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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAPÁ

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO


DEPARTAMENTO DE PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

AMANDA CRISTINA SOUZA DA SILVA

MULHERES DE VIDA LIVRE:


PROSTITUIÇÃO E MUNDOS DO TRABALHO NA AMAZÔNIA
SETENTRIONAL (1964-1980)

Macapá/AP
2023
AMANDA CRISTINA SOUZA DA SILVA

MULHERES DE VIDA LIVRE:


PROSTITUIÇÃO E MUNDOS DO TRABALHO NA AMAZÔNIA
SETENTRIONAL (1964-1980)

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em História da Universidade
Federal do Amapá (PPGHUnifap) como
parte dos requisitos para a obtenção do título
de Mestre em História.
Linha de Pesquisa: História Social do
Trabalho

Orientação: Dr. Sidney da Silva Lobato

Macapá/AP
2023
[FICHA CATALOGRÁFICA]
AMANDA CRISTINA SOUZA DA SILVA

MULHERES DE VIDA LIVRE:


PROSTITUIÇÃO E MUNDOS DO TRABALHO NA AMAZÔNIA
SETENTRIONAL (1964-1980)

DISSERTAÇÃO APRESENTADA PARA A OBTENÇÃO DO TÍTULO DE MESTRE EM


HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPGH/UNIFAP

Aprovada em: _____/_____/_____

Banca Examinadora:

Sidney da Silva Lobato (Presidente/ PPGH/Unifap)

Lara Vanessa de Castro Ferreira (Membro Interno/ PPGH/Unifap)

Maria Luiza Ugarte Pinheiro (Membro Externo/ PPGH/Ufam)

Macapá/AP
2023
À minha mãe, Maria José, por sonhar comigo.
Ao pequeno Oliver Antônio, por trazer luz à minha vida novamente.
À Lassie, pela companhia e pelas alegrias.
AGRADECIMENTOS

Iniciar o mestrado e ter ele interrompido por uma pandemia que vitimou milhões de
pessoas ao redor do mundo e milhares de brasileiros não foi uma tarefa fácil. Depois, ainda no
ano de 2020, o estado do Amapá sofreu um apagão energético que expôs o descaso dos órgãos
públicos para com a crise assolava a população amapaense. Nos últimos anos, a educação e a
pesquisa brasileiras também sofreram grandes cortes orçamentários, o que aprofundou a
precarização das universidades públicas. No final do governo negacionista e inimigo da classe
trabalhadora, a educação brasileira sofreu mais um duro golpe: o corte de bolsas de pesquisa
Capes. Tal corte acarretou o atraso no pagamento das bolsas de milhares de estudantes de pós-
graduação do Brasil, inclusive da minha. Termino a escrita dessa dissertação com alívio e a
certeza de que produzir ciência em um contexto de emergência sanitária, política, social e
econômica é um ato de resistência.
Nos últimos três anos contei com o apoio e a colaboração de muitas pessoas. Começo
agradecendo à minha família pelo apoio e pela saúde de todos. Aos meus pais Maria José e
Adilaudo, minha gratidão pelo incentivo a avançar na trilha da educação. À minha mãe,
agradeço pelo investimento no meu crescimento pessoal e profissional. Obrigada por não soltar
a minha mão. Nós duas para sempre, mamãe. Agradeço também à minha avó Maria Monteiro,
minha tia Eli, meu irmão Mateus e minha prima Camila, esta última pelas ajudas estruturais
durante os eventos científicos on-line.
Agradeço ao meu orientador por me ajudar a trilhar o caminho da pesquisa e escrita
dessa dissertação. Muitas vezes me ajudou a não desviar o caminho, quando eu estava perdida
e não sabia o que fazer. Que sorte eu tive de ser orientada por um profissional tão generoso.
Obrigada pela compreensão, professor. Sou grata ao corpo docente do PPGH-Unifap, um
programa de pós-graduação jovem, mas aguerrido. Agradeço aos colegas do Laboratório de
Estudos da História Social do Trabalho na Amazônia (Lehstam/Unifap), que muito
contribuíram para a realização dessa pesquisa e para a minha formação como pesquisadora, e
ao Grupo de Pesquisa Democracias e Ditaduras (GPDD/Unifap), especialmente às professoras
Júlia Monnerat e Maura Leal. Meu muito obrigado ao historiador Marcelo Jacques, ao
museólogo Michel Ferraz e ao arquivista Apoena Ferreira, funcionários do Tribunal de Justiça
do Amapá, pela ajuda na coleta dos processos judiciais. Agradeço às valiosas contribuições de
Lara de Castro e Maria Luiza Ugarte no exame de qualificação.
Agradeço aos queridos Higor Pereira, Marcella Viana, Marlos Vinícius Matos, amigos
que a Unifap me deu e que dividiram comigo as angústias e incertezas da pós-graduação. Sou
grata aos amigos Francisco Antonio, Alan Carlos, Leandra Leal, Nariane Almeida e Maria
Aldeliza pela amizade e por me ajudarem a respirar ares “fora da academia”. Amo vocês.
Por último, por mais que não saibam, agradeço aos meus filhos de quatro patas. Foram
minha companhia nos tempos de isolamento da Covid-19. À minha gataria pelo amor, pelos
risos e carinhos. À minha Lassie, que me acompanhava nas aulas e eventos remotos, algumas
vezes deixava escapar um latido ou aparecia na frente da câmera, e que infelizmente partiu em
2022.
Você pode me riscar da História
Com mentiras lançadas ao ar.
Pode me jogar contra o chão de terra,
Mas ainda assim, como a poeira, eu vou
me levantar.

Maya Angelou (1978)


RESUMO

Ao longo da dissertação, buscamos cumprir com o objetivo de analisar o cotidiano da


prostituição no TFA com foco nas relações de gênero e nas experiências de classe, durante a
Ditadura empresarial-militar. Para isso, nos debruçamos sobre fontes documentais que nos
possibilitaram responder as nossas questões iniciais. Nosso trabalho investigativo procurou
responder as seguintes questões norteadoras: de que forma as concepções de honra da classe
trabalhadora amapaense aparecem na documentação? Como os agentes do regime ditatorial
lidaram com as meretrizes e com os espaços de lazer do TFA? Quais foram as redes de
convivência construídas pelas prostitutas e por aqueles(as) que se relacionavam com elas como
estratégia de sobrevivência? A partir dos conceitos de gênero e experiência e com base na
análise e na confrontação de ocorrências policiais, processos criminais, artigos de periódicos e
entrevista, foi possível inferir que: a preservação a todo custo da virgindade e do recato era um
ideal da classe dominante apenas parcialmente performado pela classe trabalhadora, pois a
moral dos trabalhadores era mais flexível; enquanto boates e botequins, frequentados por
homens da classe trabalhadora e prostitutas, foram vigiados constantemente, inclusive com a
presença de guardas territoriais dentro dos estabelecimentos em regime de plantão, os clubes
sociais, dos quais políticos, militares, empresários e funcionários públicos eram habitués, foram
prestigiados pela imprensa; as prostitutas do TFA construíram redes de convivência, tecidas
pelo trabalho, pela solidariedade, pelo amor, pelo parentesco, pela amizade e vizinhança; a
experiência comum de ser prostituta nem sempre resultava em laços de solidariedade e amizade,
pois motivadas por ciúmes e rixas, as meretrizes entravam em conflitos que resultavam, por
vezes, em violência física.

Palavras-chave: Gênero. Trabalho. Prostituição. Amazônia setentrional.


ABSTRACT

Throughout the dissertation, we seek to fulfill the objective of analyzing the daily life of
prostitution in TFA with a focus on gender relations and class experiences, during the business-
military dictatorship. For this, we looked into documentary sources that enabled us to answer
our initial questions. Our investigative work sought to answer the following guiding questions:
how do the conceptions of honor of the working class from Amapá appear in the
documentation? How did the agents of the dictatorial regime deal with the prostitutes and the
TFA leisure spaces? What were the coexistence networks built by the prostitutes and by those
who interacted with them as a survival strategy? Based on the concepts of gender and
experience and based on the analysis and confrontation of police incidents, criminal processes,
journal articles and interviews, it was possible to infer that: the preservation of virginity and
modesty at all costs was an ideal of the ruling class only partially performed by the working
class, as workers' morals were more flexible; while nightclubs and taverns, frequented by
working-class men and prostitutes, were constantly guarded, including the presence of
territorial guards inside the establishments on duty, social clubs, to which politicians, soldiers,
businessmen and civil servants were regulars, were honored by the press; TFA prostitutes built
coexistence networks, woven by work, solidarity, love, kinship, friendship and neighborhood;
the common experience of being a prostitute did not always result in bonds of solidarity and
friendship, as motivated by jealousy and strife, the prostitutes entered into conflicts that
sometimes resulted in physical violence.

Keywords: Gender. Work. Prostitution. Northern Amazon.


LISTA DE IMAGENS

Imagem 1. Família Sarges .................................................................................. 33

Imagem 2. Claudethe na coluna “Em destaque” ................................................ 65

Imagem 3. Mapa dos Pontos de Prostituição em Macapá (1964-1980) ............. 108

Imagem 4. Igarapé da Fortaleza, década de 1950................................................ 112

Imagem 5. O Igarapé da Fortaleza transformado em canal, década de 1960 ..... 112

Imagem 6. Doca da Fortaleza em 1965 ............................................................... 112

Imagem 7. Canal da Mendonça Júnior em 1967.................................................. 113


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

34º BIS – 34º Batalhão de Infantaria da Selva


AFCM – Arquivo do Fórum da Comarca de Macapá
CEA – Companhia de Eletricidade do Amapá
CMM – Círculo Militar de Macapá
DSG – Divisão de Segurança e Guarda
DSN – Doutrina de Segurança Nacional
ESG – Escola Superior de Guerra
Icomi - Indústria e Comércio de Minérios S/A
RP – Rádio Patrulha
TFA – Território Federal do Amapá
SUMÁRIO

Introdução .................................................................................................................... 13

I. HONRADAS OU DEVASSAS? COTIDIANO E SOBREVIVÊNCIA DE MU-


LHERES TRABALHADORAS NA AMAZÔNIA SETENTRIONAL ................... 30

1.1. A família honrada.................................................................................................. 30

1.2. “Dizem que a vida de prostituta é vida fácil. Fácil coisa nenhuma”: a doença
social da prostituição ................................................................................................... 42

1.3. Trabalho doméstico e outros ofícios honestos das mulheres amapaenses ....... 56

1.4. Crimes de Sedução em Macapá: mulheres honradas ou mulheres de vida


questionável? ............................................................................................................... 66

II. A BOEMIA E A PROSTITUIÇÃO: AS FESTAS, OS MILITARES E A CAR-


TOGRAFIA DO PRAZER ......................................................................................... 83

2.1. Mulheres e homens ébrios: embriaguez e desordem nos registros policiais .... 83

2.2. Bailes e botequins: uma questão de classe .......................................................... 89

2.3. O “ser” e “fazer-se” homem: as rixas, os desafios e as masculinidades ama-


zônicas .......................................................................................................................... 98

2.4. Os caminhos da prostituição: deslocamentos e resistências no espaço urbano


amapaense .................................................................................................................... 107

III. AS PROSTITUTAS E AS TENSÕES DAS SOCIABILIDADES DIÁRIAS:


TRABALHO, AMOR, AMIZADE E OS CONFLITOS .......................................... 123

3.1. Relações amorosas, de vizinhança e de clientela ................................................ 123

3.2.“Pode me matar de porrada, mas eu não te largo”: a relação trágica de Rai-


mundinha e Belisca ..................................................................................................... 141

3.3. “Aqui é puteiro, puteiro não tem regra”: memórias de uma dona de boate
em Macapá ................................................................................................................... 152

Considerações finais .................................................................................................... 167

Fontes ........................................................................................................................... 171

Referências Bibliográficas .......................................................................................... 171


13

Introdução

O presente estudo tem por objeto o cotidiano da prostituição no Território Federal do


Amapá (TFA) entre os anos de 1964 a 1980, analisado na perspectiva da interseccionalidade de
gênero e classe. A prostituição, assim como o trabalho doméstico, era uma das possibilidades
de trabalho no TFA, especialmente em Macapá. Nossa pesquisa evidenciou que o trabalho era
uma atividade estruturante da vida cotidiana das prostitutas, pois dele que elas tiravam o seu
sustento. Por isso, para nós, precede levantar discussões sobre a relação entre a prostituição e o
trabalho no capitalismo.
Nos feminismos e nas produções acadêmicas que tematizam prostituição há discussões
sobre a prostituição ser ou não ser trabalho. A historiografia eclipsa essa questão pois privilegia
aspectos sociais e culturais da prostituição. Talvez escrever sobre essa questão possa parecer
algo prescindível para a nossa abordagem, mas, na verdade, há a necessidade de justificar
porque, ao longo desse texto, definimos a prostituição como trabalho. Antes de adentrar nos
aspectos cotidianos dessa atividade no TFA, precisamos responder as seguintes questões:
prostituição é trabalho? Se é trabalho, é produtivo ou improdutivo? Para responder a essas
perguntas, recorremos à teoria marxista. Em primeiro lugar, vamos passar brevemente por
teóricos e teóricas marxistas e socialistas a fim de entender o que eles e elas pensavam sobre a
atividade da prostituição. Em segundo lugar, abordaremos as questões relativas ao trabalho.
Clarisse Paradis escreveu sobre como a tradição marxista clássica analisou a
prostituição e sobre como marxistas pensaram esse tema não por uma perspectiva moralista,
mas por meio de uma visão contrária às instituições burguesas e às desigualdades do sistema
capitalista. Para isso, ela analisou as obras de Flora Tristan, Karl Marx e Friedrich Engels,
August Bebel, Clara Zetkin e Alexandra Kolontai.
A feminista e socialista utópica Flora Tristan acreditava que a prostituição era fruto da
desigualdade econômica e que o aumento da riqueza destruía os laços familiares.1 A dupla
moral sexual e dominação masculina também eram causas da prostituição porque se exigia a
castidade das mulheres e aquelas que descumprissem essa norma tinham como destino a
prostituição. A isso se soma o preceito de que a mulher deveria servir sexualmente ao homem
e uma vez tomada pela miséria, a prostituição se lhe oferece como caminho.2 Na Europa do
século XIX, foram iniciadas as discussões sobre a regulamentação da prostituição e com isso

1 PARADIS, Clarisse Goulart. A prostituição no marxismo clássico: crítica ao capitalismo e à dupla moral
burguesa. Revista Estudos Feministas, v. 26, 2018, p. 05.
2 Ibidem, p. 06.
14

foram criadas medidas sanitárias para controle das prostitutas, o que implicou na realização de
exames médicos forçados. Na Inglaterra, Tristan denunciou “a arbitrariedade da polícia, que
punia as prostitutas, e a conivência dos governos, que deveriam combater a prostituição e não
regulamentá-la”.3 Para ela, a prostituição era um tipo de morte física e moral para as mulheres
e deveria ser combatida.
Para Marx e Engels, a “comunidade de mulheres” pertence à sociedade burguesa, ou
seja, é uma criação do capitalismo e da propriedade privada. Para ambos, com a queda do
capitalismo, a prostituição teria o seu fim.4 Paradis, a partir disso, aponta que a transformação
das mulheres em propriedade resulta na prostituição.5 Ela acrescenta que Engels, em sua obra
Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, afirmou que a primeira luta de classes
se deu entre homens e mulheres, na oposição entre os sexos.6 Para ele, o casamento da família
moderna se transformou:

na mais vil das prostituições, às vezes por parte de ambos os cônjuges, porém,
muito mais habitualmente, por parte da mulher; esta só se diferencia da cortesã
habitual pelo fato de que não aluga o seu corpo por hora, como uma
assalariada, e sim que o vende de uma vez, para sempre, como uma escrava.7

Então ele associa o casamento à prostituição e à escravidão. Para Engels, a monogamia


era forçada para as mulheres e a transgressão dessa norma social levava à degradação feminina,
o que não acontecia com os homens. Sendo assim, a monogamia era complemento da
prostituição e o fim do capitalismo, com a incorporação das mulheres à indústria, levaria ao fim
da família burguesa e, por consequência, ao fim da prostituição.
O social-democrata alemão August Bebel qualificava a prostituição como uma
instituição social e não como uma instituição humana, porque para ele essa atividade não era
natural. Ele alertou que a prostituição era tão necessária para a sociedade burguesa quanto a
polícia, o exército e a igreja, por exemplo. 8 Paradis explica que Bebel apontou a hipocrisia da
sociedade burguesa, pois a prostituição era parte de uma colaboração entre a religião, o Estado
e os clientes, porque militares, políticos e juízes estavam nas listas de habitués dos bordéis ao

3 Ibidem, p. 5.
4 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Expressão Popular, 2008, p. 48.
5 PARADIS, Clarisse Goulart. Op. Cit., p. 07.
6 ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 9.ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1984, p. 70-71.
7 Ibidem, p. 77.
8 BEBEL, August. Women under socialism. New York: Socialist Literature Co., 1910, p. 146.
15

mesmo tempo que estes combatiam o meretrício em defesa do casamento, da santidade e da


família.9
Clara Zetkin, uma militante feminista e comunista, afirmava que as mulheres eram
oprimidas pelo capitalismo e não pelos homens. Para ela, a prostituição era um complemento
da família burguesa e a oposição dos homens ao trabalho produtivo feminino fazia com que as
mulheres tivessem uma vida de miséria e recorressem à prostituição. Essa atividade tinha
definições que iam desde o casamento por conveniência ao trabalho sexual. Clarisse Paradis
enfatizou que dentre os marxistas citados, somente Zetkin considerou a prostituição como
trabalho.10
Já Alexandra Kolontai, dirigente do Partido Comunista Russo e articuladora do
movimento de mulheres trabalhadoras da Rússia, afirmava que a revolução dos meios de
produção não seria suficiente para a libertação das mulheres, pois seria necessária também uma
revolução da vida privada, nas relações sexuais, morais e afetivas. Assim como os autores
citados anteriormente, Kolontai explica a prostituição por meio de causas econômicas e da
miséria social. Porém, ela afirma que “a prostituição deformaria as relações sexuais, a partir de
sua visão de que a sexualidade seria uma forma elevada de enriquecimento pessoal, o espaço
do prazer, do amor, da cumplicidade, ou seja, de sentimentos elevados”11, ou seja, o aspecto
sexual era tão importante nas reflexões sobre os males da prostituição quanto as causas dessa
atividade. Além disso, a prostituição faria com que os homens se acostumassem a desconsiderar
o prazer feminino nas relações sexuais, o que reforçaria a opressão das mulheres. No Estado
bolchevique, a propriedade privada e políticas de reforço da família foram abolidas, mas isso
não foi suficiente para abolir a prostituição. Então ela cobrava que o Estado combatesse esse
mal de forma mais assertiva, começando por entender as causas do fenômeno, que seriam a
condição econômica e a educação dada às mulheres no sentido de que poderiam ter benefícios
econômicos em troca de favores sexuais. Desse modo, as mulheres se prostituíam
“temporariamente ou para a vida toda”12, ou seja, no comércio sexual ou no casamento.
Clarisse Paradis argumenta que as contribuições desses autores e autoras são
absolutamente relevantes, mas eles não levaram em consideração o que as prostitutas pensavam
sobre o assunto. Desse modo, a questão do que leva as mulheres a se prostituir foi eclipsada por
aspectos econômicos, sociais, afetivos e sexuais abordados pelos marxistas. O que fica claro é

9 PARADIS, Clarisse Goulart. Op. Cit., p. 10.


10 Ibidem, p. 11.
11 Ibidem, p. 13.
12 KOLONTAI, Alexandra. Selected Writings of Alexandra Kolontai, Allison & Busby, 1977.
16

que a prostituição é uma instituição política e não apenas do âmbito privado, então seria
necessário associar essa atividade à família burguesa, à indissolubilidade do casamento, à falta
de autonomia das mulheres, à monogamia forçada e com todas as contradições de uma
sociedade capitalista.13
É relevante passar pelo pensamento marxista para entender a contribuição de seus
teóricos para as questões das mulheres, especialmente as teóricas no feminismo que
influenciaram os estudos de gênero. Para nós, isso é importante não apenas pelos estudos de
gênero, mas também porque o marxismo é a base da história social do trabalho.
Vera Cotrim, ao analisar os trabalhos produtivo e improdutivo a partir da teoria de Karl
Marx, elucida que o trabalho produtivo é aquele que gera mais-valia para o capitalista e é
trocado por capital, enquanto o trabalho improdutivo não tem essa característica. Cotrim elucida
essas categorias retomando um exemplo clássico de Marx, o trabalho dos alfaiates:
Marx compara, para exemplificar, o trabalho do alfaiate contratado por um
capitalista para produzir uma calça que será consumida, com o trabalho do
alfaiate que produz a mesma calça na fábrica do capitalista. No primeiro caso,
o trabalho do alfaiate é improdutivo, pois se trocou pela renda, ou dinheiro
que é meio de troca: D – M. A mercadoria entrou para o âmbito do consumo
individual e o valor pago pela força de trabalho foi também consumido; no
segundo, a mesma atividade é produtiva porque foi trocada por capital,
gerando mais-valia para o capitalista: D – M – D’. Desta vez, o valor pago
pela força de trabalho não foi consumido, mas será realizado, juntamente com
o excedente de valor que criou, quando a mercadoria for vendida.14

Então, o trabalho do alfaiate como um trabalhador assalariado é um trabalho produtivo,


mas o trabalho do alfaiate enquanto trabalhador autônomo é trabalho improdutivo. Porque no
trabalho produtivo, a força de trabalho gerará valor para a produção capitalista, mas no trabalho
improdutivo, o resultado será consumido de forma individual.15 Artur dos Santos Neto explica
que o capitalismo se apropria das forças produtivas do trabalho, então é o trabalho produtivo
que sustenta o capitalismo porque “o produto do trabalho excedente se converte em processo
de autovalorização do capital”16. Dos Santos Neto indica que a categoria de trabalho produtivo
é restrita, porque está relacionada com a venda da força de trabalho para os detentores dos meios
de produção, ou seja, para os capitalistas.17 Por isso que uma mesma espécie de trabalho pode

13 PARADIS, Clarisse Goulart. Op. Cit., p. 17.


14 COTRIM, Vera Aguiar. Trabalho produtivo em Karl Marx: novas e velhas questões. Tese de Doutorado
(Departamento de História Econômica), Universidade de São Paulo, 2009, p. 45-46.
15 Ibidem, p. 47.
16 DOS SANTOS NETO, Artur Bispo. Trabalho produtivo e trabalho improdutivo nas “Teorias da Mais-Valia”
de Karl Marx. Em Debate, n. 8, p. 5-22, 2012, p. 15.
17 Ibidem, p. 16.
17

ser entendida como produtiva ou improdutiva. Sendo assim, um trabalhador que vende sua força
de trabalho por conta própria é um trabalhador improdutivo, já aquele que vende sua força de
trabalho para uma grande empresa é um trabalhador produtivo. Cotrim aponta que a esse
trabalho consumido de forma individual e trocado por renda se dá o nome de serviço:

O serviço se define como uma atividade comprada com a finalidade de obter


seu efeito útil, e portanto, como trabalho concreto, e pode ser material ou
imaterial, isto é, o efeito útil que produz pode ou não recair sobre objeto
material. Além disso, ainda que seu produto não possa separar-se, no âmbito
sensível, da atividade de produzi-lo, todo serviço se distingue de seu efeito
útil: o serviço de uma cantora, ou seu ato de cantar, é distinto do efeito útil, o
canto, que se pretende consumir. Se considerados como efeito útil, de acordo
com a definição de Marx, os serviços nunca são trabalho produtivo, pois sua
força de trabalho não é comprada com vistas ao trabalho abstrato produtor de
capital. A rigor, quando se adquire um serviço, não se compra força de
trabalho, mas um produto que é seu efeito útil. No sentido de seu consumo,
portanto, o serviço não se distingue das outras mercadorias compradas como
valores de uso e consumidas individualmente. Entretanto, quando a mesma
atividade é consumida pelo capital com a finalidade de extrair valor excedente,
então não é mais possível denominá-la serviço, e sim trabalho produtivo,
independente do modo como se configura concretamente a mercadoria que
dela resulta. Toda mercadoria, será consumida após a venda, isto é, terá seu
valor de uso específico consumido individualmente ou como meio de
produção.18

Então, trabalho produtivo é diferente de serviço. Quando um serviço é consumido ou


contratado, não quer dizer que houve a venda de força de trabalho e sim de um produto. Esse
produto pode ser material ou imaterial. Portanto, o trabalho realizado na prostituição é um
serviço, mas sempre é trabalho improdutivo, nunca produtivo.
Maísa Santana aponta que, para Marx, quando o serviço acaba, cessa também o seu
efeito útil porque ele não gera valor excedente para o capital e sim renda para o trabalhador. 19
No entanto, para Santana a prostituição não pode ser considerada um trabalho a partir da
perspectiva marxiana porque não possui as características essenciais do processo de trabalho
que são: “a atividade adequada a um fim, isto é, o próprio trabalho; a matéria a que se aplica o
trabalho, o objeto de trabalho; os meios de trabalho, o instrumental de trabalho”20. Por isso, “a
prostituição não é um trabalho do ponto de vista do intercâmbio homem/natureza” 21. Para ela,
os instrumentos de trabalho e o corpo utilizado na prostituição não produzem mercadorias

18 COTRIM, Vera Aguiar. Op. Cit., p. 48.


19 SANTANA, Maísa Aguiar. Prostituição feminina: uma análise a partir das categorias trabalho e gênero.
Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Serviço Social), Universidade Federal de Sergipe, 2013,
p. 72.
20 Marx, Karl. O Capital: crítica da economia política. Vol. 1. livro Primeiro. 9. ed. São Paulo: Nova Cultural,
1984, p. 202.
21 SANTANA, Maisa Aguiar. Op. Cit., p. 70.
18

palpáveis, não geram mais-valia e nem produção excedente para o capital porque “a prostituta
não vende seu corpo, não vende a si mesma, vende serviços de cunho sexual” 22. Essa autora
entende a prostituição como um serviço, mas não a vê como trabalho. Ao longo dessas linhas,
vimos que serviço não é o oposto de trabalho, mas sim algo diferente de trabalho produtivo. De
fato, a prostituição não produz mercadoria material, mas produz renda para a prostituta, que
oferece um serviço sexual. Portanto, prostituição é trabalho, mas é trabalho improdutivo, porque
pode ser definida como serviço.
Marcel van der Linden aponta que no capitalismo fica subentendido que a “verdadeira”
classe trabalhadora é constituída pela força de trabalho dos assalariados livres porque é
mercantilizada. Mas, ele pondera: “essa hipótese de Marx, até onde eu saiba, nunca foi
corroborada, nem por análise teórica adequada nem por fatos concretos”23. Para Linden, isso
era óbvio porque explicava a formação do proletariado no Atlântico Norte, mas em todo o
mundo há diversas formas de trabalho. Isso quer dizer, por exemplo, que entre os assalariados
livres há a possibilidade de não se ser tão livres quanto poderia parecer. Linden escreve que a
ortodoxia marxista distingue cinco principais classes no capitalismo:

os trabalhadores assalariados livres, que possuem apenas sua própria força


de trabalho e a vendem; a pequena burguesia, formada por pequenos
produtores e distribuidores de bens que empregam um número reduzido de
trabalhadores; os trabalhadores autônomos, que são proprietários de sua força
de trabalho e de seus meios de produção e vendem os produtos ou serviços
resultantes de seu trabalho [...]; os escravos, que não possuem nem sua força
de trabalho nem suas ferramentas e são vendidos [...]; e o
lumpemproletariado, que é totalmente excluído do mercado de trabalho
legalizado. Esse último grupo geralmente não é levado em conta nas análises,
sendo usado principalmente como uma categoria “residual”.24

Este autor infere que, para Marx, a luta de classes se dá entre os capitalistas, os
proprietários de terra e os assalariados. Com isso, as outras classes não são percebidas como
importantes historicamente. Porém, Linden destaca que essas classes de trabalhadores são mais
fluidas do que nítidas, isto é, não são tão bem delimitadas como Marx imaginou.
De todas essas classes, a que mais nos interessa é o lumpemproletariado. Segundo Marx,
essa é uma classe perigosa e uma escória social, formada por vagabundos, criminosos e
prostitutas. Como pontuou Linden, trata-se de uma classe excluída do mercado formal de

22 Ibidem, p. 77.
23 LINDEN, Marcel van der. Trabalhadores do mundo: ensaios para uma história global do trabalho. Campinas:
Editora Unicamp, 2013, p. 28.
24 Ibidem, p. 30.
19

trabalho, por isso é tida como “não classe”. Ele ainda esclarece que os trabalhadores das classes
citadas, em situação de miséria, podem se sentir forçados a roubar 25, o que faz esses
trabalhadores ultrapassarem as fronteiras de classe. Marx elucida que as prostitutas quando
trabalham em bordéis são trabalhadoras assalariadas improdutivas26. A partir disso, Linden
considera que a classificação das prostitutas como parte do “verdadeiro lumpemproletariado”
na marxiana faz parte das considerações moralistas do período no qual Marx viveu.27
As trabalhadoras autônomas e assalariadas do Amapá buscavam meios de sobrevivência
e viam no serviço da prostituição uma alternativa de subsistir. Vimos como uma prostituta de
bordel é inserida no mercado de trabalho legalizado, ao passo que uma prostituta de rua é
classificada como parte de uma classe residual. Contudo, essa prostituta que constitui o
lumpemproletariado é também parte da classe dos trabalhadores porque ela pode exercer um
trabalho produtivo ou improdutivo concomitante ao serviço da prostituição.
A assistente social Maria Diniz realizou pesquisa sobre prostitutas que fazem suas
atividades nas ruas e cabarés de Natal, no Rio Grande do Norte, entre os anos de 2008 e 2009.
Ela apontou que a condição econômica é determinante para a inserção de mulheres das classes
populares na atividade sexual. Por meio de entrevistas, ela chegou à conclusão de que as
prostitutas veem a prostituição como um meio de sobrevivência e não como uma profissão.
Diniz aponta que:

Todos(as) nós estamos inseridos(as) numa sociedade consumista onde


prevalece a individualidade e o consumo sem restrições de pessoas e coisas.
Nesse contexto, perceber as prostitutas como trabalhadoras tem o claro
objetivo de reforçar a mercantilização das mulheres numa escala global. Como
estratégias, disseminam a ideia da livre escolha, do desejo que as prostitutas
apresentam pelo “trabalho sexual”, escamoteando assim, o que os estudos e
pesquisas comprovam: que as mulheres se prostituem por questão de
sobrevivência.28

Assim como Maísa Santana, Diniz não considera que a prostituição seja um trabalho
porque ver a prostituta como uma trabalhadora sexual é, segundo ela, uma forma de naturalizar
a mercantilização das mulheres. Diniz entende que a prostituição não é uma escolha e nem que
as mulheres que se prostituem desejam abraçar essa profissão, mas a isso são impelidas pelo

25 Ibidem, p. 30-35
26 MARX, Karl. Theories of Surples Value, vol. I. Trans. Emile Burns (London: Lawrence & Wishart, 1969), p.
166-186.
27 LINDEN, Marcel van der. Op. Cit., p. 45.
28 DINIZ, Maria Ilidiana. Silenciosas e silenciadas: descortinando as violências contra a mulher no cotidiano da
prostituição em Natal-RN. 2009. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em Serviço Social),
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2009, p. 93.
20

imperativo da busca de meios de sobrevivência. Quando não alcançam o mercado de trabalho


por falta de qualificação profissional e escolaridade, a prostituição é uma possibilidade de
garantir moradia e alimentação.29 Maria Diniz aponta que algumas prostitutas foram
empregadas domésticas e desistiram desse trabalho por conta da baixa remuneração e das
constantes humilhações sofridas.30 A autora infere que as prostitutas vivem em situação de
pobreza e que isso determina se elas permanecerão ou não nessa atividade. Por fim, ela afirma
que o capitalismo empurra os sujeitos para o desemprego, para a precarização e aumento da
jornada de trabalho e que por isso os trabalhadores não conseguem se inserir no mercado formal
de trabalho, o que atinge diretamente as mulheres, que encontram na prostituição um meio de
sobrevivência.31
À luz da pesquisa que realizamos, também entendemos que a prostituição é uma
estratégia de sobrevivência, mas a “escolha” que uma mulher faz entre se prostituir ou não é
mais complexa do que parece. O capitalismo mercantiliza e explora o corpo de mulheres, seja
no trabalho sexual ou nos trabalhos ditos comuns, como o doméstico ou o operário. Uma mulher
sem escolaridade e sem qualificação profissional pode ter outras profissões subalternas no
mercado formal de trabalho. Acreditamos que considerar as prostitutas como trabalhadoras não
é reforçar a mercantilização de mulheres, mas abrir um caminho para que os direitos delas sejam
garantidos. Pode parecer utópico pensar em garantia de direitos para trabalhadoras sexuais em
um mundo capitalista e patriarcal, mas é ainda mais utópico pensar que a proibição da
prostituição ou o não reconhecimento desse serviço como trabalho vai diminuir e erradicar a
mercantilização e exploração das mulheres.
A trabalhadora sexual e escritora Monique Prada aborda questões de trabalho no seu
livro Putafeminista. Prada escreve que um dos conflitos entre as feministas radicais e as
prostitutas feministas é a discussão sobre a prostituição ser ou não considerada um trabalho. As
feministas radicais32 querem erradicar a prostituição para salvar as prostitutas, o que Monique
discorda veementemente. Para ela, erradicar a prostituição significa jogar as prostitutas em
“situações precárias e inseguras” e reforçar o estigma tão presente nessa profissão e na vida
dessas mulheres. Prada explica que a luta pela abolição da prostituição contribui para o

29 Ibidem.
30 Ibidem, p. 91.
31 Ibidem, p. 96.
32 Monique Prada prefere chamar o feminismo radical de feminismo conservador.
21

aprisionamento e clandestinidade das prostitutas, mas não consegue atingir o objetivo de


erradicação dessa atividade.33
Para Monique Prada, “a prostituição consiste no ato, por pessoas adultas e em condições
de consentir, de trocar sexo por dinheiro ou outros bens, de modo regular ou ocasional. É
basicamente uma prestação de serviço.” E os motivos que levam uma pessoa a prestar esse
serviço são a necessidade financeira, curiosidade, liberdade de horário e a remuneração.34
Sendo assim, ela entende que a prostituição é um serviço, mas destaca que essa atividade só
pode ser considerada dessa forma quando a pessoa que presta esse serviço consentiu por ele, ou
seja, a exploração sexual não está inclusa nessa definição. Diferentemente dos teóricos
marxistas, ela não apresenta apenas o imperativo econômica como causa do se prostituir, pois
vê a curiosidade como motivo para algumas mulheres começarem a exercer essa atividade.
Prada não romantiza a prostituição, mas também não a demoniza. Ela entende que a
prostituição é uma alternativa de sobrevivência pessoal e familiar para muitas mulheres que
tentam fugir de condições precárias de vida. Não concorda com o discurso de algumas de suas
colegas de profissão e nem de feministas que consideram o trabalho sexual como um trabalho
empoderador:

Não é uma linha que me represente, já que considero que nenhum trabalho
exercido em nossa sociedade, e em especial nenhum trabalho precário
exercido por mulheres de baixa escolaridade e classe social, possa realmente
ser considerado empoderador e emancipatório. Não há nenhum
questionamento sobre o empoderamento alcançado por mulheres que exercem
outros trabalhos precários: ninguém se importa se uma mulher precisa limpar
privadas, ocupar seus dias embalando compras ou costurar até a exaustão, mas
basta que ela use o sexo para garantir seu sustento que passamos a nos
preocupar com sua condição.35

Nesse trecho ela caracteriza a prostituição como um trabalho precário e trabalhos


precários não são emancipatórios, tampouco empoderadores, são possibilidades que mulheres
pobres tiveram para garantir sua sobrevivência. Por último, ela aponta que salvar outras
trabalhadoras pobres de trabalhos precários não tem ganhado tanta importância, então a razão
pela qual isso acontece com as prostitutas é estritamente moral.
Pelo que foi exposto até aqui, podemos inferir que a prostituição é um trabalho
improdutivo que pode ser definido como serviço. Na sociedade capitalista, essa atividade é uma

33 PRADA, Monique. Putafeminista. São Paulo: Veneta, 2018, p. 33-34.


34 Ibidem, p. 50.
35 Ibidem, p. 58.
22

alternativa para sobrevivência de muitas mulheres da classe trabalhadora. Os debates sobre a


regulamentação, as causas, as questões de trabalho e o impacto da prostituição na vida das
mulheres no capitalismo ocorrem desde o século XIX e parecem estar longe de acabar. O que
concluímos é que não existe escolha no capitalismo para quem compõe a classe trabalhadora,
principalmente os mais pobres e de baixa escolaridade. A opção é sobreviver e, para isso, as
mulheres recorrem aos meios que tem disponíveis e algumas veem na prostituição uma
possibilidade. A questão não é se isso está certo ou errado, mas que a prostituição existe e é
necessário que seja reconhecida para possibilitar melhores condições de trabalho para as
trabalhadoras sexuais.
Nosso estudo se insere nessa discussão por abordar o cotidiano da prostituição no TFA
como parte dos mundos do trabalho locais. Na década de 1950, surgem nesta parte do Brasil
estabelecimentos “especializados” na prostituição. Até então, o local de trabalho das prostitutas
eram as casas de habitação coletiva, com exceção de algumas pensões. Com a propagação de
boates e pensões é iniciada uma nova configuração da prostituição no Amapá.
Como apontamos anteriormente, o recorte temporal dessa pesquisa compreende o
período da Ditadura empresarial-militar36. Parte da historiografia brasileira busca estudar os
aspectos políticos e sociais desse período da história brasileira e, quando se trata das questões
de gênero e história das mulheres, as resistências de mulheres na Ditadura têm maior destaque.
Mas poucas delas têm como objetivo explorar a influência do regime ditatorial no cotidiano das
trabalhadoras sexuais. Cabe ressaltar que agentes da Ditadura chamavam as mulheres presas
políticas de “putas” para criar uma fronteira simbólica entre essa mulher torturada e as
“mulheres de família”. Já no Amapá, as experiências femininas na Ditadura empresarial-militar
quase não são abordadas e aquelas relativas à prostituição são totalmente negligenciadas. Como
o período privilegiado da pesquisa é a Ditadura empresarial-militar brasileira, é importante
pensar de que forma o governo ditatorial interferiu no cotidiano da prostituição no TFA.
A partir disso, elucidaremos o cotidiano da prostituição durante parte do período
ditatorial na Amazônia setentrional e as relações sociais aí tecidas na boemia e vida noturna
amapaense, enfatizando as experiências das trabalhadoras e trabalhadores, descortinando os
conflitos existentes nas zonas de meretrício e nos botequins. Assim como analisaremos os ideais
de honra, além de outros aspectos relevantes, a exemplo da família e as masculinidades.

36 Sobre os debates na historiografia acerca dos termos empresarial-militar e civil-militar, ver: MELO, Demian
Bezerra de. O golpe de 1964 e meio século de controvérsias: o estado atual da questão. MELO, Demian Bezerra
de (Org.) A miséria da historiografia: uma crítica ao revisionismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência,
2014.
23

Isso posto, nosso trabalho investigativo procurou responder as seguintes questões


norteadoras:: de que forma as concepções de honra da classe trabalhadora amapaense aparecem
na documentação? Como os agentes do regime ditatorial lidaram com as meretrizes e com os
espaços de lazer do TFA? Quais foram as redes de convivência construídas pelas prostitutas e
por aqueles(as) que se relacionavam com elas como estratégia de sobrevivência?
Para responder a essas questões, foram analisados processos e inquéritos criminais, bem
como artigos de jornal e revista (A Voz Católica37, Novo Amapá38, Icomi-Notícias39). O livro A
Margem Esquerda do Amazonas também foi uma das fontes analisadas. Outra fonte produzida
foi uma entrevista com a proprietária de uma boate. Com o uso de gênero e experiência como
categorias de análise, intencionamos evidenciar como a prostituição e as prostitutas,
trabalhadoras e mulheres marginalizadas, estavam inseridas no espaço urbano amapaense.
Com as novas abordagens historiográficas, novos sujeitos puderam ser melhor
estudados. A “história vista de baixo”40 lançou luzes sobre experiências que outrora eram
ignoradas por historiadores e historiadoras. Para que diferentes temas pudessem ser estudados
a noção de fonte histórica foi ampliada e novos métodos investigativos surgiram, o que era
inimaginável para os historiadores há algumas décadas.41

37 “A Voz Católica foi um jornal eclesiástico da Prelazia de Macapá, composto e impresso na Gráfica São José. O
jornal possuía como reitor o Padre Alexandre, como diretor Cônego Ápio Campos, como diretor-presidente
Elfredo Távora Gonçalves e como redator Padre Jorge Basile. O impresso circulou durante 15 anos por todo o
Território Federal do Amapá. A publicação era realizada uma vez por semana, no domingo. A primeira publicação
deste semanário ocorreu no dia primeiro de novembro de 1959 e a sua última no dia vinte e nove de dezembro de
1974.” In: AZEVEDO COSTA, Johnata Dias Silva; ASSIS, Wanny Kallyni Ferreira de. Fontes para a história
das mulheres amapaenses em dois jornais de Macapá (anos de 1959 a 1964). Monografia (Bacharelado em
História), Universidade Federal do Amapá, 2019, p. 50.
38 O jornal Amapá foi criado em 1945 pelo governador Janary Nunes como um instrumento de propaganda para
o governo territorial. Segundo o Relatório das atividades do Governo do Território Federal do Amapá em 1944,
apresentado pelo então governador Janary Nunes, “na época da criação do Território, não havia, em todo o Amapá,
nenhuma oficina gráfica, nenhum meio de publicidade e propaganda”. Então, foi criado o Serviço de Imprensa e
Propaganda, incluído no plano de organização administrativa com o objetivo de “difundir pela imprensa e pelo
rádio, dentro e fora do Território, todas as informações de interesse para o desenvolvimento econômico da região,
suas possibilidades, e para a divulgação mais ampla dos atos do Governo da União e da administração local”. Já
no governo militar, seu nome é modificado para Novo Amapá, mas segue com o mesmo objetivo: veicular os feitos
da gestão governamental militar do Território Federal do Amapá. Ver: NUNES, Janary. Relatório das atividades
do Governo do Território Federal do Amapá em 1944. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1946.
39 A revista Icomi-Notícias circulou no TFA nos anos de 1964 a 1967. Augusto Antunes, na primeira edição da
revista, no artigo de abertura, enfatiza que ela não era um veículo empresarial, apesar de ser vinculada à empresa
e sim uma revista de “todos para todos”, sendo assim, ele tinha “confiança na prevalência dos fatores morais e
sociais que tanto têm engrandecido a nossa terra”. Ainda segundo ele, um dos objetivos do periódico era promover
um elo de ligação entre os membros da ICOMI com o restante da comunidade do TFA e que não tinha dúvidas de
que “servirá ao propósito de esforços pelo bem comum”. In: UMA palavra. Icomi-Notícias, nº 01, 1964, p. 1.
40 SHARPE, Jim. A história vista de baixo. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da História. São Paulo: Editora da
Universidade Estadual Paulista, 1992.
41 Ibidem, p. 59.
24

Louise Tilly destacou que um historiador estadunidense da Revolução Francesa, após a


apresentação de um estudo sobre a recepção dos escritos de Olympe de Gouges à época
revolucionária, questionou o que significava saber qual havia sido a participação das mulheres
na referida Revolução. A partir disso, Tilly argumenta que:
Há duas tarefas cada vez mais urgentes que se apresentam à história das
mulheres: produzir não somente estudos descritivos e interpretativos, mas
também estudos que resolvam problemas analíticos, e vincular as descobertas
que decorrentes desses às questões gerais que há muito estão postas à
história.42
Isso posto, não há como escrever uma história das mulheres e não relacionar com as
demais questões da História, porque não é uma “história à parte”. Do mesmo modo, Joan Scott
comenta sobre como os historiadores não feministas aceitaram esse novo campo para colocá-lo
em um domínio separado: o que se disse a respeito das mulheres e das relações de gênero tem
que ser de responsabilidade das historiadoras feministas43, porque eles estão muito ocupados
escrevendo sobre uma história “maior”, ou seja, a história dos homens. As duas autoras
concordam que é necessário construir uma história da participação feminina e pensar as
especificidades da categoria de gênero para vincular os problemas da experiência das mulheres
com as questões tradicionais da historiografia.
Scott abre um debate sobre questões teórico-metodológicas relacionadas a “gênero”.
Primeiro, porque a produção historiográfica se limitava a abordagens descritivas sobre o tema,
que não questionavam os conceitos dominantes da história. Então, ela sugere que as questões
teóricas relacionadas a gênero podem ser resolvidas com a análise das experiências de homens
e mulheres no passado. A forma como a sociedades representa o gênero, segundo a historiadora,
é decisiva para se articular as experiências de gênero de uma sociedade. Isto é, as práticas de
dominação de um gênero sobre outro no espaço público ou privado, orientadas pelos sistemas
de significados das sociedades:

Ademais, mesmo ficando em aberto a maneira como o “sujeito” é construído,


a teoria tende a universalizar as categorias e a relação entre o masculino e o
feminino. A consequência para os(as) historiadores(as) é uma leitura redutora
dos dados do passado. Mesmo se esta teoria leva em consideração as relações
sociais, relacionando a castração com a proibição e a lei, ela não permite a
introdução de uma noção de especificidade e de variabilidade históricas.44

42 TILLY, Louise. Gênero, história das mulheres e história social. Cadernos Pagu. Vol. 3, 1994, p. 29.
43 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Tradução de Christine Rufino Dabat e Maria
Betânia Ávila. Texto original: Joan Scott – Gender: a useful category of historical analyses. Gender and the politics
of history. New York, Columbia University Press. 1989, p. 5.
44 Ibidem, p. 16.
25

Porém, relacionar as ações dos sujeitos com base no que seria o “comportamento
feminino ou masculino” no pensamento dominante limita a interpretação das historiadoras e
historiadores. O sujeito pode assumir um comportamento fora daquele que foi reservado a ele
pelas construções de gênero. No artigo “História das mulheres”, Joan Scott pondera que as
experiências de homens e mulheres são diferentes por causa do gênero:

A maior parte da história das mulheres tem buscado de alguma forma incluir
as mulheres como objetos de estudo, sujeitos da história. Tem tomado como
axiomátíca a ideia de que o ser humano universal poderia incluir as mulheres
e proporcionar evidência e interpretações sobre as várias ações e experiências
das mulheres no passado. Entretanto, desde que na moderna historiografia
ocidental, o sujeito tem sido incorporado com muito mais frequência como
um homem branco, a história das mulheres inevitavelmente se confronta com
o “dilema da diferença”.45

Trabalhadoras e trabalhadores pobres podem compartilhar da experiência de classe, mas


a experiência das mulheres inclui assédio, exploração, silenciamentos, jornada dupla de
trabalho, preconceitos e agressões de seus companheiros, por exemplo.
Utilizaremos o conceito de experiência, tendo em conta a construção de identidade e as
aprendizagens das prostitutas, o que envolve as respostas elaboradas por elas diante de conflitos
cotidianos. No atinente a esta categoria de análise, o historiador E.P Thompson afirma:

O que descobrimos (em minha opinião) está num termo que falta: “experiência
humana”. É esse, exatamente, o termo que Althusser e seus seguidores
desejam expulsar, sob injúrias, do clube do pensamento, com o nome de
“empirismo”. Os homens e mulheres também retornam como sujeitos, dentro
deste termo – não como sujeitos autônomos, “indivíduos livres”, mas como
pessoas que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas
como necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida “tratam”
essa experiência em sua consciência e sua cultura (as duas outras expressões
excluídas pela prática teórica) das mais complexas maneiras (sim,
“relativamente autônomas”) e em seguida (muitas vezes, mas nem sempre,
através das estruturas de classe resultantes) agem, por sua vez, sobre sua
situação determinada.46

E adiante ele afirma que “a experiência (descobrimos) foi, em última instância, gerada
na ‘vida material’, foi estruturada em termos de classe, e, consequentemente o ‘ser social’
determinou a ‘consciência social’”.47 Então o indivíduo vivencia a experiência no cotidiano

45 SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da História. São Paulo: Editora da
Universidade Estadual Paulista, 1992, p. 77.
46 THOMPSON, E. P. A miséria da teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 182.
47 Ibidem, p. 189.
26

regido por necessidades concretas, depois ele se reconhece enquanto classe e a consciência
social é alcançada quando ele identifica que outros indivíduos compartilham da mesma
experiência.
Karl Marx argumenta que “as ideias da classe dominante, são, em todas as épocas, as
ideias dominantes”. A classe dominante é que detém a força intelectual, a força material e os
meios de produção, ou seja, tem todos os mecanismos disponíveis para tornar a sua visão de
mundo amplamente aceita. Segundo ele, “os indivíduos que formam a classe dominante
possuem, entre outras coisas, consciência e por isso pensam”.48 Desse modo, eles produzem e
distribuem as ideias de seu tempo. Isso é possível porque, além dos meios de produção
espirituais, a classe dominante é também detentora dos meios de produção materiais.
Já E.P. Thompson, no livro Costumes em Comum, explica que a classe trabalhadora não
compartilhava da mesma cultura e costumes da burguesia e da nobreza. Os populares tinham
os seus próprios referenciais morais construídos ao longo de gerações e resistiram frente às
mudanças promovidas pelas classes dominantes, seja no trabalho ou fora dele. Porém, “quando
procura legitimar seus protestos, o povo retorna frequentemente às regras paternalistas de uma
sociedade mais autoritária, selecionando as que melhor defendam seus interesses atuais”49, ou
seja, os trabalhadores sabiam muito bem usar as ideias da classe dominante a seu favor, quando
era necessário.
Sobre espaço e formação de classe, estamos de acordo com a concepção de Mike
Savage, que afirma:
O espaço precisa ser visto como importante em duas maneiras diferentes e
possivelmente contraditórias. Primeiro, lugares particulares podem se tornar
habitats para certos grupos sociais de modo que estes lugares se tornam
integralmente ligados em seus ‘habitus’, seus estilos de vida, e, desse modo,
podem ser a base sobre a qual sua identidade coletiva é formada. Segundo, a
formação de classe pode ocorrer quando classes sociais estendem-se através
do espaço construindo redes que ligam membros da classe mesmo quando eles
estão espacialmente dispersos.50

Por meio do espaço, os sujeitos constroem suas relações sociais e a sua identidade de
classe. Assim, os espaços boêmios e os bairros periféricos constroem a identidade de seus

48 MARX, K. Concepção materialista da História e a inevitável vitória do proletariado. In:


GARDINER, Patrick. Teorias da História. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995,
p. 160.
49 THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 19.
50 SAVAGE, Mike. Espaços, redes e formação de classe. In: Revista Mundos do Trabalho, vol. 3, n.5, janeiro-
junho de 2011, p. 8.
27

frequentadores e moradores, que estão ligados espacialmente à mesma classe social. Desse
modo, as prostitutas constroem a sua identidade através do gênero e da classe, no cotidiano do
trabalho e nos locais que elas frequentam e constroem por meio de sua relação com outros
sujeitos.
Para pensar o cotidiano, elegemos o conceito de vida cotidiana de Agnes Heller. Para
esta filósofa, todos vivem a vida cotidiana “com todos os aspectos da vida individualidade, de
sua personalidade”.51 De acordo com Heller, a vida cotidiana é heterogênea e hierárquica.
Heterogênea no sentido da “organização do trabalho e da vida privada, dos lazeres e o descanso,
a atividade social sistematizada, o intercâmbio e a purificação”52, pois esses são aspectos
imutáveis e eternos que independem do modo de produção vigente. Mas a vida cotidiana é
hierárquica porque “se modifica de modo específico em função das diferentes estruturas
econômico-sociais”.53 Ela justifica esse argumento com exemplos de sociedades que definiam
sua vida cotidiana em torno do trabalho, subordinando a ele as demais atividades, e de
sociedades que tinham o divertimento como lugar central. Assim, a atividade principal assume
centralidade, ao passo que subordina as demais atividades sociais.
A coleta e análise de fontes para esse trabalho foi diretamente prejudicada pela
pandemia de covid-19, visto que nosso ano de ingresso neste Programa de Pós-Graduação foi
2020. Desse modo, a escrita desse texto se deu junto as disciplinas obrigatórias e estágio-
docência. Produzir essa pesquisa só foi possível devido a fontes digitalizadas por outros
pesquisadores e pesquisadoras, além de um material digitalizado por nós, em ocasiões
anteriores ao período pandêmico. Com a flexibilização do isolamento social por consequência
do avanço da vacinação, conseguimos acesso ao Arquivo do Fórum da Comarca de Macapá
para coletar mais processos criminais envolvendo meretrizes e conseguimos produzir uma
entrevista com a dona de uma boate onde prostitutas moravam e trabalhavam e que funcionou
por mais de vinte anos no Território Federal do Amapá. A bolsa de pesquisa Capes-Fapeap e
os auxílios proporcionados aos estudantes de pós-graduação da Universidade Federal do Amapá
tiveram papel fundamental na construção dessa dissertação.
Os processos criminais são fontes abundantes para a pesquisa histórica. Segundo Carlos
Bacellar, “a convocação de testemunhos, sobretudo nos casos dos crimes de morte, de agressões
físicas e de devassas, permite recuperar as relações de vizinhança, as redes de sociabilidade e

51 HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000, p. 17


52 Ibidem, p. 18.
53 Ibidem, p. 18.
28

de solidariedade, as rixas, enfim, os pequenos atos cotidianos das populações do passado”.54


Então, esse tipo de fonte fornece importantes informações sobre sujeitos históricos e suas
relações sociais. No trato com essa e outras fontes, seguimos as orientações de Bacelllar, para
quem é necessário contextualizar o documento e buscar informações básicas sobre como, onde,
por quê e por quem tal documento foi produzido.
Nos jornais, exploramos ocorrências policiais envolvendo meretrizes. Por fornecer
registros parciais do cotidiano, utilizamos essa fonte para verificar em quais tipos de conflito as
prostitutas se envolviam. Tânia Regina de Luca oferece as orientações metodológicas que
nortearam a análise dos periódicos: verificar a materialidade do jornal, como a impressão e o
tipo de papel; as condições de produção do impresso em determinado momento; a
periodicidade; seus idealizadores e as ligações políticas; e o público a que se destinava.55
Já a história oral, segundo Verena Alberti, “consiste na realização de entrevistas
gravadas com indivíduos que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos e conjunturas
do passado e do presente”56. Assim, as entrevistas fornecem as narrativas de pessoas que
participaram de determinado evento histórico. Tendo isso em mente, realizamos uma entrevista
temática semiestruturada com o objetivo de compreender o cotidiano da prostituição no TFA,
a partir do contato com as memórias da dona de uma boate.
A partir dessas fontes, nossa pesquisa descortina as diversas formas de sobrevivência
das prostitutas amapaenses em um contexto no qual a discussão sobre degradação moral e
família tradicional estava tão presente. Considerando que a maior parte das pesquisas sobre
prostituição é pautada nos conceitos foucaultianos, essa dissertação se insere na linha de
História Social do Trabalho por ter como foco central as experiências cotidianas das prostitutas.
Mas, nossa dissertação será uma contribuição para a historiografia da prostituição por articular
o trabalho sexual na Amazônia a partir dos conceitos de gênero e experiência para pensar a
condição de trabalhadoras marginalizadas das prostitutas na Amazônia.
Os resultados do percurso investigativo que trilhamos são aqui apresentados em três
seções. De forma geral, a primeira seção versa sobre o ambiente doméstico, familiar e de
trabalho das mulheres honradas e devassas no Amapá. A segunda seção trata a respeito da
relação entre boemia e prostituição, identificando modelos de masculinidades e localização das

54 BACELLAR, Carlos. Uso e mau uso dos arquivos. In: PINSKY, Carla Bassanezy (org.). Fontes Históricas.
São Paulo: Contexto, 2011, p. 37.
55 LUCA, Tânia Regina de. Fontes impressas: História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla
Bassanezi (org.). Fontes históricas. 3. Ed – São Paulo: Contexto, 2011.
56 ALBERTI, Verena. Histórias dentro da História. In: PINSKY, Carla Bassanezy (org.). Fontes Históricas. São
Paulo: Contexto, 2005, p. 155.
29

zonas de meretrício em Macapá e seus distritos. Por último, a terceira seção refere-se às redes
de convivência das meretrizes e às experiências da profissão, abordando aspectos como o amor,
a amizade, a maternidade e as vulnerabilidades dessas trabalhadoras.
30

I. HONRADAS OU DEVASSAS? COTIDIANO E SOBREVIVÊNCIA DE MULHERES


TRABALHADORAS NA AMAZÔNIA SETENTRIONAL

No Amapá da Ditadura empresarial-militar, os ideais de família e mulher pouco diferem


dos modelos familiares e femininos de outros períodos da história brasileira. Há uma
continuidade dessas referências que transpassa diferentes contextos.
O discurso hegemônico estabelecia limites simbólicos entre a mulher honrada e a mulher
desonesta ou a prostituta. Eram levados em consideração o recato, a virgindade e a frequência
delas em bailes noturnos desacompanhadas de um membro da família. O simples fato de
transitarem sozinhas nas ruas, independente do horário, era suficiente para que as jovens
amapaenses, quando recorriam à Justiça, fossem desmoralizadas tanto pelos agentes policiais e
judiciais, quanto por outros trabalhadores.
Esta primeira seção versa sobre o ambiente doméstico, familiar e de trabalho das
mulheres honradas e devassas no Amapá. A partir dos artigos de jornais e revistas,
intencionamos identificar os modelos de família vigentes e a relação familiar da mulher
devassa, além de analisar a forma como a prostituta era vista pelos discursos moralizantes do
regime ditatorial. Seguindo com as subseções, temos como finalidade identificar, através de
processos judiciais e artigos de periódicos, quais as profissões exercidas por essas mulheres,
além do trabalho doméstico não remunerado. Por fim, analisar os processos criminais para
compreender a noção de honra dessas mulheres e as suas relações amorosas, bem como para
examinar os discursos morais presentes nos depoimentos de crimes de sedução.

