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ELAINE NEUENFELDT**
17. Tu, ó Filho do homem, põe-te contra as filhas de teu povo, que profetizam de seu
coração, profetiza contra elas,
18. e dize: Assim diz o Senhor Deus: Ai das que cosem invólucros feiticeiros para todas as
articulações das mãos, e fazem véus para cabeças de todo tamanho, para caçarem almas!
Querereis matar as almas do meu povo e preservar outras para vós mesmas?
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia,v. 27, n. 3, p. 335-344, jul./set. 2017. DOI 10.18224/frag.v27i3.5891 335
19. Vós que profanastes entre o meu povo, por punhados de cevada e por pedaços de
pão, para matardes as almas que não haviam de morrer, e para preservardes com vida
as almas que não haviam de viver, mentindo assim ao meu povo que escuta mentiras.
20. Portanto, assim diz o Senhor Deus: Eis aí vou eu contra vossos invólucros feiticeiros,
com que vós caçais as almas como aves, e as arrancarei de vossas mãos; soltarei livres
como aves as almas que prendestes.
21.Também rasgarei os vossos véus e livrarei o meu povo das vossas mãos, e nunca mais
estará ao vosso alcance para ser caçado; e sabereis que eu sou o Senhor
22. Visto que com falsidade entristecestes o coração do justo, não o havendo eu entriste-
cido, e fortalecestes as mãos do perverso para que não se desviasse de seu mau caminho
e vivesse.
23. por isso já não tereis visões falsas, nem jamais fareis adivinhações; livrarei o meu
povo das vossas mãos, e sabereis que eu sou o Senhor.
O
texto em estudo se encontra num contexto de denúncia contra profecias con-
sideradas ilícitas pelo profeta Ezequiel (Ez). A denúncia contra atos e posturas
consideradas censuráveis pelo profeta, no exercício da profecia e liderança religiosa,
engloba os capítulos 12,1-14,11 (BLENKINSOPP, 1990, p. 64-5). Este conjunto de textos
denuncia várias práticas transgressoras e anuncia o exílio como fim vindouro. Num contexto
menor, o texto de Ez 13,1-23 forma uma seção. A primeira parte do capítulo é dedicada à
reprovação dos “falsos profetas”. Diferente das mulheres, que aparecem na segunda parte, os
homens são chamados de profetas, e a sua ação é descrita como profecia. Sua profecia “vem
do coração”(v. 2) e “segue o seu próprio espírito” (v. 3). A acusação contra estes profetas é
que eles anunciam a paz, quando não há paz, que têm visões falsas ou vazias e adivinhações
mentirosas. Ou seja, os profetas são condenados, não pelo fato de terem visões e fazerem
adivinhações, mas pelo conteúdo de suas ações proféticas. Visão e adivinhação fazem parte
do papel profético, conforme vários exemplos do mesmo livro de Ezequiel.
Nos versículos que antecedem o texto em estudo (vv. 1-16), os homens são no-
meados como profetas, no mesmo parâmetro que Ezequiel usa para referir-se a si mesmo,
conforme Ez 2,5; 33,33. As mulheres são descritas em suas ações proféticas que são expressas
em gestos: amarrar, costurar nós e fazer véus; os homens são denunciados pelas suas ações pro-
féticas que estão demarcadas no âmbito da profecia verbal, como as visões e as adivinhações.
Dos profetas é dito que não foi Javé quem os enviou (13,6) e das profetisas, que elas profanam
a Deus(13,19) (JOST; SEIFERT, 1981, p. 282-3).
