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HEROIS E VILOES NO ROMANCE BRASILEIRO GILBERTO FREYRE Editora Cultrix/Editora da Universidade de Sao Paulo Brasil. Catalogagao-na-Fonte cP a Brasileira do Livro, SP Freire, net 0 romance brasileiro : em torno das proje- a de tipos sécio-antropolégicos em personagens de romances seetonais do século XIX e do atual / Gilberto Freyre ; texto or | ganizado € apresentado por Edson Nery da Fonseca. — Sao Paulo: Cultrix : Ed. da Universidade de Sao Paulo, 1979. Inclui indice dos autores lidos, onoméstico, temético ¢ be | blionimico. 1. Literatura comparada 2. Literatura sociedade — Brasil 3. Personagens ¢ tipos na literatura I. Fonseca, Edison Néri da, 1921- II. Titulo. CDD-869.930827 301:8 70778 200:501 Indices para catélogo si i i gO sistemAtico: Literatura comparada 309. ai Literatura e sociedade —800:301 Literatura € sociologia 800:301 aun 6 € tipos : Roma : 5. soxibileira '869.930027 Literatura 6. Teo A literatura 301:8 TS . brasileing eens ,: Romances : Literatura 869,930927 Tipos sdcio-antropoldgicos no romance brasileir sua projecao como simbolos além dos seus tempos histéricos, Nao sero os romancistas ou novelistas, como alids, os drama- turgos, os compositores, os filésofos ou os pensadores, os ensaistas, os socidlogos de certo tipo, criadores, como os poetas, os artistas plasticos, os misticos do tipo da catélica Santa Teresa e do batista Bunyan, de formas, de categorias, de tipos e, principalmente, de simbolos — menos simbolos declarados que em potencial: germens de futuros simbolos — através dos quais a vida, o passado, a cha- mada natureza humana, e, dentro dela, o chamado cardter nacional de uma sociedade, projetando-se sobre o seu préprio futuro, se tor- nam perceptiveis, sensiveis e até, em alguns casos, compreensiveis ¢ inteligiveis? Nao haveré sempre numa novela, ou num romance, que seja, senfo literalmente valido, sociologicamente significativo, sim- bolos em potencial ou tipos potencialmente simbélicos — e além de assim pré-simbdlicos, socialmente expressivos? Socialmente expressivos eles nos permitirao, como pré-simbolos, interpretar, até certo ponto, o autor e sua atitude para com sua época € 0 seu meio; o ptblico por ele visado € que terd correspondido com maior ou menor simpatia a essa sua provocacdo; o meio ou o tempo social que o romance ou a novela evoque, apresente, reflita, critique, Procure evitar, ignorar ou evadir, criando, ou procurando criar, um antimeio ou um antitempo. Swift, em Gulliver, por exemplo, fantasiov um antitempo e, entre nés, Mério de Andrade, em Macunaima, tt gou uma caricatura romanesca de um tipo pré-simbdlico com algum™? coisa de brasileiro fora de um tempo especifico. Esses niio-tempos : antitempos novelescos podem contribuir para nossa compreens# Sema epee omens «tps soca ea epee . gestOes simbdlicas ou parassimbédlicas. Ou 60 “experiéncias simbélicas” imagindrias. Ou imayindveis pale het, dor ou pelo socidlogo do tipo criador; e, como tal, ry ue pretendem ser estritamente cientfficos © antilite erArion on arith. posticos. “Bxperiéncia_simbdlic: ml & hoje expressiio entre wily Jogos, embora haja, nesta ciéncia atualmente dividida em tantas i tas, sectarios do sociologismo de todo “cientifico”. O home woxcial vive e convive condicionado por simbolos ¢ exprimindo-se Wiae detestana polo em im- bolos. Em arte, como, alids, em religiao, em politica, em sociologia eo em filosofia, esse condicionamento e essa expressao se intensific: n se estilizam, com as formas — de interesse especifico para 0s socié- logos — a se sobreporem a simples substancias. Como captar-se, por meios cientifico-sociais, a vivéncia ou ex- periéncia humana que se exprime senao em s{mbolos declarados ¢ inteligiveis, em simbolos em potencial ou em tipos potencialmente simbélicos na novela ou no romance? Recorrendo, € claro, aquela empatia que antropélogos de hoje