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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Flavia do Bonsucesso Teixeira

Vidas que desafiam corpos e sonhos: uma etnografia do


construir-se outro no gênero e na sexualidade

Tese de Doutorado em
Ciências Sociais apresentada
ao Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da
Universidade Estadual de
Campinas, sob orientação da
Profa. Dra. Adriana Gracia
Piscitelli e co-orientação da
Profa. Dra. Mariza Corrêa.

CAMPINAS
Maio/2009
Flavia Teixeira ii

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA


BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP

Teixeira, Flavia do Bonsucesso


T235v Vidas que desafiam corpos e sonhos: uma etnografia do
construir-se outro no gênero e na sexualidade / Flavia do
Bonsucesso Teixeira. - - Campinas, SP : [s. n.], 2009.

Orientador: Adriana Gracia Piscitelli.


Co-orientador: Mariza Correa.
Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

1. Gênero. 2. Etnografia. 3. Cirurgias de


transgenitalização. 4. Sexualidade. 5. Feminismo. 6. Políticas
públicas.
I. Piscitelli, Adriana Gracia. II. Correa, Mariza. III.
Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas. IV.Título.

(cn/ifch)

Título em inglês: Lifes facing up bodies and dreams: a ethnography of make


herself another in gender and in sexuality

Gender
Palavras chaves em inglês (keywords): Ethnography
Transgenitalization surgery
Sexuality
Feminism
Public policy

Área de Concentração: Ciências Sociais

Titulação: Doutor em Ciências Sociais

Banca examinadora: Adriana Piscitelli, Adriana de Resende Barreto Vianna,


Berenice Alves de Melo Bento, Karla Adriana Martins
Bessa, Júlio de Assis Simões

Data da defesa: 08-05-2009

Programa de Pós-Graduação: Ciências Sociais


Flavia Teixeira v

AGRADECIMENTOS

Pesquisar num campo diferente do de minha graduação exigiu uma apropriação das
convenções internas às disciplinas que nem sempre se traduziu como sendo tarefa fácil. A
formação na área da saúde favoreceu a aproximação conceitual com o discurso oficial da
medicina e com as pesquisas de base biológica sobre a transexualidade. Dilemas que
acompanharam todo o processo, identidades borradas que se entrecruzam em muitos
momentos da pesquisa. Foram muitas as pessoas que estiveram presentes nos momentos em
que as dúvidas sobre a continuidade deste trabalho surgiram.

Toda tese tem uma história que pode ser contada de muitos lugares. Estou certa de que
este texto somente tomou forma porque foi moldado na intimidade da cozinha de amigos
(num jeito mineiro que os cariocas também sabem) que compartilharam com generosidade o
fazer de muitas e muitas etnografias como aqueles que reinventavam uma receita; tenho com
Carlos Rodrigues Brandão e João Marcos Alem uma dívida de gratidão infinita.

Adriana Piscitelli afinou os acordes deste texto. Sua leitura atenta e sugestões
cuidadosas delinearam os contornos da pesquisa. Sua voz está refletida no conjunto da tese,
mas sou a única responsável se não incorporei a amplitude de suas orientações.

Com Mariza Corrêa tive o privilégio de revisitar a psicanálise através de Anna O..
Com o rigor e a leveza que lhe são únicos, estabeleceu um diálogo generoso, problematizando
a assepsia da cirurgia de designação sexual dos intersexos, e propôs a pensar sobre as
mutilações corporais, entre outras práticas, que nos impõem posicionamentos que extrapolam
a confortável esfera da compreensão da diferença cultural.

As provocações do professor Júlio Simões, durante o exame de qualificação, foram


fundamentais para que eu permitisse que a antropologia incorporasse esta tese.

Transitando entre as fronteiras da admiração intelectual e do afeto, Karla Bessa


tornou-se uma interlocutora preciosa e sempre, sempre, desestabilizadora das certezas.
Aprendi com Carlos Brandão, poeta, que a amizade marca os corpos e as almas. As marcas
deixadas por Karla enriquecem este texto e rimam com densidade e inspiração intelectual.
Também a ela devo a “tradução” dos textos de Judith Butler.

Ser reconhecida como parte de uma Instituição como a Unicamp causava uma
profusão de sentimentos e foi muito bom encontrar duas estrangeiras a compartilhar estes
Flavia Teixeira vi

sentimentos: Ana Paula Mauriel e Eliane Gonçalves foram sobretudo amigas... À Ana
também devo o compartilhar dos sorrisos das descobertas na biblioteca e também as muitas
lágrimas deste percurso.

É uma máxima assustadora considerar que o trabalho de pesquisa deve ser sempre
solitário. Uma rede foi acionada com meu ingresso no trabalho de campo; e diferentes e
muitos sujeitos foram profundamente solidários na condução desse fazer. O Promotor de
Justiça Diaulas Costa Ribeiro, numa relação de confiança, possibilitou a realização desta tese,
não somente porque consentiu no acesso aos processos, mas pela disponibilidade em
responder às inúmeras perguntas, compartilhar bibliografias e, também, mostrar-se atento às
críticas e sugestões.

Entre as inúmeras idas e vindas por Brasília, eu vi o Pedro descobrir a leitura, a


gestação e nascimento da Mariana, acompanhada pelo sorriso da Alessandra Cardoso que
sempre, na volta para nossa casa, me ouvia interessada. Ao Léo, agradeço todas as forças,
inclusive a física para carregar aquele “tanto de processo”.

Fazer desta tese um trabalho sério foi a maneira que encontrei de agradecer às pessoas
(transexuais) que me receberam nos mais variados lugares, sempre dispostas a responder aos
meus porquês, como e me explica de novo - em suas casas, em seus locais de trabalho, no
hospital, na feira, no shopping. Reviravam gavetas e armários em busca de reportagens ou
lembranças para que eu pudesse entender um pouco mais do que estavam falando com um
desprendimento que não sei se eu mesma teria.

Assim foi construída esta tese, com a disponibilidade de tantos; e novamente os


caminhos desta foram marcados por encontros intelectuais generosos: Adriana Vianna, Aline
Bonneti, Berenice Bento, Carla Teixeira, Jacy Seixas, Jorge Leite Júnior, Luis Roberto
Cardoso de Oliveira, Marcos Benedetti, Mônica Siqueira, Renato Ortiz, Roberto Menezes e
Tatiana Lionço imprimiram olhares e questões.

Nos rodapés invisíveis desta tese, estão momentos únicos compartilhados com a
solidariedade de Emmanuel Leite, André Brandão, Maria Alice Brandão, Dori Otoni, Denise
Gonçalves, Sérgio Maldi, Sandra Leila, Ana Luisa Puntel, que estiveram tão próximos no
momento da fragilidade da dor.

Diferentes espaços físicos me acolheram em Campinas, entre estes, a casa de Nelson


Felice, onde tudo começou; a cumplicidade de Heloísa Casquel; a amizade de Mariana
Magalhães e, claro, a segurança de ter sempre a casa do Brandão.
Flavia Teixeira vii

Na Universidade Federal de Uberlândia, foram os colegas de departamento,


Lindioneza, Rosuíta, Leila, Melicégenes e Carlos Henrique, que, assumindo parte de minhas
atividades, possibilitaram que eu escrevesse de forma mais tranqüila, num acolhimento
institucional de uma professora em estágio probatório.

Agradeço aos estudantes do curso de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia


que, nos corredores, perguntavam sobre a pesquisa. Eles compreenderam o momento
particular da escrita da tese e sorriam cúmplices frente às promessas de “depois da tese”...

Agradeço também à equipe “Em Cima do Salto”, que compartilhou tudo para que eu
pudesse escrever, pesquisar e, ao mesmo tempo, gestarmos este projeto.

Como realizar uma tese sem contar com a rede familiar, pai, mãe, queridos irmãos,
sogros, mas, especialmente, minha irmã que, mesmo nos momentos mais complicados, minha
jarrinha esteve por perto.

Da Itália, vieram livros, incentivos e também a cumplicidade de Agapito e Maria


Grazia nos momentos finais da escrita, compartilhando as belezas da Chapada dos Veadeiros.

Arthur enfeita e desafia o mundo com sons especiais e mostra no dia a dia como as
palavras são insuficientes para traduzir sentimentos. Todos os dias, no retorno da escola, a
mesma pergunta: “Mãe, isso não tem fim?” E, com a perspicácia, me dizia que meu desafio
seria escrever o fim...
Flavia Teixeira ix

Ao Gilson, um amor generoso que inspira e acolhe.


Flavia Teixeira xi

RESUMO

O objetivo desta tese foi compreender as possibilidades e estratégias da atuação das


pessoas (transexuais) que buscavam “uma mudança de sexo” ao se inscreverem no Programa
de Transgenitalização coordenado pela Promotoria de Justiça de Defesa dos Usuários dos
Serviços de Saúde (Pró-Vida), do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Tendo
como ponto de partida o princípio de que a existência humana se torna inviável sem
inteligibilidade social, problematizo os diferentes discursos que enredaram as pessoas
(transexuais) ao buscarem reconhecimento. O principal argumento desta tese foi que o
processo de reconhecimento das pessoas (transexuais) orquestrado pelas instituições médico-
jurídicas coloca em risco a possibilidade da sobrevivência destas pessoas. A primeira parte do
trabalho foi composta pela análise dos processos. Nessa procurei identificar, no entorno
médico e jurídico, como um emaranhado imaginário – cujos conteúdos recobrem as
percepções da sexualidade feminina/masculina, a compreensão do direito das pessoas
(transexuais) sobre seus próprios corpos, bem como dos significados atribuídos ao gênero –
atravessa de diferentes maneiras e intensidades as práticas/discursos e é forjado para que
práticas institucionais sejam justificáveis. Marcado também por histórias de vida de pessoas, a
segunda parte tenta explicitar a diversidade das vivências das pessoas que buscavam maneiras
de dar sentido ao sentimento de “ser diferente”, de estar em “desacordo”, de ser vítima ou
culpada de algum “engano” ou “fraude”. Os resultados do trabalho conduzem a problematizar
a precedência e a exclusividade explicativas conferidas ao discurso médico-jurídico na
outorga de legitimidade social para as experiências das pessoas (transexuais).
Flavia Teixeira xiii

ABSTRACT

Object of this thesis was understand the possibilities and strategies in performance of people
(transsexuals) searching for “a change of sex” who register in Transgenitalization Program
coordinated by Defense Justice Promote of Health Services Users (Pró-Vida), of Public
Minister of Federal District and Lands. Our start point is the principle of human existence is
not viable without social intelligibility; I question different speech what involved to people
(transsexuals) to find reconnaissance. The principal argument of this thesis was the process of
recognition of peoples (transsexuals) made for medical-juridical institutions put in risk the
possibility of survival of these people. First part of this work was made with process analysis.
I try identify in this, in medical and juridical environment, like an imaginary complicated -
whose content recover the perceptions of male/female sexuality, comprehension of people
(transsexuals) right over his/her bodies, like as signifies attributed to gender- it crosses with
different ways and intensities practices/speeches and it is forged with the objective of
institutional practices becomes justifiable. It is marked too with life histories of peoples, the
second part try to state clearly the diversity of people experience who search ways to give
sense to feeling of “be different”, of stay in “disagree”, of be victim or accused of some
“cheat” or “fraud”. The results of this work leads to question the explain pertinence and
exclusivity gives to medical-juridical speech granting social legitimacy for peoples
(transsexuals) experiences.
Flavia Teixeira xv

SUMÁRIO

Agradecimentos v
Resumo xi
Abstract xiii
Apresentação E a mão que tece a trama... Trança esta história 17
Entre os (con)sentimentos 25
(In)definições: limites de um conceito 28
Parte I
Capítulo 1 - O natural também é uma pose... 37
Convenções biológicas: (in)certezas (re)produzidas 38
Entre fios, palavras e bisturis: artifícios naturalizantes 42
Do Y ao X: o encantamento da técnica 58
A natureza jurídica do sexo 64
Capítulo 2 - Não basta abrir a janela... 77
... Os lírios não nascem da lei. 80
Laudos, relatórios e pareceres: protocolos da alma 92
As (in)certezas que se encontram no lugar onde as 96
verdades são guardadas
Fotografias, indícios e verdades: a inspeção física 104
Entre pistas e (in)certezas: os interditos 116
Dessa esquina pelo menos posso perceber o duplo 127
sentido de tudo
Parte II
Capítulo 3 - Histórias que não têm era uma vez... 135
... Qualquer curva de qualquer destino que desfaça o 135
curso de qualquer certeza
Do armário para a reserva: a fragilidade das normas 143
Minha foto, minha vida ... meu segredo e minha 145
revelação
Um inatingível senso de si.... 153
Casamentos: os proclames da heteronormatividade 162
Deus fez nossos braços pra prender 165
A recusa de um Script 169
A vida quando acaba, cabe em qualquer lugar 172
A natureza da gente não cabe em nenhuma certeza 174
Capítulo 4 - Diálogos que disfarçam; conflitos por explodir... 181
De que servem as flores que nascem pelos caminhos, se 188
o meu caminho sozinho... é nada
... Todos os avisos não vão evitar... O que não tem 199
governo nem nunca terá
É o ponto e vírgula 208
E aquele projeto... Ainda estará no ar? 220
Considerações Finais 225
Referências Bibliográficas 231
Flavia Teixeira 17

APRESENTAÇÃO

E a mão que tece a trama... Trança esta história


Flavia Teixeira 19

APRESENTAÇÃO

E a mão que tece a trama... Trança esta história

(...) Então um dia eles me surpreenderam no banheiro, ainda não havia


vestido minha calça, e aí eles riram de mim... me pegaram pelos braços,
ainda sem calças, e me jogaram no lixo.
(...) Eu? Chorei muito. Não contei para ninguém, eu não sabia o que, mas
sentia que fazia algo errado...1

Esses são fragmentos de um dos relatos de Carolina2, uma das pessoas (transexuais)
que entrevistei, referindo-se à primeira situação explícita de violência sofrida por ela na
escola, aos sete anos. Naquela ocasião, era considerada um menino e compartilhava o
banheiro masculino. Ser um menino e freqüentar o banheiro destinado aos homens pareciam
estar de acordo com as normas estabelecidas. Ela não sabe dizer que traço ou sinal os colegas
teriam identificado como discordante para torná-la lixo. Ser remetida ao lixo é o cumprimento
de um enunciado que retira o outro do lugar de pertencimento ao humano.

Esse excerto é significativo da trajetória percorrida na elaboração desta tese, cujo


objetivo foi compreender as possibilidades e estratégias da atuação dos sujeitos que buscavam
a cirurgia de transgenitalização. Os resultados do trabalho conduzem a problematizar a
precedência e a exclusividade explicativas conferidas ao discurso médico-jurídico na outorga
de legitimidade social para as experiências das pessoas (transexuais).

Esta tese foi marcada por histórias de vida de pessoas que, como Carolina, buscaram
maneiras de dar sentido ao sentimento de “ser diferente”, de estar em “desacordo”, de ser
vítima ou culpada de algum “engano” ou “fraude”. O sentimento manifesto por essa
entrevistada, sua percepção de fazer “algo errado”, aponta o quanto as normas sociais
constituem a nossa existência, conformam nossos desejos e não se ancoram na nossa
individualidade.

A existência humana se torna inviável sem inteligibilidade social; as pessoas

1
Anotações do Caderno de Campo, Brasília, dezembro de 2005.
2
Todos os nomes utilizados para identificar as pessoas (transexuais) entrevistadas são fictícios.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 20

(transexuais), transitando entre desejo e as normas sociais, buscam reconhecimento e são


enredadas nas questões do poder, questionando a arbitrariedade para definir aqueles que
reúnem os requisitos para serem reconhecidos como humanos e os que não estão habilitados
para tal. O principal argumento desta tese é que o processo de reconhecimento das pessoas
(transexuais) orquestrado pelas instituições médico-jurídicas coloca em risco a possibilidade
da sobrevivência destas pessoas.

Muitas pessoas (transexuais) que contribuíram para a escrita deste trabalho, tiveram e
ainda têm suas vidas marcadas pela violência. São pessoas que se constituíram através da
produção de um corpo, cirurgicamente ou não, para se tornarem “reais”, para serem
autênticas, categoria êmica que só possui sentido no contexto das disputas entre o que é ou
não considerado legítimo e humano. Foi uma preocupação deste trabalho compreender os
esforços desses sujeitos para se sentirem em consonância com seus desejos. Ao mesmo tempo
em que eles questionam, reiteram e desorganizam a categoria naturalizada do humano,
denunciam, implícita ou explicitamente, que as normas de gênero não estabelecem um
consenso absoluto na vida social, desafiam as fronteiras entre a experiência individual e a
necessidade de reconhecimento social.

Esta tese está dividida em duas partes. A primeira está baseada na análise de processos
judiciais que objetivavam a autorização para a realização da cirurgia, evidenciando os
discursos médicos e jurídicos. A segunda parte resulta de entrevistas e observações de campo.
A divisão é um recurso metodológico na composição do texto. Na tessitura da tese, as duas
partes “dialogam” e se articulam com o conjunto da teoria. O ponto inaugural deste trabalho
foi o Programa de Transgenitalização coordenado pela Promotoria de Justiça de Defesa dos
Usuários dos Serviços de Saúde (Pró-Vida), do Ministério Público do Distrito Federal e
Territórios, criado em 1999 com o objetivo de autorizar e viabilizar a cirurgia de
transgenitalização. Trata-se do primeiro e, até o momento da conclusão desta pesquisa, único
grupo oficial ligado ao Judiciário, através do Ministério Público, que viabilizaria as cirurgias
no Brasil.

Estabeleci como eixo de análise os processos dos/as inscritos/as para participar do


Programa e considero “(transexuais)” aqueles/as que nele se inscreveram e se autodefiniram
como tal. A pesquisa documental teve como fonte primária vinte e nove processos de pessoas
inscritas do Programa de Transgenitalização. Eles foram analisados explorando diversos
aspectos que incidem nas decisões médico-jurídicas em relação à cirurgia/alteração de
sexo/alteração de nome: a eficácia das normas de gênero; os pressupostos sobre a relação
Flavia Teixeira 21

entre natureza/cultura e sobre a coerência entre sexo/gênero/desejo e práticas sexuais.

O recorte temporal estabelecido para a análise das fontes obedeceu ao critério do


tempo de abertura do Programa de Transgenitalização, em dezembro de 1999, e a suspensão
de novas inscrições no primeiro semestre de 2004.3 O critério inicial de admissibilidade ao
Programa era que os/as candidatos/as possuíssem o diagnóstico conferindo a eles/as a
condição de ser um/uma transexual verdadeiro/a. Assim, ao solicitar seu ingresso, o/a
candidato/a era encaminhado/a para os especialistas das áreas da medicina e psicologia, que
deveriam identificar tal condição. Esse diálogo entre as áreas (re)criava uma profusão de
leituras sobre a transexualidade.

A análise dos processos seguiu as pistas deixadas pelo trabalho inaugural de Mariza
Corrêa (1983), ao analisar que há mais em jogo na construção e análise dos processos do que
simples “leitura de protocolos”. Nessa análise procurei identificar, no entorno médico e
jurídico, como um emaranhado imaginário – cujos conteúdos recobrem as percepções da
sexualidade feminina/masculina, a compreensão do direito das pessoas (transexuais) sobre
seus próprios corpos, bem como dos significados atribuídos ao gênero – atravessa de
diferentes maneiras e intensidades as práticas/discursos e é forjado para que práticas
institucionais sejam justificáveis, ainda que fujam das expectativas éticas, morais ou legais.

Nos processos analisados, a construção subjetiva dessa experiência foi silenciada.


Encoberta pela primazia do diagnóstico, pouca atenção essa vivência despertou entre os
médicos e juristas.

A segunda parte deste trabalho prioriza como os sujeitos que se inscreveram no


programa de transgenitalização e cumpriram os protocolos – integralmente ou em parte –
dizem, vivem e constroem significados para suas vivências.

As entrevistas narram os (re)arranjos, as negociações e os conflitos que envolvem os


diferentes sujeitos, que rompem com a dualidade do sexo, as interpretações internas que
tornaram ou não a cirurgia de transgenitalização como a meta a ser alcançada para o
reconhecimento de sua legitimidade. Trabalhei com um universo de dezesseis pessoas
(transexuais) entrevistadas. Foi possível entrevistar oito inscritas/os no Programa. Além disso,
foram entrevistadas sete pessoas que participavam do movimento social e uma mulher
(transexual) que foi submetida a cirurgia clandestina, no exterior, na década de oitenta e

3
O Promotor de Justiça determinou a suspensão do ingresso de novas/os candidatas/os até que fossem resolvidas
a liberação da cirurgia via SUS e a composição de equipe para realizar as cirurgias. Entrevista Pessoal, Caderno
de Campo, dezembro de 2004.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 22

indicada pelo cirurgião professor Carlos Cury. O critério para selecionar as pessoas a serem
entrevistadas considerou as demandas apresentadas no momento de ingresso no Programa. A
diferença entre o número de processos analisados (vinte e nove) e de pessoas vinculadas ao
Programa entrevistadas (oito) se deve a um conjunto de recusas e dificuldade de acesso como
será descrito no momento em que analiso a obtenção do termo de consentimento. Das três
pessoas que ingressaram tendo realizado a cirurgia através do sistema privado de saúde, duas
não foram localizadas através do endereço disponível no processo e uma se recusou a ser
entrevistada. Três inscritas iniciaram o processo tendo cumprido as exigências do Conselho
Federal de Medicina (CFM) para a realização da cirurgia e foram submetidas ao procedimento
– com a autorização judicial – anteriormente ao início de meu trabalho de campo. Nenhuma
delas foi entrevistada para este trabalho. Uma integrante deste subgrupo não foi procurada
para a entrevista por solicitação do coordenador do Programa, reafirmando o desejo manifesto
da mesma pelo anonimato, e as outras duas a recusaram, de diferentes formas, conforme
discussão apresentada no segundo capítulo.

Entre as vinte e três pessoas inscritas no Programa sem terem cumprido nenhuma das
exigências do CFM, três se recusaram a participar e uma estava na Europa durante o período
em que iniciei as entrevistas. Duas foram consideradas como abandono pela equipe do
Programa por não responderem aos ofícios para comparecerem aos exames e/ou consultas;
duas pessoas foram assassinadas durante o período em que eu estava analisando os processos;
sete pessoas não foram localizadas através dos endereços que estavam disponíveis.

O uso de uma metodologia que envolve registros orais requer uma atenção especial às
interações entre entrevistador-entrevistando. O “falar” sobre temas tão delicados detona nos
interpelados uma espécie de auto-avaliação; ao mesmo tempo, tensões e auto-críticas podem
aflorar no decorrer da entrevista, instigando a uma análise que vai além do “dito”.
Considerando o discurso criado ao longo das entrevistas e a partir das questões suscitadas
pelos estudos de Michel Foucault (1979, 1997, 2002), o entendimento e a análise das mesmas
não passaram por uma exegese lingüística ou uma análise semiótica. A leitura das falas
privilegiou o ato, ou seja, as práticas de verbalização atreladas ao histórico dos entrevistados e
entendeu esta construção como parte dos jogos de saber-poder, estreitamente ligados ao
estudo aqui empreendido. Em outras palavras, se tratou apenas de compreender como na
situação de “entrevista” um discurso de si e do outro foi elaborado e como auto-justificativas
foram construídas para dignificar a experiência da transexualidade.

No entanto, o trabalho de campo não foi restrito à realização dessas entrevistas. Visitas
Flavia Teixeira 23

aos locais de moradia, hospital, trabalho e lazer compuseram parte importante deste cenário,
bem como a participação em espaços reconhecidos como de atuação política. Em todas as
ocasiões entrevistei as lideranças e participantes do movimento das pessoas (transexuais)
compondo muitas horas de observação.

O ingresso de uma das inscritas no movimento LGBTT4 colaborou para as discussões


e marcou definitivamente o rumo desta tese. Foi através dela que acompanhei a construção do
Coletivo Nacional de Transexuais, em 2005, reivindicando a autodeterminação, o
reconhecimento das experiências individuais através das quais as pessoas buscam significar o
que entendem por ser transexual e questionam os saberes oficiais que disputam uma verdade
sobre a transexualidade.

Entre os espaços políticos de encontros do Coletivo Nacional de Transexuais,


participei, em julho de 2006, do XIII Entlaids5, realizado em Goiânia, com o objetivo de
acompanhar a pauta de discussões do Coletivo Nacional de Transexuais, que parecia trazer a
realização da cirurgia de Transgenitalização como destaque na agenda do grupo. Nesse
encontro, foi reivindicada pelo Coletivo Nacional de Transexuais a legitimidade para
representar as pessoas (transexuais). O desdobramento desta solicitação, acatada na
assembléia, será analisado no capítulo quatro. Em 2007, o XIV Entlaids, realizado em São
Paulo, trouxe a discussão que fecha esta tese, problematizando a relação entre as mulheres
(transexuais) e o movimento feminista. O XV Entlaids, realizado em 2008, na cidade de
Salvador, reitera a pertinência atual das tensões que envolvem os movimentos sociais na
reivindicação das identidades.

Acompanhei como observadora, em julho de 2007, o encontro preparatório para a


realização do Seminário Nacional, intitulado Saúde da População GLBTT na Construção do
SUS, organizado pela Secretaria de Gestão Participativa (SGEP) do Ministério da Saúde.6
Terminada a reunião, fui convidada a acompanhar as representantes do Coletivo Nacional de
Transexuais em uma visita que fizeram ao gabinete do Sr. Ricardo Balestreri, atual Secretário

4
A modificação da Sigla GLBTT para LGBTT foi uma decisão do movimento organizado na Conferência
Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais, realizada em Brasília/DF nos dias 5 a 8 de
junho de 2008. No entanto, ao me referir a alguns setores e políticas públicas, a sigla se manterá como ainda está
sendo empregada, pois a recente modificação ainda não resultou na modificação da nomenclatura das mesmas.
5
Encontro Nacional de Travestis e Transexuais na Luta contra a Aids, que é financiado pelo Programa Nacional
de Aids do Ministério da Saúde.
6
O encontro ocorreu em 15/08/2007 e constituiu num dos espaços de pesquisa de mestrado de Izis Reis (2008).
A pesquisadora teve como preocupação as disputas presentes nas propostas de implantação de políticas públicas
em saúde para as pessoas (transexuais). Como o espaço e o tempo de investigação da autora se interseccionam
com o tempo do trabalho desta tese, sua leitura tornou-se instigante e um diálogo profícuo.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 24

Nacional de Segurança Pública (Senasp).

Em 2008, a prostituição se tornou pauta explícita da agenda do movimento, fato que


até então eu não havia observado em outros encontros. A Consulta Nacional sobre DST/Aids,
Direitos Humanos e Prostituição7 foi organizada pelo Programa Nacional de DST e Aids.
Realizada em Brasília, reuniu lideranças da Rede Brasileira de Prostitutas, da Articulação
Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e do Coletivo Nacional de Transexuais (CNT).

A Portaria nº.17.07, de 18 de agosto de 2008, do Ministério da Saúde que instituiu no


âmbito do SUS o processo transexualizador, ocupou o cenário no XV Entlaids, em Salvador,
no entanto, a ausência “oficial” dos membros do Coletivo Nacional de Transexuais trouxe
questões sobre a disputa por representatividade, o que será discutido no capítulo final.

As três candidatas do Programa que iniciaram já tendo cumprido as exigências do


CFM, realizaram o procedimento cirúrgico em São José do Rio Preto, no serviço coordenado
pelo prof. Carlos Cury. Por esse motivo, o visitei em duas ocasiões. Em uma delas, assisti à
realização da cirurgia de transgenitalização.

Na leitura dos processos, mas principalmente durante as entrevistas, com as pessoas


inscritas no Programa de Transgenitalização da Promotoria, foi impossível passar
despercebido o impacto que os procedimentos realizados no IML tiveram sobre elas. Realizei
uma visita ao setor, acompanhada pelo diretor e, em seguida, tive uma conversa informal com
técnicos da psiquiatria e psicologia que em alguma medida participaram da elaboração dos
laudos para os processos analisados.

Em três ocasiões estive presente às reuniões do Projeto de Transexuais da


Universidade de Brasília8, coordenado pela psicóloga e professora Dra. Sandra Stuart. Essa
incursão tornou-se necessária porque muitos/as dos/as integrantes do Programa de
Transgenitalização da Promotoria se encontravam nesse grupo.

A médica e professora Mariluza Terra Silveira, coordenadora do Programa de


Transexuais da Universidade Federal de Goiás, foi entrevistada em dois momentos durante a
realização de eventos cuja temática era a transexualidade. Tornou-se uma interlocutora chave,
pois todas as pessoas anteriormente inscritas no Programa de Transgenitalização foram

7
Organizada pelo Ministério da Saúde em parceria com a Secretaria Especial de Direitos Humanos e a Secretaria
Especial de Política para as Mulheres. Brasília/DF, de 26 a 28 de fevereiro de 2008.
8
A minha participação na reunião deveu-se ao fato de naqueles dias o grupo estar aberto. Mesmo assim, não
acompanhei todo o desenvolvimento, era convidada a ingressar apenas no final da sessão.
Flavia Teixeira 25

submetidas aos procedimentos cirúrgicos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) depois de
encaminhadas para Goiânia e através do Projeto de Transexuais da UNB.

Estar em Brasília para desenvolver o trabalho de campo possibilitou entrevistar os


pesquisadores Berenice Bento, Tatiana Lionço, Marcos Benedetti e Aline Boneti, que estavam
envolvidos diretamente ou indiretamente no planejamento de políticas públicas em saúde para
essa população, o que ajudou a pensar na efervescência teórica da discussão.

Entre os (con)sentimentos
Em março de 2002, realizei meu primeiro contato formal com o Promotor responsável
pelo Programa de Transgenitalização, coordenado pela Promotoria de Justiça de Defesa dos
Usuários dos Serviços de Saúde (Pró-Vida), do Ministério Público do Distrito Federal e
Territórios9, solicitando acesso para pesquisa. A autorização para que eu tivesse acesso aos
processos, que tramitam em segredo de justiça, integrou um período de negociação e
estabelecimento de normas incluindo a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em
Pesquisa da Universidade Estadual de Campinas. A exigência da submissão do projeto de
pesquisa ao Comitê de Ética gerou inquietações que estão sendo compartilhadas por muitos/as
pesquisadores/as quando estão pleiteando fomentos de institutos ou agências de pesquisa. Isso
não significa que a Antropologia não se oriente por uma ética, mas, retomando ao texto do
professor Roque Laraia (1993), o código de ética do antropólogo – que inicialmente parecia
simples, não escrito e transmitido através da tradição oral entre seus pesquisadores – foi
ampliando suas problemáticas na medida em que a disciplina elegeu novos objetos de estudo
e novos campos de atuação10.

9
Criadas e definidas atribuições através da Portaria nº. 314 de 17 de maio de 1999, a Promotoria de Justiça
Criminal de Defesa dos Usuários dos Serviços de Saúde, Pró – Vida, foi implementada em 17 de maio de 1999.
Além de erros de médicos, dentistas, farmacêuticos, enfermeiros etc., a Pró-Vida tem a atribuição de investigar e
perseguir os crimes de exercício ilegal de profissões de saúde regulamentadas em lei, oficiando numa série de
feitos envolvendo interrupção de gravidez de feto inviável e que expõe a vida da mãe a risco de morte; abortos
de fetos originados de violência sexual; mudança de sexo (transgenitalização); inseminação artificial;
importação e transplante de órgãos. Durante a pesquisa de campo, o Promotor de Justiça determinou que as
intervenções cirúrgicas envolvendo crianças recém-nascidas com genitália ambígua não poderiam ser realizadas
sem o consentimento do Ministério Público. Esta conduta gerou uma insatisfação entre a classe médica e um
questionamento sobre a “urgência” que até então caracterizava o procedimento.
10
A sistematização de um código de ética pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA) ocorreu nos anos
de 1986-1988 e demonstra que a relação entre Ética e Antropologia estava na pauta de discussão. Assim também
a Mesa-redonda "Ética e Ciência”, constituída na ABA-SUL de Florianópolis, no ano de 1993, reiterava essa
preocupação. Remeto também ao importante texto do professor Roberto Cardoso de Oliveira (1990) sobre
conhecimento, ética e ação social.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 26

Não era a relação entre Antropologia e Ética que se constituía o incômodo, mas a
exigência do preenchimento de protocolos que, formulados em outro campo disciplinar,
traziam uma estrutura de informações nem sempre adequada ao olhar antropológico, através
de uma linguagem que explicitava a hegemonia e a suposta legitimidade única do modelo
biomédico na definição do que é ciência e de como se faz pesquisa (DINIZ e GUERRIERO,
2008).

Após a aprovação do CEP/UNICAMP e em função dos limites estabelecidos pelo


Promotor de Justiça, o primeiro contato com os/as inscritos/as foi mediado pela Promotoria de
Justiça e, apesar de não ter se constituído uma intimação formal, foi assim interpretada por
essas pessoas. Na primeira reunião, agendada para acontecer nos limites físicos da
Promotoria, as que participaram tiveram reações diferenciadas. Rita demonstrou receio de que
suas experiências contribuíssem para legitimar práticas e discursos dos quais discordava.
Danielle, Diogo, Larissa e outros/as também foram, de maneiras distintas, falando de suas
preocupações com a pesquisa. Outras pessoas compareceram aparentemente sem colocar
questões, pareciam cumprir mais uma etapa dos “protocolos oficiais” exigidos para a
continuidade do processo. Assim, Bruna, Carolina, Priscilla e Tassiana repetiam trechos
inteiros de suas vidas, a exemplo do que fizeram para os peritos. O desenrolar da reunião,
associado à solicitação do grupo para que eu não mostrasse o conteúdo das fitas ao Promotor,
apontava para uma percepção de que a minha imagem estava impregnada pelo discurso oficial
(do promotor, da academia, de saberes que autorizam). Além dos desafios a serem
enfrentados, estava diante de outro elemento imposto pelo Comitê de Ética: a exigência de
que assinassem o termo de consentimento livre e esclarecido.

Apesar das questões apresentadas acima, quase todas as pessoas assinaram o termo.
Apenas uma, Larissa, se recusou a assinar. Ela sublinhou a palavra Consentimento. Com tal
atitude, reiterou a fragilidade deste instrumento, deixando explícito o posicionamento de
Ceres Victoria de que o “consentimento é um processo a ser obtido ao longo da pesquisa e
não como uma formalidade contida em uma folha de papel assinada”.11

Entendendo as pesquisas antropológicas como observação e análise de relações sociais

11
A participação da professora Ceres Gomes Víctora, representando a ABA, no evento do programa do CNPq de
qualificação dos Comitês de Ética em pesquisa ocorrido na Faculdade de Saúde Pública da USP, em outubro de
2005, reafirma o conjunto de preocupações de antropólogos que estão tendo seus projetos de pesquisa recusados
nos Comitês de Ética em Pesquisa. Documento disponível no site da ABA no endereço:
http://www.abant.org.br/conteudo/documentos/ceres_victora.pdf capturado em 12/02/2007.
Flavia Teixeira 27

em andamento, o consentimento dos interlocutores se constitui na própria possibilidade da


realização da pesquisa. Porém, havia vários termos de consentimento assinados sem que isso
representasse garantia alguma de acesso aos sujeitos e viabilidade desta etapa da pesquisa.

As expectativas das/os integrantes do Programa de Transgenitalização do Ministério


Público pareciam se deslocar para o grupo que estava se formando no Hospital Universitário
de Brasília (HUB) desde 2002. Esse grupo estava sob a coordenação de uma pesquisadora
cuja proposta seria a constituição de uma equipe interdisciplinar para viabilizar as cirurgias de
transgenitalização. As leituras dos processos já indicavam uma circulação de
encaminhamentos entre os profissionais que viriam a compor essa equipe e a promotoria de
justiça. Assim, considerando que os sujeitos transitavam entre os programas, havia aventado a
possibilidade de contatar a instituição (UnB), no entanto, foi decisivo o convite deles/as para
que eu comparecesse na reunião do Grupo de Transexuais que aconteceria no dia seguinte e
me apresentasse para a coordenadora do grupo. Sem a certeza se estariam, através dessa
demanda, reivindicando serem “lidas” através de um outro léxico que não o judiciário, e
assim me aproximando do campo da psicologia, ou se buscavam o respaldo de outra
instituição, insistindo para que eu fosse referendada por outra autoridade, ou ainda, seria um
movimento conjunto, considerando que, segundo Butler, a dependência dos indivíduos das
instituições sociais marca a possibilidade de agência dos mesmos. Para a autora, a
necessidade das mudanças das instituições (que determinam o que é reconhecido como
humano) é um pré-requisito para a auto-determinação.

en este sentido, la agencia individual está ligada a la crítica social y la


transformación social. Sólo se determina «el propio» sentido del género en la
medida en que las normas sociales existen para apoyar y posibilitar aquel
acto de reclamar el género para uno mismo. (2006, p. 21)

Participar dessa reunião foi fundamental para estabelecer outra forma de interação
com aquelas/es que se tornariam meus/minhas interlocutores/as. Percebi que nenhum dos
espaços poderia ser utilizado como lócus de pesquisa. Foi necessário bater em várias portas,
que lentamente se abriram. A experiência de trabalho de campo busca desvelar as dimensões
subjetivas e as vivências que propiciam relações produtoras de conhecimento. Por isso, os
relatos do envolvimento com as pessoas e sobre os diferentes contextos e situações em que se
deu a pesquisa, mais do que nunca, constituem dados do próprio trabalho científico e são
considerados como integrantes do resultado. Destaco a participação de Carolina como
mediadora dos encontros com os(as) outros(as) informantes e a centralidade com que sua
Vidas que desafiam corpos e sonhos 28

história foi construindo esta pesquisa.

Transcrevo o fragmento do posicionamento inicial do grupo, que parecia se fazer


representar por Rita: “Qual a referência teórica que segue o seu trabalho? O que é para você a
transexualidade?” Esses questionamentos dimensionam o enfrentamento de questões
epistemológicas e representam a possibilidade de deslocamento da fronteira entre
sujeito/objeto que se colocou deste o início da tese. Na semana que antecedeu essa reunião, eu
terminara a leitura de um dos livros de Judith Butler e o desafio para a utilização de uma
linguagem e de um distanciamento que, embora fossem adequados à forma epistemológica,
não efetuassem uma separação deste “outro”, criando “um conjunto artificial de questões
sobre a possibilidade de conhecer e resgatar esse Outro” (2003, pp. 207-8).

“Para quê essa pesquisa? Que importância isso tem?” Desde o início me deparei com
estas indagações, formuladas com maior ou menor preocupação teórica. Considerando que a
matriz das relações de gênero é simultânea à própria emergência do humano e que a
construção do humano é uma operação diferencial que produz o mais humano, o não humano,
o menos humano e o humanamente impensável, as reflexões instigadas por Judith Butler
(2005b) convidam a uma investigação sobre os tipos de apagamentos e exclusões pelos quais
a construção do sujeito atua. Partindo da premissa de que a experiência trans não materializa
um “corpo viável” e, portanto, um sujeito viável, por sua estranheza entre as identidades
constituídas, o interesse deste estudo também é político: pretende contribuir para desvelar a
importância dessas vidas e desses corpos, em uma sociedade tão desigual e diversa nas
maneiras de tratar as alteridades liminares.

(In)definições: limites de um conceito


Desde o momento em que iniciei a escrita deste trabalho, fui resistente à perspectiva
de historicizar o termo transexual, primeiramente porque tal recorte havia sido realizado por
outros pesquisadores/as em diferentes campos disciplinares como a advogada Tereza Vieira
(1995), o historiador Pierre-Henri Castel (2001), a socióloga Berenice Bento (2003, 2006 e
2008), a antropóloga Elizabeth Zambrano (2003 e 2007), o médico Alexandre Saadeh (2004),
a psicóloga Tatiana Lionço (2006), a psicóloga Maria Jaqueline Coelho Pinto (2008) e o
cuidadoso trabalho do antropólogo Jorge Leite Jr. (2008) – entre outros. E, também, porque
não sendo a preocupação central de minha investigação, receei que, numa tentativa de
sintetizar o percurso, acabasse por colaborar com a idéia de que qualquer categoria cunhada
Flavia Teixeira 29

na contemporaneidade para nomear esse fenômeno poderia ser apropriada para analisar
diferentes épocas ou lugares. Assim, considero relevante enfatizar que o termo transexual foi
construído a partir de um conceito contemporâneo de dimorfismo sexual, referendado no
saber médico, em que os especialistas reúnem e criam narrativas sobre a transexualidade,
partindo de um poder que lhes é outorgado para determinar os limites entre o normal e o
patológico (LAQUEUR, 2001).

A transexualidade é uma fronteira marcada por diferentes definições, sendo que o


termo transexualismo é hegemônico no discurso médico e passou a integrar a Classificação
Internacional de Doenças (CID) na sua versão mais recente, a CID-10.12 Por determinação do
Ministério da Saúde, essa classificação passou a vigorar, no Brasil, em 1º de janeiro de 1996,
e, na medida em que estabelece uma classificação de síndromes psiquiátricas (chamadas de
transtornos), fornece, em suas Descrições Clínicas e Diretrizes Diagnósticas, critérios
específicos para que um determinado diagnóstico possa ser estabelecido. Nesse documento,
que deve ser seguido nas avaliações médicas oficiais, o transexualismo está catalogado no
grupo F6, que se destina aos diversos tipos de transtornos de personalidade e de
comportamento de adultos. Está classificado no F64 Transtornos de Identidade Sexual, e
especificamente:

F64. 0 Transexualismo: Um desejo de viver e ser aceito como um membro


do sexo oposto, usualmente acompanhado por uma sensação de desconforto
ou impropriedade de seu próprio sexo anatômico, e um desejo de se
submeter ao tratamento hormonal e cirurgia para tornar seu corpo tão
congruente quanto possível com o sexo preferido (OMS, 1993).

Diferentemente, na DSM-IV, Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos


Mentais, classificação utilizada pela Associação Psiquiátrica Americana (1995), o termo
transexualismo dá lugar ao Transtorno de Identidade de Gênero, cujos critérios diagnósticos
são: a) Uma forte e persistente identificação com o gênero oposto (não meramente um desejo
de obter quaisquer vantagens culturais percebidas pelo fato de ser do sexo oposto). b)
Desconforto persistente com seu sexo ou sentimento de inadequação no papel de gênero deste
sexo. c) A perturbação não é concomitante a uma condição intersexual física. d) A
perturbação causa sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social
ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo.

12
Na 10ª Revisão, foi adotada a nomenclatura “Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas
Relacionados à Saúde (CID 10)”.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 30

No Brasil, a Resolução nº. 1428/9713 do Conselho Federal de Medicina autorizou a


realização, como procedimento experimental, de cirurgias do tipo neocolpovulvoplastia,
neofaloplastia e ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais
secundários para tratamento do transexualismo. Esse pode ser considerado um marco para o
surgimento de programas visando à realização da cirurgia de transgenitalização. A Resolução
estabeleceu os critérios para as intervenções cirúrgicas que, até então, seriam consideradas
como crime e o autor (médico) sujeito a processo. A partir de 2003, dissertações e teses nos
campos da medicina, psicologia e serviço social surgiram visando analisar as experiências
desses grupos.14 A leitura desses trabalhos aponta para caminhos intrigantes sobre os
mecanismos e as práticas discursivas que constroem “o transexual”, e alguns evidenciam uma
crença compartilhada na cirurgia como um procedimento redentor para as pessoas
(transexuais). Entretanto, ressalto a exceção que representou o trabalho de Tatiana Lionço
(2006), cuja contribuição será analisada no momento de discutir a elaboração do chamado
“processo transexualizador” pelo SUS.15

Também os trabalhos de Berenice Bento (2003 e 2006) e Elizabeth Zambrano (2003)


foram realizados tendo parte de suas pesquisas de campo desenvolvidas com as/os
(transexuais) inscritas/os nos programas de Transgenitalização no Hospital Universitário de
Goiás e no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, respectivamente. Uma característica
diferencia esses trabalhos dos anteriores: a postura de distanciamento adotada na pesquisa.
Uma vez que as pesquisadoras não integravam a equipe de especialistas desses Programas,

13
A Resolução CFM nº. 1.482/97 (D.O.U.; Poder Executivo, Brasília, DF, 19 set. 1997. Seção 1, p. 20.944)
pode ser consultada através do site: www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2002/1652_2002.htm capturada
em 04/03/2006. Foi revogada pela Resolução CFM nº. 1652/2002, que retirou o caráter experimental para os
casos de cirurgias em transexual feminino.
14
A dissertação de mestrado de Jaqueline Pinto (2003) demonstra a busca da coerência entre sexo e gênero no
Programa de Transexualidade de São José do Rio Preto, coordenado pelo professor Carlos Cury. Sua tese de
doutorado, em 2008, amplia a discussão ao trazer para a cena do debate as experiências das mulheres
(transexuais) após a realização da cirurgia. A tese de doutoramento de Alexandre Saadeh (2004) tem como
referência o Projeto de Sexualidade do Instituto de Psiquiatria do HC/USP e baseia-se nos princípios
estabelecidos pelo discurso médico oficial. A dissertação de mestrado de Rosimeri Bruno (2004) analisa o
Projeto de Transgenitalização do Instituto de Ginecologia da UFRJ. Esalba Silveira (2006) é assistente social do
Programa de Transtorno de Identidade de Gênero do Hospital Universitário da UFRGS (PROGID) e
acompanhou as pessoas inscritas nesse programa para sua tese problematizando a construção da identidade a
partir do referencial teórico do materialismo histórico. A dissertação de mestrado de Valéria de Araújo Elias
(2007) acompanha, a partir da psicanálise, sete casos de mulheres (transexuais) atendidas no Hospital
Universitário da UEL. Daniela Murta (2007) analisa o atendimento às pessoas transexuais no Hospital
Universitário Clementino Fraga Filho da UFRJ.
15
Essa pesquisadora, durante sua pesquisa de doutoramento, exerceu a função de psicóloga que acompanhava as
integrantes do Projeto que tem como objetivo prestar assistência para as pessoas (transexuais) no Hospital
Universitário de Brasília. Sua tese está ancorada na explicação somato-psíquica da transexualidade. Integrava, no
momento da entrevista para este trabalho, o Comitê Técnico destinado a planejar políticas públicas em saúde
para o segmento GLBTT no Ministério da Saúde.
Flavia Teixeira 31

elas desenvolveram suas pesquisas a partir dos pressupostos das ciências sociais. Destaco no
trabalho de Berenice Bento a sua preocupação em problematizar e (des)construir o conceito
de “transexual de verdade” e (des)patologizar esta experiência, sendo que as pistas deixadas
por ela foram significativas na condução desta tese.

Como já anunciado acima e seguindo as diretrizes do trabalho de Berenice Bento,


reluto em estabelecer uma cronologia para a transexualidade. No entanto, considero pertinente
destacar aqui o ano de 1953, quando a expressão “transexualismo” foi utilizada com o
significado que lhe foi atribuído contemporaneamente – ou seja, derivado de um sistema de
classificações resultante de um protagonismo de um saber médico baseado na existência de
um sexo verdadeiro e fundamentado na medicalização da sexualidade (FOUCAULT, 1983).

Embora transexualismo seja o significante privilegiado por médicos e juristas para se


referir à experiência da transexualidade, compartilho com Berenice Bento (2003) o
entendimento da necessidade de romper com o uso patologizante do sufixo ismo. A exemplo
também das discussões do movimento gay que reivindica o abandono do termo
homossexualismo, reconhecendo sua denotação de domínio medicalizado de uma conduta
sexual perversa.

Para este trabalho, ainda seguindo as pistas traçadas pela pesquisadora, abdico do uso
que fazem os operadores – médicos, psicólogos e juristas – e também alguns antropólogos, do
termo transexual masculino para se referirem às mulheres (transexuais) nascidas com pênis e
transexual feminino para se referirem aos homens (transexuais) nascidos com vagina. Ao
nomear uma mulher (transexual) como transexual masculino recuperaria a lógica de que o
campo biológico é que deve definir o sujeito; assim todo o investimento em direção a uma
subjetividade e inteligibilidade se desfaz ou é ameaçada diante do masculino, anunciando a
sua suposta condição de farsante. O mesmo argumento utilizo para definir os homens
(transexuais).

Ainda assim, o emprego não questionado do termo transexual parecia também


inadequado. Ao encontrar no livro de Judith Butler (2006, p. 266) a referência a um episódio
nos Estados Unidos, em que um grupo de mulheres lésbicas compareceu a um evento com
camisetas onde o termo lésbica aparecia entre parênteses, porque questionava a própria
estabilidade da categoria, obtive a chave para responder provisoriamente a necessidade de
escrever sobre mulheres e homens (transexuais).

O primeiro capítulo, intitulado “O natural também é uma pose”, teve como objetivo
Vidas que desafiam corpos e sonhos 32

apresentar a polifonia de discursos sobre a transexualidade, principalmente aqueles presentes


em alguns documentos do Conselho Federal de Medicina e alguns Pareceres e Sentenças
Judiciais – que expressam os saberes médico-jurídicos. Compreender como se produz a
articulação entre esses saberes é fundamental, uma vez que o Programa de Transgenitalização
da Promotoria Pública do Distrito Federal e Territórios está permeado por ela. Algumas
pesquisas desenvolvidas no século XX, com o objetivo de identificar a origem biológica da
homossexualidade, emprestaram suas (in)certezas para compor um léxico explicativo para a
transexualidade.

A ausência de consenso no judiciário apontava para a responsabilidade do Estado, que


deveria então oferecer proteção a esses indivíduos. Se, para alguns ou algumas, renunciar a
partes de seu corpo seria um percurso importante para o reconhecimento/pertencimento, a
negativa do Estado desta autonomia pode ser também compreendida como uma ação violenta.
Condicionar a autorização de alteração no registro civil à realização do procedimento
cirúrgico também pode ser lido como ato que viola a integridade do indivíduo, conforme
identificado também nos trabalhos de Elizabeth Zambrano (2005) e Miriam Ventura (2007).
Parece escapar a eles uma questão anterior, em que homens e mulheres (transexuais), antes de
reivindicar os direitos relacionados à sua pessoa, estão lutando para serem reconhecidos como
pessoas.

No segundo capítulo, “Não basta abrir a janela”, analiso os processos das pessoas
(transexuais) que recorreram ao Programa de Transgenitalização coordenado pela Promotoria
de Justiça de Defesa dos Usuários dos Serviços de Saúde (Pró-Vida) do Ministério Público do
Distrito Federal e Territórios em busca da autorização/realização da cirurgia de
transgenitalização.

Os documentos analisados evidenciam a disputa entre o saber-poder médico e jurídico


que, enquanto decidem e reiteram suas verdades sobre o que é legítimo para o outro, praticam
a violência institucional de quem impede o outro de dizer quem é. Os peritos aparecem
ancorados na segurança de um exame psíquico, em que a história de vida refletida na
aparência da(o) entrevistada(o) parece fornecer a eles subsídios suficientes para a confecção
dos laudos, a informação ao Promotor sobre a/o “verdadeiro/a transexual” e, principalmente,
reiterar as certezas sobre um modelo essencializado de gênero.

A segunda parte desta tese se constituiu de uma tentativa de compreender essas


pessoas, (até) então apenas lidas na perspectiva de um diagnóstico, e captar a heterogeneidade
Flavia Teixeira 33

e a complexidade da experiência transexual, identificando os desafios enfrentados por homens


e mulheres (transexuais) na construção de um outro (no gênero e na sexualidade).

O terceiro capítulo, composto por fragmentos das entrevistas, observações realizadas


no período de 2004 a 2008 é uma tentativa de capturar um instante das diferentes “histórias
que não têm era uma vez”. O desenvolvimento deste trabalho está afinado com as posições
teóricas que problematizam os saberes médico-jurídicos, poderes normatizadores, que
estabelecem um lugar fixo para a transexualidade como patologia. O objetivo deste capítulo é
tratar as diversas possibilidades de vidas e a fluidez de suas experiências em contraponto com
a armadura que o conceito de transexualismo utilizado pelos saberes médico-jurídicos
pretende ajustar para o reconhecimento da pessoa (transexual).

Fechando essa tese, o quarto capítulo “Diálogos que disfarçam; conflitos por explodir”
apresenta as disputas e os desafios na reivindicação das pessoas (transexuais) por
reconhecimento. Os dilemas e armadilhas identificados no processo de reivindicação de
reconhecimento da transexualidade como uma experiência identitária legítima, afastando-se
do olhar patologizante e ao mesmo tempo negociando com o Ministério da Saúde a
elaboração de políticas públicas que atendessem as demandas das pessoas (transexuais).
Assumir a posição de reconhecimento de que se trata de uma doença, materializada através de
um diagnóstico, significa andar por um terreno escorregadio conforme demonstra a análise da
recente Portaria do Ministério da Saúde sobre o Processo Transexualizador.
Flavia Teixeira 35

PARTE I

CAPÍTULO 1

O natural também é uma pose


Flavia Teixeira 37

CAPÍTULO 1

O natural também é uma pose16

O que está em questão, neste capítulo, é pensar como a produção de um saber


específico sobre a transexualidade, materializado no diagnóstico, atribui aos médicos, juizes,
promotores e psicólogos o poder para identificar quais são as verdades da alma e do corpo,
legitimando ou proibindo a intervenção sobre este corpo.

Durante a construção desta tese, foram várias as situações em que o discurso


produzido sobre a origem biológica da homossexualidade emprestou significados para as
certezas sobre a transexualidade, entre estas o princípio da condição inata. Tal discurso sobre
a homossexualidade, embora assentado sobre um terreno escorregadio, produziu verdades
reiteradas nas (in)certezas dos discursos médico e jurídico. Estava presente na circulação dos
significados essencializados sobre o que é ser homem, mulher, os atributos do masculino e do
feminino e as sexualidades. Uma das possibilidades de apreensão desse discurso é a análise
das Resoluções do Conselho Federal de Medicina que se referem à transexualidade e algumas
decisões judiciais em relação aos pedidos de alteração de nome e sexo realizados por pessoas
(transexuais).

O impacto dessas Resoluções na vida das pessoas (transexuais) é significativo não


apenas porque elas orientam condutas profissionais, mas também prescrevem sobre o que
deve ser considerado ou não como legítimo. Inseridas num conjunto de tecnologias médicas
produzidas contemporaneamente, sua utilização também está subordinada às normas de
gênero (BENTO, 2008). Elas definem o que é adequado aos usos dos corpos e das
sexualidades e influenciam as decisões em outros campos disciplinares, inclusive no campo
jurídico.

Levando em conta o texto das Resoluções, é possível perceber que a lógica da


transexualidade como um engano da natureza opera para legitimar a cirurgia como único
caminho capaz de estabelecer uma certeza sobre o sujeito. O corpo é compreendido como
envoltório biológico em que genitália, sexo e gênero são interpretados a partir de uma

16
Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 38

perspectiva essencializante; algumas das decisões judiciais colaboram para pensar na gestão
do discurso médico.

As idéias sobre uma origem inata da homossexualidade permearam o discurso médico


sobre transexualidade e estão vastamente difundidas na sociedade contemporânea, tanto nos
movimentos de reivindicação de identidade como em pesquisas biomédicas e decisões no
campo jurídico.

Convenções biológicas: (in)certezas (re)produzidas

Eis uma reprodução reduzida do cartaz da


campanha italiana patrocinada pelo Ministério de
Igualdade de Oportunidades e por grupos de defesa
dos direitos dos homossexuais lançada em outubro
de 2007. Ele mostra um recém-nascido com a
palavra homossexual na pulseira de identificação.
Intitulada “A orientação sexual não é uma escolha”
a campanha espelha um ponto de partida comum
entre os pesquisadores que buscam a origem
biológica da homossexualidade. Nesse sentido, ela
não seria decorrente de um projeto pessoal ou

Imagem capturada da revista G OnLine.


subjetivo, mas a expressão de uma condição
biológica. A suposta universalidade da
homossexualidade, sua analogia com o comportamento de animais e a preocupação com a
causalidade são alguns dos elementos que norteiam os discursos e aproximam tais
pesquisadores. A reprodução do cartaz, nesse contexto, ilustra a atualidade e o impacto com
que algumas formas de se pensar a sexualidade performam certezas.17

17
O Caderno Mais do jornal Folha de São Paulo, em 30.03.03, apresenta pesquisas recentes em torno da
homossexualidade, destaca o artigo “O FATOR gay”, escrito por Andrew Hacker, ilustra a atualidade deste
debate. No artigo referido, o autor resenha de forma sucinta alguns livros recentes que tratavam a
homossexualidade na perspectiva da origem biológica. Entre eles, o livro de Robert Alan Brookey, “Reinventing
the Male Homosexual”considerado por ele como um trabalho minucioso na apresentação das teses sobre a
homossexualidade e o segundo, o livro “Normal”, escrito por Amy Bloom, apresentado como o resultado de uma
pesquisa envolvendo transexuais, homens heterossexuais que se travestem e adultos que nasceram com
ambigüidade genital. O argumento da origem biológica das sexualidades aponta para a escola de pensamento
Flavia Teixeira 39

Algumas pesquisas repercutiram na academia e parte de seus resultados foram


replicados na mídia, no entanto, nenhuma com a visibilidade da pesquisa de Simon Le Vay
(1991). No momento em que os resultados do trabalho deste neuroanatomista foram
publicados na revista Science, este se destacou como se fosse a primeira grande investigação
biológica sobre orientação sexual, porém Le Vay teria seguido as pistas deixadas por outros
pesquisadores.18

A pesquisa de Simon Le Vay se tornou uma referência para a defesa da origem


biológica da homossexualidade. Partindo da premissa da existência de núcleos cerebrais
sexualmente dimórficos, ele aventou a hipótese de que um desses núcleos, o NIHA 3 (Núcleo
Intersticial do Hipotálamo Anterior 3), seria de tamanho diferente entre homens homossexuais
e heterossexuais. Para o pesquisador, esses núcleos cerebrais dos homens homossexuais se
assemelhariam ao das mulheres heterossexuais.

Entretanto, isso não significa que seus resultados e conclusões forjaram consensos
entre a comunidade científica, inclusive dentro de seu próprio campo disciplinar. Entre as
discordâncias, um questionamento relevante foi formulado por Anne Fausto-Sterling (1992),
que rejeita a premissa da distinção entre o tamanho do corpo caloso de homens e mulheres;
um pressuposto que serviu de referência para as pesquisas sobre o dimorfismo sexual dos

desses autores. Em 2007, o artigo intitulado “O polêmico gene gay” reapresenta as pesquisas sobre a origem
biológica da homossexualidade partindo da polêmica gerada com a publicação do cartaz acima reproduzido. Ver:
Pablo Nogueira. Revista Galileu. Editora Globo. Edição 197 - Dez de 2007. Disponível também em:
http://revistagalileu.globo.com/Revista/Galileu/0,,EDG80153-7943-197-1,00-
O+POLEMICO+GENE+GAY.html consultado em 04/05/2008.
18
Por exemplo, em 1982, alguns neuroanatomistas postularam que os hormônios moldam os cérebros humanos;
para eles, o cérebro humano exibe dimorfismo. A equipe britânica composta, entre outros, pela bióloga Christine
de Lacoste e pelo antropólogo físico Ralph Holloway publicou um estudo na revista Science (DE LACOSTE, C.
e HOLLOWAY, R., 1982). Eles afirmam que, tal como nos ratos, partes do cérebro de homens e mulheres têm
formas diferentes. O dimorfismo sexual de De Lacoste e Holloway se localizaria no corpo caloso e diferia de
maneira tão acentuada entre os sexos que, assim como o núcleo dos ratos de Roger Gorski poderiam ser
identificados como pertencentes a homens ou mulheres macroscopicamente. Dick Swaab (1990), pesquisador
holandês, anunciou a descoberta de um núcleo no cérebro humano que seria dimórfico — não em relação ao
sexo, mas à orientação sexual. O núcleo supraquiasmático, ou NSQ, inferiu que o núcleo era duas vezes maior
nos homens homossexuais do que nos heterossexuais. Laura Allen (1989) descobrira que ambos os núcleos,
NIHA 2 e 3, eram sexualmente dimórficos nos seres humanos e significativamente maiores nos homens do que
nas mulheres. Uma das hipóteses de trabalho de Allen é que os hormônios podem determinar a orientação sexual
das pessoas e, por sua vez, a orientação sexual influenciaria na estrutura do cérebro da pessoa. Para citar alguns
pesquisadores que antecederam Le Vay, sugiro as pesquisas de Alfred Jost (1947), Charles Barraclough (1961),
Kulbir Gill (1963), Geoffrey Harris (1965), Gunther Dorner (1968 e 1975), Goy e Resko (1972), Roger Gorski
(1978), Christine De Lacoste e Ralfy Holloway (1982), Laura Allen (1989) e Dick Swaab (1990). Outras vozes
somaram-se à dele no que se relaciona ao espaço e tempo, destacando as pesquisas desenvolvidas por Michael
Bailey e Richard Pillard (1991 e 1993) e Dean Hamer e Angela Pattatucci (1993 e 1995). Por se tratar de uma
incursão que exigiria extenso levantamento bibliográfico, remeto ao trabalho jornalístico de Chandler Burr
(1998) como referência, considerando principalmente o minucioso trabalho de levantamento das pesquisas
realizadas e as entrevistas com diversos pesquisadores que participam dos debates. Parte dos resultados dessas
pesquisas será retomada ao discutir os argumentos utilizados pelos operadores do judiciário e medicina, seja nas
Resoluções do CFM ou nas decisões judiciais.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 40

núcleos cerebrais. A pesquisadora argumenta que os estudos de De Lacoste e Holloway


(1982) sobre a distinção do tamanho do corpo caloso tornou-se famoso devido à repercussão
de sua publicação em revistas e jornais conceituados como Science, New York Times e Vanity
Fair, e, ainda, estudos divergentes deste não alcançaram espaço semelhante nos órgãos de
divulgação (BURR, 1998, pp. 63-4).19

Willian Byne reitera as suspeitas de Anne Fausto-Sterling sobre a marcante diferença


na estrutura cerebral de homens e mulheres da qual o corpo caloso seria um exemplo. Ele se
tornou conhecido como crítico das pesquisas biológicas para a homossexualidade e acrescenta
outras críticas ao trabalho de Le Vay, principalmente em relação ao grupo de amostragem.20
Nessa esteira, segue Evan Balaban, biólogo da Universidade de Harvard, que discute a técnica
empregada por Simon Le Vay. A utilização do corante de Nissl para identificar a diferença
estrutural do cérebro foi o foco das críticas e argumentações deste pesquisador, para quem não
se pode afirmar a precisão das evidências do Corante de Nissl.21

O reconhecimento do princípio biológico para a homossexualidade é recorrente entre


pesquisadores que buscam identificar uma origem para a homossexualidade, e esse argumento
é apropriado por pesquisadores na tentativa de encontrar uma causalidade biológica também
para a transexualidade. O levantamento realizado por Alexandre Saadeh (2004, p. 53)
destacou pesquisadores como Green (2000) e Green e Young (2001), que recortaram a
transexualidade como preocupação contemporânea e estabeleceram a relação entre uso
preferencial das mãos e assimetria em digitais entre indivíduos transexuais. Esses trabalhos
corroboram a hipótese de que as pesquisas sobre a homossexualidade referendam os estudos e
os conceitos sobre a transexualidade.

Assim como a certeza da existência dos núcleos cerebrais sexualmente dimórficos e a


influência dos hormônios na sua constituição impulsionaram investigações sobre a origem da
transexualidade. Conforme demonstra Alexandre Saadeh:

19
Aqui a pesquisadora está se referindo ao trabalho de Franklin Mall, em 1909, que mostrou a importante
variação individual da forma e tamanho do corpo caloso dentro de cada sexo, e que passou quase despercebido
para a comunidade científica.
20
Para a pesquisa, utilizou tecido cerebral de 41 indivíduos falecidos em sete hospitais de New York e da
Califórnia. Entre eles, havia 19 homens homossexuais, todos faleceram em decorrência da Aids (entre estes, seis
possuíam histórico de uso de drogas injetáveis), 16 homens supostamente heterossexuais; e seis mulheres
supostamente heterossexuais (os autores não explicitam a causa da morte deste grupo).
21
O autor se refere a essas entrevistas detalhadamente no capítulo 3, intitulado O Debate: a prova definitiva que
a homossexualidade não é biológica. Considerando o conjunto do livro, percebo que esse capítulo poderia ter
sido melhor explorado, a exemplo dos demais, parece que o autor minimiza os argumentos contrários à tese da
origem biológica da homossexualidade.
Flavia Teixeira 41

Estudos anatômicos correlacionando tamanho de determinadas regiões do


hipotálamo (“bed nucleus da stria terminalis”) entre transexuais masculinos e
mulheres obteve (sic) alguma evidência, apesar do estudo (sic) ter sido feito
com apenas 6 indivíduos “postmortem”, em 11 anos de pesquisa (ZHOU et
al., 1995). Esses achados não se mostraram diferenciados quanto à idade de
manifestação do transexualismo, ou seja, a diminuição do núcleo guarda
relação com o transtorno de identidade e não com a idade do paciente na
manifestação do transtorno (2004, p. 52).

Argumentos análogos estão presentes na produção brasileira como, por exemplo, o


artigo publicado pela endocrinologista Amanda Athayde, integrante da equipe que acompanha
mulheres (transexuais) no Ambulatório de Endocrinologia Feminina do Instituto Estadual de
Diabetes e Endocrinologia Luiz Capriglione (IEDE) no Rio de Janeiro. Ela destaca a etiologia
da transexualidade como resultante de “uma diferenciação sexual prejudicada a nível cerebral
(...). Anomalias funcionais ou morfológicas que interfiram na ação dos androgênios a nível
cerebral podem ser responsáveis pela dissociação radical entre o sexo psicológico, gonadal,
hormonal e fenotípico no transexualismo”. Para a pesquisadora, os fatores hormonais
desempenhariam um papel importante na formação da identidade de gênero (2001, p. 409).

Aspectos desses argumentos são re-elaborados por algumas pessoas (transexuais) –


como pode ser observado no livro de Martha Freitas (1998), em que está explícito o
argumento sobre a origem da transexualidade baseada nos princípios neurofisiológicos. A
apropriação que a autora realiza das pesquisas será tema de minha preocupação, mas, antes e
apenas, para pontuar a sistemática adesão aos modelos explicativos. Os seus depoimentos
mostram sua luta – como mulher (transexual) – pela inteligibilidade e preenchem de
significado as palavras de Judith Butler:

Si yo so de un cierto género, ¿seré todavía considerado como parte de lo


humano? ¿Se expandirá lo ‘humano’ para incluirme a mi em su ámbito? Si
deseo de una cierta manera, ¿será capaz de vivir? ¿Habrá un lugar para mi
vida y será reconocible para los demás, de los cuales dependo para mi
existencia social? (2006, p. 15).

O resgate autobiográfico, com muita sensibilidade, deixa antever a posição da autora


de encontrar justificativas para o que acredita ser “anormal”. O reconhecimento de uma
“doença” e a necessidade de “tratamento” são parceiros ao buscar explicações para uma vida
quase inviável.22 Martha Freitas23 se refugia nas pesquisas biológicas e, ao citar Gunther

22
Judith Butler considera o reconhecimento como uma das questões fundamentais para a constituição de uma
vida viável. Entendendo que não existe reconhecimento fora da esfera da sociabilidade, a autora sustenta a
Vidas que desafiam corpos e sonhos 42

Dorner24 e o conjunto de suas pesquisas, recupera experimentos que demarcam o dimorfismo


sexual.

O sexo real é neural, determinado neuroendocrinamente no nosso cérebro,


diferenciando no período crítico nossa sexualidade, entre o quarto e o sétimo
meses de gestação. É inato, congênito, imutável. Determina nossos
sentimentos, emoções, impulsos e desejos fundamentais. Independendo de
nossa aparência original, sendo normalmente harmônico com ela, mas
permitindo exceções (FREITAS, 1998, p. 93).