1.1 A família honrada


Nas sociedades pré-industriais europeias, o trabalho estava ligado ao ambiente
doméstico e tudo o que os membros das famílias faziam ou produziam era importante para a
subsistência familiar. Segundo Eric Hobsbawm, com o capitalismo a renda familiar passou a
ser obtida pelas pessoas que saíam para trabalhar em fábricas ou escritórios, de onde retornavam
com dinheiro “que era distribuído aos demais membros da família, os quais, de modo
igualmente claro, não o ganhavam diretamente, embora sua contribuição para a casa fosse
essencial de outras maneiras”.57 Ele destaca que, nesse contexto, era necessário que algumas
das mulheres de classe média fossem emancipadas financeiramente porque as famílias não

57 HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 278-279.
31

teriam meios de sustentá-las com conforto.58 A partir disso, entendemos que a família burguesa
composta pelo pai provedor e pela esposa dona de casa foi historicamente construída pelo
capitalismo.
Para Maria Angela D’Incao, no final do século XIX e início do XX, o Brasil viveu a
transição das relações senhoriais para as relações burguesas, o que modificou os laços de
solidariedade entre vizinhos e compadres, por exemplo, dissolvendo relações de compadrio e
tutelagem. O espaço urbano foi remodelado e em nome da modernização e determinados
comportamentos passaram a ser condenados, pois a rua agora era pública em contraposição à
casa, que era privada. No entanto, a casa da família burguesa era aberta para convenções sociais
nas quais a anfitriã era a mulher, que deveria ser um exemplo de mãe dedica e esposa, o que só
era possível no seio da família burguesa. Para D’Incao, o surgimento, ou a criação, da família
burguesa, “ao reforçar no imaginário a importância do amor familiar e do cuidado com o marido
e com os filhos, redefine o papel feminino e ao mesmo tempo reserva para a mulher novas e
absorventes atividades no interior do espaço doméstico”.59 Ela destaca como a medicina, a
educação e a imprensa contribuíram para fortalecer esse imaginário da mulher como guardiã do
lar. Questão que nos interessa, pois aqui vamos analisar os textos produzidos pela imprensa
para identificar o ideal de família dos periódicos amapaenses.
Sueann Caulfield destaca que o conceito de família no Rio de Janeiro, nas primeiras
décadas do século XX, serviu “para separar as mulheres simbolicamente e espacialmente dos
homens e as classes trabalhadoras da cidade (denominadas, em geral, de ‘a massa popular’ ou
‘populares’) dos setores sociais privilegiados”.60 Para ela, quando se falava “as famílias” isso
não significava “todas as famílias”, de todas as classes sociais, mas sim aquelas mais civilizadas
ou mais próximas dos padrões europeus (tanto socialmente quando racialmente). Assim como
D’Incao61, Caulfield ressalta que os homens da elite frequentavam o espaço urbano livremente,
mas as mulheres não, mantinham-se protegidas em casa.
Abordando o período que mais diretamente nos interessa, Ana Rita Duarte infere que o
governo ditatorial, por meio da Escola Superior de Guerra (ESG), buscou formas de fortalecer
a instituição social da família com o objetivo de consolidar o poder nacional, ou seja, o poder
da Ditadura empresarial-militar, para evitar que o Brasil fosse tomado pelo comunismo ou

58 Ibidem, p. 285.
59 D’INCAO, Maria Angela. Mulher e família burguesa. In: PRIORE, Mary Del. História das mulheres no Brasil.
São Paulo: Contexto, 2004, p. 230.
60 CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940).
Campinas, SP: Editora da Unicamp, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000, p. 117.
61 D’INCAO, Maria Angela, Op. Cit.
32

outras ideias subversivas. A ESG, com base na Doutrina de Segurança Nacional (DSN),
apregoava que os valores, ideais e virtudes ensinados no interior dos lares contribuíam com a
elevação dos padrões éticos e morais dos indivíduos. Mas, na perspectiva desta Escola, a família
e os valores tradicionais estavam correndo riscos por causa da degradação moral do comunismo,
que destruiria a estrutura familiar e a moral sexual. E “o lar é apontado como a estrutura onde
se exercita a convivência familiar para realizar o que seriam as funções ‘essenciais’ da família:
a função procriativa, a educativa, a econômica e a afetiva”. 62 A autora afirma que o lar era um
tema recorrente nos textos produzidos pelos estagiários da ESG, o que revela uma preocupação
do regime ditatorial de articular o tema da vida doméstica com a DSN.
Tentando perscrutar tais percepções e discursos, selecionamos artigos de jornais sobre
família, maternidade, papel da mulher no casamento e outros assuntos relacionados. Temas
familiares eram comuns nos jornais A Voz Católica e Novo Amapá, assim como na revista Icomi
Notícias. Foi possível, por meio destas fontes, identificar o ideal família do governo do TFA
nesse período. Grosso modo, esse ideal não difere do modelo de família burguesa e nuclear
estandardizado em contextos anteriores, como no início do período republicano ou no Estado
Novo, porque a família burguesa é uma criação do capitalismo e esse sistema econômico estava
pautando a modernização nacional, o que inclui o Amapá.
Para além do Estado e da Igreja Católica, o empresariado também quis instituir um novo
modelo de família no TFA. Nos referimos especificamente à Indústria e Comércio de Minérios
S.A. (Icomi), que usava a revista Icomi-Notícias para publicizar as atividades que realizava em
suas company towns, Serra do Navio e Vila Amazonas. De acordo com Adalberto Paz, havia
um “modelo de família operária”63 e isso é perceptível nas páginas da revista, onde o homem
figura como o provedor da casa, a mulher como dona de casa e mãe exemplar, enquanto as
crianças deveriam estudar e receber o cuidado dos pais. A revista destaca, ainda, a importância
da presença dos pais na vida escolar de seus filhos, principalmente da mãe, pois a
responsabilidade do aprendizado das crianças deveria ser resultado de uma parceria de pais e
professores.
Um exemplo desse modelo de família é encontrado na edição de n° 31 da Icomi-
Notícias. Na sua capa vemos uma fotografia da família Sarges. A ela é dedicada a reportagem

62 DUARTE, Ana Rita Fonteles. Gênero e comportamento a serviço da Ditadura Militar: uma leitura dos escritos
da Escola Superior de Guerra. Diálogos (Maringá. Online), v. 18, n.1, p. 75-92, jan.-abr./2014, p. 87.
63 PAZ, Adalberto Junior Ferreira. Os mineiros da floresta: sociedade e trabalho em uma fronteira de mineração
industrial amazônica (1943-1964). Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em História Social),
Universidade Estadual de Campinas, 2011, p. 184.
33

de título “uma família na Icomi”, que contém várias outras imagens retratando o cotidiano da
família. Essas fotografias são dispostas numa sequência não aleatória, pois cada uma representa
um tema. Primeiramente, há uma fotografia da família reunida, seguindo o modelo idealizado
pela Icomi de família operária. Segue-se a imagem de Dona Isabel com um de seus filhos em
um consultório médico para representar a estrutura de saúde da mineradora. Na sequência, há
duas fotografias em sala de aula: a primeira mostra Domingos e Isabel em um curso supletivo
para concluir os estudos, as demonstrar o interesse de ambos em progredir, e a segunda
demonstra que os filhos do casal têm acesso a uma boa preparação escolar e são dedicados e
inteligentes. Por último, duas imagens mostram que um momento de diversão para Domingos
é o futebol, pois é dirigente de um clube, e “nas festas os dois, Domingos e Dona Isabel, voltam
às origens e se deliciam com um delicioso tacacá bebido na cuia”.64

Imagem 1. Família Sarges

Fonte: Icomi-Notícias, 1966.

Da expressão “voltam às origens”, no fragmento acima, tem-se uma impressão


contraditória pois os dois sujeitos são da Amazônia, ele brevense e ela macapaense. Por que
“voltar às origens”? A resposta está na ideia de progresso e de desenvolvimento das vilas
operárias instituídas pela Icomi, em contraposição aos modos de vida dos habitantes da
Amazônia. Então, no discurso da revista, a família habitante das vilas da Icomi já estava
ajustada ao modelo de comportamento social da empresa e ao beber o tacacá em festas tinha

64 UMA família na Icomi. Revista Icomi-Notícias, nº 31, 1966, p. 27.


34

um momento de retorno aos hábitos “atrasados” da região. Dessa forma, segundo Paz, a Icomi
já teria cumprido:
A função de “ajustar” e normatizar a imensa maioria de trabalhadores locais
não-especializados dentro dos padrões de produtividade e ritmos de trabalho
da moderna economia capitalista industrial, buscando incutir-lhes ideais
“adequados” de comportamento, alimentação, lazer, direitos e obrigações
baseados em um modelo de família estável e legalmente constituída, aliado ao
sentimento de civismo e pertencimento à comunidade.65

O que também é uma forma de regular a família para ter trabalhadores disciplinados e
desligados dos hábitos tidos como atrasados de caboclos e ribeirinhos. Havia um desconforto,
principalmente das autoridades governamentais, para com o modo de vida dos amapaenses e
também de trabalhadores migrantes. As habitações construídas com materiais disponíveis na
floresta, como troncos e folhas de árvores, e percebidas como desprovidas dos meios de higiene,
a alimentação supostamente escassa, baseada em farinha de mandioca e avessa ao consumo de
legumes, eram motivos de queixa dos agentes dos órgãos governamentais.
Segundo os jornais analisados, as homenagens de dia das mães e até passagens de
aniversário aconteciam nos clubes esportivos do TFA, as mulheres homenageadas eram esposas
dos militares que ocupavam cargos no governo territorial da Ditadura empresarial-militar. As
confraternizações ocorridas em datas comemorativas eram noticiadas pelo Novo Amapá,
enquanto A Voz Católica se detinha a publicar textos de orientação à população, mas
principalmente para os católicos amapaenses. Segundo articulista de tal periódico, o clube
Círculo Militar realizou uma eleição para consagrar a mãe do ano:

Como noticiei na edição anterior, o Círculo Militar de Macapá homenageou a


data consagrada ao “DIA DAS MÃES”, quando abrigou em sua sede social,
grande número de associados convidados especiais que participaram da seleta
reunião dançante.

Quando os ponteiros marcaram zero hora, em homenagem a todas as mães


presentes, foi oferecida a música “Parabéns às mães”. [...]

Para a eleição da mãe do ano do Círculo Militar, no final da apuração houve


empate entre as excelentíssimas senhoras Irene dos Santos Martins e Maria
Cavalcanti, sendo, por aclamação, recaído a escolha na D. Irene Martins.

A seguir, o CMM prestou significativa homenagem à ilustre mãe visitante, na


pessoa da Madame Pierry Magmam, residente em Calens, sendo o brinde da
Construtora Carmo Lids. Também, na ocasião, foram distribuídos mimosos
brindes às genitoras presentes naquele local, sob o patrocínio das Empresas
Construtoras e do alto comércio local.

65 PAZ, Adalberto, Op. Cit., p. 127.


35

Em oração cheia de emoção, que contagiou os presentes, o General Ivanhoé


Martins proferiu uma mensagem a todas as mães do CMM e do Amapá e,
encerrando o programa, usou da palavra o Capitão Fernando Cavalcanti, para
agradecer aos patrocinadores daquela bela reunião, e externou em seu nome e
do CMM a todas as mães naquela festa, as suas sinceras felicitações pela
passagem do “Dia das Mães”.66

Na eleição da “mãe do ano”, a escolhida foi a primeira-dama do TFA, Irene Martins. De


“seleta reunião dançante”, esta não era uma comemoração aberta à população amapaense, mas
somente para associados e convidados. A mãe do ano não poderia ser uma mãe da classe
trabalhadora, mas sim a esposa do governador que, segundo o articulista, se dedicava
inteiramente à família e aos eventos sociais e de assistência. Um aspecto importante a ser
observado é que o Círculo Militar era então patrocinado pelo empresariado, o que demonstra
uma estreita relação dos associados desse clube com as empresas locais. No ano seguinte, o
colunista social Wilson Sena escreveu sobre a programação do dia das mães:

Dando início à programação, usou da palavra o presidente do Círculo Militar


de Macapá, Cel. Adálvaro Alves que, em bela oratória, comentou o
significado do “Dia das Mães”.
Após, houve a apresentação aos presentes da mãe mais Idosa do Território,
senhora Cândida Ana Gonçalves de Couto. A mencionada senhora conta
atualmente 107 anos de idade e recebeu, como prêmio, oferta do CMM, uma
cadeira de embalo, uma rede de luxo, um rádio a pilha, um cheque de 150
cruzeiros, um cachimbo de luxo com a respectiva munição (tabaco especial).
A seguir, foi contemplada com valiosos prêmios a senhora Raimunda Santana
Ribeiro, escolhida como a mãe de maior prole, ganhando uma máquina de
costura. A referida senhora, possui apenas vinte filhos.
Entre as mães que fazem parte do quadro social do Círculo Militar, foi
escolhida como “Mãe do Ano” a senhora Helita do Carmo que, naquela noite
e na hora em que era distinguida com o honroso título, se encontrava na
Maternidade de Macapá dando à luz a mais rebento da família Carmo.67

Podemos ver que foram escolhidas para ser homenageadas e presenteadas duas mães,
uma por ser a mais velha e outra por causa de sua numerosa prole. Mas, elas não eram
associadas do Círculo Militar. Helita do Carmo foi escolhida como mãe do ano por estar em
trabalho de parto na hora da programação, ela fazia parte do quadro social do CMM. A fonte
sugere que o título de “Mãe do Ano” era concedido somente às mães desse meio social. Todas
exerceram o papel maternal esperado e foram “recompensadas” por isso. Cândida recebeu
presentes de “luxo” e Raimunda foi contemplada com “valiosos prêmios”, como o jornalista
fez questão de destacar. Destacar o valor dos prêmios foi uma opção de Wilson Sena por se

66 MÃE do ano. Novo Amapá, nº 1.571, 1970, s/p.


67 CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.612, 1971, p. 5.
36

tratar do Círculo Militar, composto por indivíduos de maior poder aquisitivo, o que transmite a
ideia de que os promotores do evento eram generosos para com as mães do TFA. O dia dos pais
também foi tema de publicações dos jornais, mas não com a mesma ênfase das homenagens às
mães:

Dia do papai

Amanhã transcorre o Dia do Papai. Em cada lar há uma alegria invulgar. O


chefe da casa é festejado com todas as pompas e alvo das maiores
homenagens. No fim, a despesa é por conta do Papai. E que despesa! Mas, o
que vale, é a intenção.68

Para o dia do papai

[...] Meu marido costuma dizer aos amigos, nesta ocasião: “Bonito quando é
o dia da mãe, meus filhos vêm pedir-me dinheiro paga comprar-lhe os
presentes. E quando é o dia do papai eles pedem à mãe, que vem pedir para
mim. Quem paga sou sempre eu.” Porém, atrás das suas palavras, nota-se a
sua alegria por ser ele o centro de tanta atenção e de tanto carinho no seu dia.69

O destaque das publicações de dia dos pais está relacionado com o papel de provedor
do homem: é ele quem dá o dinheiro para a compra dos presentes porque a esposa não tem
meios financeiros para isso. O pai se “queixa”, mas entende que a intenção dos filhos e da
esposa é lhe homenagear.
As mulheres retratadas no jornal eram caracterizadas como gentis, companheiras e
exemplos de mãe e esposa. Porém, dentre todas, a mais homenageada era a esposa do
governador do TFA, o General Ivanhoé Martins, a senhora Irene Martins, mencionada
anteriormente, que recebeu um texto na passagem de seu aniversário:

Cada assunto uma notícia

Primeira dama

Amanhã, dia 8, assinala a passagem genetlíaca da Excelentíssima Senhora


Irene dos Santos Martins, Primeira Dama do Território. A data, que no
decorrer de três anos vividos no Território pela ilustre dama, já se tornou de
grande significado para a sociedade local e para o espontâneo circulo de
amizades da ilustre senhora, que irá testemunhar, na oportunidade, as mais
expressivas homenagens. Pela sua lhaneza de trato, a distinta aniversariante é,
inegavelmente, possuidora dos mais sadios conceitos, graças aos seus dotes
pessoais que tornaram-na credora da estima e da admiração de quantos lhe
conhecem e sabem da bondade que caracteriza o seu espírito de esposa e mãe
exemplar.

68 CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.582, 1970, p. 5.


69 COLUNA da mulher. A Voz Católica, nº 459, 1968, p. 2.
37

O evento se reveste, pois, de maior significado, sendo portanto justas e


merecidas as demonstrações de afeto que vai receber de nossa sociedade, a
digna dama.

[...] A nataliciante tem se tornado uma incentivadora e companheira de todas


as horas ao lado de seu ilustre espôso, o Exm. Sr. General Ivanhoé Gonçalves
Martins. D. Irene tem sido incansável à frente da Associação das Voluntárias,
responsável direta pelo Abrigo São José, onde procura todos os meios
dispensáveis para proporcionar o conforto necessário aos velhinhos daquele
abrigo

[...]

O colunista, que vê na virtuosa senhora um belo exemplo de mãe e esposa,


associa-se às inúmeras felicitações pela passagem do evento e, com o devido
respeito, envia os mais efusivos votos de sinceras felicitações.70

Segundo o articulista, os atributos da primeira-dama incluem lhaneza de trato, sadios


conceitos, dotes pessoais, bondade, dignidade, ser virtuosa, além de esposa e mãe exemplar.
Ademais, ela ainda se dedicava a causas sociais, presidindo uma associação de voluntárias que
se dedicam ao Abrigo São José, ou seja, todas as características esperadas por uma mulher das
classes média e alta e por uma primeira-dama.71 Seguindo esses discursos sobre a esposa ideal,
o jornal A Voz Católica publicou um texto de Dom Francisco Pieri sobre a mulher como
edificadora ou demolidora do lar:

Influência dominadora da mulher

No ritual do Matrimônio parece que a Igreja vise especialmente preparar a


mulher com uma bênção toda particular, para que seja o orgulho e o repouso
do homem. E com razão.

A mulher foi sempre a dominadora incontrastada. E a história do mundo, quer


na sua visão universal, quer no âmbito restrito da vida do indivíduo e do núcleo
familiar, foi escrita, nas suas páginas mais belas e decisivas, quase sempre por
influência de uma mulher.

70 CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.594, 1970, p. 5.


71 Em 1942, foi criada a Legião Brasileira de Assistência (LBA), sob o comando da primeira-dama Darcy Vargas.
A LBA prestou assistência a pessoas em situação de vulnerabilidade econômica no Brasil até a década de 1990 e
foi um importante instrumento de ação para mulheres das classes dominantes na esfera pública. Segundo Taiana
de Oliveira e Ismael Alves: “Para as mulheres das elites, as atividades filantrópicas eram uma oportunidade de
ingressarem de maneira mais efetiva no mundo público, sem com isso subverter de forma contundente as fortes
amarras morais de gênero que as colocavam em uma posição de subalternidade em relação aos homens. Para essas
mulheres, os trabalhos assistenciais e de benemerência eram considerados extensões de suas atribuições na esfera
do privado e estavam em total conformidade com sua suposta natureza feminina de dedicação à família e ao
próximoXX. Ao se enveredar pelo mundo dos necessitados, as mulheres das classes abastadas projetavam, diante
da sociedade, seus elevados atributos morais, sendo reconhecidas por sua sensibilidade, bondade e solidariedade
com os sentimentos alheios, ou seja, uma extensão de sua função maternal.” In: DE OLIVEIRA, Taiana; ALVES,
Ismael Gonçalves. Legião Brasileira de Assistência e políticas sociais: primeiro-damismo, gênero e assistência
social. Boletim Historiar, v. 7, n. 02, 2020, p. 22.
38

A confirmação destas palavras, basta lembrar que a mulher, aparentemente


fraca, é uma verdadeira força angélica ou diabólica.

A Sagrada Escritura ressalta sempre a mulher, seja no seu papel de


edificadora, como no de demolidora e causadora de morte. No primeiro caso
e no segundo, as suas palavras são respectivamente suaves ou duríssimas.

[...]

Quase sempre, o caminho do homem é marcado por uma mulher e pela sua
influência ele descerá nos abismos, ou realizará ascensões sublimes.72

O texto esclarece o papel feminino na vida do homem e como a esposa é capaz de


construir e destruir o seu lar. Mais do que isso, é evidente a dicotomia da mulher angelical,
maternal, Maria, em contraposição à mulher diabólica, destruidora, Eva. A figura feminina é
representada como uma figura dúbia. Joan Scott explica que as representações de Eva e Maria
são oriundas da tradição cristã ocidental.73 Essas imagens foram utilizadas para orientar as
amapaenses sobre qual modelo de mulher deveriam se ajustar para contentar seus maridos e
para gerir suas casas, se edificadoras ou causadoras de morte. No ano seguinte, na mesma
página, o jornal transcreveu um texto da revista A Família Cristã74:

1 - Ama teu marido mais que ninguém no mundo, depois do Senhor, e ama o
teu próximo o melhor que puderes, mas lembra-te de que a casa é do teu
marido e não do próximo;

2 - Considera o teu marido como um hóspede de cerimônia e um amigo


precioso. Quanto a amigas, livra-te delas;

3 - Prepara para teu marido uma casa ordenada e um rosto sereno, mas não, te
amofines, se ele não der por isso imediatamente;

4 - Não lhe exijas coisas supérfluas para casa: pede lhe uma casa alegre e um
canto livre para as crianças;

5 - Que os teus filhos sejam alegres e limpos como tu, para que teu marido
sorria quando os ver, e pense neles quando está longe;

6 - Pensa que casaste com ele para os bons e para os maus tempos, mesmo
quando toda a gente o abandonasse, tu devias continuar a apertar a sua mão
nas tuas.75

72 COLUNA da mulher. A Voz Católica, nº 423, 1967, p. 2.


73 SCOTT, Joan. Ibidem, p. 21.
74 É uma revista “publicada pelas Irmãs Paulinas, que há mais de 85 anos tem a missão de dialogar com as
famílias.” Fonte: https://revistafamiliacrista.com.br/quem-somos/.
75 O DECÁLOGO da mulher ideal. A Voz Católica, nº 437, 1968, p. 2.
39

Decálogo é um conjunto de conselhos. Nesse caso, são apresentados a leitoras e leitores


conselhos tidos como essenciais e que deverão ser cumpridos para se atingir o ideal de mulher
ideal. Selecionamos esses seis itens, porque estão mais diretamente ligados à relação de esposa
e marido. Primeiro, é aconselhado que depois de Deus, essa mulher ame o seu marido mais do
que a qualquer pessoa e que ele deve ser tratado como um hóspede todos os dias. Disso, entende-
se que esse marido não execute as tarefas domésticas da casa e nem de cuidado com as crianças.
A casa deverá estar sempre arrumada à espera do seu esposo, assim como os filhos e a própria
esposa. Mas, ela não pode esperar reconhecimento do cuidado que tem com o lar e nem solicitar
“coisas supérfluas” para a casa, visto que é uma obrigação dela, já que seu marido está provendo
a família. Por fim, os votos de casamento são relembrados para que o casal permaneça junto até
nos tempos difíceis. Porém, esse fardo é concebido como sendo exclusivamente uma
responsabilidade da mulher. Algumas edições depois, é a vez dos mandamentos do casamento:

1. Desde que o teu corpo está suficientemente desenvolvido e que te achas em


condições materiais para manter modestamente família, casa-te o mais cedo
possível.
[...]
4. Não encares o casamento como fonte de prazeres, em que tudo é permitido,
pois a vida conjugal tem as suas dificuldades, tentações e lutas.
[...]
8. Em tua companheira procura qualidades morais, a fidelidade, o amor ao
trabalho, a economia, a ternura, a paciência, a pureza, – virtudes que tu mesmo
deves cultivar.76

Aqui, as orientações são tanto para as esposas quanto para os maridos. Segundo o texto,
era preferível que os jovens casassem o mais rápido possível, certamente para evitar “o pecado”
do sexo antes do casamento, devendo, porém, estar cientes que o matrimônio também passa por
momentos adversos. Para o marido, é aconselhado que procure uma companheira com as
qualidades que já mencionamos anteriormente, mas vamos destacar a qualidade da economia.
Um casal cristão deve procurar ser o mais modesto possível e não gastar mais do que tem ou
evitar o consumo excessivo.
Em uma seção direcionada para os jovens, A Voz Católica publicou um texto para
abordar o sexo no casamento. O periódico pontuou que antes o assunto era tabu, mas
acrescentou que os tempos mudaram e era então natural e até necessário falar sobre isso, porque
a formação sexual promove um “harmônico equilíbrio da personalidade”.77 E ainda reproduziu

76 OS DEZ mandamentos para o casamento. A Voz Católica, nº 461, 1968, p. 2.


77 PÁGINA dos jovens. Idem, nº 577, 1971, s/p.
40

uma entrevista sobre liberdade sexual da campeã mundial de esqui, a francesa Marielle
Goeitschel:

Juventude e casamento

À liberdade sexual digo não. Sei que hoje em dia muitas môças têm relações
de casadas antes do matrimônio. Creio que isto não está certo. Não somente
eu penso assim. Tenho conversado com rapazes e observei que detestam as
garotas que se entregam facilmente... Vê-se como desprezam uma moça
depois de terem feito com ela o que bem entendiam... Digo a mim mesma que
em todas essas coisas é preciso adotar uma disciplina, tanto para o amor como
para o esporte, senão um dia a gente se arrasa... Vou dizer uma coisa: nunca
ponho a culpa nos rapazes. Se um deles viesse me pedir o que não deve, eu é
que mereceria uma bofetada e pensaria então: “Você é que não presta, não é
ele, porque, de um modo ou de outro, foi você quem lhe deu a ideia”.78

Então, a liberdade sexual era causada por mulheres que “se entregavam facilmente” e
que por isso mereciam o desprezo dos que com elas se relacionaram sem conúbio. Quem deveria
controlar e regular essa liberdade eram as mulheres, pois os rapazes só fariam insinuações sobre
relações sexuais se as moças dessem abertura para isso, caso em que mereceriam ser castigadas.
Maria Angela D’Incao, ao escrever sobre a família burguesa e o amor romântico no
século XIX, esclarece que a virgindade da noiva era tida como um símbolo “de valor econômico
e político, sobre o qual vai se apresentar um sistema de herança de propriedade que deve
sobretudo garantir a linhagem da parentela”. Assim, a vigilância em torno dos jovens antes do
casamento servia para que o sistema de casamento não fosse enfraquecido pelo “encontro dos
corpos” desses jovens.79 Porém, no contexto do regime ditatorial não era considerado adequado
reduzir a virgindade e o casamento somente a valores econômicos e políticos, pois os valores
morais também eram tidos como essenciais. As famílias pobres também valorizavam os dois
aspectos, tanto que buscavam meios para reparar a perda da virgindade das suas filhas e orientá-
las para que não caíssem no pecado e se mantivessem virgens até o casamento. Apesar de que,
por vezes, esses valores, como mostra a documentação, fossem relativizados, assim como foram
para as famílias burguesas.
Os casamentos também eram noticiados nos jornais, quando os noivos eram de famílias
prestigiadas nos círculos da elite do Território Federal do Amapá e os homens funcionários da
Icomi e do governo territorial. Do noivo era noticiada a profissão e a família, já a noiva era
identificada por sua família ou pelos seus modos:

78 Ibidem.
79 D’INCAO, Maria Angela. O amor romântico e a família burguesa. In: D’INCAO, Maria Angela (Org.). O amor
e a família no Brasil. São Paulo: Contexto, 1989.
41

No dia 23 [de dezembro] do corrente, na Igreja de São José, unir-se-ão pelos


laços matrimoniais Valter Sampaio Cantuária (funcionário da ICOMI) e
Doralina da Silva Ramos (filha do casal Alceu (Josefina) Paulo Ramos.80

Sob as bênçãos de Deus e as leis dos homens, contrairão matrimônio a


senhorita Heileni Picanço com o jovem Alfredo Brazão, no dia 22 do mês em
curso. Os noivos são filhos dos casais Heitor (Helenita) Picanço e Augusto
(Olinda) Brazão. O ato será celebrado na Catedral de São José de Macapá, às
18 hs. do dia já mencionado, e após a cerimônia recepcionarão os convidados
na residência dos genitores da noiva, sita à Rua Eliezer Levy, n.º 1594. O
colunista agradece o honroso convite, e almeja aos nubentes uma vida repleta
de paz, felicidade e amor.81

Casamento – Lecy Sônia Duarte e o advogado Luiz Carlos, da BRUMASA,


deverão estar casando lá pelo final do ano. Ela foi miss Cidade de Macapá e é
uma das garotas mais educadas da capital.82

No dia 9 [de maio] do corrente estarão contraindo matrimônio, sob as bênçãos


de Deus, os jovens Natary e Manoel, cujo enlace realizar-se-á na hospitaleira
cidade de Afuá, no vizinho Estado do Pará. A noiva é filha do Sr. Dinair
Chagas de Santana, Prefeito daquela localidade, e sua digna esposa, senhora
Doralice Salomão Santana, e o noivo filho da viúva Paulo da Silva Vaiz. O
colunista agradece o honroso convite, e antecipadamente almeja ao futuro
casal, os melhores dias de venturas.83

As famílias dos noivos certamente eram de classe média e conhecidas do articulista da


coluna “Cada assunto uma notícia”, Wilson Sena, do Novo Amapá. Lecy Duarte é caracterizada
como “uma das garotas mais educadas da capital”, o que pode ser considerado atributo de uma
boa esposa. Outro aspecto observado é a forma com que as esposas eram identificadas nos
jornais, como apêndices do marido, pois os seus nomes aparecem entre parênteses. Exceto o
último artigo, porque nele a mãe da noiva aparece identificada, mas é importante destacar o
caso da mãe do noivo que ao ficar viúva perdeu a sua identidade tornando-se simplesmente
“viúva Paulo da Silva Vaiz”.
A família burguesa como criação do capitalismo disseminou ideais de casamento, de
maternidade, de esposa, de educação dos filhos e de comportamento feminino. O sistema
burguês para implementar a modernização e eliminar hábitos considerados atrasados, rompeu
com diversos costumes sociais. A imprensa amapaense contribuiu para reforçar os modelos de
mulher virtuosa e edificadora do lar, mãe dedicada e esposa companheira, e a separação entre
a esfera doméstica e o mundo dos homens, o espaço público. O que representou a valorização

80 SOCIEDADE e adjacências. A Voz Católica, nº 424, 1967, p. 03.


81 CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.570, 1970, p. 05.
82 NOTÍCIAS da sociedade. Idem, nº 1.686, 1973, p. 03.
83 CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.569, 1970, p. 07.
42

da virgindade e do recato das mulheres. Vimos se delinear uma distinção de classe: as mulheres
presentes nas páginas dos jornais são esposas e filhas de políticos, empresários ou de famílias
prestigiadas no TFA. As mulheres da classe trabalhadora raramente apareciam e, quando isso
acontecia era, de certa forma, em uma posição de receptora da assistência social das senhoras
de classes média e alta.

1.2 “Dizem que a vida de prostituta é vida fácil. Fácil coisa nenhuma”: a prostituição como
doença social
Os limites que separam a “mulher de família” e a “mulher da vida” são tênues e fluidos.
A figura da prostituta está presente em diversos locais e contextos históricos como uma mulher
fora dos limites da honra. Ela é um símbolo marcador do que uma mulher honesta não deve ser.
Margareth Rago explica que, em São Paulo, no início da República, a sociedade burguesa
polarizou as figuras da “mulher honesta” e da “meretriz” para se defender da ameaça
representada por esta última, como “mulher imaginariamente livre, descontrolada e
irracional”.84 E que “por mais independente que fosse a ‘mulher honesta’, sua liberdade estaria
sempre limitada no plano simbólico pela presença da meretriz”.85
Dessa forma, a figura da prostituta é um parâmetro de comportamento para a mulher
honesta, pois o comportamento daquela serve de critério para definir quais atitudes são desta.
Já no livro Do cabaré ao lar, a autora explica que é por causa do combate à sífilis e às doenças
venéreas em geral e para defender a saúde da população “que se estuda e medicaliza a
sexualidade da mulher, que se aborda o problema da prostituição e que se instituem os padrões
de comportamento da mulher honesta e casta e da vagabunda”.86
Janaína Contreiras, na sua dissertação de mestrado, aborda as trajetórias marcadas pela
violência sexual sofrida por presas políticas dos regimes ditatoriais de Brasil e Argentina, mas
também de outras ditaduras como as do Paraguai, Chile e Uruguai. Ela destaca que o corpo da
mulher se torna um campo de batalha em contextos de guerra. Ela pondera que uma das formas
de violentar sexualmente essas mulheres no Brasil dos anos da Ditadura Militar foi chamá-las
de prostitutas, vacas, putas subversivas e putas comunistas. Já nos demais países elas eram
violentadas com adjetivos pejorativos como perras, putas, maracas, dentre outros.

84 RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-
1930). 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 44.
85 Ibidem, p. 44-45.
86 RAGO, Luiza Margareth. Do Cabaré ao Lar: A utopia da cidade disciplinar – Brasil 1980-1930. Rio de Janeiro,
Paz e Terra, 1985, p. 87.
43

Segundo Contreiras, para uma parcela da sociedade essas mulheres enquanto militantes
políticas ou armadas estavam transgredindo o seu papel natural de mães e esposas, e ainda eram
acusadas de buscar encontros sexuais no meio político. Os militares buscavam formas de
humilhar e enfraquecer essas mulheres, atingindo a sua moral por meio de xingamentos e tortura
psicológica, além dos abusos físicos.87 Ela também afirma que muitas delas eram submetidas à
prostituição forçada por militares das ditaduras sul-americanas. Nesse caso, ela entende a
prostituição não como um serviço sexual oferecido por mulheres trabalhadoras, mas sim como
uma forma de violência sexual nas ditaduras da América do Sul.88 Para a autora, desmoralizar
as presas políticas foi um artifício de convencer a opinião pública para o perigo dessas “inimigas
internas”. E atribuir o adjetivo de putas e prostitutas a elas significava impingir uma “‘mancha’
sobre o nome da família perante a sociedade e afastava-se a constituição de possíveis redes de
apoio e de simpatia”.89 Logo, era preciso identificar essas mulheres como prostitutas para que
a sociedade as visse como um perigo para a nação e, principalmente, para a família.
Nos jornais amapaenses não eram comuns textos sobre prostituição. Selecionamos
alguns artigos que tratam diretamente do tema ou sobre o comportamento feminino. Apesar de
se tratar de um jornal laico e outro religioso, os textos têm semelhanças entre si, pois tratam a
prostituição como uma doença social causada pela falta de moral e boa educação das famílias.
Em edição de 1971, A Voz Católica transcreveu uma entrevista sobre prostituição da Revista
Salette90 de São Paulo, feita pelo seu redator, o Padre Anacleto Ortigara. Foram entrevistadas
200 prostitutas da capital paulista:

Um mal de sempre e de toda parte que só o amor pode curar

As prostitutas são, em geral, tristes vítimas duma sociedade que cultua o sexo
e deste se serve como motivação comercial, verdadeira fonte de recursos e
divisas nos grandes centros de convergência internacional das metrópoles de
antanho e de hoje. A vigilância e a violência não bastam para se extinguir o
lenocínio, o tráfico de escravas brancas, apesar de todo esforço moralizador e
coercitivos das autoridades públicas. Caftens e proxenetas desenvolvem às
ocultas seu tráfico escuso, dentro de verdadeira rede de aliciamento de
mulheres que não são propriamente pessoas, mas meros objetos que
constituem negócio lucrativo nas mãos dos exploradores da felicidade alheia.
Alta ou baixa prostituição, pública ou secreta, a dos palacetes, das choças e
prostíbulos baratos – tôda ela representa, hoje, a continuidade de um mal que

87 CONTREIRAS, Janaína Athaydes. Corpo de mulher, um campo de batalha: terrorismo de estado e violência
sexual nas ditaduras brasileira e argentina de segurança nacional. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-
Graduação em História), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2018, p. 145.
88 Ibidem, p. 133.
89 Ibidem, p. 151.
90 A Revista Salette é um informativo do Santuário Salette de São Paulo, tem cerca de 80 anos de circulação com
a missão de evangelização. Fonte: www.nsrasalette.org.br/informativo.
44

não se pode eliminar, mas que poderia atenuar consideravelmente, se houvesse


real compreensão do papel do sexo na vida humana, respeito pela mulher e
sua função junto ao homem, respeito ao corpo humano, afinal, uma
mentalidade mais espiritual que sabe guardar-se imune da corrupção e vencer
os brutais impulsos da natureza. É por não haver tais requisitos numa grande
porcentagem de homens, que os mesmos não sabem conter-se e descem abaixo
do nível dos animais entregando-se ao vício da carne e à prostituição da
mulher que deveria ser para ele uma companheira fiel na vida matrimonial e
social e nunca uma escrava como acontece na prostituição.91

Para a revista, a prostituta nada mais era do que uma vítima da sociedade que vê no sexo
uma oportunidade para obter lucro à custa do sofrimento de mulheres. Não era suficiente a
vigilância e nem a violência da polícia para extinguir esse comércio, porque os cafetões e
proxenetas procuravam meios de continuar seu comércio de exploração sexual. Depois, conclui
que não há maneira de acabar com a prostituição, mas sim de amenizar esse mal. Isso seria
possível se homens e mulheres soubessem o verdadeiro valor do sexo, se as mulheres fossem
respeitadas e que fosse entendida a função feminina junto aos homens, o que passaria pela
formação espiritual. Aqui, o entrevistador afirma que a maioria dos homens não possuía essa
“mentalidade espiritual”, por isso não conseguia conter seus impulsos naturais e tratava a
mulher como escrava na prostituição, e não como companheira.
Em seguida, o Padre Ortigara escreveu sobre os motivos que levaram essas mulheres ao
mundo da prostituição. Mas, ele não responsabilizava nenhuma delas por serem prostitutas ou
perdidas. Os principais motivos eram: família desestruturada, falta de educação sexual, ausência
de proteção legal às trabalhadoras domésticas que eram vítimas de seus patrões e dos filhos
deles e falta de capacidade de constituir um lar. Além desses aspectos, “grande parte delas se
diz vítima dos namorados e noivos que tudo lhes prometeram para levá-las ao pecado, mas se
esquivaram entregues à má sorte depois”.92 Assim, para o entrevistador, as prostitutas eram
vítimas de uma sociedade que não as protegia. A educação sexual reclamada era certamente
uma educação religiosa e não laica. Por fim, chegamos à sedução dessas mulheres pelos seus
namorados, que após o desvirginamento delas, não reparavam o mal pelo casamento. Ortigara
afirma que muitas delas já haviam tentado deixar de praticar a profissão, mas se tinham se
deparado com vários obstáculos, como a perseguição da polícia, falta de emprego, expulsão dos
lugares. Cerca de 180 das 200 entrevistadas falaram que estavam arrependidas e não queriam
mais continuar na vida de prostituta.

91 UMA ENTREVISTA diferente. A Voz Católica, nº 592, 1971, p. 2-3.


92 Ibidem.
45

Posteriormente, ele critica a concepção de que a prostituição é um mal menor ou


necessário para manter a moral familiar, porque “justifica-se a existência da prostituição e das
casas boêmias como ‘válvulas de escape dos homens’”.93 Segundo Ortigara, o que fica
resguardada é uma falsa moral:

Se quase 90% das mulheres que se prostituem vêem de famílias do interior,


de “famílias desorganizadas”, famílias em conflito, famílias em brigas, o caso
é perguntar-se; de quem a culpa? Não é de toda esta situação dos lares, de pais
impreparados, egoístas? Não é de mães que sabem dar orientação às filhas?
Se as “vagabundas” são filhas de famílias, não nasceram nas zonas, mas na
sociedade. A sociedade, portanto, é a culpada. Nem se fale das doenças
levadas aos lares, dos filhos aleijados, sifilíticos, heranças de mortes
prematuras.94

Dessa forma, os conflitos familiares, os pais despreparados e as mães que não sabiam
orientar as filhas eram os causadores da prostituição. Logo, a culpa não era das prostitutas e
nem da prostituição, pois elas eram vítimas de toda essa situação que produzia a exploração de
mulheres e zonas de meretrício. Para Anacleto Ortigara, as famílias desorganizadas de cidades
do interior faziam parte de um ciclo vicioso de uma sociedade egoísta e despreparada, que
produziria ainda mais famílias desorganizadas se continuasse “resguardando uma falsa moral”.
Por fim, ele afirma que a solução cristã para o problema da prostituição era a formação e a
educação que a família poderia dar aos seus filhos e filhas:

Elas são filhas de famílias que não se acertam e então o caminho é a


prostituição. E esta vida de mulher comprada, vendida, alugada, não é cristã,
não é humana. Ninguém avalia o tormento de uma moça que deve viver assim.
Externamente podem parecer felizes, têm de mostrar contentes para o olhar de
pecado, a fim de poderem viver. Ninguém gostaria que uma irmã sua, sua
esposa ou sua mãe vivessem assim. Diante da consciência e de Deus, somos
todos irmãos.95

Segundo o autor, as famílias estavam desestruturadas e o destino de algumas de suas


filhas era a prostituição. Ortigara destaca que a vida das prostitutas não era cristã e era infeliz.
Então deveria ser feito um esforço no sentido da formação familiar pautada nos ideais cristãos
para recuperar as mulheres que já estavam na prostituição e para evitar que outras filhas também
ingressassem na vida de mulher comprada, vendida e alugada.
Em seu livro que mescla memórias, poesias e histórias fictícias sobre o Amapá,
Amiraldo Bezerra questiona: “Quantas filhas de família casaram virgens graças aos serviços

93 Ibidem.
94 Ibidem.
95 Ibidem.
46

prestados por essas profissionais do sexo?”.96 Para ele, as prostitutas no Amapá contribuíram
com a manutenção da virgindade das moças honradas. Assim, percebemos que no TFA era
corrente a ideia criticada por Ortigara de que a prostituição era necessária para “equilibrar” os
desejos libidinosos dos rapazes e para manter intacta a moral social e familiar. Porém, ele
escreve que a sociedade é hipócrita, porque tenta esconder suas atitudes sob uma cortina de
moralidade, enquanto as prostitutas não tentam esconder nada, razão pela qual são
marginalizadas e discriminadas.97
De acordo com Mirela Morgante, na década de 1960, havia diversos bordéis na região
metropolitana de Vitória, nos quais os homens poderiam extravasar seus instintos sexuais para
preservar a honra e a moral burguesa que determinava que as mulheres deveriam casar virgens.
Mas a zona de meretrício da capital do Espírito Santo também servia “para extravasar suas
‘tensões’ [dos homens] adquiridas no trabalho cotidiano”.98 Logo, era socialmente aceito que
os homens frequentassem bordéis antes e durante o casamento. Além do mais, os “homens
saciavam seus desejos sexuais não tradicionais com as mulheres da indústria sexual,
resguardando a virgindade das namoradas e das noivas e mantendo o conservadorismo na
relação sexual com a esposa”.99 Também era difundida a ideia de que o apetite sexual masculino
era maior do que o apetite sexual feminino e de que as esposas deveriam aceitar essa “diversão”
dos maridos100, porque era natural que agissem desse modo. Era comum que os pais levassem
seus filhos para iniciar a vida sexual com as prostitutas dos bordéis de Vitória. Desse modo, os
rapazes já eram ensinados desde a adolescência a diferenciar a prostituta, para o sexo, da mulher
honesta, para casar.
Segundo Cristiana Schettini, no Rio de Janeiro, as autoridades judiciais entendiam “que
a prostituição deveria ser controlada, mas não reprimida”.101 A prostituição clandestina deveria
ser combatida pelo poder público para proteger mulheres “ainda não totalmente desonestas”.102
Já a prostituição pública só sofreria alguma intervenção para proteger os clientes, para que as
suas famílias e moças honestas não fossem prejudicadas. Desse modo, o controle da prostituição

96 BEZERRA, Amiraldo. A margem esquerda do Amazonas. Fortaleza: Premius, 2008, p. 05.


97 Ibidem, p. 91.
98 MORGANTE, Mirela Marin. Memórias da prostituição: território, poder e resistências em São Sebastião.
Serra-ES (1960-1980). Tese de Doutorado (Programa de Pós-Graduação em História), Universidade Federal do
Espírito Santo, 2020, p. 188.
99 Ibidem, p. 37.
100 Ibidem, p. 188.
101 SCHETTINI, Cristiana. “Que tenhas teu corpo”: uma história social da prostituição no Rio de Janeiro das
primeiras décadas republicanas. Tese de doutorado (Programa de Pós-Graduação em História Social),
Universidade Estadual de Campinas, 2002, p. 252.
102 Ibidem, p. 252.
47

clandestina era atribuído à Justiça, enquanto que o da prostituição pública era de


responsabilidade da polícia. Nesse caso, a vigilância sobre a prostituição só seria feita para
proteger aquelas que eram prostitutas clandestinas, pois ainda não tinham sido totalmente
corrompidas, mas principalmente para proteger as mulheres honestas de qualquer contato com
a prostituta pública. A preocupação do Estado nessa situação não era com a prostituta, mas sim
com a mulher honesta, para que ela se mantivesse honrada e protegida. A prostituição era tida
como um mal necessário justamente para que os namorados das moças de família não
“descarregassem seus desejos carnais” em suas namoradas. De acordo com Rago:

Se moralmente condenada, essa função [a prostituição] era bem-vinda na


sociedade, pois, segundo se acreditava então, garantia a virgindade das futuras
esposas e permitia que os moços arrefecessem parte do “fogo interno”, numa
fase da vida em que os impulsos libidinais eram muito prementes.103

E conforme Morgante:
Com seus inúmeros parceiros sexuais e comportamento transgressor, as
meretrizes eram vistas como o avesso da mulher honrada, maternal e fiel ao
matrimônio, servindo de parâmetro para a definição da normalidade sexual da
família nuclear legítima. Contudo, apesar de serem consideradas como
anomalias, uma verdadeira doença social, as prostitutas cumpriam uma função
dentro do sistema binário de relação sexual, possibilitando que os homens
exercessem sua performance masculina tendo uma diversidade de parceiras
sexuais e que as mulheres “feitas para casar” preservassem sua virgindade e o
comportamento sexual tradicional.104

Assim, aceitava-se a existência da prostituição como um mal necessário para preservar


a honestidade e a moral sexual das famílias, principalmente das meninas virgens à espera de
um enlace matrimonial e que estavam ameaçadas pelo “fogo interno” de seus futuros esposos.
Logo, as prostitutas eram uma peça indesejada, mas necessária desse sistema social construído
para proteger a moral sexual e familiar. Além disso, o sexo que não era conservador podia ser
praticado somente por homens e prostitutas, à esposa era negado esse lugar, porque ele rompia
o ‘tradicional”, o “normal” e a mulher que rompesse a norma não poderia presumir-se honesta.
Além desses limites simbólicos e discursivos entre a mulher honesta e da prostituta,
limites físicos também eram impostos. Rago infere que, em algumas ocasiões, as prostitutas de
luxo e as mulheres respeitáveis compartilhavam o mesmo espaço, mas não deveriam se
misturar, ou seja, manter um contato mais próximo. Outra preocupação era a aparência e até o
perfume usado pelas mulheres, um perfume forte e marcante não era característica de uma

103 RAGO, Margareth, 2008, Op. Cit., p. 28.


104 MORGANTE, Mirela, Op. Cit., p. 244.
48

mulher pura.105 A prostituição era aceita até determinado ponto em num local visível. No mais,
era necessário, segundo o discurso hegemônico, que houvesse um deslocamento das zonas de
meretrício para locais mais afastados. O lugar do sexo e do prazer deveria estar longe do lugar
da família higienizada.106
Em edição de maio de 1974, o Novo Amapá divulgou uma palestra nomeada como
“Prostituição – Um flagelo social”, realizada pela aluna do curso de polícia feminina, Maria
Delci dos Santos:

Estudante faz palestra sobre prostituição: amanhã

[...]
A palestra que Maria Delci dos Santos vai proferir, visa conscientizar as
jovens das causas e consequências desastrosas da prostituição, procurando
dar-lhes uma visão real das frequentes tragédias oriundas da denominada
chaga social.

Advertência e orientação será a técnica da palestra, como orientação para que


as moças não enveredem pelos caminhos da vida.

As moças que por motivo de fraqueza moral, palmilharam os caminhos da


prostituição sofrem negativas consequências para o corpo e para o espírito.
Elementos mal informados dizem que a vida de prostituta é vida fácil. Fácil
coisa nenhuma. Não existe verdade nessa afirmativa. A vida que essas
mulheres levam é bem difícil. Exemplo? A sociedade as olha com diferença.
A polícia as persegue e os homens não as querem por amor, mas simplesmente
para dar vasão a instintos bestiais, o que contraria os princípios da filosofia de
Cristo, disse a jovem Maria Delci, ao ser inquirida pelo NOVO AMAPÁ sobre
suas ideias a respeito da prostituição – e acrescentou: como aluna do curso de
polícia feminina tenho aprendido muita coisa útil e me sentiria muito infeliz
se não aplicasse meus conhecimentos como forma de contribuir para formação
de uma sociedade melhor.107

O local escolhido foi a Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, no bairro do Trem.


Em 1968, A Voz Católica noticiou que as moças do Trem teriam um lugar para a sua diversão
e formação na Paróquia do bairro do Trem108. O jornal ainda enfatiza que espera que o trabalho
realizado no Núcleo Primaveril “seja eficaz e tenha frutos para a vida eterna”. 109 O objetivo
deste núcleo era formar mulheres segundo os preceitos cristãos e essa palestra foi pensada como
um meio para advertir que as jovens católicas do bairro do Trem não caíssem no mundo da
prostituição. Maria Delci tinha como objetivo alertar as jovens sobre as causas e consequências

105 RAGO, Margareth, Op. Cit., p. 40.


106 Ibidem, p. 46.
107 ESTUDANTE faz palestra sobre prostituição amanhã. Novo Amapá, nº 1.730, 1974, s/p.
108 O artigo não indica o nome da Paróquia, mas certamente se trata de Nossa Senhora da Conceição.
109 AS MOÇAS do Trem. A Voz Católica, nº 439, 1968, p. 3.
49

de ser prostituta, dentre elas a exclusão social, perseguição policial e as intenções escusas de
homens que procuram seus serviços apenas para saciar desejos carnais, sem amor, o que não
estava em acordo com a filosofia cristã. Por isso, a palestrante não concordava com a afirmativa
de que a prostituta levava uma “vida fácil”, pelo contrário. Ela atribuía a entrada de mulheres
na prostituição à “fraqueza moral”. Então essa palestra serviria para fortalecer os valores morais
das mulheres católicas que estavam recebendo essa formação. Inclusive, no final de sua fala, a
estudante disse que seus conhecimentos sobre o tema haviam sido adquiridos num curso de
polícia feminina, o que nos leva a pensar que a prostituição e a presença dessas mulheres nos
locais públicos era uma preocupação da polícia no Amapá.
A coluna “Comentando”, de Cordeiro Gomes, tratava de assuntos aleatórios. O
articulista escolhia alguns casos para fazer comentários, por vezes satíricos, sobre eles. Em um
desses comentários, comentou sobre uma comerciante:

No bairro do Jacareacanga110 existe uma senhora, proprietária de uma certa


“baiúca” que quando dá na “veneta” vem para frente de sua casa de comércio
e faz um verdadeiro comício, detratando todos os moradores daquele núcleo
populacional, com palavras de baixo calão. Algumas pessoas já estão
providenciando um abaixo-assinado para levá-la de encontro à justiça.111

Como Cordeiro Gomes usava do humor para apresentar alguns episódios da vida local,
ao se referir ao comércio da dita senhora como “baiúca”, entendemos que ele buscou meios de
não identificar diretamente uma casa de prostituição. Por outro lado, o estabelecimento poderia
ser um mercado ou uma loja e ele pode apenas ter criticado um comportamento desagradável
de uma vizinha para com os demais moradores de sua rua.
Em duas edições de 1974, o periódico destacou o mau comportamento de homens jovens
em locais públicos. Em edição de janeiro abordou os palavrões proferidos pela cidade, sem a
devida preocupação com a presença de pessoas idosas, crianças e mulheres que não estavam
acostumados a ouvir certos termos:

Somos dos que entendem ainda ser a mulher, alguma coisa de respeitável, de
delicado e de poético. Não existissem outras razões, somente a de ser mãe ou
da possibilidade de vir a ser no futuro, já justifica um tratamento especial, um
respeito maior, uma admiração acentuada.

