitê r.ditorial Acadêmtco


Ir. Elvira Milani - Presidente
Glória Maria Palma
Ir. J<1<.. nta Turolo Garcia JACQUES LE GOFF 6" JEAN-CLAUDE SCHMITT
José Iobson de Andrade Arruda
Lui.. Eugênio V éscio
Marcos Virmond
Maria Arminda do Nascimento Arruda

coordenador da tradução

HILÁRIO FRANCO JÚNIOR

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EOl1§C
Editora da Universidade do Sagrado Coração
ESTADO

A Idade Média começa no século V quando se dá o desmoronamento do


.!"\mais poderoso Estado, cuja lembrança vai perdurar, o Império Romano.
Império de uma cidade que se tornou progressivamente imenso espaço terri-
torial, o Império Romano sofria da ambigüidade de sua própria natureza: seu
ideal cívico, de início limitado a Roma, estendeu-se à Itália, mas dele partilha-
vam apenas os magistrados e os militares veteranos. O caráter meramente pre-
dador de sua construção territorial perpetuou-se no fiscalismo. Para acumular
recursos, era necessário expandir o Império: ora, a própria dilatação do espa-.
ço controlado tornava as conquistas mais difíceis, menos rentáveis quando a
agitação das populações germânicas no Ocidente e a concorrência exacerbada
com o Império Parta no Oriente absorviam o essencial dos recursos. Sem po-
der aumentar a pressão fiscal, os imperadores arriscaram-se em manipulações
monetárias, provocando, por muito tempo, inevitável enfraquecimento eco-
nômico. O sobressalto produzido pela militarização do Império, depois pela
sua cristianização no reinado de Constantino, prolongou sua existência, mas
não lhe deixou tempo para uma mudança em profundidade.
Efetivamente, o Império Romano desmoronou apenas no Ocidente. No
Oriente, subsistiu um império que chamamos de bizantino e cujas províncias
do Egito e da Síria, desde o final do reinado de Herádio, foram tomadas pe-
los árabes. Seus súditos, até a queda final de Bizâncio, diziam-se "romanos".
Na verdade, esse império representou um dos modelos possíveisda evolução
e da adaptação do sistema romano: um imperador que conjugava sacralidade
cristã e magistratura antiga, prática de associaçãoe valorização da legitimida-
de dinástica (os "porfirogênetas", nascidos no palácio imperial), que davam
certa estabilidade à instituição; uma aristocracia civil animada pelo ideal do
serviço ao Estado; uma população de camponeses-soldados (os esrratiotas) ou
marinheiros, que garantiam a defesa da coletividade. Entretanto, submetido a
múltiplas pressões dos povos eslavos ou eslavizados (búlgaros, russos), do Islã
(árabes, turcos) e do Ocidente (normandos, depois cruzados), esvaziado de
sua substância econômica por seus "aliados" venezianos ou genoveses, o
Império Bizantino revelou-se incapaz de se regenerar, e do século XII até seu
desaparecimento, em 1453, sua decadência parecia inevitável.
Dicionário Temático do Ocidente Medieval Estado