Richard Lewontin questiona o impacto que a descoberta da homossexualidade como


biologicamente determinada teria para a luta contra a homofobia. Argumenta que as
síndromes genéticas são biologicamente determinadas e que a luta contra a discriminação dos
portadores e a favor do acesso aos direitos das pessoas não se faz baseada em argumentos
biológicos; sendo assim, problematiza a relevância política de tais pesquisas. Ressalta que
todos que pesquisam sobre as síndromes genéticas partem de uma premissa: a necessidade de
conhecer para intervir – curar. Lewontin desafia: “Se você não tem esse ponto de vista — [ ]
—, por que deveria se preocupar com isso?” (BURR, 1998, p. 354). Se a homossexualidade
ocupa espaço no debate internacional como um direito sexual, e neste cenário se afastou das
amarras do discurso bio-médico, no caso específico da transexualidade – o panorama é
diferente - para esta a necessidade de intervenção médica foi desde sempre parte dos discursos
daqueles que representam as instituições normativas e é (re)alimentado pela força
performativa com que os resultados dessas pesquisas impactam o debate nos campos médico-
judiciário conforme veremos abaixo.

Entre fios, palavras e bisturis: artifícios naturalizantes


As Resoluções do Conselho Federal de Medicina (CFM) orientaram as condutas e
procedimentos oficiais dos profissionais que direta ou indiretamente interviram nos processos
analisados. A análise dos Pareceres que sustentam essas Resoluções revela o entendimento de
que as normas de gênero devem estar em consonância com o sexo, que, por sua vez, responde

relevância do significado político do questionamento das normas de gênero.


23
Martha Freitas é membro titular da Harry Benjamin International Gender Disforia Association (HBIGDA),
cujas deliberações funcionam como referência internacional para os protocolos médicos de tratamento da
transexualidade. Disponível em diferentes idiomas através do endereço: www.gendercare.com consultado em
20/10/07.
24
Os achados de Dorner foram questionados nos trabalhos de Meyer-Bahlburg e a sua teoria da influência
hormonal na fase adulta foi descartada (BURR, 1998, pp. 134-35).
Flavia Teixeira 43

ao apelo heterossexual.

O primeiro pronunciamento oficial do CFM sobre a realização das cirurgias de


transgenitalização parece ter ocorrido através do Parecer-Consulta n°.28/7525, do conselheiro
Clarimesso Machado Arcuri, transcrito por Teresa Vieira (1995):

O problema da transexualidade reside na não aceitação da identidade sexual,


na busca desesperada pela transformação sexual pela ação cirúrgica ou
obtida por hormônios; na procura incansável pela harmonia entre o sexo
psicossocial e a atividade sexual desejada, como se pertencesse ao sexo
oposto’ e conclui ser a cirurgia não de mudança de sexo, pois muda-se a
genitália e não o sexo do indivíduo, resultando em mutilação grave e ofensa
à integridade corporal. O sexo biológico é imutável. (grifos meus)

A crença na imutabilidade do sexo retornará posteriormente, durante a consulta


realizada pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de Minas Gerais ao Conselho
Federal de Medicina que resultou na deliberação do Parecer PC/CFM/Nº. 11/1991 de abril de
1991. No documento que deu origem à consulta e que foi encaminhado ao CFM, uma mulher
(transexual) solicita a autorização para se submeter a uma cirurgia de “conversão sexual”,
com o intuito de possibilitar a “transmutação do sexo masculino para o feminino”. Destacam-
se no conjunto do Parecer argumentos que serão posteriormente recuperados para a defesa do
reconhecimento da legitimidade da cirurgia em função do sofrimento das pessoas
(transexuais), mas que naquele momento foram desconsiderados, perdendo força frente ao
suposto caráter mutilador da mesma.

Acreditamos, entretanto, ser real o sofrimento a que está submetido o


postulante por não possuir uma identidade bio-psico-social que o referencie
frente a seus semelhantes e à sociedade em que o mesmo se acha inserido.
Entretanto, se nos comove o doloroso conflito que está colocado nesta
história de vida mal vivida, não nos parece terreno seguro digressionar sobre
os aspectos filosóficos e psico-sociais de uma existência sexual rejeitada,
quando o estatuto da lei e da Ética abordam e definem, com clareza, as
questões relativas ao procedimento a ser adotado frente ao transexualismo ou
TRANSGENITALISMO, no dizer do Prof. JEAN CLAUDE NAHOUN, e o
ato cirúrgico que tornaria possível a transmutação sexual.
Assim, se nos causa constrangimento o relato dramático do Sr. Hideraldo
Oliveira sobre a sua condição existencial, não podemos deixar de citar o
valioso trabalho sobre o assunto discorrido pelo Prof. HOLDEMAR
OLIVEIRA DE MENEZES citado no relatório do IV CONGRESSO
BRASILEIRO DE MEDICINA LEGAL ocorrido em São Paulo em
dezembro de 1974, bem como o Parecer CFM n° 28/75, da lavra do Ex-

25
A biblioteca do Conselho Federal de Medicina não dispõe de tal documento para consulta. Em resposta à
solicitação, o responsável informou que, na transferência da sede do Rio de Janeiro para Brasília, este documento
se perdeu.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 44

Conselheiro CLARIMESSO MACHADO ARCURI.:


Segundo o Prof. Holdemar Oliveira, “... o transexual de alta intensidade
constitui-se por indivíduos de total inversão psicossexual, que vivem como
mulher, desejam intensa e urgentemente a mudança do sexo e, mais ainda,
prometem automutilação ou suicídio se não foram atendidos em seus anseios
que julgam justos. E conclui: Na cirurgia desejada pelo transexual, o ato é
mutilador e não corretivo”.
E conclui o nobre parecerista contrariamente à licitude da pretendida
cirurgia de conversão do sexo por infringência ao Código Penal e ao Código
de Ética Médica, por seu caráter mutilador. (grifos meus).26

O termo transgenitalismo utilizado como sinônimo de transexualismo não fica restrito


a esse Parecer. Ele será empregado nos documentos posteriores do CFM e nomeará, em
algumas partes das Resoluções, a própria cirurgia como será discutido posteriormente.
Desconheço a utilização do termo transgenitalismo na bibliografia nacional ou internacional.
Retomando o pressuposto de Austin (1990) sobre a importância dos batismos conceituais na
produção de sentido para as realidades, o enunciado desse Parecer explicita a compreensão do
Conselho Federal de Medicina ancorada na crença da imutabilidade do sexo e que,
conseqüentemente, reduziu a questão a uma “mudança de genitália”, daí resultando no termo
transgenitalismo.

Esta perspectiva pode ser observada na outra consulta analisada pelo mesmo relator e
votada no mesmo dia, que foi encaminhada pelo Conselho Regional de Medicina do Estado
de São Paulo (CRMSP) e resultou no PC/CFM/Nº. 12/1991. Esse processo é um recurso
apresentado ao CFM em razão da decisão contrária do CRMSP quanto à autorização de que o
médico (cirurgião plástico) procedesse à cirurgia de mastectomia simples bilateral a pedido de
seu paciente, diagnosticado como transexual.

Sobre este tema, este Conselho já teve a oportunidade de se manifestar,


firmando jurisprudência ao aprovar o parecer CFM nº 28/75 da lavra do
Cons. CLARIMESSO MACHADO ARCURI quando naquela ocasião,
citando vários estudiosos da matéria, dentre eles, Prof. Jean Cleude Nahoun,
o parecerista concluiu tratar-se, tal cirurgia de conversão do sexo, na
realidade de uma cirurgia de transgenitalismo, vez que “muda-se as
genitálias e não o sexo do indivíduo, resultando, portanto, em mutilação
grave e ofensa a integridade corporal proibida pela Lei e pela ética médica”.
(grifos meus) 27

26
PROCESSO CONSULTA CFM N° 0617/90 PC/CFM/Nº. 11/1991 de 13 de abril de 1991 Disponível em:
http://www.portalmedico.org.br/pareceres/cfm/1991/11_1991.htm capturado em 23 de abril de 2006.
27
PROCESSO CONSULTA CFM N° 0871/90 PC/CFM/Nº. 12/1991 de 13 de abril de 1991. Disponível em:
http://www.portalmedico.org.br/pareceres/cfm/1991/12_1991.htm capturado em 23 de abril de 2006.
Flavia Teixeira 45

Ao concluir que as cirurgias contrariariam o Código de Ética Médica em vigor desde


198828, ressaltando o artigo 42 do Capítulo III, que trata da Responsabilidade Profissional e
destaca a proibição da prática de atos contrários à legislação do país, o CFM recorria ao
dispositivo legal como o empecilho para a realização da cirurgia. O Parecer é elaborado duas
décadas após a realização da primeira cirurgia de transgenitalização a que se tem notícia no
Brasil. A cirurgia realizada pelo cirurgião Roberto Farina, em 1971, repercutiu na mídia em
função dos processos movidos pela justiça criminal e no CFM, os quais resultaram em
condenações.29

Embora em outras situações o CFM já tivesse sido chamado a se posicionar sobre a


temática da transexualidade e mesmo diante da existência de processos em que os médicos
foram arolados em razão de terem realizado a cirurgia, conforme demonstram os Pareceres
aqui discutidos, a iniciativa do debate no interior do Conselho – que resultou na elaboração do
Parecer e a Proposta de Resolução PC/CFM/Nº. 39/97, de nove de maio de 1997, que
autorizou a título experimental a cirurgia de transgenitalização – foi atribuída à repercussão
que o tema alcançou na mídia. Jorge Leite Jr. Destaca o impacto, nos anos 80, do que
considerou como “fenômeno Roberta Close” (2008, p. 202), mas aqui também importa
destacar o conjunto de reportagens em que os especialistas apresentam divergências inclusive
questionando as posições adotadas pelo CFM.30

O presente parecer originou-se de uma iniciativa da diretoria do Conselho Federal de


Medicina, a qual, preocupada com artigos sobre cirurgia de transexualismo publicados na
imprensa leiga, designou uma comissão – composta pelos conselheiros Júlio Cézar Meirelles
Gomes e Lúcio Mário da Cruz Bulhões – com a finalidade de organizar um debate sobre o
tema transexualismo.31

Parece ser a primeira vez que a definição de transexualismo é detalhada no corpo de


um Parecer do CFM que trata da questão da transexualidade, apontando que a preocupação na
organização do debate seria uma estratégia para unificar os discursos e ações dos médicos

28
Resolução CFM nº. 1.246/88, de 08.01.88 e publicado no Diário Oficial da União (D.O.U.) em 26/01/88.
(D.O.U. 26.01.88)
29
Posteriormente, o professor Roberto Farina foi absolvido e relatou suas experiências no livro em 1982. A
análise deste processo integra a tese de Tereza Vieira (1995, pp. 201-2).
30
O levantamento de reportagens veiculadas em jornais e revistas de circulação nacional entre os anos de 1988 e
1995 foi realizado por Tereza Vieira (1995). Esta pesquisadora utilizou parte das entrevistas concedidas por
especialistas e pessoas (transexuais) no conjunto das análises de sua tese de doutoramento.
31
Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/pareceres/cfm/1997/39_1997.htm capturado em 23 de abril de
2006.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 46

brasileiros, legitimando o campo da medicina como único espaço autorizado.

3.HERMAFRODITISMO PSÍQUICO [sic]- disforia do gênero ou


transexualismo, termo introduzido por Benjamin – As gônadas têm
histologia normal, mas atrofiam-se pela contínua auto-ingestão de hormônios
do sexo oposto.
Nestes casos, temos os sete níveis de diferenciação sexual concordantes,
excetuando o SEXO PSÍQUICO, FUNCIONAL E CEREBRAL. O
indivíduo só se identifica com o sexo oposto, não aceitando em nenhuma
hipótese manter-se na condição disfórica; não tem absolutamente
funcionalidade sexual ativa, apresenta ereção insuficiente, masturbação
ausente e repulsa ou desejo de castração do próprio genital, além de busca
desesperada por auxílio científico. Seu hipotálamo induz ao comportamento
e aparência física do outro sexo (grifos meus).32

É interessante ressaltar que o termo “hermafroditismo psíquico” não era o termo


investido de status capaz de qualificar a transexualidade naquele momento, não constava no
léxico oficial do saber médico, considerando os termos utilizados para caracterizar o
transexualismo descritos na CID10 ou DSMIV, mas foi utilizado como marcador inicial no
Parecer.

Para analisar a estratégia do CFM em recorrer ao termo hermafroditismo psíquico para


definir transexualismo, remeto ao trabalho de Jorge Leite Jr. (2008), que analisou a
construção de um discurso científico sobre travestis e transexuais. Considero particularmente
interessantes os argumentos de que homossexuais e travestis seriam inicialmente pensados a
partir do deslizamento da visão de um hermafroditismo clássico, para a internalização de um
hermafrodita psíquico e que o ‘transexualismo’ começa a se formar a partir do ‘travestismo’,
“no início como ramificação de uma variedade deste, depois, adquirindo uma nosografia e
caracterização próprias” (LEITE JR., 2008, p. 131). Levando em conta que o documento em
questão estabeleceria a normatização para a o reconhecimento da legitimidade da cirurgia,
recorrer ao termo Hermafroditismo poderia significar uma estratégia para evidenciar o caráter
biológico ou natural, recuperando a expressão que será reiterada em muitos outros momentos,
atribuindo o transexualismo a um “erro da natureza”.

Essa dicotomia não foi provocada pela mão do homem, nem por caprichos
de índole sexual das minorias oprimidas, mas pela própria natureza em sua
infortunística fisiológico de má formação. E pode, no caso, corrigir o homem
aquilo que a natureza, por descuido, deformou. Por que não?33 (grifos meus).

32
Parecer e a Proposta de Resolução PC/CFM/Nº. 39/97 de 09 de maio de 1997. Disponível em:
http://www.portalmedico.org.br/pareceres/cfm/1997/39_1997.htm capturado em 23 de abril de 2006.
33
Parecer e a Proposta de Resolução PC/CFM/Nº. 39/97 de 09 de maio de 1997. Disponível em:
Flavia Teixeira 47

Mariza Corrêa (2004) analisa as intervenções médicas que objetivam “corrigir uma
ambigüidade” como práticas que incidem sobre a alma e o corpo. Para a autora, os agentes
dessa transformação parecem acreditar que, em um caso, se trata de mudar o corpo sem
intervenção na “alma” (intersexualidade) e, no outro, de adequar o corpo à “alma”,
misteriosamente formada sem apelo ao corpo (transexualidade).

A idéia de uma subjetividade aprisionada num corpo será fundamental para


compreender a lógica explicativa da transexualidade como comportamento de gênero
invertido – que encontrará na pesquisa de Roger Gorski (1978) o marco desta emergência ao
distingui-la do que até então era denominado de orientação sexual, conforme Chandler Burr:

“O modelo da ratazana”, diz ele, é um modelo de transexualidade, ou seja, o


sentimento, tanto do homem quanto da mulher, de terem nascido no corpo
do sexo errado. Com nosso direcionamento hormonal, refizemos de maneira
efetiva a fiação do sistema sexual do macho até chegarmos ao ponto em que,
com toda a probabilidade, o que ele está pensando é “Ajudem-me! Sou
mulher, me tirem deste corpo de homem!” (1998, p. 69) (grifos meus).

O argumento do aprisionamento em corpo errado é apropriado e reiterado


constantemente como modelo explicativo da transexualidade, inclusive pelo cirurgião
brasileiro Roberto Farina para justificar a cirurgia:

(...) nos transexuais acontece uma troca não de genital, mas cerebral. Àquela
pessoa portadora de um corpo biológico masculino foi atribuída uma mente
feminina e vice-versa. Por isso é preciso ajustar o corpo à mente do
indivíduo, já que a mente jamais vai se ajustar ao corpo, nesses casos (apud
VIEIRA, 1995, p. 206).

Esse modelo explicativo, vigente no âmbito médico, é incorporado por profissionais e


pesquisadores da área da psicologia, conforme encontramos nos trabalhos de Maria Alves de
Toledo Bruns e Claudiene Santos (2007): “os transexuais masculinos sofrem por se
perceberem psiquicamente como mulheres, mas aprisionados num corpo masculino, ou vice-
versa, as transexuais femininas se percebem aprisionadas psiquicamente à identidade
masculina.”34 Também a psicóloga Jaqueline Pinto corrobora o argumento de que para as
pessoas (transexuais) a discordância se dá entre corpo e alma, para a autora: “no caso de
transexuais masculinos são almas femininas aprisionadas no corpo masculino” (2003, p. 69).

http://www.portalmedico.org.br/pareceres/cfm/1997/39_1997.html capturado em 23 de abril de 2006.


34
Trabalho apresentado no Seminário Internacional Fazendo Gênero 7, 2006 (sem numeração de páginas).
Disponível em: http://www.fazendogenero7.ufsc.br/st_16.html consultado em 05 de maio de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 48

Atribuir a causalidade da transexualidade a uma disfunção hormonal, oriunda do mal


funcionamento do hipotálamo, é outro argumento que aproxima o modelo explicativo da
transexualidade às pesquisas sobre a origem biológica da homossexualidade. O fragmento
extraído do Parecer do CFM – e já reproduzido anteriormente – exemplifica o poder
explicativo que essa teoria atingiu.

São os “erros da natureza” e a ausência de “escolha” que se constituirão numa


expressão chave que parece ter obtido consenso entre os especialistas e configuram o que
Bruno Latour (2000) denominou como caixa preta da ciência. Ou seja, um ponto de referência
sobre o qual não paira questionamentos, não se questiona o contexto e os sujeitos envolvidos
na produção deste conhecimento.

A representação de um pênis como sendo um órgão débil e repugnante não tem início
no Parecer do CFM. Entretanto, ela se aviva através deste, remetendo à reflexão sobre a
capacidade performativa que a linguagem possui de criar realidades. A ausência da
masturbação e a ereção insuficiente são elementos reivindicados para atribuir a “não
funcionalidade do órgão” e justificaria que a retirada do mesmo não contrariaria o disposto no
artigo 129 do Código Penal.

Ao reivindicar a competência para “oferecer à sociedade uma proposta ética


conciliatória entre a possibilidade plástica e os impedimentos legais que vedam a mutilação
do ser humano, vista como a simples supressão de Órgão ou funções (...)” 35, o CFM colabora
para pensar a construção de um dispositivo que visa transformar a transexualidade numa
doença psíquica, justificar a sua medicalização e, ao mesmo tempo, através de um saber-fazer,
estabelecer os limites sobre quem é legitimo para atuar nesse contexto. Assim são acionados
os espaços de poder da medicina e do direito para julgar e decidir sobre um bem de interesse
público: “o sexo do corpo” (VENTURA, 2007, p. 26). A interpretação do artigo 42 do Código
de Ética Médica será também alterada com respaldo no artigo 199 da Constituição Federal:

O impedimento ético estaria configurado no artigo 42 do Código de Ética


Médica, que literalmente veda ao médico: “Praticar ou indicar atos médicos
desnecessários ou proibidos pela legislação do País”, não fosse a licitude
evidenciada no artigo 199 da Constituição Federal, parágrafo quarto, que
trata das condições e requisitas que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e
substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento; a isso,
alia-se o fato de que a transformação da genitália constitui a etapa mais

35
Parecer e a Proposta de Resolução PC/CFM/Nº. 39/97 de 09 de maio de 1997. Disponível em:
http://www.portalmedico.org.br/pareceres/cfm/1997/39_1997.htm capturado em 23 de abril de 2006.
Flavia Teixeira 49

importante no tratamento de transexualismo.36

Considerando que a Constituição Federal a que se refere o Parecer foi promulgada em


1988, no mesmo ano que a atual revisão do Código de Ética Médica, restam dúvidas sobre o
que teria então promovido mudanças no posicionamento do CFM nos Pareceres de 1991 e
1997. O destacado lugar que a cirurgia assumiu, passando da condição de proibida e
assumindo o status de redentora e considerada a etapa mais importante no tratamento de
transexualismo será problematizado ainda neste capítulo e também, no último capítulo,
quando analiso a Portaria Ministerial que estabeleceu o Processo Transexualizador no Sistema
Único de Saúde.

Portanto, a questão ética primordial para o CFM como setor avançado da


sociedade médica e tutor dos interesses sociais da medicina é definir como
tratamento a correção cirúrgica da genitália externa e dos caracteres sexuais
secundários, visando recompor a unidade biopsicomorfológica do ser
humano, muito acima da simples função reprodutora. (grifos originais)

Como estratégia discursiva para o afastamento da idéia de amputação dos órgãos, a


psicanalista Marina Teixeira (2003) identifica a utilização do termo transgenitalização com o
intuito de sublinhar a ausência de procedimentos de amputação na técnica cirúrgica de
“mudança de sexo”. Destaca o interesse da comunidade científica envolvida nessa prática
específica em ressaltar que, do ponto de vista técnico, a cirurgia não envolve procedimentos
mutilatórios, mas uma transposição anatômica através do reaproveitamento dos tecidos.

Embora as decisões do Conselho Federal de Medicina e mesmo dos Conselhos


Regionais, anteriores à Resolução 1482, de 1997, parecessem unânimes quanto ao caráter
ilícito da cirurgia de transgenitalização, o Parecer assinado pelo presidente do Conselho
Regional de Medicina do Distrito Federal, em 1995, apontou para o sentido divergente ao
julgar a ação contra o Dr. Antonio Lino de Araújo – que realizou a cirurgia em um hospital
público de Brasília. Sua decisão foi que: “... A transgressão da lei, desde que responsável,
também é um ato de cidadania. O médico tem o direito de transgredir quando quer privilegiar
o ser humano. (...) Pessoas adultas têm o direito de decidir sobre seu próprio corpo.”37

36
Parecer e a Proposta de Resolução PC/CFM/Nº. 39/97 de 09 de maio de 1997. Disponível em:
http://www.portalmedico.org.br/pareceres/cfm/1997/39_1997.htm capturado em 23 de abril de 2006.
37
Este Parecer não está disponível para acesso na biblioteca do CFM. A sua leitura parcial foi realizada através
do trabalho de Tereza Vieira (1995, p. 209), que o obteve a partir da matéria jornalística, veiculada no jornal
Folha de S. Paulo e assinada por Cynara Menezes e Raquel Ulhôa, intitulada “Parecer do CRM considera ética
Vidas que desafiam corpos e sonhos 50

Mesmo depois da Resolução de 1997, a possibilidade de o médico ser acusado por


lesão corporal gravíssima não estaria definitivamente descartada. Segundo a advogada
Mariana Dutra (2003, p.160), a questão estaria resolvida caso a pessoa obtivesse na justiça a
autorização para se submeter ao procedimento. Posicionamento divergente da advogada
Tereza Vieira:

Entendemos que o transexual não necessitará ingressar com ação em juízo


para obter autorização para a realização da cirurgia, por ser a questão de
competência médica, não demandando controle judicial, resolvendo-se de
acordo com os princípios éticos. Tal profissional tem formação específica,
portanto conhecedor das minúcias que envolvem tão delicada cirurgia.
(2000, p. 67)

Miriam Ventura (2007b) exemplifica a posição (ainda que minoritária) de juristas que
não consideram as Resoluções do CFM como instrumentos normativos adequados para
tratarem do tema e alerta para a necessidade de uma lei federal “que regule amplamente a
situação legal do transexual” (2007, p. 80). A preocupação dessa pesquisadora encontraria
fundamento nas decisões de Juízes ou Desembargadores, como se percebe, por exemplo, no
Acórdão do processo em sentença publicada em 2004, após a segunda Resolução do Conselho
Federal de Medicina. Ali, a vedação legal do procedimento foi considerada:

Só o Judiciário pode dizer se determinada situação, se alguma conduta é


legal ou se insere no rol dos procedimentos puníveis à luz da lei penal.
A respeito da extirpação ou ablação de órgãos ou tecidos humanos, essa
pode caracterizar crime de lesão corporal de natureza grave, tal como
conceituado nos incisos III e IV, do parágrafo 2º, do artigo 129 do Código
Penal.
Alguns estudiosos do tema entendem que não há crime quando a cirurgia é
praticada com o intuito de cura, como se dá, por exemplo, nos casos de
extirpação de órgãos para conter ou eliminar doenças gravíssimas, como o é
o câncer. Assim, cuidando-se de procedimento que faz parte de tratamento
de saúde, não haveria o delito.
Mas essa questão, quando se cuida da cirurgia que elimina órgãos sexuais,
ainda é controvertida, mesmo porque, como já demonstrado, não há certeza
quanto aos resultados, e muito menos se pode dizer que há cura. São
necessários estudos mais aprofundados, com demanda de maior lapso
temporal, para se chegar a tal certeza.
E isso se torna ainda mais relevante quando se vê que a cirurgia gera
situação fática de difícil solução, que é o problema com o qual agora nos
deparamos, na medida em que, externamente, a pessoa assume aparência de
ser pertencente a sexo diverso daquele com o qual foi contemplado pela
natureza.

mudança de sexo”, em 10/08/1995.


Flavia Teixeira 51

O que me parece relevante é que, se há legisladores que entendem necessária


a regulamentação, e a chamada legalização das referidas cirurgias, mostra-se
inarredável a conclusão de que, por enquanto, tais cirurgias só deveriam ser
realizadas sob autorização judicial.38 (grifos meus)

Durante a cirurgia que acompanhei, no Programa de Transgenitalização de São José


do Rio Preto, ao retirar os testículos da paciente, o cirurgião ressaltou que os mesmos eram
pequenos e atrofiados em decorrência do uso de hormônios. Ou seja, ele estava retirando uma
parte sem função ou com função prejudicada. Em vários outros momentos, ressaltou que
nenhuma parte saudável seria removida.39

A intensa preocupação com o caráter mutilador da cirurgia encontra explicação no


debate em torno da liberação da cirurgia no Brasil. No entanto, existem fraturas importantes
dentro do mesmo discurso. O Parecer do representante do Ministério Público, na sentença da
Apelação Cível nº. 70011691185/2005 interposta ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio
Grande do Sul por J.A.P. é elucidativo disso. No documento, foram elencadas as diversas
cirurgias a que J.A.P. Foi submetida “mastectomia (retirada das mamas), colpectomia
(extração da vagina), histerectoma (retirada do útero), ooforectomia (extração dos ovários),
além de adenomastectomia (esvaziamento do tecido mamário glandular)”.

O intrigante é que no documento não há menção ou ressalvas dos juristas ou médicos


quanto a situar, no mesmo patamar, o caráter considerado mutilador de tais procedimentos
como no caso da retirada do pênis das mulheres (transexuais). A remoção do aparelho
reprodutor feminino não é sequer considerada, e parece apagada diante da “magnitude” do
pênis e na preocupação demonstrada sobre o caráter disfuncional dos testículos, que
justificaria sua extirpação sem causar dano. Recorro ao argumento desenvolvido por Judith
Butler, que identifica, nas condutas que reafirmam as normas tradicionais de gênero, a não
necessidade de questionamento ou chancela psiquiátrica.

Sugiero que todo esto parecería menos extraño si comprendiéramos que la


cirugía cosmética forma un continuo con todas las otras prácticas en las que
se involucran los humanos con el fin de mantener y cultivar las
características primarias y secundarias de sexo por razones culturales y
sociales. Entiendo que a los hombres que quieren aumentar el tamaño de su

38
Voto do Desembargador Moreira Diniz do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais . Processo nº.
1.0000.00.296076-3/001(1) publicado em 08/06/2004.
39
Agradeço ao Dr. Carlos Cury a autorização para acompanhar a cirurgia de transgenitalização e a generosidade
com que me explicou todo o processo. Agradeço igualmente a B., que consentiu na minha presença durante o
processo cirúrgico e me recebeu em seu quarto no dia seguinte à cirurgia. As observações sobre essa experiência
são citadas ao longo texto nos momentos em que a discussão é pertinente.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 52

pene o a las mujeres que quieren aumentar o disminuir el tamaño de sus


pechos no se les manda al psiquiatra para que les emita un certificado. Por
supuesto, es interesante considerar, a la luz de las actuales normas de género,
por qué una mujer que quiere reducir sus pechos no necesita certificación
psicológica, mientras que un hombre que desee reducir el tamaño de su pene
probablemente la necesitará. (BUTLER, 2006a, p. 128)

Também o contraponto com a cirurgia para remoção do par de costelas flutuantes para
fins estéticos não levantou a discussão sobre seu caráter ético.40

Em vigor desde 1997, a Resolução CFM nº. 39/97 foi revogada e substituída pela
Resolução CFM nº. 1.652/2002, a qual manteve inalterada a definição dos critérios para o
diagnóstico de transexualismo. A alteração mais evidente desta Resolução é a retirada do
caráter experimental da cirurgia neocolpovulvoplastia. Ela estabelece:

Art. 1º Autorizar a cirurgia de transgenitalização do tipo


neocolpovulvoplastia e/ou procedimentos complementares sobre gônadas e
caracteres sexuais secundários como tratamento dos casos de
transexualismo.
Art. 2º Autorizar, ainda a título experimental, a realização de cirurgia do tipo
neofaloplastia e/ou procedimentos complementares sobre gônadas e
caracteres sexuais secundários como tratamento dos casos de
transexualismo.
Art. 6º Que as cirurgias para adequação do fenótipo masculino para feminino
poderão ser praticadas em hospitais públicos ou privados, independente da
atividade de pesquisa. 41

As considerações que antecedem as decisões no texto da própria Resolução, dizem de


uma efetividade técnica para a realização das cirurgias:

CONSIDERANDO o estágio atual dos procedimentos de seleção e


tratamento dos casos de transexualismo, com evolução decorrente dos
critérios estabelecidos na Resolução CFM nº. 1.482/97 e do trabalho das
instituições ali previstas;
CONSIDERANDO o bom resultado cirúrgico, tanto do ponto de vista
estético como funcional, das neocolpovulvoplastias nos casos com indicação
precisa de transformação o fenótipo masculino para feminino;
CONSIDERANDO as dificuldades técnicas ainda presentes para a obtenção
de bom resultado tanto no aspecto estético como funcional das

40
A Equipe do Fantástico, exibido pela Rede Globo de Televisão em 03.12.2006, apresentou a reportagem
intitulada: A que ponto chega a vaidade feminina? O cirurgião plástico Dr. Ivo Pitanguy, mesmo tendo alertado
para o caráter mutilante do procedimento, não citou o aspecto ético ou legal do mesmo. Disponível em:
http://fantastico.globo.com/Jornalismo/Fantastico/0,,AA1373516-4005-594748-0-03122006,00.html consultada
em 05/05/2007.
41
www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2002/1652_2002.htm consultado em 04/03/2006.
Flavia Teixeira 53

neofaloplastias, mesmo nos casos com boa indicação de transformação do


fenótipo feminino para masculino...42

É preciso lembrar que em 2002, quando aprovada tal Resolução, ainda não havia
publicações nem de dados nem de estudos sobre o resultado das cirurgias realizadas no Brasil
e a efetiva “re-integração” das/dos (transexuais) conforme justificativa da proposta. As
primeiras teses e dissertações sobre os Programas implantados no Brasil foram defendidas em
período posterior a 2002 e não contam, até o momento, com estudos de acompanhamento das
pessoas que passaram pelo processo cirúrgico.43

Na literatura internacional, existem relatos de acompanhamento das experiências de


pessoas (transexuais) que foram submetidas às cirurgias. O livro de Jole Baldaro Verde e
Alessandra Graziottin (1997) reúne diferentes experiências da realidade italiana e critica a
opção indiscriminada pela cirurgia, comparando a experiência dos Estados Unidos onde, no
entendimento das autoras, as cirurgias foram abusivas. Adotando uma postura explicitamente
contrária à indicação indiscriminada da cirurgia através da auto-determinação e defendendo a
psicoterapia como elemento fundamental do processo de diagnóstico, as autoras ancoram suas
críticas nos resultados de pesquisas follow-up, que revelam índices de complicações como
solicitação de retorno ao sexo precedente, suicídio, longos períodos de hospitalização,
episódios psicóticos.

Em relação a estudos com esse formato, analisando as cirurgias realizadas no Brasil,


Maria Inês Lobato e outros publicaram, no ano de 2006, um trabalho no qual apresentam
resultados sobre as/os (transexuais) submetidas/os ao procedimento cirúrgico no Hospital de
Clínicas de Porto Alegre, em que a satisfação sexual teve destaque como elemento ícone do
sucesso da intervenção (LOBATO et. al., 2006).

Ao discorrer sobre as pesquisas internacionais que avaliaram a efetividade da cirurgia


de transgenitalização para as/os (transexuais), Alexandre Saadeh (2004) traça um panorama

42
www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2002/1652_2002.htm consultado em 04/03/2006.
43 Esta foi a temática recortada por Maria Jaqueline Pinto (2008), integrante da equipe responsável pela cirurgia
de transgenitalização em São José do Rio Preto. Na pesquisa de doutoramento, estabeleceu como foco o
acompanhamento do pós-cirúrgico das pessoas que se submeteram ao procedimento cirúrgico no Hospital de
Base da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto. A atualidade desta questão pode ser observada
também na pesquisa, em andamento, coordenada por Márcia Arán intitulada, Transexualidade e Saúde:
condições de acesso e cuidado integral. Pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico, que tem como parte de seus objetivos mapear os serviços de assistência a transexuais
existentes nos Hospitais Públicos do Brasil e investigar o processo de cuidado prestado aos transexuais e
elaborar proposições que subsidiem políticas públicas no âmbito do SUS.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 54

representativo, em que um dos critérios adotados para verificar o componente de satisfação


foi a presença de orgasmo após a cirurgia. Avaliar o sucesso do procedimento cirúrgico a
partir da satisfação sexual introduz um outro elemento no cenário das discussões,
considerando que, na literatura da temática transexual, em princípio, o prazer sexual não é
conteúdo de demanda para a realização da cirurgia, uma vez que contraria a idéia da
qualidade “assexuada” da pessoa (transexual). De acordo com a advogada Tereza Vieira, o
processo cirúrgico não deveria garantir a possibilidade de obtenção de prazer sexual:

É evidente que o cirurgião plástico não poderá obrigar-se a conseguir


resultado certo no tocante à cura do paciente que realiza tal cirurgia. A
obtenção do orgasmo ou prazer carnal é resultante da somatória de diversos
fatores. O efeito estético deverá ser a semelhança ao sexo almejado, não se
objetivando a perfeição. Todavia, a nova genitália deverá permitir ao
operado a realização normal de suas necessidades fisiológicas (VIEIRA,
2000b, p. 92).

Percepção distinta da psicanalista Marina Teixeira, para quem a redução ou o


impedimento do prazer sexual seriam interpretados como indicadores do caráter mutilador da
cirurgia:

(...) a extensão dos resultados cirúrgicos da transgenitalização


invariavelmente levanta o problema, a meu ver capital para a clínica do
transexualismo, que concerne à compatibilidade entre a mudança de sexo e o
prazer sexual. Chamo atenção para esse aspecto da mudança de sexo uma
vez que uma das conseqüências do procedimento de transposição anatômica
é a probabilidade de reduzir consideravelmente as chances do prazer sexual.
O próprio Dr. [ ] sublinha esse aspecto de que, na medida em que a cirurgia
confecciona uma neovagina, não haverá impedimento para a prática do coito
em transexuais operados; no entanto, “a possibilidade de orgasmo é
discutível, é muito difícil ter o orgasmo”. Ele acredita “que nem 2% de
transexuais tenham o orgasmo”. Portanto, apesar da tendência atual, no
campo dessa tecnologia médica em desmistificar o aspecto mutilatório da
cirurgia, o alcance das modificações cirúrgicas diz respeito, especialmente, à
morfologia do novo sexo, pois do ponto de vista funcional, a
transgenitalização atinge resultados razoáveis. A vaginoplastia oferece uma
genitália externa de boa aparência, funcionamento razoável em termos de
micção, funcionamento razoável em termos de relações sexuais e
sensibilidade genital duvidosa. A mudança de sexo torna improvável a
possibilidade de resposta orgásmica fisiológica (2003, pp. 33-4).

A ausência de consenso em relação ao alcance do procedimento cirúrgico pode ser


ilustrada na preocupação demonstrada pelo Dr. Carlos Cury, ao explicitar os cuidados para
preservação de toda a estrutura do pênis. Segundo o cirurgião, “manter a funcionalidade da
neovagina não significa apenas garantir o perfeito funcionamento da uretra, o prazer sexual
Flavia Teixeira 55

também é um componente importante nessa funcionalidade”.44

A possibilidade do prazer sexual parece se constituir numa preocupação importante


para as mulheres (transexuais).45 A análise dos processos revela esta preocupação que pode
ser captada em alguns fragmentos como: “na cirurgia o médico só retira um testículo e deixa o
outro incluso para manutenção do ‘prazer’ da paciente”46 e na declaração do cirurgião: “(...)
Apresentou-se insatisfeita com os diâmetros da neo-vagina, embora a profundidade de 12 cm
esteja dentro dos limites aceitáveis para a designação cirúrgica genital”.47

O suposto sucesso da cirurgia teve na manutenção das estruturas que garantissem a


fisiologia apropriada para a obtenção do orgasmo, argumento escolhido para justificar a
retirada do caráter experimental da cirurgia de neocolpovulvoplastia. Porém, numa
perspectiva oposta à adotada pelo CFM, o prof. Dr. Carlos Cury acredita que o caráter
experimental do procedimento deveria ser mantido em função da complexidade técnica e da
necessidade de se garantir a presença de uma equipe multidisciplinar.48 Perspectiva
compartilhada pela Dra. Mariluza Terra Silveira, coordenadora do Programa que realiza as
cirurgias no Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Goiânia, sendo que a mesma
enfatiza a necessidade de que as cirurgias se mantenham restritas aos espaços de pesquisa.49

A necessidade da retirada do caráter experimental da cirurgia corresponderia a uma


demanda burocrática do Ministério da Saúde para que sua inclusão entre os procedimentos a
serem pagos pelo SUS – conforme Ofício GS/Nº 885 de 09 de julho de 2002 do Ministério da
Saúde.50 No referido Ofício, o então Secretário de Assistência à Saúde justificaria a negativa
da inclusão fundamentada no caráter experimental dos procedimentos.

Ressalto que, embora a cirurgia de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia


deixou de ser considerada experimental na Resolução de 2002, somente em 2008 foi
autorizada sua integração à Tabela de Procedimentos do Sistema de Informações Hospitalares

44
Anotações do Caderno de Campo. Observações sobre a cirurgia de transgenitalização realizada em
04/05/2007.
45
Nesse momento, me refiro somente às mulheres (transexuais) em função de que, no universo pesquisado,
apenas foram realizadas as cirurgias de neocolpovulvoplastia e também a Resolução retirou o caráter
experimental apenas da referida cirurgia, mantendo o da neofaloplastia.
46
Relatório Social nº. 01/01 constante no processo de A.E.B..
47
Laudo Médico informando sobre a cirurgia realizada em J.R.S.G..
48
Anotações do Caderno de Campo, observações da cirurgia de transgenitalização, São José do Rio Preto, em
04/05/2007.
49
Entrevista Pessoal, Uberlândia, agosto de 2007.
50
Encontrado entre os anexos do processo de W.P.S. na Promotoria.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 56

do Sistema Único de Saúde – SIH/SUS – através da Portaria n. 17.07 de 18 de agosto de


2008. A remuneração dos Hospitais de Ensino que realizavam a cirurgia ainda se fazia
através da Portaria Conjunta SESU/MEC-SAS/MS nº. 01, de 16 de agosto de 1994, que
regulamenta a concessão do Fator de Incentivo ao Desenvolvimento de Ensino e Pesquisa –
FIDESP-HE. Em função da centralidade dessa Portaria no desenrolar desta tese, ela será
analisada no capítulo quatro.

Posteriormente à resposta do Ministério da Saúde, encontrei no processo de VXM o


Ofício nº. 528/02 - MPDFT/PRÓ-VIDA, de 03 de setembro de 2002, endereçado ao
Presidente do Conselho Federal de Medicina. Através dele, identifico indícios que
responderiam ao questionamento sobre a edição da Resolução CFM nº 1652/2002 de 06 de
novembro de 2002, mas que principalmente evidenciam a estreita relação entre o poder
judiciário e o poder médico, que em alguns momentos se unem, outros de distanciam, mas
preservando o lugar de normatizadores das relações sociais. No documento em questão,
percebo que uma visita pessoal do Promotor ao Conselho Federal de Medicina antecedeu ao
referido Ofício. O Promotor solicitou que o CFM analisasse a possibilidade de retirar da
cirurgia de transgenitalização o caráter de experimental, o que tornaria possível sua inclusão
na Tabela de Procedimentos do SIH/SUS, anexando ao Ofício a resposta do Secretário de
Assistência à Saúde do Ministério da Saúde51 que justificaria tal solicitação. Elizabeth
Zambrano alude a essa intervenção do Ministério Público naquela decisão:

No “Fórum Estadual de Transexualismo e Cidadania – Em Busca do


Reconhecimento dos Transexuais”, realizado no Hospital de Clínicas de
Porto Alegre, no dia 10/12/2002, foi noticiado pelo Procurador da República,
Dr.Luiz Carlos Weber, que no dia 06/11/2002 o Conselho Federal de
Medicina, acionado pelo Ministério Público, reconheceu o caráter não-
experimental da cirurgia de troca de sexo masculino para feminino,
mantendo o caráter experimental da cirurgia de troca de sexo feminino para
masculino, por não estarem totalmente resolvidos alguns problemas técnicos
(2003, p. 91). (grifos meus).

A adequação do corpo para uma performance de gênero coerente e fixa de acordo com
as normas sociais vigentes é sempre colocada como única meta a ser alcançada através da
cirurgia que garantiria a “inclusão”. O discurso que justifica a cirurgia se sustenta na
necessidade de favorecer os laços de sociabilidade das pessoas (transexuais). Conforme o

51
Ofício GS/Nº. 885 de 09 de julho de 2002. Resposta ao Promotor de Justiça sobre sua solicitação de que fosse
incluída na Tabela de Procedimentos do Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde –
SIH/SUS a cirurgia de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia e neofaloplastia e/ou procedimentos
complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários.
Flavia Teixeira 57

fragmento: “A cirurgia de redesignação cirúrgica do sexo torna-se instrumento indispensável


na visão moderna dos fatores que diferenciam o sexo, e instrumento capaz de integrar os
pacientes na cidadania e ressocializá-los definitivamente”.52

Se todo o discurso pró-cirurgia se fundamenta na bem intencionada “ressocialização”


da/o transexual, o silêncio sobre como estabelecem suas relações cotidianas revelam a
percepção medicalizada e centrada na doença, conforme informam os agentes que constroem
e atualizam o discurso sobre a transexualidade. As expectativas em relação ao período pós-
cirurgia não aparecem nos trabalhos consultados. Assim como são insuficientes as pistas
sobre como vivem as/os (transexuais), tornando menores as possibilidades de se pensar como
planejam viver após a cirurgia.

O tratamento, nas normas deontológicas, parece terminar com a cirurgia, no entanto,


Miriam Ventura alerta para as conseqüências clínicas deste ato, em que, novamente, as
pessoas transexuais são expostas a situações de vulnerabilidade:

[no pós-cirúrgico] o acompanhamento do estado clínico geral do paciente e


constatar a estabilidade emocional, o grau de satisfação e de melhora da
qualidade de vida experimentada pelo paciente após o tratamento, e
evidenciar se o tratamento foi adequado e efetivo para o enfrentamento do
transtorno. Os principais efeitos adversos relatados estão relacionados ao uso
de hormônios, como é o caso de fenômenos tromboembólicos, isquemia
cerebrovascular, elevação das enzimas hepáticas e outros, além de questões
acerca do resultado estético e funcional da cirurgia realizada, como
dificuldades de manter relação sexual com a nova genitália, dentre outras.
(2007, p. 73)

Essa ausência de relatos pode ser também compreendida sob perspectiva


complementar. A psicóloga Maria Jaqueline Pinto reafirma a dificuldade para estabelecer
contato e acompanhamento dessas pessoas após a realização da cirurgia, quando algumas nem
mesmo retornam para realizar os procedimentos de correção indicados pela equipe e outras,
após este período, deixam de responder ao contato com a equipe, muitas vezes, como
resultado de uma tentativa de apagamento do passado.53 No próximo capítulo, a vontade
manifesta de esquecimento será discutida a partir de três processos acompanhados no
Programa de Transgenitalização.

52
JALMA JURADO in: Laudo Médico constante no processo de K.F.S. p. 4.
53
Entrevista pessoal, São José do Rio Preto/SP, em 04de maio de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 58

Do Y ao X: o encantamento da técnica
Joanne Meyerowitz (2004) destacou o impacto que a cirurgia de transgenitalização -
compreendida como a possibilidade de a intervenção médica operar a “mudança de sexo” -
exerceu no imaginário europeu, e, principalmente nos Estados Unidos, a partir da segunda
metade do século XX. No Brasil, a autorização do procedimento ocorre somente no final da
última década do referido século, no entanto, o lugar que a cirurgia ocupa neste cenário está
implícito na Resolução CFM nº. 1.652/2002, em que a substituição do termo transexualismo
por transgenitalismo como diagnóstico, mais uma vez, não poderia passar despercebida.
Destaco a capacidade performática do diagnóstico que se transforma na própria cirurgia.

Art. 4º Que a seleção dos pacientes para cirurgia de transgenitalismo


obedecerá a avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico
psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social,
obedecendo os critérios abaixo definidos, após, no mínimo, dois anos de
acompanhamento conjunto:
1) Diagnóstico médico de transgenitalismo; [sic];
2) Maior de 21 (vinte e um) anos;
3)Ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia.54 (grifos
meus)

Explicando a mim o processo cirúrgico, o cirurgião recoloca a temática de maneira


explícita: “tudo começa no Y e termina no X”. O Y se refere ao formato da marca traçada
com o pincel e que deve orientar a primeira incisão por onde a cirurgia tem início. O X é o
formato final, vista frontal, desenhado pela sutura que finaliza a cirurgia. Do Y ao X esse é a
transposição fabricada pela cirurgia. Retomando a composição cromossômica do sexo
biológico, XY corresponderia ao determinante do homem e XX da mulher. Entendo ser este o
lugar que a cirurgia passa a ocupar no imaginário social, uma técnica capaz de (re)atribuir um
traço biológico. Sex Reassignment, Redesignação Sexual ou Re-assinalamento Sexual são os
termos que surgem na literatura oficial sobre o transexualismo e também no DSM IV, que, em
língua portuguesa, optou pela tradução cirurgia de reatribuição sexual (1995, p. 507).

O cirurgião Roberto Farina (1982) também acreditava no caráter inato e imutável da


transexualidade. Para ele, o tratamento adequado seria “mudar a mente” das pessoas
(transexuais) para ajustá-la à genitália, mas, assim como Harry Benjamin, não acredita na
eficácia da psicoterapia e transfere para a cirurgia a responsabilidade de recolocar a harmonia

54
www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2002/1652_2002.htm consultado em 04/03/2006.
Flavia Teixeira 59

entre o corpo (então reduzido à genitália) e a mente.

No trabalho de Jaqueline Pinto (2003), destaca-se o número de páginas destinadas a


demonstrar as técnicas cirúrgicas, que também são detalhadas na tese de Alexandre Saadeh
(2004). Ambos trabalhos têm como foco aspectos psicodinâmicos da transexualidade. Assim,
percebemos que a sedução da cirurgia incorpora também outros sujeitos, conforme denuncia
Marina Caldas Teixeira:

Na verdade, tal como afirmam os cirurgiões, o procedimento cirúrgico, nos


casos de transexualismo masculino, tem a capacidade técnica de fazer com
que o seu produto, a prótese cirúrgica da genitália feminina, seja
extremamente similar ao modelo natural. Por esse feito, a medicina
contemporânea tem sido unânime em considerar as cirurgias de mudança de
sexo como o único recurso terapêutico eficiente nesses casos. Assinalo que é
a afirmação dessa eficácia da técnica que tem sido o argumento maior para a
consolidação da terapêutica cirúrgica nos casos de transexualismo
masculino. É posição desta dissertação salientar que a cirurgia de mudança
de sexo vem afirmando o transexualismo como uma condição intratável de
outra forma. Em outros termos, se cada vez mais o transexual entrega seu
corpo às cirurgias de mudança de sexo, isso se deve à alardeada eficácia da
técnica nessas cirurgias. Vale o princípio de que é a oferta que cria a
demanda. É na oferta da técnica de redesignação cirúrgica do sexo que se
sustenta o que, do ponto de vista da medicina, é a demanda dos transexuais
dirigida aos cirurgiões. De forma contundente, sublinho que, antes de tudo, é
em função da alardeada eficácia técnica dos procedimentos cirúrgicos de
mudança de sexo que se promove o re-direcionamento do gozo
transexualista para as cirurgias de mudança de sexo (2003, p. 38).

Marina Teixeira se posiciona contrária aos pressupostos estabelecidos pela HBIGDA55


(The Harry Benjamin International Gender Dysphoria Association) de 2001, que ao
estabelecerem os Padrões de Cuidados para Transtorno de Identidade de Gênero,
considerando o tripé terapêutico formado pela psicoterapia, a terapia hormonal e a cirurgia de
transgenitalização, reconhecem a cirurgia como tratamento efetivo e apropriado para o
transexualismo. As Resoluções do CFM parecem corroborar com a definição da HBIGDA de
que a cirurgia deve ser recomendada como único método capaz de solucionar o problema da
transexualidade.

A estreita relação entre o direito e a medicina na temática da transexualidade foi

55
O primeiro congresso da Associação Harry Benjamin aconteceu em 1969. Seu principal líder foi o próprio
Harry Benjamin. Parte das subvenções para as pesquisas provinham da Erickson Educational Foundation. Em
1977, no seu quinto congresso, a associação passou a chamar-se “Harry Benjamin International Gender
Dysphoria Association (HBIGDA). A HBIGDA realiza seus congressos bienalmente, o último foi em
setembro/2007 em Chicago. A mudança de nome da instituição ocorreu em 2007, sendo denominada The World
Professional Association for Transgender Health (WPATH). Para o acompanhamento de seus documentos e de
sua história, consultar: http://www.wpath.org.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 60

esboçada anteriormente e será reiterada aqui com outros argumentos que, em alguns
momentos, o judiciário amplia para nortear suas decisões ancoradas em uma classificação
médica, e a partir dela, pensa as vivências identitárias.

No transexual, a transexualidade é uma doença e a intervenção cirúrgica


adequa o corpo às pulsões psíquicas. Procedimento semelhante ocorre no
pseudo-hermafrodita, também vítima de uma doença e a intervenção
cirúrgica especifica os órgãos imperfeitos, adequando a realidade
morfológica à sexualidade glandular. Em ambos os casos haverá uma
intervenção cirúrgica corretiva, que não se deve confundir com mutação
física.56

A circulação de saberes sobre a transexualidade marcará também a perspectiva


daqueles/as que se consideram transexuais na compreensão de que a cirurgia seria a saída para
sua condição. O fragmento abaixo foi escrito por uma mulher (transexual) e veiculado por
meio eletrônico através portal da internet denominado Casa da Maitê, cuja legitimidade entre
as pessoas (transexuais) e travestis é reconhecida pelo movimento social, uma vez que sua
coordenadora é uma mulher (transexual) atuante.

Tem cura?
O único tipo de tratamento que beneficia os transexuais é a conversão
cirúrgica. Estudos pós-operatórios realizados na Suécia e nos Estados
Unidos mostram que após a cirurgia a maioria dos pacientes revela um
ajustamento social satisfatório, com atenuação da ansiedade e da depressão,
aumento do índice de empregos e melhora no relacionamento intrafamiliar.
Obtém-se, assim, através da cirurgia, uma melhor integração do indivíduo.57

Cura? Não é disso que tratam os Pareceres e as Resoluções sobre a transexualidade. A


promessa subliminar é a de tornar a pessoa adequada à sociedade, estabelecer coerência entre
a performance de gênero desejada e um conjunto de atributos físicos. Constituir coerência
entre o sexo desejado e a genitália externa e os caracteres sexuais secundários não implica que
o saber médico considera que, após a cirurgia, a pessoa (transexual) deixe de ser/estar
“doente”. Os termos utilizados explicitam a proposta: adequação, redesignação e correção.

A questão em pauta é a inaparência da parte mais agravada no conflito de


formação, que é o sexo psíquico, latejante, secreto e desconfortável, de
dentro para fora; inafeito à reconstrução ou à plástica modeladora, daí a
correção daquilo que vem a ser uma impropriedade do organismo, aparente e

56
Excerto retirado do Despacho do Promotor de Justiça. Brasília, 18 de fevereiro de 2000. p.5 fls. 89.
57
Casa da Maite. ASTRID Bodstein em maio de 2006. Disponível em:
http://www.casadamaite.com/index.php?option=com_content&task=view&id=1660&Itemid=274 capturado em
23/04/2007.
Flavia Teixeira 61

mutável, como a genitália externa.58

Mesmo quando a transexualidade é percebida como um problema psíquico, é a


cirurgia que deverá ser o tratamento de “primeira escolha”, pois o determinismo biológico
marca o discurso em que a dissociação entre o sexo psíquico e o sexo genital resulta da
influência de fatores hormonais irreversíveis. Destaco a influência das pesquisas realizadas
por Meyer-Bahlburg, endocrinologista, especialista em rastreamento dos efeitos dos
hormônios durante o período fetal, seguindo as pistas deixadas por seu antecessor Alfred Jost
(1947) e sua pesquisa pioneira sobre a influência dos hormônios no processo de determinação
de fêmeas e machos no período uterino.59 Para esse pesquisador, as cirurgias plásticas podem
corrigir as alterações externas causadas pelos hormônios, no entanto, apesar de os órgãos
internos estarem preservados, as alterações cerebrais jamais poderão ser modificadas. (BURR,
1998, pp. 39-40).

Harry Benjamin, médico endocrinologista, foi contemporâneo de Alfred Jost, cujas


pesquisas sobre a interferência dos hormônios na constituição do comportamento
homossexual influenciaram outros pesquisadores como Charles Barraclough (1961) e
Geoffrey Harris (1965). A certeza que demonstrava no caráter imutável da transexualidade,
bem como na ineficácia de toda intervenção psicanalítica, poderia sugerir sua adesão à
explicação neurofisiológica da “síndrome” que descreveria (BENJAMIN, 1953). A
importância de Harry Benjamin no cenário mundial pode ser lida a partir do lugar que a Harry
Benjamin International Gernder Dysphoria Association (HBIGDA) ocupa na definição das
diretrizes para diagnóstico e tratamento da transexualidade.60

58
Parecer e a Proposta de Resolução PC/CFM/Nº. 39/97 de 09 de maio de 1997. Disponível em:
http://www.portalmedico.org.br/pareceres/cfm/1997/39_1997.htm capturado em 23 de abril de 2006.
59
Interessado em compreender o fenômeno “maninha”, ou seja, as bezerras fêmeas que nascem masculinizadas
quando são geradas juntamente com bezerros machos, observou as vacas e descobriu que o grau de
masculinização da genitália das fêmeas estava diretamente relacionado ao grau de anastomose no útero, isto é, o
número de vasos sanguíneos divididos pelos gêmeos durante a gestação. Os bezerros são ligados à placenta e,
algumas vezes, muitos vasos sanguíneos vão de um bezerro para o outro. Se os gêmeos compartilham grande
quantidade de circulação sanguínea, o fenômeno ‘‘maninha’’ terá maior possibilidade de ocorrer. No importante
experimento realizado, Alfred Jost removeu cirurgicamente fetos de coelhos do útero da coelha, castrou os
coelhinhos machos recolocou-os no interior da fêmea e aguardou o nascimento. Esses coelhos geneticamente
machos tinham se tornado fêmeas perfeitas, do ponto de vista anatômico. Tratava-se de coelhos com vagina e
ovários, podendo dar à luz, mas que, todavia, eram XY. O hormônio “misterioso” teria eliminado tudo o que
fosse masculino.
60
A HBIGDA define “disforia de gênero” como “aquele estado psicológico por meio do qual uma pessoa
demonstra insatisfação com o seu sexo congênito e com o papel sexual, tal como é socialmente definido,
consignado para este sexo, e que requer um processo de redesignação sexual cirúrgica e hormonal” (Ramsey,
1996, p. 176).
Vidas que desafiam corpos e sonhos 62

Em artigo já citado, a endocrinologista Amanda Athayde corrobora o status da cirurgia


como única escolha, considera que “A única maneira de melhorar esta condição clínica é a
troca de sexo social e genital, além de psicoterapia de apoio para evitar complicações
dramáticas. Sem tratamento, a condição é crônica e sem remissão” (2001, p. 410).

Na leitura dos processos, que serão discutidos posteriormente, é flagrante a crença


compartilhada por médicos, juristas, outros especialistas e inscrito/as de que a cirurgia seria
um procedimento redentor para as pessoas (transexuais). Esse princípio constrói um todo
consensual em torno de sua indicação e reivindicação, que repercute também em outros
espaços como pode ser analisado no trabalho literário de Gilberto Moutrhé.

Para esse escritor, a “operação constitui, na maioria dos casos, a única solução e a
porta para a felicidade para o transexual que não consegue viver normalmente, sentindo-se
impostor, carregando pelo resto da vida traços que ele sabe não lhe pertencerem” (1976, p.
121). No livro em questão, através de uma coletânea de contos, o autor retrata o sofrimento e
as experiências negativas da condição transexual, sendo que, na maioria, os protagonistas
atingem um final trágico. Analisando a circulação dos atributos da homossexualidade na
mídia estadunidense, Rob Linné (2005) denuncia o final terrível das personagens que
experimentam o amor homossexual; na composição do enredo, seria como se um subtexto
informasse sobre os perigos que podem atingir todos(as) aqueles(as) que ousarem romper as
barreiras das normatividades. São essas as imagens que circulam juntas nos contos de
Gilberto Moutrhé; a exceção é o conto chamado “A Metamorfose” em que o suporte familiar,
a segurança de um casamento heterossexual e, principalmente, o tratamento especializado,
cirúrgico, em conceituado Hospital dos Estados Unidos, retiraram Jean de “zonas perigosas”
nas quais poderia sucumbir tragicamente as personagens anteriores.

Durante a elaboração desta tese, o filme Transamérica61 foi exibido no circuito


comercial, trazendo a história de uma transexual, Bree Osburne (Felicity Huffman), e sua
busca pela cirurgia de transgenitalização. O texto de Karla Bessa (2007) contribuiu para
questionar com quais sujeitos um filme dialogaria, principalmente porque a autora recupera
argumento de Foucault (2001), considerando que, assim como os discursos científicos
modernos, o cinema participa dos jogos de produção da verdade, “os quais, de diferentes
maneiras, os seres humanos utilizam para elaborar um saber sobre eles mesmos” (270).
Embora não tenha a preocupação de resenhar aqui o filme, sugiro que os elementos daquele

61
Transamerica (2005). Direção de Duncan Tucker. EUA: IFC Filmes
Flavia Teixeira 63

enredo foram construídos a partir da centralidade da cirurgia e da autorização para sua


realização. Se as promessas da cirurgia são inspiradoras para a medicina, o direito, a literatura
e o cinema, elas implicam também na construção (rearranjo e deslocamentos) das
subjetividades das pessoas (transexuais).

O surgimento, no Brasil, dos Programas que acenavam com a possibilidade da


realização da cirurgia acionou o sonho do reconhecimento, do pertencimento. O excerto
abaixo pode ilustrar a dificuldade que esses sujeitos encontram:

Para:<GLBTS@yahoogrupos.com.br> De:
xxxxxS.[mailto:xxxxxxx@gmail.com] Enviada em: sexta-feira, 29 de abril
de 2005 16:40 Assunto :SOLICITA AJUDA... Olá... estou escrevendo para
pedir ajuda e orientação.
Estou me descobrindo/aceitando transexual somente agora.
Moro no interior de são paulo, na cidade de assis, e estou tendo grande
dificuldade em conseguir ajuda clínica, psicológica e social para meu
problema.
Estou me sentindo jogada de uma lado para outro.
Já escrevi para muitas pessoas. Algumas me mandaram ir para São José do
Rio Preto (dizem que é o centro mais próximo a mim para tratamento). Lá, já
tentei marcar consulta mais de 10 vezes pelo telefone, mas nunca consigo
falar com a responsável.
Outras me indicaram a [ ] fiz uma primeira consulta, mas não gostei muito
da maneira como tudo evoluiu....
meu médico local (dermatologista) quer me ajudar, mas diz que não tem
conhecimento para isso.
Outro médico local (psiquiatra) quer me ajudar, mas diz que não tem
conhecimento para isso, mas vai ´tentar´.
conheci através da internet uma médica endocrinologista de londrina-pr
(próximo a minha cidade). Mas ela disse que não me ajudará sem um
diagnóstico preciso...
eu já tenho 29 anos... já sofri muito... e NÃO QUERO MAIS PERDER
TEMPO PARA RESGATAR MINHA IDENTIDADE. NÃO QUERO
PERDER AS CARACTERÍSTICAS FÍSICAS FEMININAS QUE JÁ
TENHO, E QUERO ADQUIRIR OUTRAS....
mas sei que, quanto mais tempo passar, tudo ficará mais difícil...
espero que vocês possam me ajudar de alguma forma, indicando alguém ou
uma clínica especializada...
beijo....
XXXXXXXXXX.62 (grifos no original)

Essa expectativa de realização de um sonho através da cirurgia é reconhecida por


Elizabeth Zambrano (2003, pp. 56-9) nas entrevistas que realizou com os/as integrantes do
Programa do PROGID em Porto Alegre. Alexandre Saadeh também identifica na cirurgia a
concretização de um desejo, a realização de um sonho (2004, p. 138). A esperança e o medo

62
Mensagem recebida através de e-mail enviado para lista de grupo: GLBT yahoo em 29.04.2005
Vidas que desafiam corpos e sonhos 64

expostos nos relatos dos/as candidatos/as acompanhados/as por Valéria Elias (2007, p. 44) são
reiterados nas entrevistas de Berenice Bento:

Quando ficam sabendo da existência do projeto e fazem a primeira consulta


com a coordenadora, alguns transexuais relataram sentirem uma mistura de
esperança e medo; esperança por vislumbrarem a possibilidade de ficarem
“livres” de partes do corpo consideradas responsáveis pela rejeição que
sentem de si mesmos e medo de não serem aceitos no Projeto. (2003, p. 59)

Valéria Elias colabora para a compreensão do sentimento expresso pela integrante da


lista ao dizer que, através da cirurgia, “a medicina torna-se o instrumento, a ponte que
viabiliza o pertencimento ao mundo moderno, não mais isolada, exilada, mas uma
possibilidade de não sentir-se estrangeira em seu próprio território, agora dentro de um corpo
possível” (2007, p. 167).

Partindo da tradição hegeliana que articula desejo e reconhecimento, Judith Butler


compreende que nossa existência como ser social depende da experiência do reconhecimento.
No entanto, os termos que nos permitem ser reconhecidos como humanos são variados e
articulados socialmente, estando imbricados nas normas sociais. Ao dizer, especificamente da
transexualidade, Berenice Bento problematiza o condicionamento deste reconhecimento ao
laudo, que pressupõe um diagnóstico em que “(...) a aparente ‘vitória’ pessoal gera as próprias
correntes que continuaram (sic) a aprisionar o gênero à diferença sexual e a proliferar as
tipificações médicas/psi” (2008, p. 112).

A natureza jurídica do sexo


No Brasil, o sexo legal ou jurídico deve obrigatoriamente constar no assento do
nascimento e é definido pelo termo de informação de nascidos vivos preenchido pelo médico.
Essa pode ser considerada a primeira intervenção conjunta da medicina e o direito na vida das
pessoas a partir de seu nascimento. No caso da transexualidade, o judiciário e a medicina se
reencontram em momentos como a definição da licitude da cirurgia de transgenitalização, na
demanda pelo acesso à saúde e, também, nas decisões sobre a demanda pela alteração de
nome e sexo. Nesta seção, as decisões judiciais ilustram como a disputa pelo poder para
normatizar o corpo, o gênero e a sexualidade coloca as pessoas (transexuais) em posição de
incerteza quanto ao acesso a seus direitos.

Ao negar a alteração de sexo e nome no registro civil da pessoa (transexual) que foi
Flavia Teixeira 65

submetida à cirurgia (autorizada no campo médico), os operadores do direito empurram-na


para um lugar de maior desamparo que o anterior à cirurgia. Temos aí um exemplo de conflito
entre os poderes médico e judiciário.

Elizabeth Zambrano (2004) identificou que, na atualidade, o judiciário brasileiro tende


a aprovar as alterações de nome e sexo quando as cirurgias ocorreram no Brasil e seguiram os
critérios do Conselho Federal de Medicina – as pessoas (transexuais) que não passam por tal
processo podem ter seu pedido de alteração negado ou protelado, a exemplo de Roberta
Close.63 Afirmo que, embora exista um número de sentenças favoráveis, não há uma
homogeneidade entre os Pareceres dos juristas. Caminhamos por um campo disciplinar em
que a desnaturalização do corpo e a não essencialização do sexo ainda não se apresentam
como questões primeiras. O debate apreendido focaliza o domínio da legitimidade para
decidir sobre o corpo do outro, como ilustra o seguinte Parecer:

(...) não é a medicina que decide o sexo e sim a natureza. (...) Quem nasce
homem ou mulher, morre como nasceu. Genitália similar não é autêntica.
Autêntico é o homem ser do sexo masculino e a mulher do feminino, a toda
evidência. 64

No parecer, fica explícita a idéia de sexo enquanto expressão do real e o gênero como
reflexo deste real. Numa discussão entre cópia e original, o sexo é considerado atributo da
natureza que não pode ser manipulado e um dado pré-existente e absoluto. No entanto, esse
Parecer foi emitido antes da Resolução de 1997, a qual supostamente modificaria o teor das
análises posteriores.

Os desdobramentos provocados pela transexualidade não produziram consensos para o


Judiciário, uma década após a aprovação da referida Resolução, como pode ser observado no
Acórdão publicado pela Décima Quarta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do
Rio de Janeiro ao julgar o Conflito de Competência n° 2006.008.00467. Nesse documento, é
suscitante o Juízo de Direito da 16ª Vara de Família da Comarca da Capital, sendo suscitado o
Juízo de Direito da 3ª Circunscrição do Registro Civil das Pessoas Naturais da Comarca da
Capital. A questão central é a definição da competência para julgar e decidir sobre a

63
O processo solicitando a alteração do registro civil teve início em 1990, com parecer favorável em 1992. O
Ministério Público recorreu e a sentença foi reformada de Supremo Tribunal Federal em 1997 com parecer
negando o pleito. Em 2001, tendo como advogada a Dra. Tereza Vieira, iniciou um novo processo cuja sentença
favorável foi proferida em 2005.
64
Excerto da decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, 8ª Câmara Civel, processo nº. 6.617/93
em que os Desembargadores negaram o provimento do pedido formulado na inicial e mantiveram a decisão do
Juizo de Primeira Instância negando a alteração de pré-nome e sexo.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 66

solicitação de alterações de sexo e nome no registro civil no caso da transexualidade.

