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v.9, n.

9
2022
Expediente
PREFEITURA DE BELO HORIZONTE Conselho Consultivo
Prefeito Drª. Andrea Casa Nova Maia (UFRJ)
Fuad Noman Drª. Beatriz Kushnir (Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro)
Dr. Caio César Boschi (PUC Minas)
SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA Drª. Cláudia Suely Rodrigues de Carvalho (Fundação Casa de Rui
Secretária Municipal de Cultura Barbosa/UFRJ)
Eliane Parreiras Drª. Ivana Denise Parrela (Escola de Ciência da Informação – UFMG)
Secretário Municipal Adjunto de Cultura Drª. Janice Gonçalves (UDESC)
Gabriel Portela Dr. Leônidas José de Oliveira (PUC Minas)
Drª. Maria do Carmo Alvarenga Andrade Gomes (Fundação João
FUNDAÇÃO MUNICIPAL DE CULTURA Pinheiro)
Presidente Drª. Regina Horta Duarte (Faculdade de Filosofia e Ciências
Luciana Rocha Féres Humanas – UFMG)
Diretor de Patrimônio Cultural e Arquivo Público Dr. Tiago dos Reis Miranda (Centro Interdisciplinar de História,
Guilherme Maciel Araújo Culturas e Sociedades da Universidade de Évora - CIDEHUS-UÉ)
Gerência do Arquivo Público da Cidade de Belo
Horizonte
Denis Soares da Silva

Conselho Editorial
Ana Paula Ribeiro Lobato
Gabriella Diniz Mansur
Lays Silva de Souza
Michelle Márcia Cobra Torre
Rafaela de Araújo Patente

Revisão
Michelle Márcia Cobra Torre

Normalização Bibliográfica e Diagramação


Rafaela de Araújo Patente

Capa
Assessoria de Comunicação – FMC

Endereço
REAPCBH - Revista Eletrônica do Arquivo Público da
Cidade de Belo Horizonte
Imagem da capa Rua Itambé, 227 - Floresta
Carnaval em Belo Horizonte - fotógrafo Ricardo Laf.
(Acervo ASCOM/FMC). Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte
30150-150 – Belo Horizonte/MG
E-mail: reapcbh.fmc@pbh.gov.br
Telefone: (31) 3277-4665
Homepage: pbh.gov.br/apcbh
Sumário

Agradecimentos 4
Editorial 6-8

DOSSIÊ
O CARNAVAL DE RUA VOLTA A OCUPAR A CIDADE:
irreverências, lutas e mercado econômico na festa da TIPOLOGIAS DE HABITAÇÃO COLETIVA EM BELO
capital mineira (2010 a 2020) HORIZONTE, NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX:
Denise Falcão registros do acervo do APCBH
Hélder Ferreira Isayama 10-32 Jurema Marteleto Rugani
Maria Marta dos Santos Camisassa 149-179
CARNAVAL DE RUA DE BELO HORIZONTE: ontem e hoje
Ana Flávia Rezende BELO HORIZONTE ATRAVÉS DAS PÁGINAS DA REVISTA
Luiz Alex Silva Saraiva 33-50 BELLO HORIZONTE (1933-1950)
Yasmine Ávila Catarinozzi da Costa
CONFIGURAÇÕES SÓCIO-ESPACIAIS NOS OUTROS 360 Sérgio Antônio Silva 180-202
DIAS: ensaios sobre o bloco Então, Brilha!
Isabella Pontello Bahia BORRACHALIOTECA SOBRE RODAS: mobilidade para
Wânia Maria de Araújo 51-69 ações culturais na cidade
Rita Ribeiro
CONSIDERAÇÕES PERFORMATIVAS SOBRE O JOGO- Anderson Horta 203-216
FESTA-RITO PARA O FENÔMENO DA CARNAVALIZAÇÃO
EM BELO HORIZONTE INDUSTRIALIZAÇÃO NA ZONA URBANA DE BELO
Thálita Motta Melo 70-90 HORIZONTE E A LEGISLAÇÃO MUNICIPAL (1922-1926)

Marina Rozendo Silva


PORTAL DA MEMÓRIA: um monumento em partilha
Maria Tereza Dantas Moura
Maria Lúcia Prado Costa 217-236
Rita Lages Rodrigues 91-105

LAGOINHA, O BERÇO DO SAMBA DE BELO HORIZONTE? EDUCAÇÃO PATRIMONIAL


História, Memória e Tradição
Renata Lopes 106-124 VAMOS PASSEAR NA PRAÇA? Educação patrimonial para
crianças
ENTREVISTA Marcela Camargos Dias
Rita Ribeiro 125-128 Marília de Fátima Dutra de Ávila Carvalho 237-253

“TUDO O QUE É SÓLIDO DESMANCHA NO AR”: a


construção de Belo Horizonte entre idealização e
ARTIGOS LIVRES precarização
Larissa Renner de Ávila Alves
ÀS MARGENS DA CIDADE OFICIAL: uma análise das
Lucas Fernandes 254-269
paisagens e das personagens anônimas das fotografias
produzidas em Belo Horizonte no período 1925-1930.
Alessandro Borsagli DEBATES SOBRE ANISTIA E REDEMOCRATIZAÇÃO EM
Brenda Melo Bernardes BELO HORIZONTE (MG): uma análise a partir de um
Amaro Sérgio Marques 129-148 discurso
da vereadora Helena Greco
Maria Cruz Ferraz 270-279
Agradecimentos

A REAPCBH é uma publicação eletrônica que tem por objetivo


divulgar trabalhos científicos que contribuam para o
desenvolvimento dos debates sobre a história de Belo Horizonte,
assim como o campo de estudos arquivísticos. Graças à valiosa
colaboração de diversas pessoas que aceitaram dispensar seu tempo
e seus conhecimentos em avaliações criteriosas, a Revista chega a
sua nona edição.

Agradecemos a atenção dispensada e os trabalhos realizados com


empenho e dedicação.

Agradecemos também ao Conselho Consultivo pela disposição em 4

sempre nos orientar no necessário.

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Editorial

Após dois anos de pandemia, a cidade refloresce com suas festividades no


espaço público, que é retomado pelos belo-horizontinos voltando a ser palco de cultura,
lazer e alegria. Pensando esse momento, a 9ª edição da REAPCBH traz o Dossiê
“Territórios em festa: apropriações culturais do espaço urbano”, com artigos sobre o
carnaval de Belo Horizonte, tão aguardado para 2023, assim como artigos sobre festas e
manifestações culturais da cidade.

Iniciamos o Dossiê pelo artigo dos professores Denise Falcão e Hélder Ferreira
Isayama, que aborda o reflorescimento do carnaval de rua de Belo Horizonte, a partir de
2010, e discute as transformações, os conflitos e as formas de resistência em torno da
festa. Seguimos para o artigo dos professores Ana Flávia Rezende e Luiz Alex Silva
Saraiva, que traz a trajetória do carnaval belo-horizontino desde a sua origem até a
atualidade com os blocos de rua, corsos e escolas de samba, que articulam cultura, 6

diversão e resistência política. Em ritmo de carnaval, partimos para o artigo das


professoras Isabella Pontello Bahia e Wânia Maria de Araújo que destaca o bloco Então,
Brilha! refletindo sobre a capacidade coletiva de modificar o espaço, ainda que de
maneira efêmera, trazendo à tona a vivência da ideia de cidade para todos, sem
hierarquias, durante o período da festa. O artigo da artista e professora Thálita Motta Melo
pensa o trinômio jogo-festa-rito para a compreensão de movimentos como a Praia da
Estação em Belo Horizonte que, ao se apropriar do espaço público, reverberou no
carnaval e outros jogos performativos.

O Dossiê publica ainda o artigo das pesquisadoras Maria Tereza Dantas Moura e
Rita Lages Rodrigues, que traz a festa de Iemanjá, evento que reúne milhares de pessoas
na Lagoa da Pampulha. O trabalho destaca a valorização das identidades múltiplas
formadoras da cidade, tendo como destaque O Portal da Memória, obra do artista Jorge
dos Anjos, e a festa em homenagem à rainha das águas. Finalizamos os artigos do Dossiê
dedicado às festas e às manifestações culturais da cidade com o artigo de Renata Lopes
que defende o surgimento do samba no bairro Lagoinha, região Noroeste de Belo

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Horizonte, e a necessidade do resgate da memória do bairro como o berço de antigos
blocos caricatos e escolas de samba da capital. Por fim, temos no Dossiê a entrevista da
professora Rita Ribeiro que nos relata sobre seu percurso de pesquisa e como se deu o
encontro com o Quarteirão do Soul - movimento estudado em sua tese de doutorado - o
qual se dedica à soul music e se apropria do espaço urbano mostrando que a cidade é para
todos.

Para além do Dossiê temático, esta edição da revista também traz trabalhos que
discutem Belo Horizonte em diferentes aspectos. Iniciamos a seção com o artigo
intitulado “Às margens da cidade oficial: uma análise das paisagens e das personagens
anônimas das fotografias produzidas em Belo Horizonte no período 1925-1930”, que tem
como foco a análise do acervo de imagens do Museu Histórico Abílio Barreto e do
Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. Seguimos para o artigo “Tipologias de
habitação coletiva em Belo Horizonte, na primeira metade do século XX: registros do
acervo do APCBH”, que analisa projetos arquitetônicos que estão sob a guarda do
Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte tendo como foco as soluções adotadas no 7
enfrentamento das demandas por moradia e trabalho dentro do processo de construção e
consolidação da nova capital. Temos ainda o artigo “Belo Horizonte através das páginas
da Revista Bello Horizonte (1933 - 1950) que analisa a trajetória da revista com foco no
espírito de modernidade em voga na cidade na primeira metade do século XX. O artigo
“Borrachalioteca Sobre Rodas: mobilidade para ações culturais na cidade” também
compõe esta seção e trata da criação de um veículo que promove a mobilidade no
transporte de livros, mostrando como o design pode ser um agente na promoção cultural,
ampliando a sua atuação na questão da cidadania e na apropriação do espaço urbano. Por
fim, publicamos o artigo “Industrialização na zona urbana de Belo Horizonte e a
legislação municipal (1922-1926)” que, com base no Índice de Lotes Urbanos do APCBH
e leis, buscou mapear a concessão de lotes urbanos para a promoção da indústria na
cidade.

Fechamos esta edição com a Seção “Educação Patrimonial” que traz uma
experiência de duas professoras em uma ação educativa com crianças, voltada para o
patrimônio cultural da cidade. Temos ainda duas propostas pedagógicas de uso de

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documentos em sala de aula. A primeira proposta trata da construção e organização de
Belo Horizonte, relacionando a fundação da cidade com os dias atuais. A segunda
proposta traz reflexões sobre a redemocratização do Brasil, tendo como foco o discurso
da vereadora Helena Greco, registrado em áudio e em Ata de 1990, documentos
pertencentes ao acervo da Câmara Municipal de Belo Horizonte e que estão sob a guarda
do APCBH.

Desejamos uma boa leitura desta edição e que venham os confetes e as serpentinas
do carnaval 2023!

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Dossiê

‘O CARNAVAL DE RUA VOLTA A OCUPAR A CIDADE:


irreverências, lutas e mercado econômico na festa da capital
mineira (2010 a 2020) 1

The street carnival returns to occupy the city: irreverences, struggles and economic market at
the Minas Gerais capital party (2010 to 2020)

Denise Falcão2
Hélder Ferreira Isayama3

Resumo: Partindo da compreensão histórica do carnaval como festa popular da irreverência e dos excessos,
mas também como espaço de lutas, de reivindicações e da inversão da ordem social, faz-se nesse artigo a
leitura do processo de crescimento da festa a partir das tensões entre as lutas sociais, o papel do Estado
enquanto gestor da cidade e a força do mercado econômico. Com o olhar específico para o carnaval, no
período denominado de reflorescimento do carnaval de rua da cidade de Belo Horizonte (2009/2010), essa
pesquisa procurou compreender os processos de transformações e de resistências, os acordos e os conflitos
vivenciados entre os que “colocam o bloco na rua” e os que gestam a cidade, para que a festa chegasse ao
atual status de ser o maior evento turístico festivo da cidade (2020). Por fim, conclui-se que a diversidade
de blocos de rua que hoje fazem a festa ultrapassa as bandeiras sociais que o impulsionaram, e o poder
público aliado ao mercado econômico chegam ao formato de gestão democrática com diálogo e fomento 10
para balizar tantos interesses diferentes na e para a festa.

Palavras-chave: Carnaval de rua. Ocupação espaço público. Lazer.

Abstract: Starting from the historical understanding of carnival as a popular festival of irreverence and
excesses, but also as a space for struggles, claims and the inversion of the social order, this article does the
reading of the party's growth process from the tensions between the struggles social, the role of the State as
a manager of the city and the strength of the economic market. With a specific look at carnival, in the period
known as the resurgence of street carnival in the city of Belo Horizonte (2009/2010), this research sought
to understand the processes of transformation and resistance, the agreements and conflicts experienced
between those who “put the block on the street” and those who manage the city, so that the party reached
the current status of being the biggest festive tourist event in the city (2020). Finally, concludes that the
diversity of street blocks that make up the party today goes beyond the social flags that boosted it and the
public power allied to the economic market reached the democratic management format with dialogue and
promotion to delimit so many different interests in and for the party.

Keywords: Street carnival. Occupation public space. Leisure.

1
Recorte da Pesquisa de pós-doutorado desenvolvida no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em
Estudos do Lazer/UFMG, com bolsa CAPES.
2
Profª Adjunta da Universidade Federal de Ouro Preto/UFOP; Docente da Escola de Educação Física e do
Departamento de Turismo. Doutora em Estudos do Lazer/UFMG. E-mail: defalcao1@gmail.com
3
Prof. Titular da Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG. Docente do programa de pós-graduação
interdisciplinar em Estudos do lazer e editor da Revista Licere. E-mail: helderisayama@yahoo.com.br

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Dossiê

Introdução

Ocupar as ruas e brincar o carnaval é um rito anual que marca a temporalidade


social desse país festeiro. Considerada a maior festa popular do Brasil, o carnaval
representa um marcante traço de identificação brasileira. Esta festa ocorre em todas as
regiões do país. Em cada uma delas, elementos de excesso e de diferenciação se
apresentam sem, entretanto, romper com a imagem do “povo brasileiro” como um povo
alegre, descontraído, da batucada e possuidor de uma ginga sensualizada. Perez (2005,
s.p.) afirma que: “É preciso levar a sério a ideia de que somos o país do carnaval!” A
perspectiva de sua afirmação não se relaciona a juízo de valores, mas “trata-se de um
juízo sociológico, que estabelece consequências conceituais de um fenômeno para
compreender a sociedade”. É nesse sentido que se investigou algumas relações sociais
estabelecidas, no tempo presente, do carnaval na capital mineira, para compreender a festa
em sua dinâmica contemporânea.
A festa é um fenômeno que por essência reúne pessoas carregando consigo a
“experiência vital compartilhada e cheia de conteúdos cognitivos e afetivos” 11

(CAVALCANTI; GONÇALVES, 2021, p. 15). Além disso, envolve “tempo e espaço


para expressão, rebeldia, devoção, manifestação, reivindicação, oração” (ROSA, 2002, p.
14). Portanto, entendemos a festa como manifestação cultural!
Minas Gerais, um estado marcado pela devoção religiosa cristã, carrega em sua
história um especial envolvimento com as festas. Os estudos sobre festas empreendidos
por Perez et al. (2018) sinalizam que desde o Brasil Colônia, já corriam notícias sobre
festividades por todos os lados no país. Acrescentando que, de forma especial, as festas
em Minas Gerais, no século XIX, são acessadas a partir dos escritos de vários viajantes
que observavam diversas ocasiões festivas e relatavam aspectos da vida social do povo
mineiro.
A vida em sociedade sempre encontra espaço para expressar sua diversidade e as
festas e, em especial, o carnaval se caracteriza como espaço ideal para isso. Nas festas
culminam simbolizações, dramas sociais e performances, e as mais distintas linguagens
artísticas. A festa com seu potencial de sociabilidade, seu poder de troca, sua relação com
os excessos e as efervescências coletivas, se apresenta como o campo do desejo possível,

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se abrindo para a experimentação humana do imaginário enquanto instância do desejo


(DUVIGNAUD, 1983).
Entretanto, não existe realidade social fora do espaço, portanto, para a realização
da festa é preciso a ocupação de um espaço (físico e simbólico). O espaço social é um
elemento central para a estruturação da sociedade e sua ocupação significa exercício de
poder. Assim, voltar a ocupar as ruas de Belo Horizonte com cortejos carnavalescos
evidencia a apropriação e o uso do espaço, a princípio, pelo povo. O que nos permite fazer
uma analogia com o que Lefebvre (2001) denomina de “a luta pelo direito à cidade”.
Com o olhar específico para o período denominado de reflorescimento do carnaval
de rua da cidade de Belo Horizonte (iniciado em 2009/2010), essa pesquisa procurou
compreender os processos de transformações e de resistências ocorridos nessa festa.
Desde o levante popular e as insurgências sociais até seu atual status de maior evento
turístico festivo da capital mineira.
Partimos da compreensão que a mola propulsora do reflorescimento do carnaval
foram as lutas sociais reivindicatórias e a necessidade de ocupar os espaços públicos como
resistência ao processo de higienização e privatização implementado pelo poder público. 12
Analisamos, também, as tensões e os acordos, daqueles que organizam a festa e procuram
“colocar o bloco na rua” (levante popular) e dos que tem como salvaguarda a gestão da
cidade (instituições governamentais). Nesse jogo de forças, o mercado econômico não
fica de fora. Se por vezes foi rechaçado por um lado do cabo de guerra, em outras foi
apropriado como elemento importante para o crescimento da festa. Fato é que ele, o
mercado econômico, tornou-se mais um elemento de tensão.
Nesse sentido, este artigo caminha com intenção de propiciar chaves de leitura
para a festa momesca na cidade de Belo Horizonte em um período de 12 anos. Suas
transformações aparecem na perspectiva contemporânea alinhada às questões sociais e
econômicas, pois como uma marca especial da temporalidade, o carnaval retorna todo
ano em um permanente refazer-se atualizado pelo contexto histórico presente.

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Percurso Metodológico

Como procedimentos metodológicos utilizamos as pesquisas bibliográfica e


documental das fontes primárias para angariar conhecimentos sobre o assunto e sobre os
atores. Além disso, utilizamos os debates promovidos em eventos realizados em variados
contextos, para discutir o carnaval da cidade. Nesses encontros/confrontos/reflexões
diversos atores da cena carnavalesca, entre os anos 2018 e 2020, expressaram suas vozes,
seus anseios, suas angústias.
Os documentos analisados foram: Relatórios PBH (Prefeitura de Belo Horizonte)
dos anos 2015 a 2020; infográficos desenvolvidos em parceria pela Belotur/PBH;
Pesquisas do Observatório do Turismo de Belo Horizonte que integra a Rede do
Observatório do Turismo de Minas Gerais (OTMG) de 2015 a 2020; Pesquisa com folião
do Carnaval de Belo Horizonte de 2018 e 2019 (PBH, 2018 e 2019); Reportagens
referentes ao tema carnaval em Belo Horizonte nos seguintes jornais online (G1 Globo;
EBC Empresa Brasileira de Comunicação; EM Estado de Minas; Sala de Imprensa da
PBH; GGN; Hoje em dia); Reportagens referentes ao tema carnaval em Belo Horizonte 13

nas revistas online Marimbondo e Carta Capital.


Além disso, participação em eventos organizados para discussões a respeito do
carnaval da cidade promovidos por órgãos municipais e entidades civis, nos quais
utilizamos falas de atores envolvidos na organização da festa: Roda de Conversa
intitulada Carnaval: Para onde vamos? Realizada em 11 de novembro de 2018 no espaço
d’A Central (antigo espaço 104) em Belo Horizonte; evento Era uma Voz: a cidade, o
carnaval e suas narrativas realizado de 10 a 13 de fevereiro de 2019 na Biblioteca Pública
Estadual de Belo Horizonte; Reflexões sobre o Carnaval no Memorial Vale (evento online
via Instagram e Youtube): Reflexões sobre o carnaval de Belo Horizonte em 12 de
fevereiro de 2021; Rainha que já não tem coroa: carnaval e esquecimento em Belo
Horizonte em 14 de fevereiro de 2021.
Por fim, entrevistas semiestruturadas foram realizadas com atores da cena
carnavalesca da cidade no mesmo período: fundadores de blocos, gestores da cidade que

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ocupam diferentes instituições, vocalistas de blocos, mestre de bateria, organizadores de


blocos, ambulantes etc4.
A análise interpretativa dos dados se deu pela tensão entre o que foi encontrado
na pesquisa documental, o que foi observado no trabalho de campo realizado entre as
diferentes reuniões, algumas regulamentações municipais vigentes e anteriores que
impactam o carnaval, os planejamentos estratégicos da organização da cidade para a festa
e o que foi relatado nas entrevistas pelos sujeitos. A perspectiva de análise da pesquisa
procurou compreender as diferentes vozes no contexto do carnaval da cidade de Belo
Horizonte. Para tanto, foi preciso conhecer em uma perspectiva histórica o carnaval e suas
relações com a ocupação do espaço e as disputas de poder.