As NOVASESTRUTURASPOLÍTICAS DO OCIDENTE soal e familiar da realeza germânica; o poder se exerce mais sobre os homens
que sobre a terra e, sendo patrimonial, o território controlado pelos reis fran-
Foi, paradoxalmente, a amplidão do desmoronamento do Ocidente que cos é dividido ou reunido ao sabor de sucessõesmais ou menos pacíficas. Os
permitiu a emergência de novas estruturas políticas. Se o último imperador reinos parciais - os Teilreich- alcançam no decorrer dos anos suficiente estabi-
romano acabou eliminado em 476, de há muito o poder já pertencia a pode- lidade para que o sentimento de pertencer à mesma comunidade se desenvol-
rosos apoiados por seus fiéis: generais de exércitos "romanos" abandonados a va, ao menos no seio das elites aristocráticas:Austrásia, Nêustria, Borgonha e
si mesmos, chefes celtas de populações desromanizadas ou grandes proprietá- mesmo Aquitânia, componentes do reino dos francos. Para exercero poder de
rios de terras protegidos por bandos de mercenários (os buccelariã, mas sobre- mando (bannum), os soberanos enfraquecidos pelas rivalidades familiares de-
tudo reis germânicos, chefes de guerra de coalizões de tribos e de remanescen- vem, daí em diante, obter a qualquer preço a cooperação e o apoio dessaseli-
tes populacionais que migram através da pars occidentalis. Seu poder era o de tes. É que o velho problema dos recursos do Estado se agravara:o desapareci-
um chefe sustentado por uma elite de guerreiros que lhe deviam fidelidade ab- mento progressivodas estruturas administrativas reduziu os tributos e as tenta-
soluta, mas esperando dele sustento e fortuna, poder que se exercia não sobre tivas de restauração de uma fiscalidadepública haviam malogrado. O monar-
um território mas sobre um povo. A autoridade e o poder mágico do chefe ca distribui as terras do fisco assim como seu próprio bem patrimonial a seus
germânico, manifestado exteriormente no rei franco por seus cabelos longos e fiéis e aos grandes que o sustentam, mas quando o reino dos francos deixa de
por um nome próprio à sua família, seu mund (o rei era protetor, pacificador crescer, na segunda metade do século VI, o sistema chega ao fim com a ruína
e justiceiro) deviam ser legitimados pelo sucesso no campo de batalha; ele es- definitiva da família do soberano e o progresso das tendências centrífugas.
tava à mercê do menor revés. A monarquia franca vai ter, entretanto, uma segunda oportunidade. Os
Entretanto, o Império não desapareceu sem deixar profundos vestígios. A principais beneficiários da decadência merovíngia foram, na Austrásia, mem-
aristocracia senatorial e provincial estiveram sempre presentes, mesmo quando bros da linhagem dos Pepínidas. Pepino II, apoiado na região mais dinâmica
seus membros emigravam para o campo: o fisco e o tributo levantados nas ci- (tanto pelo renascimento do comércio da Europa do norte como pelas possi-
dades não haviam desaparecido. Sobretudo os quadros administrativos - pro- bilidades de expansão graças à cristianização das regiões germânicas do norte
víncia, diocese, cidade - tornaram-se ativos graças à Igreja cristã; os bispos, e do leste do Reno) e dispondo de imensos domínios de seus ancestrais pater-
aliás, freqüentemente pertenciam a famílias senatoriais e eram, nos séculos V e nos (família de Santo Arnoldo) e maternos (Pepino de Herstal), asseguralogo
VI, os verdadeiros responsáveis pelas cidades, Os reis germânicos perceberam o poder na Austrásia e sua hegemonia na Nêustria após a batalha de Tertry
logo as vantagens que podiam tirar de uma relação com eles. Mas os francos se- (687). Esse é um poder de fato, baseado no poder territorial e nos acordos
rão quase os únicos a tirar proveito dessa aliança, na medida em que seu rei com as aristocracias locais: para conferir legitimidade fictícia ao sistema, é ne-
Clóvis converteu-se ao catolicismo, enquanto a maior parte dos outros sobera- cessário a fachada dos reis merovíngios (os "reis indolentes") em nome dos
nos optou pelo arianismo. Clóvis, batizado em Reims, no Natal de 496 ou 498, quais se exerce o verdadeiro poder. A morte de Pepino II abala essa estrutura,
entrou em Tours, em 508, ostentando a púrpura do triunfo e fez-se aclamar porém seu sucessor, Carlos Martel, acentua o domínio da família. Ele confis-
cônsul- o imperador do Oriente, Anastácio, parece ter-lhe concedido as insíg- ca os bens dos seus adversários e sobretudo grandes quantidades de terras da
nias do consulado - e Augusto. Ele reuniu em 511 o primeiro concilio das Gá- Igreja para repartir com seus próprios fiéis, seus vassalos. Dispondo, assim, de
lias, em Orleans. Quando burgúndios, alamanos e turingios são atraídos para um formidável exército, pôde .intervir na Frísia e na Saxônia, e também na
a órbita dos francos, quando os ostrogodos são desbaratados pela efêmera re- Aquitânia e na Provença. Sua vitória sobre os árabes em Poitiers e seu apoio a
conquista bizantina e os visigodos pela conquista árabe, a monarquia franca missões de cristianização restauram a imagem denegrida pela espoliação das
torna-se o cadinho das novas estruturas políticas do Ocidente. igrejas. O brilhante êxito militar de Carlos Martel não pode, com efeito, dis-
Mas essa emergência é uma história longa e movimentada ... Excessiva- simular a brutalidade e rapacidade do seu poder. Seus sucessoresPepino III (o
mente vasta, a dominação franca ajusta-se mal ao caráter simultaneamente pes- Breve) e sobretudo Carlos Magno souberam transformar o poder de fato em
Diciond r u / emauco do Ocidente AfetÍit'v,lÍ

