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Teixeira FlaviadoBonsucesso D
Teixeira FlaviadoBonsucesso D
Tese de Doutorado em
Ciências Sociais apresentada
ao Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da
Universidade Estadual de
Campinas, sob orientação da
Profa. Dra. Adriana Gracia
Piscitelli e co-orientação da
Profa. Dra. Mariza Corrêa.
CAMPINAS
Maio/2009
Flavia Teixeira ii
(cn/ifch)
Gender
Palavras chaves em inglês (keywords): Ethnography
Transgenitalization surgery
Sexuality
Feminism
Public policy
AGRADECIMENTOS
Pesquisar num campo diferente do de minha graduação exigiu uma apropriação das
convenções internas às disciplinas que nem sempre se traduziu como sendo tarefa fácil. A
formação na área da saúde favoreceu a aproximação conceitual com o discurso oficial da
medicina e com as pesquisas de base biológica sobre a transexualidade. Dilemas que
acompanharam todo o processo, identidades borradas que se entrecruzam em muitos
momentos da pesquisa. Foram muitas as pessoas que estiveram presentes nos momentos em
que as dúvidas sobre a continuidade deste trabalho surgiram.
Toda tese tem uma história que pode ser contada de muitos lugares. Estou certa de que
este texto somente tomou forma porque foi moldado na intimidade da cozinha de amigos
(num jeito mineiro que os cariocas também sabem) que compartilharam com generosidade o
fazer de muitas e muitas etnografias como aqueles que reinventavam uma receita; tenho com
Carlos Rodrigues Brandão e João Marcos Alem uma dívida de gratidão infinita.
Adriana Piscitelli afinou os acordes deste texto. Sua leitura atenta e sugestões
cuidadosas delinearam os contornos da pesquisa. Sua voz está refletida no conjunto da tese,
mas sou a única responsável se não incorporei a amplitude de suas orientações.
Com Mariza Corrêa tive o privilégio de revisitar a psicanálise através de Anna O..
Com o rigor e a leveza que lhe são únicos, estabeleceu um diálogo generoso, problematizando
a assepsia da cirurgia de designação sexual dos intersexos, e propôs a pensar sobre as
mutilações corporais, entre outras práticas, que nos impõem posicionamentos que extrapolam
a confortável esfera da compreensão da diferença cultural.
Ser reconhecida como parte de uma Instituição como a Unicamp causava uma
profusão de sentimentos e foi muito bom encontrar duas estrangeiras a compartilhar estes
Flavia Teixeira vi
sentimentos: Ana Paula Mauriel e Eliane Gonçalves foram sobretudo amigas... À Ana
também devo o compartilhar dos sorrisos das descobertas na biblioteca e também as muitas
lágrimas deste percurso.
É uma máxima assustadora considerar que o trabalho de pesquisa deve ser sempre
solitário. Uma rede foi acionada com meu ingresso no trabalho de campo; e diferentes e
muitos sujeitos foram profundamente solidários na condução desse fazer. O Promotor de
Justiça Diaulas Costa Ribeiro, numa relação de confiança, possibilitou a realização desta tese,
não somente porque consentiu no acesso aos processos, mas pela disponibilidade em
responder às inúmeras perguntas, compartilhar bibliografias e, também, mostrar-se atento às
críticas e sugestões.
Fazer desta tese um trabalho sério foi a maneira que encontrei de agradecer às pessoas
(transexuais) que me receberam nos mais variados lugares, sempre dispostas a responder aos
meus porquês, como e me explica de novo - em suas casas, em seus locais de trabalho, no
hospital, na feira, no shopping. Reviravam gavetas e armários em busca de reportagens ou
lembranças para que eu pudesse entender um pouco mais do que estavam falando com um
desprendimento que não sei se eu mesma teria.
Nos rodapés invisíveis desta tese, estão momentos únicos compartilhados com a
solidariedade de Emmanuel Leite, André Brandão, Maria Alice Brandão, Dori Otoni, Denise
Gonçalves, Sérgio Maldi, Sandra Leila, Ana Luisa Puntel, que estiveram tão próximos no
momento da fragilidade da dor.
Agradeço também à equipe “Em Cima do Salto”, que compartilhou tudo para que eu
pudesse escrever, pesquisar e, ao mesmo tempo, gestarmos este projeto.
Como realizar uma tese sem contar com a rede familiar, pai, mãe, queridos irmãos,
sogros, mas, especialmente, minha irmã que, mesmo nos momentos mais complicados, minha
jarrinha esteve por perto.
Arthur enfeita e desafia o mundo com sons especiais e mostra no dia a dia como as
palavras são insuficientes para traduzir sentimentos. Todos os dias, no retorno da escola, a
mesma pergunta: “Mãe, isso não tem fim?” E, com a perspicácia, me dizia que meu desafio
seria escrever o fim...
Flavia Teixeira ix
RESUMO
ABSTRACT
Object of this thesis was understand the possibilities and strategies in performance of people
(transsexuals) searching for “a change of sex” who register in Transgenitalization Program
coordinated by Defense Justice Promote of Health Services Users (Pró-Vida), of Public
Minister of Federal District and Lands. Our start point is the principle of human existence is
not viable without social intelligibility; I question different speech what involved to people
(transsexuals) to find reconnaissance. The principal argument of this thesis was the process of
recognition of peoples (transsexuals) made for medical-juridical institutions put in risk the
possibility of survival of these people. First part of this work was made with process analysis.
I try identify in this, in medical and juridical environment, like an imaginary complicated -
whose content recover the perceptions of male/female sexuality, comprehension of people
(transsexuals) right over his/her bodies, like as signifies attributed to gender- it crosses with
different ways and intensities practices/speeches and it is forged with the objective of
institutional practices becomes justifiable. It is marked too with life histories of peoples, the
second part try to state clearly the diversity of people experience who search ways to give
sense to feeling of “be different”, of stay in “disagree”, of be victim or accused of some
“cheat” or “fraud”. The results of this work leads to question the explain pertinence and
exclusivity gives to medical-juridical speech granting social legitimacy for peoples
(transsexuals) experiences.
Flavia Teixeira xv
SUMÁRIO
Agradecimentos v
Resumo xi
Abstract xiii
Apresentação E a mão que tece a trama... Trança esta história 17
Entre os (con)sentimentos 25
(In)definições: limites de um conceito 28
Parte I
Capítulo 1 - O natural também é uma pose... 37
Convenções biológicas: (in)certezas (re)produzidas 38
Entre fios, palavras e bisturis: artifícios naturalizantes 42
Do Y ao X: o encantamento da técnica 58
A natureza jurídica do sexo 64
Capítulo 2 - Não basta abrir a janela... 77
... Os lírios não nascem da lei. 80
Laudos, relatórios e pareceres: protocolos da alma 92
As (in)certezas que se encontram no lugar onde as 96
verdades são guardadas
Fotografias, indícios e verdades: a inspeção física 104
Entre pistas e (in)certezas: os interditos 116
Dessa esquina pelo menos posso perceber o duplo 127
sentido de tudo
Parte II
Capítulo 3 - Histórias que não têm era uma vez... 135
... Qualquer curva de qualquer destino que desfaça o 135
curso de qualquer certeza
Do armário para a reserva: a fragilidade das normas 143
Minha foto, minha vida ... meu segredo e minha 145
revelação
Um inatingível senso de si.... 153
Casamentos: os proclames da heteronormatividade 162
Deus fez nossos braços pra prender 165
A recusa de um Script 169
A vida quando acaba, cabe em qualquer lugar 172
A natureza da gente não cabe em nenhuma certeza 174
Capítulo 4 - Diálogos que disfarçam; conflitos por explodir... 181
De que servem as flores que nascem pelos caminhos, se 188
o meu caminho sozinho... é nada
... Todos os avisos não vão evitar... O que não tem 199
governo nem nunca terá
É o ponto e vírgula 208
E aquele projeto... Ainda estará no ar? 220
Considerações Finais 225
Referências Bibliográficas 231
Flavia Teixeira 17
APRESENTAÇÃO
APRESENTAÇÃO
Esses são fragmentos de um dos relatos de Carolina2, uma das pessoas (transexuais)
que entrevistei, referindo-se à primeira situação explícita de violência sofrida por ela na
escola, aos sete anos. Naquela ocasião, era considerada um menino e compartilhava o
banheiro masculino. Ser um menino e freqüentar o banheiro destinado aos homens pareciam
estar de acordo com as normas estabelecidas. Ela não sabe dizer que traço ou sinal os colegas
teriam identificado como discordante para torná-la lixo. Ser remetida ao lixo é o cumprimento
de um enunciado que retira o outro do lugar de pertencimento ao humano.
Esta tese foi marcada por histórias de vida de pessoas que, como Carolina, buscaram
maneiras de dar sentido ao sentimento de “ser diferente”, de estar em “desacordo”, de ser
vítima ou culpada de algum “engano” ou “fraude”. O sentimento manifesto por essa
entrevistada, sua percepção de fazer “algo errado”, aponta o quanto as normas sociais
constituem a nossa existência, conformam nossos desejos e não se ancoram na nossa
individualidade.
1
Anotações do Caderno de Campo, Brasília, dezembro de 2005.
2
Todos os nomes utilizados para identificar as pessoas (transexuais) entrevistadas são fictícios.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 20
Muitas pessoas (transexuais) que contribuíram para a escrita deste trabalho, tiveram e
ainda têm suas vidas marcadas pela violência. São pessoas que se constituíram através da
produção de um corpo, cirurgicamente ou não, para se tornarem “reais”, para serem
autênticas, categoria êmica que só possui sentido no contexto das disputas entre o que é ou
não considerado legítimo e humano. Foi uma preocupação deste trabalho compreender os
esforços desses sujeitos para se sentirem em consonância com seus desejos. Ao mesmo tempo
em que eles questionam, reiteram e desorganizam a categoria naturalizada do humano,
denunciam, implícita ou explicitamente, que as normas de gênero não estabelecem um
consenso absoluto na vida social, desafiam as fronteiras entre a experiência individual e a
necessidade de reconhecimento social.
Esta tese está dividida em duas partes. A primeira está baseada na análise de processos
judiciais que objetivavam a autorização para a realização da cirurgia, evidenciando os
discursos médicos e jurídicos. A segunda parte resulta de entrevistas e observações de campo.
A divisão é um recurso metodológico na composição do texto. Na tessitura da tese, as duas
partes “dialogam” e se articulam com o conjunto da teoria. O ponto inaugural deste trabalho
foi o Programa de Transgenitalização coordenado pela Promotoria de Justiça de Defesa dos
Usuários dos Serviços de Saúde (Pró-Vida), do Ministério Público do Distrito Federal e
Territórios, criado em 1999 com o objetivo de autorizar e viabilizar a cirurgia de
transgenitalização. Trata-se do primeiro e, até o momento da conclusão desta pesquisa, único
grupo oficial ligado ao Judiciário, através do Ministério Público, que viabilizaria as cirurgias
no Brasil.
A análise dos processos seguiu as pistas deixadas pelo trabalho inaugural de Mariza
Corrêa (1983), ao analisar que há mais em jogo na construção e análise dos processos do que
simples “leitura de protocolos”. Nessa análise procurei identificar, no entorno médico e
jurídico, como um emaranhado imaginário – cujos conteúdos recobrem as percepções da
sexualidade feminina/masculina, a compreensão do direito das pessoas (transexuais) sobre
seus próprios corpos, bem como dos significados atribuídos ao gênero – atravessa de
diferentes maneiras e intensidades as práticas/discursos e é forjado para que práticas
institucionais sejam justificáveis, ainda que fujam das expectativas éticas, morais ou legais.
3
O Promotor de Justiça determinou a suspensão do ingresso de novas/os candidatas/os até que fossem resolvidas
a liberação da cirurgia via SUS e a composição de equipe para realizar as cirurgias. Entrevista Pessoal, Caderno
de Campo, dezembro de 2004.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 22
indicada pelo cirurgião professor Carlos Cury. O critério para selecionar as pessoas a serem
entrevistadas considerou as demandas apresentadas no momento de ingresso no Programa. A
diferença entre o número de processos analisados (vinte e nove) e de pessoas vinculadas ao
Programa entrevistadas (oito) se deve a um conjunto de recusas e dificuldade de acesso como
será descrito no momento em que analiso a obtenção do termo de consentimento. Das três
pessoas que ingressaram tendo realizado a cirurgia através do sistema privado de saúde, duas
não foram localizadas através do endereço disponível no processo e uma se recusou a ser
entrevistada. Três inscritas iniciaram o processo tendo cumprido as exigências do Conselho
Federal de Medicina (CFM) para a realização da cirurgia e foram submetidas ao procedimento
– com a autorização judicial – anteriormente ao início de meu trabalho de campo. Nenhuma
delas foi entrevistada para este trabalho. Uma integrante deste subgrupo não foi procurada
para a entrevista por solicitação do coordenador do Programa, reafirmando o desejo manifesto
da mesma pelo anonimato, e as outras duas a recusaram, de diferentes formas, conforme
discussão apresentada no segundo capítulo.
Entre as vinte e três pessoas inscritas no Programa sem terem cumprido nenhuma das
exigências do CFM, três se recusaram a participar e uma estava na Europa durante o período
em que iniciei as entrevistas. Duas foram consideradas como abandono pela equipe do
Programa por não responderem aos ofícios para comparecerem aos exames e/ou consultas;
duas pessoas foram assassinadas durante o período em que eu estava analisando os processos;
sete pessoas não foram localizadas através dos endereços que estavam disponíveis.
O uso de uma metodologia que envolve registros orais requer uma atenção especial às
interações entre entrevistador-entrevistando. O “falar” sobre temas tão delicados detona nos
interpelados uma espécie de auto-avaliação; ao mesmo tempo, tensões e auto-críticas podem
aflorar no decorrer da entrevista, instigando a uma análise que vai além do “dito”.
Considerando o discurso criado ao longo das entrevistas e a partir das questões suscitadas
pelos estudos de Michel Foucault (1979, 1997, 2002), o entendimento e a análise das mesmas
não passaram por uma exegese lingüística ou uma análise semiótica. A leitura das falas
privilegiou o ato, ou seja, as práticas de verbalização atreladas ao histórico dos entrevistados e
entendeu esta construção como parte dos jogos de saber-poder, estreitamente ligados ao
estudo aqui empreendido. Em outras palavras, se tratou apenas de compreender como na
situação de “entrevista” um discurso de si e do outro foi elaborado e como auto-justificativas
foram construídas para dignificar a experiência da transexualidade.
No entanto, o trabalho de campo não foi restrito à realização dessas entrevistas. Visitas
Flavia Teixeira 23
aos locais de moradia, hospital, trabalho e lazer compuseram parte importante deste cenário,
bem como a participação em espaços reconhecidos como de atuação política. Em todas as
ocasiões entrevistei as lideranças e participantes do movimento das pessoas (transexuais)
compondo muitas horas de observação.
4
A modificação da Sigla GLBTT para LGBTT foi uma decisão do movimento organizado na Conferência
Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais, realizada em Brasília/DF nos dias 5 a 8 de
junho de 2008. No entanto, ao me referir a alguns setores e políticas públicas, a sigla se manterá como ainda está
sendo empregada, pois a recente modificação ainda não resultou na modificação da nomenclatura das mesmas.
5
Encontro Nacional de Travestis e Transexuais na Luta contra a Aids, que é financiado pelo Programa Nacional
de Aids do Ministério da Saúde.
6
O encontro ocorreu em 15/08/2007 e constituiu num dos espaços de pesquisa de mestrado de Izis Reis (2008).
A pesquisadora teve como preocupação as disputas presentes nas propostas de implantação de políticas públicas
em saúde para as pessoas (transexuais). Como o espaço e o tempo de investigação da autora se interseccionam
com o tempo do trabalho desta tese, sua leitura tornou-se instigante e um diálogo profícuo.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 24
7
Organizada pelo Ministério da Saúde em parceria com a Secretaria Especial de Direitos Humanos e a Secretaria
Especial de Política para as Mulheres. Brasília/DF, de 26 a 28 de fevereiro de 2008.
8
A minha participação na reunião deveu-se ao fato de naqueles dias o grupo estar aberto. Mesmo assim, não
acompanhei todo o desenvolvimento, era convidada a ingressar apenas no final da sessão.
Flavia Teixeira 25
submetidas aos procedimentos cirúrgicos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) depois de
encaminhadas para Goiânia e através do Projeto de Transexuais da UNB.
Entre os (con)sentimentos
Em março de 2002, realizei meu primeiro contato formal com o Promotor responsável
pelo Programa de Transgenitalização, coordenado pela Promotoria de Justiça de Defesa dos
Usuários dos Serviços de Saúde (Pró-Vida), do Ministério Público do Distrito Federal e
Territórios9, solicitando acesso para pesquisa. A autorização para que eu tivesse acesso aos
processos, que tramitam em segredo de justiça, integrou um período de negociação e
estabelecimento de normas incluindo a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em
Pesquisa da Universidade Estadual de Campinas. A exigência da submissão do projeto de
pesquisa ao Comitê de Ética gerou inquietações que estão sendo compartilhadas por muitos/as
pesquisadores/as quando estão pleiteando fomentos de institutos ou agências de pesquisa. Isso
não significa que a Antropologia não se oriente por uma ética, mas, retomando ao texto do
professor Roque Laraia (1993), o código de ética do antropólogo – que inicialmente parecia
simples, não escrito e transmitido através da tradição oral entre seus pesquisadores – foi
ampliando suas problemáticas na medida em que a disciplina elegeu novos objetos de estudo
e novos campos de atuação10.
9
Criadas e definidas atribuições através da Portaria nº. 314 de 17 de maio de 1999, a Promotoria de Justiça
Criminal de Defesa dos Usuários dos Serviços de Saúde, Pró – Vida, foi implementada em 17 de maio de 1999.
Além de erros de médicos, dentistas, farmacêuticos, enfermeiros etc., a Pró-Vida tem a atribuição de investigar e
perseguir os crimes de exercício ilegal de profissões de saúde regulamentadas em lei, oficiando numa série de
feitos envolvendo interrupção de gravidez de feto inviável e que expõe a vida da mãe a risco de morte; abortos
de fetos originados de violência sexual; mudança de sexo (transgenitalização); inseminação artificial;
importação e transplante de órgãos. Durante a pesquisa de campo, o Promotor de Justiça determinou que as
intervenções cirúrgicas envolvendo crianças recém-nascidas com genitália ambígua não poderiam ser realizadas
sem o consentimento do Ministério Público. Esta conduta gerou uma insatisfação entre a classe médica e um
questionamento sobre a “urgência” que até então caracterizava o procedimento.
10
A sistematização de um código de ética pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA) ocorreu nos anos
de 1986-1988 e demonstra que a relação entre Ética e Antropologia estava na pauta de discussão. Assim também
a Mesa-redonda "Ética e Ciência”, constituída na ABA-SUL de Florianópolis, no ano de 1993, reiterava essa
preocupação. Remeto também ao importante texto do professor Roberto Cardoso de Oliveira (1990) sobre
conhecimento, ética e ação social.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 26
Não era a relação entre Antropologia e Ética que se constituía o incômodo, mas a
exigência do preenchimento de protocolos que, formulados em outro campo disciplinar,
traziam uma estrutura de informações nem sempre adequada ao olhar antropológico, através
de uma linguagem que explicitava a hegemonia e a suposta legitimidade única do modelo
biomédico na definição do que é ciência e de como se faz pesquisa (DINIZ e GUERRIERO,
2008).
Apesar das questões apresentadas acima, quase todas as pessoas assinaram o termo.
Apenas uma, Larissa, se recusou a assinar. Ela sublinhou a palavra Consentimento. Com tal
atitude, reiterou a fragilidade deste instrumento, deixando explícito o posicionamento de
Ceres Victoria de que o “consentimento é um processo a ser obtido ao longo da pesquisa e
não como uma formalidade contida em uma folha de papel assinada”.11
11
A participação da professora Ceres Gomes Víctora, representando a ABA, no evento do programa do CNPq de
qualificação dos Comitês de Ética em pesquisa ocorrido na Faculdade de Saúde Pública da USP, em outubro de
2005, reafirma o conjunto de preocupações de antropólogos que estão tendo seus projetos de pesquisa recusados
nos Comitês de Ética em Pesquisa. Documento disponível no site da ABA no endereço:
http://www.abant.org.br/conteudo/documentos/ceres_victora.pdf capturado em 12/02/2007.
Flavia Teixeira 27
Participar dessa reunião foi fundamental para estabelecer outra forma de interação
com aquelas/es que se tornariam meus/minhas interlocutores/as. Percebi que nenhum dos
espaços poderia ser utilizado como lócus de pesquisa. Foi necessário bater em várias portas,
que lentamente se abriram. A experiência de trabalho de campo busca desvelar as dimensões
subjetivas e as vivências que propiciam relações produtoras de conhecimento. Por isso, os
relatos do envolvimento com as pessoas e sobre os diferentes contextos e situações em que se
deu a pesquisa, mais do que nunca, constituem dados do próprio trabalho científico e são
considerados como integrantes do resultado. Destaco a participação de Carolina como
mediadora dos encontros com os(as) outros(as) informantes e a centralidade com que sua
Vidas que desafiam corpos e sonhos 28
“Para quê essa pesquisa? Que importância isso tem?” Desde o início me deparei com
estas indagações, formuladas com maior ou menor preocupação teórica. Considerando que a
matriz das relações de gênero é simultânea à própria emergência do humano e que a
construção do humano é uma operação diferencial que produz o mais humano, o não humano,
o menos humano e o humanamente impensável, as reflexões instigadas por Judith Butler
(2005b) convidam a uma investigação sobre os tipos de apagamentos e exclusões pelos quais
a construção do sujeito atua. Partindo da premissa de que a experiência trans não materializa
um “corpo viável” e, portanto, um sujeito viável, por sua estranheza entre as identidades
constituídas, o interesse deste estudo também é político: pretende contribuir para desvelar a
importância dessas vidas e desses corpos, em uma sociedade tão desigual e diversa nas
maneiras de tratar as alteridades liminares.
na contemporaneidade para nomear esse fenômeno poderia ser apropriada para analisar
diferentes épocas ou lugares. Assim, considero relevante enfatizar que o termo transexual foi
construído a partir de um conceito contemporâneo de dimorfismo sexual, referendado no
saber médico, em que os especialistas reúnem e criam narrativas sobre a transexualidade,
partindo de um poder que lhes é outorgado para determinar os limites entre o normal e o
patológico (LAQUEUR, 2001).
12
Na 10ª Revisão, foi adotada a nomenclatura “Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas
Relacionados à Saúde (CID 10)”.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 30
13
A Resolução CFM nº. 1.482/97 (D.O.U.; Poder Executivo, Brasília, DF, 19 set. 1997. Seção 1, p. 20.944)
pode ser consultada através do site: www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2002/1652_2002.htm capturada
em 04/03/2006. Foi revogada pela Resolução CFM nº. 1652/2002, que retirou o caráter experimental para os
casos de cirurgias em transexual feminino.
14
A dissertação de mestrado de Jaqueline Pinto (2003) demonstra a busca da coerência entre sexo e gênero no
Programa de Transexualidade de São José do Rio Preto, coordenado pelo professor Carlos Cury. Sua tese de
doutorado, em 2008, amplia a discussão ao trazer para a cena do debate as experiências das mulheres
(transexuais) após a realização da cirurgia. A tese de doutoramento de Alexandre Saadeh (2004) tem como
referência o Projeto de Sexualidade do Instituto de Psiquiatria do HC/USP e baseia-se nos princípios
estabelecidos pelo discurso médico oficial. A dissertação de mestrado de Rosimeri Bruno (2004) analisa o
Projeto de Transgenitalização do Instituto de Ginecologia da UFRJ. Esalba Silveira (2006) é assistente social do
Programa de Transtorno de Identidade de Gênero do Hospital Universitário da UFRGS (PROGID) e
acompanhou as pessoas inscritas nesse programa para sua tese problematizando a construção da identidade a
partir do referencial teórico do materialismo histórico. A dissertação de mestrado de Valéria de Araújo Elias
(2007) acompanha, a partir da psicanálise, sete casos de mulheres (transexuais) atendidas no Hospital
Universitário da UEL. Daniela Murta (2007) analisa o atendimento às pessoas transexuais no Hospital
Universitário Clementino Fraga Filho da UFRJ.
15
Essa pesquisadora, durante sua pesquisa de doutoramento, exerceu a função de psicóloga que acompanhava as
integrantes do Projeto que tem como objetivo prestar assistência para as pessoas (transexuais) no Hospital
Universitário de Brasília. Sua tese está ancorada na explicação somato-psíquica da transexualidade. Integrava, no
momento da entrevista para este trabalho, o Comitê Técnico destinado a planejar políticas públicas em saúde
para o segmento GLBTT no Ministério da Saúde.
Flavia Teixeira 31
elas desenvolveram suas pesquisas a partir dos pressupostos das ciências sociais. Destaco no
trabalho de Berenice Bento a sua preocupação em problematizar e (des)construir o conceito
de “transexual de verdade” e (des)patologizar esta experiência, sendo que as pistas deixadas
por ela foram significativas na condução desta tese.
Para este trabalho, ainda seguindo as pistas traçadas pela pesquisadora, abdico do uso
que fazem os operadores – médicos, psicólogos e juristas – e também alguns antropólogos, do
termo transexual masculino para se referirem às mulheres (transexuais) nascidas com pênis e
transexual feminino para se referirem aos homens (transexuais) nascidos com vagina. Ao
nomear uma mulher (transexual) como transexual masculino recuperaria a lógica de que o
campo biológico é que deve definir o sujeito; assim todo o investimento em direção a uma
subjetividade e inteligibilidade se desfaz ou é ameaçada diante do masculino, anunciando a
sua suposta condição de farsante. O mesmo argumento utilizo para definir os homens
(transexuais).
O primeiro capítulo, intitulado “O natural também é uma pose”, teve como objetivo
Vidas que desafiam corpos e sonhos 32
No segundo capítulo, “Não basta abrir a janela”, analiso os processos das pessoas
(transexuais) que recorreram ao Programa de Transgenitalização coordenado pela Promotoria
de Justiça de Defesa dos Usuários dos Serviços de Saúde (Pró-Vida) do Ministério Público do
Distrito Federal e Territórios em busca da autorização/realização da cirurgia de
transgenitalização.
Fechando essa tese, o quarto capítulo “Diálogos que disfarçam; conflitos por explodir”
apresenta as disputas e os desafios na reivindicação das pessoas (transexuais) por
reconhecimento. Os dilemas e armadilhas identificados no processo de reivindicação de
reconhecimento da transexualidade como uma experiência identitária legítima, afastando-se
do olhar patologizante e ao mesmo tempo negociando com o Ministério da Saúde a
elaboração de políticas públicas que atendessem as demandas das pessoas (transexuais).