Embora a ação das mulheres seja, de acordo com o verbo usado (nabim), uma pro-
fecia, as interpretações dos exegetas ao texto deixam evidente a sua aproximação pré-conce-
bida, de que o que as mulheres fazem não pode ser enquadrado nos padrões de normalidade
(deles, dos exegetas!) do que é profético (BLOCK, 1997, p. 417). Os homens são considera-
dos opositores clássicos, a sua fala é profecia, mas a ação das mulheres é algo como, é quase
que, é querendo ser, tanto na visão do profeta, como na visão dos que interpretam o texto, os
exegetas, os assim chamados estudiosos.2 E quando são equiparadas aos sacerdotes corruptos
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e profetas mentirosos de Ezl 3,25 e Miquéias (Mq) 3,11, elas não agem por sua conta, mas
são contratadas, cobrando pelos serviços, interpretando unilateralmente a referência à cevada
e ao pão. Não há referência direta a outras divindades como se quer afirmar. Pelo contrário,
a única divindade que aparece no texto é Javé. O uso exacerbado de (des)qualificativos como
“bruxas, praticantes de magia negra, charlatonas” evidencia antes o ponto de vista precon-
ceituoso que, de antemão, irá banir as mulheres para o âmbito do proibido, do transgressor.
Para as mulheres não há lugar: são banidas das práticas, banidas do texto e banidas
da interpretação. Ocultas, com suas práticas ocultas, deveriam passar desapercebidas, como
tem passado nas páginas de análise exegética.
A profecia legítima (BRENNER, 2001, 79)3 feita por mulheres é atestada em al-
guns textos bíblicos: Miriam é mencionada em Êxodo 15, Débora, em Juízes 4 e 5, Hulda,
em 2Reis 22,14 e Noadia, em Neemias 6,14. Também Isaías 8,3 fala da profetisa, mulher do
profeta. Joel 2,28-29 fala do dom da profecia derramado pelo Espirito de Deus sobre filhos e
filhas. A palavra nabî, profeta (masc.) ocorre 309 vezes na Bíblia Hebraica, enquanto que seu
equivalente feminino, nabiah, profetisa ocorre somente 6 vezes. No entanto, com Mi-
riam, como a primeira profetisa nomeada, até Noadia, que fica num período bem tardio,
no pós-exílio, é abrangida toda a história de Israel (DIJK-HEMMES, 1996, p. 62-3).
A referência a mulheres profetizando segue no Novo Testamento, onde o texto de Joel 2 é
repetido em At 2,17-18. Ainda em At 21,9 são mencionadas as quatro filhas de Felipe, que
profetizavam; o apóstolo Paulo, em 1 Coríntios 11,5 igualmente menciona mulheres atuantes
no ministério da oração e profecia. O evangelho de Lucas menciona ainda Ana, em sua fun-
ção profética de oração e jejum, no templo (Lc 2,36).
O desafio está em ler os textos que tratam de profecias condenadas, como a atestada
em Ez 13,17-23, como outras possibilidades de manifestações da profecia em Israel. Diante
da perspectiva que trata a profecia como denúncia da injustiça e anúncio de esperança e di-
reito para o povo, fica o desafio de tratar textos que condenam as práticas das mulheres que
atribuem a si próprias, o dom da profecia, como no texto em questão em Ez 13.
É desafiador ler os textos que refletem a crítica profética contra as mulheres, sem
abandonar a ideia de que a profecia representa uma visão crítica em relação a diversas situa-
ções, mas, no que se refere a atuação das mulheres, está atravancada em pressupostos patriar-
cais. Por outro lado, a profecia parece ser o espaço aberto de atuação das mulheres, devido à
limitação imputada a elas no âmbito do sacerdócio no culto e no âmbito social. Aqui não se
busca legitimar a profecia das mulheres só pelo fato de ser mulheres. O que se quer é enten-
der como é que se dão os arranjos de uma sociedade marcadamente patriarcal, que exclui e
limita mulheres de certas funções religiosas. A proposta é, então, desconstruir os argumentos
de condenação que são baseados meramente em concepções estereotipadas de gênero que
segrega as mulheres em funções secundárias e de subordinação.