como Robert Spencer consideram essencial aos estudos antropolégicos em profundidade. E que sao indispensdveis a esses estudos quando se alongam em conjeturas so- bre possiveis ou provdveis futuros humanos. Os adeptos do “positivismo sociolégico”, em suas formas ex- tremas, sorriem de quanto seja andlise sociolégica, antropolégica ou de outra espécie psicossocial, isto é, fora dos métodos das ciéncias fisicas. A verdade, porém, é que é um tipo de andlise que estd se afirmando j4 em “contribuicdes positivas”. AS tentativas de captacdo do que, em formas de arte desenvol- das" no romance ou na novela, parece corresponder, através de \\ simbolos em potencial, a formas Sociais, ou psicossociais, de compor- \4@mento“humano, ostensivo ou encarapucado, quer~irredutivetmente humanas, quer principalmente cristalizadas em estilos proprios de i= Meio ou de um tempo sociais, serdo tentativas fora das normas =~ me s fisicas arbitrariamente aplicadas, por mero cientificismo, c amadas ciéncias do Homem: “Mas-isto- nao impede de serem ire noble € sociologicamente validas. Nao impede de se consti- as artisdon 4 interpretagéo daquelas inter relagdes entre formas — Telere o Pan 48 sociais — nas “contribuigoes Asean FP onan mM seus essor Duncan, ao sugerir, como socidlogo 7 -iteratura, Vez, em 1808: na Universidade de Sussex — na qual, por M conferéncia, lancei a idéia de uma concepgao brasileira de ti oi 4 PO nacional de homem e¢ de mulher caracterizado por uma more- 61 a. | nidade antes simbélica que sempre precisamente real, por um to. mancista do século XIX, Macedo, consagrada Pioneiramente en, personagem carismatico — “... we [refere-se aos socidlogos da Li. teratura] must get busy with our own analysis of symbol experien. ce...” Mais: nas ciéncias do Homem “... we [ refere-se_ 408 socié, logos em geral] need a return to humanism”. Daf sua critica Aquele, cientificistas da sociologia que, mesmo quando aceitam, atualmente — pela pressio, sobre eles, do humanismo cientifico corretivo do “positivismo sociolégico” — como material sociolégico id6neo, do. cumentos pessoais dos considerados “expres ivos” — cartas, testa. mentos, inventdrios — rejeitam os de expresso ostensivamente |j- teraria. Daf, também, recomendar maior aproximacao, em Sociolo- \} gia como em Literatura, entre “conceitos sociolégicos” e “interpreta- \ ga simbélica”: aproximagéo a qual, alids, se antecipou Freud, em anilises semi-socioldgicas, semipsicolégicas, como a que dedicou 2 \\ Leonardo da Vinci e que poderia ter dedicado a Cervantes ou a \ Shakespeare através dos usos, por artistas intérpretes, como artistas, da chamada natureza humana, de sugestdes ou antecipagGes simbdli- cas, para a expressdo ou a sugestao metaartistica, de experiéncias so- cialmente significativas, Experiéncias, quando de individuos Presentativas, nado sé de constantes, na condic&o humana, como de suas Teagdes individuais ou pessoais, a diferentes estilizagdes sdcio- culturais da mesma condi¢éo humana, i ou de personalidades re- los sob aquelas influéncias. Foi com Julieta; com o mereador com Otelo, Shakespeare nao sé anglick lerfsticas de ingleses do século XVI. De nalista ou intérprete do que ha de repre- mana, em geral, ¢ da condicionada, em de Veneza; com Hamlet; ZOu-0s como deu-lhes ¢; vérias. A caracterfsticos de figura fisica e de tipo de personalidade: desde a magreza angulosa, longilinea do introvertido Hamlet 4 gor- dura rotunda do extrovertido Falstaff. . Ao modo por que procedeu Shakespeare, recriando personagens de origens diversas A maneira dos tipos antropolégicos por ele co- nhecidos de perto — os ingleses do século XVI —, correspondem \ os modos de criagio ou de recriagéo de personagens pelos quais nao \s6 outros dramaturgos como romancistas, novelistas, contistas vém interpretando ou sintetizando simbolicamente situagdes ¢ tipos hu- manos, regionais ou nacionais, susceptiveis de