Assumir a posição de reconhecimento de que se trata de uma doença, materializada através de
um diagnóstico, significa andar por um terreno escorregadio conforme demonstra a análise da
recente Portaria do Ministério da Saúde sobre o Processo Transexualizador.
Flavia Teixeira 35
PARTE I
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 1
16
Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 38
perspectiva essencializante; algumas das decisões judiciais colaboram para pensar na gestão
do discurso médico.
17
O Caderno Mais do jornal Folha de São Paulo, em 30.03.03, apresenta pesquisas recentes em torno da
homossexualidade, destaca o artigo “O FATOR gay”, escrito por Andrew Hacker, ilustra a atualidade deste
debate. No artigo referido, o autor resenha de forma sucinta alguns livros recentes que tratavam a
homossexualidade na perspectiva da origem biológica. Entre eles, o livro de Robert Alan Brookey, “Reinventing
the Male Homosexual”considerado por ele como um trabalho minucioso na apresentação das teses sobre a
homossexualidade e o segundo, o livro “Normal”, escrito por Amy Bloom, apresentado como o resultado de uma
pesquisa envolvendo transexuais, homens heterossexuais que se travestem e adultos que nasceram com
ambigüidade genital. O argumento da origem biológica das sexualidades aponta para a escola de pensamento
Flavia Teixeira 39
Entretanto, isso não significa que seus resultados e conclusões forjaram consensos
entre a comunidade científica, inclusive dentro de seu próprio campo disciplinar. Entre as
discordâncias, um questionamento relevante foi formulado por Anne Fausto-Sterling (1992),
que rejeita a premissa da distinção entre o tamanho do corpo caloso de homens e mulheres;
um pressuposto que serviu de referência para as pesquisas sobre o dimorfismo sexual dos
desses autores. Em 2007, o artigo intitulado “O polêmico gene gay” reapresenta as pesquisas sobre a origem
biológica da homossexualidade partindo da polêmica gerada com a publicação do cartaz acima reproduzido. Ver:
Pablo Nogueira. Revista Galileu. Editora Globo. Edição 197 - Dez de 2007. Disponível também em:
http://revistagalileu.globo.com/Revista/Galileu/0,,EDG80153-7943-197-1,00-
O+POLEMICO+GENE+GAY.html consultado em 04/05/2008.
18
Por exemplo, em 1982, alguns neuroanatomistas postularam que os hormônios moldam os cérebros humanos;
para eles, o cérebro humano exibe dimorfismo. A equipe britânica composta, entre outros, pela bióloga Christine
de Lacoste e pelo antropólogo físico Ralph Holloway publicou um estudo na revista Science (DE LACOSTE, C.
e HOLLOWAY, R., 1982). Eles afirmam que, tal como nos ratos, partes do cérebro de homens e mulheres têm
formas diferentes. O dimorfismo sexual de De Lacoste e Holloway se localizaria no corpo caloso e diferia de
maneira tão acentuada entre os sexos que, assim como o núcleo dos ratos de Roger Gorski poderiam ser
identificados como pertencentes a homens ou mulheres macroscopicamente. Dick Swaab (1990), pesquisador
holandês, anunciou a descoberta de um núcleo no cérebro humano que seria dimórfico — não em relação ao
sexo, mas à orientação sexual. O núcleo supraquiasmático, ou NSQ, inferiu que o núcleo era duas vezes maior
nos homens homossexuais do que nos heterossexuais. Laura Allen (1989) descobrira que ambos os núcleos,
NIHA 2 e 3, eram sexualmente dimórficos nos seres humanos e significativamente maiores nos homens do que
nas mulheres. Uma das hipóteses de trabalho de Allen é que os hormônios podem determinar a orientação sexual
das pessoas e, por sua vez, a orientação sexual influenciaria na estrutura do cérebro da pessoa. Para citar alguns
pesquisadores que antecederam Le Vay, sugiro as pesquisas de Alfred Jost (1947), Charles Barraclough (1961),
Kulbir Gill (1963), Geoffrey Harris (1965), Gunther Dorner (1968 e 1975), Goy e Resko (1972), Roger Gorski
(1978), Christine De Lacoste e Ralfy Holloway (1982), Laura Allen (1989) e Dick Swaab (1990). Outras vozes
somaram-se à dele no que se relaciona ao espaço e tempo, destacando as pesquisas desenvolvidas por Michael
Bailey e Richard Pillard (1991 e 1993) e Dean Hamer e Angela Pattatucci (1993 e 1995). Por se tratar de uma
incursão que exigiria extenso levantamento bibliográfico, remeto ao trabalho jornalístico de Chandler Burr
(1998) como referência, considerando principalmente o minucioso trabalho de levantamento das pesquisas
realizadas e as entrevistas com diversos pesquisadores que participam dos debates. Parte dos resultados dessas
pesquisas será retomada ao discutir os argumentos utilizados pelos operadores do judiciário e medicina, seja nas
Resoluções do CFM ou nas decisões judiciais.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 40
19
Aqui a pesquisadora está se referindo ao trabalho de Franklin Mall, em 1909, que mostrou a importante
variação individual da forma e tamanho do corpo caloso dentro de cada sexo, e que passou quase despercebido
para a comunidade científica.
20
Para a pesquisa, utilizou tecido cerebral de 41 indivíduos falecidos em sete hospitais de New York e da
Califórnia. Entre eles, havia 19 homens homossexuais, todos faleceram em decorrência da Aids (entre estes, seis
possuíam histórico de uso de drogas injetáveis), 16 homens supostamente heterossexuais; e seis mulheres
supostamente heterossexuais (os autores não explicitam a causa da morte deste grupo).
21
O autor se refere a essas entrevistas detalhadamente no capítulo 3, intitulado O Debate: a prova definitiva que
a homossexualidade não é biológica. Considerando o conjunto do livro, percebo que esse capítulo poderia ter
sido melhor explorado, a exemplo dos demais, parece que o autor minimiza os argumentos contrários à tese da
origem biológica da homossexualidade.
Flavia Teixeira 41
22
Judith Butler considera o reconhecimento como uma das questões fundamentais para a constituição de uma
vida viável. Entendendo que não existe reconhecimento fora da esfera da sociabilidade, a autora sustenta a
Vidas que desafiam corpos e sonhos 42
ao apelo heterossexual.
25
A biblioteca do Conselho Federal de Medicina não dispõe de tal documento para consulta. Em resposta à
solicitação, o responsável informou que, na transferência da sede do Rio de Janeiro para Brasília, este documento
se perdeu.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 44
Esta perspectiva pode ser observada na outra consulta analisada pelo mesmo relator e
votada no mesmo dia, que foi encaminhada pelo Conselho Regional de Medicina do Estado
de São Paulo (CRMSP) e resultou no PC/CFM/Nº. 12/1991. Esse processo é um recurso
apresentado ao CFM em razão da decisão contrária do CRMSP quanto à autorização de que o
médico (cirurgião plástico) procedesse à cirurgia de mastectomia simples bilateral a pedido de
seu paciente, diagnosticado como transexual.
26
PROCESSO CONSULTA CFM N° 0617/90 PC/CFM/Nº. 11/1991 de 13 de abril de 1991 Disponível em:
http://www.portalmedico.org.br/pareceres/cfm/1991/11_1991.htm capturado em 23 de abril de 2006.
27
PROCESSO CONSULTA CFM N° 0871/90 PC/CFM/Nº. 12/1991 de 13 de abril de 1991. Disponível em:
http://www.portalmedico.org.br/pareceres/cfm/1991/12_1991.htm capturado em 23 de abril de 2006.
Flavia Teixeira 45
28
Resolução CFM nº. 1.246/88, de 08.01.88 e publicado no Diário Oficial da União (D.O.U.) em 26/01/88.
(D.O.U. 26.01.88)
29
Posteriormente, o professor Roberto Farina foi absolvido e relatou suas experiências no livro em 1982. A
análise deste processo integra a tese de Tereza Vieira (1995, pp. 201-2).
30
O levantamento de reportagens veiculadas em jornais e revistas de circulação nacional entre os anos de 1988 e
1995 foi realizado por Tereza Vieira (1995). Esta pesquisadora utilizou parte das entrevistas concedidas por
especialistas e pessoas (transexuais) no conjunto das análises de sua tese de doutoramento.
31
Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/pareceres/cfm/1997/39_1997.htm capturado em 23 de abril de
2006.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 46
Essa dicotomia não foi provocada pela mão do homem, nem por caprichos
de índole sexual das minorias oprimidas, mas pela própria natureza em sua
infortunística fisiológico de má formação. E pode, no caso, corrigir o homem
aquilo que a natureza, por descuido, deformou. Por que não?33 (grifos meus).
32
Parecer e a Proposta de Resolução PC/CFM/Nº. 39/97 de 09 de maio de 1997. Disponível em:
http://www.portalmedico.org.br/pareceres/cfm/1997/39_1997.htm capturado em 23 de abril de 2006.
33
Parecer e a Proposta de Resolução PC/CFM/Nº. 39/97 de 09 de maio de 1997. Disponível em:
Flavia Teixeira 47
Mariza Corrêa (2004) analisa as intervenções médicas que objetivam “corrigir uma
ambigüidade” como práticas que incidem sobre a alma e o corpo. Para a autora, os agentes
dessa transformação parecem acreditar que, em um caso, se trata de mudar o corpo sem
intervenção na “alma” (intersexualidade) e, no outro, de adequar o corpo à “alma”,
misteriosamente formada sem apelo ao corpo (transexualidade).
(...) nos transexuais acontece uma troca não de genital, mas cerebral. Àquela
pessoa portadora de um corpo biológico masculino foi atribuída uma mente
feminina e vice-versa. Por isso é preciso ajustar o corpo à mente do
indivíduo, já que a mente jamais vai se ajustar ao corpo, nesses casos (apud
VIEIRA, 1995, p. 206).
A representação de um pênis como sendo um órgão débil e repugnante não tem início
no Parecer do CFM. Entretanto, ela se aviva através deste, remetendo à reflexão sobre a
capacidade performativa que a linguagem possui de criar realidades. A ausência da
masturbação e a ereção insuficiente são elementos reivindicados para atribuir a “não
funcionalidade do órgão” e justificaria que a retirada do mesmo não contrariaria o disposto no
artigo 129 do Código Penal.
35
Parecer e a Proposta de Resolução PC/CFM/Nº. 39/97 de 09 de maio de 1997. Disponível em:
http://www.portalmedico.org.br/pareceres/cfm/1997/39_1997.htm capturado em 23 de abril de 2006.
Flavia Teixeira 49
36
Parecer e a Proposta de Resolução PC/CFM/Nº. 39/97 de 09 de maio de 1997. Disponível em:
http://www.portalmedico.org.br/pareceres/cfm/1997/39_1997.htm capturado em 23 de abril de 2006.
37
Este Parecer não está disponível para acesso na biblioteca do CFM. A sua leitura parcial foi realizada através
do trabalho de Tereza Vieira (1995, p. 209), que o obteve a partir da matéria jornalística, veiculada no jornal
Folha de S. Paulo e assinada por Cynara Menezes e Raquel Ulhôa, intitulada “Parecer do CRM considera ética
Vidas que desafiam corpos e sonhos 50
Miriam Ventura (2007b) exemplifica a posição (ainda que minoritária) de juristas que
não consideram as Resoluções do CFM como instrumentos normativos adequados para
tratarem do tema e alerta para a necessidade de uma lei federal “que regule amplamente a
situação legal do transexual” (2007, p. 80). A preocupação dessa pesquisadora encontraria
fundamento nas decisões de Juízes ou Desembargadores, como se percebe, por exemplo, no
Acórdão do processo em sentença publicada em 2004, após a segunda Resolução do Conselho
Federal de Medicina. Ali, a vedação legal do procedimento foi considerada:
38
Voto do Desembargador Moreira Diniz do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais . Processo nº.
1.0000.00.296076-3/001(1) publicado em 08/06/2004.
39
Agradeço ao Dr. Carlos Cury a autorização para acompanhar a cirurgia de transgenitalização e a generosidade
com que me explicou todo o processo. Agradeço igualmente a B., que consentiu na minha presença durante o
processo cirúrgico e me recebeu em seu quarto no dia seguinte à cirurgia. As observações sobre essa experiência
são citadas ao longo texto nos momentos em que a discussão é pertinente.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 52
Também o contraponto com a cirurgia para remoção do par de costelas flutuantes para
fins estéticos não levantou a discussão sobre seu caráter ético.40
Em vigor desde 1997, a Resolução CFM nº. 39/97 foi revogada e substituída pela
Resolução CFM nº. 1.652/2002, a qual manteve inalterada a definição dos critérios para o
diagnóstico de transexualismo. A alteração mais evidente desta Resolução é a retirada do
caráter experimental da cirurgia neocolpovulvoplastia. Ela estabelece:
40
A Equipe do Fantástico, exibido pela Rede Globo de Televisão em 03.12.2006, apresentou a reportagem
intitulada: A que ponto chega a vaidade feminina? O cirurgião plástico Dr. Ivo Pitanguy, mesmo tendo alertado
para o caráter mutilante do procedimento, não citou o aspecto ético ou legal do mesmo. Disponível em:
http://fantastico.globo.com/Jornalismo/Fantastico/0,,AA1373516-4005-594748-0-03122006,00.html consultada
em 05/05/2007.
41
www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2002/1652_2002.htm consultado em 04/03/2006.
Flavia Teixeira 53
É preciso lembrar que em 2002, quando aprovada tal Resolução, ainda não havia
publicações nem de dados nem de estudos sobre o resultado das cirurgias realizadas no Brasil
e a efetiva “re-integração” das/dos (transexuais) conforme justificativa da proposta. As
primeiras teses e dissertações sobre os Programas implantados no Brasil foram defendidas em
período posterior a 2002 e não contam, até o momento, com estudos de acompanhamento das
pessoas que passaram pelo processo cirúrgico.43
42
www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2002/1652_2002.htm consultado em 04/03/2006.
43 Esta foi a temática recortada por Maria Jaqueline Pinto (2008), integrante da equipe responsável pela cirurgia
de transgenitalização em São José do Rio Preto. Na pesquisa de doutoramento, estabeleceu como foco o
acompanhamento do pós-cirúrgico das pessoas que se submeteram ao procedimento cirúrgico no Hospital de
Base da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto. A atualidade desta questão pode ser observada
também na pesquisa, em andamento, coordenada por Márcia Arán intitulada, Transexualidade e Saúde:
condições de acesso e cuidado integral. Pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico, que tem como parte de seus objetivos mapear os serviços de assistência a transexuais
existentes nos Hospitais Públicos do Brasil e investigar o processo de cuidado prestado aos transexuais e
elaborar proposições que subsidiem políticas públicas no âmbito do SUS.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 54
44
Anotações do Caderno de Campo. Observações sobre a cirurgia de transgenitalização realizada em
04/05/2007.
45
Nesse momento, me refiro somente às mulheres (transexuais) em função de que, no universo pesquisado,
apenas foram realizadas as cirurgias de neocolpovulvoplastia e também a Resolução retirou o caráter
experimental apenas da referida cirurgia, mantendo o da neofaloplastia.
46
Relatório Social nº. 01/01 constante no processo de A.E.B..
47
Laudo Médico informando sobre a cirurgia realizada em J.R.S.G..
48
Anotações do Caderno de Campo, observações da cirurgia de transgenitalização, São José do Rio Preto, em
04/05/2007.
49
Entrevista Pessoal, Uberlândia, agosto de 2007.
50
Encontrado entre os anexos do processo de W.P.S. na Promotoria.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 56
A adequação do corpo para uma performance de gênero coerente e fixa de acordo com
as normas sociais vigentes é sempre colocada como única meta a ser alcançada através da
cirurgia que garantiria a “inclusão”. O discurso que justifica a cirurgia se sustenta na
necessidade de favorecer os laços de sociabilidade das pessoas (transexuais). Conforme o
51
Ofício GS/Nº. 885 de 09 de julho de 2002. Resposta ao Promotor de Justiça sobre sua solicitação de que fosse
incluída na Tabela de Procedimentos do Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde –
SIH/SUS a cirurgia de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia e neofaloplastia e/ou procedimentos
complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários.
Flavia Teixeira 57
52
JALMA JURADO in: Laudo Médico constante no processo de K.F.S. p. 4.
53
Entrevista pessoal, São José do Rio Preto/SP, em 04de maio de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 58
Do Y ao X: o encantamento da técnica
Joanne Meyerowitz (2004) destacou o impacto que a cirurgia de transgenitalização -
compreendida como a possibilidade de a intervenção médica operar a “mudança de sexo” -
exerceu no imaginário europeu, e, principalmente nos Estados Unidos, a partir da segunda
metade do século XX. No Brasil, a autorização do procedimento ocorre somente no final da
última década do referido século, no entanto, o lugar que a cirurgia ocupa neste cenário está
implícito na Resolução CFM nº. 1.652/2002, em que a substituição do termo transexualismo
por transgenitalismo como diagnóstico, mais uma vez, não poderia passar despercebida.
Destaco a capacidade performática do diagnóstico que se transforma na própria cirurgia.
54
www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2002/1652_2002.htm consultado em 04/03/2006.
Flavia Teixeira 59
55
O primeiro congresso da Associação Harry Benjamin aconteceu em 1969. Seu principal líder foi o próprio
Harry Benjamin. Parte das subvenções para as pesquisas provinham da Erickson Educational Foundation. Em
1977, no seu quinto congresso, a associação passou a chamar-se “Harry Benjamin International Gender
Dysphoria Association (HBIGDA). A HBIGDA realiza seus congressos bienalmente, o último foi em
setembro/2007 em Chicago. A mudança de nome da instituição ocorreu em 2007, sendo denominada The World
Professional Association for Transgender Health (WPATH). Para o acompanhamento de seus documentos e de
sua história, consultar: http://www.wpath.org.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 60
esboçada anteriormente e será reiterada aqui com outros argumentos que, em alguns
momentos, o judiciário amplia para nortear suas decisões ancoradas em uma classificação
médica, e a partir dela, pensa as vivências identitárias.
Tem cura?
O único tipo de tratamento que beneficia os transexuais é a conversão
cirúrgica. Estudos pós-operatórios realizados na Suécia e nos Estados
Unidos mostram que após a cirurgia a maioria dos pacientes revela um
ajustamento social satisfatório, com atenuação da ansiedade e da depressão,
aumento do índice de empregos e melhora no relacionamento intrafamiliar.
Obtém-se, assim, através da cirurgia, uma melhor integração do indivíduo.57
56
Excerto retirado do Despacho do Promotor de Justiça. Brasília, 18 de fevereiro de 2000. p.5 fls. 89.
57
Casa da Maite. ASTRID Bodstein em maio de 2006. Disponível em:
http://www.casadamaite.com/index.php?option=com_content&task=view&id=1660&Itemid=274 capturado em
23/04/2007.
Flavia Teixeira 61
58
Parecer e a Proposta de Resolução PC/CFM/Nº. 39/97 de 09 de maio de 1997. Disponível em:
http://www.portalmedico.org.br/pareceres/cfm/1997/39_1997.htm capturado em 23 de abril de 2006.
59
Interessado em compreender o fenômeno “maninha”, ou seja, as bezerras fêmeas que nascem masculinizadas
quando são geradas juntamente com bezerros machos, observou as vacas e descobriu que o grau de
masculinização da genitália das fêmeas estava diretamente relacionado ao grau de anastomose no útero, isto é, o
número de vasos sanguíneos divididos pelos gêmeos durante a gestação. Os bezerros são ligados à placenta e,
algumas vezes, muitos vasos sanguíneos vão de um bezerro para o outro. Se os gêmeos compartilham grande
quantidade de circulação sanguínea, o fenômeno ‘‘maninha’’ terá maior possibilidade de ocorrer. No importante
experimento realizado, Alfred Jost removeu cirurgicamente fetos de coelhos do útero da coelha, castrou os
coelhinhos machos recolocou-os no interior da fêmea e aguardou o nascimento. Esses coelhos geneticamente
machos tinham se tornado fêmeas perfeitas, do ponto de vista anatômico. Tratava-se de coelhos com vagina e
ovários, podendo dar à luz, mas que, todavia, eram XY. O hormônio “misterioso” teria eliminado tudo o que
fosse masculino.
60
A HBIGDA define “disforia de gênero” como “aquele estado psicológico por meio do qual uma pessoa
demonstra insatisfação com o seu sexo congênito e com o papel sexual, tal como é socialmente definido,
consignado para este sexo, e que requer um processo de redesignação sexual cirúrgica e hormonal” (Ramsey,
1996, p. 176).
Vidas que desafiam corpos e sonhos 62
Para esse escritor, a “operação constitui, na maioria dos casos, a única solução e a
porta para a felicidade para o transexual que não consegue viver normalmente, sentindo-se
impostor, carregando pelo resto da vida traços que ele sabe não lhe pertencerem” (1976, p.
121). No livro em questão, através de uma coletânea de contos, o autor retrata o sofrimento e
as experiências negativas da condição transexual, sendo que, na maioria, os protagonistas
atingem um final trágico. Analisando a circulação dos atributos da homossexualidade na
mídia estadunidense, Rob Linné (2005) denuncia o final terrível das personagens que
experimentam o amor homossexual; na composição do enredo, seria como se um subtexto
informasse sobre os perigos que podem atingir todos(as) aqueles(as) que ousarem romper as
barreiras das normatividades. São essas as imagens que circulam juntas nos contos de
Gilberto Moutrhé; a exceção é o conto chamado “A Metamorfose” em que o suporte familiar,
a segurança de um casamento heterossexual e, principalmente, o tratamento especializado,
cirúrgico, em conceituado Hospital dos Estados Unidos, retiraram Jean de “zonas perigosas”
nas quais poderia sucumbir tragicamente as personagens anteriores.
61
Transamerica (2005). Direção de Duncan Tucker. EUA: IFC Filmes
Flavia Teixeira 63
Para:<GLBTS@yahoogrupos.com.br> De:
xxxxxS.[mailto:xxxxxxx@gmail.com] Enviada em: sexta-feira, 29 de abril
de 2005 16:40 Assunto :SOLICITA AJUDA... Olá... estou escrevendo para
pedir ajuda e orientação.
Estou me descobrindo/aceitando transexual somente agora.
Moro no interior de são paulo, na cidade de assis, e estou tendo grande
dificuldade em conseguir ajuda clínica, psicológica e social para meu
problema.
Estou me sentindo jogada de uma lado para outro.
Já escrevi para muitas pessoas. Algumas me mandaram ir para São José do
Rio Preto (dizem que é o centro mais próximo a mim para tratamento). Lá, já
tentei marcar consulta mais de 10 vezes pelo telefone, mas nunca consigo
falar com a responsável.
Outras me indicaram a [ ] fiz uma primeira consulta, mas não gostei muito
da maneira como tudo evoluiu....
meu médico local (dermatologista) quer me ajudar, mas diz que não tem
conhecimento para isso.
Outro médico local (psiquiatra) quer me ajudar, mas diz que não tem
conhecimento para isso, mas vai ´tentar´.
conheci através da internet uma médica endocrinologista de londrina-pr
(próximo a minha cidade). Mas ela disse que não me ajudará sem um
diagnóstico preciso...
eu já tenho 29 anos... já sofri muito... e NÃO QUERO MAIS PERDER
TEMPO PARA RESGATAR MINHA IDENTIDADE. NÃO QUERO
PERDER AS CARACTERÍSTICAS FÍSICAS FEMININAS QUE JÁ
TENHO, E QUERO ADQUIRIR OUTRAS....
mas sei que, quanto mais tempo passar, tudo ficará mais difícil...
espero que vocês possam me ajudar de alguma forma, indicando alguém ou
uma clínica especializada...
beijo....
XXXXXXXXXX.62 (grifos no original)
62
Mensagem recebida através de e-mail enviado para lista de grupo: GLBT yahoo em 29.04.2005
Vidas que desafiam corpos e sonhos 64
expostos nos relatos dos/as candidatos/as acompanhados/as por Valéria Elias (2007, p. 44) são
reiterados nas entrevistas de Berenice Bento:
Ao negar a alteração de sexo e nome no registro civil da pessoa (transexual) que foi
Flavia Teixeira 65
(...) não é a medicina que decide o sexo e sim a natureza. (...) Quem nasce
homem ou mulher, morre como nasceu. Genitália similar não é autêntica.
Autêntico é o homem ser do sexo masculino e a mulher do feminino, a toda
evidência. 64
No parecer, fica explícita a idéia de sexo enquanto expressão do real e o gênero como
reflexo deste real. Numa discussão entre cópia e original, o sexo é considerado atributo da
natureza que não pode ser manipulado e um dado pré-existente e absoluto. No entanto, esse
Parecer foi emitido antes da Resolução de 1997, a qual supostamente modificaria o teor das
análises posteriores.
63
O processo solicitando a alteração do registro civil teve início em 1990, com parecer favorável em 1992. O
Ministério Público recorreu e a sentença foi reformada de Supremo Tribunal Federal em 1997 com parecer
negando o pleito. Em 2001, tendo como advogada a Dra. Tereza Vieira, iniciou um novo processo cuja sentença
favorável foi proferida em 2005.
64
Excerto da decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, 8ª Câmara Civel, processo nº. 6.617/93
em que os Desembargadores negaram o provimento do pedido formulado na inicial e mantiveram a decisão do
Juizo de Primeira Instância negando a alteração de pré-nome e sexo.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 66
No caso em tela, o Juiz solicitante alega que a competência da Vara de Família seria
restrita a decisões sobre o estado familiar e não deveria deliberar sobre o estado individual
relativo ao sexo da pessoa. Os desembargadores e o Ministério Público se posicionaram
contrários a essa argumentação. Fica expresso no documento que o Ministério Público foi
chamado a opinar e que ele declarou ser competente a Vara de Família para o feito. No
Despacho, o desembargador reproduz fragmentos do parecer da Promotoria que sustenta a
competência do Juízo de Família em razão de sua possibilidade de verificar a “realidade da
transexualidade”, determinando a produção de prova, através das perícias (etapa considerada
obrigatória na “mudança de sexo”). Reproduzo parte do documento:
65
Acórdão publicado pela Décima Quarta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro ao
julgar o Conflito de Competência n° 2006.008.00467.
Flavia Teixeira 67
Verdades que, na maioria dos textos consultados, estão impregnadas das (in)certezas
sobre a natureza do corpo e a imutabilidade do sexo; as sentenças demonstram os
posicionamentos divergentes de promotores, juizes e desembargadores.
66
Voto do Desembargador Moreira Diniz do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, no processo de nº.
1.0000.00.296076-3/001(1), em que o Ministério Público recorreu da decisão de primeira instância que
autorizava a alteração de nome e sexo de mulher (transexual) após cirurgia de transgenitalização.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 68
67
tese, de hermafroditismo real, situação considerada rara na medicina (...)
