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Isso não é uma introdução. [Epa! Esta fala é minha. R. MAGRITTE, VIA SESSÃO ESPÍRITA].
[Podia ser minha também. M. FOUCAULT, VIA PAI-DE-SANTO]. Era pra ser. Foi o que
disse a dona da editora, a Rejane. E era pra ser escrita pela própria autora, como, aliás,
toda introdução, que, como todo mundo sabe, é algo completamente diferente de
apresentação. A diferença é muito simples: uma introdução é uma introdução, uma
apresentação é uma apresentação. E era pra ser algo, digamos, mais palatável do que o
que está dentro do livro. [O que envolve uma evidente contradição, porque uma
introdução também está dentro do livro. E, pro meu gosto, está no ponto. EU MESMO, T.
T., PEGANDO O REFÚGIO DOS COLCHETES]. [Oi, Sandra, não foi o que combinamos. E
quem é este cara que se meteu aqui? REJANE, VIA EMAIL, DEIXANDO TRANSPARECER
UMA CRESCENTE IMPACIÊNCIA]. [Rejane querida, não te preocupa. Ele tem o mesmo
nome de um autor da Autêntica, mas não passa de um personagem meu. Sou eu mesma
quem está escrevendo tudo aqui. Fica zen, está tudo sob controle. A AUTORA, TAMBÉM
VIA EMAIL].
Como dizia, antes de ser interrompido, isto não é uma introdução. Mas também é. Do
contrário, não estaria aqui, antes de o livro começar. Mas, afinal, o que é mesmo uma
introdução? Parece uma coisa simples, né? [Rejane, vamos deixar passar esses
coloquialismos? A REVISORA, VIA REDE INTERNA]. Abro um livro. Vejo escrito
“introdução”. Vou direto. É como um guia, né? O autor vai nos dizer o que escreveu,
vai nos dar um resumo da ópera. Quem não gosta? Mas se o autor escreveu um livro pra
nos dizer alguma coisa, por que ele precisa, agora, escrever alguma coisa pra explicar
aquela alguma coisa que escreveu? Se a coisa está bem dita, não precisa de explicação.
Se não está, é a própria coisa que é dispensável. Mas aí não haveria o livro, né? [Rejane,
este abuso do coloquialismo está passando dos limites. A REVISORA, EM PESSOA, NA
SALA DE CAFEZINHO DA EDITORA]. Bom, mas neste caso, o livro está aqui. É uma coisa
palpável. Visível. Concreta. Só não decidimos ainda se isso é, afinal, uma introdução ou
uma apresentação.
Agora, uma apresentação também parece coisa bem simples. Uma pessoa, em geral de
“renome” , apresenta a autora e sua obra. [Quem ele pensa que é? Com que credenciais
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PERDENDO O CONTROLE DE SEU ALEGADO PERSONAGEM]. Mas não é assim tão simples.
Salta aos olhos que um livro que precisa de apresentação já se apresenta, de cara, como
deficiente, como não sendo capaz de se sustentar por si mesmo. [Vamos deixar claro:
não é o caso do meu livro. SANDRA, AGORA JÁ SEM QUALQUER CONTROLE SOBRE O
Uma apresentação, dizia eu, ou não dizia, pouco importa, deve, portanto, falar sobre a
autora e sobre o conteúdo do livro. [Rejane, este “portanto” não tem nada a ver.
Cortamos, né? A REVISORA, EM OBSERVAÇÃO ESCRITA À MARGEM DAS PROVAS DO LIVRO
E EM FLAGRANTE DELITO DE COLOQUIALISMO]. Comecemos, portanto, pelo conteúdo.
[Oi, revisora, este “portanto” tem tudo a ver, né? EU MESMO, EMBAIXO DA OBSERVAÇÃO
DA REVISORA, EM RETALIAÇÃO E ECOANDO, IRÔNICO, O COLOQUIALISMO DELA].
[Finalmente! REJANE, MAIS ALIVIADA, AGORA INTERVINDO POR VIA DIRETA E FAZENDO
VALER SEUS DIREITOS DE DONA]. E nada mais natural do que começar falando sobre o
que o livro não é. [Ai, ai, ai... REJANE, VIA SUSPIROS E TEMENDO PELO PIOR]. [Só espero
que este cara não se meta também na minha orelha. PAOLA ZORDAN, ORELHISTA DO
LIVRO E SE METENDO NA MINHA APRESENTAÇÃO, VIA SANTO DAIME]. [E eu, que não se
meta na vida da minha mulher. HUGO, MARIDO DA AUTORA, POR VIA ELÉTRICA]. [É
intromissão demais! Serão, a partir de agora, impiedosamente suprimidas. EU,
Comecemos, portanto, repito, pelo conteúdo. Este, tenho absoluta certeza, não é um
livro sobre o ser e o nada, os mares e os oceanos, o pensamento e o desejo, as florestas e
os desertos, o amor e o ódio, a flora e a fauna, o gozo e a dor, os ventos e as
tempestades, a alegria e a tristeza,os batráquios e os répteis, a paixão e a indiferença, os
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O bom de se escrever sobre um autor, neste caso, uma autora, é que a gente já sabe
como fazer. Primeiro, tem que dar alguns dados biográficos mínimos. Coisas como:
onde nasceu; quando; onde se criou; que escolas freqüentou; se é pessoa de vida
conjugal regular, com quem conjuga; que livros escreveu; enfim, coisas do gênero. O
leitor gosta e fica com uma sensação de intimidade. E é muito útil para alunos que são
obrigados a fazer trabalhos escolares sobre o autor ou a autora em questão. Ou para
resenhistas preguiçosos. E tem gente que não consegue ler um livro se não sabe quem o
autor é. Quero deixar bem claro que não vou fazer nada disso aqui. Nem por isso o que
vou dizer será menos esclarecedor ou menos útil. É apenas uma questão de enfoque.
Antes de ser alguém, ela não era nada. O que, aliás, acontece com todo mundo. Depois
que virou alguém, decidiu ser ninguém. O que, obviamente, não acontece com todo
mundo. Mas virando ninguém ficou igual a todo mundo. O que indica, seguindo um
silogismo irretocável, que todo mundo pode virar ninguém. Agora, o triste é que ela tem
saudade de quando era alguém. E o mais triste ainda é que ninguém se importa. Mas,
em algum lugar, alguém chora. E não me venham dizer que isso não tem nada a ver com
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a história. Tem, sim, ainda que seja uma outra história. Como já temos a nossa, vamos
deixá-la de lado. Não sem antes concluir a que começamos. Que, aliás, tem uma
conclusão muito simples: a distância entre alguém e ninguém é menor que zero. Admito
que, matematicamente, é uma coisa difícil de entender. Mas, traduzindo em termos
simples e didáticos, que é pra isso que serve uma introdução ou apresentação, este
famoso teorema matemático, que acabo de inventar, significa simplesmente que passar
de alguém pra ninguém não é menos difícil do que passar de ninguém pra alguém. Que
é o que queríamos demonstrar. O que, de resto, nossa autora sabe muito bem. Taí uma
informação que não vai ajudar em nada o Joãozinho, ou a Mariazinha, que precisa
escrever umas linhas sobre nossa estimada autora pra completar seu trabalhinho escolar.
Por outro lado, isso mostra como é fácil escrever um parágrafo inteiro sobre nada. Ou
sobre ninguém. O que me faz voltar à nossa autora.
É evidente que nossa autora é Sandra Corazza, como anuncia a capa do livro. O que é
menos evidente é quem ela gostaria de ter sido. E vou dizer uma coisa pra vocês. Muitas
vezes é mais importante saber quem gostaríamos de ter sido do que o que somos. Só não
vê quem não quer que nossa querida autora gostaria de ter sido, antes de mais ninguém,
Friedrich Nietzsche. E de ter feito longos e pensativos passeios pelos bosques de Sils-
Maria. E de ter morado em baratas pensões italianas. E curtido uma paixão recolhida
por Lou Salomé. E ter escrito livros como Assim falou Zarathustra e O Anticristo. Não
amaria menos ter se chamado Virginia Woolf. E ter exercitado sua conhecida arte da
conversação nas animadas reuniões do Bloomsbury Group. E de ter ouvido vozes, como
o personagem Septimus de Mrs. Dalloway. E de ter levado a criação ao limite da
loucura. Desconfio de que ter sido James Joyce tampouco lhe teria desagradado. Muito
pelo contrário. E teria adorado ter conhecido as ruas de Dublin. E ter escrito cartas de
amor deliciosamente pornográficas para Nora Barnacle. E ter freqüentado a livraria
“Shakespeare & Company”, de Sylvia Beach, na Rive Gauche da Paris dos anos vinte.
E, obviamente, ter escrito Ulisses e Finnegans Wake. Também adoraria ter podido
assinar-se D. H. Lawrence. E ter viajado pela Austrália, pelo México e pela Itália com
sua amada Frieda. E de ter escrito poemas admiráveis sobre os frutos, os animais e o
desejo divino. E de ter se rebelado contra as convenções, o poder de qualquer espécie e
ideologia, e a moral sob todos os seus disfarces. Pra terminar, ela amaria ter sido Gilles
Deleuze. E sobre isso nem é preciso dizer mais nada, tão grande é o seu amor por ele. O
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curioso é que, neste livro, ela consegue ser toda essa gente e muitas outras,
permanecendo, entretanto, ela mesma. Vá entender!
Assinado: Sandra Corazza. [Oi revisora, não liga para o que diz esta tal de
Sandra. Ao contrário do que diz, é ela que é apenas uma personagem
minha. Aliás, vamos deixar claro, fui eu quem também escreveu o livro. O
raciocínio é simples. Só não vê quem não quer. Eu gostaria de tê-lo escrito.
Logo, sou o autor. TOMAZ TADEU, TAMBÉM VIA EMAIL]. Assinado: Tomaz
Tadeu. [Caso encerrado, POR VIA DAS DÚVIDAS].
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1.
Furor pedagogicus. – Não importa que a idéia seja nova ou mais velha,
muitíssimo antiga... Não importa de onde venha, se da filosofia, sociologia,
antropologia, psicologia... Não importa quem a expresse. O que importa é que difira do
pensamento dogmático da pedagogia. Então, nem bem é dita e escutada, há sempre uma
multidão alvoroçada indagando: – Mas, então, se isso não é como eu pensava que
fosse... Como fazer? Como é que eu vou agir na sala de aula? Como é que eu vou
ensinar? Como...? Como...? Como...? – Praga, vírus, vício, cacoete pedagógico.
Pergunta que não pára de perguntar. Até quando existirão aqueles que a formulam? E
pior: aqueles que a respondem sem a mínima cerimônia?
2.
Os mestres da culpa. – Se os professores são contemplados com um olhar
favorável ou desfavorável? Invariavelmente, se os vê ocupados numa única tarefa:
culpar os outros. Tantos séculos de culpabilização não serão suficientes para ver onde a
culpa leva?
3.
De amor. – Ela foi professora durante trinta anos. Teve, no mínimo, trinta
turmas e mais de mil alunos. Então, aposentou-se e foi cuidar dos três netos. Não deixou
um texto sequer. No final das contas, precisa maior prova do seu de-s-amor à profissão?
4.
Salvação. – Existe um imenso e profícuo Exército da Salvação na educação.
Salvam-se todos: alunos, comunidade, país, sociedade, cidadania. Educar como uma
viagem imprevista, sem fins pré-estabelecidos, não é uma bela maneira de conjurar todo
esse calamitoso salvacionismo?
5.
Crítica. – Renegados: professores que problematizam, questionam, propõem.
Ultrajante cultura da crueldade...
6.
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aprender. Pois, não se sabe como o aprender é feito, assim como não se sabe como
encontrar um tesouro. Já, ensinar... há tantos mapas por aí!
31.
Beco sem saída. – Proponho uma espécie de lei, que não vale sempre, só em
certos casos: 1ª) educar numa caos-errância, que se opõe à coerência de um sujeito que
representa e de um objeto representado; 2ª) educar num caos informal, que não tem
outra lei que não a sua repetição, que não aquilo que diverge e descentra; 3ª) educar
num empirismo transcendental; 4ª) educar díspar, apenas em permutações e labirintos
sem fio; 5ª) educar poético, livre e selvagem!
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Como um cão
I – Traços
1.
Festa. – A: A escrita faz do pensar uma festa? – B: Mas, se não me engano, em
educação, quase não há festa! – C: Tão morta que é uma tristeza! – B: Por isso mesmo!
2.
No berço. – Nebulosas,
conjuntos vaporosos,
que convocam
as forças inumanas
que vivem no educador.
Da jararaca.
Do jacarandá.
Da petiça.
Da samambaia.
Do sol.
Da alamanda.
Da lesma.
A escrita em educação
pensamenteada
numa teia de aranha.
A paixão de escrever
dançando na corda bamba.
Por toda parte,
fabulação de beleza,
poesia, lírica,
música, ditirambos.
Contingência pura.
No extremo da abstinência,
rouba-se a escrita no berço.
3.
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Bloco. – Escrever sobre educação tem funcionado, na maior parte das vezes, como uma
territorialidade. Trata-se duma reprodução circular, duma progressão em vez de uma
transgressão, de fotos de aulas, lembranças de escolas, desejos presos na armadilha da
representação de alunos, que fazem pesar sobre o ato de educar fortes interditos pueris,
persuasivos, idiotas. Trazer para essa escrita sons de aulas, blocos de escolas sem
lembranças, vidas presentes e ativadas, precipitadas, multiplicadas em suas conexões, é
dar-lhe um máximo de extensão polívoca, em oposição à escrita educacional definida
pelo significante único, rebatimento e neutralização do social e do político.
4.
De brincadeira. – Brincar de escrever, usando a intensidade zero do desejo de educar
como catapulta. Despojar a escrita dos seus elementos representativos ou emocionais.
Desmontar os modelos incorporados às palavras, que as levam a realizar movimentos
figurativos e a imitar alguém ou alguma coisa. Constituir um movimento novo e puro de
escrita, que extraia do escrever como evento a sua energia. Brincar de escrever que tão-
somente inventa e devém muitas escritas, abre o seu espaço a todas as espécies de
eventos que aí podem ter lugar, a elementos que são heterogêneos, mas que se afectam
cada um a todos os outros.
5.
O que é. – Uma escrita que cria um mundo incerto e perigoso é a única força que faz o
professor diferenciar-se, isto é, tornar-se o que ele é, para além do que dele foi feito.
6.
Contramão. – Para escapar de uma escrita indiferenciada, que vale para tudo, e afirmar
radicalmente a diferença de uma escrita-artista da educação, importa investi-la de uma
não-relação com a prática pedagógica e de afectos da Natureza. Então, ela será
apreciada justamente por estar saturada destes afectos e por não ter qualquer semelhança
com aquela prática. Tudo isso na contramão do moralismo otimista do amor
pedagógico.