Existem mulheres que permitem, aceitam e até participam das chamadas


conversas mais fortes, ou porque não dizer, indecorosas. Existem outras no
entanto, que por questão de formação, de ambiente e de próprio respeito por
si mesma, não aceitam tal estado de coisas, sentido-se constrangidas quando

110 Atualmente, o bairro do Jacareacanga corresponde ao bairro Jesus de Nazaré, em Macapá.


111 COMENTANDO. Novo Amapá, nº 1.579, 1970, p. 2.
50

tais fatos ocorrem em suas presenças. E não se vá dizer que se trata de


cafonismo, quadradismo ou outros ismos. É respeito mesmo, é educação
mesmo, é enfim, classe e dignidade [...].112

Como vimos, o jornal também critica mulheres que colaboram com “conversas
indecorosas” e que o fazem por falta de formação, de ambiente e respeito por si próprias,
diferentemente de outras melhores “formadas” e que se sentem desconfortáveis com tais
conversas. Já em edição de maio, o jornal publicou um artigo sobre a bagunça nos cinemas de
Macapá, destacando como os jovens da capital se comportavam de forma inadequada
incomodando as outras pessoas presentes:

Ultimamente está se tornando difícil a presença de senhoras e senhoritas nos


cinemas da capital, em face da extrema falta de educação e do rompimento
dos princípios básicos que regem o comportamento social.

O que se ouve nas salas de espetáculos de Macapá talvez não seja ouvido em
prostíbulos da mais baixa categoria, fazendo com que os homens de bem se
sintam mal e tornando impossível a presença do elemento feminino, que por
ser mais delicado não pode se sujeitar a determinados vexames.113

Era esperado que houvesse esse tipo de comportamento nos prostíbulos, considerado
um local de “baixa categoria”. Nesse artigo, o jornal demarca o que é um ambiente adequado
para as famílias e o que não é, já que as senhoras e senhoritas, não as prostitutas, eram seres
delicados e que não podiam presenciar cenas de mau comportamento juvenil praticadas no
cinema.
Sobre o comportamento feminino, A Voz Católica na “Coluna da mulher” critica as
mulheres que expõem partes do corpo para chamar a atenção dos homens e “vendem a sua
dignidade e o seu pudor”, rebaixando, assim, “a sua dignidade e tornando-se seres inferiores a
respeito dos homens”.114 Era esperado que essa mulher não mostrasse certas partes do corpo,
pois, dessa maneira, teria muito mais respeito e admiração dos homens. O jornal afirma que
esse tipo de comportamento era incomum mais em lugares subdesenvolvidos:

Felizmente, isto não acontece em todos os lugares. Parece que se trata de um


fenômeno mais generalizado nas regiões subdesenvolvidas, especialmente nas
menos adiantadas culturalmente.
Hoje todos se queixam da subversão dos valores morais e ninguém mais tem
a coragem de falar claro dizendo às mulheres quanto se tornam ridículas e se
rebaixam com certas modas.
[...]

112 O PALAVRÃO. Novo Amapá, nº 1.714, 1974, p. 02.


113 JUVENTUDE não é molecagem. Novo Amapá, nº 1.731, 1974, p. 02.
114 COLUNA da mulher. A Voz Católica, nº 472, 1968, p. 2.
51

Não se sentiriam as moças e senhoras, mais belas e nobres e tranquilas se,


procurando tornar-se bonitas, o fizessem com uma verdadeira elegância,
deixando de lado as degradantes e escravizantes manifestações de certa moda
moderna, que faz da mulher um objeto de cobiça e uma fonte de mercado para
lucrar dinheiro, explorando a [rasurado] e a sua falta de reflexão?.115

O periódico não se refere diretamente ao Território Federal do Amapá ou ao Brasil, mas


o texto leva a crer que esse comportamento feminino moralmente degradante acontecia
localmente, porque o TFA era um lugar culturalmente atrasado. De certo modo, o texto também
atribui a subversão moral às mulheres que aderiam às “roupas da moda” e se tornavam
“ridículas” ao fazer isso, porque estavam provocando a cobiça masculina.
Mulheres que andavam sozinhas pelas ruas, frequentavam bailes e namoravam longe da
vigilância familiar eram facilmente tidas como prostitutas no Amapá. F.T. Lima é um excelente
exemplo dessa concepção do que era ser prostituta na Amazônia setentrional. Ela foi vítima de
um crime de sedução, mas a maioria das testemunhas, que eram homens, e o acusado, se
referiam constantemente aos “maus hábitos” dela. Ela era empregada doméstica, mas
frequentava bailes em clubes suburbanos e, segundo as testemunhas, não era mais virgem.
Inclusive, era vista por quase todos eles como uma meretriz. F.T. Lima não era uma profissional
do sexo, mas o seu suposto comportamento serviu como justificativa para que as pessoas
duvidassem de sua queixa na delegacia116
Em outro exemplo advindo de processos judiciais de crime de sedução, P.P. Borges
declarou que conheceu M.N.C. Lopes próximo à Igreja São José, ocasião em que percebeu que
ela ficava lhe observando, quando sorriu e ela sorriu de volta e se aproximou dele. Ele disse
que “vendo-a assim a tomou por empregada doméstica, mulher sem compromisso de honra ou
de casamento”117. M.N. era de prendas do lar, mas não uma trabalhadora doméstica
remunerada.118 Com essa afirmação, é possível notar como até empregadas domésticas, que
eram tidas como trabalhadoras honestas, eram vistas como mulheres sem compromisso ou
desonradas. Isso porque não eram mulheres que se restringiam à esfera doméstica do seu
próprio lar, mas que se colocavam a serviço de outren. Esse mesmo pensamento poderia
também justificar abusos sexuais de patrões ou de outros homens a empregadas domésticas,
como esse depoimento exemplifica.

115 Ibidem.
116 AFCM. Processo nº 2.234 de 1970.
117 AFCM, Inquérito S/N de 12 de dezembro de 1968, p. 13.
118 Explicaremos a diferença das categorias de trabalhadoras domésticas no próximo item.
52

Há também casos em que meninas e mulheres eram difamadas pela vizinhança e


xingadas por desconhecidos, o que gerava processos criminais de difamação, crimes contra a
honra e lesões corporais. Em um inquérito de crime contra a honra, a representante M.S. Picanço
(mãe)119, brasileira, amapaense, casada, de prendas domésticas, de 52 anos de idade, residente
no bairro Jesus de Nazaré, sabendo ler e escrever, tinha uma filha menor de 15 anos, M. da S.P.
(filha), estudante, residente com sua genitora, brasileira, natural de Macapá, sabendo ler e
escrever, e que teve a reputação ofendida por vizinhos. No ato da denúncia foi informado que
a representante registrou a ocorrência na ausência de seu marido, B.A.P., funcionário da Icomi,
em Serra do Navio. Isso nos leva a pensar que ela era quem chefiava a família em Macapá.
Os acusados eram vizinhos “com os quais há pouco tempo mantinha boas relações de
amizades, não levando em consideração as pequenas rusgas de famílias, que surgiam, com a
finalidade de manter a paz com seus vizinhos, vindo entretanto romper essa relação de
amizade”120. Na semana anterior ao registro de ocorrência, sua filha M.S.P., disse que os
vizinhos estavam “propalando na VIZINHANÇA de que ela M., não era mais virgem, fazia
programa na boate Juçarão e outros bordéis, estando até contaminada de doenças venéreas”121.
Em primeiro lugar, a representante afirmava que, apesar dos conflitos entre as famílias, tinham
boa convivência. Contudo, essa cordialidade foi rompida no momento em que os vizinhos
começaram a difamar sua filha. Percebemos como não foi suficiente afirmar que a menor não
era mais virgem, pois também afirmaram que ela frequentava bordéis pela cidade. Com isso,
entendemos que uma coisa estava diretamente ligada à outra, ou seja, se esta menina não era
mais virgem, logo, era também prostituta. Após saber disso, ela perguntou aos seus vizinhos
sobre o ocorrido e eles reiteraram que a menor não era virgem e que estava com doenças
venéreas. Então ela decidiu registrar ocorrência e realizar exame de conjunção carnal em sua
filha e solicitou que fosse aberto inquérito para apurar os fatos.122
M.N.C. Lima, brasileira, casada, residente na Vila Maia, em Santana, cor parda, natural
de Breves, 24 anos de idade, doméstica, sabendo ler e escrever, em meio a uma discussão, foi
até a casa de M.N.O do Nascimento, brasileira, natural de Gurupá/PA, doméstica, casada, com
38 anos, sabendo assinar o nome, e a agrediu com um pedaço de pau, o que causou um profundo
golpe no couro cabeludo, no dia 14 de dezembro de 1976, em Vila de Santana123. A vítima

119 Mãe e filha têm a mesma sigla. Não foi possível diferenciar porque não tivemos acesso ao nome delas.
120 AFCM, Inquérito S/N de 06 de abril de 1981, p. 2.
121 AFCM, Inquérito S/N de 06 de abril de 1981, p. 2.
122 AFCM, Inquérito S/N de 06 de abril de 1981, p. 3.
123 AFCM, Processo crime nº 4.111 de 13 de julho de 1977, p. 2.
53

estava nos primeiros meses de gestação. A testemunha B.O.M., brasileira, amapaense, solteira,
estudante, 17 anos de idade, residente em Serra do Navio, sabendo ler e escrever, disse que o
caso começou quando a acusada ouviu M.N.O. do Nascimento falar que ela gostava de arranjar
intrigas com os vizinhos e “começou a insultá-la, chamando diversos nomes pornográficos,
inclusive dizendo que a filha de M.N.O. do Nascimento não passava de ‘uma putinha’, ‘uma
casseteira’124”.
R.L.O.B., brasileira, amapaense, solteira, 18 anos de idade, doméstica, residente na
avenida Mendonça Júnior, Central, depôs que era amasiada havia dois anos e três meses com
M.J.P. e no dia 17 de agosto de 1980, quando voltava com seu amásio para sua residência,
ambos foram abordados pelo acusado dizendo que M.J.P. era corno. Após uma discussão os
dois entraram em luta corporal e, quando ela interviu, o acusado “disse que [a] representante
era puta, que a casa dela só vivia cheia de macho, quando seu amásio saia pra rua e que a mesma
copulava com um e outro”125
C.M.S. dos P., aluna do Ginásio de Macapá, brasileira, amapaense, solteira, 19 anos,
sabendo ler e escrever, discutiu com a namorada do acusado, na sala de aula e ele desferiu um
chute nela. Na discussão, C. disse que foi chamada de “casseteira” pelo acusado126. O acusado,
P.S.S.T., aluno do Ginásio de Macapá, cor branca, amapaense, sabendo ler e escrever, por sua
vez, alegou que a vítima havia chamado a namorada dele de “puta” e quando ele foi repreendê-
la, ela o chamou de “fresco” e por isso ele a agrediu, pois se descontrolou por ter tido a sua
dignidade ofendida127.
No dia 02 de junho de 1976, R.C. Pinto, cor parda, doméstica, 28 anos, feriu L.G.
Pereira, brasileira, amapaense, solteira, 14 anos de idade, sabendo ler e escrever, com um cabo
de vassoura. Elas eram vizinhas e se ofenderam mutuamente. A acusada alegou que M.N.G.
Pereira, brasileira, paraense, casada, 40 anos de idade, sabendo ler e escrever, e suas filhas a
viviam hostilizando. No dia do desentendimento, M.N. ofendeu R.C. Pinto com palavras de
baixo calão e insinuou que ela estava tendo um caso com seu marido. Já a vítima L.G. Pereira,
filha de M.N.G Pereira, disse que, inicialmente, a discussão era entre sua mãe e a acusada, mas
R.C. Pinto começou a chamá-la de prostituta e as duas travaram luta corporal na qual ela saiu
lesionada em sua orelha esquerda128. M.N.G. Pereira, paraense, casada, 40 anos de idade,

124 AFCM, Processo crime nº 4.111 de 13 de julho de 1977, p. 6.


125 AFCM, Autos de Representação para apurar materialidade e autoria de fato delituoso nº 72/1980, de 22 de
agosto de 1980, p. 2.
126 AFCM, Autos de Prisão em Flagrante de menor por lesões corporais, de 06 de junho de 1975, p. 4.
127 AFCM, Autos de Prisão em Flagrante de menor por lesões corporais, de 06 de junho de 1975, p. 5.
128 AFCM, Processo Crime nº 1.379 de 06 de julho de 1978, p. 9.
54

sabendo ler e escrever, disse que estava separada havia um ano de seu marido e que desde então
era destratada por R.C. Pinto “que a taxa[va] de vagabunda, mulher sem respeito, e ainda
propala[va] que anda[va] mantendo relações amorosas com o amante de R.; que, passou
também a ofender a reputação de suas filhas”129. Nota-se que a rixa entre ela se dava
principalmente pelos relacionamentos amorosos que ambas tinham. M.N. acusava R. de ter um
caso com seu ex marido, por sua vez, R. acusava M.N. de se relacionar com seu amante e ainda
a insultou com termos como “vagabunda”. Independentemente dos motivos que levaram essas
vizinhas a brigar e se ofender mutuamente, observamos que “ter um amante” ou “estar
separada” rendia comentários e julgamentos sobre a vida particular dessas mulheres.
Na madrugada do dia 15 para o dia 16 de setembro de 1974 em uma festa de aniversário
no bairro do Pacoval. M.B.F., cor morena escura, solteira, doméstica, que trabalhava em casa
de família, amapaense, sabendo ler e escrever, 34 anos, agrediu B.C.S. com uma gilete. B.C.S.,
amapaense, solteiro, 25 anos de idade, carpinteiro, sabendo ler e escrever, declarou que foi a
uma festa de aniversário próximo a sua casa e dançou com uma mulher desconhecida,

Mas por motivos que desconhece a mesma achou que não deveria mais dançar
com o declarante, indo postar-se no pátio da casa; que o declarante não
satisfeito com a atitude da dita mulher dissera que já que ela não queria dançar
que fosse embora; que ato contínuo a referida mulher lhe segurou pela camisa,
tendo o declarante de boas maneiras pedido para ela lhe largar, mas devido à
insistência da mulher em segurá-lo, aplicou-lhe um empurrão e como ela
estivesse bem segura em sua camisa, resultou irem ao chão; que logo chegou
alguns colegas do declarante que lhe tiraram de sobre a referida mulher e nessa
ocasião um deles lhe advertiu que estava cortado no braço direito e que foi
logo constatado pelo declarante que a seguir o declarante constatou também
estar com um outro ferimento um pouco abaixo da omoplata, lado esquerdo
que o declarante não pode precisar qual o tipo da arma utilizada pela dita
mulher na prática do delito; que nos dois ferimentos sofridos o declarante
sofreu dezoito pontos.130

A acusada, por sua vez, declarou que foi à festa a pedido de uma de suas filhas e foi
tirada para dançar por B., relutou de início

Mas após B. lhe puxar bruscamente pelo braço e dizer que pra ‘puta’ não tinha
vez e para evitar maiores problemas saiu para com ele dançar muito embora
contra sua vontade; que durante aquela parte B. começou a se exceder,
chegando ao ponto de no meio da sala en franco desrespeito aos que alí se
encontrava, apalpar as nádegas da declarante, com o que não ficou satisfeita;
que em decorrência desse fato a declarante saiu da sala ficando no pátio da
casa a espera da filha, quando de sí se acercou B. e à declarante dissera que se

129 AFCM, Processo Crime nº 1.379 de 06 de julho de 1978, p. 10.


130 AFCM, Processo Crime nº 3708 de 26 de fevereiro de 1977, p. 5.
55

não queria dançar que fosse embora, sem responder qualquer palavra foi por
ele esbofeteada e chutada pelo dito individuo ocasionando com isso a
declarante ser jogada ao chão; que a declarante quando se levantava foi
novamente pisada por B., desta feita na altura da barriga, sendo outra vez
jogada ao chão, disso se aproveitou B. para ficar sobre a declarante lhe
esmurrando, por diversas partes do corpo; que a declarante ao ser duramente
castigada pelo citado indivíduo tirou do bolso do vestido uma gilete e com
esse instrumento recorda de ter cortado o citado indivíduo por mais de uma
vez, não podendo afirmar se acertou todos os golpes e nem os locais atingidos;
que B. vendo-se ferido deixou a declarante, ali se demorando um pouco para
depois se retirar; que mesmo batida como estava não procurou a Polícia,
preferindo silenciar o fato, pois desde esse dia ficou na casa de sua patroa e
somente ontem, foi que apareceu em sua residência; que a declarante sabia
que a Polícia andava a sua procura, porém, temia se apresentar, o que só o fez
nesta data que a declarante esclarece que nunca teve nada com aquele
individuo; que a declarante esclarece mais que nesta Delegacia não sofreu
nenhuma coação por Parte da autoridade que lhe está inquirindo; que não está
arrependida de haver cortado o citado B.; que a declarante esclarece ainda não
ser dada ao uso de bebidas alcoólicas e por esse motivo estava seu senso
normal. E mais não disse.131

Esse caso nos traz diversas informações que merecem destaque. No Boletim Individual
de M.B.F. consta que ela é de cor branca, embora no seu Auto de Qualificação seja declarada
enquanto morena escura, ou seja, negra. Já no Boletim de Vida Pregressa do Indiciado é
qualificada como parda. Esses desencontros de informações são comuns nos processos
judiciais, mas apesar dessa imprecisão podemos concluir que M.B.F. era uma mulher
racializada, uma mulher negra. Ela tinha como recreações preferidas festas dançantes e o lugar
que mais frequentava era salões de festas. Uma mulher solteira com filhas que tinha festas e
danças como principal lazer e andava com uma gilete no sutiã para se defender de
inconvenientes e de situações de perigo como aconteceu nessa noite. A abordagem de B.C.S já
foi desrespeitosa e para evitar problemas, M.B.F. anulou sua própria vontade em favor das
vontades de um homem que ela não conhecia. Os depoimentos dos envolvidos tem diferenças,
mas o relato de M.B.F. é o que mais condiz com as declarações feitas pelas testemunhas. Assim,
M. estava se defendendo de um espancamento causado porque B. não aceitava ser recusado,
pois para ele, não era concebível que uma puta, como ele a descreveu, lhe negasse uma dança,
a partir do que passou a agir violentamente contra ela. O comportamento misógino e machista
de B. pode ser justificado por ele ver M. como uma prostituta, o que acentua seu ódio, e pelo
fato de desprezar mulheres, independente da profissão ou da forma que ele as enxergava. O
processo prescreveu em 1981.

131 AFCM. Processo Crime nº 3708 de 26 de fevereiro de 1977, p. 10.


56

Percebemos os xingamentos eram recorrentes nos inquéritos e processos criminais. Uma


ofensa à honra dessas mulheres era associá-las à figura da prostituta. Chamar uma mulher de
“puta”, “casseteira”, “putinha” era uma forma de desqualificá-la e diminuí-la, é o momento em
que uma mulher honesta ultrapassa a fronteira e se torna (na representação) uma mulher
desonesta.
Era esperado que as jovens pobres amapaenses não frequentassem festas, não
trabalhassem fora de casa e nem andassem nas ruas sozinhas, mas elas ultrapassavam
cotidianamente esses limites de comportamento para assegurar a sua sobrevivência, no caso do
trabalho, e para ter com o que se divertir, no caso das festas. Então, como consequência, quando
precisavam da Justiça e da Polícia, o seu comportamento e o que a sociedade pensava delas era
o que impedia que elas não “desfrutassem” da proteção do Estado. Ademais, os bordéis ou
prostíbulos foram claramente demarcados como lugares indecorosos, sujos e desorganizados.
As mulheres frequentadoras à maioria desses ambientes não eram as senhoras e senhoritas
delicadas e frágeis de família, mas sim as prostitutas habituadas a ouvir todo tipo de vocabulário
vulgar, especialmente vindo de homens.
A prostituição nesse período era tida como uma doença social. A prostituta era percebida
como uma mulher cuja formação moral era falha, porque a sociedade em geral e as famílias em
particular estavam falhando na educação de seus filhos e filhas. Podemos perceber que houve
certa cooperação entre o Estado e a Igreja Católica para formar profissionais de segurança com
conhecimento sobre a prostituição e suas causas, para que eles pudessem educar jovens meninas
sobre o assunto. No entanto, isso estava muito mais direcionado a mulheres que estavam na
Igreja ou em comunhão com grupos religiosos, aquelas que já estavam “perdidas”, mesmo que
não fossem prostitutas, não eram incluídas nessas ações. Essas mulheres de moral desviante
eram consideradas inferiores e se referir a uma mulher como prostituta significava muito mais
do que falar sobre a profissão de fato, mas sim falar sobre o comportamento, sobre a honra
dessas mulheres. Além do mais, também era uma forma de diminuir mulheres que estavam em
situação de privação de liberdade, como as presas políticas das ditaduras da América Latina,
que eram violentadas sexualmente e de forma verbal.

1.3 Trabalho doméstico e outros “ofícios honestos” das mulheres amapaenses


As mulheres do Amapá exerciam as mais diversas atividades, quase sempre
relacionadas ao trabalho doméstico. Não eram raros os casos em que as mulheres declaravam
ser domésticas ou “do lar” quando perguntadas sobre sua profissão. No entanto, o “serviço
doméstico” podia ocultar outras atividades, como a prostituição. Algumas mulheres exerciam
57

o meretrício junto com o trabalho de doméstica, eram somente meretrizes ou haviam sido
prostitutas em algum momento e tinham passado a se dedicar somente ao trabalho doméstico.
Além disso, a maior parte das mulheres amapaenses iniciaram a sua vida no mundo do trabalho
com afazeres domésticos ainda na infância, seja na sua própria casa ou como empregadas
domésticas na casa de outrem. Muitas delas passavam a vida inteira como trabalhadoras
domésticas, enquanto outras mudavam de profissão no decorrer dos anos. Sobre essa relação
do serviço doméstico com outras atividades, a historiadora Rachel Soihet pondera:

Uma série de dificuldades, porém, apresenta-se, quando da contabilização do


trabalho feminino. Por força da ideologia de que a função essencial da mulher
prende-se ao lar, muitas mulheres, mesmo exercendo uma outra atividade, ao
serem inquiridas, declaram apenas o exercício do serviço doméstico,
conforme foi por nós observado em alguns processos criminais.132.

Soihet atribui a autoidentificação das mulheres como domésticas à ideologia dominante


de que a mulher deve se restringir ao lar, zelar pelos filhos e pelo casamento. Ela também
declara que muitas atividades femininas como lavagem de roupa, prostituição, artesanato e
pequeno comércio não constam em censos, sendo englobadas na categoria de serviço
doméstico, assim como trabalhos que não são remunerados.133 Nesse sentido, segundo Cristina
Wolff: “A categoria de ‘trabalho doméstico’ tem escondido, ao longo da história, muitas formas
diferentes de trabalho. Basicamente, designa um tipo de atividade necessária para a vida, para
a reprodução humana em seu sentido amplo; atividade que não é voltada para o mercado”.134
Para esta autora, o trabalho doméstico é uma peça-chave para a subsistência familiar e também
para a relação da família com o mercado nos seringais do Acre. De acordo com Wolff, quanto
mais a mulher fizesse trabalhos como a costura, a criação de animais e colaborasse com as
atividades dos seringais, isso quando ela mesma não cortava a seringa, mais borracha a família
teria para vender e menos produtos precisaria comprar.135 E mesmo assim, o trabalho das
mulheres era considerado inferior ou não importante nos seringais.
É um trabalho majoritariamente feminino e, de certa forma, há uma naturalização dessa
atividade como feminina. Soraia de Mello afirma que “a naturalização do trabalho doméstico
como função feminina se insere em um grupo de ideias a respeito de relações sociais e morais

132 SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana, 1890-1920. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 1989, p. 169.
133 Ibidem.
134 WOLFF, Cristina Scheibe. Mulheres da floresta: uma história: Alto Juruá, Acre (1890-1945). São Paulo:
Hucitec, 1999, p. 79.
135 Ibidem, p. 80.
58

que são comumente identificadas como conservadoras ou tradicionais”136, e aponta que o


movimento feminista conseguiu conquistas no que se refere à liberdade sexual e aos direitos
das mulheres, seja no trabalho, na saúde e na educação, mas ao que parece a pauta do trabalho
doméstico não acompanhou esses avanços.
Michelle Perrot divide as trabalhadoras domésticas francesas do pós-industrialização,
isto é, dos séculos XVIII e XIX, em três categorias: a dona de casa de origem humilde, a dona
de casa burguesa e a criada, atualmente definida como empregada doméstica.137 A dona de casa
da classe operária realiza todas as tarefas, desde a preparação das refeições à costura de roupas
da família, e também ganha dinheiro com compras e lavagem de roupas para a vizinhança. Já a
dona de casa burguesa, tem a responsabilidade de cuidar da casa, dos filhos e dos criados.
Quando essa mulher era da pequena ou média burguesia, poderia ter somente uma criada, pois
não ter criados significava perder status social. Algumas delas também ajudavam os pobres e
faziam atividades de caridade. Por último, as empregadas domésticas eram remuneradas com
casa e comida, o seu “salário”, que não era regular, e poderia sofrer descontos, caso causassem
algum dano às louças e roupas. Elas não tinham folga e seus serviços eram frequentemente
requisitados.
Já Chitra Joshi levanta aspectos do trabalho feminino na Índia e explica que trabalhar
fora de casa não era algo bem visto para mulheres de algumas regiões indianas e de
determinadas castas, o que não significava que elas ficassem totalmente reclusas no espaço
doméstico. A autora ainda aponta que a crescente informalização do trabalho tem mostrado
como os limites do que é público e privado se confundem nesse país. Dessa forma, ainda que
as mulheres sejam empurradas pelo patriarcado ao âmbito doméstico e privado, as famílias da
classe trabalhadora buscam formas de superar esses limites para garantir a sua sobrevivência.
As mulheres se ocupam com a produção de bidis138 nas áreas rurais para vender a comerciantes
locais, enquanto os homens da casa estão nos espaços urbanos trabalhando em fábricas ou
outros serviços. Ela critica a historiografia indiana que define o dinheiro recebido pelas
mulheres como “suplementar” e dos homens como “principal”, mas também explica que para

136 MELLO, Soraia Carolina de. A questão do trabalho doméstico: recortes do Brasil e da Argentina. In: PEDRO,
Joana Maria Pedro, WOLFF; Cristina Scheibe; VEIGA, Ana Maria. Resistências, gêneros e feminismos contra as
ditaduras no Cone Sul. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2011, p. 71.
137 PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007, p. 115.
138 “Bidi = Tabaco seco enrolado numa folha de tendu, depois fumado” (ver: JOSHI, Chitra. Além da polêmica
do provedor: mulheres, trabalho e história do trabalho. Mundos do Trabalho, Florianópolis, v. 1, n. 2, p. 147-170,
nov. 2009, p. 156).
59

a sociedade indiana o trabalho desenvolvido pelas famílias nas aldeias não é reconhecido e nem
considerado, ao passo que os ganhos do trabalho dos homens são festejados.139
Ângela Davis pondera que nas sociedades capitalistas, as donas de casa são eternas
servas de seus maridos e “como as tarefas domésticas não geram lucro, o trabalho doméstico
foi naturalmente definido como uma forma inferior de trabalho, em comparação com a atividade
assalariada capitalista”.140 Então, a dona de casa não tem prestígio nenhum com o seu trabalho
porque não é produtivo. Davis considera que as mulheres passaram a ser consideradas como
“guardiãs do lar”, mas isso entrava em contradição com as trabalhadoras assalariadas brancas
dos Estados Unidos, que só eram donas de casa em segundo plano. Além das trabalhadoras
negras escravizadas que trabalhavam na produção escravagista do Sul estadunidense. Desse
modo, a “dona de casa” é a mulher burguesa ou de classe média. Porém, apesar da dona de casa
ser um produto ideológico do capitalismo do século XIX e ter surgido no meio da burguesia e
das classes médias, se tornou um modelo de feminilidade generalizante141, como toda ideia da
classe dominante.
Eric Hobsbawm afirma que como o trabalho masculino não era suficiente para garantir
a sobrevivência familiar da classe trabalhadora, o trabalho das mulheres e das crianças era
primordial para o sustento das famílias. Na Inglaterra do século XIX, o trabalho feminino
existia, mas era invisibilizado pelos recenseamentos, principalmente o trabalho de mulheres
casadas, “visto que grande parte do trabalho pago feito por elas não seria declarado como tal ou
não seria diferenciado das tarefas domésticas com as quais não raro coincidia”. 142 Assim, a
economia excluía as mulheres casadas porque somente eram considerados os ganhos em
dinheiro e o trabalho não-remunerado produzido no interior das casas não constava como uma
ocupação. Para Hobsbawm, houve uma masculinização do trabalho143, isto é, só as atividades
executadas pelos homens eram consideradas trabalho. Ao passo que na era do capital as
mulheres que trabalhavam e tinham seus ganhos financeiros fora do ambiente doméstico, eram
estigmatizadas.
Então o serviço doméstico se torna uma categoria que engloba vários tipos de atividades
desenvolvidas por mulheres e só é possível identificar qual a sua profissão de fato se elas falam
em algum momento ou se algum depoente nos dá essa informação. O trabalho doméstico pode

139 Ibidem, p. 153.


140 DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 230.
141 Ibidem, p. 231.
142 HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 280.
143 Ibidem, p. 281.
60

ou não ser remunerado, dependendo de sua configuração: ser doméstica significa prestar
serviços a alguém e/ou se dedicar aos cuidados de sua própria casa. Porém, essa trabalhadora
doméstica pode ser dividida em categorias marcadas pela classe. A dona de casa das classes
mais favorecidas não vai praticar as mesmas atividades da dona de casa da classe trabalhadora.
E a empregada doméstica é a única que vai exercer esse ofício de forma assalariada.
Nos processos judiciais é frequente a presença de trabalhadoras domésticas. Afinal de
contas, a maioria dessas mulheres exercia de alguma forma atividades em ambiente doméstico,
fossem remuneradas ou não.
A meretriz Santinha, brasileira, amapaense, solteira, com 21 anos de idade, sabendo
assinar o nome, residente na vila de Porto Grande, começou a trabalhar em serviços domésticos
aos 10 anos de idade, profissão que manteve até os 17 anos quando “amigou-se”144 e até o
período do inquérito era meretriz. O boletim de informações sobre a vida pregressa de Santinha
não deixa claro se quando ela passou a viver junto com este homem de nome desconhecido
também iniciou o trabalho de meretriz ou se começou a trabalhar no meretrício após a
separação.145 Já Luziléia, brasileira, paraense, com 38 anos de idade, analfabeta, de prenda
doméstica, residente na avenida Almirante Barroso. Era dona de uma casa alugada para
meretrizes. O depoimento dela e das outras envolvidas no processo não esclarece se ela era uma
cafetina ou se apenas alugava os cômodos para as prostitutas, mas ela se declarava como
“prenda doméstica”, ou seja, a sua profissão estava ligada ao serviço doméstico (ela pode se
referir ao trabalho de manutenção de sua própria casa) e também tirava o seu sustento dos
aluguéis dos quartos da casa.146
Em dois processos criminais de sedução, figuram trabalhadoras domésticas. No
processo criminal n° 1.826 de 1968: M.N.B. Moreira, de 30 anos, R.S. Saraiva, de 38 anos e
M.D.S. de Souza, de 22 anos, se declaram como domésticas. No entanto, não é produzida uma
diferença quando elas declaravam que a sua profissão era “doméstica”, e não é possível
discernir quais eram donas de casa ou empregadas domésticas remuneradas. Já no processo nº
2.234 de 1970, é possível identificar uma empregada doméstica e uma lavadeira: F.T. Lima, de
16 anos, era empregada doméstica e saía do trabalho à noite e o fato de andar sozinha abriu
precedente para que a sua honestidade fosse questionada; R.C. Fernandes, de 30 anos de idade,
era lavadeira e alternava sua residência entre a cidade de Macapá e o rio Macacoari.

144 Relacionamento informal, corresponde a uma união estável que não foi formalizada em cartório.
145 AFCM. Processo nº 2.117 de 08 de setembro de 1969, p. 15.
146 AFCM. Processo nº 2.465 de 21 de outubro de 1971, s/p.
61

Provavelmente, esta última também exercia atividades de extrativismo e agricultura na zona


rural.147
Os jornais Novo Amapá e A Voz Católica não reservavam seções e tampouco páginas
para publicar textos sobre as trabalhadoras domésticas pobres, fossem remuneradas ou não, do
Território Federal do Amapá. As donas de casa que apareciam no Novo Amapá eram as esposas
de políticos, militares e funcionários do governo territorial e frequentemente apareciam
acompanhando os maridos, ocasião em que era destacado o seu papel de mãe, esposa, dona de
casa e prestadora de serviços à sociedade. Este último se refere às ações de caridade a crianças
e famílias carentes. Essas mulheres das classes mais altas do TFA certamente tinham
empregadas domésticas em casa, então não se ocupavam em realizar as tarefas domésticas e
sim em gerenciá-las. Outros empregadores e empregadoras de trabalhadoras domésticas seriam
funcionários públicos. Para Sidney Lobato, “o crescimento do número de funcionários públicos
solteiros e de funcionárias públicas (enfermeira, professoras e outras) que passavam boa parte
do dia no trabalho externo ao lar criou uma grande demanda de empregadas domésticas”.148 O
autor explica que as trabalhadoras domésticas eram meninas de 15 a 18 anos, algumas moravam
com os patrões e contribuíam com a manutenção familiar.
Outras trabalhadoras que apareciam eram professoras, inclusive como colunistas, e
profissionais da saúde. Em 1970, o periódico do governo do TFA destacou a estudante Maria
das Dores, estudante de Odontologia da Universidade Federal do Pará, que estava colaborando
com o Hospital Geral de Macapá durante a sua permanência na cidade.149 Ela aparece no jornal
porque é filha de uma “tradicional família amapaense”, como menciona o colunista e chefe das
oficinas do jornal, Wilson Sena. Com isso, é notável a clivagem de classe no jornal. As mulheres
que recebiam destaque eram de famílias “tradicionais” do TFA, e não havia espaço para as
trabalhadoras pobres nas páginas da imprensa oficial.
O jornal A Voz Católica, na coluna intitulada “Coluna da Mulher”, publicou diversos
textos de colunistas e transcrições de outros jornais ou revistas cristãs. Em uma das edições, a
colunista Maria Emília Jucá escreve sobre as novas definições das mulheres:

147 Sobre o campesinato amapaense na Ditadura empresarial-militar, ver: PEREIRA, Higor Railan de Jesus. O
chão do conflito: estado ditatorial, grandes projetos e campesinato na Amazônia amapaense (1978-1985).
Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em História), Universidade Federal do Amapá, 2022.
148 LOBATO, Sidney. A cidade dos trabalhadores: insegurança estrutural e táticas de sobrevivência em Macapá
(1944-1964). Belém: Paka-Tatu, 2019, p. 191.
149 CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.558, 1970, p. 5.
62

Um novo conceito de mulher

O mundo vê desaparecerem, aos poucos, os velhos preconceitos talvez que


pesavam sobre a mulher, limitando seus horizontes. E começa a aceitar,
embora ainda com certa relutância, a rebelião lenta que vem modificando os
antigos padrões sociais, a favor da igualdade intelectual dos sexos.

Segundo os velhos conceitos feminilidade era sinônimo de burrice. Ser uma


mulher verdadeira implicava unicamente em ser a boa esposa, a boa dona de
casa, o ser frágil e submisso, escrava absoluta do seu dono..

O pioneirismo quase heroico das primeiras profissionais abriu as portas da


realização para a mulher, desmentindo seculares convenções. Graças a isso,
hoje não cabem mais comparações de inferioridade ou superioridade entre os
sexos. A mulher é tão inteligente e capaz quanto o homem, está provado.

Como tal, ela tem obrigação de usar inteligência e capacidade. A nossa época
exige participação ativa de todas as pessoas capazes, sem distinção de sexo.
Progredir, realizar, são deveres de todos.

Por que a mulher deve omitir-se?

As desculpas de que adquirir cultura significa perder a feminilidade, ou a de


que ter uma vocação e uma profissão implica em negligenciar o lar, não
passam de cego apego as idéias do passado. É óbvio que a medida que for
mais culta e esclarecida, mais terá a dar a seus filhos, mais estará capacitada a
ser a companheira ideal.150

Jucá se refere não somente ao trabalho, mas também à educação feminina. Ao mesmo
tempo que celebra o desaparecimento gradual dos preconceitos contra a realização profissional
das mulheres, destaca que a educação pode auxiliar e melhorar a criação dos filhos. Com isso,
ela defende a dupla jornada de trabalho feminina. Afinal, trabalhar fora de casa não impediria
que as mulheres se dedicassem à família e aos filhos. Para a colunista, a mulher frágil e
submissa, restrita ao ambiente doméstico era parte dos velhos conceitos de mulher, pois o novo
conceito refere-se àquela que se realiza intelectual e profissionalmente, mas concilia seu
trabalho e sua educação com os cuidados do lar e da família.
É curioso observar uma certa mudança – ou um desacordo entre os articulistas – na
opinião do jornal católico sobre a mulher no mercado de trabalho na década de 1960. Sidney
Lobato explica que no início da década, o articulista José Benevides escreveu que a mulher
trabalhando fora do lar estava se desviando “dos desígnios divinos”.151 Para Benevides, a
mulher deveria se dedicar somente ao espaço privado, sendo mãe e esposa ou fugiria da “sua

150 COLUNA da mulher. A Voz Católica, nº 428, 1969, p. 2.


151 LOBATO, Sidney. Op. Cit., p. 203.
63

verdadeira missão”.152 Como vimos, Emília Jucá não concorda com seu colega articulista. Em
contraponto ao que Benevides escreve sobre a verdadeira missão feminina, Jucá afirma que
essa mulher frágil e submissa que se dedica somente aos filhos e marido estava sendo superada
ou dando lugar a outra tão inteligente e capaz quanto o homem. O texto de Emília Jucá também
pode ser um demonstrativo de uma aceitabilidade maior das mulheres no mundo do trabalho e
de como a própria Igreja Católica estava lidando com essa mudança.
Se faz necessário esclarecer que essas mulheres que estão entrando no mundo do
trabalho não são pobres e negras, pois estas já estavam inseridas nesse mundo havia muito
tempo. Como Ângela Davis (2016, p. 232) aponta, as virtudes de “fraqueza feminina e
submissão da esposa” foram impostas às mulheres brancas de classes mais favorecidas, porque
as mulheres negras não se dedicaram somente ao trabalho doméstico, apesar de também
executarem essa tarefa, levando uma dupla jornada de trabalho, porque precisavam
sobreviver.153
Da mesma maneira, as mulheres pobres do Amapá estavam longe de serem frágeis e
submissas. Se fosse preciso, as mulheres casadas assumiam a gestão da casa e do núcleo familiar
quando os maridos estavam impossibilitados e aquelas que eram solteiras, mas precisavam
sustentar e educar seus filhos, ocupavam-se com as mais diversas atividades domésticas, de
extrativismo e comércio, por exemplo154. Joshi pondera que quando as mulheres exercem um
trabalho remunerado, elas atingem um maior grau de liberdade pessoal e de poder de
contestação na economia familiar, porque assim elas poderiam proibir os homens de gastar o
dinheiro do trabalho delas com bebida e até questionar a autoridade masculina deles em
determinadas situações.155
A Icomi-Notícias reservava uma página às mulheres moradoras das vilas de Serra do
Navio e Amazonas. A “Femina” era uma coluna da revista que tratava dos assuntos “femininos”
ou domésticos e que foi veiculada durante o primeiro ano de circulação do periódico. A coluna
dava dicas de culinária, limpeza, lavagem de roupas, costura, truques de beleza e artesanato.
Nela conseguimos observar o que a revista considerava assunto de mulher, já que eram as donas
de casa que deveriam zelar pelo lar da família. As mulheres que apareciam dando dicas de
culinária e receitas como maniçoba, pato no tucupi e biscoitos de castanha do Pará, eram

152 QUERES casar? Prepara-te. A Voz Católica, nº 19, 1960, p. 4.


153 DAVIS, Ângela. Op. Cit., p. 232.
154 Ver: LOBATO, Sidney da Silva. Senhoras das casas e das ruas: o cotidiano das trabalhadoras. In: Op. Cit.,
2019.
155 JOSHI, Chitra. Op. Cit.
64

esposas de funcionários da Icomi. Como Maria de Nazaré Vianna, esposa do funcionário da


contabilidade, Carlos Alberto da Cruz Vianna, que inaugura a sessão “Cozinha de Icomi
Notícias” com receitas culinárias. A revista fez questão de enfatizar que Maria de Nazaré tinha
muita habilidade na cozinha e outras qualidades que a transformaram em uma excelente anfitriã.
Para provar as habilidades dessa dona de casa, o periódico pediu para ela posar para a foto em
frente ao fogão.156
Na edição de nº 18, a trabalhadora da coluna “Em destaque” é a amapaense Claudethe
Silva. Ela começou a trabalhar na companhia como atendente hospitalar. Para a Icomi-Notícias,
nesse degrau inicial da carreira ela era capaz de “amenizar com seu sorriso as dores dos doentes
e necessitados”.157 Depois formou-se como auxiliar de Enfermagem e continuou prestando
serviços à Icomi. Ela era solteira, mas vivia com sua mãe. A revista se deteve a abordar sua
vida profissional e os momentos de lazer de Claudethe, sempre enfatizando o seu perfil de
mulher com simpatia e alegria para com chefes e colegas.158 Perrot (2007), argumenta que, até
as décadas de 1980 e 1990, era esperado que as mulheres prestadoras de serviços do setor
terciário ocupassem cargos que fossem marcados pelas características domésticas e femininas.
Dentre as características femininas, ela destaca “o devotamento, a prestimosidade, o sorriso”
como qualidades importantes, justamente predicados que a revista destaca como essenciais para
uma trabalhadora da empresa.

156 FEMINA. Icomi-Notícias, nº 02, 1964, p. 19.


157 EM DESTAQUE. Icomi-Notícias, nº 18, 1965, p. 21.
158 Sobre as trabalhadoras da Icomi, ver: SOUSA, Rômulo. Experiências femininas nos mundos do trabalho de
Serra do Navio e Vila Amazonas (1960-1985). Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento Regional), Universidade Federal do Amapá, 2018 e MATOS, Marlos Vinícius Gama de.
Modernização e condições de labuta na Amazônia Setentrional: força de trabalho, acidentes e doenças tropicais
na gênese de um projeto de extração mineral no Amapá (1948-1956). Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-
Graduação em História), Universidade Federal do Amapá, 2022.
65

Imagem 2. Claudethe na Coluna “Em destaque”.

Fonte: Icomi Notícias, 1965.

As trabalhadoras do Amapá assumiram diversas funções para garantir a sua


sobrevivência e a sobrevivência familiar. Os discursos dos jornais amapaenses, na década de
1960, parecem dar sinais de um início da aprovação do trabalho feminino. Mas, as mulheres
ainda precisavam lidar com julgamentos sobre o tempo que passariam fora de casa e em que
não se dedicariam aos cuidados domésticos. O trabalho doméstico foi o primeiro trabalho das
mulheres pobres do Amapá, ainda que não fosse remunerado. Para ex-prostitutas, se tornar
doméstica após o abandono do meretrício, significava romper o limite de ser uma mulher
desonesta para entrar no limite da mulher honesta. Além disso, quando a real profissão dessa
mulher não era considerada honesta, ela poderia se declarar doméstica, dona de casa ou de
prendas domésticas para se desviar de possíveis julgamentos de autoridades policiais ou
judiciais.
Para as mulheres pobres, ter uma renda não significava somente uma autonomia em
relação aos homens, fossem eles pais, irmãos ou maridos, mas também uma questão de
sobrevivência. Os ganhos das famílias pobres não dependiam unicamente do trabalho
remunerado masculino, pois as mulheres também tinham meios de conseguir dinheiro com seus
serviços, além do trabalho doméstico não-remunerado que é essencial para a subsistência
familiar. Quando não executavam atividades ligadas à domesticidade, era esperado que essa
trabalhadora reproduzisse no trabalho qualidades consideradas essencialmente femininas como
a dedicação, a simpatia e a delicadeza.
66

1.4 Crimes de Sedução em Macapá: Mulheres honradas ou mulheres de vida


questionável?
O jornal Novo Amapá, em edição de 1974, informa que o titular da Divisão de Polícia
Judiciária, Odir Macedo, fez um levantamento do índice de criminalidade do Território Federal
do Amapá. Nesse trabalho, foi identificado que os crimes mais recorrentes no território eram
em primeiro lugar os crimes de calúnia, injúria e difamação ou “fuxico de vizinho”. Depois,
vinham as lesões corporais. E, em terceiro lugar, o crime de sedução, com de cinco a seis casos
diários. Macedo afirma que “não obstante a pobreza de recursos humanos e materiais esses
crimes não podem ser evitados”159, referindo-se, especificamente, aos crimes de calúnia e
sedução. O que se pode compreender desta afirmação, é que mesmo que a força policial e os
recursos financeiros não fossem precários, seria difícil conter esses crimes porque eles não
derivavam de um controle policial menos efetivo nas ruas.
O Código Penal de 1940 estabeleceu que o crime sexual de defloramento seria definido
como crime de sedução. A sedução estaria configurada em um duplo aspecto: “quando o sedutor
se aproveita da inexperiência da ofendida” e “quando o sedutor abusa da justificada confiança
que lhe deposita a vítima”160 com o objetivo de tirar-lhe a virgindade. No entanto, como infere
Karla Bessa, além desses itens era necessário que houvesse uma comprovação de que os jogos
de sedução entre a vítima e o acusado tiveram essas características.161 Então a interpretação do
que seria o crime de sedução poderia ser ampla e subjetiva e não apenas quando envolvia uma
promessa de casamento. Como Sueann Caulfield escreve, “a lei estava mais preocupada com a
missão reprodutiva e moralizadora da mulher que com seus direitos individuais”162, tendo em
vista que os juristas acreditavam que uma mulher desvirginada teria dificuldades de casar e
formar família e mais facilidade de entrar para a prostituição. Defendiam também que a punição
para os defloradores deveria ser exemplar porque evitaria novos delitos, evitando assim novas
prostitutas. Já para Martha Esteves o controle moral ou sexual sobre as classes populares por
meio dos processos judiciais contribuiu não só para o controle da imoralidade, de amancebados
e de filhos ilegítimos, mas também para a formação de trabalhadores disciplinados.163

159 DELEGADO pesquisa índice de criminalidade. Novo Amapá, nº 1.740, 1974, s/p.
160 CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940).
Campinas, SP: Editora da Unicamp, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000, p. 250.
161 BESSA, Karla Adriana Martins. Jogos de sedução: práticas amorosas e práticas jurídicas, Uberlândia, 1950 a
1970. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em História). Unicamp, 1994, p. 121.
162 CAULFIELD, Sueann. Op. Cit., 253.
163 ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor do Rio de Janeiro da
Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
67

Cristina Cancela disserta que algumas meninas iniciavam sua vida sexual em festas que
muitas vezes acabavam nas chefaturas de polícia, em Belém do final do século XIX e início do
XX. Mas os encontros amorosos não estavam restritos ao tempo da festa, os encontros
cotidianos nas casas da menor ou acusado, eram mais recorrentes e eram cenário comum de
defloramentos:

Naqueles processos em que o namoro do casal era de conhecimento da família


da menor, há a referência ao fato de os encontros serem frequentes e se
realizarem na casa dos pais e/ou parentes e tutores da menor, à noite ou em
dias e horas corriqueiramente determinados.164

Os namoros oficiais estavam sujeitos à vigilância da família da menor, porém havia


momentos em que a família não acompanhava os encontros amorosos porque eles não
conseguiam vigiar todos os passos das meninas por causa do trabalho ou até mesmo por causa
de momentos de descanso e lazer.165 Foi o que aconteceu com M.L.M. Gama, brasileira,
amapaense, solteira, estudante, de cor morena, com 15 anos de idade, sabendo ler e escrever,
residente à avenida Diógenes Silva no Buritizal, que tinha permissão para namorar e liberdade
para dar passeios sozinha com o namorado, sem um acompanhante da família.166
No início do mês de agosto de 1967, a jovem e o rapaz J.F. Nunes, brasileiro, paraense,
19 anos, pedreiro, solteiro, instrução primária, residente à Avenida Central do Buritizal
iniciaram um namoro. Ele começou a assediá-la para manter relações sexuais, justificando que
iriam se casar. No final do mês, ele manteve conjunção carnal com ela. A mãe dela é quem
denuncia. M.N.B. Moreira, brasileira, amapaense, solteira, 30 anos de idade, sabendo ler e
escrever, doméstica, residente à avenida Diógenes Silva no Buritizal, conta que a menor fora
desvirginada havia seis meses pelo acusado, quando os dois mantinham uma relação de namoro.
Passados alguns dias, ele foi embora para Belém, regressando havia pouco tempo, “tendo
seduzido a menor a deixar a companhia de seus genitores, passando a viver em concubinato”.167
Ela resolveu procurar as autoridades porque a filha fugiu com o acusado. Como veremos
adiante, os pais da ofendida já sabiam do seu desvirginamento. No seu depoimento, fica claro
que o seu desejo era de que o caso fosse resolvido com o casamento para “que a ofendida não
fique infelicitada e jogada no abismo da desonra”168, porém, o escrivão registrou que o acusado

164 CANCELA, Cristina Donza. Adoráveis e dissimuladas: as relações amorosas das mulheres das camadas
populares na Belém do final do século XIX e início do XX. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social).
Unicamp, 1997, p. 69.
165 Ibidem, p. 80.
166 AFCM. Processo nº 1826 de 1968, s/p.
167 Ibidem, p. 4.
168 Ibidem.
68

tinha dito “que só se casaria para livrar-se da Justiça, e que mesmo assim a declarante não se
nega a fazer o casamento entre ambos para que possa dar satisfação à sociedade”.169
Para Sueann Caulfield, a busca pela Justiça em caso de perda de virgindade era um
recurso comum tanto pelas jovens desvirginadas quanto pelos seus pais, tutores ou patrões, onde
a finalidade principal era o casamento. Os pais e a sociedade em geral acreditavam que
recorrendo à Justiça poderiam tornar os defloradores responsáveis pela honra de quem
desvirginaram.170 Percebemos no depoimento da mãe de M.L.M Gama, que não importava o
meio empregado para que houvesse o casamento, o importante era que a sua filha não ficasse
desonrada perante a sociedade e que o concubinato ou “passar a viver junto” não repararia a
honra da menor e da família.
Em seu depoimento, M.L.M. Gama afirma que desde o namoro com J.F. Nunes “sempre
tencionava casar-se consigo em face de nutrir grande paixão” por ele. 171 Ela conta que o
desvirginamento se deu em data que não sabe precisar, quando saiu para passear com o mesmo
sem o conhecimento de seus pais:

este a seduziu a manter relação sexual, pois assim apressaria logo o casamento.
Que de início a declarante não atendeu a pretensão de seu sedutor, contudo
por ser uma moça inexperiente e acreditando nas juras de amor que lhe fazia
seu galanteador, entregou-se quando foi deitada ao solo, às proximidades de
sua casa, por volta das vinte e uma horas e trinta minutos, em local que se
encontrava às escuras, [...] que, após o ato chorou em face de sua situação de
moça, sendo acalentada pelo seu sedutor, o qual dissera-lhe que assumiria
inteira responsabilidade pelo delito praticado e que repararia o mal pelo
casamento. [...] Que, a depoente deseja unir-se pelos laços sagrados do
matrimônio com Jacinto por dedicar-lhe grande afeição, acreditando que
possam constituir um lar feliz e venturoso. Que, nunca conheceu outro homem
sexualmente e sempre foi fiel ao seu ex-namorado e autor de seu
desvirginamento, pois acreditava que o mesmo cumprisse com as promessas
anteriormente feita de desposá-la.172

M.L.M. Gama traz em seu depoimento diversos elementos do significado da virgindade


e do casamento para ela. Primeiro, a perda da virgindade para mulheres honradas significaria
“apressar o casamento” para que ela e sua família não ficassem com a honra manchada. O
casamento também poderia ser interpretado como o desligamento dessa menina com a sua
família enquanto filha, para que ela formasse a sua própria família como esposa e mãe, já que
esse era o propósito das mulheres honradas e da família segundo os preceitos cristãos e do

169 Ibidem.
170 CAULFIELD, Sueann. Op. Cit.
171 AFCM. Processo nº 1826 de 1968, p. 6.
172 Ibidem.
69

próprio Estado. Segundo, identificamos a presença do amor romântico, por ela “dedicar-lhe
grande afeição” acredita que teriam um “lar feliz e venturoso”, mais uma vez reproduzindo os
discursos dominantes que eram esperados. Claro, que o depoimento da vítima não foi transcrito
da forma como ela falou, passando primeiro pela impressão do escrivão, que escrevia com a
norma culta e com termos técnicos. Com isso, perdemos os “textuais”, mas essa é uma
característica das fontes judiciais. E a menor também poderia estar utilizando esses discursos a
seu favor, para que a Justiça entendesse que o seu comportamento e a sua moral eram
merecedores de “reparos” por meio da lei173.
O exame de conjunção carnal foi realizado e atestou o desvirginamento. Foi anexado ao
processo o registro civil da vítima para atestar que era menor de idade, além de um atestado de
pobreza da mãe da vítima, no qual o delegado registrou que M.N.B. Moreira era pobre no
sentido da lei.
A testemunha R.S. Saraiva, brasileira, paraense, casada, doméstica, 38 anos, residente
na principal rua do Buritizal s/n, sabendo ler e escrever, era vizinha da família e alegou que a
menor tinha comportamento exemplar, sendo uma filha obediente, saindo apenas acompanhada
da família ou de pessoas de confiança e que “lamenta o fato por considerar ser a moça em tela
uma jovem que mereceria ter encontrado melhor sorte, e, não a que encontrou por ser Jacinto
um desocupado, não arcando nem a responsabilidade de sua própria subsistência”.174 A segunda
testemunha, também vizinha da família, M.D.S. de Souza, brasileira, paraense, casada,
doméstica, 22 anos de idade, sabendo ler e escrever, residente à rua principal do bairro do
Buritizal, disse que “conhece a referida menor desde a infância, e com a idade que possui hoje,
sempre a admirou por sua qualidade de moça comportada e de bons costumes sendo dedicada
filha de família”.175 A concepção de que o homem deve ser o provedor do lar e que uma moça
de comportamento exemplar mereceria encontrar um marido que pudesse arcar com o seu
sustento é nítida no depoimento de R.S. Saraiva.
O acusado assumiu a responsabilidade pelo desvirginamento da vítima, mas não
desejava unir-se com ela pelos laços sagrados do matrimônio porque “quando após o delito ter
seguido para Belém do Pará, esta passar a namorar com outros jovens, segundo informações
que obteve quando regressou a esta Capital após uma ausência de seis meses. Que, presume ter
a mesma mantido relação sexual com outras pessoas que a mesma namora”.176 Ele conta uma