(grifos meus)
Sob tal ângulo, o procedimento cirúrgico a que foi submetido, não implicou
em opção por um dos sexos de cujas características era portador, mas em
adaptação física, construída artificialmente, do sexo masculino para o sexo
feminino, sem que houvesse efetiva alteração de sexo, uma vez que, para
todos os efeitos, ainda que, em tese, se admita tenha adquirido
artificialmente a aparência da genitalia feminina, a natureza de sua
concepção não foi alterada. Nesse aspecto, a adequada colocação feita pelo
Procurador de Justiça oficiante não se trata de esterilidade apenas. Trata-se e
uma situação anômala criada artificialmente, e NÃO CONSAGRADA
PELO DIREITO POSITIVO, uma vez que esterilidade pressupõe
possibilidade de procriar e o transexual operado não tinha, não tem (...).68
(destaque no original)
67
Acordão de nº. 5018025 no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em que o Ministério Público apela da
sentença favorável à alteração de sexo e nome de mulher (transexual) expedida pelo juízo de primeira instância,
após cirurgia realizada em 2005.
68
Acórdão de nº. 5018025 no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em que o Ministério Público apela da
sentença favorável à alteração de sexo e nome de mulher (transexual) expedida pelo juízo de primeira instância,
após cirurgia realizada em 2005.
69
Acórdão no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em que o Ministério Público apela da sentença
favorável à alteração de sexo e nome de mulher (transexual) expedida pelo juízo de primeira instância, sentença
julgada em fevereiro de 2000. Apelação Cível n. 86.851.4/7, de São José do Rio Pardo, Des. Rodrigues de
Carvalho.
Flavia Teixeira 69
Não se trata de uma opção sexual, mas de uma questão biológica. Não há
como se negar a realidade fática. O autor é do sexo masculino e seu prenome
deve estar compatibilizado com seu sexo, não à sua opção sexual, ainda que
perante seu grupo continue se apresentando como XXXX.
70
Apelação Cível com Revisão n°377.895-4/3-00 . Comarca de São Paulo, agosto de 2005.
71
Renata Finsk possui grande inserção na mídia sendo sempre apresentada como travesti. Foi modelo na
Campanha Publicitária da Parada Gay do Rio de Janeiro de 2006, criada por Bruno Bertani. Disponível em:
http://paradario.arco-iris.org.br/site/index.php?option=com_content&task=view&id=18&Itemid=2. Ela se
autodenominava travesti. Parte dessa peça está estampada no seu blog na internet no endereço:
http://www.renatafinsk.blogspot.com/ consultado em 25/10/2007.
72
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – 2ª Vara de Registros Públicos. Processo nº. 2007.101460-6
(07/07R) Sentença publicada no DOE - Edição de 20/07/2007.
Flavia Teixeira 71
com o restante dos signos portados pelo corpo. O Juiz autoriza a alteração do nome baseado
no princípio do constrangimento causado entre a sua aparência física e o nome, já que vive e é
reconhecida como mulher. No entanto, a verdade sobre o sujeito ainda se aloja no sexo.
A defesa de que a alteração do nome não deve ser condicionada à cirurgia, sob o risco
de ferir o princípio da autonomia e vontade do sujeito é avançada nesse cenário, muito
embora a cirurgia deveria integrar os projetos das pessoas, pois a condição de transexual se
basearia – para o discurso oficial – no desejo de sua realização. A adoção do termo transexual
para nomear Renata Finsk é significativa, pois, para além da fluidez entre as identidades, que
será discutida nesta tese, essa manobra remete ao lugar de desconfiança que as travestis
ocupam, pois não há a “admissão pura e simples da identidade sexual como construção social
ou da subjetividade pessoal, ou ainda, como uma prerrogativa pessoal do sujeito”
(VENTURA, 2007, p. 103). É necessário que a expressão de um sexo não biológico esteja
configurada como um transtorno e reafirme os laços entre o poder judiciário e o poder
médico.
Considerando que o erro no registro civil pode ser admitido a partir de uma
intervenção posterior no corpo, o posicionamento da Justiça parece corroborar a idéia de que a
cirurgia promoveria um segundo nascimento. A discussão da cirurgia como fronteira entre as
73
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, APELAÇÃO CÍVEL nº. 328.005-4/0-00 da Comarca de
Campinas, maio de 2004.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 72
duas existências está contemplada nos relatos das entrevistadas, quando os sujeitos
(transexuais) se posicionam a partir da cirurgia reivindicando ou não um apagamento de seu
passado.
Embora a decisão do Tribunal tenha sido favorável ao pedido de J.A.P. Ela se ancorou
em dois princípios que merecem ser destacados, o primeiro que reconhece as limitações para a
realização da cirurgia de neofaloplastia no Brasil e um segundo, cuja transcrição pareceu-me
oportuna:
reiterado por algumas integrantes dos movimentos identitários de mulheres e travestis quando
do não reconhecimento de que as mulheres (transexuais) não seriam mulheres autênticas. A
discussão será contemplada no capítulo quatro.
74
Sentença favorável da Quinta Câmara de Direito Privado ao recurso de A.L.D.C. contra a decisão em primeira
instância que negou seu pedido de alteração de nome e sexo. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,
APELAÇÃO CÍVEL n° 165.157-4/5-00, da Comarca de Piracicaba.
75
Excerto da decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, 16ª Câmara Civel, processo nº.
2002.001.16591, cujo autor recorreu da decisão de primeira instância que determinou a grafia transexual no
registro civil no lugar destinado à determinação do sexo.
76
Excerto da decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, 11ª Câmara Civel, processo nº.
2004.001. 28817 em que os Desembargadores deram provimento parcial ao pedido formulado na inicial.
Autorizaram a alteração do nome e negaram a alteração do sexo no registro civil.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 74
Ao final da entrevista com Diogo, a troca de e-mails foi sugerida para o entrevistado e
contribuiu para que, posteriormente, ele me enviasse a cópia da carta que redigiu ao Juiz
quando da tramitação de seu processo para alteração de nome e sexo. Transcrevo, com sua
autorização, os fragmentos:
Aguardo, então, confiante de que, assim como a ciência médica nos deu uma
contribuição, a ciência jurídica irá partilhar desse mesmo gesto, dessa
mesma atitude, proporcionando a todos nós, transexuais, um momento mais
que sonhado, mais que esperado. Um momento exclusivo, pois se através da
Medicina nos livramos da prisão chamada “corpo”, através da Justiça
teremos a liberdade da prisão chamada “nome”, que não retrata a verdadeira
realidade, a essência que se expressa através daquilo que realmente somos,
77
Despacho do Promotor de Justiça encaminhado à 3ª Vara de Família em Brasília, onde tramitou o processo de
GSB. Datado de 27|06|2006.
Flavia Teixeira 75
sentimos e desejamos.78
78
Entrevista pessoal, Brasília, 11/05/2007.
79
Correspondência pessoal via correio eletrônico. Foi suprimido o endereço eletrônico para se ocultar a
identidade.
Flavia Teixeira 77
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 2
80
Não Basta, Alberto Caeiro.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 80
A Constituição Federal de 1988 em seu art. 129 dispõe sobre as funções institucionais
do Ministério Público:
81
Nosso Tempo, Carlos Drummond de Andrade.
Flavia Teixeira 81
82
Constituição da República Federativa do Brasil, disponível em: http://www.senado.gov.br/sf/legislacao/const/
capturada em 21 de maio de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 82
pessoal.
Ressalto que qualquer que seja a causa que autorize o MP a intervir no processo, civil
ou penal, o móvel desta autorização deveria ser sempre o interesse público. Entende-se por
causas concernentes ao estado da pessoa aquelas que se relacionam à filiação, ao nome e a
outras ali elencadas. Enfim, causas que envolvam os direitos da personalidade. Nesse sentido,
remeto ao artigo 11 do Código Civil: “Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os
direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício
sofrer limitação voluntária”.83
83
Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que insttui o Código Civil. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/2002/L10406.htm capturado em 21 de maio de 2007.
84
Lei nº. 5.869, de 11 de janeiro de 1973, que institui o Código de Processo Civil. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Leis/L5869.htm capturado em 21 de maio de 2007.
85
Fragmento retirado do Procedimento Preparatório para Alterações de Estado Decorrentes de Cirurgia de
Transgenitalização de Transexual Masculino (Transmasculino): Mudança de Prenome e Sexo. p. 3 Processo de
J.R.S.G. em 17 de outubro de 2003.
Flavia Teixeira 83
A terceira etapa da análise foi a leitura cuidadosa dos pareceres dos peritos e dos
resultados de exames realizados a pedido da Promotoria, os quais estavam disponíveis nos
processos. Considerando que nem todos os processos possuíam os resultados e laudos, foi
uma etapa difícil, de vai e vem na Promotoria em busca de dados novos que pudessem ser
anexados aos processos no decorrer da análise. No entanto, em dezembro de 2004 – ocasião
em que o Programa foi suspenso –, foi realizada uma leitura cuidadosa de todos os processos
disponíveis e atualizados todos os dados. Na quarta etapa, foram analisados os despachos do
86
No Parecer que embasa a Resolução 1482/97 consta, como pré-requisito para a realização da cirurgia, a
declaração de ausência de histórico criminal, no entanto, este critério não fica determinado na referida
Resolução.
87
Ofício nº. 390/02 GAB/HUB de 09 de outubro de 2002 informa ao Promotor de Justiça que o Serviço de
Genética concorda em receber os pacientes indicados para realizar exame de cariótipo. A leitura do ofício sugere
que a solicitação da Promotoria se deu através de telefonema.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 84
88
Agradeço a disponibilidade do Promotor Diaulas Ribeiro que propiciou o acesso aos documentos e me
manteve sempre atualizada do andamento dos mesmos.
89
Por não se tratar de uma fonte específica para o trabalho proposto, apresento a título de informação, algumas
das reportagens que foram veiculadas em revistas de circulação nacional sobre o tema. (1) Revista Isto É (online)
Flavia Teixeira 85
edição n.1692 de 01/03/2002 He, She ou It?. Casos de transexuais em disputa por herança ou guarda de filhos
vão parar na Justiça e obrigam revisão de conceitos. Disponível em http://www.terra.com.br/istoe/ capturada em
20/09/2002 Também as notícias sobre a implantação de Programas enfatizam a cirurgia para as mulheres
(transexuais): Mudança de Sexo no Paraná. Correio Braziliense, Brasília, Brasil, p.17. 25 de setembro de 1999.
HC prepara cirurgias para mudança de sexo. O Popular, Goiânia, Cidades, p. 2 B, 19 de dezembro de 1999.
90
Revista Época, edição 236 – 21 de novembro de 2002. Nasce uma mulher. Transexuais saem do armário e a
ciência mostra que a mudança de sexo não é perversão. Disponível em
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG53915-6014-236,00.html capturada em 05/12/2002.
91
Ao realizarem a solicitação de ingresso no Programa de Transgenitalização, os homens (transexuais) assinam
o Termo de Depoimento que ressalta a dificuldade técnica da cirurgia de neofaloplastia. A Revista G Magazine,
que é dirigida para homens homossexuais, publicou uma reportagem com a equipe responsável pelas cirurgias de
Transgenitalização no Hospital de Base em São José do Rio Preto. G Magazine. Mudança de Hábito. Edição
029 de fevereiro de 2000. Nela fica explícito o desencorajamento da procura por homens (transexuais) diante da
limitação técnica para a cirurgia.
92
A minuciosa recapitulação dos dados sobre incidência, prevalência e busca pela cirurgia entre os/as
(transexuais) na literatura internacional realizada pelo pesquisador é elucidativa da preocupação em demonstrar a
universalidade do fenômeno (SAADEH, 2004, pp. 78-82).
93
Por ocasião da inscrição, a/os candidata/os são instruída/os de que a Promotoria apenas prepara a
documentação para a mudança de nome e sexo.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 86
A motivação das três inscritas que iniciaram o processo já tendo cumprido todas as
exigências do CFM para a realização da cirurgia,94 e dispondo de recursos próprios para
custear o procedimento, pode guardar semelhanças, mas, ainda assim, apresentam histórico
diferenciado. W.P.S. Integra esse grupo e foi a primeira inscrita no Programa de
Transgenitalização, em dezembro de 1999. Sua demanda inicial foi a habilitação para a
realização da cirurgia. Considerando que a equipe do serviço responsável pela intervenção
cirúrgica atuava em outro Estado desde 1998, a solicitação para habilitação parecia fora de
“foco”. O Promotor reconheceu os limites da atuação da Promotoria:
Analisado no conjunto dos outros, esse processo pode ser considerado como uma
exceção em diferentes ângulos. Os laudos encaminhados pelos profissionais, por solicitação
94
Assim estabelecidos no Artigo 4º da Resolução nº. 1652/2002: Que a seleção dos pacientes para cirurgia de
transgenitalismo obedecerá a avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião,
endocrinologista, psicólogo e assistente social, obedecendo aos critérios abaixo definidos, após, no mínimo, dois
anos de acompanhamento conjunto:
1. Diagnóstico médico de transgenitalismo;
2. Maior de 21 (vinte e um) anos;
3. Ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia.
95
Processo de WPS – Habilitação para Cirurgia de Transgenitalização de Transexual Masculino – Despacho do
Promotor de Justiça – p.3.
Flavia Teixeira 87
96
A equipe do Hospital de Base de São José do Rio Preto consulta o CFM sobre validação de laudo psicológico
de acompanhamento realizado no exterior, a possibilidade foi negada porque o Conselho entendeu que existe a
necessidade de acompanhamento por uma equipe multiprofissional e, no mínimo, por dois anos. PROCESSO-
CONSULTA CFM Nº. 1.444/06 – PARECER CFM Nº. 2/07 disponível em
http://www.portalmedico.org.br/pareceres/cfm/2007/2_2007.htm capturado em 03/02/2007.
97
Processo de JCPS – Habilitação para Cirurgia de Transgenitalização de Transexual Masculino – Despacho do
Promotor de Justiça – p.2.
98
Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 88
99
PROCESSO-CONSULTA CFM N° 6.331/2003 – PC CFM N° 8/2004 de 05 de dezembro de 2003, disponível
em http://www.portalmedico.org.br/pareceres/cfm/2004/8_2004.htm capturado em 15/10/2006.
100
Processo de LPPN. - Parecer Social 007/02 Pró-Vida, p.2.
101
Processo de LPPN – Habilitação para Cirurgia de Transgenitalização de Transexual Transmasculino -
Despacho do Promotor de Justiça – Autos nº. 002542/02-1 de 20 de dezembro de 2002.
Flavia Teixeira 89
As inscritas que procuraram o programa com menor faixa etária, tiveram acesso às
informações de maneira privilegiada, sendo que algumas iniciaram a “harmonização”102
acompanhadas por especialistas ainda na adolescência. Esse é um dado significativo, pois o
uso de medicamentos (através da auto-medicação), com fins de alterar os aspectos do corpo
mesmo antes de iniciar o Programa, é uma prática recorrente.103 Nos processos analisados,
essa informação será encontrada com facilidade, mas nenhuma investigação a esse respeito é
realizada pelos entrevistadores. A auto-medicação parece ser o caminho naturalmente
escolhido pelos/as inscritos/as e não desperta a atenção dos especialistas, visto que se
destacam as falas sobre as tentativas frustradas das/os candidatas/os de terem acesso às
orientações médicas.
102
Discuto adiante a relação estabelecida entre o uso do hormônio e a busca de uma harmonia entre a “alma” e o
“corpo” traduzindo a “harmonização” ou, as vezes, chamada de “hormonização” como categorias êmicas.
103
Os trabalhos dos antropólogos brasileiros Hélio Silva (1993), Mônica Siqueira (2004), Marcos Benedetti
(2005) e Larissa Pelúcio (2007) com as travestis em diferentes locais se referem a este lugar de orientadora
ocupado pelas travestis mais velhas, não tive acesso a literatura que tratasse especificamente da iniciação das
pessoas (transexuais), mas as entrevistas apontam para um acesso maior a informações através de livros, revistas
e profissionais, embora a experiência com as travestis e outras transexuais esteja presente em alguns relatos.
Diferentemente das mulheres, a auto-medicação para os homens (transexuais) é de menor incidência porque o
acesso aos medicamentos é controlado pela ANVISA. (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Vidas que desafiam corpos e sonhos 90
As informações sobre a escolaridade estão diluídas nas entrevistas e não parecerem ser
significativas para os especialistas. Fragmentos pontuais retirados dos laudos psicológicos
relatam dificuldades no cotidiano escolar, no entanto, referem apoio familiar no
enfrentamento das situações de conflito. A escola é apresentada como espaço de repressão;
episódios envolvendo constrangimentos físicos e simbólicos são as marcas desta tensa
relação.
Nos processos não constam dados que informem sobre as relações sociais
estabelecidas pelas/os candidatas/os no momento de inclusão no Programa. A família quase
não aparece nos relatos, alguns(mas) candidato/as residiam com seus familiares e diziam da
relevância do apoio deste grupo no processo de transformação; estas poucas informações
estão dispostas de modo não sistemático nos formulários que compõem os laudos.
A referência familiar é relevante não somente porque consiste num dos critérios
“implícitos” para a indicação da cirurgia, ou seja, o apoio familiar para os cuidados pós-
operatórios105, mas, principalmente, porque assim como apontou Berenice Bento, as pessoas
(transexuais) buscam através da cirurgia, também, o reconhecimento de pertença.
(...)Eles/as querem a mudança nos seus corpos para que possam ter
inteligibilidade social, ou seja, se a sociedade se divide em corpos-homens e
corpos-mulheres, aqueles que não apresentam essa correspondência fundante
tendem a estar fora da categoria do humano. (2003, p. 18)
O lazer e o acesso a outros espaços de socialização também são dados ausentes nos
processos. A argumentação da medicina e do judiciário em defesa da cirurgia está ancorada na
necessidade de “ressocialização” das/os pessoas (transexuais). No entanto, a ausência de
dados sobre como elas/es vivem, em quais espaços circulam, em comparação às minuciosas
investigações sobre o corpo em construção, presentes nos laudos de exame de corpo delito e
testes psicológicos e psiquiátricos, é significativa de que essa suposta “ressocialização” deva
ocorrer após o enquadramento das/os inscritas/os às normas de sexo/gênero referenciadas pelo
modelo hegemônico da heterossexualidade.
Gabriella106 e Aline107 foram assassinadas durante a realização desta pesquisa sem que
nenhum suspeito fosse identificado até o momento em que encerrei as entrevistas em Brasília,
104
Categoria êmica utilizada para identificar o período em que a pessoa passa a reivindicar, através de gestos,
roupas, nome e postura um outro pertencimento de gênero.
105
Nos processos, os/as interessados/as informam quem os acompanhará no pós-operatório e como a família
percebe esse procedimento. Nos casos em que algum membro da família compareceu ao Ministério Público para
entrevistas, a habilitação ocorreu mais rapidamente.
106
Encontrei no seu processo as informações sobre o crime, as quais foram recolhidas pelo Promotor que visitou
os familiares e conversou com o delegado responsável pelas investigações.
107
As informações sobre o assassinato de Aline foram coletadas através das entrevistas. O Promotor foi
comunicado por mim deste episódio e nenhuma alusão ao fato constava nos processos.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 92
em outubro de 2007. Silvia Ramos e Sérgio Carrara (2006, p.186) utilizam a expressão
homofobia para caracterizar um tipo de violência cujas agressões e discriminações são
motivadas pela orientação sexual.108 A violência com que Gabriella e Aline foram mortas
denuncia o que se convencionou como crimes de ódio. No referido estudo, os pesquisadores
identificaram que as travestis são as principais vítimas dos crimes de ódio (espancamentos,
graves ameaças à vida e denúncias de assassinatos), acredito que as pessoas (transexuais)
estejam colocadas no mesmo pólo extremo da escala de violência.
108
Durante o XIV Entlaids, a representante da Rede Latino Americana e Caribe de Pessoas Trans -
REDLACTRANS –, Marcela Romero, enfatizava a necessidade de se divulgar o termo transfobia em detrimento
do termo homofobia, que segundo a mesma, contribuiria para invisibilizar as violências vividas pelas pessoas
trans incluindo as travestis e transexuais. (Anotações do Caderno de Campo, São Paulo, 29/06/2007). Segundo
Ruspini (2008, p. 89), transfobia é uma reação de pavor, desgosto e atitude discriminatória nas interações com
pessoas cuja identidade de gênero não corresponde ao modo socialmente estabelecido para o sexo atribuído ao
nascimento.
Flavia Teixeira 93
Campinas, Mariza Corrêa aponta o constante silenciamento dos acusados nos processos, “em
termos reais o acusado, desde que entra na polícia até o momento em que sai livre ou passa
para outra esfera, a penitenciária, só fala através desses agentes e é sempre referido na terceira
pessoa do singular e no passado” (1983, p. 40). Guardadas as diferenças entre os tipos de
procedimentos, percebo a imposição de um silêncio das/dos (transexuais) nos processos
analisados por mim. Exemplifico, neste momento, uma das estratégias deste apagamento
através de um fragmento extraído do laudo psiquiátrico em que três quesitos foram
apresentados pelo Promotor aos peritos:
O paciente é transexual?
RESPOSTA: Não.
Se a cirurgia de redesignação sexual lhe é recomendada
RESPOSTA: Não.
Se ele tem capacidade de cognição (consciência) e voluntariedade (liberdade
plena para decidir) para receber esclarecimentos e autorizar a mencionada
cirurgia.
RESPOSTA: Sim.109
Nos processos analisados, os relatos sobre os sujeitos são escritos na terceira pessoa e,
após as omissões e interpretações das falas os peritos redigem a conclusão do Laudo. O
processo de EPC é um exemplo desta “tradução”. Ao solicitar sua inscrição no Programa de
Transgenitalização trajando roupas consideradas “unissex” e sem nenhum investimento
109
Resposta aos quesitos, excerto retirado do Exame Psicológico nº. 041/2001, que integra o processo de E.P.C..
Vidas que desafiam corpos e sonhos 94
corporal definitivo que demonstrasse seu pertencimento ao “mundo feminino”, EPC teve
dificuldades de convencer a equipe de sua feminilidade. O uso de roupas consideradas
femininas, denominado tecnicamente como teste de vida real, é um fator relevante no
protocolo da transexualidade. Os argumentos de E.P.C. de que, por ser profissional da saúde,
postergou o uso de hormônio através da auto-medicação e que aguardava o tratamento para
“mudança de sexo”, para então modificar suas vestimentas, e que também não adotara um
nome feminino, pois, para ela, estariam todos os procedimentos integrados, não foram
suficientes. No indeferimento de sua solicitação, configurado no parecer do Promotor de
Justiça,110 encontrei os argumentos sobre a incredulidade da equipe na “feminilidade” de
E.P.C.
Uma das entrevistadas por Elisabetta Ruspini (2008, p. 89) critica essa exigência do
teste de vida real, argumentando e elencando as várias situações cotidianas em que, frente à
necessidade da apresentação de documentos, e que não estão em consonância com a
aparência, ela deixa de ser real para se tornar uma farsante de si mesmo.
Berenice Bento (2006) discute com propriedade o processo vivido pelas pessoas
110
Despacho do Promotor de Justiça, Autos nº. 001600/00-1 de 25 de setembro de 2002.
111
Laudo nº. 042/2001 de E.P.C..
112
Fragmento da entrevista realizada com Bruna, na Promotoria, em 08/11/2004.
Flavia Teixeira 95
Ressaltaram também a particularidade da demanda, uma vez que este foi o primeiro contato
estabelecido por eles com a temática da transexualidade. A limitação identificada pelos
próprios peritos parece ter também sido objeto de reflexão da Promotoria que, após junho de
2002, buscou parceria com programas institucionais – em Universidades – para
acompanhamento psicológico dos/as inscritos/as.113
São também três os quesitos apresentados aos peritos psiquiatras do IML. O primeiro
indaga sobre a verdade de um diagnóstico cumprindo a função de eliminar aqueles/as que
seriam os/as falsos/as (transexuais). A resposta ao segundo quesito está condicionada ao
diagnóstico estabelecido anteriormente, uma vez que indaga sobre a indicação da cirurgia. As
respostas a este quesito demonstram que os peritos compartilham da crença prevalente entre
os seus pares de que a cirurgia é o único recurso eficaz para o tratamento da transexualidade.
113
Ofício nº. 401/02 MPDFT/PRÒ-VIDA de 17 de junho de 2002, que integra o processo de CSA e Ofício nº.
390/02 GAB/HUB de 09 de outubro de 2002, que integra o processo de S.E.M.
Flavia Teixeira 97
Por fim, no último quesito, o perito autorizaria ou não o indivíduo a falar sobre si
mesmo. O Promotor solicita que o perito se pronuncie sobre a capacidade de cognição
(consciência) e voluntariedade (liberdade plena para decidir) do sujeito para receber
esclarecimentos e autorizar a mencionada cirurgia. Nos laudos em que foi negada a condição
de transexualidade às pessoas estas também foram consideradas inaptas para consentirem no
procedimento.
Em três laudos, confeccionados por diferentes peritos, a história de vida foi separada
da história da identidade de gênero. Com essa separação, o caráter patológico do que
acreditam ser o transexualismo assume dimensão hiperbólica. Os peritos estabelecem uma
cisão entre a pessoa e a “doença”, prática já denunciada em textos de antropólogos que
elegeram o campo da saúde como espaço de investigação.115 A pessoa é substituída pelo
diagnóstico e, assim, todas as ações decorrentes do diagnóstico são dirigidas à patologia
reconhecida. Esse esfacelamento do sujeito, em que a “doença” atinge um status autônomo,
ocorre também em outras situações conforme identificou Fernando Seffner (2001, p. 386). Se,
ao ser diagnosticado como transexual a pessoa se despersonaliza na suposta doença, então a
proposta é acionar uma cura. Estamos de volta para a questão inicial: a necessidade da
cirurgia de transgenitalização.
114
Processo de G.B.S., Laudo Psiquiátrico nº. 610/2001 SPL. P.04.
115
Antropologia Médica, Antropologia da Medicina, Antropologia da Saúde e Antropologia do Corpo são
algumas das denominações que agregam antropólogos preocupados com os processos que envolvem a saúde e
doença.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 98
doméstico integram o feminino.116 Detalhes das brincadeiras que são valorizados pelos
especialistas que reproduzem as falas das entrevistadas como se produzissem “provas” de
uma patologia que pode ser identificada desde a primeira infância. Ressalta o apoio às
certezas de Harry Benjamin (1997), para quem, a crença de pertencimento ao outro sexo é
desde a infância e é também inabalável, posto que deriva de uma condição estrutural. O
desejo pelas roupas e as brincadeiras é apenas testemunho evocado para garantir a verdade da
transexualidade.