7.
Ensina-se a escrever? – A: É possível ensinar a escrever? – B: Não sei se podemos
ensinar a escrever. – C: Para Nietzsche (2003, p.144 ss.), junto à oratória, a escrita é
uma arte que não pode ser adquirida sem “a orientação mais minuciosa e a
aprendizagem mais penosa”. – A: Agora, dizer, ao modo de Deleuze (1988, p.54), –
Vem, escreve comigo, implica escrever para ou com os alunos?
8.
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Escrevo sempre diferente de mim. – Escrever de um modo que não seja fusão, projeção,
nem identificação com ninguém implica afirmar um princípio de diferenciação no
próprio interior da escrita, que aspira à exterioridade absoluta. Assim como dizer: –
Porque sou algo diferente de mim, porque estou sempre no exterior de mim mesma, é
que escrevo diferentemente de mim. Será essa diferença a única que me permite entrar
num processo de devir-escritora, como ser singular, real, que me torna outra? Talvez,
uma educadora-escritora?
9.
Espírito. – Ao artistar a escrita em educação, tomamos partido rigoroso contra qualquer
escrita nostálgica, redentora, aconselhadora, messiânica, profética. Ao escrever,
bebemos de fontes vivas. Uma necessidade de escrever nos persegue como um cão.
Sobre nossa cabeça, guinchando, esvoaça o morcego do espírito da escrita.
10.
Para escrever é preciso ler... – Como Nietzsche (1995, p.47-48) mostrou, essa máxima
não é válida para todos os casos. Muitas vezes, para escrever é preciso deixar de ler, é
preciso defender-se da mera reação à leitura, subtrair-se a situações e relações em que se
fica sujeito a suspender a iniciativa e tornar-se apenas reativo. Aquele erudito que, “no
fundo não faz senão ‘revirar’ livros” perde “totalmente a faculdade de pensar por si”.
Ou seja, se não revira muitos livros, ele não consegue pensar; se apenas critica,
aprovando e reprovando o que já foi pensado, “ele próprio já não pensa”, só reage aos
pensamentos lidos. O seu instinto de autodefesa encontra-se embotado, pois, se assim
não fosse, ele “se protegeria dos livros”. O erudito é um leitor em ruínas, um fósforo
que se necessita riscar para que brilhe, isto é, para que emita supostos pensamentos –
um décadent, no sentido nietzschiano.
11.
Combinações. – Pode-se pensar a escrita-artista em educação como uma grandeza
determinada e um número determinado de centros de força. Disso se segue que ela tem
de passar por um número calculável de combinações, no grande jogo de dados da
existência do educador. Em um tempo infinito, cada combinação possível está alguma
vez alcançada, infinitas vezes. Cada uma dessas combinações expressa o mundo da
educação que infinitas vezes já se repetiu e joga seu jogo in infinitum.
12.
A obra. – Essa escrita, com seu caráter de simulacro, é singularidade que perturba a
realidade da educação e que melhor representa o seu pensamento como jogo afirmador
17
II – Riscos
1.
Ubi?(Onde?) – Escrever feito um jogo ideal, puro, inocente (cf. Deleuze, 1998). As
palavras vão nascendo da imaginação de princípios plásticos, anárquicos e éticos; os
quais, mesmo inaplicáveis na realidade educacional, não integram regras pré-existentes.
Cada ação de escrever – cada escritura-ação – inventa suas regras. A cada página,
parágrafo, frase, palavra, sílaba, letra, acento ou ponto, o acaso é afirmado e ramificado,
constituindo um lance; enquanto cada lance produz eventos ideais. Escreve-se, jogando,
sem vencedores ou vencidos. Não é nem um professor nem uma professora que
escrevem, já que só se escrevem não-sensos. Escrever assim, de modo indiscernível, é a
própria realidade do pensamento educacional, o inconsciente deste pensamento, pois
19
3.
O Fora. Aquele que escreve sob a pressão do Fora, do deserto, do exílio, vê
fragmentar-se a própria unidade subjetiva e desaparecer a forma da interioridade de
qualquer essência do Eu. Então, aquele Fora-de-Si, que diz “Eu escrevo”, não pode
representar um sujeito, não pode ambicionar um Eu idêntico a si mesmo, porque integra
uma linguagem sem sujeito atribuível. As mãos que escrevem não são dele, nem de
ninguém, muito menos de algum autor, que nada mais é do que um sujeito inventado.
Elas escrevem uma escrita anônima, despersonalizada, liberta das garras de qualquer
sujeito desaparecido no discurso. Então, só há um ser: o ser da linguagem que habita o
espaço literário, prenhe de um eterno movimento (cf. Blanchot, 1987). Quem escreve?
Ora, um Desdobrado, cuja palavra passa a constituir um espaço de transgressão, em que
tudo o que é fixo se torna móvel, as verdades são abaladas e vêem-se desmanchadas as
dicotomias interior/exterior, sujeito/objeto, eu/mundo. Esplendor de um escrevinhador
impessoal...
4.
Reino do devir. – A: Andava matutando: – O que podemos escrever em educação, hoje,
nas condições de luz e visibilidade que são as nossas? – B: Já, eu, questionava: – Nessa
escrita, como se exerceriam as relações de forças móveis? – C: De minha parte, eu
ruminava: – Como seria escrever sobre o informe, sobre o não-estratificado, sobre o
espaço de singularidades selvagens onde as coisas não são ainda? – D: E eu: – Quais
seriam nossos modos de existência, dobras, processos de subjetivação? – E: – Jacaré
achou as respostas para essas perguntas? Nem eu... Talvez, só valha a pena dizer: –
Damos escrita para aqueles que são incapazes de fazê-lo; mas estes dão devires à nossa
escrita, sem os quais ela seria impossível.
5.
Furacão, clarão, trovão. – Traçadas numa zona de turbulência, onde se agitam pontos
singulares e relações entre esses pontos, as palavras da escrita-artista não são nem
corpos visíveis, nem pessoas falantes, mas um borbulhar de forças.
6.
Nível. – Nessa escrita, nada é determinado, nada tem forma. Tudo está ainda por
acontecer, num nível constituído somente de afectos e de singularidades.
7.
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Desmembrado. – É preciso afectar e ser afectado para poder escrever. Escrever é ser
desmembrado. É metamorfose constante. É abertura de um futuro que nunca começou.
Errância total.
8.
Viver. – Escrever é um pensamento de vida, não uma receita de felicidade, nem uma
sonolência gostosa, ou uma irresponsabilidade divertida.
Profundo vitalismo: os modos de vida inspiram maneiras de pensar e escrever; os
modos de pensar e escrever criam maneiras de viver.
A vida ativa o pensamento e a escrita; o pensamento e a escrita afirmam a vida.
Como fazer da escrita uma arte de viver? Como torná-la vivível?
Como criar uma unidade entre vida ativa e escrita afirmativa?
Escrever é dobrar o Fora, como faz o navio com o mar.
Fazer do pensamento uma experiência do Fora,
escapar do senso comum,
desestruturar o bom senso,
entrar em contato com uma violência que nos tira da recognição
e nos lança diante do acaso,
abalando certezas e o bem-estar da verdade.
Perder as referências conosco e com o mundo exterior,
afastar-nos do princípio da realidade,
romper com as referências cognitivas,
promover uma ruptura com a doxa,
colocar em dúvida o próprio pensamento,
o Divino, o Verdadeiro, o Belo, o Bem.
Escrever é criar,
aligeirar e descarregar a vida,
inventar novas possibilidades de vida,
fazer nascer o que ainda não existe,
ao invés de representar o que já está dado e admitido.
9.
Quomodo? (Como?) – A escrita representacional pode ser: 1) monista, que considera o
texto como consistindo uma unidade, fundado sobre si mesmo, inegendrado, resistente
ao que não é ele próprio; 2) bipolar, que considera o texto engendrado pelo encontro
entre uma forma e uma matéria. Tanto uma quanto a outra maneira de escrever evitam a
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descrição direta do próprio texto e supõem uma sucessão temporal, que parte de algum
princípio textual, chega ao texto constituído, depois de passar por aquilo que o esquema
textual não estaria tematizando suficientemente: a própria operação textual. Assim, um
texto é algo a explicar e não aquilo em que a explicação deveria ser encontrada. Já um
texto da escrita-artista não é acabado, nem dele se dá uma explicação; mas um processo
em desenvolvimento, uma realidade relativa, uma determinada operação complexa,
ativada vitalmente. Um texto desses, enquanto se efetua, não esgota de uma única vez
os potenciais da realidade educacional, mas designa o seu caráter de devir. Por isso, tal
texto tem a capacidade de defasar-se em relação a si próprio, de resolver defasando-se,
de resultar numa incompatibilidade inicial, rica em potenciais, num sistema tenso,
supersaturado, acima do nível da unidade. Ele é mais uma onda ou um corpúsculo, uma
matéria ou uma energia, que desdobra e defasa aquele tido por seu autor. O texto da
escrita-artista é díspar; é disparação; é sistema formado por emissões de partículas, que
implica um estado de dissimetria; continuuns de intensidades puras que operam como
fatores individuantes, em processos de individuação constitutivos de indivíduos, mas
que nestes não se esgotam; blocos de devires; conjugações de fluxos; diferença
fundamental. Precário, mutante e mutagênico, campo de realidade virtual, esse texto
agita-se na resolução de um sistema objetivamente problemático.
10.
Cur?(Por que?) A escrita-artista usa, sempre, a arma da crítica, que ela própria forja,
para escapar dos artifícios que são o refúgio da tradição, a miragem da erudição por ela
mesma, a abulia do bom senso ou a anomia do senso comum, os valores superiores à
vida. Ela critica a secularização em educação por meio da errância política e da
revolução permanente. Para nomadizar o pensamento, escreve, seguindo Nietzsche,
primeiro, como um camelo; depois, como um leão; para escrever, enfim, como uma
criança lúdica. Metamorfoses que encobrem perigosos simulacros...
11.
Quibus auxiliis? (Por quais meios?) – O desejo de escrever é sempre agenciado,
maquinando sobre um plano de imanência ou de composição; plano que deve ser
construído ao mesmo tempo em que o desejo agencia e maquina e em que o texto é
maquinado e escrito. Não basta dizer, apenas, que esse desejo é histórica ou
subjetivamente determinado, porque essas determinações apelam para instâncias
estruturais que desempenham o papel de lei ou de causa, de onde o texto nasceria. O
desejo de escrever é um operador efetivo, que se confunde com as variáveis de um
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III – Setas
1. A escrita-artista está em constante fluxo, apesar de nossas tendências biológicas,
perceptivas, lingüísticas e culturais nela identificarem formas estáveis. Ela também não
varia de acordo com o ponto de vista de quem escreve, mas jamais atinge o estado de
ser.
2. O caráter inapreensível dessa escrita deve-se a que ela não é produto de nenhum
sujeito uno, permanente e idêntico a si mesmo, mas de sujeitos larvares, precursores
sombrios, dinamismos espaço-temporais, ressonâncias rizomáticas, séries de diferenças
intensivas.
3. Sendo maquinada por afectos múltiplos, variações do corpo, vontades de potência, a
escrita-artista é perspectivista, não derivando de um ponto de vista transcendente e
incondicionado, tal como a consciência ou a razão; possuindo um caráter condicionado,
não relativo nem parcial, implica não a conclusão de que não se pode escrever a
Verdade, mas a conclusão, bem mais radical, de que não há nenhuma verdade a ser
escrita.
4. Na concepção da escrita-artista, não há distinção entre teoria e prática: a escrita não é
uma teoria sendo feita sobre a prática educacional, que cobiçaria atingir a sua essência,
descobrir as suas leis, ou reduzi-la a seus conceitos. Nada há para ser conhecido em
alguma instância metafísica chamada “prática educacional”; nada há que possa
transcender essa prática e tomá-la como objeto; não há, lá, nenhum sujeito, nenhuma
identidade permanente, nenhum sentido por trás dela, nenhum fiador universal ou olhar
divino, nenhuma substância inalterada por trás dos sucessivos acidentes, que seja
suporte de diversos atributos; nenhuma prática, enfim, que seja fundamento para a
escrita. O que tomamos como “fato educacional”, criado pela escrita, é sempre já
resultado da atividade cognitiva e interpretativa humana. Por isso, a escrita-artista não
vai deixar de ser, também ela, uma forma de esquematização da prática, introduzida por
um “sujeito”, ou seja, pela necessidade prática e vontade humana de falsificar o mundo,
de impor formas ao que é disforme, de simplificar o que é complexo, de regular o que é
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caótico, de dar sentido ao que é sempre não-senso, de criar o Ser no que não conhece
outro estado senão o do devir.
5. A escrita-artista constitui objetivamente o mundo da prática educacional, que não é
independente da organização que lhe damos; nem tem sentido porque falta o ponto de
vista transcendente para conferir-lhe uma finalidade; tampouco representa esse mundo,
já que ela é anti-teleológica, anti-substancialista e anti-realista.
6. Todo conhecimento conceitual ou categorial produzido por essa escrita é uma ficção
reguladora, não tem valor de verdade, mas é relativo, interpretativo e antropomórfico.
Só pode ser assim, já que todo conhecimento não é uma verdade ontológica – mesmo
que esta fosse apreendida por meios intuitivos –, mas estritamente operatório.
7. A escrita-artista integra uma doutrina da imanência.
8. Cada texto é fragmentado e parcial; mas a escrita-artista em si não seria dada por sua
soma, já que esta soma é contingente, encontra-se em devir permanente, enquanto sua
perspectiva está continuamente se modificando.
9. Eternamente movente, maximamente diferenciada, heterogênea, incontável,
inumerável, a escrita-artista é um vir-a-ser que não deriva de um estado anterior e nunca
atinge um estado final. Ela carece de medida, fundamento e finalidade. Ela é acaso,
contingência e necessidade. Caso fortuito, delírio, pathos da distância. Fluxo do
acontecer, continuum infinito de pontos de vista, força singular de experimentação do
alargamento de horizontes.
10. A escrita-artista é uma maneira de escrever, nem mais avançada ou progressista ou
evoluída ou científica ou lógica ou natural ou erudita do que as outras escritas. Ela não
sublima, não cura, não suspende a vontade, o desejo, o querer... Só que ela sabe rir,
comover, mover pernas e asas...
IV – Marcas
A escrita-artista não é nunca simples. Ela não normatiza, não representa, não conta
história, não ilustra nem narra o que se passou. Algo passa por ela. Traços, riscos, setas,
marcas de espírito nela se exprimem e arrancam a significância do texto. De qual texto?