173 Ver: BESSA, Karla. “Virgens” em apuros: o casamento não vingou! In: Op. Cit., p. 87-169.
174 AFCM. Processo nº 1826 de 1968, p. 10.
175 Ibidem, p. 11.
176 Ibidem, p. 13.
70

outra versão sobre o encontro que teve com a vítima quando regressou à Macapá. Afirma que,
nessa ocasião, a menor se queixou de maus tratos por parte do pai, porque ele soube do romance
amoroso entre os dois. E, para atender a um pedido dela, ele a levou para uma casa no mesmo
bairro, mas sem manter relações sexuais com a mesma. No dia seguinte, ele entrou em contato
com o genitor dela, que estava em sua busca, e ela voltou para a casa de seus pais. Disse ainda
que “lamenta não amar a mesma, pois quando a conheceu e seduziu, apenas tinha poucos dias
de namoro, sem contudo dedicar-lhe nenhuma afeição, apenas desejoso de satisfazer suas
paixões eróticas, atendendo aos desejos que Maria demonstrava em ser possuída pelo
mesmo”.177 Para J.F. Nunes, o namoro com M.L.M. Gama não tinha fins de matrimônio, e
mesmo assumindo ser o autor do desvirginamento da vítima, ele alega que ao desvirginar a
menor, estava atendendo aos desejos dela. Outro aspecto interessante a ser observado é o fato
do pai de M.L.M. Gama já saber do desvirginamento e de maltratá-la por causa disso. Cancela
argumenta que procurar a Polícia ou a Justiça pode ser o último recurso de pais que antes
poderiam ter tentado dialogar com o acusado ou até mesmo feito ameaças. Porém, quando o
acusado fugia ou negava casar-se com a vítima, eles recorriam à delegacia. Para a autora, por
vezes os pais sabiam que suas filhas não eram mais virgens, mas mesmo assim não deixavam
de percebê-las como honestas, o que era um sinal de que para eles as concepções de namoro,
casamento ou honestidade eram mais elásticas do que nos padrões generalizantes de
honestidade do projeto higiênico e moralizante das elites e presentes nos discursos de
delegados, advogados, promotores ou juízes.178
Em relatório, o delegado Oscar Ferreira Lima afirma que:

A vítima manteve-se em silêncio, até o mês de janeiro do corrente ano, em


virtude de ter enganado a mesma com promessa de casamento aparato de sua
sórdida atitude, depois de ter o acusado se evadido para Belém do Pará,
regressando a esta Capital sem que a ofendida suspeitasse que o autor de seu
desvirginamento queria apenas ganhar tempo. [...]
Realmente, em agosto do ano passado, J.F. NUNES, sem qualquer motivo
plausível resolveu evadir-se desta Capital, deixando sua vítima ao léo, na
esperança de que, M.L.M. GAMA mantivesse relação de namoro com outros
jovens, e, daí, ser possuída sexualmente pelos mesmos quando no seu entender
poderia ficar livre do delito cometido.
[...] Nem ele mesmo alega em suas declarações qualquer falta cometida por
sua vítima que viesse comprometer posteriormente sua vida conjugal.179

177 Ibidem.
178 CANCELA, Cristina. Op. Cit., p. 90-92.
179 AFCM. Processo nº 1826 de 1968, p. 16.
71

O delegado demonstra estar a favor da menor, e o andamento do inquérito concorreram


para isso. Todos os depoimentos estavam alinhados à defesa da vítima, inclusive o do acusado.
Mesmo que ele tentasse questionar a honra de M.L.M. Gama em determinado momento, o
delegado entendeu que esta havia sido somente uma forma de procurar se livrar da pena do
crime ou do casamento.
Contudo, em audiência no ano de 1969, a vítima muda o seu depoimento. Inclusive,
trechos do seu relato sobre o desvirginamento. Dessa vez, ela conta:
que na data da denúncia, foi até ao arraial juntamente com outras amigas que
também se acompanhavam de seus namorados e, de regresso, ficou mais para
traz, distanciando-se das companheiras; que isso ocorria contra a sua vontade
e, por insistência do acusado, seu namorado; que quando se encontravam em
uma baixa atraz do grupo ALEXANDRE VAZ TAVARES, seu namorado
aproveitando-se da situação de se encontrarem distante dos demais, agarrou a
declarante, tapando-lhe a boca e tolhendo-lhe os movimentos, rasgou-lhes as
roupas após derrubá-la ao chão, deflorou-a […]. Que foi a primeira vez que
manteve relações sexuais, sendo certo que depois de algum tempo -
novamente manteve relações com o acusado. […].180

Em resposta ao defensor do acusado, ela disse “que depois dos fatos da denúncia, a
declarante ainda manteve relação uma vez com o acusado e posteriormente com outros, sendo
que agora porém, está em casa de seus pais, não estando procedendo mal”.181 Não é sabido o
motivo pelo qual a menor mudou o seu depoimento. A nova narrativa menciona outro local, e
agora não se tratava mais de um passeio de namorados próximo de sua casa e sim de um arraial.
Além disso, dessa vez a depoente acrescenta que o autor de seu desvirginamento usou de
violência para tal ato. Essa mudança de depoimento abriu margem para a defesa de J.F. Nunes
contestar o comportamento da vítima em abril de 1970 por meio de um requerimento. O
defensor, dr. Edimundo de Souza Moura, disse que a vítima contava duas versões para o ato e
que “esta menor tem verdadeiro pendor para o teatro, pois é uma verdadeira artista”.182 O
requerimento ainda destacou que a jovem tinha mantido relações sexuais com outros:

Qual o brasileiro, dentro desta formação que temos, que vai casar com uma
mulher que confessa ter mantido relações com outros? Por que não foi fiel ao
namorado e só depois de manter relações sexuais com outros veio apresentar
queixa à Polícia? Por que escondeu da polícia a verdade ao alegar que tinha
apenas conhecido um homem e que era o réu?183

180 Ibidem, p. 31.


181 Ibidem.
182 Ibidem, p. 41.
183 Ibidem.
72

E ainda disse que como o réu era menor de idade, precisaria de um curador, o que não
houve e ele ficou “a mercê da Polícia, que o fez assinar um depoimento em que declara assumir
inteira responsabilidade pelo desvirginamento da jovem.”.184 Desse modo, o defensor tenta
anular a declaração do réu na qual ele assume que desvirginou a vítima. E em seguida
acrescenta:

As testemunhas arroladas pelo Dr. Promotor, são as mesmas levadas pela


menor a polícia e limitam-se a dizer que a menor é uma moça comportada,
saindo pouco de casa. Ora, ora comportada, saindo pouco de casa e vivia tendo
encontros com rapazes para manter relações sexuais. Ainda bem, pois em caso
contrário, seria um caso de escândalo público.185

Mais uma vez ele questionava o comportamento de M.L.M. Gama para tentar livrar o
réu da pena. Esteves argumenta que a grande questão dos advogados era provar que as vítimas
eram desonestas e imorais, então não tinham os atributos requeridos para serem protegidas e
apoiadas pela Justiça.186 Mas, em maio de 1970, o representante do MP, Promotor Edson Gomes
Correia, afirmou em despacho:

1) “que o réu afim de evitar a aplicação da pena, viajou para Caiene” [...]; 2)
“Que o réu não compareceu para o interrogatório perante o juízo da Comarca;
3) que, nestas condições, hão de ser tomadas como verídicas as declarações
prestadas perante a autoridade policial; 4) as testemunhas afirmam a existência
do namoro entre a vítima e o acusado, bem como ser a menor moça recatada
e de bons princípios morais; 5) que o denunciado assumiu total
responsabilidade pelo ato delituoso.”187

Sendo assim, solicitou que o denunciado fosse condenado às sanções do artigo 217 do
Código Penal. De fato, J.F. Nunes não compareceu a nenhuma audiência porque não havia sido
encontrado. Os oficiais de Justiça, tentando localizar o acusado para as audiências, obtinham
informações de que ele estava em Caiena, na Guiana Francesa, e nas outras tentativas as
informações eram de que achava no município de Amapá ou em Santana. Essa pode ter sido
uma estratégia utilizada pelo acusado para não casar com a vítima e para não cumprir a pena do
crime de sedução, esperando que o caso fosse arquivado.
Cancela também destaca que os namoros às escondidas não eram raros com as meninas
da classe trabalhadora, visto que estas poderiam ter maior intimidade nos seus relacionamentos
do que as moças de elite. Mesmo que os discursos moralizantes fossem generalizantes, as

184 Ibidem.
185 Ibidem, p. 42.
186 ESTEVES, Martha. Op. Cit., p. 39.
187 AFCM. Processo nº 1.826 de 1968, p. 43.
73

meninas pobres e suas famílias tinham uma moral mais elástica.188 Outro exemplo dessa moral
mais elástica da classe trabalhadora era o crime de sedução ocorrido em agosto de 1969, no
qual F.T. Lima, brasileira, paraense, 16 anos, doméstica, sabendo ler e escrever, residente na
Av. Anhanguera, no bairro Buritizal, fora desvirginada por I.T. Gurjão, brasileiro, amapaense,
solteiro, 19 anos, motorista, instrução primária, cor morena, residente na Granja Santa Maria,
bairro Buritizal. Segundo relatório do Delegado Oscar Ferreira Lima, a vítima declarou ter sido
desvirginada pelo acusado em 24 de agosto de 1969. Afirmou que vinha caminhando de seu
emprego para sua residência quando se encontrou com o acusado, pessoa que não conhecia,
mas que lhe falou em namoro e aceitou a proposta. Relatou que continuou caminhando quando
foi puxada pelo braço pelo mesmo, que a levou até uma casa desocupada, tampou a sua boca e
a violentou, jogando-a ao solo. Depois desse dia, ela ainda manteve outras relações sexuais com
ele. Mas, quando ele soube que ela estava grávida, não a procurou mais e nem cumpriu a
promessa de reparar o mal pelo casamento.
Em seu depoimento, o acusado I.T. Gurjão disse que já conhecia a vítima não só por
morar próximo a ela, mas porque já a tinha visto em festas no clube Treze de Setembro:

Que, o respondente a esse tempo servia na Primeira Companhia do Trigésimo


Quarto Batalhão de Infantaria, como soldado e andou escutando diversos
comentários a respeito de Francisca, que diziam não ser a mesma mais virgem,
tanto que alguns colegas do respondente diziam já terem mantido relações
carnais com a mesma. Que, assim, olhando-a como meretriz […].189

As testemunhas de acusação todas ou eram ou haviam sido soldados da Primeira


Companhia do Trigésimo Quarto Batalhão de Infantaria – 34º BIS, homens que afirmavam que
haviam mantido relações sexuais com F.T. Lima antes do acusado ou que ouviram comentários
sobre o comportamento da mesma. Ele contou que o fato se deu na saída de uma festa na sede
do Treze de Setembro e que tinha encontrado com a vítima e uma amiga dela, quando percebeu
que ela estava se aproximando dele com intenções de “conquista”:

Embora não simpatizasse com a mesma, mas “para não passar por mole”
(textuais), convidou-a a manterem relações sexuais, após chegarem no
Buritizal e depois da outra moça se ter apartado deixando-os só. Que, o convite
na cópula foi logo aceito e ambos se dirigiram para perto da casa da jovem,
onde no campo e sobre a terra, mantiveram o coito carnal, oportunidade em
que o respondente verificou que, como aliás já tinha ouvido falar, F.T. Lima,
não era mais virgem.190

188 CANCELA, Cristina. Op. Cit., p. 73.


189 AFCM. Processo nº 2.234 de 1970, p. 11.
190 Ibidem.
74

Ao final de seu depoimento, alegou que “admira-se bastante de estar sendo acusado pela
vítima, como autor de seu desvirginamento, quando a mesma deveria atentar para a seriedade
do assunto, deixando o culpado a vontade para acusar quem não cometeu o delito”.191 Durante
todo o seu depoimento, o acusado questionou a conduta de F.T. Lima e destacou comentários
de cunho sexual que supostamente ouvira de conhecidos sobre ela. Ele fez isso para demarcar
definitivamente que a vítima não deveria buscar reparações por meios judiciais porque não era
virgem, afinal frequentava festas sozinha e tinha uma vida sexual ativa.
A testemunha F.P.M. Souza, brasileiro, amapaense, solteiro, 20 anos de idade,
mecânico, de instrução primária, residente nesta cidade à rua Treze de Setembro, bairro do
Beirol, relatou que, quando ainda fora soldado, havia mantido relações sexuais com F.T. Lima,
em novembro de 1969, por volta de 23 horas. Ele estava participando de uma festa dançante no
bairro Buritizal, na qual ela também estava. Ao final da festa, ao ver que estava sozinha, dirigiu-
se até ela e a convidou para manter relação sexual, “convite que foi aceito sem qualquer
relutância”.192 Adiante, ainda acrescentou que “por diversas vezes teve o ensejo de ver a vítima
andando sozinha alta hora da noite, andando pela rua ou em festas dançantes, inclusive no Treze
de Setembro Esporte Clube local impróprio para moças que se presam”.193 J.C. Nascimento,
brasileiro, paraense, solteiro, 20 anos de idade, militar, residente na rua General Rondon, s/n,
bairro do Trem, relatou que nunca havia mantido relação sexual com a vítima, mas que tivera
oportunidade ao final de uma festa no Treze de Setembro. Relatou que ao saírem da festa, foram
para as matas do bairro do Buritizal, mas que aí não chegara a consumar o ato. Disse também
que a vítima era muito mal falada pelos soldados e que chegou a vê-la próximo ao quartel, à
procura de soldados: “O depoente tinha a mesma como prostituta e justamente por isso ela
depois passou a não mais ser aceita no Treze de Setembro, embora ali seja lugar frequentado
por [rasurado] e mulheres de vida duvidosa”.194
O primeiro disse que havia mantido relação sexual com F.T. Lima e o segundo alegou
que tivera oportunidade, mas não a consumara. F.P.M. Souza destacou os passeios noturnos da
vítima. Inclusive, os dois destacaram a presença dela em festas do clube Treze de Setembro,
sede de uma associação do bairro do Trem que, segundo eles, não era adequado para moças de
família. J.C. Nascimento ainda disse que para ele a menor era uma prostituta. O termo é usado
como adjetivo, foi uma característica atribuída à vítima porque os seus hábitos não eram

191 Ibidem, p. 12.


192 Ibidem, p. 14.
193 Ibidem.
194 Ibidem, p. 16.
75

compatíveis àqueles esperados de moças honradas e era usado como uma forma de desqualificar
o depoimento dela. Para Cristina Cancela, “a imagem da mulher prostituída estava também
associada ao fato da menor frequentar locais públicos onde se concentravam muitos
homens”.195 Logo, identificar essa menina como prostituta era também uma maneira de destruir
a reputação dela diante da Justiça.
Ele concluiu acrescentando que a conduta de F.T. Lima era tão reprovável que nem
lugares frequentados por mulheres de vida duvidosa permitiam sua presença. Os dois
depoimentos são cheios de desqualificações da menor e de discursos moralizantes do período.
Como não é difícil de perceber, o comportamento da vítima era tido como reprovável, mas o
comportamento do acusado e das testemunhas não. Todos frequentavam os mesmos locais,
contudo, somente a presença de F.T. Lima era questionada em passeios e bailes noturnos. Do
mesmo modo, os homens poderiam se relacionar com quem quisessem que não seriam menos
honrados, porque a honra masculina não estava ligada ao aspecto sexual, diferentemente da
honra feminina. Esteves afirma que não importa se o homem frequenta prostíbulos ou “locais
suspeitos”, importa que ele seja trabalhador e tenha comportamento exemplar no seu trabalho.
Diferente das mulheres que são julgadas pelo seu comportamento moral ou sexual.196 A autora
ainda argumenta que:

As festas populares foram sendo consideradas bárbaras e vulgares por médicos


e políticos. As famílias precisariam relegar as festas de caráter religioso, pois
eram ocasiões em que se processava uma intensa secularização dos costumes.
Nessa medida, o que se poderia dizer a favor das mulheres pobres que
frequentavam aqueles locais e por vezes se dirigiam às delegacias com o
objetivo de denunciar um crime de defloramento ou estupro do qual tinham
sido vítimas? Dificilmente conseguiriam reunir provas que as caracterizassem
como mulheres higiênicas, uma vez que o dito lazer popular passava a ser
considerado como nocivo à saúde do corpo social.197

As festas religiosas ainda poderiam ser desculpadas, mas as mulheres que frequentavam
outras festas populares como o Carnaval não tinham a mesma “sorte”. F.T. Lima foi julgada
pelo seu lazer em um clube suburbano, frequentado pela classe trabalhadora de Macapá que
não usufruía dos clubes da alta sociedade amapaense, como o Esporte Clube Macapá, o Círculo
Militar ou o Santana Esporte Clube.
Por outro lado, a testemunha R.C. Fernandes, brasileira, paraense, casada, de 30 anos de
idade, lavadeira, alfabetizada, residente no bairro Buritizal em rua que não sabe o nome, disse

195 CANCELA, Cristina. Op. Cit., p. 110.


196 ESTEVES, Martha. Op. Cit., p. 45.
197 Ibidem, p. 51.
76

que conhecia F.T. Lima desde menina e que podia afirmar ter sido Isaac o autor do defloramento
da menor. Disse que a vítima era “moça de bom comportamento, que quase não sai de casa,
nem de dia e nem de noite, esclarecendo, que a vítima é sempre gabada por suas patroas, já pela
eficiência do trabalho e já pelo comportamento, tendo saído do último emprego por causa do
fato que lhe aconteceu”.198 R.C. Fernandes foi a única testemunha favorável à vítima e pautou
seu depoimento no trabalho e no bom comportamento de F.T. Lima, trazendo qualidades que
eram consideradas dignificantes para mulheres, nesse contexto. Porém, o delegado afirmou que
o depoimento de R.C. Fernandes, estava em desacordo com os depoimentos das demais
testemunhas, que eram unânimes em relatar sobre as “andanças da vítima em festas de reputação
duvidosa.199 Logo, o seu depoimento não foi levado em consideração e não ajudou a vítima.
Martha Esteves destaca que as testemunhas dos crimes sexuais não eram requisitadas para falar
apenas sobre o que sabiam do crime, pois eram interrogadas sobre o que sabiam do
comportamento anterior das vítimas. Eram chamados a falar se as meninas andavam sozinhas
na rua, se frequentavam festas noturnas ou se tinham liberdades com namoros longe da
vigilância da família.200
Em 02 de julho de 1970, em defesa prévia, o advogado José Newton Moutinho, alegou
que “a suposta vítima não foi de forma alguma seduzida pelo réu, pessoa a quem seu capricho
escolheu como ‘bode espiatório’ para reparar um delito que não praticou”. E que ela é:

Acostumada às festas do Treze de Setembro, antro de meretrizes e de mulheres


de reputação duvidosa, estava habituada a ser acompanhada ao término das
festas para a prática de relações sexuais, assim ocorrendo com o réu e com
inúmeros rapazes [...], notadamente soldados da 1ª/34° BI, muitos dos quais
mantiveram relações sexuais com a suposta vítima antes da época em que se
disse desvirginada pelo réu. 201

Em audiência no dia 16 de março de 1971, a vítima afirmou que “nunca namorou


nenhum outro homem anteriormente ao acusado”. Disse que era virgem até esse dia. Em
resposta ao promotor, disse que tentou reagir, mas foi dominada pelo réu e o local onde estavam
era muito escuro e deserto. Em resposta à defesa do acusado, disse que nunca marcou encontro
com I.T. Gurjão e nem o conhecia, que após o desvirginamento ele prometeu casamento e ela
acreditou havia acreditado promessa, mantendo com ele outras relações sexuais.202

198 AFCM. Processo nº 2.234 de 1970, p. 17.


199 Ibidem, p. 22.
200 ESTEVES, Martha. Op. Cit., p. 42.
201 AFCM. Processo nº 2.234 de 1970, p. 27.
202 Ibidem, p. 31.
77

Em um processo de estupro, F.S. Lopes, brasileiro, natural do Rio Grande do Norte,


casado, de 56 anos, comerciante, alfabetizado, autor da denúncia e pai de M.N.C. Lopes,
amapaense, solteira, de 16 anos de idade, prendas do lar, declarou que:

Veio a ter conhecimento de que sua referida filha fora vítima de sedução e
desvirginada pelo representado [P.P.B], sob as ordens e responsabilidade de
qual fugira de casa para ir morar em um casebre na baixa do Remanso203, em
companhia de uma certa N. de tal, mulher solteira de vida irregular204.

A partir dessa declaração, podemos questionar sobre o que significava ser uma mulher
solteira e de vida irregular em Macapá. Aliás, ser solteira já poderia significar ter uma vida
irregular, afinal, se tratava de uma mulher que não estava casada e nem vivendo em companhia
de seus pais, já que a casa era dela.
M.N.C. Lopes, amapaense, solteira, de 16 anos de idade, prendas do lar, residente à
avenida Coaracy Nunes, bairro do Trem, depôs que foi estuprada pelo acusado, P.P. Borges,
brasileiro, natural do Rio Grande do Norte, casado, 35 anos, comerciante, alfabetizado,
residente na avenida Padre Júlio s/n, bairro da Favela, em março de 1968, nas proximidades do
Hospital São Camilo. Ela afirma que ele a levou de carro e a ameaçou com um revólver,
cometendo, assim, o estupro e seu desvirginamento. Porém, ela continuou a ter encontros com
ele para manter relações sexuais no mesmo local por diversas vezes. Ela ficou grávida e com a
gestação avançada, o acusado deu uma quantia em dinheiro para ela alugar uma casa e contratar
uma mulher para lhe auxiliar. O escrivão não deixa explícito, mas acreditamos que fosse para
auxiliar em um aborto. Ela fugiu de casa e pediu abrigo a uma conhecida na baixa do
“Remanso”, depois o seu pai localizou o endereço em que estava.
P.P. Borges alegou que “não obstante ser casado, o respondente vez por outra mantém
relações sexuais extraconjugais com mulheres que comumente encontra fazendo meretrício”205.
Disse que manteve relações sexuais consentidas com a jovem e que ela não era mais virgem
nessa ocasião. No caminho de volta, perguntou se devia algo a ela e ela respondeu que devia
“só dez cruzeiros”. Ele então fez o pagamento de dez mil cruzeiros a ela 206. P.P.Borges relata
que os outros encontros sexuais não foram cobrados, mas no sexto encontro, M.N.C. Lopes
cobrou a quantia de cinquenta cruzeiros novos, valor que não tinha e disse que pagaria no dia
seguinte. Ela então o ameaçou dizendo que, se não o pagasse, faria um escândalo junto à família

203 A “Baixa do Remanso” corresponde atualmente ao bairro do Santa Inês, em Macapá.


204 AFCM, Inquérito S/N de 12 de dezembro de 1968, s/p.
205 AFCM, Inquérito S/N de 12 de dezembro de 1968, p. 13.
206 AFCM, Inquérito S/N de 12 de dezembro de 1968, p. 13.
78

dele. Ele fez o pagamento no dia seguinte. Nessa parte do depoimento, o acusado descreve uma
relação de prostituta e cliente, relação com a qual já era familiarizado. Ao contrário de muitas
das mulheres citadas ao longo desse texto, sejam elas vítimas ou acusadas, P.P.B. não se
envergonha de sua infidelidade conjugal ou de estar em companhia de meretrizes. Independente
do período político ou social, aos homens é permitido um comportamento fora daquele
idealizado pelo Estado, o que claramente não acontece com as mulheres, pois estas devem
sempre estar atentas para não perderem a proteção da Justiça.
Três meses após conhecê-la, ela disse quem era o pai dela e ele disse em depoimento
que tinha muito apreço e amizade pelo referido homem porque era seu conterrâneo, mas
também ficou em choque com a informação, pois tomava a jovem como prostituta. Nesse
mesmo período, ela informou que estava grávida207 e ele negou que tivesse aconselhado M. de
N.C.L. a procurar um médico ou enfermeira para fazer o aborto, mas que deu uma injeção para
a vítima tomar, a pedido dela. Alegou que não poderia afirmar que o filho era seu, mas poderia
admitir pois havia mantido relações sexuais com ela.208 A amizade dele para com o pai da vítima
fez com que ele se surpreendesse com M. de N.C.L., pois aparentemente não esperava que a
filha de um conhecido seu fosse prostituta. Ele também tentara se desvincular da acusação de
aborto, alegando que a injeção para a menstruação descer foi ideia da vítima e não dele.
Houve uma acareação e os dois mantiveram seus depoimentos e ela disse que recebeu
os 10 cruzeiros em novembro e não após a relação sexual e que ele tirou o revólver da cintura
e mostrou para ela. Essas foram as únicas mudanças, pois eles mantiveram seus depoimentos.
Uma testemunha disse em depoimento que ouviu da jovem que teria sido desvirginada por um
rapaz que agora morava em Belém. N. da S. Costa, mulher que abrigou a jovem em sua casa,
disse que ouviu dela que seu filho era de um caixeiro viajante que estava em Belém e que na
delegacia, na ausência do delegado, confessara para ela que não deveria ter acusado P.P. Borges.
Ainda sobre esse assunto, declarou que a menor afirmou que recebeu “CINQUENTA
CRUZEIROS NOVOS [de P.P. Borges] em pagamento de havê-la possuído sexualmente, tendo
a vítima dito ainda que se caso ele não lhe tivesse pago, ela o teria levado de encontro à
Polícia”209 N. Costa disse que quando vizinha da menor, viu ela chegando, após a meia-noite
com uma irmã, por duas vezes, acompanhadas de dois homens. Essa testemunha fez declarações
opostas ao que F.S. Lopes e M.N.C. Lopes haviam dito, por evidenciar uma conduta da vítima
que até então não havia sido apontada por outra pessoa que não o acusado.

207 AFCM, Inquérito S/N de 12 de dezembro de 1968, p. 14.


208 AFCM, Inquérito S/N de 12 de dezembro de 1968, p. 15.
209 AFCM, Inquérito S/N de 12 de dezembro de 1968, p. 09.
79

Caulfield210, Cancela211, Bessa212 e Esteves213 concordam que os acusados faziam uso


dos discursos que questionavam a honra das jovens que tinham liberdade para sair de casa
desacompanhadas, ir a festas e bailes de carnaval, para tentar se livrar da pena ou do casamento,
porque não teriam responsabilidade sobre a honra dessas mulheres e nem de suas famílias. As
meninas seduzidas eram de famílias pobres, com atestado de pobreza emitido pelo delegado.
Em Macapá, como afirma Sidney Lobato, bem como em outras cidades do Brasil, os ideais de
moralidade e comportamento das filhas da classe trabalhadora eram elásticos. Mesmo porque
elas já estavam inseridas no mundo do trabalho como trabalhadoras domésticas, seja em casa
de outra família ou na sua própria. Então era comum que circulassem pelo espaço urbano
desacompanhadas, inclusive com maior liberdade para frequentar festas e “depois de
desvirginadas e abandonadas por namorados ou amásios, encetavam novos relacionamentos
amorosos”.214 As duas meninas, vítimas dos casos de sedução, são exemplos dessa moral
elástica, o que é usado contra elas nos processos judiciais.
Cancela escreve que “deteriorar a imagem da menina ofendida foi um dos principais
artifícios usados por esses personagens masculinos para se eximir do possível julgamento de
procedência de um processo”.215 Do mesmo modo, Karla Bessa afirma que no decorrer do
processo, a mulher vai se tornando ré porque as suas atitudes e comportamentos passam a ser
descritos nos depoimentos das testemunhas e “no final do processo, aquela mesma ‘moça’,
inexperiente e frágil, se transforma numa ‘fêmea fatal’, capaz de usar não só o homem com
quem manteve relação sexual, como também o dispositivo legal em seu próprio
favorecimento”.216 Assim, os acusados buscavam maneiras de identificar no comportamento
das vítimas algo que estivesse fora do padrão moral do que seria uma jovem sexualmente
inexperiente e honrada, o que poderia descredibilizar o depoimento da vítima. Foi o que
aconteceu com F.T. Lima, pois testemunhas e acusado falaram que ela era alvo de comentários
masculinos por não ser mais virgem e por ter mantido relações sexuais com alguns deles, que
andava até tarde da noite em festas frequentadas por meretrizes e mulheres de vida questionável
e que não recusava propostas para “cópulas carnais”.

210 CAULFIELD, Sueann. Op. Cit.


211 CRISTINA, CANCELA. Op. Cit.
212 BESSA, Karla. Op. Cit.
213 ESTEVES, Martha. Op. Cit.
214 LOBATO, Sidney. Op. Cit., 210.
215 CRISTINA, CANCELA. Op. Cit., p. 109.
216 BESSA, Karla. Op. Cit., p. 154.
80

O estudo de Cristina Donza Cancela não está inserido no mesmo contexto histórico dos
processos judiciais de nosso trabalho, mas percebemos que alguns aspectos moralizantes na
sociedade brasileira são redefinidos com o passar das décadas, enquanto outros permanecem e
se tornam marca dos discursos de vítimas, acusados, testemunhas, delegados, promotores e
juízes. Dessa forma, Sueann Caulfield afirma que, na redação do Código Penal de 1890, os
juristas concordavam que, ao punir um caso de defloramento, não estariam somente protegendo
a marca fisiológica de uma mulher, mas princípios morais. A autora argumenta que:

Os conflitos sobre como a lei deveria intervir nas relações familiares e sobre
a definição de honestidade e de virgindade resultaram da coexistência, na lei
e na jurisprudência, de duas noções divergentes sobre honra: a noção patriarcal
de honra como um recurso familiar e a noção burguesa de honra como uma
virtude individual.217

Os juristas republicanos concordavam que a honra era individual, mas não conseguiam
se desvencilhar da noção de honra patriarcal. Então fizeram uma combinação de teorias do
direito e análises sociais e científicas para definir os princípios de defesa e definição de honra
sexual. No decorrer dos anos, a noção burguesa de honra como uma virtude individual ganhou
terreno, porém:

A intervenção do Estado paternalista nas relações familiares e sociais e a


reação dos juristas aos novos desafios às hierarquias de gênero e classe –
fizeram com que as interpretações jurídicas sobre a honra ficassem ainda mais
complexas durante o período em que, mais uma vez, se tentava reescrever o
direito penal brasileiro.218

No período anterior e durante o Estado Novo, já havia uma discussão sobre uma
adaptação do código penal para que ele se ajustasse aos tempos modernos. Essa modernidade
estava ligada ao desenvolvimento econômico e social, mas também significava a dissolução da
família e dos bons costumes. Para Karla Bessa,

A prática de vincular a honra feminina à sua conduta sexual seria, ao meu ver,
mais do que uma forma de controlar e confinar as mulheres ao âmbito
doméstico (do lar), representaria a medida da supervalorização do coito, e
junto a ele, a supervalorização do casamento como instituição saudável para
organizar e administrar as relações carnais e os descendentes oriundos
destas.219

217 CAULFIELD, Sueann. Op. Cit., p. 85.


218 Ibidem, p. 186.
219 BESSA, Karla. Op. Cit., p. 104.
81

Bessa infere que nos casos de sedução, mesmo após a leitura de muitos deles, não fica
claro em que momento houve um conflito que culminou na denúncia para a polícia. Daí podem
emergir diversas possibilidades.220 Aqui, fica claro que o momento que causou a denúncia no
processo n° 1.826 foi a recusa do acusado em casar, pois ele disse à mãe da vítima que casaria
somente se fosse obrigado pela Justiça. Já no processo n° 2.234 foi a gravidez da menor. Pouco
podemos falar sobre esse ponto porque o processo estava incompleto e ele não continha o
depoimento da vítima na delegacia, somente em juízo e pouco se fala desse aspecto no decorrer
do processo. Porém, pudemos identificar que essa foi a causa da denúncia, porque F.T. Lima
dissera que quando o acusado soube da gravidez, passara a não mais procurá-la. Enquanto que
o inquérito S/N teve como motivo de denúncia a fuga da jovem da casa de seus pais por
conselho de P.P. Borges, que além da acusação de estupro, também foi acusado de tentativa de
aborto, pois a menor estava grávida.
Percebemos que os casos têm diferenças, mas também semelhanças. No processo n°
1.826, a vítima tinha todas as testemunhas a seu favor, dizendo que era uma boa filha com bom
comportamento. Já a vítima do processo n° 2.234 tinha somente uma testemunha a seu favor,
alguém que o delegado nem levara em consideração, pois as demais testemunhas
contradisseram seu depoimento e o da própria vítima, confirmando o relato do réu. No primeiro
caso, o réu assumiu que desvirginou a vítima, o que não aconteceu no segundo, em que a vítima
estava grávida. Infelizmente, o processo estava incompleto e não foi possível ler a íntegra dos
depoimentos da mãe e da vítima na delegacia. Os dois casos foram arquivados, porque os
acusados eram menores de idade quando da abertura do inquérito221. No inquérito S/N, o
acusado não assume o desvirginamento da vítima, mas disse que poderia ser o pai da criança,
porque mantivera relações sexuais com M.N.C. Lopes. O representante do Ministério Público,
Edson Correia pediu o arquivamento do inquérito pois M.N.C.L. era uma “pseudo vítima” e o
indiciado não havia cometido o crime222. Nesse caso, é perceptível como as duas partes
tentaram, cada uma a seu modo, convencer delegado e promotor de Justiça a seu favor, mas as
testemunhas acabaram resolvendo o imbróglio e P.P.B. conseguiu escapar da acusação. Desse
modo, M.N.C.L. certamente entrou no grupo de mães que criaram seus filhos com a ausência
do genitor.

220 Ibidem, p. 90
221 Conforme o Código Penal Brasileiro: Art. 115 - São reduzidas de metade os prazos da prescrição, quando o
criminoso era, ao tempo do crime, menor de 21 anos ou maior de setenta anos. (AFCM, n° 2.234, 1969, p. 40).
222 AFCM, Inquérito S/N de 12 de dezembro de 1968, p. 27.
82

Assim, a moral da classe trabalhadora amapaense, no período aqui analisado, era


flexível e as meninas já estavam inseridas no mundo do trabalho, o que lhes dava maior
liberdade para transitar pela cidade, inclusive em passeios a sós com namorados ou em festas
noturnas. As menores vítimas dos processos tornavam-se rés ao longo dele, porque o
comportamento delas é que definiria se eram mulheres honestas e honradas, e mereceriam uma
reparação, ou uma mulher de vida questionável que não teria apoio nenhum da Justiça.
83

II. A BOEMIA E A PROSTITUIÇÃO: AS FESTAS, OS MILITARES E A


CARTOGRAFIA DO PRAZER

As prostitutas tinham uma estreita relação com a boemia e com as festas. Nesses locais,
elas encontravam mais do que divertimentos, encontravam trabalho. O que para homens e
outras mulheres que frequentavam a noite amapaense era lazer, para elas era uma oportunidade
de conseguir os meios de sustento de suas famílias. Claro que elas uniam o útil ao agradável e
também usufruíam do entretenimento dos bares, botequins, boates e dançarás, prova disso são
as detenções por embriaguez. Elas não são as únicas protagonistas dessa seção, porque não é
possível negligenciar os homens, enquanto agentes importantes desses lugares e dos casos
documentados pela polícia e pelo poder judiciário.
O lazer noturno não foi marcado somente pelo entretenimento, pois nele ocorriam
muitas prisões de homens e mulheres que se embriagavam e promoviam desordens. Sem contar
os processos criminais com origem nas festas e nos botequins. Usando como fontes um livro de
ocorrências, processos criminais, jornais e uma entrevista, enfocamos as contravenções penais
de embriaguez e desordem que resultaram em prisões de meretrizes e de homens trabalhadores
em Macapá. Além disso, temos como objetivo analisar por meio das páginas dos periódicos os
bailes promovidos por clubes, procurando identificar quem eram os seus frequentadores e, em
contrapartida, identificar os habitués dos botequins. Nossa finalidade é igualmente analisar as
sociabilidades dos botequins e das ruas a partir do conceito de masculinidade, atentando para a
participação de soldados do Exército nos casos de conflito. Por fim, vamos caracterizar os locais
de prostituição no Amapá e pôr em evidência a relevância deles para o lazer ocorrido no TFA,
além de discorrer sobre os deslocamentos da espacialidade da prostituição de Macapá.

2.1 Mulheres e homens ébrios: embriaguez e desordem nos registros policiais


Embriaguez, desordem, vadiagem eram contravenções penais já previstas no Código
Penal de 1890. No Estado Novo, com o Código Penal de 1940, criou-se uma lei própria para
esses “crimes-anões”223. Assim, foi instituída a Lei de Contravenções Penais 224. Para Érico de
Loyola, essa lei proporcionou ao Estado brasileiro maior poder para controlar as “classes

223 DE LOYOLA, Érico Teixeira. Juristas em Lilliput: a interpretação da Lei das Contravenções Penais nas suas
duas primeiras décadas de vigência (1940-1950). Clio: Revista Pesquisa Histórica, v. 38, n. 2, p. 345-366, 2020,
p. 346.
224Brasil. Decreto-Lei nº 3.688 de 03 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais). Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3688.htm. Acesso em: 12 de dezembro de 2022.
84

perigosas”225, a população negra e pobre das cidades, para proteger não só o que era moralmente
adequado às classes dominantes, mas também a propriedade privada. governos agentes da
Ditadura empresarial-militar também se se orientaram por essa ótica. Por isso não eram raras
as detenções de embriagados e desordeiros no TFA do período ditatorial.
Dentre todos os motivos de detenção em Macapá, “embriaguez e desordem” era o mais
comum. Como era uma contravenção penal, apenas uma noite ou algumas horas no “xadrez”
para cessar o efeito do álcool eram considerados punição suficiente. Não importava o gênero,
homens e mulheres eram igualmente detidos e colocados à disposição do delegado de plantão.
Por ser motivo de prisão recorrente, tal contravenção não podia ser ignorada. Núncia de
Constantino explica que no processo de modernização de Porto Alegre entre a metade final do
século XIX e início do século XX, a repressão policial sobre a classe trabalhadora era motivada
principalmente pela vadiagem, pela embriaguez, pelo jogo e pela prostituição. Para isso, as
forças policiais contavam com o apoio da imprensa, que reproduziu campanhas contra essas
práticas nos jornais226. Desse modo, “manter a ordem pretendida foi, portanto, tarefa
empreendida com tenacidade pelas autoridades. Estatísticas revelam a desordem como delito
de maior incidência, em sucessivos relatórios”227. Em seguida, vinham os delitos de embriaguez
e embriaguez e desordem.
No Livro de Registro de Ocorrências da Central de Polícia esse delito foi, sem dúvidas,
o maior motivo de prisão. Para essa subseção, selecionamos apenas registros de ocorrências de
embriaguez e desordem que envolveram meretrizes, um total de 11 ocorrências. Em algumas
edições do ano de 1970, o jornal Novo Amapá também nos fornece dados do movimento
policial. E em poucas edições do ano de 1974 esse periódico manteve uma coluna denominada
“Ronda Policial”, na qual são publicadas as ocorrências policiais mais detalhadas.
As brigas de casal, quando ocorriam em via pública, comumente eram apartadas pela
patrulha da Guarda Territorial, ocasião em que os amantes eram levados à delegacia para ficar
à disposição do delegado de plantão. Assim aconteceu em três ocorrências envolvendo
meretrizes e seus amásios:

Embriaguez e Desordem: - Maria C. Leitão, amapaense, solteira, de 19 anos


de idade, meretriz e J. Pereira, vulgo Jagunço, foram detidos e conduzidos à
esta Permanência quando alcoolizados promoviam desordem no dançará

225 DE LOYOLA, Érico Teixeira, Op. Cit., p. 348-349.


226 DE CONSTANTINO, Núncia Santoro. A conquista do tempo noturno: Porto Alegre moderna. Estudos Ibero-
Americanos, v. 20, n. 2, p. 67-84, 1994, p. 80.
227 Ibidem.
85

“Merengue”. Foram recolhidos ao xadrez à disposição do Sr. Delegado de


Plantão.228

Desordem: - Quando alcoolizados engalfinharam-se em luta corporal foram


detidos e conduzidos a esta Permanência J.C. Guedes, paraense, solteiro, de
21 anos de idade e sua amásia Jacira, meretriz de 20 anos de idade residentes
a Av. Mendonça Júnior s/n, na luta ambos tiveram suas roupas rasgadas.
Foram recolhidos ao xadrez até segunda ordem.229

Embriaguês e desordem: Por estarem travando luta corporal em plena via


pública, em visível estado de embriaguez alcoólica, foram detidos e
apresentados nesta Permanência pelos GTs m. Lino e m. Salvador, Jacira,
amapaense, meretriz, de 19 anos e seu amásio A. C. Gomes, paraense, solteiro,
de 15 anos de idade, ambos residentes na Doca da Fortaleza. Foram recolhidos
ao xadrez a disposição do Sr. Delegado de Plantão. Obs.: Permanecem até
segunda ordem.230

Na primeira ocorrência não fica claro se os envolvidos eram um casal ou não, mas
destaca-se que estavam promovendo desordem juntos no “Merengue”. Podemos perceber o
envolvimento da meretriz Jacira em duas ocorrências e pelo mesmo motivo. Porém, os amásios
são diferentes. Apesar de a idade dela não coincidir nos dois registros, se trata da mesma pessoa,
o que conseguimos identificar pelo sobrenome. O tempo de uma ocorrência para a outra é de
mais ou menos 45 dias, o que nos leva a pensar que esses amásios eram clientes ou Jacira
separou de J.C. Guedes e, nesse ínterim, iniciou um novo relacionamento com A.C. Gomes. É
difícil concluir que se trata de um caso ou outro, porque o amasiamento pode tanto ser uma
relação de namoro ou de união estável, segundo as definições atuais, quanto uma relação
passageira, como a das meretrizes com seus clientes.
Prostitutas também foram presas em grupo pela Guarda Territorial, seja por embriaguez,
seja desordem, ou pelos dois motivos. Como veremos mais adiante, as meretrizes amapaenses
costumavam andar em grupo. Esses grupos eram criados por questões de afinidade, parentesco
ou porque moravam na mesma casa de habitação coletiva ou pensão:

Embriaguez: Pela Patrulha da Cidade foram apresentadas nesta Permanência


Lucila e Maria dos Santos, amapaenses de 38 e 22 anos, respectivamente,
meretrizes, residentes à Doca da Fortaleza, por estarem apresentando indícios
de ingestão alcoólica às proximidades do Mercado Central, proferindo

228 Livro de Registro de Ocorrências da Central de Polícia. Ocorrência nº 1.146 de 11 de outubro de 1969, p. 81-
82.
229 Ibidem. Ocorrência nº 1.049 de 14 de setembro de 1969, p. 11.
230 Ibidem. Ocorrência nº 1.184 de 26 de outubro de 1969, p. 119.
86

palavras que a moral condena. Foram recolhidas ao xadrez à disposição do sr.


Delegado de Plantão. (p. 40-41). Obs.: Permanecem até segunda ordem.231

Embriaguez: Pelo Inspetor Amorim foi detida e apresentada nesta


Permanência, a meretriz Mirazilda, amapaense, solteira, de 17 anos de idade,
por encontrar-se perambulando pela via pública, apresentando sintomas de
embriaguez alcoólica. Foi recolhida ao xadrez até cessar o efeito do álcool.232

Embriaguez e desordem: Pelo GT Medeiros de ordem à Permanência, foi


apresentada nesta Central de Polícia Rosângela, meretriz, residente à Doca da
Fortaleza, por haver momentos antes, promovido séria desordem na via
pública, em consequência, danificou o óculos do GT Farias, nesta
Permanência, portou-se de maneira inconveniente, sendo a muito custo
recolhida a xadrez. Obs.: Permanece até segunda ordem.233

Embriaguez: Pela Patrulha da Cidade foram apresentadas nesta Permanência,


por estarem perambulando em via pública, em visível estado de embriaguez
alcoólica; as meretrizes: Eluiza e Marilze, paraenses, ambas com 17 anos,
residentes na Doca da Fortaleza. Foram recolhidas ao xadrez à disposição do
Sr. Delegado de Plantão. Obs.: Permaneceram até segunda ordem.234

Como se pode observar, a ingestão de bebidas alcoólicas e a embriaguez não eram


práticas exclusivamente masculinas. Vemos aqui um exemplo de desvio de um comportamento
moralmente idealizado para as mulheres. Exemplo semelhante vem Fortaleza, no Ceará, onde,
no início do século XX, “a embriaguez não era uma prática restrita aos homens, já que as
evidências sobre as mulheres ébrias eram constantes, embora em menor número”235. Apesar de
não se tratar do mesmo período, tal exemplo é importante para nos ajudar a pensar que
independente do contexto histórico ou do regime político, as mulheres conseguiam ir além dos
modelos de comportamento idealizados para elas.
Meretrizes também foram detidas em grupos compostos por homens e mulheres.
Podemos perceber que a profissão dos homens não é informada em nenhuma das ocorrências
até aqui, mas as mulheres são identificadas como meretrizes:

Embriaguez: Pela Patrulha da Cidade foram apresentados nesta Permanência:


M.T. da Silva, amapaense, solteiro, com 31 anos, Maria Honorata, amapaense,
meretriz, de 33 anos e M.P. da Silva, amapaense, solteiro, de 26 anos, todos
residentes nesta cidade, por se encontrarem perambulando na via pública
demonstrando sintomas de embriaguez alcoólica foram recolhidos ao xadrez

231 Ibidem. Ocorrência nº 1.087 de 26 de setembro de 1969, p. 40-41.


232 Ibidem. Ocorrência nº 1.168 de 19 de outubro de 1969, p. 103.
233 Ibidem. Ocorrência nº 1.188 de 27 de outubro de 1969, p. 125.
234 Ibidem. Ocorrência nº 1.223 de 10 de novembro de 1969, p. 155.
235 DA COSTA, Raul Max Lucas. “Júlio Torres em cena”: embriaguez pública e moral impressa em Fortaleza
(1915-1935). Revista de História da UFBA, v. 5, n. 1-2, 2013, p. 231.
87

de ordem e à disposição do sr. Delegado de Plantão. Obs.: Permanecem até


cessar o efeito do álcool.236

Embriaguez e desordem: Pela Patrulha da Cidade foram apresentados sendo


recolhidos ao xadrez desta Permanência, ficando à disposição do Sr. Delegado
de Plantão: N.S. Flexa, paraense, solteiro, de 21 anos, e as meretrizes: Maria
do Socorro e Deuzarina, amapaenses, de 17 e 17 anos de idades,
respectivamente. Todos residentes nesta cidade, por haverem alcoolizados
promovido desordem no dançarás denominado “Merengue”. Permanecem à
disposição da citada autoridade.237

Embriaguês: Pela Patrulha da Cidade foi apresentada nesta Permanência, Elza,


paraense, solteira, meretriz de 19 anos, residente na baixa da Fortaleza por
estar promovendo algazarra na via pública apresentando sintomas de
embriaguez alcoólica, foi recolhida ao xadrez à disposição do sr. Del. de
Plantão. Obs.: Permanece até segunda ordem.238
Detenção: Pela Patrulha foram detidos e apresentados F.C. Ferreira, R. A. de
Souza, M.E.S. Silva, Elza e Ducila, de 24, 34, 22, 19 e 38 anos,
respectivamente, por se encontrarem às proximidades do Bar “Caboclo”, em
visível estado de embriaguez alcoólica e promovendo desordem perturbando
o sossego público. Vale salientar que R.A. de Souza, portava no momento uma
faca de mesa toda ensanguentada. Foram recolhidos ao xadrez de ordem e à
disposição do Sr. Delegado de Plantão.239

As desordens causadas pela embriaguez aconteciam em via pública, mas também em


estabelecimentos noturnos, como dançarás e bares. É necessário destacar o caso de Elza, detida
duas vezes em um curto período de tempo. Mas, na primeira vez ela foi detida sozinha e, na
seguinte, a meretriz foi presa com outras pessoas. Ela e Ducila não são identificadas como
meretrizes no registro em que estavam em grupo, mas a caracterização de Elza é semelhante
em ambas ocorrências destacadas.
O jornal Novo Amapá, como órgão oficial de governo, divulgava as atividades da
Divisão de Segurança e Guarda. Na edição de 21 de fevereiro de 1970, na coluna “DSG em
números”, foram registradas 11 ocorrências de embriaguez e desordem 240. Já na edição de 19
de março de 1970, a coluna muda de nome e passa a ser “Movimento Semanal da Polícia”, na
qual encontramos 6 registros de embriaguez e desordem e a data de cada um começa a ser
informada: as ocorrências foram registradas do dia 02 a 08 de março de 1970241. A próxima
publicação da coluna ocorre duas edições depois e o período do registro é de 09 a 29 de março

236 Livro de Registro de Ocorrências da Central de Polícia. Ocorrência nº 1.183 de 25 de outubro de 1969, p. 118.
237 Ibidem. Ocorrência nº 1.236 de 13 de novembro de 1969, p. 164.
238 Ibidem. Ocorrência nº 1.136 de 08 de outubro de 1969, p. 73-74.
239 Ibidem. Ocorrência nº 1.183 de 26 de novembro de 1969, p. 198.
240 DSG em números. Novo Amapá, nº 1.562, 21 de fevereiro de 1970, p. 5.
241 MOVIMENTO semanal da polícia. Novo Amapá, nº 1.565, 19 de março de 1970, p. 2.
88

de 1970, quando foram registradas 42 ocorrências de embriaguez e desordem242. A coluna


retorna em 1º de agosto de 1970 com 07 registros243. Em 26 de setembro, o nome da coluna é
alterado para “Boletim Policial” e no período de 24 de agosto a 13 de setembro de 1970 houve
44 registros na Permanência da Delegacia Central e nos Postos Policiais244. No período de 14 a
27 de setembro foram registrados 25 casos de embriaguez e desordem 245. Totalizando 135
ocorrências publicadas no jornal em 1970.
Na coluna “Ronda Policial” foi publicada uma notícia de desordem. Os envolvidos
estavam alcoolizados e começaram a brigar fisicamente em via pública, quando a patrulha
policial passou e prendeu os dois homens:

Desordem

José Benedito e Ademir Samorais, são dois sujeitos que quando ingerem
qualquer bebida alcóolica, gostam de fazer cenas pouco apreciáveis, e travam
luta corporal em plena via pública, "para dar uma demonstração de que não
somos moleza e sabemos brigar pra valer". Mas como há aquele ditado que
diz que um dia é da caça e outro do caçador, os dois brigões não foram muito
felizes em suas demonstrações de luta corporal em via pública, A patrulha
passava por lá no exato momento em que, de simples brincadeira, passavam a
esmurrar violentamente um a cara do outro. Conclusão: foram recolhidos ao
xadrez da permanência e só sairam após curtirem vinte e quatro horas o sol
quadrado, nas grades do xadrez246.

Vemos que o autor do texto destaca que a ingestão de bebida alcoólica fez com que José
e Ademir fossem protagonistas de briga cujo intuito era provar que eram fortes e, assim,
performar masculinidade. O que começou como brincadeira, acabou virando uma luta violenta
que cessou pela intervenção policial. Assim como nas ocorrências registradas pela Central de
Polícia, esse recorte do jornal destaca como a embriaguez e desordem eram contravenções
penais complementares para a força policial. Para Raul Max da Costa, o “controle sobre a
embriaguez pública era efetivado pela força policial através das prisões correcionais. Enquanto
a polícia prendia, o jornal registrava”247. Nesse caso, vemos a atuação de dois órgãos do governo
ditatorial no TFA: a Patrulha Policial prende e faz o registro de ocorrência para que a imprensa
oficial estampe a atuação da polícia nas folhas do jornal Novo Amapá. Um trabalho
complementava o outro.

242 MOVIMENTO semanal da polícia. Novo Amapá, nº 1.567, 04 de abril de 1970, p. 2.


243 MOVIMENTO semanal da polícia. Novo Amapá, nº 1.581, 01 de agosto de 1970, p. s/n.
244 BOLETIM policial. Novo Amapá, nº 1.588, 26 de setembro de 1970, p. s/n.
245 BOLETIM policial. Novo Amapá, nº 1.590, 10 de outubro de 1970, p. s/n.
246 RONDA policial. Novo Amapá, nº 1.747, 13 de setembro de 1974, p. 5.
247 DA COSTA, Raul Max Lucas, Op. Cit., p. 223.
89

A partir dos registros analisados, conseguimos observar como as meretrizes do TFA circulavam
pelas ruas da capital se divertindo com colegas e amigas, brigando com amásios ou clientes, entrando
em conflitos com forças policiais. Mas, não podemos deixar de questionar se essas mulheres
identificadas como meretrizes eram realmente trabalhadoras sexuais, ou se eram percebidas assim pela
polícia por apresentarem um comportamento estigmatizado no espaço público, uma conduta não
esperada de mulheres “honradas”:

A embriaguez feminina era representada como um hábito de mulheres


“decaídas”, “de vida ruim”, “rameiras”, “alegres”, que perturbavam a ordem
pública incomodando moradores dos bairros, ruas e avenidas da cidade. A
associação corrente da embriaguez com o meretrício era uma peculiaridade da
representação da mulher ébria, tendo em vista que a prostituição era o negativo
do ideal feminino, na mesma proporção que o alcoolismo era o avesso do ideal
masculino248.

Sendo assim, no discurso hegemônico, a embriaguez estava diretamente ligada à


prostituição. Então, para os registros policiais uma mulher embriagada que estivesse
promovendo desordem em via pública só poderia ser prostituta, porque as mulheres que
seguiam os padrões morais dominantes não reproduziriam esse tipo de comportamento. A
repressão policial e o controle moral sobre trabalhadoras e trabalhadores não foi exclusividade
do período ditatorial brasileiro, e vimos que a tentativa de controlar os corpos dos populares
não fez com que cessassem suas aventuras festivas, ébrias e desordeiras.