se tornarem, pelas suas formas sociais alongadas em formas artisticas, universais no seu apelo a leitores e espectadores de varios pafses, de diversas cul- turas e de tempos futuros. Foi como o romance russo do século XIX tornou-se literatura de interesse universal projetada mais sobre o século XX que sobre o da sua emergéncia. £ como o romance inglés e, ultimamente, o dos Estados Unidos vém se universalizando, com como os criados por Dickens, por Thomas Hardy, por por He- personagens, Mark Twain, por Melville, por Dos Passos, por Faulkner, mingway, contendo em si sinteses simbdlicas de tipos humanos, ao mesmo tempo regionais e universais. Mas, tratando-se de literatura de ordindério chamada de ficcao, o grande exemplo é o de Cervantes, criador de um Dom Quixote e de um Sancho Panga que, sociolégica, ou psicossocialmente, sé podem ser compreendidos em relacéo nao apenas com a Espanha (espago) como, de modo especifico, com 0 declinio (tempo) das praticas de cavalaria andante na Espanha. Isto é, em relagéo com especfficas formas sociais. Esteticamente, entretanto, ao mesmo tem- po que psicologicamente, podem ser abstraidos dos contetidos espe- | Biche dessas formas para serem vistos, contemplados, desfrutados, | pelo que neles é simbdlico. Simbélico de dois tipos universalissimos ‘de condigéio humana, com formas antropol6gicas também simbolica- mente universais e no apenas espanholas: a associagdo da magreza como caracterfstico psicossomatico, ao heroismo, ao idealismo, a0 altruismo, ao misticismo, 4 auddcia, a criatividade desdobrada por | vezes em acd4o ou conduta romfntica; e a associagao da gordura a prudéncia, a cautela, ao senso comum, ao realismo, ao sentido pro- saicamente pragmatico, quer da existéncia, quer da conduta. : Na grande novela — ou romance — de Cervantes os dois con- trérios se mantém como que estaticos, do principio ao fim da nar- Tativa; estéticos 0 magro como magro e o gordo como gordo, com | 63 a oS os demais acessérios de personalidade associados a esses ostensivog ¢ até caricaturescos extremos, O tempo quase nfio 08 altera. O que vem sucedendo também com personagens apresentados, desde que esse modelo genial surgin em literatura, por outros: romancistas ¢ criadores ow fixadores de tipos simbdlicos de homem ou de mulher Inclusive no romance brasileiro: em varios dos a desse génerg de autores brasileiros os personagens sio antes estiticos do que dina micos em seus caracterfsticos de tipos antropolégicos mais potencia| mente simbdlicos do seu meio e da sua época, que de uma categoria pan-humana, como se estaticos fossem também 08 espagos € 08 tem. pos sociais dentro dos quais eles se realizam como heréis € como vildes: fixos, imutaveis, permanentes. Assim estaticos, tais personagens permitem aos analistas do que sejani Of Caracteristicos antropolégicos dominantes em personagens de romances brasileiros despreocupar-se do que sejam mudancas no seu comportamento que alterem associagdes de tipos antropolégicos de herdis ¢ de vildes com suas condutas de herdis e de vildes. Su- cede. porém, que desde Defoe e, de modo notavel, desde Balzac, se- guido pelos russos do século XIX e, principalmente, intensificado por Marcel Proust, quase nos nossos dias, o fator tempo passou a alt de maneira poderosa as associagées, outrora estaticas ou absolutas, de Uipos antropolégicos com sua conduta ou seu comportamento como personagens herdicos ou anti-herdicos de romances, dando a associagoes uma dindmica e uma relatividade que tornam a anilis. @ interpretac¢ao de associagdes dessa espécie, em varios dos mais s nificativos romances aparecidos no decorrer do século XIX ¢ 20 XX, tarefa extremamente dificil. Tarefa em que, ao critério apenas cientifico de reconhecimento de tipos humanos nesses Personagens, € preciso acrescentar-se toda uma casuistica, semelhante A dos j¢ suitas. Pois 86 assim se reconhecerao alteragdes nas