Ondas, cascatas, olhos de ciclones, as palavras desse texto não correspondem a formas,
mas só captam forças, que se exercem na folha em branco. Em branco? De jeito
nenhum; pois, se assim fosse, o escritor poderia reproduzir um fato exterior, que
funcionasse como matriz da escrita. Uma folha nunca está em branco, à espera de ser
preenchida. Uma folha está, desde sempre, cheia! Povoada de muitos clichês, opiniões,
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DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. 8. 1874 – Três novelas ou “o que se passou?”.
In: _____. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol.3. Trad. Aurélio Guerra Neto
et alii. Rio de Janeiro: Ed.34, 1996. p.63-81.
NIETZSCHE, Friedrich W. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Trad. Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
27
Podem parar de procurar! Só uma única vez, em toda a sua produção, Deleuze
fala em aprendizagem. Quando? Onde? Em qual livro ou artigo? Para Deleuze, quem é
o educador? Ao afirmar “Ele é essencialmente educador”, quem é “ele”? E quem deve
atingir o Ideal da formação? Quem é a educanda? Além disso, de que tipo é essa
pedagogia? O que deve ser ensinado? Em que se baseia a relação pedagógica?
Vejamos. O educador não possui nenhum privilégio. Mas corre todos os riscos
de fracasso inerentes à “tarefa pedagógica”. Em meio a esses riscos, ele deve atuar,
levando a educanda a engajar-se em seu papel que ela não sabe, ainda, representar, seja
por excesso seja por falta. A sua tarefa consiste em “formar” a natureza da educanda,
em “educá-la, persuadi-la”, de acordo com um projeto determinado. No processo de
interação, pelo qual desenvolve a “aprendizagem” da educanda, as submissões e os
tormentos que lhe são infligidos integram o calvário de um verdadeiro idealista.
Cuidadosamente, o educador prepara as provas de iniciação místico-idealistas,
reunindo elementos romanescos a ritos de caça, agrícolas e de regeneração, que levarão
a educanda a ascender ao ponto específico da idealização. Platonicamente, ele cria
condições para a observação e para os “exercícios pedagógicos” que vão da
contemplação do corpo às idéias, ou melhor, do corpo à obra de arte e da obra de arte às
idéias. Lança mão da imaginação dialética, da arte do disfarce, de operações
suprapessoais e “ensina” a educanda a se desfazer de todos os elementos pessoais. Usa
anúncios, ameaças, meios jurídicos, que exprimem uma mescla do seu medo,
repugnância e atração de educador. E, se preciso for – o que é freqüente –, age à base
de chicotadas, para que a formação da educanda seja a mais perfeita possível, em
direção a uma nova criatura: sem amor sexual, sem propriedade, sem pátria, sem
trabalho, sem briga...
Mas, também, cabe a ele a tarefa de ser moroso, de reter a respiração, de viver a
espera em estado puro, com função de retomada e reiteração. Uma espera que se
desdobra em dois fluxos simultâneos – um que tarda essencialmente, o do prazer; e o
outro, enquanto condição que possibilita aquele, que se espera e supõe, isto é, o da dor.
Assim, as provas e exercícios terão um efeito voltado para o próprio educador: ele
passará por um segundo nascimento autônomo, partenogenético, independente da mãe
29
uterina e livre da semelhança com o pai, que lhe permitirá renascer como um homem
novo. Embora tal renascimento só aconteça se, na “relação pedagógica”, chegar o
Grego, o Terceiro. Pois, mesmo representando o perigo que vem atrapalhar ou
interromper os exercícios, é ele quem indica um desdobramento da educanda e prefigura
a saída da relação. É ele quem auxilia o educador a recuar o primeiro fluxo, que deve
tardar, pelo tempo necessário, para que o segundo fluxo esperado e suposto o torne
permitido. Assim é que essa pedagogia da espera faz triunfar o Ideal, ou seja, a
sentimentalidade da educanda no gelo e pelo frio.
Denegando o mundo à medida que vai se formando, a educanda deve tornar-se
fria, maternal e severa, como a Natureza. Sem piedade, mas também sem ódio, ela deve
tornar-se uma mulher de aço, com centenas de lâminas saídas de seu peito, braços,
pernas e pés. Ou seja, a frieza é o elemento-chave do ideal de educanda, o ponto da
transmutação dialética, que preserva a sua sentimentalidade supra-sensual, a qual indica
o estado cultural de uma sensualidade transmutada: ao calor, ao fogo, a frieza e seus
gelos; à desordem, uma ordem, de preferência, rigorosa. A educanda será, assim,
sentimental face à reflexão e severa contra a grosseria. Envolvida de gelo e protegida
pelas peles, é no frio – ao mesmo tempo, meio ambiente protetor e medium, casulo e
veículo – que a sua sentimentalidade irradia, fazendo dela alguém que erotiza a própria
imaginação, numa espécie de latência divina que corresponde à catástrofe glacial. Já que
essa é uma aprendizagem que se faz com mulheres de pedra, a educanda é perturbadora
apenas por sua confusão com uma estátua fria sob o luar ou com quadros na sombra. É
entre a carne, as peles e o espelho, que ela forma o vínculo entre o sentimental, o gelado
e o cruel.
Fantasmática, a ela pertencem as três imagens: mulher primitiva, uterina, mãe
das cloacas e dos pântanos; mulher edipiana, imagem da amante, mãe que entra em
relação com o pai, como vítima ou como cúmplice; e mulher oral, grande nutriz,
silenciosa deusa portadora da morte. Nos alagados, nas estepes ou no mar, como uma
bela déspota, tzarina terrível, mocinha de boa família, caçadora com seu troféu,
revolucionária, oriental, camponesa, criada, patroa, pagã, mística, hermafrodita,
amazonas, sereia, pescadora de almas, hetera, soberana e coquete, colérica e severa, a
educanda será opulenta e musculosa, de caráter altivo, com uma vontade imperiosa e
dotada de certa crueldade, mesmo na ternura ou na ingenuidade. Dona das peles, dos
sapatos, dos capacetes estranhos, com seu corpo de mármore, essa Vênus de gelo
subverterá a lei e terá um enorme receio de se constipar. Moderna, denuncia o
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lhes, em conseqüência, que satisfaçam o desejo. Desse modo, ambos sofrem a punição
antes de sentir o prazer. E o sofrimento não é causa de seu prazer, mas, justamente, a
condição prévia indispensável para a vinda do prazer. Este é abjurado, mas para melhor
ser reencontrado como recompensa ou resultado. Eis porque, nessa pedagogia
persuasiva, a lei assume um caráter mistificador, tão logo se instala, e se torna o objeto
de uma caricatura que acusa toda a sua ambigüidade de destino.
Paródias, fetiches, pesada tapeçaria, saletas e rouparias, costumes nacionais e
folclóricos, brincadeiras inocentes de crianças, gracejos, exigências morais e patrióticas,
bancar o urso ou o cachorro, deixar-se atrelar a uma carrocinha ou a um arado, usar um
papel assinado em branco, caçar um urso ou um lobo, cobrir o corpo com peles de
animais, suspender o gesto da chicotada, entreabrir o casaco, ver-se refletida num
espelho que paralisa sua pose, são todas atividades integrantes dessa pedagogia de
teatro e que se apresenta sempre em tons cor-de-rosa. Espera profunda, próxima das
fontes da vida e da morte, atraso ao máximo, um contínuo Ainda não... integram tal
pedagogia. Pedagogia, na qual educanda e educador não destroem nem idealizam o real,
mas o introduzem, pela via do fantasma, num nível intermediário entre ele e o ideal. Na
relação vivida do seu prazer com a sua própria dor, prazer e dor constituem as posições
da educanda que, muitas vezes, é suspensa, ou suspende um gesto ou uma atitude –
aquele chicote ou aquela espada que não se abatem, aquele casaco de pele que não se
abre, aquele calcanhar que não acaba de pisar –, ou se congela, como se fosse uma
estátua, um retrato ou uma fotografia.
Quadro vivo. Pesquisa transcendental. Dessexualização de Eros,
ressexualização de Tanatos. Experiência de suspense estético e dramático. Repetição
como força terrível. Sentimentos mais profundamente vividos. Sensações e dores mais
vivamente sentidas. Ritos de suspensão. Imaginação gelada. Misticismo perverso.
Ancoragem na dor. Arte e disciplina do fantasma. Perfume carregado demais. Ar
rarefeito e sufocante. Estranha atmosfera de ensino... Na magia desse cenário
pedagógico, em que as cenas parecem ser fotografadas, estereotipadas ou pintadas,
fixam-se ou dublam-se esculturas e quadros, ou desdobram-se nos espelhos e reflexos,
o grande educador é Sacher-Masoch. A educanda não é ninguém menos do que a
mulher-carrasco, a mulher espancadora, a mulher que surra. A relação pedagógica
assenta-se sobre o contrato moderno, pelo qual o educador, ou o herói masoquista,
persuade sua mulher, enquanto boa mãe, de se dar a outros. E a única vez em que
32
i
Gilles Deleuze. Apresentação de Sacher-Masoch: o frio e o cruel. Trad. Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Taurus, 1983.
33
Bestialogia
E se perguntarmos quando isso começa a ir mal? Até onde é preciso recuar? Será
verdadeira a impressão de que isso vai mal desde o início? É que é preciso bastante
disponibilidade para acreditar e muita boa vontade para agüentar. O que queremos
mostrar é que, assim, talvez, estejamos nos contentando com bem toscos e mal
diferenciados conceitos. Talvez, estejamos tomando meios de equivalência por sistemas
de passagem e de transição. Caindo em todos os tipos de equívocos. Agora, se um
diagnóstico diferencial entrar em jogo é toda uma outra história. Claro que não é da
mesma maneira. Pensamos que não seria derrisório opor posições. Acreditamos que se
pode tirar outras conclusões. Pois, apesar de tudo, elas sempre estiveram aí, a “rosnar, a
zumbir sob a instância representativa” que as sufocava; e, por isso, se põem a “ressoar,
em compensação, até o limite de ruptura”i.
1. Então, você...
Dizem, não sei, contam de tudo, que, há exatamente cem anos, os seus
contemporâneos ficaram chocados. Era uma indecência! Nos Três ensaios sobre a
teoria da sexualidadei, você falava do chupar sensual, de puxar os lóbulos da orelha, das
zonas erógenas, do vômito histérico, de clitóris e glande, sexo oral e animal,
masturbação, auto-erotismo, hemorróidas, micção e constipação defecatória, erotismo
anal e uretral, enurese e polução noturnas, comichões e alcalóides, secreções e vermes
intestinais, membranas mucosas, banhos quentes, agitação mecânica ritmada, junção das
coxas nas mocinhas, peles das nádegas, descarga de fezes, escopofilia e crueldade,
sadismo e masoquismo, exibicionismo e voyeurismo, fetichismo, homossexualidade ou
inversão, bissexualidade, transporte em carruagens e viagens de trem, beber e fumar,
brincar ruidosamente e disputas verbais, ereção do órgão masculino e lubrificação da
vagina, complexo de castração e inveja do pênis. Mas, você teria chocado os seus
contemporâneos porque afirmou a existência de uma sexualidade infantil; e, acima de
tudo, o caráter infantil de toda sexualidade humana.
Ao dizer que, anteriormente, “nem um só autor reconheceu claramente a
existência regular de um instinto sexual na infância”i, você atribuiu a si próprio uma
recorrente e enfática descoberta da sexualidade infantil: “Já em 1896i eu insistia na
importância dos anos da infância na origem de certos fenômenos importantes ligados à
34
vida sexual, e desde então nunca deixei de dar ênfase ao papel desempenhado na
sexualidade pelo fator infantil”i. Parece, assim, que, até você, existia uma tendência
geral a considerar a infância como um período de felicidade perfeita e assexuada. E que,
desde então, esse mito da assexualidade teria sucumbido junto ao mito do paraíso da
infância. Ao menos, você garantia que era falsa a idéia sobre o infantil livre de pulsões
sexuais: “A opinião popular tem idéias muito precisas a respeito da natureza e das
características desse instinto sexual. A concepção geral é que ele está ausente na
infância. Temos, entretanto, razão para crer que esses pontos de vista dão uma idéia
falsa da verdadeira situação”i. Você assegurava, então, a gravidade das conseqüências
dessa situação, ao afirmar: uma “característica da idéia popular sobre o instinto sexual é
que ele está ausente na infância”; embora este seja “um erro que tem tido graves
conseqüências”, dentre as quais, a “nossa atual ignorância das condições fundamentais
da vida sexual”i.
Só que você refez, no sentido inverso, o passo que acabara de dar. Jogou a
infância num pântano luxuriante, feito de relações múltiplas e caprichosas entre infantis
e adultos, ao deslocar o fator hereditário de explicação do funcionamento da vida sexual
para a pré-história – como você a chamava – do indivíduo, isto é, para a sua infância.
Acreditou que apenas um estudo completo das manifestações sexuais da infância
revelaria as características essenciais do instinto sexual e mostraria o curso de seu
desenvolvimento, de modo a sobrepujar, inclusive, a importância do fator hereditário.
Afirmou o caráter infantil dos gêneros – “as disposições masculina e feminina”, que
“são facilmente reconhecíveis na infância” – e a execrável invariabilidade masculina da
libido, que escondia os verdadeiros problemas – “a libido é invariável e necessariamente
de natureza masculina, ocorra ela em homens ou em mulheres e independente de ser seu
objeto um homem ou uma mulher”i. Tanto mais terrível...
Para desenvolver esse enfoque, você precisou desdizer os sexólogos da época,
como Krafft-Ebing, Havellock-Ellis, Hirschfeld. Precisou deixar de lado a teratologia de
Geoffroy Saint-Hilaire e ir além das ocorrências excepcionais, extravagâncias, casos
horripilantes, anomalias, aberrações, depravação precoce – “ereções, masturbações e
mesmo atividades que se assemelham ao coito”. Inclusive, você chegou a repreender os
educadores, dizendo que eles temiam os instintos sexuais e estigmatizavam “toda
manifestação sexual” dos infantis como um “‘vício’” ou como “’ruindade’ sexual”i.
Além disso, recomendou que eles fossem cautelosos na escola, pois “o temor de fazer
35
adultos”, surgiria uma “situação transferencial”. Já Anna Freud acreditava que não se
deveria aplicar aos infantis um método terapêutico análogo ao empregado para adultos,
pois o ideal do eu infantil ainda era muito débil. Anna reconhecia que, em situação
terapêutica, os infantis eram “seres muito diferentes dos adultos”i. Ao passo que, para
Melanie Klein, no inconsciente, os infantis não eram, de modo algum,
“fundamentalmente diferentes dos adultos”; de modo que as “condições práticas e
teóricas para a interpretação” eram “exatamente as mesmas que para a análise de
adultos”i. Assim como os adultos, já nos primeiros anos de vida, os infantis
“experimentam não apenas impulsos sexuais e angústia, como também sofrem grandes
desilusões”. Tais conclusões eram obtidas por meio da “análise dos adultos”, que foi
seguida pela observação direta das crianças”i. Embora esta observação viesse apenas
comprovar os resultados obtidos pela técnica da análise de adultosi, revelando-se então
uma analogia perfeita. Todas posições tristes de morrer...