2.2 Bailes e botequins: uma questão de classe


Macapá desenvolveu uma efervescente boêmia desde a criação do TFA, na década de
1940. Até o início da década de 1970, a concentração de boêmios era intensa na Doca da
Fortaleza. O Bar Caboclo, que estava localizado na Doca, está ainda hoje presente no
imaginário popular amapaense e foi um dos locais de predileção daqueles que buscava se
divertir, encontrar amigos e até prostitutas. De acordo com Lobato, “esse lugar [a Doca],
durante o dia, recebia dezenas de embarcações vindas de vários pontos da Amazônia e do
restante do Brasil. Chegada a escuridão, a doca era tomada pelos notívagos que buscavam seus
pequenos bares para rápidos aperitivos ou demoradas farras”249. Era um espaço que assumia
duas territorialidades, que poderiam se confundir porque os botequins também funcionavam
durante o dia. Algumas das ocorrências policiais foram registradas durante o dia, o que nos leva

248 DA COSTA, Raul Max Lucas, Op. Cit., p. 231.


249 LOBATO, Sidney. O despertar de Orfeu: prazer e lazer dos trabalhadores de Macapá (1944-1964). Topoi
(Rio de Janeiro), v. 15, p. 223-241, 2014, p. 231.
90

a pensar que as características diurnas e noturnas desse local se confundiam e não eram bem
delimitadas. Esse bairro era atravessado por um fluxo intenso de pessoas, o que gerava grande
preocupação nas autoridades governamentais. Mas, a partir da década de 1960, esse lugar
passou a dividir o protagonismo das ocorrências policiais com outros bairros periféricos como
o Buritizal e o Santa Rita250.
Essas farras não eram marcadas somente pela camaradagem dos divertimentos, mas
também por conflitos. A junção das danças, dos festejos e do álcool causava brigas e ensejava
prisões. Em locais como botequins, salões de festa e clubes, embriaguez e desordem eram os
motivos mais comuns de detenção. Em setembro de 1969, os bombeiros J.C. Picanço, J.C. da
Silva e S.P. de Andrade, de 30, 22 e 35 anos251, respectivamente, e A.R. da Silva, O.A. Moraes
e J.T.P. Nascimento, de 18, 19 e 22 anos, residentes em Macapá252, respectivamente foram
presos por promover desordem no Merengue. E em novembro, Jagunço foi detido no dançarás
pelo mesmo motivo253.
Foram detidos no Bar Gato Azul: J.N. Gomes, paraense, casado, motorista profissional,
residente no bairro Buritizal254; E.A. de Araújo, A.A.F. de Sena, I.P. Dias e R. Miranda,
paraenses, solteiros, marítimos, de 31, 31, 26 e 33 anos de idade, respectivamente, estavam de
passagem por Macapá e foram presos embriagados por promover desordem no referido bar e
fazer necessidades fisiológicas em via pública255.
Já no Bar Banavita, W.M. Picanço, paraense, casado, funcionário público, com 32 anos
de idade, e M.C. Mendes, amapaense, estudante, com 18 anos de idade, foram presos por
promover desordem no bar. Eles se comprometeram a pagar o prejuízo que causaram e foram
liberados256. Em uma festa na Sede do Trem Esporte Clube, M.R.N. Caldas e E.M. Alfaia,
amapaenses, solteiros, estudantes, moradores do bairro do Trem, de 19 e 20 anos de idade,
respectivamente, fizeram desordem e foram presos257. O único registro que tem um motivo
diferente para a detenção ocorreu na Pensão da Suerda: “Detenção: Por haver feito despesa na
Pensão da Suerda na importância de 28,00 e mais 6,00 de carro sem ter dinheiro para pagar foi
detido E. Souza, paraense, casado, funcionário de Platon Indústria e Comércio, sendo recolhido

250 Nessa época, o bairro Santa Rita também era chamado de “Favela” e de “bairro da CEA”, a antiga Companhia
de Eletricidade do Amapá.
251 Livro de Registro de Ocorrências da Central de Polícia. Ocorrência nº 1.038 de 12 de setembro de 1969, p.
03.
252 Ibidem. Ocorrência nº 1.039 de 12 de setembro de 1969, p. 03.
253 Ibidem. Ocorrência nº 1.216 de 08 de novembro de 1969, p. 149.
254 Ibidem. Ocorrência nº 1.044 de 13 de setembro de 1969, p. 7.
255 Ibidem. Ocorrência nº 1.202 de 02 de novembro de 1969, p. 136.
256 Ibidem. Ocorrência nº 1.093 de 28 de setembro de 1969, p. 46.
257 Ibidem. Ocorrência nº 1.123 de 04 de outubro de 1969, p. 64.
91

ao xadrez à disposição do Sr. Delegado de Plantão”258. A Pensão da Suerda é outro local que
atravessou os anos e continua presente na memória dos amapaenses como um importante
espaço de prostituição e diversão noturna. Mas, ao contrário do Bar Caboclo, ela não foi cenário
frequente de registros policiais. Inclusive, não é difícil ouvir comentários de que a Suerda “não
era pra qualquer um”, que era uma casa de meretrício para pessoas de maior poder aquisitivo.
A ocorrência acima foi a única encontrada no Livro de Ocorrências, nos jornais e nos processos
judiciais.
Alguns botequins eram mais frequentes nos registros policiais. No Bar Caboclo, R.S.
Carvalho e J. Sarmento, paraenses, solteiros, de 24 e 42 anos, respectivamente, foram detidos
por embriaguez, ficaram presos até passar o efeito do álcool259. Já por desordem, após
agredirem-se, foram presos J.R. dos Santos, paraense, casado, de 39 anos de idade, e seu vizinho
F.B. Santos, amapaense, solteiro, de 23 anos de idade, moradores do bairro do Trem 260; e R.S.
de Morais, paraense, solteiro, estudante, de 21 anos, foi detido após quebrar copos no bar261.
Por embriaguez e desordem, foram presos L.C. Picanço, amapaense, de 22 anos de idade,
solteiro, motorista, G.G. da Silva, paraense, solteiro, de 19 anos de idade, trabalhador do
Matadouro de Fazendinha262; A.C. Gomes de 21 anos e M.D. do Vales, paraenses, solteiros,
residentes do bairro do Beirol263; o grupo de jovens R.S. dos Santos, F. Mira, J. Magno, R.P.
Gemaque, J.P. Gemaque e B.B. da Silva, paraenses, solteiros, de 20, 19, 21, 19, 18 e 18 anos,
respectivamente, estavam alcoolizados e fazendo desordem no Bar Caboclo 264; S. Lima,
paraense, de 31 anos, casado, residente no bairro da Favela, foi preso por estar embriagado e
por promover desordem e na delegacia foi “inconveniente” com o delegado265.
Diferentemente do que foi feito na subseção anterior, aqui escolhemos citar os registros
em que somente homens figuram detidos em bares, botequins, clubes e dançarás. Isso com o
objetivo de identificar quem eram os homens frequentadores desses lugares. A idade deles
ficava entre 18 e 42 anos, eram paraenses e amapaenses e a maioria residia em Macapá. Eles
eram trabalhadores braçais, bombeiros, marítimos e estudantes. Nem sempre essas informações
eram descritas, pois não havia um padrão no preenchimento das ocorrências. Em alguns casos
somente o nome dos contraventores era informado.

258 Ibidem. Ocorrência nº 1.231 de 12 de novembro de 1969, p. 161.


259 Ibidem. Ocorrência nº 1.220 de 09 de novembro de 1969, p. 153.
260 Ibidem. Ocorrência nº 1.048 de 14 de setembro de 1969, p. 11.
261 Ibidem. Ocorrência nº 1.145 de 11 de outubro de 1969, p. 81.
262 Ibidem. Ocorrência nº 1.085 de 26 de setembro de 1969, p. 39-40.
263 Ibidem. Ocorrência nº 1.122 de 04 de outubro de 1969, p. 64.
264 Ibidem. Ocorrência nº 1.189 de 28 de outubro de 1969, p. 126.
265 Ibidem. Ocorrência nº 1.203 de 02 de novembro de 1969, p. 137.
92

Pensando em diminuir o número de ocorrências, a Secretaria de Segurança Pública do


TFA estudou proibir a venda de bebidas alcoólicas, porque o consumo de cachaça estava
contribuindo muito para o aumento dos índices de crimes cometidos na capital, como podemos
verificar nos dois artigos a seguir:

Polícia estuda meio de proibir venda de cana


A exemplo de Belém e outras capitais brasileiras, a Secretaria de Segurança
Pública de Território vai proibir a venda de cachaça e seus derivados,
principais responsáveis por atos de desordens e até crimes que vem ocorrendo
com frequência em nossa capital.

Proibição

O dr. Odir Macedo, diretor da Divisão de Polícia Judiciária, informou que as


providências já estão sendo estudadas, com vistas a proibir a venda de cachaça
e seus derivados, geralmente consumidas nos botecos que se espalham pelos
bairros da cidade em número assustador. Como exemplo, um recente
levantamento feito pela polícia, acusou somente no Igarapé das Mulheres, a
existência de 22 botequins que vendem exclusivamente cachaça. Pelo menos
aos sábados e domingos, quando cresce o maior índice de embriaguez e
desordens, referidos botecos estão proibidos de vender a bebida maldita, sob
pena de serem enquadrados em lei.

Disse ainda o dr. Odir Macedo que a medida do Secretário da SEGUP vai
proporcionar maior tranquilidade às famílias e o espetáculo proporcionado por
elementos em avançado estado de embriaguez alcoólica vai diminuir
sensivelmente266.

Delegado Odir Macêdo continua combate à venda de “cana”

O dr. Odir Macedo, da Polícia Judiciária, continua trabalhando com sua equipe
para apurar com exatidão o número de botequins que vendem exclusivamente
cachaça, depois do que serão seus proprietários proibidos terminantemente de
vender a bebida diabólica aos sábados e domingos.

O trabalho que o dr Odir Macedo pretende desenvolver, por solicitação do


Chefe de Polícia, se estriba no exemplo de outras capitais brasileiras que
usaram do mesmo expediente, visando diminuir o índice de desordens e
criminalidades.
Num recente levantamento feito no bairro Nossa Senhora do Perpétuo
Socorro, foi constatada a existência de nada menos de 22 botequins abertos
com exclusividade para a venda de “cachaça”. Presume-se que em toda a
cidade, no mínimo, deverá existir uns duzentos e poucos comércios no gênero.

266 POLÍCIA estuda meio de proibir venda de cana. Novo Amapá, nº 1.745, 31 de agosto de 1974, p. 2.
93

A polícia depois de baixar uma ordem proibindo a venda de “cachaça” aos


sábados e domingos, vai montar um esquema de investigação a toda prova. É
que muitos proprietários de botequins receberão a ordem mas não cumprirão
com determinado. Para evitar abusos, o esquema será montado267.

É nítida a preocupação da administração pública com a quantidade de botequins em


Macapá, com atenção especial aos que se dedicam a vender somente bebidas alcoólicas. Os
números apresentados são interessantes porque somente em um bairro havia 22 botequins e a
estimativa era de que havia mais de 200 estabelecimentos comerciais dessa natureza na capital.
A proibição da venda de “cana” aos finais de semana foi uma medida usada para tentar frear o
número de registros que tinham o álcool como fio condutor e para tranquilizar as famílias
amapaenses perturbadas pela desordem dos bêbados nas ruas da cidade. Não sabemos se essa
medida causou o efeito desejado, mas podemos afirmar que essa ação da Secretaria de
Segurança Pública foi uma tentativa de repressão moral na capital amapaense e, tentando
antecipar as ações dos comerciantes, a polícia já planejava montar um esquema para garantir
que todos cumprissem a ordem.
A Divisão de Segurança e Guarda publicou no jornal A Voz Católica uma portaria para
a regularização de associações que estavam sendo criadas no TFA e causando desordens pelas
ruas:

Divisão de Segurança e Guarda

Seção de Coordenação
Portaria Nr. 39/64-DSG

CONSIDERANDO que, ultimamente, vêm se organizando nesta capital,


pequenos grupos de pessoas que passam a usar denominações como de
associações;

CONSIDERANDO que, tais grupos se aproveitam dessas denominações para


realizar festas dançantes e usufruir outras vantagens;

CONSIDERANDO que, referidas associações, mesmo em caráter precário,


não possuem estatutos próprios, e consequentemente personalidade jurídica;

CONSIDERANDO que com esse procedimento, vem os bairros desta capital


sofrendo, muitas vezes, perturbação da ordem, durante o horário destinado ao
repouso público;

267 DELEGADO Odir Macêdo continua combate à venda de “cana”. Novo Amapá, nº 1.746, 07 de setembro de
1974, p. 2.
94

CONSIDERANDO caber a esta Divisão regulamentar as festas em sociedade,


fazendo cumprir o que a lei determina, a fim de evitar abusos prejudiciais à
população;

RESOLVE:

I - CONCEDER o prazo de trinta (30) dias para que referidas associações


regularizem suas situações.
II - DETERMINAR que, expirado esse prazo, sejam cassadas todas as licenças
para festas dançantes nas sociedades que não estejam devidamente
legalizadas, somente sendo concedidas após a apresentação de documento
hábil que comprove a sua legalização.

DÊ-SE CIÊNCIA E CUMPRA-SE


Gabinete de Chefia da Polícia, em Macapá, 09 de março de 1964.

TEN. UADIR CHARONE


Diretor e Cmt. da DSG268

A partir da leitura desse documento podemos inferir que as associações eram diferentes
de clubes sociais como o Esporte Clube Macapá. Podemos supor que as associações citadas
eram as escolas de samba de Macapá. É necessário observar que essa portaria foi publicada
antes do Golpe de 1964, o que nos leva a concluir que o controle policial sobre os espaços
festivos não foi exclusividade do regime ditatorial. Nos anos da Ditadura empresarial-militar,
A DSG também publicou nos jornais locais portarias com normas a serem seguidas no carnaval
amapaense. Localizamos duas delas nos anos de 1970 e 1971269:

DIVISÃO DE SEGURANÇA E GUARDA

O Capitão Luiz Gonzaga Valle, titular da DSG, vem de baixar portaria de n°


022/70-DSG, disciplinando as normas que perdurarão durante a quadra
carnavalesca do corrente ano, cuja portaria foi devidamente aprovada pelo
Chefe de Executiva amapaense que será publicada no “Diário Oficial”. Para
conhecimento dos nossos leitores, transcrevemos as resoluções.
*Determinar que sejam adotadas no decorrer da respectiva quadra as seguintes
providências:

[…]

2°- Os festejos carnavalescos só poderão ser realizados após a concessão da


licença policial expedida pela 3ª Delegacia Auxiliar (Seção de Costumes) e
Juizado de Menores.

3° - As festas dançantes promovidas por agremiações esportivas e recreativas,


clubes, grupos carnavalescos que venham a se realizar em sedes sociais,
boates, dancings, casas particulares e publicamente, os promotores,

268 DIVISÃO de Segurança e Guarda. A Voz Católica, nº 229, 15 de março de 1964, p. 3.


269 As portarias de 1970 e 1971 são muito parecidas, por isso escolhemos citar apenas a primeira.
95

obrigatoriamente deverão solicitar da 3ª Delegacia Auxiliar a licença


respectiva, com antecedência de 48 horas e do Juizado de Menores;

4° - Os frequentadores das festas carnavalescas ficarão sujeitos a revista


pessoal e os portadores de armas de qualquer espécie as terão apreendidas
mesmo que seja exibido o porte;

5° - Os menores de 18 anos e maiores de 14, somente poderão freqüentar festas


carnavalescas em clubes sociais quando acompanhados de seus pais ou
responsáveis, até 22 horas; (portaria n° 7 do Exmo. Sr. Dr. Juiz de Direito);

6° - Fica expressamente proibido o ingresso de menores de 21 anos em festas


dançantes realizadas nas boates, dancings e similares […]270

De acordo com esta portaria, todos os lugares que fossem realizar festas carnavalescas
deveriam solicitar licença. Além dessas determinações, também foi proibido que os foliões se
fantasiassem de policiais, de padres, freiras e que usassem qualquer identificação que fizesse
referência a uniformes militares.
O carnaval movimentava o TFA e os clubes preparavam bailes para os foliões. A
agitação carnavalesca marcava presença nas páginas dos jornais. Parte da divulgação das festas
e dos preparativos dos clubes ficava a cargo de Wilson Sena, colunista e chefe das oficinas do
Novo Amapá:

O CARNAVAL CHEGOU e os clubes com êle estão prontinhos para


enfrentá-lo. O Esporte Clube Macapá terá o seu grito momesco na noite de
hoje. Programou mais dois bailes nos dias 7 e 10 vindouro. E para a criançada,
o dia 8 foi reservado a ela. Carnaval é com o azulino, assim diz o seu
presidente lacy.

O TREM BENEFICENTE CLUBE é “aquela” coisa no carnaval: dias 7 e 10


o carnaval rubro-negro, contará com o embalo da juventude do bairro do
Trem.

O SANTANA ESPORTE CLUBE confirmará o seu conceito perante os seus


associados e admiradores com monumental baile de carnaval. Carnaval é no
“canarinho milionário”, porque a coisa é divertida mesmo271.

O MAIS NOVO CLUBE social de Macapá, que é o Círculo Militar, terá a


grande oportunidade de se fazer presente nos dias dedicados ao “Rei Momo”,
quando a sua pista de dança será pequena para abrigar seus frequentadores que
desejam brincar o carnaval, aproveitando ainda, “aquela” brisa amazônica que
não deixa ninguém cansar. A gurizada também terá a sus oportunidade de
mostrar que sabe sambar. Vamos prestigiar as promoções, comparecendo em
massa à sede do Círculo Militar local272.

270 DIVISÃO de Segurança e Guarda. Novo Amapá, nº 1.559, 31 de janeiro de 1970, p. 6.


271 CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.55824 de janeiro de 1970, p. 5.
272 CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.559, 31 de janeiro de 1970, p. 5.
96

Os bailes desses clubes eram frequentados por pessoas de maior poder aquisitivo do
TFA. Na edição seguinte do jornal, o colunista critica a organização de um dos bailes
carnavalescos do Esporte Clube Macapá no qual “entrou todo mundo”, deixando de ser uma
“seleta reunião dançante”:

A MISSÃO JORNALÍSTICA, muitas vezes dá uma certa compensação,


quando as promoções em que se comparece, decorre dentro de um padrão
elevado e cheio de cordialidade, disciplina e organização em todos os pontos
de vista. Isto, sempre aconteceu em todas as festas em que o Esporte Clube
Macapá arcou com a responsabilidade. Desta coluna sempre elogiamos as
seletas reuniões dançante daquele clube. Mas como força de profissão e
sinceridade de propósitos não é possível calar diante do que ocorreu na festa
de sábado passado, grito de carnaval azulino que deixou muito a desejar.
Entrou todo mundo, o que vem ferir os preceitos sociais daquele clube, e toda
gente sabe o que aconteceu e o muito que poderia ter acontecido. Que a
diretoria do azulino, faça voltar aquela rigorosidade que fez o Macapá ser o
clube das grandes reuniões dançantes.273

Não sabemos o que aconteceu na festa para gerar o incômodo de Wilson Sena pela falta
de seletividade da diretoria do Macapá, mas podemos atestar que não era “qualquer pessoa”
que frequentava o clube e quando isso acontecia causava uma indisposição naqueles que
estavam habituados a um ambiente socialmente excludente. Para sanar esse desconforto, Sena
sugeriu que o clube voltasse a utilizar seus critérios de seleção de participantes na portaria. Ao
escrever sobre a programação de carnaval dos clubes locais, o articulista destacou que “Os
clubes suburbanos, ao som de suas boas aparelhagens, terão oportunidade de também mostrar
que sabem aproveitar a quadra momesca e responderão presente ao Rei Momo”274. Desse modo,
ele separava clubes como Trem Desportivo Clube, Esporte Clube Macapá, Santana Clube e o
Círculo Militar, dos clubes suburbanos de Macapá.
No ano seguinte, ao abordar as festas de Réveillon que frequentou com sua família,
Wilson Sena referiu-se ao Círculo Militar e ao Santana Esporte Clube como clubes
aristocráticos e destacou que no primeiro estavam presentes o governador do TFA, o General
Ivanhoé Martins, e o prefeito de Macapá João Oliveira Côrtes, além de outras autoridades não
citadas275. Logo, inferimos que esses clubes, em especial o Círculo Militar, eram locais de
encontro e confraternização dos gestores do TFA. Por fim, ele destacou que “em ambos os
bailes, predominou a elegância da mulher amapaense”276. Essa mulher amapaense não era a da

273 Ibidem.
274 CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.560, 07 de fevereiro de 1970, p. 05.
275 CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.600, 09 de janeiro de 1971, p. 05.
276 Ibidem.
97

classe trabalhadora, mas sim as esposas, mães, irmãs e filhas dos políticos do TFA. O tom
mudou quando o articulista passou a abordar as festas dos subúrbios, porque “tem muito menor
por aí fazendo o que quer” e a fiscalização estava “dando duro” nessas festas277. Vemos como
a classe dos frequentadores de cada festa é relevante para o colunista. Por um lado, ele destaca
a aristocracia e a elegância, por outro, por outro, ele destaca a fiscalização nos clubes
suburbanos, porque neles não havia organização e critérios para participar dos festejos. Depois,
ele menciona “os animados bailes carnavalescos” dos clubes suburbanos 13 de Setembro e
Cruzeiro, “mostrando que também no subúrbio, o som da cuíca e do pandeiro é coisa pra
valer”278. Mas, ele não comenta se vai frequentar os bailes suburbanos com sua família, ao
contrário do que faz quando comenta as festas promovidas pelos clubes “aristocráticos”
Um exemplo de como a classe social era um marcador usado para diferenciar os foliões
amapaenses, não só por colunistas, mas também para a polícia, foi a notícia de um roubo. As
casas noturnas suburbanas eram alvos prediletos da vigilância policial, porque na visão das
forças do controle social era mais fácil criminosos frequentarem esses espaços do que as festa
da “aristocracia” amapaense:

Um ladrão roubou jóias da Casa Lima, no valor aproximado de 160 mil


cruzeiros, na madrugada de 5 de fevereiro.

Logo que a Polícia tomou conhecimento do roubo, entrou em incansável


diligência, sob o comando do delegado Pedro da Costa Uchôa, da Delegacia
de Investigações e Capturas, não só cobrindo as saídas da cidade como
também vigiando as casas noturnas do subúrbio, onde haveria mais condições
de o ladrão passar a terceiros os materiais do furto279.

Sidney Lobato, abordando o período anterior ao Golpe de 1964, escreve que “enquanto
os clubes ofereciam bailes aos mais endinheirados, as ruas e as praças eram o território da folia
popular”.280 Já no contexto por nós estudado, observamos que trabalhadores e trabalhadoras
amapaenses também frequentavam clubes e associações, como o Treze de Setembro, assim
como ocupavam as praças e as ruas para brincar no carnaval. Os clubes ligados à Icomi, o
Santana Esporte Clube e o Manganês Esporte Clube, eram frequentados tanto pelo staff da
empresa quanto por seus trabalhadores. Nas páginas da Icomi Notícias os funcionários eram

277 Ibidem.
278 CADA assunto uma notícia. Novo Amapá, nº 1.602, 30 de janeiro de 1971, p. 05.
279 POLÍCIA põe as mãos no ladrão da “Casa Lima”. Novo Amapá, nº 1.671, 17 de fevereiro de 1973, p. s/n.
280 LOBATO, Sidney. Op. Cit., 2014, p. 238.
98

descritos como “família icomiana”, enquanto as autoridades governamentais e os representantes


eram citados nominalmente porque eram presenças “brilhantes” nos festejos dos clubes281.
Na pequena amostra das ocorrências policiais analisada, foi mencionado apenas o Trem
Esporte Clube, em única ocorrência. Não há qualquer menção a outros clubes frequentados
pelos “mais endinheirados”. Por outro lado, os botequins eram recorrentemente citados como
locais de confusão. Enquanto botequins, associações e clubes suburbanos eram frequentados
por funcionários públicos, estudantes, meretrizes, marítimos, motoristas e trabalhadores braçais
em geral, os clubes “aristocráticos” eram frequentados por políticos, empresários, militares e
suas famílias. Desse modo, fica evidente que era em razão de critérios de classe que uns tinham
mais fiscalização policial do que outros.

2.3 O “ser” e “fazer-se” homem: as rixas, os desafios e as masculinidades amazônicas


Botequins, bares, dançarás e boates foram palco de muitas atuações dos personagens
dessa pesquisa, as rixas e confusões generalizadas chamaram a atenção no conjunto documental
analisado. Vimos a necessidade de analisar a relação desses lugares de lazer e de diversão com
as ocorrências criminais e a existência de um padrão específico de masculinidade amazônica.
Os sujeitos que figuravam nessas ocorrências eram homens pobres e heterossexuais, que
partilhavam das masculinidades marginalizadas282, reproduzindo comportamentos forjados
pelo meio social e cultural no qual viviam; e prostitutas, que eram vítimas das ações desses
homens pobres com os quais conviviam. A partir da bibliografia, abordaremos a influência das
masculinidades e do machismo nas ações de homens amapaenses, registradas em dois processos
judiciais.
Raewyn Connell283 definiu a masculinidade como “uma configuração de prática em
torno da posição dos homens na estrutura das relações de gênero”284. Para ela, essa definição
tem a ver com as ações das pessoas, com o que é vivido por elas e não com aquilo que esperam
que elas façam. Dessa forma, a masculinidade é um modo de agir dos homens a partir das
construções de gênero. A masculinidade hegemônica, representada por homens brancos e

281 LANÇAMENTO foi festa. Icomi Notícias, ano 1, nº 03, p. s/n.


282 Segundo Soraya Januário: Esta forma de masculinidade está discriminada devido à condição subordinada de
classe social ou etnia. A marginalização é produzida nos grupos explorados ou oprimidos que podem compartilhar
muitas das características da masculinidade hegemónica, mas que são socialmente desautorizados. In:
JANUÁRIO, Soraya Barreto. Masculinidades em (re)construção: Genero, Corpo e Publicidade. Covilhã:
Labcom. Ifp, 2016, p. 126.
283 Originalmente, o texto citado tem como referência o nome morto de Raewyn Connel, antes da transição de
gênero. Por isso, vamos nos referir a ela com seu nome atual.
284 CONNELL, Robert W. “Políticas da masculinidade”. In: Educação e Sociedade. 1995, p. 188.
99

heterossexuais, figura como centro, enquanto outras masculinidades orbitam em torno dela.285
Connell e James W. Messerchmidt argumentam que o conceito de masculinidade hegemônica
sofreu diversas críticas desde a sua formulação. Algo que pode se manter é o argumento de que
as masculinidades subordinadas também são agentes. Isso porque homens pobres, negros ou
homossexuais, não seguem (ou não se encaixam) totalmente o modelo de masculinidade
hegemônico.
As masculinidades hegemônicas e marginalizadas exercem influência uma sobre a outra
e ambas se apropriam de aspectos exôgenos.286 Então, alguns aspectos do conceito podem e
devem ser mantidos, como a pluralidade e a hierarquia das masculinidades. Segundo os autores,
“padrões múltiplos de masculinidade têm sido identificados em muitos estudos, em uma
variedade de países e em diferentes contextos institucionais e culturais”.287 Do mesmo modo,
Soraya Januário argumenta que:

O género é experienciado de forma quotidiana e as suas práticas permitem a sua


existência e transformação. Desta forma, é impossível falar numa única forma de
“fazer-se homem”; o que existe na realidade são formas múltiplas. Esse modelo
multifacetado de vivências de homens apresenta-se continuamente complexo,
contraditório e em mutação, forjando-se em diferentes tempos e espaços.288

Cada lugar tem uma forma única de masculinidade, ou de “ser” e “fazer-se” homem.
Assim, as masculinidades amazônicas são marcadas por questões culturais e sociais locais. Os
casos a seguir evidenciam uma faceta das masculinidades e do machismo na sociedade
amapaense. Homens que brigavam entre si por causa de rixas anteriores e homens que
agrediram meretrizes motivados pelo álcool e pela valentia masculina.
Vamos aos episódios: A.C.B.P, macapaense, solteiro, com 19 anos de idade, tipógrafo,
alfabetizado, residente à av. Ataíde Teive e O.F.G., 25 anos de idade, solteiro, militar,
alfabetizado, residente à rua São Paulo, foram acusados pelo crime de lesões corporais. Eles
agrediram-se mutuamente no dia 02 de abril de 1972. Na companhia de um colega, A.C.B.P.
saiu do dançará Merengue às três horas e quando estavam caminhando próximo à Usina Costa
e Silva, O.G.F. quase atropelou seu colega com a bicicleta, o que gerou uma reclamação. O.,
que estava com um companheiro conhecido como Curica, desceu da bicicleta e foi em direção
à A. com uma corda e os dois entraram em luta corporal. Um guarda separou os dois e eles

285 Ibidem, p. 189.


286 CONNELL, Raewyn; MESSERCHMIDT, James W. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito.
Revista Estudos Feministas, v. 21(1): 424, p. 241-282, jan-abr, 2013.
287 Ibidem, p. 262.
288 JANUÁRIO, Soraya. Op.Cit., p. 118.
100

seguiram seus caminhos. Mas, acabaram se encontrando novamente, quando A. acertou seu
oponente na cabeça com um cinto. Por sua vez, O. feriu A. com um objeto cortante. 289 Um
simples atrito foi o suficiente para causar essa tensão entre os acusados, suscitando uma
intervenção policial.
A testemunha M.C.F., paraense, solteiro, de 21 anos de idade, residente na avenida
Ataíde Teive, sabendo ler e escrever, disse que O. e Curica pediram cigarro a ele e A., e que
caso não o dessem levariam “porrada”. Relatou que ele e seu companheiro foram atacados por
quatro homens, sendo um deles soldado do 34º BIS (o acusado O.). M. informou que Curica
tinha mágoa com ele por causa de uma garota.290 A partir desse depoimento, já conseguimos
identificar que havia uma faísca entre alguns dos envolvidos, algo anterior a esse episódio. A
disputa por uma mulher poderia ser a causa de rixas entre homens. Nesse caso, houve uma
confusão generalizada, mas haviam pequenos desentendimentos dentro dela. A. e O. brigaram
por um quase atropelamento e uma reclamação, enquanto M. e Curica possuíam rivalidade por
uma disputa amorosa e o pedido de cigarro foi um meio encontrado para iniciar a briga.
Para Sidney Chalhoub:

O desafio pode ser visto como o último estágio de uma escalada contínua de
tensões específicas ativadas a partir do surgimento da rixa. O desafio precede
imediatamente o conflito e anuncia aos membros de um determinado meio
sociocultural; a rixa surge da própria dinâmica de funcionamento e ajuste de
tensões dentro do microgrupo sociocultural estudado. Neste contexto, a
violência não é algo gerado espontaneamente num dado momento, mas sim o
resultado de um processo discernível e até previsível pelos membros de uma
cultura ou sociedade.291

Então, “a mágoa por causa de uma garota” é uma rixa, o pedido de cigarro, o
atropelamento e a reclamação podem ser definidos como o desafio resultante dessa rixa. Note-
se que esse episódio de violência não surgiu do nada, e a rixa que está na sua origem pode ter
sido alimentada em outras ocasiões. E uma noite de festa e bebida encorajou os envolvidos.
O funcionário público H.F.P., de 36 anos, casado, paraense, residente à rua Hildemar
Maia, sabendo ler, separou a briga dos acusados. Conhecia O., sabendo ser militar do 34º BIS,
e dissera para ele parar com a briga pois era feio um militar promover desordem. Com isso, O.
lhe disse que iria voltar ao quartel. Foi embora e não soube o que aconteceu depois, mas no dia

289 AFCM. Processo nº 2.653 de 01 de dezembro de 1972, p. 05-06.


290 AFCM. Processo nº 2.653 de 01 de dezembro de 1972, p. 07-08.
291 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle
époque. 3 ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012, p. 310.
101

seguinte foi procurado pelo delegado Oscar Lima para relatar o que sabia do ocorrido. Esse
depoente, “depois, em conversa com a mundana que conhece por BOSSA NOVA e uma outra
desconhecida, foi informado de tudo o que havia se passado entre o dito soldado e aquele
desconhecido”.292 H. era guarda territorial, em seu depoimento aponta que para saber do
restante do ocorrido recorreu a duas meretrizes. A partir disso, podemos cogitar que esse guarda
territorial tinha uma relação amistosa com as prostitutas que conhecia, e a quem recorreu como
fontes confiáveis.
Bossa Nova era meretriz, paraense, solteira, com 36 anos de idade, residente na avenida
Antônio Coelho de Carvalho, próximo à Usina Costa e Silva, e não sabia ler e escrever. Disse
que no dia do ocorrido, saiu do Merengue com sua amiga Lindalva, em direção às suas casas.
Viu todo o ocorrido e ouviu quando O. falou para seu companheiro Raimundinho esperar o
guarda H. tomar distância para dar “porrada” em A. e M., o que aconteceu. O militar foi ferido
na orelha por A., que fugiu com seu colega. Ela viu seis recrutas dando apoio a O., correndo
atrás dos dois rapazes que entraram no terreno da usina. Disse que conhece todos de vista, o
que sugere que os militares do Exército eram conhecidos das prostitutas amapaenses. Primeiro,
isso ocorria porque os soldados faziam a patrulha da cidade junto a a Guarda Territorial.
Segundo, porque frequentavam os mesmos espaços que elas em momentos de lazer. Eles
queriam obrigar o vigilante a deixá-los entrar no terreno da usina, o que lhes foi negado. Por
isso, se desentenderam com o vigilante e puxaram o chapéu dele, só devolvendo com muito
custo. Ela ouviu que Raimundinho segurou A. para que O. o furasse. Identificou um dos
militares como Uriel, que acompanhado de Raimundinho, era acostumado a provocar os
recrutas para promover desordem. E sabe que “O. todas as vezes que chega[va] no Merengue
acompanhado de RAIMUNDINHO procura[va] tumultuar a coisa, pois são dados ao vício da
embriaguez”.293 Os militares do 34º BIS se envolviam em desordens, o contrário do que
poderíamos pensar, já que tinham como missão manter a ordem social no TFA. Ainda mais
levando-se em consideração os anos da Ditadura empresarial-militar, nos quais se sentiam
encorajados pela certeza da impunidade, de que não seriam punidos. Aparentemente andavam
em grupo pelos locais de festa em Macapá e usavam de seu poder para cometer abusos.
Por meio desse depoimento de Bossa Nova, vemos como a junção de álcool e valentia
masculina poderia culminar em conflitos e lesões corporais. Nos tumultos que O. e
Raimundinho causavam no dançará Merengue, e nas provocações de Raimundinho e Uriel aos

292 AFCM. Processo nº 2.653 de 01 de dezembro de 1972, p. 9.


293 AFCM. Processo nº 2.653 de 01 de dezembro de 1972, p. 11-12.
102

recrutas vemos atos orientados por códigos de masculinidade. Alessandro Cerqueira Bastos, ao
analisar as masculinidades populares em Feira de Santana, na Bahia, e analisar a relação entre
a agressividade masculina e o álcool, pondera que a embriaguez poderia desencadear a violência
masculina. Mas, é importante entender que o álcool também tinha um papel importante na
camaradagem da classe trabalhadora e pode ser um elemento de fuga da exploração cotidiana
do trabalho,294
A meretriz M.E.S., amapaense, solteira, de 19 anos de idade, residente na avenida Cora
de Carvalho, quarto número três, não sabendo ler e escrever, saiu do Merengue com seu amante
de nome Castelo. Ao passarem juntos pela avenida Padre Júlio, eles encontraram com Bossa
Nova que lhes disse que O., companheiro de Castelo, tinha sido ferido e estava sangrando.
Castelo perseguiu um dos rapazes, mas sem sucesso.295 Deduzimos que Castelo também era
militar, já que era companheiro de O. e se juntou à perseguição dos militares contra seus
oponentes. A meretriz Maria de Fátima, paraense, de 17 anos de idade, residente na avenida
Cora de Carvalho, sabendo assinar o nome, não foi testemunha desses acontecimentos, mas
presenciou uma cena que pode ter relação com o caso, dias depois. Em seu depoimento, disse
que ao retornar para seu quarto, tinha visto quatro homens conversando na rua sobre o que
ocorrera com o soldado O. Um deles estava armado com uma faca e foi em sua direção. Ela não
tinha certeza, mas acreditava que um dos homens tinha sido o mesmo que havia brigado com o
referido soldado, dias antes. Disse que não tinha ido ao posto policial porque temia ser agredida
por esses homens.296 Não nos interessa se o depoimento de Maria de Fátima ajudou a elucidar
o caso ou não, mas o fato dela temer ser agredida por esses homens no caso de procurar a
polícia. Ela seria agredida por ter visto esses homens conversando ou ela estava apenas tentando
se proteger de uma agressão por ser prostituta? Sua fala não dá condições para responder a essas
perguntas, mas acreditamos que as duas hipóteses são verdadeiras.
Outro caso envolvendo um soldado do 34º BIS aconteceu em agosto de 1976. Desta vez
o crime foi de desacato e resistência. A Patrulha da Polícia Militar foi avisada por um motorista
de táxi que a meretriz Helena de tal promovia desordem no Dançará Xadrezão. A polícia chegou
ao local para prendê-la e Antônio Luiz, vulgo “Abutre”, brasileiro, amapaense, casado, cor
preta, 18 anos de idade, soldado do exército do 34º BIS, setor primeira companhia de fuzileiro,

294 CERQUEIRA BASTOS, Alessandro. Homem trabalhador, pacato e de bom procedimento: masculinidades
populares, violência e cotidiano (Feira de Santana, 1960-1970). Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-
Graduação em História Social), Universidade Federal da Bahia, 2021, p. 79-80.
295 AFCM. Processo nº 2.653 de 01 de dezembro de 1972, p. 14.
296 Ibidem, p. 15.
103

se opôs à prisão. O comandante da viatura da Rádio Patrulha, F. Cumarú, brasileiro, paraense,


casado, cabo da Polícia Militar, 38 anos de idade, sabendo ler e escrever, havia sido desacatado
e sofrera tentativa de agressão pelo denunciado, ocasião em que efetuara sua prisão.297
O Xadrezão era uma boate e também era chamado de pensão, prostíbulo e dançará.
Nesse processo, muitas prostitutas estavam envolvidas porque eram moradoras da boate.
Algumas nem prestaram depoimento e foram somente citadas. Maria Inês, brasileira,
amapaense, solteira, meretriz, 14 anos de idade, residente na pensão Xadrezão, sabendo ler e
escrever, disse que estava dançando na boate e que o acusado estava ali presente se divertindo.
Em certo momento, “ouviu Rosineide, meretriz e que também estava naquela boate queixar-se
de ter sido esbofeteada pelo acusado, no interior daquela casa; que, em seguida generalizou-se
uma discussão entre a referida mulher e o acusado presente, desentendimento esse que chegou
até a rua”.298 Já a meretriz Marize, brasileira, amapaense, solteira, residente na rua Hildemar
Maia, 147, bairro da CEA, 18 anos de idade, sabendo ler e escrever. Disse:

Que, a poucos momentos dirigiu-se até a boate “Xadrezão”, a fim de chamar


uma sua irmã que ali se achava de nome Maria Das Dores; que, ao chegar à
porta da referida boate já havia uma confusão entre algumas mulheres e o
acusado presente; que, nesse momento a depoente, foi segura pela alça de sua
blusa e atingida por uma bofetada que acusa ter sido o acusado presente.299

Abutre relatou que estava na boate Xadrezão, fardado e de passagem para o quartel, na
estrada Macapá-Santana. Disse que não havia batido em nenhuma mulher e que, quando a
viatura chegou, estava do lado de fora da boate, com Maria Helena. Segundo seu relato, um
policial descera do carro e deteve Maria Helena, mandando que ela entrasse no veículo. Ele se
dirigira até ela para perguntar pelo dinheiro que estava faltando no seu bolso, quando fora
atingido com um pontapé por um dos policiais, ocasião em que reclamara e fora ameaçado de
ser quebrado de cacete.300 Na sua ficha de vida pregressa, consta que sua esposa tinha 16 anos
e que sua filha estava com alguns meses de idade. Abutre era mais um homem casado que se
permitia ter a companhia de meretrizes, sem que isso lhe causasse qualquer prejuízo conjugal.
Rosineide, brasileira, paraense, de 17 anos de idade, meretriz, residente no bairro Santa
Rita, às proximidades do abrigo dos Velhos, no prostíbulo ocupado por diversas meretrizes, sob

297 AFCM. Processo nº 4.209 de 13 de fevereiro de 1978.


298 Ibidem, p. 4.
299 Ibidem, p. 4.
300 Ibidem, p. 5.
104

a responsabilidade da mulher Maria Pretinha, disse que Antônio Luiz vulgo “Abutero” era xodó
da meretriz Maria Helena:

Que, em dado momento a declarante foi avisada por outra mulher que Abutero
iria batê-la a pedido de Helena; que, a declarante sabedora de que seria
agredida pelo dito elemento procurou afastar-se da festa que se realizava
naquela boite, porém, quando se achava na rua o mesmo seguiu-a e aplicou-
lhe um pontapé e uma bofetada, esta acertando em outra mulher que seguia ao
seu lado; que, antes, porém, Antônio Luiz, havia agredido a jovem Maria Inez,
aplicando-lhe uma bofetada e rasgando suas vestes; que, no momento em que
o acusado agredia a declarante chegava um carro da Rádio Patrulha da Polícia
Militar, cujos seus elementos saltaram calmamente e procurando apaziguar os
ânimos em virtude de Helena, que se acompanhava de Antônio Luiz insuflar
a situação, generalizando-se uma desordem; que, como os policiais
detivessem Helena, o acusado interferiu-se afirmando que jamais eles
conduziriam a referida mulher que o acompanhava; que, Antônio Luiz,
afirmou ainda de que: “essa mulher que tá comigo não vai, se for pra levar ela,
leva eu também” (textuais); que, ato contínuo os ditos policiais, usando muita
calma, colocaram Helena no carro da RP, passando desse instante em diante
o acusado a detratar os elementos da Polícia, taxando-os de cretinos, dizendo
ser homem para todos os elementos e que se abusassem muito quebrava todo
o carro da RP; que, não obstante a advertência de um dos policiais para que o
acusado cessasse com aquele procedimento, o mesmo passou a ofendê-los
com palavras imorais, para em seguida agredir o cabo Comandante da
mencionada viatura; que, nesse momento os policiais o prenderam e a força
colocaram-no na viatura da RP-PR, levando-o; que, ontem [dia 11 de agosto
de 1976] naquela boite, a noite, reuniu-se uma turma de soldados do exército,
com atitudes ameaçadoras contra as mulheres que denunciaram o
comportamento do acusado, o qual também estava presente, fardado,
afirmando que iria em sua casa trocar de roupa e voltava para conversar com
Maria Inês que testemunhou sua prisão pelos policiais”.301

O depoimento de Rosineide é bem elucidativo sobre o que aconteceu na noite do crime.


As declarações do proprietário da boate Xadrezão corroboram o depoimento dela. F. Castro,
brasileiro, paraense, de Breves, solteiro, 34 anos, comerciante, residente na rua Hildemar Maia,
2640, bairro do “Miritizal” (Buritizal), sabendo ler e escrever, depôs que no dia 10, na
madrugada, soldados do 34º BIS chegaram na boate, entre eles estava Abutre. As mulheres que
frequentavam essa casa de tolerância haviam comentado que foram agredidas por Abutre na
rua, fora da boate. O depoente deixou o bar e foi para o local, onde encontrou Abutre ofendendo
os policiais. Ele declarou que não era a primeira vez que o denunciado promovia desordem na
boate, especialmente agredindo prostitutas:

301 Ibidem, p. 14.


105

Que em certa ocasião Abutre, desligou todas as luzes da boite para promover
uma desordem, sendo domingado pelo motorista Hely Barbosa que evitou
maiores consequências, que, dias depois deste fato, o declarante em momento
do seu almoço, foi chamado por alguém que desejava lhe falar e o atendendo,
deparou com Antônio, o qual lhe ameaçou e avisou que à noite estaria lá com
uma Patota (textuais) para quebrar a referida boite em revide de haver sido
contido na noite anterior pelo motorista Hely que o dominou e o fez retirar-se
do local; que, ao anoitecer, por volta das vinte e duas horas, deu entrada no
salão da boite um grupo de soldados, chefiados por Antônio Luiz, o qual, já
no meio do salão, gritou ‘quede o dono da boite e as putas daqui que me deram
porrada (textuais), ato contínuo, desligaram a luz e passaram a depredar os
móveis do salão, pondo em pânico as mulheres e os demais frequentadores
que ali se achavam amesendados”. Saíram em correria pela rua com destino
ignorado e depois disso outros fatos de menor importância aconteceram e
sempre com a presença de Abutre que era acostumado a agredir as mulheres
que frequentam aquela casa.302

Depois da prisão pelos policiais militares, Abutre foi apresentado ao Comandante do 34


º BIS e recolhido ao seu quartel, ficando à disposição do Juízo. Para o promotor do caso, a
denúncia era improcedente, pois a prova era fraca, o que gerava dúvida e favorecia o
denunciado. Outra observação é que o desacato e as ameaças sofridas por um policial militar
seriam tratados de outra forma se o acusado fosse um civil ou se não fosse um soldado do
exército.
Os depoimentos foram unânimes em acusar Abutre de tumultuar boates com suas
atitudes machistas e misóginas contra prostitutas. Ele agredira Rosineide, Marize e Maria Inês
somente em uma noite. Pelas declarações somos informados que ele agrediu Rosineide a pedido
de Maria Helena. Logo, concluímos que as duas tinham uma rixa e que Helena se aproveitara
da posição de seu “xodó” para se vingar de Rosineide. Abutre fizera uso do seu lugar de macho
para ameaçar e xingar policiais, agredir prostitutas e reforçar sua masculinidade perante sua
amante. No dia seguinte ao ocorrido, ele foi ao Xadrezão com um grupo de soldados para
intimidar as meretrizes e o proprietário da boate. Abutre se sentiu à vontade para fazer isso pela
certeza de que não seria punido, o que de fato não aconteceu. Aliás, ele era acostumado a
promover desordens e agredir as meretrizes que moravam na boate, ou simplesmente a
frequentavam.
Sidney Chalhoub infere que para os homens pobres afirmarem a sua masculinidade, eles
agiam de acordo com normas construídas pela própria comunidade e era o machismo que
norteava amiúde as suas práticas:

302 Ibidem, p. 16.


106

O homem despossuído constrói sua identidade social a partir do que faz, e não,
obviamente, a partir do que tem, pois, por definição, ele nada ou pouco tem. Sendo
assim, para ele, ser é fazer, e não possuir. Por isso, a ideologia machista como
reconstrução dos despossuídos reveste-se de todo um sentido de ação, de normas do
agir na comunidade social. O machismo, porém, como conjunto de normas que
induzem e orientam as ações dos homens, é um fenômeno social profundamente
dialético. De um lado, o machismo é o código que norteia a dramatização e a
ritualização dos conflitos entre os homens pobres em questão, permitindo, assim, que
os microgrupos socioculturais estudados construam um sentimento coletivo e uma
identidade social relativamente autônomos e originais.303

Desse modo, como bem explica Chalhoub, o homem pobre constrói sua identidade pelo
que faz. Como alerta Cerqueira Bastos, não podemos naturalizar o comportamento e achar que
é destino dos homens, principalmente os pobres, serem violentos e agressivos com mulheres e
com outros homens.304 No contexto amapaense, acreditamos que o motivo pelo qual os sujeitos
citados na documentação agiram com violência foi a sensação de impunidade decorrente de seu
poder político e social. Ou seja, não se trata de uma violência natural, mas institucionalizada e
autorizada pelo Estado ditatorial territorial e nacional.
Nesse sentido, O., Raimundinho, Uriel, Abutre e demais homens citados, precisavam
demarcar que eram machos perante seus rivais, mas também diante de mulheres. Quando
promoviam tumultos nas boates e nas ruas de Macapá, os soldados estavam se valendo de uma
masculinidade particular, compartilhada somente com seus pares e marcada pela hierarquia
militar. Nesse contexto, podemos até mesmo definir a masculinidade de Abutre, Raimundinho,
O. e Uriel como uma masculinidade hegemônica, enquanto a masculinidade dos recrutas é
marginalizada, porque é colocada à margem da masculinidade hegemônica dos soldados.
Porém, todos esses homens citados assumem uma masculinidade marginalizada perante seus
superiores militares e de homens da classe dominante, porque eles são apenas trabalhadores.
Ao que parece, esses militares assumiram uma postura de “donos da cidade” ou, no mínimo,
donos dos ambientes festivos. Mas, no momento em que as meretrizes e o proprietário do
Xadrezão se acharam seguros para denunciar os excessos do soldado Abutre, ficou claro que as
vítimas também tinham seus meios de resistência.

303 CHALHOUB, Sidney. Op. Cit., p. 326-327.


304 CERQUEIRA BASTOS, Alessandro. Op. Cit., p. 16.
107

2.4 Os caminhos da prostituição: deslocamentos e resistências no espaço urbano


amapaense
A segregação social do espaço urbano macapaense dividia a capital do Território
Federal do Amapá em bairros privilegiados e periféricos. O centro político-administrativo e o
Bairro Alto305 eram os lugares privilegiados e urbanizados de Macapá. Os trabalhadores pobres
e negros já haviam sido retirados daí justamente por não terem condições de cumprir os padrões
ocupacionais estabelecidos pelo governo territorial.306 Como consequência, outros bairros
foram formados pelos trabalhadores pobres retirados do centro urbano e também pelos
migrantes que chegavam a Macapá. Bairros como Trem, Laguinho, Buritizal, Beirol, Pacoval
e Santa Rita eram bairros periféricos, assim como o bairro da Doca da Fortaleza. Este tinha
fama de local perigoso e desse modo era apresentado nas páginas da imprensa do TFA.
A geografia da prostituição poderia ser definida também como geografia das diversões
populares. Porém, decidimos mapear somente os lugares que, segundo as fontes, contavam com
a presença de prostitutas. Esses lugares eram bares, botequins, dançarás, pensões, clubes, boates
e casas de habitação coletiva. Nossa intenção é fazer uma caminhada simbólica pelos lugares
urbanos de prostituição no TFA. Contudo, esse mapa se restringe à cidade de Macapá, pois não
foi possível desenhar outro com as demais localidades do TFA, pois em alguns locais só
identificamos um ponto de prostituição. Já em Macapá identificamos vários pontos.