O ingrediente que se destaca no desempenho de rituais religiosos executado por
mulheres, em algumas referências bíblicas, é a performance vinculada com a dança e com o
canto, como em Jz 11,34; 21,21; 1Sm 18,6; Jr 31,4. Nas palavras de Pereira (2002, p. 70):
“Esta legitimidade da ação performática das mulheres é fundamental para o reconhecimento
do canto-música-dança como linguagem possível de invenção e reinvenção do imaginário cul-
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tural e de comunicação da experiência de Deus.” Na análise da profecia para cantar e dançar,
performatizada por Miriam, esta autora afirma que o problema dos textos que normatizam a
comunicação e a interpretação da presença de Deus são as palavras. Quando a configuração
religiosa está descentralizada, os atos e práticas de canto e de dança proféticos acontecem com
o povo, com as mulheres, na caminhada. Ao promover a centralização do culto, estes mesmos
movimentos são agora formatados em outros corpos, masculinos, dentro do templo, como
atesta 1Cr 25,1 (PEREIRA, 2002, p. 71).
A performance da profecia das mulheres, ligada aos espelhos, aos nós e ao choro, é
um dos conflitos que desencadeia a polêmica do profeta Ezequiel? Se esta for uma hipótese
plausível, por que a polêmica, uma vez que as expressões e gestos corporais da profecia de Eze-
quiel também são uma constante, conforme Ez 3, na vocação do profeta ou no anúncio do
cerco de Jerusalém, em Ez 4, entre outros? Se o problema não é de performance, baseada em
gestos, expressões e metáforas, um elemento problemático seria então, o corpo ou a corpo-
reidade das que desenvolvem as performances? São as mulheres, com seus corpos misteriosos,
sensuais e sexuais/sexuados (Ez 16 e 23), com suas realidades biológicas impuras de menstrua-
ção (Ez 18,6.15), com seus corpos abusados e violentados (Ez 22,10), que se arrogam, a partir
de seu próprio coração/conhecimento/saber, ao direito da profecia? A polêmica acontece no
campo da profecia, pois era o espaço aberto para a participação.
Como às mulheres israelitas jamais foi permitido oficiar no culto, elas foram excluídas
desse papel sacerdotal de busca de oráculos. Em outras partes do Mediterrâneo, da antiga
Mesopotâmia ao Egito e à Grécia, a adivinhação era praticada igualmente por sacer-
dotes masculinos e femininos nos cultos oficiais. Mais tarde, em Israel, essa atividade
praticamente desapareceu; a adivinhação praticada por leigos, homens ou mulheres, era
mal-vista e considerada feitiçaria. As mulheres eram acusadas de ser ativas praticantes
de feitiçaria e severamente condenadas por isso [...] (BRENNER, 2001, p. 81).
No entanto, vale ressaltar que não só mulheres atuam nos campos da profecia con-
siderada ilícita ou da adivinhação. A lei proíbe, coíbe e ameaça com a morte, os homens e as
mulheres no envolvimento destas práticas, conforme Lv 19,31; 20,6.27; Dt 18,9-14. Apesar
de homens e mulheres serem mencionados no contexto condenatório das práticas conside-
radas ilícitas, por determinados tipos de corpos sacerdotais e proféticos, são as mulheres que
mais aparecem nos textos bíblicos, vinculadas com a real efetivação destas práticas, quando
elas estão no terreno do proibido.
A hipótese aqui afirmada é que alguns homens, formatados em um determinado corpo
(sacerdotal, de uma linhagem específica, urbanos, especialmente) enquanto monopolizadores e
detentores dos mecanismos de produção simbólico religiosa, incorporam e tornam legítimas as
práticas que estão sob seu domínio. No processo de incorporação e redefinição, estas práticas
passam a fazer parte do corpo oficial sacerdotal e profético. Todas as práticas que estão fora do
olhar e do alcance da mão oficial são rechaçadas para o âmbito proscrito, deslegitimadas. Neste
grupo encontram-se, especialmente, as práticas do âmbito doméstico, que envolvem questões de
reprodução, fertilidade, sexualidade, saúde e doenças, e que estão sob o comando das mulheres.