O carnaval e sua relação com a irreverência e as disputas de poder

Pensar as relações sociais estabelecidas no carnaval é ultrapassar a visão de um


tempo/espaço de rompimento da rotina da vida, apesar de também o ser! E ir além,
14
procurando compreender a experimentação humana coletiva reivindicatória que emerge
em tempos de festa. Como apresentam Falcão e Isayama (2021, p.225) “o carnaval pulsa
e transforma o ritmo e a vida da cidade no ressoar do surdo, na batida do tambor, no
compasso do timbal, nos cortejos infindáveis que arrastam multidões pelas ruas e
avenidas”. Há uma abundância e diversidade dentro da própria festa, que apresenta como
pontos comuns: a irreverência, o escárnio, a desordem, o incontrolável e a efervescência
coletiva entre outros.
Para autores como Duvignaud (1983); Perez (2009); e DaMatta (1997), essa
relação com os excessos e o gozo coletivo chegam a tornar a festa um fim em si mesma.
Para Duvignaud (1994), a festa como possibilidade para a experimentação humana do
imaginário possibilita instâncias do desejo, do imprevisível, da interioridade, da

4
Serão identificados apenas os entrevistados que tiveram suas falas como parte das análises nesse recorte
de pesquisa. Gilberto Castro (presidente da BELOTUR); Jordana Menezes (Assessora de Gestão Integrada
da BELOTUR). Rafa Barros (Bloco Filhos de Tcha Tcha, ativista, representante dos blocos de rua em
diferentes negociações com a prefeitura/Belotur), PV Paulo Vitor Ribeiro (Bloco Seu Vizinho). Guto
Borges (Bloco Então, Brilha!). Juhlia Santos (Produtora cultural).

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embriaguez mítica, dos excessos, pois nas festas “o homem muda a si mesmo porque ele
se inventa” (p.117).
Desde os primórdios do que podemos chamar de carnaval no Brasil, a maneira
como ele é vivenciado revela importantes traços da sociedade. A diferença social, a
disputa pelo espaço e as atitudes reivindicatórias e provocativas já faziam parte de tais
manifestações. Sem contar que, por ser uma festa que se goza de certa liberdade sexual e
de quebra de regras hierárquicas, os encontros, os confrontos e os excessos são presenças
constantes.
Também faz parte da brincadeira no espaço público da rua a quebra das
hierarquias, pois esse é um lugar no qual a diversidade de classes sociais, econômicas e
étnicas se apresentam, tornando-se espaço privilegiado para conflitos e tensões. A
tentativa de dominação do carnaval parece ser algo que vem acompanhando sua
existência, pois nessa disputa de espaço e força, a festa provoca o que DaMatta (1997)
denominou de dialética ordem X desordem. Recria as próprias regras e organiza uma
nova lógica, que se assenta na capacidade de estabelecer pontes e formas de passagem
entre espaços segregados. 15
DaMatta (1997) destaca que nas sociedades hierarquizadas, o carnaval é
um continuum crivado pelo diálogo e pela comunicação explosiva, sensual e concreta de
todas as categorias e grupos sociais. No século XX temos uma narrativa sobre a história
das escolas de samba do Rio de Janeiro e o samba, uma expressão cultural que nasceu
nos morros, nos subúrbios e nas favelas cariocas, que passou de manifestação perseguida
pela polícia na década 1920 para símbolo da identidade nacional brasileira na década de
1940. Isso se deve a mais um jogo de forças. Se por um lado a intervenção do Estado,
como aponta Fernandes (2001), em alguma medida obrigou que os enredos das escolas
de samba tivessem um caráter ufanista, que convinha à dominação da manifestação. Por
outro lado, foi possível observar que tal domínio foi relativo, pois as escolas de samba
tornam-se uma representação nacional vista como “estratégia para conquistar e se impor
ao carnaval, à cidade e à sociedade”, e como conclui o autor “uma rara e bela vitória dos
vencidos” (FERNANDES, 2012, p.1).

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Assim, o carnaval, em suas diversas expressões, sempre apresentou possibilidades


de manutenção da lógica social, mas também possibilidades de questionamento e de
transformação social.

O carnaval como espaço de disputas em Belo Horizonte

Como apontado por Falcão e Isayama (2021) a história do carnaval belo-


horizontino é mais antiga do que a própria cidade inaugurada em dezembro de 1897.
Encontra-se indícios de sua existência a partir de fevereiro de 1897, apontando que os
homens construtores da nova cidade se vestiam de mulheres e desfilavam atrás de
carroças da Praça da Liberdade até a Avenida Afonso Pena. Nesse contexto, as bandas
carnavalescas, os ranchos, as sociedades e o próprio entrudo faziam a festa da cidade,
conforme relatado nos escritos que contam a história do carnaval no site da Câmara
Municipal de Belo Horizonte (CMBH) 5.
Acompanhando a evolução da festa, em 1937 é fundada a primeira escola de
samba denominada de Pedreira Unida, na favela Pedreira Prado Lopes. Na década de 16

1940 é fundada a Unidos da Cidade Jardim e em seguida outras escolas de samba são
formadas, chegando à década de 1950 com o desfile embalado pelos sambas enredo que
até então não existiam. O samba e as agremiações carnavalescas cresceram e se
multiplicaram, aumentando a força do carnaval como manifestação cultural.
Segundo Maia (2020), na década de 1980, Belo Horizonte chegou a ter o segundo
maior carnaval de escolas de samba do Brasil, perdendo apenas para o Rio de Janeiro. O
autor pontua ainda que o carnaval de rua de Belo Horizonte nunca parou, mas em dois
momentos ele entrou em um estado de suspensão, uma interrupção breve: um deles
ocorreu no final da segunda grande guerra com a proibição de manifestações de rua
durante a guerra, pelo então presidente Getúlio Vargas em 1943. Nesse sentido, afirma
Fernandes:

5
https://www.cmbh.mg.gov.br/comunica%C3%A7%C3%A3o/not%C3%ADcias/2020/11/hist%C3%B3ri
a-do-carnaval-em-belo-horizonte-0

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O agravamento da guerra durante 1942 [...] criou um clima em que a imprensa


e a polícia se mobilizaram e praticamente proibiram o carnaval em 1943. A
imprensa dizia que em tempos de guerra as energias deviam se concentrar nas
exigências do conflito, e não dispersas em festa; a polícia entendia que os
ânimos acirrados podiam alimentar confusões e pôr em risco a segurança
pública. (FERNANDES, 2012, p.5)

Na década de 1990 ocorre outro período de suspensão da festa nas ruas de Belo
Horizonte, como pode ser observado no DOM (Diário Oficial do Município) datado de
11 de fevereiro de 2014 em 1990 (p.1): “os blocos caricatos e as escolas de samba fizeram
o último desfile na Avenida Afonso Pena”. O tradicional evento ficou praticamente
suspenso de 1991 a 2003 e as maiores comemorações de Carnaval passaram a ser os bailes
populares, realizados por cada uma das administrações regionais. Do ano 2004 a 2010 os
desfiles das Escolas de Samba aconteceram na via 240, no Bairro Aarão Reis (regional
norte) e de 2011 a 2013 foram realizados na avenida dos Andradas, entre os viadutos
Santa Tereza e Floresta, no local conhecido como Boulevard Arrudas (Portal CMBH).
Segundo o DOM (2014), em março de 2013 o planejamento para o retorno das
17
agremiações para a Av. Afonso Pena foi iniciado, o que gerou muita euforia para os
representantes das entidades. “O percurso, que se estende entre a avenida Carandaí e a
rua da Bahia, será transformado no sambódromo da capital mineira” (p. 01) 6.
É possível inferir que essa mudança na estrutura do carnaval em 1990 aconteceu
a partir da ordenação e regulação do Estado, com o objetivo de atender aos anseios de
uma classe social dominante que se mostrava incomodada com tais manifestações
populares. Nesse sentido, era preciso limpar, higienizar as ruas do centro da cidade,
afastando a folia para zonas periféricas. Porém, o carnaval, em sua efervescência festiva,
sempre resistiu aos cerceamentos de toda ordem que foram impostos e por isso, buscamos
compreendê-lo na segunda década do século XXI, a partir do que passou a ser
denominado de reflorescimento do carnaval de rua em Belo Horizonte.

6
https://dom-web.pbh.gov.br/

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Voltar a ocupar as ruas: a festa como direito à cidade

No ano de 2020, Belo Horizonte foi consagrada pelo maior carnaval que a cidade
já realizou. Com o anúncio de 4,5 milhões de foliões brincando na cidade (BELOTUR,
2020), a capital mineira chega ao recorde de foliões em suas ruas demonstrando não
apenas sua vocação festiva, mas que também havia uma demanda social reprimida.
Apesar do carnaval da cidade nunca ter acabado, ele passou por um período de
encolhimento e a cidade, na década de 1990, era conhecida como um bom lugar para
“fugir da festa momesca”. Não porque não houvesse carnaval, havia sim! Mas ele perdeu
o protagonismo e não circulava no centro da cidade, mas seguia resistindo nas
“periferias”.
Entretanto, a partir da segunda década deste século XXI, a manifestação popular
do carnaval, em especial a dos blocos de rua, ganha força e se empodera, volta a disputar
e a ocupar as ruas da cidade crescendo exponencialmente em número de blocos e de
18
foliões. Na atualidade, Belo Horizonte detém o status de ter um carnaval que se realiza
pelas ruas, possui uma diversidade em seus ritmos e movimenta a cidade, ampliando seu
reconhecimento nacional entre os melhores carnavais do país. Mas, como tudo começou
e chegou até aqui?
A história não pode ser contada de forma única, mas a análise da conjuntura do
contexto histórico permite compreensões das articulações entre fatos, fenômenos, tempo
e espaço. É preciso relembrar que no início da década de 2010 os movimentos populares
de diferentes ordens reivindicatórias atingiram patamares nunca vistos a partir das
tecnologias de informação e comunicação (TIC). Como afirmam Falcão e Isayama (no
prelo) “nenhum fato é capaz de acontecer isolado no mundo e a velocidade com que os
acontecimentos circulam nas redes virtuais minimiza as barreiras de tempo/espaço
colocando, em tempo real, as pessoas em contato com diferentes realidades”. As redes
sociais passam a ser ferramentas fundamentais na organização, articulação e
potencialização de ações coletivas por distintas bandeiras. O contexto histórico brasileiro,
no período pesquisado, se alinha na efervescência dos movimentos sociais, culturais e
políticos mundiais.

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Em 2010 é eleita a primeira mulher presidente do Brasil - Dilma Rousseff,


frustrando a certeza que a direita tinha em retornar ao poder do país. Em 2011 a
denominada Primavera Árabe eclodiu a partir de levantes populares contra os governos e
suas políticas opressivas em diferentes países do Oriente Médio e do norte da África:
Tunísia, Egito, Líbia e Iêmen. Também em 2011, revoltas pelos subúrbios londrinos
começaram a acontecer e rapidamente alcançou quase toda Inglaterra, de forma
semelhante aos protestos realizados nas periferias de Paris por jovens marginalizados em
2005. Nessa conjuntura histórica se encontra a ocupação de Wall Street, a greve geral em
Portugal, na Espanha e na Grécia contra as medidas austeras do governo e a Revolta Turca
em Istambul que iniciada em 2011, por questões ambientais, culmina em 2013 com
protestos nas ruas contra o governo. Em 2013 temos no Brasil as jornadas de junho, que
iniciada com o movimento passe livre em São Paulo, se alia a outros fatores de
descontentamento da população e as pautas difusas ocuparam as ruas demonstrando a
indignação do povo.
Em comum nesse movimento global contemporâneo que explode na segunda
década do século XXI, tem-se o levante popular majoritariamente liderado por jovens que 19
passam a ocupar as ruas em protestos sequenciais, organizados e articulados a partir das
ferramentas digitais, reivindicando que os governos olhassem com mais humanidade para
seus cidadãos que estavam atacados pelas políticas austeras implantadas pelos diferentes
governos.
Desde o exposto sobre os levantes populares por parte do mundo, é possível
compreender a correlação com o movimento de reflorescimento do carnaval da capital
mineira. Suas motivações e seu alcance podem ser narrados a partir das lutas sobre a
ocupação dos espaços públicos e as reivindicações por uma cidade para todos. Na
pesquisa realizada7, as primeiras incursões carnavalescas “de volta às ruas” iniciam em
2009 quando amigos, sem dispensa do trabalho e sem dinheiro para brincar o carnaval ou
viajar, organizaram dois blocos: Tico-Tico Serra Copo e Peixoto, e saíram nos dias da

7
Para maiores detalhes ler Carnaval de rua em Belo Horizonte: interstícios de insurgências sociais e de
apropriações do mercado cultural (2010 a 2020). Disponível em:
https://periodicos.ufmg.br/index.php/licere/article/view/34916

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festa, ocupando comunidades da cidade com marchinhas políticas, instrumentos musicais


e fantasias (BORGES, 2015).
Mas o que se pode considerar como o levante popular foi desencadeado contra as
ações coercitivas que o governo do então prefeito Márcio Lacerda adotava. Em 1 de
janeiro de 2010 entrou em vigor o Decreto n° 13.798 que proibia a realização de evento
de qualquer natureza na Praça da Estação. A Praça da Estação 8 reconhecidamente um
local que abrigava encontros das diversidades culturais, econômicas e sociais, já havia
passado por um processo de revitalização, gentrificação e uso de recursos públicos para
privilegiar planos de espetacularização junto a outras intervenções urbanísticas na cidade9
(JACQUES, 2004). É importante ressaltar que nessa época o país já possuía a
responsabilidade de sediar dois megaeventos em um curto período de tempo: a Copa do
Mundo de Futebol da FIFA em 2014 e os Jogos Olímpicos em 2016 e alguns eventos de
menor porte que serviriam como teste, a Copa das Confederações e as Jornadas Mundiais
da Juventude, ambas em 2013. Nesse sentido, o país possuía diretrizes a partir de uma
linha desenvolvimentista, urbana e social, com claras intenções de preparar/maquiar as
cidades sedes para receber tais eventos e Belo Horizonte fazia parte desse contexto. 20
Tal proibição de uso desse espaço (Praça da Estação) provocou indignação entre
as pessoas que faziam dessa praça seus espaços de encontros. Com intenção de contestar
essa política especulativa, financeira e privatista para os espaços públicos, jovens
engajados em diferentes causas sociais e políticas iniciaram, via redes sociais, uma
organização coletiva horizontal, agrupando pessoas que lutavam nessa mesma

8
A Praça Rui Barbosa ou como é popularmente conhecida a Praça da Estação possui alguns dos marcos
das origens da história e arquitetura neoclássica da cidade. Localizada na região central de Belo Horizonte
em 1904 sua construção foi iniciada. Ali foi instalado, no alto da torre da estação, o primeiro relógio público
da cidade e em 1922 foi inaugurado o novo prédio em estilo neoclássico da estação ferroviária da cidade.
A Praça atualmente centraliza um circuito cultural formado pelos prédios do Museu de Artes e Ofícios,
Casa do Conde de Santa Marinha, Centro Cultural da Universidade Federal de Minas Gerais, o Viaduto de
Santa Tereza e a Serraria Souza Pinto. A maioria dos prédios é da década de 20, formando um dos principais
acervos do estilo neoclássico da cidade e, é também, um dos principais espaços públicos para a realização
de shows, atos políticos e diferentes eventos na cidade. Disponível em:
http://www.belohorizonte.mg.gov.br/atrativos/roteiros/oficios-de-minas/praca-da-estacao-o-lugar-onde-
construcao-comecou
9
Plano de Reabilitação do Hipercentro de Belo Horizonte Disponível em:
https://prefeitura.pbh.gov.br/sites/default/files/estrutura-de-governo/politica-urbana/2018/planejamento-
urbano/publicacaoes_plano_reabilita%C3%A7%C3%A3o_hipercentro_bh.pdf

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perspectiva social. Foi criado o evento Praia da Estação que gerou o movimento Praia da
Estação10 - uma ação que visava a reapropriação desse espaço público. Esse evento
tornou-se um marco na luta política pelo direito à cidade e os protestos aconteceram com
características lúdicas e políticas, pois as pessoas ocuparam a praça em trajes de banho
para protestar, trazendo à tona o potencial festivo do povo mineiro entre o burlesco, a
reivindicação e a ocupação do espaço público em sua fruição de lazer. Enfim, a festa
apresentou-se como um modo de ação e reação coletiva, propiciadora da inversão da
ordem social possibilitando a expressão de um povo.
No próprio ano de 2010, motivados por essa manifestação popular reivindicatória
e caricata bem-sucedida, frequentadores da praça e simpatizantes à causa, criaram o Bloco
da Praia da Estação que com mais dois ou três blocos que já haviam surgido no ano
anterior e outros poucos que foram criados nesse contexto, saíram desfilando e voltando
a ocupar as ruas de BH no carnaval.
Nos anos de 2011 e 2012, o número de blocos que saíam no carnaval de BH
aumentou junto às tensões entre os blocos de rua e o poder público, em função da disputa
pela ocupação dos espaços. Utilizando de mecanismos governamentais para controle da 21
ordem social, órgãos de segurança pública agiam no intuito de tentar coibir a festa. Gás
lacrimogêneo, spray de pimenta e repressões policiais foram algumas das ações violentas
observadas no intuito de dispersar os blocos. Mais uma vez na história, se observa que o
carnaval enquanto manifestação popular não condiz com a cidade pretendida pela elite
social e pelo poder público. Como afirma Roberto Andrés em uma entrevista à revista
Carta Capital (2015, s.p.) em sua ânsia pela ordem “em 2011 a prefeitura passou a
combater a folia, ameaçou donos de bares que vendessem cervejas para blocos e utilizou
a polícia para dispersar blocos”. Lira Neto, corroborando essa linha de pensamento, relata:

É muito interessante quando você ouve no discurso das autoridades que o


carnaval tem que ter "um certo controle". A palavra "controle" pressupõe, até
certo ponto, um aparato repressivo, o que é algo incompatível com a festa, que
não tem controle. Você pode dar suporte para essa festa, preparar a cidade, ter
um grupo de varredores, tentar minimizar os efeitos colaterais da festa, mas ela
é sem regras. (LIRA, 2017, s.p)

10
O nome Praia da Estação faz alusão a um dos espaços mais democráticos de lazer: a praia, ampliando
seu papel irreverente, provocador e jocoso na medida que a cidade não se encontra no litoral do país, ou
seja, não possui praia.

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Com a festa sempre insistindo em voltar no ano seguinte, a compreensão que só


seria possível impedir esse movimento popular aumentando a força bruta, mas com a
percepção de que a festa poderia movimentar a economia da cidade, a folia passa a ser
vista com “outros olhos” pela gestão municipal. Assim, o poder público passa a querer
organizá-la mais de perto, tentando impor a lógica capitalista para uma festa que emanava
do povo, sem ouvir os anseios dos que faziam o carnaval.
Foram anos de conflitos e discussões entre os organizadores de blocos e os
gestores municipais. O governo não estabelecia diálogo com os organizadores dos blocos
e isso dificultou as relações, limitando o desenvolvimento da festa por alguns anos. Em
2012-2013, o governo municipal fez as primeiras tentativas de assumir formalmente a
gestão da festa. Enquanto as ações do governo visavam a gestão econômica do carnaval
procurando patrocínio, determinando os locais dos desfiles, os tempos para o cortejo,
cadastrando os blocos e impondo regras, os organizadores de blocos defendiam a festa
como expressão popular, geradora do debate político, símbolo de resistência e como
possibilidade de exercer o direito à cidade. Como afirmaram Amorim e André:
22
Os jovens da capital mineira propuseram um carnaval que motivasse os
próprios moradores da cidade a ocupar as ruas para festejá-las, para reivindicá-
las, reativando algo de essencial no carnaval brasileiro que havia se perdido na
cidade: a sua irreverência e espontaneidade. (AMORIM e ANDRÉ, 2017,
p.21)

A festa se tornava, a cada ano, maior e mais forte que o poder de repressão estatal
e a atuação brutal do governo frente à manifestação popular espontânea passa a ser
criticada pelos meios de comunicação. A festa volta a atrair a população local. Importante
ressaltar que os blocos que passavam a ocupar o centro e as ruas da capital mineira eram
compostos por uma juventude classe média universitária, artistas, lideranças de
movimentos sociais, engajados em pautas reivindicatórias pelas minorias (LGBTQIA+,
negros, mulheres, sem teto, profissionais do sexo e toda sorte de coletivos). Não restam
dúvidas que as pautas pelas minorias sempre incomodam a elite dominante, mas era
necessário que o governo municipal cumprisse seu papel estatal tentando organizar a festa
para a cidade e seus cidadãos. Estava posto o campo de batalhas: De um lado o governo
com um olhar mercadológico que intencionava gestar e lucrar com a festa versus os
organizadores de blocos que queriam sair às ruas desfilando e reivindicando suas pautas.