No caso em tela, o Juiz solicitante alega que a competência da Vara de Família seria
restrita a decisões sobre o estado familiar e não deveria deliberar sobre o estado individual
relativo ao sexo da pessoa. Os desembargadores e o Ministério Público se posicionaram
contrários a essa argumentação. Fica expresso no documento que o Ministério Público foi
chamado a opinar e que ele declarou ser competente a Vara de Família para o feito. No
Despacho, o desembargador reproduz fragmentos do parecer da Promotoria que sustenta a
competência do Juízo de Família em razão de sua possibilidade de verificar a “realidade da
transexualidade”, determinando a produção de prova, através das perícias (etapa considerada
obrigatória na “mudança de sexo”). Reproduzo parte do documento:

As Varas de Família têm os seus peritos, em várias formações do


conhecimento humano, que darão o suporte necessário e indispensável para
que seja concedido, ao requerente, o direito de modificar o seu sexo e nome
no assentamento de nascimento. Parece-me que, tão somente, a afirmação do
interessado, ainda que acompanhada de uma declaração médica, não seja
suficiente para se decidir sobre fato que, necessariamente, terá repercussão
que extrapola a pessoa do requerente.65

A determinação natural do sexo parece se constituir no argumento mais importante do


judiciário nas decisões acerca da transexualidade. A verdade expressa no documento civil por
ocasião do nascimento é determinada através da aparência da genitália e parece se constituir
no fato jurídico mais importante da vida do indivíduo, e dele decorrendo todas as outras
ações. Na perspectiva acima, somente o perito teria condições de afirmar a “nova verdade” do
sujeito. Nesse sentido, o artigo escrito por Tereza Vieira (2005) sobre o processo de alteração
de nome e sexo de Roberta Close é elucidativo:

Peritos em genética, endocrinologia e neuropsiquiatria encontraram causas


biológicas para a identidade desordenada do sexo. O Direito deve sempre
buscar a verdade e esta é mais autêntica e exata, quando está fundamentada
em provas resultantes de apurados exames e técnicas atuais, emitidas por
profissionais ou órgãos de extrema confiabilidade, expressando
entendimento atualizado correspondente à realidade. (...)
Buscar a justiça é dever dos operadores do Direito e esta não é atingida
quando se ignora as novas descobertas científicas. Desconhecê-las significa
contribuir com a imutabilidade dos efeitos de uma decisão que não mais
representa a realidade. Isto é justiça? Além do nosso parecer com 61 laudas,
Roberta se submeteu a avaliação de 10 experts: 3 endocrinologistas, 1
psiquiatra, 2 geneticistas, 1 cirurgião plástico, 1 neuropsiquiatra, 1 médico-

65
Acórdão publicado pela Décima Quarta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro ao
julgar o Conflito de Competência n° 2006.008.00467.
Flavia Teixeira 67

legista, 1 psicóloga, todos pertencentes aos mais renomados órgãos de saúde


de São Paulo e do Rio de Janeiro (...) Nunca houve um caso em que alguém
tenha se submetido a tantos peritos no assunto. Assim, esclarece a erudita
magistrada: “Em face da unanimidade dos pareceres e laudos médicos, resta
inequívoco que a parte requerente não possui tão somente perfil psicológico
feminino, mas também possui caracteres biológicos próprios de uma mulher,
sendo, portanto, indiscutível seu direito de pleitear a alteração de nome civil
e sexo, por ser inaceitável que suporte os danos causados pelas complicadas
transformações e diferenciações ocorridas em seu corpo no momento da
gestação”. (itálico no original).

Verdades que, na maioria dos textos consultados, estão impregnadas das (in)certezas
sobre a natureza do corpo e a imutabilidade do sexo; as sentenças demonstram os
posicionamentos divergentes de promotores, juizes e desembargadores.

A. Não existe, repito, até hoje, qualquer procedimento cirúrgico que


modifique o sexo de uma pessoa. Esse, o sexo, não é determinado pela
aparência física da pessoa, mas pela sua conformação genética, e, mais
especificamente, pelos cromossomos.
Quem nasceu com conformação genérica do sexo masculino será sempre
integrante do sexo masculino; e quem nasce com a conformação genética do
sexo feminino será sempre desse sexo um integrante. É uma verdade
imutável; ao menos até hoje.
Cirurgias que modificam a aparência externa da pessoa, ainda que com a
extirpação de órgãos – não passam de cirurgias plásticas, e nada alteram,
senão quanto à aparência física externa da pessoa.
No caso, qualquer pessoa que tenha se submetido ou venha a se submeter à
referida cirurgia, continuará integrante do sexo que a natureza lhe concedeu.
E nem mesmo eventual aprovação do referido projeto, ou qualquer outra lei,
terá o condão de mudar o que é por natureza imutável. Não se altera sexo por
decreto. 66

B. Ora, o registro civil espelha a realidade da pessoa, que se projeta, por


intermédio de seu nome, para as relações sociais, no campo civil e no campo
penal. Bem por isso, a preservação da identidade realiza-se ao longo de toda
a vida da pessoa, mantendo uma unidade nas relações que vão sendo
estabelecidas ao longo do tempo. Por essa razão, a regra da imutabilidade
dos dados do assento de nascimento, que só pode ser modificada em razão
de justificativa irrebatível, sem risco para a verdade, que todo o registro deve
espelhar. Ademais, em linha de registro civil, prevalece a regra geral da
imutabilidade dos dados, nome, prenome, sexo, filiação etc. Há, portanto,
um interesse público de manutenção da veracidade dos registros, de modo
que a afirmação do sexo (masculino ou feminino) não diz com a aparência,
mas com a realidade espelhada no nascimento, que não pode ser alterada
artificialmente, salvo em situação excepcional, por exemplo, no caso, em

66
Voto do Desembargador Moreira Diniz do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, no processo de nº.
1.0000.00.296076-3/001(1), em que o Ministério Público recorreu da decisão de primeira instância que
autorizava a alteração de nome e sexo de mulher (transexual) após cirurgia de transgenitalização.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 68

67
tese, de hermafroditismo real, situação considerada rara na medicina (...)
(grifos meus)

O argumento do Ministério Público, reproduzido em parte no Acordão, deixa antever a


certeza de haver vedação legal através dos termos do artigo 58 da Lei de Registros Públicos,
porque considera que a cirurgia de transgenitalização produziria uma “mentira” em relação ao
sexo verdadeiro.

Sob tal ângulo, o procedimento cirúrgico a que foi submetido, não implicou
em opção por um dos sexos de cujas características era portador, mas em
adaptação física, construída artificialmente, do sexo masculino para o sexo
feminino, sem que houvesse efetiva alteração de sexo, uma vez que, para
todos os efeitos, ainda que, em tese, se admita tenha adquirido
artificialmente a aparência da genitalia feminina, a natureza de sua
concepção não foi alterada. Nesse aspecto, a adequada colocação feita pelo
Procurador de Justiça oficiante não se trata de esterilidade apenas. Trata-se e
uma situação anômala criada artificialmente, e NÃO CONSAGRADA
PELO DIREITO POSITIVO, uma vez que esterilidade pressupõe
possibilidade de procriar e o transexual operado não tinha, não tem (...).68
(destaque no original)

A decisão unânime da Quinta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do


Estado de São Paulo, ao negar provimento ao recurso do Ministério Público, que também foi
contrário à alteração de nome e sexo no processo de H.D.B.69, demonstra o que Sylvia Amaral
(2003) denomina como corrente liberal do direito, que considera uma atitude favorável à
discriminação manter a condição anterior de nome e sexo uma vez realizada a cirurgia de
transgenitalização.

Em agosto de 2006, o Acórdão publicado sobre a sentença proferida no Tribunal de


Justiça do Rio Grande do Sul, da Apelação Cível de nº. 70013580055, também evidencia a
centralidade da cirurgia para o provimento das alterações de nome e sexo no registro civil. Em
primeira instância, o Juiz indeferiu o pedido de retificação em função da ausência da cirurgia:

67
Acordão de nº. 5018025 no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em que o Ministério Público apela da
sentença favorável à alteração de sexo e nome de mulher (transexual) expedida pelo juízo de primeira instância,
após cirurgia realizada em 2005.
68
Acórdão de nº. 5018025 no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em que o Ministério Público apela da
sentença favorável à alteração de sexo e nome de mulher (transexual) expedida pelo juízo de primeira instância,
após cirurgia realizada em 2005.
69
Acórdão no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em que o Ministério Público apela da sentença
favorável à alteração de sexo e nome de mulher (transexual) expedida pelo juízo de primeira instância, sentença
julgada em fevereiro de 2000. Apelação Cível n. 86.851.4/7, de São José do Rio Pardo, Des. Rodrigues de
Carvalho.
Flavia Teixeira 69

Em despacho, fls. 43, o Magistrado “a quo” determinou a realização de


audiência visando a oitiva do requerente e das testemunhas para, logo em
seguida, verificando que o apelante não havia ainda realizado a cirurgia de
transgenitalização, cancelar a realização da audiência (fls. 47.)
Em sentença, fls. 48 a 53, o Magistrado “a quo”, julgou improcedente o
pedido de retificação de registro civil sob o argumento de que a realização
do procedimento cirúrgico de transgenitalização deve ser o marco
identificador maior do processo de adequação do sexo biológico de
nascimento ao sexo psicossocial, o que se encontraria ausente, no caso em
exame, tendo em vista que, na data da sentença, agosto de 2005, o apelante
ainda não teria realizado a cirurgia agendada para outubro de 2005. (grifos
meus)

Ao recorrer, o argumento utilizado foi a realização posterior da cirurgia, numa data


estabelecida entre a audiência cancelada e a expedição da sentença. Como esclarece o excerto
abaixo:

No entanto, apesar do ocorrido, entendo que tal prefacial encontra-se


superada já que, no caso dos autos, não se faz necessária a desconstituição da
sentença para que seja reaberta a instrução do feito, tendo em vista o ofício
do Hospital de Clínicas, fls. 79, que confirmou a realização da cirurgia de
transgenitalização no dia 10 de fevereiro do corrente ano.
Além do ofício confirmando a realização da cirurgia, ato até então
desconhecido pelo Magistrado “a quo”, quando da prolação da sentença,
tenho que nos autos estão todos os elementos necessários para o exame do
pedido formulado na inicial.

Os desembargadores deram provimento unânime ao pedido, sem a necessidade da


produção de prova pericial. O que demonstra que, para esse Juízo, a declaração de um
Programa Institucional reconhecido como o PROGID do Hospital de Clínicas da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul pode ser suficiente para atestar a realização do
feito. No entanto, juízes, desembargadores e promotores estavam diante de mulheres
(transexuais) para as quais a técnica da construção de uma nova genitália (ainda que
questionável) estaria disponível. Certamente o posicionamento seria diferente na ausência do
procedimento cirúrgico.

Em um dos textos, fica explícita a compreensão do Ministério Público sobre a


possibilidade de que essa alteração ocorra sem a precedência da cirurgia, o que parece uma
postura isolada e vencida. O Acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ilustra
essa suposta impossibilidade:

Em que pese o bem fundamentado trabalho do ilustre promotor de justiça de


primeiro grau, o pedido não comporta acolhida, devendo ser mantida a
Vidas que desafiam corpos e sonhos 70

decisão de fls. 14/15. O argumento apresentado de que o autor sofre


constrangimento por se chamar XXXXX, quando é conhecido por XXXXX,
não é suficiente para autorizar a modificação do seu nome. Inicialmente há
que se consignar que não se trata apenas de ajustar o nome social ao nome
constante do registro, mas de se substituir um prenome masculino por um
feminino, sem que seja possível a modificação igualmente do sexo do autor,
vez que esta não é a hipótese presente.70

No documento acima, a Justiça compreende como necessário e menos relevante o


constrangimento vivido pela autora do que provocar um desacordo nas normas de gênero ao
identificar XXXX como do sexo masculino. Afinal, quando se remete ao hermafroditismo,
deixa claro que está em questão a escolha do sujeito:

Não se trata de uma opção sexual, mas de uma questão biológica. Não há
como se negar a realidade fática. O autor é do sexo masculino e seu prenome
deve estar compatibilizado com seu sexo, não à sua opção sexual, ainda que
perante seu grupo continue se apresentando como XXXX.

Nesse sentido, a decisão judicial favorável à retificação de nome de Renata Finsk


apontaria em princípio uma ruptura com o discurso normativo, uma vez que é pública a
informação de que se trata de uma travesti.71 A análise da sentença permitiu perceber que o
Ministério Público foi contrário ao pleito da autora, mas o juiz sentenciou em contrário
enfatizando que:

É importante na análise do presente caso se fixem algumas premissas:


1- o autor não pretende alterar seu sexo no assento de nascimento;
2- o autor não fez qualquer modificação sexual pois ainda não se
sente preparado para tal;
3- transexual não precisa de cirurgia para ser considerado como tal;
4- o autor é notoriamente conhecido como Renata consoante se
verifica do documento de fls. 13, 18 e, especialmente, a declaração dos pais
de fls. 20.72 (Grifos meus)
A manutenção da correspondência entre o sexo genital e o sexo legal garantiria, aos
olhos do juiz, a veracidade do registro civil, mesmo que essa anatomia esteja em dissonância

70
Apelação Cível com Revisão n°377.895-4/3-00 . Comarca de São Paulo, agosto de 2005.
71
Renata Finsk possui grande inserção na mídia sendo sempre apresentada como travesti. Foi modelo na
Campanha Publicitária da Parada Gay do Rio de Janeiro de 2006, criada por Bruno Bertani. Disponível em:
http://paradario.arco-iris.org.br/site/index.php?option=com_content&task=view&id=18&Itemid=2. Ela se
autodenominava travesti. Parte dessa peça está estampada no seu blog na internet no endereço:
http://www.renatafinsk.blogspot.com/ consultado em 25/10/2007.
72
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – 2ª Vara de Registros Públicos. Processo nº. 2007.101460-6
(07/07R) Sentença publicada no DOE - Edição de 20/07/2007.
Flavia Teixeira 71

com o restante dos signos portados pelo corpo. O Juiz autoriza a alteração do nome baseado
no princípio do constrangimento causado entre a sua aparência física e o nome, já que vive e é
reconhecida como mulher. No entanto, a verdade sobre o sujeito ainda se aloja no sexo.

A defesa de que a alteração do nome não deve ser condicionada à cirurgia, sob o risco
de ferir o princípio da autonomia e vontade do sujeito é avançada nesse cenário, muito
embora a cirurgia deveria integrar os projetos das pessoas, pois a condição de transexual se
basearia – para o discurso oficial – no desejo de sua realização. A adoção do termo transexual
para nomear Renata Finsk é significativa, pois, para além da fluidez entre as identidades, que
será discutida nesta tese, essa manobra remete ao lugar de desconfiança que as travestis
ocupam, pois não há a “admissão pura e simples da identidade sexual como construção social
ou da subjetividade pessoal, ou ainda, como uma prerrogativa pessoal do sujeito”
(VENTURA, 2007, p. 103). É necessário que a expressão de um sexo não biológico esteja
configurada como um transtorno e reafirme os laços entre o poder judiciário e o poder
médico.

Os discursos paradoxais se avolumam quando surgem as demandas dos homens


(transexuais) e os limites da técnica cirúrgica. Se, para as mulheres (transexuais), a exigência
imperativa da construção de uma vagina implica na desconstrução do pênis e o cumprimento
desta etapa habilitaria uma mudança de status, para os homens (transexuais), diante da
limitação real da fabricação de um pênis, outros e significativos elementos recolocam os
discursos sobre a arbitrariedade da definição da natureza expressa na anatomia do corpo.

Ao ingressar em Juízo pleiteando as alterações de prenome e sexo no seu registro civil


S.J.A.G.P. Nem mesmo terá o mérito de seu pedido analisado. A ausência da cirurgia de
transgenitalização impossibilitou que sua demanda fosse considerada legítima pelo judiciário:

No caso, todavia, como erro no assento não existiu, a alteração pretendida


não se mostra a princípio possível, porquanto ainda não existente total
desconformidade entre o prenome e o aspecto físico da autora que, nas
razões do seu inconformismo, refere estar se submetendo a tratamento
psiquiátrico e hormonal visando uma futura faloneoplastia, quando, então,
poderá ver albergada sua pretensão.73

Considerando que o erro no registro civil pode ser admitido a partir de uma
intervenção posterior no corpo, o posicionamento da Justiça parece corroborar a idéia de que a
cirurgia promoveria um segundo nascimento. A discussão da cirurgia como fronteira entre as

73
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, APELAÇÃO CÍVEL nº. 328.005-4/0-00 da Comarca de
Campinas, maio de 2004.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 72

duas existências está contemplada nos relatos das entrevistadas, quando os sujeitos
(transexuais) se posicionam a partir da cirurgia reivindicando ou não um apagamento de seu
passado.

A exigência da cirurgia pode ser identificada na Apelação Cível nº


70011691185/2005, interposta ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul por
J.A.P., que recorreu da decisão contrária do juízo sobre o pedido de retificação do seu sexo de
feminino para masculino. O objeto da discussão não questionava o diagnóstico de
transexualismo ou a procedência de tal pedido, mesmo porque o Rio Grande do Sul é
reconhecido por suas sentenças avançadas e em conformidade com as legislações
internacionais, sendo citados os argumentos de seus juizes e desembargadores nas
jurisprudências nacionais. O que estava em questão era a ausência da cirurgia de
neofaloplastia que não justificaria, no entendimento do juiz, a reatribuição do sexo civil.

De início, merece ser ressaltado que se está diante de uma matéria


evidentemente polêmica, e, de certo modo, inovadora, já que, ao contrário de
outras situações já enfrentadas, aqui se trata de alteração de sexo registral
feminino para o masculino, sem que tenha havido, até o momento, a
realização de todas as etapas da cirurgia (não houve, no caso, a construção
do órgão genital masculino, embora tenha havido a extirpação dos órgãos
femininos).

Embora a decisão do Tribunal tenha sido favorável ao pedido de J.A.P. Ela se ancorou
em dois princípios que merecem ser destacados, o primeiro que reconhece as limitações para a
realização da cirurgia de neofaloplastia no Brasil e um segundo, cuja transcrição pareceu-me
oportuna:

Por segundo (e aqui se apresenta o aspecto fundamental da questão), embora


não lhe tenha sido construída a genitália masculina, J. A. P., que jamais foi
mulher do ponto de vista psicológico, agora, anatomicamente não mais
possui os órgãos femininos, os quais já foram extirpados. Assim, o “sexo
registral” não mais se justifica, nem psicologicamente (pois J. A. P. Jamais
foi, de fato, mulher), tampouco anatomicamente (pois J. A. P. Não mais tem
órgãos femininos).

Ao argumentar sobre a realização das cirurgias, o desembargador adentra numa


discussão delicada ao afirmar que J. A. P. Havia sido submetido à ablação dos órgãos
femininos “e, portanto, ao menos anatomicamente, ‘não seria mulher’”, a posição do
desembargador de definir a categoria mulher a partir da presença de útero, ovários e trompas
limita e restringe essa categoria a uma possível função reprodutiva, um argumento que será
Flavia Teixeira 73

reiterado por algumas integrantes dos movimentos identitários de mulheres e travestis quando
do não reconhecimento de que as mulheres (transexuais) não seriam mulheres autênticas. A
discussão será contemplada no capítulo quatro.

No Acórdão é explícito o reconhecimento de que, nas relações cotidianas e de


trabalho, J.A.P. É reconhecido e aceito como homem. Mas isso não parece condição
suficiente e a promessa da cirurgia se mantém:

Deste modo, o questionamento não é porque não poderia J. A. P. Esperar o


esgotamento do procedimento cirúrgico, para, então, postular a alteração em
seu registro. O questionamento é porque se deveria esperar para deferir-se o
que está fadado a acontecer? Note-se que não parece ser razoável que se
protele um desfecho que, de fato, está fadado a acontecer (há nos autos o
documento de fl. 121, em que consta: “... J. A. P. Será submetida a cirurgia
de transgenitalização para troca de sexo no ano de 2005, II semestre ...”),
ainda que, em função do elevado grau de dificuldade que apresenta, possa
vir a demorar mais do que o previsto.

Divergências de posições se avolumam no Judiciário, conforme se observa pelos


excertos abaixo:

A medicina poderá aliviar o peso da dubiedade, com técnicas cirúrgicas. O


Estado confia que o sistema legal é apto a fornecer a saída honrosa e deve
assumir uma posição que valoriza a conquista da felicidade (‘soberana é a
vida, não a lei’). 74
De ficar aqui ressaltado, por último, em homenagem à Promotora de Justiça
XXXX, o destacado nível do seu trabalho objetivo encontrado nos autos, o
qual, em grande parte serve de apoio a presente decisão da Câmara.75
Quanto à mudança no nome, isso é possível diante da situação de fato
existente, visando minorar os constrangimentos que o apelante sofre, sendo
certo que a legislação permite essa alteração. Observar-se-á o
pronunciamento do MP a esse respeito.76

Entre os processos que acompanhei na Programa de Transgenitalização, os processos


de GSB e CH receberam pareceres favoráveis do Promotor de Justiça sobre a retificação do

74
Sentença favorável da Quinta Câmara de Direito Privado ao recurso de A.L.D.C. contra a decisão em primeira
instância que negou seu pedido de alteração de nome e sexo. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,
APELAÇÃO CÍVEL n° 165.157-4/5-00, da Comarca de Piracicaba.
75
Excerto da decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, 16ª Câmara Civel, processo nº.
2002.001.16591, cujo autor recorreu da decisão de primeira instância que determinou a grafia transexual no
registro civil no lugar destinado à determinação do sexo.
76
Excerto da decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, 11ª Câmara Civel, processo nº.
2004.001. 28817 em que os Desembargadores deram provimento parcial ao pedido formulado na inicial.
Autorizaram a alteração do nome e negaram a alteração do sexo no registro civil.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 74

nome e sexo, mesmo na ausência da cirurgia.

Não se pode limitar o direito do Autor pela simples inexistência, por


enquanto, de um falo aparente. A neofaloplastia não pode constituir um
impeditivo à concretização da sua cidadania, mormente porque não depende
da sua vontade o implante do membro, mas de obstáculos que a ciência
ainda não resolveu.77

O fragmento acima explicita que a autonomia da pessoa transexual tem valor


instrumental no modelo normativo vigente no Brasil. Percepção corroborada por Márcia
Ventura (2007, p. 92) entendendo que, no caso das pessoas (transexuais) a autonomia se
restringe “à faculdade da pessoa buscar tratamento e aceitar realizá-lo, não de um exercício da
livre vontade do paciente para considerar o que é mais benéfico para si.” As normas médicas e
jurídicas ditariam o que é “bem/bom” ou o “certo/errado” através dos mecanismos de acesso
aos “direitos” dos tratamentos e às modificações nos registros de nascimento. Nessa profusão
de (in)decisões, médicos, advogados, promotores, psicólogos, juízes seguem consolidando um
lugar de violência institucional, impossibilitando o reconhecimento do outro:

La respuesta violenta es aquella que no inquiere y no trata de conocer.


Quiere reforzar lo que sabe, expurgar lo que lo amenaza com no saber, lo
que la fuerza a reconsiderar las presuposiciones de su mundo, su
contingencia, su maleabilidad. La respuesta no violenta vive com su
desconocimiento del Otro frente al Otro, ya que mantener el vínculo que
plantea la pregunta resulta em último término más valioso que conocer de
antemano lo que tenemos em común, como si ya tuviéramos todos los
recursos que necesitamos para saber qué define al humano y cuál puede ser
su vida futura. (BUTLER, 2006, p. 60)

Ao final da entrevista com Diogo, a troca de e-mails foi sugerida para o entrevistado e
contribuiu para que, posteriormente, ele me enviasse a cópia da carta que redigiu ao Juiz
quando da tramitação de seu processo para alteração de nome e sexo. Transcrevo, com sua
autorização, os fragmentos:

Aguardo, então, confiante de que, assim como a ciência médica nos deu uma
contribuição, a ciência jurídica irá partilhar desse mesmo gesto, dessa
mesma atitude, proporcionando a todos nós, transexuais, um momento mais
que sonhado, mais que esperado. Um momento exclusivo, pois se através da
Medicina nos livramos da prisão chamada “corpo”, através da Justiça
teremos a liberdade da prisão chamada “nome”, que não retrata a verdadeira
realidade, a essência que se expressa através daquilo que realmente somos,

77
Despacho do Promotor de Justiça encaminhado à 3ª Vara de Família em Brasília, onde tramitou o processo de
GSB. Datado de 27|06|2006.
Flavia Teixeira 75

sentimos e desejamos.78

A metáfora entre a carta de alforria e a sentença judicial foi recorrente na fala de


Diogo, a qual poderia se constituir apenas em ma estratégia lingüística se não traduzisse
outras experiências:

Hoje sinto que vivo à margem da sociedade. Vivo à sombra de tudo e de


todos. Muitas vezes, ao planejar qual será o meu próximo passo, deixo de
realizar o que realmente quero apenas para evitar mais sofrimentos em
virtude de não possuir um nome que condiz com quem eu realmente sou.
Sou formado, mas não exerço a profissão. Preferi, assim, continuar no meio
acadêmico, no qual, após anos de constrangimentos devido ao nome civil,
consegui o respeito das pessoas com quem convivo. Estou trabalhando como
professor e cursando o doutorado. Se me apresentar como “a” estudante, ou
“a” profissional, apenas ampliarei as situações de constrangimentos. Além
disso, eu jamais me apresentaria como mulher, pois iria de encontro ao
âmago do meu ser e seria além do ridículo. Há mais de 11 anos, sou o
fulano, o amigo, o estudante, o profissional, e agora o professor.
Definitivamente, o nome “fulana” ainda persiste por uma questão jurídica, e
é exatamente através da Justiça que eu espero tornar esse nome uma página
virada e arrancada de minha vida, levando junto muitos traumas do passado.
(...) a sensação que tenho é a de que recebi minha carta de alforria79 (Grifos
meus).

Os sentimentos de Diogo me inquietam diante do questionamento sobre as condições


normativas que tornam a vida habitável, ou não. Mas, também, evidencia a incorporação dos
discursos que legitimam a medicina e o direito como as instituições normatizadoras da vida
em sociedade. O Programa de Transgenitalização da Promotoria Pública do Distrito Federal e
Territórios – PRÓ-VIDA – por estar inserido nas redes dos discursos médico e jurídico,
ofereceu um locus privilegiado para a análise

78
Entrevista pessoal, Brasília, 11/05/2007.
79
Correspondência pessoal via correio eletrônico. Foi suprimido o endereço eletrônico para se ocultar a
identidade.
Flavia Teixeira 77

CAPÍTULO 2

Não basta abrir a janela...


Flavia Teixeira 79

CAPÍTULO 2

Não basta abrir a janela...80

Ao reivindicar condições para uma existência legitimada socialmente, as pessoas


(transexuais) recorrem ao diagnóstico médico como única porta para a cirurgia de
transgenitalização e, posteriormente, a autorização para alteração de sexo e nome em
documentos. Neste capítulo, analiso os processos das pessoas que se inscreveram no
Programa de Transgenitalização coordenado pela Promotoria de Justiça de Defesa dos
Usuários dos Serviços de Saúde (Pró-Vida) do Ministério Público do Distrito Federal e
Territórios. As solicitações de laudos médico-psicológicos entrelaçam os saberes médico-
jurídicos e demonstram como o processo de construção de um diagnóstico depende dos
sentidos conferidos à transexualidade.

Analisar as decisões dos diferentes sujeitos enredados nesses protocolos oficiais


permitiu interrogar os significados concedidos às noções de masculinidade, feminilidade e
sexualidade que interferem na constituição da suposta identidade transexual e,
consequentemente, na concessão do direito à cirurgia.

As concepções cristalizadas de gênero informam a esses representantes dos saberes


médico-jurídicos um modelo/roteiro essencializado do que deve ser a pessoa (transexual) em
que as normas sociais estabelecem e produzem o reconhecimento do que deve ser o humano.

O silenciamento sistematicamente imposto às/aos envolvidas/os, nos processos,


denuncia a ausência da autonomia do sujeito para falar de si mesmo. Nesses documentos, as
vozes preponderantes dos especialistas mostram incoerências, contradições e exceções. Elas
denunciam a fragilidade das certezas dos peritos, remetendo ao texto de Berenice Bento
quando diz que é “muito poder para pouco saber” (2008, p. 75).

80
Não Basta, Alberto Caeiro.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 80

... Os lírios não nascem da lei 81

Os trabalhos pioneiros de Mariza Corrêa (1983), Sidney Chalhoub (1986), Martha


Esteves (1989) e Karla Bessa (1994) propiciaram, através dos diferentes caminhos
estabelecidos por eles, que eu aprendesse a dialogar com os processos. Esses estudos tiveram
como fonte documental processos crimes que envolviam testemunhas, delegados, réus,
vítimas, acusações, promotores e julgamentos. Suas contribuições estão distribuídas no
conjunto do texto e me ensinaram a pensar como se produzem e se explicam as diferentes
versões que os distintos sujeitos constroem para cada caso. Estar atenta à repetição, não
apenas daqueles que relatam sua história, mas também daqueles que insistem em ouvir todas
as histórias a partir de um único roteiro. Entender como uma versão aparentemente linear
pode ser recontada com detalhes e contradições no decorrer de um processo foi fundamental
para compreender as demandas aqui analisadas. Mesmo na ausência de uma cena de crime
(em tese) que iniciaria o enredo, ou mesmo de um réu ou vítima – apesar de o lugar ocupado
pelas pessoas (transexuais) remeter a uma ambigüidade em que ora são apresentadas como
vítimas de um erro da natureza e em outros momentos como réus, pois condenadas por sua
escolha/desejo, temos um sujeito que é comum aos demais processos: “o promotor público”.

O campo inicial de uma pesquisa sobre transexualidade alicerçado em uma Promotoria


Pública pode causar estranhamento, uma vez que não se trata de um processo criminal. Em
processos criminais, o lugar ocupado pelo Ministério Público (MP) parece legítimo, pois
possui como função institucional a promoção da ação penal pública. Isso decorre do fato de o
Estado substituir a vingança privada em função da justa persecução penal para fins de
efetivação da justiça. Essa função do MP surgiu no Código de Processo Criminal de 1832, em
que consta referência como “promotor da ação penal”. No entanto, a atuação do MP
contemporaneamente traz controvérsias ao próprio campo disciplinar, conforme demonstra
Diaulas Ribeiro (2002).

A Constituição Federal de 1988 em seu art. 129 dispõe sobre as funções institucionais
do Ministério Público:

a) promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;


b) zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de
relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo

81
Nosso Tempo, Carlos Drummond de Andrade.
Flavia Teixeira 81

as medidas necessárias a sua garantia;


c) promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do
patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos
e coletivos;
d) promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins
de intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos nesta
Constituição;
e) defender judicialmente os direitos e interesses das populações
indígenas;
f) expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua
competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na
forma da lei complementar respectiva;
g) exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei
complementar mencionada no artigo anterior;
h) requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito
policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações
processuais;
i) exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que
compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e
a consultoria jurídica de entidades públicas.

As demandas que envolvem os processos aqui analisados baseiam-se na relação entre


o estado e a capacidade das pessoas; o MP atua na qualidade de fiscal da lei (custos legis),
fundamentado no artigo 127 da Constituição Federal de 1988, que regula a organização dos
poderes e estabelece as atribuições do MP:

Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função


jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do
regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. 82
(grifos meus)

Considerar a vida e o corpo como bens indisponíveis implicaria no reconhecimento de


que pertencem ao campo da natureza (ou do divino) e, portanto, interditado para seu detentor.
Segundo pesquisa realizada por Mirim Ventura, “no contexto brasileiro, os segmentos mais
conservadores compreendem, comumente, a indisponibilidade da vida e do próprio corpo,
fundamentados no princípio da sacralidade da vida e/ou no direito natural.” (2007, p. 56).
Tendo trabalho a partir das discussões pautadas no campo da bioética, esta autora argumenta
que a manutenção do pressuposto da indisponibilidade desconsidera o princípio da autonomia

82
Constituição da República Federativa do Brasil, disponível em: http://www.senado.gov.br/sf/legislacao/const/
capturada em 21 de maio de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 82

pessoal.

Ressalto que qualquer que seja a causa que autorize o MP a intervir no processo, civil
ou penal, o móvel desta autorização deveria ser sempre o interesse público. Entende-se por
causas concernentes ao estado da pessoa aquelas que se relacionam à filiação, ao nome e a
outras ali elencadas. Enfim, causas que envolvam os direitos da personalidade. Nesse sentido,
remeto ao artigo 11 do Código Civil: “Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os
direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício
sofrer limitação voluntária”.83

A Ação Retificatória do Sexo Civil e do Prenome impetrada pela advogada de


J.R.S.G. Reafirma a pertinência da atuação da Promotoria baseada no Código do Processo
Civil que estabelece:

Art. 82. Compete ao MP intervir: nas causas em que há interesses de


incapazes; nas causas concernentes ao estado da pessoa, pátrio poder, tutela,
curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e disposições de
última vontade;84 (grifos meus).

Nos processos analisados, prevalece o entendimento do corpo como dado biológico


(restrito ao âmbito da natureza), justificando a abrangência da atuação da Promotoria:

Dentre as atribuições desta Promotoria, inclui-se oficiar em todos os feitos


que tiverem como objeto a transgenitalização, bem como promover todas as
medidas judiciais ou extrajudiciais, civis, criminais ou administrativas que
decorrem, direta ou indiretamente, das suas intervenções. (...) No caso de
pacientes já operados, instrui o procedimento de forma a facilitar a análise
dos Promotores e dos Juízes respectivos.85

Após compreender o percurso esperado para a tramitação do processo, a leitura e a


análise dos processos seguiram quatro etapas. No primeiro momento, foi construída uma
planilha com os dados contendo o nome, data de inscrição, solicitação apresentada, idade.

Nessa primeira etapa, foram agrupados os documentos iniciais de todos os processos.


O documento de solicitação de abertura do Processo para Habilitação para cirurgia de

83
Lei nº. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que insttui o Código Civil. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/2002/L10406.htm capturado em 21 de maio de 2007.
84
Lei nº. 5.869, de 11 de janeiro de 1973, que institui o Código de Processo Civil. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Leis/L5869.htm capturado em 21 de maio de 2007.
85
Fragmento retirado do Procedimento Preparatório para Alterações de Estado Decorrentes de Cirurgia de
Transgenitalização de Transexual Masculino (Transmasculino): Mudança de Prenome e Sexo. p. 3 Processo de
J.R.S.G. em 17 de outubro de 2003.
Flavia Teixeira 83

transgenitalização, a declaração de estar ciente das atribuições do Programa, com a


autorização para o acesso a todos os documentos médicos e informações confidenciais, e
cópia dos documentos pessoais acompanhados da declaração de antecedentes criminais86 e
atestado da Justiça Eleitoral.

O documento da entrevista inicial com os membros da Promotoria estava disponível


em alguns processos, mas não em todos, parecendo não se constituir numa norma. Em ordem
cronológica, os primeiros processos apresentam documentos que informam sobre a entrevista;
outros incluem um questionário que deveria ser preenchido pelo solicitante; e os últimos não
possuem nenhum deles. A primeira análise gerou o perfil do grupo a ser analisado segundo as
categorias: idade, sexo, escolaridade.

Na segunda etapa, os processos foram divididos segundo a demanda apresentada e o


encaminhamento para a realização de exames periciais e confecção dos laudos. Quando a
pessoa estava iniciando o processo sem ter sido submetido/a a um acompanhamento
psicoterápico por no mínimo dois anos, consta o encaminhamento para o atendimento
psicológico. A partir de novembro de 2002, foram incorporadas as solicitações dos exames
genéticos e de cariótipo.87 Nessa etapa foi construída a divisão dos processos em 03 grupos
que permaneceu até o momento da análise, ou seja, um primeiro grupo formado por aquelas
que haviam se submetido à cirurgia antes do ingresso no Programa; o segundo grupo foi
constituído por aquelas pessoas que ainda não haviam realizado a cirurgia, mas que
dispunham de condições financeiras para realizá-la; e o terceiro grupo, a maior parte dos/as
inscritos/as, que não reunia nenhuma destes critérios.

A terceira etapa da análise foi a leitura cuidadosa dos pareceres dos peritos e dos
resultados de exames realizados a pedido da Promotoria, os quais estavam disponíveis nos
processos. Considerando que nem todos os processos possuíam os resultados e laudos, foi
uma etapa difícil, de vai e vem na Promotoria em busca de dados novos que pudessem ser
anexados aos processos no decorrer da análise. No entanto, em dezembro de 2004 – ocasião
em que o Programa foi suspenso –, foi realizada uma leitura cuidadosa de todos os processos
disponíveis e atualizados todos os dados. Na quarta etapa, foram analisados os despachos do

86
No Parecer que embasa a Resolução 1482/97 consta, como pré-requisito para a realização da cirurgia, a
declaração de ausência de histórico criminal, no entanto, este critério não fica determinado na referida
Resolução.
87
Ofício nº. 390/02 GAB/HUB de 09 de outubro de 2002 informa ao Promotor de Justiça que o Serviço de
Genética concorda em receber os pacientes indicados para realizar exame de cariótipo. A leitura do ofício sugere
que a solicitação da Promotoria se deu através de telefonema.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 84

Promotor de Justiça, habilitando ou não o/a candidato/a a realizar a cirurgia. Os pareceres da


Promotoria nos casos da solicitação da alteração de nome e sexo, realizados a pedido do Juiz,
de alguns dos integrantes, foram anexados aos processos, a partir de 2006, e também foram
reunidos para a análise.88

Os processos iniciais possuem documentos anexos que são diversos: notícias


veiculadas em jornais e revistas sobre transexualidade, decisões judiciais referentes à
transexualidade no Brasil e exterior e ofícios do Promotor com solicitações diversas. Eles
serão apresentados no decorrer das discussões, pois se referem ao próprio movimento de
construção e circulação de saberes sobre a transexualidade.

Na ocasião de sua inscrição, 14 pessoas estavam na faixa etária entre 26 e 30 anos.


Cinco encontravam-se acima dos 30 anos. Sem a preocupação de estabelecer uma média de
idade correspondente a uma variável de estudo epidemiológico, este trabalho dialoga com os
dados obtidos por Alexandre Saadeh (2004), quando demonstra que as pessoas acompanhadas
em seu estudo se encontravam numa média de idade acima de 30 anos e que os homens
(transexuais) eram mais velhos do que as mulheres (transexuais). Considerando que a
autorização pelo Conselho Federal de Medicina para a abertura de programas voltados para as
cirurgias de transgenitalização deu-se em 1997 e a implementação do Programa de
Transgenitalização coordenado pela Promotoria ocorreu no final de 1999, a possibilidade de
buscar tais recursos deu-se tardiamente para a grande maioria das/os inscritas/os.

Numa distribuição inicial, considerando o pertencimento ao gênero desejado pelas/os


inscritas/os, observa-se que durante o período de 1999-2004 houve um aumento gradativo da
demanda pelo ingresso no Programa de Transgenitalização, que atingiu homens e mulheres de
forma diferente - totalizaram 26 mulheres (transexuais) e três homens (transexuais).

O número de homens (transexuais) que buscaram o serviço desejando a


transgenitalização foi bem menor. Esse dado pode ser corroborado na literatura internacional,
em que a proporção de homens (transexuais) é inferior a de mulheres (transexuais) numa
escala de 1:3 (RAMSEY, 1998). No entanto, em seu estado bruto, esse dado nada informa
sobre o silenciamento dos homens (transexuais) em relação à visibilidade alcançada pelas
mulheres (transexuais) na mídia89 e o significado desta relação no processo de construção de

88
Agradeço a disponibilidade do Promotor Diaulas Ribeiro que propiciou o acesso aos documentos e me
manteve sempre atualizada do andamento dos mesmos.
89
Por não se tratar de uma fonte específica para o trabalho proposto, apresento a título de informação, algumas
das reportagens que foram veiculadas em revistas de circulação nacional sobre o tema. (1) Revista Isto É (online)
Flavia Teixeira 85

uma subjetividade, sendo comuns os depoimentos em que as mulheres (transexuais) dizem


que encontraram na mídia televisiva ou escrita as primeiras informações sobre a
transexualidade. Ao contrário, nenhum dos homens (transexuais) informou nos processos ter
encontrado na mídia suporte para nomear a sua experiência. A transexualidade é, muitas
vezes, colocada como sinônimo da condição de construção de uma mulher,90 o que pode ser
resultante da maior proliferação de discursos e saberes que as pesquisas biomédicas e também
psicanalíticas – a exemplo do que ocorre com os homens homossexuais – encobrindo o
precário sucesso da técnica cirúrgica disponível para a construção do pênis que impossibilita a
ostentação da preeminência tecnológica como é comum no caso da cirurgia de
neocolpovulvoplastia91 sugerem que a busca pelos Programas institucionalizados não
decorram apenas da incidência dos casos na população como foi presumido por Ramsey
(1998) e corroborado por Alexandre Saadeh (2004).92

As/os inscritas/os chegaram ao Programa com demandas e vivências diferentes, que


exigiriam um tratamento dos dados em separado para evitar que as diferenças fossem
apagadas por uma aparente homogeneidade. Três mulheres (transexuais) se inscreveram para
participar do Programa de Transgenitalização após terem realizado a cirurgia na rede privada
de saúde.93 Duas dessas candidatas passaram pelo processo cirúrgico no exterior e não fazem
referência e nem constam nos processos quaisquer informações sobre o cumprimento de
normas para a realização da cirurgia. A.E.B. Revela que permaneceu 15 dias na cidade de
Quito, tempo suficiente para a realização da cirurgia e a liberação para retornar à Itália, onde
residia. Relata que não havia completado a maior idade civil, na ocasião da cirurgia, o que no

edição n.1692 de 01/03/2002 He, She ou It?. Casos de transexuais em disputa por herança ou guarda de filhos
vão parar na Justiça e obrigam revisão de conceitos. Disponível em http://www.terra.com.br/istoe/ capturada em
20/09/2002 Também as notícias sobre a implantação de Programas enfatizam a cirurgia para as mulheres
(transexuais): Mudança de Sexo no Paraná. Correio Braziliense, Brasília, Brasil, p.17. 25 de setembro de 1999.
HC prepara cirurgias para mudança de sexo. O Popular, Goiânia, Cidades, p. 2 B, 19 de dezembro de 1999.
90
Revista Época, edição 236 – 21 de novembro de 2002. Nasce uma mulher. Transexuais saem do armário e a
ciência mostra que a mudança de sexo não é perversão. Disponível em
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG53915-6014-236,00.html capturada em 05/12/2002.
91
Ao realizarem a solicitação de ingresso no Programa de Transgenitalização, os homens (transexuais) assinam
o Termo de Depoimento que ressalta a dificuldade técnica da cirurgia de neofaloplastia. A Revista G Magazine,
que é dirigida para homens homossexuais, publicou uma reportagem com a equipe responsável pelas cirurgias de
Transgenitalização no Hospital de Base em São José do Rio Preto. G Magazine. Mudança de Hábito. Edição
029 de fevereiro de 2000. Nela fica explícito o desencorajamento da procura por homens (transexuais) diante da
limitação técnica para a cirurgia.
92
A minuciosa recapitulação dos dados sobre incidência, prevalência e busca pela cirurgia entre os/as
(transexuais) na literatura internacional realizada pelo pesquisador é elucidativa da preocupação em demonstrar a
universalidade do fenômeno (SAADEH, 2004, pp. 78-82).
93
Por ocasião da inscrição, a/os candidata/os são instruída/os de que a Promotoria apenas prepara a
documentação para a mudança de nome e sexo.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 86

Brasil esbarraria nas normatizações estabelecidas no item 2 do artigo 4° da Resolução CFM


n° 1.652/2002 (que fixa a idade mínima de 21 anos para a realização da cirurgia).

Acredito que, ao buscar o Programa de Transgenitalização, duas das inscritas estariam


antecipando a problemática da relação conflituosa entre os poderes médico-jurídicos, mesmo
no processo da candidata operada no Brasil, em que constam dados referentes ao
cumprimento dos requisitos exigidos pelo CFM. A ausência de uma legislação específica e de
um procedimento uniforme em relação às pessoas (transexuais) favorece que as buscas por
“quaisquer promessas” sejam prontamente seguidas e percebidas como saídas para a situação
de vulnerabilidade em que se encontram diante da insegurança – após percorrem um árduo
processo terapêutico – quanto ao acesso a um novo status civil como já observado no capítulo
anterior.

A motivação das três inscritas que iniciaram o processo já tendo cumprido todas as
exigências do CFM para a realização da cirurgia,94 e dispondo de recursos próprios para
custear o procedimento, pode guardar semelhanças, mas, ainda assim, apresentam histórico
diferenciado. W.P.S. Integra esse grupo e foi a primeira inscrita no Programa de
Transgenitalização, em dezembro de 1999. Sua demanda inicial foi a habilitação para a
realização da cirurgia. Considerando que a equipe do serviço responsável pela intervenção
cirúrgica atuava em outro Estado desde 1998, a solicitação para habilitação parecia fora de
“foco”. O Promotor reconheceu os limites da atuação da Promotoria:

A realização da cirurgia em outro Estado afastava a habilitação no Distrito


Federal. Contudo, o Dr. XXX solicitou diretamente à Promotoria, por
telefone, que fosse concluída a habilitação no Distrito Federal, a qual seria
tramitada conforme necessário.95

Analisado no conjunto dos outros, esse processo pode ser considerado como uma
exceção em diferentes ângulos. Os laudos encaminhados pelos profissionais, por solicitação

94
Assim estabelecidos no Artigo 4º da Resolução nº. 1652/2002: Que a seleção dos pacientes para cirurgia de
transgenitalismo obedecerá a avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião,
endocrinologista, psicólogo e assistente social, obedecendo aos critérios abaixo definidos, após, no mínimo, dois
anos de acompanhamento conjunto:
1. Diagnóstico médico de transgenitalismo;
2. Maior de 21 (vinte e um) anos;
3. Ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia.

95
Processo de WPS – Habilitação para Cirurgia de Transgenitalização de Transexual Masculino – Despacho do
Promotor de Justiça – p.3.
Flavia Teixeira 87

do Promotor, atestam a condição de transexualismo e não se referem ao tempo de


acompanhamento de W.P.S; considerando ser esta uma exigência da Resolução nº. 1.482 /97
do CFM, que normatizava, naquele momento, a realização da cirurgia. É uma ausência
significativa, pois em outras situações, para os/as demais candidatos/as, será considerada
empecilho96 e acarretará morosidade ao andamento do processo. Quanto ao tempo
transcorrido entre a solicitação de ingresso no Programa de Transgenitalização, este foi um
processo que tramitou em período mínimo. Inscrita em dezembro de 1999, W.P.S. Teve seu
termo de habilitação expedido em fevereiro de 2000 e no mesmo mês foi submetida à
cirurgia; a Sentença da Alteração de Pré-nome foi publicada em abril de 2001.

O processo de J.C.P.S. Deixa pistas que justificam a busca pela intervenção do


Ministério Público. Na ocasião de sua solicitação, ela residia numa cidade no interior de
Minas Gerais e acabara de completar 19 anos, o que exigiu sua emancipação como medida
preliminar.

O paciente foi emancipado pelos pais, com escritura pública averbada em


seu assento de nascimento. Além disso, pelo novo Código Civil a maioridade
é atingida aos 18 anos, não havendo, portanto, obstáculo legal à prestação do
consentimento esclarecido para a cirurgia.97

A cirurgia foi realizada em fevereiro de 2003, entretanto, a percepção do Conselho


Federal de Medicina é diversa da do Promotor, conforme pode ser observado no parecer do
Processo-Consulta de nº. 6331/2003 do CFM, em que uma advogada indaga sobre a
interpretação da idade mínima para a realização da cirurgia de transgenitalização,
considerando que a alteração decorrente do novo Código Civil (artigo 5°)98 diminuiu a idade
civil brasileira para 18 anos. A decisão do CFM foi contrária à realização do procedimento. O
fragmento reproduzido demonstra o posicionamento oficial do CFM:

EMENTA: A falta de um salto biológico que caracterize a idade do ser


humano, não justifica que a medicina se oriente pelo Código Civil para
procedimentos da complexidade de cirurgias transexuais.
E esse entendimento não é de todo destituído de razão, pois, apesar de não

96
A equipe do Hospital de Base de São José do Rio Preto consulta o CFM sobre validação de laudo psicológico
de acompanhamento realizado no exterior, a possibilidade foi negada porque o Conselho entendeu que existe a
necessidade de acompanhamento por uma equipe multiprofissional e, no mínimo, por dois anos. PROCESSO-
CONSULTA CFM Nº. 1.444/06 – PARECER CFM Nº. 2/07 disponível em
http://www.portalmedico.org.br/pareceres/cfm/2007/2_2007.htm capturado em 03/02/2007.
97
Processo de JCPS – Habilitação para Cirurgia de Transgenitalização de Transexual Masculino – Despacho do
Promotor de Justiça – p.2.
98
Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 88

estar expressamente justificado, o número 21 (anos de idade) não pode ter


sido colocado arbitrariamente. Mas o vínculo com a maioridade civil não
está explicitado literalmente, o que desobriga o CFM a realizar mudanças
para acompanhar uma lei recém-criada, e justamente em campo ainda
marcado de divergências no próprio mundo jurídico (sem retornar às
questões de natureza médica presentes na matéria).
Desta forma, o cuidado que vincula o procedimento à idade referida no texto
das resoluções (21 anos) deve permanecer. 99

A ausência de um consenso sobre o procedimento quando a equipe realiza a cirurgia,


sem consultar o CFM e buscando o respaldo jurídico para seus atos, expõe fraturas dentro da
própria lógica que normatiza a cirurgia. Fragilidades poucas vezes mencionadas nas
“certezas” que esse campo disciplinar produz e veicula.

L.P.P.N. Também seria submetida ao procedimento cirúrgico com a mesma equipe.


Ao se inscrever no Programa, informa ter sido encaminhada pelo coordenador da equipe do
hospital: “Veio à Pró-Vida, por indicação do [ ] buscar a autorização para a cirurgia. Não
pretende cumprir as etapas do Programa de Transgenitalização desta Promotoria, visto que já
passou por todas as etapas necessárias ao processo”.100 No processo consta que L.P.P.N.
Poderia ser localizada numa cidade do interior de Minas Gerais, embora apresentasse também
endereço no Distrito Federal. Esse encaminhamento é compreendido na perspectiva da busca
de um respaldo para os trâmites posteriores à cirurgia, pois não havia nenhum impedimento
aparente. Os laudos informam que foi submetida a acompanhamento por equipe
multiprofissional de reconhecida competência, e o diagnóstico foi estabelecido dentro dos
padrões exigidos pela Resolução do CFM. Habilitada em 20/12/2002,101 submeteu-se ao
procedimento cirúrgico em 19/12/2002, o que reafirma que não havia nenhuma dependência
da equipe em relação à autorização para a cirurgia.

Embora, nos processos, os dados sobre as condições sócio-econômicas estejam


embaçados e poucas correlações possam ser estabelecidas, a evidência é, sem dúvida, de que
estas dispunham de maior capital financeiro e/ou cultural. Larissa Pelúcio aponta para uma
diferenciação de classe que associa as travestis às camadas mais populares e as transexuais
como pertencentes às camadas médias (2007, p. 98). Mesmo que este dado não possa ser

99
PROCESSO-CONSULTA CFM N° 6.331/2003 – PC CFM N° 8/2004 de 05 de dezembro de 2003, disponível
em http://www.portalmedico.org.br/pareceres/cfm/2004/8_2004.htm capturado em 15/10/2006.
100
Processo de LPPN. - Parecer Social 007/02 Pró-Vida, p.2.
101
Processo de LPPN – Habilitação para Cirurgia de Transgenitalização de Transexual Transmasculino -
Despacho do Promotor de Justiça – Autos nº. 002542/02-1 de 20 de dezembro de 2002.
Flavia Teixeira 89

considerado como representativo do universo de transexuais, identifiquei, durante as reuniões


do Coletivo Nacional de Transexuais (2007), que a maioria era oriunda das classes médias e
possuía grau de instrução correspondente a nível médio completo e nível superior.

As inscritas que procuraram o programa com menor faixa etária, tiveram acesso às
informações de maneira privilegiada, sendo que algumas iniciaram a “harmonização”102
acompanhadas por especialistas ainda na adolescência. Esse é um dado significativo, pois o
uso de medicamentos (através da auto-medicação), com fins de alterar os aspectos do corpo
mesmo antes de iniciar o Programa, é uma prática recorrente.103 Nos processos analisados,
essa informação será encontrada com facilidade, mas nenhuma investigação a esse respeito é
realizada pelos entrevistadores. A auto-medicação parece ser o caminho naturalmente
escolhido pelos/as inscritos/as e não desperta a atenção dos especialistas, visto que se
destacam as falas sobre as tentativas frustradas das/os candidatas/os de terem acesso às
orientações médicas.

As demais pessoas (transexuais) se inscreveram no Programa de Transgenitalização


sem terem cumprido nenhuma das exigências do CFM e demandavam a cirurgia através do
Sistema Único de Saúde/SUS. Para esse grupo, o tempo médio entre a solicitação e o
despacho do Promotor, considerando a data final dezembro de 2004, é superior a 30 meses.
Sendo que quinze processos encontravam-se sem o despacho final ainda em maio de 2007,
quando do último acesso para esta pesquisa. A dificuldade em obter recursos para os
tratamentos exigidos pelo CFM ou o significado deste Programa para as pessoas inscritas
podem ser interpretados pelo tempo de sua permanência no Programa da Pró-Vida.

Mesmo que ainda em dezembro de 2004, efetivamente nenhum/a candidata/o tivesse


sido submetida/o à cirurgia através do Sistema Único de Saúde (SUS), desistência formal
alguma foi registrada. Apenas em dois processos iniciados por mulheres (transexuais) em que
consta o termo de representação, há um questionário sobre dados gerais que indicam uma
primeira entrevista com o Promotor, o Termo de Depoimento e documentos pessoais. O
documento emitido pelo Núcleo de Perícia Social informando o não comparecimento para a

102
Discuto adiante a relação estabelecida entre o uso do hormônio e a busca de uma harmonia entre a “alma” e o
“corpo” traduzindo a “harmonização” ou, as vezes, chamada de “hormonização” como categorias êmicas.
103
Os trabalhos dos antropólogos brasileiros Hélio Silva (1993), Mônica Siqueira (2004), Marcos Benedetti
(2005) e Larissa Pelúcio (2007) com as travestis em diferentes locais se referem a este lugar de orientadora
ocupado pelas travestis mais velhas, não tive acesso a literatura que tratasse especificamente da iniciação das
pessoas (transexuais), mas as entrevistas apontam para um acesso maior a informações através de livros, revistas
e profissionais, embora a experiência com as travestis e outras transexuais esteja presente em alguns relatos.
Diferentemente das mulheres, a auto-medicação para os homens (transexuais) é de menor incidência porque o
acesso aos medicamentos é controlado pela ANVISA. (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Vidas que desafiam corpos e sonhos 90

Entrevista Social e a ausência de êxito em obter contato com as solicitantes, sugere a


desistência do pleito. Outro processo também se encontrava com os documentos acima
descritos, somando-se a ele apenas o encaminhamento do Promotor de Justiça para a
realização do Exame Físico no IML e o Ofício do IML informando o não comparecimento da
requerente.

As informações sobre a escolaridade estão diluídas nas entrevistas e não parecerem ser
significativas para os especialistas. Fragmentos pontuais retirados dos laudos psicológicos
relatam dificuldades no cotidiano escolar, no entanto, referem apoio familiar no
enfrentamento das situações de conflito. A escola é apresentada como espaço de repressão;
episódios envolvendo constrangimentos físicos e simbólicos são as marcas desta tensa
relação.

A pesquisa realizada por Mary Castro, Miriam Abramovay e Lorena Bernadette da


Silva (2004) sistematiza informações que até então ficavam resguardadas dentro de um
“ouviu-se dizer” sobre os tratamentos preconceituosos, as medidas discriminatórias, os
insultos, constrangimentos, ameaças e agressões físicas ou verbais que fecham as portas da
escola para a/os (transexuais). A ausência de um espaço nos processos para sequer identificar
o nível de escolaridade das/os inscritas/os sugere um desconhecimento desta realidade a
elas\eles imposta ou, talvez, o não entendimento de que a vivência escolar delas/es seria desde
muito cedo influenciada pelas normas de gênero. Dificuldades percebidas por Elizabeth
Zambrano:

A percepção de ser diferente, o repúdio dos colegas, os deboches aparecem


como elementos definidores também de formas de se relacionar com outros
jovens ou mesmo com familiares. (...) Percebe-se que o ocultado pela
família, até certo momento, torna-se público com a freqüência à escola,
estigmatizando não só o indivíduo mas, também, a própria família, que reage
muitas vezes rejeitando o transexual. (2003, p. 50)

Nos processos não constam dados que informem sobre as relações sociais
estabelecidas pelas/os candidatas/os no momento de inclusão no Programa. A família quase
não aparece nos relatos, alguns(mas) candidato/as residiam com seus familiares e diziam da
relevância do apoio deste grupo no processo de transformação; estas poucas informações
estão dispostas de modo não sistemático nos formulários que compõem os laudos.

Os processos não enfatizem o momento da opção pela vivência no sexo oposto ao


definido no nascimento e/ou a trajetória vivida anteriormente. Não aludem ao tempo em que
Flavia Teixeira 91

essas pessoas viveram o processo de transformação104, que ultrapassa a mudança de roupa,


mas que exige toda a encorporação (JAYME, 1999, p. 9). No processo de Carolina, é evidente
sua dificuldade em descrever a ambigüidade de sua vivência entre as exigências do trabalho e
a relativa flexibilidade encontrada em casa. Também são comuns os relatos das/os inscritas/os
justificando sua separação da família como um momento para “crescer e se reconhecer”,
reafirmam a dificuldade do estabelecimento de um lugar individual/social quando o corpo
sexuado é insuficiente para determinar o pertencimento a um gênero e conseqüentemente
imprimir uma identidade sexuada.

A referência familiar é relevante não somente porque consiste num dos critérios
“implícitos” para a indicação da cirurgia, ou seja, o apoio familiar para os cuidados pós-
operatórios105, mas, principalmente, porque assim como apontou Berenice Bento, as pessoas
(transexuais) buscam através da cirurgia, também, o reconhecimento de pertença.

(...)Eles/as querem a mudança nos seus corpos para que possam ter
inteligibilidade social, ou seja, se a sociedade se divide em corpos-homens e
corpos-mulheres, aqueles que não apresentam essa correspondência fundante
tendem a estar fora da categoria do humano. (2003, p. 18)

O lazer e o acesso a outros espaços de socialização também são dados ausentes nos
processos. A argumentação da medicina e do judiciário em defesa da cirurgia está ancorada na
necessidade de “ressocialização” das/os pessoas (transexuais). No entanto, a ausência de
dados sobre como elas/es vivem, em quais espaços circulam, em comparação às minuciosas
investigações sobre o corpo em construção, presentes nos laudos de exame de corpo delito e
testes psicológicos e psiquiátricos, é significativa de que essa suposta “ressocialização” deva
ocorrer após o enquadramento das/os inscritas/os às normas de sexo/gênero referenciadas pelo
modelo hegemônico da heterossexualidade.

Gabriella106 e Aline107 foram assassinadas durante a realização desta pesquisa sem que
nenhum suspeito fosse identificado até o momento em que encerrei as entrevistas em Brasília,

104
Categoria êmica utilizada para identificar o período em que a pessoa passa a reivindicar, através de gestos,
roupas, nome e postura um outro pertencimento de gênero.
105
Nos processos, os/as interessados/as informam quem os acompanhará no pós-operatório e como a família
percebe esse procedimento. Nos casos em que algum membro da família compareceu ao Ministério Público para
entrevistas, a habilitação ocorreu mais rapidamente.
106
Encontrei no seu processo as informações sobre o crime, as quais foram recolhidas pelo Promotor que visitou
os familiares e conversou com o delegado responsável pelas investigações.
107
As informações sobre o assassinato de Aline foram coletadas através das entrevistas. O Promotor foi
comunicado por mim deste episódio e nenhuma alusão ao fato constava nos processos.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 92

em outubro de 2007. Silvia Ramos e Sérgio Carrara (2006, p.186) utilizam a expressão
homofobia para caracterizar um tipo de violência cujas agressões e discriminações são
motivadas pela orientação sexual.108 A violência com que Gabriella e Aline foram mortas
denuncia o que se convencionou como crimes de ódio. No referido estudo, os pesquisadores
identificaram que as travestis são as principais vítimas dos crimes de ódio (espancamentos,
graves ameaças à vida e denúncias de assassinatos), acredito que as pessoas (transexuais)
estejam colocadas no mesmo pólo extremo da escala de violência.

Laudos, relatórios e pareceres: protocolos da alma


A convicção de ser transexual é recorrente nos processos. Ao procurarem o Programa
de Transgenitalização em Brasília, todas/os as/os inscritas/os possuíam em comum a certeza
de serem (transexuais) e o desejo de realizar a cirurgia de transgenitalização. No entanto, não
bastam a certeza do sujeito de se identificar como (transexual) e seu desejo expresso pela
cirurgia. É necessário ser outorgada a ele/a a chancela de TRANSEXUALISMO; é o
diagnóstico médico que legitima a sua identidade (transexual).

O cumprimento dos protocolos, que garantem aos profissionais a existência de uma


transexualidade, adquire para os/as candidatos/as uma perspectiva inversa; anteriormente à
procura pelos programas elas/es realizaram um autodiagnóstico. Elas/es estão seguros/as da
posição de (transexuais). A realização dos exames, entrevistas e testes determinados pelas
especialistas funcionaria como uma necessidade de convencimento do outro. As pessoas
interessadas em se submeter ao processo para realizar as cirurgias não colocam em dúvida a
posição de transexual, mas a sua capacidade de convencer a equipe. É um jogo espelhado.
Enquanto o profissional acredita fazer emergir a verdade da transexualidade, as/os
candidatas/os procuram se adequar ao script do verdadeiro transexual que os especialistas
desejam identificar. Alexandre Saadeh (2004, p.83) refere que o autodiagnóstico é uma
característica comum desde os primeiros pacientes de Harry Benjamin.

Ao trabalhar com os processos criminais de homicídios passionais ocorridos em

108
Durante o XIV Entlaids, a representante da Rede Latino Americana e Caribe de Pessoas Trans -
REDLACTRANS –, Marcela Romero, enfatizava a necessidade de se divulgar o termo transfobia em detrimento
do termo homofobia, que segundo a mesma, contribuiria para invisibilizar as violências vividas pelas pessoas
trans incluindo as travestis e transexuais. (Anotações do Caderno de Campo, São Paulo, 29/06/2007). Segundo
Ruspini (2008, p. 89), transfobia é uma reação de pavor, desgosto e atitude discriminatória nas interações com
pessoas cuja identidade de gênero não corresponde ao modo socialmente estabelecido para o sexo atribuído ao
nascimento.
Flavia Teixeira 93

Campinas, Mariza Corrêa aponta o constante silenciamento dos acusados nos processos, “em
termos reais o acusado, desde que entra na polícia até o momento em que sai livre ou passa
para outra esfera, a penitenciária, só fala através desses agentes e é sempre referido na terceira
pessoa do singular e no passado” (1983, p. 40). Guardadas as diferenças entre os tipos de
procedimentos, percebo a imposição de um silêncio das/dos (transexuais) nos processos
analisados por mim. Exemplifico, neste momento, uma das estratégias deste apagamento
através de um fragmento extraído do laudo psiquiátrico em que três quesitos foram
apresentados pelo Promotor aos peritos:

O paciente é transexual?
RESPOSTA: Não.
Se a cirurgia de redesignação sexual lhe é recomendada
RESPOSTA: Não.
Se ele tem capacidade de cognição (consciência) e voluntariedade (liberdade
plena para decidir) para receber esclarecimentos e autorizar a mencionada
cirurgia.
RESPOSTA: Sim.109

No quesito formulado sobre a capacidade de cognição e voluntariedade da examinanda


para receber esclarecimentos e autorizar a mencionada cirurgia a resposta afirmativa dos
peritos foi supostamente invalidada pelas negativas anteriores do diagnóstico e da indicação
da cirurgia. A postura dos peritos evidencia que apresentar competências para decidir sobre
sua vida não é condição suficiente para decidir; assim, a retirada do poder de decisão das
mãos da/o transexual e sua transferência para os especialistas é ponto central na relação
estabelecida como identificou Mariza Corrêa (1983, p. 303):

A sua relação, pessoal e infinitamente complexa, sofre a interferência de um


aparato externo que vai servir de mediador entre seus atos e as normas
sociais vigentes, marginalizando-o neste caminho e reduzindo-o ao silêncio,
a um silêncio de quem não possui os instrumentos necessários para dirigir
seu próprio destino.

Nos processos analisados, os relatos sobre os sujeitos são escritos na terceira pessoa e,
após as omissões e interpretações das falas os peritos redigem a conclusão do Laudo. O
processo de EPC é um exemplo desta “tradução”. Ao solicitar sua inscrição no Programa de
Transgenitalização trajando roupas consideradas “unissex” e sem nenhum investimento

109
Resposta aos quesitos, excerto retirado do Exame Psicológico nº. 041/2001, que integra o processo de E.P.C..
Vidas que desafiam corpos e sonhos 94

corporal definitivo que demonstrasse seu pertencimento ao “mundo feminino”, EPC teve
dificuldades de convencer a equipe de sua feminilidade. O uso de roupas consideradas
femininas, denominado tecnicamente como teste de vida real, é um fator relevante no
protocolo da transexualidade. Os argumentos de E.P.C. de que, por ser profissional da saúde,
postergou o uso de hormônio através da auto-medicação e que aguardava o tratamento para
“mudança de sexo”, para então modificar suas vestimentas, e que também não adotara um
nome feminino, pois, para ela, estariam todos os procedimentos integrados, não foram
suficientes. No indeferimento de sua solicitação, configurado no parecer do Promotor de
Justiça,110 encontrei os argumentos sobre a incredulidade da equipe na “feminilidade” de
E.P.C.

(...) Manifesta desejo em submeter-se à cirurgia de redesignação sexual,


porém, ao longo de toda a sua vida não assumiu social e psicologicamente
seu desejo de mudança, sugerindo um conflito ambivalente sobre sua
sexualidade e revelando forte insegurança, ansiedade e dificuldade em
estabelecer relações interpessoais.111

Uma das entrevistadas por Elisabetta Ruspini (2008, p. 89) critica essa exigência do
teste de vida real, argumentando e elencando as várias situações cotidianas em que, frente à
necessidade da apresentação de documentos, e que não estão em consonância com a
aparência, ela deixa de ser real para se tornar uma farsante de si mesmo.

A diversidade dos inquéritos utilizados no estabelecimento de um diagnóstico


explicaria o sentimento de vitória encontrado no depoimento de uma integrante do Programa:
“Fui avaliada, examinada, testada e graças a Deus aprovada”.112 Considerando que todos
seguem os mesmos pré-requisitos (estabelecidos pelas normas gerais do CFM e os critérios do
DSM IV e CID 10), seria previsível o resultado, mas é o contraponto entre as decisões que
negam e aquelas que autorizam o procedimento cirúrgico que permite explorar como se
produz um “transexual verdadeiro”. A incerteza construída ao longo de um processo e a
arbitrariedade com que se produzem as decisões, desencadeia uma (im)previsibilidade;
percurso já estabelecido por Mariza Corrêa, demonstrado também nas análises de Karla Bessa
(1994).

Berenice Bento (2006) discute com propriedade o processo vivido pelas pessoas

110
Despacho do Promotor de Justiça, Autos nº. 001600/00-1 de 25 de setembro de 2002.
111
Laudo nº. 042/2001 de E.P.C..
112
Fragmento da entrevista realizada com Bruna, na Promotoria, em 08/11/2004.
Flavia Teixeira 95

(transexuais) ao reivindicarem o diagnóstico de transexualismo nos Programas. Destaca os


rituais, o infindável vai-e-vem através dos diferentes especialistas determinados pela equipe
coordenadora do projeto. Problematiza também os tempos vividos e as relações estabelecidas
durante o longo processo de acompanhamento imposto aos “candidatos/as”.