verdadeiro poder de Estado, cuja legitimidade parece doravante incontestável: RESTAURAÇÃO DO IMPÉRIO E ASCENSÃO DAS MONARQUIAS

eles sucedem os últimos Merovíngios e concluem uma série de acordos com


os papas. A coroação imperial de Carlos Magno, em 800, será a apoteose. O edifício carolíngio não tardaria a desmoronar. Desde meados do sécu-
É indispensável mencionar esses aconteci memos para compreender o lo IX, os ataques dos vikings, húngaros e sarracenos tinham posto fim à sua
Estado carolíngio, que foi o primeiro Estado medieval. Não se pode dizer que expansão triunfante: na defensiva, o Império entra em fase de contração. O
a monarquia merovíngia tenha sido algo além de um esboço de Estado. No velho problema da patrimonialidade do reino ressurge com as lutas ferozes
entanto, em profundidade a situação merovíngia perdurou: o poder não tinha que opõem os filhos de Luís, o Piedoso: não apenas o Império está dividido a
outro recurso senão o que ele possuía ou usurpava; o Estado carolíngio per- ponto de o título imperial acabar por perder toda a significação, mas os reis
manece um Estado predador. Mas desde então ele tem uma maior eficiência. rivais multiplicam as ofertas para garantir a fidelidade dos poderosos. Eles es-
O sistema de redistribuição em favor dos grandes fu~cionários por intermé- tão de tal forma ofuscados pela competição imperial que preferem delegar seu
dio de verdadeiras instituições (a vassalidade, a recomendação, o juramento poder de mando aos condes que agrupam numerosos condados sob sua auto-
prestado ao imperador e sistemas de transferência da terra como o benefício ridade para assumir os encargos da defesa contra os invasores.Assim nasce no
ou o precário) que permitem estabilizar e regular a relação social é a própria Império uma série de principados, ~nquanto os últimos Carolíngios desapare-
essência do poder. O soberano e seus representantes na terra, condes, bispos e cem, uns após outros, despojados de suas terras e de seu prestígio. A pulveri-
missi dominici, esforçam-se por controlar esse sistema multiplicando as visitas zação do poder público acentua-se ainda mais no séculoX e prossegue no XI.
de inspeção, mantendo vivas e ativas as instituições públicas (os tribunais, o O poder de mando de origem pública não desaparece, mas despedaçado re-
exército) e fazendo observar as disposições tomadas pelo monarca e seus con- parte-se segundo uma hierarquia variável no seio das elites da aristocracia mi-
selheiros e consignadas nos capitulares. E a espantosa série de conquistas de litar, dos príncipes aos condes, dos condes aos castelões e dos castelões aos
que Carlos Magno é autor (Frísia, Saxônia, Francônia, Baviera, reino lombar- mais poderosos senhores. Aí, esse poder encontra um outro, o do senhor ru-
do, Gótia, Marca da Espanha) irriga com sangue revivificante o velho orga- ral sobre seus homens, seus dependentes. O Estado não mais se resume a uma
nismo do reino dos francos. relação social privilegiada entre o soberano e a aristocracia militar: ele está
No entanto, não é esta a contribuição essencial de Carlos Magno. É a compreendido no conjunto de relações sociais que estruturam essa classearis-
construção ideológica de uma monarquia cristã: fazendo-se coroar imperador tocrática; é exatamente isso que constitui a revolução feudal.
em Roma, Carlos garante a renovatio imperii; o renascimento do império de O Estado poderá, entretanto, restabelecer-see reformar-se.Dois fatos de
Constantino. Cercado de letrados anglo-saxões (Alcuíno), lombardos (Paulo estrutura em parte explicam isso. Em primeiro lugar, a atividade econômica
Diácono) e aquitânios, o imperador desenvolve sistematicamente uma imita- mantém-se, e rapidamente após o ano 1000 conhece mesmo um extraordiná-
tio imperii. Mas ele não é nem um novo Constantino nem um novo Davi, o rio crescimento, que vai durar até o século XIII. As cidades do Ocidente, em
regente do povo eleito. Davi e Salomão foram desde o começo constantemen- decadência desde o século III, crescem e multiplicam-se; a produção dos cam-
te evocados pela propaganda carolíngia em detrimento dos bizantinos. Mas pos enquadrados nos senhorios, graças aos arroteamentos, à diversificação e