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Na esteira do processo de afirmação do carnaval de rua, é possível apontar que em


2012 o governo municipal garante pela primeira vez a limpeza urbana durante o carnaval
e propicia algum suporte com banheiros químicos. Também é o primeiro ano que se pode
contar com dados produzidos pelos órgãos governamentais da cidade e dentre esses têm-
se um número de 24 blocos cadastrados pela Belotur11desfilando nas ruas da cidade.
Nos anos de 2013, 2014 e 2015 o carnaval da cidade cresceu, surpreendendo tanto
os representantes dos blocos quanto a administração pública. Os números de blocos
cadastrados saltam para 46 em 2013 (com estimativa de 70 blocos na rua), 132 blocos
cadastrados em 2014 e 177 em 2015, exigindo, a cada ano, que o planejamento fosse
reestruturado para que o caos não se instalasse na cidade, pois junto com o número de
blocos cresciam os foliões na cidade e todos os problemas que festas nas ruas podem
gerar se não houver organização como: ruas impedidas de circulação perto de instituições
emergenciais (hospitais, bombeiros, polícia), aumento de violência, problemas de
limpeza urbana, necessidade de assistência ambulatorial à saúde etc.
Em 2013, uma nova polêmica entre Prefeitura e Blocos relacionada com a
existência de empresas patrocinadoras se apresenta. Para o carnaval do ano de 2014 a 23
Prefeitura lançou um edital em busca de um patrocinador oficial para a festa, passando a
enquadrá-la como um megaevento e por dois anos uma cervejaria foi a patrocinadora
oficial do carnaval de Belo Horizonte. Essa atitude não agradou aos Blocos que
acreditavam que a festa deveria seguir sendo promovida pela população, de maneira
independente, sem interferência do governo e nem ordens de patrocinador.
Nas entrevistas com os organizadores de blocos e em um artigo intitulado “Foliões
e prefeitura disputam pelo carnaval de Belo Horizonte”, publicado na versão online da
revista Carta Capital, de 17/02/2015, essa afirmação foi ratificada: “O mesmo poder
público que combatia a festa passou a tratá-la como 'megaevento' e buscou patrocinador
ao ver a ascensão dos blocos de rua, que condenam sua apropriação financeira”. O
coletivo Carnaval de Rua de BH (2015) salienta que a ação da Prefeitura em relação ao
carnaval foi de apropriação e distorção, em suas palavras:

11
A BELOTUR, órgão da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, tem a missão de promover Belo
Horizonte como polo de atração turística com visibilidade nacional e internacional.

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A partir de 2012, a PBH tentou se apropriar da festa e distorcê-la. Vendeu o


direito de se fazer comércio nas ruas para uma marca de cerveja, montou palcos
e esbanjou em publicidade. O fato é que os palcos da PBH não atraíram um
décimo dos foliões presentes nos blocos, segundo dados oficiais. Na sua ânsia
privatista, o ex-presidente da BELOTUR chegou a propor que a cidade se
tornasse um grande blocódromo, com áreas restritas para a festa, todas elas
comercializadas com grandes marcas. (PEREIRA, 2015, s.p.)

A questão do financiamento privado em troca de marketing foi um ponto


controverso e sensível na época. A cervejaria que ganhou o edital de patrocínio para o
carnaval da cidade usou de forma indevida a imagem de foliões e integrantes de blocos
para promover sua marca. Isso resultou em um movimento no qual 27 blocos produziram
uma nota de repúdio veiculada por várias redes sociais intitulada “O carnaval é do povo:
manifesto de repúdio a Skol” e que depois de publicada teve a adesão de outros blocos
contabilizando 51 blocos a favor do repúdio. O manifesto ressaltava que o poder público
fazia “uma esdrúxula tentativa de apropriação financeira da festa” de algo que é “do povo
para o povo” e finaliza apontando que “O Carnaval de BH não cederá a lobbys de
megaempresas nem de órgãos públicos que colocam em risco uma festa tão plural e
espontânea, feita com o pulso firme do povo, que clama por uma cidade mais justa, livre
e igualitária. A apropriação não passará!" (CARNAVAL DE RUA BH, 2015). 24

Ao mesmo tempo que os blocos bradavam contra o caminho mercadológico, o


carnaval da cidade crescia e os blocos necessitavam ampliar suas estruturas para atender
a demanda de seus cortejos. É factível que a necessidade de verba para a realização dos
desfiles era pungente, métodos menos convencionais ao mercado começavam a ser
criados para garantir a saída dos blocos e pareciam ser aceitos pelos que contestavam a
lógica mercantilista. Passar o chapéu, financiamento coletivo, crowdfunding, dentre
outros passavam a ser opções. Como possibilidades de angariar fundos alguns blocos
tomam novos caminhos buscando a criação de marca para o bloco como um briefing.
Nesse sentido, os blocos passam a “vender para não se vender, por mais conveniente que
seja o capitalismo, é considerável que até os menos afortunados conseguem deslanchar
por suas brechas, nesse cenário, a saída está no mercado” (MARACAÍPE et.al, 2019,
p.83).
O assédio de patrocinadores a blocos que arrastavam multidões aumentou e a
iniciativa privada passou a realizar eventos concomitantes aos desfiles dos blocos em
espaços fechados. A Prefeitura assumiu a estrutura da festa com os patrocínios em

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diferentes vieses e, em alguns blocos, essa movimentação externa de possíveis


patrocinadores gerou debates e discussões internas sobre o processo de autonomia e
autogestão. Como pontuaram Falcão e Isayama (2021), as discussões entre os integrantes
dos blocos envolviam o debate sobre qual a participação “o mercado” deveria/poderia ter
no carnaval dos blocos da cidade. As bandeiras de lutas de muitos blocos estiveram
associadas a contestação das injustiças e desigualdades sociais e as lutas pela igualdade
de direitos; pelo direito a ocupar os espaços públicos e pela soberania da população frente
ao poderio econômico. No entanto, essas mudanças na magnitude da festa exigiam que
os blocos crescessem junto à festa para que seus foliões e, consequentemente, o evento
como um todo, pudessem alcançar dimensões e qualidade nos cortejos nunca antes
vislumbradas. A perspectiva de transformar a festa doação, seja individual ou coletiva,
em uma cadeia produtiva, em um trabalho, tornou-se um caminho para a
profissionalização.
As divergências e convergências que se apresentavam internamente em muitos
blocos tinham como argumento e alicerce a possibilidade de transformar o que iniciou
como uma brincadeira entre amigos em “trabalho sério”, e por isso, digno de 25
remuneração. Corroborando com o contexto dos que fazem a festa é preciso refletir sobre
a escassez do trabalho formal, principalmente se considerarmos o grupo de trabalhadores
da cultura e da arte. A informalidade é a tônica da maioria desses sujeitos-artistas e a força
coercitiva de uma falsa liberdade e flexibilidade no âmbito de trabalho, apresenta-se
massacrante, levando-os para relações alternativas quando pensamos em remuneração.
É possível observar que esse movimento anti-mercantilista promovido por vários
blocos, demonstra que os sujeitos sociais quando envolvidos em uma causa coletiva são
capazes de resistir no tempo/espaço às estratégias de planejamentos urbanos e sociais
rentistas, com intenções de promover o capital. Entretanto, outros imaginários políticos
são necessários e a luta coletiva proporcionada pelos encontros na festa potencializam a
necessidade de apropriação dos espaços públicos e o desejo de refrear a espetacularização.
Segundo Ribeiro (2005, p.270), a criação desse imaginário social mais justo e igualitário
se dá mediante a ordem “das resistências culturais e das lutas políticas que marcam
trajetos, criam caminhos, interrompem fluxos desejados pelas classes dominantes e
elaboram novas territorialidades”.

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Nesse jogo de forças, o carnaval da cidade segue crescendo e o número de blocos


aumentando. Em 2017, a Belotur cadastrou 363 blocos, em 2018 foram oficializados 500
blocos, em 2019 o número atinge 590 blocos cadastrados, porém, 410 blocos realizaram
447 cortejos e em 2020 o número cai sendo 347 blocos cadastrados com cerca de 390
cortejos (CMBH, 2021). Como os números demonstram, o aumento de blocos cadastrado
pode ser atrelado ao fato que desde o carnaval de 2017 a Belotur criou o Edital para
financiamento de blocos de ruas12, o que longe de ser suficiente para atender a demanda,
já sinalizava o interesse público em fomentar a festa.

Da resistência ao espetáculo na engrenagem capitalista

O capital financeiro que move a engrenagem capitalista chega às manifestações


culturais transformando-as. A cada ano, aumentava o número de blocos a desfilar e o
número de foliões a seguir os cortejos. As bandeiras não mais estavam em consonância
com alguma pauta político-social, às vezes era puro consumo de diversão, algo que a festa
26
também é capaz de proporcionar. A nova ordem imposta pelo capitalismo de acumulação
flexível faz surgir um aspecto diferente em relação aos bens culturais e se observa um
aumento no interesse das tradições culturais, porém, junto com ele, o interesse de
transformá-lo em produto de consumo e espetáculo. A apropriação da cultura com fins de
lucro, segundo Adorno e Horkheimer (1985), acarreta sérias perdas com os processos de
homogeneização, padronização, controle e serialização. Porém, mesmo que se observe
que vivemos um tempo dominado pelo consumo, é possível pensar como Lipovetsky
(2007, p.254) que “a festa oferece a oportunidade de desfrutar um tipo de prazer que o
consumo mercantil e individualista favorece pouco, ou seja, a experiência da felicidade
comum, a alegria de reunir-se, de compartilhar emoções, de vibrar em uníssono com a
coletividade.”
Foi possível observar que em 2019 existe uma mudança no posicionamento e na
postura do governo frente à festa. A Belotur, sob a direção que assumiu a gestão em 2017,

12
O montante do recurso era de R$300 mil, divididos em 3 categorias: categoria A recebendo R$10 mil
categoria B recebendo R$5 mil e categoria C recebendo R$3 mil. Nesse ano foram contemplados 38 blocos,
19 na categoria A e 19 na categoria B, usando R$295 mil do orçamento destinado.

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passou a defender o diálogo como prática para uma construção coletiva e democrática da
festa. Em entrevista concedida para essa pesquisa em 2019, Gilberto Castro, Presidente
da Belotur, afirma que “nós não fazemos o carnaval. Quem faz o carnaval é a sociedade
civil, cabe ao poder público fazer a gestão dos serviços e nós trabalhamos no sentido de
conseguir fazer com que a festa aconteça da maneira mais espontânea possível”.
Para o carnaval de 2019, foram chamados os organizadores dos blocos de rua para
conversar e assim promover uma integração entre os que fazem e os que gestam a festa,
na tentativa de afinar as demandas dos blocos e as necessidades da cidade que não pode
parar de funcionar. Essa abertura para as negociações entre os que “gestam” e os que
“fazem” aproximou os dois lados que antes estavam em oposição, para buscarem soluções
para as demandas e os problemas que cresciam junto com o carnaval. Como disseram
Castro e Jordana (presidente da Belotur e a assessora chefe de planejamento e gestão) na
entrevista em 2019:

A Prefeitura de Belo Horizonte hoje não faz o carnaval porque tem obrigação
de fazer, faz porque acha bacana fazer, porque sabe que é uma oportunidade
pra cidade, porque entende que a cidade quer, e isso é muito legal de enxergar.
Essa é uma mudança que aconteceu, como outras milhões de mudanças. Os 27
desejos dos blocos de 2016, vou longe não, são totalmente diferentes dos
desejos dos blocos hoje [...] os blocos por exemplo, tinham uma vontade muito
grande de serem autônomos, de depender quase nada de ninguém, mas hoje
eles entendem que de fato eles precisam de ter um patrocínio, que isso não é
negativo, que isso não é se vender. Que isso é parte do processo de um bloco
que cresceu, foi se profissionalizando e que tem 100 mil pessoas, ali atrás, e
ele tem responsabilidade de alguma forma sobre essas pessoas. Ele quer dar
um som legal, quer ter uma banda legal, uma produção legal e isso tudo tem
um custo.

O entendimento da festa com necessidade de coparticipação e de cogestão entre


os órgãos institucionais e os atores envolvidos anuncia uma mudança de postura da
instância governamental e dos que organizam os blocos. Segundo os entrevistados
representantes da Belotur, nos últimos anos, as cartas são postas sobre a mesa e as
necessidades da cidade precisam ser planejadas e respeitadas por todos. Temas como
descentralização dos blocos, subsídio para ajudar financeiramente os blocos, horários pré-
determinados para começar e acabar os desfiles, tamanhos dos trios e as ruas que podem
passar, fazem parte da pauta de negociações.

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Se em outros anos o carnaval foi realizado sem recurso financeiro público, em


2018 a festa captou 9 milhões sendo 3,6 milhões em verba direta e 5,4 milhões em
planilhas de estrutura e serviços em patrocínios para investimento direto no carnaval13.
Em 2019, subiu o montante investido perfazendo 4,5 milhões em aportes diretos mais 8,3
milhões em planilhas de estrutura e serviços14. Foram utilizados como subvenção para os
blocos de rua o montante total de R$ 564.000,00 (164 mil a mais que em 2018),
organizado em 4 categorias com valores diferenciados (R$ 10 mil, R$ 7 mil, R$ 5 mil e
R$ 3 mil) e nesse contexto foram contemplados 84 blocos (PBH/Belotur) 15.
Segundo o presidente da Belotur, Gilberto Castro, nenhum recurso é proveniente
diretamente dos cofres públicos e todo investimento na festa foi feito por patrocinadores.
O carnaval de Belo Horizonte chega em 2020 como o carro chefe da Belotur e nesse ano
foram utilizados como subvenção para os blocos de rua o montante total de R$ 454,396
em 4 categorias: categoria A R$ 12 mil; na categoria B, R$ 8,5 mil; na categoria C, R$ 6
e na categoria D, R$ 3,5 mil (PBH/Belotur) 16. A festa no estado de Minas Gerais teve
uma movimentação econômica de cerca de R$ 809 milhões, segundo os cálculos da
Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC)17. Dessa forma, 28
ficou em quarto lugar no volume de recursos estimados para a economia da festa no
Brasil, atrás do Rio de Janeiro (R$2,32 bilhões), São Paulo (R$ 1,95 bilhão) e Bahia (R$
1,13 bilhão)18.
Ao mesmo tempo, é possível notar que junto ao crescimento econômico da festa
e, em alguma medida, sua transformação em mercadoria, crescem as reivindicações
sociais que se efetivam. É visível que os blocos de rua se multiplicaram ao longo desses
anos e muitos continuam levantando bandeiras de protestos contra as mazelas sociais.

13
https://prefeitura.pbh.gov.br/noticias/carnaval-supera-expectativas-e-tem-publico-de-38-milhoes
14
https://prefeitura.pbh.gov.br/noticias/carnaval-de-belo-horizonte-cresce-em-2019-e-encanta-43-
milhoes-de-folioes
15
https://prefeitura.pbh.gov.br/noticias/belotur-divulga-lista-de-blocos-que-terao-subvencao-no-carnaval-
2019
16
https://prefeitura.pbh.gov.br/noticias/pbh-publica-edital-de-auxilio-financeiro-para-blocos-de-rua-do-
carnaval-2020
17
https://www.fecomerciomg.org.br/news/comercio-de-bh-esta-otimista-com-as-vendas-durante-o-
carnaval/
18
https://diariodocomercio.com.br/turismo/cnc-estima-movimentacao-de-r-8-bi-no-carnaval/

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Ao invocar por uma sociedade mais democrática, os corpos que brincam, que se
sensualizam, que carregam a jocosidade e a irreverência em seus cortejos, invadem a
cidade ocupando e se apropriando das ruas com pautas políticas. Bandeiras ligadas às
minorias sociais como negros, mulheres e a população LGBTQIA+; à ocupação dos
espaços como direito; à diversidade rítmica nos blocos; à liberdade de expressão etc.
Fazem o carnaval de Belo Horizonte seguir seu cortejo pelas ruas efetivando “o direito à
cidade” na perspectiva Lefebvriana. Pois esta postula o direito à cidade como um
contraponto aos processos de urbanização que transformam as cidades em mercadorias,
não levando em conta as construções sociais estabelecidas em suas relações. Em sua
concepção a cidade é visualizada como um local privilegiado de criação, de
estabelecimento de centralidades, de combinação e transformação de relações sociais.
Nesse crescimento vertiginoso do carnaval belo-horizontino, a cidade
paulatinamente foi deixando de exportar seus foliões, que já não viajam mais para brincar
no carnaval em outras cidades e estados e passa a receber os foliões turistas. O carnaval
da capital mineira é o período em que a cidade recebe o maior número de turistas no ano,
sendo considerado o principal evento de fomento para o setor turístico. Junto a esse setor, 29
vários segmentos se desenvolvem com o crescimento da folia: os prestadores de serviço,
o transporte particular, a hotelaria, a gastronomia e um destaque pode ser feito para o
setor informal, o qual a Prefeitura vem, ao longo dos anos, organizando o cadastramento
de ambulantes para venderem bebidas e adereços.

A guisa de conclusão

Compreendendo o lugar festivo como uma instância espacial comunicativa de


determinadas narrativas, o artigo procurou desvelar não apenas diversidades e
singularidades, mas sobretudo algumas expressões das lutas, das resistências e das
tensões de/entre diferentes atores sociais que fizeram acontecer o denominado
reflorescimento do carnaval de rua da cidade de Belo Horizonte.
São diferentes caminhos e perspectivas que podem ser analisadas nesse percurso.
Aqui escolhemos descrever fragmentos do empoderamento do carnaval de rua da capital
mineira que foi se constituindo como uma necessidade da população em reapropriar-se

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da cidade. Nesse sentido, os sujeitos procuraram resistir a cidade que se produzia para
consumo sob o viés dos interesses do capital econômico a partir de uma lógica de
subversão da ordem social e da insubmissão a partir da jocosidade e irreverência, o que
fica evidente na efervescência carnavalesca.
Entretanto, não é mais possível pensar no carnaval belo-horizontino sem
relacioná-lo à tendência à mercantilização e à estetização da festa. O “capitalismo
cultural” é a nova face do modo de acumulação capitalista. Nesse sentido, a cultura acaba
sendo utilizada como recurso e o capitalismo se volta ao mercado de consumo
multiplicando os estilos, as tendências, os espetáculos, os lugares de arte, lançando novas
modas em todos os setores e criando em escala os sonhos, o imaginário, as emoções, bem
como tornando artístico o domínio da vida humana.
O que se observa no carnaval da cidade é que, a cada ano, mais blocos de
diferentes vertentes, sejam elas políticas, sociais, econômicas, finalidade zero
(DUVIGNAUD, 1983), surgem ampliando a diversidade que é produzida pela cidade. O
poder público, como responsável pela gestão da festa, aproveita dessa vocação advinda
das culturas populares espontâneas para impulsionar seus planos de fortalecimento da 30
economia da cidade, investindo em áreas como o turismo, a gastronomia e o lazer, todos
setores diretamente envolvidos com a transformação e o crescimento do carnaval.
A partir desse desenho traçado sobre o carnaval de Belo Horizonte e pensando em
sua relação com a apropriação do espaço público, corrobora-se que a perspectiva do
direito à cidade “é muito mais que a liberdade individual de acesso a recursos urbanos: é
o direito de mudar a si mesmos por mudar a cidade” (HARVEY, 2012, p. 74). É,
sobretudo, um direito coletivo, pois a transformação inevitavelmente depende do
exercício de um poder coletivo para dar nova forma ao processo de urbanização.
Compreende-se que o carnaval em Belo Horizonte refloresceu pelo direito de fazer e
refazer a cidade e a nós mesmos como um dos mais preciosos e, ainda assim, mais
negligenciados direitos humanos.
Foi possível vislumbrar no processo investigativo do reflorescimento do carnaval
de rua da cidade Belo Horizonte o poder da festa em sua essência provocativa e
reivindicatória, adentrando nas relações contemporâneas que se estabelecem a partir da
ocupação dos espaços na cidade e a entrada do Estado como agente regulador. Por fim,

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ressaltamos que essa festa que é referência de alegrias, excessos e irreverências, segue
ampliando seu desenvolvimento na cidade e carregando em seus cortejos, corpos em festa
que em seus potenciais coletivos transformam a paisagem urbana em local de
experimentação.
Como último ponto, tem-se a interrogativa de como a festa voltará a acontecer
após a ruptura orgânica e mercadológica dos processos realizadores da festa. Sob o
advento da pandemia COVID-19, que impediu o carnaval de acontecer nos anos 2021 e
2022, tudo até aqui elaborado sofre uma paralisação radical, apontando que questões que
até então eram vislumbradas como ascensão da festa, podem ter o caminho desviado.
Seguimos observando e aguardando quando o carnaval chegar!

Referências
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Gravação pessoal armazenada em mídia digital feita pelos pesquisadores.