Não se deve dizer apenas que, assim procedendo, você sexualizou o infantil, em
sua ausência, sem que ele participasse efetivamente dessa sexualização. O problema, ao
mesmo tempo formal e político, é muito mais sério, e mais original também. Além de
acabar inferindo o inconsciente infantil diretamente do adulto, você atribuiu-lhe toda
uma sexualidade familialista, feita de pai, mãe, irmãos, avós. Com essa natureza
avongueira, que nada arrisca, você produziu uma antropomorfia burguesa da
sexualidade. E obrigou o pansexualismo infantil a ingressar nas fileiras do inadequado.
Cá entre nós, quem é mesmo que tinha inventado esse paraíso assexuado, do
qual falavam antes de você? De qual tipo de forças provinha o discurso da felicidade
infantil assexuada? Da ausência de qual sexualidade se tratava? Será que não havia uma
outra sexualidade infantil? E se, ao contrário do que você e seus contemporâneos
pensavam, as pulsões, os instintos e os desejos sexuais estivessem atuando, desde
sempre, nos infantis? A pergunta talvez seja esta: desde você, qual a sexualidade que se
implantou e veio funcionando? Se essa sexualidade foi virada para o lado dos infantis,
de que modo eles foram sexualizados? Sob quais condições, por meio de sua
sexualidade, eles foram psiconeurotizados? Qual o uso operatório do que você fez? O
que foi feito da sua produção? O que se fez com ela? O que ela fez em si mesma?
Afinal, o que você acabou fazendo?
2. Com seu cheiro de morte
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razões pouco confessáveis que se reduz essa sexualidade a desejar mamãe e a querer o
lugar do pai”. A sua chantagem consistiu nisso: ou se reconhecia “o caráter edipiano da
sexualidade infantil” ou se abandonava “toda posição de sexualidade”i. Você
edipianizou o infantil, cortando-lhe outras possibilidades de sexualidade, que
investissem o campo social, através dos seus amores, em suas determinações
econômicas, políticas, raciais, históricas, culturais, etc. Ou seja, a sua – que passou a
ser nossa também – questão não foi reconhecer a sexualidade infantil, mesmo porque
ela sempre existiu, de modo diferente, em cada tipo de socius, mas reconhecer tal
sexualidade como exclusivamente edipiana. Assim, a psicanálise, esse “novo avatar do
‘ideal ascético’”i, criado por você, colou à pele do infantil todas as famílias artificiais e
toda “podridão edipiana”i. Levou a terra pantanosa do Édipo, com seu cheiro de morte,
a deixar de delirar a história, os continentes, os reinos, as raças, as culturas. Ficaram
fora de cogitação...
3. Órfão, anarquista e ateu
Você...
– E que erro, por tantas páginas, ter dito “você”. Pois, quando se diz “você”,
trata-se apenas de um nome mal fabricado, de um pronome de tratamento para toda a
psicanálise. Só que não apenas para ela, também para o que vem de alhures e de mais
profundo, feito de forças mais potentes, mais subterrâneas do que você, do que a
psicanálise, do que a ideologia, do que a família, do que o eu. Forças que pretendem
vencer as do desejo infantil e levá-las à resignação infinita. Forças que buscam
substituir tudo o que é ativo, agressivo, produtivo, conquistador e artista no próprio
inconsciente, que é, por natureza, infantil; portanto, “órfão, anarquista e ateu”i.
Então, de novo...
– Você e a psicanálise são muito representativos e representam unidades muito
grandes, conjuntos estatísticos, molares. Vocês são muito interpretativos e interpretam
demais o significado e o significante. Vocês inventaram “um último padre”i e “a
formação de um novo tipo de padres, animadores da má consciência”i. Padres (poderia
ser outro o seu nome?), que nos ensinaram a interpretar, enquanto “nossa maneira de
acreditar e de ser devoto”i, e que nos fizeram retomar crenças antigas em nome de uma
estrutura do inconsciente: “Somos ainda devotos”i. Não foi à toa que você afirmou que a
questão da sexualidade infantil não poderia ser mais bem expressa do que por
40
que cheiram ao pequeno Eu, ao grande Outro. Trata-se de ficarmos “sozinhos com a
nossa má consciência e nosso tédio, nossa vida em que nada acontece”i? Trata-se do
nosso medo diante dos infantis? Esse medo talvez seja o único elemento que explique o
culto restaurado de Édipo e da castração, as crenças e as representações, a grande lição
da falta, a menos-valia de ser e a mais-valia da renúncia. Cenas de teatro. Neo-idealismo
da sexualidade. Operação perversa. A psicanálise continua se incumbindo de fazer
acreditar aqueles que ainda não acreditam.
Não podemos mais suportar religiões, valores, morais, pátrias, mitos, tragédias,
certezas, que traduzem o infantil segundo o código do Édipo. Não podemos mais
suportar a falsa alternativa, onde Édipo nos leva: ou, ele diz, vocês abandonam toda
posição sexual, ou vocês me reconhecem e fazem de mim a morada sexual da libido, e
de papai-mamãe o máximo do erotismo. “Pois não é nem mesmo a infância que é
edipiana; ela não o é absolutamente, não tem a possibilidade de sê-lo. O que é edipiano
é a abjeta recordação de infância, a tela”, as “velhas fotos”, as “recordações-tela” que
“fazem da infância um fantasma regressivo para uso dos pequenos velhos”i.
Desidiapinizar o amor demasiado humano. Blocos recorrentes de infância, que
reintroduzem as máquinas desejantes: é disso que se trata.
5. Os vivos não são crentes
Só que ainda não se viu tudo, porque “os vivos não são crentes”i. Apenas nos
podem acusar de um único crime medonho: o de não viver plenamente a vida. Mas, não
se preocupem: não fomos nós, os infantis, que inventamos as teorias sobre a copulação
violenta, o nascimento pelo ânus e o determinismo sexual. Somos os depositários de
uma longa tradição religiosa, pela qual nos consideraram filhos do pecado da carne.
Pecadores, somos todos, inclusive os infantis, afiançou Comenius. O próprio Satanás,
para vingar-se de sua condenação, sempre quis nos destruir, enquanto “as arvorezinhas
de Deus”, ferindo-nos de várias maneiras com “as suas fraudelentíssimas maquinações”
e, “com o veneno infernal (dos exemplos das várias impiedades e dos maus instintos)”,
quis nos infectar “até às raízes”, para que secássemos de todo e caíssemos, ou, ao
menos, murchássemos, definhássemos e nos tornássemos inúteisi. Por isso, deveríamos
ser educados.
Rousseaui já mostrara que não se poderia forçar a nossa natureza, mas, também,
que não poderíamos ser educados sem ser desnaturalizados. Para isso, a lei dos
pedagogos deveria ser inflexível como uma lei natural. Uma questão de nos educar
43
Nada, nem o sexo, nem a famosa latência, separou vocês de nós. Um nasceu em
face do outro, no negativo do outro. A nossa inocência pareceu, definitivamente,
sexualizada pelo fator edipianizante. A nossa sexualidade foi inscrita no quadro de
Narciso e de Édipo, do Eu e da Família, terra edipiana por excelência. Por que alguém
poderia, então, se horrorizar pelo fato de que nos excitemos, tenhamos libido, gozemos?
A psicanálise deu continuidade à religião, embora seja difícil, para os psicanalistas e
pedagogos de inspiração psicanalítica, admitir que ela é a religião moralizada. Tal
posição colaborou para que a nossa ameaça fosse permanente: somos a prova viva de
que os adultos cometeram o pecado sexual e incestuoso.
O pequeno-Édipo revela a “missão da família” que “é produzir neuróticos pela
sua edipianização”i. Revela a nossa persistência em vocês, ao mesmo tempo em que
colabora para destruir o nosso próprio mitoi. A psicanálise não enfocou vocês como
modelados por nós e a partir de nós, mas a nós como estruturados por vocês, cujo
desenvolvimento se realiza nos marcos que vocês prepararam. Há uma penetração nossa
em vocês, e vocês nos induzem à sua imagem e semelhança. O Édipo é o exemplo
privilegiado dessa infantilização adulteradora.
É somente O anti-Édipo que sustenta a tese da anterioridade de vocês com
respeito a nós mesmos e da projeção constante sobre nós das limitações de vocêsi. Para
nós, nunca é possível a revelação de nada que vocês não tenham submetido à lei
edipiana, que ordena ao nosso desejo: – Não saiam jamais do círculo de papai-mamãe-
eu! O ponto de autocrítica do pequeno-Édipo é aquele em que descobrimos o seu avesso
como um princípio positivo de não consistência que acaba por dissolvê-lo. Eis chegado
o momento de raspagem do inconsciente edípico, de destruição do eu, de borramento do
fantoche do infantil, da culpabilidade, da lei, da castração.
6. Agora, vamos rir
Como tudo isso não nos faria rir? Agora, vamos rir. Não invocaremos nenhuma
vingança, nenhum ressentimento, porque não é sobre essa terra que nascemos nem é
nela que vivemos. Tampouco, sabemos como lidar com a angústia anti-sexual múltipla
de vocês, nem se ela os seguirá ainda. E, falando a verdade, isso não nos interessa nem
um pouco, pois o que ela é, a não ser Édipo ainda, e tanto mais virulento? Achamos que
seria bem mais produtivo e, inclusive, preferível, se vocês perguntassem acerca de quais
são os nossos amores na contemporaneidade. Pois, é sempre “com mundos que fazemos
amor. E nosso amor se dirige a essa propriedade libidinal do ser amado, de encerrar-se
45
ou abrir-se sobre mundos mais vastos, massas e grandes conjuntos”. Assim, as “pessoas
a quem dedicamos nossos amores, inclusive as pessoas parentais, só intervêm como
pontos de conexão, de disjunção, de conjunção de fluxos cujo teor libidinal de
investimento propriamente inconsciente elas traduzem”i.
Somos aqueles que, primeiramente, formamos bandos portadores de fluxos de
vida, antes do que duplas heterossexuais. O nosso sexo é neutro e a nossa sexualidade
está em toda parte, num regime de dispersão dos seus elementos moleculares.
Enriquecemos vocês em vez de infectá-los. Já a moral de vocês é que ambiciona que
sejamos ou assexuados ou sexuados pelo Édipo. Não temos nada a ver com a falta no
desejo, mas com o modo da presença do desejo na multiplicidade. Constituímos
verdadeiras falanges de enfants libidinosos que resistem a se deixar dessexualizar.
Existimos misturados a vocês, ainda mais, em ações alheias a Édipo. Embaralhamos
“todos os códigos” e desfazemos “todas as terras”i. As “grotescas interpretações
pedagógicas”i, que nos edipianizaram, enquanto perversos polimorfos, foram
formuladas por vocês apenas para tranqüilizar-lhes. Elas exigiram a sublimação de
nossos atos, só que estes transbordam toda normatividade sexual e as concepções
evolutivamente normativas de nossa sexualidade. Sexualidade livre, que não se
confunde nunca com a reprodução edípica e se adapta apenas ao princípio do prazer.
– Sem dúvida, é um erro ficar opondo essas dimensões: vocês e nós. Trata-se
mais da diferença entre dois tipos de coleções, arranjos, conexões e interações. Vocês e
nós nunca deixamos de passar de um a outro pólo.
Entretanto, sabem, por acaso, quem são os “inimigos naturais”i da nossa
sexualidade? Ora, ninguém menos do que os pais e os mestres, como humanistas,
abstratos, fantasmáticos, solipcistas, a quem abjuramos. Vêem que o Édipo foi
pedagogizado por meio da exclusiva genitalidade heterossexual? Reconhecem que
foram vocês os criadores da psicose social anti-sexual e duma pedofilia pedagógica?
Identificam que, no admirável interesse pedagógico, que nutrem por nós, há sinais de
uma verdadeira pederastia, que explicaria melhor a dedicação de vocês à nossa
educação do que a paternidade ou a maternidade substitutivas? Vocês querem dominar
seres imaturos ou é Édipo em profícua ação? Vocês se pretendem vazios de desejo para
melhor aplicar as suas canhestras metodologias e seguir o seu curso rechaçado de
qualquer erotização? Vocês ainda têm dúvidas sobre se Emílio e Rousseau ou Rousseau
e Sofia foram amantes?