como Davi, Carlos era a uma só vez rex et sacerdos(rei e sacerdote), embora intensificação das culturas, nutre uma população em pleno crescimento. O
isso não implicasse para o soberano caráter sacerdotal, apenas a função de pre- grande comércio renasce, uma grande indústria têxtil (Flandres, Itália do nor-
gador e fiador da ortodoxia: isso simplesmente quer dizer que sob sua autori- te) aparece; o contexto econômico é, portanto, favorável. Posteriormente,
dade e proteção, os povos e a Igreja devem viver em paz: Carlos Magno e os com o Império Carolíngio desmoronado, a Igreja manteve-se: mais uma vez
intelectuais que o cercam conceberam assim uma monarquia profundamente os invasores são convertidos. Sem dúvida, a instituição episcopal, quase inte-
cristã na qual a questão dos dois poderes (do rei e da Igreja) está resolvida an- grada ao Estado carolíngio, sofre com sua ruína e a instalação do feudalismo,
tes de ter sido efetivamente colocada por um papado decadente. mas a fundação de mosteiros (como Cluny) dispensados pelo papado da tute-
la episcopal, permite uma reforma profunda e uma regeneração do monasti-
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cismo. Essa Igreja reformada conserva intacta a memória histórica e a cultura gica: estando a salvaçãoda Igreja na sua constituição como ordem autônorna
jurídica e ideológica oriundas do passado romano e carolíngio, e está pronta inteiramente diferente da dos leigos, ela devia, por certo, enfrentar de início o
a fornecer dirigentes de valor a um Estado renascente. feudalismo, mas em seguida também o Império. A segunda fase da reforma -
Mas esserenascimento estatalserviu-sede duas vias bem diferentes. Na pe- que se chama de gregoriana - arrasta consigo um conflito de extrema violên-
riferiado Império Carolíngio,onde o processode decomposição não estavacom- cia, que se estenderá até o século XIII e terminará após a morte de Frederico
pletamente acabado, a dinastia nacional saxônica apoderou-se da coroa da Ger- II, em 1250, com a vitória do papado e a ruína das pretensões hegemônicas
mânia; aureolada pela sua vitória sobre os húngaros (955), o rei da Germânia do Império. Em todos os planos, o fracassodo modelo imperial era inevitável.
Oto I, esposo de Adelaide, herdeirado reino da Itália, restaura o título imperial. Uma nova estrutura política, porém, emerge lentamente no próprio co-
O Império Otônida, iniciadordo Ostsiedlung, o "impulso germânico para o Les- ração do desastre carolíngio. Dessa aristocracia militar que passou a exercerco-
te", reencontra a dinâmica conquistadora necessáriaà sobrevivênciade todo im- letivamente o poder público distinguiam-se gradualmente dois poderes, a mo-
pério predador. Por outro lado, a relaçãosocial que ainda constituía a estrutura narquia feudal e a Igreja. Mas essa mesma Igreja, após haver de início ajudado,
de divisão dos poderes estava simultaneamente' abalada e diversificada, tendo voltava-se contra o poder imperial, agindo poderosamente a favor das monar-
como intermediários as grandes linhagens patrilineares que se arrogam o direito quias feudais. A reforma, há pouco evocada, havia tido como objetivo funda-
de dominar os grupos nacionaisque, no interior do Império, haviam obtido re- mental na sua primeira fase escapar ao arbítrio e à violência inerentes ao feu-
lativa autonomia. Isso não se resume apenas à aristocracia militar, porque as ci- dalismo. Mesmo os senhores e detentores de parcelas da autoridade pública
dades, tanto na Itália quanto na Alemanha, desempenham um papel cada vez (quantos bispos não eram também condes em suas cidades?)e os clérigos arris-
mais importante. Mas se no início esseselementos estão a favor do Império, vol- cavam-se a serem absorvidos na tormenta. Os imensos bens da Igreja eram pre-
tam-se depois contra ele;as grandesfamíliasedificam principados territoriais que sa tentadora para os feudais, que a espoliavam pura e simplesmente, ou que ga-
irão seguir evolução própria, enquanto o movimento comunal na Itália do nor- rantiam a membros de sua família a posse hereditária dos mais importantes be-