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CARNAVAL DE RUA DE BELO HORIZONTE:


ontem e hoje

Street Carnival of Belo Horizonte: yesterday and today

Ana Flávia Rezende1


Luiz Alex Silva Saraiva2

Resumo: O carnaval é a maior festa popular brasileira, existindo na capital mineira antes mesmo da
inauguração oficial da cidade. Este artigo objetiva brevemente revisitar a história do carnaval de rua de
Belo Horizonte desde a sua origem até o atual protagonismo dos blocos de rua, evidenciando como o espaço
urbano pode ser apropriado por manifestações culturais de caráter carnavalesco. Com base em uma revisão
bibliográfica, percebeu-se que o carnaval pode ser visto como um paradoxo entre a cidade planejada para
representar a ordem e o progresso da República nascente e a cidade apropriada pela festa. As principais
conclusões apontam que o carnaval só acontece devido aos sujeitos que por ele se responsabilizam, e que
as assimetrias entre os agentes demandam práticas redistributivas para que a horizontalidade e a resistência
não se enfraqueçam e o carnaval não seja privatizado, mantendo-se efetivamente uma festa popular.

Palavras-chave: Carnaval. Blocos de Rua. Belo Horizonte.

Abstract: The carnival is the largest popular Brazilian celebration, existing in the capital of Minas Gerais
even before the official inauguration of the city. This article aims to briefly revisit the history of Belo
Horizonte's street carnival from its origin to the current protagonism of street blocks, highlighting how
urban space can be appropriated by cultural manifestations of carnival character. Based on a literature 33
review, it was realized that the carnival can be seen as a paradox between the city planned to represent the
order and progress of the nascent Republic and the city appropriated by the party. The main conclusions
point to the fact that carnival only happens because of the subjects that are responsible for it, and that the
asymmetries between the agents demand redistributive practices so that horizontality and resistance are not
weakened and carnival is not privatized, effectively remaining a popular party.

Keywords: Carnival. Street Carnival. Belo Horizonte.

Introdução

Os carnavais brasileiros têm sua origem no Entrudo lusitano, uma festa que, apesar
de ser brincada por todas as classes, foi duramente criticada e perseguida por autoridades,
políticos e integrantes da alta sociedade (grandes comerciantes, banqueiros, profissionais
liberais e fazendeiros), por ser considerada selvagem e pouco refinada (ARAÚJO, 2008b;
FERREIRA, 2004; CARVALHO; MADEIRO, 2005). Diante de tais ofensivas, foram

1
Doutora em Administração e docente na Fundação Dom Cabral. Endereço eletrônico:
ana.rezende@fdc.org.br.
2
Doutor em Administração e docente na Universidade Federal de Minas Gerais. Endereço eletrônico:
saraiva@face.ufmg.br.

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trazidos ao Brasil os bailes fechados, tal qual os bailes mascarados comuns em cidades
europeias como Roma, Veneza e depois Paris (ARAÚJO, 2008a).
Apesar de Santos, Souza e Pereira (2016) defenderem que o carnaval dessa época
contava com a participação de grande parte da população nos bailes de clubes fechados,
na verdade, apenas as pessoas da alta sociedade dispunham de recursos para comprar
fantasias e pagar ingressos para tais festividades. Ferreira (2004) reitera que os bailes
eram feitos para todo o tipo de público que tivesse condições de pagar entrada e fantasia.
Para aqueles que não tinham dinheiro para investir na folia dos salões, restava brincar nas
ruas. Apesar do seu caráter altamente excludente, tais bailes contribuíram para o
surgimento do carnaval de rua atual, já que os populares (pessoas mais pobres) passaram
a se interessar também pelas novas formas de brincar que as classes dominantes haviam
trazido, como o desfile de grupos fantasiados (FERREIRA, 2004), fazendo a fantasia
parte do universo simbólico dessa festa até os dias atuais.
Desde a Primeira República, a cultura e os valores que advêm das camadas mais
populares são estigmatizados como manifestações de atraso e barbarismo. Porém, apesar
de todo o esforço de criar uma imagem civilizada da sociedade, extirpando as formas de
expressão desses grupos, seu apagamento não obteve êxito. Os populares engendraram as
34
mais diversas formas de resistência para lidar com a opressão e a intolerância. “As
manifestações populares não só persistiram como também se difundiram e se
entrelaçaram com a cultura dominante, dando lugar à circularidade cultural” (SOIHET,
1998, p. 120). Em particular, o carnaval se apresenta como um rito que tem o poder de
“recriar o mundo oficial às avessas” (SOIHET, 1998, p. 152), uma vez que permite que
os populares ocupem as ruas podendo até mesmo dramatizar relações, desejos,
possibilidades e posições sociais, um processo que ocorre em praticamente todo o país.
Em Belo Horizonte mais especificamente, uma cidade projetada para ser um novo
centro intelectual, foco irradiador de civilização, ordem e progresso, a primeira cidade
planejada da mais recente República brasileira (CALVO, 2013; LOTT, 2018), são os
blocos de rua as organizações de destaque do carnaval nos últimos anos, embora também
se destaquem escolas de samba e blocos caricatos. A retomada recente do carnaval,
contudo, é devedora de manifestações de caráter carnavalesco acontecendo pelas ruas da
cidade antes mesmo de ser inaugurada, uma história que merece ser recontada. Nesse
sentido, este artigo objetiva brevemente revisitar a história do carnaval de rua de Belo
Horizonte desde a sua origem até o atual protagonismo dos blocos de rua.

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Para além desta introdução, este artigo é organizado a partir da discussão acerca
das tipologias das organizações de carnaval belo-horizontinas, para depois abordarmos
os grandes responsáveis por essa nova fase da festa: os blocos de rua. Por fim, traçamos
as implicações entre carnaval de rua e a apropriação cultural do espaço urbano, seguindo,
logo depois, para as considerações finais.

Tipologias das organizações de carnaval de Belo Horizonte

A história do carnaval da cidade de Belo Horizonte remonta à criação da nova


capital (BRAGA; VIEIRA, 2013), uma vez que antes mesmo da inauguração da cidade,
em 12 de dezembro de 1897, já aconteciam aqui folias de caráter carnavalesco. Em janeiro
de 1897, operários que trabalhavam na construção da cidade se reuniram em um desfile
de carros e carroças da Praça da Liberdade até a Avenida Afonso Pena (BELOTUR,
2019a). A organização espontânea e improvisada dos operários – os que desfilavam
pintavam os rostos e improvisavam fantasias para irem às ruas em cima de carroças, entre
latas e tambores – foi o que originou o que é conhecido como blocos caricatos, destaque
nos primeiros anos do carnaval e presente até hoje na cidade.
35

A febre dos blocos caricatos ficou caracterizada nos anos 50 e 60. Sendo que
em 1966, a manchete do Estado de Minas [jornal de grande circulação da
época] anunciava que mais de 50 blocos caricatos desfilariam pela Afonso
Pena. Precisando até mesmo utilizar cordão de isolamento, pois a avenida
ficava lotada (E OS BLOCOS..., JORNAL ESTADO DE MINAS, 2015)

Com o passar dos anos, as carroças foram substituídas por caminhões e carros de
som, os grupos passaram a se organizar em blocos, o improviso virou costume e, a partir
de 1980, os desfiles começaram a valer títulos. Os blocos caricatos são manifestações
exclusivas das cidades mineiras, como Belo Horizonte, São João Del Rey e Sabará, e se
caracterizam por ser um grupo fantasiado de instrumentistas que desfilam em cima de
caminhões alegóricos, formando uma bateria suspensa acompanhada no nível da rua por
foliões e passistas também fantasiados (DIAS, 2015). O município de Belo Horizonte
reconhece que as disputas entre blocos caricatos carregam a originalidade da cultura
carnavalesca, como marchinhas autorais, alegorias e fantasias (CMBH, 2016;
BELOTUR, 2019c). Mesmo que não sejam mais os protagonistas do carnaval, os blocos
caricatos se apegam à relevância histórica, sua bagagem cultural e originalidade para se
manterem como figuras atuantes no carnaval.

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Com o passar do tempo, novas organizações de caráter carnavalesco foram
criadas, tal como o Clube Matakins, fundado em 1904, no qual as pessoas fantasiadas
brincavam com confetes, serpentinas e lança-perfumes (BRAGA; VIEIRA, 2013). Nessa
época, já existia também o corso, uma atividade lúdica realizada por particulares com
seus automóveis, por vezes apoiados pelas agremiações.

O corso foi uma das primeiras manifestações carnavalescas de rua de Belo


Horizonte. Ocorrido pelos anos de 1920, era um desfile, onde foliões saíam às
ruas em seus carros de capota arriada, comuns na época, fantasiados e
cheirando lança-perfume, hoje proibida (COMO A FESTA..., JORNAL
DIÁRIO DE MINAS, 1990, p. 1).

Nesse período, no qual a nova capital de Minas Gerais já era o lugar de moradia
oficial dos representantes da nova República, o carnaval da cidade passou a ser visto como
elegante e criativo, apresentando participação de grande parte da população,
principalmente nos bailes de clubes fechados que eram cada vez mais procurados
(SANTOS; SOUSA; PEREIRA, 2016). Em 1899, surgiram as primeiras bandas
carnavalescas e o Clube Diabos da Luneta, que promoveram um desfile, com a
participação de vinte e dois carros alegóricos que percorreram as ruas da cidade
(SANTOS; SOUSA; PEREIRA, 2016). Os blocos de rua só vieram a surgir nesse carnaval 36
em 1947, com a criação do Leão da Lagoinha, que nasceu na parte central da cidade, na
região da Lagoinha (BELOTUR, 2019a). Este bloco, que possui hoje 75 anos e desfilou
de 1947 até 1980, retomou suas atividades em 2017, já em um novo cenário do carnaval
de rua da cidade.
Em relação a essa efervescência do carnaval de rua de Belo Horizonte, reportagens
de jornais catalogados e documentados no Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte
(APCBH) relatam que:
Nas primeiras décadas do Século XX, os belo-horizontinos brincavam nas
batalhas, assistiam aos desfiles dos corsos e blocos caricatos, enchendo ruas e
avenidas de confetes, serpentinas e lança-perfumes [...]. Nesta época, o
Carnaval de Belo Horizonte acontecia nas ruas e em matinês no Automóvel
Clube, Minas Tênis Clube, Clube Belo Horizonte, ou até mesmo em cinemas,
como os já extintos Jaques e Metrópole, que abriam suas portas para a diversão
dos foliões. A partir dos anos 30, as batalhas [...] cuidavam de movimentar o
Carnaval, incentivando os desfiles das primeiras escolas e dos blocos que as
originaram [...]. Nas décadas de 40, 50 e parte dos anos 60- antes do golpe
militar de 1964-, os preparativos para o Carnaval eram iniciados com muita
antecedência. Entre julho e setembro eram gravadas as músicas que seriam
tocadas durante a festa. O disco ficava pronto em dezembro e um serviço de
alto-falantes na Av. Afonso Pena começava a tocar só músicas de Carnaval.
Dias antes do início dos festejos, todos já sabiam cantar as marchinhas [...].
Até o final dos anos 80, a cidade manteve uma tradição forte de Carnaval de
rua, com grande participação popular (A FOLIA..., JORNAL HOJE EM DIA,
2004).

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A partir da década de 1970, o poder público da capital mineira investiu elevados


valores para criar ou transformar alguns blocos em escolas de samba, movimento
inspirado nos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro (BRAGA; VIEIRA, 2013;
DIAS, 2015). Nesse cenário, entre 1930 e 1980, foram as escolas de samba e blocos
caricatos que comandaram as festas carnavalescas. Em 1980, via Decreto nº 3676, o
carnaval de Belo Horizonte, e mais especificamente os desfiles das escolas de samba e
blocos caricatos, foram oficializados e regulamentados (DIAS, 2015).
A primeira escola de samba de Belo Horizonte foi a Escola de Samba Pedreira
Unida, formada por moradores da Pedreira Prado Lopes, comunidade localizada na região
da Lagoinha (PBH, 2019a), mesma região onde surgiu o primeiro bloco de carnaval da
cidade. A escola desfilou pela primeira vez, em 1937, e mesmo com a criação das escolas
de samba e com os desfiles oficiais na década de 1980, está sempre foi uma folia de escala
local:

O desfile das escolas belo-horizontinas, que já foi às margens do Rio Arrudas


e na Av. Afonso Pena, nunca chegou a ser uma grande atração turística,
chegando inclusive, após 1990, a ser suspenso, retornando apenas em 2000. A
tradição do Carnaval de Rua de BH foi mantida pelas bandas Mole e Santa 37
atraindo milhares de pessoas uma semana antes do dia de folia. A Banda Santa
– extinta em 2001 – fez seu desfile durante 10 anos no bairro Santa Teresa.
Restou a Banda Mole, que desfila há quase 30 anos e costuma reunir cerca de
100 mil pessoas (JORNAL HOJE EM DIA, 2004, Caderno 28).

Apesar da pouca projeção das escolas de samba nesse carnaval, a República


Independente Banda Mole ou apenas Banda Mole, talvez a maior memória viva desse
carnaval do passado e do presente da capital mineira, estreou, em 1975, na festa de pré-
carnaval da cidade. Crescendo, ano após ano, chegou a levar cerca de 400 mil pessoas às
ruas em 1995 e, atualmente, continua desfilando no período pré-carnavalesco (DIAS,
2015).
Não obstante a efervescência das décadas anteriores, praticamente não ocorreram
manifestações carnavalescas em Belo Horizonte na década de 1990, sendo poucos os
grupos e agremiações ativos (DIAS, 2015). Entre 1989 e 2003 quase não foram realizados
desfiles de carnaval:

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Em 1994 foi vinculada ao jornal Estado de Minas uma reportagem intitulada


“Como morreu o carnaval em BH”, nela ressaltava que uma das poucas coisas
que lembrava aquele carnaval que a cidade viverá outrora era a Banda Mole.
Acabou o carnaval de rua, acabou o carnaval de bailes. O carnaval de rua deu
lugar ao progresso, eles afirmaram, mas ao mesmo tempo o carnaval carioca
vivia e o do Nordeste também. Então, afinal, o que acabou com o carnaval de
mineiro? (MARIA, 1994, p. 2).

As escolas de samba deixaram de desfilar em 1990 em virtude da inviabilidade


econômica (nessa época, todo o recurso financeiro usado no carnaval advinha da
Prefeitura) e só retornaram, em 2004, mediante o interesse da Prefeitura de Belo
Horizonte (PBH) em conjunto com a Belotur em resgatar a identidade cultural do carnaval
da cidade que se baseava nos festejos do corso carnavalesco, bandas carnavalescas, bailes
populares, blocos caricatos e escolas de samba (BRAGA; VIEIRA, 2013). Antes dessas
iniciativas públicas de retomada dos festejos carnavalescos, Dias (2015) sustenta que a
cidade passou a ser conhecida pelo sossego durante os dias de carnaval a partir de 1990.
Em 2002, o carnaval de Belo Horizonte começou a ser retomado com os desfiles
dos blocos caricatos, mas, em 2003, ele foi cancelado novamente em virtude das fortes
chuvas que acometeram a cidade (DIAS, 2015). Por decisão do então Prefeito, Fernando
Pimentel, foram canceladas todas as manifestações carnavalescas promovidas pelo 38

Município. O valor que seria destinado ao carnaval daquele ano foi usado para atender as
vítimas das chuvas.
Nesse vai e volta da festa, o que ocorreu em Belo Horizonte foi um grande
esvaziamento da cidade no período carnavalesco. Em 2004, por exemplo, cerca de 500
mil habitantes deixaram a capital mineira, durante o período do carnaval (BRAGA;
VIEIRA, 2013). Esse hiato, utilizado pela imprensa para decretar o fim da festa, chegou
a motivar o argumento de que a cidade deveria investir na atração de turistas que não
gostavam dos festejos carnavalescos, fazendo uso da sua imagem de tranquilidade durante
os dias de feriado, situação que se manteve até o início dos anos 2000, com a retomada
dos festejos.
Em 2004, por exemplo, mesmo com grande parte de belo-horizontinos deixando
a cidade, os desfiles das escolas de samba e blocos caricatos retornaram graças à
organização e ao financiamento institucionais do poder público, a partir de negociações
entre Prefeitura e as agremiações carnavalescas. Apesar desse movimento de retomada,
foi apenas por volta de 2009 que o carnaval de Belo Horizonte vivenciou uma grande
transformação com o movimento dos blocos de rua fazendo com que a festa alcançasse

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grandes proporções, chegando a receber milhões de foliões nas ruas como acontece no
presente (DIAS, 2015).
A história das festividades carnavalescas da cidade de Belo Horizonte é dinâmica.
Na intenção de sintetizar esses eventos, desde as comemorações daqueles que foram
responsáveis pela construção da cidade, passando pelas várias tipologias de organizações
do carnaval até os blocos de rua, na tabela 1, esquematizamos de forma cronológica os
principais acontecimentos que marcaram o carnaval da cidade.

Tabela 1: Cronologia dos principais eventos carnavalescos de Belo Horizonte


Período Evento
1897 Em janeiro, operários que trabalhavam na construção da cidade desfilaram no Carnaval de BH, antes mesmo da
inauguração da cidade.
1899 Banda chamada Diabos da Luneta desfilou na região da Praça Liberdade com 14 carros fantasiados.
1900 Início das batalhas de confetes e bailes populares. Nessa época apareceram também os blocos Caricatos.
1904 Criação do Clube Matakins.
Década de 1910 Começa o desfile das grandes sociedades, que saíam com os carros alegóricos – na verdade caminhões – pela
cidade.
Década de 1930 A Escola de Samba Pedreira Unida, formada por moradores da Pedreira Prado Lopes, é a primeira agremiação a
desfilar em BH.
1947 Fundação do primeiro Bloco de Rua do Carnaval de Belo Horizonte: Leão da Lagoinha.
1975 Banda Mole faz sua estreia no Carnaval, fruto de uma dissidência do Leão da Lagoinha.
Escolas de Samba e Blocos Caricatos saem pela primeira vez na Avenida Afonso Pena. Desfile oficial do Carnaval
1980 foi instituído pelo Decreto Municipal 3.676.
Desfiles das Escolas de Samba e Blocos Caricatos são praticamente suspensos e o carnaval passou a ser
1991 a 1999 comemorado nos bailes populares das regionais. Em 1997, além dos bailes, a festa contou com a apresentação
de blocos caricatos e escolas de samba na Avenida Afonso Pena, mas sem a montagem de arquibancadas. 39
Anos 2000 Foi promulgada Lei Municipal que instituiu oficialmente o Carnaval de Belo Horizonte, sendo a Prefeitura
Municipal de Belo Horizonte responsável pelo evento.
Volta de desfiles na Avenida Afonso Pena, mas sem competição. O local ganhou arquibancadas e toda a
2001 a 2002 infraestrutura necessária para receber os foliões. Além disso, os bailes populares continuaram a ser realizados
nas administrações regionais.
Por decisão do Prefeito Municipal de Belo Horizonte, Fernando Pimentel, foram canceladas todas as
2003 manifestações promovidas pelo Município, sendo que o valor que seria utilizado no Carnaval daquele ano, foi
destinado a vítimas das chuvas que aconteceram na Capital no mesmo período.
2004 Desfile das Escolas de Samba é transferido para a Via 240, na região Norte.
2010 Movimentos de Blocos de rua começam a surgir pela cidade.
2011 Desfile das Escolas de Samba é transferido para o Boulevard Arrudas, na região Centro-Sul.
2013 Blocos de Ruas atraem grande número de foliões, em especial na região central e no bairro Santa Tereza.
O desfile das escolas de samba e blocos caricatos volta para a Avenida Afonso Pena depois de 24 anos sendo
2014 realizado em outros locais. Blocos de rua levam uma multidão de foliões para todas as regiões da cidade.
Mais de 1 milhão de pessoas entraram para a história da capital mineira quanto ao número de público. Foram
2015 mais de 200 blocos de rua, nove blocos caricatos e seis escolas de samba desfilaram na avenida Afonso Pena.
2016 Público de 1,6 milhão de foliões.
3 milhões de foliões nas ruas, 416 desfiles de blocos de rua, desfiles de escolas de samba, blocos caricatos e
2017 shows de artistas locais em 3 palcos oficiais. Após 36 anos, o primeiro Bloco de Rua do Carnaval de Belo Horizonte,
Leão da Lagoinha, volta a desfilar na cidade e comemora 70 anos de existência. Patrocínio da Skol: 1,5 milhão.
Investimento da PBH: 1,5 milhão.
3,6 milhões de pessoas, cerca de 480 blocos de rua cadastrados e 550 desfiles de blocos. 7 palcos oficiais com
2018 programação de artistas locais e regionais nas nove regionais. Incremento na estrutura dos desfiles de escolas
de samba e blocos caricatos. Patrocínio: Skol e Uber: R$ 3,5 milhões.
Teve mais de 550 blocos de rua (em todas as regiões da cidade), cerca de 700 desfiles, oito palcos com shows
2019 gratuitos, desfile de escolas de samba e blocos caricatos. A festa começou oficialmente em 16/02 e terminou em
10/03, durante vinte e três dias.
Última folia antes da explosão da Pandemia de COVID 19, a festa contou com a participação de 4,45 milhões de
2020 foliões. Com mais de 350 blocos cadastrados e 390 cortejos (alguns blocos desfilaram mais de uma vez). A
ocupação hoteleira chegou a 56%. Sendo que na região Centro-Sul, a média chegou a 61%.
Fonte: Adaptado de Rezende (2022).