A eleição do par e a expressão dos desejos e afetos também foram transferidas para
esse tópico, pois foram decodificadas, nessa perspectiva, como sinais da patologia. “Quanto à
vida afetiva, esta é descrita no item ‘História da Identidade de Gênero’.”117 As questões
relacionadas ao afeto e às práticas sexuais são acopladas à Identidade de Gênero e se tornam
sintomas, sendo que o desejo heterossexual é a norma que deve ser perseguida para satisfazer
as regras estabelecidas pelo standart do Instituto Harry Benjamin. A interdição da
homossexualidade será discutida em tópico específico.
116
Para maior discussão sobre as normas de gêneros que organizam as brincadeiras infantis ver: TEIXEIRA,
Flavia B. (2001); CRUZ, Tânia M., CARVALHO, Marília (2006) e RIBEIRO, Jucélia S. B. (2006).
117
Processo de G.B.S., Laudo Psiquiátrico nº. 610/2001 SPL p.01.
Flavia Teixeira 99
Através dos trabalhos publicados por psicólogos, que integram ou em algum momento
participaram das equipes que desenvolvem programas de atenção para pessoas (transexuais),
visando à realização da cirurgia, observa-se um conjunto de práticas heterogêneas embasadas
por correntes teóricas diferentes. O trabalho de Valéria Elias, para quem a clínica psicanalítica
não teria o lugar de autorizar ou não o desejo do sujeito, mas ouvi-lo no percurso da
construção deste desejo, coloca em questão o lugar deste profissional na equipe. Ela
acompanhou, a partir de uma escuta psicanalítica, mulheres (transexuais) que buscaram o
hospital universitário demandando a cirurgia de transgenitalização. E reconhece a relação de
convencimento que se instaura e identifica nela um dos entraves iniciais no estabelecimento
de uma relação transferencial que autoriza a clínica psicanalítica.
118
IML, Caderno de Campo, Brasília, 11 de maio de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 102
119
No Brasil, a obra de Robert Stoller parece despertar interesse, uma vez a maioria de seus foi traduzida para o
português. Parte do alcance da obra deste autor pode ser compreendido dada sua influência como psicanalista,
corrente bastante difundida nas escolas de psicologia brasileiras. Não passou despercebido que o livro nas mãos
do psicólogo que acompanhava o Grupo de Transexuais do HUB, na minha primeira visita, era exatamente “A
Experiência Transexual”, de Robert Stoller, e estava com o aspecto bastante gasto, indicativo de ser uma obra de
consulta constante. Robert Stoller considera que no estágio mais precoce do desenvolvimento da identidade de
gênero há uma fusão do menino à mãe, o que garantiria o sentido de feminilidade em um bebê. O que significa
dizer que todos os indivíduos experimentariam inicialmente a feminilidade, exigindo do menino e de sua mãe um
esforço de separação no sentido da construção de sua masculinidade. Buscando elementos para caracterizar a
universalidade de sua teoria, Stoller recorre a relatos de casos clínicos em que ressalta as evidências da
exagerada gratificação primária - realizada pela mãe - que, na sua perspectiva, impede a construção da
masculinidade. A universalização de sua teoria sobre a existência da “protofeminilidade” e a supremacia da
dinâmica familiar para a determinação da identidade de gênero parecem impactar a leitura dos psicólogos
(STOLLER, 1993, p. 35).
Flavia Teixeira 103
Por não se constituir o foco desta tese, não discutirei os testes que constituem os
laudos e sim os resultados das análises transcritos pelos especialistas.
O tempo necessário para a confecção dos laudos é um elemento que se destacou, pois,
em alguns deles, considerando a data em que foi realizado o primeiro contato com os peritos
para proceder ao exame e o resultado do laudo indicam que houve um único encontro.120 Em
outros, fica explícito que foram realizadas duas sessões para a confecção dos laudos.121 Nos
demais processos, o tempo transcorrido entre a data que informa o primeiro contato e a
assinatura do laudo pelos peritos varia entre menos de 30 até 90 dias122, sendo que o laudo
que possui o maior lapso de tempo é de 113 dias, mas não deixa antever quantas sessões
foram necessárias para sua confecção.123 Considerando que a Promotoria estabelecia um
prazo inicial de 180 dias, sujeito à prorrogação de acordo com a necessidade do perito,
questiono a urgência com que as respostas foram emitidas, contradizendo a fala anteriormente
colocada sobre a dificuldade encontrada pelos peritos em responder aos mesmos. Os
profissionais que compõem as equipes dos diferentes programas são uníssonos em afirmar a
necessidade de tempo para o estabelecimento do diagnóstico e/ou a habilitação para a
cirurgia, considerando adequada a determinação do CFM de dois anos para o
acompanhamento.124
120
Exame Psicológico nº. 018/2001-SPL de J.C.S. e Parecer Psicológico nº. 030/01 de J.C.S.
121
Exame Psicológico nº. 066/2001-SPL de V.X.M. e Exame Psicológico nº. 161/2001 de R.R.F.
122
Exame Psicológico nº. 023/2001 - SPL de E.M.S., Exame Psicológico nº. 050/2001 - SPL de F.A.P.S e
Exame Psicológico nº. 042/2001- SPL de E.P.C.
123
Exame Psicológico nº. 143/2001 - SPL de G.S.B..
124
Mesmo que não compartilhem sobre o lugar e a função do psicólogo na equipe, a necessidade de um
acompanhamento pelo período mínimo de 02 anos aparece como consenso nos trabalhos de Valéria Elias (2007),
Esalba Silveira (2006), Tatiana Lionço (2006), Alexandre Saadeh (2004), Jaqueline Pinto (2003 e 2008) e
Daniela Murta (2007).
Vidas que desafiam corpos e sonhos 104
125
Exame Psicológico nº. 018/2001 de JCS p.6, Exame Psicológico nº. 023/2001 de E.M.S. p.4 e Exame
Psicológico nº. 066/2001 de V.X.M. p.4.
126
Exame Psicológico nº. 050/2001 de F.A.P.S. p.3 e Exame Psicológico nº. 042/2001 de E.P.C. p.3.
Flavia Teixeira 105
para realização de um exame pericial poderia ser absorvido dentro deste contexto como
apenas um procedimento de rotina. No entanto, são esses saberes e práticas institucionalizadas
que, embora pareçam destituídas de sentido, ao serem reinvestidas de um suposto saber,
contribuem para o estabelecimento de uma “verdade” sobre os/as inscritos/as no Programa de
Transgenitalização.
Solicito exame médico legal para descrição da sua atual conformação genital
externa, bem como das suas características sexuais secundárias
(ginecomastia etc), visando identificar a cirurgia de neocolpovulvoplastia já
realizada (...) com ilustração fotográfica.128
127
JURADO, Jalma, EPPS-QUAGLIA, Dorina R. e INACIO, Marlene. Transexualismo: Aspectos Clínicos e
Cirúrgicos. In: CORONHO, V. PETROIANO A. SANTANA, EM, PIMENTA LG. Tratado de Endocrinologia e
Cirurgia Endócrina. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2001. pp. 1409-16.
128
Oficío nº. 211/2003- MPDFT/PRO-VIDA processo de J.R.S.G.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 106
Analisei um primeiro conjunto composto por doze fotografias assim distribuídas: seis
fotografias em plano americano, que retratam o rosto, duas focalizando as mãos, outras duas
os pés, sendo uma descalça e outra com sandálias. Duas outras retratam o enquadramento a
partir dos ombros até metade das coxas sendo uma com indumentária íntima e outra de corpo
nu que evidencia as nádegas também na perspectiva de enquadramento dos ombros até o meio
Flavia Teixeira 107
das coxas. A composição do espartilho de renda branco com a calcinha também de renda
branca, detalhadamente fotografada remete a uma busca por indícios capazes de denunciar a
“farsa” deste feminino. A coerência daquele rosto moldurado pelos cabelos longos não
suportaria o esquadrinhamento dos detalhes.
No outro arranjo das fotografias, seis fotografias dos seios em diferentes posições
indicam o implante de silicone realizado, outras oito imagens são destinadas à vagina. De uma
vista anterior, o fotógrafo aproxima a imagem (não sei se através de lente ou se da própria
aproximação do fotógrafo) evidenciando o interior da vagina. Em uma das fotos percebe-se
que a examinanda foi solicitada a colaborar e, em posição ginecológica, segura nas partes
laterais da vagina, abrindo-a para que o perito prosseguisse em sua busca por evidências. As
posturas dos peritos sugerem que mais do que a existência da genitália feminina o que estaria
em questão seria o espanto diante da possibilidade de sua criação: “ausência aparente de
129
clitóris” ; ausência de grandes e pequenos lábios.130 Esse “exame” rigoroso também se
repete no laudo J.R.S.G.. Em duas das três fotos destinadas às genitálias, a abertura da vagina
se fez por um dos peritos. O que eles desejariam mostrar/registrar? Nas respostas dos laudos
encaminhados pelos peritos, percebe-se o descompasso entre o detalhamento do “exame” e as
conclusões apresentadas: “mamas bem desenvolvidas e com conformação feminina; genitália
externa com ausência de pênis, bolsa escrotal e testículos; presença de cicatrizes de
neocolpovulvoplastia”.131
Não é a presença de uma vagina em conformidade com o modelo anatômico que está
sendo valorizada, mas sim a ausência do pênis que sustenta a solicitação de alteração de sexo
no registro civil para essa mulher (transexual). Até o momento da escrita deste texto, apenas a
realização da cirurgia forneceria o passaporte para o reconhecimento jurídico desta nova
condição.
129
Laudo de Exame de Corpo Delito nº. 08671/03 que integra o processo de K.F.S..
130
Laudo de Exame de Corpo Delito nº. 00150/01 que integra o processo de A.E.B..
131
Laudo de Exame de Corpo Delito nº. 12546/03 que integra o processo de J.R.S.G..
Vidas que desafiam corpos e sonhos 108
No conjunto dos laudos, não passaria despercebido que o olhar dos peritos privilegiou
as mulheres (transexuais) cujo padrão de beleza se aproximava das modelos que circulam em
telenovelas e ou revistas de moda, sugerindo uma desconfiança: “linda, mas homem... linda,
132
Processo de J.C.P.S.– Ofício n.º 086-MPDFT/PRÓ-VIDA.
133
Laudo nº. 0110/02, p. 06.
Flavia Teixeira 109
mas não é mulher”.134 Remetendo à música que deu visibilidade nacional a Roberta Close, na
qual o compositor evidencia a crença de ser ela, Roberta, um engano, uma vez que linda, mas
uma armadilha de mulher, cujos resquícios do masculino denunciariam a fraude.135
Do grupo de 22 pessoas que ingressaram no Programa sem ter cumprido nenhuma das
exigências encontrei 19 laudos respondendo ao encaminhamento para exame físico. A
quesitação é a de que o perito respondesse sobre a conformação genital, a presença de
caracteres sexuais secundários e a existência de condição intersexuada.
134
Esta persistente vigilância foi também relatada pela primeira mulher (transexual) operada pela equipe
coordenada por Dr. Carlos Cury em entrevista pessoal. São Paulo, 05.05.2007.
135
Refiro-me à música CLOSE de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, interpretada por Erasmo Carlos no Álbum
Buraco Negro, de 1984.
136
O primeiro registro fotográfico surge no laudo de F.A.P.S. em 23 de dezembro de 2000.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 110
perito.137 Certezas que encontraram respaldo em outro perito, que descreveu as características
normais da genitália com presença de “vulva e vagina de características normais com hímen
integro e clitóris hipertrofiado (hipertrofia discreta)” não havia dúvidas sobre a supremacia da
anatomia para designar o sexo: “pericianda do sexo feminino normal do ponto de vista
anatômico”. 138
As fotos que ocultavam os rostos destacavam as cicatrizes das mamas ocasionadas por
compressão e denunciavam a tentativa cotidiana de escondê-las. O aspecto pendular dos seios
corresponde também a essa estratégia de encobrimento que integra a fabricação de si mesmo
dos homens (transexuais). No entanto, uma das fotos evidencia a coexistência de dois
símbolos: as marcas do uso concomitante de cueca e sutiã. Esse indício passa despercebido
aos olhares dos peritos. Se, para as mulheres (transexuais), a indumentária íntima teria lugar
privilegiado no arquivo dos diferentes peritos, aqui essa ambigüidade sequer foi mencionada.
Talvez o sutiã tenha se tornado um elemento irrelevante diante da calça social, camisa de
mangas compridas xadrez, sapato social masculino de couro combinando com o cinto
masculino concomitantemente ao fato de que se adequa à realidade dos seios. O sutiã,
considerado símbolo de sedução e feminilidade, extremamente valorizado no caso das
mulheres (transexuais), aqui retorna à sua função técnica.
137
Conclusão apresentada pelo perito no Laudo de G.B.S. de nº. 00024/01.
138
Laudo pericial de R.R.F. nº. 00031/01.
Flavia Teixeira 111
O segundo subgrupo foi composto pelos processos das mulheres (transexuais) que
possuíam registro fotográfico, formado por um conjunto de nove processos. Embora não
possa ser considerado como indicativo de características sexuais primárias ou secundárias, os
cabelos são muitas vezes referidos como femininos pelos peritos, e são destacados nas
fotografias.
Os cabelos são valorizados e indicam uma posição feminina, pois, para a maioria
destas mulheres, deixar os cabelos crescer foi uma atitude inicial para a “transformação” do
corpo e ruptura com os padrões masculinos. “Meu pai sempre cortou meus cabelos baixíssimo
para ter a aparência masculina”.144
139
Laudo de Exame de Corpo de Delito de R.J..
140
Laudo de Exame de Corpo de Delito de J.C.S..
141
Laudo de Exame de Corpo de Delito de N.R..
142
Laudo de Exame de Corpo de Delito de J.N.S.S..
143
Laudo de Exame de Corpo de Delito de M.P.O..
144
Fragmento retirado do processo de J.C.S..
Vidas que desafiam corpos e sonhos 112
A leitura das fotografias foi o momento mais difícil deste capítulo, o impacto causado
145
Laudo de Exame de Corpo de Delito de N.R..
Flavia Teixeira 113
“Tinha que ser lá? Tinha que ser daquela forma? Eu me senti tão mal, tão
nada, eu sou um nada aqui, eu ficava sentadinha no banco esperando... eu
nunca tinha estado num lugar daqueles (...) Eu tinha medo... tinha medo de
receber um não... de eles dizerem um “tira esse traveco safado daqui”... tinha
o mito da transexual verdadeira... me levaram para uma sala todos os
médicos de jaleco, eles estavam de máscaras como se quisessem se esconder,
eles se preservavam, mas eu não. Eu tinha que ficar pelada... “tira toda a
roupa” ... fiquei somente de meia, eu tinha nojo daquele chão...ordenavam:
“agora, faz assim, levanta o peito” (...) isso não era comum para mim, não
era cotidiano, ficar pelada na frente de tanta gente, era umas cinco ou seis
pessoas me olhando, qual era a necessidade disso? Eu retirei a roupa atrás do
biombo, menos a lingerie, mas eles olhavam, eu segui de calcinha e eu fiquei
com vergonha porque usava duas calcinhas para esconder o pênis... então
eles mandaram que eu tirasse tudo... eu tirei uma calcinha depois a outra, e
eles ali... a impressão que eu tinha era que eles tinham nojo de mim... muito
nojo de mim, era muito desagradável a eles o que estavam fazendo... e
ordenavam: “anda, vira”, e num momento perguntaram: “o que é isso aí? Há
quanto tempo você tem isso aí?” Eles se referiam aos meus seios, que foram
transformados em isso aí. Eu saí de lá muito mal. Esse foi o pior dos
exames, eu ainda tive sorte porque ninguém tocou em mim.”146
O lugar da produção de sentidos com que a expressão isso foi enfatizada pelo perito e
violentamente marcada na experiência de Danielle pode ser compreendido tendo como
referência a perspectiva da materialidade do corpo proposta por Butler:
146
Danielle, entrevista pessoal, Brasília, em maio de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 114
Conforme descrevi nas análises acima, algumas imagens mostram as mãos dos peritos
manipulando (assepticamente com luvas) os genitais dos/as examinandos/as para o registro.
Principalmente no que se refere aos homens (transexuais), Diogo resumiu em poucas
palavras a sua passagem pelo IML: “Foi a pior experiência de minha vida, foi constrangedor.
(...) [se referindo ao outro candidato] me confidenciou que chorou por uma semana após
aquele exame, é degradante”.147
Formada por dois consultórios compostos por mesa de exame que lembra uma maca
comum, mesa de escritório com computador, apenas uma cadeira disponível na sala que
parecia estar destinada ao médico perito anunciavam que este não era um consultório para
147
Diogo, entrevista pessoal, Brasília, em maio de 2007.
148
Anotações do Caderno de Campo, Visita realizada ao IML, Brasília, 11 de maio de 2007.
Flavia Teixeira 115
Uma sala identificada como sexologia forense foi apresentada como sendo o local em
que os homens (transexuais) foram examinados. É uma sala composta por dois ambientes,
planejada para receber as mulheres vítimas de abuso sexual; possui uma parte anterior onde a
mesa e as cadeiras disponíveis lembram um consultório médico convencional. Aqui a vítima
será ouvida, afinal não se trata mais de criminosos.
A parte posterior, separada por uma porta, possui uma mesa destinada a exame
ginecológico, um arquivo onde ficam guardados aparelhos mais complexos como o de
ecografia, uma televisão, um aparelho de gravador de vídeo com DVD. Pelas imagens
registradas, foi nessa mesa que os homens (transexuais) foram examinados. Todo o ambiente
destinado a receber uma mulher. O constrangimento descrito por Diogo iniciava antes mesmo
do exame, todos os móveis informam o pertencimento ao mundo feminino, o procedimento
busca evidenciar de forma contundente que se trata de “um falso homem”.
149
Expressão utilizada pelo diretor para justificar os procedimentos (Anotações do Caderno de Campo, 11 de
maio de 2007).
Vidas que desafiam corpos e sonhos 116
que sua presença consta como obrigatória desde a primeira Resolução do CFM.
150
W.P.S. foi entrevistada em momento posterior à cirurgia. Processo de W.P.S.- PARECER SOCIAL N.º 01/03
Pró-Vida.
151
Processo de E.S.F..
Flavia Teixeira 117
152
Processo de V.X.M. Laudo Psiquiátrico nº. 801/2001-SPL p.2.
153
Processo de E.S.M. Laudo Psiquiátrico nº. 022/2003- SPL p.2.
154
O mesmo fragmento é encontrado no Processo de J.C.S. Laudo Psiquiátrico nº. 696/2002- SPL , p. 3.
155
Processo de R.R.F. Laudo Psiquiátrico nº. 469/2001-SPL p.1.
156
Processo de G.S.B. Laudo Psiquiátrico nº. 610/2001-SPL p.2.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 118
157
Discussão desenvolvida no Laudo Psiquiátrico nº. 802/2001 de E.P.C..
158
www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2002/1652_2002.htm consultado em 04/03/2006.
159
Este fragmento consta no processo de S.C.G., sendo parte de uma discussão dos peritos do Institutos Médico
Legal sobre a pertinência de se considerar a homossexualidade como uma patologia.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 120
cultural mediante o qual vem materializado corpos, gênero e desejos - como revelariam os
fragmentos dos processos em que as falas das/os entrevistadas/os sugeriam o que poderia,
num primeiro momento, ser interpretado apenas como a existência de uma suposta postura
homofóbica, encoberta ou explicitamente colocada como: “odeio homossexuais”160, “não
gostaria que me confundissem com um homossexual”161, e outros. Um fragmento de
entrevista que, ao ser enfatizado pelos peritos em meio a tantos outros que supostamente
comporiam uma entrevista, retorna com a força de proscrição: “Nunca teve qualquer tipo de
atração por mulheres. Considera que este tipo de vínculo será lesbianismo, o que não aprova.
Considera o homossexualismo um comportamento anti-social e anti-natural”.162
La paura del desiderio omosessuale in una donna, quindi, può indurre uno
stato di panico al pensiero che stia perdendo la sua femminilità, che non sia
una donna, che non sia più una vera donna, che se non è neanche un uomo,
comunque vi assomiglia, e quindi è in qualche modo monstruosa. Oppure in
un uomo, il terrore del desiderio omosessuale può portare al terrore di essere
giudicato femminile, femminilizzato, non essendo più propriamente un
uomo, ma un uomo “fallito” (...) (2005, p. 128)
160
Processo de Bruna.
161
Processo de J.C.S..
162
Laudo Psiquiátrico de W.P.S., fl.19.
Flavia Teixeira 121
Afirma que não teve relações sexuais, mas sim, contatos sexuais. Acredita
que relações, só terá após a cirurgia. (...) Não sabe dizer se no momento da
relação sexual tem ereção. Acredita que isso aconteça, mas que na maioria
das vezes seu psíquico bloqueia essa função masculina. Nunca permitiu ser
tocado no seu órgão sexual. No entanto, já usou seu órgão genital para
masturbação.163
A vigilância percorre caminhos tão íntimos que num dos processos o profissional
considera por bem relatar sobre as preferências sexuais de uma de suas examinandas durante
o ato sexual.
(...) ao relatar algumas de suas experiências sexuais, demonstra que o que lhe
proporciona mais prazer e gozo é a penetração, isto é, o fato de ser penetrado
analmente. O que parece desprazeroso e até mesmo insuportável para o
paciente é ser confundido com um homossexual, além disso, que o parceiro
sexual toque em seus genitais ou sequer demonstre alguma forma de
interesse neles.164
163
Parecer Social 007/02 processo de L.P.P.N..
164
Parecer Psicológico que integra o Laudo de S.C.G..
165
Parecer Social 01/03 integra o processo de L.L..
Vidas que desafiam corpos e sonhos 122
O tipo de relação sexual acima citado seria impossível para uma transexual,
que não tem ereção alguma, evitando mesmo olhar para o próprio órgão.
Aqui entraria a visão médico-psiquiátrica entre, de um lado, o travesti que
afirma sua masculinidade e salvaguarda seu pênis, e de outro o transexual
que não o suporta, sofrendo acessos de melancolia profunda com seu erro de
pessoa, um desvio de identidade.
Uma parte do corpo que não deve ser sequer usada, muito menos nomeada. Esta é uma
prática recorrente também identificada por Berenice Bento que encontrou nas expressões
“aquela coisa”, “aquilo”, “um pedaço de carne”, “uma coisa” uma forma de nomear “esse
pedaço de carne que tenho entre as pernas”. Para a autora, proferir a palavra “pênis” se
equivaleria a tornar-se homem e conclui que “(...) Mais do que dar vida através de um ato
lingüístico, a palavra “pênis” contagia suas identidades” (2003, p. 193). É esta a pista que
escolhi seguir: o nojo apresentado nas entrevistas como um sentimento testemunhal da
incoerência entre o sexo biológico e o sexo psíquico poderia ser lido como o medo que essas
Flavia Teixeira 123
pessoas possuem de que o pênis possa macular o pertencimento ao feminino. Nesse sentido,
observar a reflexão de Mary Douglas (1966) sobre o caráter de desordem implícito no
conceito de poluição/impureza contribui para pensar sobre o risco da ambigüidade que
representa uma mulher com pênis e, principalmente, a ejaculação de seu sêmen. Seria
exageradamente desorganizador das normas classificatórias de sexo e gênero. As pessoas
(transexuais) compartilham do investimento coletivo para condenar qualquer objeto ou
qualquer idéia susceptível de lançar confusão ou de contradizer as (quase) inquestionáveis
classificações.
Diante dessa recusa, o Promotor de Justiça encaminhou novo Ofício com novos
quesitos para que os peritos respondessem, por se tratarem de perguntas teóricas, dispensava a
presença de S.C.G., estabelecendo um prazo de 10 dias para a devolutiva.170 Reproduzo os
quesitos colocados pelo Promotor por se relacionarem diretamente com a preocupação em
identificar o “transexual verdadeiro”:
166
Ofício nº. 084 MPDFT/PRÓ-VIDA de 06 de fevereiro de 2001.
167
Ofício nº. 488/2001 PROT de 23 de fevereiro de 2001 constando o Laudo nº. 017/2001.
168
Ofício nº. 149 MPDFT/PRÓ-VIDA de 05 de março de 2001.
169
Ofício nº. 033/01 DIR IMLLR.
170
Ofício n.º 206/01 MPDFT/PRO-VIDA de 03 de abril de 2001.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 124
171
Ofício n.º 206/01 MPDFT/PRO-VIDA de 03 de abril de 2001.
172
Complementação de Laudos Diversos 017/2001 de 23 de abril de 2001. p 01.
173
Ofício nº. 1389/2001- PROT de 26 de abril de 2001 - Complementação de Laudos Diversos 017/2001 de 23
de abril de 2001. p 01.
Flavia Teixeira 125
O fato de a perita ter se equivocado ao considerar travesti uma das candidatas quando
parecia desejar dizer transexual é relevante, pois enfatiza a dificuldade que os sujeitos
(transexuais) possuem para serem escutados. Na leitura das diferentes peças que compõem os
processos, encontrei um consenso recorrente para a definição diagnóstica do transexualismo
que será corroborada por Elizabeth Zambrano: “uma síndrome complexa caracterizada pela
convicção intensa de ser de um sexo diferente do seu sexo corporal, juntamente com a
demanda de mudança de sexo dirigida ao sistema médico e judiciário” (2003, p.12). A
reivindicação da cirurgia seria uma fronteira reconhecida como legítima entre as categorias
identitárias de travestis e (transexuais), sendo assim, a busca espontânea pela cirurgia de
transgenitalização deveria ser um critério de exclusão significativo. No entanto, a busca por
identificar a travesti é recorrente, como sugere o fragmento do trabalho de Esalba Silveira,
integrante da equipe PROTIG de Porto Alegre:
174
Ofício nº. 1940/2001- PROT de 23 de maio de 2001 - Complementação de Laudos Diversos 017/2001 de 11
de maio de 2001.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 126
175
Fragmento da Música Duplo Sentido. Composição e interpretação: Gilberto Gil. Disco Cidade do Salvador,
1973.
176
Anotações do Caderno de Campo do comentário realizado pelo perito durante visita realizada ao IML. O
perito não se lembrava sobre quem estaria se referindo, mas a partir de um fragmento do histórico de vida
relatado por ele pude associar com a Rita.
177
Correspondência eletrônica recebida através da Lista em 27/09/2007, mensagem nº. 1084.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 128
condenatório atribuído a esta prática pelas candidatas. Ao mesmo tempo em que ela é
silenciada pelos sujeitos que a praticavam, era “desconhecida” pelos profissionais que
compunham a equipe. Ao justificar a escolha do tema para se constituir no elemento gerador
do grupo focal, ela anuncia:
A restrição à prostituição não aparece como integrante dos protocolos oficiais daquele
programa, mas compreendendo o universo das estratégias que as pessoas desenvolvem para
178
Rede Brasileira de Prostitutas. Disponível em www.redeprostitutas.org.br e capturado em 06/10/2007.