te deixou, inexoravelmente, a Itália fora do alcance dos imperadores. Sempre nefícios e dos domínios que mais lhes interessavam. Para salvara Igreja, a-Re-
prestigioso, o poder imperial esvazia-sede conteúdo; sem fiscalidade antes do forma visava, antes de tudo, separar completamente a ordem dos leigos da dos
século XV; dispondo apenas de alguns recursos que lhe oferecem as cidades do clérigos; fora do mundo dos leigos, a ordem eclesiásticaestaria livre para cum-
Império que ele pôde obrigar, logo o poder do imperador depende unicamente prir sua missão, regenerar a sociedade cristã e conduzi-la pelo caminho da sal-
do poder que possui enquanto príncipe territorial; o poder de Frederico II está vação. Nessa perspectiva, o celibato dos sacerdotes (até então longe de ser a
embasado no seu reino da Sicíliacomo o de Luís da Baviera,dos Luxemburgo e norma) tornava-se empresa essencial; no tocante ao intercâmbio de mulheres,
dos Habsburgo dependerão de seus principados patrimoniais. a ordem eclesiásticaexerciaestrito controle dos laços de parentesco e reforçava
No plano ideológico, se os imperadores otônidas visam restaurar o edi- o valor sacramental do laço conjugal. Outro meio de ação sobre a aristocracia
fício carolíngio, serão levados a modificar sensivelmente sua ideologia. O mo- guerreira era a "paz de Deus", que visavadisciplinar, senão impedir, a violência
delo cristão é doravante mais o de Cristo que de Davi: a teologia política dos feudal, proibindo a guerra em certos períodos e excluindo de suas devastações
dois corpos do rei que essemodelo estimula é fundamental para o renascimen- as mulheres, as crianças e todos os que estavam sob proteçâo da Igreja. Progra-
to da idéia de Estado no Ocidente, facilitando a distinção entre o corpo físi- ma ambicioso, que se chocava com forte oposição no próprio seio da Igreja, cu-
co do rei e o corpo imortal do rei, personificação do Estado. Contudo, a rela- jos dirigentes eram quase sempre originários dessa mesma aristocracia guerrei-
ção do Cristo com o Estado Romano, de uma parte, e com Pedro, de outra, ra que ele tratava de combater: Os reformadores eclesiásticosficaram felizesem
também está destinada a oferecer a matriz de uma relação estável entre o Im- encontrar a aliança dos monarcas feudais: os reis, não tendo as pretensões uni-
pério e a Igreja. O concurso desta era necessário aos imperadores otônidas e versais dos imperadores, não se mostravam perigosos nesse plano.
aos seus sucessores sálios, e até meados do século XI eles ajudaram-na a se re- Entre o Loire e o Mosa, onde se situava o epicentro da revolução feudal,
formar e escapar do feudalismo. Mas a reforma da Igreja tem sua própria ló- apenas uma monarquia subsiste inicialmente, a dos Capetíngios. Eles não são,
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provavelmente, os mais poderosos príncipes feudais do reino, e de início sua le- reiras: assim se explica o sucessoem Saint-Denis do hasteamento da auriflama
gitimidade não é clara. Somente eles, entretanto, são reis, e sagrados: apoian (estandarte real) contra o Império, no século XII. Essa relação reproduziu-se,
do-se nessa força moral, vão fazer reconhecer sua posição excepcional no reino com os mesmos efeitos, no caso das monarquias da Península Ibérica (Leão,de-
e tornar, pouco a pouco, a monarquia feudal uma instituição de envergadura pois Navarra e Castela, Aragão, depois Portugal): a preponderância da estrutu-
diferente da dos principados feudais, por mais poderosos que eles momenta- ra feudal aí era menor e as comunidades rurais e urbanas desempenharam um
neamente fossem. Quando o movimento de paz lançado pela Igreja se enfra- papel mais importante; mas também concorreram entre si na sua própria zona
quece, eles o tomam sob sua responsabilidade; os bispos recrutam por sua con- para apropriar-se, controlar e valorizar as terras tomadas aos muçulmanos na
ta milícias comunais que os reis utilizam com vassalos submissos ao seu pró- Reconquista, vasta empresa guerreira. A monarquia feudal apresenta. assim,
prio ban [poder de mando] para defender o reino e manter a paz, aplicando os duas faces contrastantes: uma de paz, de justiça e de religião; outra, de guerra.