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Se em 2004, como nos mostraram Braga e Vieira (2013), Belo Horizonte perdia
cerca de 500 mil habitantes durante o período do carnaval, no quadro 1 percebemos que
essa realidade vem mudando entre os anos de 2009 e 2010, quando movimentos de blocos
de rua começam a surgir pela cidade. À medida que essas organizações carnavalescas se
consolidaram, o carnaval de Belo Horizonte passa a ganhar novamente status de festa
popular. Em 2020, por exemplo, último carnaval antes do período pandêmico em
decorrência do Coronavírus, aconteceram quase 400 desfiles espalhados pelas nove
regionais da cidade, com cerca de quatro milhões de foliões. Mas, afinal, qual a história
por trás do surgimento dos blocos de rua na capital mineira?

Blocos de Rua: de movimento popular à grande festa carnavalesca

Uma das explicações para o reaparecimento das festas de carnaval de rua em Belo
Horizonte está ligada a um movimento independente de qualquer apoio do poder público,
uma forma de resistência ao cerceamento à ocupação do espaço da cidade (DIAS, 2015).
Os blocos de rua que despontaram na capital nos anos de 2009 e 2010 tiveram papel
fundamental nesse processo, uma vez que eles foram resultado de um movimento popular 40

criado pelos próprios belo-horizontinos, já no princípio dos anos 2000 (BELOTUR,


2018). Além disso, manifestações populares como a Praia da Estação, também
estimularam a ocupação e a ressignificação dos espaços públicos, o que desencadeou o
aumento exponencial de blocos de rua, festas e foliões na cidade (BELOTUR, 2019a).
A Praça da Estação, localizada no hipercentro da cidade, foi reformada durante o
projeto Boulevard Arrudas que buscou cobrir o Rio Arrudas, construir pistas para
circulação de carros e revitalizar a área central na década de 2000. A Praça, que por muitos
anos serviu de estacionamento para veículos, após a reforma recebeu melhorias como sua
requalificação e instalação de fontes que saem do chão e formam colunas d’água
(EPAMINONDAS, 2010). Essa reforma teve a intenção de transformar a Praça em um
espaço de grandes eventos. Porém, o prefeito Márcio Lacerda decretou que estava
proibida a realização de eventos de qualquer natureza nesse espaço (MIGLIANO, 2013).
O Decreto 13.798/09, publicado em 9 de dezembro de 2009, proibia eventos de
qualquer natureza na Praça da Estação, a contar do dia 1 de janeiro de 2010. A justificativa
era que o poder público municipal teria dificuldades em limitar o número de pessoas
participantes de eventos realizados no local, bem como garantir a preservação do

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patrimônio público que havia sido depredado em decorrência dos últimos eventos
ocorridos na Praça (OLIVEIRA, 2012; MELO, 2014). Com a nova legislação e,
consequentemente, a privação do direito consolidado de utilização da área de encontro e
lazer comunitário (MIGLIANO, 2013), deu-se início a uma movimentação, que um mês
depois, se transformou no evento chamado de Praia da Estação (OLIVEIRA, 2012).
Diante do cenário de proibição, belo-horizontinos insatisfeitos com o não uso dos
espaços públicos como lugares para o encontro da diversidade cultural, econômica e
social, iniciaram um movimento sem líderes, com organização horizontalizada e
apartidária que decidiu realizar “uma praia”, isto é, um evento em espaço público, aberto
e gratuito. Toda a mobilização e convocação para o evento foi feita pela internet. Nas
chamadas para o encontro, a população foi convidada a ir de roupa de banho e levar
crianças, cachorros e objetos que costumam usar em um dia de sol na praia. O convite
incitava uma ação lúdico-política, na praça, já que a ideia era ocupar o espaço público
para viver um dia de praia, encontros e conversas sobre o decreto (MIGLIANO, 2013).
No dia do evento, sábado, 16 de janeiro de 2010, os manifestantes ocuparam a
Praça da Estação (OLIVEIRA, 2012; MELO, 2014). O clima foi complementado pelos
41
vendedores ambulantes que chegaram para comercializar seus produtos. Os participantes
esperavam se banhar nas fontes luminosas que eram ligadas cotidianamente, às 11 horas
da manhã, mas nesse dia isso não aconteceu. A justificativa dos responsáveis pelo
funcionamento das fontes foi de que eles haviam recebido a orientação de superiores para
que elas não fossem ligadas. Já esperando por isso, os manifestantes, então, arrecadaram,
durante o evento, certa quantia em dinheiro, que foi usada para arcar com as despesas de
um caminhão-pipa que desaguou na Praça da Estação, às 14 horas do mesmo dia
(OLIVEIRA, 2012; MIGLIANO, 2013): Estava criada a Praia da Estação.
A Praia da Estação ocorreu de forma intensa entre os meses de janeiro e maio de
2010, ressurgiu em dezembro desse mesmo ano e se estendeu até janeiro de 2011, quando
se comemorou um ano (OLIVEIRA, 2012). Toda essa movimentação foi uma forma de
protestar e de contestar as políticas do governo municipal:

De forma criativa, irônica, carnavalesca, organizada e mobilizada através da


internet de forma horizontal e espontânea, a Praia da Estação deu visibilidade
para o debate público a respeito dos espaços públicos, a respeito do
desenvolvimento da cidade e a respeito do poder municipal (OLIVEIRA, 2012,
p. 24).

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Como esperado, a Prefeitura tratou logo de dar uma resposta a essas ocupações e,
de acordo com Oliveira (2012), a Administração Municipal da época instaurou uma
Comissão Especial de Regulamentação de Eventos na Praça da Estação, no final do mês
de janeiro de 2010, com objetivo de regularizar a utilização da Praça. Em maio de 2010,
foi publicado o Decreto 13.961 que instituiu a regulamentação construída pela Comissão
Especial de Regulamentação de Eventos (MIGLIANO, 2013). Tal normatização teve
como principais pontos a instituição de cobrança monetária por parte da Prefeitura para
realização de eventos na Praça da Estação, a obrigatoriedade de contratação de
seguranças, instalação de banheiros químicos, utilização de artefatos para cercamento dos
jardins, garantia da limpeza do espaço urbano, controle de entrada da população e a
facilitação para a realização de eventos que tivessem ligação com a Copa do Mundo de
2010. Esse decreto foi visto pelos participantes da Praia da Estação como uma proposta
de caráter mercadológico que só tornava possível a realização de eventos por grandes
empresas (OLIVEIRA, 2012).
Migliano (2013) enfatiza que, mesmo diante da nova regulamentação, os banhistas
continuaram ocupando a Praça da Estação até o momento em que esse movimento deu
42
origem ao bloco de carnaval da Praia da Estação, o qual teve a intenção de promover um
cortejo que iria começar na Praça da Estação e seguir até a Prefeitura, cerca de 1,2 km,
onde seria feita a lavagem simbólica das escadarias, mais um protesto.

A realização do bloco de carnaval agregou ainda mais movimentos parceiros e


produtores da Praia da Estação. As causas que se contextualizam no entorno
da Praça sendo basicamente movimentos que expulsam os habitantes
costumeiros da área – como as das profissionais do sexo do baixo centro, dos
movimentos pela igualdade e liberdade de gênero, dos moradores e meninos
de rua, dos vendedores ambulantes, pipoqueiros e fotógrafos lambe-lambe, dos
artesãos da Praça Sete e dos Artesãos da Feira Hippie – passaram a integrar
também as reivindicações da Praia (MIGLIANO, 2013, p. 48).

Aqui se tem um cenário de manifestações carnavalescas despontando novamente


na capital mineira. Migliano (2013) afirma que o bloco Praia da Estação fez parte do
renascimento dos blocos de rua do carnaval de Belo Horizonte. Os blocos de rua ganham
relevância no que diz respeito ao seu poder de atuação não somente por estarem nas ruas,
mas por assumir o lugar de vocalizadores de uma mensagem política.
Em suma, como sintetizado por Melo (2014), existiu em Belo Horizonte um
movimento popular, na contramão das iniciativas municipais, que deu condições para a
ocupação e reivindicação das ruas e, assim, reativou e impulsionou a essência do carnaval

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– a irreverência e a espontaneidade – tendo a Praia da Estação como evento precursor que
deu origem à sua versão em bloco carnavalesco que possuía alto caráter político. A
retomada do carnaval de rua pelos blocos tem uma origem comum em um movimento
não institucionalizado e autogerido de ocupação dos mais variados espaços públicos da
cidade que mistura reivindicações políticas com manifestações festivas (DIAS, 2015). A
ocupação da Praça da Estação, por meio do evento Praia da Estação, é vista, portanto,
como um marco de uma ocupação lúdico-carnavalesca que seria o estopim para o
ressurgimento do carnaval de Belo Horizonte (CRUVINEL, 2019).

Na cidade contemporânea, formas de viver, trabalhar e se divertir sobrevivem,


desafiando a passagem do tempo. Pequenas transgressões são táticas anônimas
de ocupar os espaços. A rua se torna meio de subsistência de catadores,
ambulantes e flanelinhas. A cidade escapa ao controle e vai sendo construída
à margem. Surgem lugares de resistência e sobrevivência. Territórios urbanos
são conquistados e tem seus usos originais subvertidos. Moradores de rua
habitam viadutos e marquises. Na contramão, singulares de agrupamentos. Nas
ruas e praças, passeatas e bandeiras protestam e reivindicam. Nas esquinas e
quebradas, o encontro para dançar, cantar, brincar e lutar (JULIÃO, 2019).

Atualmente, o carnaval cresceu e mais blocos de rua surgem a cada ano, passando
a ocupar os espaços públicos da cidade com uma programação extensa de carnaval que
43
se inicia com os ensaios desses blocos (CRUVINEL, 2019). Após mais dez anos de
ressurgimento do carnaval, os blocos de rua se consagram como fomentadores dessa festa
e responsáveis, ano após ano, por arrastarem milhares de pessoas pelas ruas da capital.
Diante desse novo cenário, a partir de 2012, segundo Dias (2015) a Prefeitura começou a
dialogar com representantes dos blocos de rua e hoje, como apontam Santos, Sousa e
Pereira (2016), toda a programação oficial do carnaval belo-horizontino é gerida pela
Belotur, empresa Municipal de Turismo de Belo Horizonte.

Contrariando o planejamento: uma Belo Horizonte apropriada pelo


carnaval

No contexto das festas carnavalescas, a rua sempre teve papel central, pois ela
poderia ser o lugar de distinção entre a festa dos pobres e da elite, um lugar de significação
onde é possível se manifestar. Não se pode esquecer que Belo Horizonte foi uma cidade
planejada e construída sob o imaginário republicano, isto é, preocupada com o controle
da massa social. A rua, mesmo prometendo lazer (os parques) e diferentes meios de se
ganhar a vida, era também um local de insegurança, principalmente para as classes

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populares, uma vez que tinham de lidar com a arbitrariedade e a violência da polícia nos
espaços públicos (PASSOS, 2009).
A história da primeira cidade planejada do Brasil República elucida como Belo
Horizonte foi projetada para representar civilização, controle, ordem e progresso
(SENRA, 2011; CALVO, 2013; LOTT, 2018). Nas palavras de Filho (2006, p. 47)
“almejava-se a emersão de uma cidade previsível e funcional, cujas particularidades
apontavam para um pretenso controle social da população”. Tratadas, por muitos, como
caóticas e desordeiras, as festividades carnavalescas em nada combinavam com uma
cidade planejada para levar Minas Gerais à ascensão política, econômica e social, no novo
cenário organizacional da República nascente. “Intervir na cidade significava estabelecer
tentativas de direcionar os diferentes movimentos oriundos do cotidiano, principalmente
aqueles que envolvessem os comportamentos, indivíduos e grupos sociais” (FILHO,
2006, p. 48). Entretanto, paradoxalmente do que se esperava da nova capital de Minas
Gerais e consequentemente da vontade de organizar o espaço social que se apoiava na
concepção de modernidade, festividades como as de caráter carnavalesco dá o tom do que
é uma cidade “diversa, complexa, pulsante, enigmática, conflituosa porque é habitada por
pessoas. E aqueles que habitam a cidade são por ela forjados” (JULIÃO, 2019).
44
É nesse cenário que as manifestações carnavalescas emergem, mesmo quando
tudo é pensado para minar suas expressões. Aquele carnaval que acontecia em meio a
carroças, latas, tambores, rostos pintados e fantasias improvisadas, que marcou Belo
Horizonte antes mesmo de sua inauguração oficial, era resquício da alegria popular que
ganhava as ruas não mais como uma festa com um formato específico, mas como junção
de várias festas e ritmos. De uma cidade vazia, pensada para cada segmento social ocupar
o seu devido lugar (FREITAS, 2007; COSTA; ARGUELHES, 2008), a utopia de ordem
urbana abrigou blocos caricatos, escolas de samba, bandas, blocos de rua, bailes de
carnaval e, consequentemente, uma forma diferente de ocupação das ruas e avenidas.
A festa carnavalesca historicamente foi construída a partir de relações tensas entre
Estado e segmentos carnavalescos. Apesar de existirem mudanças de contextos e
alterações de dinâmicas, a tensão sempre permaneceu em uma relação pendular entre
aproximação e distanciamento, entre afrouxamento e reconhecimento, entre
confinamento e liberação espacial, entre burocratização e desburocratização, isto é,
possíveis gerações de condições para a efetivação do carnaval. Apesar dessas questões, a
história também mostra que, mesmo proibido ou dificultado pelo poder público, o

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carnaval acontecia pelas forças vivas: as pessoas, que tinham como palco principal as
ruas, os espaços públicos, tal como avenidas, praças e viadutos, por exemplo.

A cidade acolhe inúmeras formas de ritos. A rua é como um teatro de práticas


coletivas que por meio de repetição, reproduzem e validam comportamentos e
valores urbanos. Profanos ou sagrados, os ritos são formas de apropriação
política, sensorial e festiva da cidade. Do carnaval às celebrações religiosas;
das manifestações políticas aos ritos de consumo; do futebol às comemorações
cívicas e militares; da frequência aos bares às festas coletivas, os ritos tornam
públicos as performances da cidade e das pessoas (JULIÃO, 2019).

O carnaval cria um espaço de lógica própria no qual nasce um modo alternativo


para o comportamento coletivo. Acredita-se então que um universo carnavalesco pode ser
compreendido como um espaço de confraternização e congraçamento (RISÉRIO, 1995).
Entretanto, cabe aqui destacar que, mesmo nos espaços públicos, diversos grupos sociais
procuram se manter separados uns dos outros (CARVALHO; MADEIRO, 2005), o que
nos alerta sobre em que medida o carnaval de rua é, de fato, uma festa para todos.
A crítica de Queiroz (1994) a respeito do carnaval como uma festa de todos reside
no fato de que em muitos locais existe uma separação entre os foliões e os espectadores.
Os primeiros se caracterizam por saírem fantasiados pelas ruas, cordões, blocos e escolas
de samba, enquanto os não-foliões apenas os assistem. A delimitação entre esses dois 45

grupos é feita a partir da lógica palco/plateia, podendo este palco ser as ruas e, a plateia,
as calçadas. Em outros casos, são construídas arquibancadas só acessadas mediante
pagamento.
Belo Horizonte apresenta configurações peculiares. Se o carnaval da capital de
Minas Gerais, com o protagonismo dos blocos de rua, nasceu de um movimento social
contra os limites ao uso dos espaços públicos, atualmente, no carnaval de rua da cidade
não há hierarquização da ocupação do espaço público mediante o uso de cordas ou
camarotes para separar foliões pagantes dos não pagantes. O uso de cordas no carnaval
belo-horizontino, por exemplo, só é permitido para cercar os integrantes da bateria e do
corpo de baile dos blocos de rua, no intuito de garantir o mínimo de espaços para que
esses possam tocar, cantar e dançar, durante toda a apresentação.
Até mesmo o fato de Belo Horizonte ter sido projetada dentro da Avenida do
Contorno acaba por facilitar esse carnaval. De acordo com Barros (2000) e com Senra
(2011), esta avenida exerceu o papel de fronteira social entre a vida urbana e a vida
suburbana, uma moldura de segregação, uma muralha de exclusão social que divide Belo
horizonte em duas cidades:

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[...] Uma, construída dentro de padrões urbanísticos provido de toda uma


infraestrutura, tida como moderna para o começo do século XX, feita para os
funcionários públicos vindos da antiga capital mineira Ouro Preto e das classes
de maior poder aquisitivo com condições de pagar pela terra urbana os altos
valores da especulação imobiliária; outra, formada para além dos limites da
Avenida do Contorno, pela população mais pobre (trabalhadores da construção
civil e seus familiares), além dos antigos moradores do Curral Del Rei e
imigrantes de todas as partes do estado à procura de novas oportunidades
(BRANDÃO; LUIZ; SOUZA, 2018, p. 15).

Ao mesmo tempo em que o planejamento urbano de Belo Horizonte é excludente,


o traçado urbano radioconcêntrico, ou seja, com ruas que se organizam em volta de um
ponto, possuindo conexão entre as vias (FERNANDES, 2004), é extremamente
interessante para o carnaval de Belo Horizonte, pois o folião consegue caminhar com
mais facilidade dentro da cidade ao longo dos dias de carnaval e isso faz a cidade (em
especial a região centro-sul) virar uma verdadeira micareta que não demanda grandes
deslocamentos. Em uma mesma rua, é possível o folião ter contato com várias
manifestações culturais, como bloco afro, bloco de pagode, bloco de heavy metal ou de
forró, escolas de samba ou blocos caricatos, o que contribui para o carnaval ser potente e
diferente em relação ao de outras capitais.
46
Durante o carnaval as ruas e avenidas são domesticadas. Tem-se um mundo
urbano demarcado para o carnaval. “Assim, o universo espacial próprio do carnaval são
as praças, as avenidas e, sobretudo, o centro da cidade que, no período ritual, deixa de ser
o local desumano das decisões impessoais para se tornar o ponto de encontro da
população” (DAMATTA, 1979, p. 55). A história nos mostra que Belo Horizonte sempre
foi apropriada por manifestações culturais de caráter carnavalesco graças ao povaréu
(SANTOS, 2003) que, mesmo com tantos obstáculos, encontrou formas de gozar do
espaço urbano e promover lazer.

Considerações finais

Neste artigo revisitamos brevemente a história do carnaval de Belo Horizonte da


sua origem ao atual protagonismo dos blocos de rua, evidenciando que, na capital de
Minas Gerais, o espaço urbano, em muitos momentos, foi apropriado por manifestações
culturais de caráter carnavalesco. Se atualmente o carnaval é considerado uma festa
tradicional do Brasil, como uma das marcas distintivas do “ser brasileiro”, em Belo
Horizonte ele adquire uma configuração particular, na qual os blocos de rua são

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protagonistas, juntamente com corsos, blocos caricatos e escolas de samba, ao articular
cultura, diversão e resistência política.
Belo Horizonte, segregadora desde sua constituição, “que deixa de ser um lugar
de abrigo, proteção e refúgio, escapulindo à sua condição mineral e se torna um aparato
comunicacional do entrecruzamento dos discursos do processo civilizatório” (SENRA,
2011, p. 64), curiosamente é a mesma cidade que é disputada e apropriada em
manifestações culturais como o carnaval. A retórica republicana que tinha como projeto
ideológico sintetizado no dístico de ordem e progresso não foi mais exitosa que a força
daqueles, como os operários que construíam a cidade, que se reuniram em um desfile de
carros e carroças da Praça da Liberdade até a Avenida Afonso Pena. Posteriormente,
foram essas mesmas pessoas, agora na figura de residentes da nova capital de Minas
Gerais, que brincou com serpentinas, confetes e lançou perfume pelas ruas, até se
organizarem em corsos, blocos caricatos, escolas de samba e blocos de rua.
Nascido de uma suspensão da realidade durante alguns dias no ano, o carnaval
permite modos alternativos de existir na cidade, o que se manifesta, mesmo que
temporariamente, em uma lógica urbana própria e mais democrática. As ruas, fiéis ao seu
papel de veias e artérias por onde fluem os fluxos da cidade, durante o carnaval são
47
humanizadas em um contexto no qual é permitido suspender a pressa em prol da
manifestação da alegria na concretização da cultura e em diversas manifestações de
resistência política.
A análise do caso específico de Belo Horizonte neste texto suscita duas
contribuições centrais, uma de ordem sociopolítica e outra de ordem econômico-
organizacional. Em termos sociopolíticos, a cidade “é, de fato, o seu povo” (SARAIVA;
CARRIERI, 2012, p. 574). Mais do que um aglomerado de ruas, prédios e traçados
urbanísticos, são as pessoas que conferem características únicas a uma cidade. Em que
pese o carnaval ser uma manifestação cultural nacional, ter acontecido em diferentes
formatos e intensidades e ter mesmo ficado em suspenso se deve ao quanto ele é abraçado
pelos citadinos. Mesmo considerando aspectos como o financiamento público ou o
interesse empresarial, se não há comprometimento da população local, materializada em
interesse, investimento e responsabilização, a festa pode simplesmente não acontecer,
como nos anos em que “morreu o carnaval” (MARIA, 1994).
Nesse sentido é interessante observar a forma de renascimento do carnaval belo-
horizontino, como resistência a posições municipais autoritárias e privatistas. Este mote
conferiu características horizontalizadas e populares ao formato do carnaval local, o que

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faz dos blocos de rua organizações protagonistas de resistência na alegria carnavalesca.
Essa resistência opera tanto nas complexas relações com o poder público como com a
iniciativa privada conforme problematizado por Rezende (2022). O quanto esse modelo
resistirá não se sabe, mas é interessante verificar que resistir é um elemento central das
festividades carnavalescas de Belo Horizonte.
O segundo grupo de contribuições se refere a aspectos econômico-
organizacionais. Sob a ótica organizacional, o que se observa no carnaval belo-
horizontino é uma rede complexa em que agentes diferentes constroem uma festividade
cada vez mais importante para a cidade. Tais agentes são diferentes entre si, apresentam
propósitos distintos e se valem de posições diferenciadas em diversas escalas. Isso faz
com que haja posições assimétricas quanto às formas de organizar o carnaval, havendo
desde pequenos blocos de rua autofinanciados a outros que contam com estruturas
profissionalizadas, trios elétricos e patrocínios. As diferenças em si não constituem um
problema se houver alguma forma de distribuição de recursos que permita que a festa
seja, de fato, de todos. Caso não haja algum mecanismo redistributivo, é possível que a
horizontalidade e a resistência se enfraqueçam e que se observe uma gradativa
privatização do carnaval, como já ocorre em várias capitais brasileiras. O tempo dirá.
48

Referências
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CONFIGURAÇÕES SÓCIO-ESPACIAIS NOS


OUTROS 360 DIAS: ensaios sobre o bloco Então, Brilha!

