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Dissertação Amanda Silva
Dissertação Amanda Silva
Macapá/AP
2023
AMANDA CRISTINA SOUZA DA SILVA
Macapá/AP
2023
[FICHA CATALOGRÁFICA]
AMANDA CRISTINA SOUZA DA SILVA
Banca Examinadora:
Macapá/AP
2023
À minha mãe, Maria José, por sonhar comigo.
Ao pequeno Oliver Antônio, por trazer luz à minha vida novamente.
À Lassie, pela companhia e pelas alegrias.
AGRADECIMENTOS
Iniciar o mestrado e ter ele interrompido por uma pandemia que vitimou milhões de
pessoas ao redor do mundo e milhares de brasileiros não foi uma tarefa fácil. Depois, ainda no
ano de 2020, o estado do Amapá sofreu um apagão energético que expôs o descaso dos órgãos
públicos para com a crise assolava a população amapaense. Nos últimos anos, a educação e a
pesquisa brasileiras também sofreram grandes cortes orçamentários, o que aprofundou a
precarização das universidades públicas. No final do governo negacionista e inimigo da classe
trabalhadora, a educação brasileira sofreu mais um duro golpe: o corte de bolsas de pesquisa
Capes. Tal corte acarretou o atraso no pagamento das bolsas de milhares de estudantes de pós-
graduação do Brasil, inclusive da minha. Termino a escrita dessa dissertação com alívio e a
certeza de que produzir ciência em um contexto de emergência sanitária, política, social e
econômica é um ato de resistência.
Nos últimos três anos contei com o apoio e a colaboração de muitas pessoas. Começo
agradecendo à minha família pelo apoio e pela saúde de todos. Aos meus pais Maria José e
Adilaudo, minha gratidão pelo incentivo a avançar na trilha da educação. À minha mãe,
agradeço pelo investimento no meu crescimento pessoal e profissional. Obrigada por não soltar
a minha mão. Nós duas para sempre, mamãe. Agradeço também à minha avó Maria Monteiro,
minha tia Eli, meu irmão Mateus e minha prima Camila, esta última pelas ajudas estruturais
durante os eventos científicos on-line.
Agradeço ao meu orientador por me ajudar a trilhar o caminho da pesquisa e escrita
dessa dissertação. Muitas vezes me ajudou a não desviar o caminho, quando eu estava perdida
e não sabia o que fazer. Que sorte eu tive de ser orientada por um profissional tão generoso.
Obrigada pela compreensão, professor. Sou grata ao corpo docente do PPGH-Unifap, um
programa de pós-graduação jovem, mas aguerrido. Agradeço aos colegas do Laboratório de
Estudos da História Social do Trabalho na Amazônia (Lehstam/Unifap), que muito
contribuíram para a realização dessa pesquisa e para a minha formação como pesquisadora, e
ao Grupo de Pesquisa Democracias e Ditaduras (GPDD/Unifap), especialmente às professoras
Júlia Monnerat e Maura Leal. Meu muito obrigado ao historiador Marcelo Jacques, ao
museólogo Michel Ferraz e ao arquivista Apoena Ferreira, funcionários do Tribunal de Justiça
do Amapá, pela ajuda na coleta dos processos judiciais. Agradeço às valiosas contribuições de
Lara de Castro e Maria Luiza Ugarte no exame de qualificação.
Agradeço aos queridos Higor Pereira, Marcella Viana, Marlos Vinícius Matos, amigos
que a Unifap me deu e que dividiram comigo as angústias e incertezas da pós-graduação. Sou
grata aos amigos Francisco Antonio, Alan Carlos, Leandra Leal, Nariane Almeida e Maria
Aldeliza pela amizade e por me ajudarem a respirar ares “fora da academia”. Amo vocês.
Por último, por mais que não saibam, agradeço aos meus filhos de quatro patas. Foram
minha companhia nos tempos de isolamento da Covid-19. À minha gataria pelo amor, pelos
risos e carinhos. À minha Lassie, que me acompanhava nas aulas e eventos remotos, algumas
vezes deixava escapar um latido ou aparecia na frente da câmera, e que infelizmente partiu em
2022.
Você pode me riscar da História
Com mentiras lançadas ao ar.
Pode me jogar contra o chão de terra,
Mas ainda assim, como a poeira, eu vou
me levantar.
Throughout the dissertation, we seek to fulfill the objective of analyzing the daily life of
prostitution in TFA with a focus on gender relations and class experiences, during the business-
military dictatorship. For this, we looked into documentary sources that enabled us to answer
our initial questions. Our investigative work sought to answer the following guiding questions:
how do the conceptions of honor of the working class from Amapá appear in the
documentation? How did the agents of the dictatorial regime deal with the prostitutes and the
TFA leisure spaces? What were the coexistence networks built by the prostitutes and by those
who interacted with them as a survival strategy? Based on the concepts of gender and
experience and based on the analysis and confrontation of police incidents, criminal processes,
journal articles and interviews, it was possible to infer that: the preservation of virginity and
modesty at all costs was an ideal of the ruling class only partially performed by the working
class, as workers' morals were more flexible; while nightclubs and taverns, frequented by
working-class men and prostitutes, were constantly guarded, including the presence of
territorial guards inside the establishments on duty, social clubs, to which politicians, soldiers,
businessmen and civil servants were regulars, were honored by the press; TFA prostitutes built
coexistence networks, woven by work, solidarity, love, kinship, friendship and neighborhood;
the common experience of being a prostitute did not always result in bonds of solidarity and
friendship, as motivated by jealousy and strife, the prostitutes entered into conflicts that
sometimes resulted in physical violence.
Introdução .................................................................................................................... 13
1.2. “Dizem que a vida de prostituta é vida fácil. Fácil coisa nenhuma”: a doença
social da prostituição ................................................................................................... 42
1.3. Trabalho doméstico e outros ofícios honestos das mulheres amapaenses ....... 56
2.1. Mulheres e homens ébrios: embriaguez e desordem nos registros policiais .... 83
3.3. “Aqui é puteiro, puteiro não tem regra”: memórias de uma dona de boate
em Macapá ................................................................................................................... 152
Introdução
1 PARADIS, Clarisse Goulart. A prostituição no marxismo clássico: crítica ao capitalismo e à dupla moral
burguesa. Revista Estudos Feministas, v. 26, 2018, p. 05.
2 Ibidem, p. 06.
14
foram criadas medidas sanitárias para controle das prostitutas, o que implicou na realização de
exames médicos forçados. Na Inglaterra, Tristan denunciou “a arbitrariedade da polícia, que
punia as prostitutas, e a conivência dos governos, que deveriam combater a prostituição e não
regulamentá-la”.3 Para ela, a prostituição era um tipo de morte física e moral para as mulheres
e deveria ser combatida.
Para Marx e Engels, a “comunidade de mulheres” pertence à sociedade burguesa, ou
seja, é uma criação do capitalismo e da propriedade privada. Para ambos, com a queda do
capitalismo, a prostituição teria o seu fim.4 Paradis, a partir disso, aponta que a transformação
das mulheres em propriedade resulta na prostituição.5 Ela acrescenta que Engels, em sua obra
Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, afirmou que a primeira luta de classes
se deu entre homens e mulheres, na oposição entre os sexos.6 Para ele, o casamento da família
moderna se transformou:
na mais vil das prostituições, às vezes por parte de ambos os cônjuges, porém,
muito mais habitualmente, por parte da mulher; esta só se diferencia da cortesã
habitual pelo fato de que não aluga o seu corpo por hora, como uma
assalariada, e sim que o vende de uma vez, para sempre, como uma escrava.7
3 Ibidem, p. 5.
4 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Expressão Popular, 2008, p. 48.
5 PARADIS, Clarisse Goulart. Op. Cit., p. 07.
6 ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 9.ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1984, p. 70-71.
7 Ibidem, p. 77.
8 BEBEL, August. Women under socialism. New York: Socialist Literature Co., 1910, p. 146.
15
que a prostituição é uma instituição política e não apenas do âmbito privado, então seria
necessário associar essa atividade à família burguesa, à indissolubilidade do casamento, à falta
de autonomia das mulheres, à monogamia forçada e com todas as contradições de uma
sociedade capitalista.13
É relevante passar pelo pensamento marxista para entender a contribuição de seus
teóricos para as questões das mulheres, especialmente as teóricas no feminismo que
influenciaram os estudos de gênero. Para nós, isso é importante não apenas pelos estudos de
gênero, mas também porque o marxismo é a base da história social do trabalho.
Vera Cotrim, ao analisar os trabalhos produtivo e improdutivo a partir da teoria de Karl
Marx, elucida que o trabalho produtivo é aquele que gera mais-valia para o capitalista e é
trocado por capital, enquanto o trabalho improdutivo não tem essa característica. Cotrim elucida
essas categorias retomando um exemplo clássico de Marx, o trabalho dos alfaiates:
Marx compara, para exemplificar, o trabalho do alfaiate contratado por um
capitalista para produzir uma calça que será consumida, com o trabalho do
alfaiate que produz a mesma calça na fábrica do capitalista. No primeiro caso,
o trabalho do alfaiate é improdutivo, pois se trocou pela renda, ou dinheiro
que é meio de troca: D – M. A mercadoria entrou para o âmbito do consumo
individual e o valor pago pela força de trabalho foi também consumido; no
segundo, a mesma atividade é produtiva porque foi trocada por capital,
gerando mais-valia para o capitalista: D – M – D’. Desta vez, o valor pago
pela força de trabalho não foi consumido, mas será realizado, juntamente com
o excedente de valor que criou, quando a mercadoria for vendida.14
ser entendida como produtiva ou improdutiva. Sendo assim, um trabalhador que vende sua força
de trabalho por conta própria é um trabalhador improdutivo, já aquele que vende sua força de
trabalho para uma grande empresa é um trabalhador produtivo. Cotrim aponta que a esse
trabalho consumido de forma individual e trocado por renda se dá o nome de serviço:
palpáveis, não geram mais-valia e nem produção excedente para o capital porque “a prostituta
não vende seu corpo, não vende a si mesma, vende serviços de cunho sexual” 22. Essa autora
entende a prostituição como um serviço, mas não a vê como trabalho. Ao longo dessas linhas,
vimos que serviço não é o oposto de trabalho, mas sim algo diferente de trabalho produtivo. De
fato, a prostituição não produz mercadoria material, mas produz renda para a prostituta, que
oferece um serviço sexual. Portanto, prostituição é trabalho, mas é trabalho improdutivo, porque
pode ser definida como serviço.
Marcel van der Linden aponta que no capitalismo fica subentendido que a “verdadeira”
classe trabalhadora é constituída pela força de trabalho dos assalariados livres porque é
mercantilizada. Mas, ele pondera: “essa hipótese de Marx, até onde eu saiba, nunca foi
corroborada, nem por análise teórica adequada nem por fatos concretos”23. Para Linden, isso
era óbvio porque explicava a formação do proletariado no Atlântico Norte, mas em todo o
mundo há diversas formas de trabalho. Isso quer dizer, por exemplo, que entre os assalariados
livres há a possibilidade de não se ser tão livres quanto poderia parecer. Linden escreve que a
ortodoxia marxista distingue cinco principais classes no capitalismo:
Este autor infere que, para Marx, a luta de classes se dá entre os capitalistas, os
proprietários de terra e os assalariados. Com isso, as outras classes não são percebidas como
importantes historicamente. Porém, Linden destaca que essas classes de trabalhadores são mais
fluidas do que nítidas, isto é, não são tão bem delimitadas como Marx imaginou.
De todas essas classes, a que mais nos interessa é o lumpemproletariado. Segundo Marx,
essa é uma classe perigosa e uma escória social, formada por vagabundos, criminosos e
prostitutas. Como pontuou Linden, trata-se de uma classe excluída do mercado formal de
22 Ibidem, p. 77.
23 LINDEN, Marcel van der. Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Campinas:
Editora Unicamp, 2013, p. 28.
24 Ibidem, p. 30.
19
trabalho, por isso é tida como “não classe”. Ele ainda esclarece que os trabalhadores das classes
citadas, em situação de miséria, podem se sentir forçados a roubar 25, o que faz esses
trabalhadores ultrapassarem as fronteiras de classe. Marx elucida que as prostitutas quando
trabalham em bordéis são trabalhadoras assalariadas improdutivas26. A partir disso, Linden
considera que a classificação das prostitutas como parte do “verdadeiro lumpemproletariado”
na marxiana faz parte das considerações moralistas do período no qual Marx viveu.27
As trabalhadoras autônomas e assalariadas do Amapá buscavam meios de sobrevivência
e viam no serviço da prostituição uma alternativa de subsistir. Vimos como uma prostituta de
bordel é inserida no mercado de trabalho legalizado, ao passo que uma prostituta de rua é
classificada como parte de uma classe residual. Contudo, essa prostituta que constitui o
lumpemproletariado é também parte da classe dos trabalhadores porque ela pode exercer um
trabalho produtivo ou improdutivo concomitante ao serviço da prostituição.
A assistente social Maria Diniz realizou pesquisa sobre prostitutas que fazem suas
atividades nas ruas e cabarés de Natal, no Rio Grande do Norte, entre os anos de 2008 e 2009.
Ela apontou que a condição econômica é determinante para a inserção de mulheres das classes
populares na atividade sexual. Por meio de entrevistas, ela chegou à conclusão de que as
prostitutas veem a prostituição como um meio de sobrevivência e não como uma profissão.
Diniz aponta que:
Assim como Maísa Santana, Diniz não considera que a prostituição seja um trabalho
porque ver a prostituta como uma trabalhadora sexual é, segundo ela, uma forma de naturalizar
a mercantilização das mulheres. Diniz entende que a prostituição não é uma escolha e nem que
as mulheres que se prostituem desejam abraçar essa profissão, mas a isso são impelidas pelo
25 Ibidem, p. 30-35
26 MARX, Karl. Theories of Surples Value, vol. I. Trans. Emile Burns (London: Lawrence & Wishart, 1969), p.
166-186.
27 LINDEN, Marcel van der. Op. Cit., p. 45.
28 DINIZ, Maria Ilidiana. Silenciosas e silenciadas: descortinando as violências contra a mulher no cotidiano da
prostituição em Natal-RN. 2009. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Serviço Social),
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2009, p. 93.
20
29 Ibidem.
30 Ibidem, p. 91.
31 Ibidem, p. 96.
32 Monique Prada prefere chamar o feminismo radical de feminismo conservador.
21
Não é uma linha que me represente, já que considero que nenhum trabalho
exercido em nossa sociedade, e em especial nenhum trabalho precário
exercido por mulheres de baixa escolaridade e classe social, possa realmente
ser considerado empoderador e emancipatório. Não há nenhum
questionamento sobre o empoderamento alcançado por mulheres que exercem
outros trabalhos precários: ninguém se importa se uma mulher precisa limpar
privadas, ocupar seus dias embalando compras ou costurar até a exaustão, mas
basta que ela use o sexo para garantir seu sustento que passamos a nos
preocupar com sua condição.35
36 Sobre os debates na historiografia acerca dos termos empresarial-militar e civil-militar, ver: MELO, Demian
Bezerra de. O golpe de 1964 e meio século de controvérsias: o estado atual da questão. MELO, Demian Bezerra
de (Org.) A miséria da historiografia: uma crítica ao revisionismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência,
2014.
23
37 “A Voz Católica foi um jornal eclesiástico da Prelazia de Macapá, composto e impresso na Gráfica São José. O
jornal possuía como reitor o Padre Alexandre, como diretor Cônego Ápio Campos, como diretor-presidente
Elfredo Távora Gonçalves e como redator Padre Jorge Basile. O impresso circulou durante 15 anos por todo o
Território Federal do Amapá. A publicação era realizada uma vez por semana, no domingo. A primeira publicação
deste semanário ocorreu no dia primeiro de novembro de 1959 e a sua última no dia vinte e nove de dezembro de
1974.” In: AZEVEDO COSTA, Johnata Dias Silva; ASSIS, Wanny Kallyni Ferreira de. Fontes para a história
das mulheres amapaenses em dois jornais de Macapá (anos de 1959 a 1964). Monografia (Bacharelado em
História), Universidade Federal do Amapá, 2019, p. 50.
38 O jornal Amapá foi criado em 1945 pelo governador Janary Nunes como um instrumento de propaganda para
o governo territorial. Segundo o Relatório das atividades do Governo do Território Federal do Amapá em 1944,
apresentado pelo então governador Janary Nunes, “na época da criação do Território, não havia, em todo o Amapá,
nenhuma oficina gráfica, nenhum meio de publicidade e propaganda”. Então, foi criado o Serviço de Imprensa e
Propaganda, incluído no plano de organização administrativa com o objetivo de “difundir pela imprensa e pelo
rádio, dentro e fora do Território, todas as informações de interesse para o desenvolvimento econômico da região,
suas possibilidades, e para a divulgação mais ampla dos atos do Governo da União e da administração local”. Já
no governo militar, seu nome é modificado para Novo Amapá, mas segue com o mesmo objetivo: veicular os feitos
da gestão governamental militar do Território Federal do Amapá. Ver: NUNES, Janary. Relatório das atividades
do Governo do Território Federal do Amapá em 1944. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1946.
39 A revista Icomi-Notícias circulou no TFA nos anos de 1964 a 1967. Augusto Antunes, na primeira edição da
revista, no artigo de abertura, enfatiza que ela não era um veículo empresarial, apesar de ser vinculada à empresa
e sim uma revista de “todos para todos”, sendo assim, ele tinha “confiança na prevalência dos fatores morais e
sociais que tanto têm engrandecido a nossa terra”. Ainda segundo ele, um dos objetivos do periódico era promover
um elo de ligação entre os membros da ICOMI com o restante da comunidade do TFA e que não tinha dúvidas de
que “servirá ao propósito de esforços pelo bem comum”. In: UMA palavra. Icomi-Notícias, nº 01, 1964, p. 1.
40 SHARPE, Jim. A história vista de baixo. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da História. São Paulo: Editora da
Universidade Estadual Paulista, 1992.
41 Ibidem, p. 59.
24
42 TILLY, Louise. Gênero, história das mulheres e história social. Cadernos Pagu. Vol. 3, 1994, p. 29.
43 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Tradução de Christine Rufino Dabat e Maria
Betânia Ávila. Texto original: Joan Scott – Gender: a useful category of historical analyses. Gender and the politics
of history. New York, Columbia University Press. 1989, p. 5.
44 Ibidem, p. 16.
25
Porém, relacionar as ações dos sujeitos com base no que seria o “comportamento
feminino ou masculino” no pensamento dominante limita a interpretação das historiadoras e
historiadores. O sujeito pode assumir um comportamento fora daquele que foi reservado a ele
pelas construções de gênero. No artigo “História das mulheres”, Joan Scott pondera que as
experiências de homens e mulheres são diferentes por causa do gênero:
A maior parte da história das mulheres tem buscado de alguma forma incluir
as mulheres como objetos de estudo, sujeitos da história. Tem tomado como
axiomátíca a ideia de que o ser humano universal poderia incluir as mulheres
e proporcionar evidência e interpretações sobre as várias ações e experiências
das mulheres no passado. Entretanto, desde que na moderna historiografia
ocidental, o sujeito tem sido incorporado com muito mais frequência como
um homem branco, a história das mulheres inevitavelmente se confronta com
o “dilema da diferença”.45
O que descobrimos (em minha opinião) está num termo que falta: “experiência
humana”. É esse, exatamente, o termo que Althusser e seus seguidores
desejam expulsar, sob injúrias, do clube do pensamento, com o nome de
“empirismo”. Os homens e mulheres também retornam como sujeitos, dentro
deste termo – não como sujeitos autônomos, “indivíduos livres”, mas como
pessoas que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas
como necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida “tratam”
essa experiência em sua consciência e sua cultura (as duas outras expressões
excluídas pela prática teórica) das mais complexas maneiras (sim,
“relativamente autônomas”) e em seguida (muitas vezes, mas nem sempre,
através das estruturas de classe resultantes) agem, por sua vez, sobre sua
situação determinada.46
E adiante ele afirma que “a experiência (descobrimos) foi, em última instância, gerada
na ‘vida material’, foi estruturada em termos de classe, e, consequentemente o ‘ser social’
determinou a ‘consciência social’”.47 Então o indivíduo vivencia a experiência no cotidiano
45 SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da História. São Paulo: Editora da
Universidade Estadual Paulista, 1992, p. 77.
46 THOMPSON, E. P. A miséria da teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 182.
47 Ibidem, p. 189.
26
regido por necessidades concretas, depois ele se reconhece enquanto classe e a consciência
social é alcançada quando ele identifica que outros indivíduos compartilham da mesma
experiência.
Karl Marx argumenta que “as ideias da classe dominante, são, em todas as épocas, as
ideias dominantes”. A classe dominante é que detém a força intelectual, a força material e os
meios de produção, ou seja, tem todos os mecanismos disponíveis para tornar a sua visão de
mundo amplamente aceita. Segundo ele, “os indivíduos que formam a classe dominante
possuem, entre outras coisas, consciência e por isso pensam”.48 Desse modo, eles produzem e
distribuem as ideias de seu tempo. Isso é possível porque, além dos meios de produção
espirituais, a classe dominante é também detentora dos meios de produção materiais.
Já E.P. Thompson, no livro Costumes em Comum, explica que a classe trabalhadora não
compartilhava da mesma cultura e costumes da burguesia e da nobreza. Os populares tinham
os seus próprios referenciais morais construídos ao longo de gerações e resistiram frente às
mudanças promovidas pelas classes dominantes, seja no trabalho ou fora dele. Porém, “quando
procura legitimar seus protestos, o povo retorna frequentemente às regras paternalistas de uma
sociedade mais autoritária, selecionando as que melhor defendam seus interesses atuais”49, ou
seja, os trabalhadores sabiam muito bem usar as ideias da classe dominante a seu favor, quando
era necessário.
Sobre espaço e formação de classe, estamos de acordo com a concepção de Mike
Savage, que afirma:
O espaço precisa ser visto como importante em duas maneiras diferentes e
possivelmente contraditórias. Primeiro, lugares particulares podem se tornar
habitats para certos grupos sociais de modo que estes lugares se tornam
integralmente ligados em seus ‘habitus’, seus estilos de vida, e, desse modo,
podem ser a base sobre a qual sua identidade coletiva é formada. Segundo, a
formação de classe pode ocorrer quando classes sociais estendem-se através
do espaço construindo redes que ligam membros da classe mesmo quando eles
estão espacialmente dispersos.50
Por meio do espaço, os sujeitos constroem suas relações sociais e a sua identidade de
classe. Assim, os espaços boêmios e os bairros periféricos constroem a identidade de seus
frequentadores e moradores, que estão ligados espacialmente à mesma classe social. Desse
modo, as prostitutas constroem a sua identidade através do gênero e da classe, no cotidiano do
trabalho e nos locais que elas frequentam e constroem por meio de sua relação com outros
sujeitos.
Para pensar o cotidiano, elegemos o conceito de vida cotidiana de Agnes Heller. Para
esta filósofa, todos vivem a vida cotidiana “com todos os aspectos da vida individualidade, de
sua personalidade”.51 De acordo com Heller, a vida cotidiana é heterogênea e hierárquica.
Heterogênea no sentido da “organização do trabalho e da vida privada, dos lazeres e o descanso,
a atividade social sistematizada, o intercâmbio e a purificação”52, pois esses são aspectos
imutáveis e eternos que independem do modo de produção vigente. Mas a vida cotidiana é
hierárquica porque “se modifica de modo específico em função das diferentes estruturas
econômico-sociais”.53 Ela justifica esse argumento com exemplos de sociedades que definiam
sua vida cotidiana em torno do trabalho, subordinando a ele as demais atividades, e de
sociedades que tinham o divertimento como lugar central. Assim, a atividade principal assume
centralidade, ao passo que subordina as demais atividades sociais.
A coleta e análise de fontes para esse trabalho foi diretamente prejudicada pela
pandemia de covid-19, visto que nosso ano de ingresso neste Programa de Pós-Graduação foi
2020. Desse modo, a escrita desse texto se deu junto as disciplinas obrigatórias e estágio-
docência. Produzir essa pesquisa só foi possível devido a fontes digitalizadas por outros
pesquisadores e pesquisadoras, além de um material digitalizado por nós, em ocasiões
anteriores ao período pandêmico. Com a flexibilização do isolamento social por consequência
do avanço da vacinação, conseguimos acesso ao Arquivo do Fórum da Comarca de Macapá
para coletar mais processos criminais envolvendo meretrizes e conseguimos produzir uma
entrevista com a dona de uma boate onde prostitutas moravam e trabalhavam e que funcionou
por mais de vinte anos no Território Federal do Amapá. A bolsa de pesquisa Capes-Fapeap e
os auxílios proporcionados aos estudantes de pós-graduação da Universidade Federal do Amapá
tiveram papel fundamental na construção dessa dissertação.
Os processos criminais são fontes abundantes para a pesquisa histórica. Segundo Carlos
Bacellar, “a convocação de testemunhos, sobretudo nos casos dos crimes de morte, de agressões
físicas e de devassas, permite recuperar as relações de vizinhança, as redes de sociabilidade e
54 BACELLAR, Carlos. Uso e mau uso dos arquivos. In: PINSKY, Carla Bassanezy (org.). Fontes Históricas.
São Paulo: Contexto, 2011, p. 37.
55 LUCA, Tânia Regina de. Fontes impressas: História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla
Bassanezi (org.). Fontes históricas. 3. Ed – São Paulo: Contexto, 2011.
56 ALBERTI, Verena. Histórias dentro da História. In: PINSKY, Carla Bassanezy (org.). Fontes Históricas. São
Paulo: Contexto, 2005, p. 155.
29
zonas de meretrício em Macapá e seus distritos. Por último, a terceira seção refere-se às redes
de convivência das meretrizes e às experiências da profissão, abordando aspectos como o amor,
a amizade, a maternidade e as vulnerabilidades dessas trabalhadoras.
30
57 HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 278-279.
31
teriam meios de sustentá-las com conforto.58 A partir disso, entendemos que a família burguesa
composta pelo pai provedor e pela esposa dona de casa foi historicamente construída pelo
capitalismo.
Para Maria Angela D’Incao, no final do século XIX e início do XX, o Brasil viveu a
transição das relações senhoriais para as relações burguesas, o que modificou os laços de
solidariedade entre vizinhos e compadres, por exemplo, dissolvendo relações de compadrio e
tutelagem. O espaço urbano foi remodelado e em nome da modernização e determinados
comportamentos passaram a ser condenados, pois a rua agora era pública em contraposição à
casa, que era privada. No entanto, a casa da família burguesa era aberta para convenções sociais
nas quais a anfitriã era a mulher, que deveria ser um exemplo de mãe dedica e esposa, o que só
era possível no seio da família burguesa. Para D’Incao, o surgimento, ou a criação, da família
burguesa, “ao reforçar no imaginário a importância do amor familiar e do cuidado com o marido
e com os filhos, redefine o papel feminino e ao mesmo tempo reserva para a mulher novas e
absorventes atividades no interior do espaço doméstico”.59 Ela destaca como a medicina, a
educação e a imprensa contribuíram para fortalecer esse imaginário da mulher como guardiã do
lar. Questão que nos interessa, pois aqui vamos analisar os textos produzidos pela imprensa
para identificar o ideal de família dos periódicos amapaenses.
Sueann Caulfield destaca que o conceito de família no Rio de Janeiro, nas primeiras
décadas do século XX, serviu “para separar as mulheres simbolicamente e espacialmente dos
homens e as classes trabalhadoras da cidade (denominadas, em geral, de ‘a massa popular’ ou
‘populares’) dos setores sociais privilegiados”.60 Para ela, quando se falava “as famílias” isso
não significava “todas as famílias”, de todas as classes sociais, mas sim aquelas mais civilizadas
ou mais próximas dos padrões europeus (tanto socialmente quando racialmente). Assim como
D’Incao61, Caulfield ressalta que os homens da elite frequentavam o espaço urbano livremente,
mas as mulheres não, mantinham-se protegidas em casa.
Abordando o período que mais diretamente nos interessa, Ana Rita Duarte infere que o
governo ditatorial, por meio da Escola Superior de Guerra (ESG), buscou formas de fortalecer
a instituição social da família com o objetivo de consolidar o poder nacional, ou seja, o poder
da Ditadura empresarial-militar, para evitar que o Brasil fosse tomado pelo comunismo ou
58 Ibidem, p. 285.
59 D’INCAO, Maria Angela. Mulher e família burguesa. In: PRIORE, Mary Del. História das mulheres no Brasil.
São Paulo: Contexto, 2004, p. 230.
60 CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940).
Campinas, SP: Editora da Unicamp, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000, p. 117.
61 D’INCAO, Maria Angela, Op. Cit.
32
outras ideias subversivas. A ESG, com base na Doutrina de Segurança Nacional (DSN),
apregoava que os valores, ideais e virtudes ensinados no interior dos lares contribuíam com a
elevação dos padrões éticos e morais dos indivíduos. Mas, na perspectiva desta Escola, a família
e os valores tradicionais estavam correndo riscos por causa da degradação moral do comunismo,
que destruiria a estrutura familiar e a moral sexual. E “o lar é apontado como a estrutura onde
se exercita a convivência familiar para realizar o que seriam as funções ‘essenciais’ da família:
a função procriativa, a educativa, a econômica e a afetiva”. 62 A autora afirma que o lar era um
tema recorrente nos textos produzidos pelos estagiários da ESG, o que revela uma preocupação
do regime ditatorial de articular o tema da vida doméstica com a DSN.
Tentando perscrutar tais percepções e discursos, selecionamos artigos de jornais sobre
família, maternidade, papel da mulher no casamento e outros assuntos relacionados. Temas
familiares eram comuns nos jornais A Voz Católica e Novo Amapá, assim como na revista Icomi
Notícias. Foi possível, por meio destas fontes, identificar o ideal família do governo do TFA
nesse período. Grosso modo, esse ideal não difere do modelo de família burguesa e nuclear
estandardizado em contextos anteriores, como no início do período republicano ou no Estado
Novo, porque a família burguesa é uma criação do capitalismo e esse sistema econômico estava
pautando a modernização nacional, o que inclui o Amapá.
Para além do Estado e da Igreja Católica, o empresariado também quis instituir um novo
modelo de família no TFA. Nos referimos especificamente à Indústria e Comércio de Minérios
S.A. (Icomi), que usava a revista Icomi-Notícias para publicizar as atividades que realizava em
suas company towns, Serra do Navio e Vila Amazonas. De acordo com Adalberto Paz, havia
um “modelo de família operária”63 e isso é perceptível nas páginas da revista, onde o homem
figura como o provedor da casa, a mulher como dona de casa e mãe exemplar, enquanto as
crianças deveriam estudar e receber o cuidado dos pais. A revista destaca, ainda, a importância
da presença dos pais na vida escolar de seus filhos, principalmente da mãe, pois a
responsabilidade do aprendizado das crianças deveria ser resultado de uma parceria de pais e
professores.
Um exemplo desse modelo de família é encontrado na edição de n° 31 da Icomi-
Notícias. Na sua capa vemos uma fotografia da família Sarges. A ela é dedicada a reportagem
62 DUARTE, Ana Rita Fonteles. Gênero e comportamento a serviço da Ditadura Militar: uma leitura dos escritos
da Escola Superior de Guerra. Diálogos (Maringá. Online), v. 18, n.1, p. 75-92, jan.-abr./2014, p. 87.
63 PAZ, Adalberto Junior Ferreira. Os mineiros da floresta: sociedade e trabalho em uma fronteira de mineração
industrial amazônica (1943-1964). Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em História Social),
Universidade Estadual de Campinas, 2011, p. 184.