relagdes entre pelle peste : sua conduta postas em foco por novelas ou eee as ara ou Provocadas pela agdo do fluir do tempe veis. Podem-se ad, pos: pos de modo algum absolutamente imutt mitir, pela agéo do tempo sobre os homens, deat as Magros, Com todas as correlagdes “Pode-sé admitir tue Se _ussociam aos dois tipos antropoldgices Ou tomnar-se vido tendo sido pany eta se hetst tendo sido. vildes fora para dentro, para sido herdi, nao 96 pela agdo do tempo. & que condicionem tais con, Padroes de conduta e as normas de &tit# aS consagracées, como pela acao, de dentro para bi Oes, co rD1Os Nervosos ou fisiol6gicos que se projetem sobre per — ~~ sonalidades, distanciando-as da normalidade social dominante ou reaproximando-as dessa normalidade, da qual se achavam distantes. Sabe-se de certas enfermidades que, em vez de degradarem pessoas que as sofrem, sutilizam nelas, além de sensibilidades e apti- does, virtudes humanas consagradas como virtudes maximas pelos sistemas religiosos e éticos que dao as culturas a que pertengam as mesmas pessoas ideais dificilmente atingiveis de conduta: os quase que sé atingidos pelos santos. Tais alteragGes de conduta e de ati- tude — as atitudes do enfermo diante da morte préxima, a afetar nele a personalidade: fendémeno que Thomas Mann genialmente analisou em livro célebre — podem ocorrer sem que os tipos antro- poldgicos dos pecadores que se tornam santos, sofram alteragdes em seus caracterfsticos susceptiveis de ser cientificamente anotados. Sem que brevilineos deixem de ser brevilineos. Sem que dionisiacos dei- xem de ser dionisiacos. Sem que morenos deixem de ser morenos. Mais: sem que os tragos exteriores que, dentro de dada cultura, ca- racterizem vildes, ou mesmo deménios, sejam substituidos pelos que convencionalmente caracterizem herdéis, anjos ou santos. Estes aspectos das relagdes entre personagens de romances ou novelas, considerados como tipos antropolégicos, e a conduta que Ihes é atribufda, raras vezes autenticamente, pelos romancistas ou novelistas, séo aqui recordados para que fique claro, a respeito dessas relacgdes, que, nelas, os tipos antropolégicos sao aproximacSes quer do que se deveria ter esperado como conduta deles nos romances ou nas novelas em que aparecem, quer do que se tornou efetivamente essa sua conduta nos mesmos romances ou novelas. AproximacGes validas como aproximagées. Mais uma vez atentemos em Dom Quixote. E um personagem que aparece, na novela que Ihe dedicou Cervantes, j4 homem feito: sem que se saiba a acéo do tempo sobre o menino, sobre o adoles- cente, sobre o jovem. Como lembra Unamuno, em pagina célebre, Dom Quixote surge no romance que tomou o seu nome, homem ja de cingiienta anos; parco no comer; fidalgo, é certo, porém pob © quanto ao fisico, seco de carnes e enxuto de rosto; e, nos seus habitos, madrugador e amigo da caga. O que fez Unamuno concluir que seria “de temperamento colérico”; e que do mesmo temperamen- to fora Inécio de Loiola. Caracterfsticos menos pan-ibéricos — ob- Serve-se — do que especificos de certa parte, ecolégica e psicossocial, de um complexo total. pales mais atual que Unamuno no critério cientifico de 'r personagens de romance ou de novela como tipos antro- 65 poldgicos diria de Dom Quixote, tal como surge, jé homem feito, no romance de Cervantes, que foi, por a eee ene te por natureza, um longilfneo, apolineo, introspectivo. ieee str de ligd-lo, por outros dos seus caracteristicos hae aa ee i : 7 sua ecologia regional, dentro do complexo ibérico: da gia ibérica total. Ecologia biossociocultural em sua configuragao. Os relacionamentos de personagens de romances ou de Novelas, como tipos sdcio- ntropoldgicos, com as suas ecologias regionais, dentro das nacionais ou totais, € importante. Mas importante é tam- bém seu relacionamento com seus meios regionals. Dentro do com- plexo brasileiro, um personagem baiano nfo se confunde