305 O Bairro Alto compreendia o perímetro da rua Hamilton Silva até a rua Cândido Mendes. Atualmente essa
região corresponde ao bairro central.
306 Nesse atinente, afirma Sidney Lobato: “Novos e cada vez mais populosos bairros foram surgindo em Macapá,
a partir de 1944. [...] Dois processos concorreram para a formação dos bairros suburbanos: o grande movimento
migratório rumo a Macapá e a inviabilização da permanência dos moradores mais pobres no centro urbanizado
desta cidade, por meio do estabelecimento de padrões ocupacionais que eles não podiam alcançar” (LOBATO,
Sidney. Op. cit., p. 85).
108

Imagem 3. Mapa dos Pontos de Prostituição em Macapá (1964-1980)


109

Como podemos ver, os pontos de meretrício estavam espalhados pela cidade de


Macapá. Não havia uma grande zona definida, mas pequenas áreas de meretrício situadas nos
bairros mais afastados. Os bairros Central e Santa Rita se destacam. Foi necessário classificar
esses lugares, porque eles tinham diferenças entre si. Nem todos eram dedicados ao serviço
sexual, mas eram frequentados por prostitutas. Aqueles que eram boates, pensões e casas de
habitação coletiva eram residências das damas da noite. Algumas boates como Juçarão e Suerda
tinham quartos e também funcionavam como pensão de prostitutas. Já outras como a
Hollywood e Merengue eram conhecidas como dançarás e não possuíam quartos para serviços
sexuais e nem eram resididos pelas “meninas”. As pensões citadas no mapa também davam
festas, talvez até na mesma proporção das boates e dançarás, mas classificamos como pensões
porque assim foram apresentadas no conjunto documental. Os bares e botequins eram
frequentados por meretrizes, mas elas não possuíam residência neles. Frequentavam tais lugares
na companhia de amásios, namorados, amantes, colegas e clientes, e por vezes iam a esses
lugares a trabalho, com o objetivo de conseguir clientes.
Infelizmente, nem todos os bairros localizados no mapa foram descritos pela
historiografia amapaense. O bairro do Trem era conhecido como bairro operário, seus
habitantes eram em sua maior parte trabalhadores advindos de outros estados. Lobato cita dois
dos bairros que mais diretamente nos interessam:

Na Denúncia redigida pelo promotor Hildemar Maia e endereçada ao juiz da


Comarca de Macapá, em 13 de de novembro de 1948, Francisco foi acusado
de atropelar e matar Benedita dos Santos Ataide, “quando transitava com o
caminhão nº 41, de propriedade do Govêrno do Território, do qual era
motorista profissional, pela estrada de rodagem que liga esta cidade ao
bairro denominado ‘Trem’, nas imediações da chácara ‘Beirol’, pertencente
ao senhor Paulo Moacir Carvalho”. Francisco depôs que “viajara desta
cidade para o bairro do ‘Trem’, a fim de transportar areia e que, ao se
aproximar da chácara ‘Beirol’, viu uma senhora (acompanhada de uma
menina) repentinamente atravessar a rodovia diante do carro que ele dirigia.
Havia um hiato no espaço habitado de Macapá, que permitia se perceber o
Trem como algo localizado fora da cidade.307

Na década de 1960, o Trem já não estava fora dos limites da cidade, porque Macapá já havia
expandido seu perímetro urbano e o bairro já contava com vários melhoramentos de infraestrutura. O
Beirol já não era mais uma chácara, pois estava delimitado enquanto bairro. Nele estava localizada a
Colônia Penal do Beirol, o antigo presídio do TFA. O bairro da Favela foi formado após parte da

307 Ibidem, p. 86-87.


110

população pobre e negra habitante do centro histórico de Macapá ser deslocada para seu perímetro e
para o bairro do Laguinho. Sidney Lobato descreve a Favela da seguinte maneira:

Uma das áreas dessa zona [suburbana] que mais rapidamente cresceu foi a
Favela – nome dado a uma baixa alagadiça que se localizava ao norte do
“bairro Alto”. Como já afirmamos, uma parcela da comunidade negra que
residia no centro histórico de Macapá mudou-se para tal área. [...]. Muitos
imigrantes decidiram construir na Favela as suas novas moradias. Entre outros
fatores, tal escolha decorria da proximidade deste lugar em relação ao centro
político-social de Macapá.308

A Favela também era conhecida como Santa Rita, que é o atual nome do bairro. Nele
foi formada uma importante área de meretrício que é constantemente citada nas fontes, mas não
como zona. Nós é que a estamos definindo assim, pois nela havia várias boates. Lá estavam
localizados o Juçarão, Lago dos Sonhos e Merengue, locais conhecidos como inferninhos,
segundo a definição popular. Em entrevista, a comerciante S. de Albuquerque cita diversos
estabelecimentos noturnos e classifica alguns como inferninhos: “tinha esse tal de Merengue.
Era só dança e bagunça. Pense na bagunça, era bêbado e brigava, polícia pegava, levava”. 309
Ela era proprietária de uma boate – ou casa de mulheres como ela a define –, e afirma que o
Merengue era apenas um dançarás, pois não possuía quartos para meretrizes. Mas, ela não
classifica a sua boate como inferninho, inclusive a diferencia deles.310.
A Doca da Fortaleza ficava na margem esquerda do Igarapé da Fortaleza no bairro
central311, era um local importante para cidade de Macapá. Tanto que historiadores como Paulo
Costa, Adalberto Paz e Sidney Lobato se dedicaram a escrever sobre ela 312. Sempre
movimentada, era pela Doca que a cidade era abastecida pelos ribeirinhos e pelos regatões. A
Doca tinha meretrizes, comerciantes, marítimos, estudantes e tantos outros sujeitos como
moradores e frequentadores. Era constituída de palafitas e pontes de madeira para facilitar a
mobilidade dos transeuntes. Adalberto Paz define a doca da Fortaleza da seguinte maneira:

308 Ibidem, p. 86.


309 Entrevista com S. Albuquerque, realizada por Amanda Cristina Souza da Silva, em 10 de dezembro de 2021.
310 Ocultamos o nome da boate da entrevistada por solicitação dela, que não quis expor a desgastes as mulheres
que lá trabalharam. S. Albuquerque é uma personagem importante para nossa pesquisa, por isso destinamos um
espaço específico (próxima seção) para analisar a sua entrevista.
311 A Doca da Fortaleza ficou conhecida como um bairro, mas no período estudado já era entendido que essa
região fazia parte do bairro central. Contudo, o local permaneceu como bairro na tradição popular durante várias
décadas.
312 COSTA, Paulo Marcelo Cambraia da. Na ilharga da fortaleza, logo ali na beira, lá tem o regatão: os
significados dos regatões na vida do Amapá (1945-1970). Belém: Açaí, 2008; PAZ, Adalberto Júnior Ferreira. Op.
Cit., 2011; LOBATO, Sidney da Silva. Op. Cit., 2019.
111

O nome referia-se a um canal natural que tinha início em um igarapé


bem ao lado da Fortaleza de São José de Macapá e prolongava-se pelo
interior da cidade, sendo navegável por embarcações de pequeno porte
e canoas. Porém, com o passar do tempo, toda a área nas imediações do
canal passou a receber a mesma denominação. A Doca da Fortaleza,
portanto, representava a instituição e manutenção autônoma de um
ambiente de entretenimento, trabalho e convívio essencialmente
popular, perfeitamente incorporado ao universo cultural e boêmio da
cidade.313

Ao escrever sobre a área de prostituição do Palais-Royal, na época da Revolução


Francesa, em Paris, Clyde Plumauzille314 destaca que havia aí uma dinâmica econômica e
sexual porque as prostitutas eram parte do lazer parisiense. Então, aí existiam diversos
estabelecimentos comerciais, assim como: shows, teatros, casas de aposta e restaurantes. Como
as prostitutas moravam nos arredores do Palais-Royal, elas se exibiam nas janelas ou em
passeios e assim encontravam clientes. Estes poderiam passear nos jardins do palácio, ler algum
livro nas bibliotecas, assistir a um espetáculo e terminar a noite acompanhados por
prostitutas.315
Em Macapá, o intenso comércio praticado durante o dia e a boemia noturna animavam as
redes de sociabilidade que se formaram na Doca. Em entrevista, o ex-piloto do governo
territorial Arlindo Oliveira relatou que “o mercado era ali. Aquilo era palafita, tinha até
prostituição. Uma vez eu fui fazer compra lá e eu vi uma mulher sair de dentro d’um buraco
daqueles, completamente nua […]”.316 Uelba do Nascimento explica que em Campina Grande-
PB, desde fins do século XIX, homens ricos e letrados cobravam o saneamento da cidade às
autoridades governamentais, sobretudo do centro urbano. Assim, na década de 1930, um
articulista anônimo escreveu em um jornal que os casebres, a falta de higiene, a sordidez e
imundície de mulheres prostitutas não poderiam ocupar as áreas centrais da cidade.317
Nascimento afirma que as prostitutas do centro de Campina Grande foram transferidas para a
região dos Currais, uma área rural.318

313 PAZ, Adalberto Junior Ferreira, Op. cit., p. 41-42.


314 PLUMAUZILLE, Clyde. Le «marché aux putains»: économies sexuelles et dynamiques spatiales du Palais-
Royal dans le Paris révolutionnaire. Éros parisien. 2014. Disponível em: http://gss.revues.org/2943.
315 Ibidem, p. 6.
316 LOBATO, Sidney. Op. cit., p. 146. Entrevista com Arlindo Silva de Oliveira, realizada em 13 de outubro de
2006.
317 NASCIMENTO, Uelba Alexandre do. O doce veneno da noite: prostituição e cotidiano em Campina Grande
(1930-1950). Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Universidade Federal de Campina Grande, 2007, p. 53-
54.
318 Ibidem, p. 60.
112

Imagem 4. Igarapé da Fortaleza, década de 1950

Fonte: Blog Porta-Retrato

Imagem 5. O Igarapé da Fortaleza transformado em canal, década de 1960

Fonte: Blog Porta-Retrato

Imagem 6. Doca da Fortaleza em 1965

Fonte: Museu da Imagem e do Som (MIS)


113

No ano de 1965, o governo territorial iniciou a construção de um canal artificial no


Igarapé da Fortaleza, que ficou conhecido como Canal da Avenida Mendonça Júnior. Segundo
Paulo Costa, “o novo canal não permitiu a navegação, tendo apenas um caráter urbanístico para
o melhoramento do centro da cidade”.319 Essa remodelação urbanística teve como objetivo
disciplinar e higienizar essa parte da cidade. Era um local que havia muitos anos preocupava os
gestores amapaenses, não pelo comércio de gêneros e pelas embarcações, mas pelos botequins
e pela prostituição.

Imagem 7. Canal da Mendonça Júnior em 1966

Fonte: Museu da Imagem e do Som (MIS)

O jornal Novo Amapá informou que o processo de alteração do Canal da Fortaleza


estava sendo realizado pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) e que essa
era “uma das mais importantes obras iniciadas pelo governo Revolucionário, a fim de mudar o
aspecto desolador e contribuir com a saúde pública desta terra”320. O Igarapé da Fortaleza, até
o início da obra, era considerado um símbolo do atraso causado pelos governos anteriores e o
governo ditatorial seria o responsável pelo novo momento de progresso marcado por
melhoramentos urbanísticos. Em novembro de 1967, houve um grande incêndio no canal da
Doca e, para Paulo Costa, esse episódio acelerou o processo de reordenamento daquele espaço,
o que foi concluído no início da década de 1970321. O já referido jornal fez questão de publicar
que “a Doca da Fortaleza está se transformando num dos melhores logradouros públicos”322. O
impresso assim buscava publicizar as obras governamentais e indicar que aquele local outrora
descrito como desolador, agora estava transformado e urbanizado.

319 COSTA, Paulo Marcelo Cambraia da. Op. Cit., p. 182.


320 Novo Amapá, nº 1.568, 20 de abril de 1970.
321 COSTA, Paulo Marcelo Cambraia da. Op. Cit., p. 190-192.
322 Novo Amapá, n° 1.600, 09 de janeiro de 1971, p. 5.
114

As canoas e regatões deixaram de navegar por ali, mas os sujeitos que antes
frequentavam aquele local não. Os boêmios, os bêbados e as prostitutas continuaram transitando
e ocupando aquele espaço remodelado e urbanizado, seja porque moravam lá em quartos
alugados, seja porque frequentavam boates como a Hollywood e botequins como o Bar
Caboclo. Em agosto de 1970, a seção da DSG publicou uma portaria de 16 de junho, proibindo
a moradia e permanência de meretrizes na avenida Mendonça Júnior, no perímetro entre as ruas
Cândido Mendes e Eliezer Levy:

Portaria n° 126/70-DSG
Aprovo:
Gen. Ivanhoé Gonçalves Martins
Governador

O Capitão de Corveta (AFN) R. Rem. Luiz Gonzaga Valle, Diretor da Divisão


de Segurança e Guarda, usando de suas atribuições legais e,

Considerando a promiscuidade, a falta de higiene e a sordidez dos prostíbulos


localizados na Av. Mendonça Júnior, perímetro compreendido entre as Ruas
Cândido Mendes e Eliezer Levy;

Considerando que embora seja a zona policiada por esta Divisão, as meretrizes
que ali vivem ferem o decoro público proferindo palavras de baixo calão e
exibindo-se com trajes escandalosos;
Considerando que os referidos prostíbulos estão justamente situados no centro
da cidade, em local de acesso às famílias e sobretudo aos estudantes que
descem do populoso bairro do Trem;

Considerando que existem locais afastados do centro da cidade com


habilitações que podem perfeitamente e em melhores condições de higiene
receber as decaídas que exploram o triste comércio da prostituição;

Considerando, finalmente, que compete a esta Divisão a fiscalização e a


repressão nos casos desta natureza,

RESOLVE:

Proibir terminantemente a localização de meretrizes no local acima referido,


dando o prazo de sete (7) dias, a partir desta data, para que as mesmas
desocupem os cômodos que ali ocupam.

Dê-se Ciência e Cumpra-se

Gabinete da Chefia de Polícia, em Macapá, 16 de Junho de 1970

Luiz Gonzaga Valle


CCAFN - Diretor da D.S.G.323

323 Novo Amapá, n° 1.582, 08 de agosto de 1970, p. 2.


115

Essa portaria foi uma tentativa de higienizar socialmente o novo canal e a área central
de Macapá. Havia décadas esse espaço era ocupado pelas meretrizes e com a retificação do
canal o governo passou a exigir que elas se retirassem para não “sujar” a capital urbanizada
com o que era identificado como promiscuidade, falta de higiene e sordidez. O texto informa
que a região mencionada era policiada pela DSG, mas o comportamento e vocabulário
indecorosos dessas mulheres não podiam ser controlados pelas forças policiais. Assim, a
presença delas era considerada incômoda e uma influência negativa para as famílias que
passavam por li.
O documento cita a existência de locais mais afastados do centro da cidade que podem
acomodar as meretrizes com melhor higiene, trecho que consideramos mais importante.
Primeiro porque a falta de decoro, os palavrões e as roupas curtas são constantemente citados
pelos governantes, por jornalistas, pela polícia, pelo judiciário e pela sociedade em geral. Em
segundo lugar, essa portaria revela que a prostituição urbana feminina sempre foi alvo da
vigilância das forças de segurança do TFA e que eliminar a prostituição não era a intenção do
governo ditatorial, mas sim tira-la do centro da cidade. Por último, destacamos que a proibição
da permanência das meretrizes no centro da cidade e seu deslocamento para áreas mais
afastadas e, consequentemente, longe do centro de Macapá, também se explica pelo fato de,
não muito longe do canal, funcionarem órgãos de governo. Logo, não é de se admirar que as
prostitutas fossem uma presença incômoda não só pelo que constava na portaria, mas também
porque sua proximidade não agradava as autoridades governamentais. Contudo, essa
“sugestão” de que as decaídas fossem transferidas para locais mais afastados do centro urbano
não explica o aparecimento de novos locais de meretrício nos bairros periféricos, porque eles
já existiam. Lobato indica que os maiores prostíbulos estavam situados fora dos limites do
centro da cidade de Macapá324, então essa proposta do diretor da DSG pode ser entendida no
sentido de que elas fossem pedir abrigo e trabalho nas pensões e boates periféricas e que
deixassem de viver em cômodos e quartos alugados, especialmente no reformado logradouro
público da cidade.
Em Vitória-ES, ocorreu um movimento similar no mesmo período. As prostitutas,
majoritariamente pobres e negras, foram expulsas do centro de Vitória, “lugar de lazer e
residência das classes médias e altas, compostas, principalmente, por uma população
branca”325. Dessa forma, podemos considerar que a expulsão das prostitutas das áreas centrais

324 LOBATO, Sidney. Op. Cit., p. 219, 2019.


325 MORGANTE, Mirela Marin. Op. Cit., p. 64, 2020.
116

das duas capitais foi não apenas uma higienização de classe, mas também de cor. Para Mirela
Morgante, o decreto de expulsão das prostitutas de Vitória teve como finalidade preservar a
moral e os bons costumes porque as mulheres moradoras do centro poderiam ser confundidas
ou influenciadas pelas prostitutas capixabas326. Já em Joinville-SC, também foi na década de
1960 que as práticas das prostitutas começaram a incomodar o poder público a ponto deste
querer fixa-las em um só local, ao invés de ficarem espalhadas pela cidade, sobretudo no centro
urbano.327
A preocupação das autoridades governamentais brasileiras com a prática da prostituição
nas ruas centrais das cidades não foi exclusiva da Ditadura empresarial-militar. No início do
século XX, no Rio de Janeiro, então capital federal, os delegados de polícia tentavam retirar as
prostitutas das ruas, principalmente as moradoras dos sobrados do centro da cidade. Em 1900,
o delegado Olympio Leite disse que tinha tirado a prostituição de uma região do centro, mas no
ano seguinte outro delegado continuava preocupado com a mesma região. 328O delegado em
questão era Vicente Reis que, ao tentar sanear socialmente a região, cometeu diversas
arbitrariedades contra as prostitutas, como tirá-las à força de casa e, mesmo depois de
recolhidas, prendê-las. Prostitutas procuraram a imprensa para denunciar as ações de Reis.
Apesar de ser a favor do saneamento moral da cidade, tal imprensa criticou o delegado,
admitindo que ele “atropelou a lei”.329 Outra forma de resistir às arbitrariedades policiais foram
os pedidos de habeas corpus feitos por algumas das prostitutas que foram presas sem motivos.
Em 1904, no contexto da revolta da vacina, da remodelação urbana e dos conflitos
sociais daí decorrentes, a tentativa de saneamento moral do centro do Rio de Janeiro continuou.
Mas dessa vez teve êxito. O delegado Ernesto Garcez ameaçou prostitutas de prisão caso não
saíssem da rua Sete de Setembro. Por causa da revolta da vacina, o Rio de Janeiro estava em
estado de sítio, então não era possível questionar qualquer medida por meio de habeas
corpus.330
O deslocamento de prostitutas ocorrido em Macapá durante a Ditadura nos permite
entender porque a Doca da Fortaleza deixa de ser a maior referência de zona de meretrício da
capital amapaense. Outros locais começam a figurar com mais frequência que ela nas fontes.

326 Ibidem, p. 188.


327 SILVA, Janine Gomes da. Casas, esquinas e ruas ‘do pecado’: lugares de prostituição, memórias sobre um
‘discurso caminhante’. In: FÁVERI, Marlene de; SILVA, Janine Gomes da; PEDRO, Joana Maria Pedro (orgs.).
Prostituição em áreas urbanas: Histórias do Tempo Presente. Florianópolis: Editora UDESC, 2010, p. 53.
328 SCHETTINI, Cristiana. Op. Cit., p. 56-57.
329 Ibidem, p. 58.
330 Ibidem, p. 60-61.
117

Então, acreditamos que a eliminação da prostituição na frente da cidade foi efetivada com
relativa eficiência pelo governo ditatorial. Atualmente, o canal da avenida Mendonça Júnior é
um local de intenso comércio varejista e não há sequer menção ou indício de prostituição no
local. O objetivo dessa proibição foi eliminar as meretrizes do centro da cidade, e podemos
considerar que essa finalidade foi alcançada, mas não no ritmo que o governo ditatorial
desejava. Em junho de 1974, temos um indício de que as prostitutas não obedeceram a portaria:

Dono do bar nega arruaças

Um órgão de informação de nossa capital está responsabilizando o


proprietário do conhecido Bar Caboclo, sr. Abraão Serrão de Castro, pela
constante falta de respeito que se verifica nas adjacências daquele bar, em
consequência de uma quantidade enorme de prostitutas que por ali se
aglomeram, principalmente a partir das 10 horas da noite. A polícia vai entrar
em ação. As prostitutas terão de abandonar o local.

Informação errada

Para verificar a verdade em torno do assunto, o NOVO AMAPÁ esteve


conversando com moradores da redondeza e com o proprietário do
mencionado bar, que disseram realmente haver fatos contrários à moral, só
que, não é propriamente no Bar Cabloco, mas numa pensão que existe ali bem
próximo.

O sr. Abraão de Castro chegou a declarar que não permite a entrada de


prostitutas em seu bar, desde quando a polícia, numa batida sensacional,
obrigou-as a se retirarem definitivamente daquele recinto. Desde essa época,
diz ele: “tenho procurado não contrariar o trabalho da polícia. impedindo que
elas entrem no meu bar. Acontece que as mulheres estiveram um tempo
sumidas, temerosas da ação policial, mas depois voltaram. Desta concentram
numa pensão que fica bem próximo ao meu bar. Acontece que todo mundo
toma como ponto de referência o Bar Caboclo, o que não é verdade”.

Polícia vai agir

Sabedora de que as prostitutas voltaram ao local de onde haviam sido


expulsas, a polícia vai entrar novamente em ação e exigir que as mulheres se
retirem de uma vez por todas das imediações daquele bar, o que, inclusive
disse o sr. Abraão, “não só põe em jogo o meu nome como é um sério perigo
para as famílias que residem às proximidades”331.

O proprietário do Bar Caboclo estava sendo responsabilizado pela presença das


prostitutas no estabelecimento. Abraão alegara que tais mulheres não frequentavam mais o seu
bar. Mas, este local já tinha se tornado um conhecido ponto de prostituição antes da proibição,
então ele (proprietário) pagaria pela fama e não pelos fatos. A indicação da existência de uma

331 Novo Amapá, n° 1734, 15 de junho de 1974, p. 03.


118

pensão na região revela que a expulsão das meretrizes não foi bem sucedida nesse período. De
fato, no processo do homicídio de uma meretriz é mencionada uma casa de cômodos existente
na avenida Mendonça Júnior que era habitada por prostitutas, inclusive pela vítima.332 Apesar
do temor da polícia, as meretrizes acabaram voltando a frequentar e a morar nas imediações do
Bar Caboclo. Mas, segundo Abraão, no seu bar elas estavam proibidas de entrar. Importante
atentar à pequena fala desse comerciante sobre a associação de seu nome à prostituição e sobre
o perigo desta para as famílias que residiam nesse local. Podemos então concluir que a presença
das prostitutas era incômoda tanto para o poder público quanto para os moradores da área
central de Macapá, mas essas mulheres, por meio de suas experiências, estavam batalhando por
esse espaço que há tanto tempo ocupavam.
Como destacamos anteriormente, nas reformas urbanas das primeiras décadas do século
XX no Rio de Janeiro, os delegados conseguiram retirar as prostitutas de algumas ruas do centro
da cidade, mas:

Quando não voltavam para as mesmas casas depois do momentâneo arroubo


moralizador de algum delegado, elas ocupavam novas ruas ou contribuíam
para o aumento da visibilidade de uma outra modalidade de prostituição, em
que as ruas viravam o palco da exposição dessas mulheres, que arrebanhavam
clientes para encontros em hospedarias ou casas de rendez-vous
estrategicamente localizadas em ruas centrais. Quando as mulheres visavam
uma clientela socialmente distinta, elas “optavam” por trocar o centro da
cidade pelos arredores da Lapa, de onde sempre podiam tomar um bonde da
Companhia Jardim Botânico e passear pela Avenida Central. Qualquer que
fosse o caso, a preocupação policial passou a se concentrar na chamada
prostituição clandestina, a que não envolvia mulheres notoriamente
conhecidas como prostitutas. Dessa forma, o espectro de mulheres sob
suspeita policial aumentava, incluindo uma variedade de trabalhadoras que
circulavam pelas ruas da cidade. O espraiamento geográfico e a crescente
visibilidade dessas outras modalidades de comércio sexual eram decorrência
da estratégia de policiamento descentralizada que se consolidava por aqueles
anos, e começaram a motivar as autoridades policiais a desenvolver novas
estratégias.333

Assim, as ações policiais tinham efeito momentâneo, porque as prostitutas sempre


voltavam para o lugar em que moravam e exerciam sua atividade sexual antes ou simplesmente
começavam a ocupar novas ruas. Segundo Schettini, as medidas de retirada dessas mulheres
não conseguiram exterminar com a atividade sexual nas ruas, pelo contrário, o resultado foi o
espalhamento das prostitutas e, consequentemente, a ampliação da geografia da prostituição.
Em diferentes recortes temporais, notamos que o simples ato de expulsar trabalhadoras sexuais

332 AFCM. Processo nº 2.714 de 24 de janeiro de 1973.


333 SCHETTINI, Cristiana. Op. Cit., p. 64-65.
119

de determinadas regiões não fazia com que elas deixassem de realizar seu trabalho e nem que
elas definitivamente se deslocassem para lugares mais afastados.
Outros bairros como Buritizal e Pacoval também foram citados nas fontes, mas na
bibliografia utilizada não há registros sobre esses bairros. No período dessa pesquisa, eles eram
os mais afastados da área central. No Pacoval estava localizada a já citada Pensão/Boate da
Suerda. Em um processo criminal, Francisco, brasileiro, paraense, de Breves, solteiro, 34 anos,
comerciante, residente na rua Hildemar Maia, bairro do Miritizal [Buritizal], sabendo ler e
escrever, foi testemunha de um caso de desacato e resistência à prisão. Em seu depoimento, ele
disse que era proprietário da Boite Xadrezão, localizada na esquina da rua Paraná com a avenida
Mendonça Furtado, no bairro Santa Rita, explorando o comércio de bar e botequim com danças,
durante a noite e:

Que a referida boite está licenciada somente pela Delegacia de Costumes e


Diversões, recebendo para isso um alvará mensalmente e pagando a quantia
de cento e seis cruzeiros e mais duzentos e cinquenta cruzeiros sobre direitos
autorais, a Divisão de Polícia Federal; que, o declarante faz funcionar o dito
estabelecimento diariamente até às duas horas da madrugada, com entradas
grátis e venda de bebidas no bar, seguido de dança, de caráter popular.334

A partir disso, constatamos que os proprietários de bares, botequins, boates e dançarás


pagavam uma taxa mensal para a Polícia Federal e recebiam um alvará de funcionamento por
meio de uma delegacia especializada em costumes e diversões. Também notamos que havia um
horário limite de funcionamento: até duas horas da madrugada, o que não significava que esse
horário não era ultrapassado pelos proprietários.
No bairro Buritizal, mais precisamente na rua Claudomiro de Morais, atualmente existe
uma zona de prostituição. Essa via, conhecida também como Rua do Amor, assumiu as
características antes observadas na Doca da Fortaleza. Trata-se de uma rua de intensa atividade
comercial, mas que ao anoitecer assume outras características, porque mulheres cis e trans
fazem ponto no decorrer da via. Podemos destacar também a diversidade de motéis existente
ao longo da rua. Ao analisar as territorialidades da prostituição em Macapá, com foco na rua
Claudomiro de Morais, Diego Silva, Worlen Souza e Gutemberg Silva, explicam que tais
territorialidades são reputadas, no Brasil, como ambientes escuros, lugares com grande fluxo
de pessoas e atividade comercial, além da proximidade com casas de show, bares e motéis. 335

334 AFCM. Processo crime nº 4209 de 13 de fevereiro de 1978, p. 05.


335 DA SILVA, Diêgo Soares; DA SILVA SOUZA, Worlen; DE VILHENA SILVA, Gutemberg. A
territorialidade da prostituição em Macapá-AP: um estudo de caso a partir da Rua Claudomiro de Morais. Boletim
Gaúcho de Geografia, v. 42, n. 2, 2015, p. 569.
120

Podemos inferir que tanto a Doca da Fortaleza, quanto a rua Claudomiro de Moares,
consideradas suas distâncias cronológicas, assumem características das territorialidades da
prostituição.
Para além de Macapá, é necessário citar algumas outras localidades do TFA que
apareceram nas fontes. Como a área portuária da Vila de Santana, conhecida pela população e
pela polícia como zona de meretrício. Segundo os autos de investigação social, o menor
Pretinho havia furtado três mil cruzeiros de J.G. da Silva e fugira com outro homem, em uma
bicicleta:

Que diante dessa informação a autoridade pessoalmente e com a ajuda dos


soldados PARAENSE e LUIZ, do destacamento desta Vila, passou a efetuar
buscas na zona do meretrício (área portuária) onde tomou conhecimento de
que “PRETINHO” quase ao amanhecer esteve bebendo e se fez acompanhar
de uma meretriz conhecida por “CEARENSE”; Que naquela redondeza não
encontrou “PRETINHO”; Que da zona se dirigiu a um quarto onde reside
“PRETINHO” com uma amante porém ali não o encontrou; Que fez buscas
em moradia coletiva na área portuária onde moram várias mulheres solteiras,
e onde “PRETINHO” costuma frequentar.336 (p. 4)

Nesse fragmento, associa a prostituição no TFA com as casas de habitação coletiva de


mulheres solteiras. Podemos até fazer uma comparação entre a Doca da Fortaleza e essa área
portuária, ambas caracterizadas pelo constante fluxo de pessoas e embarcações, o que
possibilitava a circulação de possíveis clientes para as prostitutas. Após o furto, Pretinho foi
farrear com uma meretriz. Não se sabe por qual motivo a polícia foi diretamente à área
portuária, mas talvez não fosse a primeira vez que um ladrão tivesse gastado o resultado de seu
furto com farras e meretrizes.
As vilas de Porto Grande e Pedra Branca também tinham suas zonas de prostituição. Em
Porto Grande, Santinha lesionou um homem com um pedaço de garrafa de vidro.337 Em um
inquérito de lesões corporais, a meretriz M.C.S., amapaense, solteira, de 26 anos de idade,
residente na avenida Mendonça Júnior, sabendo ler e escrever, declarou que, com outras
meretrizes, viajava frequentemente pela Estrada de Ferro do Amapá até Pedra Branca. 338
M.C.V.P, meretriz, amapaense, solteira, de 18 anos de idade, residente na avenida Padre Júlio,
depôs que frequentava a Pensão da Zeca e o bar do Baltazar nessa localidade.339

336 AFCM. Autos de Investigação Social Furto Qualificado de 06 de maio de 1980, p. 04.
337 AFCM. Processo nº 2.117 de 08 de setembro de 1969.
338 AFCM. Processo nº 4.832 de 16 de outubro de 1978, p. 05.
339 Ibidem, p. 08.
121

Os adeptos da boemia amapaense não se contentavam com as diversões de suas cidades,


vilas ou distritos. As prostitutas faziam esse trânsito em busca de trabalho, mas outros sujeitos
como o menor L.S.S., amapaense, 17 anos de idade, sem ocupação, residente na rodovia
Macapá/Fazendinha, sabendo ler e escrever, se deslocavam de um lugar para outro em busca
de lazer, festas e mulheres. Ao completar 14 anos, L.:

Já frequentava festas dançantes bares no bairro do Buritizal, e começou a


beber bebidas alcoólicas; Que, tomou gosto de festas e bebidas, e como não
tem condição financeira para sustentar seus desejos, passou a furtar. […] agora
no mês de dezembro do ano passado penetrou em uma casa da Vila Amazonas,
de onde furtou QUATRO CORTES DE FAZENDA próprios para homem, os
quais vendeu para um canoeiro na Praia da Vacaria, em Macapá; Que, ao
chegar a quadra carnavalesca e estando sem dinheiro para farrear, resolveu
voltar à Vila Amazonas, para ver se havia possibilidade de arrumar algum
dinheiro; Que, na terça-feira de carnaval, dia três do corrente, chegou Vila
Amazonas por volta das quinze horas, e passou a bater nas portas como que
estava procurando alguma coisa”. Furtou quatro casas e delas levou objetos,
joias e dinheiro. “Que, ao anoitecer tomou um táxi e foi direto para Macapá,
a fim de farrear; Que nessa mesma noite, ou seja, na noite de terça-feira,
encontrou-se com um rapaz conhecido por MANDUCA, no Clube Atlético
Amapaense, no bairro do Buritizal, e o convidou para participar da farra que
estava começando naquela hora; Que, dali em companhia de MANDUCA foi
a Boate ‘SÓ MARISCO’, onde tomou muitas cervejas; Que, do SÓ
MARISCO se dirigiu boate ‘HOLLYWOOD’ onde se fez acompanhar de uma
meretriz, com a qual se fez grande despesa, indo dormir depois com ela em
um quarto no bairro de Santa Rita; Que, melhor esclarecendo não passou a
noite no quarto, apenas ficou com ela durante umas duas horas, e após copular
voltou para boate ‘HOLLYWOOD’, e ali ficou ate o término da festa.340

O menor era um notável frequentador das festas populares, apesar da pouca idade.
Praticava furtos para sustentar suas noites com bebidas na companhia de meretrizes. Para
participar do carnaval, ele saiu de sua resistência, situada na estrada Macapá via Fazendinha341,
para furtar casas na Vila Amazonas. Ao anoitecer, foi de táxi para Macapá e se juntou a
Manduca em um clube suburbano para farrear. Juntos, foram à boate do Marisco para beber,
depois rumaram para a boate Hollywood, onde L. finalmente pôs-se na companhia de uma
meretriz, com quem gastou o que pôde. Ele e a meretriz saíram da boate Hollywood, na Doca
da Fortaleza, tomando a direção do bairro Santa Rita, certamente para chegar a uma casa de
habitação coletiva ou à pensão onde residia a prostituta. Por fim, após tantos divertimentos,
terminou a noite sozinho, na festa da Hollywood. Felizmente, podemos identificar o trajeto

340AFCM. Autos de investigação social de menor infrator, art. 155 de 02 de abril de 1981, p. 07-08.
341Atualmente, essa estrada é denominada como Rodovia Josmar Chaves Pinto.
122

desse personagem, mas infelizmente pouco sabemos sobre a prostituta que lhe fizera
companhia.
As tentativas do governo territorial de sanear socialmente Macapá ensejaram a
constituição de novas zonas de meretrício em áreas afastadas do centro da capital. Boates,
pensões, dançarás e botequins se espalharam em novos pontos de encontro e de residência de
meretrizes. Porém, o espaço urbano outrora ocupado por elas não foi dado de mão beijada às
autoridades governamentais. Já que não detinham poder político, financeiro e social, as
prostitutas resistiram e lutaram pelo seu espaço na urbe macapaense com a única possibilidade
que tinham: ocupando as vias públicas com seus corpos.
123

III. AS PROSTITUTAS E AS TENSÕES NAS SOCIABILIDADES DIÁRIAS:


TRABALHO, AMOR, AMIZADE E OS CONFLITOS COTIDIANOS

As vidas das meretrizes tinham muitas facetas. A partir das fontes identificamos redes
de convivência construídas pelo trabalho, pelo amor e pelas amizades. Mas parte dessas
relações se desdobraram em conflitos. Nesta seção, elas figuram como irmãs, amigas, vizinhas,
amantes, esposas, mães, estrangeiras, brasileiras e amapaenses, todas compartilhando a
experiência de ser prostituta e de ser mulher em um contexto político muito específico, a
Ditadura empresarial-militar. As histórias aqui abordadas evidenciam as vulnerabilidades, as
estratégias de sobrevivência e as tentativas dessas mulheres serem vistas como humanas, ainda
que marginalizadas ou socialmente excluídas.
Primeiro, temos como finalidade abordar os diversos tipos de relacionamento das
prostitutas do Amapá e identificar aspectos como cumplicidade, rivalidade, ciúmes e
solidariedade. Na sequência, a partir de um processo criminal de homicídio, discutimos as
fragilidades de uma meretriz diante de um amor não correspondido e as consequências da
misoginia de seu amado. Para finalizar, nos debruçamos sobre as memórias da proprietária de
uma boate de Macapá, que revelam sua trajetória desde a chegada à capital do TFA, até o fim
do funcionamento da boate.

3.1 Relações amorosas, de vizinhança e de clientela


Conforme temos demonstrado, a criminalização da prostituição tem feito das meretrizes
alvos prediletos da polícia. Não era raro encontrá-las como vítimas, testemunhas e acusadas em
processos criminais. Brigavam entre si, chegavam a ferir homens para se defender ou defender
seus amantes, eram agredidas por seus clientes ou ex-maridos. Outras mulheres, mesmo não
exercendo mais a profissão, ainda sofriam com o estigma e vigilância de vizinhos. Como
veremos, os autos dos processos não descortinam apenas essas relações conflituosas que
precisavam ser remediadas pela Polícia ou pela Justiça, mas também os deslocamentos das
meretrizes no TFA, suas relações amorosas, de amizade e vizinhança, o funcionamento dos
locais de divertimento noturno e suas relações familiares. Sendo assim, vamos caminhar por
algumas dessas histórias.
Na boate Lago dos Sonhos, de propriedade de Eunice, houve uma confusão envolvendo
Osvaldo, vulgo Capitão, Américo e soldados do 34º BIS. Os militares ameaçaram bater nos
homens citados caso não lhes dessem a cerveja que estava na mesa. Américo reagiu e foi
espancado por mais de dez soldados. Osvaldo, paraense, solteiro, de 18 anos de idade, viu que
124

seu colega seria atingido por trás por um dos soldados e interviu. Nesse momento, foi
esfaqueado pela meretriz Socorro, amante deste soldado.342
Socorro, brasileira, amapaense, meretriz, 15 anos de idade, solteira, sabendo ler e
escrever, declarou que foi seduzida com 13 anos e desvirginada, mas as devidas medidas não
foram tomadas pelas autoridades competentes, e “esse fato concorreu para que a depoente
trilhasse o caminho da prostituição, passando a frequentar os ambientes noturnos e de caráter
suspeito, onde conheceu moças na mesma condição social”.343 A pensão Lago dos Sonhos foi
um desses locais. No dia do crime, foi a esse lugar com outras colegas quando houve o
desentendimento entre o militar fardado J.N.S., seu ex-amante, e Capitão. Como o militar ficou
em desvantagem, ela golpeou Capitão na região dos mamilos, na garganta e nas costas. A menor
se evadiu do local, jogou a arma em um matagal e se escondeu na casa de sua mãe, na esperança
de que o episódio caísse em esquecimento. No entanto, dias depois foi localizada e intimada a
comparecer na delegacia com sua responsável. Já era a sexta vez que ela se envolvia em crimes
dessa natureza. Inclusive, já estava em tramitação “outra investigação social proveniente de
haver ferido uma colega de infortúnio”.344 A mãe da menor, O.A.M., brasileira, solteira, de 39
anos de idade, doméstica, não sabendo ler e nem escrever, disse que sua filha sempre tinha sido
muito rebelde e que após o fato denunciado mudara de comportamento, se tornando obediente
e passando a viver amasiada com outro rapaz.345
O fato de Socorro ter sido desvirginada sem que esse fato sofresse uma reparação, teria
contribuído para que ela se tornasse prostituta. É de se duvidar que Socorro tenha declarado
frequentar lugares de “caráter suspeito”, por isso é necessário observar que as fontes judiciais
e os depoimentos presentes nelas, são escritos por um funcionário do Estado, nesse caso, pelo
escrivão. Ele escreve a partir da sua visão de mundo e suas construções sociais enquanto sujeito
masculino, mas também orientado pelos preceitos morais e sociais do TFA. O começo do
depoimento nos leva a pensar sobre como haviam locais que eram convenientes a moças de
família, mas outros não. No caso da acusada, os locais que ela passou a frequentar não eram
adequados às mulheres honradas, mas somente para as prostitutas. Na boate Lago dos Sonhos
ou em qualquer outra, Socorro conheceu seu amante, um soldado do Exército, e quando viu que
estava em perigo, não hesitou em defendê-lo, mesmo que isso custasse sua liberdade. O

342 AFCM. Autos de Investigação Social contra a menor M. do S. dos A. Moraes por prática de ato tido como
infração penal de 21 de junho de 1976, p. 04.
343 Ibidem, p. 06.
344 Ibidem, p. 06.
345 Ibidem, p. 08.
125

depoimento de sua mãe nos dá informações sobre o que aconteceu com ela após a infração
penal. Sobre ter mudado o comportamento, cabe indagar o que causou tal mudança? Isso não
saberemos. A menor já estivera envolvida em seis casos semelhantes a esse e estava sendo
investigada por ter ferido outra meretriz. Contudo, ela encontrou outro amásio. Teria sido esse
o motivo da mudança de comportamento de Socorro?
Em ofício destinado ao juiz José Clemenceuau Pedrosa Maia, o delegado José Maria
Franco alegou que a menor era de alta periculosidade e fora “infelicitada aos treze anos de
idade, e sem o apoio paternal, enveredou pelos caminhos da prostituição”346. Para o juiz José
Maia, a ausência de uma figura paterna contribuira para que Socorro se encaminhasse ao
meretrício. Nesse período, como citamos na primeira seção, a família ideal era composta por
pai e mãe. Nessa família, a mãe era responsável pelos cuidados do lar e dos filhos, enquanto o
pai era o provedor da família. Logo, na ausência do pai, a mãe assumia todas essas
responsabilidades. Assim, a manutenção da família se tornava deficiente e os filhos
enveredavam por caminhos “suspeitos”.
Ao pesquisar sobre o cotidiano da República do Mangue, famosa zona de meretrício no
Rio de Janeiro, nas décadas de 1950 e 1970, Juçara Leite dedicou algumas páginas para discutir
os crimes de sedução e seus desdobramentos. Ela identificou que algumas mulheres defloradas
viam a prostituição como uma punição. Vale destacar que nos casos de sedução, como vimos
na primeira seção, poderia haver o consentidos ou não, mas na maioria das vezes haiva. Para
Leite, “a moral cristã sempre condenara o prazer sexual, de modo que a mulher seduzida e
abandonada pelo seu sedutor, no fundo, desejava ser punida porque cedera ao desejo”.347 Assim,
a culpa cristã influenciava jovens seduzidas a se “torturar” pelos seus pecados na prostituição e
algumas das mulheres do Rio de Janeiro mudavam até de cidade para não lidar com a culpa e a
vergonha do defloramento, enquanto outras eram expulsas de casa pela família. Mas, o
entendimento geral era de que uma vez informado às autoridades policiais e judiciais, esse
“pecado” poderia ser reparado por meio do casamento.
Em um inquérito policial para investigar um suposto crime de lenocínio, o funcionário
municipal Luiz, brasileiro, paraense, 42 anos de idade, casado, sabendo ler e escrever, acusou
Conceição, brasileira, paraense, 30 anos de idade, doméstica, solteira, instrução primária,
residente na avenida General Gurjão, de explorar a prostituição de terceiros. Ele residia em
frente à residência dela, no bairro da Favela. Luiz declara “que embora [Conceição] viva em

346 Ibidem, p. 10.


347 LEITE. Juçara Luzia. República do Mangue: controle policial e prostituição no Rio de Janeiro (1954-1974).
São Caetano do Sul: Yendis Editora, 2005, p. 89.
126

concubinato e [com] uma prole numerosa, transforma aquela casa em antro de prostituição,
numa verdadeira orgia afrontando as famílias ali residentes”. Ele afirma que esses fatos ocorrem
em plena luz do dia ou nas primeiras horas da noite, quando ele e seus familiares assistem “as
cenas mais degradantes” e “ali aparecem diversos casais para aventuras amorosas e satisfação
de seus apetites libidinosos”.348 Apesar da prática da prostituição não ser crime no Brasil,
lenocínio é. Esse crime consiste no favorecimento da prostituição de outras pessoas. Uma
mulher se prostituir não é crime, mas ela ser prostituída por outra pessoa sim. Era essa a
denúncia contra Conceição feita por Luiz, que estava muito incomodado com as “cenas
degradantes” protagonizadas pelos frequentadores da referida residência.
Júlio, brasileiro, natural do Estado de Guanabara, casado, funcionário público federal,
59 anos de idade, sabendo ler e escrever, residente no bairro do Trem, foi citado como um dos
frequentadores da casa de Conceição. Disse que a frequentou em 1966: a primeira vez, levado
por Maria, uma jovem funcionária pública federal; a segunda teve como motivo a venda de
galinhas para a dona da casa; e a terceira foi para passar aí uma festa de aniversário a convite
de Maria:

Que, durante as duas vezes que ocupou uma dependência reservada daquela
casa, não chegou o depoente a custear nenhuma despesa monetária, pois se
tratava de um ambiente sigiloso e previamente preparada para encontros
amorosos. Que, o depoente, já no dia vinte e três de fevereiro corrente, o
declarante dirigiu-se aquela residência sem ter sido acompanhado por
qualquer representante do sexo oposto, apenas interessando por desejar alugar
um quarto daquela casa, sem contudo ter sido atendido por não existir para
esse fim.349

Com o depoimento de Júlio, o inquérito toma outras formas. Ele declarou que
frequentou a casa de Conceição com Maria, para encontros amorosos, mas não fez pagamento
para isso. Maria poderia ser uma amiga próxima de Conceição ou era habituada a usar os quartos
da residência desta para encontros sexuais. Segundo a entrevistada Maria Albuquerque, Macapá
não tinha motéis nesse período:

Maria: Macapá era um lugar que não permitia motel, não sei como hoje tá
cheio de motel.
Amanda Silva: Não tinha motel, não permitia?
Maria: Não permitia.
Amanda Silva: Mas quem não permitia? Era o governo?

348 AFCM. Autos de Inquérito Policial instaurado para apurar crime previsto no art. 229 do Código Penal
Brasileiro de 29 de fevereiro de 1968, p. 2.
349 Ibidem, p. 5.
127

Maria: Era a própria polícia que formou uma lei que lá não podia, não tinha
motel. Existia essas boatezinhas assim, mas motel não.
Amanda Silva: As boates tinham os quartos?
Maria.: É.
Amanda Silva: Mas motel não tinha?
Maria: Não tinha permissão, eles falavam que a área… Não sei, não tinha
permissão pra motel.350

A entrevistada não recorda o motivo da proibição e nós não encontramos nenhuma


menção ao tema na documentação analisada. Maria não era prostituta, então não estava apta a
utilizar os quartos das boates e pensões. Aparentemente, não podia levar Júlio para sua
residência, os motivos dela não saberemos, mas o motivo dele talvez seja o fato de ser casado
e manter um caso extraconjugal com a funcionária pública. Com a proibição de motéis, os
encontros amorosos e sexuais eram feitos em casas como a de Conceição, como bem informou
Júlio.351
Durval, brasileiro, paraense, casado, comerciante, sabendo ler e escrever, com 44 anos
de idade, residente na avenida Coriolano Jucá, apontado como frequentador da residência,
conhecia superficialmente Conceição e nunca frequentara sua casa, assim como:

Desconhece se a mesma possui algum cômodo para encontros e deleites


carnais, pois como homem casado que é e gozar do conceito perante à
sociedade em que vive, jamais procuraria se comprometer com problemas
dessa natureza. Que, o depoente ainda considera indigno o lenocínio e
exploração de prostitutas com interesse único de locupletar com vantagens
pecuniares em troca de carne de referidas infelizes.352

Diferentemente de Júlio, Durval desconhecia essa utilidade da residência de Conceição


e fez referência ao seu estado civil de homem casado, pois, como tal, não se envolveria em
encontros carnais na casa de terceiros. A última frase de seu depoimento converge para o de
Socorro, pois denota também a opinião do escrivão. Durval pode ter dito que desprezava o
lenocínio e a exploração das infelizes mulheres, mas o escrivão pode ter transcrito isso com
base em suas percepções.
A denunciada Conceição declarou nunca ter sido casada, mas acrescentou que “desde
quando se amasiou com José, nunca mais frequentou cassinos ou dançarás e abandonou a

350 Entrevista com Maria Albuquerque, realizada por Amanda Cristina Souza da Silva, em 10 de dezembro de
2021.
351 Para saber sobre a relação dos cabarés com os motéis, conferir: PEREIRA FILHO, Raimundo Alves.
Lupanares e puteiros: os últimos suspiros do rendez-vous na sociedade manauara (1959/1969). Dissertação de
Mestrado (Programa de Pós-Graduação em História), Universidade Federal do Amazonas, 2014.
352 AFCM. Autos de Inquérito Policial instaurado para apurar crime previsto no art. 229 do Código Penal
Brasileiro de 29 de fevereiro de 1968, p. 7.
128

prostituição, vivendo honestamente com o homem acima referido”. Residia havia mais de seis
anos nesse endereço, onde recebia visitas de amigos e de pessoas que tratavam de negócios com
seu amásio:

Sem contudo facilitar em proveito próprio ou de outrem encontros amorosos


em sua própria casa. Que há tempos passados antes de viver em concubinato
com José alguns casais procuravam sua residência onde permaneciam e
praticavam relações sexuais, sem contudo cobrar-lhes quaisquer vantagens
pecuniares pelo cômodo que essas pessoas ocupavam momentaneamente.353

Ela completou dizendo que nunca prostituiu nenhuma mulher que foi lhe visitar, assim
como nunca obteve lucro ou se sustentou pela prostituição de outra pessoa e acreditava que o
objetivo de seu vizinho era destruir a felicidade de sua família, pois era inimigo de seu
marido.354 Conceição largou o meretrício e deixou de frequentar cassinos e dançarás para viver
honestamente com seu amásio, o que nos leva a pensar que para os ideais da período, uma
mulher que frequentava esses ambientes era solteira, desonesta ou os dois. Ela negara haver
favorecido encontros amorosos na sua casa, mas relatou ter cedido cômodos para esse fim no
passado, sem, contudo, cobrar qualquer quantia pelo uso deles.
Raimundo Pereira Filho realizou uma pesquisa sobre os rendez-vous em Manaus,
enfocando a transição do uso desses locais para os motéis. Ele explica que, no início da década
de 1950, as pensões eram os locais de prostituição em Manaus, assim como em Macapá, as
pensões eram resididas por meretrizes e funcionavam como bordel. Nessa mesma década, foram
surgindo os rendez-vous “onde os casais procuravam unicamente para praticarem sexo e as
prostitutas, salvo exceção, não moravam onde trabalhavam”.355 Resumidamente, os rendez-
vous eram cômodos alugados para relações sexuais e não eram habitados por meretrizes. Nos
depoimentos de Conceição e Júlio encontramos indícios de que a casa dela havia sido (ou ainda
era) um rendez-vous.
O delegado Oscar Ferreira Lima considerou que o crime não podia ser comprovado e
não responsabilizou Conceição por lenocínio, porque entendeu que o denunciante queria
prejudicar a ela e a seu amásio, por ser inimigo de José.356 Em acareação ocorrida no mês de
julho, Luiz disse que estava em estado de ânimo alterado quando fizera a denúncia e não se

353 Ibidem, p. 10.


354 Ibidem, p. 10.
355 PEREIRA FILHO, Raimundo Alves. Lupanares e puteiros: os últimos suspiros do rendez-vous na sociedade
manauara (1959/1969). Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em História), Universidade Federal
do Amazonas, 2014, p. 63.
356 AFCM. Autos de Inquérito Policial instaurado para apurar crime previsto no art. 229 do Código Penal
Brasileiro de 29 de fevereiro de 1968, p. 12.
129

dava bem com a família de Conceição, mas que então eram amigos. Ao final, declarou que
desmentia seu depoimento anterior.357 O palpite de Conceição estava correto, Luiz queria se
vingar de José, seu desafeto. Para isso, procurara acusar a amásia dele de lenocínio. Certamente
Luiz conhecia o passado de Conceição e achou que sua denúncia levaria aos efeitos pretendidos
por ele. O surpreendente é que os envolvidos se tornarem amigos ao longo da investigação.
Luiz atribuiu a culpa de sua falsa denúncia a seu “estado de ânimo alterado”, não informando
se isso se deveu a embriaguez ou a forte emoção.
A historiadora Ivonete Pereira explicou que a relação de vizinhança não pode ser vista
apenas como sinônimo de solidariedade, pois “apresentava-se como vigilante, delatora e
suscitadora de repressão sobre aquelas pessoas que estavam fora de seus círculos de
amizade”.358 Ela observou que, em Florianópolis de 1900 a 1940, a repressão sofrida pelas
prostitutas não vinha apenas das autoridades, pois a comunidade da qual elas faziam parte
também tinha contribuição nisso. Ela entende que esse controle não ocorria apenas em
Florianópolis, mas ocorria igualmente no Rio de Janeiro, em Salvador, São Paulo e, podemos
dizer, em Macapá. Luiz, por não ter vínculo de amizade com a família de Conceição, tentou
exercer esse controle e repressão com a ajuda das autoridades públicas, ele só não contava com
a rede de convivência e solidariedade que Conceição e seu amásio José tinham construído com
o passar dos anos.
Não era incomum as meretrizes brigarem entre si. Em julho de 1976, em frente ao
restaurante A Peixaria, a meretriz Telma agrediu suas colegas de profissão, as irmãs Valda e
Maria Lúcia com um canivete.
Valda, residente na boate Juçarão, paraense, 21 anos, meretriz, solteira, sabendo ler e
escrever, disse que desde 1974 residia e fazia ponto na boate Juçarão. No dia do ocorrido,
quando a festa na boate acabara, por volta das três horas da madrugada, ela foi para A Peixaria,
próximo à Usina Costa e Silva, na companhia das amigas Francisca, Conceição e outras que
não recorda o nome, para dar “prosseguimento em sua noitada alegre”.359 Ela disse que
ingeriram bebida alcoólica, mas estavam sãs. Minutos depois de se acomodarem na Peixaria, a
sua irmã Maria Lúcia chegou e se juntou a elas na mesa. Maria Lúcia levantou-se e foi para a
frente do estabelecimento. Minutos depois, Valda foi informada de que sua irmã estava

357 Ibidem, p. 17.


358 PEREIRA, Ivonete. As decaídas: Mulheres no quotidiano de Florianópolis (1900-1940). Dissertação
(Mestrado em História do Brasil). Universidade Federal de Santa Catarina, 1996, p. 111.
359 AFCM. Processo crime nº 4.016 de 15 de fevereiro de 1977, p. 6.
130

envolvida em uma confusão. Ao chegar na frente do local, viu que Maria Lúcia estava
discutindo com duas mulheres desconhecidas e com Telma:

A qual, dirigindo-se para MARIA LUCIA, irmã da declarante, tomando a


questão para sí, insultou-a nos seguintes têrmos: ‘Com puta não se conversa,
a gente mete logo porrada’ (textuais) e em seguida agrediu-a com um chute;
Que, tendo MARIA LUCIA apanhado esse chute, avançou contra sua
agressora e engalfinharam-se, momento em que a declarante interferiu e
conseguiu separá-las.360

Porém, em seguida, Telma começou a agredir Valda com tapas e as duas se


engalfinharam no chão. Ninguém interferiu e, após alguns minutos, elas se separaram. Valda
continuou no local, conversando com suas amigas e irmã e disse que Telma se retirara de lá.
No entanto, minutos depois, sua irmã fora ferida nas costas por um golpe de canivete dado por
Telma e caíra ao chão sangrando. Quando a declarante socorrera Maria Lúcia, também fora
atingida por Telma no seu ombro esquerdo. A acusada tentara fugir em um táxi, mas fora detida
por um policial. As irmãs foram socorridas e levadas ao Pronto Socorro Osvaldo Cruz.361
Maria Lúcia, residente no Juçarão, 18 anos, meretriz, sabendo ler e escrever, disse que
ao fim da festa no Juçarão, saiu acompanhada de um homem e foi dar uma volta, e que depois
ele a deixou na Peixaria. Neste local, encontrou com duas mulheres desconhecidas, mas que
“são useiras e veseiras em ameaçarem de espancamento as mulheres do Juçarão, todas as vezes
que ali dão entrada”.362 Ela foi tirar satisfação e perguntou porque sempre jogavam “xavecos”
para as mulheres residentes do Juçarão. A partir daí, a confusão foi iniciada.
Maria da Conceição, brasileira, paraense, natural de Afuá, 20 anos, solteira, residente na
Boate Juçarão, analfabeta, declarou residir no Juçarão havia cinco meses e como Maria Lúcia
e Valda também moram lá, costumavam sair juntas e assim ocorreu no dia do crime. Ela disse
que das vezes que saiu com as irmãs não houve nenhuma confusão, nem na boate onde
moram.363
A acusada Telma, 18 anos, solteira, meretriz, amapaense, residente a rua Hildemar Maia,
próximo do Aeroporto, parda escura, disse que morava com seus pais, mas costuma frequentar
as boates no bairro Santa Rita, “participando de noitadas alegres”. 364 No dia do ocorrido, saiu
da boate Xadrezão, às 4 horas da madrugada e foi para A Peixaria. Viu sua amiga Rute

360 Ibidem, p. 06.


361 Ibidem, p. 07.
362 Ibidem, p. 8.
363 Ibidem, p. 12.
364 Ibidem, p. 15.
131

conversando com Maria Lúcia, que até então desconhecia, e se dirigiu até ela. Maria Lúcia
dissera para Telma: “Tu já vens para cá querer criar bronca, vai te embora daqui que ninguém
te chamou”.365 Rute entrou em um táxi e foi embora, enquanto Telma e Maria Lúcia discutiam.
Telma declarou que foi Maria Lúcia quem começou a agredi-la e que também foi agredida por
Valda. Então, ela brigou com as duas irmãs ao mesmo tempo. Ninguém se intrometeu na briga
e elas se separaram sozinhas. Telma lembrou que dentro de sua roupa íntima, trazia uma bolsa
com um canivete, pegou a arma e chamou suas adversárias para continuar a briga. As duas
foram em sua direção e tentaram lhe espancar, ela já empunhava o canivete e acertou suas
oponentes. Ela disse que não tinha qualquer intimidade com as vítimas e somente após o fato
soube que eram irmãs e frequentadoras da boate Juçarão. Disse que nunca foi processada, mas
já havia sido detida por motivo de confusão nas boates que frequentava.366 Telma certamente
era uma das tantas prostitutas do TFA detidas por embriaguez e desordem, mas liberada após
passar algumas horas na delegacia.
Em diversas partes do processo, tanto vítimas quanto acusadas são caracterizadas como
domésticas. Claudielle Silva afirma que algumas prostitutas envolvidas em inquéritos e
processos judiciais diziam serem domésticas, porque era “uma atividade com menor estigma
que a prostituição”367. Essa era uma estratégia utilizada por elas para serem ouvidas pelas
autoridades de segurança, bem como para se protegerem de eventuais abusos do Estado. Para
Cristiana Schettini, ao passo que as autoridades republicanas transformavam meretrizes em
mulheres públicas e permitiam que elas fossem tratadas fora da lei por agentes do Estado como
policiais e delegados, as redes de apoio e solidariedade tecidas por elas com amigos e
conhecidos propiciavam que buscassem por respeito e dignidade nas delegacias, nas ruas e nos
tribunais.368 Ocultar sua verdadeira profissão ou não revelar todas elas, era uma estratégia de
proteção dessas mulheres habituadas a sofrer abusos e repressões fora da lei por agentes de
segurança do Estado.
Vemos aqui um caso de uma rixa entre mulheres e como isso antecede o desafio369,
posto que as envolvidas já tinham uma faísca de desentendimento. No depoimento de Maria
Lúcia, é dito que Rute e outra prostituta ameaçavam as mulheres do Juçarão. Havia uma