julgamentos da justiça real. O princípio monárquico, com a cumplicidade da Mas elas são inseparáveis e o desenvolvimento de uma passa pelo da outra.
Igreja, aumenta seu prestígio e seu poder legitimador às regras próprias do feu-
dalismo e amplia muito sua eficiência, ao menos a partir do momento em que NASCIMENTO DO ESTADO
foi respeitado. No coração da anarquia e da violência arbitrárias do feudalismo,
a monarquia feudal coloca-secomo a imagem e a garantia da legitimidade e da Ao final do século XIII, ocorre uma mudança decisiva que contém em
sacralidade do poder, da justiça e da paz: a insistência dos Capetíngios em sua germe a evolução futura e a transformação da monarquia feudal no que se
posição de "reis cristianíssimos" assinala sua singularidade e sua eminência. pode denominar Estado moderno, pois esta forma de Estado é o ancestral di-
Ora, mesmo se a ação dos Capetíngios do séculoXII, Luís VI e Luís VII, é reto, sem descontinuidade, do moderno Estado europeu atual. Tempo marca-
valorizada pelo talento e inteligência excepcionaisdo abade de Saint-Denis, Su- do pela personalidade singular de São Luís, a concorrência entre as duas gran-
ger, a monarquia capetíngia logo teve de lutar pela defesa do reino contra uma des monarquias ocidentais assume uma violência e uma amplitude novas com
estrutura política concorrente. Em 1066, de fato, o duque da Normandia con- Eduardo I e Filipe, o Belo: Eduardo, conquistando o País de Gales e em se-
quistou a Inglaterra e, transformando completamente a sociedadee o sistema po- guida a Escócia, pretende governar sua Aquitânia como soberano, no momen-
lítico anglo-saxão, lá introduziu o feudalismo e edificou uma monarquia feudal to em que Filipe não quer abandonar nenhuma de suas prerrogativas sobera-
Mas a periferia britânica era para essa nova monarquia apenas uma zona de do- nas na Gasconha ou em Flandres. A partir de 1291, os dois reis irão gastar na
minação extensiva:a frente sobre a qual ela empenhou toda a sua energia era con- batalha grandes somas não somente para equipar e pagar exércitos em que os
tinental, sobretudo quando o plantageneta Henrique II anexou à Normandia o profissionais desempenham um papel cada vez mais determinante, como tam-
principado angevino de sua família e a Aquitânia de sua esposa Eleonora. Duas bém para financiar alianças diplomáticas através de toda a Europa. Estimou-
monarquias feudais concorrentes defrontam-se, então, para o controle do mes- se que, em 1294, Eduardo I cobrou de impostos uma quarta parte da massa
mo espaço e essa relaçãodialética faz delas duas estruturas orientadas principal- monetária em circulação na Inglaterra...
mente para a guerra, em conformidade com as mentalidades e o gênero de vida Níveis semelhantes de fiscalidade tinham sido alcançados anteriormen-
da aristocracia feudal de que elas aparecem como o prolongamento. te, em especial no auge da rivalidade entre Filipe Augusto e os Plantagenetas,
Em suma, durante os períodos precedentes, os diferentes regna não eram porém agora o esforço devia durar. Dos incessantes conflitos franco-ingleses,
senão múltiplas facetas do todo inicial, o Império, disputadas entre os mem- anglo-escoceses,franco-flamengos do início do século XIV, passa-sesem solu-
bros da mesma família, que concorriam entre si corrompendo suas respectivas ção de continuidade à Guerra dos Cem Anos. Tanto a freqüência quanto o
clientelas: a guerra era uma estrutura endógena. As monarquias feudais, ao elevado nível da carga fiscal levam os soberanos a inovar e a passar de uma fis-
contrário, caracterizavam-sepor uma relação dialética de concorrência em que calidade feudal a uma fiscalidade de Estado que, a despeito das repetidas ex-
a guerra era uma estrutura exógena; qualquer que fosse sua fraqueza aparente, periências no decorrer do século precedente, é ao menos em parte novidade.
os reis irão desde logo aparecer como chefes naturais de suas aristocracias guer- Da fiscalidade feudal a monarquia guarda o conceito de auxilium, de "ajuda
Dicionário Temáuco do Ocidente !'vfedielM! Estado