com um paulista, nem sequer com um pernambucano. Nem um personagem de José de Alencar com um personagem de Erico Verissimo: seus tempos e também seus meios sociais e regionais os condicionam e se- param até certo ponto uns dos outros. Falta, entretanto, ao roman- ce brasileiro maior numero de personagens que sejam expressdes de tipos sécio-antropolégicos psicossocialmente condicionados, mais de dentro para fora que de fora para dentro, criando personagens que sejam expressdes de tipos sdcio-antropolégicos mais antropolégicos que sociais. Machado de Assis chegou a essas identificagdes psicol6- gicas sem ter deixado de captar, quase genialmente, algumas das re- lagdes inter-humanas condicionadas pelo sistema patriarcal de socie- dade na sede do entéo Império. A verdade, porém, é que nem Pernambuco, nem Minas, nem a Bahia — a chamada Virginia brasileira — tiveram, durante a época castigamente patriarcal, quem, 4 maneira de um Machado de Assis, Tetratasse, analisasse ou criticasse em romances brasileiramente regio- nais a docura lenta do seu viver nas casas-grandes do Recéncavo ou nos sobrados de Salvador refletidas sobre expressdes psicolégicas vin- das, nesses meios, de dentro para fora. Nem em Pernambuco surgiu, ‘ 1 na mesma €poca, um José de Alencar que romantizasse em J de Al i obras U ‘ s um Pedro Ivo ou a brav Lima: dois longilineos mistos — pelo que deles a at ae nisiacos e de apolineos, a talvez volutuosas ao mesmo tempo que mfsticas no seu modo de ser devotas de santos, os seus tipos sécio-antropolégicos mais merece- dores de consagragio novelesca ou de estilizagéio romanesca. Nao s6 as senhoras mais tfpicas daquele doce viver baronesas e vis- cond algumas — terio sido de tipos sécio-antropolégicos dignos das atengdes de romancis da época: também mucamas den- gosas, amantes de sinhés ou de sinhozinhos, por vezes — segundo as tradigdes — rivais. Pai e filho provavelmente, em grande ndmero, brevilfneos, mas, por excegdes nio de todo raras, longilineos; ¢ em alguns casos, apaixonados pela mesma mulata de formas também brevilineamente redondas. Diffcil de explicar-se que nem a Bahia, nem Pernambuco, nem — substituido o predominio do agticar pelo café — o Rio de Ja- neiro, provincia, e Sao Paulo, durante o esplendor ou mesmo o de- clinio da época patriarcal, tenham tido escritores que, em romances, transferissem para personagens potencialmente simbélicos, figuras reais cujos tipos sécio-antropolégicos de heréis e de vildes se apre- sentassem mais potentemente romanescos ou novelescos. Sao Paulo teve, é certo, personagens, desses pontos de vista, interessantissimos, em A Carne, de Julio Ribeiro. O Rio de Janeiro j4 tivera A More- ninha. O Maranhio, neste particular, avantajou-se tanto 4 Bahia co- mo a Pernambuco e a Minas: produziu em Alufsio de Azevedo, se- nao um retratista do seu viver aristocratico que favorecesse os tipos retratados, um analista do préprio sistema patriarcal brasileiro con- siderado numa das suas mais expressivas variantes regionais. E, com todo seu “realismo” por vezes mais sociolégico que literrio, criador, em O Mulato, de um personagem potencialmente simbdlico — ex presséo do mito brasileiro de morenidade, ou morenitude, oposto ao da branquidade e ao da negritude — que seria uma espécie de com- Parsa, neste particular, de A Moreninha, de Macedo. Ambos se pro- jetando de seus tempos sociais sobre tempos futuros com uma cres- cente significagao. _ Personagem também potencialmente simbélico com uma grande Projecao sobre o futuro é a herofna de A Carne. Projegdo sobre o futuro que caracterizara também a fi ura, para a sua epoca nada tipica, do Bom Crioulo, de Adolfo Caminha. ee 2 francés Adet foi dos primeiros estudiosos da situagao bra- pécie Pape © esplendor da época patriarcal, a tentarem uma es- fier ‘aracterizacao Psicocultural de regiOes Ou areas brasileiras, ‘© em consideragao até expressdes de