Estabelece-se assim, uma base para a compreensão do contexto social, político, eco-
nômico e cultural-religioso no antigo Israel em relação com as sociedades vizinhas, enfocando
especialmente o período imediatamente anterior ao exílio e durante o mesmo.
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Numa aproximação ao contexto da época, há que se buscar atenção ao processo de
amalgamação que incorpora elementos do contexto religioso e cultural, provocando uma
mistura, um sincretismo. É o que Reimer (2008) afirma, num de seus estudos sobre a forma-
ção da identidade do povo no antigo Israel, que as fronteiras entre as sociedades e culturas do
mundo circunvizinho são fluídas e porosas. Há que se entender que houveram processos de
troca, de intercâmbios culturais e religiosos mútuos (REIMER, 2008, p. 75).
É neste contexto de trocas mútuas que a profecia de Ezequiel se insere. Um aspecto
é o discurso construído, que se quer afirmar como normativo, da exclusividade de culto a
Javé, e outra é a realidade cotidiana que transparece na elaboração textual discursiva em forma
de condenação e na negação destas práticas do dia a dia. Esta profecia é marcada pela palavra
escrita, por um lado, contudo, preserva em sua estruturação uma riqueza de símbolos e metá-
foras. Ao estabelecer-se como profecia escrita, esta estabelece um movimento de legitimação
e delimitação que vai normatizar as experiências com o sagrado. Este processo é marcado pela
marginalização, demonização ou exclusão das mulheres e suas experiências religiosas.
Diante desta exclusão, marginalização, negação e condenação das experiências religio-
sas das mulheres, outro movimento é necessário para resgatar as práticas religiosas das mulheres.
Aqui se efetiva a proposta de perguntar pelos papéis sociais atribuídos às mulheres na organiza-
ção social, e traçar um instrumental metodológico que permita suspeitas da aceitação e do en-
quadramento das mulheres, nos limites impostos pela lógica da ideologia hierárquica patriarcal.
A aproximação ao ambiente produtivo e reprodutivo das mulheres estabelece uma
base de diálogo para entender a religião misturada neste espaço. Ou seja, a religião praticada
pelas mulheres tende a estar centrada na casa, utilizando os espaços e elementos presentes no
exercício de produção e reprodução. A participação das mulheres no âmbito público estabe-
lece um vínculo entre o ambiente doméstico, com seus elementos, suas panelas, suas portas,
seus teares e o espaço religioso, trazido para a esfera pública.
Com este referencial, que insere as mulheres no ambiente público, mas não as des-
cola de suas práticas domésticas é que a profecia das mulheres é analisada. A profecia feita por
mulheres acontece no espaço público, mas vem atravessada pelas atribuições sociais e cultu-
rais que são colocadas nos corpos femininos. A profecia é exercida em meio a um ambiente
que determina e dita regras sobre a vivência e experiência corporal das mulheres.
Estas duas histórias, junto com outras relativas à presença de parteiras (Ex 1. 15ss; Gen 35.
17; 1Sm 20), dão alguma indicação da presença de mulheres servindo numa competência
que envolve o cuidado e a saúde, e possivelmente, numa competência religiosa. Talvez as
profetisas mulheres em Ezequiel 13 ocupavam tal função com relação a mulheres dentro
da sociedade israelita. Como “profetisas” elas podiam ser consultadas como “profissional
médico” durante gravidez e parto.
O âmbito dos rituais fúnebres (JOST; SEIFERT, 1981, p. 283) tem paralelos num
cerimonial de encantamento acádico (Maqlû e Surpû) ou babilônico (Lamastu), onde são
mencionadas práticas de amarrar nós, imagens de redes e pássaros em armadilhas. Além da
linguagem de caça e captura, de perigo e aflição, a imagem de um “pássaro” é usada ambos,
em Ezequiel e nestes encantamentos, como uma comparação para a vida ou a alma da vítima.