33
de título “uma família na Icomi”, que contém várias outras imagens retratando o cotidiano da
família. Essas fotografias são dispostas numa sequência não aleatória, pois cada uma representa
um tema. Primeiramente, há uma fotografia da família reunida, seguindo o modelo idealizado
pela Icomi de família operária. Segue-se a imagem de Dona Isabel com um de seus filhos em
um consultório médico para representar a estrutura de saúde da mineradora. Na sequência, há
duas fotografias em sala de aula: a primeira mostra Domingos e Isabel em um curso supletivo
para concluir os estudos, as demonstrar o interesse de ambos em progredir, e a segunda
demonstra que os filhos do casal têm acesso a uma boa preparação escolar e são dedicados e
inteligentes. Por último, duas imagens mostram que um momento de diversão para Domingos
é o futebol, pois é dirigente de um clube, e “nas festas os dois, Domingos e Dona Isabel, voltam
às origens e se deliciam com um delicioso tacacá bebido na cuia”.64
um momento de retorno aos hábitos “atrasados” da região. Dessa forma, segundo Paz, a Icomi
já teria cumprido:
A função de “ajustar” e normatizar a imensa maioria de trabalhadores locais
não-especializados dentro dos padrões de produtividade e ritmos de trabalho
da moderna economia capitalista industrial, buscando incutir-lhes ideais
“adequados” de comportamento, alimentação, lazer, direitos e obrigações
baseados em um modelo de família estável e legalmente constituída, aliado ao
sentimento de civismo e pertencimento à comunidade.65
O que também é uma forma de regular a família para ter trabalhadores disciplinados e
desligados dos hábitos tidos como atrasados de caboclos e ribeirinhos. Havia um desconforto,
principalmente das autoridades governamentais, para com o modo de vida dos amapaenses e
também de trabalhadores migrantes. As habitações construídas com materiais disponíveis na
floresta, como troncos e folhas de árvores, e percebidas como desprovidas dos meios de higiene,
a alimentação supostamente escassa, baseada em farinha de mandioca e avessa ao consumo de
legumes, eram motivos de queixa dos agentes dos órgãos governamentais.
Segundo os jornais analisados, as homenagens de dia das mães e até passagens de
aniversário aconteciam nos clubes esportivos do TFA, as mulheres homenageadas eram esposas
dos militares que ocupavam cargos no governo territorial da Ditadura empresarial-militar. As
confraternizações ocorridas em datas comemorativas eram noticiadas pelo Novo Amapá,
enquanto A Voz Católica se detinha a publicar textos de orientação à população, mas
principalmente para os católicos amapaenses. Segundo articulista de tal periódico, o clube
Círculo Militar realizou uma eleição para consagrar a mãe do ano:
Podemos ver que foram escolhidas para ser homenageadas e presenteadas duas mães,
uma por ser a mais velha e outra por causa de sua numerosa prole. Mas, elas não eram
associadas do Círculo Militar. Helita do Carmo foi escolhida como mãe do ano por estar em
trabalho de parto na hora da programação, ela fazia parte do quadro social do CMM. A fonte
sugere que o título de “Mãe do Ano” era concedido somente às mães desse meio social. Todas
exerceram o papel maternal esperado e foram “recompensadas” por isso. Cândida recebeu
presentes de “luxo” e Raimunda foi contemplada com “valiosos prêmios”, como o jornalista
fez questão de destacar. Destacar o valor dos prêmios foi uma opção de Wilson Sena por se
tratar do Círculo Militar, composto por indivíduos de maior poder aquisitivo, o que transmite a
ideia de que os promotores do evento eram generosos para com as mães do TFA. O dia dos pais
também foi tema de publicações dos jornais, mas não com a mesma ênfase das homenagens às
mães:
Dia do papai
[...] Meu marido costuma dizer aos amigos, nesta ocasião: “Bonito quando é
o dia da mãe, meus filhos vêm pedir-me dinheiro paga comprar-lhe os
presentes. E quando é o dia do papai eles pedem à mãe, que vem pedir para
mim. Quem paga sou sempre eu.” Porém, atrás das suas palavras, nota-se a
sua alegria por ser ele o centro de tanta atenção e de tanto carinho no seu dia.69
O destaque das publicações de dia dos pais está relacionado com o papel de provedor
do homem: é ele quem dá o dinheiro para a compra dos presentes porque a esposa não tem
meios financeiros para isso. O pai se “queixa”, mas entende que a intenção dos filhos e da
esposa é lhe homenagear.
As mulheres retratadas no jornal eram caracterizadas como gentis, companheiras e
exemplos de mãe e esposa. Porém, dentre todas, a mais homenageada era a esposa do
governador do TFA, o General Ivanhoé Martins, a senhora Irene Martins, mencionada
anteriormente, que recebeu um texto na passagem de seu aniversário:
Primeira dama
[...]
[...]
Quase sempre, o caminho do homem é marcado por uma mulher e pela sua
influência ele descerá nos abismos, ou realizará ascensões sublimes.72
1 - Ama teu marido mais que ninguém no mundo, depois do Senhor, e ama o
teu próximo o melhor que puderes, mas lembra-te de que a casa é do teu
marido e não do próximo;
3 - Prepara para teu marido uma casa ordenada e um rosto sereno, mas não, te
amofines, se ele não der por isso imediatamente;
4 - Não lhe exijas coisas supérfluas para casa: pede lhe uma casa alegre e um
canto livre para as crianças;
5 - Que os teus filhos sejam alegres e limpos como tu, para que teu marido
sorria quando os ver, e pense neles quando está longe;
6 - Pensa que casaste com ele para os bons e para os maus tempos, mesmo
quando toda a gente o abandonasse, tu devias continuar a apertar a sua mão
nas tuas.75
Aqui, as orientações são tanto para as esposas quanto para os maridos. Segundo o texto,
era preferível que os jovens casassem o mais rápido possível, certamente para evitar “o pecado”
do sexo antes do casamento, devendo, porém, estar cientes que o matrimônio também passa por
momentos adversos. Para o marido, é aconselhado que procure uma companheira com as
qualidades que já mencionamos anteriormente, mas vamos destacar a qualidade da economia.
Um casal cristão deve procurar ser o mais modesto possível e não gastar mais do que tem ou
evitar o consumo excessivo.
Em uma seção direcionada para os jovens, A Voz Católica publicou um texto para
abordar o sexo no casamento. O periódico pontuou que antes o assunto era tabu, mas
acrescentou que os tempos mudaram e era então natural e até necessário falar sobre isso, porque
a formação sexual promove um “harmônico equilíbrio da personalidade”.77 E ainda reproduziu
uma entrevista sobre liberdade sexual da campeã mundial de esqui, a francesa Marielle
Goeitschel:
Juventude e casamento
À liberdade sexual digo não. Sei que hoje em dia muitas môças têm relações
de casadas antes do matrimônio. Creio que isto não está certo. Não somente
eu penso assim. Tenho conversado com rapazes e observei que detestam as
garotas que se entregam facilmente... Vê-se como desprezam uma moça
depois de terem feito com ela o que bem entendiam... Digo a mim mesma que
em todas essas coisas é preciso adotar uma disciplina, tanto para o amor como
para o esporte, senão um dia a gente se arrasa... Vou dizer uma coisa: nunca
ponho a culpa nos rapazes. Se um deles viesse me pedir o que não deve, eu é
que mereceria uma bofetada e pensaria então: “Você é que não presta, não é
ele, porque, de um modo ou de outro, foi você quem lhe deu a ideia”.78
Então, a liberdade sexual era causada por mulheres que “se entregavam facilmente” e
que por isso mereciam o desprezo dos que com elas se relacionaram sem conúbio. Quem deveria
controlar e regular essa liberdade eram as mulheres, pois os rapazes só fariam insinuações sobre
relações sexuais se as moças dessem abertura para isso, caso em que mereceriam ser castigadas.
Maria Angela D’Incao, ao escrever sobre a família burguesa e o amor romântico no
século XIX, esclarece que a virgindade da noiva era tida como um símbolo “de valor econômico
e político, sobre o qual vai se apresentar um sistema de herança de propriedade que deve
sobretudo garantir a linhagem da parentela”. Assim, a vigilância em torno dos jovens antes do
casamento servia para que o sistema de casamento não fosse enfraquecido pelo “encontro dos
corpos” desses jovens.79 Porém, no contexto do regime ditatorial não era considerado adequado
reduzir a virgindade e o casamento somente a valores econômicos e políticos, pois os valores
morais também eram tidos como essenciais. As famílias pobres também valorizavam os dois
aspectos, tanto que buscavam meios para reparar a perda da virgindade das suas filhas e orientá-
las para que não caíssem no pecado e se mantivessem virgens até o casamento. Apesar de que,
por vezes, esses valores, como mostra a documentação, fossem relativizados, assim como foram
para as famílias burguesas.
Os casamentos também eram noticiados nos jornais, quando os noivos eram de famílias
prestigiadas nos círculos da elite do Território Federal do Amapá e os homens funcionários da
Icomi e do governo territorial. Do noivo era noticiada a profissão e a família, já a noiva era
identificada por sua família ou pelos seus modos:
78 Ibidem.
79 D’INCAO, Maria Angela. O amor romântico e a família burguesa. In: D’INCAO, Maria Angela (Org.). O amor
e a família no Brasil. São Paulo: Contexto, 1989.
41
da virgindade e do recato das mulheres. Vimos se delinear uma distinção de classe: as mulheres
presentes nas páginas dos jornais são esposas e filhas de políticos, empresários ou de famílias
prestigiadas no TFA. As mulheres da classe trabalhadora raramente apareciam e, quando isso
acontecia era, de certa forma, em uma posição de receptora da assistência social das senhoras
de classes média e alta.
1.2 “Dizem que a vida de prostituta é vida fácil. Fácil coisa nenhuma”: a prostituição como
doença social
Os limites que separam a “mulher de família” e a “mulher da vida” são tênues e fluidos.
A figura da prostituta está presente em diversos locais e contextos históricos como uma mulher
fora dos limites da honra. Ela é um símbolo marcador do que uma mulher honesta não deve ser.
Margareth Rago explica que, em São Paulo, no início da República, a sociedade burguesa
polarizou as figuras da “mulher honesta” e da “meretriz” para se defender da ameaça
representada por esta última, como “mulher imaginariamente livre, descontrolada e
irracional”.84 E que “por mais independente que fosse a ‘mulher honesta’, sua liberdade estaria
sempre limitada no plano simbólico pela presença da meretriz”.85
Dessa forma, a figura da prostituta é um parâmetro de comportamento para a mulher
honesta, pois o comportamento daquela serve de critério para definir quais atitudes são desta.
Já no livro Do cabaré ao lar, a autora explica que é por causa do combate à sífilis e às doenças
venéreas em geral e para defender a saúde da população “que se estuda e medicaliza a
sexualidade da mulher, que se aborda o problema da prostituição e que se instituem os padrões
de comportamento da mulher honesta e casta e da vagabunda”.86
Janaína Contreiras, na sua dissertação de mestrado, aborda as trajetórias marcadas pela
violência sexual sofrida por presas políticas dos regimes ditatoriais de Brasil e Argentina, mas
também de outras ditaduras como as do Paraguai, Chile e Uruguai. Ela destaca que o corpo da
mulher se torna um campo de batalha em contextos de guerra. Ela pondera que uma das formas
de violentar sexualmente essas mulheres no Brasil dos anos da Ditadura Militar foi chamá-las
de prostitutas, vacas, putas subversivas e putas comunistas. Já nos demais países elas eram
violentadas com adjetivos pejorativos como perras, putas, maracas, dentre outros.
84 RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-
1930). 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 44.
85 Ibidem, p. 44-45.
86 RAGO, Luiza Margareth. Do Cabaré ao Lar: A utopia da cidade disciplinar – Brasil 1980-1930. Rio de Janeiro,
Paz e Terra, 1985, p. 87.
43
Segundo Contreiras, para uma parcela da sociedade essas mulheres enquanto militantes
políticas ou armadas estavam transgredindo o seu papel natural de mães e esposas, e ainda eram
acusadas de buscar encontros sexuais no meio político. Os militares buscavam formas de
humilhar e enfraquecer essas mulheres, atingindo a sua moral por meio de xingamentos e tortura
psicológica, além dos abusos físicos.87 Ela também afirma que muitas delas eram submetidas à
prostituição forçada por militares das ditaduras sul-americanas. Nesse caso, ela entende a
prostituição não como um serviço sexual oferecido por mulheres trabalhadoras, mas sim como
uma forma de violência sexual nas ditaduras da América do Sul.88 Para a autora, desmoralizar
as presas políticas foi um artifício de convencer a opinião pública para o perigo dessas “inimigas
internas”. E atribuir o adjetivo de putas e prostitutas a elas significava impingir uma “‘mancha’
sobre o nome da família perante a sociedade e afastava-se a constituição de possíveis redes de
apoio e de simpatia”.89 Logo, era preciso identificar essas mulheres como prostitutas para que
a sociedade as visse como um perigo para a nação e, principalmente, para a família.
Nos jornais amapaenses não eram comuns textos sobre prostituição. Selecionamos
alguns artigos que tratam diretamente do tema ou sobre o comportamento feminino. Apesar de
se tratar de um jornal laico e outro religioso, os textos têm semelhanças entre si, pois tratam a
prostituição como uma doença social causada pela falta de moral e boa educação das famílias.
Em edição de 1971, A Voz Católica transcreveu uma entrevista sobre prostituição da Revista
Salette90 de São Paulo, feita pelo seu redator, o Padre Anacleto Ortigara. Foram entrevistadas
200 prostitutas da capital paulista:
As prostitutas são, em geral, tristes vítimas duma sociedade que cultua o sexo
e deste se serve como motivação comercial, verdadeira fonte de recursos e
divisas nos grandes centros de convergência internacional das metrópoles de
antanho e de hoje. A vigilância e a violência não bastam para se extinguir o
lenocínio, o tráfico de escravas brancas, apesar de todo esforço moralizador e
coercitivos das autoridades públicas. Caftens e proxenetas desenvolvem às
ocultas seu tráfico escuso, dentro de verdadeira rede de aliciamento de
mulheres que não são propriamente pessoas, mas meros objetos que
constituem negócio lucrativo nas mãos dos exploradores da felicidade alheia.
Alta ou baixa prostituição, pública ou secreta, a dos palacetes, das choças e
prostíbulos baratos – tôda ela representa, hoje, a continuidade de um mal que
87 CONTREIRAS, Janaína Athaydes. Corpo de mulher, um campo de batalha: terrorismo de estado e violência
sexual nas ditaduras brasileira e argentina de segurança nacional. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-
Graduação em História), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2018, p. 145.
88 Ibidem, p. 133.
89 Ibidem, p. 151.
90 A Revista Salette é um informativo do Santuário Salette de São Paulo, tem cerca de 80 anos de circulação com
a missão de evangelização. Fonte: www.nsrasalette.org.br/informativo.
44
Para a revista, a prostituta nada mais era do que uma vítima da sociedade que vê no sexo
uma oportunidade para obter lucro à custa do sofrimento de mulheres. Não era suficiente a
vigilância e nem a violência da polícia para extinguir esse comércio, porque os cafetões e
proxenetas procuravam meios de continuar seu comércio de exploração sexual. Depois, conclui
que não há maneira de acabar com a prostituição, mas sim de amenizar esse mal. Isso seria
possível se homens e mulheres soubessem o verdadeiro valor do sexo, se as mulheres fossem
respeitadas e que fosse entendida a função feminina junto aos homens, o que passaria pela
formação espiritual. Aqui, o entrevistador afirma que a maioria dos homens não possuía essa
“mentalidade espiritual”, por isso não conseguia conter seus impulsos naturais e tratava a
mulher como escrava na prostituição, e não como companheira.
Em seguida, o Padre Ortigara escreveu sobre os motivos que levaram essas mulheres ao
mundo da prostituição. Mas, ele não responsabilizava nenhuma delas por serem prostitutas ou
perdidas. Os principais motivos eram: família desestruturada, falta de educação sexual, ausência
de proteção legal às trabalhadoras domésticas que eram vítimas de seus patrões e dos filhos
deles e falta de capacidade de constituir um lar. Além desses aspectos, “grande parte delas se
diz vítima dos namorados e noivos que tudo lhes prometeram para levá-las ao pecado, mas se
esquivaram entregues à má sorte depois”.92 Assim, para o entrevistador, as prostitutas eram
vítimas de uma sociedade que não as protegia. A educação sexual reclamada era certamente
uma educação religiosa e não laica. Por fim, chegamos à sedução dessas mulheres pelos seus
namorados, que após o desvirginamento delas, não reparavam o mal pelo casamento. Ortigara
afirma que muitas delas já haviam tentado deixar de praticar a profissão, mas se tinham se
deparado com vários obstáculos, como a perseguição da polícia, falta de emprego, expulsão dos
lugares. Cerca de 180 das 200 entrevistadas falaram que estavam arrependidas e não queriam
mais continuar na vida de prostituta.
Dessa forma, os conflitos familiares, os pais despreparados e as mães que não sabiam
orientar as filhas eram os causadores da prostituição. Logo, a culpa não era das prostitutas e
nem da prostituição, pois elas eram vítimas de toda essa situação que produzia a exploração de
mulheres e zonas de meretrício. Para Anacleto Ortigara, as famílias desorganizadas de cidades
do interior faziam parte de um ciclo vicioso de uma sociedade egoísta e despreparada, que
produziria ainda mais famílias desorganizadas se continuasse “resguardando uma falsa moral”.
Por fim, ele afirma que a solução cristã para o problema da prostituição era a formação e a
educação que a família poderia dar aos seus filhos e filhas:
93 Ibidem.
94 Ibidem.
95 Ibidem.
46
prestados por essas profissionais do sexo?”.96 Para ele, as prostitutas no Amapá contribuíram
com a manutenção da virgindade das moças honradas. Assim, percebemos que no TFA era
corrente a ideia criticada por Ortigara de que a prostituição era necessária para “equilibrar” os
desejos libidinosos dos rapazes e para manter intacta a moral social e familiar. Porém, ele
escreve que a sociedade é hipócrita, porque tenta esconder suas atitudes sob uma cortina de
moralidade, enquanto as prostitutas não tentam esconder nada, razão pela qual são
marginalizadas e discriminadas.97
De acordo com Mirela Morgante, na década de 1960, havia diversos bordéis na região
metropolitana de Vitória, nos quais os homens poderiam extravasar seus instintos sexuais para
preservar a honra e a moral burguesa que determinava que as mulheres deveriam casar virgens.
Mas a zona de meretrício da capital do Espírito Santo também servia “para extravasar suas
‘tensões’ [dos homens] adquiridas no trabalho cotidiano”.98 Logo, era socialmente aceito que
os homens frequentassem bordéis antes e durante o casamento. Além do mais, os “homens
saciavam seus desejos sexuais não tradicionais com as mulheres da indústria sexual,
resguardando a virgindade das namoradas e das noivas e mantendo o conservadorismo na
relação sexual com a esposa”.99 Também era difundida a ideia de que o apetite sexual masculino
era maior do que o apetite sexual feminino e de que as esposas deveriam aceitar essa “diversão”
dos maridos100, porque era natural que agissem desse modo. Era comum que os pais levassem
seus filhos para iniciar a vida sexual com as prostitutas dos bordéis de Vitória. Desse modo, os
rapazes já eram ensinados desde a adolescência a diferenciar a prostituta, para o sexo, da mulher
honesta, para casar.
Segundo Cristiana Schettini, no Rio de Janeiro, as autoridades judiciais entendiam “que
a prostituição deveria ser controlada, mas não reprimida”.101 A prostituição clandestina deveria
ser combatida pelo poder público para proteger mulheres “ainda não totalmente desonestas”.102
Já a prostituição pública só sofreria alguma intervenção para proteger os clientes, para que as
suas famílias e moças honestas não fossem prejudicadas. Desse modo, o controle da prostituição
E conforme Morgante:
Com seus inúmeros parceiros sexuais e comportamento transgressor, as
meretrizes eram vistas como o avesso da mulher honrada, maternal e fiel ao
matrimônio, servindo de parâmetro para a definição da normalidade sexual da
família nuclear legítima. Contudo, apesar de serem consideradas como
anomalias, uma verdadeira doença social, as prostitutas cumpriam uma função
dentro do sistema binário de relação sexual, possibilitando que os homens
exercessem sua performance masculina tendo uma diversidade de parceiras
sexuais e que as mulheres “feitas para casar” preservassem sua virgindade e o
comportamento sexual tradicional.104
mulher pura.105 A prostituição era aceita até determinado ponto em num local visível. No mais,
era necessário, segundo o discurso hegemônico, que houvesse um deslocamento das zonas de
meretrício para locais mais afastados. O lugar do sexo e do prazer deveria estar longe do lugar
da família higienizada.106
Em edição de maio de 1974, o Novo Amapá divulgou uma palestra nomeada como
“Prostituição – Um flagelo social”, realizada pela aluna do curso de polícia feminina, Maria
Delci dos Santos:
[...]
A palestra que Maria Delci dos Santos vai proferir, visa conscientizar as
jovens das causas e consequências desastrosas da prostituição, procurando
dar-lhes uma visão real das frequentes tragédias oriundas da denominada
chaga social.
de ser prostituta, dentre elas a exclusão social, perseguição policial e as intenções escusas de
homens que procuram seus serviços apenas para saciar desejos carnais, sem amor, o que não
estava em acordo com a filosofia cristã. Por isso, a palestrante não concordava com a afirmativa
de que a prostituta levava uma “vida fácil”, pelo contrário. Ela atribuía a entrada de mulheres
na prostituição à “fraqueza moral”. Então essa palestra serviria para fortalecer os valores morais
das mulheres católicas que estavam recebendo essa formação. Inclusive, no final de sua fala, a
estudante disse que seus conhecimentos sobre o tema haviam sido adquiridos num curso de
polícia feminina, o que nos leva a pensar que a prostituição e a presença dessas mulheres nos
locais públicos era uma preocupação da polícia no Amapá.
A coluna “Comentando”, de Cordeiro Gomes, tratava de assuntos aleatórios. O
articulista escolhia alguns casos para fazer comentários, por vezes satíricos, sobre eles. Em um
desses comentários, comentou sobre uma comerciante:
Como Cordeiro Gomes usava do humor para apresentar alguns episódios da vida local,
ao se referir ao comércio da dita senhora como “baiúca”, entendemos que ele buscou meios de
não identificar diretamente uma casa de prostituição. Por outro lado, o estabelecimento poderia
ser um mercado ou uma loja e ele pode apenas ter criticado um comportamento desagradável
de uma vizinha para com os demais moradores de sua rua.
Em duas edições de 1974, o periódico destacou o mau comportamento de homens jovens
em locais públicos. Em edição de janeiro abordou os palavrões proferidos pela cidade, sem a
devida preocupação com a presença de pessoas idosas, crianças e mulheres que não estavam
acostumados a ouvir certos termos:
Somos dos que entendem ainda ser a mulher, alguma coisa de respeitável, de
delicado e de poético. Não existissem outras razões, somente a de ser mãe ou
da possibilidade de vir a ser no futuro, já justifica um tratamento especial, um
respeito maior, uma admiração acentuada.
Como vimos, o jornal também critica mulheres que colaboram com “conversas
indecorosas” e que o fazem por falta de formação, de ambiente e respeito por si próprias,
diferentemente de outras melhores “formadas” e que se sentem desconfortáveis com tais
conversas. Já em edição de maio, o jornal publicou um artigo sobre a bagunça nos cinemas de
Macapá, destacando como os jovens da capital se comportavam de forma inadequada
incomodando as outras pessoas presentes:
O que se ouve nas salas de espetáculos de Macapá talvez não seja ouvido em
prostíbulos da mais baixa categoria, fazendo com que os homens de bem se
sintam mal e tornando impossível a presença do elemento feminino, que por
ser mais delicado não pode se sujeitar a determinados vexames.113
Era esperado que houvesse esse tipo de comportamento nos prostíbulos, considerado
um local de “baixa categoria”. Nesse artigo, o jornal demarca o que é um ambiente adequado
para as famílias e o que não é, já que as senhoras e senhoritas, não as prostitutas, eram seres
delicados e que não podiam presenciar cenas de mau comportamento juvenil praticadas no
cinema.
Sobre o comportamento feminino, A Voz Católica na “Coluna da mulher” critica as
mulheres que expõem partes do corpo para chamar a atenção dos homens e “vendem a sua
dignidade e o seu pudor”, rebaixando, assim, “a sua dignidade e tornando-se seres inferiores a
respeito dos homens”.114 Era esperado que essa mulher não mostrasse certas partes do corpo,
pois, dessa maneira, teria muito mais respeito e admiração dos homens. O jornal afirma que
esse tipo de comportamento era incomum mais em lugares subdesenvolvidos:
115 Ibidem.
116 AFCM. Processo nº 2.234 de 1970.
117 AFCM, Inquérito S/N de 12 de dezembro de 1968, p. 13.
118 Explicaremos a diferença das categorias de trabalhadoras domésticas no próximo item.
52
119 Mãe e filha têm a mesma sigla. Não foi possível diferenciar porque não tivemos acesso ao nome delas.
120 AFCM, Inquérito S/N de 06 de abril de 1981, p. 2.
121 AFCM, Inquérito S/N de 06 de abril de 1981, p. 2.
122 AFCM, Inquérito S/N de 06 de abril de 1981, p. 3.
123 AFCM, Processo crime nº 4.111 de 13 de julho de 1977, p. 2.
53
estava nos primeiros meses de gestação. A testemunha B.O.M., brasileira, amapaense, solteira,
estudante, 17 anos de idade, residente em Serra do Navio, sabendo ler e escrever, disse que o
caso começou quando a acusada ouviu M.N.O. do Nascimento falar que ela gostava de arranjar
intrigas com os vizinhos e “começou a insultá-la, chamando diversos nomes pornográficos,
inclusive dizendo que a filha de M.N.O. do Nascimento não passava de ‘uma putinha’, ‘uma
casseteira’124”.
R.L.O.B., brasileira, amapaense, solteira, 18 anos de idade, doméstica, residente na
avenida Mendonça Júnior, Central, depôs que era amasiada havia dois anos e três meses com
M.J.P. e no dia 17 de agosto de 1980, quando voltava com seu amásio para sua residência,
ambos foram abordados pelo acusado dizendo que M.J.P. era corno. Após uma discussão os
dois entraram em luta corporal e, quando ela interviu, o acusado “disse que [a] representante
era puta, que a casa dela só vivia cheia de macho, quando seu amásio saia pra rua e que a mesma
copulava com um e outro”125
C.M.S. dos P., aluna do Ginásio de Macapá, brasileira, amapaense, solteira, 19 anos,
sabendo ler e escrever, discutiu com a namorada do acusado, na sala de aula e ele desferiu um
chute nela. Na discussão, C. disse que foi chamada de “casseteira” pelo acusado126. O acusado,
P.S.S.T., aluno do Ginásio de Macapá, cor branca, amapaense, sabendo ler e escrever, por sua
vez, alegou que a vítima havia chamado a namorada dele de “puta” e quando ele foi repreendê-
la, ela o chamou de “fresco” e por isso ele a agrediu, pois se descontrolou por ter tido a sua
dignidade ofendida127.
No dia 02 de junho de 1976, R.C. Pinto, cor parda, doméstica, 28 anos, feriu L.G.
Pereira, brasileira, amapaense, solteira, 14 anos de idade, sabendo ler e escrever, com um cabo
de vassoura. Elas eram vizinhas e se ofenderam mutuamente. A acusada alegou que M.N.G.
Pereira, brasileira, paraense, casada, 40 anos de idade, sabendo ler e escrever, e suas filhas a
viviam hostilizando. No dia do desentendimento, M.N. ofendeu R.C. Pinto com palavras de
baixo calão e insinuou que ela estava tendo um caso com seu marido. Já a vítima L.G. Pereira,
filha de M.N.G Pereira, disse que, inicialmente, a discussão era entre sua mãe e a acusada, mas
R.C. Pinto começou a chamá-la de prostituta e as duas travaram luta corporal na qual ela saiu
lesionada em sua orelha esquerda128. M.N.G. Pereira, paraense, casada, 40 anos de idade,
sabendo ler e escrever, disse que estava separada havia um ano de seu marido e que desde então
era destratada por R.C. Pinto “que a taxa[va] de vagabunda, mulher sem respeito, e ainda
propala[va] que anda[va] mantendo relações amorosas com o amante de R.; que, passou
também a ofender a reputação de suas filhas”129. Nota-se que a rixa entre ela se dava
principalmente pelos relacionamentos amorosos que ambas tinham. M.N. acusava R. de ter um
caso com seu ex marido, por sua vez, R. acusava M.N. de se relacionar com seu amante e ainda
a insultou com termos como “vagabunda”. Independentemente dos motivos que levaram essas
vizinhas a brigar e se ofender mutuamente, observamos que “ter um amante” ou “estar
separada” rendia comentários e julgamentos sobre a vida particular dessas mulheres.
Na madrugada do dia 15 para o dia 16 de setembro de 1974 em uma festa de aniversário
no bairro do Pacoval. M.B.F., cor morena escura, solteira, doméstica, que trabalhava em casa
de família, amapaense, sabendo ler e escrever, 34 anos, agrediu B.C.S. com uma gilete. B.C.S.,
amapaense, solteiro, 25 anos de idade, carpinteiro, sabendo ler e escrever, declarou que foi a
uma festa de aniversário próximo a sua casa e dançou com uma mulher desconhecida,
Mas por motivos que desconhece a mesma achou que não deveria mais dançar
com o declarante, indo postar-se no pátio da casa; que o declarante não
satisfeito com a atitude da dita mulher dissera que já que ela não queria dançar
que fosse embora; que ato contínuo a referida mulher lhe segurou pela camisa,
tendo o declarante de boas maneiras pedido para ela lhe largar, mas devido à
insistência da mulher em segurá-lo, aplicou-lhe um empurrão e como ela
estivesse bem segura em sua camisa, resultou irem ao chão; que logo chegou
alguns colegas do declarante que lhe tiraram de sobre a referida mulher e nessa
ocasião um deles lhe advertiu que estava cortado no braço direito e que foi
logo constatado pelo declarante que a seguir o declarante constatou também
estar com um outro ferimento um pouco abaixo da omoplata, lado esquerdo
que o declarante não pode precisar qual o tipo da arma utilizada pela dita
mulher na prática do delito; que nos dois ferimentos sofridos o declarante
sofreu dezoito pontos.130
A acusada, por sua vez, declarou que foi à festa a pedido de uma de suas filhas e foi
tirada para dançar por B., relutou de início
Mas após B. lhe puxar bruscamente pelo braço e dizer que pra ‘puta’ não tinha
vez e para evitar maiores problemas saiu para com ele dançar muito embora
contra sua vontade; que durante aquela parte B. começou a se exceder,
chegando ao ponto de no meio da sala en franco desrespeito aos que alí se
encontrava, apalpar as nádegas da declarante, com o que não ficou satisfeita;
que em decorrência desse fato a declarante saiu da sala ficando no pátio da
casa a espera da filha, quando de sí se acercou B. e à declarante dissera que se
não queria dançar que fosse embora, sem responder qualquer palavra foi por
ele esbofeteada e chutada pelo dito individuo ocasionando com isso a
declarante ser jogada ao chão; que a declarante quando se levantava foi
novamente pisada por B., desta feita na altura da barriga, sendo outra vez
jogada ao chão, disso se aproveitou B. para ficar sobre a declarante lhe
esmurrando, por diversas partes do corpo; que a declarante ao ser duramente
castigada pelo citado indivíduo tirou do bolso do vestido uma gilete e com
esse instrumento recorda de ter cortado o citado indivíduo por mais de uma
vez, não podendo afirmar se acertou todos os golpes e nem os locais atingidos;
que B. vendo-se ferido deixou a declarante, ali se demorando um pouco para
depois se retirar; que mesmo batida como estava não procurou a Polícia,
preferindo silenciar o fato, pois desde esse dia ficou na casa de sua patroa e
somente ontem, foi que apareceu em sua residência; que a declarante sabia
que a Polícia andava a sua procura, porém, temia se apresentar, o que só o fez
nesta data que a declarante esclarece que nunca teve nada com aquele
individuo; que a declarante esclarece mais que nesta Delegacia não sofreu
nenhuma coação por Parte da autoridade que lhe está inquirindo; que não está
arrependida de haver cortado o citado B.; que a declarante esclarece ainda não
ser dada ao uso de bebidas alcoólicas e por esse motivo estava seu senso
normal. E mais não disse.131
Esse caso nos traz diversas informações que merecem destaque. No Boletim Individual
de M.B.F. consta que ela é de cor branca, embora no seu Auto de Qualificação seja declarada
enquanto morena escura, ou seja, negra. Já no Boletim de Vida Pregressa do Indiciado é
qualificada como parda. Esses desencontros de informações são comuns nos processos
judiciais, mas apesar dessa imprecisão podemos concluir que M.B.F. era uma mulher
racializada, uma mulher negra. Ela tinha como recreações preferidas festas dançantes e o lugar
que mais frequentava era salões de festas. Uma mulher solteira com filhas que tinha festas e
danças como principal lazer e andava com uma gilete no sutiã para se defender de
inconvenientes e de situações de perigo como aconteceu nessa noite. A abordagem de B.C.S já
foi desrespeitosa e para evitar problemas, M.B.F. anulou sua própria vontade em favor das
vontades de um homem que ela não conhecia. Os depoimentos dos envolvidos tem diferenças,
mas o relato de M.B.F. é o que mais condiz com as declarações feitas pelas testemunhas. Assim,
M. estava se defendendo de um espancamento causado porque B. não aceitava ser recusado,
pois para ele, não era concebível que uma puta, como ele a descreveu, lhe negasse uma dança,
a partir do que passou a agir violentamente contra ela. O comportamento misógino e machista
de B. pode ser justificado por ele ver M. como uma prostituta, o que acentua seu ódio, e pelo
fato de desprezar mulheres, independente da profissão ou da forma que ele as enxergava. O
processo prescreveu em 1981.
o meretrício junto com o trabalho de doméstica, eram somente meretrizes ou haviam sido
prostitutas em algum momento e tinham passado a se dedicar somente ao trabalho doméstico.