ordem intelectual, foi sé 67 ~— no comeco do século atual que um norte-americano — Elliott, no seu Brazil, Today and Tomorrow (N. Y., 1917) — requintou-se em destacar dez e: itores brasileiros como tendo como que se especialj. zado em fixar, literdéria e sociologicamente, em romances ou novelas, dez diferentes ¢ caracterfsti Inocéncia, de Taunay, seria tuacdes regionais do Brasil. Assim 5 caracterizagao de tipos da “Fazenda jj. fe”; e um tanto romance socioldgico. OS Sertées — ensaio de feitio, nas suas melhores pdginas, romanesco ——~ de Euclides da funha, de figuras t{picas do “interior Brazilian uplands”; O Sertao, le Coelho Neto, idem; O Mulato, de Aluisio de ‘Azevedo, se distinguiria como um tipo superior de mestigo branco-negro em 4rea de encontro — acrescente-se a Elliott — das duas etnias — a caucasdide e@ ane gréide — através de duas classes: uma senhoril, outra servil; O Gai- cho, de José de Alencar, se notabilizaria como her6i produzido por uma regido de todo pastoril; Os Praieiros, de Xavier Marques, sur- ) giriam como retratos de pescadores de uma regiao maritima seten- trional; O Paroara, de_R earense jomem em cont de uma figura de mulher a fo Tedfilo, como. fixacéo de um tipo tato com a regido amazonense de flo- resta;-Maria Dusd, de Lindolfo Rochia,-se- salientaria como flagrante seu modo herdica, em ligagéo com a regido brasileira de diamantes; em Brds Cubas e Quincas Borba apa- receriam, imortalizados por um artista com alguma coisa de antro- pdlogo-psicélogo, brasileiros tipicos da entao Corte; Esfinge, de Afra- nio Peixoto, ou Dentro da Noite, de Jodo do Rio, apresentariam flagrantes de vida e de comportamento de cariocas considerados em suas peculiaridades urbano-regionais da época j4 republicana. Exato 0 que aqui se sugere — aceitando-se, com especificacées, generalizagdes por vezes simplistas de Elliott — certos personagens de romances, validos como tipos sécio-antropoldégicos, se afirmariam, ao mesmo tempo que representativos de seus meios e de seus tempos sociais, capazes de superar e: ssé seu condicionamento, sob a forma sociolégica de tipos potencialmente simbélicos, validos para outros espacos € para outros tempos, além dos especificamente seus. Vali- dos para o futuro: para o temp. se cristalizariam, mais reais que o real, fix simbélicos, em novelas Parassimbélicas, por um contemporaneo passar do regional 0 além do por eles vivido. Suas vidas pelas formas artisticas de suas projecdes ideais, 0 ‘adas ou sugeridas em termos potencialment? ou romances. Apresentai {éncias susceptiveis di Pp) dos em exper! e ser sentidas por um péstero come » teriam — ou vém tendo — condigées 4° ; ara o naci ‘ © universal. : ‘acional ¢ até — em alguns casos — P#!* 68 Nao nos esquegamos de que a diversidade regional do Brasil, refletida na sua literatura, seria considerada pelo escritor Vianna Moog, em estudo ricamente sugestivo sobre a condigdo brasileira de “arquipélago” — expressio vinda, aliés, de outro observador, este francés, da vida brasileira, tendo eu préprio me antecipado a Vianna Moog a empreg em pequeno ensaio sobre 0 contraste entre duas constantes sociolégicas na formagiio brasileira por vias regionais: a de “ilha” e a de “continente” sociologicamente configuradas. Tam- bém procurei, em pequeno trabalho publicado em ano remoto — 1925 — sugerir reflexos de condigées regionais sobre a pintura bra- sileira e sobre pintores, tomando a pintura nordestina como exemplo — trabalho que, juntamente com outros, de vdrios autores, sobre assuntos diversos, mas escritos sob 0 mesmo critério regional, cons- tam do Livro do Nordeste, aparecido naquele ano. Foi este, talvez, o primeiro inquérito, realizado no Brasil, por um grupo de intelec- tuais de varios feitios, 4s condigGes caraceteristicas de uma regiao brasileira — inclusive as de ordem especificamente cultural: arte, le- tras, teatro, folclore — em relagéo com o