ao suserano", e é importante constatar que o "Estado moderno" nasceu onde bens existam e sejam protegidos: contra a arbitrariedade da violência feudal e
se desenvolveu o feudalismo (e onde foi importado pelos normandos ou pe- a flutuação dos variados tipos de terra que favorecem o feudalismo, o Estado
los cruzados). Mas a fiscalidade do Estado rompe com o caráter amplamente por intermédio de seusjuízes vai permitir e proteger o desenvolvimento da pro-
arbitrário da cobrança feudal, feita de uma mistura de costumes e de "doa- priedade individual. Enfim, para negociar o assentimento do súdiro, o Estado
ções" ou de empréstimos que são apenas uma espoliação aceita devido à rela- estabelececom ele um diálogo que se opera, ao menos em parte, por intermé-
ção de forças. Para manter essa cobrança por mais tempo, é necessário de- dio de assembléias representativas como o Parlamento inglês, os Estados fran-
monstrar sua legitimidade e, pelo consentimento negociado com os represen- ceses ou as Cortes ibéricas, e criou uma comunicação "política", posto que em
tantes dos que irão pagar, tornar a recusa fiscal difícil, senão impossível. Para toda parte os'contribuintes irão subordinar seu acordo a concessõese contra-
isso, existe o aparelho jurídico e ideológico necessário: ele se desenvolvera ha- partidas da parte do Estado. No Estado moderno, a taxação é bem mais fácil
via já um século, e para o próprio uso (especialmente para a Cruzada) da Igre- (e rentável) porque fundamentada no consenso.Assim, o súdiro passívelde co-
ja, que integrara no direito canônico princípios jurídicos do direito romano brança é antes de tudo um súdito ativo na política, prefiguração do que será,
(particularmente o princípio quod omnes tangit ab omnibus tractari et appro- séculos mais tarde, o cidadão moderno. No fundo, o Estado moderno cria um
bari debet)i e os indispensáveis mecanismos de representação e delegação de princípio de participação política que é novo porque não está mais fundado no
poder. Com a ajuda dos clérigos que estão a seu serviço, os reis buscam de- fato de o indivíduo pertencer à polis; ele está adaptado a um espaço extensível,
monstrar que a guerra cria uma situação de necessidade: eles são forçados a não diferenciado, justamente o que o Império Romano não havia conseguido.
mobilizar homens e dinheiro para defender seu reino, e, defendendo o reino, É sintomático, sob esse ponto de vista, que a redescoberta da palavra "política"
defendem os bens de todos os súditos, sendo pois natural que estes contri- e de sua plena significação pelo viés da Política de Aristóteles coincida exata-
buam com seus próprios bens para a defesa comum. mente com o nascimento do Estado moderno.
Mas ao taxar o conjunto de seus súditos porque são seus súditos, e não As resistênciassociais no próprio seio dos "Estados modernos" são forres:
somente seus vassalos (com a obrigação de eventualmente taxar seus próprios resistências da aristocracia nobiliária e das burguesias que vêem suas prerroga-
homens), os reis não executam uma simples mudança de escala, mas uma ver- tivas ameaçadas; resistências dos campesinatos oprimidos pela nova taxação
dadeira subversão do sistema político, que vai bem além da multiplicação do que se junta à imposta pelos senhores. De maneira geral, contudo, disputando
número de contribuintes. Efetivamente, três mudanças fundamentais decorre- os benefícios da distribuição do dinheiro cobrado, as elites da sociedade políti-
ram dessa medida: em primeiro lugar, ela ignora as diferenças de estatuto en- ca reconhecem a legitimidade da construção estatal. O Estado transforma pro-
tre os homens e os poderes intermediários; livres e não livres, clérigos e leigos, fundamente a sociedade por sua própria existência. É preciso povoar as admi-
nobres e não nobres, todos têm vocação para, um dia ou outro, ser contribuin- nistrações e as cortes; oficiais de justiça e burocratas de toda espécie são cada
tes. Por outro lado, o conflito logo envolve os reis do Ocidente e o papado: a vez mais numerosos, pelo menos proporcionalmente a uma população em pro-
humilhação de Bonifácio VIII em Anagni, depois o exílio do papado em Avig- fundo declínio até meados do século xv. Os "saláriosdo rei" distribuídos aos
non, mostram bem a vitória do Estado. Quanto à isenção fiscalque Carlos VII soldados, os ofícios e os cargos públicos que conferem vantagens e autoridade,
acabou por conceder à nobreza (com, no final, a mudança da monarquia fran- a benevolência e compreensão dos tribunais reais: tantos privilégios levam a
cesa em monarquia absoluta) é mais exceção do que regra; a vassalidade como uma busca encarniçada, que obriga à concordância mesmo aqueles que teriam
a servidão estão por isso mesmo destinadas ao se enfraquecerem enquanto re- podido contestar a açâo do Estado..Os partidos nobiliários lutam menos con-
lações sociais determinantes. Em seguida, já que o Estado se reserva o direito tra as cobranças do Estado do que para controlar sua redistribuição em época
de apelar em caso de necessidade aos bens de seus súditos, é preciso que esses de crise econômica e social e na qual a renda senhorial estagnou ou diminuiu.