Outra hipótese seria de que as mulheres em Ez 13 estão envolvidas em rituais de ne-
cromancia, onde almas ou espíritos dos mortos tomam a forma de pássaros (KORPEL,1996).
Em textos sumérios, acádicos e egípcios há referências de que as almas deixam o corpo na
forma de pássaros. Às vezes, imagens de pássaros, sentados numa árvore perto de um túmulo,
podem aludir a esta significação das almas tomando formas de pássaros.
Embora não hajam evidências explícitas nos textos bíblicos, que mencionem per-
formances de rituais mágicos nos momentos de parto, nascimento ou morte, há indicações de
atividades que envolvem amarrar e desamarrar nós, e de profissionais femininas responsáveis
pelo cuidado da saúde, o que significava, no mundo antigo, uma estreita conexão com o cam-
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po religioso. A localização das mulheres de Ez 13, neste espaço, explica por que o profeta as
considera cheias de poder, envolvidas em assuntos que tratam de vida e de morte, conforme
afirmam os versículos 18 e 19.
O profeta polemiza com as mulheres, que se arrogam a intermediação da profecia
em questões de saúde, gravidez, parto e nascimento. O âmbito de atuação mais amplo destas
mulheres pode estar vinculado com questões de saúde, de cura, de cuidado, nos quais a gra-
videz e o parto estão incluídos.
Ambas as possibilidades levantadas, tanto os rituais que envolvem a gravidez ou o
parto/nascimento ou os momentos rituais que envolvem o cuidado com os mortos, podem
estar se referindo ao envolvimento destas mulheres, no capítulo 13 de Ezequiel. Ambos os
espaços podem ser comparados com atividades do mundo religioso circundante. Não há evi-
dências, a partir do texto, que podem assegurar quais as práticas específicas que estas mulheres
estão desenvolvendo.
Qual seria, então, o motivo da polêmica de Ezequiel? Uma suspeita que se levanta
tem a ver com o fato que estas mulheres atuam como profetisas. Ou seja, o que é colocado em
situação de disputa é a legitimidade da intermediação profética, em nome do mesmo Deus
que, tanto o profeta, quanto as mulheres reivindicam para si.
Ezequiel é representante de um grupo que defende uma via de manifestação da expe-
riência religiosa que passa pelo controle e cuidado de uma visão monolítica. O profeta-sacerdote
Ezequiel não permite outras formas de profecia, que se atribuem o poder de intermediação e
de anúncio da vontade de Deus.
A concepção em relação à vida e à morte manifesta claramente este ponto de vista
de Ezequiel. O exílio é uma experiência de passar pela morte, de atravessar a morte e destrui-
ção, e ser renovado. Ou seja, o exílio é um ato de juízo e morte, mas, por meio deste Javé, traz
a esperança. Esta esperança é o que congrega e sustenta a nova identidade do povo. Um cora-
ção novo é a promessa de Deus (Ez 35, 26-27). Esta nova identidade implica, na concepção
de Ezequiel, uma ruptura com todas as formas de experimentar e se relacionar com a divin-
dade, que foram trilhadas antes do exílio. Esta nova identidade, segundo Ezequiel, passa pela
reconstrução do templo, pela reestruturação de um novo sacerdócio, conforme seus capítulos
34-48, enfim, pela determinação de alguns mecanismos de controle que irão selecionar as
experiências legítimas das não legítimas. Esta ruptura implica relegar as práticas das mulheres
para um espaço circunscrito da condenação (BOWEN, 1999, p. 430-433). Estas práticas são
caracterizadas como visão e adivinhação, ou seja, nada além das funções que outros profetas
recebem, ou o próprio Ezequiel.