Além disso, a maior parte das mulheres amapaenses iniciaram a sua vida no mundo do trabalho
com afazeres domésticos ainda na infância, seja na sua própria casa ou como empregadas
domésticas na casa de outrem. Muitas delas passavam a vida inteira como trabalhadoras
domésticas, enquanto outras mudavam de profissão no decorrer dos anos. Sobre essa relação
do serviço doméstico com outras atividades, a historiadora Rachel Soihet pondera:
132 SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana, 1890-1920. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 1989, p. 169.
133 Ibidem.
134 WOLFF, Cristina Scheibe. Mulheres da floresta: uma história: Alto Juruá, Acre (1890-1945). São Paulo:
Hucitec, 1999, p. 79.
135 Ibidem, p. 80.
58
136 MELLO, Soraia Carolina de. A questão do trabalho doméstico: recortes do Brasil e da Argentina. In: PEDRO,
Joana Maria Pedro, WOLFF; Cristina Scheibe; VEIGA, Ana Maria. Resistências, gêneros e feminismos contra as
ditaduras no Cone Sul. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2011, p. 71.
137 PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007, p. 115.
138 “Bidi = Tabaco seco enrolado numa folha de tendu, depois fumado” (ver: JOSHI, Chitra. Além da polêmica
do provedor: mulheres, trabalho e história do trabalho. Mundos do Trabalho, Florianópolis, v. 1, n. 2, p. 147-170,
nov. 2009, p. 156).
59
a sociedade indiana o trabalho desenvolvido pelas famílias nas aldeias não é reconhecido e nem
considerado, ao passo que os ganhos do trabalho dos homens são festejados.139
Ângela Davis pondera que nas sociedades capitalistas, as donas de casa são eternas
servas de seus maridos e “como as tarefas domésticas não geram lucro, o trabalho doméstico
foi naturalmente definido como uma forma inferior de trabalho, em comparação com a atividade
assalariada capitalista”.140 Então, a dona de casa não tem prestígio nenhum com o seu trabalho
porque não é produtivo. Davis considera que as mulheres passaram a ser consideradas como
“guardiãs do lar”, mas isso entrava em contradição com as trabalhadoras assalariadas brancas
dos Estados Unidos, que só eram donas de casa em segundo plano. Além das trabalhadoras
negras escravizadas que trabalhavam na produção escravagista do Sul estadunidense. Desse
modo, a “dona de casa” é a mulher burguesa ou de classe média. Porém, apesar da dona de casa
ser um produto ideológico do capitalismo do século XIX e ter surgido no meio da burguesia e
das classes médias, se tornou um modelo de feminilidade generalizante141, como toda ideia da
classe dominante.
Eric Hobsbawm afirma que como o trabalho masculino não era suficiente para garantir
a sobrevivência familiar da classe trabalhadora, o trabalho das mulheres e das crianças era
primordial para o sustento das famílias. Na Inglaterra do século XIX, o trabalho feminino
existia, mas era invisibilizado pelos recenseamentos, principalmente o trabalho de mulheres
casadas, “visto que grande parte do trabalho pago feito por elas não seria declarado como tal ou
não seria diferenciado das tarefas domésticas com as quais não raro coincidia”. 142 Assim, a
economia excluía as mulheres casadas porque somente eram considerados os ganhos em
dinheiro e o trabalho não-remunerado produzido no interior das casas não constava como uma
ocupação. Para Hobsbawm, houve uma masculinização do trabalho143, isto é, só as atividades
executadas pelos homens eram consideradas trabalho. Ao passo que na era do capital as
mulheres que trabalhavam e tinham seus ganhos financeiros fora do ambiente doméstico, eram
estigmatizadas.
Então o serviço doméstico se torna uma categoria que engloba vários tipos de atividades
desenvolvidas por mulheres e só é possível identificar qual a sua profissão de fato se elas falam
em algum momento ou se algum depoente nos dá essa informação. O trabalho doméstico pode
ou não ser remunerado, dependendo de sua configuração: ser doméstica significa prestar
serviços a alguém e/ou se dedicar aos cuidados de sua própria casa. Porém, essa trabalhadora
doméstica pode ser dividida em categorias marcadas pela classe. A dona de casa das classes
mais favorecidas não vai praticar as mesmas atividades da dona de casa da classe trabalhadora.
E a empregada doméstica é a única que vai exercer esse ofício de forma assalariada.
Nos processos judiciais é frequente a presença de trabalhadoras domésticas. Afinal de
contas, a maioria dessas mulheres exercia de alguma forma atividades em ambiente doméstico,
fossem remuneradas ou não.
A meretriz Santinha, brasileira, amapaense, solteira, com 21 anos de idade, sabendo
assinar o nome, residente na vila de Porto Grande, começou a trabalhar em serviços domésticos
aos 10 anos de idade, profissão que manteve até os 17 anos quando “amigou-se”144 e até o
período do inquérito era meretriz. O boletim de informações sobre a vida pregressa de Santinha
não deixa claro se quando ela passou a viver junto com este homem de nome desconhecido
também iniciou o trabalho de meretriz ou se começou a trabalhar no meretrício após a
separação.145 Já Luziléia, brasileira, paraense, com 38 anos de idade, analfabeta, de prenda
doméstica, residente na avenida Almirante Barroso. Era dona de uma casa alugada para
meretrizes. O depoimento dela e das outras envolvidas no processo não esclarece se ela era uma
cafetina ou se apenas alugava os cômodos para as prostitutas, mas ela se declarava como
“prenda doméstica”, ou seja, a sua profissão estava ligada ao serviço doméstico (ela pode se
referir ao trabalho de manutenção de sua própria casa) e também tirava o seu sustento dos
aluguéis dos quartos da casa.146
Em dois processos criminais de sedução, figuram trabalhadoras domésticas. No
processo criminal n° 1.826 de 1968: M.N.B. Moreira, de 30 anos, R.S. Saraiva, de 38 anos e
M.D.S. de Souza, de 22 anos, se declaram como domésticas. No entanto, não é produzida uma
diferença quando elas declaravam que a sua profissão era “doméstica”, e não é possível
discernir quais eram donas de casa ou empregadas domésticas remuneradas. Já no processo nº
2.234 de 1970, é possível identificar uma empregada doméstica e uma lavadeira: F.T. Lima, de
16 anos, era empregada doméstica e saía do trabalho à noite e o fato de andar sozinha abriu
precedente para que a sua honestidade fosse questionada; R.C. Fernandes, de 30 anos de idade,
era lavadeira e alternava sua residência entre a cidade de Macapá e o rio Macacoari.
144 Relacionamento informal, corresponde a uma união estável que não foi formalizada em cartório.
145 AFCM. Processo nº 2.117 de 08 de setembro de 1969, p. 15.
146 AFCM. Processo nº 2.465 de 21 de outubro de 1971, s/p.
61
147 Sobre o campesinato amapaense na Ditadura empresarial-militar, ver: PEREIRA, Higor Railan de Jesus. O
chão do conflito: estado ditatorial, grandes projetos e campesinato na Amazônia amapaense (1978-1985).
Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em História), Universidade Federal do Amapá, 2022.
148 LOBATO, Sidney. A cidade dos trabalhadores: insegurança estrutural e táticas de sobrevivência em Macapá
(1944-1964). Belém: Paka-Tatu, 2019, p. 191.
149 CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.558, 1970, p. 5.
62
Como tal, ela tem obrigação de usar inteligência e capacidade. A nossa época
exige participação ativa de todas as pessoas capazes, sem distinção de sexo.
Progredir, realizar, são deveres de todos.
Jucá se refere não somente ao trabalho, mas também à educação feminina. Ao mesmo
tempo que celebra o desaparecimento gradual dos preconceitos contra a realização profissional
das mulheres, destaca que a educação pode auxiliar e melhorar a criação dos filhos. Com isso,
ela defende a dupla jornada de trabalho feminina. Afinal, trabalhar fora de casa não impediria
que as mulheres se dedicassem à família e aos filhos. Para a colunista, a mulher frágil e
submissa, restrita ao ambiente doméstico era parte dos velhos conceitos de mulher, pois o novo
conceito refere-se àquela que se realiza intelectual e profissionalmente, mas concilia seu
trabalho e sua educação com os cuidados do lar e da família.
É curioso observar uma certa mudança – ou um desacordo entre os articulistas – na
opinião do jornal católico sobre a mulher no mercado de trabalho na década de 1960. Sidney
Lobato explica que no início da década, o articulista José Benevides escreveu que a mulher
trabalhando fora do lar estava se desviando “dos desígnios divinos”.151 Para Benevides, a
mulher deveria se dedicar somente ao espaço privado, sendo mãe e esposa ou fugiria da “sua
verdadeira missão”.152 Como vimos, Emília Jucá não concorda com seu colega articulista. Em
contraponto ao que Benevides escreve sobre a verdadeira missão feminina, Jucá afirma que
essa mulher frágil e submissa que se dedica somente aos filhos e marido estava sendo superada
ou dando lugar a outra tão inteligente e capaz quanto o homem. O texto de Emília Jucá também
pode ser um demonstrativo de uma aceitabilidade maior das mulheres no mundo do trabalho e
de como a própria Igreja Católica estava lidando com essa mudança.
Se faz necessário esclarecer que essas mulheres que estão entrando no mundo do
trabalho não são pobres e negras, pois estas já estavam inseridas nesse mundo havia muito
tempo. Como Ângela Davis (2016, p. 232) aponta, as virtudes de “fraqueza feminina e
submissão da esposa” foram impostas às mulheres brancas de classes mais favorecidas, porque
as mulheres negras não se dedicaram somente ao trabalho doméstico, apesar de também
executarem essa tarefa, levando uma dupla jornada de trabalho, porque precisavam
sobreviver.153
Da mesma maneira, as mulheres pobres do Amapá estavam longe de serem frágeis e
submissas. Se fosse preciso, as mulheres casadas assumiam a gestão da casa e do núcleo familiar
quando os maridos estavam impossibilitados e aquelas que eram solteiras, mas precisavam
sustentar e educar seus filhos, ocupavam-se com as mais diversas atividades domésticas, de
extrativismo e comércio, por exemplo154. Joshi pondera que quando as mulheres exercem um
trabalho remunerado, elas atingem um maior grau de liberdade pessoal e de poder de
contestação na economia familiar, porque assim elas poderiam proibir os homens de gastar o
dinheiro do trabalho delas com bebida e até questionar a autoridade masculina deles em
determinadas situações.155
A Icomi-Notícias reservava uma página às mulheres moradoras das vilas de Serra do
Navio e Amazonas. A “Femina” era uma coluna da revista que tratava dos assuntos “femininos”
ou domésticos e que foi veiculada durante o primeiro ano de circulação do periódico. A coluna
dava dicas de culinária, limpeza, lavagem de roupas, costura, truques de beleza e artesanato.
Nela conseguimos observar o que a revista considerava assunto de mulher, já que eram as donas
de casa que deveriam zelar pelo lar da família. As mulheres que apareciam dando dicas de
culinária e receitas como maniçoba, pato no tucupi e biscoitos de castanha do Pará, eram
159 DELEGADO pesquisa índice de criminalidade. Novo Amapá, nº 1.740, 1974, s/p.
160 CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940).
Campinas, SP: Editora da Unicamp, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000, p. 250.
161 BESSA, Karla Adriana Martins. Jogos de sedução: práticas amorosas e práticas jurídicas, Uberlândia, 1950 a
1970. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em História). Unicamp, 1994, p. 121.
162 CAULFIELD, Sueann. Op. Cit., 253.
163 ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor do Rio de Janeiro da
Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
67
Cristina Cancela disserta que algumas meninas iniciavam sua vida sexual em festas que
muitas vezes acabavam nas chefaturas de polícia, em Belém do final do século XIX e início do
XX. Mas os encontros amorosos não estavam restritos ao tempo da festa, os encontros
cotidianos nas casas da menor ou acusado, eram mais recorrentes e eram cenário comum de
defloramentos:
164 CANCELA, Cristina Donza. Adoráveis e dissimuladas: as relações amorosas das mulheres das camadas
populares na Belém do final do século XIX e início do XX. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social).
Unicamp, 1997, p. 69.
165 Ibidem, p. 80.
166 AFCM. Processo nº 1826 de 1968, s/p.
167 Ibidem, p. 4.
168 Ibidem.
68
tinha dito “que só se casaria para livrar-se da Justiça, e que mesmo assim a declarante não se
nega a fazer o casamento entre ambos para que possa dar satisfação à sociedade”.169
Para Sueann Caulfield, a busca pela Justiça em caso de perda de virgindade era um
recurso comum tanto pelas jovens desvirginadas quanto pelos seus pais, tutores ou patrões, onde
a finalidade principal era o casamento. Os pais e a sociedade em geral acreditavam que
recorrendo à Justiça poderiam tornar os defloradores responsáveis pela honra de quem
desvirginaram.170 Percebemos no depoimento da mãe de M.L.M Gama, que não importava o
meio empregado para que houvesse o casamento, o importante era que a sua filha não ficasse
desonrada perante a sociedade e que o concubinato ou “passar a viver junto” não repararia a
honra da menor e da família.
Em seu depoimento, M.L.M. Gama afirma que desde o namoro com J.F. Nunes “sempre
tencionava casar-se consigo em face de nutrir grande paixão” por ele. 171 Ela conta que o
desvirginamento se deu em data que não sabe precisar, quando saiu para passear com o mesmo
sem o conhecimento de seus pais:
este a seduziu a manter relação sexual, pois assim apressaria logo o casamento.
Que de início a declarante não atendeu a pretensão de seu sedutor, contudo
por ser uma moça inexperiente e acreditando nas juras de amor que lhe fazia
seu galanteador, entregou-se quando foi deitada ao solo, às proximidades de
sua casa, por volta das vinte e uma horas e trinta minutos, em local que se
encontrava às escuras, [...] que, após o ato chorou em face de sua situação de
moça, sendo acalentada pelo seu sedutor, o qual dissera-lhe que assumiria
inteira responsabilidade pelo delito praticado e que repararia o mal pelo
casamento. [...] Que, a depoente deseja unir-se pelos laços sagrados do
matrimônio com Jacinto por dedicar-lhe grande afeição, acreditando que
possam constituir um lar feliz e venturoso. Que, nunca conheceu outro homem
sexualmente e sempre foi fiel ao seu ex-namorado e autor de seu
desvirginamento, pois acreditava que o mesmo cumprisse com as promessas
anteriormente feita de desposá-la.172
169 Ibidem.
170 CAULFIELD, Sueann. Op. Cit.
171 AFCM. Processo nº 1826 de 1968, p. 6.
172 Ibidem.
69
próprio Estado. Segundo, identificamos a presença do amor romântico, por ela “dedicar-lhe
grande afeição” acredita que teriam um “lar feliz e venturoso”, mais uma vez reproduzindo os
discursos dominantes que eram esperados. Claro, que o depoimento da vítima não foi transcrito
da forma como ela falou, passando primeiro pela impressão do escrivão, que escrevia com a
norma culta e com termos técnicos. Com isso, perdemos os “textuais”, mas essa é uma
característica das fontes judiciais. E a menor também poderia estar utilizando esses discursos a
seu favor, para que a Justiça entendesse que o seu comportamento e a sua moral eram
merecedores de “reparos” por meio da lei173.
O exame de conjunção carnal foi realizado e atestou o desvirginamento. Foi anexado ao
processo o registro civil da vítima para atestar que era menor de idade, além de um atestado de
pobreza da mãe da vítima, no qual o delegado registrou que M.N.B. Moreira era pobre no
sentido da lei.
A testemunha R.S. Saraiva, brasileira, paraense, casada, doméstica, 38 anos, residente
na principal rua do Buritizal s/n, sabendo ler e escrever, era vizinha da família e alegou que a
menor tinha comportamento exemplar, sendo uma filha obediente, saindo apenas acompanhada
da família ou de pessoas de confiança e que “lamenta o fato por considerar ser a moça em tela
uma jovem que mereceria ter encontrado melhor sorte, e, não a que encontrou por ser Jacinto
um desocupado, não arcando nem a responsabilidade de sua própria subsistência”.174 A segunda
testemunha, também vizinha da família, M.D.S. de Souza, brasileira, paraense, casada,
doméstica, 22 anos de idade, sabendo ler e escrever, residente à rua principal do bairro do
Buritizal, disse que “conhece a referida menor desde a infância, e com a idade que possui hoje,
sempre a admirou por sua qualidade de moça comportada e de bons costumes sendo dedicada
filha de família”.175 A concepção de que o homem deve ser o provedor do lar e que uma moça
de comportamento exemplar mereceria encontrar um marido que pudesse arcar com o seu
sustento é nítida no depoimento de R.S. Saraiva.
O acusado assumiu a responsabilidade pelo desvirginamento da vítima, mas não
desejava unir-se com ela pelos laços sagrados do matrimônio porque “quando após o delito ter
seguido para Belém do Pará, esta passar a namorar com outros jovens, segundo informações
que obteve quando regressou a esta Capital após uma ausência de seis meses. Que, presume ter
a mesma mantido relação sexual com outras pessoas que a mesma namora”.176 Ele conta uma
173 Ver: BESSA, Karla. “Virgens” em apuros: o casamento não vingou! In: Op. Cit., p. 87-169.
174 AFCM. Processo nº 1826 de 1968, p. 10.
175 Ibidem, p. 11.
176 Ibidem, p. 13.
70
outra versão sobre o encontro que teve com a vítima quando regressou à Macapá. Afirma que,
nessa ocasião, a menor se queixou de maus tratos por parte do pai, porque ele soube do romance
amoroso entre os dois. E, para atender a um pedido dela, ele a levou para uma casa no mesmo
bairro, mas sem manter relações sexuais com a mesma. No dia seguinte, ele entrou em contato
com o genitor dela, que estava em sua busca, e ela voltou para a casa de seus pais. Disse ainda
que “lamenta não amar a mesma, pois quando a conheceu e seduziu, apenas tinha poucos dias
de namoro, sem contudo dedicar-lhe nenhuma afeição, apenas desejoso de satisfazer suas
paixões eróticas, atendendo aos desejos que Maria demonstrava em ser possuída pelo
mesmo”.177 Para J.F. Nunes, o namoro com M.L.M. Gama não tinha fins de matrimônio, e
mesmo assumindo ser o autor do desvirginamento da vítima, ele alega que ao desvirginar a
menor, estava atendendo aos desejos dela. Outro aspecto interessante a ser observado é o fato
do pai de M.L.M. Gama já saber do desvirginamento e de maltratá-la por causa disso. Cancela
argumenta que procurar a Polícia ou a Justiça pode ser o último recurso de pais que antes
poderiam ter tentado dialogar com o acusado ou até mesmo feito ameaças. Porém, quando o
acusado fugia ou negava casar-se com a vítima, eles recorriam à delegacia. Para a autora, por
vezes os pais sabiam que suas filhas não eram mais virgens, mas mesmo assim não deixavam
de percebê-las como honestas, o que era um sinal de que para eles as concepções de namoro,
casamento ou honestidade eram mais elásticas do que nos padrões generalizantes de
honestidade do projeto higiênico e moralizante das elites e presentes nos discursos de
delegados, advogados, promotores ou juízes.178
Em relatório, o delegado Oscar Ferreira Lima afirma que:
177 Ibidem.
178 CANCELA, Cristina. Op. Cit., p. 90-92.
179 AFCM. Processo nº 1826 de 1968, p. 16.
71
Em resposta ao defensor do acusado, ela disse “que depois dos fatos da denúncia, a
declarante ainda manteve relação uma vez com o acusado e posteriormente com outros, sendo
que agora porém, está em casa de seus pais, não estando procedendo mal”.181 Não é sabido o
motivo pelo qual a menor mudou o seu depoimento. A nova narrativa menciona outro local, e
agora não se tratava mais de um passeio de namorados próximo de sua casa e sim de um arraial.
Além disso, dessa vez a depoente acrescenta que o autor de seu desvirginamento usou de
violência para tal ato. Essa mudança de depoimento abriu margem para a defesa de J.F. Nunes
contestar o comportamento da vítima em abril de 1970 por meio de um requerimento. O
defensor, dr. Edimundo de Souza Moura, disse que a vítima contava duas versões para o ato e
que “esta menor tem verdadeiro pendor para o teatro, pois é uma verdadeira artista”.182 O
requerimento ainda destacou que a jovem tinha mantido relações sexuais com outros:
Qual o brasileiro, dentro desta formação que temos, que vai casar com uma
mulher que confessa ter mantido relações com outros? Por que não foi fiel ao
namorado e só depois de manter relações sexuais com outros veio apresentar
queixa à Polícia? Por que escondeu da polícia a verdade ao alegar que tinha
apenas conhecido um homem e que era o réu?183
E ainda disse que como o réu era menor de idade, precisaria de um curador, o que não
houve e ele ficou “a mercê da Polícia, que o fez assinar um depoimento em que declara assumir
inteira responsabilidade pelo desvirginamento da jovem.”.184 Desse modo, o defensor tenta
anular a declaração do réu na qual ele assume que desvirginou a vítima. E em seguida
acrescenta:
Mais uma vez ele questionava o comportamento de M.L.M. Gama para tentar livrar o
réu da pena. Esteves argumenta que a grande questão dos advogados era provar que as vítimas
eram desonestas e imorais, então não tinham os atributos requeridos para serem protegidas e
apoiadas pela Justiça.186 Mas, em maio de 1970, o representante do MP, Promotor Edson Gomes
Correia, afirmou em despacho:
1) “que o réu afim de evitar a aplicação da pena, viajou para Caiene” [...]; 2)
“Que o réu não compareceu para o interrogatório perante o juízo da Comarca;
3) que, nestas condições, hão de ser tomadas como verídicas as declarações
prestadas perante a autoridade policial; 4) as testemunhas afirmam a existência
do namoro entre a vítima e o acusado, bem como ser a menor moça recatada
e de bons princípios morais; 5) que o denunciado assumiu total
responsabilidade pelo ato delituoso.”187
Sendo assim, solicitou que o denunciado fosse condenado às sanções do artigo 217 do
Código Penal. De fato, J.F. Nunes não compareceu a nenhuma audiência porque não havia sido
encontrado. Os oficiais de Justiça, tentando localizar o acusado para as audiências, obtinham
informações de que ele estava em Caiena, na Guiana Francesa, e nas outras tentativas as
informações eram de que achava no município de Amapá ou em Santana. Essa pode ter sido
uma estratégia utilizada pelo acusado para não casar com a vítima e para não cumprir a pena do
crime de sedução, esperando que o caso fosse arquivado.
Cancela também destaca que os namoros às escondidas não eram raros com as meninas
da classe trabalhadora, visto que estas poderiam ter maior intimidade nos seus relacionamentos
do que as moças de elite. Mesmo que os discursos moralizantes fossem generalizantes, as
184 Ibidem.
185 Ibidem, p. 42.
186 ESTEVES, Martha. Op. Cit., p. 39.
187 AFCM. Processo nº 1.826 de 1968, p. 43.
73
meninas pobres e suas famílias tinham uma moral mais elástica.188 Outro exemplo dessa moral
mais elástica da classe trabalhadora era o crime de sedução ocorrido em agosto de 1969, no
qual F.T. Lima, brasileira, paraense, 16 anos, doméstica, sabendo ler e escrever, residente na
Av. Anhanguera, no bairro Buritizal, fora desvirginada por I.T. Gurjão, brasileiro, amapaense,
solteiro, 19 anos, motorista, instrução primária, cor morena, residente na Granja Santa Maria,
bairro Buritizal. Segundo relatório do Delegado Oscar Ferreira Lima, a vítima declarou ter sido
desvirginada pelo acusado em 24 de agosto de 1969. Afirmou que vinha caminhando de seu
emprego para sua residência quando se encontrou com o acusado, pessoa que não conhecia,
mas que lhe falou em namoro e aceitou a proposta. Relatou que continuou caminhando quando
foi puxada pelo braço pelo mesmo, que a levou até uma casa desocupada, tampou a sua boca e
a violentou, jogando-a ao solo. Depois desse dia, ela ainda manteve outras relações sexuais com
ele. Mas, quando ele soube que ela estava grávida, não a procurou mais e nem cumpriu a
promessa de reparar o mal pelo casamento.
Em seu depoimento, o acusado I.T. Gurjão disse que já conhecia a vítima não só por
morar próximo a ela, mas porque já a tinha visto em festas no clube Treze de Setembro:
Embora não simpatizasse com a mesma, mas “para não passar por mole”
(textuais), convidou-a a manterem relações sexuais, após chegarem no
Buritizal e depois da outra moça se ter apartado deixando-os só. Que, o convite
na cópula foi logo aceito e ambos se dirigiram para perto da casa da jovem,
onde no campo e sobre a terra, mantiveram o coito carnal, oportunidade em
que o respondente verificou que, como aliás já tinha ouvido falar, F.T. Lima,
não era mais virgem.190
Ao final de seu depoimento, alegou que “admira-se bastante de estar sendo acusado pela
vítima, como autor de seu desvirginamento, quando a mesma deveria atentar para a seriedade
do assunto, deixando o culpado a vontade para acusar quem não cometeu o delito”.191 Durante
todo o seu depoimento, o acusado questionou a conduta de F.T. Lima e destacou comentários
de cunho sexual que supostamente ouvira de conhecidos sobre ela. Ele fez isso para demarcar
definitivamente que a vítima não deveria buscar reparações por meios judiciais porque não era
virgem, afinal frequentava festas sozinha e tinha uma vida sexual ativa.
A testemunha F.P.M. Souza, brasileiro, amapaense, solteiro, 20 anos de idade,
mecânico, de instrução primária, residente nesta cidade à rua Treze de Setembro, bairro do
Beirol, relatou que, quando ainda fora soldado, havia mantido relações sexuais com F.T. Lima,
em novembro de 1969, por volta de 23 horas. Ele estava participando de uma festa dançante no
bairro Buritizal, na qual ela também estava. Ao final da festa, ao ver que estava sozinha, dirigiu-
se até ela e a convidou para manter relação sexual, “convite que foi aceito sem qualquer
relutância”.192 Adiante, ainda acrescentou que “por diversas vezes teve o ensejo de ver a vítima
andando sozinha alta hora da noite, andando pela rua ou em festas dançantes, inclusive no Treze
de Setembro Esporte Clube local impróprio para moças que se presam”.193 J.C. Nascimento,
brasileiro, paraense, solteiro, 20 anos de idade, militar, residente na rua General Rondon, s/n,
bairro do Trem, relatou que nunca havia mantido relação sexual com a vítima, mas que tivera
oportunidade ao final de uma festa no Treze de Setembro. Relatou que ao saírem da festa, foram
para as matas do bairro do Buritizal, mas que aí não chegara a consumar o ato. Disse também
que a vítima era muito mal falada pelos soldados e que chegou a vê-la próximo ao quartel, à
procura de soldados: “O depoente tinha a mesma como prostituta e justamente por isso ela
depois passou a não mais ser aceita no Treze de Setembro, embora ali seja lugar frequentado
por [rasurado] e mulheres de vida duvidosa”.194
O primeiro disse que havia mantido relação sexual com F.T. Lima e o segundo alegou
que tivera oportunidade, mas não a consumara. F.P.M. Souza destacou os passeios noturnos da
vítima. Inclusive, os dois destacaram a presença dela em festas do clube Treze de Setembro,
sede de uma associação do bairro do Trem que, segundo eles, não era adequado para moças de
família. J.C. Nascimento ainda disse que para ele a menor era uma prostituta. O termo é usado
como adjetivo, foi uma característica atribuída à vítima porque os seus hábitos não eram
compatíveis àqueles esperados de moças honradas e era usado como uma forma de desqualificar
o depoimento dela. Para Cristina Cancela, “a imagem da mulher prostituída estava também
associada ao fato da menor frequentar locais públicos onde se concentravam muitos
homens”.195 Logo, identificar essa menina como prostituta era também uma maneira de destruir
a reputação dela diante da Justiça.
Ele concluiu acrescentando que a conduta de F.T. Lima era tão reprovável que nem
lugares frequentados por mulheres de vida duvidosa permitiam sua presença. Os dois
depoimentos são cheios de desqualificações da menor e de discursos moralizantes do período.
Como não é difícil de perceber, o comportamento da vítima era tido como reprovável, mas o
comportamento do acusado e das testemunhas não. Todos frequentavam os mesmos locais,
contudo, somente a presença de F.T. Lima era questionada em passeios e bailes noturnos. Do
mesmo modo, os homens poderiam se relacionar com quem quisessem que não seriam menos
honrados, porque a honra masculina não estava ligada ao aspecto sexual, diferentemente da
honra feminina. Esteves afirma que não importa se o homem frequenta prostíbulos ou “locais
suspeitos”, importa que ele seja trabalhador e tenha comportamento exemplar no seu trabalho.
Diferente das mulheres que são julgadas pelo seu comportamento moral ou sexual.196 A autora
ainda argumenta que:
As festas religiosas ainda poderiam ser desculpadas, mas as mulheres que frequentavam
outras festas populares como o Carnaval não tinham a mesma “sorte”. F.T. Lima foi julgada
pelo seu lazer em um clube suburbano, frequentado pela classe trabalhadora de Macapá que
não usufruía dos clubes da alta sociedade amapaense, como o Esporte Clube Macapá, o Círculo
Militar ou o Santana Esporte Clube.
Por outro lado, a testemunha R.C. Fernandes, brasileira, paraense, casada, de 30 anos de
idade, lavadeira, alfabetizada, residente no bairro Buritizal em rua que não sabe o nome, disse
que conhecia F.T. Lima desde menina e que podia afirmar ter sido Isaac o autor do defloramento
da menor. Disse que a vítima era “moça de bom comportamento, que quase não sai de casa,
nem de dia e nem de noite, esclarecendo, que a vítima é sempre gabada por suas patroas, já pela
eficiência do trabalho e já pelo comportamento, tendo saído do último emprego por causa do
fato que lhe aconteceu”.198 R.C. Fernandes foi a única testemunha favorável à vítima e pautou
seu depoimento no trabalho e no bom comportamento de F.T. Lima, trazendo qualidades que
eram consideradas dignificantes para mulheres, nesse contexto. Porém, o delegado afirmou que
o depoimento de R.C. Fernandes, estava em desacordo com os depoimentos das demais
testemunhas, que eram unânimes em relatar sobre as “andanças da vítima em festas de reputação
duvidosa.199 Logo, o seu depoimento não foi levado em consideração e não ajudou a vítima.