conjunto nacional e até com o transnacional, pan-ibérico. Ainda recordaria que em outro dos meus trabalhos mais antigos, escrito em 1941, apéds uma viagem de estudo pelo Sul do Brasil que me levou as fronteiras com a Argentina, o Uruguai e o Paraguai e a contatos, para efeitos comparativos, com esses pafses, sugeri ser pos- sivel levantar-se um mapa coreografico do Brasil — de areas coreo- graficas, portanto — a base, sobretudo, das diferentes expresses regionais de dangas carnavalescas e folcl6ricas. Dois anos antes, em Nova Iorque, num encontro com Serge Lifar, 0 famoso dangarino tusso, discfpulo de Diaghilev e rival de Nijinski, discutimos 0 as- sunto, Lifar e eu, tendo o russo se mostrado interessadissimo em visitar comigo o Brasil para uma colheita, em conjunto, de dados que Ihe permitissem compor um ballet brasileiro sobre uma inter- -telacéo de motivos regionais. Assunto que também interessaria, al- guns anos depois, a dancarina norte-americana Katherine Dunham que, igualmente, muito desejou compor comigo um baller brasileiro, €m que aparecessem contrastes entre predominancias regionais de influéncia africana, de influéncia ibérica e de intluéncia amerindia. Mas esse desejo seria sobretudo de H. Villa-Lobos, para uma obra que desejou compor, também em colaboragdo comigo e na qual, na as € no texto, se destacaria a combinagdéo de unidade com di- ersidade no arquipélago brasileiro. 69 (2) oi. | Recordam-se esses fatos, principalmente, essas frustracdes de projetos de interpretagaio de diferentes formas de expressiio da cul. tura _e do ethos brasileiros, para tornar-se clara uma j4 antiga insis. téncia brasileira em associar qualquer tentativa no sentido dessa in terpretagio a uma dindmica inter-regional que viria condicionands desenvolvimento do mesmo ethos e da mesma cultura; e que teria tido um dos fatores de sua verdade na extensio, como forma socio. l6gica de organizagao do sistema patriarcal de familia, a quase todo © Brasil. Assim estendido, 0 sistema teria adquirido variantes regio, nais de expresso social e, dentro da expresso social, de expressio cultural. A projegéo desses diferentes tipos regionais de convivéncia Tegional € claro que se refletiria sobre tipos diversificados de brasi- leiros, dos que, através de todo o esplendor do sistema patriarcal, no decorrer do século XIX, seriam tomados por novelistas ou roman- cistas como personagens potencialmente simbélicos dos seus roman- ces ¢ das suas novelas. Mudado, no Brasil, 0 tempo social de patriarcal para pés-pa- triarcal, compreende-se que, nos romances pés-patriarcais, a tendén- cia fosse — ou venha sendo — para os personagens potencialmente simb6licos, nos romances do Ultimo meio-século, ostentarem, por \ vezes, a sua liberacao do sistema patriarcal e, outras vezes, darem ) maostras de serem ainda por ele afetados. Por ele e por diferentes vi- * véncias regionais outrora deficientemente Patriarcais — mas sempre patnarcais — nos seus estilos de convivéncia assim como nas su2s nogoes de honra, de fidelidade conjugal, de imagem da mulher acs olhos dos homens. Repita-se que © assu: into em foco é o da literatura grifica — in- clusive @ novelesca — em face dos meios audiovisuais de comunica- i » pictéricos e Sonoros, superando de todo os S. Braficos? Ao critico Perspicaz irgini ; que € Virginius d: a lo nde escapou 0 fato de haver i ie i , hum escritor brasileiro da forte oralidade ue { Jo i i José Lins do Rego o que o mesmo critico deno — dentro das suas ¢ Personagens, alguns, mais auditivos que visuals a eee sons por vez : 4S suas pessoas. Sinos cu)° quele de ipreja aa quase como presencas humanas: 0 caso 4 quisesse chamar fi akei AMOnto Bento faz vibrar “como S dele”. Panheiro, um amigo que viesse para junte 70 ee ee or A representagao de romances de José Lins do Rego em cinema em radio, em televisto é grandemente facilitada pelo fato de sonoro, se desenvolverem