Do universo de 22 processos em que os/as inscritos/as não haviam cumprido nenhuma


das exigências, apenas oito processos possuem os laudos respondidos pelos peritos das áreas
de psiquiatria e psicologia do IML. Os encaminhamentos “exame com objetivo de
fornecimento de laudo psicológico” foram realizados no período compreendido entre
dezembro de 2000 e junho de 2001. Após esse período, as/os inscritas/os foram
encaminhadas/os para profissionais ou projetos que possuíam profissionais para atender a essa
demanda específica. Entre os 14 processos restantes, em três não encontrei referência quanto
ao encaminhamento para o IML ou para outros serviços; em outros dois as solicitantes
estavam em acompanhamento psicológico e anexaram o laudo ao processo. Em seus
processos, duas inscritas contam com o encaminhamento do Promotor para atendimento em
clínica da Universidade Católica de Brasília; posteriormente, com a implantação do Programa
de Transexuais do Hospital Universitário de Brasília (HUB), os três encaminhamentos
seguintes foram destinados a este serviço. Considero relevante ressaltar a existência de
relação entre os dois programas, sendo que o mesmo professor da Universidade Católica
integrava a equipe do HUB naquele momento. Nota-se um movimento de aproximação entre
a equipe do HUB e a Promotoria, sendo que consta em dois processos o encaminhamento da
coordenadora do grupo solicitando o ingresso das duas candidatas no Programa de
Transgenitalização da Promotoria. As duas últimas inscrições aceitas na Promotoria foram de
mulheres (transexuais) que informaram estar vinculadas ao Grupo de Transexuais do HUB,
mas sem o encaminhamento da coordenadora.

Os laudos psiquiátricos e psicológicos, em sua maioria, foram elaborados a partir de


uma determinação do Promotor para que o serviço do IML indicasse os peritos para
procederem aos exames. Na visita realizada ao IML, entrevistei especialistas importantes
para esse debate: o responsável pelas perícias psiquiátricas e uma das psicólogas que passou
pela experiência de responder aos laudos. O desconforto sentido por eles ao receberem a
determinação de que deveriam proceder ao exame solicitado pela Promotoria de Justiça fica
evidente logo no início do encontro. Referiram-se à dificuldade em desempenhar tal tarefa em
razão da especificidade estabelecida na Resolução do CFM de que o acompanhamento deve
ser realizado por uma equipe multidisciplinar por um período de, no mínimo, 02 anos.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 96

Ressaltaram também a particularidade da demanda, uma vez que este foi o primeiro contato
estabelecido por eles com a temática da transexualidade. A limitação identificada pelos
próprios peritos parece ter também sido objeto de reflexão da Promotoria que, após junho de
2002, buscou parceria com programas institucionais – em Universidades – para
acompanhamento psicológico dos/as inscritos/as.113

Se para Berenice Bento a construção dos laudos psiquiátricos e psicológicos é


questionável, porque resultam de um fragmento de realidade recortado no momento da
consulta e promovem a universalização de toda a diversidade vivida na transexualidade (2003,
p. 19), neste contexto, a relação entre os sujeitos se torna ainda mais vulnerável, posto que tal
procedimento é realizado através de um dispositivo jurídico que imputa aos peritos a
obrigatoriedade de realizar o exame.

As (in)certezas que se encontram no lugar onde as verdades são


guardadas
Quando Michael Foucault questiona o sentido (ou a ausência dele) encontrado nas
perguntas formuladas ao psiquiatra nos tribunais, evidenciando a sua pouca relação com o
Código Penal, este autor demonstra a função de defesa social da psiquiatria naquilo que
considera como “caça aos degenerados”.

Essas três perguntas, sem significado do ponto de vista médico, sem


significado do ponto de vista patológico, sem significado do ponto de vista
jurídico, têm ao contrário um significado bem preciso numa medicina do
anormal, que não é uma medicina do patológico e da doença; numa
medicina, por conseguinte, que continua a ser, no fundo, a psiquiatria dos
degenerados. (FOUCAULT, 2001, p. 404)

São também três os quesitos apresentados aos peritos psiquiatras do IML. O primeiro
indaga sobre a verdade de um diagnóstico cumprindo a função de eliminar aqueles/as que
seriam os/as falsos/as (transexuais). A resposta ao segundo quesito está condicionada ao
diagnóstico estabelecido anteriormente, uma vez que indaga sobre a indicação da cirurgia. As
respostas a este quesito demonstram que os peritos compartilham da crença prevalente entre
os seus pares de que a cirurgia é o único recurso eficaz para o tratamento da transexualidade.

113
Ofício nº. 401/02 MPDFT/PRÒ-VIDA de 17 de junho de 2002, que integra o processo de CSA e Ofício nº.
390/02 GAB/HUB de 09 de outubro de 2002, que integra o processo de S.E.M.
Flavia Teixeira 97

2) Se a cirurgia de redesignação sexual lhe é recomendada?


RESPOSTA: Sim. Este tipo de intervenção cirúrgica, associado ao
tratamento hormonal, é o que tem sido indicado em tais casos.114

Por fim, no último quesito, o perito autorizaria ou não o indivíduo a falar sobre si
mesmo. O Promotor solicita que o perito se pronuncie sobre a capacidade de cognição
(consciência) e voluntariedade (liberdade plena para decidir) do sujeito para receber
esclarecimentos e autorizar a mencionada cirurgia. Nos laudos em que foi negada a condição
de transexualidade às pessoas estas também foram consideradas inaptas para consentirem no
procedimento.

A história pessoal e curva de vida são restritas a um conjunto de informações gerais


sobre história de nascimento e condições do parto; antecedentes pessoais e familiares de
doenças; escolaridade e desempenho escolar; histórico ocupacional.

Em três laudos, confeccionados por diferentes peritos, a história de vida foi separada
da história da identidade de gênero. Com essa separação, o caráter patológico do que
acreditam ser o transexualismo assume dimensão hiperbólica. Os peritos estabelecem uma
cisão entre a pessoa e a “doença”, prática já denunciada em textos de antropólogos que
elegeram o campo da saúde como espaço de investigação.115 A pessoa é substituída pelo
diagnóstico e, assim, todas as ações decorrentes do diagnóstico são dirigidas à patologia
reconhecida. Esse esfacelamento do sujeito, em que a “doença” atinge um status autônomo,
ocorre também em outras situações conforme identificou Fernando Seffner (2001, p. 386). Se,
ao ser diagnosticado como transexual a pessoa se despersonaliza na suposta doença, então a
proposta é acionar uma cura. Estamos de volta para a questão inicial: a necessidade da
cirurgia de transgenitalização.

Na investigação do curso evolutivo da patologia em questão, os peritos


esquadrinharam a infância em busca dos indícios de um longo e duradouro sentimento de
pertencimento ao outro sexo. Ganham destaque as brincadeiras de infância e o desejo pelas
roupas do sexo oposto. No repertório dos laudos, a ênfase nos relatos das brincadeiras da
infância adquire a coloração de uma rígida distinção de gêneros em que as brincadeiras que
exigem força física e coragem são destinadas ao masculino e aquelas dirigidas ao mundo

114
Processo de G.B.S., Laudo Psiquiátrico nº. 610/2001 SPL. P.04.
115
Antropologia Médica, Antropologia da Medicina, Antropologia da Saúde e Antropologia do Corpo são
algumas das denominações que agregam antropólogos preocupados com os processos que envolvem a saúde e
doença.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 98

doméstico integram o feminino.116 Detalhes das brincadeiras que são valorizados pelos
especialistas que reproduzem as falas das entrevistadas como se produzissem “provas” de
uma patologia que pode ser identificada desde a primeira infância. Ressalta o apoio às
certezas de Harry Benjamin (1997), para quem, a crença de pertencimento ao outro sexo é
desde a infância e é também inabalável, posto que deriva de uma condição estrutural. O
desejo pelas roupas e as brincadeiras é apenas testemunho evocado para garantir a verdade da
transexualidade.

A eleição do par e a expressão dos desejos e afetos também foram transferidas para
esse tópico, pois foram decodificadas, nessa perspectiva, como sinais da patologia. “Quanto à
vida afetiva, esta é descrita no item ‘História da Identidade de Gênero’.”117 As questões
relacionadas ao afeto e às práticas sexuais são acopladas à Identidade de Gênero e se tornam
sintomas, sendo que o desejo heterossexual é a norma que deve ser perseguida para satisfazer
as regras estabelecidas pelo standart do Instituto Harry Benjamin. A interdição da
homossexualidade será discutida em tópico específico.

O diagnóstico de Transexualismo ou Transtorno de Identidade de Gênero congela a


vida dos sujeitos e a traduz como um elenco de fatos fragmentados e incapazes de
movimento. A prova do tempo deve ser realizada em dupla perspectiva: a garantia de um
histórico vivido de acordo com o gênero buscado e um plano estruturado de permanecer neste
gênero. Nenhuma possibilidade de mudança é considerada, assim o diagnóstico estabelece a
permanência do fenômeno que quer caracterizar bem como sua universalidade. Toda a
expressão da pessoa se reduz à própria patologia. Talvez fosse esse um dos perigos da adoção
do diagnóstico que Judith Butler postula: o diagnóstico não retiraria do sujeito apenas a
autonomia para reivindicar seu pertencimento, mas sua própria existência como sujeito
(2006a, p. 121).

A necessidade da presença do psicólogo na equipe mínima foi especificada desde a


primeira Resolução do CFM no seu artigo 4º. Os critérios construídos e apropriados pela
Medicina possibilitam o diagnóstico de “transexualismo”, principalmente associado à
existência de uma convicção de “estar no corpo errado” e na certeza de um desejo de alterar o
corpo. No entanto, me parece que o acompanhamento desse desejo deve ser escutado e
elaborado por outro profissional, a saber, o psicólogo.

116
Para maior discussão sobre as normas de gêneros que organizam as brincadeiras infantis ver: TEIXEIRA,
Flavia B. (2001); CRUZ, Tânia M., CARVALHO, Marília (2006) e RIBEIRO, Jucélia S. B. (2006).
117
Processo de G.B.S., Laudo Psiquiátrico nº. 610/2001 SPL p.01.
Flavia Teixeira 99

A imposição do tratamento psicológico se constitui num paradoxo. É recorrente na


literatura a resistência das pessoas (transexuais) ao atendimento psicológico, uma vez que a
demanda original pela cirurgia não é o motivo de seu sofrimento e também, seguindo as
diretrizes estabelecidas por Harry Benjamin, o tratamento psicológico é inócuo em relação à
transexualidade.

Quando trabalhamos com os “transexuais verdadeiros” temos que enfrentar


uma situação no mínimo inusitada: na maioria dos casos, estes sujeitos não
procuram um terapeuta com uma demanda de ajuda, e muito menos com
uma demanda de análise. Ou seja, eles não apresentam nenhum conflito
psíquico, no sentindo neurótico: se conflito existe, este deve-se muito mais
às questão sócio-culturais. Por isto os relatos de análise de transexuais são
relativamente raros. Aqueles que se submetem a um processo terapêutico o
fazem para preencher um dos pré-requisitos formais para a obtenção da
autorização para serem operados. Não podemos esquecer que, para o
“transexual verdadeiro”, o problema desenrola-se muito mais na cena
corporal do que na vida psíquica: ele não tem dúvida de sua identidade
sexuada: é o corpo que “vai mal”. (CECCARELLI, 2003, p. 40)

Através dos trabalhos publicados por psicólogos, que integram ou em algum momento
participaram das equipes que desenvolvem programas de atenção para pessoas (transexuais),
visando à realização da cirurgia, observa-se um conjunto de práticas heterogêneas embasadas
por correntes teóricas diferentes. O trabalho de Valéria Elias, para quem a clínica psicanalítica
não teria o lugar de autorizar ou não o desejo do sujeito, mas ouvi-lo no percurso da
construção deste desejo, coloca em questão o lugar deste profissional na equipe. Ela
acompanhou, a partir de uma escuta psicanalítica, mulheres (transexuais) que buscaram o
hospital universitário demandando a cirurgia de transgenitalização. E reconhece a relação de
convencimento que se instaura e identifica nela um dos entraves iniciais no estabelecimento
de uma relação transferencial que autoriza a clínica psicanalítica.

Diferente do pensamento cartesiano, de que estamos ali disponíveis para


“convencer” a pessoa se “deve” ou “não deve” realizar a cirurgia, de acordo
com o que se imagina ser o “bem”, a psicanálise oferece outra possibilidade.
Mas como levar essa pessoa a falar de seus medos, de seus desejos, de suas
histórias mais secretas, se o que a levou até mim foi a imposição de que
realizasse um acompanhamento para desvendar suas “verdades” e suas
“mentiras” e, para que eu me pronunciasse se ela “pode” ou “não pode” se
livrar do que a incomoda tanto? (ELIAS, 2007, p. 32)

Márcia Arán é pesquisadora de uma das equipes para a realização da cirurgia de


transgenitalização no Brasil. Ancorada nas discussões da teoria queer, principalmente nos
questionamentos sobre a instabilidade das categorias sexo e gênero proposta por Judith
Vidas que desafiam corpos e sonhos 100

Butler, ela propõe o repensar da clínica psicoterapêutica.

Temos tido uma experiência muito positiva de agenciamentos, transferências


e de possibilidade de criação de um dispositivo analítico, onde a psicoterapia
ocorre de forma bastante produtiva e não fica capturada pela exigência
institucional da necessidade de confirmação de diagnóstico e nem mesmo
pela indicação da cirurgia. As pessoas seguem trajetórias singulares de
subjetivação que ultrapassam em muito esta questão. Assim, para concluir,
consideramos que, provisoriamente, nesta conjuntura, o diagnóstico de
transexualismo permite primeiro, o acesso ao tratamento e segundo, o
estabelecimento de um dispositivo de cuidado, qual seja, a necessidade de
atendimento por dois anos, que deve consistir na construção subjetiva do
significado da cirurgia ou... qualquer outra coisa. Porém, isto não quer dizer
que estamos confortáveis nesta posição, pois se o gênero não é uma essência,
mas um devir, os seus destinos dependem dos atores políticos e clínicos
implicados. Sendo que as possibilidades de subjetivação se fazem de acordo
com a contingência histórica em que se apresentam. (ARAN, 2005, p. 4)

Tatiana Lionço também reconhece a limitação inicial deste lugar de imposição do


acompanhamento psicológico para obtenção da autorização para a realização da cirurgia,
criticando o imperativo da avaliação que a define. A sua tese é um depoimento representativo
de como a interlocução com as diferentes subjetividades dos sujeitos e a ampliação do olhar
para além da clínica podem contribuir para a despatologização desta experiência (2006, p.
122).

Ao analisar a assistência prestada a transexuais no Hospital Universitário Clementino


Fraga Filho, Daniela Murta problematiza a hegemonia da compreensão da condição
transexual como uma patologia psiquiátrica, “apesar desta questão ser permanentemente
problematizada pela própria equipe de saúde mental” (2008, p. 61). As dificuldades apontadas
pela autora para desatrelar a assistência às pessoas (transexuais) do diagnóstico de
transexualismo explicariam também o não questionamento da própria Resolução do CFM que
determina a exigência e o tempo mínimo para o atendimento psicológico. Não observei
nenhum texto em que a psicologia, como área autônoma, reivindicasse o direito de definir as
diretrizes para o atendimento psicológico no caso da transexualidade.

Os questionamentos das referidas pesquisadoras representam diferentes posições


diante da transexualidade. Considerei pertinente este primeiro recorte porque desloca o
entendimento de que exista um consenso calcado na aplicação de testes psicológicos; na
determinação de um “verdadeiro transexual” e na autorização mediante o diagnóstico para a
realização da cirurgia.

No entanto, os laudos psicológicos que integram os processos são exemplos da


Flavia Teixeira 101

necessidade de se determinar a verdade sobre a transexualidade. Se todas as pesquisadoras


que compunham as equipes diziam de uma dificuldade em responder a essa exigência
colocada pela equipe, penso no desconfortável lugar ocupado pelos peritos do IML, que
deveriam atribuir um laudo sem o acompanhamento do sujeito. O Promotor estabelecia um
prazo de cento e oitenta dias para a conclusão do laudo, com a possibilidade de ser dilatado
mediante solicitação do perito. Na entrevista de uma das responsáveis por confeccionar os
laudos psicológicos no IML de Brasília, o ponto inaugural do diálogo foi: “como foi difícil
fazer aquilo”.118 Ela fala do estranhamento que sentiu ao ser intimada para realizar tal função,
pois diferia das rotineiras tarefas relacionadas à psicologia forense. Não se tratava de um
indivíduo que tivesse cometido delito e deveria responder a uma realidade com que até então
não havia se defrontado.

A ausência de conhecimento anterior sobre a transexualidade e o contexto de demanda


por este saber colaboram para explicar o tom médico dos laudos sustentados pelos conceitos
clássicos derivados do DSM IV e CID 10. O posicionamento dos peritos do IML, em que a
preocupação restringia-se à busca pelo diagnóstico diferencial de psicose e a capacidade
intelectual do/a examinado/a para o consentimento sobre a cirurgia, indica que o domínio
teórico sobre a transexualidade ancorava-se na perspectiva do modelo médico, em que o
diagnóstico do quadro de psicose estava restrito a não identificação de sintoma produtivo
como, por exemplo, o delírio.

Frederico Abreu reafirma a necessidade do estabelecimento de um diagnóstico


diferencial no transexualismo:

(...) apontam para a necessidade de diferenciação desse fenômeno com


outros transtornos, em especial com a psicose. Todavia, quando esses
manuais falam a respeito da psicose, estão se referindo a um estado psicótico
franco, sintomático e não a uma estrutura subjacente (2005, p. 105).

No campo da psicologia, o debate sobre a estrutura de personalidade entre as pessoas


(transexuais) não está resolvido. Alguns trabalhos produzidos pela escola psicanalítica
recuperam os debates propostos por Catherine Millot (1992) e Henry Frignet (2002) e suas
posições quanto ao reconhecimento da transexualidade como integrante de uma estrutura
psicótica. Entre os trabalhos acadêmicos produzidos sobre a transexualidade no âmbito da
psicanálise, identifico o trabalho de Marina Teixeira (2003), ancorado nesta perspectiva e

118
IML, Caderno de Campo, Brasília, 11 de maio de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 102

compartilhando do referencial teórico lacaniano. Ainda no campo da psicologia, a construção


teórica de Robert Stoller (1982) aponta a intensidade da relação mãe-criança como principal
fator explicativo para os efeitos feminilizantes dos meninos, mas afasta a transexualidade do
pertencimento ao universo da psicose.

A ênfase na relação mãe/criança é também reconhecida por Paulo Ceccarelli (2003),


que percebe o transexualismo como a resolução do conflito entre o sexo anatômico de uma
criança e o projeto dos pais em relação a ela, tendo em vista a impossibilidade de elaboração
do luto da criança imaginada. Mas também não compartilha da perspectiva lacaniana de
classificar a transexualidade no terreno das psicoses.

Nenhuma informação parece indicar que os peritos se preocuparam com a relação


mãe/filho o que demonstra um afastamento de modelos baseados nas construções etiológicas
como a de Robert Stoller119 e/ou outros da escola lacaniana. Nos laudos analisados, pouca
atenção foi concedida pelos peritos ao histórico familiar, que embora presente, se restringe à
busca por eventos da infância que atestem a adequação ao gênero desejado, semelhante à
postura adotada pelos psiquiatras.

A utilização de testes psicológicos foi uma característica comum ao conjunto dos


laudos emitidos pelo serviço de psicologia. Segundo Jole Baldaro Verde e Alessandra
Graziottin (1997), os testes devem avaliar a capacidade das pessoas de receberem informações
e de se adaptar posteriormente às condições de vida desejadas. Nos processos analisados,
foram utilizados, em maior escala, os testes de inteligência denominados “Teste de
Inteligência não verbal G 36” (BOCCALANDRO, 1966) e o “Teste de Inteligência R1”
(OLIVEIRA, 2002). Outro aspecto a ser avaliado, segundo as autoras, é o perfil da
personalidade para detectar traços patológicos “em particular às síndromes dissociativas, às
manifestações paranóicas ou fóbicas graves e às graves formas depressivas” (BALDARO

119
No Brasil, a obra de Robert Stoller parece despertar interesse, uma vez a maioria de seus foi traduzida para o
português. Parte do alcance da obra deste autor pode ser compreendido dada sua influência como psicanalista,
corrente bastante difundida nas escolas de psicologia brasileiras. Não passou despercebido que o livro nas mãos
do psicólogo que acompanhava o Grupo de Transexuais do HUB, na minha primeira visita, era exatamente “A
Experiência Transexual”, de Robert Stoller, e estava com o aspecto bastante gasto, indicativo de ser uma obra de
consulta constante. Robert Stoller considera que no estágio mais precoce do desenvolvimento da identidade de
gênero há uma fusão do menino à mãe, o que garantiria o sentido de feminilidade em um bebê. O que significa
dizer que todos os indivíduos experimentariam inicialmente a feminilidade, exigindo do menino e de sua mãe um
esforço de separação no sentido da construção de sua masculinidade. Buscando elementos para caracterizar a
universalidade de sua teoria, Stoller recorre a relatos de casos clínicos em que ressalta as evidências da
exagerada gratificação primária - realizada pela mãe - que, na sua perspectiva, impede a construção da
masculinidade. A universalização de sua teoria sobre a existência da “protofeminilidade” e a supremacia da
dinâmica familiar para a determinação da identidade de gênero parecem impactar a leitura dos psicólogos
(STOLLER, 1993, p. 35).
Flavia Teixeira 103

VERDE e GRAZIOTTIN, 1997, p. 107). O teste de personalidade mais utilizado foi o


Método Rorschach, corroborando a afirmação de Frederico Abreu de que, “no Brasil ainda
que não seja uma realidade, a investigação do transexualismo tem o método ocupando um
lugar privilegiado em vários autores” (2005, p. 30).

Por não se constituir o foco desta tese, não discutirei os testes que constituem os
laudos e sim os resultados das análises transcritos pelos especialistas.

O tempo necessário para a confecção dos laudos é um elemento que se destacou, pois,
em alguns deles, considerando a data em que foi realizado o primeiro contato com os peritos
para proceder ao exame e o resultado do laudo indicam que houve um único encontro.120 Em
outros, fica explícito que foram realizadas duas sessões para a confecção dos laudos.121 Nos
demais processos, o tempo transcorrido entre a data que informa o primeiro contato e a
assinatura do laudo pelos peritos varia entre menos de 30 até 90 dias122, sendo que o laudo
que possui o maior lapso de tempo é de 113 dias, mas não deixa antever quantas sessões
foram necessárias para sua confecção.123 Considerando que a Promotoria estabelecia um
prazo inicial de 180 dias, sujeito à prorrogação de acordo com a necessidade do perito,
questiono a urgência com que as respostas foram emitidas, contradizendo a fala anteriormente
colocada sobre a dificuldade encontrada pelos peritos em responder aos mesmos. Os
profissionais que compõem as equipes dos diferentes programas são uníssonos em afirmar a
necessidade de tempo para o estabelecimento do diagnóstico e/ou a habilitação para a
cirurgia, considerando adequada a determinação do CFM de dois anos para o
acompanhamento.124

Ao responder sobre a indicação da cirurgia, os peritos nem sempre tiveram uma


postura consensual. Em três laudos, os peritos se recusaram a responder a esse quesito da
promotoria, alegando que tal procedimento deveria ser atribuído a uma equipe

120
Exame Psicológico nº. 018/2001-SPL de J.C.S. e Parecer Psicológico nº. 030/01 de J.C.S.
121
Exame Psicológico nº. 066/2001-SPL de V.X.M. e Exame Psicológico nº. 161/2001 de R.R.F.
122
Exame Psicológico nº. 023/2001 - SPL de E.M.S., Exame Psicológico nº. 050/2001 - SPL de F.A.P.S e
Exame Psicológico nº. 042/2001- SPL de E.P.C.
123
Exame Psicológico nº. 143/2001 - SPL de G.S.B..
124
Mesmo que não compartilhem sobre o lugar e a função do psicólogo na equipe, a necessidade de um
acompanhamento pelo período mínimo de 02 anos aparece como consenso nos trabalhos de Valéria Elias (2007),
Esalba Silveira (2006), Tatiana Lionço (2006), Alexandre Saadeh (2004), Jaqueline Pinto (2003 e 2008) e
Daniela Murta (2007).
Vidas que desafiam corpos e sonhos 104

multidisciplinar.125 Embora em relação a autorização para realização da cirurgia, os peritos se


mostraram por vezes cautelosos, o mesmo não ocorreu quanto à determinação do diagnóstico
ou a sua contra-indicação nos casos em que não identificaram como sendo uma pessoa
(transexual).126 A utilização dos testes psicológicos para a determinação do diagnóstico se
configurou, nesse contexto, como um argumento de autoridade suficiente, excluindo a
necessidade de novas entrevistas ou sessões, entendendo que o espaço do IML não seria
oferecido para acompanhamento, apenas para confecção de laudos.

Fotografias, indícios e verdades: a inspeção física


Embora a resolução do CFM não mencione a necessidade de um laudo pericial com
descrição da conformação física, os/as inscritos/as foram encaminhados para realizar o exame
físico no Instituto Médico Legal (IML). A solicitação do promotor é de que o perito exclua,
através do exame físico, os estados intersexuais. Porém, a investigação para identificar a
intersexualidade demandaria exames de maior complexidade conforme informa Gil Guerra
(MACIEL-GUERRA e GUERRA, JR, 2002, p. 165); sendo assim, interrogo se a necessidade
de acionar o perito no episódio específico seria um exercício de reiteração de normas.

Num período em que a ciência como legitimadora de opiniões era invocada


por todos os analistas de nossos problemas sociais, a Medicina Legal foi das
primeiras disciplinas a conquistar um espaço institucional próprio e a definir
seu agente, o perito. (CORRÊA, 2001, p. 74)

Ao analisar a história da constituição da Escola Nina Rodrigues, Mariza Corrêa revela


o nascimento e a institucionalização da medicina legal no Brasil. Contextualizando o
surgimento desta disciplina no entrelaçamento dos saberes médicos e jurídicos, e num cenário
onde as instituições que regulam nossa vida em sociedade também se constituíam, a autora
destaca aquele que realiza a perícia. Particularmente preocupada com a biografia de Nina
Rodrigues, ela nos ensina sobre a importância do contexto e dos sujeitos na situação a ser
estudada.

Esses processos localizam-se numa Promotoria Pública que estabelece uma


interlocução direta com o campo da saúde, principalmente a medicina. O encaminhamento

125
Exame Psicológico nº. 018/2001 de JCS p.6, Exame Psicológico nº. 023/2001 de E.M.S. p.4 e Exame
Psicológico nº. 066/2001 de V.X.M. p.4.
126
Exame Psicológico nº. 050/2001 de F.A.P.S. p.3 e Exame Psicológico nº. 042/2001 de E.P.C. p.3.
Flavia Teixeira 105

para realização de um exame pericial poderia ser absorvido dentro deste contexto como
apenas um procedimento de rotina. No entanto, são esses saberes e práticas institucionalizadas
que, embora pareçam destituídas de sentido, ao serem reinvestidas de um suposto saber,
contribuem para o estabelecimento de uma “verdade” sobre os/as inscritos/as no Programa de
Transgenitalização.

No caso das mulheres (transexuais) já operadas, em princípio, a solicitação do


Promotor poderia ser justificada em razão de que as cirurgias de K.F.S. e A.E.B. foram
realizadas no exterior e os laudos médicos encaminhados não contavam detalhamentos sobre
as mesmas. O fato de a cirurgia se constituir como condição necessária para alteração do
registro civil (entendimento mais recorrente entre os juristas conforme discutido no capítulo
anterior) parece justificar o encaminhamento da Promotoria para que as inscritas fossem
examinadas. No entanto, a cirurgia de J.R.S.G. foi realizada por um cirurgião brasileiro de
renome internacional e o laudo médico detalha todo o processo que antecedeu a cirurgia, as
técnicas cirúrgicas utilizadas bem como o resultado obtido. O especialista anexou ao laudo o
capítulo de sua autoria em que descreve suas experiências com o tratamento de
(transexuais).127 Nem mesmo essa evidência modificou a exigência da realização da perícia.
Compreendo esse procedimento através de um ditado jurídico utilizado por Mariza Corrêa
(1983): “O que não está nos autos não está no mundo”. As normas superam os fatos. Era
preciso integrar aos autos para ser reconhecido como um ato. Concordo com Sidney Chaloub
(1986, p. 164) na perspectiva de que os autos não silenciam os atos, mas, nesse caso, são os
autos que conferem ou não legitimidade aos atos.

Ao encaminhá-las para a realização de exame médico legal, o Promotor estabeleceu os


seguintes quesitos:

Solicito exame médico legal para descrição da sua atual conformação genital
externa, bem como das suas características sexuais secundárias
(ginecomastia etc), visando identificar a cirurgia de neocolpovulvoplastia já
realizada (...) com ilustração fotográfica.128

Ao requisitar os laudos ilustrados por fotografias, o promotor recupera uma prática


datada do final do século XIX. A utilização das fotografias nos processos pode ser entendida

127
JURADO, Jalma, EPPS-QUAGLIA, Dorina R. e INACIO, Marlene. Transexualismo: Aspectos Clínicos e
Cirúrgicos. In: CORONHO, V. PETROIANO A. SANTANA, EM, PIMENTA LG. Tratado de Endocrinologia e
Cirurgia Endócrina. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2001. pp. 1409-16.
128
Oficío nº. 211/2003- MPDFT/PRO-VIDA processo de J.R.S.G.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 106

como resquício ou recriação de um gênero fotográfico criado pelo chefe do Serviço de


Inteligência Judiciário da Polícia de Paris, Alphonse Bertillon. Uma sistematização
antropométrica calcada no investimento na parte formal, mensurável, e por isso objetiva, do
corpo humano. A ciência, precisamente a medicina, assim como a criminologia, acreditava
(ainda acredita?) nas imagens fotográficas uma maneira de aproximação do real. Segundo
Philippe Dubois, o ser visto “liga-se o acreditar e fazer acreditar, a questão da crença liga-se à
questão do ver. (...) É preciso ver para crer.” (DUBOIS, 1994, p.222). Ver, pensar, acreditar
foram, por muito tempo, aceitos como operadores dos meios de representação. As fotos
exigidas pelo judiciário se transformam em signo indicial capaz de dar a ver o real, apontar
com o dedo o aquilo do referente, a verdade da coisa. Assim, fotografias de processos buscam
cobrir, explicitar, dar a ver o retratado tendo como crença central a certeza na
“imparcialidade” e na “verdade” do dispositivo fotográfico.

Acredito que seja pertinente ressaltar as condições em que as fotografias foram


produzidas. A relação impositiva do fotógrafo em relação ao sujeito a ser fotografado. Não foi
flagrado qualquer olhar ou gesto de negociação, o sujeito não se deixou fotografar, foi
fotografado. Teria ele ou ela opção? Provavelmente, não. Um constrangimento asséptico salta
aos olhos e esquadrinha os corpos-sexuados; maior ou menor detalhe, mais ou menos
fotografias por processo. Ao traduzir como texto a imagem lida, estou ciente do risco que
corro, as palavras são insuficientes para dizer das imagens, mas escolhi este caminho porque
não gostaria de expô-las de maneira a reiterar o constrangimento violento e invasivo dos
exames reproduzindo-as aqui.

No processo de K.F.S., são 26 (vinte e seis) fotografias anexadas. Seqüências de fotos


que denunciam os “fotógrafos”. Se no esquadrinhamento da antropologia criminal os peritos
buscavam as pistas e os indícios que denunciariam os perigosos e estabeleceriam correlações
normativas “(...) Ascender do corpo à alma, de aproximar, de ligar, de explicar uma pela outro
(todos os parricidas teriam testa em perspectiva e orelhas de abano?)” (DUBOIS, 1994,
p.242), o exame realizado recupera a estratégia de alcançar através do corpo, do cabelo, das
mãos, dos pés, dos seios, das coxas, dos olhos; a “alma” das pessoas (transexuais).

Analisei um primeiro conjunto composto por doze fotografias assim distribuídas: seis
fotografias em plano americano, que retratam o rosto, duas focalizando as mãos, outras duas
os pés, sendo uma descalça e outra com sandálias. Duas outras retratam o enquadramento a
partir dos ombros até metade das coxas sendo uma com indumentária íntima e outra de corpo
nu que evidencia as nádegas também na perspectiva de enquadramento dos ombros até o meio
Flavia Teixeira 107

das coxas. A composição do espartilho de renda branco com a calcinha também de renda
branca, detalhadamente fotografada remete a uma busca por indícios capazes de denunciar a
“farsa” deste feminino. A coerência daquele rosto moldurado pelos cabelos longos não
suportaria o esquadrinhamento dos detalhes.

No outro arranjo das fotografias, seis fotografias dos seios em diferentes posições
indicam o implante de silicone realizado, outras oito imagens são destinadas à vagina. De uma
vista anterior, o fotógrafo aproxima a imagem (não sei se através de lente ou se da própria
aproximação do fotógrafo) evidenciando o interior da vagina. Em uma das fotos percebe-se
que a examinanda foi solicitada a colaborar e, em posição ginecológica, segura nas partes
laterais da vagina, abrindo-a para que o perito prosseguisse em sua busca por evidências. As
posturas dos peritos sugerem que mais do que a existência da genitália feminina o que estaria
em questão seria o espanto diante da possibilidade de sua criação: “ausência aparente de
129
clitóris” ; ausência de grandes e pequenos lábios.130 Esse “exame” rigoroso também se
repete no laudo J.R.S.G.. Em duas das três fotos destinadas às genitálias, a abertura da vagina
se fez por um dos peritos. O que eles desejariam mostrar/registrar? Nas respostas dos laudos
encaminhados pelos peritos, percebe-se o descompasso entre o detalhamento do “exame” e as
conclusões apresentadas: “mamas bem desenvolvidas e com conformação feminina; genitália
externa com ausência de pênis, bolsa escrotal e testículos; presença de cicatrizes de
neocolpovulvoplastia”.131

Não é a presença de uma vagina em conformidade com o modelo anatômico que está
sendo valorizada, mas sim a ausência do pênis que sustenta a solicitação de alteração de sexo
no registro civil para essa mulher (transexual). Até o momento da escrita deste texto, apenas a
realização da cirurgia forneceria o passaporte para o reconhecimento jurídico desta nova
condição.

A obrigatoriedade do exame físico no IML se manteve também para aquelas que


solicitaram a habilitação, tendo cumprido as exigências da Resolução e que dispunham de
recursos financeiros para realizar a cirurgia. O oficio do Promotor apresenta os seguintes
quesitos:

Solicito exame médico legal para a descrição da sua conformação genital


externa, bem como das suas características sexuais secundárias

129
Laudo de Exame de Corpo Delito nº. 08671/03 que integra o processo de K.F.S..
130
Laudo de Exame de Corpo Delito nº. 00150/01 que integra o processo de A.E.B..
131
Laudo de Exame de Corpo Delito nº. 12546/03 que integra o processo de J.R.S.G..
Vidas que desafiam corpos e sonhos 108

(ginecomastia etc.), visando, inclusive, identificar eventual intersexualidade


(hermafroditismo etc) devendo vir ilustrado com fotografias.132

Considerando que todas as candidatas desse grupo possuíam o diagnóstico de


transexualismo, conforme recomendação do CFM, entendo que o diagnóstico de
intersexualidade já estaria descartado previamente pelos especialistas que forneceram os
laudos, tornando, em princípio, este caminhamento destituído de sua função técnica.

Constam os laudos nos processos de apenas duas candidatas que se submeteram ao


exame físico. Selecionei o laudo de L.P.P.N. por guardar semelhanças ao apresentado no
processo de K.F.S., tais como o expressivo número de fotografias e as partes do corpo
enfatizadas. Nele, 16 fotografias retratam meticulosamente os pés, as mãos, as vestimentas
íntimas e as nádegas.

No processo de L.P.P.N., no entanto, a preocupação com a genitália revela a busca dos


peritos pela “ausência da masculinidade”. O pênis foi evidenciado em 07 (sete) fotografias. A
numeração das fotos oferece a pista da seqüência em que foram tiradas. Percebo a
intencionalidade do perito em demonstrar o pênis hipotrofiado, a bolsa escrotal sem os
testículos e posteriormente (após manobra) com a descida dos testículos também atrofiados.
Mas é na legenda da foto que escapa a percepção do perito. “Foto 11 – Pênis logo após a
exposição da glande”.133 A fotografia imediatamente anterior mostra a manobra de exposição
da glande e também a primeira imagem frontal da genitália, que poderia ser considerada como
a inicial. Reunindo as imagens, não se nota uma modificação significativa do pênis, mas
sugerem que na percepção dos peritos esta ausência de resposta seria a prova da “não
funcionalidade do pênis” e, portanto, a negação do masculino. Não são apenas os aspectos
femininos que são cuidadosamente registrados, mas vestígios do masculino que precisam ser
fiscalizados. Nas fotografias, a precisão – obtida através de recurso de lente de aproximação
(ou zoom?) - dos detalhes revela a preocupação dos peritos com os pequenos indícios:
resquícios de pêlos da região da barba e pêlos da região do bigode.

No conjunto dos laudos, não passaria despercebido que o olhar dos peritos privilegiou
as mulheres (transexuais) cujo padrão de beleza se aproximava das modelos que circulam em
telenovelas e ou revistas de moda, sugerindo uma desconfiança: “linda, mas homem... linda,

132
Processo de J.C.P.S.– Ofício n.º 086-MPDFT/PRÓ-VIDA.
133
Laudo nº. 0110/02, p. 06.
Flavia Teixeira 109

mas não é mulher”.134 Remetendo à música que deu visibilidade nacional a Roberta Close, na
qual o compositor evidencia a crença de ser ela, Roberta, um engano, uma vez que linda, mas
uma armadilha de mulher, cujos resquícios do masculino denunciariam a fraude.135

Do grupo de 22 pessoas que ingressaram no Programa sem ter cumprido nenhuma das
exigências encontrei 19 laudos respondendo ao encaminhamento para exame físico. A
quesitação é a de que o perito respondesse sobre a conformação genital, a presença de
caracteres sexuais secundários e a existência de condição intersexuada.

Sete entre os 19 laudos observados trazem a página de identificação sem informação


sobre sexo; ou melhor, em seis consta como sexo ignorado, e em um outro a categoria sexo
não foi preenchida. Considerando que o objetivo do exame do perito é primeiramente apontar
qual o sexo anatômico do/a periciando/a, a omissão no preenchimento poderia indicar que a
presença dos genitais seria insuficiente para definir sexo, ou, talvez, integrando ao
procedimento administrativo, o agente responsável não ficou suficientemente seguro para
responder, ou, ainda, que essa informação seja irrelevante e seu preenchimento visto
simplesmente como uma tarefa rotineira que passa despercebida.

Inicialmente os laudos não eram acompanhados por fotografias. Em 2000136, o


primeiro laudo foi encaminhado com registro fotográfico aparentemente por iniciativa do
perito, o que se estabeleceu como regra e passou a integrar o encaminhamento do Promotor.
Do universo de processos analisados, 15 possuem registro fotográfico. Uma nova divisão,
dentro desse grupo, foi necessária para possibilitar um aprofundamento das questões
apresentadas. Um primeiro sub-grupo foi composto pelos processos cujos demandantes são
homens (transexuais).

Para aqueles que pleiteiam o espaço masculino, os inscritos foram fotografados em


posição ginecológica, suas vaginas escancaradas, numa atitude invasiva, em que foram
ressaltados os pequenos e grandes lábios. Uma das fotos revela o afastamento dos grandes
lábios que permite a visualização dos pequenos lábios e o clitóris. Um exame minucioso da
vagina que parece garantir a verdade do corpo: “a pericianda é do sexo feminino”, decreta o

134
Esta persistente vigilância foi também relatada pela primeira mulher (transexual) operada pela equipe
coordenada por Dr. Carlos Cury em entrevista pessoal. São Paulo, 05.05.2007.
135
Refiro-me à música CLOSE de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, interpretada por Erasmo Carlos no Álbum
Buraco Negro, de 1984.
136
O primeiro registro fotográfico surge no laudo de F.A.P.S. em 23 de dezembro de 2000.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 110

perito.137 Certezas que encontraram respaldo em outro perito, que descreveu as características
normais da genitália com presença de “vulva e vagina de características normais com hímen
integro e clitóris hipertrofiado (hipertrofia discreta)” não havia dúvidas sobre a supremacia da
anatomia para designar o sexo: “pericianda do sexo feminino normal do ponto de vista
anatômico”. 138

A preocupação em destacar em dois laudos a preservação do hímen remeteria a uma


condição universal requerida para as pessoas (transexuais): a sua pouca inclinação para o
sexo, muitas são consideradas assexuadas. O hímen informa ainda a ausência de relações
sexuais com penetrações vaginais anteriores, ou seja, a não utilização do órgão para fins de
prazer ou reprodução. Os peritos parecem compartilhar dessa percepção, porque o hímen não
é característica sexual secundária e sua menção seria desnecessária no relatório do exame.

As fotos que ocultavam os rostos destacavam as cicatrizes das mamas ocasionadas por
compressão e denunciavam a tentativa cotidiana de escondê-las. O aspecto pendular dos seios
corresponde também a essa estratégia de encobrimento que integra a fabricação de si mesmo
dos homens (transexuais). No entanto, uma das fotos evidencia a coexistência de dois
símbolos: as marcas do uso concomitante de cueca e sutiã. Esse indício passa despercebido
aos olhares dos peritos. Se, para as mulheres (transexuais), a indumentária íntima teria lugar
privilegiado no arquivo dos diferentes peritos, aqui essa ambigüidade sequer foi mencionada.
Talvez o sutiã tenha se tornado um elemento irrelevante diante da calça social, camisa de
mangas compridas xadrez, sapato social masculino de couro combinando com o cinto
masculino concomitantemente ao fato de que se adequa à realidade dos seios. O sutiã,
considerado símbolo de sedução e feminilidade, extremamente valorizado no caso das
mulheres (transexuais), aqui retorna à sua função técnica.

Nenhum dos laudos dos homens (transexuais) possui na página introdutória a


identificação do sexo, que consta como ignorado ou foi deixado em branco. Penso sobre as
outras informações que não foram destacadas no exame e poderiam ter desalojado as certezas
dos peritos. Acredito que a performance desses sujeitos explicaria com muito mais
propriedade o incômodo do perito em responder a esse quesito. Diferentemente das imagens
encontradas nos processos das mulheres (transexuais), em que todos os laudos trazem
estampados os rostos das candidatas, neste subgrupo os rostos são preservados. O perito não

137
Conclusão apresentada pelo perito no Laudo de G.B.S. de nº. 00024/01.
138
Laudo pericial de R.R.F. nº. 00031/01.
Flavia Teixeira 111

vasculha o rosto nem mesmo em busca de vestígios de pêlos faciais, características


secundárias do gênero desejado. O ocultamento da face destes candidatos denuncia o
estranhamento que os corpos que estão em (des)alinho com as normas podem causar, o
reconhecimento da incoerência, assumindo que aquela vagina corresponderia àquela face não
seria suportável ao perito nem mesmo como um registro.

O segundo subgrupo foi composto pelos processos das mulheres (transexuais) que
possuíam registro fotográfico, formado por um conjunto de nove processos. Embora não
possa ser considerado como indicativo de características sexuais primárias ou secundárias, os
cabelos são muitas vezes referidos como femininos pelos peritos, e são destacados nas
fotografias.

(...) Cabelos de tamanho médio, crepos, tingidos de loiro...139


(...) implantação de pêlo em couro cabeludo compatível com sexo
masculino. Porém, as características dos cabelos são do sexo feminino.140
(...) que só tinge o cabelo com ‘Cor e tom’ da metade para as pontas.141
(...) cabelos compridos.142
(...) cabelos negros na altura dos ombros.143

Os cabelos são valorizados e indicam uma posição feminina, pois, para a maioria
destas mulheres, deixar os cabelos crescer foi uma atitude inicial para a “transformação” do
corpo e ruptura com os padrões masculinos. “Meu pai sempre cortou meus cabelos baixíssimo
para ter a aparência masculina”.144

A distribuição pilosa seria indicativa de características sexuais secundárias; no


entanto, as ausências dos pêlos nas pernas, virilha e axilas são destacadas na maioria dos
processos das mulheres (transexuais). A escassez de pêlos denunciaria o uso contínuo e
anterior de hormônio. E um dos indicativos dos cuidados femininos com o corpo, como revela
o fragmento de um dos laudos, denunciando a preocupação dos peritos com as estratégias
empregadas para a construção do feminino, especialmente ao destino dos pêlos. “(...) refere
que semanalmente usa um líquido ‘Hair No More’, que faz os pêlos caírem. Refere que a

139
Laudo de Exame de Corpo de Delito de R.J..
140
Laudo de Exame de Corpo de Delito de J.C.S..
141
Laudo de Exame de Corpo de Delito de N.R..
142
Laudo de Exame de Corpo de Delito de J.N.S.S..
143
Laudo de Exame de Corpo de Delito de M.P.O..
144
Fragmento retirado do processo de J.C.S..
Vidas que desafiam corpos e sonhos 112

barba é cortada diariamente com lâmina”.145 Nem mesmo as sobrancelhas escapam ao


escrutínio e recebem close especial.

Nas imagens encontradas, as roupas sugerem o pertencimento ao feminino, foram


escolhidas para o comparecimento ao exame e dizem de uma “preocupação com o traje na
perspectiva do decoro, está intimamente ligada ao sentimento moral da vergonha, enquanto
reguladora ética de comportamentos, resultando numa aprovação ou desaprovação social”
(AGUIEIROS, 1999, p. 123). Nos processos analisados, os peritos parecem compartilhar
desta classificação, destacando nos laudos as vestimentas dos sujeitos que correspondem a
uma imagem ideal de feminino. O recato das roupas associado à pertinência do lugar e
situação informa sua “adequação social”. A discrição será discutida posteriormente como um
dos marcadores identitários para as mulheres (transexuais), a ambigüidade somente será
questionada a partir do desnudamento destes corpos.

Ao mesmo tempo, os diferentes arranjos para a região genital - totalmente depiladas


ou no formato triangular (lembrando a distribuição de pêlos da genitália feminina) - não
passam despercebidos aos olhos dos peritos que os interpreta como resultantes de um cuidado
pertencente ao mundo feminino. Ao emitirem o parecer sobre os homens (transexuais), os
peritos não se referem à presença dos pêlos como distintivo do masculino, mesmo diante dos
detalhes das fotografias que revelam a presença de “emaranhados” nas pernas, axilas e
principalmente na região genital, onde buscam romper com a distribuição pilosa característica
em mulheres.

A exemplo do que foi discutido anteriormente, os pênis estampados nos processos,


retratados em diferentes ângulos e posições, manipulados ora pelas próprias periciandas, ora
pelos peritos, revelam exatamente o que se pretende esconder, retirar. O que se destaca é o
cuidado do perito em atestar a normalidade do pênis e testículos em relação ao tamanho.

A preocupação em registrar os pés e as mãos das periciandas retorna na análise deste


subgrupo. Sem nenhum comentário, os detalhes preenchem a percepção do observador.
Também aos adereços é destinado um olhar, selecionando e qualificando quais atributos
conferem legitimidade aos sujeitos e suas reivindicações de pertencimento. A tatuagem de
uma fada localizada lateralmente ao umbigo e a presença de um piercing não fugiram ao
registro imagético que o perito fabricou.

A leitura das fotografias foi o momento mais difícil deste capítulo, o impacto causado

145
Laudo de Exame de Corpo de Delito de N.R..
Flavia Teixeira 113

pelas imagens mobilizava um sentimento que encontrava ressonância na percepção de


Berenice Bento:

Uma primeira leitura poderia sugerir que se está diante de um quadro de


polarização radical: de um lado o poder médico, materializado na equipe, e
de outro, os/as “candidatos/as” oprimidos, sem capacidade de resposta e de
reação, vítimas de um poder que decide isoladamente os rumos de suas
vidas. As condições objetivas para se chegar a esta conclusão parecem
favoráveis. Nas trajetórias de vida, pode-se notar que há um viés de classe
social constante: todos são oriundos de camadas sociais excluídas. O fato de
vivenciarem a experiência transexual, ou seja, de estarem fora das normas de
gênero, torna estas pessoas duplamente excluídas. Muitos afirmaram: “se eu
tivesse dinheiro, não suportaria isto aqui”. (2003, p. 68)

O relato de Danielle colabora para a compreensão do que significaria a passagem pelo


exame no IML:

“Tinha que ser lá? Tinha que ser daquela forma? Eu me senti tão mal, tão
nada, eu sou um nada aqui, eu ficava sentadinha no banco esperando... eu
nunca tinha estado num lugar daqueles (...) Eu tinha medo... tinha medo de
receber um não... de eles dizerem um “tira esse traveco safado daqui”... tinha
o mito da transexual verdadeira... me levaram para uma sala todos os
médicos de jaleco, eles estavam de máscaras como se quisessem se esconder,
eles se preservavam, mas eu não. Eu tinha que ficar pelada... “tira toda a
roupa” ... fiquei somente de meia, eu tinha nojo daquele chão...ordenavam:
“agora, faz assim, levanta o peito” (...) isso não era comum para mim, não
era cotidiano, ficar pelada na frente de tanta gente, era umas cinco ou seis
pessoas me olhando, qual era a necessidade disso? Eu retirei a roupa atrás do
biombo, menos a lingerie, mas eles olhavam, eu segui de calcinha e eu fiquei
com vergonha porque usava duas calcinhas para esconder o pênis... então
eles mandaram que eu tirasse tudo... eu tirei uma calcinha depois a outra, e
eles ali... a impressão que eu tinha era que eles tinham nojo de mim... muito
nojo de mim, era muito desagradável a eles o que estavam fazendo... e
ordenavam: “anda, vira”, e num momento perguntaram: “o que é isso aí? Há
quanto tempo você tem isso aí?” Eles se referiam aos meus seios, que foram
transformados em isso aí. Eu saí de lá muito mal. Esse foi o pior dos
exames, eu ainda tive sorte porque ninguém tocou em mim.”146

O lugar da produção de sentidos com que a expressão isso foi enfatizada pelo perito e
violentamente marcada na experiência de Danielle pode ser compreendido tendo como
referência a perspectiva da materialidade do corpo proposta por Butler:

El sexo se convierte en inteligible a través de los signos que indican cómo


debería ser leído o comprendido. Estos indicadores corporales son los
medios culturales a través de los cuales se lee el cuerpo sexuado. Estos
mismos indicadores son corporales y funcionan como signos, por lo tanto, no

146
Danielle, entrevista pessoal, Brasília, em maio de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 114

se puede distinguir de una manera simple entre lo que es <<materialmente>>


error y lo que es <<culturalmente>> cierto acerca de un cuerpo sexuado. No
trato de sugerir que los signos puramente culturales producen un cuerpo
material, sino sólo que el cuerpo no se convierte en descifrable sexualmente
sin estos signos, y que dichos signos son culturales y materiales a la vez y de
manera irreducible. (2006a, p. 130)

Conforme descrevi nas análises acima, algumas imagens mostram as mãos dos peritos
manipulando (assepticamente com luvas) os genitais dos/as examinandos/as para o registro.
Principalmente no que se refere aos homens (transexuais), Diogo resumiu em poucas
palavras a sua passagem pelo IML: “Foi a pior experiência de minha vida, foi constrangedor.
(...) [se referindo ao outro candidato] me confidenciou que chorou por uma semana após
aquele exame, é degradante”.147

As queixas sobre a obrigatoriedade de submeter-se à perícia no IML e as condições de


sua realização ecoaram nas entrevistas e, juntamente com a leitura dos laudos integrantes nos
processos, motivaram uma visita ao IML.

O diretor, embora tenha estranhado a solicitação em conhecer as salas de exame em


vivo, consideradas por ele apenas consultórios, como qualquer consultório médico,
acompanhou de forma solícita explicando todos os procedimentos e rotinas do IML bem
como toda a estrutura física do Instituto. Passamos pelas salas identificadas como destinadas
às perícias no morto, geladeiras, gavetas e bandejas de alumínio onde se depositam os
cadáveres compunham o cenário. Passei com tranqüilidade por essa etapa, considerando que
na graduação freqüentava as aulas de anatomia sem nenhuma dificuldade, usei os mesmos
argumentos para me convencer a permanecer indiferente, era apenas a necessidade de acionar
uma estratégia que sabia usar, mas deparar com um cadáver de uma mulher sendo
necropsiado não estava no roteiro. Cumprimentamos o médico que realizava a necrópsia e
seguimos adiante, acredito que eu tenha passado com louvor no teste, mantive uma postura
serena, embora tenha reverberado a pergunta da Danielle sobre a necessidade de passar por
isso. Havia outra porta, outro caminho... Mas enfim, cheguei ao setor de perícia no vivo.148

Formada por dois consultórios compostos por mesa de exame que lembra uma maca
comum, mesa de escritório com computador, apenas uma cadeira disponível na sala que
parecia estar destinada ao médico perito anunciavam que este não era um consultório para

147
Diogo, entrevista pessoal, Brasília, em maio de 2007.
148
Anotações do Caderno de Campo, Visita realizada ao IML, Brasília, 11 de maio de 2007.
Flavia Teixeira 115

acolher a queixa do paciente, não estamos tratando de consulta, em que as queixas e os


sintomas devessem compor um diálogo. Não se trata definitivamente de uma relação de
cuidado. Aqui o sujeito é recebido pelo médico-perito com outra perspectiva: “aqui lidamos
com bandido”.149 O anúncio sobre a preparação do local para lidar com criminosos seria
desnecessário a qualquer olhar minimamente familiarizado com os textos de Michael
Foucault (2007). Tudo estrategicamente colocado para garantir que o indivíduo adestrado se
perceba permanentemente vigiado. As grades nas janelas, a disposição do lavabo, o vaso
sanitário e o biombo representavam isso. A vigilância é uma constante, o biombo que separa a
mesa de exame do vaso sanitário não garante nenhuma privacidade sendo uma peça
desnecessária neste contexto. Nessas salas, foram examinadas as mulheres (transexuais), que
por serem consideradas “homens” não necessitavam de procedimentos diferenciados na
percepção deste Instituto.

Uma sala identificada como sexologia forense foi apresentada como sendo o local em
que os homens (transexuais) foram examinados. É uma sala composta por dois ambientes,
planejada para receber as mulheres vítimas de abuso sexual; possui uma parte anterior onde a
mesa e as cadeiras disponíveis lembram um consultório médico convencional. Aqui a vítima
será ouvida, afinal não se trata mais de criminosos.

A parte posterior, separada por uma porta, possui uma mesa destinada a exame
ginecológico, um arquivo onde ficam guardados aparelhos mais complexos como o de
ecografia, uma televisão, um aparelho de gravador de vídeo com DVD. Pelas imagens
registradas, foi nessa mesa que os homens (transexuais) foram examinados. Todo o ambiente
destinado a receber uma mulher. O constrangimento descrito por Diogo iniciava antes mesmo
do exame, todos os móveis informam o pertencimento ao mundo feminino, o procedimento
busca evidenciar de forma contundente que se trata de “um falso homem”.

A visita ao IML contribuiu para contextualizar as fotografias e também as condições


em que os laudos foram realizados.

O trabalho de Esalba Silveira (2006) parece ser o primeiro a abordar a questão da


transexualidade a partir do referencial do serviço social, tendo como campo de investigação
um programa que se destina à realização das cirurgias de transgenitalização no Brasil. Essa
autora se tornou uma interlocutora para pensar o lugar do assistente social na equipe uma vez

149
Expressão utilizada pelo diretor para justificar os procedimentos (Anotações do Caderno de Campo, 11 de
maio de 2007).
Vidas que desafiam corpos e sonhos 116

que sua presença consta como obrigatória desde a primeira Resolução do CFM.

Os Pareceres Sociais, nos processos analisados, parecem procedimentos


complementares, pois alguns deles foram confeccionados após a realização da cirurgia. As
entrevistas ocorreram dentro dos limites da Promotoria Pública por peritos da própria
instituição.150

As informações contidas nos relatórios focam as histórias de vida dos sujeitos,


também rastreando indícios de feminilidade e masculinidade - a exemplo dos Pareceres
Psicológicos e Psiquiátricos. Ao focalizar o olhar sobre a verdade de uma transexualidade e a
autenticidade da demanda da cirurgia, que impedirá o arrependimento após o ato cirúrgico e
sobre a possibilidade de cumprir com as normas de gênero após este processo, os peritos
silenciam sobre os constrangimentos e violências vivenciadas pelos sujeitos que ameaçam até
mesmo a capacidade de viver. Silenciando também sobre a coragem dos homens e mulheres
(transexuais) de suportar as discriminações e abandonos para viverem em acordo com o seu
desejo. Novamente a vida vivida parece importar apenas enquanto fragmentos capazes de
preencher critérios diagnósticos.

Os laudos fornecem poucos elementos significativos, corroboram as decisões


anteriores dos peritos e, somente nos casos em que os “candidatos” foram recusados, a sua
elaboração contribuiu para as decisões da Promotoria.

Entre pistas e (in)certezas: os interditos


Ao solicitar ingresso no Programa de Transgenitalização, E.S.F. teve seu processo
suspenso por 06 meses pela Promotoria antes de qualquer encaminhamento para exames
periciais. O motivo explicitado no termo de suspensão se deu em função de que a solicitante
referia estar em uso dos psicofármaco “Haldol e Fenergan”, o que fica evidenciado na cópia
do prontuário médico anexado ao processo. No Despacho do Promotor, este orientou para que
se aguardasse o relatório do psicólogo que a acompanhava e, conforme encaminhamento
encontrado, o próprio psicólogo questionava a possibilidade de estar diante de quadro
psicótico.151

Considerando que os exames periciais de psicólogos e psiquiatras deveriam

150
W.P.S. foi entrevistada em momento posterior à cirurgia. Processo de W.P.S.- PARECER SOCIAL N.º 01/03
Pró-Vida.
151
Processo de E.S.F..
Flavia Teixeira 117

exatamente cumprir a função de identificar a presença de outros transtornos mentais, a


conduta adotada faz emergir um debate que parecia não interessar ao Promotor.

A classificação proposta pelo DSM-III e (re)atualizada no DSM IV posiciona o


transexualismo nos Transtornos da Identidade de Gênero e revela que a Associação
Psiquiátrica Americana (APA) estabelece critérios diagnósticos baseados numa classificação
sindrômica, a partir de um elenco de sintomas observáveis que, de nenhum modo, poderiam
ser confundidos com uma psicose. A certeza do perito viria da ausência de delírios e
fenômenos de automatismo. Nos processos consultados, o Exame Psíquico enfatiza essa
preocupação:

Mostra-se bem orientado auto e alopsiquicamente, o discurso é fluido e


coerente. Humor básico sintônico. Atenção, memória e juízo crítico da
realidade preservados. Não se observam alterações da sensopercepção e
interpretação.152
Mostra-se lúcida, coerente e bem orientada. Discurso espontâneo com curso,
forma e conteúdo normais do pensamento. Ausência de distúrbios da
sensopercepção no momento do exame. Afetividade e humor vital estáveis.
Juízo crítico e memória sem alterações.153,154
Não observamos sintomatologia psicótica. Atenção e memória
conservadas.155
Estabelece um diálogo fluente, não revelando distúrbios psíquicos de
natureza psicótica que comprometam seu discernimento crítico da realidade.
O seu discurso é claro e coerente, revelando um pensamento organizado e
coeso.156

A reflexão de Marina Teixeira (2003, p. 10) parte da posição supostamente consensual


dos médicos psiquiatras de não reconhecerem como loucura a certeza expressa por uma
pessoa de ser uma mulher prisioneira num corpo de homem. Ancorada na perspectiva da
psicanálise, Marina Teixeira encontrará em Henry Frignet (2002) e Collete Chiland (1997)
aliados importantes para suas críticas à cirurgia como único tratamento disponível para o
transexualismo e ao limite da psicanálise para atuar conforme discurso médico hegemônico.

Portanto, do ponto de vista da ciência, a eficácia técnica da cirurgia é o fator


que justifica que a certeza irremovível de que se é do sexo oposto ao sexo
atribuído no nascimento possa não ser vista como um sintoma de psicose nos

152
Processo de V.X.M. Laudo Psiquiátrico nº. 801/2001-SPL p.2.
153
Processo de E.S.M. Laudo Psiquiátrico nº. 022/2003- SPL p.2.
154
O mesmo fragmento é encontrado no Processo de J.C.S. Laudo Psiquiátrico nº. 696/2002- SPL , p. 3.
155
Processo de R.R.F. Laudo Psiquiátrico nº. 469/2001-SPL p.1.
156
Processo de G.S.B. Laudo Psiquiátrico nº. 610/2001-SPL p.2.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 118

casos de transexualismo masculino. Esse é um ponto essencial para se


compreender o tipo de razão que obnubila a percepção de que o fenômeno
do transexualismo está a serviço de uma estrutura psicótica. A certeza do
transexual masculino não é considerada uma loucura porque a cirurgia
plástica de mudança de sexo é eficaz tecnicamente. (TEIXEIRA, 2003, p.
39)

Ao criticar a posição atual da medicina frente à cirurgia, Contardo Calligaris (1989)


considera que a transexualidade não seria exclusividade dos sujeitos neuróticos e a demanda
de psicóticos pela cirurgia de transgenitalização deveria ser atendida pela equipe,
considerando que “a operação de mudança de sexo é justamente um exemplo do que é um
delírio logrado” (p. 37). No entanto, essa é uma posição isolada identificada nas leituras.

Embora considere o importante lugar de sedução que envolve a cirurgia de


transgenitalização, entendo que as disputas e certezas que estão em jogo no caso da
transexualidade não se restringem ao aparato técnico. Campos disciplinares reivindicam
poderes de nomear e tratar as pessoas (transexuais). Tratando do percurso editorial das obras
cuja temática circundava as questões sexuais no Brasil, os antropólogos Sérgio Carrara e Jane
Russo (2002) demonstraram como os saberes da psicanálise e sexologia, no início do século
XX, foram integrados ao discurso da medicina de maneira distinta, sendo que a psicanálise
encontrara maior prestígio principalmente quando vinculada aos psiquiatras Franco da Rocha
e Juliano Moreira.

No entanto, em que se pese a expressão do saber psicanalítico na formação dos


psiquiatras brasileiros, no que se refere à questão transexual, percebo um silenciamento
específico da psicanálise. Imperando o poder da equipe de saúde mental, o apagamento do
sexólogo se dá na própria Resolução do CFM que amplia a equipe mínima para atendimento
dos/as (transexuais), omitindo a existência deste profissional, o que sugeriria que suas funções
seriam análogas às do psiquiatra. A análise dos processos mostra que permanece inalterada a
posição de que é a psiquiatria deve se pronunciar no caso da transexualidade.

A discussão sobre a manutenção ou supressão do diagnóstico envolve o conceito de


autonomia e será ponto importante ao dilema enfrentado pelo Coletivo Nacional de
Transexuais no âmbito do Ministério da Saúde. Neste momento, destaco o questionamento
provocado por Judith Butler (2006a) sobre a legitimidade da saúde mental para se posicionar
no caso da transexualidade e, consequentemente, a pertinência de que conste entre as
categorias do DSM IV. Entendo que a autora está discutindo o estatuto da compreensão que
se faz da transexualidade, quando permanece entre o dilema de reivindicar maior autonomia
Flavia Teixeira 119

para dizer de si mesmo e negociar a relação entre o consumidor de um serviço ou uma


tecnologia médica e, ainda, ser autorizado a usufruir deste serviço.

Outro elemento que integra os laudos, recebendo um lugar de destaque, é o interesse


sexual pelo sexo considerado oposto. No processo de E.P.C., os peritos não a reconheceram
como transexual, dizendo de suas características de homossexualidade:

Mostrou-se adequado ao exame, falando de suas dificuldades sexuais sem


inibições e não observamos trejeitos femininos. Muito pelo contrário, pode-
se perceber que procura disfarçar, ou não deixar que percebam que poderá
ser um homossexual.157

Seguindo essa perspectiva, a homossexualidade seria um diagnóstico a ser identificado


e excluiria o diagnóstico de transexualidade, pois estes supostos “transtornos mentais” não
configuram como co-morbidade. A homossexualidade integra o protocolo invisível como
requisito para eliminação da/o candidata/o. Observando as exigências do CFM no
estabelecimento de critérios para diagnosticar a transexualidade, um deles seria a “ausência de
outros transtornos mentais”.158 Penso que, embora oficialmente o homossexualismo não
conste no Código Internacional de Doenças, na sua décima versão, (CID 10) como doença,
ainda pode ser interpretada como tal, o que surge explicitamente no fragmento abaixo:

O transtorno mencionado está citado no CID302.0 na 9ª edição deste livro e


está enquadrado na 10ª edição, no CID F65.9 (Transtorno da preferência
sexual, não especificado), bem como no CID F66.9 (Transtorno do
desenvolvimento psicossexual, não especificado, com indicação nesse livro
de que pode ser ainda utilizado um quinto caractere: X1
(homossexualidade).159

Ou a percepção da homossexualidade como transtorno aparece subliminarmente, como


denuncia Judith Butler, “(…) el diagnóstico de GID es, en la mayoría de los casos, un
diagnóstico de homosexualidad, y el trastorno que conlleva tal diagnóstico implica que la
homosexualidad permanece también un trastorno”. (2006a, p. 118).

Demarcar uma identidade (transexual) seria reconhecer a legitimidade conferida


através da matriz heterossexual – expressão utilizada para designar o filtro de inteligibilidade

157
Discussão desenvolvida no Laudo Psiquiátrico nº. 802/2001 de E.P.C..
158
www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2002/1652_2002.htm consultado em 04/03/2006.
159
Este fragmento consta no processo de S.C.G., sendo parte de uma discussão dos peritos do Institutos Médico
Legal sobre a pertinência de se considerar a homossexualidade como uma patologia.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 120

cultural mediante o qual vem materializado corpos, gênero e desejos - como revelariam os
fragmentos dos processos em que as falas das/os entrevistadas/os sugeriam o que poderia,
num primeiro momento, ser interpretado apenas como a existência de uma suposta postura
homofóbica, encoberta ou explicitamente colocada como: “odeio homossexuais”160, “não
gostaria que me confundissem com um homossexual”161, e outros. Um fragmento de
entrevista que, ao ser enfatizado pelos peritos em meio a tantos outros que supostamente
comporiam uma entrevista, retorna com a força de proscrição: “Nunca teve qualquer tipo de
atração por mulheres. Considera que este tipo de vínculo será lesbianismo, o que não aprova.
Considera o homossexualismo um comportamento anti-social e anti-natural”.162

Outras pesquisadoras também identificaram o incômodo que a homossexualidade


parecia se constituir para as pessoas (transexuais). Ao relatar trechos de entrevistas das
pessoas (transexuais) que acompanhou, Valéria Elias (2007, p. 217) também nos oferece
elementos para perceber como é recorrente a recusa da homossexualidade.

Ao refletir sobre a dimensão cultural da experiência humana no processo de


subjetivação e assujeitamento do sujeito, que será uma discussão enfrentada nos próximos
capítulos deste trabalho, Judith Butler (2005) questiona a naturalidade da matriz heterossexual
na estrutura que compõe o Complexo de Édipo, considerando que não somente está em jogo a
proibição do incesto, mas também, e de maneira importante, a interdição da
homossexualidade. Para a análise proposta aqui, o desenrolar de seu argumento é bastante
elucidativo:

La paura del desiderio omosessuale in una donna, quindi, può indurre uno
stato di panico al pensiero che stia perdendo la sua femminilità, che non sia
una donna, che non sia più una vera donna, che se non è neanche un uomo,
comunque vi assomiglia, e quindi è in qualche modo monstruosa. Oppure in
un uomo, il terrore del desiderio omosessuale può portare al terrore di essere
giudicato femminile, femminilizzato, non essendo più propriamente un
uomo, ma un uomo “fallito” (...) (2005, p. 128)

Embora não seja polêmica a afirmação de que as experiências da sexualidade e do


gênero não se reduzem à heterossexualidade, no contexto dos processos analisados, em que o
questionamento da posição de gênero dos homens e mulheres (transexuais) é uma constância,
percebo que o discurso hiperbólico da relação entre gênero e sexualidade fixada pela norma

160
Processo de Bruna.
161
Processo de J.C.S..
162
Laudo Psiquiátrico de W.P.S., fl.19.
Flavia Teixeira 121

heterossexual pode ser também compreendido dentro da necessidade de convencimento do


outro. E também, na própria subjetivação do sujeito, considerando que a matriz confere
inteligibilidade não somente nos textos freudianos, mas atravessa a vida cotidiana.