Martha Esteves destaca que as testemunhas dos crimes sexuais não eram requisitadas para falar
apenas sobre o que sabiam do crime, pois eram interrogadas sobre o que sabiam do
comportamento anterior das vítimas. Eram chamados a falar se as meninas andavam sozinhas
na rua, se frequentavam festas noturnas ou se tinham liberdades com namoros longe da
vigilância da família.200
Em 02 de julho de 1970, em defesa prévia, o advogado José Newton Moutinho, alegou
que “a suposta vítima não foi de forma alguma seduzida pelo réu, pessoa a quem seu capricho
escolheu como ‘bode espiatório’ para reparar um delito que não praticou”. E que ela é:
Veio a ter conhecimento de que sua referida filha fora vítima de sedução e
desvirginada pelo representado [P.P.B], sob as ordens e responsabilidade de
qual fugira de casa para ir morar em um casebre na baixa do Remanso203, em
companhia de uma certa N. de tal, mulher solteira de vida irregular204.
A partir dessa declaração, podemos questionar sobre o que significava ser uma mulher
solteira e de vida irregular em Macapá. Aliás, ser solteira já poderia significar ter uma vida
irregular, afinal, se tratava de uma mulher que não estava casada e nem vivendo em companhia
de seus pais, já que a casa era dela.
M.N.C. Lopes, amapaense, solteira, de 16 anos de idade, prendas do lar, residente à
avenida Coaracy Nunes, bairro do Trem, depôs que foi estuprada pelo acusado, P.P. Borges,
brasileiro, natural do Rio Grande do Norte, casado, 35 anos, comerciante, alfabetizado,
residente na avenida Padre Júlio s/n, bairro da Favela, em março de 1968, nas proximidades do
Hospital São Camilo. Ela afirma que ele a levou de carro e a ameaçou com um revólver,
cometendo, assim, o estupro e seu desvirginamento. Porém, ela continuou a ter encontros com
ele para manter relações sexuais no mesmo local por diversas vezes. Ela ficou grávida e com a
gestação avançada, o acusado deu uma quantia em dinheiro para ela alugar uma casa e contratar
uma mulher para lhe auxiliar. O escrivão não deixa explícito, mas acreditamos que fosse para
auxiliar em um aborto. Ela fugiu de casa e pediu abrigo a uma conhecida na baixa do
“Remanso”, depois o seu pai localizou o endereço em que estava.
P.P. Borges alegou que “não obstante ser casado, o respondente vez por outra mantém
relações sexuais extraconjugais com mulheres que comumente encontra fazendo meretrício”205.
Disse que manteve relações sexuais consentidas com a jovem e que ela não era mais virgem
nessa ocasião. No caminho de volta, perguntou se devia algo a ela e ela respondeu que devia
“só dez cruzeiros”. Ele então fez o pagamento de dez mil cruzeiros a ela 206. P.P.Borges relata
que os outros encontros sexuais não foram cobrados, mas no sexto encontro, M.N.C. Lopes
cobrou a quantia de cinquenta cruzeiros novos, valor que não tinha e disse que pagaria no dia
seguinte. Ela então o ameaçou dizendo que, se não o pagasse, faria um escândalo junto à família
dele. Ele fez o pagamento no dia seguinte. Nessa parte do depoimento, o acusado descreve uma
relação de prostituta e cliente, relação com a qual já era familiarizado. Ao contrário de muitas
das mulheres citadas ao longo desse texto, sejam elas vítimas ou acusadas, P.P.B. não se
envergonha de sua infidelidade conjugal ou de estar em companhia de meretrizes. Independente
do período político ou social, aos homens é permitido um comportamento fora daquele
idealizado pelo Estado, o que claramente não acontece com as mulheres, pois estas devem
sempre estar atentas para não perderem a proteção da Justiça.
Três meses após conhecê-la, ela disse quem era o pai dela e ele disse em depoimento
que tinha muito apreço e amizade pelo referido homem porque era seu conterrâneo, mas
também ficou em choque com a informação, pois tomava a jovem como prostituta. Nesse
mesmo período, ela informou que estava grávida207 e ele negou que tivesse aconselhado M. de
N.C.L. a procurar um médico ou enfermeira para fazer o aborto, mas que deu uma injeção para
a vítima tomar, a pedido dela. Alegou que não poderia afirmar que o filho era seu, mas poderia
admitir pois havia mantido relações sexuais com ela.208 A amizade dele para com o pai da vítima
fez com que ele se surpreendesse com M. de N.C.L., pois aparentemente não esperava que a
filha de um conhecido seu fosse prostituta. Ele também tentara se desvincular da acusação de
aborto, alegando que a injeção para a menstruação descer foi ideia da vítima e não dele.
Houve uma acareação e os dois mantiveram seus depoimentos e ela disse que recebeu
os 10 cruzeiros em novembro e não após a relação sexual e que ele tirou o revólver da cintura
e mostrou para ela. Essas foram as únicas mudanças, pois eles mantiveram seus depoimentos.
Uma testemunha disse em depoimento que ouviu da jovem que teria sido desvirginada por um
rapaz que agora morava em Belém. N. da S. Costa, mulher que abrigou a jovem em sua casa,
disse que ouviu dela que seu filho era de um caixeiro viajante que estava em Belém e que na
delegacia, na ausência do delegado, confessara para ela que não deveria ter acusado P.P. Borges.
Ainda sobre esse assunto, declarou que a menor afirmou que recebeu “CINQUENTA
CRUZEIROS NOVOS [de P.P. Borges] em pagamento de havê-la possuído sexualmente, tendo
a vítima dito ainda que se caso ele não lhe tivesse pago, ela o teria levado de encontro à
Polícia”209 N. Costa disse que quando vizinha da menor, viu ela chegando, após a meia-noite
com uma irmã, por duas vezes, acompanhadas de dois homens. Essa testemunha fez declarações
opostas ao que F.S. Lopes e M.N.C. Lopes haviam dito, por evidenciar uma conduta da vítima
que até então não havia sido apontada por outra pessoa que não o acusado.
O estudo de Cristina Donza Cancela não está inserido no mesmo contexto histórico dos
processos judiciais de nosso trabalho, mas percebemos que alguns aspectos moralizantes na
sociedade brasileira são redefinidos com o passar das décadas, enquanto outros permanecem e
se tornam marca dos discursos de vítimas, acusados, testemunhas, delegados, promotores e
juízes. Dessa forma, Sueann Caulfield afirma que, na redação do Código Penal de 1890, os
juristas concordavam que, ao punir um caso de defloramento, não estariam somente protegendo
a marca fisiológica de uma mulher, mas princípios morais. A autora argumenta que:
Os conflitos sobre como a lei deveria intervir nas relações familiares e sobre
a definição de honestidade e de virgindade resultaram da coexistência, na lei
e na jurisprudência, de duas noções divergentes sobre honra: a noção patriarcal
de honra como um recurso familiar e a noção burguesa de honra como uma
virtude individual.217
Os juristas republicanos concordavam que a honra era individual, mas não conseguiam
se desvencilhar da noção de honra patriarcal. Então fizeram uma combinação de teorias do
direito e análises sociais e científicas para definir os princípios de defesa e definição de honra
sexual. No decorrer dos anos, a noção burguesa de honra como uma virtude individual ganhou
terreno, porém:
No período anterior e durante o Estado Novo, já havia uma discussão sobre uma
adaptação do código penal para que ele se ajustasse aos tempos modernos. Essa modernidade
estava ligada ao desenvolvimento econômico e social, mas também significava a dissolução da
família e dos bons costumes. Para Karla Bessa,
A prática de vincular a honra feminina à sua conduta sexual seria, ao meu ver,
mais do que uma forma de controlar e confinar as mulheres ao âmbito
doméstico (do lar), representaria a medida da supervalorização do coito, e
junto a ele, a supervalorização do casamento como instituição saudável para
organizar e administrar as relações carnais e os descendentes oriundos
destas.219
Bessa infere que nos casos de sedução, mesmo após a leitura de muitos deles, não fica
claro em que momento houve um conflito que culminou na denúncia para a polícia. Daí podem
emergir diversas possibilidades.220 Aqui, fica claro que o momento que causou a denúncia no
processo n° 1.826 foi a recusa do acusado em casar, pois ele disse à mãe da vítima que casaria
somente se fosse obrigado pela Justiça. Já no processo n° 2.234 foi a gravidez da menor. Pouco
podemos falar sobre esse ponto porque o processo estava incompleto e ele não continha o
depoimento da vítima na delegacia, somente em juízo e pouco se fala desse aspecto no decorrer
do processo. Porém, pudemos identificar que essa foi a causa da denúncia, porque F.T. Lima
dissera que quando o acusado soube da gravidez, passara a não mais procurá-la. Enquanto que
o inquérito S/N teve como motivo de denúncia a fuga da jovem da casa de seus pais por
conselho de P.P. Borges, que além da acusação de estupro, também foi acusado de tentativa de
aborto, pois a menor estava grávida.
Percebemos que os casos têm diferenças, mas também semelhanças. No processo n°
1.826, a vítima tinha todas as testemunhas a seu favor, dizendo que era uma boa filha com bom
comportamento. Já a vítima do processo n° 2.234 tinha somente uma testemunha a seu favor,
alguém que o delegado nem levara em consideração, pois as demais testemunhas
contradisseram seu depoimento e o da própria vítima, confirmando o relato do réu. No primeiro
caso, o réu assumiu que desvirginou a vítima, o que não aconteceu no segundo, em que a vítima
estava grávida. Infelizmente, o processo estava incompleto e não foi possível ler a íntegra dos
depoimentos da mãe e da vítima na delegacia. Os dois casos foram arquivados, porque os
acusados eram menores de idade quando da abertura do inquérito221. No inquérito S/N, o
acusado não assume o desvirginamento da vítima, mas disse que poderia ser o pai da criança,
porque mantivera relações sexuais com M.N.C. Lopes. O representante do Ministério Público,
Edson Correia pediu o arquivamento do inquérito pois M.N.C.L. era uma “pseudo vítima” e o
indiciado não havia cometido o crime222. Nesse caso, é perceptível como as duas partes
tentaram, cada uma a seu modo, convencer delegado e promotor de Justiça a seu favor, mas as
testemunhas acabaram resolvendo o imbróglio e P.P.B. conseguiu escapar da acusação. Desse
modo, M.N.C.L. certamente entrou no grupo de mães que criaram seus filhos com a ausência
do genitor.
220 Ibidem, p. 90
221 Conforme o Código Penal Brasileiro: Art. 115 - São reduzidas de metade os prazos da prescrição, quando o
criminoso era, ao tempo do crime, menor de 21 anos ou maior de setenta anos. (AFCM, n° 2.234, 1969, p. 40).
222 AFCM, Inquérito S/N de 12 de dezembro de 1968, p. 27.
82
As prostitutas tinham uma estreita relação com a boemia e com as festas. Nesses locais,
elas encontravam mais do que divertimentos, encontravam trabalho. O que para homens e
outras mulheres que frequentavam a noite amapaense era lazer, para elas era uma oportunidade
de conseguir os meios de sustento de suas famílias. Claro que elas uniam o útil ao agradável e
também usufruíam do entretenimento dos bares, botequins, boates e dançarás, prova disso são
as detenções por embriaguez. Elas não são as únicas protagonistas dessa seção, porque não é
possível negligenciar os homens, enquanto agentes importantes desses lugares e dos casos
documentados pela polícia e pelo poder judiciário.
O lazer noturno não foi marcado somente pelo entretenimento, pois nele ocorriam
muitas prisões de homens e mulheres que se embriagavam e promoviam desordens. Sem contar
os processos criminais com origem nas festas e nos botequins. Usando como fontes um livro de
ocorrências, processos criminais, jornais e uma entrevista, enfocamos as contravenções penais
de embriaguez e desordem que resultaram em prisões de meretrizes e de homens trabalhadores
em Macapá. Além disso, temos como objetivo analisar por meio das páginas dos periódicos os
bailes promovidos por clubes, procurando identificar quem eram os seus frequentadores e, em
contrapartida, identificar os habitués dos botequins. Nossa finalidade é igualmente analisar as
sociabilidades dos botequins e das ruas a partir do conceito de masculinidade, atentando para a
participação de soldados do Exército nos casos de conflito. Por fim, vamos caracterizar os locais
de prostituição no Amapá e pôr em evidência a relevância deles para o lazer ocorrido no TFA,
além de discorrer sobre os deslocamentos da espacialidade da prostituição de Macapá.
223 DE LOYOLA, Érico Teixeira. Juristas em Lilliput: a interpretação da Lei das Contravenções Penais nas suas
duas primeiras décadas de vigência (1940-1950). Clio: Revista Pesquisa Histórica, v. 38, n. 2, p. 345-366, 2020,
p. 346.
224Brasil. Decreto-Lei nº 3.688 de 03 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais). Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3688.htm. Acesso em: 12 de dezembro de 2022.
84
perigosas”225, a população negra e pobre das cidades, para proteger não só o que era moralmente
adequado às classes dominantes, mas também a propriedade privada. governos agentes da
Ditadura empresarial-militar também se se orientaram por essa ótica. Por isso não eram raras
as detenções de embriagados e desordeiros no TFA do período ditatorial.
Dentre todos os motivos de detenção em Macapá, “embriaguez e desordem” era o mais
comum. Como era uma contravenção penal, apenas uma noite ou algumas horas no “xadrez”
para cessar o efeito do álcool eram considerados punição suficiente. Não importava o gênero,
homens e mulheres eram igualmente detidos e colocados à disposição do delegado de plantão.
Por ser motivo de prisão recorrente, tal contravenção não podia ser ignorada. Núncia de
Constantino explica que no processo de modernização de Porto Alegre entre a metade final do
século XIX e início do século XX, a repressão policial sobre a classe trabalhadora era motivada
principalmente pela vadiagem, pela embriaguez, pelo jogo e pela prostituição. Para isso, as
forças policiais contavam com o apoio da imprensa, que reproduziu campanhas contra essas
práticas nos jornais226. Desse modo, “manter a ordem pretendida foi, portanto, tarefa
empreendida com tenacidade pelas autoridades. Estatísticas revelam a desordem como delito
de maior incidência, em sucessivos relatórios”227. Em seguida, vinham os delitos de embriaguez
e embriaguez e desordem.
No Livro de Registro de Ocorrências da Central de Polícia esse delito foi, sem dúvidas,
o maior motivo de prisão. Para essa subseção, selecionamos apenas registros de ocorrências de
embriaguez e desordem que envolveram meretrizes, um total de 11 ocorrências. Em algumas
edições do ano de 1970, o jornal Novo Amapá também nos fornece dados do movimento
policial. E em poucas edições do ano de 1974 esse periódico manteve uma coluna denominada
“Ronda Policial”, na qual são publicadas as ocorrências policiais mais detalhadas.
As brigas de casal, quando ocorriam em via pública, comumente eram apartadas pela
patrulha da Guarda Territorial, ocasião em que os amantes eram levados à delegacia para ficar
à disposição do delegado de plantão. Assim aconteceu em três ocorrências envolvendo
meretrizes e seus amásios:
Na primeira ocorrência não fica claro se os envolvidos eram um casal ou não, mas
destaca-se que estavam promovendo desordem juntos no “Merengue”. Podemos perceber o
envolvimento da meretriz Jacira em duas ocorrências e pelo mesmo motivo. Porém, os amásios
são diferentes. Apesar de a idade dela não coincidir nos dois registros, se trata da mesma pessoa,
o que conseguimos identificar pelo sobrenome. O tempo de uma ocorrência para a outra é de
mais ou menos 45 dias, o que nos leva a pensar que esses amásios eram clientes ou Jacira
separou de J.C. Guedes e, nesse ínterim, iniciou um novo relacionamento com A.C. Gomes. É
difícil concluir que se trata de um caso ou outro, porque o amasiamento pode tanto ser uma
relação de namoro ou de união estável, segundo as definições atuais, quanto uma relação
passageira, como a das meretrizes com seus clientes.
Prostitutas também foram presas em grupo pela Guarda Territorial, seja por embriaguez,
seja desordem, ou pelos dois motivos. Como veremos mais adiante, as meretrizes amapaenses
costumavam andar em grupo. Esses grupos eram criados por questões de afinidade, parentesco
ou porque moravam na mesma casa de habitação coletiva ou pensão:
228 Livro de Registro de Ocorrências da Central de Polícia. Ocorrência nº 1.146 de 11 de outubro de 1969, p. 81-
82.
229 Ibidem. Ocorrência nº 1.049 de 14 de setembro de 1969, p. 11.
230 Ibidem. Ocorrência nº 1.184 de 26 de outubro de 1969, p. 119.
86
236 Livro de Registro de Ocorrências da Central de Polícia. Ocorrência nº 1.183 de 25 de outubro de 1969, p. 118.
237 Ibidem. Ocorrência nº 1.236 de 13 de novembro de 1969, p. 164.
238 Ibidem. Ocorrência nº 1.136 de 08 de outubro de 1969, p. 73-74.
239 Ibidem. Ocorrência nº 1.183 de 26 de novembro de 1969, p. 198.
240 DSG em números. Novo Amapá, nº 1.562, 21 de fevereiro de 1970, p. 5.
241 MOVIMENTO semanal da polícia. Novo Amapá, nº 1.565, 19 de março de 1970, p. 2.
88
Desordem
José Benedito e Ademir Samorais, são dois sujeitos que quando ingerem
qualquer bebida alcóolica, gostam de fazer cenas pouco apreciáveis, e travam
luta corporal em plena via pública, "para dar uma demonstração de que não
somos moleza e sabemos brigar pra valer". Mas como há aquele ditado que
diz que um dia é da caça e outro do caçador, os dois brigões não foram muito
felizes em suas demonstrações de luta corporal em via pública, A patrulha
passava por lá no exato momento em que, de simples brincadeira, passavam a
esmurrar violentamente um a cara do outro. Conclusão: foram recolhidos ao
xadrez da permanência e só sairam após curtirem vinte e quatro horas o sol
quadrado, nas grades do xadrez246.
Vemos que o autor do texto destaca que a ingestão de bebida alcoólica fez com que José
e Ademir fossem protagonistas de briga cujo intuito era provar que eram fortes e, assim,
performar masculinidade. O que começou como brincadeira, acabou virando uma luta violenta
que cessou pela intervenção policial. Assim como nas ocorrências registradas pela Central de
Polícia, esse recorte do jornal destaca como a embriaguez e desordem eram contravenções
penais complementares para a força policial. Para Raul Max da Costa, o “controle sobre a
embriaguez pública era efetivado pela força policial através das prisões correcionais. Enquanto
a polícia prendia, o jornal registrava”247. Nesse caso, vemos a atuação de dois órgãos do governo
ditatorial no TFA: a Patrulha Policial prende e faz o registro de ocorrência para que a imprensa
oficial estampe a atuação da polícia nas folhas do jornal Novo Amapá. Um trabalho
complementava o outro.
A partir dos registros analisados, conseguimos observar como as meretrizes do TFA circulavam
pelas ruas da capital se divertindo com colegas e amigas, brigando com amásios ou clientes, entrando
em conflitos com forças policiais. Mas, não podemos deixar de questionar se essas mulheres
identificadas como meretrizes eram realmente trabalhadoras sexuais, ou se eram percebidas assim pela
polícia por apresentarem um comportamento estigmatizado no espaço público, uma conduta não
esperada de mulheres “honradas”:
a pensar que as características diurnas e noturnas desse local se confundiam e não eram bem
delimitadas. Esse bairro era atravessado por um fluxo intenso de pessoas, o que gerava grande
preocupação nas autoridades governamentais. Mas, a partir da década de 1960, esse lugar
passou a dividir o protagonismo das ocorrências policiais com outros bairros periféricos como
o Buritizal e o Santa Rita250.
Essas farras não eram marcadas somente pela camaradagem dos divertimentos, mas
também por conflitos. A junção das danças, dos festejos e do álcool causava brigas e ensejava
prisões. Em locais como botequins, salões de festa e clubes, embriaguez e desordem eram os
motivos mais comuns de detenção. Em setembro de 1969, os bombeiros J.C. Picanço, J.C. da
Silva e S.P. de Andrade, de 30, 22 e 35 anos251, respectivamente, e A.R. da Silva, O.A. Moraes
e J.T.P. Nascimento, de 18, 19 e 22 anos, residentes em Macapá252, respectivamente foram
presos por promover desordem no Merengue. E em novembro, Jagunço foi detido no dançarás
pelo mesmo motivo253.
Foram detidos no Bar Gato Azul: J.N. Gomes, paraense, casado, motorista profissional,
residente no bairro Buritizal254; E.A. de Araújo, A.A.F. de Sena, I.P. Dias e R. Miranda,
paraenses, solteiros, marítimos, de 31, 31, 26 e 33 anos de idade, respectivamente, estavam de
passagem por Macapá e foram presos embriagados por promover desordem no referido bar e
fazer necessidades fisiológicas em via pública255.
Já no Bar Banavita, W.M. Picanço, paraense, casado, funcionário público, com 32 anos
de idade, e M.C. Mendes, amapaense, estudante, com 18 anos de idade, foram presos por
promover desordem no bar. Eles se comprometeram a pagar o prejuízo que causaram e foram
liberados256. Em uma festa na Sede do Trem Esporte Clube, M.R.N. Caldas e E.M. Alfaia,
amapaenses, solteiros, estudantes, moradores do bairro do Trem, de 19 e 20 anos de idade,
respectivamente, fizeram desordem e foram presos257. O único registro que tem um motivo
diferente para a detenção ocorreu na Pensão da Suerda: “Detenção: Por haver feito despesa na
Pensão da Suerda na importância de 28,00 e mais 6,00 de carro sem ter dinheiro para pagar foi
detido E. Souza, paraense, casado, funcionário de Platon Indústria e Comércio, sendo recolhido
250 Nessa época, o bairro Santa Rita também era chamado de “Favela” e de “bairro da CEA”, a antiga Companhia
de Eletricidade do Amapá.
251 Livro de Registro de Ocorrências da Central de Polícia. Ocorrência nº 1.038 de 12 de setembro de 1969, p.
03.
252 Ibidem. Ocorrência nº 1.039 de 12 de setembro de 1969, p. 03.
253 Ibidem. Ocorrência nº 1.216 de 08 de novembro de 1969, p. 149.
254 Ibidem. Ocorrência nº 1.044 de 13 de setembro de 1969, p. 7.
255 Ibidem. Ocorrência nº 1.202 de 02 de novembro de 1969, p. 136.
256 Ibidem. Ocorrência nº 1.093 de 28 de setembro de 1969, p. 46.
257 Ibidem. Ocorrência nº 1.123 de 04 de outubro de 1969, p. 64.
91
ao xadrez à disposição do Sr. Delegado de Plantão”258. A Pensão da Suerda é outro local que
atravessou os anos e continua presente na memória dos amapaenses como um importante
espaço de prostituição e diversão noturna. Mas, ao contrário do Bar Caboclo, ela não foi cenário
frequente de registros policiais. Inclusive, não é difícil ouvir comentários de que a Suerda “não
era pra qualquer um”, que era uma casa de meretrício para pessoas de maior poder aquisitivo.
A ocorrência acima foi a única encontrada no Livro de Ocorrências, nos jornais e nos processos
judiciais.
Alguns botequins eram mais frequentes nos registros policiais. No Bar Caboclo, R.S.
Carvalho e J. Sarmento, paraenses, solteiros, de 24 e 42 anos, respectivamente, foram detidos
por embriaguez, ficaram presos até passar o efeito do álcool259. Já por desordem, após
agredirem-se, foram presos J.R. dos Santos, paraense, casado, de 39 anos de idade, e seu vizinho
F.B. Santos, amapaense, solteiro, de 23 anos de idade, moradores do bairro do Trem 260; e R.S.
de Morais, paraense, solteiro, estudante, de 21 anos, foi detido após quebrar copos no bar261.
Por embriaguez e desordem, foram presos L.C. Picanço, amapaense, de 22 anos de idade,
solteiro, motorista, G.G. da Silva, paraense, solteiro, de 19 anos de idade, trabalhador do
Matadouro de Fazendinha262; A.C. Gomes de 21 anos e M.D. do Vales, paraenses, solteiros,
residentes do bairro do Beirol263; o grupo de jovens R.S. dos Santos, F. Mira, J. Magno, R.P.
Gemaque, J.P. Gemaque e B.B. da Silva, paraenses, solteiros, de 20, 19, 21, 19, 18 e 18 anos,
respectivamente, estavam alcoolizados e fazendo desordem no Bar Caboclo 264; S. Lima,
paraense, de 31 anos, casado, residente no bairro da Favela, foi preso por estar embriagado e
por promover desordem e na delegacia foi “inconveniente” com o delegado265.
Diferentemente do que foi feito na subseção anterior, aqui escolhemos citar os registros
em que somente homens figuram detidos em bares, botequins, clubes e dançarás. Isso com o
objetivo de identificar quem eram os homens frequentadores desses lugares. A idade deles
ficava entre 18 e 42 anos, eram paraenses e amapaenses e a maioria residia em Macapá. Eles
eram trabalhadores braçais, bombeiros, marítimos e estudantes. Nem sempre essas informações
eram descritas, pois não havia um padrão no preenchimento das ocorrências. Em alguns casos
somente o nome dos contraventores era informado.
Proibição
Disse ainda o dr. Odir Macedo que a medida do Secretário da SEGUP vai
proporcionar maior tranquilidade às famílias e o espetáculo proporcionado por
elementos em avançado estado de embriaguez alcoólica vai diminuir
sensivelmente266.
O dr. Odir Macedo, da Polícia Judiciária, continua trabalhando com sua equipe
para apurar com exatidão o número de botequins que vendem exclusivamente
cachaça, depois do que serão seus proprietários proibidos terminantemente de
vender a bebida diabólica aos sábados e domingos.
266 POLÍCIA estuda meio de proibir venda de cana. Novo Amapá, nº 1.745, 31 de agosto de 1974, p. 2.
93
Seção de Coordenação
Portaria Nr. 39/64-DSG
267 DELEGADO Odir Macêdo continua combate à venda de “cana”. Novo Amapá, nº 1.746, 07 de setembro de
1974, p. 2.
94
RESOLVE:
A partir da leitura desse documento podemos inferir que as associações eram diferentes
de clubes sociais como o Esporte Clube Macapá. Podemos supor que as associações citadas
eram as escolas de samba de Macapá. É necessário observar que essa portaria foi publicada
antes do Golpe de 1964, o que nos leva a concluir que o controle policial sobre os espaços
festivos não foi exclusividade do regime ditatorial. Nos anos da Ditadura empresarial-militar,
A DSG também publicou nos jornais locais portarias com normas a serem seguidas no carnaval
amapaense. Localizamos duas delas nos anos de 1970 e 1971269:
[…]
De acordo com esta portaria, todos os lugares que fossem realizar festas carnavalescas
deveriam solicitar licença. Além dessas determinações, também foi proibido que os foliões se
fantasiassem de policiais, de padres, freiras e que usassem qualquer identificação que fizesse
referência a uniformes militares.
O carnaval movimentava o TFA e os clubes preparavam bailes para os foliões. A
agitação carnavalesca marcava presença nas páginas dos jornais. Parte da divulgação das festas
e dos preparativos dos clubes ficava a cargo de Wilson Sena, colunista e chefe das oficinas do
Novo Amapá:
Os bailes desses clubes eram frequentados por pessoas de maior poder aquisitivo do
TFA. Na edição seguinte do jornal, o colunista critica a organização de um dos bailes
carnavalescos do Esporte Clube Macapá no qual “entrou todo mundo”, deixando de ser uma
“seleta reunião dançante”:
Não sabemos o que aconteceu na festa para gerar o incômodo de Wilson Sena pela falta
de seletividade da diretoria do Macapá, mas podemos atestar que não era “qualquer pessoa”
que frequentava o clube e quando isso acontecia causava uma indisposição naqueles que
estavam habituados a um ambiente socialmente excludente. Para sanar esse desconforto, Sena
sugeriu que o clube voltasse a utilizar seus critérios de seleção de participantes na portaria. Ao
escrever sobre a programação de carnaval dos clubes locais, o articulista destacou que “Os
clubes suburbanos, ao som de suas boas aparelhagens, terão oportunidade de também mostrar
que sabem aproveitar a quadra momesca e responderão presente ao Rei Momo”274. Desse modo,
ele separava clubes como Trem Desportivo Clube, Esporte Clube Macapá, Santana Clube e o
Círculo Militar, dos clubes suburbanos de Macapá.
No ano seguinte, ao abordar as festas de Réveillon que frequentou com sua família,
Wilson Sena referiu-se ao Círculo Militar e ao Santana Esporte Clube como clubes
aristocráticos e destacou que no primeiro estavam presentes o governador do TFA, o General
Ivanhoé Martins, e o prefeito de Macapá João Oliveira Côrtes, além de outras autoridades não
citadas275. Logo, inferimos que esses clubes, em especial o Círculo Militar, eram locais de
encontro e confraternização dos gestores do TFA. Por fim, ele destacou que “em ambos os
bailes, predominou a elegância da mulher amapaense”276. Essa mulher amapaense não era a da
273 Ibidem.
274 CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.560, 07 de fevereiro de 1970, p. 05.
275 CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.600, 09 de janeiro de 1971, p. 05.
276 Ibidem.
97
classe trabalhadora, mas sim as esposas, mães, irmãs e filhas dos políticos do TFA. O tom
mudou quando o articulista passou a abordar as festas dos subúrbios, porque “tem muito menor
por aí fazendo o que quer” e a fiscalização estava “dando duro” nessas festas277. Vemos como
a classe dos frequentadores de cada festa é relevante para o colunista. Por um lado, ele destaca
a aristocracia e a elegância, por outro, por outro, ele destaca a fiscalização nos clubes
suburbanos, porque neles não havia organização e critérios para participar dos festejos. Depois,
ele menciona “os animados bailes carnavalescos” dos clubes suburbanos 13 de Setembro e
Cruzeiro, “mostrando que também no subúrbio, o som da cuíca e do pandeiro é coisa pra
valer”278. Mas, ele não comenta se vai frequentar os bailes suburbanos com sua família, ao
contrário do que faz quando comenta as festas promovidas pelos clubes “aristocráticos”
Um exemplo de como a classe social era um marcador usado para diferenciar os foliões
amapaenses, não só por colunistas, mas também para a polícia, foi a notícia de um roubo. As
casas noturnas suburbanas eram alvos prediletos da vigilância policial, porque na visão das
forças do controle social era mais fácil criminosos frequentarem esses espaços do que as festa
da “aristocracia” amapaense:
Sidney Lobato, abordando o período anterior ao Golpe de 1964, escreve que “enquanto
os clubes ofereciam bailes aos mais endinheirados, as ruas e as praças eram o território da folia
popular”.280 Já no contexto por nós estudado, observamos que trabalhadores e trabalhadoras
amapaenses também frequentavam clubes e associações, como o Treze de Setembro, assim
como ocupavam as praças e as ruas para brincar no carnaval. Os clubes ligados à Icomi, o
Santana Esporte Clube e o Manganês Esporte Clube, eram frequentados tanto pelo staff da
empresa quanto por seus trabalhadores. Nas páginas da Icomi Notícias os funcionários eram
277 Ibidem.
278 CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.602, 30 de janeiro de 1971, p. 05.
279 POLÍCIA põe as mãos no ladrão da “Casa Lima”. Novo Amapá, nº 1.671, 17 de fevereiro de 1973, p. s/n.
280 LOBATO, Sidney. Op. Cit., 2014, p. 238.
98
heterossexuais, figura como centro, enquanto outras masculinidades orbitam em torno dela.285
Connell e James W. Messerchmidt argumentam que o conceito de masculinidade hegemônica
sofreu diversas críticas desde a sua formulação. Algo que pode se manter é o argumento de que
as masculinidades subordinadas também são agentes. Isso porque homens pobres, negros ou
homossexuais, não seguem (ou não se encaixam) totalmente o modelo de masculinidade
hegemônico.