365 Ibidem, p. 15.


366 Ibidem, p. 16.
367 SILVA, Claudielle Pavão da. “Flores horizontais”: Sociabilidade, prostituição e travestilidade na Zona do
Mangue (1960-1970). Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2016,
p. 68.
368 SCHETTINI, Cristiana, Op. Cit., p. 302-303.
369 Ver a seção anterior.
132

rivalidade entre as meretrizes das boates? Essa rivalidade era por clientes, pelo domínio da
região ou por outras questões de convivência? Maria Lúcia, ao tirar satisfação com as litigantes,
iniciou o desafio que consiste no contato físico, nesse caso, na agressão. Após o início da
discussão, Telma se envolveu e afirmou que para lidar com puta, só com “porrada”. Rute e a
outra meretriz foram embora, Telma ficou e brigou com as irmãs Valda e Maria Lúcia, até o
momento em que cortou as duas com um canivete. Pereira Filho afirma que o uso de giletes era
comum em brigas envolvendo prostitutas,370 mas percebemos que elas andavam armadas com
objetos cortantes para se defender em situações de perigo, seja contra suas colegas de profissão
seja em face de homens agressivos e inconvenientes.
Leite assegura que “as prostitutas desenvolvem seus próprios códigos e relações, unidas
pela segregação”371. Como sofriam com a marginalização social e tinham a mesma experiência
de trabalho, elas construíram suas próprias regras para lidar com o seu mundo, separado do
mundo moralmente aceito. Elas precisavam definir uma hierarquia entre si para garantir o
respeito mútuo. Essa hierarquia era estabelecida no interior dos bordéis que contavam com uma
prostituta gerente, que detinha certo poder sobre as outras meretrizes. Mas, a autora destaca que
a violência era decorrente de conflitos de convivência no bordel, por objetos e disputas pelos
clientes.
Valda, Maria Lúcia e Maria da Conceição residiam no Juçarão. A primeira era moradora
de lá havia dois anos e a última havia apenas cinco meses. Elas tinham um laço de amizade que
pode ter se construído pela experiência da profissão e pela moradia, mas Valda e Maria Lúcia
tinham laços de sangue. Eram irmãs, haviam sido criadas juntas e agora compartilhavam as
experiências da profissão. Maria da Conceição disse que saia frequentemente com suas colegas
e nunca haviam criado confusão, dando a entender que as meretrizes rivais fossem
“encrenqueiras” ou “useiras e veseiras”, como Maria Lúcia as definiu.
Outra observação a ser feita é o horário de funcionamento do restaurante A Peixaria,
pois a festa na boate Xadrezão terminou às quatro horas da madrugada e o restaurante
continuava funcionando. Como vimos na seção anterior, no ano de 1978, o proprietário do
Xadrezão alegou que seu estabelecimento funcionava até as duas horas da madrugada. De
acordo com o que foi relatado por Telma, um ano antes do depoimento do dono do Xadrezão,
ela havia saído de uma festa lá ocorrida às quatro horas. Ele mentiu em seu depoimento sobre
o horário de funcionamento para se defender de qualquer multa que pudesse pagar ou nesse

370 PEREIRA FILHO, Raimundo, Op. Cit., p. 90.


371 LEITE, Juçara Luzia, Op. Cit., p. 111.
133

período de um ano as normas de funcionamento dos locais de diversão no TFA mudaram. Mas
essa regra de horário limite de funcionamento poderia aplicar-se somente a boates, pensões e
dançarás e não a restaurantes, como a Peixaria. Também é possível que a fiscalização fizesse
vista grossa e deixasse a festa rolar até altas horas.
Nesses depoimentos foram citados três locais de diversão: Juçarão, Xadrezão e A
Peixaria. Localizavam-se no bairro Santa Rita e não eram distantes uns dos outros. Próximos a
eles havia outros ambientes de diversão noturna. Meretrizes, seus clientes e outros sujeitos
boêmios circulavam por vários desses locais durante a noite, procurando a continuação de suas
diversões. As prostitutas eram um caso à parte porque elas não tinham só a intenção de buscar
diversão, mas também procurar trabalho. Raquel Venera ao estudar a prostituição na cidade
portuária de Itajaí, em Santa Catarina, nas décadas de 1970 e 1970, por meio de processos
crimes, observou que o lazer de muitos, era trabalho para as prostitutas.372 Para se divertir, os
homens pagavam por um serviço sexual e as meretrizes se sustentavam com esses pagamentos.
Para além disso, Ivonete Pereira identificou nos processos judiciais que as meretrizes não
esperavam pelos clientes em um ponto na rua ou dentro de suas casas, elas saíam ao encontro
deles e procuravam lugares propícios à sua presença.373 As meretrizes do TFA faziam
exatamente isso, circulavam pelas ruas em busca de possíveis fregueses.
Na vila de Porto Grande, no mês de agosto de 1976, N.B.M., 3º Sargento PM do 2º
Pelotão, trabalhando no Quartel Plácido de Castro, amapaense, casado, 28 anos, residente em
Macapá, cor parda clara, sabendo ler e escrever, agrediu a meretriz H.M.V., brasileira, 18 anos
de idade, natural e residente em Porto Grande, sabendo ler e escrever. H.M.V. disse que estava
dormindo acompanhada em seu quarto. O acusado bateu em sua janela, ela acordou e perguntou
o que ele queria. O sargento disse que queria conversar, mas ela respondeu dizendo que não
tinha o que conversar com ele. Quando tentou fechar a janela, recebeu um soco. O acusado
ainda se armou com um pau e passou a destratar a meretriz. Foi contido por outras pessoas e
por um soldado chamado Antônio, que também recebeu xingamentos do sargento.374
O sargento disse que não estava embriagado no dia do ocorrido e negou todas as
acusações. No seu Boletim de Vida Pregressa afirmou que não tinha vícios de bebida e não
costumava embriagar-se375, mas as testemunhas ouvidas afirmaram o contrário. Inclusive, em

372 VENERA, Raquel Alvarenga Sena. A Cidade das Camélias e as Camélias na cidade. In: FÁVERI, Marlene
de; SILVA, Janine Gomes da; PEDRO, Joana Maria Pedro (orgs.). Op. Cit., p. 129.
373 PEREIRA, Ivonete. Op. Cit., p. 119.
374 AFCM. Processo crime nº 4.189 de 19 de dezembro de 1977, p. 5.
375 Ibidem, p. 11.
134

seu relatório, o 2º Tenente PM e delegado Jorge Teixeira Moreira afirmou: “Nas investigações
por mim efetuadas, apurei que N. passara o dia bebendo e quando do ocorrido encontrava-se
bastante alcoolizado, tendo sido carregado para sua residência por praças do 2º Pel PM, onde o
mesmo era destacado, como escrivão, por ser 3º Sgt PM”.376
A relação entre policiais e meretrizes não estava restrita à fiscalização e prisões, pois os
relacionamentos amorosos e de clientela não eram incomuns entre eles. N. usou seus privilégios
de homem e de policial militar para importunar e agredir a meretriz H., ele também usou a sua
patente para destratar o soldado Antônio. Carolina Mendonça pesquisou aspectos da
prostituição feminina em Salvador, no estado da Bahia, nas primeiras décadas da República e
apontou que as meretrizes conviviam diariamente com “homens de farda” e havia com eles uma
interação social marcada por conflitos, mas não existia um padrão nessas relações:

Se, teoricamente, a farda deveria inspirar temor e respeito por parte dessas
mulheres em relação aos ocupantes de postos militares, percebemos que o
contato formou também uma rede de ajuda mútua e camaradagem, em que
mulheres utilizavam a relação com homens fardados em busca de proteção
contra a ação policial, e a vantagem financeira alcançada pelas profissionais
do sexo as permitia retribuir alguns favores.377

A relação descrita por nós, não tem relação com proteção de policiais a prostitutas.
Contudo, os apontamentos de Carolina Mendonça nos levam a refletir que as interações desses
sujeitos com as meretrizes não estavam restritas a repressões, prisões e violência, mas poderiam
ter caráter de ajuda mútua também.
Em Pedra Branca, Naldo, amapaense, solteiro, comerciário, de 17 anos de idade,
residente em Pedra Branca, sabendo ler e escrever, foi atingido no pescoço por um tiro de
revólver efetuado por S.M.S, maranhense, solteiro, de 21 anos de idade, mecânico da
Construtora Mendes Júnior S/A, através da porta do quarto onde estava acompanhado de uma
meretriz. A vítima tentava entrar no quarto à força.
Maria Creuza, amapaense, solteira, meretriz, com 26 anos de idade, residente na avenida
Mendonça Júnior, sabendo ler e escrever, relatou que costuma viajar com outras meretrizes para
a localidade de Pedra Branca na Estrada de Ferro do Amapá. Lá, passavam alguns dias morando
em quartos disponíveis para elas. Ela disse que Naldo estava à procura da meretriz Catarina
quando bateu na porta de seu quarto. Maria Creuza indicou a porta do quarto de sua colega e

376 Ibidem, p. 15.


377 MENDONÇA, Carolina Silva Cunha de. Marias sem Glória: retratos da prostituição feminina na Salvador
das primeiras décadas republicanas. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal da Bahia, 2014, p.
82-83.
135

ouviu ele dizer: “essa faca que tenho aqui é para furar a Catarina e seu acompanhante”. Ele
jogou garrafas e tentou arrombar a porta do quarto de Catarina, outros homens tentaram acalmá-
lo, mas sem sucesso. Naldo disse que estava ali para morrer ou para matar.378
Lúcia, amapaense, casada, meretriz, com 23 anos de idade, residente na avenida Padre
Júlio, sabendo ler e escrever. Respondeu que viajava para Pedra Branca de vez em quando e aí
ficava em quartos que sempre eram ocupados por meretrizes. Ela estava no quarto acompanhada
de S., deitada em uma rede, enquanto a meretriz Catarina estava em outra rede, deitada com um
rapaz chamado Vicente, cearense, solteiro, com 22 anos, residente em Pedra Branca, Estrada
de Ferro do Amapá, sabendo apenas assinar o nome, quando Naldo começou a bater na porta
para entrar, mas isso lhe foi negado até que conseguiu fazê-lo após uma saída da depoente. Ele
estava embriagado e armado com uma faca, mas os dois homens que estavam no quarto
conseguiram contornar a situação. No meio de toda a confusão, uma inquilina chamada Ana foi
chamar o Comissário Jacy, que levou Naldo, mas ele não demorou a voltar. Iniciou outro
arrombamento e ameaçou matar os ocupantes do quarto. A partir disso, o acusado S. atirou duas
vezes contra a porta e eles ouviram Naldo falar: “Catarina, estou morrendo por teu amor”. Ele
foi atingido no pescoço por um dos projéteis e o acusado fugiu. A depoente disse que Catarina
até desmaiou enquanto abraçava Naldo caído no chão.379
Catarina, amapaense, solteira, meretriz, de 18 anos de idade, residente em Macapá,
sabendo ler e escrever. Também viaja para Pedra Branca constantemente. Ela disse que desde
cedo Naldo estava embriagado, perturbando a ordem na Pensão da Zeca e no bar do Baltazar, e
que depois foi promover desordem nos quartos onde moram ela e outras meretrizes. Catarina
falou que Naldo primeiro chamava por ela e que depois começou a chamar por Lúcia, mas as
duas falaram que estavam acompanhadas. Mesmo assim, ele não desistiu.380 De outro lado,
Naldo disse que não tinha nenhuma relação de amizade com Catarina.381
Em 1986, um oficial de Justiça tentou intimar todos os envolvidos por ordem do juiz
Dôglas Evangelista Ramos. Ele informou que encontrou Maria Creuza e conseguiu intimá-la.
Porém, não encontrou Catarina e Lúcia, mas foi informado que as duas estavam morando em
Caiena, na Guiana Francesa.382

378 AFCM. Processo crime nº 4.832 de 16 de outubro de 1978, p. 5.


379 Ibidem, p. 6.
380 Ibidem, p. 8.
381 Ibidem, p. 11.
382 Sobre o trânsito de mulheres brasileiras nas fronteiras da Amazônia, ver: TEDESCO, Letícia. As mulheres no
garimpo: entre fronteiras, papéis e classificações. In: SIMÕES, Soraya Silveira; SILVA, Hélio R.S.; Moraes,
Aparecida Fonseca. Prostituição e outras formas de amor. Niterói: Editora da UFF, 2014.
136

Maria Creuza, Lúcia e Catarina se deslocavam de Macapá para o distrito de Pedra


Branca a fim de oferecer serviços de prostituição. O acusado era funcionário de uma
construtora. As obras trazem circulação de dinheiro e homens trabalhando. Provavelmente, era
mais vantajoso para elas viajar até Pedra Branca e aí passar uns dias do que ficar em Macapá.
Não muito diferente da dinâmica de moradia de meretrizes em Macapá, nesse distrito, elas se
hospedavam em quartos destinados para esse fim. Certamente, a Pensão da Zeca tinha a
finalidade de hospedagem e residência de prostitutas e o Bar do Baltazar era ponto de encontro
delas com possíveis clientes. Inicialmente, entende-se que Naldo estava enciumado porque
Catarina estava acompanhada por outro homem que não ele. Mas, a partir do depoimento dela,
percebemos que ele também procurava por Lúcia. A intenção dele era passar a noite com uma
delas, mas ambas já estavam acompanhadas. Porém, é interessante observar a reação de Naldo
por não ter suas vontades e desejos atendidos: ele tentou arrombar a porta do quarto e prometeu
matar todos que estivessem aí dentro dele, um sinal da sua valentia masculina. Porém, a relação
dele com Catarina aparentava ser mais estreita, porque quando ele foi alvejado com um tiro
gritou estar morrendo de amor e ela chegou a desmaiar abraçada a ele. É controverso ele
declarar não ter relação de amizade com Catarina depois de todos os depoimentos dados no
processo.
As relações das meretrizes eram marcadas pelo ciúme, seja delas ou de seus amantes.
Ivonete Pereira destaca que ex-amantes enciumados eram uma ameaça ao sossego delas e
armavam brigas em decorrência disso.383 Rachel Soihet destaca que os homens pobres
“desprovidos de poder e de autoridade no espaço público – no trabalho e na política, seriam
assegurados pelo sistema vigente de possuí-los no espaço privado, ou seja, na casa e sobre a
família”. (SOIHET, 1989, p. 256). E mais adiante:

Na medida em que é dado ao homem o direito de extravasar sua agressividade


‘natural’ sobre os objetos de sua propriedade e sendo o corpo da mulher
considerado uma propriedade sua, este se constitui no local próprio de
extravasamento da agressividade masculina.384

Dessa forma, a autora acrescenta que como o trabalhador pobre não tinha poder e
autoridade na esfera pública, ele exercia esse poder na esfera privada. E a sua “agressividade
natural” era manifestada sobre a mulher. O homem acreditava que o corpo de uma mulher era
sua propriedade e, quando ela não correspondia positivamente a suas vontades, ele reagia com

383 PEREIRA, Ivonete. Op. Cit., p. 133.


384 SOIHET, Rachel, Op. Cit., p. 256.
137

agressividade. Assim, por não conseguir exercer sobre a sua companheira o poder que o sistema
dominante lhe prometia, o homem pobre a violentava, num extravasamento de sua frustração.
Naldo até teve a intenção de violentar Catarina, Lúcia e os homens que lhe acompanhavam,
mas foi atingido por um tiro antes que conseguisse realizar seu intento.
Segundo Margareth Rago, as prostitutas do baixo meretrício enfrentavam fregueses
bêbados, violentos e desequilibrados que não podiam pagar o preço dos bordéis mais caros.385
Em Pedra Branca havia bordéis mais caros ou os prostíbulos oferecidos eram apenas as pensões
em que as meninas ficavam hospedadas? Naldo e o mecânico S. certamente não tinham outras
opções no distrito, assim como os limites do que seria prostituição de luxo e baixo meretrício
em Macapá não eram bem definidos, e talvez nem existissem. Catarina e Lúcia rejeitaram
Naldo, o que demonstra que elas tinham o poder de escolher com quem comercializar relações
sexuais e este também pode ser um indicativo de que elas não tinham vários clientes em uma
noite ou poderiam cobrar um valor maior para pernoitar com um deles.
No dia 1º de novembro de 1970, Geraldo, brasileiro, amapaense, com 21 anos de idade,
solteiro, braçal, alfabetizado, residente em Macapá, cor morena, causou ferimentos no seu
cunhado Veríssimo, brasileiro, amapaense, casado, 33 anos de idade, funcionário público,
sabendo assinar o nome, residente no Quartel da Guarda Territorial na Fortaleza de São José de
Macapá, na casa da meretriz Carmosina, próximo ao presídio São Pedro.
Veríssimo, disse que ao chegar na casa de Carmosina, ela já tinha preparado cachaça e
refrigerante para seus convidados. Minutos depois chegou a sua esposa Josefina, de quem
estava separado havia sete anos, mas esta não lhe deu atenção. A meretriz Maroca também
chegou e se juntou a eles. Momentos depois, Maroca, Geraldo e Carmosina saíram e ele ficou
sozinho com Josefina. Próximo das 14h, Geraldo retornou e gritou: “tu estás dando na minha
irmã”, em seguida agrediu Veríssimo. Os dois iniciaram luta corporal e Geraldo atingiu o rosto
do depoente com um soco que o fez cair desacordado.386
Geraldo, por sua vez, disse que era irmão de Josefina, casada com Veríssimo, mas
separada dele havia muito tempo. No dia do ocorrido, estava com seu cunhado bebendo em um
botequim e este mandou um recado para sua irmã encontra-lo na casa de Carmosina. Eles foram
para a casa dela e Josefina já estava lá. Todos estes citados estavam embriagados, mas
brincavam sem qualquer anormalidade. Maroca chegou e passado um tempo, pediu para que
alguém lhe deixasse em casa. Ele a acompanhou e passou uma hora nessa viagem. Quando

385 RAGO, Margareth. Op. Cit., p. 261.


386 AFCM. Processo crime nº 2.391 de 15 de maio de 1971, p. 5.
138

voltou, viu sua irmã chorando e perguntou o que tinha acontecido. Ela respondeu que fora
espancada pelo seu marido. Ele entrou na casa, onde passou a tirar satisfações com seu cunhado,
e os dois discutiram até chegar à agressão física. Geraldo declarou se dar bem com seu cunhado,
mas sabia que essa não era a primeira vez que ele agredira sua irmã e nunca fizera nada antes
porque ainda era menor de idade.387
Cristina Wolff explica que na região do Alto Juruá, no Acre, “certas situações deviam
levar necessariamente a atos violentos, sob pena de desmoralização perante a comunidade,
especialmente situações que envolviam adultério, ou ofensas às mulheres da família”. 388 Ela
também usa o conceito de honra, definido por Julian Pitt-Rivers ao estudar a Andaluzia: “a
honra é o valor de uma pessoa para si mesma, mas também para a sociedade. É sua opinião
sobre seu próprio valor, sua reivindicação de orgulho, mas também é a aceitação desta
reivindicação, sua excelência reconhecida pela sociedade, seu direito ao orgulho”.389 Nas
sociedades mediterrânicas e nas latino-americanas, a honra de um homem está ligada à pureza
sexual das mulheres de sua família.390 Então a figura masculina zelava pela honra das mulheres
de sua família e reivindicava o respeito por ela por meio da violência se fosse necessário.
Geraldo precisava defender a sua irmã, pois “já era homem” para isso. Quando mais novo não
podia medir forças com Veríssimo.
Josefina de Jesus dos Santos, brasileira, amapaense, de 26 anos de idade, meretriz,
casada, sabendo assinar o nome, residente à Praça São Pedro, entre as ruas Jovino Dinoá e
Leopoldo Machado, declarou que pela manhã do dia 1º de novembro seu irmão foi lhe visitar e
seguiu para um botequim nas proximidades. Depois de um tempo, sua colega Carmosina
chegou com um recado de seu marido:

dizendo que ele viria em sua casa, tendo dito que alí seria impossível, pois
abandonados como estavam, já tinha compromisso com outro homem, mas
sabendo que Veríssimo quando está bebendo, não se importa com o que lhe
pode acontecer; que, em seguida dissera a Carmosina que iria para sua casa e
com isso fazer com que Veríssimo não fosse a sua e então não haver
confusão.391

Ela disse que todos estavam embriagados, mas tudo seguia bem. Quando os demais se
retiraram, ela e Veríssimo foram para um quarto da casa. Ele queria manter relações sexuais

387 Ibidem, p. 06.


388 WOLFF, Cristina. Op. Cit., p. 216.
389 PITT-RIVERS, J.A. Antropologia del honor o política de los sexos. Ensayos de antropologia mediterrânea.
Traducción castellana de Carlos Manzano. Barcelona: Crítica, 1979, p. 18.
390 Ibidem, p. 48.
391 AFCM. Processo crime nº 2.391 de 15 de maio de 1971, p. 07.
139

com ela, mas Josefina se negou a isso e ele começou a bater nela, na frente da filha deles. Isso
demorou pouco tempo, porque ela conseguiu se desvencilhar dele. Quando estava saindo da
casa, encontrou com seu irmão e como estava chorando, ele perguntou o que havia acontecido
e ela relatara o ocorrido. Depois da confusão, Josefina e seu filho mais velho colocaram
Veríssimo em um carro e o levaram para a casa dela. O carro da polícia chegou na sua residência
e o levou para o Pronto Socorro, depois para a Fortaleza. Seu irmão foi preso. Ela relatou que
seu irmão havia dito que Veríssimo prometera, naquele dia, dar umas “porradas” nela, o que de
fato aconteceu.392 Carmosina, brasileira, amapaense, casada, com 36 anos de idade, analfabeta,
meretriz, residente no Beirol, disse que quando se ausentou foi para ver seu filho doente na casa
de uma irmã.393
Nunca houve audiência pois o acusado não foi encontrado, assim como a vítima que
havia sido destacada para o Oiapoque, e os oficiais de Justiça não tinham transporte para se
deslocar até lá. Várias tentativas foram realizadas e, após alguns anos, foi extinta a punibilidade.
Sobre essa ausência dos envolvidos no processo, Ivonete Pereira aponta que tanto os populares
buscavam a Justiça quando precisam resolver questões sofridas por eles, quanto também se
negavam colaborar com ela, quando isso lhes prejudicava.394 Eis uma justificativa para o
desaparecimento do acusado. A vítima todos sabiam onde se localizava, mas pela dificuldade
de contratação de transporte para o oficial de Justiça de Macapá para ir Oiapoque, não foi
possível realizar a sua intimação.
Aparentemente, a casa de Carmosina era um ponto de encontro e de festas para homens
conhecidos e suas parceiras de profissão. Veríssimo e Josefina ainda eram casados no papel,
mas separados havia sete anos. Josefina, inclusive, já tinha outro relacionamento, que mantinha
junto à profissão de meretriz. No entanto, seu ex-marido não deixava de lhe procurar e de tentar
forçar relações sexuais. Como ela se negara a ter uma relação sexual com ele, foi agredida na
frente da filha deles. Veríssimo fez uma ameaça a ela por meio de Geraldo e a concretizou.
Rago escreveu que as prostitutas construíam suas próprias sociabilidades e viviam uma
“mundanidade nômade” em contraposição ao mundo sedentário da ordem burguesa e da vida
sexual monogâmica. A prostituta, aqui representada por Josefina, “podia viver simultaneamente
tanto a relação sedentarizante com o amante principal, nas ocasiões em que este estava presente,
quanto outros encontros descomprometidos com vários fregueses”395. No caso, esse amante

392 Ibidem, p. 7.
393 Ibidem, p. 8.
394 PEREIRA, Ivonete. Op. Cit., 118-119.
395 RAGO, Margareth. Op. Cit., p. 268.
140

principal de Josefina era seu amásio atual, mas também pode ter sido seu ex-marido, quando
eram casados. Eles eram parte das relações sedentárias de Josefina, enquanto seus clientes
compunham suas relações nômades.
Por outro lado, Cristiana Schettini aponta que as sociabilidades das prostitutas do Rio
de Janeiro na virada do século XIX ao XX não se limitavam a um “mundo da prostituição”,
pois articulava-se também ao mundo cotidiano, apesar das oposições estabelecidas por homens
da classe dominante. Para Pereira, “mesmo este aspecto não pode ser compreendido sem as
tensões que marcavam a existência desses homens numa sociedade que definia hierarquias e
naturaliza desigualdades sociais mobilizando critérios raciais, de gênero e de moralidade
sexual”.396 Não é possível pensar as sociabilidades da prostituição sem articular os aspectos de
gênero, raça, moralidade sexual, mas também sem pensar em classe. Como Cristiana Schettini
bem apontou, as hierarquias e desigualdades sociais são estruturadas a partir desses critérios.
Para ela, a prostituição é fortemente marcada pelo gênero, mas também permite a mobilização
de várias masculinidades que se encontravam em horas de diversão. 397 Porém, como vimos,
essas masculinidades nem sempre conviviam em harmonia, pois os conflitos também eram
parte das sociabilidades masculinas construídas nas ruas do TFA.
É interessante observar que Josefina havia sido agredida por Veríssimo, mas neste
processo criminal somente ele figura vítima por ter sido espancado por Geraldo. Ela é arrolada
apenas como testemunha. Não é possível saber se Josefina era meretriz antes de casar-se com
Veríssimo, se permaneceu meretriz durante o casamento, ou se abandonou o meretrício por
causa do matrimônio ou ainda se tornou prostituta após a separação. Por outro lado, vemos que
seus filhos moravam com ela e não sabemos se esta oferecia seus serviços de meretriz na sua
casa ou em outro local. Contudo, o filho de Carmosina morava com sua irmã. Isso nos leva à
conclusão de que ela usava a sua casa para receber seus clientes e preferia que seu filho ficasse
aos cuidados de sua irmã. Raquel Venera, usando as figuras de Eva e Maria, afirma que Maria
foi a escolhida para ser a mãe da família burguesa, já as prostitutas eram “Evas que não se
reconciliaram e continuam exercendo seu potencial mágico capaz de seduzir e fazer os homens
pecarem”.398 Porém, era possível ser Maria e Eva, ou camélia, ao mesmo tempo, como quando
as meretrizes eram mães. Isso se considerarmos outros modelos de família que não apenas o
modelo burguês. Para pensar a existência das prostitutas, a autora utilizou o conceito de “entre

396 SCHETTINI, Cristiana. Op. Cit., p. 302.


397 Ibidem, p. 302.
398 VENERA, Raquel Alvarenga Sena, Op. Cit., p. 125.
141

lugar” de Homi K. Bhabha399. Nesse conceito, as pessoas não tem uma identidade fixa, mas
transitam entre várias identidades. Então, uma prostituta pode sim exercer a sua profissão –
sendo Eva – e ao mesmo tempo ser mãe – e ser Maria.
Ao passar pelas sociabilidades da prostituição, é impossível não se deparar com as
relações amorosas, familiares, de vizinhança e outras interações das meretrizes amapaenses.
Nos processos e inquéritos criminais, localizamos algumas dessas relações. Eles revelaram
muitos conflitos, mas também redes de solidariedade e convivência, assim como estratégias
elaboradas por essas trabalhadoras para se legitimarem enquanto indivíduos, mas também para
se proteger.

3.2 “Pode me matar de porrada, mas eu não te largo”: a relação trágica de Raimundinha
e Belisca
Às quatro horas do dia 18 de janeiro de 1973, na cidade de Macapá, capital do Amapá,
foi atestado o óbito da meretriz Raimundinha, natural de Breves-PA, 20 anos, solteira, de cor
morena, por “hemorragia interna e contusões várias”.400 Seu corpo foi encontrado por guardas
territoriais em uma calçada no canal da avenida Mendonça Júnior, entre as ruas Tiradentes e
São José, próximo ao Bar Caboclo. Eles trataram de investigar quem era essa mulher. Para isso,
bateram nas portas das casas de cômodo ao longo do canal, até encontrar pessoas que, após
serem informadas sobre as características físicas e os sinais de agressão no corpo, concluíram
se tratar de Raimundinha. Essas pessoas eram vizinhas dela, algumas eram colegas de profissão,
e presenciaram toda a briga entre ela e o sapateiro Belisca. Logo, sugeriram ser ele o autor do
crime. De acordo com as informações colhidas, os guardas territoriais se locomoveram à casa
do acusado, na avenida Padre Júlio Maria Lombaerd, para detê-lo. Belisca, amapaense, solteiro,
de 21 anos de idade, sapateiro, alfabetizado, cor morena/parda, foi preso em flagrante e
recolhido à Colônia Penal São Pedro.
As testemunhas e o réu foram ouvidos e deram suas versões do que aconteceu. Antonio,
brasileiro, amapaense, com 23 anos de idade, solteiro, comerciário, residente na avenida
General Gurjão, sabendo ler e escrever, declarou que vivia maritalmente com a meretriz Maria
Nilza, vizinha de cômodo de Raimundinha. Ele disse que esteve no dançará Merengue com
Maria Nilza no período de 01h a 02h30 da madrugada e o acusado também havia estado lá.
Quando retornaram para o quarto de Maria Nilza, Raimundinha estava na companhia de

399 BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução Myriam Ávila; et al. Belo Horizonte: UFMG, 1998.
400 AFCM. Processo nº 2.714 de 24 de janeiro de 1973, p. 66.
142

Belisca, bastante alcoolizada. Ele disse que vítima e acusado estavam começando a discutir e
que o homem passou a esbofeteá-la. Depois foram embora, e então o declarante e sua amante
se recolheram. Às 04h40 foram despertados por policiais que procuravam informações sobre
uma mulher morta em uma calçada nas proximidades do cruzamento da rua Tiradentes com a
avenida Mendonça Júnior. Então, ele e as colegas de Raimundinha concluíram se tratar dela.401
Antonio e Maria Nilza tinham uma relação marital na época do crime, mas não fica claro se
moravam juntos, porque ele informa um endereço diferente da residência dela. O que sabemos
é que dormiam juntos. Meses depois, essa relação teve fim, como ele afirma mais à frente. Além
dos mais, “viver maritalmente” pode não significar que eles tinham uma relação de marido e
esposa, como tradicionalmente é conhecida, pode ser sim uma forma usada pelo escrivão para
definir o relacionamento relativamente estável dos envolvidos. Essa expressão pode servir para
caracterizar um namoro, um amasiamento ou concubinato.
Belisca também declarou que vivia maritalmente com a vítima havia dois meses e que:

Quando alcoolizada ficava possuída de ciúmes doentio, agredindo-o vez por


outra, tendo desta feita lhe ferido com uma gilet suas pernas, que muito
embora frequentemente mantivesse encontros amorosos com
RAIMUNDINHA, ontem foi sozinho ao dançarás Merengue, isto é, na
companhia de seu conhecido RUBENS DE TAL, onde, cerca de meia noite
chegou acompanhada de outras meretrizes, a mencionada RAIMUNDINHA,
a qual, ao vê-lo foi ao seu encontro, entretanto, notou que o declarante não
estava com intenção de sair em sua companhia.402

Por volta das três horas, quase ao término da festa, chamou um carro de praça para ir embora e
foi seguido por Raimundinha. Ela então entrou no carro e não quis sair, só restando a alternativa de
seguir viagem com ela até o Bar Caboclo, onde tentou fugir da mesma:

Que encontrando-se bastante alcoolizado faltou-lhe paciência para suportar os


puxavões de Raimundinha e, para livrar-se dela passou a batê-la, dando de
caminhar na direção de seu quarto; que, RAIMUNDINHA o seguiu
persistentemente, agarrando-se ao declarante por quase uma hora; que
esgotada sua calma resolveu afastar de qualquer maneira Raimundinha,
desferindo-lhe socos e pontapés até deixá-la caída na calçada próximo ao
cruzamento da avenida Mendonça Júnior com a rua Tiradentes; que
RAIMUNDINHA ainda se ergueu apanhando uma ripa tentando cacetá-lo;
que revidou com um violento empurrão prostrando-a novamente na calçada;
que notando que a mesma não mais se erguera e nem lhe perseguira, deixou
ali e dirigiu-se ao seu quarto, jamais presumindo que os socos e pontapés
desferido em RAIMUNDINHA ocasionassem sua morte, ficando surpreso ao
saber que a mesma fora encontrada morta no mesmo local onde caíra em

401 Ibidem, p. 7.
402 Ibidem, p. 7.
143

consequência do empurrão. [...] Que o desfecho trágico de citada desavença


deixa o declarante bastante emocionado e triste, isto porque tinha em
RAIMUNDINHA, não só uma amante, mas antes de tudo uma amiga, pois
algumas vezes a mesma lhe dava pequenas importâncias em dinheiro.403

A todo momento, o acusado reitera a informação de que a vítima insistia pela sua
companhia, o que é corroborado pelos depoimentos das testemunhas. Ele usa desse argumento
para justificar as agressões sofridas por Raimundinha. Note-se que após uma suposta reação
dela, ele a empurrou, viu que ela ficou jogada no chão, mas não se preocupou se ela tinha ficado
desacordada, pois somente foi embora para dormir em seu quarto. Ao final de seu depoimento,
o que percebemos é que a tristeza e a emoção a que ele se refere não derivam de um sentimento
afetuoso por Raimundinha, mas da falta das quantias em dinheiro que ela lhe dava.
Neuza, brasileira, paraense, solteira, sem profissão definida, com 36 anos de idade,
residente na avenida Mendonça Júnior, próximo ao Bar Caboclo, era vizinha de Raimundinha
e disse que no momento em que Belisca aplicava socos e pisões na vítima, Antonio interferiu e
pediu para ele parar de bater nela, mas Maria Raimunda gritava: “pode me matar de porrada
mas eu não te largo”. Depois disso, Belisca disse que ia para casa, mas Maria Raimunda saiu
atrás dele. Todos acharam que ela tinha ido dormir com o acusado e ficaram surpresos com a
notícia de sua morte.404 Maria Tereza, brasileira, natural de Amapá, solteira, com 20 anos de
idade, sem profissão definida, residente na avenida Mendonça Júnior, sabendo ler e escrever,
era vizinha da vítima havia três anos, vivendo sob o mesmo teto, mas em cômodos separados.
Assistiu quando Belisca atingia a vítima com bofetadas e pontapés no corredor da casa
mencionada. Disse que as brigas entre os dois eram rotineiras e nenhuma das testemunhas
imaginou que essa briga teria um fim trágico.405 Maria Nilza, brasileira, natural de Amapá,
solteira, com 18 anos de idade, sem profissão definida, residente na avenida Mendonça Júnior,
analfabeta, era vizinha de quarto de Maria Raimunda havia um ano e sete meses. No dia do
crime, viu Belisca e Maria Raimunda no Merengue, mas em mesas separadas. Voltou a vê-los
na casa de cômodos do Compadre Artur, onde moravam, próximo ao Bar Caboclo. Presenciou
a briga dos dois e quando Antonio interferiu, Maria Raimunda respondeu que era briga entre
ela e seu “macho”.406
Com a finalização dos depoimentos das testemunhas e término do inquérito, o Ministério
Público denunciou, por meio do promotor Geraldo Telles, que o crime fora perpetrado por

403 Ibidem, p. 7-8.


404 Ibidem, p. S/N.
405 Ibidem, p. S/N.
406 Ibidem, p. S/N.
144

motivo fútil e meio cruel. Na sua instrução criminal, em 21 de fevereiro de 1973, Belisca negou
as acusações e disse que deu tapas no rosto da vítima, mas não acreditava que isso tenha causado
a sua morte. No mês seguinte ao crime, já preso, o acusado mudou a sua versão inicial, numa
tentativa de atenuar a sua pena.
Nesse dia, as testemunhas foram ouvidas novamente. Santos, brasileiro, funcionário
público, casado, com 32 anos de idade, era Comissário de Polícia e soube por meio de
informações “que o acusado frequentava constantemente o meritrício desta Capital; que o
depoente foi informado que a vítima costumava a dar dinheiro ao acusado; que a uns três meses
a vítima era xodó do acusado”.407 Antonio, relatou que mudou de profissão e agora trabalhava
como braçal, bem como mudou de endereço para a rua General Rondon. Acrescentou ao seu
depoimento que o acusado não era de beber, mas Raimundinha era escandalosa quando estava
embriagada:

Que a vítima tinha um xodó com o acusado há cerca de um a dois meses; que
de vez em quando o acusado dormia na casa da vítima; que de uma certa vez
a vítima comprou um corte de tecido para o acusado; que o depoente veio da
boate Merengue com destino ao Bar Caboclo; que o depoente morava na época
do crime com uma mulher da vida e tomava conta de um bar São José; que o
depoente ouviu falar que o acusado havia espancado a vítima; que a briga com
o acusado era decorrente de ciúme da vítima em relação ao acusado.408

Esse depoimento confirma que Raimundinha dava presentes e dinheiro para Belisca.
Inclusive, isso poderia ser uma forma dela manter seu “xodó” próximo a ela. Ela dependia
emocionalmente dele que recebia pequenas recompensas financeiras para estar junto dela. Em
Manaus, Pereira Filho identificou a transição do cliente para o xodó, ou seja, o momento em
que a relação comercial ganha contornos de envolvimento afetivo e sexual. Mas, diferentemente
do caso de Raimundinha e Belisca, “o xodó manauara bancava integral ou parcialmente a
prostituta, ou apenas demonstrava uma preferência no convívio e na relação sexual com ela
dentro do puteiro”.409 Já Belisca não sustentava Raimundinha, pelo contrário, recebia dinheiro
dela. Não sabemos se eles se conheceram em um puteiro, nas ruas da cidade, em dançarás ou
em qualquer outro lugar. Do mesmo modo, não sabemos se algum dia ele foi cliente dela e se
foi a partir dessa relação que ele se tornou seu xodó.
Neuza, brasileira, desta vez tem como profissão doméstica, declarou que estava com a
vítima na boate Merengue, quando o acusado chegou e insultou Raimundinha e “que terminado

407 Ibidem, p. 44-45.


408 Ibidem, p. 46.
409 PEREIRA FILHO, Raimundo Alves, Op. Cit., p. 75.
145

o serviço na Boate Merengue a vítima saiu acompanhada do acusado”. 410 Ao responder às


perguntas do Promotor Público disse “que o acusado batia na vítima porque ambos tinham
ciúme um do outro; que no corredor do Bar Caboclo o acusado bateu muito na vítima; ficando
a vítima caída ao chão; que o acusado batia enquanto a vítima estava caída”. 411 Maria Nilza,
também descrita como doméstica nessa fase do processo, ao contrário de Neuza, disse que o
acusado não falou palavras ofensivas para Raimundinha. Também relatou que a vítima estava
embriagada, mas não sabia se Belisca também estava.412 Maria Tereza, doméstica, respondeu
que após bater na vítima na casa de cômodos, o acusado se retirou e Raimundinha correu atrás
dele, dizendo que ele poderia matá-la de porrada, mas ela iria atrás dele. Maria Tereza disse
que Belisca estava um pouco embriagado, mas Raimundinha estava muito.413
Neuza, Maria Tereza e Maria Nilza foram descritas como “sem profissão definida” na
delegacia. Depois, na instrução criminal, foram definidas como “domésticas”. Contudo,
sabemos que elas eram meretrizes, inclusive eram vizinhas de cômodo de Raimundinha e
faziam seus serviços nos mesmos lugares, como Neuza informou. Percebemos, com isso, que
frequentar as boates, dançarás e afins, não era algo que se fazia somente para fins de diversão,
mas também para trabalhar. As três mulheres são enfáticas no dizer que as brigas e agressões
entre o casal eram rotineiras, tanto que não imaginavam que Raimundinha teria o fim que teve
por causa do espancamento promovido por Belisca. Essa normalização das agressões, nos leva
a pensar que o cotidiano dessas meretrizes era marcado por violências e brigas de casal, algo
banalizado e que por isso não era causa de preocupação.
Ademais, as quatro meretrizes citadas no processo moravam na mesma casa, mas não
compartilhavam cômodos. As casas de cômodo ou de habitação coletiva podem ser definidas
como locais de residência das prostitutas, locais que não eram usados para trabalho. Claro que
concluir isso a partir de um processo pode ser precipitado, mas ao menos para Raimundinha,
Neuza, Maria Nilza e Maria Tereza é possível que esta seja uma conclusão acertada.
Raimundinha e Maria Nilza conviviam com seus companheiros Belisca e Antonio,
respectivamente, em seus cômodos. Raimundinha e Neuza tiravam serviço no dançarás
Merengue: a primeira saiu de lá e foi atrás de Belisca, já a segunda voltou para sua casa sem
um cliente ou um “xodó”. Assim, a residência delas podia ser usada apenas para casos de maior
intimidade ou afeto, e não para encontros com seus clientes.

410 AFCM. Processo nº 2.714 de 24 de janeiro de 1973, p. 47.


411 Ibidem.
412 Ibidem, p. 48.
413 Ibidem.
146

Após a instrução criminal, em documento endereçado ao Juiz de Direito da Comarca de


Macapá, o Promotor Público Geraldo Telles requereu a denúncia do réu como homicídio
qualificado por motivo fútil e meio cruel, nos termos da denúncia:

MM. Julgador.

A materialidade do delito e a autoria do mesmo estão mais que patentes


nestes autos.
O denunciado, que era “xodó” da vítima, dormindo sempre ou
frequentemente no quarto desta, decidiu, em a noite da ocorrência, não dormir
com a mesma. Daí a exigência da amante que, sendo prostituta o tinha como
seu homem, dedicando-lhe parte das noites e sendo mesmo generosa em
dinheiro e presentes para com o denunciado – julgava-se naturalmente
merecedora da companhia deste naquela noite, à semelhança do que faziam
com frequência.
E, assim, insistiu em seu propósito, passando a persegui-lo à medida que
verificava mais acentuada a negativa do amante em comparecer ao ninho de
amor de ambos naquela noite.
A sua negativa foi tomando caráter de violência até chegar ao ponto
extremo de espancá-la com socos e pontapés de tal modo que a prostrou por
terra, na rua, alta madrugada, desfalecida ou já quase morta, e ali a deixou ao
Deus dará, de maneira cruel depois de havê-la espancado também de modo
cruel.
Os depoimentos são veementes contra o denunciado que, tal como a vítima,
se achava embriagado.
O denunciado, pelo que existe nos autos, é frequentador do meretrício, com
o grau máximo de degeneração moral, qual seja a de amante da meretriz e
vítima e também seu explorador.
Por tudo isso, conclui-se seja o denunciado de alta periculosidade e de mau
comportamento moral e social.414

Como citado, o Promotor Geraldo Telles denunciou Belisca por homicídio qualificado
por motivo fútil e meio cruel. Após a instrução criminal, ele seguiu com essa indicação. A partir
desse documento, Telles entende que o ato de dar dinheiro e presentes, além de dedicar parte
das noites, tão caras para as meretrizes, significava, para Raimundinha, o direito de ter a
presença de Belisca em sua cama. O Promotor narra o episódio da morte da meretriz cometida
pelo sapateiro para cumprir com o seu papel de acusador do suspeito. O final do documento é
esclarecedor sobre o que ele pensa a respeito do meretrício. Como frequentador das zonas de
meretrício de Macapá, o acusado foi considerado um degenerado moral, o que é agravado por
ser amante de uma meretriz e ser seu explorador. Pela violência usada nas agressões contra
Raimundinha, Geraldo Telles considerou Belisca como um indivíduo de alta periculosidade e

414 Ibidem, p. 50.


147

de mau comportamento moral e social, pela aproximação com o mundo da prostituição e relação
íntima com uma meretriz. Esse homem com tais características era um sujeito corrompido, com
facilidades para cometer crimes e ter comportamentos inadequados para o meio urbano e
desenvolvido idealizado pelas classes dominantes. Em nenhum momento, o Promotor atenua o
crime pela vítima ser uma prostituta ou por ter insistido na companhia do acusado, porém, ele
expõe a sua opinião sobre o meretrício ao final do texto. Uma opinião difundida por juristas e
médicos desde o século XIX, que viam a prostituição como símbolo da degeneração moral e
social que precisava ser combatida (higienizada e normalizada).
Já o advogado do réu, Cícero Borges Bordalo, argumentou que Belisca não teve a
intenção de matar Raimundinha e não assumiu esse risco:

Daí depreende-se, sob o ponto de vista jurídico-penal, que a tipificação legal


do fato, não sendo dolosa, configura-se plenamente em lesão corporal seguida
de morte, catalogada no disposto do parágrafo 3º, do art. 129, do Código Penal
vigente.
Realmente, o R., na noite do trágico acontecimento, foi insultuosamente
provocado pela vítima, com palavras condenadas pela moral e pelos bons
costumes, de modo reiterado, unicamente porque na citada noite desejava
recolher-se ao seu quarto de dormir, sozinho. Insolentemente, contudo, a
vítima queria ver cumprido seu desiderato: passar o restante daquela
malsinada noite com o acusado.
Considere-se, ademais, que a ação do acusado foi única e exclusivamente
dirigida no sentido de desvencilhar-se de sua companhia, “jamais presumido
que os socos e ponta-pés desferidos na vítima ocasionassem sua morte”,
consoante se lê às fls. 8, dos autos. Dessarte, não se evidenciou o ato volitivo
do acusado, a intenção de matar a vítima, mas sim lesioná-la.
Na espécie sob judice, de fato, reunem-se todos os elementos da “lesão
corporal seguida de morte”, quais sejam: a) uma lesão corporal voluntária; b)
o resultado “morte”, não querido pelo agente, nem mesmo eventualmente; c)
previsibilidade desse resultado. Houve, portanto, um concurso de dolo e culpa;
dolo no antecedente (lesão corporal) e culpa no subsequente (evento “morte”).
Diante do exposto, digne-se Vossa Excelência de desqualificar a imputação
formulada pela denúncia de fls. 2, dos autos, de vez que como ficou
exuberantemente demonstrado, permissa venia, o crime não foi cometido por
motivo futil e por meio cruel, mas sim trata-se de lesão corporal seguida de
morte […].415

A partir daqui o advogado de Belisca constrói a sua defesa para mudar a tipificação do
crime cometido. Diferentemente do Promotor Geraldo Telles, o advogado Cícero Bordalo
justifica as ações de Belisca pela insistência de Raimundinha em ter a companhia dele e pelos
insultos que ela dirigiu a sua pessoa. Ele agrediu a meretriz somente para tentar livrar-se dela,

415 Ibidem, p. 51-52.


148

não tivera a intenção de matá-la, mas só de lhe machucar. Com isso, ele contesta a tipificação
do crime de seu cliente porque se ele não teve a intenção de matar, não poderia ser denunciado
por homicídio, mas sim por lesão corporal seguida de morte. Bordalo posiciona Belisca como
sujeito passivo no crime, alguém que apenas reagiu ao comportamento insolente e imoral da
meretriz Raimundinha. Nota-se também a banalidade dos termos usados para retratar as lesões
causadas na meretriz, mesmo sendo as testemunhas são unânimes em denunciar a excessiva
violência usada pelo acusado. Ele não cita o histórico de agressões do casal porque isso não era
favorável ao seu cliente. Essa disputa discursiva faz parte da construção de um processo
judicial, no qual tanto acusador quanto defensor tentam convencer o juiz ou o júri popular, e só
um deles sai vencedor.
Mariza Corrêa aponta que acusado e vítima são julgados a partir das disputas entre a
defesa e a Promotoria, “cada um deles usando a parte do ‘real’ que melhor reforce seu ponto de
vista”416. Assim, os atores jurídicos usam somente o que lhes favorece para convencer o júri e
o juiz. Corrêa explica que a maior estratégia do advogado é convencer sobre a “conduta
adequada de seu constituinte e o comportamento inadequado da vítima”417. Justamente o que
Cícero Bordalo fez para defender Belisca, pois este queria dormir sozinho na fatídica noite, mas
Raimundinha tomada pelo desejo da companhia de seu amante, lhe perseguiu e lhe provocou
com ofensas.
Após o recebimento desses documentos, o juiz de Direito José Clemenceau Pedrosa
Maia declarou:

As partes arrazoaram no prazo legal, requerendo o Órgão do Ministério


Público a pronuncia do réu, nos termos da denúncia, pleiteando o defensor do
réu a desclassificação do crime para lesão corporal seguida de morte.
[…]
Compete, porém, ao Tribunal do Júri julgar os crimes dolosos contra a vida.
Assim, somente o Júri poderá decidir se o réu teve o “animus necandi” a
intenção de matar (homicídio) ou agiu apenas com intenção de ferir, não tendo
querido nem mesmo eventualmente, o resultado morte, hipótese em que o
crime a configurar-se será o de lesão corporal seguida de morte.
Cabe, pois, ao Tribunal Popular, examinando melhor as provas dos autos
decidir livre soberanamente o caso conforme parecer mais acertado.418

416 CORRÊA, Mariza. Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: Graal, 1983,
p. 40.
417 Ibidem, p. 61.
418 AFCM. Processo nº 2.714 de 24 de janeiro de 1973, p. 54-55.
149

No julgamento do Tribunal de Júri Popular no dia 30 de maio de 1973, o réu foi


interrogado:

Anteriormente viveu em estado de concubinato com a vítima; que,


posteriormente o interrogando terminou com a vítima suas ligações sexuais;
porque não deu certo; que, no dia e hora mencionados na denúncia o
interrogando se encontrava na boate Merengue, com um companheiro quando
momento depois chegou a vítima; que a vítima ao chegar a boate Merengue
começou a perturbar o interrogando não deixando que o mesmo brincasse com
as outras mulheres.419

Belisca disse que após Antonio lhe aconselhar a parar de agredir a vítima, e que aceitou
tal conselho e foi embora. Mas a vítima continuou a ir atrás dele, proferindo xingamentos como:
fresco, chupão e filho da puta. Então, “enraivecido com as palavras de baixo calão contra a sua
reputação o interrogado desferiu uma tapa na vítima tendo a mesma caído”.420 Por ciúmes,
Raimundinha atrapalhou as investidas de Belisca sobre outras mulheres. Esse foi o início de
toda a confusão, mas não podemos ignorar a declaração feita por Neuza de que Belisca insultou
a vítima ao chegar ao dançará Merengue, informação que Maria Nilza nega. Seja qual for o
estopim da briga do casal de amantes, o acusado dá ênfase aos xingamentos recebidos pela
vítima, palavras que lhe teriam causado revolta.
Alessandro Cerqueira Bastos, a partir da contribuição teórico-metodológica de David
Garrioch421, explica que os xingamentos podem ajudar a entender os significados da construção
das masculinidades de determinados contextos. Isso porque ser chamado de “filho da puta” é
uma ofensa à mãe, então réus e vítimas “que viviam em um universo cultural matrifocal no qual
a figura materna era supervalorizada e, ao mesmo tempo, associada à dependência da proteção
masculina, sentiram-se impelidos a resolverem suas diferenças por meio da violência”422. Esse
xingamento não ofendeu somente Belisca, mas feriu simbolicamente sua mãe. Influenciado
pelo discurso dominante de que mãe é sagrada, em conjunto com a ideia de que o homem – seja
filho, irmão ou marido – deve proteger essa figura, ele investiu violentamente contra
Raimundinha para defender a honra de sua genitora e, por consequência, reforçar a sua
masculinidade. Já o xingamento de “fresco” era um golpe na identidade de macho e de homem
heterossexual de Belisca, pois esse é um termo utilizado para se referir, de forma estereotipada,
a homens homossexuais, mas também utilizado para ofender homens heterossexuais com o

419 Ibidem, p. 71.


420 Ibidem, p. 72.
421 GARRIOCH, David. Insultos Verbais na Paris do século VIII. In: BURKE, Peter e PORTER, Roy (orgs.)
História social da Linguagem. São Paulo: Unesp, 1997.
422 CERQUEIRA BASTOS, Alessandro, Op. Cit., p. 109.
150

objetivo de manchar sua honra de macho. A reação de Belisca foi pautada nas referências de
gênero construídas na sua experiência, pois reagir com violência diante de ofensas e insistências
de uma mulher era uma forma de simbolizar o poder do gênero masculino, construído
socialmente e culturalmente sobre o corpo feminino.
Vamos voltar ao processo. Na disputa dos discursos, venceu a defesa do acusado. O Júri
Popular qualificou o crime como lesão corporal e seu julgamento passou a ser de competência
do Juiz José Clemenceau Pedrosa Maia. Foi condenado a cinco anos de reclusão pelo artigo
129, conforme o Código Penal Brasileiro. Em agosto de 1975, Belisca conseguiu a liberdade
condicional por ter cumprido mais da metade da pena. Em 1978, sua pena privativa de liberdade
foi extinta. O julgamento foi noticiado nas páginas do jornal:

Na quarta-feira, ainda com o dr. Geraldo Telles, na Promotoria e o dr. Cícero


Bordalo na defesa, realizou-se o julgamento do processo criminal de Cristóvão
que, aproximadamente, um ano atrás, matou a socos e pontapés, uma mulher
de vida livre, após o término de uma festa no salão “Merengue”.423

Nessa notícia, Raimundinha não tem nome, ela é apenas uma mulher de vida livre tendo
a morte como infortúnio, enquanto o periódico dá destaque aos homens “da lei”. O jornal
registra que o crime havia ocorrido em 1972, mas ele tinha acontecido meses antes. O
julgamento foi célere nesse caso, em comparação com outros processos criminais. Por exemplo,
a maioria dos processos de crimes de sedução eram arquivados porque a punibilidade era
extinta, assim como os processos de lesões corporais. Isso nos leva a identificar que a gravidade
do crime levava a um julgamento rápido.
Ana Ottoni, ao pesquisar sobre os casos de homicídio envolvendo meretrizes no Rio de
Janeiro entre os anos de 1896 a 1925, afirma que os amantes de meretrizes sabiam e eram
coniventes com o trabalho sexual praticado por elas.424 A partir da imprensa, ela identificou
dois tipos de homens que foram assassinos de prostitutas: “homens que matavam meretrizes
porque eram vítimas das seduções maléficas dessas mulheres e indivíduos que eram pintados
como réus dos crimes que cometiam, uma vez que eram considerados ‘cáftens’”.425 Belisca não
se encaixa nesses modelos, pois nem foi vítima da sedução de Raimundinha e nem era seu
“cafetão”. Estava, na verdade, mais próximo de ser seu gigolô.426 Belisca, seja por homicídio

423 MULHER que matou a irmã foi absolvida. Novo Amapá. Edição n° 1.686 de 02 de junho de 1973, p. 4.
424 OTTONI, Ana Vasconcelos. Flores do vício: Imprensa e homicídio de meretrizes no Rio de Janeiro.
Dissertação (Mestrado em História Social). Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007, p. 76.
425 Ibidem, p. 76.
426 Na Argentina havia um tipo de caftén, denominado de criollo: “Explorador, atuava individualizadamente nos
meios da prostituição de luxo. No Brasil, essa figura é identificada ao gigolô que, ao contrário do cafetão, explora
a mulher da qual se faz amante, sem exigir pagamento certo. In: RAGO, Margareth, Op. Cit., p. 307.
151

qualificado ou lesão corporal grave, assassinou Raimundinha por ódio e desprezo pelo que ela
era e representava: primeiro por ser mulher, segundo por ser prostituta. O valor que ela tinha
para ele derivava do que a vítima podia lhe oferecer: presentes e dinheiro. No seu depoimento
e no das testemunhas sobressaem relatos de atitudes violentas misóginas que culminaram na
morte de Raimundinha.
Ottoni ressaltou que, para a imprensa do Rio de Janeiro, as meretrizes eram mulheres
que não amavam porque “elas tinham o ‘vício’ do dinheiro e/ou do sexo que fazia obliterar o
seu amor”427. Ou seja, por serem viciadas em dinheiro e em sexo, não eram capazes de amar
como as mulheres “saudáveis”, essas mulheres saudáveis eram as mães e esposas fiéis aos
maridos. Então os jornais reforçavam que as meretrizes “sofriam intensamente por amor,
principalmente quando este era repudiado pelos companheiros”428, e era na separação que elas
cometiam os maiores “desatinos” (como suicídio) por causa de seu “amor viciado”. A autora
destaca que os jornais representavam a morte das meretrizes como fruto da degeneração e a
última consequência das inúmeras agressões advindas de seus amásios, porque elas “tinham um
fascínio pelo amor que trazia desgraças e morte”429. Desse modo, Ana Ottoni destaca que a
imprensa acreditava que as meretrizes gostavam de ser espancadas, e que isso poderiam
suportar, mas uma separação não.
Margareth Rago analisa a relação do gigolô/caftén com a prostituta, porque esse homem
era a principal referência pessoal para essa mulher:

Nessa relação, a prostituta – figura extremamente fragmentada na


multiplicidade das relações despersonalizantes – podia refazer
psicologicamente sua identidade. Como um espelho, ele devolvia-lhe uma
imagem completa, reconhecendo-a como indivíduo, ao contrário dos
fregueses para quem representava um órgão e uma performance. […] Sob o
olhar do gigolô, a prostituta podia reconstruir sua auto-imagem unitária e
inscrever-se novamente num espaço psíquico fundamental para a vida em
sociedade.
Neste jogo em que ela referendava a virilidade e a importância do homem,
mesmo que não fossem amantes, como acontece entre muitos caftens e
meretrizes, em que ela também constituía e sustentava a imagem do parceiro
como figura necessária, protetora e exploradora ao mesmo tempo, o apanhar
e o bater, por mais violentos que fossem, possuíam um certo encanto:
constituía-se como uma dimensão afetiva da relação homem-mulher pela qual
ambos se posicionavam no mundo como ser frágil e ser superior.430

427 OTTONI, Ana Vasconcelos, Op Cit., p. 103.


428 Ibidem, p. 104.
429 Ibidem, p. 104.
430 RAGO, Margareth, Op. Cit., 315-316.
152

Na vida de Raimundinha, era esse homem, ou melhor, a relação e os sentimentos que


ela sentia por ele que faziam com que se sentisse humana, amada e querida, diferentemente da
relação de trabalho estabelecida com os clientes. Porém, as brigas constantes e a dependência
emocional que ela tinha em relação a ele foram a marca do casal. Rago afirma que a aceitação
das agressões por parte das meretrizes fazia parte dos papéis de gênero exercidos por homens e
mulheres em uma relação, a mulher como um ser frágil que deve ser protegida ou que deve
obedecer ao homem, que é forte, viril e superior a ela.
Raimundinha queria a companhia de Belisca a todo custo e isso custou a sua vida. Ele
tinha um trabalho e um quartinho alugado, mas aceitava agrados e dormia frequentemente no
cômodo alugado de Raimundinha. Influenciado pelos códigos de gênero, entendia que a
meretriz deveria assumir o papel de sua serva. Porém, quando ela buscava que o seu sentimento
e seus desejos fossem correspondidos, os desentendimentos entre o casal e a violência tomavam
conta da relação. Pelos depoimentos, percebemos que os xingamentos utilizados pela meretriz
tinham como objetivo não só ofender, mas também chamar a atenção de Belisca para que ele
não fosse embora. Para Raimundinha, era melhor ser agredida e ter a companhia de seu amado,
do que ficar sozinha porque o sentimento que ela tinha por ele era o que a fazia se reconhecer
como pessoa novamente.