Socio-spatial configurations in the other 360 days: essays on the carnival block Então, Brilha!

Isabella Pontello Bahia1


Wânia Maria de Araújo2

Resumo: Este artigo tem como objetivo apresentar reflexões acerca das mudanças sócio-espaciais duradouras que
ocorrem a partir das intervenções efêmeras do carnaval de rua promovidas pelo bloco Então, Brilha! Para tanto,
foi realizada uma revisão de literatura do tipo narrativa e a utilização de dados retrospectivos de modo a externar
um panorama dos desdobramentos do carnaval para além do calendário de sua ocorrência. Observou-se como a
produção dos espaços urbanos pode ser compreendida por meio dos festejos do carnaval que, mesmo em sua
efemeridade, propiciam aos participantes dos cortejos a experiência de uso e apropriação dos espaços públicos da
cidade. Sendo assim, é possível apontar que um dos fatores que impacta a (re)configuração do território de Belo
Horizonte é o lazer enquanto atividade partilhada pelos cidadãos no espaço público, visto que a necessidade
humana de festejar, em especial durante o carnaval de rua, promove mudanças na percepção e conformação do
espaço urbano.

Palavras chave: Carnaval de rua. Sócio-espacial. Então, Brilha!

Abstract: This article aims to present reflections on the lasting socio-spatial changes that occur from the ephemeral
interventions of the street carnival promoted by the Então, Brilha! To this end, a narrative-type literature review
was carried out and retrospective data were used in order to provide an overview of the unfolding of the carnival 51
beyond the calendar of its occurrence. It was observed how the production of urban spaces can be understood
through the carnival festivities that, even in their ephemerality, provide the participants of the processions with the
experience of use and appropriation of the city's public spaces. Therefore, it is possible to point out that one of the
factors that impacts the (re)configuration of the territory of Belo Horizonte is leisure as an activity shared by
citizens in the public space, since the human need to celebrate, especially during street carnival, promotes changes
in the perception and conformation of urban space.

Keywords: Carnival. Socio-spatial. Então, Brilha!.

Introdução

Este artigo apresenta uma investigação qualitativa pautada na revisão de literatura do


tipo narrativa com o objetivo de apresentar reflexões acerca das mudanças sócio-espaciais
duradouras que ocorrem a partir das intervenções efêmeras do carnaval de rua promovidas pelo
bloco Então Brilha!. Para tal, empreendeu-se o levantamento de dados retrospectivos que

1 Doutoranda em Design (UEMG), Mestre em Design (UEMG), Professora da Escola de Design da Universidade do Estado de
Minas Gerais. E-mail: isabella.bahia@uemg.br
2 Doutora em Ciências Sociais (PUC Minas), Professora da Escola de Design da Universidade do Estado de Minas Gerais. E-

mail: wania.araujo@uemg.br

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favorecem a construção de um breve histórico do carnaval de Belo Horizonte, com ênfase nos
últimos 12 anos, com vistas a apresentar um panorama dos desdobramentos efêmeros e
duradouros do feriado carnavalesco na cidade de Belo Horizonte. A relevância deste artigo está
pautada na necessidade de se preservar e valorizar a história de um povo a partir de suas
manifestações culturais, bem como, elucidar os impactos causados pelo carnaval de rua no
território que favorecem a promoção da apropriação e do pertencimento aos seus espaços
públicos. A ideia foi deter um olhar sobre a cidade que tem sua configuração espacial como
resultado de ações, tanto do poder público quanto dos diversos atores sociais que vivem,
experimentam, ocupam, usam os espaços públicos para efetivar uma “promessa” de cidade que
seja mais inclusiva, igualitária e que preserve a riqueza da diferença, da alteridade e da
participação.
Além disso, buscou-se enfatizar que as ocupações dos espaços públicos da cidade pelos
cortejos de blocos de carnaval apresentam a possibilidade de compreender diferentes formas de
reivindicar o direito à cidade, sendo esta última pensada como o lócus da sociabilidade e do
exercício da cidadania. A partir dessa premissa o momento do carnaval de rua em Belo
Horizonte foi pensado como um tempo de ocorrência de dinâmicas e interações sociais nos
espaços públicos que diferem daquelas que são realizadas cotidianamente, visto que os 52

indivíduos que seguem os cortejos dos blocos não necessariamente circulam por estes espaços
da cidade nos seus percursos diários. O tempo do carnaval na cidade instaura novas
sociabilidades entre os diversos atores sociais e em alguns dos blocos que saem às ruas, em
especial o Então Brilha!. Nesse tempo é possível observar que os participantes do carnaval de
rua pretendem não somente desfilar alegria, mas que essa alegria seja também a expressão do
desejo de uma cidade que acolha as demandas dos seus cidadãos. Dessa forma, o desfile de
blocos ocupa as ruas da cidade com a exposição de cores, brilhos e uma diversidade de corpos
que demandam o direito à cidade, ou seja, o desfile é também uma ação política.
O bloco Então Brilha! desfila pela cidade, abraça uma multidão desde os participantes
do cortejo até os vendedores ambulantes e aqueles que apenas assistem a sua passagem, ou seja,
abraça uma diversidade de atores sociais. Sendo assim, é possível pensar que transforma os
espaços públicos por onde o cortejo passa. Mesmo que o desfile desse cortejo seja marcado pela
efemeridade, o intuito é de que a festa possa também imprimir marcas perenes na cidade tanto
pela ampliação das interações sociais com a diferença e a alteridade ao longo dos demais dias
do ano, quanto pelas ações que o bloco desenvolve para além do tempo do carnaval. Ações

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estas que reiteram a partilha da alegria e a convocação para pensar uma outra cidade possível e
acessível a um maior número de habitantes.

Sobre carnavais e o carnaval de rua de Belo Horizonte

A partir de Turner (1988) e Durkheim (1989), compreende-se que as sociedades se


organizaram a partir de estruturas que comportam hierarquias e regramentos sociais que
orientam a vida coletiva que torna possível a emersão dos ritos nas frestas das estruturas. No
que tange o riso, a dança e a carnavalização, Bakhtin (2010) elenca sua existência vinculada à
necessidade de criar brechas nas estruturas, de modo a evitar que elas se tornem rígidas e,
portanto, estáveis. Assim, para Ehrenreich (2010), festas e excitações coletivas caracterizavam-
se como um alívio ocasional permitido àqueles que não detinham o poder e não possuíam
momentos extáticos em sua rotina.
Neste ponto, tem-se a aparição de outro importante elemento a esta investigação: a rua.
O carnaval, como a manifestação cultural das civilizações existentes na atualidade tem seus
proêmios nos ritos e risos que se deram nas ruas, pois, para Perez (2011, p.24) “o carnaval
talvez seja a primeira e mais urbana das festividades”.
53
Ritos, mitos, dança e êxtase, como já apresentados, acompanham e perpassam a
existência humana como uma importante forma de manifestação e expressão cultural. Para
Ferreira (2004), o carnaval é uma invenção da Igreja Católica a partir de uma deliberação feita
pelo Papa Gregório I, por volta do ano 604: quarenta dias de dedicação exclusiva às questões
espirituais.
É importante destacar que o público diretamente atingido pelas deliberações da Igreja
Católica foi o povo. Ferreira (2004) credita tal fato à posição privilegiada da elite de driblar as
imposições da igreja impondo seu poder sobre as autoridades religiosas. Nesse sentido,
Cavalcanti (2010) sinaliza que cultura popular compreendia a cultura não oficial, tendo como
representantes os artesãos urbanos e os camponeses, ou seja, o povo. De acordo com Dias
(2015) o carnaval já se caracterizava como uma disputa popular simbólica de se brincar a folia
com certo ar de desobediência. Para tal, foi concedida a nomenclatura de “adeus a carne”, em
italiano “carne vale”, como uma forma de se apropriar, a partir da inversão, dos espaços (físicos
e abstratos) não ocupados por essas classes. É possível perceber essa inversão até mesmo por
meio da caracterização de um dia de excessos permitidos, a “terça-feira gorda” ou, “mardi
gros”, em francês (DIAS, 2015; EHRENREICH, 2010; FERREIRA, 2004).

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Para compreender o carnaval de rua de Belo Horizonte é necessário jogar luz a sua
constituição enquanto território e cidade. Primeira capital planejada do Brasil, fundada em
1897, recebeu o nome de Belo Horizonte. Construída nas terras do Sítio Arraial Curral Del Rei,
a denominada inicialmente de Cidade de Minas teve em sua criação o objetivo de ocupar o
título de capital do estado de Minas Gerais, antes destinado à cidade de Ouro Preto, e simbolizar
modernidade (BORSAGLI, 2016; DIAS, 2015). Nesse sentido, o projeto compreendeu um
desenho progressista-racionalista que simbolizava certa ordem, apresentada, em primeiro olhar,
a partir do traçado ortogonal e monumentalidade evidenciando caráter higienista (AGUIAR,
2006; DIAS, 2015; HORTA, 1994).
Ainda nos primeiros anos pós fundação, era possível observar na cidade a valorização
de um estilo de vida cosmopolita, modelo influenciado pela então realidade carioca, que
importou o estilo de vida francês (PEREIRA FILHO, 2006; DIAS; 2015). Nesse sentido é
importante vislumbrar que a composição de Belo Horizonte em um primeiro momento se deu
a partir de pessoas e insumos externos, sinalizados por Borsagli (2016, p.48) como “promessas
trazidas pelos forasteiros de que ali nasceria uma moderna e progressiva cidade” (BORSAGLI,
2016, p.48). Entretanto, foram exatamente as estruturas desconsideradas deste processo que,
num futuro próximo, seriam ouvidas as vozes aqui presentes e novas leituras se fizeram 54

possíveis. De acordo com Pereira Filho (2006, p.26):

contrariando todos os prognósticos – afinal, em uma cidade planejada como a capital


mineira não estavam previstas muitas redes de sociabilidade nos espaços físicos das
ruas públicas – os anônimos sujeitos (re)inventaram seus próprios cotidianos através
das festas carnavalescas.

Assim, no que diz respeito ao festejo do carnaval, é importante evidenciar que, quando
Belo Horizonte os incorporou, por ser uma jovem cidade, no momento de sua fundação já havia
ocorrido grande parte da história dos carnavais da brasilidade. Outro ponto característico diz
respeito à frequente busca de inspirações em cidades consideradas bem sucedidas
(principalmente a então capital do Brasil, cidade do Rio de Janeiro, e a cidade de São Paulo em
crescimento econômico e conhecida do passado café com leite) e do ideário moderno, que
alimentaram muito das primeiras festividades (DIAS; 2015; PEREIRA FILHO, 2006). Nesse
sentido, os primeiros anos de Belo Horizonte foram marcados por certa aversão às
permanências populares coletivas em espaços urbanos motivadas pelos ideários de
modernização e civilidade que não permitiam perturbações sociais. Aquelas que ocorriam eram

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ora privadas, ora com pompa e restritas a determinados recortes sociais (PEREIRA FILHO,
2006).
É do ano de 1899 a documentação da primeira manifestação carnavalesca popular na
capital mineira. O Clube Carnavalesco Diabos de Luneta, inspirado nas Sociedades
Carnavalescas, ainda do Brasil colonial, saiu às ruas da cidade (DIAS; 2015; PEREIRA FILHO,
2006). De acordo com a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), o desfile dos Diabos contou com
14 carros adornados, descritos por Dias (2015) como carros alegóricos, e foi precursor da Banda
Mole. Para Araújo e Neder (2018) os primeiros desfiles foram promovidos pelos poucos
cidadãos que tinham condições de ter um carro de passeio e queriam reafirmar o status social,
portanto, passavam pela cidade ao som de músicas alegres e jogando serpentina nos foliões que
desfilavam a pé.
Nesse sentido é importante destacar que as formas carnavalescas populares, já comuns
em outras localidades, também se fizeram presentes na capital mineira. Houve iniciativas tais
como o entrudo, a organização de cordões, ranchos e blocos (os últimos ganharam mais força
na atualidade). Entretanto, sofreram repressão das autoridades e não ocuparam os espaços das
manchetes, visto que ofereciam certa contradição aos ideários da belle époque (DIAS, 2015).
Os destaques se deram aos corsos, desfile em carros ornamentados pelas ruas, inclusive a partir 55

da organização do poder público e promoção de infraestrutura para receber os desfiles.


Mesmo que os blocos de carnaval de rua estivessem presentes em Belo Horizonte, ainda
nos tempos de sua fundação ao final do século XIX, perderam dimensão e importância a partir
dos anos de 1930, tendo em vista os atrativos do carnaval de outras capitais do país, bem como
de cidades do interior do estado somados à realidade sócio-política brasileira (DIAS;2015;
PEREIRA FILHO, 2006; SCHWARCZ; STARLING, 2018). Apenas no início da década de
1980, por meio do Decreto Municipal n° 3.676/1980 a Prefeitura de Belo Horizonte oficializou
o carnaval da cidade.
De acordo com Dias (2015) os anos 2000 tiveram no período pré-carnavalesco, o
surgimento de vários blocos autogestionados de rua. Entretanto, é o ano de 2009 que marcou a
retomada dos blocos de carnaval nas ruas da cidade (DIAS, 2015; MIGLIANO, 2017). Assim,
entre os anos de 2009 e 2010, aconteceu a primeira expansão espontânea do carnaval de rua
com a criação de blocos desassociados do poder público, geridos pela sociedade civil, tanto no
período do pré-carnaval como no feriado oficial (BATISTA, 2018; CANUTO, 2016; DIAS,
2015).

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Muito se relaciona a retomada do carnaval de rua ao movimento reivindicatório de


apropriação da Praça da Estação, conhecido como Praia da Estação, que eclodiu no ano de 2010.
E, de fato, houve uma intensa movimentação popular a partir do descontentamento dos cidadãos
com atitudes impositivas de ordenamento e higienização adotadas pela então prefeitura de Belo
Horizonte (BATISTA, 2018; MARACAHIPE et al., 2019). Entretanto, para Canuto (2016), é
necessário jogar luz a uma série de outras questões que se desdobraram em ações distintas,
desenhadas com o intuito de lutar pelo uso e apropriação dos espaços públicos, de dar
visibilidade ao povo e de adotar políticas humanizadas na capital mineira. Dentre elas podemos
citar a ocorrência de movimentos em prol do transporte público gratuito e de qualidade em Belo
Horizonte, tais como as Jornadas de Junho de 2013 e o movimento Tarifa Zero BH. Além disso,
houve o retorno à capital mineira de estudantes universitários beneficiados por políticas
públicas de intercâmbio3, principalmente de países europeus e o espaço público foi revelado
como território a ser conquistado. Enfim, ocorreu também o fortalecimento e a capilaridade das
redes sociais.
As ações carnavalescas da rua pretendem, portanto, não somente partilhar o lazer, mas
também a reivindicação do direito de apropriação dos espaços públicos de Belo Horizonte em
um embate com o Estado, a fim de solicitar novas formas de se fazer política de maneira 56

inclusiva. Observa-se que, com o crescimento da festa, o Poder Público tende a desenhar
estratégias de controle e privação de acordo com seus afetos. Entretanto, novos carnavais são
criados pois, para Canuto (2016, p.497) “a cidade se abre ao que antes só podia ser objeto de
brincadeira durante os cinco dias de carnaval: a experimentação e produção de identidades”.
De acordo com Harvey (2014), o direito à cidade pode ser pensado como um direito
coletivo apregoado por diferentes movimentos sociais contemporâneos. Em Belo Horizonte, a
ideia do direito à cidade como direito coletivo pode ser observada em momentos festivos como
o carnaval quando os blocos não apenas desfilam nas ruas da cidade espalhando a festa da
alegria, mas também se valem desse momento de interação social entre os diferentes atores
sociais para propagar a ideia de que a cidade pode ser apropriada, experimentada e vivida por
todos os grupos sociais. Nessa perspectiva, Harvey (2014) reforça que o direito à cidade é mais
do que um direito de acesso individual ou grupal

3
Programa Ciência sem Fronteiras: programa que buscava promover a consolidação, expansão e
internacionalização da ciência e tecnologia, da inovação e da competitividade brasileira por meio do intercâmbio
e da mobilidade internacional (CNPq, 2022).

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[...] é um direito de mudar e reinventar a cidade mais de acordo com nossos mais
profundos desejos. [...] é um direito mais coletivo que individual, uma vez que
reinventar a cidade depende inevitavelmente do exercício de um poder coletivo sobre
o processo de urbanização. A liberdade de fazer e refazer a nós mesmos e as nossas
cidades (HARVEY, 2014, p. 28).

Com efeito, a ideia é aproveitar o clima de festividades e a descontração própria do


carnaval para evidenciar a pluralidade e o desejo de uma outra cidade que acolha sua
diversidade de atores sociais que se apropriam e usam dos seus espaços públicos de formas
também diversas. A proposta é abraçar as diferenças em prol de uma construção coletiva. Visto
de longe, não se percebe o indivíduo separado dentro do bloco, mas a massa - rosa e dourada -
a qual ele faz parte. DaMatta (1997) assinala que “Os grupos carnavalescos desfilam [...] de
modo que a observação de sua marcha é uma visão de movimento e dinamismo, com cada
participante realizando um gesto diferente do outro dentro de um conjunto de passos
convencionais” (DaMATTA, 1997, p. 59).
De maneira singular, o carnaval é objeto de estudo da construção da cultura de um povo
na medida em que reflete seu hibridismo, sendo rica fonte de pesquisa acerca dela. “Como o
desfile carnavalesco reúne um pouco de tudo [...] ele remete a vários subuniversos simbólicos
da sociedade brasileira, podendo ser chamado um desfile polissêmico” (DaMATA, 1997, p.
57
59). Compreender a diversidade de signos, significados e sentidos que se fazem presentes na
cidade - sua inversão e/ou ressignificação no período do carnaval - nos leva a refletir sobre a
possibilidade de insurgência de um ideal de cidade que comporte a diferença, a alteridade e que
seja uma cidade para ser vivida e apropriada pela diversidade de ideias, corpos, gêneros,
ocupações e formas de usos de seus espaços.