As masculinidades hegemônicas e marginalizadas exercem influência uma sobre a outra
e ambas se apropriam de aspectos exôgenos.286 Então, alguns aspectos do conceito podem e
devem ser mantidos, como a pluralidade e a hierarquia das masculinidades. Segundo os autores,
“padrões múltiplos de masculinidade têm sido identificados em muitos estudos, em uma
variedade de países e em diferentes contextos institucionais e culturais”.287 Do mesmo modo,
Soraya Januário argumenta que:
Cada lugar tem uma forma única de masculinidade, ou de “ser” e “fazer-se” homem.
Assim, as masculinidades amazônicas são marcadas por questões culturais e sociais locais. Os
casos a seguir evidenciam uma faceta das masculinidades e do machismo na sociedade
amapaense. Homens que brigavam entre si por causa de rixas anteriores e homens que
agrediram meretrizes motivados pelo álcool e pela valentia masculina.
Vamos aos episódios: A.C.B.P, macapaense, solteiro, com 19 anos de idade, tipógrafo,
alfabetizado, residente à av. Ataíde Teive e O.F.G., 25 anos de idade, solteiro, militar,
alfabetizado, residente à rua São Paulo, foram acusados pelo crime de lesões corporais. Eles
agrediram-se mutuamente no dia 02 de abril de 1972. Na companhia de um colega, A.C.B.P.
saiu do dançará Merengue às três horas e quando estavam caminhando próximo à Usina Costa
e Silva, O.G.F. quase atropelou seu colega com a bicicleta, o que gerou uma reclamação. O.,
que estava com um companheiro conhecido como Curica, desceu da bicicleta e foi em direção
à A. com uma corda e os dois entraram em luta corporal. Um guarda separou os dois e eles
seguiram seus caminhos. Mas, acabaram se encontrando novamente, quando A. acertou seu
oponente na cabeça com um cinto. Por sua vez, O. feriu A. com um objeto cortante. 289 Um
simples atrito foi o suficiente para causar essa tensão entre os acusados, suscitando uma
intervenção policial.
A testemunha M.C.F., paraense, solteiro, de 21 anos de idade, residente na avenida
Ataíde Teive, sabendo ler e escrever, disse que O. e Curica pediram cigarro a ele e A., e que
caso não o dessem levariam “porrada”. Relatou que ele e seu companheiro foram atacados por
quatro homens, sendo um deles soldado do 34º BIS (o acusado O.). M. informou que Curica
tinha mágoa com ele por causa de uma garota.290 A partir desse depoimento, já conseguimos
identificar que havia uma faísca entre alguns dos envolvidos, algo anterior a esse episódio. A
disputa por uma mulher poderia ser a causa de rixas entre homens. Nesse caso, houve uma
confusão generalizada, mas haviam pequenos desentendimentos dentro dela. A. e O. brigaram
por um quase atropelamento e uma reclamação, enquanto M. e Curica possuíam rivalidade por
uma disputa amorosa e o pedido de cigarro foi um meio encontrado para iniciar a briga.
Para Sidney Chalhoub:
O desafio pode ser visto como o último estágio de uma escalada contínua de
tensões específicas ativadas a partir do surgimento da rixa. O desafio precede
imediatamente o conflito e anuncia aos membros de um determinado meio
sociocultural; a rixa surge da própria dinâmica de funcionamento e ajuste de
tensões dentro do microgrupo sociocultural estudado. Neste contexto, a
violência não é algo gerado espontaneamente num dado momento, mas sim o
resultado de um processo discernível e até previsível pelos membros de uma
cultura ou sociedade.291
Então, “a mágoa por causa de uma garota” é uma rixa, o pedido de cigarro, o
atropelamento e a reclamação podem ser definidos como o desafio resultante dessa rixa. Note-
se que esse episódio de violência não surgiu do nada, e a rixa que está na sua origem pode ter
sido alimentada em outras ocasiões. E uma noite de festa e bebida encorajou os envolvidos.
O funcionário público H.F.P., de 36 anos, casado, paraense, residente à rua Hildemar
Maia, sabendo ler, separou a briga dos acusados. Conhecia O., sabendo ser militar do 34º BIS,
e dissera para ele parar com a briga pois era feio um militar promover desordem. Com isso, O.
lhe disse que iria voltar ao quartel. Foi embora e não soube o que aconteceu depois, mas no dia
seguinte foi procurado pelo delegado Oscar Lima para relatar o que sabia do ocorrido. Esse
depoente, “depois, em conversa com a mundana que conhece por BOSSA NOVA e uma outra
desconhecida, foi informado de tudo o que havia se passado entre o dito soldado e aquele
desconhecido”.292 H. era guarda territorial, em seu depoimento aponta que para saber do
restante do ocorrido recorreu a duas meretrizes. A partir disso, podemos cogitar que esse guarda
territorial tinha uma relação amistosa com as prostitutas que conhecia, e a quem recorreu como
fontes confiáveis.
Bossa Nova era meretriz, paraense, solteira, com 36 anos de idade, residente na avenida
Antônio Coelho de Carvalho, próximo à Usina Costa e Silva, e não sabia ler e escrever. Disse
que no dia do ocorrido, saiu do Merengue com sua amiga Lindalva, em direção às suas casas.
Viu todo o ocorrido e ouviu quando O. falou para seu companheiro Raimundinho esperar o
guarda H. tomar distância para dar “porrada” em A. e M., o que aconteceu. O militar foi ferido
na orelha por A., que fugiu com seu colega. Ela viu seis recrutas dando apoio a O., correndo
atrás dos dois rapazes que entraram no terreno da usina. Disse que conhece todos de vista, o
que sugere que os militares do Exército eram conhecidos das prostitutas amapaenses. Primeiro,
isso ocorria porque os soldados faziam a patrulha da cidade junto a a Guarda Territorial.
Segundo, porque frequentavam os mesmos espaços que elas em momentos de lazer. Eles
queriam obrigar o vigilante a deixá-los entrar no terreno da usina, o que lhes foi negado. Por
isso, se desentenderam com o vigilante e puxaram o chapéu dele, só devolvendo com muito
custo. Ela ouviu que Raimundinho segurou A. para que O. o furasse. Identificou um dos
militares como Uriel, que acompanhado de Raimundinho, era acostumado a provocar os
recrutas para promover desordem. E sabe que “O. todas as vezes que chega[va] no Merengue
acompanhado de RAIMUNDINHO procura[va] tumultuar a coisa, pois são dados ao vício da
embriaguez”.293 Os militares do 34º BIS se envolviam em desordens, o contrário do que
poderíamos pensar, já que tinham como missão manter a ordem social no TFA. Ainda mais
levando-se em consideração os anos da Ditadura empresarial-militar, nos quais se sentiam
encorajados pela certeza da impunidade, de que não seriam punidos. Aparentemente andavam
em grupo pelos locais de festa em Macapá e usavam de seu poder para cometer abusos.
Por meio desse depoimento de Bossa Nova, vemos como a junção de álcool e valentia
masculina poderia culminar em conflitos e lesões corporais. Nos tumultos que O. e
Raimundinho causavam no dançará Merengue, e nas provocações de Raimundinho e Uriel aos
recrutas vemos atos orientados por códigos de masculinidade. Alessandro Cerqueira Bastos, ao
analisar as masculinidades populares em Feira de Santana, na Bahia, e analisar a relação entre
a agressividade masculina e o álcool, pondera que a embriaguez poderia desencadear a violência
masculina. Mas, é importante entender que o álcool também tinha um papel importante na
camaradagem da classe trabalhadora e pode ser um elemento de fuga da exploração cotidiana
do trabalho,294
A meretriz M.E.S., amapaense, solteira, de 19 anos de idade, residente na avenida Cora
de Carvalho, quarto número três, não sabendo ler e escrever, saiu do Merengue com seu amante
de nome Castelo. Ao passarem juntos pela avenida Padre Júlio, eles encontraram com Bossa
Nova que lhes disse que O., companheiro de Castelo, tinha sido ferido e estava sangrando.
Castelo perseguiu um dos rapazes, mas sem sucesso.295 Deduzimos que Castelo também era
militar, já que era companheiro de O. e se juntou à perseguição dos militares contra seus
oponentes. A meretriz Maria de Fátima, paraense, de 17 anos de idade, residente na avenida
Cora de Carvalho, sabendo assinar o nome, não foi testemunha desses acontecimentos, mas
presenciou uma cena que pode ter relação com o caso, dias depois. Em seu depoimento, disse
que ao retornar para seu quarto, tinha visto quatro homens conversando na rua sobre o que
ocorrera com o soldado O. Um deles estava armado com uma faca e foi em sua direção. Ela não
tinha certeza, mas acreditava que um dos homens tinha sido o mesmo que havia brigado com o
referido soldado, dias antes. Disse que não tinha ido ao posto policial porque temia ser agredida
por esses homens.296 Não nos interessa se o depoimento de Maria de Fátima ajudou a elucidar
o caso ou não, mas o fato dela temer ser agredida por esses homens no caso de procurar a
polícia. Ela seria agredida por ter visto esses homens conversando ou ela estava apenas tentando
se proteger de uma agressão por ser prostituta? Sua fala não dá condições para responder a essas
perguntas, mas acreditamos que as duas hipóteses são verdadeiras.
Outro caso envolvendo um soldado do 34º BIS aconteceu em agosto de 1976. Desta vez
o crime foi de desacato e resistência. A Patrulha da Polícia Militar foi avisada por um motorista
de táxi que a meretriz Helena de tal promovia desordem no Dançará Xadrezão. A polícia chegou
ao local para prendê-la e Antônio Luiz, vulgo “Abutre”, brasileiro, amapaense, casado, cor
preta, 18 anos de idade, soldado do exército do 34º BIS, setor primeira companhia de fuzileiro,
294 CERQUEIRA BASTOS, Alessandro. Homem trabalhador, pacato e de bom procedimento: masculinidades
populares, violência e cotidiano (Feira de Santana, 1960-1970). Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-
Graduação em História Social), Universidade Federal da Bahia, 2021, p. 79-80.
295 AFCM. Processo nº 2.653 de 01 de dezembro de 1972, p. 14.
296 Ibidem, p. 15.
103
Abutre relatou que estava na boate Xadrezão, fardado e de passagem para o quartel, na
estrada Macapá-Santana. Disse que não havia batido em nenhuma mulher e que, quando a
viatura chegou, estava do lado de fora da boate, com Maria Helena. Segundo seu relato, um
policial descera do carro e deteve Maria Helena, mandando que ela entrasse no veículo. Ele se
dirigira até ela para perguntar pelo dinheiro que estava faltando no seu bolso, quando fora
atingido com um pontapé por um dos policiais, ocasião em que reclamara e fora ameaçado de
ser quebrado de cacete.300 Na sua ficha de vida pregressa, consta que sua esposa tinha 16 anos
e que sua filha estava com alguns meses de idade. Abutre era mais um homem casado que se
permitia ter a companhia de meretrizes, sem que isso lhe causasse qualquer prejuízo conjugal.
Rosineide, brasileira, paraense, de 17 anos de idade, meretriz, residente no bairro Santa
Rita, às proximidades do abrigo dos Velhos, no prostíbulo ocupado por diversas meretrizes, sob
a responsabilidade da mulher Maria Pretinha, disse que Antônio Luiz vulgo “Abutero” era xodó
da meretriz Maria Helena:
Que, em dado momento a declarante foi avisada por outra mulher que Abutero
iria batê-la a pedido de Helena; que, a declarante sabedora de que seria
agredida pelo dito elemento procurou afastar-se da festa que se realizava
naquela boite, porém, quando se achava na rua o mesmo seguiu-a e aplicou-
lhe um pontapé e uma bofetada, esta acertando em outra mulher que seguia ao
seu lado; que, antes, porém, Antônio Luiz, havia agredido a jovem Maria Inez,
aplicando-lhe uma bofetada e rasgando suas vestes; que, no momento em que
o acusado agredia a declarante chegava um carro da Rádio Patrulha da Polícia
Militar, cujos seus elementos saltaram calmamente e procurando apaziguar os
ânimos em virtude de Helena, que se acompanhava de Antônio Luiz insuflar
a situação, generalizando-se uma desordem; que, como os policiais
detivessem Helena, o acusado interferiu-se afirmando que jamais eles
conduziriam a referida mulher que o acompanhava; que, Antônio Luiz,
afirmou ainda de que: “essa mulher que tá comigo não vai, se for pra levar ela,
leva eu também” (textuais); que, ato contínuo os ditos policiais, usando muita
calma, colocaram Helena no carro da RP, passando desse instante em diante
o acusado a detratar os elementos da Polícia, taxando-os de cretinos, dizendo
ser homem para todos os elementos e que se abusassem muito quebrava todo
o carro da RP; que, não obstante a advertência de um dos policiais para que o
acusado cessasse com aquele procedimento, o mesmo passou a ofendê-los
com palavras imorais, para em seguida agredir o cabo Comandante da
mencionada viatura; que, nesse momento os policiais o prenderam e a força
colocaram-no na viatura da RP-PR, levando-o; que, ontem [dia 11 de agosto
de 1976] naquela boite, a noite, reuniu-se uma turma de soldados do exército,
com atitudes ameaçadoras contra as mulheres que denunciaram o
comportamento do acusado, o qual também estava presente, fardado,
afirmando que iria em sua casa trocar de roupa e voltava para conversar com
Maria Inês que testemunhou sua prisão pelos policiais”.301
Que em certa ocasião Abutre, desligou todas as luzes da boite para promover
uma desordem, sendo domingado pelo motorista Hely Barbosa que evitou
maiores consequências, que, dias depois deste fato, o declarante em momento
do seu almoço, foi chamado por alguém que desejava lhe falar e o atendendo,
deparou com Antônio, o qual lhe ameaçou e avisou que à noite estaria lá com
uma Patota (textuais) para quebrar a referida boite em revide de haver sido
contido na noite anterior pelo motorista Hely que o dominou e o fez retirar-se
do local; que, ao anoitecer, por volta das vinte e duas horas, deu entrada no
salão da boite um grupo de soldados, chefiados por Antônio Luiz, o qual, já
no meio do salão, gritou ‘quede o dono da boite e as putas daqui que me deram
porrada (textuais), ato contínuo, desligaram a luz e passaram a depredar os
móveis do salão, pondo em pânico as mulheres e os demais frequentadores
que ali se achavam amesendados”. Saíram em correria pela rua com destino
ignorado e depois disso outros fatos de menor importância aconteceram e
sempre com a presença de Abutre que era acostumado a agredir as mulheres
que frequentam aquela casa.302
O homem despossuído constrói sua identidade social a partir do que faz, e não,
obviamente, a partir do que tem, pois, por definição, ele nada ou pouco tem. Sendo
assim, para ele, ser é fazer, e não possuir. Por isso, a ideologia machista como
reconstrução dos despossuídos reveste-se de todo um sentido de ação, de normas do
agir na comunidade social. O machismo, porém, como conjunto de normas que
induzem e orientam as ações dos homens, é um fenômeno social profundamente
dialético. De um lado, o machismo é o código que norteia a dramatização e a
ritualização dos conflitos entre os homens pobres em questão, permitindo, assim, que
os microgrupos socioculturais estudados construam um sentimento coletivo e uma
identidade social relativamente autônomos e originais.303
Desse modo, como bem explica Chalhoub, o homem pobre constrói sua identidade pelo
que faz. Como alerta Cerqueira Bastos, não podemos naturalizar o comportamento e achar que
é destino dos homens, principalmente os pobres, serem violentos e agressivos com mulheres e
com outros homens.304 No contexto amapaense, acreditamos que o motivo pelo qual os sujeitos
citados na documentação agiram com violência foi a sensação de impunidade decorrente de seu
poder político e social. Ou seja, não se trata de uma violência natural, mas institucionalizada e
autorizada pelo Estado ditatorial territorial e nacional.
Nesse sentido, O., Raimundinho, Uriel, Abutre e demais homens citados, precisavam
demarcar que eram machos perante seus rivais, mas também diante de mulheres. Quando
promoviam tumultos nas boates e nas ruas de Macapá, os soldados estavam se valendo de uma
masculinidade particular, compartilhada somente com seus pares e marcada pela hierarquia
militar. Nesse contexto, podemos até mesmo definir a masculinidade de Abutre, Raimundinho,
O. e Uriel como uma masculinidade hegemônica, enquanto a masculinidade dos recrutas é
marginalizada, porque é colocada à margem da masculinidade hegemônica dos soldados.
Porém, todos esses homens citados assumem uma masculinidade marginalizada perante seus
superiores militares e de homens da classe dominante, porque eles são apenas trabalhadores.
Ao que parece, esses militares assumiram uma postura de “donos da cidade” ou, no mínimo,
donos dos ambientes festivos. Mas, no momento em que as meretrizes e o proprietário do
Xadrezão se acharam seguros para denunciar os excessos do soldado Abutre, ficou claro que as
vítimas também tinham seus meios de resistência.
305 O Bairro Alto compreendia o perímetro da rua Hamilton Silva até a rua Cândido Mendes. Atualmente essa
região corresponde ao bairro central.
306 Nesse atinente, afirma Sidney Lobato: “Novos e cada vez mais populosos bairros foram surgindo em Macapá,
a partir de 1944. [...] Dois processos concorreram para a formação dos bairros suburbanos: o grande movimento
migratório rumo a Macapá e a inviabilização da permanência dos moradores mais pobres no centro urbanizado
desta cidade, por meio do estabelecimento de padrões ocupacionais que eles não podiam alcançar” (LOBATO,
Sidney. Op. cit., p. 85).
108
Na década de 1960, o Trem já não estava fora dos limites da cidade, porque Macapá já havia
expandido seu perímetro urbano e o bairro já contava com vários melhoramentos de infraestrutura. O
Beirol já não era mais uma chácara, pois estava delimitado enquanto bairro. Nele estava localizada a
Colônia Penal do Beirol, o antigo presídio do TFA. O bairro da Favela foi formado após parte da
população pobre e negra habitante do centro histórico de Macapá ser deslocada para seu perímetro e
para o bairro do Laguinho. Sidney Lobato descreve a Favela da seguinte maneira:
Uma das áreas dessa zona [suburbana] que mais rapidamente cresceu foi a
Favela – nome dado a uma baixa alagadiça que se localizava ao norte do
“bairro Alto”. Como já afirmamos, uma parcela da comunidade negra que
residia no centro histórico de Macapá mudou-se para tal área. [...]. Muitos
imigrantes decidiram construir na Favela as suas novas moradias. Entre outros
fatores, tal escolha decorria da proximidade deste lugar em relação ao centro
político-social de Macapá.308
A Favela também era conhecida como Santa Rita, que é o atual nome do bairro. Nele
foi formada uma importante área de meretrício que é constantemente citada nas fontes, mas não
como zona. Nós é que a estamos definindo assim, pois nela havia várias boates. Lá estavam
localizados o Juçarão, Lago dos Sonhos e Merengue, locais conhecidos como inferninhos,
segundo a definição popular. Em entrevista, a comerciante S. de Albuquerque cita diversos
estabelecimentos noturnos e classifica alguns como inferninhos: “tinha esse tal de Merengue.
Era só dança e bagunça. Pense na bagunça, era bêbado e brigava, polícia pegava, levava”. 309
Ela era proprietária de uma boate – ou casa de mulheres como ela a define –, e afirma que o
Merengue era apenas um dançarás, pois não possuía quartos para meretrizes. Mas, ela não
classifica a sua boate como inferninho, inclusive a diferencia deles.310.
A Doca da Fortaleza ficava na margem esquerda do Igarapé da Fortaleza no bairro
central311, era um local importante para cidade de Macapá. Tanto que historiadores como Paulo
Costa, Adalberto Paz e Sidney Lobato se dedicaram a escrever sobre ela 312. Sempre
movimentada, era pela Doca que a cidade era abastecida pelos ribeirinhos e pelos regatões. A
Doca tinha meretrizes, comerciantes, marítimos, estudantes e tantos outros sujeitos como
moradores e frequentadores. Era constituída de palafitas e pontes de madeira para facilitar a
mobilidade dos transeuntes. Adalberto Paz define a doca da Fortaleza da seguinte maneira:
As canoas e regatões deixaram de navegar por ali, mas os sujeitos que antes
frequentavam aquele local não. Os boêmios, os bêbados e as prostitutas continuaram transitando
e ocupando aquele espaço remodelado e urbanizado, seja porque moravam lá em quartos
alugados, seja porque frequentavam boates como a Hollywood e botequins como o Bar
Caboclo. Em agosto de 1970, a seção da DSG publicou uma portaria de 16 de junho, proibindo
a moradia e permanência de meretrizes na avenida Mendonça Júnior, no perímetro entre as ruas
Cândido Mendes e Eliezer Levy:
Portaria n° 126/70-DSG
Aprovo:
Gen. Ivanhoé Gonçalves Martins
Governador
Considerando que embora seja a zona policiada por esta Divisão, as meretrizes
que ali vivem ferem o decoro público proferindo palavras de baixo calão e
exibindo-se com trajes escandalosos;
Considerando que os referidos prostíbulos estão justamente situados no centro
da cidade, em local de acesso às famílias e sobretudo aos estudantes que
descem do populoso bairro do Trem;
RESOLVE:
Essa portaria foi uma tentativa de higienizar socialmente o novo canal e a área central
de Macapá. Havia décadas esse espaço era ocupado pelas meretrizes e com a retificação do
canal o governo passou a exigir que elas se retirassem para não “sujar” a capital urbanizada
com o que era identificado como promiscuidade, falta de higiene e sordidez. O texto informa
que a região mencionada era policiada pela DSG, mas o comportamento e vocabulário
indecorosos dessas mulheres não podiam ser controlados pelas forças policiais. Assim, a
presença delas era considerada incômoda e uma influência negativa para as famílias que
passavam por li.
O documento cita a existência de locais mais afastados do centro da cidade que podem
acomodar as meretrizes com melhor higiene, trecho que consideramos mais importante.
Primeiro porque a falta de decoro, os palavrões e as roupas curtas são constantemente citados
pelos governantes, por jornalistas, pela polícia, pelo judiciário e pela sociedade em geral. Em
segundo lugar, essa portaria revela que a prostituição urbana feminina sempre foi alvo da
vigilância das forças de segurança do TFA e que eliminar a prostituição não era a intenção do
governo ditatorial, mas sim tira-la do centro da cidade. Por último, destacamos que a proibição
da permanência das meretrizes no centro da cidade e seu deslocamento para áreas mais
afastadas e, consequentemente, longe do centro de Macapá, também se explica pelo fato de,
não muito longe do canal, funcionarem órgãos de governo. Logo, não é de se admirar que as
prostitutas fossem uma presença incômoda não só pelo que constava na portaria, mas também
porque sua proximidade não agradava as autoridades governamentais. Contudo, essa
“sugestão” de que as decaídas fossem transferidas para locais mais afastados do centro urbano
não explica o aparecimento de novos locais de meretrício nos bairros periféricos, porque eles
já existiam. Lobato indica que os maiores prostíbulos estavam situados fora dos limites do
centro da cidade de Macapá324, então essa proposta do diretor da DSG pode ser entendida no
sentido de que elas fossem pedir abrigo e trabalho nas pensões e boates periféricas e que
deixassem de viver em cômodos e quartos alugados, especialmente no reformado logradouro
público da cidade.
Em Vitória-ES, ocorreu um movimento similar no mesmo período. As prostitutas,
majoritariamente pobres e negras, foram expulsas do centro de Vitória, “lugar de lazer e
residência das classes médias e altas, compostas, principalmente, por uma população
branca”325. Dessa forma, podemos considerar que a expulsão das prostitutas das áreas centrais
das duas capitais foi não apenas uma higienização de classe, mas também de cor. Para Mirela
Morgante, o decreto de expulsão das prostitutas de Vitória teve como finalidade preservar a
moral e os bons costumes porque as mulheres moradoras do centro poderiam ser confundidas
ou influenciadas pelas prostitutas capixabas326. Já em Joinville-SC, também foi na década de
1960 que as práticas das prostitutas começaram a incomodar o poder público a ponto deste
querer fixa-las em um só local, ao invés de ficarem espalhadas pela cidade, sobretudo no centro
urbano.327
A preocupação das autoridades governamentais brasileiras com a prática da prostituição
nas ruas centrais das cidades não foi exclusiva da Ditadura empresarial-militar. No início do
século XX, no Rio de Janeiro, então capital federal, os delegados de polícia tentavam retirar as
prostitutas das ruas, principalmente as moradoras dos sobrados do centro da cidade. Em 1900,
o delegado Olympio Leite disse que tinha tirado a prostituição de uma região do centro, mas no
ano seguinte outro delegado continuava preocupado com a mesma região. 328O delegado em
questão era Vicente Reis que, ao tentar sanear socialmente a região, cometeu diversas
arbitrariedades contra as prostitutas, como tirá-las à força de casa e, mesmo depois de
recolhidas, prendê-las. Prostitutas procuraram a imprensa para denunciar as ações de Reis.
Apesar de ser a favor do saneamento moral da cidade, tal imprensa criticou o delegado,
admitindo que ele “atropelou a lei”.329 Outra forma de resistir às arbitrariedades policiais foram
os pedidos de habeas corpus feitos por algumas das prostitutas que foram presas sem motivos.
Em 1904, no contexto da revolta da vacina, da remodelação urbana e dos conflitos
sociais daí decorrentes, a tentativa de saneamento moral do centro do Rio de Janeiro continuou.
Mas dessa vez teve êxito. O delegado Ernesto Garcez ameaçou prostitutas de prisão caso não
saíssem da rua Sete de Setembro. Por causa da revolta da vacina, o Rio de Janeiro estava em
estado de sítio, então não era possível questionar qualquer medida por meio de habeas
corpus.330
O deslocamento de prostitutas ocorrido em Macapá durante a Ditadura nos permite
entender porque a Doca da Fortaleza deixa de ser a maior referência de zona de meretrício da
capital amapaense. Outros locais começam a figurar com mais frequência que ela nas fontes.
Então, acreditamos que a eliminação da prostituição na frente da cidade foi efetivada com
relativa eficiência pelo governo ditatorial. Atualmente, o canal da avenida Mendonça Júnior é
um local de intenso comércio varejista e não há sequer menção ou indício de prostituição no
local. O objetivo dessa proibição foi eliminar as meretrizes do centro da cidade, e podemos
considerar que essa finalidade foi alcançada, mas não no ritmo que o governo ditatorial
desejava. Em junho de 1974, temos um indício de que as prostitutas não obedeceram a portaria:
Informação errada
pensão na região revela que a expulsão das meretrizes não foi bem sucedida nesse período. De
fato, no processo do homicídio de uma meretriz é mencionada uma casa de cômodos existente
na avenida Mendonça Júnior que era habitada por prostitutas, inclusive pela vítima.332 Apesar
do temor da polícia, as meretrizes acabaram voltando a frequentar e a morar nas imediações do
Bar Caboclo. Mas, segundo Abraão, no seu bar elas estavam proibidas de entrar. Importante
atentar à pequena fala desse comerciante sobre a associação de seu nome à prostituição e sobre
o perigo desta para as famílias que residiam nesse local. Podemos então concluir que a presença
das prostitutas era incômoda tanto para o poder público quanto para os moradores da área
central de Macapá, mas essas mulheres, por meio de suas experiências, estavam batalhando por
esse espaço que há tanto tempo ocupavam.
Como destacamos anteriormente, nas reformas urbanas das primeiras décadas do século
XX no Rio de Janeiro, os delegados conseguiram retirar as prostitutas de algumas ruas do centro
da cidade, mas:
de determinadas regiões não fazia com que elas deixassem de realizar seu trabalho e nem que
elas definitivamente se deslocassem para lugares mais afastados.
Outros bairros como Buritizal e Pacoval também foram citados nas fontes, mas na
bibliografia utilizada não há registros sobre esses bairros. No período dessa pesquisa, eles eram
os mais afastados da área central. No Pacoval estava localizada a já citada Pensão/Boate da
Suerda. Em um processo criminal, Francisco, brasileiro, paraense, de Breves, solteiro, 34 anos,
comerciante, residente na rua Hildemar Maia, bairro do Miritizal [Buritizal], sabendo ler e
escrever, foi testemunha de um caso de desacato e resistência à prisão. Em seu depoimento, ele
disse que era proprietário da Boite Xadrezão, localizada na esquina da rua Paraná com a avenida
Mendonça Furtado, no bairro Santa Rita, explorando o comércio de bar e botequim com danças,
durante a noite e:
Podemos inferir que tanto a Doca da Fortaleza, quanto a rua Claudomiro de Moares,
consideradas suas distâncias cronológicas, assumem características das territorialidades da
prostituição.
Para além de Macapá, é necessário citar algumas outras localidades do TFA que
apareceram nas fontes. Como a área portuária da Vila de Santana, conhecida pela população e
pela polícia como zona de meretrício. Segundo os autos de investigação social, o menor
Pretinho havia furtado três mil cruzeiros de J.G. da Silva e fugira com outro homem, em uma
bicicleta:
336 AFCM. Autos de Investigação Social Furto Qualificado de 06 de maio de 1980, p. 04.
337 AFCM. Processo nº 2.117 de 08 de setembro de 1969.
338 AFCM. Processo nº 4.832 de 16 de outubro de 1978, p. 05.
339 Ibidem, p. 08.
121
O menor era um notável frequentador das festas populares, apesar da pouca idade.
Praticava furtos para sustentar suas noites com bebidas na companhia de meretrizes. Para
participar do carnaval, ele saiu de sua resistência, situada na estrada Macapá via Fazendinha341,
para furtar casas na Vila Amazonas. Ao anoitecer, foi de táxi para Macapá e se juntou a
Manduca em um clube suburbano para farrear. Juntos, foram à boate do Marisco para beber,
depois rumaram para a boate Hollywood, onde L. finalmente pôs-se na companhia de uma
meretriz, com quem gastou o que pôde. Ele e a meretriz saíram da boate Hollywood, na Doca
da Fortaleza, tomando a direção do bairro Santa Rita, certamente para chegar a uma casa de
habitação coletiva ou à pensão onde residia a prostituta. Por fim, após tantos divertimentos,
terminou a noite sozinho, na festa da Hollywood. Felizmente, podemos identificar o trajeto
340AFCM. Autos de investigação social de menor infrator, art. 155 de 02 de abril de 1981, p. 07-08.
341Atualmente, essa estrada é denominada como Rodovia Josmar Chaves Pinto.
122
desse personagem, mas infelizmente pouco sabemos sobre a prostituta que lhe fizera
companhia.
As tentativas do governo territorial de sanear socialmente Macapá ensejaram a
constituição de novas zonas de meretrício em áreas afastadas do centro da capital. Boates,
pensões, dançarás e botequins se espalharam em novos pontos de encontro e de residência de
meretrizes. Porém, o espaço urbano outrora ocupado por elas não foi dado de mão beijada às
autoridades governamentais. Já que não detinham poder político, financeiro e social, as
prostitutas resistiram e lutaram pelo seu espaço na urbe macapaense com a única possibilidade
que tinham: ocupando as vias públicas com seus corpos.
123
As vidas das meretrizes tinham muitas facetas. A partir das fontes identificamos redes
de convivência construídas pelo trabalho, pelo amor e pelas amizades. Mas parte dessas
relações se desdobraram em conflitos. Nesta seção, elas figuram como irmãs, amigas, vizinhas,
amantes, esposas, mães, estrangeiras, brasileiras e amapaenses, todas compartilhando a
experiência de ser prostituta e de ser mulher em um contexto político muito específico, a
Ditadura empresarial-militar. As histórias aqui abordadas evidenciam as vulnerabilidades, as
estratégias de sobrevivência e as tentativas dessas mulheres serem vistas como humanas, ainda
que marginalizadas ou socialmente excluídas.