Flavia Teixeira 129
responder ao modelo de uma transexualidade aos moldes propostos por Harry Benjamin -
penso na valorização do silêncio e do ocultamento desta experiência. A prostituição é
apresentada como recurso transitório e necessário para a sobrevivência, mas que também abre
fissuras para o prazer. Esse é o lugar mais espinhoso, onde o prazer surge atrelado à idéia da
promiscuidade.
179
Anotações do Caderno de Campo, Brasília, 09/11/2004.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 130
e eu não esteja de plantão?”.180 Nenhuma vez consegui contato com ela através deste número,
mas com um sorriso tranqüilo ela me deu uma das chaves para pensar os laudos: “(...) aquilo
foi uma bobagem, se eu soubesse teria ido vestida assim (roupas femininas). Como eu iria
adivinhar que isso era tão importante? Agora eu sei, eu sei o que eles querem...”.181
Compartilho com Judith Butler do cuidado necessário quando se faz uso estratégico do
diagnóstico. Ao não concordar integralmente com o diagnóstico, por não se perceber
representado por ele, mas diante da necessidade do mesmo, o indivíduo reproduz as verdades
que o sustentam. Através da linguagem, ele reitera o mesmo discurso regulador que pretende
questionar. É uma renúncia à autonomia de falar de si mesmo.
Ao analisar o mito de Antígona, Butler entende que o principal crime cometido por ela
não foi o de ter enterrado seu irmão a despeito da ordem de Creonte, mas o de ter reivindicado
a ação (2003b, pp. 21-2). O ato que está mediado pela linguagem desloca a mulher Antígona
180
Anotações do Caderno de Campo, Brasília, 09/11/2004.
181
Mariana, entrevista pessoal, Brasília, HUB, novembro de 2004.
Flavia Teixeira 131
PARTE II
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 3
182
Inspirado na música: Há uma história triste. Composição de Niquinho e Othon Russo interpretada por Elis
Regina no álbum O Bem do Amor, 1963.
183
Música: Qualquer. Composição de Arnaldo Antunes / Hélder Gonçalves / Manuela Azevedo. Interpretada por
Arnaldo Antunes. CD: Qualquer (Biscoito Fino, 2006)
Vidas que desafiam corpos e sonhos 136
Transgenitalização, ela abriu brechas nos protocolos, pois, no passado, quando era
reconhecida como homem, havia sido casada e tido uma filha, menor de idade quando iniciei
a pesquisa. O ofício de militar, a realização da cirurgia após os quarenta anos de idade, a
autorização para alteração de nome e sexo, os novos documentos e a continuidade do
processo, que não se encerrou aí, são os motivos que transformaram os seus relatos na
urdidura para que outros fios fossem tramados compondo o texto que apresento a seguir.
Cheguei bem cedo à sua casa, um apartamento funcional na cidade satélite de Brasília,
que foi o cenário de muitas entrevistas, muitas conversas e reflexões que contribuíram de
maneira fundamental na construção desta tese. Enquanto ela terminava de se arrumar, eu
observava as medalhas na parede que testemunhavam uma carreira marcada pelas estratégias
de sobrevivência. Foram 22 anos de serviço militar, trabalhando num universo eminentemente
masculino, Carolina suportou uma vivência no gênero masculino por um período pouco
comum para a maioria das mulheres (transexuais).
Não seria a primeira vez que eu acompanharia Carolina em suas consultas. Ela
colocou a faixa no cabelo da mesma forma com que foi fotografada pela Revista Marie
Claire.185 No carro, ela contou o ocorrido no HRAN (Hospital Regional da Asa Norte) e as
situações de constrangimentos a que foi submetida em função do nome de registro. Eu me
lembrei do pedacinho de papel que muitas vezes a vi entregar para os/as atendentes no qual
estava escrito em letras cursivas, legível, mas em tom de súplica: “por favor, me chame por
Carolina”. Ela parecia mendigar o que era direito. Num dos nossos encontros anteriores, eu
184
Brasília, 7 de maio de 2007.
185
Revista da Editora Globo edição nº. 187 de outubro de 2006. Reportagem intitulada “Como é realmente...”
escrita por Ana Holanda disponível em: http://revistamarieclaire.globo.com/Marieclaire/0,6993,EML1289922-
1740-2,00.html consultada em 05 de maio de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 137
havia dado a ela um exemplar da Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde.186 Eu me sentia
impotente diante da situação e o que consegui fazer foi entregar a caixa de lenços de papel
que havia comprado para ela.
Carolina conta que, ainda perplexa com a situação, perguntou sobre seu atendimento,
momento em que o médico, indicando com um gesto de mão a saída do consultório, sem olhar
para ela, finalizou dizendo a ela que fosse em casa, trocasse de roupas e assim seria atendida.
O relato minucioso no prontuário, a cópia do relato que ela mantém em casa e o rubor de sua
face quando relembra o episódio dizem do seu significado, que Carolina identifica como
“cicatriz”. Acredito, assim como Butler (2004), que, se não fôssemos seres lingüísticos, a
linguagem não seria capaz de nos ferir ou causar danos. A autora alerta para o fato de
utilizarmos metáforas de dores físicas para traduzir esse dano em algo inteligível, indicando a
dimensão materializada da relação entre corpo e linguagem.
186
Portaria MS n. 675 de 30 de março de 2006 que aprovou a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde e
consolidou os direitos e deveres do exercício de cidadania na saúde em todo o País – e que estabelece no terceiro
princípio a necessidade da existência, em todo documento de identificação do usuário, de um campo para
registrar o nome pelo qual prefere ser chamado, independente do registro civil.
187
Consta no processo que Carolina procurou o diretor do hospital e foi atendida por outro médico no mesmo
dia. No entanto, foi dissuadida de persistir com a queixa contra o primeiro médico que a atendeu sob a
“orientação” de que, num processo, a situação poderia ser revertida contra ela.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 138
Ela ergue os olhos para ele e enxerga o vácuo onde deveria haver
curiosidade. E algo mais. A total ausência de reconhecimento humano – a
vitrificada separação. Não sabe o que mantém o olhar dele suspenso. Talvez
o fato de ser adulto, ou homem, e ela uma menina. Mas ela já viu interesse,
nojo, até raiva em olhos de homens adultos. Ainda assim, esse vácuo não é
novidade para ela. Tem gume; em algum ponto na pálpebra inferior está a
aversão. Ela a tem visto a espreita nos olhos de todos os brancos. Deve ser
por ela a aversão, pela sua negritude. Tudo nela é fluidez e expectativa. Mas
sua negritude é estática e medonha. E é a negritude que explica, que cria o
vácuo afiado pela aversão em olhos de brancos. (2003, p. 52)
Carolina não era percebida em termos de marcas raciais, como no caso do texto acima,
mas com outras marcas corporais, de gênero, as quais faziam com que ela vivesse,
cotidianamente, ao mesmo tempo, o não reconhecimento como pessoa e a dificuldade em
passar despercebida:
(...) Por mais que eu faça alterações no meu corpo, eu jamais vou me sentir
completa, porque eu nasci no sexo biológico masculino, isso é fato. Não vai
mudar, tem as ações dos hormônios, a gente vai fazendo as mudanças que
são possíveis. Se eu pudesse escolher, queria ter nascido pronta: uma mulher
Vidas que desafiam corpos e sonhos 139
biológica.188
188
Carolina, Anotações de Caderno de Campo, Brasília, junho de 2005.
189
Documentário dirigido por Richard Schmiechen, 1992.
190
A pesquisadora denomina de incorporação o aprendizado feito pelo corpo e nele observável. No seu trabalho,
ela estabelece a diferença do uso de incorporação e adota a perspectiva sugerida por Eduardo Viveiros de Castro
(JAYME, 2001, pp. 9-10).
Vidas que desafiam corpos e sonhos 140
Jayme utiliza na sua pesquisa pareceu-me sugestiva para somar ao que Judith Butler chamaria
de repetição estilizada de atos:
191
O autor traduz o termo embodiment por incorporação, aqui adoto essa mesma nomenclatura por entender que
o contexto do trabalho distancia a possibilidade de que o leitor possa associar incorporação com o sentido de um
transe mediúnico, mas reafirma a perspectiva do que se torna material (VALE ALMEIDA, 1996).
Vidas que desafiam corpos e sonhos 141
Durante todas essas situações externas, eu permanecia atenta aos olhares dos outros.
Esses olhares também são flagrados por outra das minhas entrevistadas, Rita:
Depois dos hormônios masculinos, por causa das mudanças físicas, a parte
emocional também ficou abalada. Eu nunca deixei de ser mulher
internamente, mas deixei a vida para viver o papel masculino. Eu acho que
da forma como fiquei com o engrossamento da voz, a estrutura muscular, o
desenvolvimento da genitália eu achava que não teria mais nenhuma chance
de viver no feminino. Eu passei a viver o papel masculino diante da
sociedade. Mas quando saiu a reportagem de Roberta Close falando sobre a
cirurgia e dizendo que os hospitais brasileiros fariam a cirurgia eu voltei a
pensar... mexeu comigo. Eu comecei a pensar se apesar da minha
constituição física, apesar do prejuízo que eu tive, será que eu deveria
continuar nessa minha vida masculina só para a sociedade ou se eu merecia
uma segunda chance. Apesar de minha forma física. A forma física para
192
Rita, entrevista pessoal, Brasília, maio de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 142
mim é uma grande preocupação. Mesmo que eu fosse uma mulher de voz
grave, ou de uma constituição problemática, eu mereço viver como eu
sempre me vi. Eu precisava dar uma segunda chance para mim.193
Essa nova chance estaria marcada pelos pressupostos dos saberes médicos e jurídicos.
Estar na sala de recepção do hospital era a repetição de um ritual que se instaurou em 1997.
Permanecemos sentadas na sala de espera pelo tempo que Carolina considerou necessário.
Para mim, havíamos terminado a nossa missão194, mas para ela ainda não. Percebi a sua
intenção de rever os colegas do tempo de atividade e ficou por ali, na tentativa de que alguém
parasse para conversar. Um homem aparentando a mesma idade que ela se aproximou; sem
saber ao certo como se dirigir, evitou nomes e artigos, tornando a conversa quase
monossilábica; num instante, eu havia me transformado no alvo da atenção do militar. Afinal,
estávamos entre desconhecidos, pois ele não sabia nada de Carolina, a quem não reconhecia
como sendo o seu colega de destacamento. A conversa foi breve, nos levantamos e voltamos
ao estacionamento do hospital.
Do hospital, ela me convidou para irmos até seu antigo local de trabalho. Embora
estivesse no mesmo espaço geográfico, esta seria a primeira vez que me levaria até a Base.
Passamos em frente à sede da administração, ela me disse: “se lembra quando eu te contei que
fiquei detida quando procurei o Pró-Vida? Que sofri ameaças de prisões? Essa foi a última
vez que estive aqui”.
193
Anotações do Caderno de Campo, maio de 2007.
194
O termo missão foi aqui utilizado pela interlocutora e, no universo militar, serve também para designar uma
incumbência ou tarefa recebida de um superior sobre a qual não se tem muitas informações.
195
A entrevista circulou no Jornal Correio Braziliense, em 19 de Setembro de 2000, e está disponível apenas
para assinantes no seguinte endereço: http://buscacb2.correioweb.com.br/correio/2000/09/19/A10-1909.PDF.pdf.
No entanto, uma reportagem de igual teor, realizada por Cecília Maia, intitulada “Cabo XXX XXXX, mas pode
chamar de XXXXX: No primeiro caso de transexualismo nas Forças Armadas, um cabo da Aeronáutica anuncia
que vai mudar de sexo”, encontra-se disponível no Site da ISTOÉ Gente Online em:
http://www.terra.com.br/istoegente/61/reportagem/rep_luiz_carlos.htm consultado em 18/05/04.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 143
ocasião:
A exigência de vestir roupas masculinas após o impacto causado por sua visibilidade
remete ao argumento de Eve Sedgwick: “assumir-se não acaba com a relação de ninguém
com o armário, inclusive, de maneira turbulenta, com o armário do outro” (2007, p. 40). A
complexa relação de Carolina com o armário pode ser compreendida quando ela relata o
cotidiano de seu trabalho como militar. O seu projeto de revelação do segredo é radical, pois,
diferentemente das pessoas gays, que, segundo Eve Sedgwick, estabelecem com o armário
uma relação formadora, uma característica fundamental e constante na vida social, no caso de
Carolina, uma vez tendo saído dele, não existiria espaço para retorno. Voltarei a essa
discussão a partir das histórias de outras pessoas (transexuais) que optaram pelo anonimato.
Na história de Carolina, a metáfora do armário recebe um tom especial, essas cores se re-
aparecem em outras histórias, ainda que vividas em espaços geográficos diferentes.
Ela desempenhou uma carreira considerada exemplar. Até a data de sua aposentadoria
por invalidez, foi reconhecida como competente.197 O diagnóstico de transexualismo marcou
196
Anotações de Caderno de Campo, Brasília, dezembro de 2005.
197
Carolina preserva em uma caixa, separadamente, os Boletins onde foram publicados os elogios sobre seu
Vidas que desafiam corpos e sonhos 144
o final da carreira militar de Carolina, conforme parecer emitido por junta médica oficial
através da perícia realizada em fevereiro de 2000:
O conjunto de negativas apresentadas no laudo diz, ou supõe dizer, tudo que Carolina
não é, e também tudo que pode exercer no “mundo civil”. O que o texto não explica é o fator
que a tornou incapaz para o serviço militar.
desempenho.
198
Anexo do Processo de J.C.S..
Vidas que desafiam corpos e sonhos 145
199
Adaptada da Música: Minha vida, minha voz. Interpretada por Caetano Veloso. Compositor Caetano Veloso.
CD: Livro 1997 – Polygram.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 146
ser lembrado e do que deve ser esquecido. As fotografias do passado, e, mais especificamente,
do passado pessoal, podem ameaçar esta tentativa de controle da memória ou do
esquecimento, pois interpelam a memória ao “multiplicá-la, dando-lhe uma precisão e uma
verdade visuais nunca antes atingidas.” (LEITE, 1998, p. 37).
escondida no seu passado. Para ela, as fotografias reproduziriam as provas de um relato sobre
a infância, testemunhos de uma vivência relatada tantas outras vezes em entrevistas e
consultas com os profissionais: “Posso sim mostrar as fotos para você. Tenho uma em que
você perceberá como é verdadeiro o que falo, a imagem de uma menina fica evidente na foto,
e criança não sabe mentir, nem imaginava o que acontecia comigo”.200
O acesso às fotografias ou o convite para visitá-la em sua casa fora sempre postergado.
Até que, em outubro de 2007, convidou-me a ir a sua casa. Já tinha transcorrido parte de
nossa entrevista, quando me levou até seu quarto para mostrar as fotografias dos pais e avós já
falecidos dizendo “estes são meus mortos”. A fotografia em preto e branco ficava
dependurada na parede lateral à cama. Era o registro do casamento de seus pais e ela falava
com admiração do avô que havia “mudado de nome para mudar de vida”. Tentei compreender
melhor em que teria consistido essa mudança, mas ela se mostrou reticente e retornamos para
a sala. Pude observar que havia, ao lado daquela, uma outra fotografia, agora de crianças,
provavelmente ela ali estaria, pois se pareciam com as irmãs, que eu acabara de conhecer.
Retornamos à sala e ela me mostrou as fotografias expostas sobre a estante, fotos de seu
sobrinho, que ela chama de filho por vezes, e três fotos suas aos 20, 24 e 26 anos. Aqui ela se
apresenta para mim: “essa sou eu”. Nenhuma fotografia de sua infância ou adolescência,
mesmo diante de minha pergunta sobre a fotografia que havia visto na parede do quarto. A
conversa sobre fotos se encerrou com uma negativa.
200
Danielle, entrevista gravada em Goiânia durante o XIII Entlaids.
201
A utilização das fotografias como constitutivas das pesquisas etnográficas requer um tratamento teórico-
metodológico que exigiria uma discussão sobre imagem, memória e registro para qual não me percebo
preparada.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 148
No dia de meu regresso, outro pedido para nova fotografia trazia de volta a questão
que ficaria esquecida no caderno de campo. Essa nota do caderno de campo somente adquiriu
sentido quando, no momento da elaboração deste texto, em que o ato de escrever e o ato de
pensar são solidários, a nota do Caderno de Campo promoveu uma ligação entre o estar lá e
a construção do texto (OLIVEIRA, 1996, p. 31). Com seu pedido para me fotografar,
Carolina me dizia que não são todas as fotografias que não representam, ou que representam o
não desejado. Isto é, o significado da fotografia não é fixo. O que hoje é uma lembrança
agradável pode amanhã ser algo a ser esquecido. Durante a pesquisa, foram comuns os relatos
sobre a destruição das fotografias, na sua maioria, queimadas ou rasgadas. Esses relatos
expressam o intenso desejo de esquecer o passado. Queimar e\ou rasgar não é simplesmente
jogar fora. É o gesto de destruir que faz transbordar o sentido do desejo e explicita a
intencionalidade de apagamento de uma história, considerando que os vestígios (cinzas ou
pedacinhos de papéis) não deixam pistas. Nos términos das relações afetivas, freqüentemente,
as fotografias que antes representavam os casais são recortadas de forma que o “outro” seja
arrancado da cena. Nesse procedimento permanecem os vestígios, a lembrança dos eventos
capazes de acionar novamente a cena, o outro permanece na ausência. No entanto, ao destruir
as fotografias, as entrevistadas acionaram o esquecimento. O desejo do apagamento do
passado marcou uma parte das recusas de participação nesta pesquisa.
202
Anotações do Caderno de Campo, Brasília, 09/10/2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 149
entrevista, no dia e horário combinados estava lá para o que deveria ser a primeira entrevista.
No entanto, ela não compareceu e eu retornei, sem entrevista. Considerando que seria difícil,
mas não necessariamente impossível, retomei os contatos posteriormente, mas sem sucesso
para agendar nova entrevista, apesar da solicitude com que me respondia ao telefone. A outra
mulher (transexual) que também se submeteu ao processo cirúrgico após o ingresso no
Programa de Transgenitalização, contatada por telefone, se recusou a participar da pesquisa,
alegando desejar que sua transexualidade fosse esquecida. Completando o grupo das três
interlocutoras que realizaram o procedimento cirúrgico a partir do Programa de
Transgenitalização, mas dispondo de recursos próprios, com a primeira inscrita nem sequer
foi estabelecido o contato por determinação do Promotor de Justiça. Inicialmente, este
informou que essa pessoa já vivia e era reconhecida como mulher sem que as pessoas
soubessem de seu passado e, portanto, não permitiria o acesso a ela.
Não vou ficar descrevendo sobre o passado, pois nasci (pela segunda vez)
aos 18 dias de Dezembro de 1998, aos 31 anos, já sabendo cozinhar, lavar,
passar, bordar, ser “Amélia” e amante, quando então “faleceu”
definitivamente meu irmão gêmeo, que coabitava o corpo, que hoje é
somente meu.203
Minha mãe estava ao meu lado no dia da cirurgia, ela estava feliz e dizia que
esteve presente nos meus dois nascimentos e eu disse: “não, nascimento foi
apenas este, o primeiro foi um parto”.204
203
Depoimento disponibilizado no site Transexual, gerenciado pelo Programa de Transgenitalização de São José
do Rio Preto. Disponível em www.transexual.com.br capturado em 23/02/2002. Posteriormente, entrevistei a
autora deste depoimento que foi a primeira mulher (transexual) a ser submetida ao processo cirúrgico por esta
equipe e, na ocasião da entrevista, reiterou a afirmação acima além de outras contribuições que serão pontuadas
ainda neste capítulo.
204
Anotação de Caderno de Campo do fragmento da fala proferida durante mesa: A Cirurgia de Readequação
Sexual (SRS) realizada no XIV Entlaids em 28/06/2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 150
o contato, ela foi enfática em recusar: “Está tudo tão bem, tão gostoso na minha vida, não
quero tocar no assunto, não quero relembrar”.205
Existem aquelas pessoas que nunca passarão despercebidas, Roberta Close é uma
mulher, é reconhecida como mulher, mas deixou uma história que denuncia seu passado.
Carolina conseguiu um conjunto de mudanças, mas no corpo dela ficaram as marcas que
denunciam o passado. Nunca haverá alguém para quem o passado pode ser totalmente
apagado.206
Ao negar (ou ocultar) o trânsito através das fronteiras, essas mulheres (transexuais)
parecem reafirmar a mesma lógica binária que encarcera os corpos-sexuados. Contudo, o
medo da revelação do masculino aponta para a instabilidade das categorias
masculino/feminino. Em alguns casos, elas aceitam esse trânsito. Priscilla percebe que ele
pode não ser um prejuízo. Para ela, só é possível existir admitindo a coexistência do feminino
e do masculino, que performariam uma ambigüidade não situada no corpo visível, mas
205
Anotações de Caderno de Campo, Brasília, 09 de outubro de 2007.
206
Rita, entrevista pessoal, Brasília, maio de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 151
incorporada:
Eu sou uma mulher, mas com uma condição diferente. Eu sou sim uma
mulher transexual, não gosto muito desse nome, mas é o que tem disponivel.
(...) Se o cara for fazer parte de meu dia a dia eu vou dizer sim. Eu vou
contar porque eu sou diferente sim, sou uma mulher, não tenho dúvida. Faz
parte de minha história e eu não posso deletar meu passado. (...) Eu me
sentiria mais relaxada, tenho meu histórico. Eu tive uma vivência, eu sou
diferente sim, até a minha pegada é diferente. Tem muitas atitudes de mulher
biológica que eu não tenho e não quero ter nunca. Não quero para mim. O
meu corpo é diferente, tem marcas, até meu abraço é diferente, mais forte,
sei lá...207
Retomo aqui a discussão de Eve Sedgwick (2007, p. 22), para quem “Mesmo num
nível individual, até entre as pessoas mais assumidamente gays há pouquíssimas que não
estejam no armário com alguém que seja pessoal, econômica ou institucionalmente
importante para elas.” Para a autora, a elasticidade da norma heterosexual é responsável pela
construção e manutenção das paredes que atualizam os diferentes armários cotidianamente, é
uma relação que não se esgota no binômio público/privado; revelar/esconder. Para as pessoas
(transexuais) esta relação com o segredo também é negociada cotidianamente, mesmo após a
cirurgia.
Do universo inicial de pesquisa, Diogo foi o único homem (transexual) que consegui
acessar, apesar de seu desejo manifesto de esquecer e ser esquecido. Esquecer o passado é
uma preocupação para ele, principalmente agora que seu nome e sexo foram alterados no
registro civil. A entrevista com Diogo foi mediada por Carolina que, após o almoço em sua
casa, telefonou para ele e pediu que falasse comigo. A sugestão de que a entrevista
transcorresse no pátio da Universidade partiu do entrevistado. Combinamos num local de fácil
acesso e, no horário acertado, lá estávamos. Já havíamos conversado, na Promotoria de
207
Priscilla, entrevista pessoal, Brasília, outubro de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 152
Justiça, na ocasião da assinatura do termo de consentimento, mas este foi efetivamente nosso
primeiro encontro. Não utilizei equipamento para registro da entrevista. Para mim, a sua
participação espontânea acenava para a possibilidade de uma interlocução não mediada pela
necessidade de responder a um script.208
Apesar de, no corpo, ainda ser recorrente a lembrança de seu nascimento em outra
posição, ele me diz da insegurança de ter um relacionamento afetivo-sexual em que todo o
passado teria que ser revelado, mas não é a ausência do pênis que surge como a preocupação
central. “Ainda fico inseguro de levar uma namorada na minha casa, acredito que meus pais
olhariam como se fosse uma relação lésbica, isso é difícil para mim”.210
Apesar da neutralidade da minha família, creio que até agiriam de bom grado
se eu pedisse para contribuírem na entrevista, apesar do constrangimento
208
Anotação de Caderno de Campo, Brasília, maio de 2007.
209
Título Original: Boys Don't Cry, EUA/|1999. Direção de Kimberly Pierce.
210
Diogo, entrevista pessoal, maio de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 153
velado que percebo às vezes. Entretanto, espero que compreenda que, agora
que finalmente estou na reta final para regularizar minha situação, prefiro
que esqueçam o meu passado, que não é dos melhores a ser lembrado. Como
eu comentei com você anteriormente, acho que eles ainda não me vêem
como XXX, e falar do meu passado só vai piorar isso.211
Para Diogo, seu reconhecimento como homem passa pelo convencimento de sua
família. Não percebo aqui a preocupação com a homossexualidade como uma questão fóbica,
mas relacionada ao sucesso\fracasso de um projeto identitário. Para Diogo, ser considerado
como lésbica era um problema porque essa percepção o re-conduziria à posição de mulher,
da qual se havia deslocado e não se reconhecia.212 O receio desses interlocutores encontra
ressonância em fatos concretos, como relata Susan Clayton (2004) no artigo intitulado “O
hábito faz o marido?”. Ela analisa a repercussão do caso de James Allen213, um homem
(transexual), e deixa pistas sobre a prevalência dada ao sexo biológico para indicar uma
verdade sobre os sujeitos que se construiu a partir do final do século XVIII e se tornou
hegemônica no século XX (LAQUEUR, 2001). Observando os desafios enfrentados pelos
homens (transexuais) na caminhada do construir-se outro, eu parafrasearia o título do artigo
perguntando: “A biologia desfaz esse marido?”.
211
Diogo, fragmento de correio eletrônico, junho, 2007.
212
Diogo, entrevista pessoal, Brasília, maio de 2007.
213
James Allen viveu como homem e somente depois de sua morte, em 1829, a partir da constatação médica,
tem sua condição biológica identificada e seu casamento, até então interpretado dentro do marco da matriz
heterossexual, passa a ser questionado e sua vida esquadrinhada. Sua companheira passa a ser lida através da
acusação de uma relação lésbica.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 154
214
Danielle, entrevista pessoal, anotações do caderno de campo, Brasília, novembro de 2005.