46
i
Gilles Deleuze e Félix Guattari. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia [1972]. [AE] Trad. Georges Lamazière. Rio de Janeiro:
Imago, 1976, p.375.
i
Sigmund Freud. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade [1905]. Trad.Jayme Salomão. In: __. Edição Standard Brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1972. V.VII.
i
Ib., p.177-178.
i
Sigmund Freud. Hereditariedade e a etiologia das neuroses [1896]. Trad.Jayme Salomão. In: __. Edição Standard Brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1972. V.III.
i
Três ensaios..., p.180.
i
Ib. p.135.
i
Ib., p.177.
i
Ib., p.225-226.
i
Ib., p.184-185.
i
Ib., p.209-210.
i
Sigmund Freud. Análise de uma fobia em um menino de cinco anos [1909]. Trad.Jayme Salomão. In: __. Edição Standard
Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1972. V.X.
i
Três ensaios..., p.199.
i
Ib., p.218.
i
Sigmund Freud. Sobre as teorias sexuais das crianças [1908]. Trad.Jayme Salomão. In: __. Edição Standard Brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1972. V.IX, p.213.
i
Cf.: 1) Melanie Klein. O sentimento de solidão: nosso mundo adulto e outros ensaios. Trad. Paulo Dias Correia. Rio de Janeiro:
Imago, 1971; 2) __. Psicanálise da criança. Trad. Pola Civelli. São Paulo: Mestre Jou, 1975. 3) __. Narrativa da análise de uma
criança: o procedimento da psicanálise de crianças tal como foi observado no tratamento de um menino de dez anos. Rio de
Janeiro: Imago, 1994; 4) __, Joan Riviere. Amor, ódio e reparação. Trad. Maria Helena Senise. Rio de Janeiro: Imago, 1970.
i
Melanie Klein. Psicanálise..., p.20.
i
Melanie Klein. Contribuições à psicanálise. Trad. Pola Civelli. São Paulo: Mestre Jou, 1970, p.199.
i
Ib., p.204.
i
Psicanálise..., p.25.
i
Ib., p.207.
i
Ib., p.233-234.
i
Sigmund Freud. A dissolução do complexo de Édipo [1924]. Trad.Jayme Salomão. In: __. Edição Standard Brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1972. V.XIX, p.217.
i
Três ensaios...,p.196.
i
Ib., p.204.
i
Cf. AE, p.155, ss.
i
AE, p.454.
i
Três ensaios..., p.246.
i
Ib., p.196.
i
AE, p.444.
i
João Amós Coménio. Didáctica Magna: tratado da arte universal de ensinar tudo a todos. Trad. Joaquim Ferreira Gomes. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 1985, p.69.
i
AE, p.132.
i
Ib., p.342.
i
Ib., p.343.
i
Cf. ib., p.394.
i
Ib., p.146.
i
Ib., p.421.
i
Ib., p.217.
i
Ib., p.388.
i
Sigmund Freud. O esclarecimento sexual das crianças (Carta aberta ao Dr. M. Fürst) [1907]. Trad.Jayme Salomão. In: __. Edição
Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1972. V.IX, p.138.
i
AE, p.342.
i
Ib., p.433.
i
Gilles Deleuze, Félix Guattari. 28 de novembro de 1947 – Como criar para si um corpo sem órgãos. Trad. Aurélio Guerra Neto. In:
Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. V.3. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996, p.16.
i
AE, p.420.
i
Ib., p. 347; p.349.
i
Jacques Donzelot. Uma anti-sociologia. In: Manuel Maria Carrilho (org.). Capitalismo e esquizofrenia (Dossier sobre o Anti-
Édipo). Trad. José Afonso Furtado. Lisboa: Assírio & Alvim, 1976, p.184.
i
Ib., p.390.
i
Ib., p.496.
i
Ib., p.377.
i
Didáctica magna..., p.67.
i
Jean-Jacques Rousseau. Emílio ou da educação. Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992.
i
Ib., p.396.
i
Cf. René Shérer. La pedagogía pervertida. Trad. Jerônimo Juan Mejía. Barcelona: Laertes, 1983.
i
AE, p. 342; p.444-445; p.470.
i
Ib., p.459.
i
La pedagogía..., p.54.
i
Ib., p.55.
i
AE, p.372.
i
Ib., p.417.
i
La pedagogía..., p.86.
i
Friedrich Nietzsche. O viandante e a sua sombra [1880]. Trad. Heraldo Barbuy. São Paulo: Brasil, 1939, §267, p.170.
i
AE, p.440.
49
i
Ib., p.496.
i
Ib., p.342 [variação].
i
Uma anti-sociologia, p.159.
i
AE, p.344.
i
Ib., p.345.
i
Gilles Deleuze. Apresentação de Sacher-Masoch: o frio e o cruel. Trad. Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Taurus, 1983 [variação].
50
O currículo
humanos: peças. Abstrata: o desejo. – Quais os seus usos? Única questão. Conexões
com as máquinas desejantes. Coeficientes variáveis de afinidade entre. Disso depende.
Fluxos todos codificados: de mulheres e crianças, rebanhos e sementes, esperma e
menstruação. Deriva histórica e coletiva. Meio-ambiente é habitat. – Veja agora. Vou
ver se posso. Ali o tempo todo. E sempre estará, por todos os séculos. – Esqueça. Basta
devagar. Organiza disjunções inclusivas sobre molécula gigante (Numen). Distribui
estados, segundo domínios de presença ou zonas de intensidade. – Pronto! Concebido
na escuridão. No cheiro bom molhado terroso. Elementos moleculares de um micro-
inconsciente. Mas que não existe independentemente das formações sociais
macroscópicas. Resistente à centralização do poder. Representação é sempre repressão:
recalcamento do desejo. Um sistema. Primitivo. Perverso, por certo. Marca os corpos
com traços de fogo. Escreve alfabeto nos corpos. Um geografismo. Palavra falada:
signo plurívoco: também a coisa designada. Grafismo conectado à voz. Ordem de
conotação. Abraão. Isaac. Jacob. Mitos das origens autóctones. Dogon. Iniciações
rituais. Dor é um prazer para o olho. Mais-valia que o olho tira. Teatro da crueldade.
Voz. Signo na carne crua. Olho que goza. Ferros. Domar. Marcar. Tornar capaz de
aliança. Formar na relação credor-devedor. Nietzsche etnólogo. Como pagar com
sofrimento? Equação da dívida: dano causado = dor a sofrer + olho avaliador. Mais-
valia de código: compensa relação rompida entre voz de aliança e marca que não
penetrara suficientemente. Código: memorizado no corpo. Tatuar. Cortar. Escarificar.
Mutilar. Cercar. Iniciar. Nada escapa: nem o prestígio do chefe, nem a riqueza dos
comerciantes. Relações de parentesco codificam fluxos de deuses, pessoas, privilégios.
Não privatização dos órgãos. Família: uma práxis. Estratégias de aliança e filiação:
estreitamente codificadas. Jogo. Dívida compõe alianças. Ela é a unidade de aliança.
Codifica fluxos. Condiciona filiações. Aliança-dívida: trabalho pré-histórico da
humanidade. Mnemotécnica terrível. Economia libidinal de prazer e dor. Mais adiante:
memória de palavras: – Eu devo. Então, esquece-se a terra. Memória delas recalca a
bio-cósmica. Moralização. Desponta: economia de mercado. Desmoronamento do modo
este. – Currículo territorializante? Ele perscruta e proclama asperamente: – Em mim, só
o desejo e o social. Aliás, como nos outros. Simples, reles. Mas, ele tem de fazer isso.
Ele tem de fazer alguma coisa. Essa é a parte divertida do pré-Estado. Uma lava:
invasão de fluxos decodificados. Tinha de ser. Ela. – Desfiguração? A mesma coisa
atenuada. Nada vazia. Tênue. Eles chegam como a fatalidade. – Morto! – gritam. – Não!
52
A morte vem de fora. É só outra coisa que se vai passar. Ó coisa maravilhosa! Depressa.
– Ahã. Mais um momento. Uma formação social se apropria e, de modo abrupto, se
reconfigura nas velhas instituições ou revive práticas pela recombinação seletiva de seus
propósitos. Os propósitos de uma formação social são recombinados seletivamente.
Reconfigurada nas velhas instituições. Apropria-se. Práticas revividas. De modo
abrupto.
2. Do terror
Não se sabe muito sobre isso. Perda de tempo? Conservação derrisória. Se tinha
que ser foi. Primeiro grande movimento de desterritorialização. – Então, é começo? Não
é primitivo: origem e abstração: essência abstrata originária. Unidade superior
transcendente que se apropria da mais-valia dos códigos territoriais. Supõe adesão dos
corações. Artistas da violência de olhos de bronze. Catástrofe. Vinda do exterior.
Nietzsche genealógico. Faraó. Novo Testamento. Mitos de origem divina. Novo socius
de inscrição: corpo do déspota: fonte, estuário. Terra. Não mais. Nova aliança: déspota
com o povo. Direta. Nova filiação: direta: déspota com Deus. Precisamente aquele que
diz – Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Megamáquina de Estado. Motor imóvel.
Pirâmide funcional. No ápice: déspota. Na base: camponeses: peças trabalhadoras.
Aparato burocrático. Devem seguir. Aparelho curricular: coextensivo ao campo social.
O déspota e seu exército. O conquistador e suas tropas. O santo homem e seus
seguidores. O anacoreta e seus discípulos. Cristo e São Paulo. Máquina do estranho.
Grande máquina paranóica. Império: nasce. Pode ser militar. Pode ser conquista
religiosa. A terra se torna um asilo de alienados. Currículo: julga a vida: permite
sobrevoar a terra. O déspota institui a lei. Punições: de festivas a vingativas.
Reprodução passa pelos fatores não econômicos do parentesco. – Terror, terror sem
precedentes! Destruição. Sistema de crueldade: sobrecodificado pelo terror. Fluxos
primitivos empurrados até a embocadura. Obsessão da decodificação é conjurada pela
sobrecodificação: essência do Estado. Nenhum órgão, nenhuma vagina devem escapar
ao déspota. Segunda inscrição. O corpo imóvel, imutável, monumental se apropria das
forças e dos agentes de produção. O cão-Estado e os fundadores de. Significante
despótico. Imposição através da fala. Grafismo: arbitrariedade do signo remete à
questão exegética: – O que é que o déspota quis dizer? Questão que faz nascer: – O que
é que isso quer dizer? Morte de: – Como é que isso funciona? Currículo: introdução à
falta, à castração, à perda do objeto total. Blocos de dívidas: sob a forma de tributos.
53
lo. Potência. Econômica. Máquina capitalista. Não mais necessidade: marcar os corpos:
fabricar uma memória. Tomada dos códigos territoriais. Substituição da
sobrecodificação despótica. Por uma axiomática. Generalizada. Segundo grande
movimento de desterritorialização. O capital se apropria diretamente da produção. Hora
do maior cinismo. Em vez da crueldade e do terror. Não é o contrário da má
consciência. Correlato. Para beneficiar o sistema. A serviço de seus fins. Nietzsche anti-
humanista. – Salve! Não, ninguém rouba. A mais estranha devoção. E forma. Novo
corpo pleno: capital. Mais-valia se torna incodificável: de fluxos. Agora. Axiomática
rigorosa das quantidades abstratas monetárias e de trabalho. Mundial. Relações diretas
entre entidades baseadas sobre qualidades abstratas. Fluxos de relações fixas e limitadas
entre homens e coisas. Trocados por unidades abstratas de equivalência. Equivalências
entre. Bens. Corpos. Ações. Idéias. Conhecimentos. Valores. Fantasias. Mercadorias.
Abstração: dos fluxos de produção pelo capital mercantil. Dos Estados pelo capital
financeiro e dívidas públicas. Dos meios de produção pelo capital industrial. Dívida:
desterritorializada na unidade abstrata: livres fluxos de deuses, corpos, imagens:
reterritorializada na axiomática. – Mas, há fluxos esquizos que escapam?
Representação: atividade produtora: produtores não marcados: capital toma alianças e
filiações: passam pelo capital-dinheiro. Subjugado Estado despótico. Torna-se
imanente. Torna concreto o abstrato. Naturaliza o artificial. Integrado numa agência
burocrática de reterritorialização. A família: factícia, residual. Mãe é territorialidade. Pai
é signo despótico. O eu está no meio: dividido, cortado. Pequeno triângulo. Centro do
mundo. Funcionamento do microcosmo: esquecer que o corpo do capital está separado
das máquinas desejantes. Antiprodução: funciona por sua conta. Reino da privatização.
Dinheiro. Trabalhadores. Órgãos. Substrato. Respeito pela pessoa. Igualdade entre
homens. – Oculta o funcionamento da classe burguesa? Acredita-se que sim. Lugar de
retenção e ressonância. Fora. Mas subconjunto ao qual se aplica todo campo social.
Tática sobre a qual se fecha. Rebatimento. Dobradura. Reprodução social em seu
modelo. Retorno do tirano sob formas inesperadas. Pessoas individuais, imagens de
segunda ordem, imagens de imagens do capital, simulacros que representam pessoas
sociais: o pai, a mãe, o filho. Capitalismo preenche com imagens seu campo de
imanência. O patrão, o chefe, o cura, o tira, o soldado, o professor: conjunto de partida.
No conjunto de chegada: família. Para o currículo. Puras figuras. Funções. O capitalista:
derivada do fluxo de capital. O trabalhador: derivada do fluxo de trabalho. Estimulado
55
pelas imagens, o que cada um responde? Ora: – Papá-mamã-eu... Édipo chega. E fica.
Formação colonial íntima. Responde à forma de soberania nacional. Pequenas colônias:
somos. Resultado da história universal. Como o capitalismo. – Sim. Foi o que pensei.
Partiu. Currículo da burguesia: classe única. – Eu queria isso demais! A ordem, a casta,
a hierarquia: decodificadas. Não há senhores: escravos que comandam escravos.
Interesses pré-conscientes de classe se opõem a desejos inconscientes de grupo.
Perguntar. Responder. – Por que as massas desejam o fascismo? Por que se deseja
contra os próprios interesses? Por que se faz investimentos reacionários? Como se vira
fascista? – Depressa. Mais um momento. Meu coração. Quem? – Ora! Falência. – Por
que essa imposição? Um novo estado de coisas. Não contente mais em sobrecodificar
territorialidades ladrilhadas. – O danado do Estado! Pós-Estado. Reinsuflamento do
Urstaat. Interior ao sistema. Nós: fechados aí para ser domesticados. – Engraçado!
Antes: também privatização da propriedade. Também formação de grandes fortunas.
Também produção mercantil. Também expropriação e proletarização. Mas não era
ainda a máquina capitalista! Roma. China imperial. O dinheiro não engendrava o
dinheiro. Universalidade do capitalismo. Depois que a morte subiu de dentro.
Desterritorialização maciça. O currículo define-se por. Do solo por privatização. Dos
instrumentos de produção por apropriação. Dos meios de consumo por dissolução da
família e da corporação. Do trabalhador em proveito do trabalho. Da riqueza pela
abstração monetária. Ilimitada a relação entre capital e força de trabalho. Acumulação
do capital-deus, de onde emanam as forças do trabalho. – Primeiro tenho de. Currículo
humanista: imanência física do campo social e manutenção de um Urstaat
espiritualizado. Configurações flutuantes: linhas e pontos sem identidade discernível. –
Que história é essa do dinheiro engendrar dinheiro? Ou o valor uma mais-valia? O
trabalho qualificado equivaler a um quantum determinado? O Banco desmaterializa a
moeda. Operações financeiras. O Estado assegura a conversão: ouro, crédito, taxa de
juros, mercados de capital. Não há limite exterior. Só interior: o próprio capital. Limite
deslocado, habitado e vivido. O que o capital decodifica com uma mão, axiomatiza com
a outra. É ao mesmo tempo. O currículo: liberado pela máquina capitalista. Organiza os
códigos científico e técnico. Inovações curriculares: sempre atrasadas. Dependem de seu
efeito sobre a rentabilidade global das empresas e do mercado e do capital comercial e
financeiro. Axiomática social e capital de conhecimento. Relação insidiosa.
Imbecilidade. Organizada. Lado morto da vida este. Sem potencialidade revolucionária.
56
Mas o currículo usa. Linguagem dos fluxos decodificados: elétrica, eletrônica, meios
técnicos de expressão, televisão, computador. Assignificantes: desejo, sopros, gritos. De
n dimensões. Palavras: tratadas: coisas. Quebra da dupla voz-grafismo. Lingüística
capitalista e esquizo. Hjelmslev. Capitalismo analfabeto. Morte da escrita. Gutenberg.
Ele. Função atual, folclórica, residual. – Currículo: agente integrado da integração
capitalista? Destruidor? Criação consistia em?