Primeiro, temos como finalidade abordar os diversos tipos de relacionamento das
prostitutas do Amapá e identificar aspectos como cumplicidade, rivalidade, ciúmes e
solidariedade. Na sequência, a partir de um processo criminal de homicídio, discutimos as
fragilidades de uma meretriz diante de um amor não correspondido e as consequências da
misoginia de seu amado. Para finalizar, nos debruçamos sobre as memórias da proprietária de
uma boate de Macapá, que revelam sua trajetória desde a chegada à capital do TFA, até o fim
do funcionamento da boate.
seu colega seria atingido por trás por um dos soldados e interviu. Nesse momento, foi
esfaqueado pela meretriz Socorro, amante deste soldado.342
Socorro, brasileira, amapaense, meretriz, 15 anos de idade, solteira, sabendo ler e
escrever, declarou que foi seduzida com 13 anos e desvirginada, mas as devidas medidas não
foram tomadas pelas autoridades competentes, e “esse fato concorreu para que a depoente
trilhasse o caminho da prostituição, passando a frequentar os ambientes noturnos e de caráter
suspeito, onde conheceu moças na mesma condição social”.343 A pensão Lago dos Sonhos foi
um desses locais. No dia do crime, foi a esse lugar com outras colegas quando houve o
desentendimento entre o militar fardado J.N.S., seu ex-amante, e Capitão. Como o militar ficou
em desvantagem, ela golpeou Capitão na região dos mamilos, na garganta e nas costas. A menor
se evadiu do local, jogou a arma em um matagal e se escondeu na casa de sua mãe, na esperança
de que o episódio caísse em esquecimento. No entanto, dias depois foi localizada e intimada a
comparecer na delegacia com sua responsável. Já era a sexta vez que ela se envolvia em crimes
dessa natureza. Inclusive, já estava em tramitação “outra investigação social proveniente de
haver ferido uma colega de infortúnio”.344 A mãe da menor, O.A.M., brasileira, solteira, de 39
anos de idade, doméstica, não sabendo ler e nem escrever, disse que sua filha sempre tinha sido
muito rebelde e que após o fato denunciado mudara de comportamento, se tornando obediente
e passando a viver amasiada com outro rapaz.345
O fato de Socorro ter sido desvirginada sem que esse fato sofresse uma reparação, teria
contribuído para que ela se tornasse prostituta. É de se duvidar que Socorro tenha declarado
frequentar lugares de “caráter suspeito”, por isso é necessário observar que as fontes judiciais
e os depoimentos presentes nelas, são escritos por um funcionário do Estado, nesse caso, pelo
escrivão. Ele escreve a partir da sua visão de mundo e suas construções sociais enquanto sujeito
masculino, mas também orientado pelos preceitos morais e sociais do TFA. O começo do
depoimento nos leva a pensar sobre como haviam locais que eram convenientes a moças de
família, mas outros não. No caso da acusada, os locais que ela passou a frequentar não eram
adequados às mulheres honradas, mas somente para as prostitutas. Na boate Lago dos Sonhos
ou em qualquer outra, Socorro conheceu seu amante, um soldado do Exército, e quando viu que
estava em perigo, não hesitou em defendê-lo, mesmo que isso custasse sua liberdade. O
342 AFCM. Autos de Investigação Social contra a menor M. do S. dos A. Moraes por prática de ato tido como
infração penal de 21 de junho de 1976, p. 04.
343 Ibidem, p. 06.
344 Ibidem, p. 06.
345 Ibidem, p. 08.
125
depoimento de sua mãe nos dá informações sobre o que aconteceu com ela após a infração
penal. Sobre ter mudado o comportamento, cabe indagar o que causou tal mudança? Isso não
saberemos. A menor já estivera envolvida em seis casos semelhantes a esse e estava sendo
investigada por ter ferido outra meretriz. Contudo, ela encontrou outro amásio. Teria sido esse
o motivo da mudança de comportamento de Socorro?
Em ofício destinado ao juiz José Clemenceuau Pedrosa Maia, o delegado José Maria
Franco alegou que a menor era de alta periculosidade e fora “infelicitada aos treze anos de
idade, e sem o apoio paternal, enveredou pelos caminhos da prostituição”346. Para o juiz José
Maia, a ausência de uma figura paterna contribuira para que Socorro se encaminhasse ao
meretrício. Nesse período, como citamos na primeira seção, a família ideal era composta por
pai e mãe. Nessa família, a mãe era responsável pelos cuidados do lar e dos filhos, enquanto o
pai era o provedor da família. Logo, na ausência do pai, a mãe assumia todas essas
responsabilidades. Assim, a manutenção da família se tornava deficiente e os filhos
enveredavam por caminhos “suspeitos”.
Ao pesquisar sobre o cotidiano da República do Mangue, famosa zona de meretrício no
Rio de Janeiro, nas décadas de 1950 e 1970, Juçara Leite dedicou algumas páginas para discutir
os crimes de sedução e seus desdobramentos. Ela identificou que algumas mulheres defloradas
viam a prostituição como uma punição. Vale destacar que nos casos de sedução, como vimos
na primeira seção, poderia haver o consentidos ou não, mas na maioria das vezes haiva. Para
Leite, “a moral cristã sempre condenara o prazer sexual, de modo que a mulher seduzida e
abandonada pelo seu sedutor, no fundo, desejava ser punida porque cedera ao desejo”.347 Assim,
a culpa cristã influenciava jovens seduzidas a se “torturar” pelos seus pecados na prostituição e
algumas das mulheres do Rio de Janeiro mudavam até de cidade para não lidar com a culpa e a
vergonha do defloramento, enquanto outras eram expulsas de casa pela família. Mas, o
entendimento geral era de que uma vez informado às autoridades policiais e judiciais, esse
“pecado” poderia ser reparado por meio do casamento.
Em um inquérito policial para investigar um suposto crime de lenocínio, o funcionário
municipal Luiz, brasileiro, paraense, 42 anos de idade, casado, sabendo ler e escrever, acusou
Conceição, brasileira, paraense, 30 anos de idade, doméstica, solteira, instrução primária,
residente na avenida General Gurjão, de explorar a prostituição de terceiros. Ele residia em
frente à residência dela, no bairro da Favela. Luiz declara “que embora [Conceição] viva em
concubinato e [com] uma prole numerosa, transforma aquela casa em antro de prostituição,
numa verdadeira orgia afrontando as famílias ali residentes”. Ele afirma que esses fatos ocorrem
em plena luz do dia ou nas primeiras horas da noite, quando ele e seus familiares assistem “as
cenas mais degradantes” e “ali aparecem diversos casais para aventuras amorosas e satisfação
de seus apetites libidinosos”.348 Apesar da prática da prostituição não ser crime no Brasil,
lenocínio é. Esse crime consiste no favorecimento da prostituição de outras pessoas. Uma
mulher se prostituir não é crime, mas ela ser prostituída por outra pessoa sim. Era essa a
denúncia contra Conceição feita por Luiz, que estava muito incomodado com as “cenas
degradantes” protagonizadas pelos frequentadores da referida residência.
Júlio, brasileiro, natural do Estado de Guanabara, casado, funcionário público federal,
59 anos de idade, sabendo ler e escrever, residente no bairro do Trem, foi citado como um dos
frequentadores da casa de Conceição. Disse que a frequentou em 1966: a primeira vez, levado
por Maria, uma jovem funcionária pública federal; a segunda teve como motivo a venda de
galinhas para a dona da casa; e a terceira foi para passar aí uma festa de aniversário a convite
de Maria:
Que, durante as duas vezes que ocupou uma dependência reservada daquela
casa, não chegou o depoente a custear nenhuma despesa monetária, pois se
tratava de um ambiente sigiloso e previamente preparada para encontros
amorosos. Que, o depoente, já no dia vinte e três de fevereiro corrente, o
declarante dirigiu-se aquela residência sem ter sido acompanhado por
qualquer representante do sexo oposto, apenas interessando por desejar alugar
um quarto daquela casa, sem contudo ter sido atendido por não existir para
esse fim.349
Com o depoimento de Júlio, o inquérito toma outras formas. Ele declarou que
frequentou a casa de Conceição com Maria, para encontros amorosos, mas não fez pagamento
para isso. Maria poderia ser uma amiga próxima de Conceição ou era habituada a usar os quartos
da residência desta para encontros sexuais. Segundo a entrevistada Maria Albuquerque, Macapá
não tinha motéis nesse período:
Maria: Macapá era um lugar que não permitia motel, não sei como hoje tá
cheio de motel.
Amanda Silva: Não tinha motel, não permitia?
Maria: Não permitia.
Amanda Silva: Mas quem não permitia? Era o governo?
348 AFCM. Autos de Inquérito Policial instaurado para apurar crime previsto no art. 229 do Código Penal
Brasileiro de 29 de fevereiro de 1968, p. 2.
349 Ibidem, p. 5.
127
Maria: Era a própria polícia que formou uma lei que lá não podia, não tinha
motel. Existia essas boatezinhas assim, mas motel não.
Amanda Silva: As boates tinham os quartos?
Maria.: É.
Amanda Silva: Mas motel não tinha?
Maria: Não tinha permissão, eles falavam que a área… Não sei, não tinha
permissão pra motel.350
350 Entrevista com Maria Albuquerque, realizada por Amanda Cristina Souza da Silva, em 10 de dezembro de
2021.
351 Para saber sobre a relação dos cabarés com os motéis, conferir: PEREIRA FILHO, Raimundo Alves.
Lupanares e puteiros: os últimos suspiros do rendez-vous na sociedade manauara (1959/1969). Dissertação de
Mestrado (Programa de Pós-Graduação em História), Universidade Federal do Amazonas, 2014.
352 AFCM. Autos de Inquérito Policial instaurado para apurar crime previsto no art. 229 do Código Penal
Brasileiro de 29 de fevereiro de 1968, p. 7.
128
prostituição, vivendo honestamente com o homem acima referido”. Residia havia mais de seis
anos nesse endereço, onde recebia visitas de amigos e de pessoas que tratavam de negócios com
seu amásio:
Ela completou dizendo que nunca prostituiu nenhuma mulher que foi lhe visitar, assim
como nunca obteve lucro ou se sustentou pela prostituição de outra pessoa e acreditava que o
objetivo de seu vizinho era destruir a felicidade de sua família, pois era inimigo de seu
marido.354 Conceição largou o meretrício e deixou de frequentar cassinos e dançarás para viver
honestamente com seu amásio, o que nos leva a pensar que para os ideais da período, uma
mulher que frequentava esses ambientes era solteira, desonesta ou os dois. Ela negara haver
favorecido encontros amorosos na sua casa, mas relatou ter cedido cômodos para esse fim no
passado, sem, contudo, cobrar qualquer quantia pelo uso deles.
Raimundo Pereira Filho realizou uma pesquisa sobre os rendez-vous em Manaus,
enfocando a transição do uso desses locais para os motéis. Ele explica que, no início da década
de 1950, as pensões eram os locais de prostituição em Manaus, assim como em Macapá, as
pensões eram resididas por meretrizes e funcionavam como bordel. Nessa mesma década, foram
surgindo os rendez-vous “onde os casais procuravam unicamente para praticarem sexo e as
prostitutas, salvo exceção, não moravam onde trabalhavam”.355 Resumidamente, os rendez-
vous eram cômodos alugados para relações sexuais e não eram habitados por meretrizes. Nos
depoimentos de Conceição e Júlio encontramos indícios de que a casa dela havia sido (ou ainda
era) um rendez-vous.
O delegado Oscar Ferreira Lima considerou que o crime não podia ser comprovado e
não responsabilizou Conceição por lenocínio, porque entendeu que o denunciante queria
prejudicar a ela e a seu amásio, por ser inimigo de José.356 Em acareação ocorrida no mês de
julho, Luiz disse que estava em estado de ânimo alterado quando fizera a denúncia e não se
dava bem com a família de Conceição, mas que então eram amigos. Ao final, declarou que
desmentia seu depoimento anterior.357 O palpite de Conceição estava correto, Luiz queria se
vingar de José, seu desafeto. Para isso, procurara acusar a amásia dele de lenocínio. Certamente
Luiz conhecia o passado de Conceição e achou que sua denúncia levaria aos efeitos pretendidos
por ele. O surpreendente é que os envolvidos se tornarem amigos ao longo da investigação.
Luiz atribuiu a culpa de sua falsa denúncia a seu “estado de ânimo alterado”, não informando
se isso se deveu a embriaguez ou a forte emoção.
A historiadora Ivonete Pereira explicou que a relação de vizinhança não pode ser vista
apenas como sinônimo de solidariedade, pois “apresentava-se como vigilante, delatora e
suscitadora de repressão sobre aquelas pessoas que estavam fora de seus círculos de
amizade”.358 Ela observou que, em Florianópolis de 1900 a 1940, a repressão sofrida pelas
prostitutas não vinha apenas das autoridades, pois a comunidade da qual elas faziam parte
também tinha contribuição nisso. Ela entende que esse controle não ocorria apenas em
Florianópolis, mas ocorria igualmente no Rio de Janeiro, em Salvador, São Paulo e, podemos
dizer, em Macapá. Luiz, por não ter vínculo de amizade com a família de Conceição, tentou
exercer esse controle e repressão com a ajuda das autoridades públicas, ele só não contava com
a rede de convivência e solidariedade que Conceição e seu amásio José tinham construído com
o passar dos anos.
Não era incomum as meretrizes brigarem entre si. Em julho de 1976, em frente ao
restaurante A Peixaria, a meretriz Telma agrediu suas colegas de profissão, as irmãs Valda e
Maria Lúcia com um canivete.
Valda, residente na boate Juçarão, paraense, 21 anos, meretriz, solteira, sabendo ler e
escrever, disse que desde 1974 residia e fazia ponto na boate Juçarão. No dia do ocorrido,
quando a festa na boate acabara, por volta das três horas da madrugada, ela foi para A Peixaria,
próximo à Usina Costa e Silva, na companhia das amigas Francisca, Conceição e outras que
não recorda o nome, para dar “prosseguimento em sua noitada alegre”.359 Ela disse que
ingeriram bebida alcoólica, mas estavam sãs. Minutos depois de se acomodarem na Peixaria, a
sua irmã Maria Lúcia chegou e se juntou a elas na mesa. Maria Lúcia levantou-se e foi para a
frente do estabelecimento. Minutos depois, Valda foi informada de que sua irmã estava
envolvida em uma confusão. Ao chegar na frente do local, viu que Maria Lúcia estava
discutindo com duas mulheres desconhecidas e com Telma:
conversando com Maria Lúcia, que até então desconhecia, e se dirigiu até ela. Maria Lúcia
dissera para Telma: “Tu já vens para cá querer criar bronca, vai te embora daqui que ninguém
te chamou”.365 Rute entrou em um táxi e foi embora, enquanto Telma e Maria Lúcia discutiam.
Telma declarou que foi Maria Lúcia quem começou a agredi-la e que também foi agredida por
Valda. Então, ela brigou com as duas irmãs ao mesmo tempo. Ninguém se intrometeu na briga
e elas se separaram sozinhas. Telma lembrou que dentro de sua roupa íntima, trazia uma bolsa
com um canivete, pegou a arma e chamou suas adversárias para continuar a briga. As duas
foram em sua direção e tentaram lhe espancar, ela já empunhava o canivete e acertou suas
oponentes. Ela disse que não tinha qualquer intimidade com as vítimas e somente após o fato
soube que eram irmãs e frequentadoras da boate Juçarão. Disse que nunca foi processada, mas
já havia sido detida por motivo de confusão nas boates que frequentava.366 Telma certamente
era uma das tantas prostitutas do TFA detidas por embriaguez e desordem, mas liberada após
passar algumas horas na delegacia.
Em diversas partes do processo, tanto vítimas quanto acusadas são caracterizadas como
domésticas. Claudielle Silva afirma que algumas prostitutas envolvidas em inquéritos e
processos judiciais diziam serem domésticas, porque era “uma atividade com menor estigma
que a prostituição”367. Essa era uma estratégia utilizada por elas para serem ouvidas pelas
autoridades de segurança, bem como para se protegerem de eventuais abusos do Estado. Para
Cristiana Schettini, ao passo que as autoridades republicanas transformavam meretrizes em
mulheres públicas e permitiam que elas fossem tratadas fora da lei por agentes do Estado como
policiais e delegados, as redes de apoio e solidariedade tecidas por elas com amigos e
conhecidos propiciavam que buscassem por respeito e dignidade nas delegacias, nas ruas e nos
tribunais.368 Ocultar sua verdadeira profissão ou não revelar todas elas, era uma estratégia de
proteção dessas mulheres habituadas a sofrer abusos e repressões fora da lei por agentes de
segurança do Estado.
Vemos aqui um caso de uma rixa entre mulheres e como isso antecede o desafio369,
posto que as envolvidas já tinham uma faísca de desentendimento. No depoimento de Maria
Lúcia, é dito que Rute e outra prostituta ameaçavam as mulheres do Juçarão. Havia uma
rivalidade entre as meretrizes das boates? Essa rivalidade era por clientes, pelo domínio da
região ou por outras questões de convivência? Maria Lúcia, ao tirar satisfação com as litigantes,
iniciou o desafio que consiste no contato físico, nesse caso, na agressão. Após o início da
discussão, Telma se envolveu e afirmou que para lidar com puta, só com “porrada”. Rute e a
outra meretriz foram embora, Telma ficou e brigou com as irmãs Valda e Maria Lúcia, até o
momento em que cortou as duas com um canivete. Pereira Filho afirma que o uso de giletes era
comum em brigas envolvendo prostitutas,370 mas percebemos que elas andavam armadas com
objetos cortantes para se defender em situações de perigo, seja contra suas colegas de profissão
seja em face de homens agressivos e inconvenientes.
Leite assegura que “as prostitutas desenvolvem seus próprios códigos e relações, unidas
pela segregação”371. Como sofriam com a marginalização social e tinham a mesma experiência
de trabalho, elas construíram suas próprias regras para lidar com o seu mundo, separado do
mundo moralmente aceito. Elas precisavam definir uma hierarquia entre si para garantir o
respeito mútuo. Essa hierarquia era estabelecida no interior dos bordéis que contavam com uma
prostituta gerente, que detinha certo poder sobre as outras meretrizes. Mas, a autora destaca que
a violência era decorrente de conflitos de convivência no bordel, por objetos e disputas pelos
clientes.
Valda, Maria Lúcia e Maria da Conceição residiam no Juçarão. A primeira era moradora
de lá havia dois anos e a última havia apenas cinco meses. Elas tinham um laço de amizade que
pode ter se construído pela experiência da profissão e pela moradia, mas Valda e Maria Lúcia
tinham laços de sangue. Eram irmãs, haviam sido criadas juntas e agora compartilhavam as
experiências da profissão. Maria da Conceição disse que saia frequentemente com suas colegas
e nunca haviam criado confusão, dando a entender que as meretrizes rivais fossem
“encrenqueiras” ou “useiras e veseiras”, como Maria Lúcia as definiu.
Outra observação a ser feita é o horário de funcionamento do restaurante A Peixaria,
pois a festa na boate Xadrezão terminou às quatro horas da madrugada e o restaurante
continuava funcionando. Como vimos na seção anterior, no ano de 1978, o proprietário do
Xadrezão alegou que seu estabelecimento funcionava até as duas horas da madrugada. De
acordo com o que foi relatado por Telma, um ano antes do depoimento do dono do Xadrezão,
ela havia saído de uma festa lá ocorrida às quatro horas. Ele mentiu em seu depoimento sobre
o horário de funcionamento para se defender de qualquer multa que pudesse pagar ou nesse
período de um ano as normas de funcionamento dos locais de diversão no TFA mudaram. Mas
essa regra de horário limite de funcionamento poderia aplicar-se somente a boates, pensões e
dançarás e não a restaurantes, como a Peixaria. Também é possível que a fiscalização fizesse
vista grossa e deixasse a festa rolar até altas horas.
Nesses depoimentos foram citados três locais de diversão: Juçarão, Xadrezão e A
Peixaria. Localizavam-se no bairro Santa Rita e não eram distantes uns dos outros. Próximos a
eles havia outros ambientes de diversão noturna. Meretrizes, seus clientes e outros sujeitos
boêmios circulavam por vários desses locais durante a noite, procurando a continuação de suas
diversões. As prostitutas eram um caso à parte porque elas não tinham só a intenção de buscar
diversão, mas também procurar trabalho. Raquel Venera ao estudar a prostituição na cidade
portuária de Itajaí, em Santa Catarina, nas décadas de 1970 e 1970, por meio de processos
crimes, observou que o lazer de muitos, era trabalho para as prostitutas.372 Para se divertir, os
homens pagavam por um serviço sexual e as meretrizes se sustentavam com esses pagamentos.
Para além disso, Ivonete Pereira identificou nos processos judiciais que as meretrizes não
esperavam pelos clientes em um ponto na rua ou dentro de suas casas, elas saíam ao encontro
deles e procuravam lugares propícios à sua presença.373 As meretrizes do TFA faziam
exatamente isso, circulavam pelas ruas em busca de possíveis fregueses.
Na vila de Porto Grande, no mês de agosto de 1976, N.B.M., 3º Sargento PM do 2º
Pelotão, trabalhando no Quartel Plácido de Castro, amapaense, casado, 28 anos, residente em
Macapá, cor parda clara, sabendo ler e escrever, agrediu a meretriz H.M.V., brasileira, 18 anos
de idade, natural e residente em Porto Grande, sabendo ler e escrever. H.M.V. disse que estava
dormindo acompanhada em seu quarto. O acusado bateu em sua janela, ela acordou e perguntou
o que ele queria. O sargento disse que queria conversar, mas ela respondeu dizendo que não
tinha o que conversar com ele. Quando tentou fechar a janela, recebeu um soco. O acusado
ainda se armou com um pau e passou a destratar a meretriz. Foi contido por outras pessoas e
por um soldado chamado Antônio, que também recebeu xingamentos do sargento.374
O sargento disse que não estava embriagado no dia do ocorrido e negou todas as
acusações. No seu Boletim de Vida Pregressa afirmou que não tinha vícios de bebida e não
costumava embriagar-se375, mas as testemunhas ouvidas afirmaram o contrário. Inclusive, em
372 VENERA, Raquel Alvarenga Sena. A Cidade das Camélias e as Camélias na cidade. In: FÁVERI, Marlene
de; SILVA, Janine Gomes da; PEDRO, Joana Maria Pedro (orgs.). Op. Cit., p. 129.
373 PEREIRA, Ivonete. Op. Cit., p. 119.
374 AFCM. Processo crime nº 4.189 de 19 de dezembro de 1977, p. 5.
375 Ibidem, p. 11.
134
seu relatório, o 2º Tenente PM e delegado Jorge Teixeira Moreira afirmou: “Nas investigações
por mim efetuadas, apurei que N. passara o dia bebendo e quando do ocorrido encontrava-se
bastante alcoolizado, tendo sido carregado para sua residência por praças do 2º Pel PM, onde o
mesmo era destacado, como escrivão, por ser 3º Sgt PM”.376
A relação entre policiais e meretrizes não estava restrita à fiscalização e prisões, pois os
relacionamentos amorosos e de clientela não eram incomuns entre eles. N. usou seus privilégios
de homem e de policial militar para importunar e agredir a meretriz H., ele também usou a sua
patente para destratar o soldado Antônio. Carolina Mendonça pesquisou aspectos da
prostituição feminina em Salvador, no estado da Bahia, nas primeiras décadas da República e
apontou que as meretrizes conviviam diariamente com “homens de farda” e havia com eles uma
interação social marcada por conflitos, mas não existia um padrão nessas relações:
Se, teoricamente, a farda deveria inspirar temor e respeito por parte dessas
mulheres em relação aos ocupantes de postos militares, percebemos que o
contato formou também uma rede de ajuda mútua e camaradagem, em que
mulheres utilizavam a relação com homens fardados em busca de proteção
contra a ação policial, e a vantagem financeira alcançada pelas profissionais
do sexo as permitia retribuir alguns favores.377
A relação descrita por nós, não tem relação com proteção de policiais a prostitutas.
Contudo, os apontamentos de Carolina Mendonça nos levam a refletir que as interações desses
sujeitos com as meretrizes não estavam restritas a repressões, prisões e violência, mas poderiam
ter caráter de ajuda mútua também.
Em Pedra Branca, Naldo, amapaense, solteiro, comerciário, de 17 anos de idade,
residente em Pedra Branca, sabendo ler e escrever, foi atingido no pescoço por um tiro de
revólver efetuado por S.M.S, maranhense, solteiro, de 21 anos de idade, mecânico da
Construtora Mendes Júnior S/A, através da porta do quarto onde estava acompanhado de uma
meretriz. A vítima tentava entrar no quarto à força.
Maria Creuza, amapaense, solteira, meretriz, com 26 anos de idade, residente na avenida
Mendonça Júnior, sabendo ler e escrever, relatou que costuma viajar com outras meretrizes para
a localidade de Pedra Branca na Estrada de Ferro do Amapá. Lá, passavam alguns dias morando
em quartos disponíveis para elas. Ela disse que Naldo estava à procura da meretriz Catarina
quando bateu na porta de seu quarto. Maria Creuza indicou a porta do quarto de sua colega e
ouviu ele dizer: “essa faca que tenho aqui é para furar a Catarina e seu acompanhante”. Ele
jogou garrafas e tentou arrombar a porta do quarto de Catarina, outros homens tentaram acalmá-
lo, mas sem sucesso. Naldo disse que estava ali para morrer ou para matar.378
Lúcia, amapaense, casada, meretriz, com 23 anos de idade, residente na avenida Padre
Júlio, sabendo ler e escrever. Respondeu que viajava para Pedra Branca de vez em quando e aí
ficava em quartos que sempre eram ocupados por meretrizes. Ela estava no quarto acompanhada
de S., deitada em uma rede, enquanto a meretriz Catarina estava em outra rede, deitada com um
rapaz chamado Vicente, cearense, solteiro, com 22 anos, residente em Pedra Branca, Estrada
de Ferro do Amapá, sabendo apenas assinar o nome, quando Naldo começou a bater na porta
para entrar, mas isso lhe foi negado até que conseguiu fazê-lo após uma saída da depoente. Ele
estava embriagado e armado com uma faca, mas os dois homens que estavam no quarto
conseguiram contornar a situação. No meio de toda a confusão, uma inquilina chamada Ana foi
chamar o Comissário Jacy, que levou Naldo, mas ele não demorou a voltar. Iniciou outro
arrombamento e ameaçou matar os ocupantes do quarto. A partir disso, o acusado S. atirou duas
vezes contra a porta e eles ouviram Naldo falar: “Catarina, estou morrendo por teu amor”. Ele
foi atingido no pescoço por um dos projéteis e o acusado fugiu. A depoente disse que Catarina
até desmaiou enquanto abraçava Naldo caído no chão.379
Catarina, amapaense, solteira, meretriz, de 18 anos de idade, residente em Macapá,
sabendo ler e escrever. Também viaja para Pedra Branca constantemente. Ela disse que desde
cedo Naldo estava embriagado, perturbando a ordem na Pensão da Zeca e no bar do Baltazar, e
que depois foi promover desordem nos quartos onde moram ela e outras meretrizes. Catarina
falou que Naldo primeiro chamava por ela e que depois começou a chamar por Lúcia, mas as
duas falaram que estavam acompanhadas. Mesmo assim, ele não desistiu.380 De outro lado,
Naldo disse que não tinha nenhuma relação de amizade com Catarina.381
Em 1986, um oficial de Justiça tentou intimar todos os envolvidos por ordem do juiz
Dôglas Evangelista Ramos. Ele informou que encontrou Maria Creuza e conseguiu intimá-la.
Porém, não encontrou Catarina e Lúcia, mas foi informado que as duas estavam morando em
Caiena, na Guiana Francesa.382
Dessa forma, a autora acrescenta que como o trabalhador pobre não tinha poder e
autoridade na esfera pública, ele exercia esse poder na esfera privada. E a sua “agressividade
natural” era manifestada sobre a mulher. O homem acreditava que o corpo de uma mulher era
sua propriedade e, quando ela não correspondia positivamente a suas vontades, ele reagia com
agressividade. Assim, por não conseguir exercer sobre a sua companheira o poder que o sistema
dominante lhe prometia, o homem pobre a violentava, num extravasamento de sua frustração.
Naldo até teve a intenção de violentar Catarina, Lúcia e os homens que lhe acompanhavam,
mas foi atingido por um tiro antes que conseguisse realizar seu intento.
Segundo Margareth Rago, as prostitutas do baixo meretrício enfrentavam fregueses
bêbados, violentos e desequilibrados que não podiam pagar o preço dos bordéis mais caros.385
Em Pedra Branca havia bordéis mais caros ou os prostíbulos oferecidos eram apenas as pensões
em que as meninas ficavam hospedadas? Naldo e o mecânico S. certamente não tinham outras
opções no distrito, assim como os limites do que seria prostituição de luxo e baixo meretrício
em Macapá não eram bem definidos, e talvez nem existissem. Catarina e Lúcia rejeitaram
Naldo, o que demonstra que elas tinham o poder de escolher com quem comercializar relações
sexuais e este também pode ser um indicativo de que elas não tinham vários clientes em uma
noite ou poderiam cobrar um valor maior para pernoitar com um deles.
No dia 1º de novembro de 1970, Geraldo, brasileiro, amapaense, com 21 anos de idade,
solteiro, braçal, alfabetizado, residente em Macapá, cor morena, causou ferimentos no seu
cunhado Veríssimo, brasileiro, amapaense, casado, 33 anos de idade, funcionário público,
sabendo assinar o nome, residente no Quartel da Guarda Territorial na Fortaleza de São José de
Macapá, na casa da meretriz Carmosina, próximo ao presídio São Pedro.
Veríssimo, disse que ao chegar na casa de Carmosina, ela já tinha preparado cachaça e
refrigerante para seus convidados. Minutos depois chegou a sua esposa Josefina, de quem
estava separado havia sete anos, mas esta não lhe deu atenção. A meretriz Maroca também
chegou e se juntou a eles. Momentos depois, Maroca, Geraldo e Carmosina saíram e ele ficou
sozinho com Josefina. Próximo das 14h, Geraldo retornou e gritou: “tu estás dando na minha
irmã”, em seguida agrediu Veríssimo. Os dois iniciaram luta corporal e Geraldo atingiu o rosto
do depoente com um soco que o fez cair desacordado.386
Geraldo, por sua vez, disse que era irmão de Josefina, casada com Veríssimo, mas
separada dele havia muito tempo. No dia do ocorrido, estava com seu cunhado bebendo em um
botequim e este mandou um recado para sua irmã encontra-lo na casa de Carmosina. Eles foram
para a casa dela e Josefina já estava lá. Todos estes citados estavam embriagados, mas
brincavam sem qualquer anormalidade. Maroca chegou e passado um tempo, pediu para que
alguém lhe deixasse em casa. Ele a acompanhou e passou uma hora nessa viagem. Quando
voltou, viu sua irmã chorando e perguntou o que tinha acontecido. Ela respondeu que fora
espancada pelo seu marido. Ele entrou na casa, onde passou a tirar satisfações com seu cunhado,
e os dois discutiram até chegar à agressão física. Geraldo declarou se dar bem com seu cunhado,
mas sabia que essa não era a primeira vez que ele agredira sua irmã e nunca fizera nada antes
porque ainda era menor de idade.387
Cristina Wolff explica que na região do Alto Juruá, no Acre, “certas situações deviam
levar necessariamente a atos violentos, sob pena de desmoralização perante a comunidade,
especialmente situações que envolviam adultério, ou ofensas às mulheres da família”. 388 Ela
também usa o conceito de honra, definido por Julian Pitt-Rivers ao estudar a Andaluzia: “a
honra é o valor de uma pessoa para si mesma, mas também para a sociedade. É sua opinião
sobre seu próprio valor, sua reivindicação de orgulho, mas também é a aceitação desta
reivindicação, sua excelência reconhecida pela sociedade, seu direito ao orgulho”.389 Nas
sociedades mediterrânicas e nas latino-americanas, a honra de um homem está ligada à pureza
sexual das mulheres de sua família.390 Então a figura masculina zelava pela honra das mulheres
de sua família e reivindicava o respeito por ela por meio da violência se fosse necessário.
Geraldo precisava defender a sua irmã, pois “já era homem” para isso. Quando mais novo não
podia medir forças com Veríssimo.