Na visão de Ezequiel, estas mulheres estão profanando o nome de Javé. Outras
passagens clarificam o que se entende por profanar o nome de Javé: quando se pratica em
seu santuário “abominações pagãs”(Lv 18,21; 20,30; Am 2,7); quando se age com desdém
em relação à regulamentação sobre sacerdotes e sacrifícios (Lv 21,6; 22,2); quando se pratica
idolatria (Ez 20,39); ao fazer falsos juramentos (Lv 19,12).
Estas mulheres estão envolvidas em práticas desautorizadas pela profecia repre-
sentada por Ezequiel. Com suas práticas desautorizadas, elas fazem parte de um âmbito
onde a oficialidade não tem controle. Como foi afirmado até agora, apesar de haver uma
distinção entre os níveis de manifestação da religião, as fronteiras não são rígidas. Acontece
uma fluidez de práticas, sendo que as que acontecem no ambiente da oficialidade penetram
nos rincões obscuros e escondidos do não oficial, do ilegítimo, do proibido. Obscuros e
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escondidos não porque recebem um valor (menor, no caso), mas porque não são revelados,
não são descritos, não são evidenciados nas fontes escritas que se têm acesso. Nestas práticas
que acontecem nos ambientes populares, familiares, as mulheres têm papel protagônico.
Neste ambiente os papéis sociais são afirmados, ou recebem outras significações. Estas no-
vas significações rompem com as expectativas e atribuições culturalmente construídas para
as mulheres. A polêmica se encerra num contexto de definição de identidade, onde o con-
flito reside em determinar quem são os atores sociais legítimos, empoderados para exercer
determinadas práticas.
Encontram-se aqui dois pontos de vista no entendimento de seguimento da palavra
de Deus: o do profeta e o das mulheres. Ao do profeta tem-se acesso pelo testemunho escrito
(o texto bíblico canonizado). O das mulheres, o acesso se dá pela mesma via, do texto bíblico
escrito, só que pela negação e pela condenação.
Este exercício vai transitar em limites polêmicos sobre a autoridade da palavra
de Deus na Bíblia, que em geral, é interpretada de forma literal, fechando janelas de
possibilidades interpretativas mais amplas; ou a crítica aponta a um mal-uso, não ‘corre-
to’ dos instrumentais exegéticos – entenda-se aqui a limitação do uso dos instrumentais
dentro de um arcabouço metodológico marcado pelo conhecimento androcêntrico e pa-
triarcal.
O que se propôs, aqui, foi um exercício criativo de reconstrução daquilo que po-
deria ser, do possível, como aproximação exegética e hermenêutica a um texto bíblico. Aqui,
mais uma vez, uma conversa com Reimer (2009) enriquece e aponta claridade nos caminhos
de discussão da religião no contexto dos textos bíblicos: ele esclarece que em seus estudos
sobre o monoteismo a abordagem dos textos bíblicos se dá numa perspectiva histórica e feno-
menológica, não teológica, pois esta tomaria os textos em seu caráter normativo.
Este diálogo sobre a configuração religiosa não tem a pretensão de apresentar-se
como conclusivo a partir deste estudo de Ez 13, mas quer abrir conversas necessárias que
tenham como ponto de partida as experiências de mulheres, na vida e na leitura de textos
sagrados.
Abstract: Ezekiel 13.17-23 is a narrative about women practices and performances with sewing
bands on wrists, making veils and binding knots. The narrative presents women as prophetess
involved in rituals of life and death. The practice they perform is called divination, and it is con-
demned, because through it, women arrogate themselves with powers to attribute life and death
to people. In addition to the legitimacy of the exercise of prophecy, also the power to designate who
may live and dye, or to transit the path between death and life are objects of controversy. This study
seeks to work different perspectives with some guiding questions: What is the interpretation history
of this text? What are these magical practices, designating life and death? Is this prophecy? The stu-
dy points to possibilities to rescue some practices of women in the midst of a spectrum of prophetic
condemnation and controversy, highlighting the leading role of women in religious practices in
borderline situations, such as childbirth, birth and death.
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