4. Energética política
Então, tá. O capitalismo faz passar fluxos esquizos? Quem diz. Capitalismo e
esquizofrenia. Única e mesma economia? Único e mesmo processo de produção. A
produção capitalista paralisa o processo esquizo? Transforma o sujeito em entidade
clínica. Faz do esquizo um doente? Encerra os loucos. Vigia artistas e cientistas? Forma
máquina de repressão-recalcamento frente aos fluxos decodificados. – Por quê? É que o
capitalismo é o limite de toda sociedade. Ele não tem limites. Tem: produção e
circulação. Axiomatiza os fluxos de decodificação. Reterritorializa os fluxos
desterritorializados. Mais impiedoso que qualquer outro socius. Só na esquizofrenia
encontra limite exterior, que não cessa de repelir e conjurar. Enquanto produz limites
relativos imanentes, que alarga sem parar. Esquiza é seu desvio e morte. Não a sua
identidade. – De jeito nenhum! Limite deslocado: Édipo. Neutralizar esquiza. Interioriza
Édipo. Desejo se prende aí. Limite absoluto de toda sociedade: esquiza. Faz passar
fluxos em estado livre, que devolvem à produção desejante. Capitalismo só funciona se
inibir, repelir e conjurar a. Triângulo edipiano é territorialidade íntima: corresponde aos
esforços de reterritorialização social. Potência capitalista: campo de imanência
desterritorializado. E não cessar de preenchê-lo. Fluxo-esquiza ou corte-fluxo: definem
o capitalismo e a esquizofrenia. – Mas, não é a mesma coisa. Diferença de
funcionamento. Decodificações retomadas numa axiomática? Fica-se nos grandes
conjuntos ou se atravessa as barreiras? Se o capitalismo desaparecer, algum dia, não
será por falta, mas por excesso. Energética que desloca limites. – Programação. Teoria
geral do currículo: uma teoria generalizada dos fluxos. Políticas da criação.
Intervenções micro-políticas. Contra fascismos. Não mais um sistema de crenças no
lugar da produção. Nem formas expressivas. Não teatro íntimo. Nem familiar. Não
estrutural. Nem neo-idealismo da falta. Não simbólico. Nem culto restaurado da
castração. Não ideologia antropomórfica. Nem sistemático. Não representativo. Nem
figurativo. Figural é abstrato. Realidade: a do Real em sua produção. Produção do
57
i
Gilles Deleuze e Félix Guattari. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia [1972]. Trad. Georges Lamazière. Rio de Janeiro:
Imago, 1976. Especialmente: capítulo III “Selvagens, bárbaros, civilizados” (p.177-345).
58
AGUILHÃO
(Ereto feito um cabo de vassoura. Pele tão colada ao corpo que, ao mínimo
corte, rasga-se toda. Balança numa corda entre dois parapeitos. Não refletido, nem
representado, vestido de impossibilidade. – Ma dove, bambino, dove? Trocado ao
nascer. Menino encantado. Um gnomo. Assoma. Cul-de-sac. Então, rindo, salta rente
ao muro. Escarrapacha-se de encontro a um monte de lixo. Seus sapatos de vidro
abatem-se, destrutivos, sobre os saberes sabidos. Um copo d’água se espatifa. – Les
ronds! Les ponts! Chevaux de bois! Chaîne de dames! Dos à dos! Balancé! As crianças
o vêem e, estridentemente, gritam: – Mas é real! Sem dúvida, embora ameace com
estranhamento. – Sete anos de pastor Jacó servia Labão, pai de Raquel, serrana bela.
Mas não servia ao pai, servia a ela, que a ela só por prêmio pretendia. – Vendo o triste
pastor que com enganos lhe fora assim negada a sua pastora, como se a não tivera
merecida, começou a servir outros sete anos, dizendo: – Mais servira, se não fora para
tão longo amor tão curta a vida! Como um navio gigantesco, assustador, nas águas
calmas, seguras, da sabedoria adquirida, ele não leva jeito. Balança sua pança, desfaz
o emaranhado do cabelo, coça seus trapos. Olha de soslaio. Titubeia. Cambaleia. –
‘Stamos em pleno mar... Era um quadro dantesco o tombadilho... Que das luzernas
avermelha o brilho, em sangue a se banhar. Tinir de ferros... Estalar de açoites...
Legiões de homens negros como a noite, horrendos a dançar... Negras mulheres
suspendendo, às tetas, magras crianças, cujas bocas pretas rega o sangue das mães. E
ri-se a orquestra irônica, estridente... E da ronda fantástica a serpente faz doudas
espirais... Presa nos elos de uma só cadeia, a multidão faminta cambaleia. E chora e
dança ali! Qual um sonho dantesco as sombras voam! Gritos, ais, maldições, preces
ressoam! E ri-se Satanás!... – Senhor deus dos desgraçados! Dizei-me vós, senhor deus!
Se é loucura, se é verdade tanto horror perante os céus?! Ó mar, por que não apagas,
co’a esponja de tuas vagas de teu manto este borrão?... Astros! Noites! Tempestades!
Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão! Ele passa por nós. – Jogo limpo, por
favor! Estica os braços, suspira, enrosca o corpo. Suas brandas mãos clamam juntas.
Ithyphálliko, cutuca. Atira um punhal. Faz o sinal dos cavaleiros templários. – Diga-me
uma palavra apenas! Um caranguejo com olhos vermelhos finca as garras em seu
59
coração. – Devorador de paixão! Ils me disent, tes yeux, clairs comme le cristal: – Pour
toi, bizarre amant, quel est donc mon mérite? – O olho é o cadáver da luz, da cor.
Exalando cinzas, seus traços tornam-se cinzentos. Envelhecidos. Ressequidos. Ergue
um braço entorpecido. Na mão esquerda segura uma bengala fina de marfim com cabo
violeta e um castão de prata em forma de cabeça de dragão. – Era uma vez uma mulher
sem nome que dava nome às coisas. Harpa eólia. – Agora posso me coçar com
tranqüilidade. Retira a perna de cima da mesa e vai dançar. – Bals musette? Lampejos
azuis verdes amarelos marrons. Tinidos metálicos. Ele nada mais é do que são seus
ossos: imprevisto, incompreensível, inassimilável. Gorgolejante. Áspero. Escrofuloso. –
Eles vão lutar. – Por mim?! Quem quer?)
Ele não é ele. Mas ele é de novo possível. Peste. Virótico. Venéreo. Terrorista.
Monstro. Fumaça. Vapor. Névoa. Nuvem. Espuma do mar. Centelha. Rumorejo. Risco.
Riso. Júbilo. Máscara. Dementia. Força elementar. Incitação. Afirmação. Inovação.
Estilo de vida. Política da. Arte em favor da. Cofre de ressonâncias. Insolente.
Indiscutível. Nada de justas. Justo idéias. Síntese disjuntiva. Intuitiva. Contra-efetuação.
Lance de dados. Dobra do ser. Imagem-sol. Signo-força. Estrangeiro. Cruel. Violento.
Um gato. Lava as iniqüidades do Ser. De Deus. Da Consciência. Do Negativo. Tem o
que dar a. Diante da obstrução e exclusão. Sem Ego. Sem Édipo. Sem Falta. Sem troca
regulada. Sem interação. Sem diálogo. Sem assembléia. Sem comunidade. Sem
identidade. Sem boa vontade. Sem natureza reta. Sem lei. Não substituir um por outro.
Não um mais ágil ou amplo ou verdadeiro. Não crise. Não mudança. Não virada. Não
sistema discursivo. Afinidade com o inimigo. Work in progress. In process. Um novo
ato. Abalo. Isto sim! Experimentar. Irritar os imbecis. Envergonhar a estupidez. Fazer
da besteira um trampolim. Impedir o impudor dos medíocres. Relançar possibilidades.
Calar respostas. Falar problemas. Meter medo. Ora bolas! Ao intolerável. À miséria
programada. Ao conformismo. Ao consenso-diretriz. À preguiça. À proteção. Operação.
De resistência. Não dizer se nada houver a. Desamparar. Desimpedir. Inventar
singularidades. Clandestino. Garrafa ao mar. Espada. Flamejante. Speranza. Trajeto
solar. Vendredi. Dia de Vênus. Contra atualidade. Interesse geral. Bom-mocismo.
Bonhommes. Valores democráticos-liberais. Universais. Eternos. Aparelhos de partido.
Avaliações subjetivas. Solipsismo. Simples vivido. Juízo empírico. A priori. De Deus.
Regularidades. Modelos. Sensações pastosas. Regime jornalístico. Racionalidade
comunicativa. Instantânea. Conversação edificante. Proposições de fato. Consenso.
60
carrapato. O demônio. O pequeno Hans. Fuite devant la fuite. Evento puro. Idéias vitais.
Ética do amor fati. Transbordamento. Coro de sátiros. Coro trágico. Intermezzi. Orgia
de liberdade. Os três Não. As três filhas do caos. As três caóides. As três jangadas.
Trajetos. Sobrevôo. O cérebro. Fogacho. Queima da memória e da história.
Esfarelamento dos controles miméticos. Dança. Disparo. Devir. Puro acaso. Pathos. Os
deuses jogam na mesa da Terra. A truly joyous machine. Alegria ilícita. Rameira.
Mundana. Indecente. Ímpia. Lúbrica. Celerada. Gozosa. Anca vaidosa. Vagina dentada
fremente. Incendiada de vida. Bacante. Lena. Mênada. Embriaguez. Absinto. Instinto.
Désir. Vampiro. Cão dos Baskervilles. Cascavel. Escorpião. Mandrágora. Lisa e
listrada. Ferida. Ferina. Festa. Fauno telúrico. Vôo e canto de Andoar. Esmeralda das
bruxas de Mayfair. Possessão. Sortilégio. Espírito de fogo. Mudança de pele. Idéia
diabólica. Vagabunda. Espasmo. Convulsão. Derrame. Enxurrada. Dinamite. Águia
sobre o abismo. Salto mortal. Linguagem da paixão. Asas da alma. Escândalo político.
Vivo ergo cogito. Non cogito, ergo sum.
TURBULÊNCIA
(Lupercalia: 15 de fevereiro. Depois de sacrificar um cão, dois luperci tocam
com a faca do sacrifício a fronte. Correm, então, ao redor do Palatino. – Ah, mas ela
não vai ser surrada com pedaços de couro de cabra! – Pra quê? Já é fértil! Fornica.
Matraqueia. Altiva, flutuante, zombeteira. Toma fôlego com vagar e avança lentamente
em direção às luzes da sala. O fulgor jorra. Aurora borealis? Não, os bombeiros
chegam. Ciclistas, com as campainhas retinindo, correm entre os carros. – Quelle
soupe! Nas mãos, anéis com pedras preciosas. Nos tornozelos, correntes de ouro como
algemas. Cabelo trançado. Travessa de brilhantes e penacho de pluma de pavão na
cabeça. Vestido de negro organdi. Decote fundo. Botões de diamante e rubi no bolero.
Broche camafeu. Brincos e pulseiras de diamantes. Cinto bordado a ouro. Picada por
um espasmo, esfrega a camada de lama grudada em seus sapatos. – Ai, meus sais! –
Mantenha-se, mantenha-se, mantenha-se... – O homem do saco vai te pegar, se ficares
variando tanto! – Sinos a defunto. Ai, quem morreria? Olha, foi o pobre Ti Zé, senhor!
Velho, tão velhinho, nenhum outro havia. Pra cumprir 100 anos, lhe faltava um dia. Há
94 que era pastor... Tocadora de flauta. Dançarina. Mulher de Rodes. Perfumada.
Aromatics elixir. Figura sinistra. De olhar maligno. Cospe fogo. Mulier toto iactans e
corpore amorem. – Eram para ela o maior flagelo, um sofrimento que não tinha
62
imposto pelas imagens clássicas e seus modelos. Chegamos aos 90. E ela recebia o
nome inesperado: plano de imanência. Nem um conceito pensado nem pensável. Uma
potência de Uno-Todo. Condições internas. Pressupostos implícitos. Conjunto de
postulados. Pré-filosóficos. Não-filosóficos. Númeno. Um crivo. Um grito. Puramente
diferencial e repetitivo. Esse percurso: ainda obscuro? Mas, temos condições de
compreender o conjunto. Bref. Antes de 80, a reivindicação por um pensamento
evacuado de pressupostos pré-filósoficos. E de estriagens. Um pensamento sem
imagem. Após, a exposição de um plano não-filosófico necessário à filosofia. O que foi
que mudou? Houve radicalização: o sem imagem continuava proposto. Entretanto, a
exigência: um plano totalmente imanente. O pré-filosófico, desde então, não foi mais
abolido porque compunha intrinsecamente a filosofia. Talvez, fosse mesmo convincente
que o não-filosófico estivesse mais no coração da filosofia do que ela própria!
Modificara-se o entendimento de pré-filosófico, antes remetido à imagem dogmática,
como objetivo e conceitual, ou subjetivo e não-conceitual. Também a idéia de que não
havia uma só imagem, mas que o plano era traçado ao mesmo tempo em que os
conceitos eram criados. Cada filósofo constrói o seu plano ou se instala num já
constituído. Um plano como campo, solo, terra. Albergue dos conceitos. Assegurador de
sua existência autônoma. A crítica não se dirigia mais à Imagem, mas ao plano em que a
imanência não fosse absoluta, em que o movimento não fosse infinito. Um plano sem
coordenadas espaço-temporais, sem horizonte, sem móveis determinados. Porque, desde
que o plano fosse imanente a algo, o transcendente corria o risco de ser reintroduzido. O
pensamento sem passa a ser considerado sem modelo, sem forma, sem transcendência.
Imanência pura. Uma imagem, desta vez, puramente imanente. Pensamento pleno da
imanência. Fluido, fluente. Duração pura. Doação insensata de sentido. Integrado por
sonhos, processos patológicos, experiências esotéricas, embriaguez, excesso. Agora,
entre o plano e os conceitos, personagens de existência misteriosa: conceituais. Imagem
do Pensamento-Ser. Ser-Natureza. Ser-Caos. Ser-CsO. Por sua fluência e vibração, a
imagem torna-se próxima da matéria. Matéria do ser ou imagem do pensamento.
Matéria: mais do que o idealista chama representação e mais do que o realista chama
coisa. No meio do caminho. A Imagem migra de Modelo ou Forma para Matéria. Como
isso foi possível? Percurso conceitual de difícil compreensão! É preciso multiplicar as
precauções e ir mais devagar! Não parece inacreditável que o conceito de Imagem
signifique Modelo, em algum momento? Se o próprio Platão contrapôs a Idéia (o
64
imagem. Se há tantas imagens distintas do pensamento é porque cada uma criva o caos
de modo diferente, seleciona de modo diferente o que pertence de direito ao
pensamento. Nenhum plano pode abraçar o todo do caos. Cada um o corta do seu jeito.