215
Gender Trouble (1990) pode ser considerado como o primeiro trabalho de impacto desta autora que,
juntamente com o livro Eve Sedgwick, A Epistemologia do Armário (1990), constituíram um marco no campo
dos estudos queer. Entendo que a metáfora utilizada pela autora objetivava desnaturalizar os gêneros
demonstrando a possibilidade de aprendizado e imitação dos mesmos. Posteriormente, a autora em Bodies that
Matter (1994) analisa o jogo de gênero das travestis esclarecendo - o que considerou como equívocos de
interpretação de sua teoria – que performatividade não estava associada à idéia de uma representação de papel
de gênero e nem a paródia se relacionaria ao binário real/imitação. Performatividade novamente será apresentada
como a reiteração de normas que são anteriores ao agente, e que constituem efeitos de real ou natural em função
de reiterarem práticas já reguladas, normas ou um conjunto delas, um conjunto de imposições que criam
artificialmente o “natural”. Em Undoing Gender (2004), serão as experiências das pessoas transexuais e
intersexuais que trarão elementos para sua reflexão que incorpora as críticas e refina os argumentos que
inicialmente foram colocados a partir da experiência da drag estadunidense, principalmente ao incorporar as
possibilidades da tecnologia em reconstruir um lugar para a natureza no realinhamento dos corpos/gêneros e
desejos.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 155
possibilitaram compreender a afirmação proposta por Berenice Bento (2003, p. 110), de que
mesmo na reivindicação da cirurgia, no apelo das normas, a transexualidade possui um
potencial desestabilizador. Essa perspectiva é compartilhada por Elisabetta Ruspini (2008, p.
86), para quem a transexualidade é um desafio quando nos distanciamos da explicação
reducionista de serem pessoas presas num corpo equivocado e compreendemos que são
pessoas que combinam os conceitos de masculino e feminino experimentando em graus
diferenciados o “nomadismo”, a hibridação, a contaminação entre o ser homem e ser mulher.
216
O mesmo citado por Diogo.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 156
Buscar uma explicação capaz de dar sentido à sua experiência parece ser um
movimento que reverbera no discurso de todas/os os/as interlocutores. O termo
transexualismo é o ato lingüístico, um enunciado médico que valida e constitui o sujeito
transexual. O reconhecimento de compartilhar e nomear experiências foi também significativo
para Laura: “Eu, no entanto, começava a não me sentir mais sozinha, em qualquer parte do
mundo tinha alguém como eu”.218 No entanto, Elisa Arfini (2008) analisando a autobiografia
de pessoas (transexuais) problematiza o que considera como a construção de um nova verdade
essencializada sobre a transexualidade, agora não mais ancorada na biologia, mas deslocada
para o sentimento: “sentir-se presa/o no corpo errado” passou a ser considerado o locus
privilegiado onde reside a verdade do corpo. Para a autora, a proposta de uma percepção da
transexualidade como algo a que o sujeito deve se conformar em razão de um sentimento sob
o qual não tem nenhum controle nem autoridade resultaria em sujeitos politicamente frágeis.
Nessa perspectiva, considerar o sentimento como um dado pré-discursivo seria reconhecer
que o gênero reside em um lugar imune ao social. Nas palavras da autora:
As reflexões de Elisa Arfini estão afinadas com a percepção de Judith Butler, para
quem “os discursos, na verdade, habitam corpos. Eles se acomodam em corpos; os corpos na
verdade carregam discursos como parte de seu próprio sangue. E ninguém pode sobreviver
sem, de alguma forma, ser carregado pelo discurso” (BUTLER, 2002, p. 163).
Compreendendo que as normas de gênero regulam o reconhecimento e não contemplam a
existência e a narratividade das pessoas (transexuais) – supostamente fora da esfera do
discurso - estas estariam relegadas à loucura ou à mentira:
217
Ricardo, entrevista pessoal, São Paulo, junho de 2007.
218
Laura, entrevista pessoal, Brasília, Consulta Nacional sobre DST’s/Aids, Direitos Humanos e Prostituição,
fevereiro de 2008.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 157
(...) Com tempo, o que é mais fácil de esconder (ou talvez menos
perceptível) aos 13 anos, se torna mais difícil aos 16,17 anos, quando os
outros começam a cobrar mais masculinidade dos rapazes. Esse foi o meu
caso, não conseguia me adaptar ao sistema e me integrar a ele se tornava
cada vez mais difícil. Orava [....] para que me ajudasse a resolver minhas
depressões e me ajudasse a mudar meu jeito de ser. Não conseguia
simplesmente mudar meu modo de agir. Era muito difícil. A idéia do
celibato nem não era tão assustadora quanto o fato de ser torturada todos os
dias tentando agir de um modo que não era o meu real. Sentia que minha
vida era uma fraude. Uma grande mentira.219
(...) a gente criava animais, galinhas, patos e até porcos. Eles capavam os
porquinhos quando chegavam ao chiqueiro. Eu ouvia o meu avô
conversando com meu pai e dizia que o porco quando capado ficava igual
fêmea. Aquilo me perturbava, eu ficava assim sem entender... Perguntava ao
meu avô se o porco criaria uma perereca e ficaria igual a uma porca. E ele
não gostava de responder, dizia que era uma pergunta indecente. Então eu
ficava acompanhado o crescimento do porco e observando se ia nascer a
pererequinha. Assim, no meu caso eu ficava imaginando que poderia
acontecer comigo, que minha genitália iria se transformar numa vagina.220
Essas proibições nem sempre resultam numa acomodação às normas, numa obediência
219
Laura, entrevista pessoal, Brasília, fevereiro de 2008.
220
Carolina, entrevista pessoal, Brasília, agosto de 2005.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 158
(...) fui ao banheiro dos meninos, é claro. E fiquei feliz ao perceber que um
amiguinho também fazia xixi sentado. Ele respondeu: operei a fimose.
Pronto. Era a explicação que me faltava. Cheguei em casa dizendo que havia
operado a fimose. Minha mãe queria morrer (risos).221
A busca da cirurgia de Carolina pode ser compreendida como uma das condições para
tornar seu corpo inteligível. A metáfora da mente aprisionada no corpo equivocado, utilizada
pelo discurso médico/psi sobre a transexualidade, constituiu-se como um significativo efeito
de verdade, mesmo que a cirurgia seja compreendida pelos operadores da medicina psi e
judiciário como uma operação simplista de adequar o corpo à mente como forma de atribuir
coerência ao sujeito. Importa pensar que, nessa percepção, a psique seria a chave para atribuir
sentido a um corpo cuja materialidade é inquestionável, a despeito das divergências
principalmente entre as ciências psi e a neuro-endocrinologia sobre a origem da
transexualidade, em todas as explicações, a mente seria a chave através da qual se acessaria a
representação do corpo. Corpo e mente estáticos e hermeticamente guardados em locais
distintos.
221
Ricardo, entrevista pessoal, São Paulo, junho de 2007.
222
Segundo Larissa Pelúcio (2007), o Dia T é um encontro semanal, nas quintas-feiras, organizado por T-lovers
nas principais cidades do Brasil. Esse ocorreu na sexta-feira e, segundo e-mail recebido na lista do CNT, a data
foi marcada de modo que possibilitasse a participação das congressistas. Este encontro acontecia no bar Elenice
que fica situado no ponto de prostituição reconhecido de São Paulo, considero este um marcador significativo de
como a prostituição é um elemento central nas relações que se estabelecem no universo das travestis e
transexuais.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 159
223
Anotações do Caderno de Campo, São Paulo, 29/06/2007.
224
Não mais do que vinte e cinco pessoas estavam na sala, foi uma reunião comemorada, considerando que este
seria o segundo encontro “real” do grupo que se articulava via lista de discussão na internet. Estive presente na
primeira reunião presencial realizada durante o XIII Entlaids em Goiânia em 2006, e o fato de esta reunião
constar como uma das atividades oficiais do evento apontava para o maior reconhecimento do grupo que, em
2006, se encontrou de modo informal ao lado da piscina do hotel e somavam 12 participantes.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 160
formação e trabalho225, porém, os olhares atentos do grupo estavam focalizados para aquelas
que se apresentavam através do nome seguido da expressão “readequada” ou “cirurgiada”
indicando que havia sido submetida à cirurgia de transgenitalização. Outras duas participantes
destacaram que “não eram cirurgiadas, ainda, mas que possuíam os laudos”.226
Carolina me falaria em outras palavras de sua vivência em outro espaço que não a
militância, mas onde o tema da autenticidade reaparece:
(...) percebo que depois que as cirurgias começaram, houve uma mudança, a
cirurgia fez com que algumas passassem a se considerar melhor do que as
outras. Eu penso que ter conseguido a cirurgia me deu a responsabilidade de
contribuir para a luta das outras e não me fez melhor do que elas, mas nem
todas pensam assim. Humilham as outras porque agora pensam que podem
ter ‘um homem de verdade’.228
225
A qualificação profissional dada através de um reconhecido trabalho artístico ou o ensino superior se
constituía também num marcador importante para o grupo, pois representava o acúmulo de um capital cultural
associado ao fato de pertencerem às camadas da classe média. Entrevistei, formal ou informalmente, a todas e
todos.
226
Anotações do Caderno de Campo, São Paulo, 27/06/2007.
227
Anotações do Caderno de Campo, São Paulo, 29/06/2007.
228
Anotações do Caderno de Campo, retorno do grupo de psicoterapia do HUB, Brasília, 09/10/2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 161
Recorro novamente a Judith Butler (2005, pp. 189-190) para pensar nos sentidos
atribuídos aos corpos. Segundo a autora, esses significados estão marcados pela possibilidade
de se estabelecer uma espécie de relação de mimética, uma transparência entre leitura e
interpretação a ponto de uma não distinção entre o que aparece e o que significa. Neste
momento, abre-se uma brecha onde a impossibilidade de leitura remete, escorrega sutilmente
rumo à autenticidade em que “el cuerpo que representa y el ideal representado se hacen
indistinguibles”. A morfologia (vagina), transformada em referente, adere à representação
mulher, criando um efeito em si mesmo, uma corporificação de normas, um ideal de corpo-
sexuado em que a biologia parece ser o destino. No entanto, a insegurança de Tassiana
demonstra que este modelo morfológico, que regula a atuação, segue instável, nenhuma
atuação pode garantir o convencimento, uma vez que essa negociação está vinculada às
normas do gênero em que um homem e uma vagina são elementos acionados para conferir
inteligibilidade a uma mulher a partir do modelo heteronormativo.
229
Tassiana, entrevista pessoal, Brasília, outubro de 2007.
230
Foi a primeira vez, durante o trabalho de campo, que uma das minhas interlocutoras se interessa por mostrar a
vagina. Mantive desde o início a posição de não solicitar que me mostrassem por considerar um procedimento
desnecessário para a investigação aqui proposta e, inicialmente, recusei quando a Tassiana disse que me
mostraria porque percebi que ela, por saber que eu era professora do curso de Medicina, queria minha avaliação
sobre a cirurgia. Eu expliquei que não entendia nada de cirurgia, nem mesmo de anatomia e que eu lecionava
disciplinas relacionadas com a antropologia da saúde. Ela permaneceu irredutível e, como estávamos em
companhia de Carolina, alegou que queria aproveitar para mostrar a ela também.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 162
Recorrer à família como recurso para ser reconhecida como confiável foi a estratégia
anunciada por Renata ao me receber em São Paulo: “Quis que este encontro fosse aqui, na
casa de minha mãe, para mostrar que nós temos família”.232 Apresentou-me para sua mãe,
sobrinha e filha. Compomos uma mesa de conversação que se manteve por quase três
horas.233 A presença de outras pessoas parecia intencionalmente estabelecida para garantir a
preservação de uma intimidade, (como algo que não se conversa diante da mãe e de crianças,
temas como sexo e sexualidade estariam certamente interditados) ou, talvez, transmitir
segurança diante da ameaça desta “estranha entrevistadora”. Por várias vezes, Renata fala da
preservação de seu anonimato e da exceção que constituía essa entrevista. Embora não tenha
construído um segredo em torno de sua história, a mesma é tratada apenas como assunto da
família.
Renata fala de sua família, de seus irmãos e irmãs, de suas vivências na escola e na
231
Anotações do Caderno de Campo, Brasília, maio de 2007.
232
O contato com Renata foi possibilitado através da indicação de Dr. Carlos Cury. Ela teria sido uma das
primeiras mulheres (transexuais) que se submeteram à cirurgia no exterior, de maneira clandestina, no início da
década de 80. São Paulo, 17 de dezembro de 2004.
233
Este relato compõe a análise desenvolvida no texto apresentado na 25ª Reunião da ABA em Goiânia.
Agradeço a Maria Filomena Gregori a leitura atenta e os comentários que contribuíram para o aprofundamento
das questões sobre família aqui desenvolvidas. Como uma das atividades vinculadas a este evento, a participação
no Workshop Pós-RBA, intitulado Reflexões Avançadas em Gênero, Sexualidade e Saúde Reprodutiva, foi
igualmente importante para as reflexões aqui apresentadas.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 163
rua, de sua recente separação do companheiro, mas é através de sua mãe que chegam os
fragmentos significativos para a discussão aqui proposta. Ela explicita sua dificuldade em
compreender o que acontecia com a filha, “eu sempre aprendi que Deus fez dois, macho e
fêmea, quer dizer masculino e feminino”; para ela, sexo e gênero coincidem e informam sobre
uma performance desejada e aceita:
Quando ela vinha dos bailes com a sobrancelha pintada, com a boca pintada,
aquele vestido decotado, aí eu sofria, pensava, meu Deus, uma hora eles
matam ela. Porque estou te explicando, ela era pela imperfeição, mas era a
coisa mais linda do mundo.
Assim, Renata somente caberia numa classificação outra... Por ela chamada de
imperfeição. Renata desafinou no arranjo do gênero, seu sexo não se restringia aos órgãos
genitais e, muito menos, forneceria os elementos para uma composição obedecendo a uma
lógica binária. A incerteza desta mãe, que, mais de 20 anos após a filha ter sido submetida à
cirurgia de transgenitalização no exterior, demonstrava ainda a insegurança sobre sua “culpa”
na “imperfeição” da filha.
234
No primeiro capítulo, apresentei exemplos de reportagens veiculadas sobre as pesquisas em jornais e revistas.
235
D. Carmem, entrevista pessoal, São Paulo, dezembro de 2004.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 164
por D. Carmem. Considerando que, para ela, o imperfeito se relacionaria diretamente ao sexo,
a depravação seria a falta de acesso à inteligibilidade.
(...) o sexo é, pois, não simplesmente aquilo que alguém tem ou uma
descrição estática daquilo que alguém é: ele é uma das normas pelas quais o
“alguém” simplesmente se torna viável, é aquilo que qualifica um corpo para
a vida no interior do domínio da inteligibilidade cultural. (BUTLER, 1999,
pp. 155-6)
O cenário que Alexandre Saadeh (2004) descreve no início de sua tese é uma igreja
católica onde é celebrada a cerimônia de casamento de uma de suas pacientes, da qual foi
padrinho. A escolha da cena não me parece aleatória, nem mesmo um adereço. Esalba Silveira
(2006, p. 187) também testemunha essa celebração realizada por outra candidata no interior
do Rio Grande do Sul. O casamento se articula perfeitamente com a promessa de
normalização da cirurgia de transgenitalização. Estabelecendo uma comparação entre o desejo
expresso por homossexuais, travestis e mulheres (transexuais) de realizar o ritual do
236
Não me passou despercebido o fato de que entre a cirurgia, realizada clandestinamente, e o casamento, Renata
viveu o processo de alteração judicial do nome e sexo. Tudo anterior à visibilidade alcançada por Roberta Close.
Não tive acesso a estas informações, pois é tratado como parte de um segredo de “família”.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 165
casamento, Elizabeth Zambrano (2008, p. 158) aponta que apenas as travestis e mulheres
(transexuais) manifestaram essa preocupação, sendo que considera ser essa uma forma de
confirmar a nova posição social a partir do lugar ocupado no novo casal que se forma. O
status civil de casada é exibido durante os diferentes momentos de sociabilidade, não passaria
despercebida a afirmação pública de duas militantes durante o XV Entlaids237 na mesa cuja
temática era a cirurgia de transgenitalização. As duas palestrantes enfatizaram a condição de
casadas e uma delas da presença de uma criança em casa.
Para essas mulheres (transexuais), o casamento possibilitaria o acesso não apenas aos
direitos restritos a um grupo que opera reafirmando a norma da heterossexualidade, mas,
principalmente, o reconhecimento da universalidade da condição de mulher.
Para Carolina, o casamento é uma zona de silêncio. Embora ela permaneça residindo
no apartamento funcional em que vivia com a ex-esposa e a filha, não percebi nenhum
vestígio desse período.
237
Realizado em Salvador, nos dias 11 a 14 de setembro de 2008.
238
Florbela Espanca, Exaltação, Livro de sóror saudade.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 166
mudança para o local, há mais de vinte anos. Antes de iniciar qualquer procedimento em
relação ao que considerou a segunda chance, consultou o pároco que, segundo ela,
compreendeu seu sofrimento e afirmou não ser pecado a sua busca por sua “verdadeira
condição”. Carolina percebe o apoio recebido como fundamental, pois, “antes dos psicólogos
e dos médicos, queria saber sobre Deus, pois poderia enfrentar tudo, menos a Ele”.239
Minha mãe antes de falecer [a entrevistada estava com 04 anos] foi a uma
livraria na Praça da Sé e me comprou um livro de historinhas onde abria e
montava um conjunto de figurinhas, castelinhos, essas coisas. O mais
bonitinho era um arco-íris, a história do livro, resumindo, era de que a
pessoa ao chegar ao final do arco-íris e cruzasse por debaixo, mudaria de
sexo, se fosse menino viraria menina e se fosse menina viraria menino.
Mamãe sempre repetia essa história para mim e guardei esse livro até os 20
anos (...) Aos 09 anos, eu não sabia da possibilidade da cirurgia, mas aprendi
algumas coisas na rua. Eu fui para o catecismo e isso foi uma tortura... Tudo
era perigoso e pecado. Como eu sentia que era uma mulher, tive muito medo
de ficar grávida, eu não sabia o que era gravidez, pensava que poderia
engravidar se um menino me pegasse na mão. Então comecei a usar o
anticoncepcional de minha tia. Depois de algum tempo, começou a sair leite
no meu peito, doía muito o seio e um corrimento no meu pênis. A minha
família me levou ao pronto-socorro, os médicos suspeitaram de abuso
sexual, mas depois eu ouvi uma conversa entre os adultos de que ou eu
estava tomando alguma coisa ou estava masturbando, resolvi jogar o
remédio fora porque tive medo de morrer... Levaram-me ao psicólogo que
disse que eu tinha traços homossexuais, eu sabia que era mulher, mas não
podia dizer, eu morria de medo de ser presa, o meu maior medo era a prisão.
A igreja ensinava que a homossexualidade era pecado, tudo era pecado,
homem com homem era pecado, vestir-se de mulher então, nem pensar, era o
pior pecado, eu me lembro do sermão em que este seria o primeiro pecado
que queimaria no céu e alma penaria anos e anos... eu entrei para o meu
quarto e fiquei em depressão porque a minha família era muito temente a
Deus, eu poderia brigar com todo mundo, menos com Deus. O conflito ficou
durante uns 06 meses de minha vida, não ia mais à escola, não saía para
brincar (...) eu já havia chegado à conclusão de que se Deus quisesse me
castigar, me queimar no fogo do inferno, seria quando eu morresse, mas já
que eu estava viva, eu não iria matar ninguém, não iria roubar, nunca
mentiria, mas se ele quisesse me crucificar só porque eu me sentia como
mulher, então poderia me crucificar... Somente aos 17 anos eu ouvi falar
239
Carolina, entrevista pessoal, Brasília, novembro de 2004.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 167
Laura também não poderia perceber, naquele momento, que “o que está errado não é a
prática das pessoas, é a regra, o metro, a norma que quer regulá-la” (COSTA, 2005, p. 92) -
conforme relato a seguir:
(...) Havia noites em que não conseguia dormir, às vezes, começava a chorar
sem saber o que estava sentindo. Sentia-me como se não fosse real. Como se
nada na minha vida fosse real e que algo de ruim estava para acontecer.
Tinha períodos de depressão de meses, mas tudo isso era invisível à minha
família que nunca tomou partido de nada. Conhecia as Leis de [...] Deus
sobre a Homossexualidade. Procurei me aprofundar e estudar sobre o
conceito da bíblia para saber se os sentimentos que invadiam a minha cabeça
desde que me dei por conta que eram impuros diante de Deus. O que eu não
conseguia era fazer a perfeita dissociação entre as práticas que Deus
condenava e o meu jeito de ser, que era algo mais questionado pelos outros
de fora. Eu nunca tinha praticado nenhum tipo de pecado. Mas meu modo de
ser era questionado pelos outros [ ]. Meus jeitos de falar, de gesticular e de
raciocinar eram femininos, embora eu os tentasse camuflar. Que tarefa
árdua! Um peso. Um espinho na carne que eu deveria carregar para o resto
da minha vida. A única coisa intrínseca nesta história era simplesmente o
fato de que eu me ressentia pelo que as pessoas insinuavam, mas não me
sentia envergonhada pelo meu modo de ser. Embora eu concordasse com o
modo de pensar de Deus sobre a homossexualidade, e sobre ter relações
homossexuais ou mesmo ser homossexual, eu não achava que havia nada de
errado no meu modo de ser. Achava que embora eu nunca fosse ser
homossexual aquele jeito meu era assim, era bom e eu gostava e ninguém
tinha que ficar reclamando dele. Eu era assim mesmo, não forçava nada. E
eu não retinha justo mudar meu jeito de ser, que era bondoso, carinhoso e
cuidadoso.241
240
Marina, entrevista pessoal, São Paulo, junho de 2007.
241
Laura, entrevista pessoal, Brasília, fevereiro de 2008.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 168
Esse não foi o único episódio em que a temática religiosa foi contemplada nesse
evento. O encerramento foi uma encenação teatral pelo grupo de integrantes da Comunidade
Cristã Nova Esperança. O enredo tratado ficou centrado na relação entre a exclusão e a
aceitação de uma travesti pela família, permeado por conteúdo cristão. A música intitulada
Segura na mão de Deus244 encerrou o evento. Cantada por toda a platéia, algumas de olhos
fechados, outras numa gestualidade singular se abraçavam, e muitas também acompanhavam
com movimentos de quadris, pernas e braços que lembravam outro ritmo musical, mas a letra
242
Seminário Religião e Sexualidade: convicções e responsabilidade, organizado pelo Centro Latino-Americano
em Sexualidades e Direitos Humanos (CLAM) em 2003.
243
Anotações do Caderno de Campo sobre a Mesa: Pais, Filhos, Relações de Afetividade e Família. São Paulo,
30/06/2007.
244
Música interpretada por Nelson Ned, no Álbum O Poder da Fé, 1998.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 169
A recusa de um Script
Essa questão, que até então era acompanhada através dos debates teóricos em torno da
sujeição à cirurgia, foi trazida por Rita em outubro de 2005. A sua desistência em se submeter
à cirurgia provocou nas pessoas que acompanhei diferentes atitudes ancoradas no diagnóstico:
não seria Rita transexual?
(...) posso afirmar que as travestis são pessoas que se entendem como
homens que gostam de se relacionar sexual e afetivamente com outros
homens, mas que para tanto procuram inserir em seus corpos símbolos do
que é socialmente tido como próprio do feminino. Porém, não desejam
extirpar sua genitália, com a qual, convivem sem grandes conflitos. (2007, p.
34)
245
No entanto, ressalto que esse mesmo uso (re)atualizado por Hélio Silva em 2007 possui um sentido diferente,
entendo ser problemática a utilização que o mesmo faz do termo “operação transexual” ao legitimar a cirurgia
como capaz de conferir identidade às pessoas.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 170
Impossível, uma transexual só fica sem a cirurgia enquanto não está ao alcance dela, depois
que está perto, não, não, ela não desiste. Desconfio dessas transexuais assim...”.246
Essa desconfiança surge compartilhada mesmo pelas pessoas que estão inseridas nos
movimentos sociais. A definição de transexual acionada por Clarissa, que pensa a
transexualidade do lugar de psicóloga e mulher (transexual), passa pelo marcador da cirurgia:
Você pode se reconhecer como mulher, pode reivindicar que é mulher, mas
dizer que é uma mulher (transexual) não. Pela minha vivência transexual, eu
posso dizer que não seria, porque tem uma queixa. Uma queixa na
transexualidade comum é “minha prática sexual é horrorosa, porque eu não
estou bem com meu corpo, não sou completa”. [Na transexualidade] tem um
mal estar em relação à genitália. Quem se sente mulher tendo seu pênis, não
precisa se dizer transexual, pode ser... Dizer outro termo.247
Uma semana antes da cirurgia, eu não conseguia dormir... Sabe quando cai a
ficha? Não é para mim (a cirurgia), até esse momento eu não tinha nenhuma
dúvida, eu tive um ataque de pânico, estava usando medicamento para
dormir. Eu não estava dando conta, o que resolveu mesmo foi abrir mão
naquele momento da cirurgia. Isso não significa que é uma decisão
definitiva, talvez em outro momento de minha vida, mas se você me
perguntar sobre minha vida, aos 08 anos de idade eu não imaginava que
estaria vivendo como estou hoje.248
246
Tassiana, entrevista pessoal, Brasília, outubro de 2007.
247
Clarissa, entrevista pessoal, Brasília, fevereiro de 2008.
248
Rita, entrevista pessoal, Brasília, dezembro de 2006.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 171
como minhas roupas, não gosto de brilho e purpurina”. O cumprimento de nossos cabelos foi
o identificador acionado por ela para dizer do tempo transcorrido desde o nosso último
encontro. As roupas, os cabelos, as unhas, sempre o corpo esteve em questão na relação entre
a pesquisadora e as entrevistadas; situação já vivida também por Juliana Jayme: “o corpo
sempre veio à tona e como pertencente à sua própria formulação de sujeito, à maneira como
eles se colocam frente ao outro, frente àqueles que se identificam com eles, enfim à própria
sociedade”. (2001, p. 16).
249
Anotações de Caderno de Campo, Brasília, Promotoria Pública, dezembro de 2004.
250
Rita, entrevista pessoal, Brasília, outubro de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 172
251
Fragmento da música “A violência travestida faz seu troittoir” Composição: Humberto Gessinger e
interpretada por Engenheiros do Hawaii.
252
Transamérica narra a história de Bree Ozbournei (registrado como Stanley Schupack), uma mulher
(transexual) que está em fase final do processo que a “autorizaria” se submeter à cirurgia de transgenitalização.
A revelação de que possuía um filho adolescente de 17 anos, a remete a uma série de situações de
rejeição/discriminação ao retornar ao convívio familiar.
253
QuinTas Trans é um encontro quinzenal promovido pela Secretaria de Travestis e Transexuais da Associação
da Parada do Orgulho GLBT de São Paulo que mantém um Blog disponível no seguinte endereço:
http://quintastrans.blogspot.com capturado em 15/10/2007.
254
Carolina, entrevista pessoal, Brasília, janeiro de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 173
“Chute essa Bicha”. Esta foi a inscrição no pedaço de papel colado nas costas de
Letícia e com o qual ela teve que permanecer durante um período do dia na escola. Uma
violência não relatada à família, por vergonha. O silêncio de Neil, frente ao episódio de
violência na escola, também foi justificado pela vergonha.