os seus romances, nao s6 através de palavras, quase todas, mais orais do que especificamente liter4rias — as dos seus ersonagens © as dele proprio, narrador — como dentro das “paisa- ens sonoras” de que fala Virginius da Gama e Melo. “Paisagens sonoras” que nunca faltam aos dramas do autor de Fogo Morto. Nao ha nem tera talvez havido romancista brasileiro cuja obra escrita mais se preste do que a de José Lins do Rego a essa espécie de representagao, ou antes, de apresentagéio: a que se faca através do cinema sonoro, do rddio, da televisio, 4 base do que nela é literatura escrita. A que faga o seu verbo tornar-se carne, a sua ima- ginagdo tornar-se imagem e, sobretudo, a sua literatura tornar-se vi- prante e plenamente som: o som a que toda ela tende como se qui- sesse dissolver-se em misica. Uma misica um tanto rastica, porém musica, Uma musica um tanto folclérica. Euclides da Cunha é um escritor cuja voz se faz ouvir nos seus escritos, as vezes mais com énfase oratéria do que com naturalidade | apenas oral. Se tivesse sido romancista, seus personagens teriam sido terrivelmente ret6ricos ou elogiientes. O mesmo € certo do admirdvel José Américo de Almeida, quanto & elogiiéncia sem retérica. Na mesma tendéncia — a tendéncia para se fazer ouvir mais oratéria do que oralmente que de se comunicar, como Machado de Assis, graficamente — j4 se antecipara José de Alencar: o para muitos de nés essencial José de Alencar. Mas de Euclides destaque-se que foi, nos seus melhores mo- mentos, com leitores mais visuais do que auditivos, um escritor visual; e que a sua expressao literdria se caracteriza por um cons- tante afa de fixar-se em formas ou imagens semelhantes ds da es- cultura. Silenciosas, por vezes, tal a sua esculturalidade. O orador desaparece vencido — felizmente! — pelo escultor. E esse escultor, se romancista, teria criado persoangens com alguma coisa de esta- tuesco no seu modo de representarem tipos sécio-antropologicos. Ei Esculturalidade que nao se encontra em José Lins do Rego. oe se afirma, como escritor, nem escultural nem oratoriamen- pave nele predomina éa fluén ia simplesmente oral; sem éntase ace nem af escultural ou plastico. Sua oralidade € constante ¢ tipos Meese faz que sua personalidades — seus proprios comum da tai gicos — se definam principalmente pela fala, pelo inguagem, pela expressao oral. a i | 7 Compreende-se, assim, que a essa fluéncia oral José Lj, i... Rego junte o que Virginius da Gama e Melo denomina Paisagen, sonora”. A linguagem das coisas completa a das Pessoas, como sone See ds viver cotidiano de todas: pessoas € coisas. Pessoas, Cosas © animais porque A “paisagem sonora” -de-Tosé Lins do Rego nj, falta sendo a presenga, a sugestio do mugir de bois de engenhos de trotar de cavalos também de engenhos, como que a acompanharem os tipos sécio-antropolégicos dos seus personagens. “Paisagem sonora”: Virginius da Gama e Melo foi excepciona}. mente feliz em caracterizar assim a paisagem dos Tomances de José Lins do Rego. Nao hd neles paisagens nem a maneira das de Ea nem ao modo dos romances de José de Alencar: descritas, pintadas, coloridas, exaltadas, as de Alencar, com os seus caracterfsticos bra- sileiros, regionais, tropicais sublinhados pelo escritor pictérico, em- bora também oratério e, por vezes, demasiadamente enfitico. Por outro lado, nao se fazem notar, os romances de José Lins do Rego, como os de Machado de Assis, pela auséncia, quase absoluta, de paisagem. O que os distingue é sobretudo isto: desenrolarem-se den- tro de paisagens mais sonoras que visuais, que envolvem seus per- sonagens mais folcloricamente, por vezes, do que literariamente. Mais || orais — elas proprias — do que pictéricas. Os sons vindos da boca || dos sinos completando o sentido poético dos sons saidos da boca \\ dos homens. ten Shlo-\ POs — Agoaly 6075 72

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