O desvelar da homossexualidade poderia associar-se, “perigosamente” para os/as


inscritos/as, ao exercício da sexualidade; sendo que a interdição ao sexo também integra o
protocolo invisível dos processos. Relatos das/os inscritas/os contendo informações sobre um
histórico sexual sem masturbação e, principalmente, para as (transexuais) femininas, as
informações sobre as relações sexuais passivas são destacadas, valorizadas e reproduzidas
pelos peritos.

Afirma que não teve relações sexuais, mas sim, contatos sexuais. Acredita
que relações, só terá após a cirurgia. (...) Não sabe dizer se no momento da
relação sexual tem ereção. Acredita que isso aconteça, mas que na maioria
das vezes seu psíquico bloqueia essa função masculina. Nunca permitiu ser
tocado no seu órgão sexual. No entanto, já usou seu órgão genital para
masturbação.163

A vigilância percorre caminhos tão íntimos que num dos processos o profissional
considera por bem relatar sobre as preferências sexuais de uma de suas examinandas durante
o ato sexual.

(...) ao relatar algumas de suas experiências sexuais, demonstra que o que lhe
proporciona mais prazer e gozo é a penetração, isto é, o fato de ser penetrado
analmente. O que parece desprazeroso e até mesmo insuportável para o
paciente é ser confundido com um homossexual, além disso, que o parceiro
sexual toque em seus genitais ou sequer demonstre alguma forma de
interesse neles.164

A compreensão de que as pessoas (transexuais) rejeitam a genitália externa é também


compartilhada na literatura médica e recebe recorrentes destaques nos diferentes laudos
periciais. “(...) Explicou que seu órgão sexual era como um câncer. Que não era parte dela.
Que não conseguia olhá-lo. Até mesmo tomar banho era difícil. Chegou a querer cortá-lo”.165

Mesmos alguns pesquisadores da área de ciências humanas adotam e naturalizam a


interdição ao pênis como constituinte de marco identitário das mulheres (transexuais), como
fragmento do texto de José Carlos Araújo (2006, p. 30):

163
Parecer Social 007/02 processo de L.P.P.N..
164
Parecer Psicológico que integra o Laudo de S.C.G..
165
Parecer Social 01/03 integra o processo de L.L..
Vidas que desafiam corpos e sonhos 122

O tipo de relação sexual acima citado seria impossível para uma transexual,
que não tem ereção alguma, evitando mesmo olhar para o próprio órgão.
Aqui entraria a visão médico-psiquiátrica entre, de um lado, o travesti que
afirma sua masculinidade e salvaguarda seu pênis, e de outro o transexual
que não o suporta, sofrendo acessos de melancolia profunda com seu erro de
pessoa, um desvio de identidade.

Diferentemente, Valéria Elias, a partir de uma leitura psicanalítica, apresenta outra


interpretação para a recusa das mulheres (transexuais) de seu corpo:

A não aceitação do corpo que observamos nas transexuais seria, portanto,


uma supressão do acesso a uma determinada representação, com as demais
representações que constituem seu eu, em relação ao corpo anatômico.
Separando o ser de seu corpo, persistiria um saber sobre seu corpo e sua
identidade, sobre os quais ele não sabe nada. O poder de nomear o corpo
estruturaria sua percepção, uma vez que esta só pode manter-se dentro do
simbólico. O que difere então o corpo de uma carne é a pulsão, sempre
parcial, resultante dos investimentos libidinais e da incorporação da
linguagem, sem a qual ele coisifica. (2007, p. 141)

No entanto, em que se pese o cuidado de interpretar diferentemente a não aceitação, a


interdição que antecede o ingresso das mulheres (transexuais) no programa parece se
constituir numa norma difícil de romper:

Rotineiramente, na triagem inicial, a equipe analisava a demanda de


transexualização e, em seguida, iniciava-se o acompanhamento durante o
mínimo de dois anos, prosseguindo após a realização da cirurgia. Os critérios
para a contra-indicação eram: diagnóstico de algum distúrbio psiquiátrico,
principalmente esquizofrenia; alcoolismo, toxicomanias, em que o grau de
dependência revelava descontrole emocional ou pacientes que usavam o
pênis nas relações sexuais. Ou seja, riscos em que a ausência de capacidade
de decidir por si mesmas ou um investimento erótico no órgão, fizesse com
que a cirurgia pudesse ser um equívoco de quem a solicitou e de quem a
indicou. (ELIAS, 2007, p. 44) (grifos meus).

Uma parte do corpo que não deve ser sequer usada, muito menos nomeada. Esta é uma
prática recorrente também identificada por Berenice Bento que encontrou nas expressões
“aquela coisa”, “aquilo”, “um pedaço de carne”, “uma coisa” uma forma de nomear “esse
pedaço de carne que tenho entre as pernas”. Para a autora, proferir a palavra “pênis” se
equivaleria a tornar-se homem e conclui que “(...) Mais do que dar vida através de um ato
lingüístico, a palavra “pênis” contagia suas identidades” (2003, p. 193). É esta a pista que
escolhi seguir: o nojo apresentado nas entrevistas como um sentimento testemunhal da
incoerência entre o sexo biológico e o sexo psíquico poderia ser lido como o medo que essas
Flavia Teixeira 123

pessoas possuem de que o pênis possa macular o pertencimento ao feminino. Nesse sentido,
observar a reflexão de Mary Douglas (1966) sobre o caráter de desordem implícito no
conceito de poluição/impureza contribui para pensar sobre o risco da ambigüidade que
representa uma mulher com pênis e, principalmente, a ejaculação de seu sêmen. Seria
exageradamente desorganizador das normas classificatórias de sexo e gênero. As pessoas
(transexuais) compartilham do investimento coletivo para condenar qualquer objeto ou
qualquer idéia susceptível de lançar confusão ou de contradizer as (quase) inquestionáveis
classificações.

O processo de S.C.G. ilustra como a relação estabelecida entre os operadores do


direito e da medicina pode se tornar tensa numa disputa de poder-saber. O encaminhamento
desta inscrita poderia transcorrer como os demais e ter se resumido, tanto para a Promotoria
como para o IML, em mais um procedimento de rotina. Em conformidade com os
procedimentos anteriores, S.C.G. foi encaminhada ao IML para exame físico.166 O laudo
elaborado pelos peritos trazia na discussão a afirmativa de que se tratava de um caso de
travestismo.167

O referido laudo deflagrou uma discussão entre os Peritos do IML e o Promotor de


Justiça, o que motivou a solicitação de que os Peritos refizessem o Laudo Técnico.168 A
solicitação do Promotor de Justiça foi dirigida para a perita médica legista que assinou o
Laudo. Posteriormente, o então diretor do IML anexou a resposta com a negativa da perita
alegando que o procedimento do Promotor afeta a autonomia da perícia-técnica.169

Diante dessa recusa, o Promotor de Justiça encaminhou novo Ofício com novos
quesitos para que os peritos respondessem, por se tratarem de perguntas teóricas, dispensava a
presença de S.C.G., estabelecendo um prazo de 10 dias para a devolutiva.170 Reproduzo os
quesitos colocados pelo Promotor por se relacionarem diretamente com a preocupação em
identificar o “transexual verdadeiro”:

1º Qual a base médico-científica usada pelos senhores legistas para


classificarem o homossexualismo como patologia?
2º Qual o CID do homossexualismo?

166
Ofício nº. 084 MPDFT/PRÓ-VIDA de 06 de fevereiro de 2001.
167
Ofício nº. 488/2001 PROT de 23 de fevereiro de 2001 constando o Laudo nº. 017/2001.
168
Ofício nº. 149 MPDFT/PRÓ-VIDA de 05 de março de 2001.
169
Ofício nº. 033/01 DIR IMLLR.
170
Ofício n.º 206/01 MPDFT/PRO-VIDA de 03 de abril de 2001.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 124

3º Se o “travestismo é definido como uma incompatibilidade entre o sexo


psicológico e o sexo morfológico, genético, civil e endócrino”, como
afirmaram os senhores legistas, que também concluíram que “estavam diante
de um caso de travestismo”, indaga-se: Os senhores legistas concluíram que
o periciando tem uma incompatibilidade entre o sexo psicológico e o sexo
morfológico?
4º O diagnóstico de travestismo é um diagnóstico estritamente médico?
5º Mesmo sem questionar a legalidade da cirurgia nos casos de travestismo,
os senhores legistas fazem comentários sobre ela. Diante disso indaga-se: o
travestismo é passível de correção cirúrgica?
6º Qual é a base médico-científica usada pelos senhores legistas para
afirmarem que não há hermafroditismo verdadeiro – presença das gônadas
dos dois sexos – em seres humanos?171

Na resposta aos quesitos, a perita mantém e sustenta através de citações bibliográficas


a sua perspectiva de entendimento do homossexualismo como patologia, conforme demonstra
o excerto abaixo:

Neste mesmo capítulo da literatura médico-legal estão incluídos outros


desvios ou transtornos da sexualidade tais como a zoofilia ou o bestialismo,
o vampirismo e a necrofilia, que, sem sombra de dúvida e a despeito de
várias discussões fundamentadas em conceitos religiosos, sociais e sem
cometer nenhum delito ético ou discriminação, são consideradas patologias,
assim como o homossexualismo o é.172 (grifo original).

Para especificar a CID do homossexualismo, utiliza o código 302.0 da 9ª edição da


CID. No entanto, a 10ª edição da CID já estava em vigor, o que então exigiu que a citasse:

(...) está enquadrado na 10ª edição, no CID F65.9 (Transtorno de preferência


sexual, não especificado) bem como no CID F66.9 (Transtorno do
desenvolvimento psicossexual, não especificado, com indicação neste livro
de que pode ser ainda utilizado um quinto caractere: .X1
(homossexualidade). 173

Destaco a convicção da perita no caráter patológico da homossexualidade, mesmo e


apesar da determinação grafada na própria CID, de que a orientação sexual não seja tomada
como transtorno em sua forma isolada. Esse dado é relevante porque aqui a concepção de
homossexualidade como uma doença surge de forma explícita, sendo que a interpretação em

171
Ofício n.º 206/01 MPDFT/PRO-VIDA de 03 de abril de 2001.
172
Complementação de Laudos Diversos 017/2001 de 23 de abril de 2001. p 01.
173
Ofício nº. 1389/2001- PROT de 26 de abril de 2001 - Complementação de Laudos Diversos 017/2001 de 23
de abril de 2001. p 01.
Flavia Teixeira 125

outros momentos se dará ambiguamente e a homossexualidade será identificada como critério


de exclusão de transtornos mentais (outros).

No conjunto desse laudo, as palavras travestismo e transexualismo são utilizadas como


sinônimos pelos peritos. A fragilidade das fronteiras identitárias será ponto de análise no
quarto capítulo, no entanto, não é disso que se trata aqui. O que está em questão é o
conhecimento que circula sobre as sexualidades num campo que reivindica o direito de
diagnosticar e tratar a transexualidade. Essa situação foi corrigida, em 11 de maio de 2001,
através de nova complementação de laudo. A perita solicita que a complementação anterior
seja desconsiderada e reconhece o “equívoco”174, estabelecendo a distinção clássica entre
travestismo e transexualismo que é recorrente na literatura médica.

A descrição do termo travestismo estabelecida na CID -10 forja um consenso


identificado na maioria dos discursos sobre as travestis:

F64.1 Travestismo bivalente


Este termo designa o fato de usar vestimentas do sexo oposto durante uma
parte de sua existência, de modo a satisfazer a experiência temporária de
pertencer ao sexo oposto, mas sem desejo de alteração sexual mais
permanente ou de uma transformação cirúrgica; a mudança de vestimenta
não se acompanha de excitação sexual. (grifos meus).

O fato de a perita ter se equivocado ao considerar travesti uma das candidatas quando
parecia desejar dizer transexual é relevante, pois enfatiza a dificuldade que os sujeitos
(transexuais) possuem para serem escutados. Na leitura das diferentes peças que compõem os
processos, encontrei um consenso recorrente para a definição diagnóstica do transexualismo
que será corroborada por Elizabeth Zambrano: “uma síndrome complexa caracterizada pela
convicção intensa de ser de um sexo diferente do seu sexo corporal, juntamente com a
demanda de mudança de sexo dirigida ao sistema médico e judiciário” (2003, p.12). A
reivindicação da cirurgia seria uma fronteira reconhecida como legítima entre as categorias
identitárias de travestis e (transexuais), sendo assim, a busca espontânea pela cirurgia de
transgenitalização deveria ser um critério de exclusão significativo. No entanto, a busca por
identificar a travesti é recorrente, como sugere o fragmento do trabalho de Esalba Silveira,
integrante da equipe PROTIG de Porto Alegre:

Além do mais, a equipe precisa ter uma margem de segurança e o

174
Ofício nº. 1940/2001- PROT de 23 de maio de 2001 - Complementação de Laudos Diversos 017/2001 de 11
de maio de 2001.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 126

seguimento é fundamental para isso, de que não se trata de um travesti, que


tanto pode assumir uma identidade sexual feminina como masculina e
encontra prazer sexual com a sua genitália biológica, tanto assim que toma
estrógenos para adquirir volume mamário, mas o suficiente para poder
manter a ereção. Logo, nestes casos a cirurgia seria uma mutilação
(SILVEIRA, 2006, p. 88)

Ser travesti assume conotação depreciativa no conjunto dos processos, evidenciando o


receio das mulheres (transexuais) de serem nomeadas travestis pelos especialistas e assim
serem “desligadas” do Programa, mas evidencia também que essas/es (transexuais) possuem
uma percepção das travestis como uma categoria de menos valia em relação às (transexuais).

A compreensão de que as travestis ocupam um lugar de desprestígio também entre a


população GLBTT é identificada por Anne Damásio que, ao delimitar o seu campo de
investigação, percebe a limitada circulação das mesmas nas boates e espaços homossexuais,
denunciando:

(...) falas emblemáticas de uma espécie de discriminação intra-grupo contra


essa parcela da população homossexual, que convergiam para a relação
presente no imaginário social entre travesti-prostituição-violência e que
acabava por reforçar aspectos hierárquicos desse universo (DAMÀSIO,
2006, p. 2).

Ao dizer sobre a produção do abjeto, destinado às zonas inabitáveis da vida social,


onde se reúnem aqueles que não gozam do status de sujeito, Judith Butler auxilia a pensar na
posição das travestis, na medida em que, ao materializarem “um corpo ambíguo”
desestabilizam as normas que conferem legitimidade aos corpos e perdem a qualidade de
humano, conforme já denunciado por Hélio Silva (1993 e 2007).

Sendo assim, torna-se compreensível o valor conferido ao diagnóstico de


transexualismo como um limite entre as identidades que foi expresso na reação de alívio
informada por uma das entrevistadas do trabalho de Valéria Elias, ao afirmar que a
terminologia transexual cumpriria uma dupla função ao ser capaz de nomear a sua existência
ao mesmo tempo em que a afastaria do lugar abjeto de ser travesti (ELIAS, 2007, p. 221).
Situação semelhante à percebida por Elizabeth Zambrano: “A diferenciação reivindicada
pelos transexuais em relação aos travestis vem da necessidade de se separar da imagem de
violência, marginalidade e prostituição comumente ligada a estes últimos.” (2003, p. 41).

Outra associação recorrente é estabelecida entre travestis e promiscuidade,


principalmente nas falas das mulheres (transexuais) reproduzidas nos trabalhos de PINTO e
Flavia Teixeira 127

BRUNS, (2003, pp. 132-33) e ELIAS (2007, p. 229).

Dessa esquina pelo menos posso perceber o duplo sentido de


tudo175
Se o desejo manifesto pela cirurgia se constrói como uma condição explícita para o
reconhecimento de um diagnóstico, o exercício da prostituição deve ser denegado. Durante a
primeira entrevista realizada no âmbito da Promotoria Pública, o Promotor revela ser esse um
dos critérios de exclusão das então candidatas a participar do Programa de Transgenitalização.
A primeira justificativa para essa exclusão se deu em relação ainda à aplicação de uma lógica
baseada no raciocínio clínico; a vivência na prostituição estaria relacionada à possibilidade do
“uso” daquele que deveria ser escondido, recusado. No entanto, a prostituição se constituía,
também, aos olhos da Promotoria, numa fronteira que dividiria travestis e transexuais.

O entendimento de um dos peritos do IML de que Rita176 fosse travesti e não


transexual se ancorou nos indícios de que ela exerceria a prostituição e que a cirurgia estaria
motivada pela perspectiva de modificar de clientela. Essa percepção do perito não é isolada,
conforme ilustra fragmento abaixo:

Em 27/09/07, XXXXXXX <xxxxxxxxxx@...> escreveu:


Dia 03 e 04 de outubro acontece em DF o Seminário de: Tráfico de Pessoas,
na Secretaria e Justiça, financiado pela UNODC; vão existir poucas vagas
que estão sendo disponibilizada pelo PN/ MS ao Movimento social. Estarei
indo pelo Escritório contra o tráfico de Pessoas de Goiás Ministério
Público/GO. Gostaria muito de sugestões para construção de políticas
públicas para a população de transexuais; pois existe mitos que a construção
da neovagina (a cirurgia) é para sermos mulheres profissionais do sexo na
Europa. Vamos redirecionar e reconstruir políticas para nosso segmento,
principalmente desconstruir esteriótipos. Beijos XXXX177

Ao trabalhar com as mulheres (transexuais) de um programa destinado à realização da


cirurgia de transgenitalização no Rio Grande do Sul, Esalba Silveira reafirma a importância
que a temática da prostituição ocupava nas preocupações e vivências do grupo e o caráter

175
Fragmento da Música Duplo Sentido. Composição e interpretação: Gilberto Gil. Disco Cidade do Salvador,
1973.
176
Anotações do Caderno de Campo do comentário realizado pelo perito durante visita realizada ao IML. O
perito não se lembrava sobre quem estaria se referindo, mas a partir de um fragmento do histórico de vida
relatado por ele pude associar com a Rita.
177
Correspondência eletrônica recebida através da Lista em 27/09/2007, mensagem nº. 1084.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 128

condenatório atribuído a esta prática pelas candidatas. Ao mesmo tempo em que ela é
silenciada pelos sujeitos que a praticavam, era “desconhecida” pelos profissionais que
compunham a equipe. Ao justificar a escolha do tema para se constituir no elemento gerador
do grupo focal, ela anuncia:

Os objetivos foram explicitados, com especial destaque à pesquisa e ao fato


de que a equipe de profissionais do XXX pouco conhecimento teria sobre
este tema que emergia com a questão do transexualismo, daí a importante
colaboração de que se revestia a disposição em participar do grupo.
(SILVEIRA, 2006, p. 157)

Diferentemente, nos relatos de Valéria Elias sobre o acompanhamento das candidatas


à cirurgia no programa destinado a realização das cirurgias no Paraná, a prostituição é
silenciada. A autora utiliza fragmentos de entrevistas em que duas candidatas dizem do receio
de serem confundidas com travestis a partir do exercício da prática de prostituição. (2007, pp.
173 e 183)

Na pesquisa realizada por Alexandre Saadeh com as pessoas que se inscreveram no


Programa de Transgenitalização da Universidade de São Paulo, 15,2% das mulheres
transexuais informaram no início da pesquisa a prática da prostituição. Para o pesquisador, a
“incidência” da prostituição diminuiu com o decorrer da psicoterapia em decorrência da
melhora da inserção social e a busca de novos papéis e possibilidades financeiras (2004, pp.
180, 213-4).

Aqui identifico a perspectiva abolicionista que marca as relações com a prostituição no


país. Segundo a Rede Brasileira de Prostitutas, o Brasil adota a perspectiva do abolicionismo,
acreditando que

(...) a prostituta é uma vítima e só exerce a atividade por coação de um


terceiro, o “explorador” ou “agenciador”, que receberia parte dos lucros
obtidos pelo profissional do sexo (como se todos os patrões não
recebessem). Por isso, a legislação abolicionista pune o dono ou gerente de
casa de prostituição e não a prostituta. Nesse sistema, quem está na
ilegalidade é o empresário, ou patrão, e não há qualquer proibição em
relação a alguém negociar sexo e fantasiais sexuais. A corrupção fica
facilitada neste caso. O Brasil adota esse sistema desde 1942.178

A restrição à prostituição não aparece como integrante dos protocolos oficiais daquele
programa, mas compreendendo o universo das estratégias que as pessoas desenvolvem para

178
Rede Brasileira de Prostitutas. Disponível em www.redeprostitutas.org.br e capturado em 06/10/2007.
Flavia Teixeira 129

responder ao modelo de uma transexualidade aos moldes propostos por Harry Benjamin -
penso na valorização do silêncio e do ocultamento desta experiência. A prostituição é
apresentada como recurso transitório e necessário para a sobrevivência, mas que também abre
fissuras para o prazer. Esse é o lugar mais espinhoso, onde o prazer surge atrelado à idéia da
promiscuidade.

Berenice Bento identifica a preocupação constante de algumas de suas entrevistadas


em estabelecer uma diferenciação com as travestis. “A forma de vivenciar essa identificação é
reforçando as margens, reproduzindo os insultos como marca de diferenciação, numa série de
efeitos vinculantes às normas de gênero” (2003, p. 222). A prostituição parece se constituir
num elemento diferenciador fundamental das identidades; neste processo diferenciador, a
promiscuidade seria então uma das mais importantes distinções, marcada pela marginalidade
e vulgaridade. Também os fragmentos de entrevistas realizadas por Berenice Bento
denunciam essa demarcação de fronteiras demonstrando que essas questões parecem ser
recorrentes nesse universo (2003, pp. 222-5).

Na segunda vez que compareci ao Grupo de Transexuais do HUB, permaneci durante


todo o tempo sentada próxima à porta de entrada da sala.179 Naquele dia, a reunião era de
caráter fechado e se destinava apenas às pessoas inscritas, sendo esta a razão de eu aguardar
do lado de fora. Estava lá muito antes do horário combinado e fiquei observando a chegada
dos integrantes do grupo. A psicóloga que representava a equipe técnica era Tatiana Lionço
que se tornaria uma interlocutora através da sua tese de doutoramento e, posteriormente, por
sua atuação no âmbito do Ministério da Saúde.

O clima de distanciamento da Promotoria parecia mais concreto entre as participantes


que eu conhecia. Apenas as mulheres (transexuais) estavam presentes nesse dia. Entre aquelas
que eu conhecia, algumas me cumprimentavam ao passar e outras ou não me reconheceram
ou não desejaram fazê-lo. Mariana chegou atrasada e resolveu não entrar, ficou sentada
comigo e desenrolamos uma longa conversa que, segundo ela, seria “jogar conversa fora”. Ela
não havia comparecido à reunião no Ministério Público e, embora eu tenha dito o que estava
fazendo ali, ela não se mostrou incomodada com o fato de eu saber inclusive que ela havia
sido “recusada” no Programa de Transgenitalização. Mostrou-se indisponível para contato
posterior, dizendo de seus horários de trabalho como técnica em enfermagem, mas me deixou
o número do celular acompanhado de uma incerteza: “quem sabe um dia que você venha aqui

179
Anotações do Caderno de Campo, Brasília, 09/11/2004.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 130

e eu não esteja de plantão?”.180 Nenhuma vez consegui contato com ela através deste número,
mas com um sorriso tranqüilo ela me deu uma das chaves para pensar os laudos: “(...) aquilo
foi uma bobagem, se eu soubesse teria ido vestida assim (roupas femininas). Como eu iria
adivinhar que isso era tão importante? Agora eu sei, eu sei o que eles querem...”.181

Mariana se referia a um procedimento que se convencionou chamar teste de vida real,


condição essencial, segundo Baldaro Verde, para diferenciar transexuais primários e travestis,
que depois de mais velhas e com pouca perspectiva de permanecer na prostituição,
demandariam a cirurgia para obtenção de ganhos secundários (BALDARO VERDE e
GRAZIOTTIN, 1997, p. 113). Essa preocupação com o teste de vida real foi explorada na
discussão dos laudos dos especialistas que se pronunciaram nos processos analisados.

O aprendizado das regras do jogo de convencimento envolve o jogo da autonomia,


pois as pessoas (transexuais) sabem da impossibilidade de alcançar a cirurgia de
transgenitalização e outras importantes intervenções no corpo na ausência do diagnóstico. O
medo de não ser elegível para o diagnóstico possui uma realidade concreta para elas. A
identificação de situações que demonstram o uso da “mentira” como uma estratégia discursiva
foi uma colaboração significativa do trabalho de Berenice Bento:

O relato destas histórias mostra que, ao chegarem ao hospital, os/as


“candidatos/as” têm uma trajetória que os/as possibilita construir narrativas
adequadas às expectativas da equipe. Para chegar a essa conclusão, foi
necessário atentar para a movimentação que acontecia, por exemplo, depois
de uma sessão de psicoterapia ou aos comentários que realizavam entre
eles/as sobre algum teste. Este é um tipo de informação que não está
facilmente disponível (2003, p. 73).

Compartilho com Judith Butler do cuidado necessário quando se faz uso estratégico do
diagnóstico. Ao não concordar integralmente com o diagnóstico, por não se perceber
representado por ele, mas diante da necessidade do mesmo, o indivíduo reproduz as verdades
que o sustentam. Através da linguagem, ele reitera o mesmo discurso regulador que pretende
questionar. É uma renúncia à autonomia de falar de si mesmo.

Ao analisar o mito de Antígona, Butler entende que o principal crime cometido por ela
não foi o de ter enterrado seu irmão a despeito da ordem de Creonte, mas o de ter reivindicado
a ação (2003b, pp. 21-2). O ato que está mediado pela linguagem desloca a mulher Antígona

180
Anotações do Caderno de Campo, Brasília, 09/11/2004.
181
Mariana, entrevista pessoal, Brasília, HUB, novembro de 2004.
Flavia Teixeira 131

do lugar de feminino, provocando uma insuportável desordem de gênero. O silenciamento de


Antígona seria o desejado/esperado por Creonte. Acredito que, numa postura análoga, os
especialistas esperam o mesmo das pessoas (transexuais) – que se conformem aos critérios
diagnósticos, que não digam de suas vivências para não colocar em risco a ordem prescrita.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 133

PARTE II

CAPÍTULO 3

Histórias que não têm era uma vez...


Vidas que desafiam corpos e sonhos 135

CAPÍTULO 3

Histórias que não têm era uma vez...182

Este capítulo é composto por fragmentos das entrevistas e observações realizadas no


período de 2004 a 2008. São relatos que remetem a (re)arranjos, negociações e conflitos que
envolveram os diferentes sujeitos que romperam com a dualidade do sexo na construção
subjetiva da transexualidade. Essas narrativas possibilitam mostrar como esses sujeitos
construiram significados para suas vivências particulares, evidenciando o complexo rapport
entre norma e indivíduo, subversão e conformismo, autonomia e assujeitamento.

Tomando os relatos dessas pessoas (transexuais) como referência, analiso as


experiências que contam e são escolhidas para compor o enunciado das suas vivências em
contraposição e|ou reiterando os elementos dos discursos médico e jurídico. Essas narrativas
possibilitam captar, em diferentes momentos da pesquisa, a fluidez de posições e seus
deslocamentos e identificar a especificidade de experiências que não se encontram fixas,
cristalizadas em verdades definitivas.

No processo da construção de uma tecnologia de si, essas pessoas são conduzidas a


um investimento identitário significativo - um novo nome, um corpo modificado – e,
principalmente, a um diagnóstico que dê sentido ao “não senso” de um corpo que parece ter
se equivocado. Perceber as fraturas e deslocamentos é o posicionamento adotado aqui na
tentativa de compreender a vida precária do gênero.

... Qualquer curva de qualquer destino que desfaça o curso de


qualquer certeza183
Carolina se constituiu na interlocutora principal deste trabalho, não apenas pela
disposição em compartilhar sua experiência, mas, sobretudo, pelas particularidades de sua
história, marcada pelo trânsito entre os gêneros. Ao se inscrever no Programa de

182
Inspirado na música: Há uma história triste. Composição de Niquinho e Othon Russo interpretada por Elis
Regina no álbum O Bem do Amor, 1963.
183
Música: Qualquer. Composição de Arnaldo Antunes / Hélder Gonçalves / Manuela Azevedo. Interpretada por
Arnaldo Antunes. CD: Qualquer (Biscoito Fino, 2006)
Vidas que desafiam corpos e sonhos 136

Transgenitalização, ela abriu brechas nos protocolos, pois, no passado, quando era
reconhecida como homem, havia sido casada e tido uma filha, menor de idade quando iniciei
a pesquisa. O ofício de militar, a realização da cirurgia após os quarenta anos de idade, a
autorização para alteração de nome e sexo, os novos documentos e a continuidade do
processo, que não se encerrou aí, são os motivos que transformaram os seus relatos na
urdidura para que outros fios fossem tramados compondo o texto que apresento a seguir.

Estava em Brasília e a primeira visita era, como de costume, à casa de Carolina.


Almoçamos juntas e, pela primeira vez em quatro anos, ela permitiu que a entrevista fosse
gravada.184 Eu estava com a mão edemaciada em função de uma queda, e ela se mostrou
solidária, pois eram comuns os registros de duas, três horas de entrevista anotados à mão em
uma caderneta. No dia seguinte, Carolina me telefonou solicitando que eu a acompanhasse ao
Hospital Militar na consulta agendada para a próxima manhã. Ela chorava muito e me dizia
que, naquela manhã, fora destratada no Hospital ao tentar a marcação de um exame e que
estava receosa de que o novo episódio ocorresse.

Cheguei bem cedo à sua casa, um apartamento funcional na cidade satélite de Brasília,
que foi o cenário de muitas entrevistas, muitas conversas e reflexões que contribuíram de
maneira fundamental na construção desta tese. Enquanto ela terminava de se arrumar, eu
observava as medalhas na parede que testemunhavam uma carreira marcada pelas estratégias
de sobrevivência. Foram 22 anos de serviço militar, trabalhando num universo eminentemente
masculino, Carolina suportou uma vivência no gênero masculino por um período pouco
comum para a maioria das mulheres (transexuais).

Não seria a primeira vez que eu acompanharia Carolina em suas consultas. Ela
colocou a faixa no cabelo da mesma forma com que foi fotografada pela Revista Marie
Claire.185 No carro, ela contou o ocorrido no HRAN (Hospital Regional da Asa Norte) e as
situações de constrangimentos a que foi submetida em função do nome de registro. Eu me
lembrei do pedacinho de papel que muitas vezes a vi entregar para os/as atendentes no qual
estava escrito em letras cursivas, legível, mas em tom de súplica: “por favor, me chame por
Carolina”. Ela parecia mendigar o que era direito. Num dos nossos encontros anteriores, eu

184
Brasília, 7 de maio de 2007.
185
Revista da Editora Globo edição nº. 187 de outubro de 2006. Reportagem intitulada “Como é realmente...”
escrita por Ana Holanda disponível em: http://revistamarieclaire.globo.com/Marieclaire/0,6993,EML1289922-
1740-2,00.html consultada em 05 de maio de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 137

havia dado a ela um exemplar da Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde.186 Eu me sentia
impotente diante da situação e o que consegui fazer foi entregar a caixa de lenços de papel
que havia comprado para ela.

Não era injustificada a sua insegurança, mas fundamentada em episódios anteriores de


recorrentes constrangimentos. Entre os anexos de seu processo na Promotoria de Justiça,
encontrei o relato sobre o episódio de discriminação ocorrido no Hospital Militar – e que
durante aquela manhã foi recuperado com detalhes:

Cumprimentei a atendente da recepção e apresentei a ela o comprovante de


consulta, o meu cartão do hospital e um papelzinho no qual estava escrito
meu nome feminino e solicitei que quando me chamasse para ser atendida
pelo médico, que me chamassem por este nome. (...) O doutor me chamou
“Carolina”, levantei e fui em sua direção e o cumprimentei, mas ele não
respondeu ao cumprimento. De uma forma grosseira e em tom áspero, ele
dirigiu sua fala à minha pessoa. “Quem é este aqui?” Apontando para o meu
nome masculino no prontuário médico. Eu disse “Sou eu”. Ele disse, “e
quem é esse aqui?” apontando para meu nome no papelzinho, e eu disse:
“sou eu”. O médico apontando para o nome no prontuário e em seguida para
o nome no papelzinho, nessa ordem disse: “Eu atendo este aqui, mas não
este aqui”. Mesmo percebendo a agressividade e a falta de respeito do
médico para comigo, eu mantive o bom senso e disse a ele: “Doutor, tudo o
que for documental, receitas, exames etc., o senhor faz como se deve, ou
seja, usa o nome que está registrado no prontuário médico, mas, por respeito
a minha pessoa, o senhor, por favor, me trate no feminino. O doutor me deu
a seguinte resposta: “Você não entendeu! Eu atendo o XXX XXX, mas você
eu não te atendo.187

Carolina conta que, ainda perplexa com a situação, perguntou sobre seu atendimento,
momento em que o médico, indicando com um gesto de mão a saída do consultório, sem olhar
para ela, finalizou dizendo a ela que fosse em casa, trocasse de roupas e assim seria atendida.
O relato minucioso no prontuário, a cópia do relato que ela mantém em casa e o rubor de sua
face quando relembra o episódio dizem do seu significado, que Carolina identifica como
“cicatriz”. Acredito, assim como Butler (2004), que, se não fôssemos seres lingüísticos, a
linguagem não seria capaz de nos ferir ou causar danos. A autora alerta para o fato de
utilizarmos metáforas de dores físicas para traduzir esse dano em algo inteligível, indicando a
dimensão materializada da relação entre corpo e linguagem.

186
Portaria MS n. 675 de 30 de março de 2006 que aprovou a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde e
consolidou os direitos e deveres do exercício de cidadania na saúde em todo o País – e que estabelece no terceiro
princípio a necessidade da existência, em todo documento de identificação do usuário, de um campo para
registrar o nome pelo qual prefere ser chamado, independente do registro civil.
187
Consta no processo que Carolina procurou o diretor do hospital e foi atendida por outro médico no mesmo
dia. No entanto, foi dissuadida de persistir com a queixa contra o primeiro médico que a atendeu sob a
“orientação” de que, num processo, a situação poderia ser revertida contra ela.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 138

El lenguaje preserva el cuerpo pero no de una manera literal trayéndolo a la


vida o alimentándolo, más bien una cierta existencia social del cuerpo se
hace posible gracias a su interpelación en términos de lenguaje. Para
entender esto uno debe imaginarse una escena imposible en la que un cuerpo
al que no le ha sido dada aún una definición social, un cuerpo que es,
estrictamente hablando, inaccesible, se vuelve accesible en el momento en
que nos dirigimos a él, con una llamada o una interpelación que no
“descubre” el cuerpo, sino que lo constituye fundamentalmente. Podríamos
pensar que para que se dirijan a uno, uno debe ser primero reconocible, pero
en este caso la inversión althusseriana de Hegel parece apropiada: la llamada
constituye a un ser dentro del circuito posible de reconocimiento y, en
consecuencia, cuando esta constitución se da fuera de este circuito, ese ser se
convierte en algo abyecto. (2004, p. 21)

No relato de Carolina, o interlocutor a desloca do lugar de pessoa para um status de


figuração, através do não reconhecimento de sua legitimidade. Embora no decorrer do texto
do qual foi retirado este excerto, a autora se contraponha ao conceito de interpelação
desenvolvido por Althusser, nesse momento, a utilização se faz no sentido do
compartilhamento de que é a chamada do outro que inauguraria o reconhecimento do sujeito.
O insulto proferido pelo médico impediu Carolina de ocupar um lugar, através da recusa deste
outro em interpelá-la. Essa recusa do olhar do outro me remeteu à passagem do livro de Toni
Morrison:

Ela ergue os olhos para ele e enxerga o vácuo onde deveria haver
curiosidade. E algo mais. A total ausência de reconhecimento humano – a
vitrificada separação. Não sabe o que mantém o olhar dele suspenso. Talvez
o fato de ser adulto, ou homem, e ela uma menina. Mas ela já viu interesse,
nojo, até raiva em olhos de homens adultos. Ainda assim, esse vácuo não é
novidade para ela. Tem gume; em algum ponto na pálpebra inferior está a
aversão. Ela a tem visto a espreita nos olhos de todos os brancos. Deve ser
por ela a aversão, pela sua negritude. Tudo nela é fluidez e expectativa. Mas
sua negritude é estática e medonha. E é a negritude que explica, que cria o
vácuo afiado pela aversão em olhos de brancos. (2003, p. 52)

Carolina não era percebida em termos de marcas raciais, como no caso do texto acima,
mas com outras marcas corporais, de gênero, as quais faziam com que ela vivesse,
cotidianamente, ao mesmo tempo, o não reconhecimento como pessoa e a dificuldade em
passar despercebida:

(...) Por mais que eu faça alterações no meu corpo, eu jamais vou me sentir
completa, porque eu nasci no sexo biológico masculino, isso é fato. Não vai
mudar, tem as ações dos hormônios, a gente vai fazendo as mudanças que
são possíveis. Se eu pudesse escolher, queria ter nascido pronta: uma mulher
Vidas que desafiam corpos e sonhos 139

biológica.188

É perceptível a atuação do hormônio masculino no corpo de Carolina: a proeminência


de face com a angulação de testa e queixo, o tamanho das mãos e pés. Carolina relata que,
durante a puberdade, a ausência do surgimento dos caracteres sexuais secundários preocupou
os seus pais que a levaram para a capital do Estado a fim de ser examinada por especialistas.
Embora não consiga precisar a data, ela diz dos efeitos da administração de hormônios
masculinos prescritos pelo médico. Ela conta com ressentimento do tratamento imposto,
principalmente das alterações físicas causadas pelo uso do hormônio. Essas mudanças
externas, marcadas pelo surgimento de pêlos e alteração de voz, potencializada pela raspagem
das cordas vocais (sic) - produziram o efeito de “colaborar” para que a natureza encontrasse
seu caminho estabelecido a partir do sexo de nascimento. Ela não culpa seus pais pelo
doloroso tratamento, mas sim ao médico, porque ele saberia o mal que lhe causava, a exemplo
do que pode ser visto no documentário intitulado “Changing Our Minds The Story of Dr.
Evelyn Hooker”189 acerca dos experimentos médicos sobre a homossexualidade.

A experiência de Carolina não se constitui numa situação isolada. Tatiana Lionço


(2006, p. 105) refere-se a casos em que dois dos sujeitos por ela entrevistados foram
submetidos, na adolescência, a tratamentos endocrinológicos por seus corpos (e
performances) não corresponderem às expectativas criadas a partir da genitália existente. O
aspecto comum no relato das entrevistadas é a administração de “hormônios masculinos”
como tratamento para um comportamento interpretado como feminino e, ainda, as pequenas
ou ausentes demonstrações de masculinidades. Destaco os impactos das teorias que buscavam
uma origem biológica para a homossexualidade, mais precisamente, a teoria da influência dos
hormônios na orientação sexual adulta, cuja base explicativa estaria ancorada na insuficiência
hormonal (testosterona) e da qual Gunther Dorner (1968, 1975) foi um dos representantes.
Tais teorias parecem influenciar na prescrição de terapêutica também das entrevistadas.

No caso de Carolina, somada à aparência, à pouca desenvoltura ao andar sobre os


saltos, a uma falta de harmonia no conjunto dos gestos, havia um “jeito de corpo” desejado
que os anos de farda não lhe permitiram incorporar.190 A noção de incorporação que Juliana

188
Carolina, Anotações de Caderno de Campo, Brasília, junho de 2005.
189
Documentário dirigido por Richard Schmiechen, 1992.
190
A pesquisadora denomina de incorporação o aprendizado feito pelo corpo e nele observável. No seu trabalho,
ela estabelece a diferença do uso de incorporação e adota a perspectiva sugerida por Eduardo Viveiros de Castro
(JAYME, 2001, pp. 9-10).
Vidas que desafiam corpos e sonhos 140

Jayme utiliza na sua pesquisa pareceu-me sugestiva para somar ao que Judith Butler chamaria
de repetição estilizada de atos:

El género no debe interpretarse como una identidad estable o un lugar donde


se asiente la capacidad de acción y de donde resulten diversos actos, sino,
más bien, como una identidad débilmente constituida en el tiempo, instituida
en un espacio exterior mediante una repetición estilizada de actos. El efecto
del género se produce mediante la estilización del cuerpo y; por lo tanto,
debe entenderse como la manera mundana en que los diversos tipos de
gestos, movimientos y estilos corporales constituyen la ilusión de un yo con
género constante. Esta formulación aparta la concepción de género de un
modelo sustancial de identidad y la coloca en un terreno que requiere una
concepción del género como temporalidad social constituida. Es
significativo que si el género se instituye mediante actos que son
internamente discontinuos, entonces la apariencia de sustancia es
precisamente eso, una identidad construida, una realización performativa en
la que el público social mundano, incluidos los mismos actores, llega a creer
y a actuar en la modalidad de la creencia (2001, p. 172).

O aprendizado mimético feito pelo corpo que performa e constitui a plasticidade e


transitoriedade do sujeito é um dos caminhos para a compreensão da indissociabilidade do
corpo/mente e corpo/cultura. Ancorada na relação que Miguel do Vale Almeida (1996)
estabelece entre corpo e incorporação, entendo que corpo faz sentido, expressa, atua e
experimenta identidades e diferenças.191

O primeiro local externo à Promotoria e ao Hospital Universitário em que acompanhei


Carolina foi a feira de importados. Em três ocasiões, fomos a essa feira, e ela gentilmente me
ensinava sobre os eletro-eletrônicos. Acompanhamos a chegada de produtos como DVD
portátil, Mp4 e outros. Nessas ocasiões, não observei nenhuma agressão verbal ou física. No
entanto, nós duas percebemos as agressões veladas, que eram constantes. Desde a insistência
do garçom em se reportar somente a mim para anotar os pedidos, passando por um vendedor
que fingiu não ouvir a sua pergunta sobre o preço de um produto. Nessa ocasião, ela desistiu
da compra porque não queria (podia) alterar o tom da voz para que a mesma não se tornasse
ainda mais grave. O silêncio do vendedor silencia Carolina. Compartilho a percepção de
Butler (2004, p.30) no que se refere a considerar que o ato de fala é um ato corporal e se
redobra no momento da fala, atribuindo a existência ao que se diz. Nesse sentido, o silêncio
do vendedor pode ser entendido como um instrumento corporal que enuncia e realiza a
inexistência de Carolina.

191
O autor traduz o termo embodiment por incorporação, aqui adoto essa mesma nomenclatura por entender que
o contexto do trabalho distancia a possibilidade de que o leitor possa associar incorporação com o sentido de um
transe mediúnico, mas reafirma a perspectiva do que se torna material (VALE ALMEIDA, 1996).
Vidas que desafiam corpos e sonhos 141

Durante todas essas situações externas, eu permanecia atenta aos olhares dos outros.
Esses olhares também são flagrados por outra das minhas entrevistadas, Rita:

(...) Eu tenho aprendido nas minhas vivências que o olhar do outro é


múltiplo: Tem aquelas pessoas que não percebem, não percebem mesmo.
Tem outras pessoas que não; elas percebem que tem alguma coisa estranha,
não identificam exatamente o que é; ficam te observando não com olhar de
deboche, é um olhar de curiosidade. E tem aquelas pessoas que percebem e
percebendo tem diferentes posturas: ela vai agredir, enfim ter alguma atitude
negativa que você percebe que ela te identificou.192

Os relatos de Carolina e Rita mostram a percepção de que a vida é cuidada e mantida


diferencialmente, em processos nos quais há uma distribuição desigual de vulnerabilidades.
Apontando para uma das possibilidades de bandeiras de luta dos movimentos gay e lésbico,
que deve ser o questionamento das noções normativas do que deve ser considerado e
protegido como humano.

No Hospital Militar, logo no portão da entrada, repetia-se o olhar. Passamos pela


guarita, lugar onde o documento de identificação deve ser apresentado e, como habitualmente
ocorria conosco, o militar da portaria foi consultado. Todos olharam, dentro e fora da guarita,
trocaram olhares e fomos autorizadas a seguir em frente. Para surpresa de Carolina, naquele
dia, tudo transcorreu sem nenhum atropelo.

Durante os momentos em que ela se dirigia aos guichês de atendimento, eu me


colocava ao alcance de seus olhos, mas também de forma que pudesse observar os
transeuntes. Nosso objetivo era a marcação de exames. Mesmo assim, percorremos cada
corredor de consultórios. Carolina me mostrava cada um dos consultórios. Paramos em frente
à porta identificada como atendimento psicológico. Este foi o local, no hospital, por onde ela
iniciou sua busca pela modificação de sua condição:

Depois dos hormônios masculinos, por causa das mudanças físicas, a parte
emocional também ficou abalada. Eu nunca deixei de ser mulher
internamente, mas deixei a vida para viver o papel masculino. Eu acho que
da forma como fiquei com o engrossamento da voz, a estrutura muscular, o
desenvolvimento da genitália eu achava que não teria mais nenhuma chance
de viver no feminino. Eu passei a viver o papel masculino diante da
sociedade. Mas quando saiu a reportagem de Roberta Close falando sobre a
cirurgia e dizendo que os hospitais brasileiros fariam a cirurgia eu voltei a
pensar... mexeu comigo. Eu comecei a pensar se apesar da minha
constituição física, apesar do prejuízo que eu tive, será que eu deveria
continuar nessa minha vida masculina só para a sociedade ou se eu merecia
uma segunda chance. Apesar de minha forma física. A forma física para

192
Rita, entrevista pessoal, Brasília, maio de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 142

mim é uma grande preocupação. Mesmo que eu fosse uma mulher de voz
grave, ou de uma constituição problemática, eu mereço viver como eu
sempre me vi. Eu precisava dar uma segunda chance para mim.193

Essa nova chance estaria marcada pelos pressupostos dos saberes médicos e jurídicos.
Estar na sala de recepção do hospital era a repetição de um ritual que se instaurou em 1997.
Permanecemos sentadas na sala de espera pelo tempo que Carolina considerou necessário.
Para mim, havíamos terminado a nossa missão194, mas para ela ainda não. Percebi a sua
intenção de rever os colegas do tempo de atividade e ficou por ali, na tentativa de que alguém
parasse para conversar. Um homem aparentando a mesma idade que ela se aproximou; sem
saber ao certo como se dirigir, evitou nomes e artigos, tornando a conversa quase
monossilábica; num instante, eu havia me transformado no alvo da atenção do militar. Afinal,
estávamos entre desconhecidos, pois ele não sabia nada de Carolina, a quem não reconhecia
como sendo o seu colega de destacamento. A conversa foi breve, nos levantamos e voltamos
ao estacionamento do hospital.

Do hospital, ela me convidou para irmos até seu antigo local de trabalho. Embora
estivesse no mesmo espaço geográfico, esta seria a primeira vez que me levaria até a Base.
Passamos em frente à sede da administração, ela me disse: “se lembra quando eu te contei que
fiquei detida quando procurei o Pró-Vida? Que sofri ameaças de prisões? Essa foi a última
vez que estive aqui”.

Ao ser entrevistada na Promotoria Pública para seu ingresso no Programa de


Transgenitalização, Carolina foi questionada sobre o uso de roupas masculinas. Naquela
ocasião, informou ao Promotor que estava sendo ameaçada de prisão e que não poderia usar
vestimentas femininas. Após orientação da Promotoria, concedeu entrevista ao Jornal Correio
Braziliense e se deixou fotografar em trajes femininos.195 No dia seguinte à circulação do
jornal, ela foi chamada à sede administrativa do destacamento militar e permaneceu por seis
horas em uma sala. E ao me contar parecia reatualizar o constrangimento vivido naquela

193
Anotações do Caderno de Campo, maio de 2007.
194
O termo missão foi aqui utilizado pela interlocutora e, no universo militar, serve também para designar uma
incumbência ou tarefa recebida de um superior sobre a qual não se tem muitas informações.
195
A entrevista circulou no Jornal Correio Braziliense, em 19 de Setembro de 2000, e está disponível apenas
para assinantes no seguinte endereço: http://buscacb2.correioweb.com.br/correio/2000/09/19/A10-1909.PDF.pdf.
No entanto, uma reportagem de igual teor, realizada por Cecília Maia, intitulada “Cabo XXX XXXX, mas pode
chamar de XXXXX: No primeiro caso de transexualismo nas Forças Armadas, um cabo da Aeronáutica anuncia
que vai mudar de sexo”, encontra-se disponível no Site da ISTOÉ Gente Online em:
http://www.terra.com.br/istoegente/61/reportagem/rep_luiz_carlos.htm consultado em 18/05/04.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 143

ocasião:

(...) eu cheguei vestida com as roupas masculinas, tive medo. Eles me


disseram que a partir daquele momento, eles não iriam me deter em função
da minha mudança física, mas eu não poderia falar nada sobre ser militar sob
pena de ser enquadrada no regime disciplinar, logo eu, que nunca tive
problemas com disciplina. Mas eu tinha o apoio do Promotor, e no dia
seguinte saiu uma matéria em que ele dizia do apoio que eu tinha do
Ministério Público.196

A exigência de vestir roupas masculinas após o impacto causado por sua visibilidade
remete ao argumento de Eve Sedgwick: “assumir-se não acaba com a relação de ninguém
com o armário, inclusive, de maneira turbulenta, com o armário do outro” (2007, p. 40). A
complexa relação de Carolina com o armário pode ser compreendida quando ela relata o
cotidiano de seu trabalho como militar. O seu projeto de revelação do segredo é radical, pois,
diferentemente das pessoas gays, que, segundo Eve Sedgwick, estabelecem com o armário
uma relação formadora, uma característica fundamental e constante na vida social, no caso de
Carolina, uma vez tendo saído dele, não existiria espaço para retorno. Voltarei a essa
discussão a partir das histórias de outras pessoas (transexuais) que optaram pelo anonimato.
Na história de Carolina, a metáfora do armário recebe um tom especial, essas cores se re-
aparecem em outras histórias, ainda que vividas em espaços geográficos diferentes.

Do armário para a reserva: a fragilidade das normas


Permanecemos no estacionamento, dentro do carro, por aproximadamente duas horas.
Era dali que Carolina revia seu lugar de trabalho, me mostrava cada um dos equipamentos, de
um ofício que se orgulhava de executar. A experiência como militar aproxima Carolina de
Christine Jorgensen integrante do exército estadunidense durante a 2ª Guerra Mundial, que,
em 1952, foi submetida à cirurgia de transgenitalização na Dinamarca, sendo reconhecida
como a primeira (transexual) a realizar o procedimento no mundo (MEYEROWITZ, 2002).
Diferentemente de Christine, Carolina não seguiu carreira no show business e tampouco
escolheu deixar o serviço de militar.

Ela desempenhou uma carreira considerada exemplar. Até a data de sua aposentadoria
por invalidez, foi reconhecida como competente.197 O diagnóstico de transexualismo marcou

196
Anotações de Caderno de Campo, Brasília, dezembro de 2005.
197
Carolina preserva em uma caixa, separadamente, os Boletins onde foram publicados os elogios sobre seu
Vidas que desafiam corpos e sonhos 144

o final da carreira militar de Carolina, conforme parecer emitido por junta médica oficial
através da perícia realizada em fevereiro de 2000:

INCAPAZ DEFINITIVAMENTE PARA O SERVIÇO MILITAR. Não é


inválido. Não está impossibilitado total e permanentemente para qualquer
trabalho. Pode prover os meios para sua subsistência. Pode exercer
atividades civis. Não necessita a hospitalização permanente. Não necessita
de assistência e cuidados permanentes de enfermagem. Não é alienação
mental. (Grifos no original)198

O conjunto de negativas apresentadas no laudo diz, ou supõe dizer, tudo que Carolina
não é, e também tudo que pode exercer no “mundo civil”. O que o texto não explica é o fator
que a tornou incapaz para o serviço militar.

Ao examinar as deliberações do exército estadunidense sobre a homossexualidade,


Butler (2004a) colabora para a compreensão desta questão, apontando para o acesso a uma
cidadania diferenciada para aqueles que estão na condição de militares. Percepção que parece
ser compartilhada pelos militares brasileiros durante o período em que pude acompanhar o
desenrolar do processo judicial, ainda tramitando, em que Carolina reivindica o retorno ao
trabalho e, posteriormente, as suas incansáveis peregrinações pelos órgãos responsáveis pela
emissão do documento de identificação militar. A autorização judicial para alteração do nome
e sexo no assento civil imediatamente provocou um incômodo entre os militares. A sentença
judicial parecia não ter eficácia junto a esse universo. A concessão da nova identidade militar
de Carolina foi marcada por entraves, por solicitação constante de novos documentos e
reencaminhamentos para diferentes órgãos. Todos os procedimentos pareciam orquestrados
para provocar a desistência.

A possibilidade de trânsito, em termos de gênero, é ameaçadora. Nesse sentido, a


análise de Butler (2004a, pp. 185-200) é inspiradora. Segundo a autora, a posição do exército
estadunidense mostra os mecanismos através dos quais a afirmação da homossexualidade
passa a ser considerada um perigo por contaminar a masculinidade, transformando-se em uma
conduta ofensiva. Nesse contexto – compartilhando com Judith Butler de que a regulação
implícita do gênero tem lugar na regulação explícita da sexualidade (2006, p. 84) –, a
transexualidade torna-se impensável na medida em que os militares não parecem distinguir
homossexualidade e transexualidade; o que contribui para compreender o destaque à palavra

desempenho.
198
Anexo do Processo de J.C.S..
Vidas que desafiam corpos e sonhos 145

definitivamente, expressa no parecer do perito.

A visibilidade da transexualidade de Carolina sinaliza para o lugar abjeto que ela


passou a ocupar quando desestabilizou as normas do gênero, materializando no corpo as
idéias de que a biologia não aprisiona o gênero, que gênero está deslocado do sexo e que a
reprodução não sustenta a heterossexualidade. Enfim, essa visibilidade tornou-se ameaçadora
ao evidenciar que as normas militares são insuficientes para a produção de um cidadão militar
masculino. Carolina ainda sonha com o dia em que vestirá a farda militar feminina.

Minha foto, minha vida... Meu segredo e minha revelação...199


A proposta dos pesquisadores Fabiana Bruno e Etienne Saiman, de pensar como as
imagens organizam e constroem uma relação com a memória, inspirou o lugar concedido às
imagens na minha aproximação com os/as interlocutores/as na pesquisa. As fotografias
forneceriam as chaves para que eu pudesse me aproximar deles/as de forma distinta, me
afastando do modelo de entrevistas a que as pessoas (transexuais) já se habituaram. A
proposta seria seguir com elas, através das fotografias, o percurso de suas existências e
biografias: “o que se guarda, se elege e se conserva” (BRUNO e SAIMAN, 2006, p.22).

A negociação do acesso às fotografias, porém, não teve êxito durante a pesquisa de


campo. Embora tenha solicitado as fotografias em vários momentos, e nunca nos primeiros
contatos, meu pedido foi recusado de diferentes maneiras:

“Confio em você, e sei que nossa privacidade será preservada. Entretanto,


quanto às fotos, prefiro não mostrar. Elas só existem por insistência da
minha mãe, porque, se dependesse de mim, destruiria todas”. (Diogo)
“(...) as fotografias não tenho comigo, ficam com minha mãe e não teria
como buscá-las”. (Rita)
“(...) as fotografias? Rasguei todas elas, guardar por quê?” (Carolina)

O trabalho de Mirian L. Moreira Leite (1998) forneceu elementos para pensarmos as


estratégias de esquecimento ligadas à destruição de fotografias do passado e à preservação das
mesmas por parte das mães e de familiares das/dos transexuais. Para a autora, remetendo às
formulações de Jacques Le Goff, a tentação do esquecimento pode ser entendida como uma
estratégia de apaziguamento, um tipo de controle da memória e de organização do que pode

199
Adaptada da Música: Minha vida, minha voz. Interpretada por Caetano Veloso. Compositor Caetano Veloso.
CD: Livro 1997 – Polygram.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 146

ser lembrado e do que deve ser esquecido. As fotografias do passado, e, mais especificamente,
do passado pessoal, podem ameaçar esta tentativa de controle da memória ou do
esquecimento, pois interpelam a memória ao “multiplicá-la, dando-lhe uma precisão e uma
verdade visuais nunca antes atingidas.” (LEITE, 1998, p. 37).

A autora ancora-se nos pressupostos de Proust, para quem a verdadeira memória


escapa aos artifícios da razão, da inteligência e do desejo e aninha-se nos subterrâneos; não se
dá pelo hábito, pela vontade, mas assalta o indivíduo de maneira involuntária e inesperada.
Mirian L. Moreira Leite parte do princípio de que a memória se transmite também por
imagens e que as imagens da memória se assemelham às imagens fotográficas. Para ela, as
lembranças do passado voltam como imagem fotográfica e não como imagem em movimento.
O ato de destruir fotografias do passado pode ser compreendido como uma tentativa de
eliminar uma forma específica e ameaçadora de memória, que involuntariamente irrompe do
passado e pode, de certa forma, despertar ressentimentos pela posição tida como imerecida.

Para a autora, os álbuns e retratos de família funcionam como “metáforas do tempo


nas fisionomias, nos corpos, nas atitudes, nas palavras, no ritmo e nas significações que o
Temps Retrouvé assinala e aprofunda (...)” (LEITE, 1998, p. 38). Assim as fotografias de
infância e/ou adolescência trazem de volta uma memória, introduzindo o passado no presente
e ameaçando a construção desejada. Essas imagens colocam um risco para o corpo, a postura,
os desejos e os sentimentos agora assumidos e perseguidos ao obrigar a reconhecer que se
habita um lugar em construção.

Analisando o jornal La Lumière (1851-1867) – primeira publicação francesa dedicada


à fotografia –, Etienne Saiman discute o encantamento que esta possibilidade técnica
despertou nos antropólogos-naturalistas e destaca o caráter indicial que marca sua aparição.

A fotografia, na época, não é somente a “representação fiel” da realidade. Ela oferece,


ou melhor, “fornece” a realidade em toda sua nudez (“a realidade toda nua”, diz Serres). Essa
mística da transparência e da objetividade que a cerca vai mais longe ainda. A fotografia é, no
sentido pleno da palavra, uma “revelação”. (2001, p. 105)

Essa percepção inicial da fotografia como capaz de produzir descobertas sobre o


mundo parece ser ainda hoje um aspecto significativo que se atribui a ela, como foi discutido
no capítulo anterior sobre o uso das imagens nos processos. A experiência de ter sido
fotografada em contextos permeados por um imaginário que estabelece a fotografia como a
expressão do real sugere, para Danielle, que eu poderia estar em busca de uma verdade
Vidas que desafiam corpos e sonhos 147

escondida no seu passado. Para ela, as fotografias reproduziriam as provas de um relato sobre
a infância, testemunhos de uma vivência relatada tantas outras vezes em entrevistas e
consultas com os profissionais: “Posso sim mostrar as fotos para você. Tenho uma em que
você perceberá como é verdadeiro o que falo, a imagem de uma menina fica evidente na foto,
e criança não sabe mentir, nem imaginava o que acontecia comigo”.200

O acesso às fotografias ou o convite para visitá-la em sua casa fora sempre postergado.
Até que, em outubro de 2007, convidou-me a ir a sua casa. Já tinha transcorrido parte de
nossa entrevista, quando me levou até seu quarto para mostrar as fotografias dos pais e avós já
falecidos dizendo “estes são meus mortos”. A fotografia em preto e branco ficava
dependurada na parede lateral à cama. Era o registro do casamento de seus pais e ela falava
com admiração do avô que havia “mudado de nome para mudar de vida”. Tentei compreender
melhor em que teria consistido essa mudança, mas ela se mostrou reticente e retornamos para
a sala. Pude observar que havia, ao lado daquela, uma outra fotografia, agora de crianças,
provavelmente ela ali estaria, pois se pareciam com as irmãs, que eu acabara de conhecer.
Retornamos à sala e ela me mostrou as fotografias expostas sobre a estante, fotos de seu
sobrinho, que ela chama de filho por vezes, e três fotos suas aos 20, 24 e 26 anos. Aqui ela se
apresenta para mim: “essa sou eu”. Nenhuma fotografia de sua infância ou adolescência,
mesmo diante de minha pergunta sobre a fotografia que havia visto na parede do quarto. A
conversa sobre fotos se encerrou com uma negativa.

Também Carolina se mostrava incomodada quanto eu perguntava sobre os álbuns de


fotografias da família. Ela respondia em tom evasivo que não tinha fotografias porque nada
significavam. Paradoxalmente, a máquina fotográfica foi uma presença constante durante a
semana em que estive hospedada na casa de Carolina, em outubro de 2007 e, sempre que
saíamos de casa, lá estava Carolina com a sua máquina a tira-colo. Durante todo o percurso da
pesquisa, fui cuidadosa em relação a evitar o registro fotográfico. Num primeiro momento,
esse cuidado se deu em função das experiências destas pessoas durante os exames no IML,
relatadas anteriormente, e também porque muitas pessoas solicitavam não serem
identificadas. Considerando que as fotografias não seriam elementos imprescindíveis para as
análises201, decidi que não as empregaria como recurso ilustrativo, incorrendo no risco de
transformar minhas/meus interlocutoras/es em objeto exótico. No entanto, em duas situações

200
Danielle, entrevista gravada em Goiânia durante o XIII Entlaids.
201
A utilização das fotografias como constitutivas das pesquisas etnográficas requer um tratamento teórico-
metodológico que exigiria uma discussão sobre imagem, memória e registro para qual não me percebo
preparada.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 148

específicas, os pedidos para me fotografar gerariam um incômodo:

No primeiro dia de “nada para fazer” em Brasília, paramos na Igreja São


Judas Tadeu (a religião é um aspecto constitutivo da subjetividade de
Carolina) e ela solicitou que eu posasse para uma fotografia no interior da
mesma. Fiquei gelada com seu pedido. A primeira questão foi ‘o que vou
dizer para Adriana e Mariza?’ Ser deslocada do lugar daquela que deveria
registrar e passar ao de ser registrada? Em seguida, me veio a metáfora da
saia justa, tão bem colocada por Alinne Bonetti e Soraya Fleischer (2007)
por fim pensei em omitir esse fato. Afinal, se for apenas um detalhe ocorrido
no campo? Atendi ao seu pedido e continuamos nossa agenda que incluiu
uma visita à feira de importados.202

No dia de meu regresso, outro pedido para nova fotografia trazia de volta a questão
que ficaria esquecida no caderno de campo. Essa nota do caderno de campo somente adquiriu
sentido quando, no momento da elaboração deste texto, em que o ato de escrever e o ato de
pensar são solidários, a nota do Caderno de Campo promoveu uma ligação entre o estar lá e
a construção do texto (OLIVEIRA, 1996, p. 31). Com seu pedido para me fotografar,
Carolina me dizia que não são todas as fotografias que não representam, ou que representam o
não desejado. Isto é, o significado da fotografia não é fixo. O que hoje é uma lembrança
agradável pode amanhã ser algo a ser esquecido. Durante a pesquisa, foram comuns os relatos
sobre a destruição das fotografias, na sua maioria, queimadas ou rasgadas. Esses relatos
expressam o intenso desejo de esquecer o passado. Queimar e\ou rasgar não é simplesmente
jogar fora. É o gesto de destruir que faz transbordar o sentido do desejo e explicita a
intencionalidade de apagamento de uma história, considerando que os vestígios (cinzas ou
pedacinhos de papéis) não deixam pistas. Nos términos das relações afetivas, freqüentemente,
as fotografias que antes representavam os casais são recortadas de forma que o “outro” seja
arrancado da cena. Nesse procedimento permanecem os vestígios, a lembrança dos eventos
capazes de acionar novamente a cena, o outro permanece na ausência. No entanto, ao destruir
as fotografias, as entrevistadas acionaram o esquecimento. O desejo do apagamento do
passado marcou uma parte das recusas de participação nesta pesquisa.

As tentativas frustradas de entrevistar as mulheres (transexuais) que passaram pelo


processo cirúrgico após o ingresso no Programa de Transgenitalização também estão
informadas por este desejo de “esquecimento” do passado. A primeira tentativa ocorreu após
o contato telefônico com uma das possíveis entrevistadas, que reside no interior de Minas
Gerais, numa distância aproximada de 660 km do local de minha residência. Tendo acertado a

202
Anotações do Caderno de Campo, Brasília, 09/10/2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 149

entrevista, no dia e horário combinados estava lá para o que deveria ser a primeira entrevista.
No entanto, ela não compareceu e eu retornei, sem entrevista. Considerando que seria difícil,
mas não necessariamente impossível, retomei os contatos posteriormente, mas sem sucesso
para agendar nova entrevista, apesar da solicitude com que me respondia ao telefone. A outra
mulher (transexual) que também se submeteu ao processo cirúrgico após o ingresso no
Programa de Transgenitalização, contatada por telefone, se recusou a participar da pesquisa,
alegando desejar que sua transexualidade fosse esquecida. Completando o grupo das três
interlocutoras que realizaram o procedimento cirúrgico a partir do Programa de
Transgenitalização, mas dispondo de recursos próprios, com a primeira inscrita nem sequer
foi estabelecido o contato por determinação do Promotor de Justiça. Inicialmente, este
informou que essa pessoa já vivia e era reconhecida como mulher sem que as pessoas
soubessem de seu passado e, portanto, não permitiria o acesso a ela.

Um indício significativo do lugar que o desejo do esquecimento ocupa nas histórias


dessas pessoas é a compreensão da cirurgia como outro nascimento, como pode ser
identificado nos fragmentos abaixo:

Não vou ficar descrevendo sobre o passado, pois nasci (pela segunda vez)
aos 18 dias de Dezembro de 1998, aos 31 anos, já sabendo cozinhar, lavar,
passar, bordar, ser “Amélia” e amante, quando então “faleceu”
definitivamente meu irmão gêmeo, que coabitava o corpo, que hoje é
somente meu.203
Minha mãe estava ao meu lado no dia da cirurgia, ela estava feliz e dizia que
esteve presente nos meus dois nascimentos e eu disse: “não, nascimento foi
apenas este, o primeiro foi um parto”.204

Thaísa ingressou no Programa de Transgenitalização já tendo realizado a cirurgia no


exterior. A sua solicitação seria de alteração de nome e sexo e, através do Promotor, fui
informada que a sentença havia sido favorável à solicitação dela. Entrei em contato por
telefone em junho de 2007, pois o número inicialmente fornecido ao Pró-vida havia sido
modificado e somente através da Promotoria (e o novo processo) tive acesso ao atual número.
Inicialmente, mostrou-se disposta a colaborar, no entanto, quando retornei a Brasília e retomei

203
Depoimento disponibilizado no site Transexual, gerenciado pelo Programa de Transgenitalização de São José
do Rio Preto. Disponível em www.transexual.com.br capturado em 23/02/2002. Posteriormente, entrevistei a
autora deste depoimento que foi a primeira mulher (transexual) a ser submetida ao processo cirúrgico por esta
equipe e, na ocasião da entrevista, reiterou a afirmação acima além de outras contribuições que serão pontuadas
ainda neste capítulo.
204
Anotação de Caderno de Campo do fragmento da fala proferida durante mesa: A Cirurgia de Readequação
Sexual (SRS) realizada no XIV Entlaids em 28/06/2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 150

o contato, ela foi enfática em recusar: “Está tudo tão bem, tão gostoso na minha vida, não
quero tocar no assunto, não quero relembrar”.205

O dilema da revelação da condição anterior à cirurgia está presente também entre as


mulheres (transexuais) que colaboraram na pesquisa de Jaqueline Pinto (2008, p. 140). A
justificativa do encobrimento do segredo para evitar constrangimento anuncia que a
modificação corporal opera uma transformação morfológica, mas o reconhecimento social
exige negociação. O segredo e o ocultamento do passado são estratégias que envolvem um
esquecimento de si, um desejo de apagamento de sua história, porque pode a qualquer
momento denunciar o “engano”.