3.3 “Aqui é puteiro, puteiro não tem regra”: memórias de uma dona de boate em Macapá
Aos 83 anos de idade, Maria Albuquerque vive às margens do Rio Pedreira, na zona
rural de Macapá. Atualmente, tem um restaurante onde recebe clientes que procuram tomar
banho de rio aos finais de semana e feriados, e amigos dos tempos em que foi proprietária de
uma muito conhecida boate. Apesar da idade, Maria é muito ativa e tem como principal lazer
pescar no seu pequeno barco. Quando lhe disse que a minha avó havia nascido na comunidade
de Ipixuna Miranda, não muito longe dali, falou com orgulho e empolgação que às vezes vai
até esse rio para pescar. Apesar de não trabalhar “na noite” há muitos anos, ainda tem hábitos
noturnos. Passa a noite em claro e costuma acordar próximo ao meio-dia. Seu filho disse ser
consequência dela ter passado tantos anos trabalhando com boate. Muito simpática e receptiva,
Maria contou a sua história sobre a boate, a relação com as “meninas”, políticos, delegados,
funcionários e clientes.
Nascida na Paraíba, ela fugiu de casa aos 13 anos com um namorado e foi morar na casa
dele. Com a fuga, sua família contactou a polícia para realizar o casamento com o jovem de 22
anos. A família dele alegou que o rapaz não devia nada à Maria, mas a família dela discordava.
Para não ser morto pelos irmãos da jovem ou condenado por crime de sedução, eles tiveram um
153

casamento civil “na polícia”. No ano seguinte, em 1953, Maria deu à luz a seu primeiro filho,
fruto de seu casamento. Mas, sua vida não era boa com seu marido. Ela fugiu e seus pais ficaram
com a criança. Seu primeiro destino foi Pernambuco, onde procurou a sua cunhada, que não
quis recebê-la por medo de represálias de seu irmão, marido de Maria. Ela teve que ir embora
e foi para Fortaleza, no Ceará. Disse que não deu certo e logo foi para Natal, mas lá não deu
certo também:

Voltei pra Fortaleza e conheci uma menina que disse:


– Ah, menina, tá dando muito emprego no Norte. Belém…
Aí ela foi falando os lugares, Santarém, Manaus, ela falava e eu me
entusiasmei com aquilo.431

Interessante observar as sugestões dos lugares para migração. A oportunidade de


trabalho fez brilhar os olhos de quem estava em um contexto de insegurança, como era o caso
da nossa entrevistada. Maria contou que essa mulher propôs uma viagem para Belém e ela
aceitou, mas ao chegar na cidade se deu conta de que se tratava de uma boate:

Chegou em Belém, meu Deus do céu! Era uma boate e eu digo:


– Ah, dona Cleonice, eu não quero ficar aqui, pra eu ficar aqui a dona da
casa vai mandar eu… fazer o que não devo.
A dona da casa falou:
– O que você não deve fazer? Você é virgem?
Não senhora.
– Já teve filho?
– Já sim, senhora.
– Pois é, o quê que eu posso mandar você fazer o que não deva fazer?
E eu digo:
– Ah, o que não presta.432

Maria não foi informada de que o seu local de destino em Belém era uma boate. O
diálogo com a proprietária sugere que houve um desentendimento. De um lado, Maria disse que
não deve fazer serviços sexuais porque “não presta”. Ela via esse trabalho como indigno e
degradante, principalmente porque seria “mandada”. De outro, a dona da boate questionou se
ela era virgem e tinha filho, e como Maria respondeu negativamente à primeira pergunta e
positivamente à segunda, a mulher entendeu que ela estava apta à profissão de meretriz. Isso
porque, no discurso hegemônico, se uma mulher não é mais virgem, ela não tem o que perder,
pois a sua honra não existe mais. Assim, a nossa entrevistada saiu dessa casa e conheceu uma

431 Entrevista com Maria Albuquerque, realizada por Amanda Cristina Souza da Silva, em 10 de dezembro de
2021.
432 Ibidem.
154

senhora que morava perto de Macapá. Em 1958, passou a cuidar dos filhos desta mulher por
um tempo em algum local fora dos limites urbanos da cidade, mas logo saiu de lá e pegou um
transporte para Macapá:

Vim pra Macapá, conheci uma moça que trabalhava no hospital. Quando eu
cheguei lá em Macapá, eu cheguei parece que doente. Fui no hospital e lá ela
conversou: onde você mora? E eu comecei a explicar, eu não morava em lugar
nenhum porque eu tinha saído duma casa, ido não sei pra onde.
– Você sabe fazer o quê?
– Eu faço de tudo.
Aí ela me botou na casa dela, essa menina do hospital, me botou lá. Aí,
conclusão cortando isso aí, eu fiquei lá um tempo com ela. Belo dia eu conheci
um senhor idoso […]. Ele vendia costela de porco, churrasquinho ele fazia,
assim de rua na noite. […] Fui trabalhar com ele.433

Apesar da insegurança financeira e de não ter o que comer ou onde morar, Maria
conseguiu estabelecer redes de solidariedade por onde passou e trabalhava com o que
conseguia. A mulher do hospital lhe deu abrigo, até ela conhecer um senhor chamado Luciano
e começar a trabalhar com ele. Certa noite, uma mulher chegou para conversar:

Era amiga do Luciano, amiga dele, chamava-se Józima. Era professora do


Amapá. Tinha um companheiro com o nome Costinha, era um prático de
navio. E ela tinha uma boate que não funcionava mais porque o Costinha não
deixava. […] Era professora e tinha [a boate] por debaixo dos panos, alguém
tomava conta pra ela.434

Aqui, temos uma confirmação de que algumas donas de boates e pensões não eram ou
haviam sido prostitutas. Antes de ser dona de boate, Maria trabalhava com serviços domésticos
e vendia espetinho com Luciano. Já Józima, conciliava a profissão de professora com a
administração da boate, mas como Maria bem pontuou, tinha quem tomasse de conta do
empreendimento por ela e só abandonou a gestão da boate porque seu companheiro não
aprovava tal atividade. Józima continuou contando sua história e disse que ia fechar ou alugar
a boate. Maria pensou ser uma boa oportunidade para ela. Depois, perguntou a Luciano sobre a
natureza da casa e ele disse ser uma boate, mas ela só acomodava mulheres, não tinha festa. Ela
pediu para Luciano falar com Józima, pois se dispunha a lugar. Porém, Maria não tinha dinheiro.
Contou sua história para Józima e disse que estava em Macapá para trabalhar. Józima aceitou
“fazer negócio” com ela, mas ela precisava assinar doze promissórias de duzentos cruzeiros,

433 Ibidem.
434 Ibidem.
155

equivalentes a um ano de pagamento. Em 1964, ela iniciou as atividades da boate. Porém,


nenhuma mulher morava na casa:

Só fiquei com o lugar, [para] ajeitar e começar a chamar gente. E assim foi o
início da minha vida em Macapá foi esse. Daí arrumei a casinha, arrumei tudo,
ajeitei e não podia comprar nada porque não tinha dinheiro, tinha que primeiro
movimentar. Mas como Macapá naquela época era famoso, Macapá onde o
povo chegava e falava: Ah, Macapá é o lugar.435

Quando perguntada sobre a divulgação da boate disse que os homens levavam “as
meninas” e nunca foi buscar nenhuma, pois elas iam, gostavam e começavam a morar aí. A
boate funcionava no turno da noite e durante o dia era apenas espaço de moradia.

E pelo menos a minha casa era respeitada, não entrava polícia, não entrava
quem brigava, porque quem brigava eu chamava com toda educação e
explicava a situação. Depois que passou a morar meninas comigo, todo mês
eu tava na polícia. Chegava meninas, apresentava lá, registrava. Na outra
semana, hospital.436

O “Registro de Meretrizes” era feito na Terceira Delegacia, que Maria informou ficar
localizada no perímetro entre as praças Veiga Cabral e Isaac Zagury. Na República do Mangue,
Juçara Leite afirma que “a prosperidade de um bordel dependia da fama de seus atributos, entre
eles a limpeza, a organização e a segurança. Por isso, as cafetinas aceitavam a disciplinarização
policial”.437 Essa disciplinarização policial ocorria por meio de fichas de meretrizes. As fichas
continham informações de saúde, mas também de comportamento. Uma prostituta “fichada”
estava suscetível a ter suas “falhas” registradas. Caso tivesse histórico de doença, embriaguez,
roubos e desordem na ficha, poderia ter seu trabalho dificultado ou proibido pela polícia.438 De
acordo com Sidney Lobato, o “Registro de Meretrizes” no TFA continha os dados pessoais e
os motivos pelos quais as mulheres enveredaram nos caminhos da prostituição439; mas, a partir
da fala da entrevistada, acreditamos que o histórico de saúde também era anotado. Maria relatou
que registros precisavam ser feitos enquanto as meninas fizessem programa e eram atualizados
mensalmente. Já na polícia isso ocorria somente uma vez.
Maria levava as meninas assiduamente para fazerem exames no posto de saúde, e na
entrevista destacou: “se alguém dissesse que entrou lá, ficou com uma das garotas e pegou

435 Ibidem.
436 Ibidem.
437 LEITE, Juçara, Op. Cit., p. 107.
438 Ibidem.
439 LOBATO, Sidney. Op. Cit., p. 219.
156

doença, eu processava”.440 Em diversos momentos de nosso diálogo, ela usou os termos “eu
processava” e “mandava prender”, isso indica o uso que ela fazia das instituições do Estado e
até mesmo uma certa familiaridade com as autoridades do TFA. No começo, ela conseguiu
realizar melhorias no local:

Agora, minha filha, eu era cozinheira, eu era garçonete, eu era arrumadeira de


quarto, era tudo. E fui melhorando o ambiente, o lugar e transformei ele em
um bom local pras meninas. E elas viviam comigo e gostavam muito. Fazia
aniversário delas. Era como uma mãe, eu jovem, e era como uma mãe pra elas.
Então por isso que eu acho que Deus me ajudou por isso.441

Em nenhum momento, Maria se refere às mulheres que trabalhavam em sua boate como
prostitutas, pois sempre as chamava de “meninas”. Ela também não se identificava como
cafetina, aliás, não encontramos sequer menção a ela com esse termo em nenhum lugar. Parece
que a figura do cafetão e da cafetina não existia no TFA, ou que os sujeitos aí residentes não
utilizam essas palavras. Quem era dono ou dona de boate era percebido apenas nestes termos,
a exemplo do proprietário da boate Xadrezão, citado na segunda seção.
Claudielle Silva explica que as iniciantes no mundo da prostituição ou recém-chegadas
nas casas recebiam as primeiras orientações das donas dos estabelecimentos e das prostitutas
experientes. Ela destaca que algumas cafetinas haviam sido meretrizes quando jovens e tinham
sofrido explorações. Mas, quando alcançavam uma posição de privilégio diante das demais
prostitutas, reproduziam o que haviam sofrido outrora. Além da exploração de que eram
vítimas, “as prostitutas recém-chegadas aprenderam com as cafetinas os segredos do ofício, as
regras implícitas e explícitas de convivência. Essas mulheres mais velhas contribuíram com sua
experiência e proteção”.442 A relação de donas de pensões/cafetinas e meretrizes era complexa.
Se por um lado poderia haver exploração financeira e de trabalho, por outro as mais velhas
orientavam as jovens no serviço sexual e na convivência cotidiana nas casas.
No decorrer da entrevista, Maria falou sobre momentos em que protegeu as que
moravam e trabalhavam em sua boate. Ela destacou que se enxergava como uma mãe para essas
meninas, que estavam em Macapá sozinhas, sem família, assim como ela estava anos antes.
Esse papel de “mãe” não era incomum para as cafetinas e donas de boates ou cabarés. Em São
Paulo, no início da República, muitas prostitutas romperam com os laços familiares, se não total
ao menos parcialmente. Margareth Rago afirma que elas buscaram constituir laços de amizade

440 Entrevista com Maria Albuquerque, Op. Cit.


441 Ibidem.
442 SILVA, Claudielle, Op. Cit., p. 60.
157

e companheirismo com as suas iguais e com as proprietárias de bordéis. Essas últimas eram
privilegiadas nessa relação, porque eram vistas mais como figuras maternais e protetoras do
que como exploradoras.443 Rago acrescenta que essa era uma relação ambígua, porque ao
mesmo tempo em que a proprietária da casa era conselheira e confidente, a cafetina exercia
controle sobre o cotidiano da meretriz. Ela compara essa relação com a de um patrão exigindo
produtividade dos operários de uma fábrica.444 Esse controle cotidiano também pode ser
observado a partir da fala de Maria:

E outra coisa, as meninas que moravam comigo elas não bebiam, só moravam
se elas não bebessem. [...] Pelo menos em casa elas não podiam beber, podia
fumar, usar droga não, não podia. E se bebessem, muitas delas, que eu não
podia mandar na vontade. Você sai com seu parceiro, com qualquer pessoa
que você quiser e lá você bebe, volta pra casa boa. Elas tinham a vida livre
também, não eram obrigadas a nada, por mim não.445

Bebida alcoólica era um item proibido para as meninas da casa de Maria, ao menos no
interior da residência. Fora dali elas podiam fazer o que quisessem, desde que voltassem
sóbrias. Havia regras a serem seguidas e não usar álcool ou drogas ilícitas, não eram as únicas.
Sair dos quartos só de camisola e babydoll também não era permitido. Elas precisavam vestir
uma blusa e uma bermuda para ficarem “tudo bonitinha na mesa sentada”. Como outra forma
de evitar problemas com a polícia, ela não aceitava menores de idade em sua casa, somente
meninas a partir de 18 anos: “Porque eu via muita fofoca de menina de menor nesses lugares
que prendia. [...] A polícia entrava e pegava bebendo lá, garoto, meninas. [...] Não, nunca quis.
Não quero essas coisas”.446 De fato, a boate de Maria não foi mencionada em nenhum dos casos
registrados nos processos criminais ou nas ocorrências analisadas em que meretrizes menores
de idade foram presas na rua ou em ambientes fechados.
Com o tempo, Maria já não cuidava da boate sozinha, pois contratara funcionários. Uma
gerente, um cozinheiro e uma arrumadeira. A gerente morava na boate com as meninas.
Inclusive, Maria já tinha conseguido comprar um terreno, para aí construir sua própria boate e
assim se livrar das dívidas das promissórias. Maria tinha residência própria, onde morava com
o marido, um engenheiro inglês que conheceu na sua boate, e com seus filhos. Ela ia todo dia
pela manhã para prestar contas com a gerente e pegar a lista de compras. Ficava durante o
expediente, mas ia para casa a fim de dormir com a sua família. Essa prática da dona não morar

443 RAGO, Margareth, Op. Cit., p. 262.


444 Ibidem, p. 266.
445 Entrevista com Maria Albuquerque, Op. Cit.
446 Ibidem
158

na pensão ou boate já foi identificada em Macapá. Em um inquérito de 1953, Sidney Lobato


encontrou o depoimento da meretriz Ercília Maria, que disse ser proprietária de uma pensão de
mundanas, mas não ia lá diariamente, pois só fazia isso quando precisava de dinheiro. Na sua
ausência, cada meretriz era responsável pelo seu quarto e despesas.447 Contudo, a boate de
Maria tinha uma estrutura de organização e uma gerente para cuidar do funcionamento na
ausência da proprietária, diferentemente da pensão de Ercília Maria.
Em outro momento, Maria disse que quando o Exército começou a fazer ronda na cidade
“ficou muito melhor, porque aí era a polícia do Território e era o Exército”.448 A entrevistada
afirma que a cidade ficou mais segura com as patrulhas do Exército. Porém, mais segura para
quem? Mais segura em quais lugares? Com certeza não para prostitutas que moravam,
trabalhavam e frequentavam os chamados inferninhos, porque soldados fardados as agrediam e
causavam frequentes tumultos em locais de diversão noturna e nas ruas da cidade. Ela fala de
um lugar de certo privilégio, porque conseguiu estabelecer boa relação com autoridades
governamentais e policiais do TFA, além de conseguir exercer controle e ditar regras no seu
estabelecimento para que ele não figurasse nas páginas policiais da imprensa e nos processos
judiciais. Não sabemos se essas ações dos soldados eram incentivadas pelo Exército, como uma
tática de censura moral ou se eram fruto de iniciativas individuais e coletivas de alguns
soldados. Perguntei também sobre a relação dela com a guarda territorial e a polícia. Como
vimos, em alguns locais, guardas territoriais ficavam de plantão dentro dos estabelecimentos.
Porém, não era o caso da boate de Maria:

Mas eles não entravam na sua boate?


Não, não entrava porque eu sempre cheguei com os delegados e falava: “Olha,
qualquer problema que tiver na minha casa eu quero que o senhor me chame
e resolva, não deixe que chegue polícia.” Porque em outros lugares a polícia
chegava, entrava, acendia as luzes na cara do povo lá. Qualquer boate tem
luzinha.449

Para ela, se a polícia entrasse e deixasse os clientes desconfortáveis, perderia a sua


autoridade de dona da casa. Para evitar isso, Maria se antecipava e conversava com os
delegados. A boate dela se distinguia das demais por ela ter conseguido estabelecer boas
relações com os delegados de polícia. Nos inferninhos, como ela chama, a polícia entrava sem
pudor algum e causava a exposição dos clientes. A prostituição da boate da entrevistada não

447 LOBATO, Sidney. Op. Cit., p. 198.


448 Entrevista com Maria Albuquerque, Op. Cit.
449 Ibidem.
159

era a mesma exercida nos inferninhos e nas ruas do TFA. Embora haja uma classificação de
baixo e alto meretrício450, entendemos que ela não se aplica ao local que estudamos, porque
Macapá não era um grande centro urbano com cabarés de luxo. Diferentemente de São Paulo,
Rio de Janeiro, Belém e Manaus. Raimundo Pereira Filho explica que na capital do Amazonas,
durante a Belle Époque, no auge da exploração da borracha, era possível fazer essa distinção de
alto e baixo meretrício, pois as prostitutas de luxo serviam aos “barões da borracha”, sendo
muitas delas europeias, especialmente francesas e polacas, e por isso despertavam o interesse
desses homens. Diferentemente das prostitutas mais pobres, que ofereciam seus serviços para
marinheiros, estivadores, operários e estudantes por um preço bem mais baixo.451 Pereira Filho
esclarece que as prostitutas do baixo meretrício em Manaus eram, em sua maioria, nordestinas
e amazonenses, da capital e do interior.452 Em Belém, a situação não era diferente, porque os
“coronéis da borracha” também tinham as suas cocottes estrangeiras, que exibiam seus vestidos
de luxo trazidos da Europa. Maria de Nazaré Sarges argumenta que economicamente os
“coronéis” eram dependentes de empresas da Inglaterra e dos Estados Unidos, porém, a sua
referência cultural era Paris.453 Consideramos que os limites do que era considerado luxuoso e
miserável eram tênues e fluidos no TFA. No entanto, é importante distinguir o estabelecimento
da entrevistada das demais boates, pensões e dançarás de Macapá e suas vilas e distritos. Ela
própria não identificava a sua boate como um prostíbulo ou cabaré:

Então tinha muito isso, não era propriamente dizer assim “Maria teve um
cabaré, um prostíbulo”. Não, era uma casa que abrigava-se mulher que viesse
de avião, não fui eu que mandei buscar.
– Tá aqui, delegado, elas vieram por conta própria.
Levava passagem, bilhete tudinho, mostrava. Era tudo registrado, tudo dentro
do limite. Pra evitar de… Por isso que eu levei a minha vida todinha sem
polícia me incomodar e eu incomodar a polícia.454

Como citado anteriormente, lenocínio é crime no Brasil. Maria afirma que não foi
buscar nenhuma mulher para se prostituir em sua casa, elas chegavam com o intuito de morar
na boate, e que aí se prostituíam por conta própria, o que não configura crime para Maria.
Contudo, não sabemos como era essa relação das meninas e Maria sobre o serviço da
prostituição. Quando perguntada sobre como era a convivência com elas, a entrevistada falou

450 Ver: RAGO, Luiza Margareth. Do Cabaré ao Lar: A utopia da cidade disciplinar. Op. Cit. 1985.
451 PEREIRA FILHO, Raimundo Alves. Op. Cit., p. 59-60.
452 Ibidem, p. 61-62.
453 SARGES, Maria de Nazaré. Belém: Riquezas Produzindo a Belle Époque (1870-1912). Belém: Paka-Tatu,
2010, p. 113.
454 Entrevista com Maria Albuquerque, Op. Cit.
160

que era boa, mas não deu detalhes. Não sabemos como os programas eram definidos, se os
pagamentos eram divididos entre as meninas e ela, por exemplo. Pela sua fala, vemos que os
delegados também viam assim ou não davam importância para isso, já que ela buscava seguir
todas as regras exigidas pela polícia, como fichar as meninas e levá-las ao hospital para fazer
exames. Mais do que isso, mostrava todos os documentos que pudessem comprovar que ela não
tinha ido buscar nenhuma delas. Certamente, Maria sabia da previsão legal do crime de
lenocínio e queria se precaver com a finalidade de mostrar que estava “dentro do limite” do
permitido pela lei.
Os delegados não eram as únicas autoridades com quem Maria estabeleceu boas
relações. Em determinado momento, ela menciona que até mesmo um dos governadores do
TFA chegou a indicar sua boate:

Na época do Doutor Nova da Costa455, […] ele mandava os que vinham de


Brasília e queriam se divertir, ele mandava: olha, diz que tem uma casa muito
boa aí, a casa da Maria, muito boa. E mandava o pessoal. Só tinha gente boa.
[...]
É, não tem bagunça, não tem polícia lá, não tem ninguém pra tá falando.456

Ao passo que funcionários do governo federal frequentavam a boate de Maria e não


eram incomodados pela polícia quando estavam aí se divertindo e fazendo uso do serviço da
prostituição, os frequentadores de outras boates não tinham a mesma sorte. Pela fala dela, não
ter bagunça e não ter polícia parecem estar diretamente vinculados, porque onde há confusão,
há polícia, o que não era o caso de sua boate. Pensando no papel do Estado de forma geral, se
a prostituição era controlada e higienizada, não sofria qualquer interferência violenta das
autoridades governamentais. Inclusive, poderia ser indicada para possíveis frequentadores pelo
próprio governador. Por outro lado, para os inferninhos, o que restavam eram as frequentes
invasões policiais e quebra-quebra promovidos por soldados do Exército.
Como citado anteriormente, no final do século XIX, houveram campanhas promovidas
por delegados para retirar prostitutas de algumas áreas do Rio de Janeiro. Sobre esse episódio,
Beatriz Prechet argumenta que a preocupação com a presença de prostitutas “moralmente
degradantes” era somente direcionada a mulheres negras e pobres, pois aquelas meretrizes que
frequentavam teatros não precisavam ser importunadas com a vigilância e o controle policial.
Elas ocupavam esses lugares ao lado de médicos, advogados e altos comerciantes.457 Podemos

455 Foi governador do Território Federal do Amapá de 1985 a 1990.


456 Entrevista com Maria Albuquerque, Op. Cit.
457 PRECHET, Beatriz. Op. Cit., p. 76.
161

afirmar que semelhante diferença de tratamento ocorria entre os inferninhos e a casa de Maria.
Enquanto os inferninhos sofriam com invasões policiais recorrentes, Maria não era incomodada
com guardas territoriais, soldados do Exército e policiais militares que à sua porta viessem
prender suas meninas ou clientes. Como Prechet aponta, o incômodo era também uma questão
de classe e raça. Maria afirma que havia estrangeiras na sua boate, certamente brancas, o que
não significa que não havia igualmente mulheres negras, pois além das amapaenses, havia
outras brasileiras e a entrevistada não identificou a cor como um critério para permanência de
mulheres na sua casa. No entanto, o que observamos é que a maioria das meretrizes dos
inferninhos eram negras. Sem dúvidas eram da mesma classe, mas não tinham as mesmas
condições de trabalho e nem eram vistas como iguais pelas autoridades policiais. Neste atinente,
Margareth Rago afirma que:

É possível que os códigos de civilidade que se instituíram nos bordéis de luxo


e nos cabarés elegantes incitassem a uma relação maior de respeito entre o
freguês e sua “protegida”, ao contrário do que ocorria, em geral, na zona do
baixo meretrício. O próprio fato de estar cercado por amigos influentes na vida
pública da cidade impunha determinados limites e regras civilizadas de
conduta aos homens que solicitavam a companhia de uma prostituta.458

Assim, podemos incluir outro fator nessa diferença de tratamento: o comportamento


dos clientes. Como parte dos clientes tinha maior poder aquisitivo – políticos, engenheiros, etc.
– e certamente encontrava seus pares na boate, esses homens tendiam a ter limites mais estreitos
de conduta e a não maltratar as meretrizes, como acontecia em boates mais populares em
Macapá. Porém, isso também decorria das regras impostas pela proprietária do estabelecimento.
A sua boate funcionou de 1964 a 1986, só não o mesmo tempo que a Ditadura
empresarial-militar brasileira pela diferença de um ano. Maria falou brevemente sobre a
Macapá dos anos que sucederam a sua chegada, e disse que “não tinha nada”, não tinha asfalto
e contava com poucas casas de comércio. Contudo, disse que a cidade melhorou aos poucos
com o Exército começando a operar nas ruas mais efetivamente:

Olha, o Exército melhorou muito Macapá. Na época que eu tinha meus filhos
pequenos, eu tinha o Exército onde tinha as pessoas, o avião vinha três, quatro
vezes por semana. Esses aviões grandes. E uma pessoa como eu que tinha
como, não tinha poder né, não tinha mais dinheiro, pedia caixa de tomate, fazia
amizade com eles lá. Mesmo que eu desse, sustentasse três, quatro deles com
alimentação, café, mas eu tinha como eles vim de Macapá e trazer pra mim

458 RAGO, Margareth, Op. Cit., p. 260.


162

repor tomate, laranja, essas coisas todas. Pra eu alimentar as próprias meninas
em casa, porque era tipo restaurante.459

Esse período que ela faz referência é a vinda das autoridades das Forças Armadas a
Macapá no ano de 1973 por causa da Operação Engasga ou engasga-engasga, como ficou
popularmente conhecida.460 Ela construiu uma relação de troca com o Exército, e não explicita
quem eram as pessoas, podendo ser soldados ou até funcionários do TFA. Como a sua boate
também começou a funcionar como restaurante, ela oferecia refeições a eles, mas esperava que
lhe dessem tomates e laranjas. Não era somente por amizade, ela tinha um interesse nessa
relação, assim como eles tiveram daí proveito, pois recebiam refeições gratuitamente.
A boate funcionava todos os dias, de 21h a 4h. Perguntei se não houve algum período
em que o governo territorial ordenou limite de funcionamento e sua resposta foi negativa,
acrescentando que o único período em que houve ordem para fechar os estabelecimentos, foi o
contexto do engasga. No entanto, ela não fechou as portas, e só recebeu a recomendação de um
delegado para que tivesse cuidado, e se visse alguma irregularidade, teria que fechar. Sobre o
engasga-engasga, Maria revela:

Eu não sei porque foi aquilo não. Não sei se era político que queria levantar o
astral de Macapá, não sei o que foi aquilo. E depois culparam não sei quem,
que veio gente da Guiana, veio gente não sei do quê. [...] Olha, eu vou te
contar. Nunca fechei as portas nenhum dia, nenhuma hora e nunca vi nada.
Nunca.
– Ah, pegaram numa saída de igarapé não sei quem e surraram, bateram.
Eu disse:
– Olha, amanhã eu vou tirar uma de vocês, vocês se arruma e procura no
hospital se deu entrada de alguma pessoa ferida com esse problema.
Mentira. Aquilo ali foi uma coisa que eu não sei o que era, não sei o que
aconteceu. Mas durou muito tempo e assustou muita gente.461

O engasga-engasga recebeu esse nome porque, supostamente, um homem atacava


mulheres e tentava estrangulá-las. Para Maria, tudo não passava de mentira e fofoca. Um fato a
ser destacado é que ela fez com que uma das meninas fosse investigar no hospital, mas nada
encontrara. Segundo Maura Leal, a Operação Engasga “teria servido de pretexto para a prisão
de várias pessoas, supostamente, envolvidas com o comunismo, obtendo grande repercussão

459 Entrevista com Maria Albuquerque, Op. Cit.


460 Sobre a Operação Engasga, ver: SANTOS, Dorival da Costa. O regime ditatorial militar no Amapá: terror,
resistência e subordinação 1964-1974. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual de Campinas,
2001.
461 Entrevista com Maria Albuquerque, Op. Cit.
163

entre a população e ficando marcada no imaginário amapaense como um tempo de medo e


terror”.462 E acrescenta adiante:

Apesar das várias denúncias à polícia e à Rádio Difusora, não se tem registros
de uma mulher assassinada ou gravemente ferida por esses ataques, mas essas
geraram em Macapá um clima de tensão e medo generalizados entre os
moradores, intensificados por estranhos cortes de energia elétrica, que
coincidiam com a saída dos estudantes das escolas no turno da noite.463

Não é de se estranhar que Maria veja esse episódio da história amapaense como fofoca
e mentira. Ela até se questiona se não era ação de algum político querendo “levantar o astral”
de Macapá, uma forma de animar a cidade. Mas, como bem pontuou Maura Leal, o engasga-
engasga foi um pretexto para prender opositores do regime ditatorial. Adamor Oliveira lembrou
que as escolas interromperam as aulas, cinemas não funcionavam e o comércio ficou paralisado
parcialmente464. A partir das reminiscências de Maria e de Adamor podemos elaborar a questão:
os locais eram fechados por recomendação de delegados ou os proprietários fechavam por
medo? Maria disse que não fechou sua boate porque achava que se tratava de uma invenção.
Maria chamou nossa atenção ao afirmar que não aceitava em seu estabelecimento
meninas do Amapá e explicou seus motivos:

Depois eu resolvi um dilema, uma questão que eu não queria pegar mulher do
Amapá porque elas eram rebeldes, usava droga, bebia e não aceitava a minha
condição de viver comigo.
– Olha, você tem café da manhã, você tem almoço, você tem jantar, tem a sua
liberdade, tem o seu quarto. […] Pra isso, você tem que seguir as regras da
casa.
– Que regra? Aqui é puteiro, puteiro não tem regra.
– Por isso mesmo, você não serve pra morar comigo.
Aí eu não aceitava mulher daqui de Macapá.465

A rebeldia da mulher amapaense era um impedimento para a sua estadia na casa de


Maria. Mas, será que a rebeldia era o único fator para essa negativa? Ou a permanência de
mulheres rebeldes que não seguiam regras, poderia atrapalhar a relação construída com os
delegados e a polícia? E ter mulheres “de fora” do Amapá não poderia chamar mais atenção
dos clientes e ser um diferencial para manter a casa “cheia”? Acreditamos em uma combinação

462 SILVA, Maura Leal da. “O Território imaginado”: Amapá, de Território à autonomia política (1943-1988).
Tese (Doutorado em História). Universidade de Brasília, 2017, p. 222.
463 Ibidem, p. 222-223.
464 OLIVEIRA, Adamor de Sousa Oliveira. Tesouros de Memória. Fortaleza: Premius, 2013. Memória., p. 178-
179.
465 Entrevista com Maria Albuquerque, Op. Cit.
164

desses fatores. Possivelmente, todos eles tiveram influência na decisão de Maria. Segundo
Ivonete Pereira, em Florianópolis, na primeira metade do século XX, “se dar bem” com a dona
da pensão era um dos principais motivos para que as meretrizes continuassem no local. Isso
proporcionava proteção em face de outras meninas e até de ataques policiais. Porém, quando a
dona desejava a saída de uma das prostitutas, ela deveria se retirar imediatamente. 466 Vemos
como o padrão de donas de pensão não é muito distinto, mesmo se tratando de locais tão
distantes.
Questionei sobre a prostituição realizada nas ruas e ela falou sobre as mulheres bêbadas
no Canal da Mendonça Júnior. Disse que eram muitas e:

É porque a mulher bebe. Vai nos bar, bebe, anda pela rua. Às vezes uma
abraçada. Cansei de ver mulher bêbada naquele canal ali e saía do Bar
Caboclo.
[...]
Entravam naqueles barcos, transavam com aqueles homens que vinham de
barco. Até ali atrás do Banco do Brasil, aquilo ali ficava assim de
embarcação.467

Mais uma vez o Bar Caboclo se faz presente nas memórias da prostituição em Macapá.
Como já pudemos constatar antes, o Canal da Mendonça Júnior era um dos territórios da
prostituta pobre amapaense que se embriagava e executava seu serviço sexual à luz do dia ou
na escuridão da noite nas ruas ou em embarcações que ali ancoravam. Com isso, é possível
supor que o a interdição do uso de bebida alcoólica pelas meninas na boate de Maria estivesse
ligada ao fato dela não querer que aquelas moças fossem confundidas com as prostitutas pobres
do canal.
Alguns aspectos da vida das meninas foram revelados, assuntos amorosos e familiares
anteriores e posteriores à permanência delas na boate. Perguntamos sobre namorados, maridos,
casamentos arranjados durante o meretrício e filhos. Maria disse que elas não tinham
namorados, pois esses eram os clientes que passavam as noites com elas, mas logo iam embora.
Segundo suas palavras, o homem de boas intenções diz: “a partir de hoje eu não quero essa
menina no salão, fazendo programa porque eu vou tirar ela”.468 Um homem que não fazia isso
não poderia ser namorado, mas sim cliente.
Ela citou a nacionalidade e nomes de algumas moradoras da sua casa como a paraguaia
Maria, a argentina Cristiane e a austríaca Solange, também mencionou duas francesas que já

466 PEREIRA, Ivonete. Op. Cit., p. 130.


467 Entrevista com Maria Albuquerque, Op. Cit.
468 Ibidem.
165

eram radicadas no Brasil, o que indica que as outras mulheres tinham vindo de outros países
diretamente para Macapá. Como ela afirmou, não aceitava mulheres de Macapá na sua boate, o
que não significa que não aceitava mulheres de outras regiões do Brasil. Quando chegavam em
Macapá e procuravam por Maria, diziam que tinham encontrado alguma menina que morou
muito tempo na casa e lhes dissera que era bom. Dessa forma, Maria as recebia e lhes dava
boas-vindas. Porém, cada uma delas tinha uma história marcada por dor, violência e abuso,
principalmente de maridos ou amásios:

Outros não era marido, outros viviam e maltratavam elas. Outros botavam elas
pra ganhar dinheiro pra ele. Tem tudo isso. [...] Prostituía a mulher, pra dar
dinheiro pra eles. Já pensou, como é que pode? […] Fugiam pra fazer a vida
delas, porque a mulher depois que ela tem marido ou filhos e sai da casa de
suas famílias, não adianta voltar mais.469

A partir desse relato, percebemos como não era incomum alguns companheiros
obrigarem as esposas a se prostituir para lucrar com a exploração delas. Essas mulheres
exploradas fugiam e, como não viam alternativa, continuavam na prostituição, mas por conta
própria ou nem tanto, pois algumas iam morar em boates. Maria também falou que algumas das
meninas haviam sido estupradas pelos maridos ou tinham filhos estuprados por aqueles, razão
pela qual decidiam fugir, mas chegavam sem filhos em sua boate. Aquelas que engravidavam
na boate, recebiam uma passagem de viagem e eram mandadas embora de onde vieram.
Algumas das meninas conheceram seus maridos na boate. Algumas delas casaram com
funcionários da Eletronorte470, indo em seguida embora para os estados de origem deles. Outras
casaram com estrangeiros e saíram do Brasil com destino a países como Itália e Estados Unidos.
O Porto do Mucuripe, em Fortaleza, nas décadas de 1960 e 1970 recebia navios
estrangeiros cotidianamente. Erika Pinho, Cristian Paiva e Francisca Sousa inferem que “os
encontros interculturais forjavam, entre as mulheres nativas, novos desejos e idealizações sobre
as masculinidades, que contrapunham as características dos homens locais àquelas atribuídas
aos estrangeiros.”471 A prostituta Maria Angelina disse que o diferencial dos estrangeiros era o

469 Ibidem.
470 “20 de junho de 1973. A Eletronorte nascia com a missão de desenvolver e integrar o Brasil com a sua energia.
Com sede no Distrito Federal, tem unidades nos nove estados da Amazônia Legal: Acre, Amapá, Amazonas,
Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins. A Empresa surgiu com a função estratégica de
investir na Amazônia quando poucos se arriscavam a fazê-lo. Uma decisão de governo que, mais tarde, se tornaria
referência na geração de energia de forma sustentável, com responsabilidade e de forma integrada.” In:
www.eletronorte.com.br/a-eletronorte-2/.
471 PINHO, Érika de Meneses; PAIVA, Cristian; SOUSA, Francisca Ilnar de. Memórias de mulheres e “amigos”:
interesse e intimidade no meretrício de Fortaleza (1960-1980). In: SIMÕES, Soraya Silveira; SILVA, Hélio R.S.;
Moraes, Aparecida Fonseca, Op. Cit., p. 372.
166

pagamento em dólar e o tratamento dado às meretrizes, eles lhes ofereciam um bom trato,
diferentemente dos homens da “terra”.472 Macapá também era uma área portuária e pela fala de
Maria, notamos que havia aí uma circulação significativa de estrangeiros que chegavam em
navios. Ela própria casou com um deles, assim como algumas das meninas da sua casa. A
diferença é que o seu marido permaneceu em Macapá, com ela, enquanto as meninas foram
morar no exterior. Podemos supor que, assim como aconteceu em Fortaleza, as meretrizes de
Macapá tinham preferência por estrangeiros, não somente pelo aspecto financeiro, mas também
pelo tratamento. Algumas delas abandonaram o meretrício para casar, constituir família com
eles e esquecer os anos de serviço sexual no Brasil.
Sobre as mulheres que casaram e permaneceram em Macapá, ela disse não manter
contato para não as prejudicar. Com a violência e o uso de drogas crescente na cidade, a partir
da década de 1980, Maria decidiu fechar seu estabelecimento. Perguntei como se deu o
fechamento da boate e ela disse que só encerrou as atividades quando todas meninas viajaram
e foram para as casas de suas famílias.
Apesar de dizer que não foi buscar nenhuma menina para viver na sua boate, Maria
revela em muitos momentos o controle que exerceu sobre elas. Primeiro pelas regras, que
incluíam não ingerir bebida alcoólica em sua casa e a forma de se vestir. Depois, pelo controle
dos relacionamentos amorosos delas, pois Maria esperava que os pretendentes lhe falassem
quais eram as suas intenções, se queriam casamento e constituir família ou não. Isso já
descortina essa relação familiar e maternal que ela disse ter constituído com essas trabalhadoras.
Assim, o que fica oculto em toda a entrevista é o trato com o dinheiro gerado pelo trabalho das
meninas. Não tivemos acesso a temas como aluguel, roupas, alimentação, salário, programas.
Mas tudo o que foi falado, ajudou a elucidar muitas questões levantadas pela leitura das outras
fontes e mostrou alguns dos contrastes existentes entre as boates de Macapá e as contradições
nas formas de atuação das autoridades do governo territorial.

472 Ibidem.
167

Considerações Finais

Ao longo dessa dissertação, buscamos cumprir com o objetivo de analisar o cotidiano


da prostituição no TFA com foco nas relações de gênero e nas experiências de classe, durante
a Ditadura empresarial-militar. Para isso, nos debruçamos sobre fontes documentais que nos
possibilitaram responder as nossas questões iniciais. Ao longo de nossa pesquisa, além das
prostitutas, outros sujeitos apareceram, como agentes de Segurança Pública, estudantes, braçais,
motoristas, funcionários públicos, proprietários de pensões e boates, trabalhadoras domésticas,
primeira-dama, governadores, juízes, promotores, advogados e jornalistas.
Trabalho foi uma categoria central dessa pesquisa que revisitou debates em torno da
prostituição. Muitas vezes vista como exploração ou meio de sobrevivência, a prostituição deve
ser reconhecida como uma atividade que não gera valor para a produção capitalista, mas que
tem seu valor consumido de forma individual, sendo, desse modo, trabalho improdutivo.
No relativo à identidade de classe, cabe destacar que as prostitutas, não raro,
ultrapassaram as fronteiras das classes sociais, ou mesmo transitaram entre elas. Por meio de
diferentes casos encontrados na documentação, vimos que a classe trabalhadora amapaense
possuía, as suas concepções de honra que também passavam por identidades de gênero. As
mulheres dessa classe eram influenciadas pelo discurso hegemônico que impunha a virgindade
como marcador fundamental de honra e honestidade. Frequentar festas e boates sem a presença
de um familiar, andar pelas ruas da cidade e namorar eram motivos suficientes para elas terem
sua honra questionada e sua palavra desacreditada quando recorriam à Justiça. Serem
associadas às prostitutas era outro motivo das mulheres amapaenses buscarem reparação
policial ou judicial. Geralmente, as ofensas eram realizadas por vizinhos, por causa de
desentendimentos cotidianos. Já os homens eram impactados na honra de forma diferente, pois
para eles ela está vinculada à masculinidade e à honra das mulheres de suas famílias. De maneira
geral, a masculinidade estava associada à coragem, à imposição do respeito pela força e ao
papel de provedor. Assim, quando confrontado por outro homem, o sujeito via a necessidade
de se impor por meio da força para garantir que sua imagem social de macho não fosse
manchada. A honra das mulheres da família era importante para os homens a ponto deles terem
a necessidade de preservar a reputação de suas mães, irmãs, esposas e filhas, fazendo isso, em
alguns casos, por meio de confrontos físicos.
A preservação a todo custo da virgindade e do recato era um ideal da classe dominante
apenas parcialmente performado pela classe trabalhadora, pois a moral dos trabalhadores era
mais flexível. As trabalhadoras amapaenses já conheciam o mundo do trabalho desde meninas,
168

e eram habituadas a frequentar as ruas para trabalhar e tinham liberdade para frequentar festas
e namorar. Porém, quando precisavam buscar o Estado, assumiam os parâmetros hegemônicos
de comportamento feminino, negando que frequentavam festas, que namoravam, alegando que
viviam restritas ao domínio do lar e da família. Portanto, as mulheres da classe trabalhadora ao
mesmo tempo resistiam à imposição de tais parâmetros e se apropriavam deles quando era
conveniente. Então, quando se viam diante dos agentes do Estado, como ao prestar depoimentos
à Polícia ou à Justiça, elas poderiam usar as ideias dominantes a seu favor, mesmo que não as
reproduzissem no seu cotidiano. Assim, é forçoso admitir que a classe dominante pode até ter
os meios necessários para criar e divulgar amplamente suas ideias em determinada sociedade
de determinada época, mas essa constatação não significa que a classe trabalhadora reproduzirá
isso indiscriminadamente, pois ela tem seus códigos, valores e costumes criados a partir de
experiências específicas, diferentes daquelas da burguesia.
A clivagem de classe é essencial para entender de que forma o governo ditatorial
amapaense lidou com botequins, boates e clubes sociais e seus frequentadores. Enquanto boates
e botequins, frequentados por homens da classe trabalhadora e prostitutas, foram vigiados
constantemente, inclusive com a presença de guardas territoriais dentro dos estabelecimentos
em regime de plantão, os clubes sociais, dos quais políticos, militares, empresários e
funcionários públicos eram habitués, foram prestigiados pela imprensa. Estes eram os espaços
de lazer e festa do TFA. Todavia, para as meretrizes, esses não eram restritamente espaços de
diversão, pois também eram locais de trabalho. Mas elas também se divertiam, dançavam, se
embriagavam na companhia de colegas e clientes. Muitas vezes foram detidas pela
contravenção penal de embriaguez e desordem, passando uma noite na delegacia ou até a ordem
de soltura do delegado de plantão. Soldados do Exército igualmente promoviam desordens nas
ruas, boates e pensões. Por vezes, quando denunciados, voltavam para intimidar proprietários
de boates e prostitutas que ali residiam. Assumiram uma identidade de “donos da cidade”, onde
tudo podiam fazer, tendo a certeza de que nada ou pouco aconteceria com eles, porque detinham
poder como militares do Exército.
A intervenção mais evidente da Ditadura empresarial-militar no TFA ocorreu nas zonas
de meretrício. O canal da Avenida Mendonça Júnior, outrora conhecido como Igarapé da
Fortaleza, estava localizado no antigo bairro da Doca da Fortaleza. A Doca foi alvo de
preocupação do governo territorial desde o governo de Janary Nunes, desconforto que
permaneceu na Ditadura. Um decreto publicado no jornal oficial do TFA tornou evidente que
a presença das prostitutas era incômoda no canal, local que abrigava residências de meretrizes
e lugares de diversão. Por isso, ficou estabelecido que elas deveriam se retirar de lá em um
169

prazo de sete dias. Elas saíram, mas logo voltavam e tentavam resistir nesse espaço que
disputavam com o governo territorial. O resultado dessas disputas, ocorridas desde a década de
1940, foi o deslocamento e criação de zonas de meretrício em bairros mais afastados do centro
da capital. O bairro Santa Rita tornou-se o local com maior concentração de botequins,
dançarás, boates e pensões de Macapá, mas as meretrizes também continuavam ocupando o
canal da Mendonça Júnior.
Identificar os pontos de prostituição existentes na Macapá de outrora foi como fazer
uma caminhada por essa cidade e imaginar sua boemia abundante, pois os espaços e seus
deslocamentos contam uma história, como bem analisou o historiador José D’Assunção
Barros473. Outrora bastante frequentados e com grandes festas, os clubes sociais tiveram o seu
declínio, assim como os botequins, pensões, dançarás e boates. Poucos resistiram ao tempo,
como foi o caso do Trem Desportivo Clube, que ainda hoje realiza concursos de beleza como
o Rainha das Rainhas474 no carnaval amapaense, mas concentra suas atividades no esporte.
Terrenos de boates como o Juçarão, hoje abrigam residências. No local onde antes existia o
popular dançará Merengue, foi construída uma escola. O lugar que foi ocupado pelo Bar
Caboclo contém atualmente a Sede dos Bancários e o lote que um dia foi da boate da Suerda,
ou Pensão da Margot, é ocupado pelo Almoxarifado do Governo do Amapá.
As prostitutas do TFA construíram muitas redes de convivência na sua vida cotidiana.
Tais redes foram tecidas pelo trabalho, pela solidariedade, pelo amor, pelo parentesco, pela
amizade e vizinhança. Essas relações deixaram expostos os sentimentos entre essas mulheres e
seus amantes, filhos, irmãs, desafetos. Como interações humanas, tinham suas contradições.
Ora compartilhavam amor e amizade, ora ódio e violência. A partir dessas redes, observamos
que os espaços de vivência dessas meretrizes não se restringiam às zonas de meretrício, pois
elas caminhavam pela capital e se deslocavam pelos distritos, onde conheciam guardas
territoriais, soldados do Exército, policiais militares e os frequentadores da boemia amapaense.
Elas não andavam sozinhas, quase sempre estavam em grupo de duas ou mais prostitutas,
algumas moravam na mesma pensão, outras eram irmãs e amigas.
Conforme apontamos ao longo das seções, a experiência comum de ser prostituta nem
sempre resultava em laços de solidariedade e amizade. Motivadas por ciúmes e rixas, elas

473 BARROS, José D.’Assunção. A imaginação da cidade na História e nas Ciências Sociais: da leitura
institucional às abordagens complexas. Urbana: Revista Eletrônica do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a
Cidade, v. 4, n. 1, p. 213-240, 2012.
474 Concurso para eleger a “Soberana do Carnaval Amapaense”. Segundo o Trem Desportivo Clube: “Hoje, o
Rainha, mais que uma realidade, é um marco divisor no carnaval de salão e na cultura amapaense”.
170

entravam em conflitos que resultavam por vezes em violência física. Para defender seus
amantes, não hesitaram em ferir outros homens, mesmo que fossem presas por isso. Por
vingança, moradores da capital do TFA foram capazes de denunciar uma vizinha ex-prostituta,
por lenocínio. Mas por meio das redes de convivência constituídas entre essa ex-meretriz e
amigos, ela conseguiu provar sua inocência. Os relacionamentos com xodós permitiram a
algumas das meretrizes sentirem-se humanas novamente e se verem enquanto pessoas cheias
de afeto e sonhos. Mas, tais relacionamentos, sempre orientados pelos papéis de gênero,
poderiam ser marcados pela dependência emocional, caso em que as prostitutas aceitavam o
lugar de força ou as agressões de seus amantes para não ficarem sozinhas.
O depoimento da dona de uma boate, que conseguiu estabelecer relações com delegados
e governadores, descortinou muitos aspectos da prostituição no TFA do regime ditatorial. Os
inferninhos frequentados por trabalhadores pobres recorrentemente eram invadidos pelas forças
policiais, enquanto a boate dela, frequentada por pessoas de maior poder aquisitivo, não sofreu
a mesma vigilância. Essa boate foi o maior exemplo de prostituição institucionalizada que
encontramos. A proprietária exerceu um controle sobre o cotidiano das “meninas”, ao mesmo
tempo que construiu uma relação maternal e de afeto com elas. A origem das meninas que
procuravam morar na boate era um critério importante de seleção porque as mulheres do Amapá
não eram aceitas nesse espaço por serem consideradas rebeldes em razão de não obedecerem
às regras impostas pela depoente. O tratamento desigual entre as boates do TFA expõe as
contradições do governo territorial e mostra que o problema não era o meretrício em si, mas
quem exercia essa profissão e quem eram os indivíduos que buscavam por ele.
Meretrizes, prostitutas, mundanas, marafonas, horizontais e mulheres de vida livre são
alguns termos utilizados para designar as trabalhadoras sexuais, marginalizadas socialmente,
mas essenciais para a manutenção da família burguesa e dos ideais de feminilidade.
Consideradas pelas feministas radicais como vítimas e pelas feministas liberais como
empoderadas, as prostitutas não são tão diferentes de outras trabalhadoras, mas são marcadas
pelo estigma do trabalho sexual. Observamos que elas atuavam na intersecção entre gênero e
classe com outras mulheres trabalhadoras que não compartilhavam das experiências de ser
prostitutas. Já com os homens, compartilham a intersecção de classe, mas não de gênero. Essas
relações eram marcadas por violências e estigmas, mas também por solidariedade e afeto. Ao
mesmo tempo em que eram silenciadas, agredidas, desacreditadas, essas mulheres elaboraram
estratégias para resistir no espaço amapaense e no tempo.
171

Fontes

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Novo Amapá. Edições de 1970 a 1974.

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Entrevista com Maria Albuquerque, realizada por Amanda Cristina Souza da Silva, em
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