É necessário, no entanto, resguardar-sede toda teleologia e anacronismo.


I. "O que atinge a todos deve ser aprovado por todos" . (N.T.)
As construções estatais medievais são várias e o "Estado moderno" é apenas

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[)ióo"tÍriu Temática do Ocidente Medieval Estado

uma dentre elas: a Inglaterra e a Escócia, os reinos ibéricos, a França e os prin- CULTURE er idéologie dans la geni'se de 1'(,,,,, moderne (Tahle ronde, Roma, 1984). Roma, 1985.
cipados que a cercam ou dependem dela (Brabante e, de modo geral, os Esta- FÉDOU, René. L'É,at au Moven Âge. Paris, 1971.
dos borgonheses, Bretanha, Savóia), alguns principados do Império. Existem GENET, Jean-Philippe (ed.). L'Étal modcrne: Kenese.Bilans et perspectives (Colloque 1989). Paris, 1990.
outras construções: o Império, as monarquias "extensivas" da Europa do leste ___ ; LE MENÉ, Michcl. Genêsr de l'État moderne. Pré/evemenls et redistribution (Colloque Fonte-
efetivamente dominadas pela nobreza, as grandes cidades italianas ou imperiais vraud, 1984). Paris, 1987.

que ainda mantêm rotas comerciais, o banco e estão em melhores condições ___ ; VINCENT, Bernard (ed.). Êtat et Églisedam la genese de l'Étar moderne. Paris e Madri, 1986.
para mobilizar capital que as monarquias ocidentais. Por outro lado, na medi- GOURON, André; RIGAUDIERE, Albert (ed.). Rmaissance du pouvoir Iigislatifel genesede l'État. Mont-
da em que a guerra é ao mesmo tempo causa e a melhor justificativa do desen- pellier, 1988.

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devastações e as vicissitudes de uma guerra que ele infatigavelmente alimentou.
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Uma era de feroz e generalizada concorrência abre-se, assim, para a Europa, se- ce. Paris, 1989. p. 21-180. v. 2.
lecionando impiedosamente os Estados mais competitivos: a própria comple-
LEWIS, Andrew W Le Sang royal: la famiHe capétienne er l'Êtat, France (Xe_XlVesiêcle) [193IJ. Tradu-
xidade do mapa político da Europa no final do século XV mostra que o pro- ção francesa. Paris, 1986.
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JEAN-PHILIPPE GENET r
Tradução de Daniel ValleRibeiro
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REMIss6ES
,
Assembléias - Direito (s) - Guerra e Cruzada - Império - Justiça e paz _
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Moeda - Rei - Senhorio

Orientação bibliográfica

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