Existem aquelas pessoas que nunca passarão despercebidas, Roberta Close é uma
mulher, é reconhecida como mulher, mas deixou uma história que denuncia seu passado.
Carolina conseguiu um conjunto de mudanças, mas no corpo dela ficaram as marcas que
denunciam o passado. Nunca haverá alguém para quem o passado pode ser totalmente
apagado.206

Na biografia de Roberta Close, é possível perceber essa desconfiança, quando ela


revela que se casou sem que seu companheiro soubesse de sua condição anterior, justificando
a manutenção do segredo porque: “Tive muito medo de ele ficar procurando o passado em
mim. Acordar à noite e ficar me observando” (RITO, 1998, p. 27). A autora não especifica
quais são os indícios, em suas palavras, relacionadas ao masculino, que não estariam
suficientemente controlados durante o sono e poderiam denunciar o passado. Percebo que
existe uma preocupação recorrente com o apagamento de tudo aquilo que pode ser indicativo
do masculino norteada pelo estabelecimento de uma fronteira rígida entre o masculino e o
feminino, como se todo o projeto de tornar-se mulher pudesse ser contaminado pelo passado
(masculino) até mesmo pelo ato de lembrar.

Ao negar (ou ocultar) o trânsito através das fronteiras, essas mulheres (transexuais)
parecem reafirmar a mesma lógica binária que encarcera os corpos-sexuados. Contudo, o
medo da revelação do masculino aponta para a instabilidade das categorias
masculino/feminino. Em alguns casos, elas aceitam esse trânsito. Priscilla percebe que ele
pode não ser um prejuízo. Para ela, só é possível existir admitindo a coexistência do feminino
e do masculino, que performariam uma ambigüidade não situada no corpo visível, mas

205
Anotações de Caderno de Campo, Brasília, 09 de outubro de 2007.
206
Rita, entrevista pessoal, Brasília, maio de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 151

incorporada:

Eu sou uma mulher, mas com uma condição diferente. Eu sou sim uma
mulher transexual, não gosto muito desse nome, mas é o que tem disponivel.
(...) Se o cara for fazer parte de meu dia a dia eu vou dizer sim. Eu vou
contar porque eu sou diferente sim, sou uma mulher, não tenho dúvida. Faz
parte de minha história e eu não posso deletar meu passado. (...) Eu me
sentiria mais relaxada, tenho meu histórico. Eu tive uma vivência, eu sou
diferente sim, até a minha pegada é diferente. Tem muitas atitudes de mulher
biológica que eu não tenho e não quero ter nunca. Não quero para mim. O
meu corpo é diferente, tem marcas, até meu abraço é diferente, mais forte,
sei lá...207

A divulgação da publicação da sentença judicial com a alteração de seu nome e sexo


gerou incômodo porque a reportagem foi veiculada no jornal local e na internet com detalhes
de residência, nome por extenso, profissão. O segredo de Priscilla não está relacionado ao
companheiro, mas à família dele.

Eu sempre me preservei, a família de meu marido não sabe sobre mim e eu


não quero que saiba. Se ele quiser falar tudo bem, mas não serei eu que vou
reunir os irmãos dele para falar. (...) E ele, no momento não quer contar, não
quer que eu apareça para não dá o que falar.

Retomo aqui a discussão de Eve Sedgwick (2007, p. 22), para quem “Mesmo num
nível individual, até entre as pessoas mais assumidamente gays há pouquíssimas que não
estejam no armário com alguém que seja pessoal, econômica ou institucionalmente
importante para elas.” Para a autora, a elasticidade da norma heterosexual é responsável pela
construção e manutenção das paredes que atualizam os diferentes armários cotidianamente, é
uma relação que não se esgota no binômio público/privado; revelar/esconder. Para as pessoas
(transexuais) esta relação com o segredo também é negociada cotidianamente, mesmo após a
cirurgia.

Do universo inicial de pesquisa, Diogo foi o único homem (transexual) que consegui
acessar, apesar de seu desejo manifesto de esquecer e ser esquecido. Esquecer o passado é
uma preocupação para ele, principalmente agora que seu nome e sexo foram alterados no
registro civil. A entrevista com Diogo foi mediada por Carolina que, após o almoço em sua
casa, telefonou para ele e pediu que falasse comigo. A sugestão de que a entrevista
transcorresse no pátio da Universidade partiu do entrevistado. Combinamos num local de fácil
acesso e, no horário acertado, lá estávamos. Já havíamos conversado, na Promotoria de

207
Priscilla, entrevista pessoal, Brasília, outubro de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 152

Justiça, na ocasião da assinatura do termo de consentimento, mas este foi efetivamente nosso
primeiro encontro. Não utilizei equipamento para registro da entrevista. Para mim, a sua
participação espontânea acenava para a possibilidade de uma interlocução não mediada pela
necessidade de responder a um script.208

Na manhã do encontro, eu havia ido ao IML, Diogo se mostrou interessado nessa


experiência. Sorriu diante do relato de minha passagem pela “ala dos mortos” e, aos poucos, a
conversa se desenrolou. O exame no IML foi, em poucas palavras, definido como sendo a
etapa mais difícil de todo o processo vivido, a mais marcante. A dimensão dessa pode ser
compreendida no decorrer da entrevista, quando pergunto a ele se saberia identificar os
elementos mais chocantes do filme “Meninos não Choram”.209 A cena escolhida é aquela em
que Brandon é violentamente despido no banheiro e sua namorada colocada de joelhos, à sua
frente, e obrigada a ver sua vagina. A cena recortada por Diogo dialoga com o seu medo de
ser visto pelo outro, a descoberta do seu segredo, o medo de ser reconhecido a partir do que
esconde. Outros entrevistados também se reportaram a esse filme para dizer de suas
experiências. Diogo aponta para a eficácia dos filmes em termos da construção da
subjetividade, quando me diz que “foi maravilhoso ver na tela estampado os sentimentos e
medos que tinha”. O alcance da produção de filmes para abordar os temas clássicos dos
relacionamentos humanos foi considerado por Karla Bessa. Para a autora, “tristeza, lidar com
perdas e frustrações, disputas e rivalidades, lutas amorosas, paqueras e conquistas. Ao
“montar” a cena, produz-se e descreve-se uma territorialidade afetiva e política” (2007, p.
262).

Apesar de, no corpo, ainda ser recorrente a lembrança de seu nascimento em outra
posição, ele me diz da insegurança de ter um relacionamento afetivo-sexual em que todo o
passado teria que ser revelado, mas não é a ausência do pênis que surge como a preocupação
central. “Ainda fico inseguro de levar uma namorada na minha casa, acredito que meus pais
olhariam como se fosse uma relação lésbica, isso é difícil para mim”.210

O teor da preocupação de Diogo é reiterado no fragmento abaixo, extraído de um e-


mail no qual respondia sobre a possibilidade de entrevistar sua família:

Apesar da neutralidade da minha família, creio que até agiriam de bom grado
se eu pedisse para contribuírem na entrevista, apesar do constrangimento

208
Anotação de Caderno de Campo, Brasília, maio de 2007.
209
Título Original: Boys Don't Cry, EUA/|1999. Direção de Kimberly Pierce.
210
Diogo, entrevista pessoal, maio de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 153

velado que percebo às vezes. Entretanto, espero que compreenda que, agora
que finalmente estou na reta final para regularizar minha situação, prefiro
que esqueçam o meu passado, que não é dos melhores a ser lembrado. Como
eu comentei com você anteriormente, acho que eles ainda não me vêem
como XXX, e falar do meu passado só vai piorar isso.211

Para Diogo, seu reconhecimento como homem passa pelo convencimento de sua
família. Não percebo aqui a preocupação com a homossexualidade como uma questão fóbica,
mas relacionada ao sucesso\fracasso de um projeto identitário. Para Diogo, ser considerado
como lésbica era um problema porque essa percepção o re-conduziria à posição de mulher,
da qual se havia deslocado e não se reconhecia.212 O receio desses interlocutores encontra
ressonância em fatos concretos, como relata Susan Clayton (2004) no artigo intitulado “O
hábito faz o marido?”. Ela analisa a repercussão do caso de James Allen213, um homem
(transexual), e deixa pistas sobre a prevalência dada ao sexo biológico para indicar uma
verdade sobre os sujeitos que se construiu a partir do final do século XVIII e se tornou
hegemônica no século XX (LAQUEUR, 2001). Observando os desafios enfrentados pelos
homens (transexuais) na caminhada do construir-se outro, eu parafrasearia o título do artigo
perguntando: “A biologia desfaz esse marido?”.

Um inatingível senso de si...

Dificilmente os militares contemporâneos de Carolina compreenderiam que toda


aquela aparente subversão não representa o deslizamento entre sexo, gênero e sexualidade, e,
sim, trazia no seu avesso a reivindicação da coerência e a afirmação das normas de gênero. O
discurso de Carolina, naquele momento, reiterava as formulações do pensamento “ocidental”
contemporâneo relativas a uma sexualidade fundada em dois sexos opostos e condutas e
comportamentos erguidos sobre a base de uma polaridade biológica. No seu caso, a cirurgia
de transgenitalização traria a verdade a um corpo que foi “enganado” pela natureza.

Inicialmente, as posturas de Carolina eram apontadas como o modelo ideal da


transexualidade e, mesmo no grupo, provocavam inquietações:

211
Diogo, fragmento de correio eletrônico, junho, 2007.
212
Diogo, entrevista pessoal, Brasília, maio de 2007.
213
James Allen viveu como homem e somente depois de sua morte, em 1829, a partir da constatação médica,
tem sua condição biológica identificada e seu casamento, até então interpretado dentro do marco da matriz
heterossexual, passa a ser questionado e sua vida esquadrinhada. Sua companheira passa a ser lida através da
acusação de uma relação lésbica.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 154

Carolina parecia ter saído do livro de medicina, o comportamento dela


causava um medo enorme em mim... Eu não sou assim, tinha muito medo de
que me comparassem com ela, outras no grupo também pensavam assim,
tinham medo de não corresponderem ao modelo...214

O posicionamento dessa entrevistada parece exemplificar a percepção de Josefina


Fernández sobre a cirurgia como estratégia que recuperaria os princípios euro-americanos de
gênero. A idéia é que ela reconduz as pessoas (transexuais) ao status de que “solamente hay
dos sexos, determinados por los genitales e inviolables” (FERNÁNDEZ, 2004, p. 47).

Ao colocar em dúvida, neste momento, o potencial desestabilizador da


transexualidade, não tenho a intenção de concordar com o modelo de referência que as
mulheres (transexuais) tomam como base para a elaboração de suas identidades: um modelo
hegemônico do feminino marcado pelo binarismo de gênero. Também o modelo dos homens
(transexuais) reafirmaria os marcadores convencionais do masculino, e por isso a
transexualidade apenas reforçaria a divisão binária do sistema sexo/gênero. Apenas marco que
esta também é uma posição que se desloca durante a pesquisa.

A permanência no campo me impediu considerar as práticas presentes no cotidiano de


Carolina como simples reproduções das normas de gênero. No entanto, tampouco é possível
remetê-las à posição oposta, que atribui à transexualidade uma autonomia quando estabelece
seu caráter naturalmente transgressor.

Ao exemplificar o conceito de performatividade através da paródia da drag215,


Judith Butler parece construir um ponto de inquietações na teoria que, naquele momento, está
em sua fase inicial – e foi necessário para compreender o que pode ser lido como transgressão
ou reiteração na transexualidade. Foram as diferentes experiências no campo que me

214
Danielle, entrevista pessoal, anotações do caderno de campo, Brasília, novembro de 2005.
215
Gender Trouble (1990) pode ser considerado como o primeiro trabalho de impacto desta autora que,
juntamente com o livro Eve Sedgwick, A Epistemologia do Armário (1990), constituíram um marco no campo
dos estudos queer. Entendo que a metáfora utilizada pela autora objetivava desnaturalizar os gêneros
demonstrando a possibilidade de aprendizado e imitação dos mesmos. Posteriormente, a autora em Bodies that
Matter (1994) analisa o jogo de gênero das travestis esclarecendo - o que considerou como equívocos de
interpretação de sua teoria – que performatividade não estava associada à idéia de uma representação de papel
de gênero e nem a paródia se relacionaria ao binário real/imitação. Performatividade novamente será apresentada
como a reiteração de normas que são anteriores ao agente, e que constituem efeitos de real ou natural em função
de reiterarem práticas já reguladas, normas ou um conjunto delas, um conjunto de imposições que criam
artificialmente o “natural”. Em Undoing Gender (2004), serão as experiências das pessoas transexuais e
intersexuais que trarão elementos para sua reflexão que incorpora as críticas e refina os argumentos que
inicialmente foram colocados a partir da experiência da drag estadunidense, principalmente ao incorporar as
possibilidades da tecnologia em reconstruir um lugar para a natureza no realinhamento dos corpos/gêneros e
desejos.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 155

possibilitaram compreender a afirmação proposta por Berenice Bento (2003, p. 110), de que
mesmo na reivindicação da cirurgia, no apelo das normas, a transexualidade possui um
potencial desestabilizador. Essa perspectiva é compartilhada por Elisabetta Ruspini (2008, p.
86), para quem a transexualidade é um desafio quando nos distanciamos da explicação
reducionista de serem pessoas presas num corpo equivocado e compreendemos que são
pessoas que combinam os conceitos de masculino e feminino experimentando em graus
diferenciados o “nomadismo”, a hibridação, a contaminação entre o ser homem e ser mulher.

Considerando que o processo de subjetivação é um movimento incessante, no qual, na


sua singularidade somática, o indivíduo se faz sujeito e é assujeitado no sistema discursivo,
Elisa Arfini (2008) compreende que as normas de gênero representam ao mesmo tempo a
possibilidade de liberdade e o encarceramento do desejo. Essa formulação faz sentido,
considerando as percepções das pessoas entrevistadas. Foram comuns os relatos em que a
descoberta do termo “transexualismo” ou “transexual” foi importante para nomear
sentimentos que até então pareciam não ter lugar.

Antes disso eu me considerava louco, eu achava que eu era louco... Porque


eu não me adequava no corpo que eu tinha, me achava horrível e não me
afirmava... eu queria morrer, eu tinha muita dificuldade na minha aceitação
interna e por fora eu sempre fui muito palhaço, mais alegre porque eu sentia
que assim eu poderia ser mais aceito. (...) Na quinta série, eu tenho esse
amigo até hoje e nós fomos a uma festinha. Eu disse para ele que era
transexual sem mesmo conhecer o que era isso. Estávamos num baile e eu
disse “Cara, eu sou um cara preso num corpo de uma menina” e ele disse:
“eu sei, eu sei”. A gente tinha 10, 11 anos, eu sempre soube quem eu sou,
mas essa coisa da nomenclatura foi depois... Eu já tinha ouvido falar de
transexualidade, mas bem pouquinho, aquela coisa assim... Roberta Close...
Não pensava que não existia o caso contrário que era o meu (...) Quando eu
descobri... Eu gosto de mídia rápida, então eu devorei a internet. E quando
assisti “Meninos não choram”216 foi um impacto... Um choque, fiquei até o
final, mas parecia que eu tinha tomado uma surra, eu chorei por uma
semana. Parecia que tudo havia saído de dentro de mim, eu já sabia que eu
era transexual, mas ver num filme é outra coisa, fizeram o roteiro de minha
vida e não me contaram. Eu fiquei sabendo, mas não sabia o que fazer com
isso... Fui para internet.... Achei a página de um homem transexual e foi com
ele através dele que me informei, com ele descobri o tratamento. Tudo fez
sentido, então eu decidi contar para meus pais, mas usar o filme “Meninos
não choram” não daria. Então escolhi outro, uma amiga me indicou “Minha
vida em cor de rosa” um filme super inocente, mas mostra uma criança.
Então eu disse “pai e mãe, é muito sério. Preciso mostrar uma coisa e
coloquei o filme.” Quando o filme acabou eu fiquei em silêncio, estava
nervosíssimo, não tinha certeza do que aconteceria, se eles me expulsariam
de casa, eu não sabia, eu tinha dado o pior desgosto da vida deles. Eu achava
que eu era louco, não me adequava, eu me achava um estorvo, envergonhava
a minha mãe que sempre tinha que se justificar para as pessoas. Minha mãe

216
O mesmo citado por Diogo.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 156

começou a chorar e pedir desculpas (...). A aceitação na família foi


tranqüila.217

Buscar uma explicação capaz de dar sentido à sua experiência parece ser um
movimento que reverbera no discurso de todas/os os/as interlocutores. O termo
transexualismo é o ato lingüístico, um enunciado médico que valida e constitui o sujeito
transexual. O reconhecimento de compartilhar e nomear experiências foi também significativo
para Laura: “Eu, no entanto, começava a não me sentir mais sozinha, em qualquer parte do
mundo tinha alguém como eu”.218 No entanto, Elisa Arfini (2008) analisando a autobiografia
de pessoas (transexuais) problematiza o que considera como a construção de um nova verdade
essencializada sobre a transexualidade, agora não mais ancorada na biologia, mas deslocada
para o sentimento: “sentir-se presa/o no corpo errado” passou a ser considerado o locus
privilegiado onde reside a verdade do corpo. Para a autora, a proposta de uma percepção da
transexualidade como algo a que o sujeito deve se conformar em razão de um sentimento sob
o qual não tem nenhum controle nem autoridade resultaria em sujeitos politicamente frágeis.
Nessa perspectiva, considerar o sentimento como um dado pré-discursivo seria reconhecer
que o gênero reside em um lugar imune ao social. Nas palavras da autora:

Se il sentimento è un dato pré-sociale, può diventare il significante di


qualunque verità, la verità, però, è un regime di conoscenza prodotto
dall’apparato discorsivo che ci rende soggetti. I corpi sono il prodotto di uma
storia sedimentata che non viene mai ricapitolata nella sensazione
immediata, tuttavia, il passato del corpo non scompare nella percezione,
anzi, è proprio ciò che rende possibile la percezione stessa. Se “costruzione
sociale” non equivale a “superfluo”, allora “senso de sè” non equivale a
“naturale”. (ARFINI, 2008, p. 286)

As reflexões de Elisa Arfini estão afinadas com a percepção de Judith Butler, para
quem “os discursos, na verdade, habitam corpos. Eles se acomodam em corpos; os corpos na
verdade carregam discursos como parte de seu próprio sangue. E ninguém pode sobreviver
sem, de alguma forma, ser carregado pelo discurso” (BUTLER, 2002, p. 163).
Compreendendo que as normas de gênero regulam o reconhecimento e não contemplam a
existência e a narratividade das pessoas (transexuais) – supostamente fora da esfera do
discurso - estas estariam relegadas à loucura ou à mentira:

217
Ricardo, entrevista pessoal, São Paulo, junho de 2007.
218
Laura, entrevista pessoal, Brasília, Consulta Nacional sobre DST’s/Aids, Direitos Humanos e Prostituição,
fevereiro de 2008.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 157

(...) Com tempo, o que é mais fácil de esconder (ou talvez menos
perceptível) aos 13 anos, se torna mais difícil aos 16,17 anos, quando os
outros começam a cobrar mais masculinidade dos rapazes. Esse foi o meu
caso, não conseguia me adaptar ao sistema e me integrar a ele se tornava
cada vez mais difícil. Orava [....] para que me ajudasse a resolver minhas
depressões e me ajudasse a mudar meu jeito de ser. Não conseguia
simplesmente mudar meu modo de agir. Era muito difícil. A idéia do
celibato nem não era tão assustadora quanto o fato de ser torturada todos os
dias tentando agir de um modo que não era o meu real. Sentia que minha
vida era uma fraude. Uma grande mentira.219

Durante o período pós-operatório, eu não estive na casa de Carolina, ocasião em que


poderia ter conhecido as suas irmãs que residem no interior de Goiás. No entanto, ela não me
autorizou e entendi este como limite para nossa relação. Após três meses da realização da
cirurgia, era explícita a centralidade desta experiência, e, principalmente, da vagina, nesse
encontro. A felicidade de Carolina era inegável, ela me abraçou chorando e depois de algum
tempo me contou o que considera suas primeiras interpretações sobre a busca para
compreender o que se passava com ela:

(...) a gente criava animais, galinhas, patos e até porcos. Eles capavam os
porquinhos quando chegavam ao chiqueiro. Eu ouvia o meu avô
conversando com meu pai e dizia que o porco quando capado ficava igual
fêmea. Aquilo me perturbava, eu ficava assim sem entender... Perguntava ao
meu avô se o porco criaria uma perereca e ficaria igual a uma porca. E ele
não gostava de responder, dizia que era uma pergunta indecente. Então eu
ficava acompanhado o crescimento do porco e observando se ia nascer a
pererequinha. Assim, no meu caso eu ficava imaginando que poderia
acontecer comigo, que minha genitália iria se transformar numa vagina.220

No diálogo com os textos freudianos sobre a constituição do falo, Judith Butler


argumenta sobre as possibilidades através das quais construímos as idéias sobre nosso próprio
corpo.

Si de algún modo las prohibiciones constituyen las morfologías proyectadas,


reelaborar los términos de tales prohibiciones sugiere la posibilidad de
proyecciones variables, modos variables de delinear y teatralizar las
superficies del cuerpo. Serían estas “ideas” sustentadoras estén reguladas por
la prohibición y el dolor, pueden entenderse como efectos impuestos y
materializados del poder regulador. (2005, p. 105)

Essas proibições nem sempre resultam numa acomodação às normas, numa obediência

219
Laura, entrevista pessoal, Brasília, fevereiro de 2008.
220
Carolina, entrevista pessoal, Brasília, agosto de 2005.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 158

à morfologia. Seus efeitos escapam, construindo superfícies corporais variáveis.


Considerando que as descrições do corpo se produzem nessa relação, os contornos corporais e
a morfologia não apenas se constroem a partir de uma tensão, eles são a própria tensão entre o
psíquico e o material. São muitos os fragmentos das entrevistas em que essa tensão se
explicita, como por exemplo, a ausência do pênis para Ricardo não era o elemento em
questão, mas sim encontrar uma forma legítima de materializar esse corpo:

(...) fui ao banheiro dos meninos, é claro. E fiquei feliz ao perceber que um
amiguinho também fazia xixi sentado. Ele respondeu: operei a fimose.
Pronto. Era a explicação que me faltava. Cheguei em casa dizendo que havia
operado a fimose. Minha mãe queria morrer (risos).221

A busca da cirurgia de Carolina pode ser compreendida como uma das condições para
tornar seu corpo inteligível. A metáfora da mente aprisionada no corpo equivocado, utilizada
pelo discurso médico/psi sobre a transexualidade, constituiu-se como um significativo efeito
de verdade, mesmo que a cirurgia seja compreendida pelos operadores da medicina psi e
judiciário como uma operação simplista de adequar o corpo à mente como forma de atribuir
coerência ao sujeito. Importa pensar que, nessa percepção, a psique seria a chave para atribuir
sentido a um corpo cuja materialidade é inquestionável, a despeito das divergências
principalmente entre as ciências psi e a neuro-endocrinologia sobre a origem da
transexualidade, em todas as explicações, a mente seria a chave através da qual se acessaria a
representação do corpo. Corpo e mente estáticos e hermeticamente guardados em locais
distintos.

Compartilho com Tatiana Lionço (2006) a idéia de que a cirurgia de transgenitalização


é um modo de se apresentar no mundo e não deve ser interpretada como a única possibilidade
de legitimidade. Entretanto, a importância da cirurgia é inquestionável. Ela chega a ter um
lugar hiperbólico nas experiências de diversas pessoas transexuais. O episódio acompanhado
durante o Dia T222, envolvendo Letícia e Viviane, destacou o significado que a cirurgia pode
adquirir para essas pessoas, conforme fragmento do caderno de campo:

Eu estava sentada na mesa ao lado quando percebi a saída brusca de Viviane

221
Ricardo, entrevista pessoal, São Paulo, junho de 2007.
222
Segundo Larissa Pelúcio (2007), o Dia T é um encontro semanal, nas quintas-feiras, organizado por T-lovers
nas principais cidades do Brasil. Esse ocorreu na sexta-feira e, segundo e-mail recebido na lista do CNT, a data
foi marcada de modo que possibilitasse a participação das congressistas. Este encontro acontecia no bar Elenice
que fica situado no ponto de prostituição reconhecido de São Paulo, considero este um marcador significativo de
como a prostituição é um elemento central nas relações que se estabelecem no universo das travestis e
transexuais.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 159

em direção ao único banheiro disponível. Imediatamente a Letícia a


acompanhou e eu, percebendo a movimentação, juntei-me a elas. Bati na
porta me identificando e elas abriram. O espaço era apertado para nós três, e
a minha entrada logo após as duas despertou olhares de dois homens que se
encontravam no alto da escada que margeia o banheiro. Eu encontrei
Viviane chorando e Letícia ao seu lado na tentativa de consolá-la. Fiquei em
silêncio esperando para compreender o que se passava, depois de alguns
minutos Viviane me diz de seu incômodo com a chegada de uma mulher
(transexual) recém-operada. Eu havia percebido quando entraram três
pessoas e entre elas uma mulher que andava com certa lentidão e carregava
nas mãos uma almofada, logo associei ao relato de Viviane. Então eu
perguntei sobre o que era este incômodo e ela me respondeu: “a Letícia é
operada, a outra é operada e eu o que sou?” Naquele momento, Viviane me
remetia ao desejo de Danielle de tornar seu corpo legível para si mesma, de
deslocar-se do lugar de abjeto. Respondi sem pensar já que a situação não
me permitiria muitas discussões: “Mulher, gente, ser humano e... linda.”
Quando pronunciei o linda o sorriso já despontava e ela chorava e sorria. Ela
me dizia: “você nunca vai saber o que é isso, é privilegiada, já nasceu com
uma vagina” e novamente eu respondi: “mas não tenho esse rosto lindo e
minha vagina não é um cartão de visitas, é uma parte de mim”. Ela segurou
minhas mãos e ajudei que lavasse o rosto e se maquiasse novamente, a
Letícia dizia da disponibilidade em ajudá-la para consultar com o cirurgião
que havia realizado a sua cirurgia, o desconforto e a solidariedade da Letícia
me mostravam que não haveria, naquele momento, discurso capaz de superar
a falta da vagina. A promessa do auxílio para a cirurgia foi suficiente para
cessar o choro. Voltamos para a mesa e ela permaneceu conversando com
um rapaz durante o restante do período que estive no bar.223

A eficácia simbólica da cirurgia já tinha se tornado evidente, para mim, durante a


reunião do Coletivo Nacional de Transexuais224, ocorrida no primeiro dia do XIV Entlaids. Os
horários para as reuniões dos segmentos de transexuais e travestis coincidiam, o que tornava
impossível deslizar entre os dois espaços. Embora tenha facilitado minhas observações
durante evento, já que todas as pessoas que se auto-identificavam como transexuais se
reuniram na mesma sala. No momento de apresentação dos/as participantes, explicitava a
hierarquização observada na lista de discussão sobre as indicações de nomes para representar
o segmento em diferentes instâncias do governo e outras ações. As integrantes que se
destacavam nas listas eram as mesmas que dirigiam a reunião, sendo também as que
detiveram a palavra durante a maior parte do tempo. Algumas se apresentavam dizendo de sua

223
Anotações do Caderno de Campo, São Paulo, 29/06/2007.
224
Não mais do que vinte e cinco pessoas estavam na sala, foi uma reunião comemorada, considerando que este
seria o segundo encontro “real” do grupo que se articulava via lista de discussão na internet. Estive presente na
primeira reunião presencial realizada durante o XIII Entlaids em Goiânia em 2006, e o fato de esta reunião
constar como uma das atividades oficiais do evento apontava para o maior reconhecimento do grupo que, em
2006, se encontrou de modo informal ao lado da piscina do hotel e somavam 12 participantes.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 160

formação e trabalho225, porém, os olhares atentos do grupo estavam focalizados para aquelas
que se apresentavam através do nome seguido da expressão “readequada” ou “cirurgiada”
indicando que havia sido submetida à cirurgia de transgenitalização. Outras duas participantes
destacaram que “não eram cirurgiadas, ainda, mas que possuíam os laudos”.226

Na manhã de sábado do referido evento, estávamos no saguão do hotel conversando


quando uma mulher, cuja recente cirurgia de transgenitalização foi publicizada no evento,
entrou pela porta principal acompanhada por um homem alto de corpo atlético e que
despertou os olhares de todas as presentes. Ela se dirigiu à recepção, pegou sua chave e subiu
sozinha ao quarto enquanto o homem aguardava sentado numa das poltronas próximas a nós.
Havia muitas congressistas nas poltronas e foi possível observar o frisson que o fato
despertara. Dois comentários particularmente despertaram minha atenção, e pareciam
interligados: “ela pode, ela tem uma buceta” proferido por uma mulher (transexual) que
estava próxima de mim, e o outro comentário - “veio apenas dar um close” -, dito por uma
travesti que passava pelo local. Enquanto olhava a cena, tentava entender o que estaria em
exibição: a vagina ou o homem? Penso que a norma heterossexual estava ali, exposta,
tentando se impor num espaço de tantas diversidades.227

Carolina me falaria em outras palavras de sua vivência em outro espaço que não a
militância, mas onde o tema da autenticidade reaparece:

(...) percebo que depois que as cirurgias começaram, houve uma mudança, a
cirurgia fez com que algumas passassem a se considerar melhor do que as
outras. Eu penso que ter conseguido a cirurgia me deu a responsabilidade de
contribuir para a luta das outras e não me fez melhor do que elas, mas nem
todas pensam assim. Humilham as outras porque agora pensam que podem
ter ‘um homem de verdade’.228

Um homem de verdade para completar uma mulher autêntica. Essa é a


correspondência acionada também por Tassiana quando quase ao final da entrevista, em sua
casa, ela recebe um telefonema de seu atual namorado. Ela colocou o telefone na tecla viva-
voz e a conversa passou a ser ouvida (e gravada) por mim e por Carolina que me

225
A qualificação profissional dada através de um reconhecido trabalho artístico ou o ensino superior se
constituía também num marcador importante para o grupo, pois representava o acúmulo de um capital cultural
associado ao fato de pertencerem às camadas da classe média. Entrevistei, formal ou informalmente, a todas e
todos.
226
Anotações do Caderno de Campo, São Paulo, 27/06/2007.
227
Anotações do Caderno de Campo, São Paulo, 29/06/2007.
228
Anotações do Caderno de Campo, retorno do grupo de psicoterapia do HUB, Brasília, 09/10/2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 161

acompanhava nesta visita à casa da Tassiana. O teor do telefonema é erótico. Um encontro


para dali a meia hora foi marcado, sinalizando o final de nossa entrevista que se estendia por
mais de três horas. Após desligar o telefone, ela se dirige a mim: “você acha que ele percebeu
alguma coisa? Nós transamos no domingo, se ele tivesse percebido ele diria. Esqueci que
você estava gravando (risos), não tem problema, assim você tem uma prova”.229 Antecedendo
ao telefonema, ela havia mostrado a sua vagina230 e perguntado a minha opinião sobre a
“autenticidade”.

Recorro novamente a Judith Butler (2005, pp. 189-190) para pensar nos sentidos
atribuídos aos corpos. Segundo a autora, esses significados estão marcados pela possibilidade
de se estabelecer uma espécie de relação de mimética, uma transparência entre leitura e
interpretação a ponto de uma não distinção entre o que aparece e o que significa. Neste
momento, abre-se uma brecha onde a impossibilidade de leitura remete, escorrega sutilmente
rumo à autenticidade em que “el cuerpo que representa y el ideal representado se hacen
indistinguibles”. A morfologia (vagina), transformada em referente, adere à representação
mulher, criando um efeito em si mesmo, uma corporificação de normas, um ideal de corpo-
sexuado em que a biologia parece ser o destino. No entanto, a insegurança de Tassiana
demonstra que este modelo morfológico, que regula a atuação, segue instável, nenhuma
atuação pode garantir o convencimento, uma vez que essa negociação está vinculada às
normas do gênero em que um homem e uma vagina são elementos acionados para conferir
inteligibilidade a uma mulher a partir do modelo heteronormativo.

No próximo capítulo, discuto o recrudescimento do discurso das representantes do


Coletivo Transexual sobre a necessidade da cirurgia, da condição de vagina como elemento
identitário e da diferença sexual a partir da discussão e implementação do Processo
Transexualizador no SUS.

229
Tassiana, entrevista pessoal, Brasília, outubro de 2007.
230
Foi a primeira vez, durante o trabalho de campo, que uma das minhas interlocutoras se interessa por mostrar a
vagina. Mantive desde o início a posição de não solicitar que me mostrassem por considerar um procedimento
desnecessário para a investigação aqui proposta e, inicialmente, recusei quando a Tassiana disse que me
mostraria porque percebi que ela, por saber que eu era professora do curso de Medicina, queria minha avaliação
sobre a cirurgia. Eu expliquei que não entendia nada de cirurgia, nem mesmo de anatomia e que eu lecionava
disciplinas relacionadas com a antropologia da saúde. Ela permaneceu irredutível e, como estávamos em
companhia de Carolina, alegou que queria aproveitar para mostrar a ela também.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 162

Casamentos: os proclames da heteronormatividade


Do carro, eu observava os alojamentos e a disposição dos prédios, então perguntei a
Carolina sobre os locais subterrâneos que ela utilizava como banheiro. Ela apontou então um
local com uma escada, indicando um acesso subterrâneo. Durante o período em que trabalhou
como militar, Carolina nunca dividiu o banheiro com seus colegas e nem mesmo o
alojamento. Dormia todas as noites de trabalho dentro da viatura, foram 22 anos desta rotina,
sem que os superiores considerassem suspeita ou inadequada a conduta, afinal Carolina estava
casada e tinha uma filha.

Segundo Josefina Fernández (2004), a heterossexualidade opera como o princípio


ordenador da sexualidade e, nessa perspectiva, a identidade sexual existiria apenas atrelada ao
gênero e à fisiologia no paradigma ocidental de gênero. Lida através dessa matriz, Carolina
foi reconhecida por muito tempo como “alguém de respeito”: “Eles pensavam que eu era
evangélica, por isso era tão reservada. Alguns vinham sempre me pedir opiniões, conselhos
sobre sua vida particular e familiar, me consideravam como alguém de bem”.231

Recorrer à família como recurso para ser reconhecida como confiável foi a estratégia
anunciada por Renata ao me receber em São Paulo: “Quis que este encontro fosse aqui, na
casa de minha mãe, para mostrar que nós temos família”.232 Apresentou-me para sua mãe,
sobrinha e filha. Compomos uma mesa de conversação que se manteve por quase três
horas.233 A presença de outras pessoas parecia intencionalmente estabelecida para garantir a
preservação de uma intimidade, (como algo que não se conversa diante da mãe e de crianças,
temas como sexo e sexualidade estariam certamente interditados) ou, talvez, transmitir
segurança diante da ameaça desta “estranha entrevistadora”. Por várias vezes, Renata fala da
preservação de seu anonimato e da exceção que constituía essa entrevista. Embora não tenha
construído um segredo em torno de sua história, a mesma é tratada apenas como assunto da
família.

Renata fala de sua família, de seus irmãos e irmãs, de suas vivências na escola e na

231
Anotações do Caderno de Campo, Brasília, maio de 2007.
232
O contato com Renata foi possibilitado através da indicação de Dr. Carlos Cury. Ela teria sido uma das
primeiras mulheres (transexuais) que se submeteram à cirurgia no exterior, de maneira clandestina, no início da
década de 80. São Paulo, 17 de dezembro de 2004.
233
Este relato compõe a análise desenvolvida no texto apresentado na 25ª Reunião da ABA em Goiânia.
Agradeço a Maria Filomena Gregori a leitura atenta e os comentários que contribuíram para o aprofundamento
das questões sobre família aqui desenvolvidas. Como uma das atividades vinculadas a este evento, a participação
no Workshop Pós-RBA, intitulado Reflexões Avançadas em Gênero, Sexualidade e Saúde Reprodutiva, foi
igualmente importante para as reflexões aqui apresentadas.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 163

rua, de sua recente separação do companheiro, mas é através de sua mãe que chegam os
fragmentos significativos para a discussão aqui proposta. Ela explicita sua dificuldade em
compreender o que acontecia com a filha, “eu sempre aprendi que Deus fez dois, macho e
fêmea, quer dizer masculino e feminino”; para ela, sexo e gênero coincidem e informam sobre
uma performance desejada e aceita:

Quando ela vinha dos bailes com a sobrancelha pintada, com a boca pintada,
aquele vestido decotado, aí eu sofria, pensava, meu Deus, uma hora eles
matam ela. Porque estou te explicando, ela era pela imperfeição, mas era a
coisa mais linda do mundo.

Assim, Renata somente caberia numa classificação outra... Por ela chamada de
imperfeição. Renata desafinou no arranjo do gênero, seu sexo não se restringia aos órgãos
genitais e, muito menos, forneceria os elementos para uma composição obedecendo a uma
lógica binária. A incerteza desta mãe, que, mais de 20 anos após a filha ter sido submetida à
cirurgia de transgenitalização no exterior, demonstrava ainda a insegurança sobre sua “culpa”
na “imperfeição” da filha.

Ao se referir à “imperfeição”, D. Carmem buscava na biologia uma origem


explicativa, um culpado para tal situação. (...) “é genética”, “na minha família não, mas na
família do meu marido” e reafirma “é genética” remetendo-se ao casal de sobrinhos
pretensamente homossexuais. A crença desta mãe na origem genética da homossexualidade
parecia ancorada na divulgação das pesquisas científicas.234 A segurança da condição inata e
das conexões entre as origens da homossexualidade e da transexualidade parecem ser pontos
de interseção entre a crença de D. Carmem e os pesquisadores discutidos no primeiro
capítulo. Apesar da aparente certeza da origem da “imperfeição” da filha, D. Carmem
exemplifica a preocupação de Richard Lewotin (BURR, 1999, p. 355) sobre as implicações
políticas destas pesquisas, reafirmando que mesmo se houvesse a possibilidade de afirmar que
determinada característica do comportamento humano é genética, isso não a transformaria em
algo desejável ou respeitado: “(...) mas a imperfeição não cria a sem-vergonhice, ela cria uma
diferença, uma diferença de pensamento” (...) [e após pequena pausa, completa] “Por que
todas essas pessoas são tão depravadas?”.235

Imperfeitas, depravadas. Fiquei pensando no desafio da correspondência estabelecida

234
No primeiro capítulo, apresentei exemplos de reportagens veiculadas sobre as pesquisas em jornais e revistas.
235
D. Carmem, entrevista pessoal, São Paulo, dezembro de 2004.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 164

por D. Carmem. Considerando que, para ela, o imperfeito se relacionaria diretamente ao sexo,
a depravação seria a falta de acesso à inteligibilidade.

(...) o sexo é, pois, não simplesmente aquilo que alguém tem ou uma
descrição estática daquilo que alguém é: ele é uma das normas pelas quais o
“alguém” simplesmente se torna viável, é aquilo que qualifica um corpo para
a vida no interior do domínio da inteligibilidade cultural. (BUTLER, 1999,
pp. 155-6)

Renata nasceu provocando acomodações, muitas negociações seriam então necessárias


até que finalmente tornou-se legítima. Na fala da mãe, “(...) mas agora ela é uma cidadã, estou
sossegada”. A cirurgia de transgenitalização, realizada clandestinamente no exterior, inaugura
o estabelecimento de uma “esperada” coerência, um instrumento poderoso, mas não único a
ponto de transformar essa “imperfeição” num ser humano de direitos. Segundo Berenice
Bento,

As tesouras simbólicas do poder médico continuam seu trabalho de produção


de corpos dimórficos, sem ambigüidades. É o trabalho de assepsia dos
gêneros realizado no espaço legitimado pela modernidade, o espaço
hospitalar, e que se intensificará no século XX, principalmente no que se
refere aos hermafroditas e às/aos transexuais. (2003, p. 127)

No entanto, para além da cirurgia, mãe e filha compartilham a percepção de que o


casamento e a adoção [ela adotou uma criança] foram aspectos substantivos para “recolocar”
a Renata no espaço social. Essa idéia reafirma que a desnaturalização do sexo não implica na
liberação de normas hegemônicas (BUTLER, 2005, p. 194), continua sendo necessário que as
identidades de gênero sejam “distintas e internamente coerentes no âmbito de uma estrutura
heterossexual” (BUTLER, 2003, p. 10).236

O cenário que Alexandre Saadeh (2004) descreve no início de sua tese é uma igreja
católica onde é celebrada a cerimônia de casamento de uma de suas pacientes, da qual foi
padrinho. A escolha da cena não me parece aleatória, nem mesmo um adereço. Esalba Silveira
(2006, p. 187) também testemunha essa celebração realizada por outra candidata no interior
do Rio Grande do Sul. O casamento se articula perfeitamente com a promessa de
normalização da cirurgia de transgenitalização. Estabelecendo uma comparação entre o desejo
expresso por homossexuais, travestis e mulheres (transexuais) de realizar o ritual do

236
Não me passou despercebido o fato de que entre a cirurgia, realizada clandestinamente, e o casamento, Renata
viveu o processo de alteração judicial do nome e sexo. Tudo anterior à visibilidade alcançada por Roberta Close.
Não tive acesso a estas informações, pois é tratado como parte de um segredo de “família”.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 165

casamento, Elizabeth Zambrano (2008, p. 158) aponta que apenas as travestis e mulheres
(transexuais) manifestaram essa preocupação, sendo que considera ser essa uma forma de
confirmar a nova posição social a partir do lugar ocupado no novo casal que se forma. O
status civil de casada é exibido durante os diferentes momentos de sociabilidade, não passaria
despercebida a afirmação pública de duas militantes durante o XV Entlaids237 na mesa cuja
temática era a cirurgia de transgenitalização. As duas palestrantes enfatizaram a condição de
casadas e uma delas da presença de uma criança em casa.

Compartilhando com Butler de que

“el matrimonio fuerza, al menos lógicamente, el reconocimiento universal:


todos deben dejarte entrar por la puerta del hospital, todos deben respetar tu
derecho al luto, todos deben asumir tu derecho natural a un hijo, todos
considerarán tu relación como si estuviera elevada a la eternidad” (2006, p.
162).

Para essas mulheres (transexuais), o casamento possibilitaria o acesso não apenas aos
direitos restritos a um grupo que opera reafirmando a norma da heterossexualidade, mas,
principalmente, o reconhecimento da universalidade da condição de mulher.

No entanto, esse universo não é homogêneo. Entre as minhas entrevistadas, apenas


Priscilla era casada quando iniciou no Programa de Transgenitalização da Promotoria. Este
primeiro casamento, depois de 22 anos, foi desfeito e ela casou-se novamente. Os dois
casamentos caracterizados por um relacionamento estável com co-habitação, sem registro de
nenhum documento, ocorreram em período anterior à cirurgia; e não parecia, nem mesmo
quando a entrevistei após ter obtido a alteração judicial de sexo e nome, que um casamento
civil faria parte de seus planos.

Para Carolina, o casamento é uma zona de silêncio. Embora ela permaneça residindo
no apartamento funcional em que vivia com a ex-esposa e a filha, não percebi nenhum
vestígio desse período.

Deus fez os nossos braços pra prender238


Carolina é católica e a religião interferiu na escolha do nome atual, escolhido em
homenagem à Santa de sua devoção. Ela freqüenta a paróquia próxima de sua casa desde sua

237
Realizado em Salvador, nos dias 11 a 14 de setembro de 2008.
238
Florbela Espanca, Exaltação, Livro de sóror saudade.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 166

mudança para o local, há mais de vinte anos. Antes de iniciar qualquer procedimento em
relação ao que considerou a segunda chance, consultou o pároco que, segundo ela,
compreendeu seu sofrimento e afirmou não ser pecado a sua busca por sua “verdadeira
condição”. Carolina percebe o apoio recebido como fundamental, pois, “antes dos psicólogos
e dos médicos, queria saber sobre Deus, pois poderia enfrentar tudo, menos a Ele”.239

A religião surge como um aspecto importante na subjetivação das pessoas


(transexuais) e, na maioria das vezes, marcada como uma experiência de exclusão. Marina
fala da escolha de seu nome, que deveria ser o nome de uma mulher forte que anunciaria aos
outros que estava disposta a lutar, a brigar por seus direitos, mas não foi assim no começo.
Quando pedi que falasse de suas primeiras inquietações diante da anatomia, ela lembrou de
um adversário poderoso:

Minha mãe antes de falecer [a entrevistada estava com 04 anos] foi a uma
livraria na Praça da Sé e me comprou um livro de historinhas onde abria e
montava um conjunto de figurinhas, castelinhos, essas coisas. O mais
bonitinho era um arco-íris, a história do livro, resumindo, era de que a
pessoa ao chegar ao final do arco-íris e cruzasse por debaixo, mudaria de
sexo, se fosse menino viraria menina e se fosse menina viraria menino.
Mamãe sempre repetia essa história para mim e guardei esse livro até os 20
anos (...) Aos 09 anos, eu não sabia da possibilidade da cirurgia, mas aprendi
algumas coisas na rua. Eu fui para o catecismo e isso foi uma tortura... Tudo
era perigoso e pecado. Como eu sentia que era uma mulher, tive muito medo
de ficar grávida, eu não sabia o que era gravidez, pensava que poderia
engravidar se um menino me pegasse na mão. Então comecei a usar o
anticoncepcional de minha tia. Depois de algum tempo, começou a sair leite
no meu peito, doía muito o seio e um corrimento no meu pênis. A minha
família me levou ao pronto-socorro, os médicos suspeitaram de abuso
sexual, mas depois eu ouvi uma conversa entre os adultos de que ou eu
estava tomando alguma coisa ou estava masturbando, resolvi jogar o
remédio fora porque tive medo de morrer... Levaram-me ao psicólogo que
disse que eu tinha traços homossexuais, eu sabia que era mulher, mas não
podia dizer, eu morria de medo de ser presa, o meu maior medo era a prisão.
A igreja ensinava que a homossexualidade era pecado, tudo era pecado,
homem com homem era pecado, vestir-se de mulher então, nem pensar, era o
pior pecado, eu me lembro do sermão em que este seria o primeiro pecado
que queimaria no céu e alma penaria anos e anos... eu entrei para o meu
quarto e fiquei em depressão porque a minha família era muito temente a
Deus, eu poderia brigar com todo mundo, menos com Deus. O conflito ficou
durante uns 06 meses de minha vida, não ia mais à escola, não saía para
brincar (...) eu já havia chegado à conclusão de que se Deus quisesse me
castigar, me queimar no fogo do inferno, seria quando eu morresse, mas já
que eu estava viva, eu não iria matar ninguém, não iria roubar, nunca
mentiria, mas se ele quisesse me crucificar só porque eu me sentia como
mulher, então poderia me crucificar... Somente aos 17 anos eu ouvi falar

239
Carolina, entrevista pessoal, Brasília, novembro de 2004.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 167

sobre a mudança de sexo em outros países. 240

A homossexualidade era a categoria mais próxima do universo de Marina naquele


momento. Ao dialogar com as proibições da homossexualidade no texto psicanalítico, Butler
(2004a, p.184) oferece instrumentos para pensar sobre o medo da punição que marcou a
infância de Marina. O sentimento de culpa que parece ser resultante de uma consciência
construída a partir de uma experiência individual resulta na “consciência” da proibição contra
a homossexualidade que está na base do sentimento social. Para Butler, a interdição da
homossexualidade é uma norma que funda e constitui a própria consciência como se fosse um
fenômeno psíquico, somente a partir do momento em que elas entendessem a existência de
uma norma é que poderiam supor que elas não estariam de acordo com ela, justificando assim
“o medo do castigo dos pais que se generaliza como o terror a perder o amor dos próximos”.

Laura também não poderia perceber, naquele momento, que “o que está errado não é a
prática das pessoas, é a regra, o metro, a norma que quer regulá-la” (COSTA, 2005, p. 92) -
conforme relato a seguir:

(...) Havia noites em que não conseguia dormir, às vezes, começava a chorar
sem saber o que estava sentindo. Sentia-me como se não fosse real. Como se
nada na minha vida fosse real e que algo de ruim estava para acontecer.
Tinha períodos de depressão de meses, mas tudo isso era invisível à minha
família que nunca tomou partido de nada. Conhecia as Leis de [...] Deus
sobre a Homossexualidade. Procurei me aprofundar e estudar sobre o
conceito da bíblia para saber se os sentimentos que invadiam a minha cabeça
desde que me dei por conta que eram impuros diante de Deus. O que eu não
conseguia era fazer a perfeita dissociação entre as práticas que Deus
condenava e o meu jeito de ser, que era algo mais questionado pelos outros
de fora. Eu nunca tinha praticado nenhum tipo de pecado. Mas meu modo de
ser era questionado pelos outros [ ]. Meus jeitos de falar, de gesticular e de
raciocinar eram femininos, embora eu os tentasse camuflar. Que tarefa
árdua! Um peso. Um espinho na carne que eu deveria carregar para o resto
da minha vida. A única coisa intrínseca nesta história era simplesmente o
fato de que eu me ressentia pelo que as pessoas insinuavam, mas não me
sentia envergonhada pelo meu modo de ser. Embora eu concordasse com o
modo de pensar de Deus sobre a homossexualidade, e sobre ter relações
homossexuais ou mesmo ser homossexual, eu não achava que havia nada de
errado no meu modo de ser. Achava que embora eu nunca fosse ser
homossexual aquele jeito meu era assim, era bom e eu gostava e ninguém
tinha que ficar reclamando dele. Eu era assim mesmo, não forçava nada. E
eu não retinha justo mudar meu jeito de ser, que era bondoso, carinhoso e
cuidadoso.241

240
Marina, entrevista pessoal, São Paulo, junho de 2007.
241
Laura, entrevista pessoal, Brasília, fevereiro de 2008.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 168

Não passaria despercebido que novamente a homossexualidade seria acionada como


elemento interdito. O debate empreendido por Jurandir Freire Costa reafirma a importância
das religiões como matrizes de posicionamentos.242 Ao reapropriar-se da fala de um de seus
interlocutores de que “a Igreja tem a genitália no cérebro”, o autor afirma a escassez de textos
bíblicos que tenham tratado a questão da homossexualidade e problematiza a razão pela qual a
“Europa cristã elegeu a sexualidade como seu substrato e para o exercício da perfeição e da
perfectibilidade ética” (COSTA, 2005, p. 89).

As histórias de expulsão das diferentes igrejas e templos religiosos marcam os relatos


das interlocutoras e o desejo de pertencimento a este lugar foi flagrado de forma mais intensa
durante o XIV Entlaids em uma das mesas que trataria a questão de relações afetivas e
família. Nenhum especialista ou representante da academia constava entre os convidados para
essa atividade, diferentemente das outras mesas. Embora a temática não sinalizasse para a
temática da religião, a participação de um pastor deflagrou uma discussão que apontava para
uma esfera que, ainda, não havia presenciado:

Apenas compareceram a representante do Grupo de Pais Homossexuais/SP e


o representante da Comunidade Cristã Nova Esperança, a sala está repleta de
travestis e mulheres (transexuais), é a primeira vez que noto uma parcela
significativa das participantes utilizando seus blocos de anotações para
registrar a fala de um palestrante. Anotam principalmente os números dos
versículos bíblicos citados, pedem para repetir novamente citações inteiras
da bíblia que foram extraídas e reinterpretadas pelo pastor. Entremeando as
perguntas direcionadas à mesa (quase todas dirigidas ao pastor) fazem
testemunhos das tentativas de freqüentarem diferentes igrejas “sem serem
percebidas”, “entrando e saindo escondido”. 243

Esse não foi o único episódio em que a temática religiosa foi contemplada nesse
evento. O encerramento foi uma encenação teatral pelo grupo de integrantes da Comunidade
Cristã Nova Esperança. O enredo tratado ficou centrado na relação entre a exclusão e a
aceitação de uma travesti pela família, permeado por conteúdo cristão. A música intitulada
Segura na mão de Deus244 encerrou o evento. Cantada por toda a platéia, algumas de olhos
fechados, outras numa gestualidade singular se abraçavam, e muitas também acompanhavam
com movimentos de quadris, pernas e braços que lembravam outro ritmo musical, mas a letra

242
Seminário Religião e Sexualidade: convicções e responsabilidade, organizado pelo Centro Latino-Americano
em Sexualidades e Direitos Humanos (CLAM) em 2003.
243
Anotações do Caderno de Campo sobre a Mesa: Pais, Filhos, Relações de Afetividade e Família. São Paulo,
30/06/2007.
244
Música interpretada por Nelson Ned, no Álbum O Poder da Fé, 1998.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 169

era compartilhada por todas.

A recusa de um Script

Muito antes que a temática das transexualidades adentrasse as preocupações das


ciências humanas no Brasil, ou mesmo a legitimação da ação da medicina em 1997, a cirurgia
de transgenitalização produzia dissensos entre as travestis e (transexuais) apontando
diferenças em seus universos de sociabilidade, no entanto, não parecia se constituir em uma
fronteira identitária como apreendemos das entrevistas transcritas dos trabalhos pioneiros de
Hélio Silva (1993, p. 131), Neuza Oliveira (1994, p. 42) e Hugo Denizart (1997, p. 44).
Observo no trabalho destes autores que o termo transexual foi utilizado para adjetivar a
cirurgia e não as pessoas.245 Ao denominarem de operação transexual ou cirurgia transexual,
eles pareciam antecipar o momento posterior em que a cirurgia passaria a operar na
construção de uma identidade (transexual) que viria a ser desestabilizada pela recusa de Rita.

Essa questão, que até então era acompanhada através dos debates teóricos em torno da
sujeição à cirurgia, foi trazida por Rita em outubro de 2005. A sua desistência em se submeter
à cirurgia provocou nas pessoas que acompanhei diferentes atitudes ancoradas no diagnóstico:
não seria Rita transexual?

O desejo manifesto pela cirurgia é o marco divisor entre as categorias travestis e


transexuais, não apenas para o saber autorizado da medicina, conforme demonstrado no
capítulo anterior, ou subjacente aos trabalhos contemporâneos como o de Larissa Pelúcio, em
que a distinção entre as travestis e as transexuais aparece tangenciando a definição de
travestis, conforme pode ser percebido no fragmento abaixo:

(...) posso afirmar que as travestis são pessoas que se entendem como
homens que gostam de se relacionar sexual e afetivamente com outros
homens, mas que para tanto procuram inserir em seus corpos símbolos do
que é socialmente tido como próprio do feminino. Porém, não desejam
extirpar sua genitália, com a qual, convivem sem grandes conflitos. (2007, p.
34)

Um definidor explicitamente colocado por Tassiana quando me diz, referindo-se


possivelmente à recusa de Rita: “uma mulher transexual que não deseja a cirurgia?

245
No entanto, ressalto que esse mesmo uso (re)atualizado por Hélio Silva em 2007 possui um sentido diferente,
entendo ser problemática a utilização que o mesmo faz do termo “operação transexual” ao legitimar a cirurgia
como capaz de conferir identidade às pessoas.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 170

Impossível, uma transexual só fica sem a cirurgia enquanto não está ao alcance dela, depois
que está perto, não, não, ela não desiste. Desconfio dessas transexuais assim...”.246

Essa desconfiança surge compartilhada mesmo pelas pessoas que estão inseridas nos
movimentos sociais. A definição de transexual acionada por Clarissa, que pensa a
transexualidade do lugar de psicóloga e mulher (transexual), passa pelo marcador da cirurgia:

Você pode se reconhecer como mulher, pode reivindicar que é mulher, mas
dizer que é uma mulher (transexual) não. Pela minha vivência transexual, eu
posso dizer que não seria, porque tem uma queixa. Uma queixa na
transexualidade comum é “minha prática sexual é horrorosa, porque eu não
estou bem com meu corpo, não sou completa”. [Na transexualidade] tem um
mal estar em relação à genitália. Quem se sente mulher tendo seu pênis, não
precisa se dizer transexual, pode ser... Dizer outro termo.247

Neste momento, recuperar a recusa de Rita é uma tentativa de visibilizar as fraturas


existentes e algumas interpretações possíveis.

Uma semana antes da cirurgia, eu não conseguia dormir... Sabe quando cai a
ficha? Não é para mim (a cirurgia), até esse momento eu não tinha nenhuma
dúvida, eu tive um ataque de pânico, estava usando medicamento para
dormir. Eu não estava dando conta, o que resolveu mesmo foi abrir mão
naquele momento da cirurgia. Isso não significa que é uma decisão
definitiva, talvez em outro momento de minha vida, mas se você me
perguntar sobre minha vida, aos 08 anos de idade eu não imaginava que
estaria vivendo como estou hoje.248

Estava encontrando Rita pela primeira vez, após a desistência da cirurgia.


Acompanhei-a por um percurso significativo entre o Programa de Transgenitalização do Pró-
Vida, o ingresso no grupo do HUB, sua rápida passagem pelo movimento social, a mudança
para São Paulo e seu retorno para Brasília, o ingresso no serviço público após aprovação no
concurso. Já havia estado na porta deste prédio antes, porém esta seria minha primeira visita
ao seu apartamento e embora os números não estivessem legíveis em todas as portas, não foi
difícil encontrar o apartamento de Rita. A decoração da porta, com motivos florais, me
indicava que poderia ser este o local. Rita acabara de chegar do trabalho e suas roupas, de
cores sóbrias, foram acomodadas numa cadeira próxima à varanda. A discrição de suas roupas
são elementos constitutivos de sua subjetividade: “Eu sou discreta, gosto de ser sóbria assim

246
Tassiana, entrevista pessoal, Brasília, outubro de 2007.
247
Clarissa, entrevista pessoal, Brasília, fevereiro de 2008.
248
Rita, entrevista pessoal, Brasília, dezembro de 2006.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 171

como minhas roupas, não gosto de brilho e purpurina”. O cumprimento de nossos cabelos foi
o identificador acionado por ela para dizer do tempo transcorrido desde o nosso último
encontro. As roupas, os cabelos, as unhas, sempre o corpo esteve em questão na relação entre
a pesquisadora e as entrevistadas; situação já vivida também por Juliana Jayme: “o corpo
sempre veio à tona e como pertencente à sua própria formulação de sujeito, à maneira como
eles se colocam frente ao outro, frente àqueles que se identificam com eles, enfim à própria
sociedade”. (2001, p. 16).

Rita sempre se portou como uma interlocutora atenta, a formação em biologia e o


mestrado ainda que incompleto na área de genética, conferiam a ela um lugar diferenciado no
grupo. A permanência de aproximadamente 05 anos no campo para a realização desta
pesquisa possibilitou o acompanhamento de algumas vivências significativas das pessoas que
iniciaram o processo no Programa de Transgenitalização na Promotoria. O deslocamento das
demarcações identitárias em que, num primeiro momento, a advertência expressada por Rita -
“você deve observar bem, transexuais são muito diferentes das travestis”249 - foi se borrando
ao longo deste processo para uma posição que reconhece a fluidez, o intercâmbio e
provisoriedade das identidades e dos corpos: “Inicialmente eu não sabia o que era, depois vivi
até os vinte e poucos anos como homossexual e percebi que também não dava conta,
resumindo eu estou num momento da minha vida que não acredito em identidade”.250

Reconhecer o caráter incerto e mutável das identidades significa minar o sistema


normativo binário baseado no dimorfismo sexual, certeza que até então cercava o universo de
Rita. A tese da Tatiana Lionço estava entre os livros dispostos na estante próxima à mesa, não
parecia ter sido colocada ali propositalmente em função de minha visita, pois outros livros
empilhados próximos dificultavam a identificação dos títulos, que, no entanto, me eram
familiares, e pelas capas e cores, encontrei também o exemplar do livro de Berenice Bento de
2005. As leituras e a experiência vivida contribuíram para o giro das suas preocupações:

Eu tinha algumas certezas: primeiro eu sempre tive problemas com meu


corpo, eu achava disforme, essa é a imagem. A minha identificação com o
feminino que foi sempre recalcado por motivos externos, em alguma medida
eu tive que construir alguma masculinidade. E o desejo afetivo inicialmente
e posteriormente sexual por homens. São os fatos concretos que eu tenho,
agora como negociei com isso comigo mesmo foi variável ao longo da vida.
Eu estou num momento de minha vida que assim, quando aconteceu de eu
desistir da cirurgia, eu resolvi que não me importa os códigos que as pessoas
vão usar. Eu vou passar a vida inteira com pessoas olhando para mim e

249
Anotações de Caderno de Campo, Brasília, Promotoria Pública, dezembro de 2004.
250
Rita, entrevista pessoal, Brasília, outubro de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 172

dizendo: é um veado vestido de mulher; é um homossexual vestido de


mulher; é um homem vestido de mulher; é uma travesti fina; é uma
transexual vestida de travesti; é uma travesti que se pensa transexual, os
olhares serão múltiplos. Minha experiência está para além disso. É plural.
Não me interessa mais qual a categoria que as pessoas me colocam.

As suas entrevistas anteriores foram marcadas pela preocupação com a origem da


transexualidade. O discurso agora oferece tonalidades diferentes nesse momento em que as
suas vivências possibilitaram perceber que a sedução da origem não seria capaz de conferir
significado aos conflitos e nem mesmo ajudar a resolvê-los. Essa “reviravolta” me conduz aos
questionamentos de Lewotin sobre a preocupação dos pesquisadores sobre a origem biológica
da sexualidade: “Mesmo que descubram uma causa biológica para a transexualidade... O que
eu vou fazer com isso?” (BURR, 1999).

A vida quando acaba, cabe em qualquer lugar251.


“Transamérica”252, provocou inquietações entre as mulheres (transexuais), e integrou a
programação do “Quinta Trans”253, em agosto de 2006. Diferentemente do filme “Meninos
não choram” que estava fora do circuito de exibição quando iniciei a pesquisa, este foi
exibido em quase todos os espaços de filmes comerciais. Dentre as minhas entrevistadas,
Carolina não havia assistido mesmo diante dos freqüentes relatos de que teria ido ao cinema.
Presenteei Carolina com o filme em DVD e assistimos juntas. Quando assisti ao filme pela
primeira vez, a paternidade parecia entrelaçar as vidas da protagonista e de Carolina. No
entanto, foi o episódio de violência na família que mobilizou Carolina. Ela me disse: “é difícil
não ser aceita como somos”.254 Algumas visitas às casas das irmãs integravam os relatos de
Carolina. Durante o período em que a acompanhei, não registrei mais do que relatos de dois
encontros com a filha. As notícias viriam por telefone e por intermédio de terceiros.

251
Fragmento da música “A violência travestida faz seu troittoir” Composição: Humberto Gessinger e
interpretada por Engenheiros do Hawaii.
252
Transamérica narra a história de Bree Ozbournei (registrado como Stanley Schupack), uma mulher
(transexual) que está em fase final do processo que a “autorizaria” se submeter à cirurgia de transgenitalização.
A revelação de que possuía um filho adolescente de 17 anos, a remete a uma série de situações de
rejeição/discriminação ao retornar ao convívio familiar.
253
QuinTas Trans é um encontro quinzenal promovido pela Secretaria de Travestis e Transexuais da Associação
da Parada do Orgulho GLBT de São Paulo que mantém um Blog disponível no seguinte endereço:
http://quintastrans.blogspot.com capturado em 15/10/2007.
254
Carolina, entrevista pessoal, Brasília, janeiro de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 173

Diferentemente das entrevistadas por Elizabeth Zambrano (2008), que reivindicavam


permanecer exercendo a paternidade de seus filhos, Carolina gostaria de ser chamada de mãe
e também de ocupar esse lugar. Acompanhar seu cotidiano, é perceber como a solidão pode
ser um aceno desta não aceitação. Visitamos uma amiga que acabara de dar a luz, a indecisão
de Carolina sobre a pertinência de me acompanhar (se seria aceita ou não na casa de um casal
heterossexual) sinalizava para o lugar de incerteza e vulnerabilidade daquelas/es que
transgridem as fronteiras do gênero. Nesse momento, me alinho ao pensamento de Elisa
Arfini (2008, p.288) que, ao criticar a reivindicação da coerência pelas pessoas (transexuais),
diferencia a crítica ao estatuto fixo e monolítico das identidades e não a reivindicação da
estabilidade contingente e necessária ao reconhecimento. Um reconhecimento que torna a
vida viável.

Considerando a ausência de estudos informando sobre o cotidiano de exclusão e


violência vivido pelas pessoas (transexuais) – embora a morte tenha rondado algumas dessas
–, identifiquei nas entrevistas alguns relatos reveladores (mesmo insignificantes
estatisticamente) dessas experiências, porque, assim como Butler, acredito que “nuestras
propias vidas y la persistencia de nuestro deseo dependen de que haya normas de
reconocimiento que produzcan y sostengan nuestra viabilidad como humanos”. (2006a, p. 57)

“Chute essa Bicha”. Esta foi a inscrição no pedaço de papel colado nas costas de
Letícia e com o qual ela teve que permanecer durante um período do dia na escola. Uma
violência não relatada à família, por vergonha. O silêncio de Neil, frente ao episódio de
violência na escola, também foi justificado pela vergonha.

Outros três homens (transexuais) integraram essa pesquisa a partir da presença deles
nas atividades do movimento social, a interpelação causada pelo filme “Meninos não
Choram” ficou evidente na fala de todos, destacada pela situação de violência vivida. Não é o
assassinato que aparece como o elemento mais violento do filme, mas o estupro. A
intencionalidade explicitada no ato: - “Você é mulher e vai servir como mulher” - foi
considerada a relação mais dolorosa do que a morte, porque segundo um dos entrevistados:
“(...) com a morte passa tudo, mas a vergonha de ser colocado como mulher para um outro
homem e ter uma vagina, não, essa não passa nunca”.255

Um calafrio me percorreu quando lendo o artigo de Gabriela Cano (2004) pensei que
Ricardo, assim como outros homens (transexuais), caso viessem a falecer, poderiam ser

255
Ricardo, entrevista pessoal, São Paulo, junho de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 174

enterrados vestidos de mulher, seus túmulos ornados com uma inscrição do nome feminino.
Eu experimentei por duas vezes essa sensação quando do velório e enterro de duas travestis
em Uberlândia e Araguari, respectivamente, ainda me incomoda relembrar a cena do corpo no
caixão envolto em um terno e a fala de uma amiga comum: “se não nos respeitam em vida, o
que esperar na morte?”.

A natureza da gente não cabe em nenhuma certeza256


Acredito que a experiência de estar/ser/ter e se fazer num corpo fora das normas é uma
experiência desestabilizadora para os sujeitos que vão construindo suas interpretações,
inicialmente numa tarefa individual, mas que se soma no coletivo mesmo quando isso não
representa uma adesão ao movimento organizado.