Planejamento, espaço urbano e sociabilidade

A ocupação da superfície terrestre pelo ser humano orienta e é orientada por diversas
dinâmicas sociais. Nesse sentido, a partir do pensamento marxista, partilhado por Lefebvre
(2001), na atualidade não há mais a natureza natural (natureza primeira), visto que esta tornou-
se a natureza transformada pela sociedade (natureza segunda). Souza (2016), em leitura ao
conceito de natureza para a sociedade apresenta o entendimento de que o espaço terrestre é
apropriado, transformado e produzido pelos seres humanos.
A partir de Souza (2016) compreende-se que o conceito de espaço, além de poder ser
compartilhado por dois grandes planos sobrepostos, “abrange desde a materialidade

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transformada pela sociedade até os espaços simbólicos e as projeções espaciais de poder [...] o
entrelaçamento dos aspectos imaterial e material da espacialidade social” (SOUZA, 2016,
p.31). Nessa acepção, Santos (2012, p.32) evidencia como o espaço, na lógica capitalista, é um
reflexo da produção, das relações de poder e reflete as desigualdades sociais de modo que
“distingue-se das formas vazias pelo próprio fato de sua cumplicidade com a estrutura social”.
Corroborando com este entendimento, Cavalcante e Nóbrega (2011) sintetizam o espaço como
a extensão entre dois pontos, um conceito amplo, visto que “é matéria caracterizada por sua
exterioridade em relação ao indivíduo” (CAVALCANTE; NÓBREGA, 2011, p.182), e parcial,
de modo que denota “a especificidade das relações internas próprias de cada sociedade,
estrutura integral que a define” (SANTOS, 2012, p.27).
A produção do espaço urbano sempre caminhou com a ascensão do racionalismo e do
capitalismo, visto que “as concentrações urbanas acompanharam as concentrações de capitais
no sentido de Marx” (LEFEBVRE, 2001, p.15). Tem-se, pois, uma estrutura econômica e de
poder na orientação da organização das pessoas no espaço (JACOBS, 2011; SANTOS, 2014a;
SUDJIC, 2019). No caso de Belo Horizonte, isso se fez presente desde o projeto de cidade
construído por Aarão Reis que, inspirado na técnica e na racionalidade, vislumbrava a
constituição de espaços para serem ocupados por determinados grupos sociais e para abrigar 58

determinados usos. Isso pode ser visto no projeto da cidade no qual há um bairro para os
funcionários públicos que viessem da antiga capital Ouro Preto e a Praça da Liberdade para
abrigar as edificações para o exercício do poder (ARAÚJO, 2004).
Para Milton Santos (2012), o conceito de cidade se mistura com o de território,
entretanto, só é coerente quando são previstos lugares de cidadania. O território se faz presente
visto a organização hierárquica das estruturas. No entanto, essa organização não (ou não
deveria) ultrapassar o bem-estar social. Tal leitura é partilhada por Sudjic (2019, p.10) ao alegar
que a “cidade é uma máquina criadora de riqueza que pode fazer com que os pobres não
continuem sendo tão pobres. Uma verdadeira cidade oferece a seus cidadãos a liberdade de se
tornarem aquilo que desejam”.

Trata-se, de fato, do inalienável direito a uma vida decente para todos, não importa o
lugar em que se encontre, na cidade ou no campo. Mais do que um direito à cidade, o
que está em jogo é o direito a obter da sociedade aqueles bens e serviços mínimos,
sem os quais a existência não é digna. Esses bens e serviços constituem um encargo
da sociedade, por meio das instâncias do governo, e são devidos a todos. Sem isso,
não se dirá que existe o cidadão. (SANTOS, 2014b, p.157)

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Esta leitura progressista de cidade também toma ares de idealização principalmente


quando vislumbradas suas práticas no planejamento urbano (LEFEBVRE, 2001; MARICATO,
2013; MONTANER; MUXÍ, 2014). Assim, pode-se entender a organização espacial como a
divisão espacial do trabalho, que compreende uma infraestrutura técnica, social e de serviços
(SANTOS, 2012; SOUZA, 2016). Entretanto, de acordo com Souza (2016, p.38), a organização
espacial está em constante mudança e é, portanto, “constantemente desafiada em diferentes
escalas” visto que, a produção do espaço apresenta relação direta com a ordem e o controle dos
corpos e afetos e com a fragilização das subjetividades. As pessoas, colocadas no outro extremo
desse planejamento, a veem como a possibilidade da construção de lugares. O embate se forma
quando as desigualdades sociais são evidenciadas a partir de propostas que respondem às
atividades do capital e desconsideram, ou não priorizam, a habitação digna, as relações
ancestrais com o espaço, a memória do lugar e outras tantas questões sensíveis presentes na
vida humana.
Outra leitura importante acerca do entendimento do espaço é a de Michel de Certeau
(2008) que, ao discorrer acerca das práticas do cotidiano, orienta como estas corroboram para
a construção de espaços e lugares. Para Certeau (2008), as tecnologias do agir podem se
configurar de maneira estratégica ou tática. Quando táticas, caracterizam movimento e dizem 59

sobre a improvisação, então, podem ser lidas como o caminhar, o flanar, dentre outros jogos
sociais. Nesse sentido, entende-se que estas produzem espaços sociais, pois o termo espaço “se
materializa pelo movimento [...] é um todo que comporta qualquer coisa e qualquer ser”
(CAVALCANTE; NÓBREGA, 2011, p.183).
À vista dessas concepções de espaço e cidade, bem como de suas leituras possíveis é
importante elucidar a relevância da sociabilidade e de como as relações sociais têm concretude
no espaço, pois para Carlos (2018, p.63) “a espacialidade das relações sociais pode ser
efetivamente compreendida no plano da vida cotidiana e, a partir desta, articulada e redefinida
como plano da reprodução das relações sociais”.
Durante o carnaval de rua, torna-se possível pensar nas formas de sociabilidade que
passam a fazer parte dos espaços públicos da cidade e que denotam novas formas de interações
sociais. Como enunciou Frúgoli Júnior (1995), a cidade é palco de experiências cotidianas e
abriga as pessoas com seus projetos e ideias de felicidade em um território coberto de história,
memória, trabalho e festa. Isto também implica dizer que a cidade é palco de ambivalência, pois
ao mesmo tempo que abriga o novo e o velho, a riqueza e a miséria, abriga os diferentes atores
sociais, as diferentes formas de viver em seus espaços e os diferentes desejos de uma promessa

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de cidade. Neste cenário, a ambivalência se mostra visível pelas formas das edificações, pela
disposição das ruas, pela intensidade ou não do seu trânsito de automóveis, bem como pelos
acontecimentos políticos e culturais, tal como o carnaval de rua. Entretanto, é importante
destacar que, diante do que é visível aos muitos olhares dos habitantes da cidade, ao mesmo
tempo a cidade é marcada por invisibilidades, tanto de atores sociais, como, por exemplo, a
população de rua, quanto de práticas da cultura da rua adotadas por todos os indivíduos que
fazem dela seu local de moradia e/ou do exercício de alguma forma de ocupação.
Sendo assim, é neste espaço de ambivalências que a cidade abriga as interações sociais
e é onde a sociabilidade se materializa. De acordo com Giddens (2004) interação social diz
respeito à forma como agimos e reagimos em relação àqueles que estão ao nosso redor. Essas
reações não necessariamente ocorrem por meio da palavra enunciada pelos diálogos verbais
que realizamos cotidianamente, mas também ocorrem por meio dos gestos e das posturas
corporais. Porém, o que mais se observa nas ruas de uma cidade, onde as interações sociais
ocorrem entre pessoas desconhecidas, é a adoção da desatenção civil (GIDDENS, 2004). Essa
desatenção significa que temos consciência da presença dos outros ao nosso redor, mas que, em
geral, busca-se adotar atitudes que não sejam invasivas em relação aos tantos de desconhecidos
que cruzamos diariamente. Vale lembrar que a interação social é um tema inspirado fortemente 60

no conceito de sociabilidade4 de Simmel (2006), derivado do termo sociação que implica a


interação realizada entre os indivíduos “[...] a partir de determinados impulsos ou da busca de
certas finalidades” (SIMMEL, 2006, p. 59).
Durante o período do carnaval, a partir do pressuposto da inversão da ordem
(DaMATTA, 1997; QUEIROZ, 1992) as interações sociais, mesmo entre os desconhecidos,
deixam de ser marcadas pela desatenção civil (GIDDENS, 2004). Isto porque o contato com os
vários outros habitantes da cidade, ao longo do percurso de um bloco de carnaval, passa a ser
marcado por formas de sociabilidade e interações sociais pautadas pela partilha da alegria com
conhecidos e desconhecidos que se encontram nas ruas e que se comportam como habitantes
que cotidianamente não são os transeuntes usuais de determinados espaços públicos da cidade.
É interessante pensar nesses atores sociais a partir do conceito de citadino, conforme enuncia
Frúgoli Junior (2007, p. 7) visto que “[...] ocupa os espaços urbanos, desloca-se por seus
diversos territórios e estabelece relações de proximidade e distância com outros citadinos em

4
O conceito de sociabilidade Simmel (2006) deve ser pensado conforme um tipo ideal entendido como social
puro, de acordo com Frúgoli Junior (2007).

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contextos específicos e situados”. Sendo assim, o participante não é reduzido ao transeunte


cotidiano dos espaços públicos, nem coincide com o cidadão, mesmo que possa assumir esta
posição, pois a urbanidade não é o que conduz às práticas de cidadania nem a cidade é quem
produz aglomerações politizadas. Este citadino ao participar de um cortejo em um bloco de
carnaval pode ser então impulsionado a adotar a cidadania como fio condutor de seu ato de
“desfilar”, que incorpora não só as características do tempo do carnaval, mas as formas de
sociabilidade presentes neste momento. Tais formas podem ser portadoras do desejo de
efetivação de uma "promessa” de cidade que seja inclusiva, fruto de ações diretas que
impulsionam a participação dos cidadãos na vida e constituição da cidade e seus espaços.

A cidade proposta pelo Então, Brilha!

Os cortejos dos blocos de carnaval visam, em sua maioria, uma ocupação lúdica das
ruas, promovendo uma vivência humanizada dos espaços urbanos (CANUTO, 2016;
FRANKIW, 2017). Em vista disso, pode-se compreender que a festa altera a leitura e a
compreensão das ambiências urbanas de modo a flexibilizar simbolicamente o direito à cidade
a partir do desenho de instrumentos e equipamentos urbanos que proporcionam novas formas 61
de política e sociabilidade (EHRENREICH, 2010).
Um desses desdobramentos foi a criação do Então Brilha!, no ano de 2010, por iniciativa
de um grupo de amigos que pretendia fazer uma brincadeira de carnaval inspirados no poema
do filósofo russo Vladimir Maiakovski (1983 - 1930). Com os dizeres “gente é para brilhar” se
organizaram em bloco e desfilaram pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro (RJ), visto que
consideravam a manifestação carnavalesca em Belo Horizonte algo ainda pouco expressivo.
Neste mesmo ano, ao retornarem à capital mineira para o cortejo do Vira o Santo (manifestação
carnavalesca com destino à Praça da Estação que ocorreu no fim de semana posterior ao
carnaval), se depararam com diversos blocos e várias iniciativas de ocupação festiva e lúdica
do espaço urbano. Foi o suficiente para a proposição do Então, Brilha! em Belo Horizonte.
Estabelecido em 2011, ano da primeira ocorrência do grupo enquanto bloco pela cidade
de Belo Horizonte, o Então Brilha! teve saída na Rua Guaicurus, em frente ao hotel Brilhante,
e destino à Praça da Estação, com o objetivo de transitar por um recorte urbano culturalmente
pouco noticiado (AMÉLIO, 2015) e expressivamente relevante enquanto espaço de trânsito e
comércio popular. À vista disso, o Então, Brilha! desaguou nas águas da Praia da Estação

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(ALMEIDA, 2022) e desde então partilha em seus desfiles os valores de “respeito mútuo,
segurança incondicional e alegria compartilhada”.
A proposta de desvelar as margens e as atividades marginalizadas, ainda que no centro
da cidade, caracteriza as motivações do bloco que garantem sua existência em consonância à
proposta do carnaval de rua e de luta de Belo Horizonte (MARACAHIPE et al., 2019). Como
um dos primeiros blocos da cidade - assim como o Tico Tico Serra Copo, o Baianas Ozadas e
o Trema na Linguiça (CANUTO, 2016) - o Então Brilha! apresenta seu cortejo como
instrumento político e meio de se fazer arte. Para Araújo e Neder (2018, p. 9):

As cores contrastantes do bloco, o dourado e o rosa remetem ao clima alegre e criam


a impressão de que todos, de alguma forma, podem brilhar. Propondo
questionamentos acerca das minorias, o bloco traz à tona também a diversidade ao
reunir as diferenças de maneira sobreposta num mesmo lugar: a rua.

Na última ocorrência do bloco, durante o cortejo aberto nas ruas, no ano de 2020, foram
contabilizadas cerca de 400 mil pessoas no centro da capital mineira. Entre elas, foliões, artistas
e ativistas belo-horizontinos e produtores responsáveis pela cena cultural local. Estes
compuseram o cortejo que também contou com banda, trio e bateria. O desfile, como usual,
marcou a abertura do carnaval de rua de Belo Horizonte com saída junto ao nascer do sol e isso
62
fez com que o bloco fosse chamado de “estrela da manhã” do carnaval da capital mineira.
O crescimento exponencial do bloco, e do carnaval de rua de Belo Horizonte, ocasionou
uma mudança do local da concentração do bloco e, consequentemente, do trajeto percorrido.
Tal como apresentado na Figura 1, é possível vislumbrar em azul o trajeto percorrido pelo
Então, Brilha!, nas últimas edições que teve saída da Avenida do Contorno com destino à Praça
da Estação a partir da Avenida dos Andradas.

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Figura 1 - Caracterização do trajeto percorrido pelo Então, Brilha! no carnaval de 2020

Fonte: Elaborado pelas autoras (2022)

O recorte geográfico pelo qual o Então, Brilha! transita não se configura como ponto
turístico da cidade, além de compreender uma área de trânsito intenso de veículos. Há também
o pouco incentivo à permanência de indivíduos e à construção de afetos com o espaço urbano.
Entretanto, do alto de um viaduto cinza se posicionam inúmeras pessoas em trajes coloridos e 63
brilhantes que cantam, dançam, hasteiam estandartes e estabelecem laços de sociabilidade. O
trio amplifica a música que é coproduzida pela bateria e direciona os foliões até a Praça da
Estação (ver Figura 2). Nesse percurso, assentos e áreas de sombreamento são improvisados,
bem como o comércio se faz de modo ambulante acompanhando o trajeto do bloco.

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Figura 2 - Trio da Estrela da manhã acompanhado por foliões nas ruas e no viaduto

Fonte: Bitar & Paiva (2020)

O repertório do Então, Brilha! apresenta ritmos diversos da brasilidade que são


mesclados com composições do bloco, intituladas hinos, nas quais alegam estar “cantando pela 64

vida, esse é o nosso lema, gente é para brilhar”. Araújo e Neder (2018, p.10) evidenciam a
importância destinada à diversidade ao longo do cortejo: “é justamente a diferença a peça chave
que dá cara ao bloco Então Brilha!, que trata com irreverência assuntos que são tabus para
grande parte da sociedade”.
No ano de 2021, seguindo as orientações sanitárias impostas pela pandemia do covid-
19, o carnaval de rua da cidade de Belo Horizonte foi cancelado e foram proibidas aglomerações
de diversas naturezas. O Então Brilha!, respeitando as orientações, realizou singela
manifestação pública no dia 13 de fevereiro, data prevista para início do carnaval, de maneira
a, ainda que distante do seu público, poder reforçar as causas defendidas pelo bloco. A ação
contou com a apresentação de fogos, mensagens de apoio e conscientização acerca da pandemia
e relevância da campanha de vacinação, bem como, a execução do hino do bloco e transmissão
ao vivo em sua conta na plataforma Instagram. A manifestação, ocorrida na Av. Contorno, se
desdobrou em uma série de outros vídeos que sinalizaram o desejo do retorno às ruas, mas a
necessidade de cuidado com a vida é algo prioritário e inegociável.
Com efeito, tornam-se perceptíveis alguns impactos efêmeros do Então, Brilha! no
espaço percorrido. O primeiro deles compreende a lógica de ocupação das ruas de maneira

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lúdica e festiva, na qual a vivência do lazer se dá no espaço público de modo livre e liberto das
amarras e códigos do dia-a-dia. Nesse sentido, tem-se a proposta de uma cidade caminhável, na
qual os espaços públicos destinam-se prioritariamente aos pedestres e as longas distâncias,
originalmente orientadas a serem percorridas a partir do transporte público, são redesenhadas,
pois transformam-se em espaço de lazer protegido para a passagem dos blocos. Há ainda a
instalação gratuita de sanitários, pontos de atendimento médico e de comunicação que permitem
que os cidadãos possam ser assistidos frente às necessidades básicas em um espaço público.
Sobre os impactos duradouros desta manifestação efêmera, observa-se que o carnaval
ocorre em uma semana, entretanto, compreende um trabalho de um ano de preparação, resultado
de uma indústria cultural como tantas outras. Para tanto é relevante reconhecer a importância
social, histórica, cultural, econômica e cidadã do carnaval de rua de Belo Horizonte. A
carnavalização é parte constituinte da identidade desta sociedade, de seus integrantes e diz de
um rito, de uma teia de valores sociais e estruturais de um povo. Teia esta que se estabelece
também na construção de ofícios e espaços de trabalho que sustentam várias pessoas e
empreende uma fonte de rendimentos importante para a dinâmica da cidade. É, pois, urgente a
leitura do carnaval como uma manifestação cultural e não apenas como um produto turístico.
À vista disso, entende-se que um grande impacto duradouro do carnaval diz-se da constituição 65

de laços de sociabilidade e afetos entre os cidadãos.


Essa conexão no (e do) espaço aproxima os cidadãos de uma gramática política que
permite, não só um olhar mais atento à cidade, aos seus espaços construídos e suas “patologias”,
mas também, à força da mobilização popular. Situação que tem ação efêmera, mas,
desdobramentos duradouros. Para Veloso (2022) os encontros de carnaval se potencializam e
com isto, várias pessoas passaram a conhecer e construir uma história de resistência na cidade
- das ocupações urbanas, dos movimentos sociais nascentes, dos trabalhadores ambulantes e do
baixo centro, recorte transitado pelo Então, Brilha!.
A conexão entre as pessoas no território favorece ainda a criação de um senso coletivo
de cuidado com o espaço urbano que pode ser ampliado a partir de iniciativas do poder público.
Esse espaço se transforma, portanto, em um lugar que acolhe outros eventos e instiga a
manutenção e ampliação daqueles existentes. O Então, Brilha! cresce seu impacto e dimensão
à medida que o carnaval de Belo Horizonte ganha novos foliões. Outro desdobramento do
Então, Brilha! de modo continuado foi a recente criação da Associação Cultural Então, Brilha!
que se estabeleceu com fins de promover atividades de organizações associativas ligadas à
cultura e à arte na cidade de Belo Horizonte. Além disso, a Escola de Arte Brilhante, em parceria

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com o bloco Seu Vizinho, que propõe o ensino da música e percussão a partir da realização de
oficinas de formação artística aos moradores do Aglomerado da Serra, da Vila Acaba Mundo e
da região metropolitana de Raposos (MG). Com o objetivo de capacitar tecnicamente novos
músicos, o projeto apresenta não somente uma formação musical, mas também o exercício de
novas trocas e leituras de mundo a partir do contato com diversos atores sociais.

Considerações finais

Em análise dos desfiles do bloco Então, Brilha! é possível observar a suspensão


subjetiva e temporária de determinadas barreiras e lugares sociais pré-estabelecidos, há
liberdade dos corpos, pluriversalidade, sensação de aprovação coletiva, capacidade de
modificar o espaço, ainda que de maneira efêmera. Além disso, a manifestação festiva
compreende também a faísca para outras iniciativas que não só ocupam o espaço (e propõem
novas formas de fazê-las), mas, jogam luz em “patologias” de um planejamento urbano que não
responde às necessidades de todos, nem mesmo, do lazer público empreendido pelo direito à
cidade.
66
Assim como o carnaval de rua, os cidadãos belo-horizontinos apresentam-se ativos na
cena cultural e em defesa da democracia, principalmente a partir do uso do espaço urbano
(BATISTA, 2018; DIAS, 2015). Tal fenômeno apresenta manifestações em prol do acesso
pleno à cidade o que ocasiona, inclusive, na evidência de fissuras na estrutura democrática no
que diz respeito ao planejamento, manutenção e a existência de equipamentos permanentes
necessários para o suporte à vivência na cidade em sua totalidade. Fissuras estas que se
equiparam àquelas que datam a construção da cidade a partir de um modelo impositivo e elitista
que construiu barreiras invisíveis que ainda são uma realidade quando se pensa no uso da cidade
(AGUIAR, 2006; HORTA, 1994; LEMOS, 2010).
Neste trabalho, nosso olhar se voltou para a cidade entendida como lugar, por
excelência, das interações sociais que tornam possível perceber as dinâmicas que ocorrem no
período do carnaval quando a cidade se (re)configura espacialmente, socialmente e
politicamente. Sendo assim, a cidade de Belo Horizonte, quando se dispõe a ser palco do e para
o carnaval, experimenta a manutenção da ordem social tal como enunciado por Queiroz (1992),
pois seus espaços centrais não chegam a transformar a ordem social vigente, visto que tais
espaços são apenas “emprestados” ao carnaval.

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Porém, é importante mencionar que também, durante o carnaval, é possível viver a


experiência de convivência entre os diferentes e com as diferenças, é possível vislumbrar uma
cidade “utópica” onde as diferenças estão presentes lado a lado, são e estão visíveis a todos que
não as ignoram, mas compartilham com elas a alegria da festa. Dessa maneira, parece que se
anuncia, mesmo que fugazmente, a configuração de uma cidade não segregada, o que nos faz
pensar em carnaval como festa da inversão da ordem, mas não como fusão de valores
igualitários numa sociedade hierárquica conforme enunciou DaMatta (1997) e sim como a
vivência da ideia de cidade para todos, sem hierarquias. É importante ressaltar que o carnaval
de rua não oferece elementos para que seja analisado somente por esta inversão binária -
manutenção da ordem ou inversão da ordem -, há interseções, possibilidades de explicitação da
ordem mantida, da ordem invertida e de novas ordenações que sejam resultado mais do
imbricamento das duas inversões do que a existência de uma ou outra.