Essas operações permitem que os conceitos e os planos se encontrem, se distribuam, se
reagrupem. Tempo estratigráfico. Claro que, deste ponto de vista, não estamos seguros
que a filosofia não tenha futuro! E, ainda, não estamos seguros que ela não seja nada
mais do que um grande amor...
INFLEXÃO
(– Alô! Olá! Hi! Bonjour! Comment ça va? – Nil novi sub sole? Ele espreita por
detrás. Com seu rosto de coelho. A corda em volta do pescoço. As tripas parecem se
soltar. Acabam se descarregando. Camisa de algodão azul, casaco de linho preto,
calça cinza xadrez. Mordisca uma folha de hortelã. Chupa uma manga. Seu fígado pede
o divórcio por maus tratos e requintes de crueldade. O rosto congelado num raivoso
ponto de interrogação. – Terracota? Se um pensamento entrasse algum dia em sua
cabeça morreria de inanição. – Ei! Mãos ao alto! – De nenhuma criatura viva tenho
rancor. Só l’amour grec. Ela atiça. – Você vai arrumar encrenca! Chuta os seus
testículos. Confusão. Barulho. Em baixo do andaime, aquele banzé! A ousada. – Que
tal eu socar o seu peito? Qual múmia caiu duro. – Muito desagradável! Fabulada pela
memória. Com gestos elaborados, inspira. – Mil vezes matar aquele que inventou o
abdominal! – Mil vezes picar aquele que inventou o apoio! – Não chores ainda. A
terceira. Opulenta cabeleira cor de mel. Linha graciosa do queixo e do colo. Estrutura
óssea bem conformada. Nariz fino. Pele eternamente iluminada pela luz do sol poente.
Olhos cor de jade. Lábios carnudos e resolutos. Perfeita simetria da confluência
genética. Mulher misteriosa. Na cama. Na campa. Continente negro. Pôxa, nem
Freud... O homem faz você-sabe-o-quê. – O que está acontecendo? Um doutor com
estetoscópio. – Eu venho consultar-vos, Doutor. O mal que eu tenho e que me martiriza
os dias, tirando-me a razão e a mocidade, é um cancro que nunca cicatriza. Eu tenho
um coração que não palpita. Cabeça que não pensa, só divaga. Um tédio negro me
envenena os dias. Tédio que mata. Tédio que assassina. Como os beijos vendidos nas
orgias de intermináveis noites libertinas. Todos os seus amantes. – Entrem e
desfrutem... – E se as duas hipóteses forem falsas? E se for ainda mais complicado do
que dissemos? – It is very difficult... – Ora, bolas, já não perguntarás pelo ser, mas pelo
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pensar. Ele é apedrejado com cascalho, chinelos, urinóis cheios de porcaria. Mordem-
lhe os calcanhares. – É impressionante a semelhança entre os dois! A mesma crítica
das ilusões! – La femme cependant precisa de ar puro. Pauvre muse! Hélas! – Da
montanha. – A mágica? – Monte de Vênus. – Arrependa-se! Poeirinha da poeira! – Ó,
o fogo do inferno, hem! Um rio de bile pingando. O amargo do amor. – Ó, menininha
com olhos virginais! Eu te procuro. Mas, tu não me escutas. Será que não sabes que és
a única condutora de minh’alma? – Cet démon, il n’est pas lá... – Só uma coisa me
preocupa mais uma vez... – Membrum virile? – O sêmen pode se converter em
adiposidade, havendo continência? – Aqui reside Hércules. Que nada de mal entre
aqui. – Pouco importa! Em condições artificiais, o destino decide.)
Gottfried: – Caro Friedrich, aqui estamos. Trouxemos conosco este Estrangeiro.
Filho de Diógenes e de Hipatia, ele vem de Cítio no Chipre. Mas ele é diferente
(héteron) dos companheiros de Zenão. Ele pensa realmente como um filósofo, pois
pertence ao círculo de Fiódor, Francis, Franz, Henri, David, Louis, Arthur, Stéphane,
Jean-Luc e Virginia.
Friedrich: –Mas, caro Gottfried, como pensa este Estrangeiro? Como um
homem? Como um deus? Não pensa ele como um deus disfarçado de homem? Não te
acompanha, sem saberes, um deus-pensador em lugar de um pensador-estranho? Não
esquece que, para Homero, há deuses que assumem a aparência de estrangeiros vindos
de outros lugares... Embora existam aqueles que são companheiros dos homens que
operam com um pensamento estranho. Não será o Deus dos Estrangeiros (tón xénion
theòn) o único que pensa estranhamente? Por certo, quem te acompanha é um desses
pensadores superiores que vem pensar junto a nós, que somos tão fracos! Não será ele
um deus refutador (theòs tis elegktikós)? Pensa como político? Como sofista? Pode
bem ser que pense feito louco... Mas, como sabê-lo, se o pensamento segue tão
diversos sendeiros?
Gottfried: – Ora, Friedrich, o pensar deste Estrangeiro percorre a Terra.
Quando indagas se ele pensa como um deus, à qual conceito te referes: ao pensar dos
poetas ou àquele de um deus sophós, cuja divindade parece encarnar-se no filósofo?
Fica tranqüilo, amigo, acho que o Estrangeiro pensa como um homem-divino (theîos
anêr). Seu pensar é mais sóbrio do que os ardorosos amigos da Erística. É comedido
(metrióteros), como em todos os verdadeiros filósofos. Eu o vejo não como um deus-
pensador, mas como um pensador-divino, já que assim considero todos os filósofos.
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Friedrich: – Tens razão, caro amigo. Temo, entretanto, que o pensar do filósofo
não seja nada fácil de determinar, assim como o divino. Para o juízo tolo das multidões,
ele corre sempre o risco da besteira. A uns, ele parece nada valer, e a outros, tudo valer.
E, outras vezes, dá a impressão de estar completamente em delírio. Não se trata de um
deus-pensador que assume uma outra forma, mesmo permanecendo deus – mas qual
deus? –, para participar do pensar humano e eventualmente refutá-lo? Diz-nos,
Estrangeiro, afinal, pensas como um deus ou como um homem? Ou nada disso, mas
como um homem-divino?
Gottfried: – E, se assim for, Estrangeiro, como discernir o pensar filosófico,
dentre as aparências que ele assume (phantazómenoi), devido à estupidez dos outros
homens (dia tèn tôn állon ágnoian)? Como examinar a multiplicidade própria ao modo
que tem o filósofo de pensar? O seu pensar faz ou não parte do mundo?
Friedrich: – Assim como a deusa, no prólogo do poema de Parmênides, diz ao
jovem que é preciso que ele se instrua sobre todas as coisas, sobre a verdade e sobre as
opiniões, modalidade das aparências, parece-te que o pensar filosófico é da ordem da
aparência? É preciso examinar a própria aparência enquanto imagem? Imagem visual?
Imagem falada? Discurso (lógos)?
Gottfried: – O que perguntas é se, dentre as diferentes maneiras que se tem de
pensar, há uma maneira falsa?
Friedrich: – O pensamento falso seria próprio do pensar do sofista, que, em
última análise, é o pensar em confrontação com os eleatas? O pensar sofístico não
implica a máxima socrática do gnôthi seautón? A filosofia da diferença não começa por
esse pensar? Se as nossas questões não forem desagradáveis, quero perguntar-te,
diretamente: o que é pensar?
Gottfried: – Para quem?
Friedrich: – Para o artista, o cientista e o filósofo.
Gottfried: – O que queres saber, precisamente?
Friedrich: – Há uma única forma de pensar ou mais de uma?
Gottfried: – A questão que propões, Friedrich, é bem escolhida. Ela se parece
com aquelas que formulamos, no caminho para cá. O Estrangeiro discutia, então, os
mesmos problemas, e a propósito dos quais ele diz que ouviu muitos ensinamentos e
que não os esqueceu.
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Incapaz de viver com o caos, sentindo-se tragada por ele, a opinião tenta vencê-lo, foge
dele, e impõe um pensamento único.
Baruch: – Mas, essa fuga não é apenas aparente? O caos não continua ali,
jogando dados com a nossa vida?
Estrangeiro: – Diante do caos, o que importa ao filósofo não é nem vencer o
caos, nem fugir dele. Mas conviver com ele e dele extrair possibilidades criativas e
velocidades infinitas.
Baruch: – Agora, diz-nos, Estrangeiro: o caos existe?
Estrangeiro: – Não, o caos não existe. Ele é uma abstração. Na linguagem
cosmológica, pode-se dizer que o caos é conjunto de possíveis. Na física, que ele é
trevas sem fundo. Na psíquica, que ele é atordoamento universal. O caos é inseparável
de um crivo, que faz surgir algo. É pura diversidade disjuntiva. Enquanto o algo é um
artigo indefinido, que designa uma singularidade qualquer.
Baruch: – Como se faz surgir algo do caos?
Estrangeiro: – É preciso que intervenha um crivo, como uma membrana elástica
e sem forma, como um campo eletromagnético.
Baruch: – Esse crivo é uma máquina infinitamente maquinada que constitui a
Natureza?
Estrangeiro: – Se o caos não existe é porque é o reverso do grande crivo e
porque este compõe, até o infinito, séries do todo e das partes. Estas séries somente nos
parecem aleatórias, caóticas, em função da nossa incapacidade para segui-las ou da
insuficiência de nossos crivos pessoais.
Baruch: – Então, Estrangeiro, a filosofia, entendida em sua relação com o caos,
não se empenha em adquirir um conhecimento capaz de realizar a correspondência entre
o conceito e um estado de coisas. Mas dedica-se a atribuir consistência aos conceitos,
pela via da produção de sentido, não é mesmo?
Estrangeiro: – Desde que ela não busca ascender ao plano de imanência para
atingir uma verdade ulterior.
Baruch: – Temos, então, um monólogo do conceito, que é anticomunicativo,
antidiscursivo e antijuízos?
Estrangeiro: – Não se pode julgar se não houver preocupação com a possível
existência de verdades.
Baruch: – Sendo assim, o que essa filosofia produz sobre o pensamento?
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Estrangeiro: – A filosofia deve ser examinada pelo que produz e pelos efeitos
que causa. Trata-se de perguntar se os conceitos, o plano e os personagens são
importantes, interessantes, notáveis.
Baruch: – O que é que dá materialidade à filosofia?
Estrangeiro: – O plano de imanência, que é o solo e o horizonte dos conceitos. O
que faz com que os conceitos não se desgarrem e se tornem transcendentes.
Baruch: – E há algum “sujeito”?
Estrangeiro: – Aquele que permite ao filósofo criar e explorar os conceitos: o
personagem conceitual. Sócrates é o personagem de Platão. Dionísio, Zaratustra e o
Anti-Cristo são personagens conceituais de Nietzsche.
Baruch: – Essa filosofia possibilita que se pense o intratável, o impensável, o
esquecimento do esquecimento, o não-pensado do pensamento, a exterioridade, o seu
fora, o diferente de si, o seu outro?
Estrangeiro: – Pensar não é reconhecer. Não é um exercício de boa-vontade. Não
é a correta aplicação de um método. Não tem a ver com a verdade. Não pergunta sobre a
essência das coisas.
Baruch: – Mas, o que é pensar, então?
Estrangeiro: – Pensar é encontrar signos.
Baruch: – São os signos que nos forçam e obrigam a pensar? Que arrancam o
pensamento de seu torpor e de suas possibilidades meramente abstratas? É desse modo
que se pode pensar o caos?
Estrangeiro: – Isto! Pensar como evento e como sentido. Quando alguma coisa é
designada, o sentido está sempre pressuposto.
Baruch: – Logo de saída, então, instalamo-nos em pleno sentido, sem precisar ir
dos sons às imagens, nem das imagens ao sentido?
Estrangeiro: – Nunca dizemos o sentido daquilo que dizemos, embora possamos
tomar o sentido do que dizemos como objeto de novas proposições. Numa regressão
infinita...
Baruch: – O sentido, pois, é distinto do que as proposições significam,
manifestam ou designam?
Estrangeiro: – Ele é um extra-ser. Faz existir o que o exprime. Faz-se existir no
que o exprime.
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Baruch: – Por isso é que o evento se passa nas bordas do que acontece, se dá nas
fronteiras entre as coisas e as proposições, entre o que se vê e o que se diz?
Estrangeiro: – O evento é o único capaz de destruir o verbo ser e o atributo.
Baruch: – Pensar por conceitos e produzir sentido têm uma ligação essencial
com a linguagem, não é mesmo?
Estrangeiro: – Os conceitos são manifestações da linguagem. O pensamento é
um corolário da ordenação da linguagem. A filosofia é um jogo de conceitos com
consistência em seus devires.
Baruch: – Estrangeiro, só não podemos esquecer a lógica aristotélica, que nos
levou a pensar por meio de proposições, dotadas da estrutura ternária sujeito-e-
predicado, ligada pelo É do verbo ser. Não podemos esquecer que, ao invés de
“Sócrates filosofa”, ela propôs a forma lógica “Sócrates é filósofo”; ao invés de “A
árvore verdeja”, “A árvore é verde”. E que esse acabou se tornando o modo dogmático
de pensar...
Estrangeiro: – Já, em Deleuze, o pensar faz com que o encontro com as relações
penetre e corrompa tudo, mine o Ser, faça-o vacilar. Ao invés do É designativo propõe o
E, que faz com que as relações corram para fora de seus termos e para fora do conjunto
de seus termos, para fora de tudo o que poderia ser determinado como Ser, Uno ou
Todo.
Baruch: – Trata-se, então, de uma maneira de afrontar a filosofia como teoria do
que é para constitui-la como teoria do que fazemos?
Estrangeiro: – O pensamento só diz o que é, ao dizer o que faz. Ele reconstrói a
imanência substituindo as unidades abstratas por multiplicidades concretas, o É da
unificação pelo E..., E..., enquanto processo ou devir – uma multiplicidade para cada
coisa, um mundo de fragmentos não-totalizáveis comunicando-se através de relações
exteriores.
Baruch: – Trata-se, então, de querer o evento, de vivê-lo por inteiro? E não pela
metade...
Estrangeiro: – De viver segundo uma ética das quantidades intensivas, que tem
dois princípios: afirmar até o mais baixo e não se explicar demais.
Baruch: – De viver segundo a ética estóica, que nos dizia: – Não sê inferior ao
evento! – Torna-te filho de teus próprios eventos!
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ou de se acrescentar à sua atualização. Ele não começa nem acaba, mas ganha ou guarda
o movimento infinito ao qual dá consistência. É o virtual que se distingue do atual. Mas
um virtual que não é mais caótico, tornado consistente ou real, sobre o plano que o
arranca do caos.