Si el género es performativo, entonces se deduce que la realidad del género


misma está producida como un efecto de la actuación de género. Aunque
haya normas que rigen lo que será y lo que no será real, y lo que será o no
inteligible, se cuestionan y se reiteran en el momento en que la
performatividad empieza su práctica citacional. Sin duda, se citan normas
que ya existen, pero estas normas pueden ser desterritorializadas a través de
la citación. También pueden ser expuestas como no naturales y no necesarias
cuando se dan en un contexto y a través de una forma de incorporación que
desafía la expectación normativa. Lo que esto significa es que, a través
práctica de la performatividad de género, no sólo podemos observar cómo se
citan las normas que rigen la realidad, sino que también podemos
comprender uno de los mecanismos mediante los cuales la realidad se
reproduce y se altera en el decurso de dicha reproducción. (2006a , p. 38)

As lutas de Carolina e Rita pareceriam pequenas e individuais, no entanto, se entendo


que a inteligibilidade seria a condição de reconhecimento que se produz a partir das normas
vigentes acredito que ao reivindicar o reconhecimento elas (Carolina e Rita) provoquem
fraturas nessas mesmas normas, cotidianamente:

(...) eu não quero participar dos movimentos, eu quero ficar aqui, fazendo
essa minha luta diária. (...) Há alguns dias saiu uma reportagem comigo, eu
não precisava mais aparecer, mas quero que as outras (transexuais) sofram
menos que eu sofri.257
Eu não quero levantar nenhuma bandeira. Eu quero, se possível, passar
despercebida. Estar no posto de trabalho que ocupo, sendo uma mulher
(transexual) se transforma numa batalha diária, se todos devem matar um
leão por dia, eu mato trinta, cinqüenta... Depende do dia. Você sabe o que é

256
Guimarães Rosa, Grande Sertão Veredas.
257
Carolina, Anotações do Caderno de Campo, em 07/12/2004, e reiterada em 09/11/2005.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 175

ser objeto de visitação pública? No dia que ficaram sabendo que eu sou
(transexual), sei lá que nome deram, todos os funcionários deram um jeito de
vir ao meu andar... E isso ainda não terminou...258

Neil relata sua história num entrecruzar de lutas individuais que se somam aos
movimentos coletivos, conforme apontam Richard Miskolci e Larissa Pelúcio:

Assim, no caso dos intersex, aceitar a categorização masculino/feminino a


partir da construção de um sexo ou da patologização de sua condição pelas
pessoas transexuais, coloca-nos diante de um dilema que não pode ser
resolvido no plano do indivíduo. O que faz compreensível o argumento
butleriano de que é necessária capacidade crítica para reagir a essas mesmas
normas. O que só é alcançável de forma coletiva, ou seja, não serão sujeitos
individuais que modificarão a ordem, e sim grupos organizados que
busquem articular uma alternativa ao que existe (...). (2006, p. 05)

Estar para além das identidades é uma reivindicação de Neil. Ainda que ele não tenha
se inscrito no Programa de Transgenitalização, nem mesmo tenha uma relação direta com os
sujeitos com os quais iniciei a pesquisa, a inclusão de sua experiência se justifica porque
desestabiliza a partir da experiência da reprodução biológica e a negação da maternidade
como destino do sujeito. Neil é membro da Associação da Parada do Orgulho GLBT de São
Paulo (APOGLBT-SP) e, no Coletivo Nacional de Transexuais, parecia ser um colaborador
atento, que estabelecia com as mulheres e homens (transexuais) uma relação de
companheirismo, mas também de dissonâncias. Partiram dele as expressões e intervenções
que deslocavam as falas identitárias do Coletivo259, foram as incertezas apontadas por ele que
despertaram meu interesse em entrevistá-lo. No entanto, alguns fragmentos de sua história de
vida tornaram-se públicos através de uma entrevista que foi veiculada em revista destinada ao
público Gay.260

“Tudo correu de forma tranqüila e nasceu uma linda menina”.261 Essa poderia ser uma
frase compartilhada por muitos casais ao final de uma gravidez. No entanto, eu desconfiava
de que tivesse sido tão tranqüilo assim. Vagina, útero, ovários, trompas e uma gestação, as
coisas não poderiam ser assim tão “abstratas”. Neil tem uma filha de 14 anos, gestada numa
relação que se configurava como lésbica, até mesmo para ele.

258
Rita, Anotações do Caderno de Campo, em 08/05/2007.
259
Conheci Neil durante o XIV Entlaids, na reunião programada pelo Coletivo Nacional de Transexuais.
260
Reportagem de Márcia Yáskara Guelpa veiculada na revista G on line e que tive acesso nos dias que
antecederam ao encontro em São Paulo.
261
Neil, entrevista pessoal, São Paulo, junho de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 176

A união foi marcada pelo desejo de um filho biológico pelo então casal de mulheres
lésbicas, em que, a princípio, a gestação seria da companheira de Neil; a decisão foi de que
não recorreriam às técnicas de reprodução assistida por questões financeiras e também por
serem solteiras.262 A impossibilidade de que sua companheira engravidasse fez com que Neil
decidisse pela gestação. Um casal de amigos gays foi consultado e um dos parceiros aceitou
participar do projeto para o nascimento desta criança. A participação foi interpretada como
“doação de sêmen” pelos envolvidos. A ausência posterior do pai genético foi um acordo
aceito pelas partes, nenhum pai era pretendido para essa criança. Até então, a ordem estaria
garantida, pois, segundo Marilyn Strathern (1995), a idéia de um filho sem pai não provocaria
um sentimento de indignação moral ao mesmo tempo em que o ato sexual e a concepção
(presentes nesse caso) não cumpririam apenas uma questão técnica, mas garantiriam a
reprodução da “parentalidade como resultado percebido de uma união em que as partes se
distinguem pelo gênero”. O corpo de Neil foi o espaço em que toda essa negociação
aconteceu, embaralhando as fronteiras dos arranjos reprodutivos e desestabilizando as normas
de gênero.

Eu era aceita como lésbica caminhoneira, eu sempre fui a ativa, aquela coisa,
não me rele, não me toque, nem mesmo tirar a roupa, não existe a
possibilidade de me tocar. O amor que eu sentia por ela me levou a fazer
coisas que feriam coisas minhas.263

Observei um silenciamento sobre o corpo dos homens (transexuais) na literatura,


mesmo que seja para promover a interdição, apresentando a recusa do pênis como norma, ou
mesmo a condição de assexuada, as mulheres (transexuais) são materializadas num corpo
(ainda que débil), mas os homens (transexuais) são descritos a partir da impossibilidade do
falo (ou da sua construção), esse tema será abordado no próximo capítulo. Eu havia dito da
menstruação como marco de sofrimento identificado nos processos, a prática das ataduras
para encobrir os seios. A entrevista de Diogo também corrobora essa recusa do corpo. Porém,
o desconhecimento de Neil sobre seu corpo é denunciado: “A minha mulher que conhecia
essa coisa de corpo de mulher, como período fértil, eu nunca havia ido ao ginecologista, então
fomos ao médico, os quatro. Explicamos a situação”.

No deslocamento entre conceber a idéia até o ato de gerar a criança, os corpos

262
Discussão preparatória para o Seminário Nacional de Saúde GLBT, que abordou entre outras questões, a
disponibilização de tecnologias reprodutivas para as lésbicas. No entanto, ainda nenhum avanço nesse sentido foi
garantido.
263
Neil, entrevista pessoal, São Paulo, 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 177

novamente ocupam um lugar privilegiado. “Foi uma escolha muito difícil e violenta na minha
vida, nunca tinha transado com um homem, muito menos fazer o papel de “passiva” como
uma mulher (...)”.

Um corpo passivo, a metáfora de um corpo-caixa será construída por Neil para


explicar sua gravidez como um período em que o corpo seria uma recipiente no qual cresceria
o presente para sua esposa. No entanto, esse corpo está em movimento e as alterações no
corpo foram sentidas como estranhamento, porque ele não poderia antecipar o processo pelo
qual os ductos mamários dilatam e produzem leite, as contrações uterinas, os movimentos do
bebê.

Eu nunca li nada durante a gravidez, eu não me interessava. Eu não sabia


nada disso (...). Eu fiquei grávido e foi muito louca a questão da gravidez
porque eu me considerava um homem, mesmo na questão lésbica e aquilo
foi crescendo (a barriga) e eu tinha que usar roupas que não eram
masculinas, assim... Vestidos eu não usaria, minha companheira mandou
fazer uns macacões que não tinham nada de masculino (risos), mas...

A gravidez como apenas um processo espontâneo e fisiológico também escapa ao


controle do Neil e o coloca entre as roupas, o feto e o afeto. “Foi emocionante escutar o
coraçãozinho do bebe, eu chorei, foi o único momento que eu me lembre.” Conversar com o
bebe, acariciar a barriga eram ações realizadas pela esposa. Não foram somente as mudanças
do corpo e das roupas durante a gravidez que se apresentavam como desafios para Neil,
também as relações sociais, a não aceitação num espaço de sociabilidade que ele transitava
sem problemas quando estabelecida a distinção de gênero.

Eu era considerado uma lésbica caminhoneira, andava entre os homens,


conversava coisas de homens, mas sem misturar as coisas, você é aceito se
corresponder ao papel de homem, de macho. Muitos amigos se afastaram
porque não aceitaram o fato de eu ter me deitado com um homem. Há 15
anos atrás, no interior, isso não era admitido entre as lésbicas. Eles não
percebiam como era difícil para mim, manter minha masculinidade, apesar
de grávido.
A gravidez era a revelação materializada do intercurso sexual com outro homem, foi a
confirmação do ato sexual que deslocou Neil para o pólo feminino aos olhos dos amigos.
Miguel Vale de Almeida (1996) considera que a masculinidade não é simplesmente a
interpretação cultural de um dado natural, sua definição, aquisição e manutenção é
internamente constituída por assimetrias e hierarquias num processo de vigilância e disputa.
Nesse espaço instável, Neil deixou de ser considerado pertencente ao masculino quando,
numa relação direta, os amigos associaram relação
Vidas que desafiam corpos e sonhos 178

heterossexual\gravidez\feminino\mulher\mãe. Ao problematizar o debate sobre a Síndrome do


Nascimento Virgem, Marilyn Strathern (1995) postula que as práticas anticoncepcionais
separaram sexo de procriação, as novas tecnologias reprodutivas desvincularam concepção e
sexo, mas, efetivamente, as sociedades euro-americanas não separaram procriação das
relações de gênero.

Neil entende o parto como o demarcador de uma situação ainda de menor controle.

Veio uma enfermeira e me colocou a XXX do lado. Eu fiquei ali,


emocionado sim, o desespero mesmo foi quando me disseram que eu teria
que amamentar... Eu fiquei desesperado, mandei chamar minha
companheira, amamentar não, meus seios não. Sobre isso não tinha acordo.

Gestar, dar à luz, amamentar e acariciar configuram atividades correlatas a um ideal


hegemônico de mulher, e através do qual a maternidade constituiria a mãe. Segundo Marilyn
Strathern, seria inconcebível, na nossa sociedade, uma criança nascer sem mãe e, observando
o estranhamento provocado por Neil, penso que é igualmente inimaginável uma mãe não ser
mulher.

Se, para Strathern, a problemática colocada pelos Trobriands seria a idéia de uma
maternidade sem sexo, penso que o desafio colocado por Neil poderia apoiar a discussão de
uma maternidade sem gênero.

As cirurgias de neocovulvoplastia e neofaloplastia produzem sujeitos estéreis.


Observei que após o início do tratamento hormonal um dos primeiros procedimentos
cirúrgicos a que os homens (transexuais) foram submetidos é a retirada do aparelho
reprodutor feminino. Não identifiquei nenhuma orientação explícita sobre esse aspecto, mas o
trabalho de Tereza Vieira (1995) deixa pistas para pensar, quando comentando o Código Civil
holandês ela analisa que a esterilização é uma condição para a realização da cirurgia “Isto
significa que os testículos, os ovários ou o útero devem ser retirados. Tal alínea visa impedir
que as crianças nasçam de pais cujo sexo jurídico é oposto ao sexo biológico” (1995, p. 208).
Vidas que desafiam corpos e sonhos 179

É preciso garantir que sendo homens, J.A.P., C.H.


e G.B.S., não desorganizassem ainda mais as normas de
sexo e gênero ousando ser mãe. A estrutura do parentesco
poderia não suportar tamanha insubordinação, no entanto,
no decorrer da pesquisa de campo encontrei Thomas
Beatie grávido, a imagem do homem (transexual), em
reportagem da revista The Advocate, em março de 2008,
e, posteriormente, replicada em diferentes sites de
notícias264, informa o estranhamento e a
“espetacularização” provocada pela nova situação.

Fonte: G1, Globo.com


(Foto: El País/Reprodução)
Outro episódio
envolvendo a gravidez de um homem (transexual) foi
noticiado no site da UOL, já por ocasião da conclusão desta
tese. As imagens disponibilizadas, nos dois casos, guardam
semelhanças, ambas enfatizam o crescimento do abdômen e
a ausência de mamas em contraposição a presença de
caracteres secundários masculinos como barba e
distribuição pelosa. Na reportagem, o espanhol Rubén Noé
diz estar negociando a publicidade de sua gestação, a
exemplo do ocorrido com Thomas Beatie, o que confere a
Fonte: www.uol.com.br esta gravidez a conotação de fantástica.

Acredito que a medicina e o judiciário, no Brasil, ainda não enfrentaram tamanho


deslocamento em que nem mesmo a maternidade (um dos ícones do ser mulher) fosse capaz
de subjetivar os homens (transexuais) no feminino.265

264
Notícia veiculada no site Globo.com com a seguinte manchete: “Thomas Beatie, de 34 anos, irá ao programa
de Oprah Winfrey. Ele se submeterá a uma ultra-sonografia durante o espetáculo”. Disponível em:
http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL385386-5602,00-
TRANSEXUAL+GRAVIDO+CONTARA+SUA+HISTORIA+NA+TV+AMERICANA.html consultado em
02/04/2008. Também a Reportagem intitulada: “Inseminação de transexual grávido foi feita em casa pela
mulher” disponível em: http://noticias.terra.com.br/mundo/interna/0,,OI2726693-EI8141,00.html Consultado em
03/04/2008. No Brasil, o Canal Discovery veiculou em 15/02/2009 a reportagem realizada pela BBC com
trajetória da gravidez, parto e primeiros meses do nascimento da filha de Thomas Beatie.
265
Em 23/03/2009 o site da UOL anunciou outro episódio de gravidez de um homem (transexual), agora na
Espanha. Disponível em: http://noticias.uol.com.br/bbc/2009/03/23/ult36u46417.jhtm.
Flavia Teixeira 181

CAPÍTULO 4

Diálogos que disfarçam conflitos por explodir


Flavia Teixeira 183

CAPÍTULO 4

Diálogos que disfarçam conflitos por explodir266

Os traços fluidos da identidade das pessoas (transexuais) desafiam os saberes dos


especialistas e colocam problemas também em termos do movimento social. A idéia central
deste capítulo é apresentar alguns dilemas e paradoxos identificados nas lutas por
reconhecimento das integrantes do Coletivo Nacional de Transexuais.267

Os limites entre fronteiras identitárias constituem o ponto de partida deste capítulo. A


partir das discussões pautadas no XIV Entlaids, problematizo as posições desejadas e outras
recusadas pelas mulheres (transexuais). Demonstro que, ao reivindicarem a posição de
mulheres, elas promoveram uma separação significativa com o movimento das travestis, que
não demandam tal reconhecimento. Num segundo movimento de demarcação de espaços,
entendo que a reivindicação da substituição do termo transexual por mulheres que vivenciam
a transexualidade é utilizada como uma estratégia para se distanciarem do movimento
LGBTT. E, retornando à demanda de reconhecimento pelo movimento feminista, as mulheres
(transexuais) buscam uma legitimidade que não pode ser alcançada através da chancela do
Estado.

Finalizando o capítulo, a análise das Portarias do Ministério da Saúde que instituem e


regulamentam o “processo transexualizador no SUS” exemplifica os limites e armadilhas que
enredam as pessoas (transexuais) na disputa por reconhecimento e legitimidade.

266
Clarice Lispector, Estrela Perigosa.
267
As vozes predominantes foram das mulheres (transexuais). Os homens (transexuais) foram silenciados nessa
trajetória, conforme discutirei na última seção.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 184

A abertura oficial do evento aconteceu ontem à noite. Cheguei atrasada ao


saguão do hotel onde o evento se realizaria. As duas primeiras mesas
programadas para este período da manhã teriam iniciado, o que explicaria o
fato de não encontrar ninguém conhecido no saguão do hotel a quem
solicitar informações. Encontrei o cartaz indicativo, me dirigi ao elevador e
aguardei sua chegada. Entrei acompanhada por um homem de aparentemente
40 anos. Até então não havia notado sua presença. Tudo não seria digno de
nota se, ao descer no 15º andar, esse homem não tivesse me abordado.
Aquele parecia seu “destino final” e, segurando a porta do elevador com suas
mãos, me convidou a acompanhá-lo até o quarto. “Não; estou trabalhando” -
foi a resposta. Ambígua, mas a única que consegui encontrar no momento
em que ele me apresentava muitas outras questões. A percepção de que ele, a
partir do meu destino marcado no elevador, teria estabelecido uma relação
direta entre transexuais, travestis e prostituição me parecia clara e reafirmava
uma analogia socialmente compartilhada entre o universo da
transexualidade/travestilidade e a prostituição. O que não possuía a clareza
era o lugar que eu ocupei para ele: mulher/travesti/transexual? Esta não seria
a primeira vez que eu me encontrava embaralhada entre as fronteiras, no
XIII Entlaids, sediado em Goiânia, no ano anterior, ouvia nos corredores e
na recepção do hotel a tentativa de os hóspedes adivinhar em se eu seria ou
não mulher, “esta seria a menor travesti que já vi” ou “é muito delicada para
ser travesti”. Hoje foi diferente; ao ser abordada no elevador, a questão
desorganizadora seria: “estaria eu transvestida?”; “o quê do meu ‘jeito’ de
corpo estaria em questão?” ou recolocando: “corpo não seria mais o suporte
inequívoco de pertencimento a qualquer dessas categorias?”. Realmente, eu
estou trabalhando. Se aceitasse a proposta do hóspede estaria também
trabalhando, mas numa relação onde não domino os códigos, não fui
iniciada.268

Os limites entre as fronteiras identitárias pareciam anunciados no elevador e seriam


tensionados durante o XIV Entlaids.269 Entre as atividades propostas para o evento, duas delas
privilegiavam essa discussão: as Rodas de Conversa “Gênero, Transexualidade e
Travestilidade” e “TT's e a Inserção no Movimento de Mulheres”. Prevista para ocorrer no
primeiro dia do encontro, a Roda de Conversa “Gênero, Transexualidade e Travestilidade”
revelava que a temática das identidades deixava de ocupar o espaço dos corredores e das
“disputas informais”.270 Entre os convidados, um antropólogo, um psicólogo e duas travestis.

268
Anotações do Caderno de Campo, XIV Entlaids, São Paulo, 27/06/07. Agradeço ao Marcos Benedetti por
compartilhar as reflexões durante o Encontro.
269
O XIV Entlaids ocorreu de 26 a 30 de junho de 2007, em São Paulo. É relevante destacar que esse foi o
primeiro Entlaids cuja organização ficou sob a responsabilidade de uma integrante do Coletivo Nacional de
Transexuais. O impacto dessa liderança será percebido na escolha das pautas.
270
No XIII Entlaids observei uma preocupação das mulheres (transexuais) em identificar outras mulheres
(transexuais) que, potencialmente, poderiam integrar ao grupo. Os critérios utilizados eram arbitrários, mas
enfatizavam a forma de portar o corpo, definindo “um jeito de ser transexual” distinto de “um jeito de travesti”.
A preocupação das mulheres (transexuais) em se distanciarem das travestis pode ser identificada na literatura
conforme discutido nos capítulos anteriores. Aqui, a análise dessa reivindicação será ampliada.
Flavia Teixeira 185

A ausência de representantes do Coletivo Nacional de Transexual sugere uma estratégia para


evitar conflitos, porém, através de uma conversa informal entre as integrantes deste segmento,
percebi que esta ausência foi pensada considerando que os representantes dos saberes
acadêmicos se ocupariam de demarcar e legitimar esse espaço, uma vez que, para elas, “já
existe todo um conhecimento científico sobre a transexualidade”.271 Acredito ser pertinente a
observação de Jorge Leite Jr. (2008, p. 209) de que a construção da áurea de um saber sobre a
transexualidade – mesmo que atrelado ao discurso patologizante – relegou a travestilidade
para o domínio das moralidades e, na disputa por se firmar em uma entidade específica, se
constituiu, por vezes, num lugar de ancoragem acionado por representantes do movimento
como um espaço de legitimidade confortável. Percepção compartilhada por Elizabeth
Zambrano:

Transexuais seriam “muito doentes” mas, através da cirurgia de “troca de


sexo”, poderiam aceder a uma relativa normalidade, pois haveria a “cura” da
doença, referendada pela Medicina. “Cura” denota aqui o enquadramento
cirúrgico da pessoa na norma heterossexual pois, significativamente, a
possibilidade de haver um/a transexual gay ou lésbica não é sequer
“pensável”. Travestis comporiam o grupo mais “doente” e rechaçado. Além
de estarem ligados no imaginário social à prostituição e à violência,
carregam o peso da ambigüidade. Se para os transexuais o desejo de fazer a
cirurgia diminui a “doença”, para as travestis o desejo de não fazê-la é um
agravante expressivo (2008, p. 33).

Planejada como última reunião do dia, a atividade foi suspensa em razão de


acontecimentos internos que geraram atrasos na agenda e não foi realocada durante o evento.
Penso que a dificuldade em remanejar horários para essa atividade ocorreu menos em função
da rigidez das agendas do que pela fragilidade que a temática apresentava. Uma distinção que
parecia ameaçadora apenas no plano teórico, uma vez que o espaço para as reuniões separadas
de cada segmento constava na programação.

Como dito anteriormente, no XIII Entlaids realizado em Goiânia, em 2006, as reuniões


dos segmentos eram realizadas de maneira informal. Reafirmo que o fato de esta reunião, em
2007, constar como uma das atividades oficiais do evento apontava para a maior preocupação
de delimitar as fronteiras entre as travestis e as pessoas (transexuais). A coincidência do
horário para as reuniões reafirmava a crença na impossibilidade de deslizar entre as duas
posições e, também, a imposição de que as pessoas se definissem em que lugar se
reconheciam.

271
Anotações do Caderno de Campo, XIV Entlaids, São Paulo, 27/06/2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 186

A organização da Roda de Conversa “TT's e a Inserção no Movimento de Mulheres”


convidou para a discussão duas representantes do movimento feminista, uma das travestis e
uma mulher integrante do CNT. Em função da ausência de duas convidadas, uma feminista e
a outra travesti, a representante da Rede Latinoamericana e Caribenha de Pessoas
Transexuais, Marcela Romero, embora não integrasse a programação oficial, foi convidada a
compor os trabalhos da mesa.

As ausências das representantes da organização feminista e da ANTRA


foram apresentadas de maneira diferenciada pela coordenadora da mesa. A
ausência da representante da organização feminista foi avaliada como um
possível atraso, já a da organização das travestis foi acompanhada por um
comentário “não deve estar interessada”. Ao sugerir que a temática proposta
pela mesa não interessaria a um determinado segmento poderia estar
indicando que essa especificidade não integra o cotidiano deste grupo.272

A presença significativa das travestis na sala contrariaria, inicialmente, essa


observação da coordenadora. No momento do debate, identifiquei que a unanimidade das
questões elaboradas pelas travestis se dirigia à representante da Rede Latinoamericana e
privilegiava a expectativa de compreender como vivem e quais são as estratégias de
enfrentamento das adversidades encontradas pelas travestis e transexuais da América do Sul,
preocupação compartilhada com a representante da ANTRA, que integrou posteriormente o
grupo de palestrantes. De fato, a temática da mesa não parecia despertar o interesse das
travestis retratado na ausência de perguntas dirigidas às demais representantes da mesa. Não
se perceberiam como mulheres?273 Essa questão ficou pairando no ar, foi apresentada num
tom acusatório pelas mulheres (transexuais) e acompanhou o título da apresentação da
representante do CNT - “somos todas mulheres????”. Interrogação que parecia endereçada
especificamente às travestis, uma vez que as mulheres (transexuais) foram contempladas
através de sua fala – até que, na mesa de encerramento dos trabalhos, no sábado, a presidente
da ANTRA encerra a mesa dizendo: “não somos homens, não somos mulheres, somos
travestis e queremos ser respeitadas como travestis que somos”.274

272
Anotação de Caderno de Campo, São Paulo, 29/06/2008.
273
Identifiquei várias brincadeiras jocosas entre as mulheres (transexuais) que, ao se referirem às travestis,
colocavam o pronome masculino junto ao nome que as identificaria ou se referiam a elas usando o duplo ele/ela
acompanhado por uma expressão de dúvida.
274
Anotações de Caderno de Campo, 30.06.2007. Mesa: “Marketing Pessoal e Ética no Cotidiano de TTs”. Após
a mesa, transcorreu uma reunião das travestis com a equipe organizadora do evento, que foi convocada pela
presidente da ANTRA. Em função de a reunião ter sido anunciada no final de sua fala e enfatizado o caráter
Flavia Teixeira 187

A representante das travestis parece adotar a perspectiva de Judith Butler (2004, p. 35)
de que mesmo o “insulto” pode ser devolvido ao falante de uma forma diferente. A posição
adotada, por ela, é de que a palavra travesti pode se despreender do original e construir um
outro significado.

Esse posicionamento não causa estranhamento; a não assunção pelas travestis de uma
posição de mulher foi identificada por William Peres (2005) e também foi destacada na
dissertação de Rubens Ferreira, que comenta: “(...) na tradição antropológica, os indivíduos
são estudados conforme a classificação que utilizam para si. Por conseguinte, quando
inquiridas se identificavam como mulheres, as respostas negativas evidenciavam que se
reconheciam como travestis” (2003, p. 13). Ao investigar as estratégias definidoras das
performances de homens e bichas no universo das travestis, Leandro Oliveira contribui para a
discussão da não reivindicação da categoria mulher pelas travestis, ao afirmar que “As
travestis não se percebem como – nem desejam tornar-se – ‘mulheres’, mas percebem-se ao
menos em parte ‘femininas’ e consideram essa feminilidade como um valor a ser perseguido”
(2006, p. 36). Estas falas são emblemáticas porque desconstróem e recolocam um conjunto de
discursos sobre as travestis. Ao mesmo tempo em que problematizam a idéia recorrente de
que as travestis se considerariam homens. Estar nesta fronteira.... Reivindicar o pênis sem
necessariamente avocar a posição de homem, construir um corpo feminino deslocado do
status de mulher e transitar nos dois gêneros colocariam as travestis num outro projeto de
reconhecimento que não inclui o ingresso nos coletivos feministas.

A entrevista da presidente da ANTRA no Programa Jô Soares275 foi veiculada durante


o XV Entlaids. A afirmação de que “ser só homem ou ser só mulher é muito pouco” para
responder ao entrevistador sobre a definição de travesti foi aplaudida com entusiasmo pelas
participantes do encontro. Afirmação que retornaria em dois outros momentos, sempre
acompanhada de aplausos.276

Apesar de as travestis não reivindicarem participar do movimento feminista, não


significa que não compartilhem pautas de lutas - como identificado por William Peres:

fechado da mesma, eu considerei por adequado me retirar ao término da mesa. No entanto, fui convidada a
permanecer na sala pela própria presidente da instituição que justificou às demais dizendo que eu poderia
contribuir e que seria uma pessoa de confiança. Ela já havia explicitado em público que eu seria capaz, mesmo
não sendo travesti nem transexual, de compreender o que significa ser.
275
Programa de Auditório exibido pela Rede Globo de Televisão no dia 03 de setembro de 2008. Disponível
em :http://video.globo.com/Videos/Player/Entretenimento/0,,GIM877780-7822-
KEILA+SIMPSON+DEFENDE+OS+DIREITOS+DOS+TRAVESTIS,00.html consultado em 05 de dezembro
de 2008.
276
Anotação de Caderno de Campo, Salvador, setembro de 2008.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 188

Ônix entende ainda que as mulheres precisam se juntar às travestis, que


assistiu umas palestras de umas feministas, e que achou que elas estão no
caminho certo, de denunciar o machismo e a escravidão das mulheres, e que
como as travestis também representam uma forma de mulher, elas também
seriam oprimidas (2005, p. 85).

Essa disputa por estabelecer distinções apresentou reflexos na elaboração de políticas


públicas em saúde quando, em 2007, foram realizadas as negociações para a elaboração dos
Planos de enfrentamento da epidemia da Aids coordenadas pelo Programa Nacional de DST e
Aids em que as travestis integraram o “Plano Nacional de Enfrentamento da Epidemia de
Aids e DST entre Gays, outros Homens que fazem Sexo com Homens (HSH) e Travestis” e
as mulheres (transexuais) o “Plano Integrado de Enfrentamento da Feminização da Epidemia
de Aids e outras DST”.277

Assumidas as posições identitárias que separaram as travestis e as mulheres


(transexuais), a reivindicação a seguir parecia ser a de se afastar do movimento LGBTT.278
Para tal, uma das estratégias seria a de abandonar o termo transexual.279

De que servem as flores que nascem pelos caminhos, se o meu


caminho sozinho... é nada...280
O termo Mulher e/ou Homem que vivencia a Transexualidade como substituto para
mulheres transexuais e/ou homens transexuais foi proposto na lista do Coletivo Nacional de
Transexuais, pela primeira vez, durante uma discussão para a definição da palavra transexual,
solicitada pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais, em fevereiro
de 2008.281 O argumento apresentado, naquele momento, seria de que a posição de mulher ou
homem seria evidenciada em detrimento do termo transexual.

277
Os referidos documentos podem ser consultados no site: www.aids.gov.br. Percebo aqui o primeiro momento
em que, explicitamente, os homens (transexuais) ficaram à deriva do reconhecimento em relação ao acesso à
saúde.
278
Sigo aqui a nomenclatura adotada na I Conferência Nacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e
Transexuais – LGBT - realizada em Brasília/DF, de 5 a 8 de junho de 2008.
279
A separação das travestis também é significativa, pois, embora as travestis se mostrem confortáveis no
movimento LGBTT, nem sempre elas podem ser enquadradas no esquema conceitual da homossexualidade, a
não ser que permaneçamos ancorados na biologia (BENEDETTI, 2005, pp. 51-2).
280
Música: Inútil paisagem, intérprete: Antonio Carlos Jobim, Álbum: Antonio Carlos Jobim's Finest Hour,
2000.
281
Definição de "transexual" para dicionários, e-mail recebido através da lista de discussão em 20/02/2008.
Flavia Teixeira 189

Observei a utilização pública do termo “mulheres que vivenciam a transexualidade”282


durante a I Consulta Nacional sobre DST/Aids, Direitos Humanos e Prostituição.283 Percebi o
termo ser utilizado, também, no documento entregue aos participantes. A adoção do mesmo
pelos representantes do Programa Nacional de DST/Aids e sua replicação pelos
representantes do Ministério da Saúde e Secretaria Especial de Política para as Mulheres
expressam uma posição política afinada com a perspectiva da despatologização da
transexualidade, principalmente para aqueles que desempenham a função de assessores ou
técnicos. Essa percepção do trânsito em via de mão-dupla no estabelecimento de políticas de
saúde para as pessoas (transexuais) é compartilhada por Izis Reis:

(...) as políticas públicas constroem subjetividades que se mostram ou se


colocam através de duas dobradiças: por um lado, corporalidades específicas
e por outro, valores, emoções, auto-percepção e modos de vida de um grupo
que articula demandas pela visibilidade de sua condição desvinculada de
idéias patologizantes. O trajeto inverso também acontece: um grupo que
organiza demandas pela visibilidade, que possui valores, emoções, auto-
percepção e formas corporais (e de vivenciá-las) específicas e constrói
subjetividades, influencia as ações da esfera estatal (2008, p. 127).

Essa posição não é hegemônica no movimento social. Embora fosse significativa a


ausência do Coletivo Nacional de Transexuais no XV Entlaids em Salvador284, a questão foi
problematizada nas mesas, nas intervenções e, principalmente, no documento que resultou da
plenária deliberativa, a qual solicitou a uniformização no uso dos termos ao Ministério da
Saúde e demais órgãos do governo federal, adotando a seguinte terminologia: homens
transexuais, em detrimento da terminologia médica, transexuais femininos (FtM); e mulheres
transexuais, em oposição ao uso médico do termo transexuais masculinos (MtF).285 Nesse
posicionamento não percebo um enfrentamento do discurso médico, uma vez que parecia
superada essa questão, pois em nenhum documento do Ministério da Saúde ou outro órgão
federal dirigido a este segmento a nomenclatura estava sendo utilizada.286 A atitude explícita

282
Nesta seção, me refiro exclusivamente às mulheres (transexuais) que participam do Coletivo Nacional de
Transexuais; enfatizo que os homens (transexuais) não foram considerados nesse debate.
283
Realizada em Brasília, no período de 26 a 28 de fevereiro de 2008.
284
Embora alguns(mas) integrantes do Coletivo Nacional de Transexuais estivessem presentes, nenhuma fala em
nome deste Coletivo foi registrada. Na programação também não constava nenhuma referência a ele.
285
Segundo Lorenzo Bernini (2008, p. 49), a exemplo do ocorrido no movimento gay e lésbico, em que os
militantes se afastaram da terminologia médica, também as pessoas transexuais reivindicaram o lugar político de
mulheres transexuais e homens transexuais em oposição aos termos transexuais MtF e transexuais FtM
respectivamente.
286
A importância política de romper com a utilização desta terminologia do jargão médico foi discutida por
Vidas que desafiam corpos e sonhos 190

era de descontentamento das pessoas (transexuais), principalmente dos homens (transexuais),


com a adoção do termo “mulheres e homens que vivenciam a transexualidade” em detrimento
de homens e mulheres transexuais.

O conflito identificado durante o XV Entlaids poderia ser atribuído ao fato de que não
houve uma discussão ampliada dessa questão no interior do segmento. Nenhuma reunião
presencial do Coletivo Nacional de Transexuais ocorreu no período entre a realização do XIV
Entlaids287 e a I Consulta Nacional sobre DST/Aids, Direitos Humanos e Prostituição, em
fevereiro de 2008, que possibilitasse a discussão e a decisão pela adoção coletiva do termo.288

Izis Reis (2008) acompanhou o grupo de trabalho destinado a organizar as demandas


do segmento das pessoas (transexuais) composto pelas representantes do Coletivo Nacional
de Transexuais e representantes do governo durante o Seminário Nacional de Saúde da
População GLBTT na Construção do SUS.289 No trabalho da pesquisadora, também não é
mencionada a reivindicação desse segmento pela modificação da nomenclatura, conforme
fragmento abaixo:

Logo, o contato ou a articulação com que seria considerada a base do


Coletivo se restringe àqueles que estão dispostos a se afirmar como mulheres
e homens transexuais, e não simplesmente como mulheres e homens (e
ponto final). A organização como grupo que pleiteia voz política só pode
ocorrer quando não existe negação do corpo anterior à modificação cirúrgica
(nos casos de pessoas já operadas). Ao mesmo tempo, as pessoas presentes
no GT reconhecem (e demandam isto) a diversidade de modos de
experiências transexuais (REIS, 2008, p. 113).

A reivindicação das representantes do CNT, naquele momento, parecia acompanhar a


estratégia sugerida por Judith Butler (2005, p. 171) da necessidade de adotar posições de
sujeito para ocupar os lugares disponíveis de reconhecimento dentro do Estado e para receber
os serviços de saúde. No entanto, essa posição se modificará.

No glossário que integra o texto base da I Conferência Nacional de Gays, Lésbicas,

Berenice Bento (2003).


287
Nesse encontro, o termo mulheres que vivenciam a transexualidade não foi utilizado pelas integrantes.
288
Como a primeira lista do Coletivo Nacional de Transexuais foi apagada com todos os seus registros e sem
aviso prévio aos integrantes, não tenho condições de me reportar a ela para nova busca no sentido de identificar
algum outro momento em que tenha surgido a discussão na lista.
289
Organizado pela Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde (SGEP/MS) e
realizado no período de 15 a 17 de agosto de 2007.
Flavia Teixeira 191

Bissexuais, Travestis e Transexuais290, o deslocamento dessa posição pode ser percebido na


definição do termo transexual, que apresenta a transexualidade como uma situação transitória
vivida por homens e mulheres.

Transexual: pessoa com identidade de gênero que se caracteriza por uma


afirmativa de identificação, solidamente constituída e confortável nos
parâmetros de gênero estabelecidos (masculino ou feminino), independente e
soberano aos atributos biológicos sexualmente diferenciados. Esta afirmativa
consolidada pode, eventualmente, se transformar em desconforto ou
estranheza diante destes atributos, a partir de condições sócio-culturais
adversas ao pleno exercício da vivência dessa identidade de gênero
constituída. Isto pode se refletir na experiência cotidiana de auto-
identificação ao gênero feminino – no caso das mulheres que vivenciam a
transexualidade, que apresentam órgãos genitais classificados como
masculinos no momento em que nascem, e ao gênero masculino - no caso de
homens que vivenciam a transexualidade, que apresentam órgãos genitais
classificados como femininos no momento em que nascem. A
transexualidade também pode, eventualmente, contribuir para o indivíduo
que a vivencia objetivar alterar cirurgicamente seus atributos físicos
(inclusive genitais) de nascença para que os mesmos possam ter
correspondência estética e funcional vivência psico-emocional da sua
identidade de gênero constituída (BRASIL, 2008, p. 71).

Essa definição, encaminhada pelo Coletivo Nacional de Transexuais, desloca não


somente o termo transexual, mas também a centralidade da cirurgia como delimitador de uma
identidade; no entanto, esta posição apresentará ambigüidades e contradições, principalmente
em relação à cirurgia. A reivindicação formal da terminologia mulheres que vivenciam a
transexualidade parece ser datada de fevereiro de 2008. No debate interno do grupo,
desencadeado após o XV Entlaids, algumas integrantes se posicionaram. Reproduzo aqui os
trechos que sugerem esse deslocamento:

A) Em tempo...
nestes últimos dias pensei muito em quem realmente sou conceitualmente.
Nesta época pré-cirúrgica, e como disse recentemente em um email anterior,
venho notando todos os problemas que tenho por causa desta
transexualidade que está provisoriamente intrínseca à pessoa [ ] como
nome, genital, impossibilidade de me casar oficialmente, etc, etc; resolvidas
já, de acordo com meu próprio julgamento, questões como hormonização, e
o mínimo de adequação estética do meu corpo com relação ao meu gênero,
Mulher. (...)

290
Convocada por meio do Decreto Presidencial de 28 de novembro de 2007, com o objetivo propor diretrizes
para a implementação de políticas públicas e o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos
de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais – LGBTT, ao mesmo tempo em que pretendia avaliar e
propor estratégias para fortalecer o Programa Brasil sem Homofobia. Sua organização ficou vinculada à
Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 192

Nesse sentido, vejo-me agora em um processo transitório, que se arrasta por


alguns anos, aliás, que vem arrastando um conjunto de fatores junto a mim, a
que eu me arriscaria a atribuir o nome de “síndrome dos problemas da
transexualidade”, a qual me fez dedicar grande parte dos meus esforços,
durante estes longos anos, para ir sanando, pouco a pouco, as consequências
negativas que alguns desses fatores têm refletido na minha vida. Eu diria que
estou vivenciando um processo transitório, ESTOU VIVENCIANDO A
TRANSEXUALIDADE (destaques no original).291

B) Olha, numa opinião muito pessoal, eu entendo que o termo “Mulher


Transexual” me contemplava bem, assim como “Mulher que Vivência a
Transexualidade”, pois na verdade, o que de fato somos são MULHERES e
HOMENS. Transexual, transexualidade, etc. são as classificações que nos
apresentaram e que caracterizam essa “incongruência”, divergência,
contraste entre a realidade biológica e a íntima, sendo que temos certeza do
nosso gênero, não sendo ele dúbio, múltiplo, mesclado, bipolar ou qualquer
coisa diferente de masculino OU feminino.
Entendo que, nasci mulher, mas meu biológico não condizia com essa
realidade e não o contrário, nasci homem e não aceitei isso. Logo, sou uma
MULHER, cuja uma das minhas características é a Transexualidade. Assim
como tem a MULHER NEGRA, tem a mulher TRANSEXUAL, ou
VIVENCIANDO A TRANSEXUALIDADE. Ai eu faço algumas
considerações:
Quando me coloco como MULHER TRANSEXUAL, isso pode ser
entendido como NÃO TRANSITÓRIO. Logo, eu reconheço que após a
cirurgia e as correções do prenome e sexo, eu continuo sendo transexual. É
uma forma de ver as coisas e acredito que tenha pessoas que se sintam assim.
Por outro lado, quando me posiciono como MULHER VIVENCIANDO A
TRANSEXUALIDADE, eu compreendo que esse processo é transitório. Aí
é que pega a nossa discussão toda. Acreditamos mesmo que é transitório?
Homens vivenciando a homossexualidade seria impossível, pois a
homossexualidade não é transitória, mas mulher vivenciando a
transexualidade é possivel, pois, após todas, e eu disse TODAS as suas
necessidades atendidas, o que sobra é uma mulher vivendo na sociedade com
direitos iguais a qualquer outra mulher – aí que pergunto, onde que a
transexualidade desta pessoa influirá na sua vida social e política?

Enfim, gente, dando minha declaração pessoal, só estou esperando sair


minha sentença judicial, pois não há mais nada, absolutamente nada, que me
incomode em relação a minha “transexualidade”. (Grifos e destaques no
original) 292

As autoras desses depoimentos são (ou foram) reconhecidas como militantes que
trabalhavam em ONG´s ligadas ao movimento LGBTT e atuavam diretamente na elaboração

291
E-mail veiculado através de lista de discussão em 15/10/2008.
292
E-mail veiculado através da lista de discussão em 08/10/2008.
Flavia Teixeira 193

de políticas públicas para o segmento das pessoas (transexuais). Esses posicionamentos


pareciam reivindicar o reconhecimento dos limites do termo transexual para traduzir a
complexidade da experiência dessas pessoas.

O que entendo como problemática dessa posição não é a reivindicação da


transitoriedade do termo transexual, mesmo porque penso que o uso estratégico do termo
(transexual) pode significar estar em trânsito, um deslocamento, e não uma posição identitária
fixa que aprisiona o sujeito e homogeneíza a subjetividade das pessoas (transexuais).

A transexualidade pode ser lida como uma experiência de mobilidade que carrega um
desejo de finitude. Alcançar a “outra margem do rio” e declarar o fim desta passagem. Se para
muitos/as esse lugar é atribuído no momento do nascimento, em função de uma genitália
aparente, para os/as integrantes dessa tese tal posição depende de uma conquista. A questão
maior é que a armadilha desse discurso reside no caminho escolhido para alcançar a outra
margem do rio: a imposição da cirurgia.

Algumas mensagens circularam indicando que o Entlaids deixou de ser considerado


pelo Coletivo Nacional de Transexuais como espaço para debate de suas questões. Nessas
mensagens evidenciam que o espaço do movimento LGBTT também não é mais percebido
como lugar legítimo de representação desse segmento.

Para Judith Butler (2005, p.172), não existe posição de sujeito anterior à enunciação,
acredito que o Coletivo Nacional de Transexuais não deseja ser reconhecido a partir da
enunciação do movimento LGBTT; ou seja, demanda que as possibilidades acionadas para
seu reconhecimento estejam desvinculadas dessa posição. Algumas participantes são
explícitas: “Infelizmente esse tipo de mensagem tem se multiplicado em nossa lista!! Aqui
NÃO É UM ESPAÇO LGBTT !!”293 Outras menos enfáticas, como no e-mail que circulou na
lista após a participação de uma das integrantes em um encontro cuja temática LGBTT
expressa essa separação:

(...) como sabem, representamos este Coletivo no Encontro Brasileiro


GLBT, para o qual recebemos convite e, seguindo o que coloquei aqui há
alguns dias, tomamos o cuidado de levar nossa representação, mantendo o
posicionamento de nossa população e nos colocando como apoiadores da
luta daquele movimento.
(...) Na mesa de redes do movimento social, para a qual fomos convidadas,
colocamos nossos posicionamentos, em especial a nossa afirmação enquanto
mulheres. Com muito cuidado e respeito, procuramos enfatizar nosso
posicionamento enquanto mulheres, e nossa abertura como apoiadores

293
E-mail veiculado através da lista de discussão em 07/10/2008.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 194

daquele movimento (...).294 (grifo meu).

Nesse sentido, a pauta de lutas das mulheres (transexuais) com o movimento LGBTT
parece frágil. Ao postularem que suas demandas se afastem da luta política deste movimento,
principalmente porque compreendem que sua situação está vinculada ao ajuste da condição de
corpo/mente, as integrantes do Coletivo Nacional de Transexuais não compreendem como
pertinente a sua ligação ao movimento LGBTT, como expresso em algumas mensagens
veiculadas:

A) A conclusão do processo transexualizador em mim, com a adequação


cirúrgica e posteriormente a troca de nome e sexo, acaba se tornando o
desfecho de uma fase transitória que tem seu término quando as questões
intrínsecas a essa transexualidade acabam de existir.
Sinceramente, analisando bem, talvez como num conto de fadas, após minha
adequação cirúrgica genital, todos esses problemas que se arrastam junto a
mim por esses longos anos... *¨* blim blim *¨*... parecem desaparecer...!! E
aí.. sinceramente, acho que posso colocar aquela síndrome fatídica e
arrasadora, desculpem o tom pessoal, no fundo de um baú, lá naquela
pastinha onde eu guardo meus documentos antigos que existem lá só pra
constar, pra que eu possa pegar pra mostrar porventura alguma coisa algum
dia. Bye Bye.. Não vou precisar daquela vivência transitória, pois enfim EU
SOU MULHER. (E PONTO). E sem vivenciar mais nada. (...)295 (destaques
no original).
B) (...) Operei há 8 meses e parece que foram Séculos. Descobri que não
precisava mais dessa “muleta” chamada transexual. NÃO PRECISO. Muito
pelo contrário, me prejudica muito esta insígnia hoje. O que há 4 anos foi o
grande alívio da minha vida, hoje pode tornar-se um pesadelo se for usado
contra mim numa justiça conservadora. - desculpa quem não gostou, mas
essa é a minha realidade hoje. (...) Enfim, não me vejo hoje como Mulher
Transexual, nem como A Que Vivencia a Transexualidade. Sinto que
vivenciei sim a transexualidade, que na minha cabeça posso definir que É A
INCONGRUÊNCIA DO CORPO COM A MENTE e hoje essa
incongruência não existe mais (...) Por isso, se a questão é nomenclatura, eu
sugiro uma: PESSOAS QUE AINDA SOFREM POR CONTA DA
TRANSEXUALIDADE. Por que, se me disser que não sofre por isso, então
amiga, não faz sentido ficar aqui discutindo. Se todo o propósito do Mov.
(sic) LGBT é a conquista dos direitos iguais, após a sentença judicial, o
Estado me concede essa equiparação de direitos. Minha luta política
acabou.296 (destaques no original).

Destaco a adoção da sigla LGBT realizada pela militante, evidenciando o não

294
E-mail veiculado através da lista de discussão em 29/11/2008.
295
E-mail veiculado através da lista de discussão em 15/10/2008.
296
E-mail veiculado através da lista de discussão em 07/10/2008.
Flavia Teixeira 195

reconhecimento deste como legítimo para representar as pessoas (transexuais), ao mesmo


tempo em que reduz a atuação daquele movimento social à luta por igualdades de direitos.

Entendo que é legítima a posição de homens e mulheres (transexuais) que consideram


que a experiência da transexualidade é um elemento para a coalizão em determinadas lutas,
mas não atrelada a um critério identitário. Mas, também, no mesmo patamar, o é legítimo o
reconhecimento da reivindicação de homens e mulheres (transexuais) que compreendem sua
experiência como capaz de nomear uma luta identitária. Lendo demoradamente as mensagens,
fiquei pensando nas ciladas desses discursos.

Percebo que, através desse posicionamento, essas mulheres (transexuais) consideram


que a questão da transexualidade estaria resolvida, do ponto de vista das políticas de saúde,
com a normatização promovida pela Portaria do Processo Transexualizador, a inclusão das
mulheres (transexuais) no Plano de Atenção Básica destinado às mulheres, e também que
estariam contempladas nas políticas formuladas pela Secretaria Especial de Políticas para as
mulheres e, no âmbito jurídico, com o crescente número de sentenças favoráveis à
modificação de nome e sexo no registro civil. A luta por reconhecimento se encerraria aí,
como sugere o fragmento: “Vamos ver: pode casar? Pode. Pode trabalhar numa boa? Pode.
Terá problemas em apresentar seus documentos? Não. Terá problemas em alugar um imóvel
por conta do nome? Não. Pode adotar? Pode. Pode viver livremente? Pode”.297

A pesquisa de Elizabeth Zambrano (2008) sobre a homoparentalidade mostra uma


realidade bastante distinta sobre as perspectivas de adoção para as pessoas (transexuais). No
referido trabalho, nenhuma das suas entrevistadas que se identificavam como mulher
(transexual) reivindicou judicialmente a adoção de uma criança. Para ela,

(...) o recorte de classe torna-se obrigatório para a compreensão do modo


escolhido pelas travestis e transexuais para chegar à parentalidade. Além da
escolaridade (nenhuma das informantes completou o segundo grau) pesa, do
mesmo modo, a profissão das entrevistadas que, com exceção de uma, são
ou foram “profissionais do sexo”. Entendo que a baixa escolaridade e o tipo
de profissão — objeto de restrições por parte das instituições oficiais —
dificultem não apenas a possibilidade de adoção mas, também, o acesso aos
meios para lutar por ela. (p. 57)

Um e-mail circulou na lista de discussão trazendo a reportagem em que uma mulher


(transexual) perdeu a guarda de uma criança não gerou maiores reflexões.

297
E-mail veiculado através da lista de discussão, em 29/11/2008.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 196

O caso de Roberta ficou conhecido em todo o país no início deste ano. Cerca
de oito meses após ter recebido o menino das mãos da avó dele - que pediu
para que ela passasse a cuidar do bebê -, o transexual teve que entregar a
criança à Justiça. Na época, o promotor da cidade alegou que o bebê não
podia conviver com um casal "anormal" e não levaria uma vida "normal"
sem a presença de um pai e de uma mãe. Roberta é cabeleireira e mora há
sete anos com o companheiro, de 40 anos. 298

A autora da mensagem do e-mail parece desconsiderar que a reivindicação de


reconhecimento e inteligibilidade exige uma postura crítica e transformadora das normas que
regem o próprio reconhecimento, exigindo uma análise constante das categorias que
informam o próprio Estado sobre a legitimidade das ações e sujeitos (BUTLER, 2006, p.
170).

Durante a discussão sobre a terminologia a ser adotada pelo Coletivo Nacional de


Transexuais, em relação a se consideraram “transexuais” ou “vivenciando a transexualidade”,
a mensagem contendo uma imagem da vagina – semelhante àquelas encontradas nos
compêndios de anatomia – foi postada na lista. Ter sido enviada por uma das integrantes mais
atuantes do movimento não passaria despercebido. Em seguida, outro e-mail circulou como
resposta, demonstrando como este discurso de autoridade foi capaz de tornar realidade aquilo
que nomeava mediante a citação da convenção da autoridade. A imagem da vagina e a
mensagem foram lidas como a meta a ser alcançada para o reconhecimento de ser mulher:
“como eu sempre me afirmei como MULHER desejo imensamente”.299 Outros e-mails
circularam afirmando que a cirurgia (a construção da vagina) exteriorizaria o sentimento de
pertencimento e encerraria a incongruência. A finitude da condição transexual é declarada
como um apaziguamento garantido pela cirurgia que asseguraria o fim desta passagem.

Ao destacar a vagina como a passagem para essa outra territorialidade, essas mulheres
(transexuais) se afastam de um dos pilares das lutas do movimento feminista: a
desnaturalização da posição de mulher. A posição flagrada de algumas integrantes do
Coletivo Nacional de Transexuais, com explícita reiteração das normas de gênero, adesão ao

298
Este é um fragmento da reportagem “Após perder a guarda de bebê, transexual quer entrar em cadastro de
adoção” de Patrícia Araújo veiculada no jornal G1 de São Paulo que circulou na lista em 18/11/2008. Apenas
uma integrante encaminhou uma mensagem resumida com uma exclamação de solidariedade. Nenhuma
discussão política foi desencadeada. A reportagem está disponível em:
http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL865122-5605,00-
APOS+PERDER+A+GUARDA+DE+BEBE+TRANSEXUAL+QUER+ENTRAR+EM+CADASTRO+DE+AD
OCAO.html consultada em 18/11/2008.
299
E-mail veiculado através da lista de discussão em 01 /10/2008.
Flavia Teixeira 197

discurso médico e apoiadas na heterossexualidade300, afasta-as das pautas de luta dos


movimentos LGBTT e feminista, que historicamente questionam as normas que são
legitimadas pelo Estado como, por exemplo, as relações de poder, parentesco e reprodução, e
problematiza a reivindicação das mulheres (transexuais) por espaço nos coletivos feministas.
Entendo como preocupante a reivindicação de algumas mulheres (transexuais), integrantes do
Coletivo Nacional de Transexuais, do reconhecimento de sua posição de mulher atrelado à
presença da vagina.

Paradoxalmente, o não atrelamento ao biológico se constituiu no principal argumento


daquelas que defendem o ingresso das mulheres (transexuais) nos coletivos feministas:

Para ser lésbica e feminista, não é necessário ter Trompas de Falópio, nós
entendemos como feministas que não podemos considerar algumas formas
anatômicas de nascimento mais legítimas que outras para identificar-se como
mulher, como lésbica e feminista. Nossas identidades são uma mistura de
nossas histórias, elas se materializam em nossos corpos, negar a construção
delas é desconhecer o que somos, inventando uma essência que não existe.301

O e-mail acima sugere que o debate sobre os modos de subjetivação das identidades é
também um desafio para o feminismo. Pensar, no contexto da transexualidade, a
desnaturalização da mulher e a problematização de sua percepção como categoria universal e,
ao mesmo tempo, a (des)estabilização das posições essencializadas (HARAWAY, 2000). No
discurso médico, é recorrente o ditado em que se diz ser mais fácil construir um túnel do que
uma ponte. Reconhecer que o percurso da transexualidade marca de forma diferenciada a vida
dessas pessoas não significa compartilhar da premissa de que a única passagem possível seria
pelo túnel da vagina. Acredito que a reivindicação seria por outras travessias que tenham
túneis, pontes, barcos, atalhos, espaços de livre trânsito. Nesta nova territorialidade, as
mulheres que integram o movimento feminista estariam também se redefinindo, pois se este
lugar de chegada foi construído cirurgicamente, ou não, a natureza seria sempre uma
(in)certeza. Construir um consenso em que, a partir da chegada ao lugar de desejo
(independente do caminho percorrido), se perde a condição de viajante. E, uma vez

300
Declarações da carta elaborada pelas integrantes do CNT e entregue ao Ministro da Saúde na audiência
realizada em agosto de 2008. As discussões que esse posicionamento causou no grupo foram coletadas durante
o XV Entlaids. Anotações do Caderno de Campo, Salvador, setembro de 2008.
301
Fragmento da carta que circulou, em fevereiro de 2007, com uma exposição de motivos pelos quais o Grupo
Aireana do Paraguai justificava a recusa deste grupo em participar do VII Encontro Lésbico Feminista
Latinoamericano e do Caribe, que ocorreu entre os dias 07 e 10 de fevereiro, em Santiago\Chile. Argumentavam
que não poderiam participar de um encontro que negasse a inclusão de mulheres (transexuais). E-mail recebido
através da lista de discussão em 14.02.07.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 198

abandonada a condição de viajante, não se justificaria a permanência do uso do termo


(transexual), uma vez que o percurso de volta não é sonhado, enfim... Todas mulheres.

Considerando que não são todas as mulheres que se identificam com as lutas
feministas, mas que o movimento feminista é um movimento identitário, entendo que a
demanda apresentada é de que sejam reconhecidas como iguais – mulheres –, e esta é uma
luta política que não se vincula à chancela do Estado. Argumento que esse é um desafio para
os coletivos feministas: a construção de uma pauta comum que reconheceria de que se pode
chegar usando outros caminhos, e que a reivindicação da posição de mulher não estaria
subordinada à morfologia da genitália.

Acompanhei, desde a constituição do Coletivo Nacional de Transexuais, em novembro


302
de 2005 , a crescente preocupação de algumas integrantes em reivindicar espaço no
movimento feminista. A organização da Roda de Conversa “TT's e a inserção no Movimento
de Mulheres” também sugeria uma resposta organizada do Coletivo Nacional de Transexuais
a uma série de episódios envolvendo a discussão entre o movimento feminista e as mulheres
(transexuais) no ano anterior. Berenice Bento (2008, pp. 65-6) apresenta as negociações e os
debates gerados desde o início dos anos 90 nos EUA, quando as mulheres (transexuais)
reivindicaram ingressar nos coletivos feministas e lésbico-feministas. No Brasil, o marcador
parece ter sido durante o VI Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE)303, no qual
representantes do Coletivo Nacional de Transexuais foram convidadas a integrar uma das
mesas de discussões cuja temática seria a interface do movimento de mulheres lésbicas com
outros movimentos, a saber: feministas, negros, gays, travestis, transexuais, prostitutas e
pessoas portadoras de deficiências. As representantes desse Coletivo solicitaram participar da

302
Antecedendo o Encontro Anual da ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e
Transexuais), em novembro de 2005, um grupo com representantes de 09 Estados da Federação - que se dirigiam
para este Encontro - se reuniu para constituir o Coletivo Nacional de Transexuais. Nesse encontro, foi aprovada a
constituição de uma lista de discussão na internet para alinhar e debater posicionamentos do grupo. Embora não
estivesse presente a esta reunião, fui incluída na lista de discussão logo na sua criação. A lista foi desativada em
23/06/2008 e substituída por outra, na qual me inscrevi. Essa última permaneceu como o principal veículo de
discussão do grupo até a etapa final desta pesquisa. Respeitando as diretrizes de uso da lista, nenhuma mensagem
será reproduzida de forma a identificar o emissor e também serão utilizadas apenas partes de mensagens que
foram enviadas de modo a preservar menções de restrição e/ou privacidade.
303
Evento que aconteceu em Recife de 18 a 21 de maio de 2006. Também o seminário “Fortalecendo,
Articulando e Informando Mulheres Lésbicas, Bissexuais e Transexuais da Região Sudeste e Convidadas”,
promovido pela ABGLT, entre os dias 25 e 31 de julho de 2006, no Rio de Janeiro, antecedendo a Parada Gay
que trazia o lema “Somos Todos Iguais”, reuniu mulheres lésbicas, bissexuais e transexuais. Privilegiava os
temas relacionados às políticas públicas, à saúde integral da mulher, ao preconceito e à violência. Destaco a
presença de Maitê Schneider que, além da participação nas mesas de discussão, foi também uma das modelos da
campanha publicitária da Parada Gay do Rio de Janeiro de 2006 representando as mulheres (transexuais).
Flavia Teixeira 199

totalidade do evento, o que foi negado.304 Esse episódio (acredito que o questionamento da
posição de mulher) repercutiu em outros espaços políticos. Em junho do mesmo ano, a
organização feminista “A União de Mulheres” promoveu o debate: “Transexuais,
Transgêneros e o Movimento Feminista”.305 Nessa ocasião, uma das líderes do Coletivo
Nacional de Transexuais leu um texto de sua autoria que trazia como eixo central o
significado de sua posição de mulher. O texto foi depois replicado em alguns espaços de
militância LGBTT.306

Não seriam todos os movimentos desejados... Nem todas as bandeiras são percebidas
como dignas de serem carregadas. Observo que as mulheres (transexuais) demandam por
integrarem outros movimentos e espaços que congregam mulheres a exemplo do debate
instaurado no movimento feminista, no entanto, não observei nenhuma sinalização no sentido
de reivindicarem pertencimento à Rede Brasileira de Prostitutas.

... Todos os avisos não vão evitar... O que não tem governo nem
nunca terá307
A ausência das travestis e transexuais na mesa “Prostituição e Cidadania: conquistas e
desafios do movimento de prostitutas no Brasil”, no evento com a magnitude do VI
Congresso Brasileiro de Prevenção das DST’s e Aids, promovido pelo Programa Nacional de
Aids e Ministério da Saúde308, não poderia passar despercebida. A sessão foi coordenada por

304
A decisão de vetar a participação das mulheres (transexuais) no evento foi deliberada em plenário, o que
aponta para a ausência do consenso entre as participantes. O argumento para a restrição poderia ter se dado em
função de que elas não se identificavam como lésbicas e o evento seria fechado. No entanto um e-mail na lista do
Coletivo Nacional de Transexuais ressaltava que estava em questão se de fato uma mulher (transexual) poderia
ser considerada mulher. E-mail recebido através da lista de discussão em 21.05.06. Durante o período de
trabalho de campo, nenhuma das mulheres (transexuais) que acompanhei se identificou como lésbica. Nem
mesmo acompanhei qualquer discussão nas listas sobre qualquer uma pauta comum entre o Coletivo Nacional de
Transexuais e o movimento lesbo-feminista.
305
O evento ocorreu em São Paulo, no dia 03 de junho de 2006.
306
Texto disponível no site da G on Line no endereço:
http://gonline.uol.com.br/site/arquivos/estatico/gnews/gnews_filosofando_22.htm consultado em 04 de
dezembro de 2008.
307
Fragmentos retirados da música O que será, composição de Chico Buarque para o filme Dona Flor e seus
dois maridos de Bruno Barreto, no disco Meus Caros Amigos de 1976.
308
Realizado em Belo Horizonte, de 04 a 07 de novembro de 2006. Programação disponível em:
http://sistemas.aids.gov.br/congressoprev2006/2/index.php?option=com_content&task=blogsection&id=6&Item
id=47 consultada em 17 de outubro de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 200

Carmen Lucia de Souza Paz e contou com as presenças de Gabriela Leite (DAVIDA309) e
Leila Barreto (GEMPAC310) representando as suas associações, e também a Rede Brasileira
de Prostitutas. A outra integrante da mesa seria uma pesquisadora que, no entanto, justificou
sua ausência.311

Naquela ocasião, o movimento organizado de prostitutas do Brasil defendia o


reconhecimento legal da profissão, sem que essa regulamentação estabelecesse exigências que
violassem o exercício da cidadania, como salvo-conduto e a realização compulsória de
exames de saúde. Encontrei-me com as lideranças dos segmentos das travestis e mulheres
(transexuais) no evento, no entanto, apenas identifiquei algumas travestis neste debate. A
prostituição não parecia ser uma questão que mobilizasse nenhum dos dois grupos.

Durante a I Consulta Nacional sobre DST/Aids, Direitos Humanos e Prostituição312,


estiveram presentes representantes da Rede Brasileira de Prostitutas, Articulação Nacional de
Travestis e Transexuais e Coletivo Nacional de Transexuais. A agenda de trabalhos anunciava
a participação de representantes de todos os segmentos nos Painéis Temáticos; o acúmulo da
discussão pelas organizações representantes das mulheres prostitutas estava denunciado na
constituição da agenda. Entendo que a propriedade na condução das problemáticas pelas
mulheres prostitutas resulta da luta histórica do movimento no Brasil, luta que até aquele
momento parecia não contar com as travestis e mulheres (transexuais). Inicio a análise desse
evento recuperando a anotação do caderno de campo:

O auditório é um amplo espaço, na audiência o espaço foi dividido em dois


blocos de cadeiras. Cada bloco composto por oito fileiras com dez cadeiras
em cada. A capacidade seria, em média, para 160 pessoas. As oito mulheres
(transexuais) que se encontravam no evento se sentaram juntas na penúltima
fileira do bloco da esquerda, sendo que quatro fileiras vazias as separavam

309
Davida é uma organização da sociedade civil, fundada no Rio de Janeiro em 1992, com objetivo de promover
a cidadania das prostitutas. Informações disponíveis no endereço: http://www.davida.org.br/.
310
Grupo de Mulheres Prostitutas da Área Central de Belém é também uma organização da sociedade civil
reconhecida como referência para as questões envolvendo a prostituição.
311
Ao ser anunciada a ausência da palestrante, a representante do Movimento das Prostitutas sinalizou para uma
tensão entre a academia e o movimento social, o que teve sua maior expressão quando finalizou sua fala
direcionando o olhar para a representante do Ministério da Saúde: “o que fica para nós é que nenhum
pesquisador está autorizado a falar sobre o que é melhor para nós sem ouvir o que temos a dizer”. Desde o início
do trabalho de campo, percebo as atitudes de desconfiança e indisposição de algumas pessoas (transexuais),
especificamente do movimento social, em relação aos pesquisadores. Anotações do Caderno de Campo,
05/11/2006.
312
Resultante do acordo estabelecido entre os governos da América Latina e Caribe e organizada pelo Ministério
da Saúde como um compromisso de priorizar, no enfrentamento da Aids, os aspectos relacionados ao exercício
da Prostituição, realizada em Brasília, no período de 26 a 28 de fevereiro de 2008. O reconhecimento da
prostituição em termos de direitos humanos e trabalhistas, visando promover modificações no cenário do estigma
e discriminação, norteou a discussão e a consolidação das propostas que resultaram desta Consulta.
Flavia Teixeira 201

do restante das ouvintes. Em relação ao bloco da direita, a distância parecia


ainda maior, uma vez que todas as quatro últimas fileiras permaneceram,
quase a totalidade do tempo, vazias. As travestis sentaram-se mais diluídas
na platéia, em pequenos grupos que pareciam constituídos por proximidade
geográfica (vieram da mesma região do país). A maioria das participantes é
do movimento das mulheres prostitutas.313

A distância anunciada na escolha do “espaço” também se refletiu na participação das


integrantes do Coletivo Nacional de Transexuais. Em seu discurso, a representante sinalizou
para a temática da prostituição como uma questão menor, sendo que, naquele momento, o
reconhecimento da identidade de gênero e a busca de espaços de reconhecimento, como a
integração ao Plano Integrado de Enfrentamento da Feminização da Epidemia do HIV (2007),
a serem integradas nas ações da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, através do
II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (2008), pareciam mais significantes. A
atenção das representantes do CNT parecia centrada na potencialização da vulnerabilidade em
função da exclusão advinda da condição da transexualidade e não da prostituição em si. A
posição fica explicitada na fala da palestrante quando se coloca como “aliada do movimento
de mulheres prostitutas”. Entre as representantes no evento, apenas duas disseram de sua
vivência como prostituta, mesmo assim, não nesse espaço político.

Estive presente em outros espaços de planejamento e discussão de políticas


públicas e a inexpressiva participação do Coletivo Nacional de Transexuais
neste evento me pareceu bastante significativa. O distanciamento físico
anunciava o distanciamento nas discussões durante o encontro. Por
exemplo, no grupo de trabalho que acompanhei ontem pela manhã apenas
uma mulher (transexual) participou. Outros dois aconteceram
simultaneamente e sobre a participação neles não tenho informação. No dia
27 de fevereiro, não anotei nenhuma intervenção das integrantes do Coletivo
durante todo o período da tarde, a intervenção realizada na parte da manhã se
referia à necessidade do reconhecimento do agente de prevenção como
trabalhador da saúde nos contextos das ações para a promoção da saúde e a
relação com a sociedade civil. A ausência das lideranças do Coletivo hoje,
no último dia do encontro, incomodou as participantes do Coletivo que
conversavam entre si durante a Plenária Final. Quando essas representantes
chegaram, eram 11 horas e 20 minutos, e não percebi nenhuma preocupação
das mesmas em se inteirar das decisões que estavam sendo elencadas.314

Um procedimento comum no funcionamento da lista de discussões do Coletivo

313
Anotações de Caderno de Campo. Consulta Nacional sobre DST´s/Aids, Direitos Humanos e Prostituição,
Brasília, 26 de fevereiro de 2008.
314
Anotações do Caderno de Campo, 28 de fevereiro de 2008. Foi aqui que pela primeira vez ouvi a expressão
“mulheres que vivenciam a transexualidade” sendo empregada publicamente por órgão oficial e Coletivo
Nacional de Transexuais em substituição ao termo “mulher transexual”.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 202

Nacional de Transexuais é a circulação de informações sobre eventos em que seus membros


participam. Também a consulta de nomes para representação em eventos e as pautas de
reivindicações circulam através de e-mails. Entre os e-mails a que tive acesso, nenhuma
menção a pautas sobre a temática da prostituição foi colocada, nem mesmo quando, em
momento posterior, o Coletivo Nacional de Transexuais foi convidado a participar da reunião
do Programa Nacional de DST/Aids para a realização da Reunião de Trabalho para Agenda
Afirmativa – Prostituição, conforme estabelecido na I Consulta Nacional sobre DST/Aids,
Direitos Humanos e Prostituição.315

O pequeno investimento na questão da prostituição poderia sugerir que em um


conjunto de demandas é necessária uma priorização das ações.