Josefina de Jesus dos Santos, brasileira, amapaense, de 26 anos de idade, meretriz,
casada, sabendo assinar o nome, residente à Praça São Pedro, entre as ruas Jovino Dinoá e
Leopoldo Machado, declarou que pela manhã do dia 1º de novembro seu irmão foi lhe visitar e
seguiu para um botequim nas proximidades. Depois de um tempo, sua colega Carmosina
chegou com um recado de seu marido:
dizendo que ele viria em sua casa, tendo dito que alí seria impossível, pois
abandonados como estavam, já tinha compromisso com outro homem, mas
sabendo que Veríssimo quando está bebendo, não se importa com o que lhe
pode acontecer; que, em seguida dissera a Carmosina que iria para sua casa e
com isso fazer com que Veríssimo não fosse a sua e então não haver
confusão.391
Ela disse que todos estavam embriagados, mas tudo seguia bem. Quando os demais se
retiraram, ela e Veríssimo foram para um quarto da casa. Ele queria manter relações sexuais
com ela, mas Josefina se negou a isso e ele começou a bater nela, na frente da filha deles. Isso
demorou pouco tempo, porque ela conseguiu se desvencilhar dele. Quando estava saindo da
casa, encontrou com seu irmão e como estava chorando, ele perguntou o que havia acontecido
e ela relatara o ocorrido. Depois da confusão, Josefina e seu filho mais velho colocaram
Veríssimo em um carro e o levaram para a casa dela. O carro da polícia chegou na sua residência
e o levou para o Pronto Socorro, depois para a Fortaleza. Seu irmão foi preso. Ela relatou que
seu irmão havia dito que Veríssimo prometera, naquele dia, dar umas “porradas” nela, o que de
fato aconteceu.392 Carmosina, brasileira, amapaense, casada, com 36 anos de idade, analfabeta,
meretriz, residente no Beirol, disse que quando se ausentou foi para ver seu filho doente na casa
de uma irmã.393
Nunca houve audiência pois o acusado não foi encontrado, assim como a vítima que
havia sido destacada para o Oiapoque, e os oficiais de Justiça não tinham transporte para se
deslocar até lá. Várias tentativas foram realizadas e, após alguns anos, foi extinta a punibilidade.
Sobre essa ausência dos envolvidos no processo, Ivonete Pereira aponta que tanto os populares
buscavam a Justiça quando precisam resolver questões sofridas por eles, quanto também se
negavam colaborar com ela, quando isso lhes prejudicava.394 Eis uma justificativa para o
desaparecimento do acusado. A vítima todos sabiam onde se localizava, mas pela dificuldade
de contratação de transporte para o oficial de Justiça de Macapá para ir Oiapoque, não foi
possível realizar a sua intimação.
Aparentemente, a casa de Carmosina era um ponto de encontro e de festas para homens
conhecidos e suas parceiras de profissão. Veríssimo e Josefina ainda eram casados no papel,
mas separados havia sete anos. Josefina, inclusive, já tinha outro relacionamento, que mantinha
junto à profissão de meretriz. No entanto, seu ex-marido não deixava de lhe procurar e de tentar
forçar relações sexuais. Como ela se negara a ter uma relação sexual com ele, foi agredida na
frente da filha deles. Veríssimo fez uma ameaça a ela por meio de Geraldo e a concretizou.
Rago escreveu que as prostitutas construíam suas próprias sociabilidades e viviam uma
“mundanidade nômade” em contraposição ao mundo sedentário da ordem burguesa e da vida
sexual monogâmica. A prostituta, aqui representada por Josefina, “podia viver simultaneamente
tanto a relação sedentarizante com o amante principal, nas ocasiões em que este estava presente,
quanto outros encontros descomprometidos com vários fregueses”395. No caso, esse amante
392 Ibidem, p. 7.
393 Ibidem, p. 8.
394 PEREIRA, Ivonete. Op. Cit., 118-119.
395 RAGO, Margareth. Op. Cit., p. 268.
140
principal de Josefina era seu amásio atual, mas também pode ter sido seu ex-marido, quando
eram casados. Eles eram parte das relações sedentárias de Josefina, enquanto seus clientes
compunham suas relações nômades.
Por outro lado, Cristiana Schettini aponta que as sociabilidades das prostitutas do Rio
de Janeiro na virada do século XIX ao XX não se limitavam a um “mundo da prostituição”,
pois articulava-se também ao mundo cotidiano, apesar das oposições estabelecidas por homens
da classe dominante. Para Pereira, “mesmo este aspecto não pode ser compreendido sem as
tensões que marcavam a existência desses homens numa sociedade que definia hierarquias e
naturaliza desigualdades sociais mobilizando critérios raciais, de gênero e de moralidade
sexual”.396 Não é possível pensar as sociabilidades da prostituição sem articular os aspectos de
gênero, raça, moralidade sexual, mas também sem pensar em classe. Como Cristiana Schettini
bem apontou, as hierarquias e desigualdades sociais são estruturadas a partir desses critérios.
Para ela, a prostituição é fortemente marcada pelo gênero, mas também permite a mobilização
de várias masculinidades que se encontravam em horas de diversão. 397 Porém, como vimos,
essas masculinidades nem sempre conviviam em harmonia, pois os conflitos também eram
parte das sociabilidades masculinas construídas nas ruas do TFA.
É interessante observar que Josefina havia sido agredida por Veríssimo, mas neste
processo criminal somente ele figura vítima por ter sido espancado por Geraldo. Ela é arrolada
apenas como testemunha. Não é possível saber se Josefina era meretriz antes de casar-se com
Veríssimo, se permaneceu meretriz durante o casamento, ou se abandonou o meretrício por
causa do matrimônio ou ainda se tornou prostituta após a separação. Por outro lado, vemos que
seus filhos moravam com ela e não sabemos se esta oferecia seus serviços de meretriz na sua
casa ou em outro local. Contudo, o filho de Carmosina morava com sua irmã. Isso nos leva à
conclusão de que ela usava a sua casa para receber seus clientes e preferia que seu filho ficasse
aos cuidados de sua irmã. Raquel Venera, usando as figuras de Eva e Maria, afirma que Maria
foi a escolhida para ser a mãe da família burguesa, já as prostitutas eram “Evas que não se
reconciliaram e continuam exercendo seu potencial mágico capaz de seduzir e fazer os homens
pecarem”.398 Porém, era possível ser Maria e Eva, ou camélia, ao mesmo tempo, como quando
as meretrizes eram mães. Isso se considerarmos outros modelos de família que não apenas o
modelo burguês. Para pensar a existência das prostitutas, a autora utilizou o conceito de “entre
lugar” de Homi K. Bhabha399. Nesse conceito, as pessoas não tem uma identidade fixa, mas
transitam entre várias identidades. Então, uma prostituta pode sim exercer a sua profissão –
sendo Eva – e ao mesmo tempo ser mãe – e ser Maria.
Ao passar pelas sociabilidades da prostituição, é impossível não se deparar com as
relações amorosas, familiares, de vizinhança e outras interações das meretrizes amapaenses.
Nos processos e inquéritos criminais, localizamos algumas dessas relações. Eles revelaram
muitos conflitos, mas também redes de solidariedade e convivência, assim como estratégias
elaboradas por essas trabalhadoras para se legitimarem enquanto indivíduos, mas também para
se proteger.
3.2 “Pode me matar de porrada, mas eu não te largo”: a relação trágica de Raimundinha
e Belisca
Às quatro horas do dia 18 de janeiro de 1973, na cidade de Macapá, capital do Amapá,
foi atestado o óbito da meretriz Raimundinha, natural de Breves-PA, 20 anos, solteira, de cor
morena, por “hemorragia interna e contusões várias”.400 Seu corpo foi encontrado por guardas
territoriais em uma calçada no canal da avenida Mendonça Júnior, entre as ruas Tiradentes e
São José, próximo ao Bar Caboclo. Eles trataram de investigar quem era essa mulher. Para isso,
bateram nas portas das casas de cômodo ao longo do canal, até encontrar pessoas que, após
serem informadas sobre as características físicas e os sinais de agressão no corpo, concluíram
se tratar de Raimundinha. Essas pessoas eram vizinhas dela, algumas eram colegas de profissão,
e presenciaram toda a briga entre ela e o sapateiro Belisca. Logo, sugeriram ser ele o autor do
crime. De acordo com as informações colhidas, os guardas territoriais se locomoveram à casa
do acusado, na avenida Padre Júlio Maria Lombaerd, para detê-lo. Belisca, amapaense, solteiro,
de 21 anos de idade, sapateiro, alfabetizado, cor morena/parda, foi preso em flagrante e
recolhido à Colônia Penal São Pedro.
As testemunhas e o réu foram ouvidos e deram suas versões do que aconteceu. Antonio,
brasileiro, amapaense, com 23 anos de idade, solteiro, comerciário, residente na avenida
General Gurjão, sabendo ler e escrever, declarou que vivia maritalmente com a meretriz Maria
Nilza, vizinha de cômodo de Raimundinha. Ele disse que esteve no dançará Merengue com
Maria Nilza no período de 01h a 02h30 da madrugada e o acusado também havia estado lá.
Quando retornaram para o quarto de Maria Nilza, Raimundinha estava na companhia de
399 BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução Myriam Ávila; et al. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
400 AFCM. Processo nº 2.714 de 24 de janeiro de 1973, p. 66.
142
Belisca, bastante alcoolizada. Ele disse que vítima e acusado estavam começando a discutir e
que o homem passou a esbofeteá-la. Depois foram embora, e então o declarante e sua amante
se recolheram. Às 04h40 foram despertados por policiais que procuravam informações sobre
uma mulher morta em uma calçada nas proximidades do cruzamento da rua Tiradentes com a
avenida Mendonça Júnior. Então, ele e as colegas de Raimundinha concluíram se tratar dela.401
Antonio e Maria Nilza tinham uma relação marital na época do crime, mas não fica claro se
moravam juntos, porque ele informa um endereço diferente da residência dela. O que sabemos
é que dormiam juntos. Meses depois, essa relação teve fim, como ele afirma mais à frente. Além
dos mais, “viver maritalmente” pode não significar que eles tinham uma relação de marido e
esposa, como tradicionalmente é conhecida, pode ser sim uma forma usada pelo escrivão para
definir o relacionamento relativamente estável dos envolvidos. Essa expressão pode servir para
caracterizar um namoro, um amasiamento ou concubinato.
Belisca também declarou que vivia maritalmente com a vítima havia dois meses e que:
Por volta das três horas, quase ao término da festa, chamou um carro de praça para ir embora e
foi seguido por Raimundinha. Ela então entrou no carro e não quis sair, só restando a alternativa de
seguir viagem com ela até o Bar Caboclo, onde tentou fugir da mesma:
401 Ibidem, p. 7.
402 Ibidem, p. 7.
143
A todo momento, o acusado reitera a informação de que a vítima insistia pela sua
companhia, o que é corroborado pelos depoimentos das testemunhas. Ele usa desse argumento
para justificar as agressões sofridas por Raimundinha. Note-se que após uma suposta reação
dela, ele a empurrou, viu que ela ficou jogada no chão, mas não se preocupou se ela tinha ficado
desacordada, pois somente foi embora para dormir em seu quarto. Ao final de seu depoimento,
o que percebemos é que a tristeza e a emoção a que ele se refere não derivam de um sentimento
afetuoso por Raimundinha, mas da falta das quantias em dinheiro que ela lhe dava.
Neuza, brasileira, paraense, solteira, sem profissão definida, com 36 anos de idade,
residente na avenida Mendonça Júnior, próximo ao Bar Caboclo, era vizinha de Raimundinha
e disse que no momento em que Belisca aplicava socos e pisões na vítima, Antonio interferiu e
pediu para ele parar de bater nela, mas Maria Raimunda gritava: “pode me matar de porrada
mas eu não te largo”. Depois disso, Belisca disse que ia para casa, mas Maria Raimunda saiu
atrás dele. Todos acharam que ela tinha ido dormir com o acusado e ficaram surpresos com a
notícia de sua morte.404 Maria Tereza, brasileira, natural de Amapá, solteira, com 20 anos de
idade, sem profissão definida, residente na avenida Mendonça Júnior, sabendo ler e escrever,
era vizinha da vítima havia três anos, vivendo sob o mesmo teto, mas em cômodos separados.
Assistiu quando Belisca atingia a vítima com bofetadas e pontapés no corredor da casa
mencionada. Disse que as brigas entre os dois eram rotineiras e nenhuma das testemunhas
imaginou que essa briga teria um fim trágico.405 Maria Nilza, brasileira, natural de Amapá,
solteira, com 18 anos de idade, sem profissão definida, residente na avenida Mendonça Júnior,
analfabeta, era vizinha de quarto de Maria Raimunda havia um ano e sete meses. No dia do
crime, viu Belisca e Maria Raimunda no Merengue, mas em mesas separadas. Voltou a vê-los
na casa de cômodos do Compadre Artur, onde moravam, próximo ao Bar Caboclo. Presenciou
a briga dos dois e quando Antonio interferiu, Maria Raimunda respondeu que era briga entre
ela e seu “macho”.406
Com a finalização dos depoimentos das testemunhas e término do inquérito, o Ministério
Público denunciou, por meio do promotor Geraldo Telles, que o crime fora perpetrado por
motivo fútil e meio cruel. Na sua instrução criminal, em 21 de fevereiro de 1973, Belisca negou
as acusações e disse que deu tapas no rosto da vítima, mas não acreditava que isso tenha causado
a sua morte. No mês seguinte ao crime, já preso, o acusado mudou a sua versão inicial, numa
tentativa de atenuar a sua pena.
Nesse dia, as testemunhas foram ouvidas novamente. Santos, brasileiro, funcionário
público, casado, com 32 anos de idade, era Comissário de Polícia e soube por meio de
informações “que o acusado frequentava constantemente o meritrício desta Capital; que o
depoente foi informado que a vítima costumava a dar dinheiro ao acusado; que a uns três meses
a vítima era xodó do acusado”.407 Antonio, relatou que mudou de profissão e agora trabalhava
como braçal, bem como mudou de endereço para a rua General Rondon. Acrescentou ao seu
depoimento que o acusado não era de beber, mas Raimundinha era escandalosa quando estava
embriagada:
Que a vítima tinha um xodó com o acusado há cerca de um a dois meses; que
de vez em quando o acusado dormia na casa da vítima; que de uma certa vez
a vítima comprou um corte de tecido para o acusado; que o depoente veio da
boate Merengue com destino ao Bar Caboclo; que o depoente morava na época
do crime com uma mulher da vida e tomava conta de um bar São José; que o
depoente ouviu falar que o acusado havia espancado a vítima; que a briga com
o acusado era decorrente de ciúme da vítima em relação ao acusado.408
Esse depoimento confirma que Raimundinha dava presentes e dinheiro para Belisca.
Inclusive, isso poderia ser uma forma dela manter seu “xodó” próximo a ela. Ela dependia
emocionalmente dele que recebia pequenas recompensas financeiras para estar junto dela. Em
Manaus, Pereira Filho identificou a transição do cliente para o xodó, ou seja, o momento em
que a relação comercial ganha contornos de envolvimento afetivo e sexual. Mas, diferentemente
do caso de Raimundinha e Belisca, “o xodó manauara bancava integral ou parcialmente a
prostituta, ou apenas demonstrava uma preferência no convívio e na relação sexual com ela
dentro do puteiro”.409 Já Belisca não sustentava Raimundinha, pelo contrário, recebia dinheiro
dela. Não sabemos se eles se conheceram em um puteiro, nas ruas da cidade, em dançarás ou
em qualquer outro lugar. Do mesmo modo, não sabemos se algum dia ele foi cliente dela e se
foi a partir dessa relação que ele se tornou seu xodó.
Neuza, brasileira, desta vez tem como profissão doméstica, declarou que estava com a
vítima na boate Merengue, quando o acusado chegou e insultou Raimundinha e “que terminado
MM. Julgador.
Como citado, o Promotor Geraldo Telles denunciou Belisca por homicídio qualificado
por motivo fútil e meio cruel. Após a instrução criminal, ele seguiu com essa indicação. A partir
desse documento, Telles entende que o ato de dar dinheiro e presentes, além de dedicar parte
das noites, tão caras para as meretrizes, significava, para Raimundinha, o direito de ter a
presença de Belisca em sua cama. O Promotor narra o episódio da morte da meretriz cometida
pelo sapateiro para cumprir com o seu papel de acusador do suspeito. O final do documento é
esclarecedor sobre o que ele pensa a respeito do meretrício. Como frequentador das zonas de
meretrício de Macapá, o acusado foi considerado um degenerado moral, o que é agravado por
ser amante de uma meretriz e ser seu explorador. Pela violência usada nas agressões contra
Raimundinha, Geraldo Telles considerou Belisca como um indivíduo de alta periculosidade e
de mau comportamento moral e social, pela aproximação com o mundo da prostituição e relação
íntima com uma meretriz. Esse homem com tais características era um sujeito corrompido, com
facilidades para cometer crimes e ter comportamentos inadequados para o meio urbano e
desenvolvido idealizado pelas classes dominantes. Em nenhum momento, o Promotor atenua o
crime pela vítima ser uma prostituta ou por ter insistido na companhia do acusado, porém, ele
expõe a sua opinião sobre o meretrício ao final do texto. Uma opinião difundida por juristas e
médicos desde o século XIX, que viam a prostituição como símbolo da degeneração moral e
social que precisava ser combatida (higienizada e normalizada).
Já o advogado do réu, Cícero Borges Bordalo, argumentou que Belisca não teve a
intenção de matar Raimundinha e não assumiu esse risco:
A partir daqui o advogado de Belisca constrói a sua defesa para mudar a tipificação do
crime cometido. Diferentemente do Promotor Geraldo Telles, o advogado Cícero Bordalo
justifica as ações de Belisca pela insistência de Raimundinha em ter a companhia dele e pelos
insultos que ela dirigiu a sua pessoa. Ele agrediu a meretriz somente para tentar livrar-se dela,
não tivera a intenção de matá-la, mas só de lhe machucar. Com isso, ele contesta a tipificação
do crime de seu cliente porque se ele não teve a intenção de matar, não poderia ser denunciado
por homicídio, mas sim por lesão corporal seguida de morte. Bordalo posiciona Belisca como
sujeito passivo no crime, alguém que apenas reagiu ao comportamento insolente e imoral da
meretriz Raimundinha. Nota-se também a banalidade dos termos usados para retratar as lesões
causadas na meretriz, mesmo sendo as testemunhas são unânimes em denunciar a excessiva
violência usada pelo acusado. Ele não cita o histórico de agressões do casal porque isso não era
favorável ao seu cliente. Essa disputa discursiva faz parte da construção de um processo
judicial, no qual tanto acusador quanto defensor tentam convencer o juiz ou o júri popular, e só
um deles sai vencedor.
Mariza Corrêa aponta que acusado e vítima são julgados a partir das disputas entre a
defesa e a Promotoria, “cada um deles usando a parte do ‘real’ que melhor reforce seu ponto de
vista”416. Assim, os atores jurídicos usam somente o que lhes favorece para convencer o júri e
o juiz. Corrêa explica que a maior estratégia do advogado é convencer sobre a “conduta
adequada de seu constituinte e o comportamento inadequado da vítima”417. Justamente o que
Cícero Bordalo fez para defender Belisca, pois este queria dormir sozinho na fatídica noite, mas
Raimundinha tomada pelo desejo da companhia de seu amante, lhe perseguiu e lhe provocou
com ofensas.
Após o recebimento desses documentos, o juiz de Direito José Clemenceau Pedrosa
Maia declarou:
416 CORRÊA, Mariza. Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: Graal, 1983,
p. 40.
417 Ibidem, p. 61.
418 AFCM. Processo nº 2.714 de 24 de janeiro de 1973, p. 54-55.
149
Belisca disse que após Antonio lhe aconselhar a parar de agredir a vítima, e que aceitou
tal conselho e foi embora. Mas a vítima continuou a ir atrás dele, proferindo xingamentos como:
fresco, chupão e filho da puta. Então, “enraivecido com as palavras de baixo calão contra a sua
reputação o interrogado desferiu uma tapa na vítima tendo a mesma caído”.420 Por ciúmes,
Raimundinha atrapalhou as investidas de Belisca sobre outras mulheres. Esse foi o início de
toda a confusão, mas não podemos ignorar a declaração feita por Neuza de que Belisca insultou
a vítima ao chegar ao dançará Merengue, informação que Maria Nilza nega. Seja qual for o
estopim da briga do casal de amantes, o acusado dá ênfase aos xingamentos recebidos pela
vítima, palavras que lhe teriam causado revolta.
Alessandro Cerqueira Bastos, a partir da contribuição teórico-metodológica de David
Garrioch421, explica que os xingamentos podem ajudar a entender os significados da construção
das masculinidades de determinados contextos. Isso porque ser chamado de “filho da puta” é
uma ofensa à mãe, então réus e vítimas “que viviam em um universo cultural matrifocal no qual
a figura materna era supervalorizada e, ao mesmo tempo, associada à dependência da proteção
masculina, sentiram-se impelidos a resolverem suas diferenças por meio da violência”422. Esse
xingamento não ofendeu somente Belisca, mas feriu simbolicamente sua mãe. Influenciado
pelo discurso dominante de que mãe é sagrada, em conjunto com a ideia de que o homem – seja
filho, irmão ou marido – deve proteger essa figura, ele investiu violentamente contra
Raimundinha para defender a honra de sua genitora e, por consequência, reforçar a sua
masculinidade. Já o xingamento de “fresco” era um golpe na identidade de macho e de homem
heterossexual de Belisca, pois esse é um termo utilizado para se referir, de forma estereotipada,
a homens homossexuais, mas também utilizado para ofender homens heterossexuais com o
objetivo de manchar sua honra de macho. A reação de Belisca foi pautada nas referências de
gênero construídas na sua experiência, pois reagir com violência diante de ofensas e insistências
de uma mulher era uma forma de simbolizar o poder do gênero masculino, construído
socialmente e culturalmente sobre o corpo feminino.
Vamos voltar ao processo. Na disputa dos discursos, venceu a defesa do acusado. O Júri
Popular qualificou o crime como lesão corporal e seu julgamento passou a ser de competência
do Juiz José Clemenceau Pedrosa Maia. Foi condenado a cinco anos de reclusão pelo artigo
129, conforme o Código Penal Brasileiro. Em agosto de 1975, Belisca conseguiu a liberdade
condicional por ter cumprido mais da metade da pena. Em 1978, sua pena privativa de liberdade
foi extinta. O julgamento foi noticiado nas páginas do jornal:
Nessa notícia, Raimundinha não tem nome, ela é apenas uma mulher de vida livre tendo
a morte como infortúnio, enquanto o periódico dá destaque aos homens “da lei”. O jornal
registra que o crime havia ocorrido em 1972, mas ele tinha acontecido meses antes. O
julgamento foi célere nesse caso, em comparação com outros processos criminais. Por exemplo,
a maioria dos processos de crimes de sedução eram arquivados porque a punibilidade era
extinta, assim como os processos de lesões corporais. Isso nos leva a identificar que a gravidade
do crime levava a um julgamento rápido.
Ana Ottoni, ao pesquisar sobre os casos de homicídio envolvendo meretrizes no Rio de
Janeiro entre os anos de 1896 a 1925, afirma que os amantes de meretrizes sabiam e eram
coniventes com o trabalho sexual praticado por elas.424 A partir da imprensa, ela identificou
dois tipos de homens que foram assassinos de prostitutas: “homens que matavam meretrizes
porque eram vítimas das seduções maléficas dessas mulheres e indivíduos que eram pintados
como réus dos crimes que cometiam, uma vez que eram considerados ‘cáftens’”.425 Belisca não
se encaixa nesses modelos, pois nem foi vítima da sedução de Raimundinha e nem era seu
“cafetão”. Estava, na verdade, mais próximo de ser seu gigolô.426 Belisca, seja por homicídio
423 MULHER que matou a irmã foi absolvida. Novo Amapá. Edição n° 1.686 de 02 de junho de 1973, p. 4.
424 OTTONI, Ana Vasconcelos. Flores do vício: Imprensa e homicídio de meretrizes no Rio de Janeiro.
Dissertação (Mestrado em História Social). Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007, p. 76.
425 Ibidem, p. 76.
426 Na Argentina havia um tipo de caftén, denominado de criollo: “Explorador, atuava individualizadamente nos
meios da prostituição de luxo. No Brasil, essa figura é identificada ao gigolô que, ao contrário do cafetão, explora
a mulher da qual se faz amante, sem exigir pagamento certo. In: RAGO, Margareth, Op. Cit., p. 307.
151
qualificado ou lesão corporal grave, assassinou Raimundinha por ódio e desprezo pelo que ela
era e representava: primeiro por ser mulher, segundo por ser prostituta. O valor que ela tinha
para ele derivava do que a vítima podia lhe oferecer: presentes e dinheiro. No seu depoimento
e no das testemunhas sobressaem relatos de atitudes violentas misóginas que culminaram na
morte de Raimundinha.
Ottoni ressaltou que, para a imprensa do Rio de Janeiro, as meretrizes eram mulheres
que não amavam porque “elas tinham o ‘vício’ do dinheiro e/ou do sexo que fazia obliterar o
seu amor”427. Ou seja, por serem viciadas em dinheiro e em sexo, não eram capazes de amar
como as mulheres “saudáveis”, essas mulheres saudáveis eram as mães e esposas fiéis aos
maridos. Então os jornais reforçavam que as meretrizes “sofriam intensamente por amor,
principalmente quando este era repudiado pelos companheiros”428, e era na separação que elas
cometiam os maiores “desatinos” (como suicídio) por causa de seu “amor viciado”. A autora
destaca que os jornais representavam a morte das meretrizes como fruto da degeneração e a
última consequência das inúmeras agressões advindas de seus amásios, porque elas “tinham um
fascínio pelo amor que trazia desgraças e morte”429. Desse modo, Ana Ottoni destaca que a
imprensa acreditava que as meretrizes gostavam de ser espancadas, e que isso poderiam
suportar, mas uma separação não.
Margareth Rago analisa a relação do gigolô/caftén com a prostituta, porque esse homem
era a principal referência pessoal para essa mulher:
3.3 “Aqui é puteiro, puteiro não tem regra”: memórias de uma dona de boate em Macapá
Aos 83 anos de idade, Maria Albuquerque vive às margens do Rio Pedreira, na zona
rural de Macapá. Atualmente, tem um restaurante onde recebe clientes que procuram tomar
banho de rio aos finais de semana e feriados, e amigos dos tempos em que foi proprietária de
uma muito conhecida boate. Apesar da idade, Maria é muito ativa e tem como principal lazer
pescar no seu pequeno barco. Quando lhe disse que a minha avó havia nascido na comunidade
de Ipixuna Miranda, não muito longe dali, falou com orgulho e empolgação que às vezes vai
até esse rio para pescar. Apesar de não trabalhar “na noite” há muitos anos, ainda tem hábitos
noturnos. Passa a noite em claro e costuma acordar próximo ao meio-dia. Seu filho disse ser
consequência dela ter passado tantos anos trabalhando com boate. Muito simpática e receptiva,
Maria contou a sua história sobre a boate, a relação com as “meninas”, políticos, delegados,
funcionários e clientes.
Nascida na Paraíba, ela fugiu de casa aos 13 anos com um namorado e foi morar na casa
dele. Com a fuga, sua família contactou a polícia para realizar o casamento com o jovem de 22
anos. A família dele alegou que o rapaz não devia nada à Maria, mas a família dela discordava.
Para não ser morto pelos irmãos da jovem ou condenado por crime de sedução, eles tiveram um
153
casamento civil “na polícia”. No ano seguinte, em 1953, Maria deu à luz a seu primeiro filho,
fruto de seu casamento. Mas, sua vida não era boa com seu marido. Ela fugiu e seus pais ficaram
com a criança. Seu primeiro destino foi Pernambuco, onde procurou a sua cunhada, que não
quis recebê-la por medo de represálias de seu irmão, marido de Maria. Ela teve que ir embora
e foi para Fortaleza, no Ceará. Disse que não deu certo e logo foi para Natal, mas lá não deu
certo também:
Maria não foi informada de que o seu local de destino em Belém era uma boate. O
diálogo com a proprietária sugere que houve um desentendimento. De um lado, Maria disse que
não deve fazer serviços sexuais porque “não presta”. Ela via esse trabalho como indigno e
degradante, principalmente porque seria “mandada”. De outro, a dona da boate questionou se
ela era virgem e tinha filho, e como Maria respondeu negativamente à primeira pergunta e
positivamente à segunda, a mulher entendeu que ela estava apta à profissão de meretriz. Isso
porque, no discurso hegemônico, se uma mulher não é mais virgem, ela não tem o que perder,
pois a sua honra não existe mais. Assim, a nossa entrevistada saiu dessa casa e conheceu uma
431 Entrevista com Maria Albuquerque, realizada por Amanda Cristina Souza da Silva, em 10 de dezembro de
2021.
432 Ibidem.
154
senhora que morava perto de Macapá. Em 1958, passou a cuidar dos filhos desta mulher por
um tempo em algum local fora dos limites urbanos da cidade, mas logo saiu de lá e pegou um
transporte para Macapá:
Vim pra Macapá, conheci uma moça que trabalhava no hospital. Quando eu
cheguei lá em Macapá, eu cheguei parece que doente. Fui no hospital e lá ela
conversou: onde você mora? E eu comecei a explicar, eu não morava em lugar
nenhum porque eu tinha saído duma casa, ido não sei pra onde.
– Você sabe fazer o quê?
– Eu faço de tudo.
Aí ela me botou na casa dela, essa menina do hospital, me botou lá. Aí,
conclusão cortando isso aí, eu fiquei lá um tempo com ela. Belo dia eu conheci
um senhor idoso […]. Ele vendia costela de porco, churrasquinho ele fazia,
assim de rua na noite. […] Fui trabalhar com ele.433
Apesar da insegurança financeira e de não ter o que comer ou onde morar, Maria
conseguiu estabelecer redes de solidariedade por onde passou e trabalhava com o que
conseguia. A mulher do hospital lhe deu abrigo, até ela conhecer um senhor chamado Luciano
e começar a trabalhar com ele. Certa noite, uma mulher chegou para conversar:
Aqui, temos uma confirmação de que algumas donas de boates e pensões não eram ou
haviam sido prostitutas. Antes de ser dona de boate, Maria trabalhava com serviços domésticos
e vendia espetinho com Luciano. Já Józima, conciliava a profissão de professora com a
administração da boate, mas como Maria bem pontuou, tinha quem tomasse de conta do
empreendimento por ela e só abandonou a gestão da boate porque seu companheiro não
aprovava tal atividade. Józima continuou contando sua história e disse que ia fechar ou alugar
a boate. Maria pensou ser uma boa oportunidade para ela. Depois, perguntou a Luciano sobre a
natureza da casa e ele disse ser uma boate, mas ela só acomodava mulheres, não tinha festa. Ela
pediu para Luciano falar com Józima, pois se dispunha a lugar. Porém, Maria não tinha dinheiro.
Contou sua história para Józima e disse que estava em Macapá para trabalhar. Józima aceitou
“fazer negócio” com ela, mas ela precisava assinar doze promissórias de duzentos cruzeiros,
433 Ibidem.
434 Ibidem.
155
Só fiquei com o lugar, [para] ajeitar e começar a chamar gente. E assim foi o
início da minha vida em Macapá foi esse. Daí arrumei a casinha, arrumei tudo,
ajeitei e não podia comprar nada porque não tinha dinheiro, tinha que primeiro
movimentar. Mas como Macapá naquela época era famoso, Macapá onde o
povo chegava e falava: Ah, Macapá é o lugar.435
Quando perguntada sobre a divulgação da boate disse que os homens levavam “as
meninas” e nunca foi buscar nenhuma, pois elas iam, gostavam e começavam a morar aí. A
boate funcionava no turno da noite e durante o dia era apenas espaço de moradia.