Baruch: – Por isso é que Deleuze gosta de repetir Proust: “real sem ser atual,
ideal sem ser abstrato”...
Estrangeiro: – O evento é transcendente, porque sobrevoa o estado de coisas, os
corpos, o vivido. Mas somente a imanência pura lhe dá a capacidade de sobrevoar-se a
si, em si mesmo, e sobre o plano. Quando então ele se faz trans-descendente.
Movimentos do evento...
Baruch: – Desde que ele é imaterial, incorporal, invisível: pura reserva. Desde
que ele não é eterno, mas também não é tempo: é devir. É um tempo morto, uma espera
infinita que já passou infinitamente...
Estrangeiro: – Espera e reserva. Nada se passa aí. Todavia, tudo muda, porque o
devir não pára de conduzir o evento, que se atualiza alhures, a um outro momento. O
conceito tem uma potência de repetição, a realidade de um virtual, de um incorporal, de
um impassível, porque é ele que apreende o evento, seu devir, suas variações.
Baruch: – Só que, Estrangeiro, para mim, há algo ainda muito enigmático: a
instância intermédia dos personagens conceituais. Eles têm uma existência fluida entre o
conceito e o plano pré-conceitual, certo. Mas, de onde eles vêm? Como aparecem?
Estrangeiro: – A filosofia passa pelo estudo desses personagens, de suas
mutações segundo os planos, de sua variedade segundo os conceitos. Ela dá vida aos
personagens conceituais, que não podem aparecer por si mesmos, mas que estão lá e
devem ser reconstituídos.
Baruch: – Fico confuso porque os personagens conceituais, por vezes, têm um
nome próprio, como Sócrates, no platonismo. Entretanto, outras vezes, personagens
como Teeteto, Teodoro, Fédon, Equécrates, Críton, Símias, Gláucon, dos Diálogos
platônicos, não são considerados personagens conceituais.
Estrangeiro: – Todo personagem conceitual é original, único, notável. Ele é
quem opera os movimentos que descrevem o plano do pensamento e intervêm na
criação dos conceitos do pensador.
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pensada, que os arranca tanto dos estados de coisas históricas de uma sociedade, como
do vivido dos indivíduos. E faz deles traços de personagens conceituais, ou eventos do
pensamento, sobre o plano traçado ou sob os conceitos criados.
Baruch: – Quais são, afinal, os traços dos personagens conceituais? Esses traços
variam com os planos de imanência? Sobre um mesmo plano, diferentes traços podem
se misturar para compor um personagem?
Estrangeiro: – Há traços páticos: o Idiota, o Louco, a Múmia, um grande
maníaco. O esquizofrênico é um personagem conceitual que vive no pensador e o força
a pensar, assim como também é um tipo psicossocial que reprime o vivo: os dois se
conjugam. Há traços relacionais: o Amigo, mas que só tem relação com seu amigo,
Pretendente e Rival, que disputam a coisa ou o conceito, mais o Jovem, uma Noiva. Há
também traços dinâmicos: dançar como Nietzsche ou pensar como surfista. Os traços
jurídicos ocorrem quando o pensamento exige o que lhe é de direito. Já os traços
existenciais dizem respeito à filosofia que inventa possibilidades de vida.
Baruch: – O personagem conceitual e o plano de imanência estão em
pressuposição recíproca?
Estrangeiro: – Ora o personagem precede o plano, ora o segue. É que ele aparece
duas vezes: primeiramente, mergulha no caos e tira daí determinações, das quais faz os
traços diagramáticos de um plano. Então, como se fossem dados, joga-os no acaso-caos
e os lança sobre a mesa. Para cada dado que cai, faz corresponder os traços de um
personagem e os componentes de um conceito, que vêm ocupar a mesa.
Baruch: – Os personagens intervêm entre o caos e os traços diagramáticos dos
planos? E também entre estes e os traços intensivos dos conceitos? Eles constituem os
pontos de vista segundo os quais os planos se distinguem ou se aproximam? São eles
que constituem as condições sob as quais cada plano de imanência se vê preenchido por
conceitos do mesmo grupo?
Estrangeiro: – O plano de imanência tem traços diagramáticos. O conceito tem
traços intensivos. Já, o personagem conceitual é ponto de vista e condição. Os traços
personalísticos dos personagens se juntam aos diagramáticos do plano e aos intensivos
dos conceitos.
Baruch: – Do que entendi, os conceitos não se deduzem do plano de imanência.
É necessário o personagem conceitual para criá-los sobre o plano e para traçar o próprio
84
DESINÊNCIA
(Aischrología. Linguagem feia, vergonhosa. Ética a Nicômano. – Que pai, hem?
– Tocam-se sinos para essa sina?! Riverrun. – Noite escura. Rua escura. Um revólver.
Um bandido. E eu. – A bolsa ou a vida? Olhei minha bolsa. Olhei minha vida. E
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muito menos é repetir os filósofos Ah já que ela não pára de colocar-se em relação
intrínseca com outros domínios embora não tenha o objetivo de fundá-los ou de
justificá-los Ah bom apenas tematiza elementos não-conceituais que são atos saberes
funções sons imagens linhas cores a ciência o literário o artístico e com eles estabelece
ecos conexões ressonâncias articulações agenciamentos convergências que Ó ela integra
e transforma em conceitos de modo que Ó o filósofo é criador e não reflexivo nem
comunicador Imagine a filosofia Não é contemplação Não Nunca pois a contemplação
Não é criativa Ó como no platonismo que visa a coisa mesma tomada como preexistente
e independente do ato de contemplar Não Também não é reflexão sobre alguma coisa
externa ao intelecto porque a reflexão Não é específica da atividade filosófica e Não é
Nada de comunicação porque esta visa ao consenso não ao conceito como querem
Aqueles chatos neopragmatistas que propõem uma conversação democrática ao redor da
mesa do banquete e dificilmente Muito dificilmente saem da opinião Ó é que o filósofo
só pensa a partir de Ó e a sua questão central é esta mesma O que é pensar E eis a
filosofia definida por seu poder criador e pela exigência de criação de um novo
pensamento Ah maravilha ela é arte de formar inventar fabricar conceitos Ó desde
quando a palavra grega filosofia philia + sophia cruzou amizade remetida à
proximidade e ao encontro com o conceito e fez com que o personagem do filósofo
nascesse com os gregos como aquele que busca o que nunca é dado Ah lindeza como
procura e produção e pensa o conceito diferentemente dos sábios antigos que Ah eles
sim pensavam por figuras externas e transcendentes Então foi assim que o filósofo
definiu-se Ó que coisa bonita como amigo do conceito e agora Vejam Salve Viva a
filosofia da diferença resgata tudo isso e Ó admite que a sua tarefa é necessariamente
criativa enquanto o amigo é um personagem conceitual que Bravo contribui para a
definição dos conceitos e que a filosofia Ah bem jamais jamais é passiva frente ao
mundo Isto sim sendo a sua atividade de criar conceitos uma intervenção no mundo
Melhor Bem Melhor a criação de um mundo e Olha a surpresa acontece o mesmo com a
ciência e a arte e a literatura Mas não de jeito nenhum isso resulta numa assimilação
desses domínios nem no predomínio de nenhum deles sobre os outros Como não Cada
um é criador ao seu modo E a filosofia tem por função específica criar conceitos E a
ciência criar funções E a arte criar agregados sensíveis Ora assim a filosofia é uma
prática dos conceitos que se interconexiona com outras práticas como Ó uma filosofia
do inferno não é sobre o inferno Diabos mas é um pensar Infernal é verdade desde os
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conceitos que o Inferno suscita e que estão por sua vez em relação com outros conceitos
que correspondem a outras práticas Ah então é no nível de cruzamento de várias
práticas que os eventos E Ventos E Ventos E Ventos se fazem Claro por isso trata-se de
uma geografia do pensamento mais do que de uma história Por isso em vez de constituir
sistemas fechados a filosofia pressupõe eixos e orientações e traça dimensões e Claro
sua história não é linear nem progressiva mas constitui espaços tipos conceitos planos
personagens não só heterogêneos mas até mesmo antagônicos e Ó enquanto os
dualismos são metafísicos ela Olha ela aí é um elogio da multiplicidade Maravilha para
a qual existem apenas graus e sutis transições Ó pensamento filosófico
rizomáticoooooooooo Ó móvel que não cessamos de deslocarrrrrrrrrr Ó a relação entre a
criação de conceitos e a tradição filosófica e o pensamento de filósofos intempestivos é
condição para esse modo singular de filosofar Ó aquele que foge da hermenêutica da
interpretação do comentário e Ó tem efeito de diagnóstico multipolar e Ó sua potência
performativa o situa fora dos campos de referência tradicionais da filosofia e forma
blocos de devir Ah lindos que deslocam as territorialidades de origem Ah formulam
uma nova política do saber Ah constroem um espaço ideal liberto dos pressupostos da
imagem dogmática da filosofia da representação em Tudo Tudo Tudo diferente de
Platão Aristóteles Descartes Kant Hegel Ah espaço que torna o pensamento de novo
possível disse O querido Foucault Ah sim e não cansa de colocar em jogo sua própria
atualidade a partir da necessidade de pensar de outro modo claramente
dissidenteeeeeeeeeee Ó que resulta num exercício inatual como se o pensamento fosse
uma colagem em pintura Ó roubar Ó realizar inflexões de leituras que têm um caráter
instrumental e Ó não procurar nenhuma idéia verdadeira mas idéias diferentes em outros
domínios Ó de modo que alguma coisa passe entre elas e Bem repete-se um texto não
para buscar sua identidade mas afirmar a sua diferençaaaaaaaaaa e fazê-lo agir como um
Duplo-Duplo Duplo-Duplo e comportar o máximo de variação própria ao duplo
produzido por deslocamento disfarce dissimulação recriação e Ó modificá-lo Tanto
Tanto que o real se transforme em imaginário fingido inventado fabulado Ó
desembaraçar os conceitos de seus sistemas de origem e Ó roubar até mesmo aqueles
que ficam na antípoda das posições adotadas Ó usá-los como operadores
independentemente das inter-relações conceituais próprias do plano de pensamento ao
qual pertenciam Ó passíveis de pequenas ou grandes torções e Ó aproveitá-los em
problemas que são os nossos e Aí se tudo correr bem bem bem escrever um livro de
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filosofia como ficção científica ou um romance policial e Ai Ai Ai zeus nos ajude e não
nos desampare fazer filosofia como um teatro filosófico e Daí trazer os filósofos à cena
como máscaras de suas próprias máscaras pois No fundo No fundo para Nietzsche Sim
Sempre Tudo é máscara Ó fazer multiplicidade no pensamento e na escrita Que difícil
Que difícil usar todas as formas concretas e modos de expressão possíveis Se tivermos
sorte levar a filosofia percorrer um plano de composição para o pensamento e Ó realizar
agenciamentos para um mundo dramatizado a partir dos devires mais atuais que
desterritorializam o que já pensamos e Ó integram a alternativa radical do pensamento
do Eterno Retorno e da Vontade de Potência que Aí justamente constituem a condição
de possibilidade da chamada reversão do platonismo e que critica a representação A
qual Que pena Que lástima reduz o conceito à identidade e a expande pela semelhança
analogia negativo E é assim que a filosofia da diferença não se orienta nem pela altura e
nem pela profundidade mas pelo abismo existente atrás de toda caverna E é na
superfície sobre o plano de imanência e Ó ela não é nada sem as forças efetivas que
agem sobre ela e as indeterminações afectivas que a forçam a pensar Ó se dá no
infinitivo não no Eu que é o do presente Ó pensar assim é criar novos conceitos
requeridos pela experiência real não apenas possível mas pelos eventos Ó dar lugar a
novas experimentações de vida e Claro ter a sua força medida pelos conceitos que cria
ou cujo sentido renova Ó filosofia que impõe um novo recorte às coisas e às ações Ó
filosofia que descobre no devir a sua condição Ó filosofia que tem como princípio uma
razão contingente Ó filosofia que tem no virtual distinto de suas formas de atualização
uma maneira de problematização do movimento infinito do entre-pensamento Ó
filosofia que joga em seu trabalho a vertigem filosófica que convoca o transcendental
para opô-lo ao transcendente e a toda forma dada na consciência Ó filosofia que opõe à
transcendência do sujeito e do objeto uma imanência absoluta ontológica Ó filosofia que
envolve uma nova inteligência do político irredutível à filosofia política tradicional Ó
filosofia que funciona como operadora de desencravamento da filosofia contemporânea
acomodada nos blocos fenomenológico e analítico Ó filosofia que diz respeito às
ciências e às artes desde que domina as potências do Fora que se empenha em captar e
individuar na forma de idéias vitais Ó filosofia que tem por função dizer o evento e não
mais a essência Ó filosofia que pensa por conceitos cruzados com funções ou sensações
E um desses pensamentos Nunca Surpreendente é mais plenamente pensado do que os
outros e os três entrelaçam-se sem síntese nem identificação Isto que é belo e traçam
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planos de consistência de referência de composição sobre o caos Claro que não como as
religiões que invocam dinastias de deuses ou a epifania de um deus único e Ora bolas
Covardes Frouxos Medrosos pintam sobre o guarda-sol um firmamento com as figuras
de uma Urdoxa Ó opinião disfarçada de onde derivam as nossas opiniões Claro que são
pensamentos que fazem surgir eventos com seus conceitos Ó erguem monumentos com
suas sensações Ó constroem estados de coisas com suas funções Ó rico tecido de
correspondência que se estabelece entre os planos Ó rede com seus pontos culminantes
Ó cada elemento sendo criado sobre um plano e apelando a outros elementos
heterogêneos que restam para criar sobre outros planos Ó pensamento como
heterogênese Agora muito muito Cuidado pontos culminantes são perigosos porque
podem nos reconduzir à opinião Cuidado de onde queríamos sair ou Cuidado nos
precipitar no caos que queríamos enfrentar Ó pensamento que experimenta Ó política do
ser mais do que metafísica Ó política das ciências mais do que epistemologia Ó política
da sensação mais do que estética Ó política do inconsciente mais do que psicologia Ó
micropolítica do desejo mais do que psicanálise Ó política da língua e pragmática mais
do que lingüística dos signos Ó ética dos devires mais do que filosofia política Ó
ecologia especulativa das práticas Ó política da filosofia para resistir ao presente e
inventar outras possibilidades de vida Ó construcionismo sistemático Ó trabalho sobre
autores como produção de experiência Ó antropofagia de idéias Ó rajadas e sacudidas
que nos atingem pelas costas Ó móveis que não cessamos de deslocar deslocar de mudar
mudar de lugar lugar lugar
risum teneatis, amici
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