Outros três homens (transexuais) integraram essa pesquisa a partir da presença deles
nas atividades do movimento social, a interpelação causada pelo filme “Meninos não
Choram” ficou evidente na fala de todos, destacada pela situação de violência vivida. Não é o
assassinato que aparece como o elemento mais violento do filme, mas o estupro. A
intencionalidade explicitada no ato: - “Você é mulher e vai servir como mulher” - foi
considerada a relação mais dolorosa do que a morte, porque segundo um dos entrevistados:
“(...) com a morte passa tudo, mas a vergonha de ser colocado como mulher para um outro
homem e ter uma vagina, não, essa não passa nunca”.255
Um calafrio me percorreu quando lendo o artigo de Gabriela Cano (2004) pensei que
Ricardo, assim como outros homens (transexuais), caso viessem a falecer, poderiam ser
255
Ricardo, entrevista pessoal, São Paulo, junho de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 174
enterrados vestidos de mulher, seus túmulos ornados com uma inscrição do nome feminino.
Eu experimentei por duas vezes essa sensação quando do velório e enterro de duas travestis
em Uberlândia e Araguari, respectivamente, ainda me incomoda relembrar a cena do corpo no
caixão envolto em um terno e a fala de uma amiga comum: “se não nos respeitam em vida, o
que esperar na morte?”.
(...) eu não quero participar dos movimentos, eu quero ficar aqui, fazendo
essa minha luta diária. (...) Há alguns dias saiu uma reportagem comigo, eu
não precisava mais aparecer, mas quero que as outras (transexuais) sofram
menos que eu sofri.257
Eu não quero levantar nenhuma bandeira. Eu quero, se possível, passar
despercebida. Estar no posto de trabalho que ocupo, sendo uma mulher
(transexual) se transforma numa batalha diária, se todos devem matar um
leão por dia, eu mato trinta, cinqüenta... Depende do dia. Você sabe o que é
256
Guimarães Rosa, Grande Sertão Veredas.
257
Carolina, Anotações do Caderno de Campo, em 07/12/2004, e reiterada em 09/11/2005.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 175
ser objeto de visitação pública? No dia que ficaram sabendo que eu sou
(transexual), sei lá que nome deram, todos os funcionários deram um jeito de
vir ao meu andar... E isso ainda não terminou...258
Neil relata sua história num entrecruzar de lutas individuais que se somam aos
movimentos coletivos, conforme apontam Richard Miskolci e Larissa Pelúcio:
Estar para além das identidades é uma reivindicação de Neil. Ainda que ele não tenha
se inscrito no Programa de Transgenitalização, nem mesmo tenha uma relação direta com os
sujeitos com os quais iniciei a pesquisa, a inclusão de sua experiência se justifica porque
desestabiliza a partir da experiência da reprodução biológica e a negação da maternidade
como destino do sujeito. Neil é membro da Associação da Parada do Orgulho GLBT de São
Paulo (APOGLBT-SP) e, no Coletivo Nacional de Transexuais, parecia ser um colaborador
atento, que estabelecia com as mulheres e homens (transexuais) uma relação de
companheirismo, mas também de dissonâncias. Partiram dele as expressões e intervenções
que deslocavam as falas identitárias do Coletivo259, foram as incertezas apontadas por ele que
despertaram meu interesse em entrevistá-lo. No entanto, alguns fragmentos de sua história de
vida tornaram-se públicos através de uma entrevista que foi veiculada em revista destinada ao
público Gay.260
“Tudo correu de forma tranqüila e nasceu uma linda menina”.261 Essa poderia ser uma
frase compartilhada por muitos casais ao final de uma gravidez. No entanto, eu desconfiava
de que tivesse sido tão tranqüilo assim. Vagina, útero, ovários, trompas e uma gestação, as
coisas não poderiam ser assim tão “abstratas”. Neil tem uma filha de 14 anos, gestada numa
relação que se configurava como lésbica, até mesmo para ele.
258
Rita, Anotações do Caderno de Campo, em 08/05/2007.
259
Conheci Neil durante o XIV Entlaids, na reunião programada pelo Coletivo Nacional de Transexuais.
260
Reportagem de Márcia Yáskara Guelpa veiculada na revista G on line e que tive acesso nos dias que
antecederam ao encontro em São Paulo.
261
Neil, entrevista pessoal, São Paulo, junho de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 176
A união foi marcada pelo desejo de um filho biológico pelo então casal de mulheres
lésbicas, em que, a princípio, a gestação seria da companheira de Neil; a decisão foi de que
não recorreriam às técnicas de reprodução assistida por questões financeiras e também por
serem solteiras.262 A impossibilidade de que sua companheira engravidasse fez com que Neil
decidisse pela gestação. Um casal de amigos gays foi consultado e um dos parceiros aceitou
participar do projeto para o nascimento desta criança. A participação foi interpretada como
“doação de sêmen” pelos envolvidos. A ausência posterior do pai genético foi um acordo
aceito pelas partes, nenhum pai era pretendido para essa criança. Até então, a ordem estaria
garantida, pois, segundo Marilyn Strathern (1995), a idéia de um filho sem pai não provocaria
um sentimento de indignação moral ao mesmo tempo em que o ato sexual e a concepção
(presentes nesse caso) não cumpririam apenas uma questão técnica, mas garantiriam a
reprodução da “parentalidade como resultado percebido de uma união em que as partes se
distinguem pelo gênero”. O corpo de Neil foi o espaço em que toda essa negociação
aconteceu, embaralhando as fronteiras dos arranjos reprodutivos e desestabilizando as normas
de gênero.
Eu era aceita como lésbica caminhoneira, eu sempre fui a ativa, aquela coisa,
não me rele, não me toque, nem mesmo tirar a roupa, não existe a
possibilidade de me tocar. O amor que eu sentia por ela me levou a fazer
coisas que feriam coisas minhas.263
262
Discussão preparatória para o Seminário Nacional de Saúde GLBT, que abordou entre outras questões, a
disponibilização de tecnologias reprodutivas para as lésbicas. No entanto, ainda nenhum avanço nesse sentido foi
garantido.
263
Neil, entrevista pessoal, São Paulo, 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 177
novamente ocupam um lugar privilegiado. “Foi uma escolha muito difícil e violenta na minha
vida, nunca tinha transado com um homem, muito menos fazer o papel de “passiva” como
uma mulher (...)”.
Neil entende o parto como o demarcador de uma situação ainda de menor controle.
Se, para Strathern, a problemática colocada pelos Trobriands seria a idéia de uma
maternidade sem sexo, penso que o desafio colocado por Neil poderia apoiar a discussão de
uma maternidade sem gênero.
264
Notícia veiculada no site Globo.com com a seguinte manchete: “Thomas Beatie, de 34 anos, irá ao programa
de Oprah Winfrey. Ele se submeterá a uma ultra-sonografia durante o espetáculo”. Disponível em:
http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL385386-5602,00-
TRANSEXUAL+GRAVIDO+CONTARA+SUA+HISTORIA+NA+TV+AMERICANA.html consultado em
02/04/2008. Também a Reportagem intitulada: “Inseminação de transexual grávido foi feita em casa pela
mulher” disponível em: http://noticias.terra.com.br/mundo/interna/0,,OI2726693-EI8141,00.html Consultado em
03/04/2008. No Brasil, o Canal Discovery veiculou em 15/02/2009 a reportagem realizada pela BBC com
trajetória da gravidez, parto e primeiros meses do nascimento da filha de Thomas Beatie.
265
Em 23/03/2009 o site da UOL anunciou outro episódio de gravidez de um homem (transexual), agora na
Espanha. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/bbc/2009/03/23/ult36u46417.jhtm.
Flavia Teixeira 181
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 4
266
Clarice Lispector, Estrela Perigosa.
267
As vozes predominantes foram das mulheres (transexuais). Os homens (transexuais) foram silenciados nessa
trajetória, conforme discutirei na última seção.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 184
268
Anotações do Caderno de Campo, XIV Entlaids, São Paulo, 27/06/07. Agradeço ao Marcos Benedetti por
compartilhar as reflexões durante o Encontro.
269
O XIV Entlaids ocorreu de 26 a 30 de junho de 2007, em São Paulo. É relevante destacar que esse foi o
primeiro Entlaids cuja organização ficou sob a responsabilidade de uma integrante do Coletivo Nacional de
Transexuais. O impacto dessa liderança será percebido na escolha das pautas.
270
No XIII Entlaids observei uma preocupação das mulheres (transexuais) em identificar outras mulheres
(transexuais) que, potencialmente, poderiam integrar ao grupo. Os critérios utilizados eram arbitrários, mas
enfatizavam a forma de portar o corpo, definindo “um jeito de ser transexual” distinto de “um jeito de travesti”.
A preocupação das mulheres (transexuais) em se distanciarem das travestis pode ser identificada na literatura
conforme discutido nos capítulos anteriores. Aqui, a análise dessa reivindicação será ampliada.
Flavia Teixeira 185
271
Anotações do Caderno de Campo, XIV Entlaids, São Paulo, 27/06/2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 186
272
Anotação de Caderno de Campo, São Paulo, 29/06/2008.
273
Identifiquei várias brincadeiras jocosas entre as mulheres (transexuais) que, ao se referirem às travestis,
colocavam o pronome masculino junto ao nome que as identificaria ou se referiam a elas usando o duplo ele/ela
acompanhado por uma expressão de dúvida.
274
Anotações de Caderno de Campo, 30.06.2007. Mesa: “Marketing Pessoal e Ética no Cotidiano de TTs”. Após
a mesa, transcorreu uma reunião das travestis com a equipe organizadora do evento, que foi convocada pela
presidente da ANTRA. Em função de a reunião ter sido anunciada no final de sua fala e enfatizado o caráter
Flavia Teixeira 187
A representante das travestis parece adotar a perspectiva de Judith Butler (2004, p. 35)
de que mesmo o “insulto” pode ser devolvido ao falante de uma forma diferente. A posição
adotada, por ela, é de que a palavra travesti pode se despreender do original e construir um
outro significado.
Esse posicionamento não causa estranhamento; a não assunção pelas travestis de uma
posição de mulher foi identificada por William Peres (2005) e também foi destacada na
dissertação de Rubens Ferreira, que comenta: “(...) na tradição antropológica, os indivíduos
são estudados conforme a classificação que utilizam para si. Por conseguinte, quando
inquiridas se identificavam como mulheres, as respostas negativas evidenciavam que se
reconheciam como travestis” (2003, p. 13). Ao investigar as estratégias definidoras das
performances de homens e bichas no universo das travestis, Leandro Oliveira contribui para a
discussão da não reivindicação da categoria mulher pelas travestis, ao afirmar que “As
travestis não se percebem como – nem desejam tornar-se – ‘mulheres’, mas percebem-se ao
menos em parte ‘femininas’ e consideram essa feminilidade como um valor a ser perseguido”
(2006, p. 36). Estas falas são emblemáticas porque desconstróem e recolocam um conjunto de
discursos sobre as travestis. Ao mesmo tempo em que problematizam a idéia recorrente de
que as travestis se considerariam homens. Estar nesta fronteira.... Reivindicar o pênis sem
necessariamente avocar a posição de homem, construir um corpo feminino deslocado do
status de mulher e transitar nos dois gêneros colocariam as travestis num outro projeto de
reconhecimento que não inclui o ingresso nos coletivos feministas.
fechado da mesma, eu considerei por adequado me retirar ao término da mesa. No entanto, fui convidada a
permanecer na sala pela própria presidente da instituição que justificou às demais dizendo que eu poderia
contribuir e que seria uma pessoa de confiança. Ela já havia explicitado em público que eu seria capaz, mesmo
não sendo travesti nem transexual, de compreender o que significa ser.
275
Programa de Auditório exibido pela Rede Globo de Televisão no dia 03 de setembro de 2008. Disponível
em :http://video.globo.com/Videos/Player/Entretenimento/0,,GIM877780-7822-
KEILA+SIMPSON+DEFENDE+OS+DIREITOS+DOS+TRAVESTIS,00.html consultado em 05 de dezembro
de 2008.
276
Anotação de Caderno de Campo, Salvador, setembro de 2008.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 188
277
Os referidos documentos podem ser consultados no site: www.aids.gov.br. Percebo aqui o primeiro momento
em que, explicitamente, os homens (transexuais) ficaram à deriva do reconhecimento em relação ao acesso à
saúde.
278
Sigo aqui a nomenclatura adotada na I Conferência Nacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e
Transexuais – LGBT - realizada em Brasília/DF, de 5 a 8 de junho de 2008.
279
A separação das travestis também é significativa, pois, embora as travestis se mostrem confortáveis no
movimento LGBTT, nem sempre elas podem ser enquadradas no esquema conceitual da homossexualidade, a
não ser que permaneçamos ancorados na biologia (BENEDETTI, 2005, pp. 51-2).
280
Música: Inútil paisagem, intérprete: Antonio Carlos Jobim, Álbum: Antonio Carlos Jobim's Finest Hour,
2000.
281
Definição de "transexual" para dicionários, e-mail recebido através da lista de discussão em 20/02/2008.
Flavia Teixeira 189
282
Nesta seção, me refiro exclusivamente às mulheres (transexuais) que participam do Coletivo Nacional de
Transexuais; enfatizo que os homens (transexuais) não foram considerados nesse debate.
283
Realizada em Brasília, no período de 26 a 28 de fevereiro de 2008.
284
Embora alguns(mas) integrantes do Coletivo Nacional de Transexuais estivessem presentes, nenhuma fala em
nome deste Coletivo foi registrada. Na programação também não constava nenhuma referência a ele.
285
Segundo Lorenzo Bernini (2008, p. 49), a exemplo do ocorrido no movimento gay e lésbico, em que os
militantes se afastaram da terminologia médica, também as pessoas transexuais reivindicaram o lugar político de
mulheres transexuais e homens transexuais em oposição aos termos transexuais MtF e transexuais FtM
respectivamente.
286
A importância política de romper com a utilização desta terminologia do jargão médico foi discutida por
Vidas que desafiam corpos e sonhos 190
O conflito identificado durante o XV Entlaids poderia ser atribuído ao fato de que não
houve uma discussão ampliada dessa questão no interior do segmento. Nenhuma reunião
presencial do Coletivo Nacional de Transexuais ocorreu no período entre a realização do XIV
Entlaids287 e a I Consulta Nacional sobre DST/Aids, Direitos Humanos e Prostituição, em
fevereiro de 2008, que possibilitasse a discussão e a decisão pela adoção coletiva do termo.288
A) Em tempo...
nestes últimos dias pensei muito em quem realmente sou conceitualmente.
Nesta época pré-cirúrgica, e como disse recentemente em um email anterior,
venho notando todos os problemas que tenho por causa desta
transexualidade que está provisoriamente intrínseca à pessoa [ ] como
nome, genital, impossibilidade de me casar oficialmente, etc, etc; resolvidas
já, de acordo com meu próprio julgamento, questões como hormonização, e
o mínimo de adequação estética do meu corpo com relação ao meu gênero,
Mulher. (...)
290
Convocada por meio do Decreto Presidencial de 28 de novembro de 2007, com o objetivo propor diretrizes
para a implementação de políticas públicas e o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos
de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais – LGBTT, ao mesmo tempo em que pretendia avaliar e
propor estratégias para fortalecer o Programa Brasil sem Homofobia. Sua organização ficou vinculada à
Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 192
As autoras desses depoimentos são (ou foram) reconhecidas como militantes que
trabalhavam em ONG´s ligadas ao movimento LGBTT e atuavam diretamente na elaboração
291
E-mail veiculado através de lista de discussão em 15/10/2008.
292
E-mail veiculado através da lista de discussão em 08/10/2008.
Flavia Teixeira 193
A transexualidade pode ser lida como uma experiência de mobilidade que carrega um
desejo de finitude. Alcançar a “outra margem do rio” e declarar o fim desta passagem. Se para
muitos/as esse lugar é atribuído no momento do nascimento, em função de uma genitália
aparente, para os/as integrantes dessa tese tal posição depende de uma conquista. A questão
maior é que a armadilha desse discurso reside no caminho escolhido para alcançar a outra
margem do rio: a imposição da cirurgia.
Para Judith Butler (2005, p.172), não existe posição de sujeito anterior à enunciação,
acredito que o Coletivo Nacional de Transexuais não deseja ser reconhecido a partir da
enunciação do movimento LGBTT; ou seja, demanda que as possibilidades acionadas para
seu reconhecimento estejam desvinculadas dessa posição. Algumas participantes são
explícitas: “Infelizmente esse tipo de mensagem tem se multiplicado em nossa lista!! Aqui
NÃO É UM ESPAÇO LGBTT !!”293 Outras menos enfáticas, como no e-mail que circulou na
lista após a participação de uma das integrantes em um encontro cuja temática LGBTT
expressa essa separação:
293
E-mail veiculado através da lista de discussão em 07/10/2008.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 194
Nesse sentido, a pauta de lutas das mulheres (transexuais) com o movimento LGBTT
parece frágil. Ao postularem que suas demandas se afastem da luta política deste movimento,
principalmente porque compreendem que sua situação está vinculada ao ajuste da condição de
corpo/mente, as integrantes do Coletivo Nacional de Transexuais não compreendem como
pertinente a sua ligação ao movimento LGBTT, como expresso em algumas mensagens
veiculadas:
294
E-mail veiculado através da lista de discussão em 29/11/2008.
295
E-mail veiculado através da lista de discussão em 15/10/2008.
296
E-mail veiculado através da lista de discussão em 07/10/2008.
Flavia Teixeira 195
297
E-mail veiculado através da lista de discussão, em 29/11/2008.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 196
O caso de Roberta ficou conhecido em todo o país no início deste ano. Cerca
de oito meses após ter recebido o menino das mãos da avó dele - que pediu
para que ela passasse a cuidar do bebê -, o transexual teve que entregar a
criança à Justiça. Na época, o promotor da cidade alegou que o bebê não
podia conviver com um casal "anormal" e não levaria uma vida "normal"
sem a presença de um pai e de uma mãe. Roberta é cabeleireira e mora há
sete anos com o companheiro, de 40 anos. 298
Ao destacar a vagina como a passagem para essa outra territorialidade, essas mulheres
(transexuais) se afastam de um dos pilares das lutas do movimento feminista: a
desnaturalização da posição de mulher. A posição flagrada de algumas integrantes do
Coletivo Nacional de Transexuais, com explícita reiteração das normas de gênero, adesão ao
298
Este é um fragmento da reportagem “Após perder a guarda de bebê, transexual quer entrar em cadastro de
adoção” de Patrícia Araújo veiculada no jornal G1 de São Paulo que circulou na lista em 18/11/2008. Apenas
uma integrante encaminhou uma mensagem resumida com uma exclamação de solidariedade. Nenhuma
discussão política foi desencadeada. A reportagem está disponível em:
http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL865122-5605,00-
APOS+PERDER+A+GUARDA+DE+BEBE+TRANSEXUAL+QUER+ENTRAR+EM+CADASTRO+DE+AD
OCAO.html consultada em 18/11/2008.
299
E-mail veiculado através da lista de discussão em 01 /10/2008.
Flavia Teixeira 197
Para ser lésbica e feminista, não é necessário ter Trompas de Falópio, nós
entendemos como feministas que não podemos considerar algumas formas
anatômicas de nascimento mais legítimas que outras para identificar-se como
mulher, como lésbica e feminista. Nossas identidades são uma mistura de
nossas histórias, elas se materializam em nossos corpos, negar a construção
delas é desconhecer o que somos, inventando uma essência que não existe.301
O e-mail acima sugere que o debate sobre os modos de subjetivação das identidades é
também um desafio para o feminismo. Pensar, no contexto da transexualidade, a
desnaturalização da mulher e a problematização de sua percepção como categoria universal e,
ao mesmo tempo, a (des)estabilização das posições essencializadas (HARAWAY, 2000). No
discurso médico, é recorrente o ditado em que se diz ser mais fácil construir um túnel do que
uma ponte. Reconhecer que o percurso da transexualidade marca de forma diferenciada a vida
dessas pessoas não significa compartilhar da premissa de que a única passagem possível seria
pelo túnel da vagina. Acredito que a reivindicação seria por outras travessias que tenham
túneis, pontes, barcos, atalhos, espaços de livre trânsito. Nesta nova territorialidade, as
mulheres que integram o movimento feminista estariam também se redefinindo, pois se este
lugar de chegada foi construído cirurgicamente, ou não, a natureza seria sempre uma
(in)certeza. Construir um consenso em que, a partir da chegada ao lugar de desejo
(independente do caminho percorrido), se perde a condição de viajante. E, uma vez
300
Declarações da carta elaborada pelas integrantes do CNT e entregue ao Ministro da Saúde na audiência
realizada em agosto de 2008. As discussões que esse posicionamento causou no grupo foram coletadas durante
o XV Entlaids. Anotações do Caderno de Campo, Salvador, setembro de 2008.
301
Fragmento da carta que circulou, em fevereiro de 2007, com uma exposição de motivos pelos quais o Grupo
Aireana do Paraguai justificava a recusa deste grupo em participar do VII Encontro Lésbico Feminista
Latinoamericano e do Caribe, que ocorreu entre os dias 07 e 10 de fevereiro, em Santiago\Chile. Argumentavam
que não poderiam participar de um encontro que negasse a inclusão de mulheres (transexuais). E-mail recebido
através da lista de discussão em 14.02.07.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 198
Considerando que não são todas as mulheres que se identificam com as lutas
feministas, mas que o movimento feminista é um movimento identitário, entendo que a
demanda apresentada é de que sejam reconhecidas como iguais – mulheres –, e esta é uma
luta política que não se vincula à chancela do Estado. Argumento que esse é um desafio para
os coletivos feministas: a construção de uma pauta comum que reconheceria de que se pode
chegar usando outros caminhos, e que a reivindicação da posição de mulher não estaria
subordinada à morfologia da genitália.
302
Antecedendo o Encontro Anual da ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e
Transexuais), em novembro de 2005, um grupo com representantes de 09 Estados da Federação - que se dirigiam
para este Encontro - se reuniu para constituir o Coletivo Nacional de Transexuais. Nesse encontro, foi aprovada a
constituição de uma lista de discussão na internet para alinhar e debater posicionamentos do grupo. Embora não
estivesse presente a esta reunião, fui incluída na lista de discussão logo na sua criação. A lista foi desativada em
23/06/2008 e substituída por outra, na qual me inscrevi. Essa última permaneceu como o principal veículo de
discussão do grupo até a etapa final desta pesquisa. Respeitando as diretrizes de uso da lista, nenhuma mensagem
será reproduzida de forma a identificar o emissor e também serão utilizadas apenas partes de mensagens que
foram enviadas de modo a preservar menções de restrição e/ou privacidade.
303
Evento que aconteceu em Recife de 18 a 21 de maio de 2006. Também o seminário “Fortalecendo,
Articulando e Informando Mulheres Lésbicas, Bissexuais e Transexuais da Região Sudeste e Convidadas”,
promovido pela ABGLT, entre os dias 25 e 31 de julho de 2006, no Rio de Janeiro, antecedendo a Parada Gay
que trazia o lema “Somos Todos Iguais”, reuniu mulheres lésbicas, bissexuais e transexuais. Privilegiava os
temas relacionados às políticas públicas, à saúde integral da mulher, ao preconceito e à violência. Destaco a
presença de Maitê Schneider que, além da participação nas mesas de discussão, foi também uma das modelos da
campanha publicitária da Parada Gay do Rio de Janeiro de 2006 representando as mulheres (transexuais).
Flavia Teixeira 199
totalidade do evento, o que foi negado.304 Esse episódio (acredito que o questionamento da
posição de mulher) repercutiu em outros espaços políticos. Em junho do mesmo ano, a
organização feminista “A União de Mulheres” promoveu o debate: “Transexuais,
Transgêneros e o Movimento Feminista”.305 Nessa ocasião, uma das líderes do Coletivo
Nacional de Transexuais leu um texto de sua autoria que trazia como eixo central o
significado de sua posição de mulher. O texto foi depois replicado em alguns espaços de
militância LGBTT.306
Não seriam todos os movimentos desejados... Nem todas as bandeiras são percebidas
como dignas de serem carregadas. Observo que as mulheres (transexuais) demandam por
integrarem outros movimentos e espaços que congregam mulheres a exemplo do debate
instaurado no movimento feminista, no entanto, não observei nenhuma sinalização no sentido
de reivindicarem pertencimento à Rede Brasileira de Prostitutas.
... Todos os avisos não vão evitar... O que não tem governo nem
nunca terá307
A ausência das travestis e transexuais na mesa “Prostituição e Cidadania: conquistas e
desafios do movimento de prostitutas no Brasil”, no evento com a magnitude do VI
Congresso Brasileiro de Prevenção das DST’s e Aids, promovido pelo Programa Nacional de
Aids e Ministério da Saúde308, não poderia passar despercebida. A sessão foi coordenada por
304
A decisão de vetar a participação das mulheres (transexuais) no evento foi deliberada em plenário, o que
aponta para a ausência do consenso entre as participantes. O argumento para a restrição poderia ter se dado em
função de que elas não se identificavam como lésbicas e o evento seria fechado. No entanto um e-mail na lista do
Coletivo Nacional de Transexuais ressaltava que estava em questão se de fato uma mulher (transexual) poderia
ser considerada mulher. E-mail recebido através da lista de discussão em 21.05.06. Durante o período de
trabalho de campo, nenhuma das mulheres (transexuais) que acompanhei se identificou como lésbica. Nem
mesmo acompanhei qualquer discussão nas listas sobre qualquer uma pauta comum entre o Coletivo Nacional de
Transexuais e o movimento lesbo-feminista.
305
O evento ocorreu em São Paulo, no dia 03 de junho de 2006.
306
Texto disponível no site da G on Line no endereço:
http://gonline.uol.com.br/site/arquivos/estatico/gnews/gnews_filosofando_22.htm consultado em 04 de
dezembro de 2008.
307
Fragmentos retirados da música O que será, composição de Chico Buarque para o filme Dona Flor e seus
dois maridos de Bruno Barreto, no disco Meus Caros Amigos de 1976.
308
Realizado em Belo Horizonte, de 04 a 07 de novembro de 2006. Programação disponível em:
http://sistemas.aids.gov.br/congressoprev2006/2/index.php?option=com_content&task=blogsection&id=6&Item
id=47 consultada em 17 de outubro de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 200
Carmen Lucia de Souza Paz e contou com as presenças de Gabriela Leite (DAVIDA309) e
Leila Barreto (GEMPAC310) representando as suas associações, e também a Rede Brasileira
de Prostitutas. A outra integrante da mesa seria uma pesquisadora que, no entanto, justificou
sua ausência.311
309
Davida é uma organização da sociedade civil, fundada no Rio de Janeiro em 1992, com objetivo de promover
a cidadania das prostitutas. Informações disponíveis no endereço: http://www.davida.org.br/.