E pelo menos a minha casa era respeitada, não entrava polícia, não entrava
quem brigava, porque quem brigava eu chamava com toda educação e
explicava a situação. Depois que passou a morar meninas comigo, todo mês
eu tava na polícia. Chegava meninas, apresentava lá, registrava. Na outra
semana, hospital.436
O “Registro de Meretrizes” era feito na Terceira Delegacia, que Maria informou ficar
localizada no perímetro entre as praças Veiga Cabral e Isaac Zagury. Na República do Mangue,
Juçara Leite afirma que “a prosperidade de um bordel dependia da fama de seus atributos, entre
eles a limpeza, a organização e a segurança. Por isso, as cafetinas aceitavam a disciplinarização
policial”.437 Essa disciplinarização policial ocorria por meio de fichas de meretrizes. As fichas
continham informações de saúde, mas também de comportamento. Uma prostituta “fichada”
estava suscetível a ter suas “falhas” registradas. Caso tivesse histórico de doença, embriaguez,
roubos e desordem na ficha, poderia ter seu trabalho dificultado ou proibido pela polícia.438 De
acordo com Sidney Lobato, o “Registro de Meretrizes” no TFA continha os dados pessoais e
os motivos pelos quais as mulheres enveredaram nos caminhos da prostituição439; mas, a partir
da fala da entrevistada, acreditamos que o histórico de saúde também era anotado. Maria relatou
que registros precisavam ser feitos enquanto as meninas fizessem programa e eram atualizados
mensalmente. Já na polícia isso ocorria somente uma vez.
Maria levava as meninas assiduamente para fazerem exames no posto de saúde, e na
entrevista destacou: “se alguém dissesse que entrou lá, ficou com uma das garotas e pegou
435 Ibidem.
436 Ibidem.
437 LEITE, Juçara, Op. Cit., p. 107.
438 Ibidem.
439 LOBATO, Sidney. Op. Cit., p. 219.
156
doença, eu processava”.440 Em diversos momentos de nosso diálogo, ela usou os termos “eu
processava” e “mandava prender”, isso indica o uso que ela fazia das instituições do Estado e
até mesmo uma certa familiaridade com as autoridades do TFA. No começo, ela conseguiu
realizar melhorias no local:
Em nenhum momento, Maria se refere às mulheres que trabalhavam em sua boate como
prostitutas, pois sempre as chamava de “meninas”. Ela também não se identificava como
cafetina, aliás, não encontramos sequer menção a ela com esse termo em nenhum lugar. Parece
que a figura do cafetão e da cafetina não existia no TFA, ou que os sujeitos aí residentes não
utilizam essas palavras. Quem era dono ou dona de boate era percebido apenas nestes termos,
a exemplo do proprietário da boate Xadrezão, citado na segunda seção.
Claudielle Silva explica que as iniciantes no mundo da prostituição ou recém-chegadas
nas casas recebiam as primeiras orientações das donas dos estabelecimentos e das prostitutas
experientes. Ela destaca que algumas cafetinas haviam sido meretrizes quando jovens e tinham
sofrido explorações. Mas, quando alcançavam uma posição de privilégio diante das demais
prostitutas, reproduziam o que haviam sofrido outrora. Além da exploração de que eram
vítimas, “as prostitutas recém-chegadas aprenderam com as cafetinas os segredos do ofício, as
regras implícitas e explícitas de convivência. Essas mulheres mais velhas contribuíram com sua
experiência e proteção”.442 A relação de donas de pensões/cafetinas e meretrizes era complexa.
Se por um lado poderia haver exploração financeira e de trabalho, por outro as mais velhas
orientavam as jovens no serviço sexual e na convivência cotidiana nas casas.
No decorrer da entrevista, Maria falou sobre momentos em que protegeu as que
moravam e trabalhavam em sua boate. Ela destacou que se enxergava como uma mãe para essas
meninas, que estavam em Macapá sozinhas, sem família, assim como ela estava anos antes.
Esse papel de “mãe” não era incomum para as cafetinas e donas de boates ou cabarés. Em São
Paulo, no início da República, muitas prostitutas romperam com os laços familiares, se não total
ao menos parcialmente. Margareth Rago afirma que elas buscaram constituir laços de amizade
e companheirismo com as suas iguais e com as proprietárias de bordéis. Essas últimas eram
privilegiadas nessa relação, porque eram vistas mais como figuras maternais e protetoras do
que como exploradoras.443 Rago acrescenta que essa era uma relação ambígua, porque ao
mesmo tempo em que a proprietária da casa era conselheira e confidente, a cafetina exercia
controle sobre o cotidiano da meretriz. Ela compara essa relação com a de um patrão exigindo
produtividade dos operários de uma fábrica.444 Esse controle cotidiano também pode ser
observado a partir da fala de Maria:
E outra coisa, as meninas que moravam comigo elas não bebiam, só moravam
se elas não bebessem. [...] Pelo menos em casa elas não podiam beber, podia
fumar, usar droga não, não podia. E se bebessem, muitas delas, que eu não
podia mandar na vontade. Você sai com seu parceiro, com qualquer pessoa
que você quiser e lá você bebe, volta pra casa boa. Elas tinham a vida livre
também, não eram obrigadas a nada, por mim não.445
Bebida alcoólica era um item proibido para as meninas da casa de Maria, ao menos no
interior da residência. Fora dali elas podiam fazer o que quisessem, desde que voltassem
sóbrias. Havia regras a serem seguidas e não usar álcool ou drogas ilícitas, não eram as únicas.
Sair dos quartos só de camisola e babydoll também não era permitido. Elas precisavam vestir
uma blusa e uma bermuda para ficarem “tudo bonitinha na mesa sentada”. Como outra forma
de evitar problemas com a polícia, ela não aceitava menores de idade em sua casa, somente
meninas a partir de 18 anos: “Porque eu via muita fofoca de menina de menor nesses lugares
que prendia. [...] A polícia entrava e pegava bebendo lá, garoto, meninas. [...] Não, nunca quis.
Não quero essas coisas”.446 De fato, a boate de Maria não foi mencionada em nenhum dos casos
registrados nos processos criminais ou nas ocorrências analisadas em que meretrizes menores
de idade foram presas na rua ou em ambientes fechados.
Com o tempo, Maria já não cuidava da boate sozinha, pois contratara funcionários. Uma
gerente, um cozinheiro e uma arrumadeira. A gerente morava na boate com as meninas.
Inclusive, Maria já tinha conseguido comprar um terreno, para aí construir sua própria boate e
assim se livrar das dívidas das promissórias. Maria tinha residência própria, onde morava com
o marido, um engenheiro inglês que conheceu na sua boate, e com seus filhos. Ela ia todo dia
pela manhã para prestar contas com a gerente e pegar a lista de compras. Ficava durante o
expediente, mas ia para casa a fim de dormir com a sua família. Essa prática da dona não morar
era a mesma exercida nos inferninhos e nas ruas do TFA. Embora haja uma classificação de
baixo e alto meretrício450, entendemos que ela não se aplica ao local que estudamos, porque
Macapá não era um grande centro urbano com cabarés de luxo. Diferentemente de São Paulo,
Rio de Janeiro, Belém e Manaus. Raimundo Pereira Filho explica que na capital do Amazonas,
durante a Belle Époque, no auge da exploração da borracha, era possível fazer essa distinção de
alto e baixo meretrício, pois as prostitutas de luxo serviam aos “barões da borracha”, sendo
muitas delas europeias, especialmente francesas e polacas, e por isso despertavam o interesse
desses homens. Diferentemente das prostitutas mais pobres, que ofereciam seus serviços para
marinheiros, estivadores, operários e estudantes por um preço bem mais baixo.451 Pereira Filho
esclarece que as prostitutas do baixo meretrício em Manaus eram, em sua maioria, nordestinas
e amazonenses, da capital e do interior.452 Em Belém, a situação não era diferente, porque os
“coronéis da borracha” também tinham as suas cocottes estrangeiras, que exibiam seus vestidos
de luxo trazidos da Europa. Maria de Nazaré Sarges argumenta que economicamente os
“coronéis” eram dependentes de empresas da Inglaterra e dos Estados Unidos, porém, a sua
referência cultural era Paris.453 Consideramos que os limites do que era considerado luxuoso e
miserável eram tênues e fluidos no TFA. No entanto, é importante distinguir o estabelecimento
da entrevistada das demais boates, pensões e dançarás de Macapá e suas vilas e distritos. Ela
própria não identificava a sua boate como um prostíbulo ou cabaré:
Então tinha muito isso, não era propriamente dizer assim “Maria teve um
cabaré, um prostíbulo”. Não, era uma casa que abrigava-se mulher que viesse
de avião, não fui eu que mandei buscar.
– Tá aqui, delegado, elas vieram por conta própria.
Levava passagem, bilhete tudinho, mostrava. Era tudo registrado, tudo dentro
do limite. Pra evitar de… Por isso que eu levei a minha vida todinha sem
polícia me incomodar e eu incomodar a polícia.454
Como citado anteriormente, lenocínio é crime no Brasil. Maria afirma que não foi
buscar nenhuma mulher para se prostituir em sua casa, elas chegavam com o intuito de morar
na boate, e que aí se prostituíam por conta própria, o que não configura crime para Maria.
Contudo, não sabemos como era essa relação das meninas e Maria sobre o serviço da
prostituição. Quando perguntada sobre como era a convivência com elas, a entrevistada falou
450 Ver: RAGO, Luiza Margareth. Do Cabaré ao Lar: A utopia da cidade disciplinar. Op. Cit. 1985.
451 PEREIRA FILHO, Raimundo Alves. Op. Cit., p. 59-60.
452 Ibidem, p. 61-62.
453 SARGES, Maria de Nazaré. Belém: Riquezas Produzindo a Belle Époque (1870-1912). Belém: Paka-Tatu,
2010, p. 113.
454 Entrevista com Maria Albuquerque, Op. Cit.
160
que era boa, mas não deu detalhes. Não sabemos como os programas eram definidos, se os
pagamentos eram divididos entre as meninas e ela, por exemplo. Pela sua fala, vemos que os
delegados também viam assim ou não davam importância para isso, já que ela buscava seguir
todas as regras exigidas pela polícia, como fichar as meninas e levá-las ao hospital para fazer
exames. Mais do que isso, mostrava todos os documentos que pudessem comprovar que ela não
tinha ido buscar nenhuma delas. Certamente, Maria sabia da previsão legal do crime de
lenocínio e queria se precaver com a finalidade de mostrar que estava “dentro do limite” do
permitido pela lei.
Os delegados não eram as únicas autoridades com quem Maria estabeleceu boas
relações. Em determinado momento, ela menciona que até mesmo um dos governadores do
TFA chegou a indicar sua boate:
afirmar que semelhante diferença de tratamento ocorria entre os inferninhos e a casa de Maria.
Enquanto os inferninhos sofriam com invasões policiais recorrentes, Maria não era incomodada
com guardas territoriais, soldados do Exército e policiais militares que à sua porta viessem
prender suas meninas ou clientes. Como Prechet aponta, o incômodo era também uma questão
de classe e raça. Maria afirma que havia estrangeiras na sua boate, certamente brancas, o que
não significa que não havia igualmente mulheres negras, pois além das amapaenses, havia
outras brasileiras e a entrevistada não identificou a cor como um critério para permanência de
mulheres na sua casa. No entanto, o que observamos é que a maioria das meretrizes dos
inferninhos eram negras. Sem dúvidas eram da mesma classe, mas não tinham as mesmas
condições de trabalho e nem eram vistas como iguais pelas autoridades policiais. Neste atinente,
Margareth Rago afirma que:
Olha, o Exército melhorou muito Macapá. Na época que eu tinha meus filhos
pequenos, eu tinha o Exército onde tinha as pessoas, o avião vinha três, quatro
vezes por semana. Esses aviões grandes. E uma pessoa como eu que tinha
como, não tinha poder né, não tinha mais dinheiro, pedia caixa de tomate, fazia
amizade com eles lá. Mesmo que eu desse, sustentasse três, quatro deles com
alimentação, café, mas eu tinha como eles vim de Macapá e trazer pra mim
repor tomate, laranja, essas coisas todas. Pra eu alimentar as próprias meninas
em casa, porque era tipo restaurante.459
Esse período que ela faz referência é a vinda das autoridades das Forças Armadas a
Macapá no ano de 1973 por causa da Operação Engasga ou engasga-engasga, como ficou
popularmente conhecida.460 Ela construiu uma relação de troca com o Exército, e não explicita
quem eram as pessoas, podendo ser soldados ou até funcionários do TFA. Como a sua boate
também começou a funcionar como restaurante, ela oferecia refeições a eles, mas esperava que
lhe dessem tomates e laranjas. Não era somente por amizade, ela tinha um interesse nessa
relação, assim como eles tiveram daí proveito, pois recebiam refeições gratuitamente.
A boate funcionava todos os dias, de 21h a 4h. Perguntei se não houve algum período
em que o governo territorial ordenou limite de funcionamento e sua resposta foi negativa,
acrescentando que o único período em que houve ordem para fechar os estabelecimentos, foi o
contexto do engasga. No entanto, ela não fechou as portas, e só recebeu a recomendação de um
delegado para que tivesse cuidado, e se visse alguma irregularidade, teria que fechar. Sobre o
engasga-engasga, Maria revela:
Eu não sei porque foi aquilo não. Não sei se era político que queria levantar o
astral de Macapá, não sei o que foi aquilo. E depois culparam não sei quem,
que veio gente da Guiana, veio gente não sei do quê. [...] Olha, eu vou te
contar. Nunca fechei as portas nenhum dia, nenhuma hora e nunca vi nada.
Nunca.
– Ah, pegaram numa saída de igarapé não sei quem e surraram, bateram.
Eu disse:
– Olha, amanhã eu vou tirar uma de vocês, vocês se arruma e procura no
hospital se deu entrada de alguma pessoa ferida com esse problema.
Mentira. Aquilo ali foi uma coisa que eu não sei o que era, não sei o que
aconteceu. Mas durou muito tempo e assustou muita gente.461
Apesar das várias denúncias à polícia e à Rádio Difusora, não se tem registros
de uma mulher assassinada ou gravemente ferida por esses ataques, mas essas
geraram em Macapá um clima de tensão e medo generalizados entre os
moradores, intensificados por estranhos cortes de energia elétrica, que
coincidiam com a saída dos estudantes das escolas no turno da noite.463
Não é de se estranhar que Maria veja esse episódio da história amapaense como fofoca
e mentira. Ela até se questiona se não era ação de algum político querendo “levantar o astral”
de Macapá, uma forma de animar a cidade. Mas, como bem pontuou Maura Leal, o engasga-
engasga foi um pretexto para prender opositores do regime ditatorial. Adamor Oliveira lembrou
que as escolas interromperam as aulas, cinemas não funcionavam e o comércio ficou paralisado
parcialmente464. A partir das reminiscências de Maria e de Adamor podemos elaborar a questão:
os locais eram fechados por recomendação de delegados ou os proprietários fechavam por
medo? Maria disse que não fechou sua boate porque achava que se tratava de uma invenção.
Maria chamou nossa atenção ao afirmar que não aceitava em seu estabelecimento
meninas do Amapá e explicou seus motivos:
Depois eu resolvi um dilema, uma questão que eu não queria pegar mulher do
Amapá porque elas eram rebeldes, usava droga, bebia e não aceitava a minha
condição de viver comigo.
– Olha, você tem café da manhã, você tem almoço, você tem jantar, tem a sua
liberdade, tem o seu quarto. […] Pra isso, você tem que seguir as regras da
casa.
– Que regra? Aqui é puteiro, puteiro não tem regra.
– Por isso mesmo, você não serve pra morar comigo.
Aí eu não aceitava mulher daqui de Macapá.465
462 SILVA, Maura Leal da. “O Território imaginado”: Amapá, de Território à autonomia política (1943-1988).
Tese (Doutorado em História). Universidade de Brasília, 2017, p. 222.
463 Ibidem, p. 222-223.
464 OLIVEIRA, Adamor de Sousa Oliveira. Tesouros de Memória. Fortaleza: Premius, 2013. Memória., p. 178-
179.
465 Entrevista com Maria Albuquerque, Op. Cit.
164
desses fatores. Possivelmente, todos eles tiveram influência na decisão de Maria. Segundo
Ivonete Pereira, em Florianópolis, na primeira metade do século XX, “se dar bem” com a dona
da pensão era um dos principais motivos para que as meretrizes continuassem no local. Isso
proporcionava proteção em face de outras meninas e até de ataques policiais. Porém, quando a
dona desejava a saída de uma das prostitutas, ela deveria se retirar imediatamente. 466 Vemos
como o padrão de donas de pensão não é muito distinto, mesmo se tratando de locais tão
distantes.
Questionei sobre a prostituição realizada nas ruas e ela falou sobre as mulheres bêbadas
no Canal da Mendonça Júnior. Disse que eram muitas e:
É porque a mulher bebe. Vai nos bar, bebe, anda pela rua. Às vezes uma
abraçada. Cansei de ver mulher bêbada naquele canal ali e saía do Bar
Caboclo.
[...]
Entravam naqueles barcos, transavam com aqueles homens que vinham de
barco. Até ali atrás do Banco do Brasil, aquilo ali ficava assim de
embarcação.467
Mais uma vez o Bar Caboclo se faz presente nas memórias da prostituição em Macapá.
Como já pudemos constatar antes, o Canal da Mendonça Júnior era um dos territórios da
prostituta pobre amapaense que se embriagava e executava seu serviço sexual à luz do dia ou
na escuridão da noite nas ruas ou em embarcações que ali ancoravam. Com isso, é possível
supor que o a interdição do uso de bebida alcoólica pelas meninas na boate de Maria estivesse
ligada ao fato dela não querer que aquelas moças fossem confundidas com as prostitutas pobres
do canal.
Alguns aspectos da vida das meninas foram revelados, assuntos amorosos e familiares
anteriores e posteriores à permanência delas na boate. Perguntamos sobre namorados, maridos,
casamentos arranjados durante o meretrício e filhos. Maria disse que elas não tinham
namorados, pois esses eram os clientes que passavam as noites com elas, mas logo iam embora.
Segundo suas palavras, o homem de boas intenções diz: “a partir de hoje eu não quero essa
menina no salão, fazendo programa porque eu vou tirar ela”.468 Um homem que não fazia isso
não poderia ser namorado, mas sim cliente.
Ela citou a nacionalidade e nomes de algumas moradoras da sua casa como a paraguaia
Maria, a argentina Cristiane e a austríaca Solange, também mencionou duas francesas que já
eram radicadas no Brasil, o que indica que as outras mulheres tinham vindo de outros países
diretamente para Macapá. Como ela afirmou, não aceitava mulheres de Macapá na sua boate, o
que não significa que não aceitava mulheres de outras regiões do Brasil. Quando chegavam em
Macapá e procuravam por Maria, diziam que tinham encontrado alguma menina que morou
muito tempo na casa e lhes dissera que era bom. Dessa forma, Maria as recebia e lhes dava
boas-vindas. Porém, cada uma delas tinha uma história marcada por dor, violência e abuso,
principalmente de maridos ou amásios:
Outros não era marido, outros viviam e maltratavam elas. Outros botavam elas
pra ganhar dinheiro pra ele. Tem tudo isso. [...] Prostituía a mulher, pra dar
dinheiro pra eles. Já pensou, como é que pode? […] Fugiam pra fazer a vida
delas, porque a mulher depois que ela tem marido ou filhos e sai da casa de
suas famílias, não adianta voltar mais.469
A partir desse relato, percebemos como não era incomum alguns companheiros
obrigarem as esposas a se prostituir para lucrar com a exploração delas. Essas mulheres
exploradas fugiam e, como não viam alternativa, continuavam na prostituição, mas por conta
própria ou nem tanto, pois algumas iam morar em boates. Maria também falou que algumas das
meninas haviam sido estupradas pelos maridos ou tinham filhos estuprados por aqueles, razão
pela qual decidiam fugir, mas chegavam sem filhos em sua boate. Aquelas que engravidavam
na boate, recebiam uma passagem de viagem e eram mandadas embora de onde vieram.
Algumas das meninas conheceram seus maridos na boate. Algumas delas casaram com
funcionários da Eletronorte470, indo em seguida embora para os estados de origem deles. Outras
casaram com estrangeiros e saíram do Brasil com destino a países como Itália e Estados Unidos.
O Porto do Mucuripe, em Fortaleza, nas décadas de 1960 e 1970 recebia navios
estrangeiros cotidianamente. Erika Pinho, Cristian Paiva e Francisca Sousa inferem que “os
encontros interculturais forjavam, entre as mulheres nativas, novos desejos e idealizações sobre
as masculinidades, que contrapunham as características dos homens locais àquelas atribuídas
aos estrangeiros.”471 A prostituta Maria Angelina disse que o diferencial dos estrangeiros era o
469 Ibidem.
470 “20 de junho de 1973. A Eletronorte nascia com a missão de desenvolver e integrar o Brasil com a sua energia.
Com sede no Distrito Federal, tem unidades nos nove estados da Amazônia Legal: Acre, Amapá, Amazonas,
Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins. A Empresa surgiu com a função estratégica de
investir na Amazônia quando poucos se arriscavam a fazê-lo. Uma decisão de governo que, mais tarde, se tornaria
referência na geração de energia de forma sustentável, com responsabilidade e de forma integrada.” In:
www.eletronorte.com.br/a-eletronorte-2/.
471 PINHO, Érika de Meneses; PAIVA, Cristian; SOUSA, Francisca Ilnar de. Memórias de mulheres e “amigos”:
interesse e intimidade no meretrício de Fortaleza (1960-1980). In: SIMÕES, Soraya Silveira; SILVA, Hélio R.S.;
Moraes, Aparecida Fonseca, Op. Cit., p. 372.
166
pagamento em dólar e o tratamento dado às meretrizes, eles lhes ofereciam um bom trato,
diferentemente dos homens da “terra”.472 Macapá também era uma área portuária e pela fala de
Maria, notamos que havia aí uma circulação significativa de estrangeiros que chegavam em
navios. Ela própria casou com um deles, assim como algumas das meninas da sua casa. A
diferença é que o seu marido permaneceu em Macapá, com ela, enquanto as meninas foram
morar no exterior. Podemos supor que, assim como aconteceu em Fortaleza, as meretrizes de
Macapá tinham preferência por estrangeiros, não somente pelo aspecto financeiro, mas também
pelo tratamento. Algumas delas abandonaram o meretrício para casar, constituir família com
eles e esquecer os anos de serviço sexual no Brasil.
Sobre as mulheres que casaram e permaneceram em Macapá, ela disse não manter
contato para não as prejudicar. Com a violência e o uso de drogas crescente na cidade, a partir
da década de 1980, Maria decidiu fechar seu estabelecimento. Perguntei como se deu o
fechamento da boate e ela disse que só encerrou as atividades quando todas meninas viajaram
e foram para as casas de suas famílias.
Apesar de dizer que não foi buscar nenhuma menina para viver na sua boate, Maria
revela em muitos momentos o controle que exerceu sobre elas. Primeiro pelas regras, que
incluíam não ingerir bebida alcoólica em sua casa e a forma de se vestir. Depois, pelo controle
dos relacionamentos amorosos delas, pois Maria esperava que os pretendentes lhe falassem
quais eram as suas intenções, se queriam casamento e constituir família ou não. Isso já
descortina essa relação familiar e maternal que ela disse ter constituído com essas trabalhadoras.
Assim, o que fica oculto em toda a entrevista é o trato com o dinheiro gerado pelo trabalho das
meninas. Não tivemos acesso a temas como aluguel, roupas, alimentação, salário, programas.
Mas tudo o que foi falado, ajudou a elucidar muitas questões levantadas pela leitura das outras
fontes e mostrou alguns dos contrastes existentes entre as boates de Macapá e as contradições
nas formas de atuação das autoridades do governo territorial.
472 Ibidem.
167
Considerações Finais
e eram habituadas a frequentar as ruas para trabalhar e tinham liberdade para frequentar festas
e namorar. Porém, quando precisavam buscar o Estado, assumiam os parâmetros hegemônicos
de comportamento feminino, negando que frequentavam festas, que namoravam, alegando que
viviam restritas ao domínio do lar e da família. Portanto, as mulheres da classe trabalhadora ao
mesmo tempo resistiam à imposição de tais parâmetros e se apropriavam deles quando era
conveniente. Então, quando se viam diante dos agentes do Estado, como ao prestar depoimentos
à Polícia ou à Justiça, elas poderiam usar as ideias dominantes a seu favor, mesmo que não as
reproduzissem no seu cotidiano. Assim, é forçoso admitir que a classe dominante pode até ter
os meios necessários para criar e divulgar amplamente suas ideias em determinada sociedade
de determinada época, mas essa constatação não significa que a classe trabalhadora reproduzirá
isso indiscriminadamente, pois ela tem seus códigos, valores e costumes criados a partir de
experiências específicas, diferentes daquelas da burguesia.
A clivagem de classe é essencial para entender de que forma o governo ditatorial
amapaense lidou com botequins, boates e clubes sociais e seus frequentadores. Enquanto boates
e botequins, frequentados por homens da classe trabalhadora e prostitutas, foram vigiados
constantemente, inclusive com a presença de guardas territoriais dentro dos estabelecimentos
em regime de plantão, os clubes sociais, dos quais políticos, militares, empresários e
funcionários públicos eram habitués, foram prestigiados pela imprensa. Estes eram os espaços
de lazer e festa do TFA. Todavia, para as meretrizes, esses não eram restritamente espaços de
diversão, pois também eram locais de trabalho. Mas elas também se divertiam, dançavam, se
embriagavam na companhia de colegas e clientes. Muitas vezes foram detidas pela
contravenção penal de embriaguez e desordem, passando uma noite na delegacia ou até a ordem
de soltura do delegado de plantão. Soldados do Exército igualmente promoviam desordens nas
ruas, boates e pensões. Por vezes, quando denunciados, voltavam para intimidar proprietários
de boates e prostitutas que ali residiam. Assumiram uma identidade de “donos da cidade”, onde
tudo podiam fazer, tendo a certeza de que nada ou pouco aconteceria com eles, porque detinham
poder como militares do Exército.
A intervenção mais evidente da Ditadura empresarial-militar no TFA ocorreu nas zonas
de meretrício. O canal da Avenida Mendonça Júnior, outrora conhecido como Igarapé da
Fortaleza, estava localizado no antigo bairro da Doca da Fortaleza. A Doca foi alvo de
preocupação do governo territorial desde o governo de Janary Nunes, desconforto que
permaneceu na Ditadura. Um decreto publicado no jornal oficial do TFA tornou evidente que
a presença das prostitutas era incômoda no canal, local que abrigava residências de meretrizes
e lugares de diversão. Por isso, ficou estabelecido que elas deveriam se retirar de lá em um
169
prazo de sete dias. Elas saíram, mas logo voltavam e tentavam resistir nesse espaço que
disputavam com o governo territorial. O resultado dessas disputas, ocorridas desde a década de
1940, foi o deslocamento e criação de zonas de meretrício em bairros mais afastados do centro
da capital. O bairro Santa Rita tornou-se o local com maior concentração de botequins,
dançarás, boates e pensões de Macapá, mas as meretrizes também continuavam ocupando o
canal da Mendonça Júnior.
Identificar os pontos de prostituição existentes na Macapá de outrora foi como fazer
uma caminhada por essa cidade e imaginar sua boemia abundante, pois os espaços e seus
deslocamentos contam uma história, como bem analisou o historiador José D’Assunção
Barros473. Outrora bastante frequentados e com grandes festas, os clubes sociais tiveram o seu
declínio, assim como os botequins, pensões, dançarás e boates. Poucos resistiram ao tempo,
como foi o caso do Trem Desportivo Clube, que ainda hoje realiza concursos de beleza como
o Rainha das Rainhas474 no carnaval amapaense, mas concentra suas atividades no esporte.
Terrenos de boates como o Juçarão, hoje abrigam residências. No local onde antes existia o
popular dançará Merengue, foi construída uma escola. O lugar que foi ocupado pelo Bar
Caboclo contém atualmente a Sede dos Bancários e o lote que um dia foi da boate da Suerda,
ou Pensão da Margot, é ocupado pelo Almoxarifado do Governo do Amapá.
As prostitutas do TFA construíram muitas redes de convivência na sua vida cotidiana.
Tais redes foram tecidas pelo trabalho, pela solidariedade, pelo amor, pelo parentesco, pela
amizade e vizinhança. Essas relações deixaram expostos os sentimentos entre essas mulheres e
seus amantes, filhos, irmãs, desafetos. Como interações humanas, tinham suas contradições.
Ora compartilhavam amor e amizade, ora ódio e violência. A partir dessas redes, observamos
que os espaços de vivência dessas meretrizes não se restringiam às zonas de meretrício, pois
elas caminhavam pela capital e se deslocavam pelos distritos, onde conheciam guardas
territoriais, soldados do Exército, policiais militares e os frequentadores da boemia amapaense.
Elas não andavam sozinhas, quase sempre estavam em grupo de duas ou mais prostitutas,
algumas moravam na mesma pensão, outras eram irmãs e amigas.
Conforme apontamos ao longo das seções, a experiência comum de ser prostituta nem
sempre resultava em laços de solidariedade e amizade. Motivadas por ciúmes e rixas, elas
473 BARROS, José D.’Assunção. A imaginação da cidade na História e nas Ciências Sociais: da leitura
institucional às abordagens complexas. Urbana: Revista Eletrônica do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a
Cidade, v. 4, n. 1, p. 213-240, 2012.
474 Concurso para eleger a “Soberana do Carnaval Amapaense”. Segundo o Trem Desportivo Clube: “Hoje, o
Rainha, mais que uma realidade, é um marco divisor no carnaval de salão e na cultura amapaense”.
170
entravam em conflitos que resultavam por vezes em violência física. Para defender seus
amantes, não hesitaram em ferir outros homens, mesmo que fossem presas por isso. Por
vingança, moradores da capital do TFA foram capazes de denunciar uma vizinha ex-prostituta,
por lenocínio. Mas por meio das redes de convivência constituídas entre essa ex-meretriz e
amigos, ela conseguiu provar sua inocência. Os relacionamentos com xodós permitiram a
algumas das meretrizes sentirem-se humanas novamente e se verem enquanto pessoas cheias
de afeto e sonhos. Mas, tais relacionamentos, sempre orientados pelos papéis de gênero,
poderiam ser marcados pela dependência emocional, caso em que as prostitutas aceitavam o
lugar de força ou as agressões de seus amantes para não ficarem sozinhas.
O depoimento da dona de uma boate, que conseguiu estabelecer relações com delegados
e governadores, descortinou muitos aspectos da prostituição no TFA do regime ditatorial. Os
inferninhos frequentados por trabalhadores pobres recorrentemente eram invadidos pelas forças
policiais, enquanto a boate dela, frequentada por pessoas de maior poder aquisitivo, não sofreu
a mesma vigilância. Essa boate foi o maior exemplo de prostituição institucionalizada que
encontramos. A proprietária exerceu um controle sobre o cotidiano das “meninas”, ao mesmo
tempo que construiu uma relação maternal e de afeto com elas. A origem das meninas que
procuravam morar na boate era um critério importante de seleção porque as mulheres do Amapá
não eram aceitas nesse espaço por serem consideradas rebeldes em razão de não obedecerem
às regras impostas pela depoente. O tratamento desigual entre as boates do TFA expõe as
contradições do governo territorial e mostra que o problema não era o meretrício em si, mas
quem exercia essa profissão e quem eram os indivíduos que buscavam por ele.
Meretrizes, prostitutas, mundanas, marafonas, horizontais e mulheres de vida livre são
alguns termos utilizados para designar as trabalhadoras sexuais, marginalizadas socialmente,
mas essenciais para a manutenção da família burguesa e dos ideais de feminilidade.
Consideradas pelas feministas radicais como vítimas e pelas feministas liberais como
empoderadas, as prostitutas não são tão diferentes de outras trabalhadoras, mas são marcadas
pelo estigma do trabalho sexual. Observamos que elas atuavam na intersecção entre gênero e
classe com outras mulheres trabalhadoras que não compartilhavam das experiências de ser
prostitutas. Já com os homens, compartilham a intersecção de classe, mas não de gênero. Essas
relações eram marcadas por violências e estigmas, mas também por solidariedade e afeto. Ao
mesmo tempo em que eram silenciadas, agredidas, desacreditadas, essas mulheres elaboraram
estratégias para resistir no espaço amapaense e no tempo.
171
Fontes
Entrevista com Maria Albuquerque, realizada por Amanda Cristina Souza da Silva, em
10 de dezembro de 2021.
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