Neste momento, arrisco a estabelecer que uma das explicações para o silenciamento da
prostituição pode também residir na estratégica tentativa das mulheres (transexuais) se
distanciarem das travestis. Conforme discutido acima, o exercício da prostituição pode ser
acionado como uma linha divisória entre travestis e mulheres (transexuais). Esse
“ocultamento” parece demarcar a diferenciação para além da função de um diagnóstico numa
perspectiva ampliada de consolidar uma identidade distinta.

No Brasil, alguns autores da sociologia e antropologia apontam as calçadas da


prostituição como lugares do apagamento de diferenças. Nesse sentido, me reporto ao
trabalho de Neuza de Oliveira, realizado no Pelourinho em Salvador (BA), durante os anos de
1982 a 1984:

Embora seja possível identificar no grupo de entrevistados as distinções


entre as identidades travesti, transformista e transexuais, discutidas anterior-
mente, e mesmo que alguns se auto identifiquem como transexuais, nesta
parte do estudo tais categorias não serão diferenciadas levando em conta que
o objetivo é proceder uma abordagem na qual o corpo prostituído masculino
apresenta-se enquanto imagem feminina. (1994, p. 107)

A etnografia realizada por Hélio Silva (1993; 2007) entre as travestis que se
prostituíam na Lapa (RJ) evidencia também estas identidades (con)fundidas no cotidiano
vivido entre as noites. Através do fragmento da reportagem intitulada “Os Travestis da
Vida”316, reproduzido por Néstor Perlongher, é possível perceber que a prostituição se
constituiu no amálgama capaz de situar Roberta Close como travesti (1987, p. 62). Larissa

315
E-mails veiculados através da lista de discussão em 20/06/2008 e 23/06/2008.
316
São Paulo, Revista Close nº. 6, jan. de 1981.
Flavia Teixeira 203

Pelúcio (2007) é uma das referências mais contemporâneas para pensar o processo da diluição
das identidades de travestis e transexuais no mercado sexual. Embora tenha como foco de
interesse o universo das travestis, que assim são denominadas em quase todos os momentos
de interação, a existência das mulheres (transexuais) no seu campo de investigação não pode
ser desconsiderada.

Na ausência de uma referência bibliográfica específica que trate da questão das


mulheres (transexuais) e a prostituição, adotarei como princípio a perspectiva de que existem
travestis e mulheres (transexuais) no universo da prostituição. Também o Ministério do
Trabalho e Emprego, quando reconheceu a prostituição no Código Brasileiro de Ocupações
(CBO) sob a sigla Profissionais do Sexo, incluída na categoria XX- Codificação Especial,
subgrupo Z02, atrelou a prostituição como parte constituinte da identidade das travestis e
transexuais:

5198-05 Profissional do sexo - Garota de programa, Garoto de programa,


Meretriz, Messalina, Michê, Mulher da vida, Prostituta, Puta, Quenga,
Rapariga, Trabalhador do sexo, Transexual (profissionais do sexo), Travesti
(profissionais do sexo).317

Considerar as mulheres (transexuais) e as travestis como sinônimos de profissional do


sexo é problemático no sentido que reitera o preconceito existente e naturaliza a desigualdade
de condições e acesso a educação e trabalho. Ao enfatizar a possibilidade do prazer, do desejo
e do sonho no exercício da prostituição, não pretendo minimizar a exclusão social que
empurra as travestis e as mulheres (transexuais) para a prostituição como única possibilidade
de sobrevivência ou mesmo desconsiderar a violência com que as normas de gênero são
operadas no sentido de dificultar o trânsito das mesmas em espaços outros de sociabilidade.
Embora tenha identificado durante a pesquisa a situação de “ausência de escolha” na
prostituição, as posições não se expressam em consonância com a perspectiva adotada por
Neuza Oliveira e reproduzida abaixo:

Na prostituição não existe, portanto, a desordem erótica, onírica, das


fantasias devassas: ela está submetida a mesma ordem que o trabalho no
processo produtivo legítimo, obedece as mesmas pancadas de repetição e
monotonia. O programa sexual, enquanto trabalho, se encontra na
prostituição totalmente despido de erotismo, ainda que haja gozo, ou
descarga do corpo do cliente e às vezes do corpo prostituído. (OLIVEIRA,
1994, p. 122).

317
Código Brasileiro de Ocupações, consultado no site do Ministério do Trabalho e Emprego disponível em:
www.mtecbo.gov.br/busca/descricao.asp?codigo=5198 e capturado em 06/10/2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 204

Argumento que o reconhecimento de que algumas mulheres (transexuais) também


trabalham na prostituição desestabiliza o elemento central da teoria clássica sobre
transexualidade, que repousa na aversão ao pênis e na percepção da transexualidade como
condição assexuada. Os relatos sobre a vivência da prostituição contribuem para questionar o
silêncio que se coloca sobre a transexualidade - pênis/prazer/erotismo - e criam fissuras no
próprio Coletivo Nacional de Transexuais, em que essas vivências não são admitidas na esfera
pública.

Três de minhas interlocutoras exerceram a prostituição e se dispuseram a falar desta


experiência, sendo que uma ainda trabalha como prostituta e mantém assim o seu curso em
universidade privada. Ao dizer das vivências das mesmas, nenhuma ligação com outros
fragmentos de suas histórias que compõem essa tese será estabelecida. É parte de um segredo,
e como tal, foi negociado entre entrevistadas e pesquisadora. Não relacionar com alguns
aspectos das histórias delas não invalida o argumento de se pretender explorar: as diferentes e
situadas posições que os sujeitos adotam frente à questão da prostituição. A necessidade da
manutenção de um segredo sobre a prostituição, na perspectiva das entrevistadas, foi
explicitada na seguinte frase: “A prostituição marca a gente. Tudo que eu fui até agora, todo o
meu currículo foi substituído pela lama da prostituição”. (Entrevistada C).318

Compreendo que a recusa da visibilidade é recorrente no universo das prostitutas, a


“necessidade” de se encobrir está entre os dilemas
relacionados ao exercício da prostituição apontados por
Kátia Guimarães e Edgar Merchan-Hamann (2005, p.
534).

A temática da prostituição foi privilegiada na


Reunião do QuinTas Trans de abril de 2006, conforme
pode ser observado na imagem ilustrativa desta página.
No entanto, a chamada do encontro evidencia se tratar de
uma questão problemática.

As calçadas da prostituição são compartilhadas


Fonte: Imagem disponível no Blog
por travestis e mulheres (transexuais). Nesse território QuinTasTrans

318
Entrevista pessoal, São Paulo, 11/10/2007.
Flavia Teixeira 205

encontramos subdivisões e lógicas de ocupação distintas estabelecendo outras divisões319.


Uma das minhas interlocutoras demonstra a distinta ocupação ao dizer de sua experiência em
São Paulo: “eu não ficava junto com as travestis, sempre ficava um pouco mais acima, elas
sabiam que éramos diferentes, estávamos todas na pista, mas em lugares diferentes”.
(Entrevistada A)320

Longe de contribuir para a mistificação da rua como espaço de realização única, me


proponho a pensar no valor das trocas afetivas e eróticas que ali acontecem. A fala da
Luciana, entrevistada por Hugo Denizart (1997, p. 62), já apontava para a mesma direção da
questão apresentada por minhas interlocutoras, que encontram nas ruas espaço para as
amizades/erotismo/desejo e sedução.

É na rua que encontro possibilidade de me relacionar sexualmente com os


homens. É difícil não ser aceita como mulher de verdade... ter sempre o
medo de ser descoberta. Lá não, quem passa sabe...(Entrevistada C)321

Larissa Pelúcio também identifica na rua o espaço em que as travestis sonham com um
companheiro, um “homem de verdade” (2007, p. 83). Percebo que não somente as calçadas
são compartilhadas pelas (travestis) e (transexuais) na prostituição; uma das minhas
entrevistadas revela sua expectativa de encontrar o príncipe encantado na rua:

Eu nunca havia tido uma vivência afetiva, sexual já havia tido, com um
homem. A questão da prostituição está também alicerçada na possibilidade
de um contato mais próximo, mais pulsante com os homens. Não é sexual, é
afetivo. Sempre quando eu ia para rua tinha a questão prática da
sobrevivência, mas tinha fundamentalmente a esperança de que ali eu iria
encontrar meu príncipe encantado. É paradoxal, é louco, mas existia. Tanto
é que minha revolta surgiu quando eu percebi que não iria encontrá-lo. Eu
comecei a observar que os comportamentos deles [os clientes], os interesses
não combinavam com os meus. Eles percebendo minhas diferenças iriam me
tirar dali. Quando eu entrava nos carros, eu era uma princesa... mas a busca
deles era outra. (Entrevistada A)

Essa entrevistada afirma não ter conhecido nenhuma outra pessoa se prostituindo e que
se identificasse como mulher (transexual) nas ruas de São Paulo. Diferentemente da outra
que, em Brasília, compartilha com duas outras mulheres (transexuais) o espaço de
prostituição; no entanto, diz de seus planos de colocar suas fotos no site porque considera que

319
A etnografia realizada por Néstor Perlongher é leitura obrigatória para compreender a territorialidade
itinerante da prostituição, seus fluxos e inconstâncias.
320
Entrevista pessoal, Brasília, março de 2007.
321
Entrevista pessoal, Brasília, fevereiro de 2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 206

a rua está cada dia mais difícil. Reconhece a prostituição como um dos temas tabu entre
profissionais e também as mulheres (transexuais). Relaciona nominalmente uma a uma das
que estão ou estiveram na prostituição, somando uma enorme lista, desde as conhecidas
nacionalmente até as que hoje residem no exterior, contemplando também algumas que
integraram o Programa de Transgenitalização da Promotoria. De sua entrevista, recorto a
reivindicação do prazer que sinalizaria para a sua indecisão em relação a se submeter ao
processo cirúrgico:

Eu não nego para você que quando vou para rua estou esperando encontrar
um uma pessoa como eu, um afeto, um namorado. Eu tenho clientes que às
vezes nós vamos para o motel e ficamos toda a madrugada e eu cobro muito
pouco. Ele não me comia, gozava e ia embora, foi o exercício de meu afeto,
a gente ficava abraçado, beijando, namorando, conversando, assistindo
programa na televisão. Inclusive eu gozava, eu tinha prazer, isso não é muito
comum no discurso como profissional do sexo, gozar no trabalho, mas eu
gozava. (O destaque se deu na fala da entrevistada). (Entrevistada C)

Para além do prazer, o acesso ao corpo e às formas de gozar com este corpo
integrariam ao repertório de uma forma que eu ainda não havia encontrado nas entrevistas:

(...) ele [um amigo] me perguntou o que mudou no meu corpo com a
prostituição e eu disse que antes eu não era sexualizada... Aprendi a curtir
meu corpo, sentir prazer... Precisava estar bem com meu corpo para ter
sucesso na profissão, senão eu seria uma puta fracassada. (Entrevistada C)

Para não se tornar uma profissional fracassada, deve-se aprender os códigos dessa
profissão e isto depende de uma iniciação que, na maioria das vezes, se dá na interação entre
travestis e mulheres (transexuais).

Eu saí o primeiro dia e ganhei sabe quanto? Nada. (risos) No segundo dia?
Nada de novo. No terceiro dia, trinta e cinco reais. Eu achava aquilo tudo um
absurdo, achava tudo ridículo a minha volta. Depois eu conheci uma travesti
muito linda, muito linda, e conheci a cafetina. Havia um mês que estava na
casa dela. Mas fui entendendo a lógica do lugar. Eu sou negra, tenho que ir
onde estão os estrangeiros. Aí comecei a ganhar dinheiro. (...) Naquela
época, eu já falava inglês. (...) Mesmo que eu fizesse todas as modificações
corporais, eu vivia num mundo cheio de travestis, onde os homens com os
quais eu tinha relacionamento na prostituição e o próprio homem com quem
eu me relacionava afetivamente (meu companheiro) queriam sei lá... eu me
sentia violentada de ter que me relacionar com os homens como eles
queriam que eu relacionasse. E eu vivia infeliz com isso. Eu viajei para a
Europa, lá os homens queriam que eu comesse também... E era muito difícil,
não funcionava. Eu tinha um bloqueio, as informações novas que eu havia
adquirido me faziam afirmar a minha identidade daquilo que eu não gosto, e
os homens que gostavam daquilo que eu não gostava não prestavam, eles
eram objetos de meu ódio. Como vou ter relacionamento com uma pessoa
que eu odeio, que eu amo agora, mas depois que eu gozo, eu odeio. Voltei ao
Flavia Teixeira 207

Brasil (...) Depois retornei para a Europa, e então passei a entender melhor
meu corpo, minha sexualidade reprimida, e que não precisava provar para
ninguém da minha transexualidade. A prostituição era meu trabalho e
aprendi a trabalhar com meu corpo. (Entrevistada B)322

Ao se identificar como negra, essa entrevistada enfatiza a discussão proposta por


Adriana Piscitelli em que, na prostituição, “a noção de autenticidade mantém relações com
idéias específicas sobre exotismo e sexualidade que adquirem sentido no marco da construção
de desigualdades atravessadas por distinções de gênero e raça” (2202, p. 201).323 Ilustrando
como esse conhecimento, que circula também nas calçadas, pôde ser (re)apropriado por essa
entrevistada.

Parece ser um dado recente a apropriação do discurso sobre o exercício da sexualidade


entre as mulheres (transexuais), mas estas entrevistadas não estão isoladas. O convite para a
reunião do QuinTas Trans apontava para essas inquietações, conforme convite reproduzido
abaixo abaixo:

Nesta QuinTa Trans, estaremos trocando


idéias sobre o PRAZER!
Como anda sua libido? Mil formas de sentir
prazer? E a criatividade na intimidade, como
fica?
Goza, não Goza? Pega? Ui... Ativxs,
passivxs, versáteis, bizarros? A quantas
anda o seu Prazer??
324
Esperamos vocês com Muito Prazer!

Fonte: Imagem disponível no Blog QuinTas Trans

O exercício da prostituição parece abrir um espaço de reivindicação de prazer das


mulheres (transexuais) que desestabilizaria, até mesmo para elas, a cultuada aversão ao pênis
proclamada nas teorias. Considero que, mesmo na prostituição, no momento do
estabelecimento do contrato inicial, as mulheres (transexuais) poderiam recusar/aceitar o

322 Entrevista Pessoal, São Paulo, Entlaids 2007.


323 Esse foi um dos únicos momentos em que, durante o trabalho de campo, o atributo raça adquiriu
visibilidade. Em outra situação, diante da discussão sobre religião, uma entrevistada freqüentadora de religião de
matriz africana evidenciou seu pertencimento a esse grupo em função da raça.
324 Convite veiculado para a reunião do QuinTa Trans através do e-mail da Lista em 15/10/2007.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 208

programa, definir as condições do trabalho e assim manter o discurso da passividade e


negação do pênis. No entanto, Nestor Perlongher já havia anunciado o deslizamento entre as
práticas envolvendo a prostituição bem como a fragilidade do contrato que, segundo o autor,
parece “feito para ser transgredido” (1987, p. 254). Ao romper com a simplicidade da relação
- passivo (paga); ativo (recebe) - nas transações eróticas comerciais entre michês e clientes,
Néstor Perlongher descortinava um universo de rearranjos possíveis com a sensibilidade do
enunciado de um dos capítulos do livro que enfatiza o que parece interdito nesse espaço: o
negócio do desejo (1987, p. 246).

É o ponto e vírgula325
As recentes publicações das Portarias do Ministério da Saúde, a primeira instituindo o
Processo Transexualizador326 e a segunda definindo as Diretrizes Nacionais e
Regulamentando o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde – SUS -327,
evidenciam o dilema enfrentado por profissionais, pesquisadores e as pessoas (transexuais) na
construção de uma política pública em saúde desvinculada das amarras da patologia.

Acompanhei as discussões preparatórias do “Seminário Nacional de Saúde da


População GLBTT na Construção do SUS”328, e os documentos produzidos durante algumas
das reuniões, que resultaram na publicação da Portaria do Processo Transexualizador.329 Izis
Reis (2008) recolocou o desafio que parecia, desde o início, apontado por profissionais,
pesquisadores e pessoas (transexuais):

O poder biomédico que se exerce sobre os processos de doença, sofrimento e


saúde de transexuais, estabelecendo os limites para a própria
transexualidade, dificulta (para não dizer exclui) a desnaturalização da
diferença sexual interpretada com vínculo estreito com a biologia ou com a
natureza. Ao mesmo tempo, tem sido este poder e este discurso o grande
possibilitador da (pequena, mas existente) proteção em saúde de transexuais
brasileiros. E, ainda, é preciso dizer que sendo a patologia remetida a

325
Clarice Lispector in Brasília, Para não esquecer, Rocco, 1999.
326
Portaria nº. 1.707/GM publicada no DOU nº. 159, terça-feira, 19 de agosto de 2008. Seção1, p.43.
327
Portaria nº. 457/SAS publicada no DOU nº. 160, quarta-feira, 20 de agosto de 2008.
328
Organizado pela Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde (SGEP/MS) e
realizado no período de 15 a 17 de agosto de 2007. A alteração da data para a realização do mesmo
impossibilitou que eu acompanhasse o grupo de trabalho sobre transexualidade.
329
(1) Relatórios e Encaminhamentos da Reunião sobre Processo Transexualizador no SUS (Comitê Técnico
Saúde da População GLTB/DAGEP/SGEP), realizada em 06 de fevereiro de 2006, no Ministério da Saúde,
Brasília. (2) Ata da Reunião Ordinária do Comitê Técnico da Saúde da População GLBT realizada nos dias 13 e
14 de novembro de 2006, em Brasília. Estes documentos são apresentados como anexo na dissertação da
pesquisadora.
Flavia Teixeira 209

problemas na conexão entre o natural e o corpo, e as disciplinas biomédicas


as responsáveis pelo cuidado à patologia, outro entrave se coloca: como
construir como aceitável uma concepção de saúde desvinculada da doença?
(REIS, 2008, p. 111)

Os textos das Portarias estão marcados pelas concepções teóricas e políticas


principalmente das pesquisadoras Márcia Arán (2005) e Tatiana Lionço (2008), que
participaram diretamente das reuniões para a construção do Processo Transexualizador. Eles
revelam as tentativas de constar na Portaria os debates que problematizam as relações
estabelecidas entre: verdade/mentira; autorizar/negar; transexualismo/cirurgia:

Art. 2º Estabelecer que sejam organizadas e implantadas, de forma articulada


entre o Ministério da Saúde, as Secretarias de Saúde dos Estados, dos
Municípios e do Distrito Federal, as ações para o Processo Transexualizador
no âmbito do SUS, permitindo:
I - a integralidade da atenção, não restringindo nem centralizando a meta
terapêutica no procedimento cirúrgico de transgenitalização e de demais
intervenções somáticas aparentes ou inaparentes;330

Essas perspectivas marcam também as diretrizes e as regulamentações que


viabilizaram as ações do Processo Transexualizador determinadas pela Secretaria de Atenção
à Saúde (SAS/MS). Nessa Portaria, uma das influências percebidas se refere às atribuições
dos profissionais das áreas de psicologia e psiquiatria:

2. ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO
(...) Os profissionais de psicologia e psiquiatria têm como atribuição o
acompanhamento psicoterapêutico e a avaliação psicodiagnóstica. O
tratamento psicoterapêutico não restringe seu sentido à tomada de decisão da
cirurgia de transgenitalização e demais alterações somáticas, consistindo no
acompanhamento do usuário no processo de elaboração de sua condição de
sofrimento pessoal e social. (...)
A avaliação psicodiagnóstica não se restringe à lógica permissão/
impedimento das intervenções médico-cirúrgicas. O psicodiagnóstico
fundamentalmente deve servir para indicar os elementos a serem trabalhados
em psicoterapia, sendo o diagnóstico diferencial, em relação a outras
condições psiquiátricas inviabilizadoras das intervenções médico-cirúrgicas,
um dos pontos, dentre outros, que deverão constar no processo de
avaliação.331

A participação dessas pesquisadoras na formulação da Portaria, mesmo que seus

330
Portaria nº.1.707/GM, DOU, Seção1, p.43.
331
Portaria nº. 457/SAS, DOU, Seção 1, p.71.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 210

argumentos tenham sido apenas parcialmente incorporados, possibilita provocações, incita


apropriações e críticas que deslocam os conceitos tidos até então como hegemônicos para
pensar a transexualidade.

O artigo publicado por Márcia Arán e outros (2008) propunha um esboço das
diretrizes para a assistência no Processo Transexualizador, as quais foram parcialmente
incorporadas ao texto da Portaria da SAS, e anunciava a preocupação com a função do
psicólogo nos serviços destinados ao atendimento das pessoas (transexuais). Para além da
explícita vinculação entre a academia e a elaboração de política de saúde, torna evidente a
influência de pesquisadoras que possuem formação em psicologia e histórico de atuação em
serviços desta natureza no Rio de Janeiro e Brasília, respectivamente. Comparando a
participação dessas pesquisadoras na elaboração das Portarias com o impacto de suas
produções no próprio campo disciplinar332, identifica-se que não há um consenso sobre o
papel do psicólogo nos Programas que realizam a cirurgia de transgenitalização, assim como
na produção teórica produzida sobre a transexualidade.

A ausência de consenso expressa a disputa entre aqueles que mantêm a


transexualidade com o estatuto de patologia e outros que desejam sua (des)patologização. Os
dilemas dos profissionais se avolumam quando devem garantir a assistência à saúde sem a
atrelar à doença. Enfatizar que a transexualidade não está condicionada ao desejo/demanda
pela cirurgia seria uma estratégia de ruptura com um dos pilares do diagnóstico médico. Ao
mesmo tempo em que dizer de uma ação no campo psi, que não se restringe ao caráter
autorizativo para a realização da cirurgia, é remeter a discussão para o campo do
reconhecimento da autonomia do sujeito, rompendo uma relação, até então, harmônica entre a
psicologia e a psiquiatria. Porém, entendo ser pertinente ampliar o questionamento sobre os
lugares delegados aos profissionais da área psi, a partir de uma desnaturalização do lugar que
ocupam nas normativas do CFM.

Durante o XIV Entlaids, uma representante do Conselho Federal de Psicologia esteve


entre as palestrantes convidadas. A exigência do acompanhamento psicológico e da obtenção
de um laudo para a realização da cirurgia foi a tônica dos questionamentos apresentados por
algumas participantes. No entanto, a discussão ficou restrita à necessidade de adequação dos
testes à realidade brasileira; e não a um posicionamento contrário a esta exigência. Judith

332
Pesquisas recentes produzidas por psicólogas que trabalham em equipes de serviços que realizam a cirurgia
de transgenitalização (ELIAS, 2007 e PINTO, 2008) não incorporam essas discussões nas suas reflexões. Em
situação diferente está a pesquisa desenvolvida por Daniela Murta (2007), que acompanha a equipe do Hospital
Universidade Pedro Ernesto/RJ e foi orientada em sua pesquisa por Márcia Arán.
Flavia Teixeira 211

Butler questiona a necessidade da intervenção dos profissionais da saúde mental na relação


entre as pessoas (transexuais) e o acesso a recursos médicos que estão disponibilizados por
outros profissionais que não os da área psi. Argumenta que, quando uma pessoa busca recurso
médico para qualquer outra intervenção cirúrgica e/ou uso de hormônio, não é inquirida sobre
as condutas e fantasias infantis e, muito menos, encaminhada para obter certificados de saúde
mental. Ela compreende que a introdução desses profissionais mina a autonomia dos sujeitos,
que seria a base para afirmar o próprio direito (2006, p. 124).

Márcia Arán e Tatiana Lionço (2008) acreditam que a ausência de políticas públicas
de saúde para as pessoas (transexuais), no Brasil, desencadeou o processo de recorrer ao
poder judiciário para garantir o acesso aos serviços de saúde. Quanto à garantia do acesso à
saúde, Izis Reis (2008, p. 81) problematiza as dificuldades de legitimação política que as
pessoas (transexuais) – e o movimento GLBTT como um todo – encontram no diálogo com o
Ministério da Saúde. No entanto, percebo que este enfrentamento desigual não é exclusivo do
movimento social; outros grupos de profissionais parecem ter dificuldade na disputa com o
poder representado pelo saber médico, como pode ser identificado na fala desta participante
da Reunião do Processo Transexualizador:

(...) Temos que considerar até que ponto se pode avançar na perspectiva do
SUS, já que o processo transexualizador é submetido aos parâmetros do
CFM. A classe médica não aceitaria a entrada do processo transexualizador
no SUS senão pelo enfoque patologizante. (Pesquisadora, 08/02/2006).333

Antecipar o posicionamento contrário dos médicos em relação às decisões que seriam


adotadas pelo Ministério da Saúde é reconhecer o protagonismo de um discurso médico para a
compreensão da transexualidade alicerçado na patologia. É também reiterar que no campo de
disputa política, esse conhecimento/poder atuaria no sentido de garantir a permanência da
transexualidade no campo da doença (LEITE JR, 2008). A pesquisadora reconhece o terreno
de disputas que se instalaria para dizer da transexualidade, mesmo quando a presença de
médicos nas reuniões não era hegemônica.

A supremacia do discurso médico é reiterada, também, pelo movimento social,


conforme evidenciado na mesa-redonda “A Cirurgia de Readequação Sexual”:

Embora iniciada com atraso, em função da espera pelo cirurgião reconhecido e

333
Relatórios e Encaminhamentos da Reunião sobre Processo Transexualizador no SUS (Comitê Técnico Saúde
da População GLTB/DAGEP/SGEP).
Vidas que desafiam corpos e sonhos 212

aguardado pelas mulheres (transexuais) –em função de um acidente na rodovia, ele não
conseguia chegar –, a audiência estava repleta. Era a primeira vez que essa temática era
pautada especificamente. Os convidados eram dois cirurgiões, um psiquiatra e duas
psicólogas, marcando qual seria o discurso autorizado nesse contexto. As falas dos
especialistas privilegiaram a apresentação do diagnóstico, inclusive a utilização dos termos
transexuais masculinos (MtF) e transexuais femininos (FtM) pelos representantes da área
médica incomodava a platéia que reclamava em tom baixo, mas nenhuma interferência foi
realizada. Uma das organizadoras do evento se dirigiu à platéia, dizendo que era necessário
“respeitar o modo de pensar da medicina”.334

Nesse jogo de saber/poder, o espaço do discurso biomédico fica evidenciado na


relação diagnóstico/cirurgia, que pode ser lido como eixo norteador da Portaria. A análise das
Portarias, no seu conjunto, permite identificar as disputas pelo poder no campo da
transexualidade. Entre as considerações que iniciam o texto da Portaria nº. 1707 GM/MS, o
conceito clássico de transexualismo é recuperado ao mesmo tempo em que se vincula às
deliberações do Conselho Federal de Medicina através da Resolução nº. 1.652, de 6 de
novembro de 2002, portanto, centrada no diagnóstico:

Considerando que o transexualismo trata-se de um desejo de viver e ser


aceito na condição de enquanto pessoa do sexo oposto, que em geral vem
acompanhado de um mal-estar ou de sentimento de inadaptação por
referência a seu próprio sexo anatômico (...).
(...) Considerando a Resolução nº 1.652, de 6 de novembro de 2002, do
Conselho Federal de Medicina, que dispõe sobre a cirurgia do
transgenitalismo.335

Reproduzir a nomeação da cirurgia como transgenitalismo no texto da Portaria


evidencia a força enunciadora da Resolução do Conselho Federal de Medicina no- 1.652/2002
que, nesse contexto, se impõe como força de lei. Essa Resolução é a única normativa336 para a
atenção à saúde de transexuais no país. Todas as ações endereçadas às pessoas (transexuais)
têm sido desenvolvidas tendo como referência o texto da Resolução, mesmo para os
profissionais não vinculados ao Conselho Federal de Medicina.

A incorporação da Resolução como critério de verdade repercute também na Portaria

334
Anotações do Caderno de Campo, XIV Entlaids, São Paulo, 28/06/2007.
335
Portaria nº 1.707/GM – DOU – Seção1, p.43.
336
É necessário lembrar que ela substituiu a Resolução do CFM 1.482/1997.
Flavia Teixeira 213

da Secretaria de Atenção à Saúde.337 A análise desenvolvida no segundo capítulo desta tese


demonstrou que, na construção das Resoluções, para a questão da transexualidade, o CFM
reproduziu as Normas de Tratamento da Associação Internacional de Disforia de Gênero –
Harry Benjamin, conhecidas como State of Care (SOC). São essas normas que estabelecem os
parâmetros para o manejo do tratamento clínico e cirúrgico para as Desordens de Identidade
de Gênero. Ressalto que, garantido esse princípio, não se pode desprezar que, embora sejam
repensadas e recebam atualizações, as diretrizes do SOC mantêm como ponto central a
certeza de que a transexualidade é uma enfermidade para qual a cirurgia é o único tratamento
eficaz (BENTO, 2008, p. 90). Iss, portanto, explicaria a centralidade concedida ao diagnóstico
e à cirurgia nas Portarias.

No Anexo III da Portaria da Secretaria de Atenção à Saúde, nas diretrizes de


assistência ao indivíduo com indicação para a realização do Processo Transexualizador, fica
explicitada a necessidade do reconhecimento do diagnóstico de transexualismo como
transtorno psíquico para acesso ao serviço:

1. ACOLHIMENTO
(...) Caso seja identificado que não se sustente o diagnóstico de
transexualismo, o usuário deverá ser encaminhado ao serviço que melhor lhe
convier, ficando a cargo da equipe multiprofissional verificar a pertinência e
potencialidade terapêutica das intervenções oferecidas pela mesma no caso
deste usuário específico, em articulação com o serviço para o qual foi
realizado o encaminhamento.338

A exigência de que no acolhimento seja reconhecido o diagnóstico de transexualismo


recupera a mesma lógica de afastamento de quadros psiquiátricos, discutidos no capítulo
segundo desta tese, e a exigência de comprovar o preenchimento dos critérios nosológicos. A
ameaça de não ser considerada apta a ingressar no Processo Transexualizador mantém a
pessoa (transexual) amarrada ao poder médico, perpetua o lugar de vulnerabilidade diante da
equipe que estará apta a dizer sobre ela e (re)afirma a necessidade de “passar pela prova, pelo
teste”.

Foi num dos quartos do hotel, durante o XIII ENTLAIDS, em Goiânia, que Danielle
revelou pela primeira vez o sentimento de ter este sonho interrompido após os pareceres dos
peritos do IML, que negavam sua condição (transexual), ocasionando sua exclusão do

337
A Portaria nº.457/SAS/MS (DOU, Seção 1, p. 70) estabelece que os critérios para definição do
transexualismo deve seguir a Resolução CFM nº. 1.652/2002.
338
Portaria nº.457/SAS, DOU, Seção 1 p. 71.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 214

Programa de Transgenitalização da Promotoria. Segundo Elizabeth Zambrano (2003, p. 73),


os códigos legais se apóiam nas definições médicas.

Danielle relata o caminho percorrido entre a idéia, sem muitos contornos sobre uma
possível transformação no corpo, até a constatação da possibilidade técnica da cirurgia, o
significado dessa descoberta e a interdição ao procedimento que resultou de um não
reconhecimento – por parte dos peritos – de sua transexualidade:

A minha referência básica primeira, aproximadamente aos 5 anos, é ter


sonhos e fantasias de me transformar em menina, assim como minhas irmãs.
(...) Mais tarde, por volta dos 8 anos, eu ouvi falar numa tal de Roberta
Close, acho que, como a maioria das colegas de minha idade, as pessoas
comentavam de forma pejorativa, sem a preocupação com os direitos
humanos, é homem, mas virou mulher, e eu olhava para a imagem dela e era
muito difícil acreditar que ela tivesse sido um homem (na percepção daquele
momento, não no olhar que hoje possuo). Era mesmo muito difícil acreditar
que ela tivesse sido um homem porque ela era demasiadamente bonita,
demasiadamente desejada, era perfeita em todos os sentidos. Então ela foi o
Start para mim da certeza absoluta da possibilidade daquilo que eu sonhava.
Se existia a Roberta Close e foi possível para ela, então seria possível para
mim, afinal ela era brasileira não estava falando de algo distante. A mulher
mais bonita do mundo havia nascido homem e para mim era muito
importante a beleza (...). Eu ouvi falar dessa mulher que era brasileira e que
tinha conseguido. Havia feito a cirurgia de readequação genital, aquilo que
para mim era o maior feito na época. Nos meus planos, tudo se encerrava na
cirurgia, não me lembrava do que seria depois. Tudo terminava na cirurgia,
que era o ápice de todos os sonhos. No entender daquela época seria a
cirurgia a responsável por resolver todos os meus problemas, já que era
muito claro para mim: não, não sou menino. A cirurgia sempre permeou a
minha vida no meu desejo, mas eu era muito fragilizada para colocar em
prática. Na minha família havia uma postura de me proteger do mundo,
medo de que eu fosse vítima de violência, um cuidado no sentido de me
proteger da violência clara do mundo do que da violência subjetiva do
mundo, ou até mesmo da violência subjetiva deles em relação a mim.
Proteger dentro de casa, mas determinados tipos de violência não eram
considerados: meu pai repetia constantemente: ‘se você quiser ser viado,
gay, homossexual, não tem problema, transa, namora, mas esse negócio de
ser mulher não precisa’. Não precisa disso, ele dizia. Ele pensava que não
precisava, mas era do ponto de vista dele, não considerando o que eu sentia.
Eu procurei o Dr. XX, que havia feito uma cirurgia aqui em Brasília e estava
respondendo processo, saiu na mídia, mas ele recusou a me atender. Antes
da Resolução, eu escrevi uma carta para o CFM contando minha história e
solicitando a autorização para realizar a cirurgia. Eles demoraram assim, uns
dois anos para responder e quando responderam se referiram à existência da
Resolução. Após isso, procurei o Hospital do HRAN solicitando ser atendida
por equipe multidisciplinar, conforme estabelecia a Resolução do CFM,
escrevi também uma carta de próprio punho. Novamente a resposta demorou
muito e quando me responderam eu já estava no Programa da Promotoria.
Eu cheguei ao Pró-Vida através da reportagem sobre as cirurgias em São
José do Rio Preto, eu liguei para São José do Rio Preto e, diante de minha
dificuldade financeira, eles me indicaram o Programa de Transgenitalização
de Brasília. E eu fui. Quando procurei o Programa, eu conversei
Flavia Teixeira 215

pessoalmente com o Promotor responsável. Antes o que eu tinha era uma


meta de vida, era uma meta de vida quero deixar muito claro, não importava
para mim se eu seria uma artista plástica como eu desejava na infância ou
uma advogada, qualquer coisa que eu sonhava, a minha meta era a
adequação genital e mudança de nome. O que importava era minha mudança
do status de um para outro. O resto era só um detalhe, se antes, para atingir
essa meta, eu possuía apenas fragmentos, não possuía segurança, no
Programa era diferente, era a possibilidade real, era o Ministério Público se
comprometendo... Como eu estava feliz naquele dia.339

Era apenas o início de um complexo, moroso e ambíguo caminho que deve ser
percorrido para a realização desse sonho, através dos exames e pareceres que reconheçam a
existência de um “transexual verdadeiro”. Segundo Danielle, ao ser recebida na sede da
Promotoria, de posse dos laudos médicos e no lugar institucional, o Promotor executou a
sentença, pronunciando:

“Acabou, você foi reprovada. Você não é transexual”. Nesse momento, eu


me senti destruída, ele pegou todos os anos em que eu me acreditei mulher e
jogou no lixo. Era como se o Estado estivesse me dizendo: ‘Você não é
mulher, olha, você é um traveco safado’. Era o Estado legitimando tudo que
a sociedade pensa de mim: ‘você é um homem vestido de mulher’. (...) Na
saída da sala, olhei a toga dele, vi o que representava aquilo. Era o poder
público ceifando a minha vida, eu sabia o que significava, era o poder
público dizendo que havia esgotado a possibilidade.340

Se o diagnóstico de transexualismo dá sentido a um conjunto de experiências e


sentimentos capazes de promover uma forma de significar sua existência, ter sua condição
contundentemente questionada colocou Danielle na condição de impostora de si mesma.

Eles me deram descarga, eles não têm idéia do que fizeram comigo. Qual o
objetivo disso? Qual a importância para eles em me dar a cirurgia que eu
tanto desejava? A cirurgia era o meio de eu me entender a mim mesma no
mundo. Dar-me a cirurgia, que era a única saída para minha vida. Eu sou só
uma pessoa e ele é a instituição, uma instituição capaz de definir o destino de
uma pessoa.

A análise dos processos facilitou a compreensão desses protocolos, mas, neste


momento, através do fragmento da entrevista, reitero o sentido que esses Programas possuem
para aqueles/as que o procuram e o cuidado necessário quando a Portaria deixa espaço para a
interpretação de que o profissional deve estabelecer critérios definidores do diagnóstico

339
Danielle, entrevista pessoal, Brasília, maio de 2007.
340
Danielle, entrevista pessoal, Goiânia, julho de 2006.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 216

durante o acolhimento.

Retorno aqui às questões discutidas no segundo capítulo, quando, na análise dos


processos, a exigência de uma confirmação da condição de transexualismo para integrar ao
Programa de Transgenitalização da Promotoria gerava um conjunto de inquietações e
equívocos, em parte pela precocidade com que tal diagnóstico deveria ser constituído. Essa
exigência contraria a perspectiva de reconhecimento da autonomia demandada pelo Coletivo
Nacional de Transexuais durante o Seminário Nacional de Saúde da População GLBTT; a
imposição do diagnóstico recupera a necessidade da comprovação da “carreira de doentes. E
mais, precisam comprovar, dentro desta carreira, que são verdadeiros e verdadeiras
transexuais” (REIS, 2008, p. 101).

Daniela Murta (2007, p. 91) compartilha da preocupação com a adoção do


transexualismo como uma entidade nosológica, reconhecendo que o mesmo está ancorado em
normas fixas e rígidas de gênero. Assim, os critérios utilizados para a enunciação do
diagnóstico reafirmam as mesmas normas já estabelecidas, deixando pouco, ou nenhum,
espaço para que as pessoas (transexuais) possam dizer do desconforto que essas normas
causam ou da sua insuficiência para significar a sua vida.

Embora as Portarias mencionem que o Processo Transexualizador não estaria centrado


na cirurgia de transgenitalização, o fluxo de encaminhamento paradoxalmente estabelece que
a não indicação da cirurgia cessaria o vínculo com a Unidade de Atenção Especializada no
Processo Transexualizador:

3. FLUXOS DE ENCAMINHAMENTO
Em não se confirmando a indicação de readequação cirúrgica genital, o
usuário deve dar continuidade ao tratamento clínico e ter o seu atendimento
mantido no respectivo estabelecimento de origem, independentemente do
nível de atenção, e que seja o mais próximo do município e estado de
residência.341

Não somente o acompanhamento na Unidade parece vinculado à indicação cirúrgica,


como também em outros fragmentos do documento pode ser flagrada a centralidade da
cirurgia, como, por exemplo, ao estabelecer que o procedimento específico para o tratamento
hormonal está disponível desde os estágios pré-operatório à cirurgia seqüencial de

341
Portaria nº. 457/SAS, DOU, Seção 1, p. 71.
Flavia Teixeira 217

transgenitalização.342 Tudo parece organizado para a realização do procedimento cirúrgico.

A cirurgia de transgenitalização foi considerada como o procedimento a ser realizado


no primeiro tempo cirúrgico. Os únicos procedimentos cirúrgicos previstos na Portaria, além
da construção da neovagina, são o alongamento das cordas vocais e a tiroplastia para redução
do Pomo de Adão, classificados como procedimentos de 2º tempo.343 Essa classificação deixa
dúvidas quanto à relação de obrigatoriedade de realizar a primeira cirurgia
(transgenitalização) para ter acesso à segunda. Considerando que os procedimentos cirúrgicos
(a neocovulvoplastia e o alongamento das cordas vocais e/ou a tiroplastia) não guardam
relação entre si, do ponto de vista técnico, a sua classificação como sendo de segundo tempo
sugere a imposição da primeira para se alcançar a segunda.

A Portaria também estabelece que o coordenador da equipe que acompanhará o


Processo Transexualizador deve ter o título de especialista em urologia.344 Ao definir a
especialidade médica daquele que deve ser responsável, é enfatizado o lugar de poder daquele
que supostamente deteria o conhecimento técnico para realizar a cirurgia de
transgenitalização. Novamente é o domínio técnico que determinaria a lógica que deve
organizar a equipe. No entanto, entre os quatro serviços considerados com expertise e já
habilitados através da Portaria para a realização dos procedimentos do Processo
Transexualizador345, em um deles o cirurgião responsável não detém o título de urologista, e a
coordenadora desta Unidade também não possui a especialidade requerida. Somando-se ao
fato de que o profissional consultado pelo Conselho Federal de Medicina, durante a
elaboração do Parecer e Resolução de 1997, é um cirurgião plástico, os critérios estabelecidos
na Portaria demonstram que, apesar do diálogo com os profissionais envolvidos durante as
reuniões preparatórias para a implementação do Processo Transexualizador, há tensões entre
aqueles que são autorizados a falar, neste caso, os técnicos do Ministério da Saúde, os
profissionais convidados e os outros que nem precisam “falar” para serem ouvidos, pois a
eficácia de suas normas pode ser ouvida através da correlação pênis/urologia e
diagnóstico/cirurgia.

Izis Reis (2008, p. 92) identificou a reivindicação de ações para promoção de saúde
das pessoas (transexuais) como um momento de negociação de realidades em que a demanda

342
Portaria nº. 457/SAS, DOU, Seção 1, p. 71.
343
Portaria nº. 457/SAS, DOU, Seção 1, p. 69.
344
Portaria nº. 457/SAS, DOU, Seção 1, p. 70.
345
Portaria nº. 457/SAS, DOU, Seção 1, p. 72.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 218

pela possibilidade de construção de subjetividades (transexuais), desfocada da lógica da


patologização, ficaria fragilizada diante da necessidade de dialogar com a instituição a partir
de padrões que tradicionalmente não são ouvidos por ela. No entanto, ao adotar a Resolução
do CFM, que parece ter sido o caminho encontrado para conciliar as demandas das pessoas
(transexuais) e as definições do poder biomédico, nem mesmo os profissionais que dominam
o léxico institucional parecem ter sido considerados. Mesmo numa postura conciliadora, é
necessário considerar que o corpo alojado no discurso médico é um corpo cartesiano, que se
aproxima da metáfora do homem-máquina; não é o corpo pensado e (re)construído no campo
dos debates que estavam sendo propostos nos grupos de trabalho, pelas pesquisadoras, para o
estabelecimento da Portaria, que se aproximava ao proposto por Judith Butler:

Ho iniziato a scrivere questo libro cercando di concentrarmi sulla materialità


del corpo e ho scoperto che questo pensiero mi portava invariabilmente
verso altri ambiti. Ho cercato di costringermi a restare sul mio oggetto, ma
mi sono accorta di non poter fissare i corpi come semplici oggetti di
riflessione. Non solo i corpi mi rimandavano a un mondo alle loro spalle, ma
questo movimento al di là dei loro stessi confini, un movimento che
coinvolgeva i confini stessi, sembrava riguardare direttamente ciò che i corpi
“sono”. (1996, p. XVII).

A Portaria reitera que é a equipe multiprofissional que detém o poder do diagnóstico e,


consequentemente, o direito de autorizar ou negar a realização da cirurgia de
transgenitalização. Cabendo mais uma vez às pessoas (transexuais) exercerem o
convencimento para a performance do gênero esperado e, assim, alcançarem o “direito” de ter
acesso a um dos recursos da biotecnologia:

4. INDICAÇÕES DE CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO


A consideração da pertinência das intervenções médico-cirúrgicas deve
atender aos critérios estipulados pela Resolução nº. 1.652/2002 do CFM, que
determinam o prazo mínimo de 2 anos de acompanhamento terapêutico
como condição para a viabilização de cirurgia, bem como a maioridade e o
diagnóstico de transexualismo. Transcorridos os dois anos de
acompanhamento terapêutico, caso o usuário seja diagnosticado transexual,
pela equipe multiprofissional, está apto a se submeter à cirurgia de
transgenitalização, o que não significa que deva necessariamente se
submeter a este recurso terapêutico.

Jorge Leite Júnior (2008) percebe a cirurgia como uma premiação por e para se
adequar às normas do gênero:

O prêmio por “revelar” uma legítima “psique feminina em corpo masculino”


ou vice-versa é a autorização legal para a adaptação do “sexo” do corpo com
Flavia Teixeira 219

o “gênero” da mente, igual aos sujeitos “normais”. É importante ressaltar a


abrangência e sutileza do poder do discurso médico em qualificar e validar
normas e performatividades de gênero. Assim, são excluídas da categoria de
transexual as pessoas que consideram a si mesmas como transexuais, mas
que não necessariamente desejam a cirurgia de transgenitalização, nem
sofrem de tendência a auto-mutilação e auto-extermínio, procurando apenas
o acompanhamento terapêutico psíquico e hormonal, ou mesmo aquelas que
ficam impedidas legalmente de fazer a cirurgia como uma forma – talvez
artística – de “modificação corporal extrema”, sem ter nenhum tipo de
problema entre sua identidade de gênero e sua fisiologia, buscando construir
um outro corpo para tornarem a si mesmos um “homem com vagina” ou uma
“mulher com pênis”, totalmente alheios ao discurso patologizante sobre tais
desejos. (p. 194)

Também Miriam Ventura (2007) já identificava que o poder médico não apenas regula
o acesso aos recursos de saúde, mas interdita o acesso a estes recursos. Como evidenciado na
análise dos processos, este impedimento se apresenta quando os indivíduos não performam o
gênero em consonância com as expectativas daqueles que observam (os peritos, os
especialistas), colocando esses sujeitos em lugar de extrema vulnerabilidade. Segundo Tatiana
Lionço (2008), o que está sendo negado, nesse caso, é o acesso às condições necessárias para
a livre expressão da personalidade e da vivência da cidadania.

O cirurgião foi o último a falar. A expectativa da platéia era a apresentação


das imagens da cirurgia de transgenitalização que testemunhassem a
possibilidade da “mudança de sexo”. A limitação no uso dos recursos
impossibilitou que as imagens fossem utilizadas gerando uma comoção
generalizada na platéia. Percebo que a “ausência da prova” realimentou o
caráter mágico/delirante dessa cirurgia para muitas participantes que, durante
o almoço, diziam das suas interpretações sobre a possibilidade técnica e seus
resultados.346

A tônica das intervenções, durante esse debate, se ancorava na ausência de política


pública que assegurasse o acesso ao tratamento e à cirurgia para as pessoas (transexuais). As
denúncias de problemas decorrentes de intervenções cirúrgicas clandestinas e das longas filas
de espera nos hospitais públicos, aliadas ao alto custo da intervenção na rede privada, foram
recorrentes. Situação diferente da percebida durante o XV Entlaids, em 2008, quando a
publicação da Portaria instituindo o Processo Transexualizador no SUS impactou a discussões
de todas as mesas propostas, mesmo quando a temática não estava diretamente relacionada
com as realizações das cirurgias de transgenitalização.347 Ao discutir os avanços alcançados

346
Anotações do Caderno de Campo, XIV Entlaids, São Paulo, 28/06/2007.
347
Anotações do Caderno de Campo, Salvador, Setembro de 2008.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 220

pela sociedade civil organizada na conquista dos direitos à saúde, Ana Maria Costa e Tatiana
Lionço apontam para a necessidade de fortalecimento de alguns grupos sociais para o
enfrentamento das iniqüidades em saúde (2006, p. 51); penso que os homens (transexuais)
constituem uma das parcelas de menor poder de vocalização nesse cenário de conquistas.

Judith Butler (2006) chama a atenção para as armadilhas ao se adotar, mesmo que
estrategicamente, o diagnóstico. Assegurou às disciplinas biomédicas o poder de definir sobre
as pessoas (transexuais) e o que é necessário a elas. A Portaria do Processo Transexualizador
fortaleceu o saber médico e seu dispositivo sobre a transexualidade.

E aquele projeto... Ainda estará no ar?348


Antes mesmo que a Portaria fosse publicada, Mirian Ventura destacava as ciladas das
normas para a cirurgia de transgenitalização:

A norma estabelecida para o acesso à terapia para a “mudança de sexo”


converteu o sentido contemporâneo de direito à saúde – como o direito de
alcançar um completo bem estar pessoal, físico e social, para o
desenvolvimento de sua personalidade, um “direito de ter direitos”
garantidos pelo Estado – , para um dever de saúde, isto é, o dever de
respeitar o direito do Estado de estabelecer as condutas sexuais consideradas
saudáveis e adequadas. Os efeitos negativos da biopolítica, no âmbito
individual e coletivo, visíveis são: no plano individual a norma constrange o
paciente a realizar, ao menos, a cirurgia de transgenitalização, mesmo
quando não desejada, para obter sua nova identidade civil, por vezes, negada
pelo Poder Judiciário – iatrogenia por ato judicial; e, no âmbito coletivo, não
permite que todos aqueles que utilizam a prática de transformações corporais
para expressar sua sexualidade, mas que não são considerados pela norma
como “transexuais verdadeiros”, recebam assistência médica adequada, com
esta finalidade, no sistema oficial de saúde, favorecendo um mercado
clandestino, potencialmente inseguro e inescrupuloso, com sérias
complicações para a saúde daqueles que não desejam se conformar à norma
vigente. (VENTURA, 2007, p. 116)

No texto acima, a autora se referia à exigência do estabelecimento do diagnóstico de


transexualismo em consonância com os critérios estabelecidos pelo CID 10 e as Resoluções
do CFM. No entanto, particularmente preocupante é a situação dos homens (transexuais),
depois da publicação da Portaria: “A cirurgia de transgenitalização do tipo construção de
neofalo e metoidioplastia são experimentais e têm sua viabilização condicionada a protocolos

348
Música: Eclipse Oculto composição de Caetano Veloso, interpretada por ele no Álbum Uns, de 1983.
Flavia Teixeira 221

de pesquisa em hospitais universitários, não estando previstos na presente Portaria”.349

Antes de essa exclusão ser explicitada no texto, a não inclusão dos homens
(transexuais) estava anunciada de várias maneiras na Portaria. Por exemplo, ao definir o
tratamento hormonal no conjunto da descrição, está expresso que se trata de administração de
hormônios para as mulheres (transexuais).350 Comparando o texto acima com o elaborado por
Márcia Arán e outros (2008), nota-se a incorporação parcial das sugestões das pesquisadoras:

3.5. A cirurgia de transgenitalização do tipo construção de neofalo e


metoidioplastia são experimentais e têm sua viabilização condicionada a
protocolos de pesquisa em hospitais universitários. As demais cirurgias
transexualizadoras para homens transexuais (histerectomia e mastectomia)
não encontram essa restrição.

A parte suprimida do texto nega aos homens (transexuais) o acesso legitimado aos
procedimentos médicos que, numa situação cotidiana, nem mesmo requerem a intervenção de
psiquiatras ou psicólogos para a suas indicações. No Brasil, em 2005, foram realizadas cerca
de 107.000 histerectomias pelo Sistema Único de Saúde, uma vez que as redes de
atendimento privado ou suplementar não informam esses dados (SORIA e outros, 2007). As
cirurgias de mastectomias são procedimentos amplamente realizados pelo Sistema Único de
Saúde principalmente para tratamento de câncer de mama. (SOUSA, 2007).

É mais uma vez contraditório o argumento central apresentado na Portaria de que a


cirurgia de transgenitalização não deve se constituir como única meta a ser atendida pelo
Processo Transexualizador e, ao mesmo tempo, afirmar que são as cirurgias (ou a
impossibilidade delas) que restringiriam a inclusão dos homens (transexuais) nessa norma de
atenção à saúde.

Ao analisar os discursos que se produziram sobre a vida de Brenda/Brandon351, Judith


Butler (2006) explicita o deslocamento realizado para se discutir a transexualidade, uma vez
que, no caso em questão, o que estava em tela não seria a transexualidade e nem mesmo de
intersexualidade. No diálogo possível de estabelecer entre a transexualidade e a

349
Portaria nº. 457/SAS, DOU, Seção 1, p.72.
350
Portaria nº. 457/SAS, DOU, Seção 1, Artigo 8º, p. 69.
351
No Brasil, o livro de John Colapinto é a referência mais recorrente sobre esse assunto. Ele relata a história de
David Reimer que em função de um acidente no primeiro ano de vida teve seu pênis mutilado. Foi submetido a
uma cirurgia para construção de uma vagina realizada pelo pesquisador John Money e se tornou um marco nos
trabalhos publicados por ele, para defender a teoria de que, na formação da identidade de gênero, as influências
biológicas pré-natais são secundárias em relação ao poder de fatores ambientais pós-natais; estes seriam mais
importantes.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 222

intersexualidade352, encontrei elementos que possibilitam pensar a expulsão dos homens


(transexuais) deste contexto para além da justificativa técnica.

O limite parecia ser marcado pela disponibilidade da técnica para a intervenção nos
corpos, numa perspectiva que contemplaria as mulheres (transexuais), uma vez que o
alardeado sucesso da técnica da neocolpovulvoplastia asseguraria uma neovagina semelhante
ao modelo biológico. Mas, para os homens transexuais, a incipiência da cirurgia negaria seu
acesso porque resultaria num corpo ambíguo: um falo débil seria incapaz de performar a
natureza. Os corpos dos homens (transexuais), produzidos cirurgicamente, colocariam em
xeque o discurso da própria medicina frente à possibilidade de fabricar um corpo ambíguo,
quando historicamente ela sempre se preocupou em utilizar seu saber/poder na construção de
corpos coerentes. Seria o reconhecimento de que estes binarismos não são necessários e nem
mesmo inquestionáveis. O que estava em questão era a eficácia da artificialidade de uma
natureza – produzida pela biotecnologia – para conferir autenticidade e assegurar a
normatividade dentro do binarismo, respaldada pelo discurso médico e (re)atualizada pelos
legisladores do Ministério da Saúde.

Não identifiquei na lista de discussão do Coletivo Nacional de Transexuais nenhuma


disposição das mulheres (transexuais) em questionar a Portaria353; e, durante o XV Entlaids,
quando essa questão foi apresentada à mesa de debates por um homem (transexual)354, foi
recebida num tom “ofensivo” pela integrante do Coletivo Nacional de Transexuais.
Novamente recorro ao texto de Judith Butler para (re)atualizar as preocupações sobre as
outras faces do reconhecimento:

Se puede observar aquí el terreno del dilema: por una parte, vivir sin las
normas de reconocimiento conlleva un considerable sufrimiento y una forma

352
A relação entre os discursos médicos produzidos sobre a intersexualidade e a transexualidade está
contemplada na tese de doutoramento de Jorge Leite Júnior.
353
O Grupo de Pesquisa Reprodução Biológica e Social, Sexualidade e Bioética do Instituto de Medicina Social
da UERJ organizou, em 5 de dezembro de 2008, um Seminário sobre Normas de Gênero e Políticas de Saúde
Pública no Brasil, com o objetivo de apresentar resultados parciais da pesquisa “Transexualidade e Saúde,
condições de acesso e cuidado integral” apoiada pelo IMS-UERJ, MCT/CNPq, MS/ Decit/ SECIT. Pesquisa
coordenada por Márcia Arán. O Coletivo Nacional de Transexuais foi convidado para participar da Mesa
Redonda sobre o Processo transexualizador no SUS. Por ocasião da decisão sobre quem deveria ser a
representante para ocupar esse lugar, não identifiquei qualquer sugestão de pauta que incluísse uma perspectiva
crítica sobre a Portaria nem mesmo uma discussão sobre os homens (transexuais).
354 O nome deste integrante consta na relação de presentes da primeira reunião para a discussão do Processo
Transexualizador no SUS. Ressalto que as indicações para a participação nas discussões para a elaboração de
políticas públicas são financiadas pelo Estado e consensuadas pelos referidos movimentos. A ausência de
homens (transexuais) indica a fragilidade de negociação destes dentro do próprio Coletivo Nacional de
Transexuais. Acompanhei através da lista de discussão a solicitação de desligamento deste integrante formulada
por ele em 04/11/2008 após uma série de colocações divergentes sobre posicionamentos políticos do grupo.
Flavia Teixeira 223

de privación de derechos que confunde las distinciones entre las


consecuencias psíquicas, culturales y materiales. Por otra parte, la exigencia
de reconocimiento, que es una demanda política muy poderosa pode
conducir a nuevas e ingratas formas de jerarquía social, a una obstrucción
precipitada del campo sexual y a nuevas formas de apoyar y extender el
poder del Estado si non instituí un desafío crítico las propias normas de
reconocimiento proporcionadas y requeridas para la legitimación del Estado.
(BUTLER, 2006, p. 167)

Nesse jogo de disputas, os homens (transexuais) viram suas demandas desaparecerem


frente aos argumentos da limitação técnica da cirurgia de neofaloplastia. Mesmo quando
incluídos na Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem355, apresentada ao
Conselho Nacional de Saúde em outubro de 2008, a vaga menção do termo transexuais, que
foi colocado timidamente, sem especificar qualquer outro pertencimento, gerou dúvida sobre
a quem se destinava tal proposta - até mesmo entre as representantes do CNT: “em anexo o
PPT que contempla transexuais na Saúde do Homem. Se for os Homens Transexuais eu
entendo, fora isso, NO WAY!!”356

Acredito que a timidez dos documentos do Ministério da Saúde, em relação aos


homens transexuais, reafirma primeiramente a força explicativa de um tipo de saber médico
expresso nas normativas do Conselho Federal de Medicina. As posições do CFM foram
discutidas no decorrer deste trabalho e estão ancoradas na construção de um corpo coerente.
No caso das mulheres (transexuais) a possibilidade técnica, permitindo a fabricação de uma
vagina, e garantindo, principalmente, a retirada do pênis construiu um discurso em torno da
legitimidade dessas pessoas. No seu oposto, ou seja, na insuficiência técnica para a construção
de um pênis, desestrutura a lógica médica que permanece ancorada na relação sexo-gênero-
anatomia. Um homem sem pênis, produzido a partir da intervenção do saber médico, parece
provocar um abalo nas normas dessa instituição. Esta parece ser a razão pela qual, o CFM
reconhece os homens transexuais apenas como possibilidade de experimento.

Butler (2005) afirma que o gênero funciona como aparato de produção daquilo que se
reconhece como sexo, e que esse aparato discursivo é indispensável ao processo de
subjetivação e também ao reconhecimento do que é considerado humano; ela enfatiza que
essa discursividade não é um véu social que recobre e esconde a materialidade dos corpos, os
limites do corpo sexuado são conformados na própria intervenção discursiva e aqueles corpos
que contam são produzidos baseados num regime de verdade (construídos socialmente).

355
Disponível para consulta em: http://dtr2001.saude.gov.br/sas/PORTARIAS/Port2008/PT-09-CONS.pdf
356
Mensagem recebida através da lista em 08/10/2008.
Vidas que desafiam corpos e sonhos 224

Nessa perspectiva, os corpos dos homens transexuais – para os saberes médico-jurídicos-


parecem não contar, e permanecem relegados a uma posição de “experimental”.

O fragmento selecionado do Despacho do Promotor de Justiça demonstra que os


limites para o reconhecimento dos homens (transexuais) podem ser alargados e,
independerem das restrições técnicas do saber médico:

Não foi implantado um neofalo pelas razões que adiantei naquela


oportunidade, ou seja, o caráter experimental desse procedimento está
determinado pelas dificuldades que a Medicina ainda não superou, mas que,
ao nosso ver, não é fundamental para se definir um Homem.357

Considerando que esse documento é datado de junho de 2006, é fundamental


reconhecer a circulação dos saberes produzidos na academia sobre a transexualidade e seu
impacto sobre as decisões judiciais, não somente pelo conjunto de citações utilizadas pelo
Promotor na argumentação do Despacho, mas principalmente, pelo deslocamento percebido
na sentença:

(...) há homens sem pênis por razões outras, como, por exemplo, acidentes
ou cânceres. Nem por isso deixaram de ser cidadãos. Há mulheres sem
vulva, sem vagina, sem útero, sem ovários, sem trompas, sem mamas. Nem
por isso deixaram de ser cidadãs. A cidadania não se estabelece por cópulas
sexuais ou pelas vias fisiológicas que as viabilizem, mas pela dignidade do
ser humano (...)

Se o pênis não garante a posição de homem e, de maneira similar, a vagina não


garantiria a posição de mulher, estaria o judiciário preparado para o reconhecimento das
mulheres e dos homens (transexuais) independente da realização da cirurgia? Estaríamos
diante de uma posição jurídica capaz de libertar as pessoas do julgo da cirurgia como única
possibilidade para o reconhecimento de uma existência legítima?

357
Autos nº 2005.01.1.037883-5, anexado ao processo de G.S.B..
Flavia Teixeira 225

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Flavia Teixeira 227

Considerações Finais

Yo puedo sentir que sin ciertos rasgos reconocibles no puedo vivir. Pero
también puedo sentir que los términos por los que soy reconocida convierten
mi vida en inhabitable. Ésta es la coyuntura de cual emerge la crítica,
entendiendo la crítica como un cuestionamiento de los términos que
restringen la vida con el objetivo de abrir la posibilidad de modos diferentes
de vida; en otras palabras, no para celebrar la diferencia en sí misma, sino
para establecer condiciones más incluyentes que cobijen y mantengan la vida
que se resiste a los modelos de asimilación. (BUTLER, 2006a, p. 17)

As experiências de passagem de um gênero ao outro não são privilégio do final do


século XX. A transexualidade permite pensar que ela não se rende em uma posição fixa entre
o masculino e o feminino, mas performa realizando uma graduação entre estes pólos,
borrando-os. As inéditas possibilidades de intervenção nos corpos abriram fissuras para
pensar se uma mudança de corpo pode ser lida como mudança de gênero ou se há a
possibilidade da mudança de gênero a despeito de uma intervenção no corpo. Os discursos
produzidos no entorno da transexualidade demonstram que os significados atribuídos a
determinadas intervenções no corpo (e em algumas partes deste corpo) são distintos e
hierarquizados dentro de uma matriz de legitimidade que define sobre a validade e a
viabilidade dos corpos.

A temática da transexualidade explicita as tensões entre os termos: sexo, gênero e


desejo. Desafia a noção de uma identidade originária, natural e estática. Pode ser um veículo
para pensar outras masculinidades/feminilidades, inclusive redesenhando outras maternidades
e paternidades possíveis. Mas toda essa possibilidade subversiva se desenvolve num cenário
de disputas em que a retórica essencializante sobre natureza constrói, também, uma
experiência da transexualidade como emblema do sofrimento, e as pessoas representadas
como vítimas de um engano da natureza.

Desliza-se de um erro da natureza – ancorado nas origens biológicas da


transexualidade – para um engano outro. Agora não seria um erro da natureza ao fabricar um
corpo equivocado, cuja genitália é insuficiente para informar o pertencimento ao gênero, mas
uma alma/sentimento aprisionada num corpo errado. O corpo, antes vítima, agora vilão. A
subjetividade ancorada numa percepção pré-discursiva, um sentimento de si traduzido na
expressão “preso(a) num corpo errado”
Vidas que desafiam corpos e sonhos 228

Como dado pré-discursivo, este critério parece não ser confrontado. O sentimento de si
como o lugar onde reside a verdade da transexualidade parece residir num espaço imune ao
social. Constrói uma outra naturalidade anterior, não mais amparada na causalidade biológica,
mas sempre no inexorável e pré-social: o sentir.

Uma percepção da transexualidade na qual as pessoas devem se conformar com um


sentimento que não escolheram e sobre o qual não têm nenhuma agência desencadeia uma
visão essencialista e dicotômica do gênero; fragiliza a construção de pautas para a coalizão
nos movimentos sociais e (re)atualiza a armadilha dos discursos médicos ancorados na
biologia e no poder da cirurgia.

Qualquer atributo social pode construir protótipos, anular as diferenças, simplificar as


complexidades, cristalizar-se num gênero e, mesmo, promover a (des)humanização, como
pode ser identificado na história da medicina. Nela, exemplos incontáveis de situações em que
o diagnóstico se transformou numa etiqueta poderosa de reconhecimento e exclusão de
pessoas; nos porões dos hospitais psiquiátricos, nos grandes leprosários, nas temidas relações
com os “aidéticos”358. No discurso médico, o sentimento - pensado como dado pré-discursivo
- é transformado em sintoma; critério nosológico para estabelecimento de um diagnóstico.

As armadilhas do diagnóstico apontam para a fragilidade do conhecimento médico e a


instabilidade das “certezas” que ancoram as decisões sobre as pessoas. Principalmente, na
transexualidade, as regras de gênero parecem construir um consenso em torno da necessidade
do diagnóstico porque este se vincula à cirurgia.

Os fragmentos das histórias de vidas são argumentos que demonstram que o


diagnóstico é insuficiente para traduzir a diversidade de experiências, promovendo o
apagamento das diferenças. Mas, no recorte desta pesquisa, pode ser considerado, ainda, um
poderoso instrumento na construção de uma subjetividade - incessante movimento no qual o
indivíduo se faz sujeito e é assujeitado no interior de um sistema discursivo. Essa hegemonia
do discurso médico coloca as pessoas na condição de reféns do diagnóstico; mesmo quando
“sabem o roteiro e as respostas”, a aproximação com o discurso médico e o uso estratégico do
diagnóstico (re)atualizam verdades sobre a transexualidade e exigem um acúmulo de capital
cultural que não está acessível a todos/as.

358
No Brasil, é reconhecida apenas uma instituição formal, com características de Instituição Total, destinada às
pessoas vivendo com HIV e Aids. Não vinculada e nem mesmo recebendo incentivos de órgãos públicos. Para
aprofundamento dessa temática sugiro a leitura do trabalho de doutorado de Pedro Paulo Gomes Pereira “Olhos
de Medusa: AIDS, terror e poder” (2001).
Flavia Teixeira 229

As normas de gênero que regulam o reconhecimento não contemplam a existência e a


narratividade das pessoas na experiência da transexualidade. Nesse contexto, mesmo que
diante do alargamento dos requisitos diagnósticos, as pessoas permaneceriam enquadradas na
patologia. Os relatos das pessoas mostraram o quanto da patologia segue alojado na
subjetividade das pessoas; as pessoas se rendem diante de uma falta de possibilidade de
imaginar outras formas de existência, e isto dificulta que elas não se reconheçam nesta
experiência de engano/fraude e construam outra subjetividade, livre das amarras do
diagnóstico.

O diálogo estabelecido entre o movimento social, as pesquisadoras e técnicos do


Ministério da Saúde, durante a elaboração da Portaria que instituiu o Processo
Transexualizador no SUS, demonstra como este espaço é marcado pelo desafio enfrentado
por aqueles que possuem uma proposta de compreender a transexualidade numa mudança de
linguagem, de olhar, de instrumentos conceituais. Pensar tal experiência fora do marco da
patologia/desvio.

A experiência transexual materializa incertezas que se fundem com as questões


pautadas em outros espaços, como o profícuo diálogo com o movimento feminista. Nele,
colabora para pensar na crise contemporânea do sujeito universal mulher. Perceber que os
processos de construção identitária são mutantes; a identificação de gênero é sempre uma
aproximação. Homens e mulheres, corpos masculinos e corpos femininos, feminilidade e
masculinidades são um constante devir: “Vidas que desafiam corpos e sonhos”.
Flavia Teixeira 231

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