310
Grupo de Mulheres Prostitutas da Área Central de Belém é também uma organização da sociedade civil
reconhecida como referência para as questões envolvendo a prostituição.
311
Ao ser anunciada a ausência da palestrante, a representante do Movimento das Prostitutas sinalizou para uma
tensão entre a academia e o movimento social, o que teve sua maior expressão quando finalizou sua fala
direcionando o olhar para a representante do Ministério da Saúde: “o que fica para nós é que nenhum
pesquisador está autorizado a falar sobre o que é melhor para nós sem ouvir o que temos a dizer”. Desde o início
do trabalho de campo, percebo as atitudes de desconfiança e indisposição de algumas pessoas (transexuais),
especificamente do movimento social, em relação aos pesquisadores. Anotações do Caderno de Campo,
05/11/2006.
312
Resultante do acordo estabelecido entre os governos da América Latina e Caribe e organizada pelo Ministério
da Saúde como um compromisso de priorizar, no enfrentamento da Aids, os aspectos relacionados ao exercício
da Prostituição, realizada em Brasília, no período de 26 a 28 de fevereiro de 2008. O reconhecimento da
prostituição em termos de direitos humanos e trabalhistas, visando promover modificações no cenário do estigma
e discriminação, norteou a discussão e a consolidação das propostas que resultaram desta Consulta.
Flavia Teixeira 201
313
Anotações de Caderno de Campo. Consulta Nacional sobre DST´s/Aids, Direitos Humanos e Prostituição,
Brasília, 26 de fevereiro de 2008.
314
Anotações do Caderno de Campo, 28 de fevereiro de 2008. Foi aqui que pela primeira vez ouvi a expressão
“mulheres que vivenciam a transexualidade” sendo empregada publicamente por órgão oficial e Coletivo
Nacional de Transexuais em substituição ao termo “mulher transexual”.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 202
Neste momento, arrisco a estabelecer que uma das explicações para o silenciamento da
prostituição pode também residir na estratégica tentativa das mulheres (transexuais) se
distanciarem das travestis. Conforme discutido acima, o exercício da prostituição pode ser
acionado como uma linha divisória entre travestis e mulheres (transexuais). Esse
“ocultamento” parece demarcar a diferenciação para além da função de um diagnóstico numa
perspectiva ampliada de consolidar uma identidade distinta.
A etnografia realizada por Hélio Silva (1993; 2007) entre as travestis que se
prostituíam na Lapa (RJ) evidencia também estas identidades (con)fundidas no cotidiano
vivido entre as noites. Através do fragmento da reportagem intitulada “Os Travestis da
Vida”316, reproduzido por Néstor Perlongher, é possível perceber que a prostituição se
constituiu no amálgama capaz de situar Roberta Close como travesti (1987, p. 62). Larissa
315
E-mails veiculados através da lista de discussão em 20/06/2008 e 23/06/2008.
316
São Paulo, Revista Close nº. 6, jan. de 1981.
Flavia Teixeira 203
Pelúcio (2007) é uma das referências mais contemporâneas para pensar o processo da diluição
das identidades de travestis e transexuais no mercado sexual. Embora tenha como foco de
interesse o universo das travestis, que assim são denominadas em quase todos os momentos
de interação, a existência das mulheres (transexuais) no seu campo de investigação não pode
ser desconsiderada.
317
Código Brasileiro de Ocupações, consultado no site do Ministério do Trabalho e Emprego disponível em:
www.mtecbo.gov.br/busca/descricao.asp?codigo=5198 e capturado em 06/10/2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 204
318
Entrevista pessoal, São Paulo, 11/10/2007.
Flavia Teixeira 205
Larissa Pelúcio também identifica na rua o espaço em que as travestis sonham com um
companheiro, um “homem de verdade” (2007, p. 83). Percebo que não somente as calçadas
são compartilhadas pelas (travestis) e (transexuais) na prostituição; uma das minhas
entrevistadas revela sua expectativa de encontrar o príncipe encantado na rua:
Eu nunca havia tido uma vivência afetiva, sexual já havia tido, com um
homem. A questão da prostituição está também alicerçada na possibilidade
de um contato mais próximo, mais pulsante com os homens. Não é sexual, é
afetivo. Sempre quando eu ia para rua tinha a questão prática da
sobrevivência, mas tinha fundamentalmente a esperança de que ali eu iria
encontrar meu príncipe encantado. É paradoxal, é louco, mas existia. Tanto
é que minha revolta surgiu quando eu percebi que não iria encontrá-lo. Eu
comecei a observar que os comportamentos deles [os clientes], os interesses
não combinavam com os meus. Eles percebendo minhas diferenças iriam me
tirar dali. Quando eu entrava nos carros, eu era uma princesa... mas a busca
deles era outra. (Entrevistada A)
Essa entrevistada afirma não ter conhecido nenhuma outra pessoa se prostituindo e que
se identificasse como mulher (transexual) nas ruas de São Paulo. Diferentemente da outra
que, em Brasília, compartilha com duas outras mulheres (transexuais) o espaço de
prostituição; no entanto, diz de seus planos de colocar suas fotos no site porque considera que
319
A etnografia realizada por Néstor Perlongher é leitura obrigatória para compreender a territorialidade
itinerante da prostituição, seus fluxos e inconstâncias.
320
Entrevista pessoal, Brasília, março de 2007.
321
Entrevista pessoal, Brasília, fevereiro de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 206
a rua está cada dia mais difícil. Reconhece a prostituição como um dos temas tabu entre
profissionais e também as mulheres (transexuais). Relaciona nominalmente uma a uma das
que estão ou estiveram na prostituição, somando uma enorme lista, desde as conhecidas
nacionalmente até as que hoje residem no exterior, contemplando também algumas que
integraram o Programa de Transgenitalização da Promotoria. De sua entrevista, recorto a
reivindicação do prazer que sinalizaria para a sua indecisão em relação a se submeter ao
processo cirúrgico:
Eu não nego para você que quando vou para rua estou esperando encontrar
um uma pessoa como eu, um afeto, um namorado. Eu tenho clientes que às
vezes nós vamos para o motel e ficamos toda a madrugada e eu cobro muito
pouco. Ele não me comia, gozava e ia embora, foi o exercício de meu afeto,
a gente ficava abraçado, beijando, namorando, conversando, assistindo
programa na televisão. Inclusive eu gozava, eu tinha prazer, isso não é muito
comum no discurso como profissional do sexo, gozar no trabalho, mas eu
gozava. (O destaque se deu na fala da entrevistada). (Entrevistada C)
Para além do prazer, o acesso ao corpo e às formas de gozar com este corpo
integrariam ao repertório de uma forma que eu ainda não havia encontrado nas entrevistas:
(...) ele [um amigo] me perguntou o que mudou no meu corpo com a
prostituição e eu disse que antes eu não era sexualizada... Aprendi a curtir
meu corpo, sentir prazer... Precisava estar bem com meu corpo para ter
sucesso na profissão, senão eu seria uma puta fracassada. (Entrevistada C)
Para não se tornar uma profissional fracassada, deve-se aprender os códigos dessa
profissão e isto depende de uma iniciação que, na maioria das vezes, se dá na interação entre
travestis e mulheres (transexuais).
Eu saí o primeiro dia e ganhei sabe quanto? Nada. (risos) No segundo dia?
Nada de novo. No terceiro dia, trinta e cinco reais. Eu achava aquilo tudo um
absurdo, achava tudo ridículo a minha volta. Depois eu conheci uma travesti
muito linda, muito linda, e conheci a cafetina. Havia um mês que estava na
casa dela. Mas fui entendendo a lógica do lugar. Eu sou negra, tenho que ir
onde estão os estrangeiros. Aí comecei a ganhar dinheiro. (...) Naquela
época, eu já falava inglês. (...) Mesmo que eu fizesse todas as modificações
corporais, eu vivia num mundo cheio de travestis, onde os homens com os
quais eu tinha relacionamento na prostituição e o próprio homem com quem
eu me relacionava afetivamente (meu companheiro) queriam sei lá... eu me
sentia violentada de ter que me relacionar com os homens como eles
queriam que eu relacionasse. E eu vivia infeliz com isso. Eu viajei para a
Europa, lá os homens queriam que eu comesse também... E era muito difícil,
não funcionava. Eu tinha um bloqueio, as informações novas que eu havia
adquirido me faziam afirmar a minha identidade daquilo que eu não gosto, e
os homens que gostavam daquilo que eu não gostava não prestavam, eles
eram objetos de meu ódio. Como vou ter relacionamento com uma pessoa
que eu odeio, que eu amo agora, mas depois que eu gozo, eu odeio. Voltei ao
Flavia Teixeira 207
Brasil (...) Depois retornei para a Europa, e então passei a entender melhor
meu corpo, minha sexualidade reprimida, e que não precisava provar para
ninguém da minha transexualidade. A prostituição era meu trabalho e
aprendi a trabalhar com meu corpo. (Entrevistada B)322
É o ponto e vírgula325
As recentes publicações das Portarias do Ministério da Saúde, a primeira instituindo o
Processo Transexualizador326 e a segunda definindo as Diretrizes Nacionais e
Regulamentando o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde – SUS -327,
evidenciam o dilema enfrentado por profissionais, pesquisadores e as pessoas (transexuais) na
construção de uma política pública em saúde desvinculada das amarras da patologia.
325
Clarice Lispector in Brasília, Para não esquecer, Rocco, 1999.
326
Portaria nº. 1.707/GM publicada no DOU nº. 159, terça-feira, 19 de agosto de 2008. Seção1, p.43.
327
Portaria nº. 457/SAS publicada no DOU nº. 160, quarta-feira, 20 de agosto de 2008.
328
Organizado pela Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde (SGEP/MS) e
realizado no período de 15 a 17 de agosto de 2007. A alteração da data para a realização do mesmo
impossibilitou que eu acompanhasse o grupo de trabalho sobre transexualidade.
329
(1) Relatórios e Encaminhamentos da Reunião sobre Processo Transexualizador no SUS (Comitê Técnico
Saúde da População GLTB/DAGEP/SGEP), realizada em 06 de fevereiro de 2006, no Ministério da Saúde,
Brasília. (2) Ata da Reunião Ordinária do Comitê Técnico da Saúde da População GLBT realizada nos dias 13 e
14 de novembro de 2006, em Brasília. Estes documentos são apresentados como anexo na dissertação da
pesquisadora.
Flavia Teixeira 209
2. ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO
(...) Os profissionais de psicologia e psiquiatria têm como atribuição o
acompanhamento psicoterapêutico e a avaliação psicodiagnóstica. O
tratamento psicoterapêutico não restringe seu sentido à tomada de decisão da
cirurgia de transgenitalização e demais alterações somáticas, consistindo no
acompanhamento do usuário no processo de elaboração de sua condição de
sofrimento pessoal e social. (...)
A avaliação psicodiagnóstica não se restringe à lógica permissão/
impedimento das intervenções médico-cirúrgicas. O psicodiagnóstico
fundamentalmente deve servir para indicar os elementos a serem trabalhados
em psicoterapia, sendo o diagnóstico diferencial, em relação a outras
condições psiquiátricas inviabilizadoras das intervenções médico-cirúrgicas,
um dos pontos, dentre outros, que deverão constar no processo de
avaliação.331
330
Portaria nº.1.707/GM, DOU, Seção1, p.43.
331
Portaria nº. 457/SAS, DOU, Seção 1, p.71.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 210
O artigo publicado por Márcia Arán e outros (2008) propunha um esboço das
diretrizes para a assistência no Processo Transexualizador, as quais foram parcialmente
incorporadas ao texto da Portaria da SAS, e anunciava a preocupação com a função do
psicólogo nos serviços destinados ao atendimento das pessoas (transexuais). Para além da
explícita vinculação entre a academia e a elaboração de política de saúde, torna evidente a
influência de pesquisadoras que possuem formação em psicologia e histórico de atuação em
serviços desta natureza no Rio de Janeiro e Brasília, respectivamente. Comparando a
participação dessas pesquisadoras na elaboração das Portarias com o impacto de suas
produções no próprio campo disciplinar332, identifica-se que não há um consenso sobre o
papel do psicólogo nos Programas que realizam a cirurgia de transgenitalização, assim como
na produção teórica produzida sobre a transexualidade.
332
Pesquisas recentes produzidas por psicólogas que trabalham em equipes de serviços que realizam a cirurgia
de transgenitalização (ELIAS, 2007 e PINTO, 2008) não incorporam essas discussões nas suas reflexões. Em
situação diferente está a pesquisa desenvolvida por Daniela Murta (2007), que acompanha a equipe do Hospital
Universidade Pedro Ernesto/RJ e foi orientada em sua pesquisa por Márcia Arán.
Flavia Teixeira 211
Márcia Arán e Tatiana Lionço (2008) acreditam que a ausência de políticas públicas
de saúde para as pessoas (transexuais), no Brasil, desencadeou o processo de recorrer ao
poder judiciário para garantir o acesso aos serviços de saúde. Quanto à garantia do acesso à
saúde, Izis Reis (2008, p. 81) problematiza as dificuldades de legitimação política que as
pessoas (transexuais) – e o movimento GLBTT como um todo – encontram no diálogo com o
Ministério da Saúde. No entanto, percebo que este enfrentamento desigual não é exclusivo do
movimento social; outros grupos de profissionais parecem ter dificuldade na disputa com o
poder representado pelo saber médico, como pode ser identificado na fala desta participante
da Reunião do Processo Transexualizador:
(...) Temos que considerar até que ponto se pode avançar na perspectiva do
SUS, já que o processo transexualizador é submetido aos parâmetros do
CFM. A classe médica não aceitaria a entrada do processo transexualizador
no SUS senão pelo enfoque patologizante. (Pesquisadora, 08/02/2006).333
333
Relatórios e Encaminhamentos da Reunião sobre Processo Transexualizador no SUS (Comitê Técnico Saúde
da População GLTB/DAGEP/SGEP).
Vidas que desafiam corpos e sonhos 212
aguardado pelas mulheres (transexuais) –em função de um acidente na rodovia, ele não
conseguia chegar –, a audiência estava repleta. Era a primeira vez que essa temática era
pautada especificamente. Os convidados eram dois cirurgiões, um psiquiatra e duas
psicólogas, marcando qual seria o discurso autorizado nesse contexto. As falas dos
especialistas privilegiaram a apresentação do diagnóstico, inclusive a utilização dos termos
transexuais masculinos (MtF) e transexuais femininos (FtM) pelos representantes da área
médica incomodava a platéia que reclamava em tom baixo, mas nenhuma interferência foi
realizada. Uma das organizadoras do evento se dirigiu à platéia, dizendo que era necessário
“respeitar o modo de pensar da medicina”.334
334
Anotações do Caderno de Campo, XIV Entlaids, São Paulo, 28/06/2007.
335
Portaria nº 1.707/GM – DOU – Seção1, p.43.
336
É necessário lembrar que ela substituiu a Resolução do CFM 1.482/1997.
Flavia Teixeira 213
1. ACOLHIMENTO
(...) Caso seja identificado que não se sustente o diagnóstico de
transexualismo, o usuário deverá ser encaminhado ao serviço que melhor lhe
convier, ficando a cargo da equipe multiprofissional verificar a pertinência e
potencialidade terapêutica das intervenções oferecidas pela mesma no caso
deste usuário específico, em articulação com o serviço para o qual foi
realizado o encaminhamento.338
Foi num dos quartos do hotel, durante o XIII ENTLAIDS, em Goiânia, que Danielle
revelou pela primeira vez o sentimento de ter este sonho interrompido após os pareceres dos
peritos do IML, que negavam sua condição (transexual), ocasionando sua exclusão do
337
A Portaria nº.457/SAS/MS (DOU, Seção 1, p. 70) estabelece que os critérios para definição do
transexualismo deve seguir a Resolução CFM nº. 1.652/2002.
338
Portaria nº.457/SAS, DOU, Seção 1 p. 71.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 214
Danielle relata o caminho percorrido entre a idéia, sem muitos contornos sobre uma
possível transformação no corpo, até a constatação da possibilidade técnica da cirurgia, o
significado dessa descoberta e a interdição ao procedimento que resultou de um não
reconhecimento – por parte dos peritos – de sua transexualidade:
Era apenas o início de um complexo, moroso e ambíguo caminho que deve ser
percorrido para a realização desse sonho, através dos exames e pareceres que reconheçam a
existência de um “transexual verdadeiro”. Segundo Danielle, ao ser recebida na sede da
Promotoria, de posse dos laudos médicos e no lugar institucional, o Promotor executou a
sentença, pronunciando:
Eles me deram descarga, eles não têm idéia do que fizeram comigo. Qual o
objetivo disso? Qual a importância para eles em me dar a cirurgia que eu
tanto desejava? A cirurgia era o meio de eu me entender a mim mesma no
mundo. Dar-me a cirurgia, que era a única saída para minha vida. Eu sou só
uma pessoa e ele é a instituição, uma instituição capaz de definir o destino de
uma pessoa.
339
Danielle, entrevista pessoal, Brasília, maio de 2007.
340
Danielle, entrevista pessoal, Goiânia, julho de 2006.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 216
durante o acolhimento.
3. FLUXOS DE ENCAMINHAMENTO
Em não se confirmando a indicação de readequação cirúrgica genital, o
usuário deve dar continuidade ao tratamento clínico e ter o seu atendimento
mantido no respectivo estabelecimento de origem, independentemente do
nível de atenção, e que seja o mais próximo do município e estado de
residência.341
341
Portaria nº. 457/SAS, DOU, Seção 1, p. 71.
Flavia Teixeira 217
Izis Reis (2008, p. 92) identificou a reivindicação de ações para promoção de saúde
das pessoas (transexuais) como um momento de negociação de realidades em que a demanda
342
Portaria nº. 457/SAS, DOU, Seção 1, p. 71.
343
Portaria nº. 457/SAS, DOU, Seção 1, p. 69.
344
Portaria nº. 457/SAS, DOU, Seção 1, p. 70.
345
Portaria nº. 457/SAS, DOU, Seção 1, p. 72.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 218
Jorge Leite Júnior (2008) percebe a cirurgia como uma premiação por e para se
adequar às normas do gênero:
Também Miriam Ventura (2007) já identificava que o poder médico não apenas regula
o acesso aos recursos de saúde, mas interdita o acesso a estes recursos. Como evidenciado na
análise dos processos, este impedimento se apresenta quando os indivíduos não performam o
gênero em consonância com as expectativas daqueles que observam (os peritos, os
especialistas), colocando esses sujeitos em lugar de extrema vulnerabilidade. Segundo Tatiana
Lionço (2008), o que está sendo negado, nesse caso, é o acesso às condições necessárias para
a livre expressão da personalidade e da vivência da cidadania.
346
Anotações do Caderno de Campo, XIV Entlaids, São Paulo, 28/06/2007.
347
Anotações do Caderno de Campo, Salvador, Setembro de 2008.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 220
pela sociedade civil organizada na conquista dos direitos à saúde, Ana Maria Costa e Tatiana
Lionço apontam para a necessidade de fortalecimento de alguns grupos sociais para o
enfrentamento das iniqüidades em saúde (2006, p. 51); penso que os homens (transexuais)
constituem uma das parcelas de menor poder de vocalização nesse cenário de conquistas.
Judith Butler (2006) chama a atenção para as armadilhas ao se adotar, mesmo que
estrategicamente, o diagnóstico. Assegurou às disciplinas biomédicas o poder de definir sobre
as pessoas (transexuais) e o que é necessário a elas. A Portaria do Processo Transexualizador
fortaleceu o saber médico e seu dispositivo sobre a transexualidade.
348
Música: Eclipse Oculto composição de Caetano Veloso, interpretada por ele no Álbum Uns, de 1983.
Flavia Teixeira 221
Antes de essa exclusão ser explicitada no texto, a não inclusão dos homens
(transexuais) estava anunciada de várias maneiras na Portaria. Por exemplo, ao definir o
tratamento hormonal no conjunto da descrição, está expresso que se trata de administração de
hormônios para as mulheres (transexuais).350 Comparando o texto acima com o elaborado por
Márcia Arán e outros (2008), nota-se a incorporação parcial das sugestões das pesquisadoras:
A parte suprimida do texto nega aos homens (transexuais) o acesso legitimado aos
procedimentos médicos que, numa situação cotidiana, nem mesmo requerem a intervenção de
psiquiatras ou psicólogos para a suas indicações. No Brasil, em 2005, foram realizadas cerca
de 107.000 histerectomias pelo Sistema Único de Saúde, uma vez que as redes de
atendimento privado ou suplementar não informam esses dados (SORIA e outros, 2007). As
cirurgias de mastectomias são procedimentos amplamente realizados pelo Sistema Único de
Saúde principalmente para tratamento de câncer de mama. (SOUSA, 2007).
349
Portaria nº. 457/SAS, DOU, Seção 1, p.72.
350
Portaria nº. 457/SAS, DOU, Seção 1, Artigo 8º, p. 69.
351
No Brasil, o livro de John Colapinto é a referência mais recorrente sobre esse assunto. Ele relata a história de
David Reimer que em função de um acidente no primeiro ano de vida teve seu pênis mutilado. Foi submetido a
uma cirurgia para construção de uma vagina realizada pelo pesquisador John Money e se tornou um marco nos
trabalhos publicados por ele, para defender a teoria de que, na formação da identidade de gênero, as influências
biológicas pré-natais são secundárias em relação ao poder de fatores ambientais pós-natais; estes seriam mais
importantes.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 222
O limite parecia ser marcado pela disponibilidade da técnica para a intervenção nos
corpos, numa perspectiva que contemplaria as mulheres (transexuais), uma vez que o
alardeado sucesso da técnica da neocolpovulvoplastia asseguraria uma neovagina semelhante
ao modelo biológico. Mas, para os homens transexuais, a incipiência da cirurgia negaria seu
acesso porque resultaria num corpo ambíguo: um falo débil seria incapaz de performar a
natureza. Os corpos dos homens (transexuais), produzidos cirurgicamente, colocariam em
xeque o discurso da própria medicina frente à possibilidade de fabricar um corpo ambíguo,
quando historicamente ela sempre se preocupou em utilizar seu saber/poder na construção de
corpos coerentes. Seria o reconhecimento de que estes binarismos não são necessários e nem
mesmo inquestionáveis. O que estava em questão era a eficácia da artificialidade de uma
natureza – produzida pela biotecnologia – para conferir autenticidade e assegurar a
normatividade dentro do binarismo, respaldada pelo discurso médico e (re)atualizada pelos
legisladores do Ministério da Saúde.
Se puede observar aquí el terreno del dilema: por una parte, vivir sin las
normas de reconocimiento conlleva un considerable sufrimiento y una forma
352
A relação entre os discursos médicos produzidos sobre a intersexualidade e a transexualidade está
contemplada na tese de doutoramento de Jorge Leite Júnior.
353
O Grupo de Pesquisa Reprodução Biológica e Social, Sexualidade e Bioética do Instituto de Medicina Social
da UERJ organizou, em 5 de dezembro de 2008, um Seminário sobre Normas de Gênero e Políticas de Saúde
Pública no Brasil, com o objetivo de apresentar resultados parciais da pesquisa “Transexualidade e Saúde,
condições de acesso e cuidado integral” apoiada pelo IMS-UERJ, MCT/CNPq, MS/ Decit/ SECIT. Pesquisa
coordenada por Márcia Arán. O Coletivo Nacional de Transexuais foi convidado para participar da Mesa
Redonda sobre o Processo transexualizador no SUS. Por ocasião da decisão sobre quem deveria ser a
representante para ocupar esse lugar, não identifiquei qualquer sugestão de pauta que incluísse uma perspectiva
crítica sobre a Portaria nem mesmo uma discussão sobre os homens (transexuais).
354 O nome deste integrante consta na relação de presentes da primeira reunião para a discussão do Processo
Transexualizador no SUS. Ressalto que as indicações para a participação nas discussões para a elaboração de
políticas públicas são financiadas pelo Estado e consensuadas pelos referidos movimentos. A ausência de
homens (transexuais) indica a fragilidade de negociação destes dentro do próprio Coletivo Nacional de
Transexuais. Acompanhei através da lista de discussão a solicitação de desligamento deste integrante formulada
por ele em 04/11/2008 após uma série de colocações divergentes sobre posicionamentos políticos do grupo.
Flavia Teixeira 223
Butler (2005) afirma que o gênero funciona como aparato de produção daquilo que se
reconhece como sexo, e que esse aparato discursivo é indispensável ao processo de
subjetivação e também ao reconhecimento do que é considerado humano; ela enfatiza que
essa discursividade não é um véu social que recobre e esconde a materialidade dos corpos, os
limites do corpo sexuado são conformados na própria intervenção discursiva e aqueles corpos
que contam são produzidos baseados num regime de verdade (construídos socialmente).
355
Disponível para consulta em: http://dtr2001.saude.gov.br/sas/PORTARIAS/Port2008/PT-09-CONS.pdf
356
Mensagem recebida através da lista em 08/10/2008.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 224
(...) há homens sem pênis por razões outras, como, por exemplo, acidentes
ou cânceres. Nem por isso deixaram de ser cidadãos. Há mulheres sem
vulva, sem vagina, sem útero, sem ovários, sem trompas, sem mamas. Nem
por isso deixaram de ser cidadãs. A cidadania não se estabelece por cópulas
sexuais ou pelas vias fisiológicas que as viabilizem, mas pela dignidade do
ser humano (...)
357
Autos nº 2005.01.1.037883-5, anexado ao processo de G.S.B..
Flavia Teixeira 225
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Flavia Teixeira 227
Considerações Finais
Yo puedo sentir que sin ciertos rasgos reconocibles no puedo vivir. Pero
también puedo sentir que los términos por los que soy reconocida convierten
mi vida en inhabitable. Ésta es la coyuntura de cual emerge la crítica,
entendiendo la crítica como un cuestionamiento de los términos que
restringen la vida con el objetivo de abrir la posibilidad de modos diferentes
de vida; en otras palabras, no para celebrar la diferencia en sí misma, sino
para establecer condiciones más incluyentes que cobijen y mantengan la vida
que se resiste a los modelos de asimilación. (BUTLER, 2006a, p. 17)
Como dado pré-discursivo, este critério parece não ser confrontado. O sentimento de si
como o lugar onde reside a verdade da transexualidade parece residir num espaço imune ao
social. Constrói uma outra naturalidade anterior, não mais amparada na causalidade biológica,
mas sempre no inexorável e pré-social: o sentir.
358
No Brasil, é reconhecida apenas uma instituição formal, com características de Instituição Total, destinada às
pessoas vivendo com HIV e Aids. Não vinculada e nem mesmo recebendo incentivos de órgãos públicos. Para
aprofundamento dessa temática sugiro a leitura do trabalho de doutorado de Pedro Paulo Gomes Pereira “Olhos
de Medusa: AIDS, terror e poder” (2001).
Flavia Teixeira 229
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