Referências

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CONSIDERAÇÕES PERFORMATIVAS SOBRE O JOGO-


FESTA-RITO PARA O FENÔMENO DA
CARNAVALIZAÇÃO EM BELO HORIZONTE
Consideraciones performativas sobre el juego-fiesta-rito para el fenómeno de la
carnavalización en Belo Horizonte

Thálita Motta Melo1


A existência do jogo é inegável. É possível negar, se quiser, quase todas as abstrações: a justiça, a beleza, o bem,
Deus. É possível negar-se a seridade, mas não o jogo.
Huizinga (1971, p. 06)

Resumo: O presente artigo aborda aspectos da carnavalização, tais como o trinômio jogo-festa-rito como
possíveis chaves de entendimento dos movimentos performativos que, a partir da Praia da Estação em Belo
Horizonte, brincam de tomar lugar nos espaços públicos, assim como aborda a sua reverberação com o
carnaval e outros jogos performativos.
Palavras-chave: Jogo-festa-rito. Praia da Estação. Carnavalização. Jogos performativos

Resumen: Este artículo aborda aspectos de la carnavalización, como el trinomio juego-fiesta-rito como
posibles claves para comprender los movimientos performativos que, desde Praia da Estação, en Belo 70
Horizonte, juegan a tener lugar en espacios públicos, así como abordar su reverberación con el carnaval y
otros juegos performativos.
Palabras clave: Rito-partido-juego. Praia da Estação. Carnivalización. Juegos performativos

Em 1938, o historiador holandês Johan Huizinga publicou o ensaio Hommo


Ludens, uma das grandes obras de referência acerca do jogar, na qual defende que o jogo
é um elemento anterior à cultura, já que observa que os animais, para além dos humanos,
também brincam. Se o riso nos separa dos animais, o jogo nos retoma as semelhanças.
Segundo ele:

1
Thálita Motta Melo é artista e pesquisadora da cena em Belo Horizonte. É doutora pelo PPGAC-EBA/UFMG e
professora nas instituições Teatro Universitário UFMG e Cefart/FCS.

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O jogo é fato mais antigo que a cultura, pois esta, mesmo em suas definições
menos rigorosas, pressupõe sempre a sociedade humana; mas, os animais não
esperaram que os homens os iniciassem na atividade lúdica. É-nos possível
afirmar com segurança que a civilização humana não acrescentou característica
essencial alguma à ideia geral de jogo (HUIZINGA, 1971, p. 3).

Para o autor, o jogo é uma das atividades arquetípicas da sociedade, daí sua
importância social na formação da linguagem e na criação de mitos, sobretudo nas
sociedades em suas fases mais primitivas, em que a cultura estaria mais vinculada a seu
aspecto lúdico e seu processo de desenvolvimento e aprendizagem em muito se deveria
ao ato de jogar. Resumidamente o autor define:

O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e


determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente
consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo,
acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência
de ser diferente da 'vida cotidiana'. (HUIZINGA, 1971, p. 33)

Huizinga discute a essência do jogo em torno do mito e do sagrado, funções que


71
para ele estavam em processo de subtração na cultura desde os primórdios das sociedades
industriais, observando com pessimismo a perda da ludicidade, do sentimento de tensão
e alegria que suspendem a sensação da vida cotidiana em detrimento da produtividade e
do gesto de repetição esvaziado, como ironiza a clássica cena em Tempos Modernos,
filme de Charles Chaplin, em que “o Vagabundo”, recém operário contratado da fábrica
fordista, em tanto repetir a ação de apertar parafusos da máquina de alimentação, cada
vez mais rápida, sofre um colapso nervoso e após a troca de turnos continua com os gestos
de apertar parafusos, como máquina. O palhaço troça a alienação na modernidade
capitalista.
Subtraído da função sacra, o jogo não é exercido com nenhuma obrigatoriedade
na vida adulta, sendo mais vinculado ao tempo efêmero do ócio. Pode sempre ser adiado,
se não é obrigatório como os jogos olímpicos, e, por isso, o jogo se torna uma das funções
vitais mais vulneráveis da sociedade pós-industrialização, já que é visto como algo
supérfluo e: “só se torna uma necessidade urgente na medida em que o prazer por ele
provocado o transforma numa necessidade” (HUIZINGA, 1971, p. 10).

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São muitas as correntes teóricas dos mais diversos campos do conhecimento que
tentam compreender e explicar a natureza e o significado do jogo e, por tamanha
diversidade, não existe um consenso acerca de sua função biológica. Como aponta
Huizinga (1971, p. 4) ao longo de seu livro, as ideias passam pelo “instinto de imitação”,
necessidade de distensão, descarga de energia vital abundante, rito de passagem da
juventude para a vida adulta e séria, exercício de autocontrole, desejo e impulso de
competição, escape para impulsos prejudiciais, realização do desejo, restauração da
energia dispendida etc.
E, para ele, todas as respostas se constituem em um elemento comum que é o
pressuposto de que há sempre algo além do jogo que o justifica, que deve existir alguma
explicação biológica e que as respostas tendem a completar-se – poderiam conviver em
um mesmo espectro teórico, sem que, no entanto, nos dessem mais do que uma parte das
soluções do problema. Por fim, chega à conclusão que o caráter de divertimento não
permite que se encerre na lógica da questão biológica, já que:

O mais simples raciocínio nos indica que a natureza poderia igualmente ter
oferecido a suas criaturas todas essas úteis funções de descarga de energia 72
excessiva, de distensão após um esforço, de preparação para as exigências da
vida, de compensação de desejos insatisfeitos etc., sob a forma de exercícios e
reações puramente mecânicos. Mas não, ela nos deu a tensão, a alegria e o
divertimento do jogo. (HUIZINGA, 1971, p. 5, grifo nosso)

Ao tentar se afastar da totalidade da teoria biológica, Huizinga faz uma


aproximação à estética, já que para ele, não é possível definir o jogo pela moral do bem
e da verdade. Com isso, insere a dúvida sobre sua inclusão no domínio da estética, ainda
que a beleza não seja axiomática ao jogo, mas esse assume elementos da beleza, tais
como:

A vivacidade e a graça estão originalmente ligadas às formas mais primitivas


do jogo. É neste que a beleza do corpo humano em movimento atinge seu
apogeu. Em suas formas mais complexas o jogo está saturado de ritmo e de
harmonia, que são os mais nobres dons de percepção estética de que o homem
dispõe. São muitos, e bem íntimos, os laços que unem o jogo e a beleza.
(HUIZINGA, 1971, p. 09-10)

No entanto, conclui que apesar dos termos lógicos, biológicos e estéticos, no


conceito de jogo reside uma certa autonomia que não se apreende por nenhuma dessas

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categorias, entre a estrutura da vida social e espiritual. E então ele se limita a escrever
acerca de suas características principais, com o objetivo de demonstrar que o jogo é
constituinte das bases da civilização.
O jogo, em sua dimensão lúdica, faz parte do espectro visceral da carnavalização,
juntamente com o riso e a alegria, como substâncias que, somadas ao uso popular da praça
pública, estão no ruído entre a subalternidade e o hegemônico. Contudo, para que assim
possa ser entendido como um fenômeno subversivo, não é possível limitar o jogo ao riso
e ao cômico, conforme demonstrou Huizinga:

Caso pretendamos passar de "o jogo é a não-seriedade" para "o jogo não é
sério", imediatamente o contraste tornar-se-á impossível, pois certas formas de
jogo podem ser extraordinariamente sérias. Além disso, é facílimo designar
várias outras categorias fundamentais que também são abrangidas pela
categoria da "não-seriedade" e não apresentam qualquer relação com o jogo. O
riso, por exemplo, está de certo modo em oposição à seriedade, sem de maneira
alguma estar diretamente ligado ao jogo. Os jogos infantis, o futebol e o xadrez
são executados dentro da mais profunda seriedade, não se verificando nos
jogadores a menor tendência para o riso. É curioso notar que o ato puramente
fisiológico de rir é exclusivo dos homens, ao passo que a função significante
do jogo é comum aos homens e aos animais. (HUIZINGA, 1971, p. 09-10)

73
Ainda que não se limite ao riso, o sentido do divertimento é preponderante para
que se entenda a sua autonomia, na teoria do autor. A perspectiva do jogo resguarda
afinidades com a graça e o humor, embora o riso não seja uma finalidade. Subentende-se
que o prazer com divertimento (Spass) está relacionado com o entendimento do que faz
rir (Witz), termos que em alemão dão pistas para entender seu ponto de vista sobre o jogo.
Isso porque, de modo geral, o jogo é uma atividade livre, entendida conscientemente
como não-séria e extra cotidiana, não habitual (HUIZINGA, 1971, p. 16).
No grego, άγών remete ao que compreendemos como competição e, para
Huizinga, compõe todas as características formais do jogo, e assim, sua função: “pertence
quase inteiramente ao domínio da festa, isto é, ao domínio lúdico. É totalmente impossível
separar a competição, como função cultural, do complexo ‘jogo-festa-ritual’”
(HUIZINGA, 1971, p. 26).
Para ele, a competição havia se dado de modo tão efetivo e habitual nas sociedades
gregas antigas, dada a importância e a excepcionalidade anterior ao processo de absorção,
que os gregos abandonaram o seu caráter lúdico. O que explicaria o porquê da união
linguística entre jogo e competição não ter se dado de modo efetivo.

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Entre o jogo das crianças e o jogo no esporte há, evidentemente, uma relação de
elasticidade com o lúdico e a competição. À medida que a função da competição se
instaura no cerne do jogo, perde-se algo da ludicidade, do sentido da festa inerente a ele,
mais ligado às características principais do jogo elencadas acima – atividade livre,
entendida conscientemente como não-séria e extra cotidiana, não habitual – que são
também dimensões mais próximas à festa do que à competição, mesmo que possam
ambos conviver nos mais diversos modos de jogo. Ainda sobre essa relação de intimidade,
o autor comenta:

Existem entre a festa e o jogo, naturalmente, as mais estreitas relações. Ambos


implicam uma eliminação da vida quotidiana. Em ambos predominam a
alegria, embora não necessariamente, pois também a festa pode ser séria.
Ambos são limitados no tempo e no espaço. Em ambos encontramos uma
combinação de regras estritas com a mais autêntica liberdade. [...] O modo
mais íntimo de união entre ambos parece poder encontrar-se na dança.
(HUIZINGA, 1971, p.25)

Tanto a festa como o jogo são entendidos por sua dimensão autônoma, podendo
ter as substâncias da alegria, da seriedade, do humor e da comicidade em comum, mas
74
sem restringir-se a elas, e a singularidade reside na dosagem de seus elementos.
Com isso, o jogo e a festa são um complexo que não anulam, mas somam
variáveis, enquanto a substância da seriedade, por exemplo, tende em si mesma à
anulação do jogo e da festa. Isto se daria justamente por tal dimensão autônoma desses
acontecimentos, visto que nem a festa e nem o jogo se esgotariam pela falta de seriedade.
Huizinga sinaliza dois aspectos fundamentais no jogo que seriam suas formas
mais elevadas: a luta e a representação. No jogo luta-se por algo e/ou há a representação
de alguma coisa, de modo que estas duas funções podem também por vezes confundir-se.
Que o jogo passe a “representar” uma luta, ou, então, se torne uma luta para melhor
representação de alguma coisa (HUIZINGA, 1971, p.16).
Junto a isso, o complexo “jogo-festa-ritual” são os principais componentes que,
incluindo as substâncias do riso, da alegria e da comicidade tendem a criar o panorama
urbano das carnavalizações contemporâneas. Trata-se de um desejo de presentificar o
conceito que tomo emprestado de Mikhail Bakhtin, que entende o gesto revolucionário
das festas populares na Idade Média, onde a liberação corporal e o riso andam juntos,
configurando-se como burlas ao mundo oficial, controlado e hegemônico. Seria como

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uma celebração da pluralidade das formas, tanto corporais, quanto de vida. A esse
complexo, Bakhtin dá o nome de carnavalização, um fenômeno popular de uma
totalidade una e indivisível.
No ideário grotesco das festas carnavalescas nas praças públicas, o riso é um
fenômeno extremamente corporal, não intelectual como nas sátiras e burlas que sempre
acomete a história do escárnio, um riso solitário e racional, ou mesmo distanciado. Para
Bakhtin haveria ainda um caráter subversivo na carnavalização, como uma rachadura na
estrutura medieval de opressão pelo medo:

O homem medieval sentia no riso, com uma acuidade particular, a vitória sobre
o medo, não somente como uma vitória sobre o terror místico (“terror divino”)
e o medo que inspiravam as forças da natureza, mas antes de tudo como uma
vitória sobre o medo moral que acorrentava, oprimia e obscurecia a
consciência do homem, o medo de tudo que era sagrado e interdito (“tabu” e
“maná”, o medo do poder divino e humano, dos mandamentos e proibições
autoritárias, da morte e dos castigos de além túmulo, do inferno, de tudo que
era mais temível que a terra. Ao derrotar esse medo, o riso esclarecia a
consciência do homem, revelava-lhe um novo mundo. Na verdade, essa vitória
efêmera só durava o período da festa e era logo seguida por dias ordinários de
medo e de opressão; mas graças aos clarões que a consciência humana assim
entrevia, ela podia formar para si uma verdade diferente, não oficial, sobre o
mundo e o homem, que preparava a nova autoconsciência do Renascimento. 75
[...]. Tudo que era temível, torna-se cômico. (BAKHTIN, 2013, p. 78-79)

O derrisório das festas medievais não-oficiais, assim como o corpo grotesco que
as povoam, está prenhe, em renovação, em extensão, coletivizado, orgiástico, efusivo e
embriagado. Faz parte de todos os outros corpos em festa. Não é possível dizer onde um
começa e onde o outro termina.
Seja na ideia de vitória sobre o medo2, na força política de suas imagens coletivas,
na constelação de vias duplas ou entrelugares, interessa aqui pensar a partir da ideia de
carnavalização, corporificada e conceituada por Bakhtin na literatura de Rabelais, mas
para além dela: como potência agenciadora de uma espacialidade outra que rompe com
a lógica da produção dos espaços hegemônicos de ontem e hoje, da qual sobrevive e
insurge desde sempre, apesar das tentativas seculares de dominação. Uma força de
multidão, de re-existência, mas que apesar de tudo brinca, escarnece o poder, cria desvios

2
Ver Bakhtin (2013 p. 78).

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e novas formas de rir e festejar na cidade, que nos faz tremer diante da nervura da
atualidade.
Em Belo Horizonte, vem surgindo na última década um fortalecimento de
ocupações culturais e festivas de rua, intensificando as trocas entre movimentos e
iniciativas populares que antes não produziam tanta relação. Venho me dedicando a
estudá-las desde que aqui resido, em 2012 quando havia cerca de dois anos que a Praia
da Estação acontecia nos modos que ainda ocorre, e que houve, com ela e outras
manifestações performativas, um acendimento dos modos de brincar de tomar lugar na
cidade.
A Praia da Estação tem sido um acontecimento performativo em resposta às
tentativas de privatização do uso da Praça da Estação, a partir do decreto do então prefeito
Márcio Lacerda, que ao final de 2009 estabelecia a proibição de eventos de qualquer
natureza na praça e, com novos adendos, normatizava o uso a partir do pagamento de
diárias exorbitantes.
Com isso, começaram os chamados aos banhistas das alterosas para que
ocupassem conjuntamente a praça, convocando o imaginário da cultura de praia, a partir
76
da partilha dos signos, gestos e vestuário. À medida que vêm sendo incorporados também
signos, gestos e vestuário carnavalescos, ocorre um movimento de hibridação entre
banhistas e foliões, o que impacta e gesta, de certa forma, o carnaval de rua que cresce
exponencialmente a cada ano e em tantas esquinas em Belo Horizonte.
São radicalmente diversos os encontros que se dão após a Praia da Estação em
Belo Horizonte, e o recorte sobre alguns desses movimentos que incluem a dimensão da
luta e da representatividade compõem os ingredientes do que venho aqui chamando de
jogo performativo. Tanto por sua dimensão de competição, como veremos à frente nos
jogos performativos de duelo (Duelo de Vogue, Batalha de passinho e Duelo de Mc’s),
assim como na gaymada, ação teatral do coletivo todadeseo - em todos esses jogos há
vencedores ao final -- quanto por sua dimensão política, por se tratar de corpos políticos,
que ao brincarem de tomar lugar no seio dos espaços públicos, como as grandes praças e
viadutos, postulam-se o direito de participarem da vida pública. Como sinalizou Butler:

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Estes são atores subjugados e empoderados que tentam tomar à força a


legitimidade de um aparato estatal vigente que depende da regulação do espaço
público de aparecimento para sua auto constituição teatral. Ao tomarem à força
este poder, um novo espaço é criado, um novo lugar “entre” corpos, por assim
dizer, que reivindica o espaço existente através da ação de uma nova aliança,
e estes corpos são capturados e animados por estes espaços existentes nos
próprios atos pelos quais eles reclamam e ressignificam o sentido de tais
espaços. (BUTLER, 2018, p. 15)

São corpos cuja luta é a própria forma social, mais ou menos brincante, quando é
possível jogar; é tornarem-se visíveis na esfera pública, porque, veremos mais adiante, a
necessidade vital de aparecer, em Butler, configura-se como uma noção complementar às
sobrevivências em contextos precários.

Da performatividade do jogo

“O réu é considerado culpado”, “Eu vos declaro marido e mulher”, “está aberta a
temporada de caças”, “eu vos batizo em nome do pai...” são alguns dos possíveis
enunciados performativos de que o filósofo da linguagem John Langshaw Austin chamou 77
de atos de fala. Em seu texto “Como fazer as coisas com palavras”, escrito na década de
1950, abalou alguns paradigmas da teoria da linguagem na filosofia analítica, defendendo
que tais enunciados performam, ou seja, agem por si, é “fazer de algo com a palavra”,
agir a palavra.
Os enunciados performativos não têm fins de descrição, constatação, narração,
diálogo, embora possam tomar a forma de uma sentença indicativa típica, mas para além
disso, não apenas dizem, executam ações que surgem em detrimento do que o autor chama
de Atos de fala (AUSTIN, 1976, p. 40).
Não são baseadas no binômio verdadeiro ou falso, não tem valor de “verdade”,
por isso, se bem-sucedidas, Austin as denomina como “felizes” e, ao contrário,
“infelizes”. Como se, em uma promessa, o ato de prometer fosse um enunciado
performativo “feliz”, caso fosse cumprida a promessa, e “infeliz” caso não fosse. Com
isso não é necessariamente a verdade no ato da fala que interessa, mas sim o poder de
ação da própria elocução.

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Desse modo, o enunciado performativo se torna uma função pragmática da


linguagem e não se encerra no sentido de representação; muito menos fixa a teoria da
comunicação em abstrações metafísicas, trazendo a questão para dados contextuais dos
enunciados, a fim de refletir sobre a implicação filosófica a partir da ética abstrata, para
tratar da questão da responsabilidade da ação. Assim:

A teoria de Austin expõe a dimensão ética da linguagem, porque leva às


últimas consequências a identidade entre fazer e dizer e insiste na presença do
ato na linguagem, e não aceita separação entre descrição e ação. Não existe
assim diferença entre dizer e a ação praticada. A teoria de Austin expõe a
dimensão ética da linguagem, porque leva às últimas consequências a
identidade entre fazer e dizer e insiste na presença do ato na linguagem, e não
aceita separação entre descrição e ação. Não existe assim diferença entre dizer
e a ação praticada. (PINTO; MUSSALIN, 2011, p. 21)

A partir disso, seria possível dimensionar em situações concretas, e geralmente


dadas à oficialidade, que corpos e contextos determinam os atos de fala, não distanciando
a linguagem do mundo, inserindo então margem para o pensamento sobre identidade,
poder, lugar de fala e performatividade de modo mais amplo. Para Erika-Fisher Lichte:
78
A publicação dessas informações mudou o mundo. As declarações deste tipo
não só dizem algo, mas executam exatamente a ação que expressam, ou seja:
são autorreferenciais porque dão significado para o que fazem, e são
constitutivos da realidade porque criam a realidade que expressam. São essas
duas características que distinguem as enunciações performativas. O que os
fluentes em diferentes línguas sempre souberam e praticaram intuitivamente
se desenvolvia pela primeira vez, a filosofia da linguagem: ela tinha potencial
para modificar e transformar o mundo. (FISHER-LICHTE, 2011, p.48,
tradução nossa)3

Portanto, assim como o jogo, a performatividade enquanto linguagem está


também implicada na autonomia da ação sobre a descrição, não vem para descrever algo
para além ou antes dela. Ainda que no jogo haja alguma intenção da representação, como
dito, é na ação entre os corpos e lugares que ele se realiza, no presente real da ação.

3
La preferencia de esos enunciados ha cambiado el mundo. Los enunciados de este tipo no solo dicen algo,
sino que realizan exactamente la acción que expresan, es decir: son autorreferenciales porque significan lo
que hacen, y son constitutivos de realidad porque crean la realidad social que expresan. Son estos dos rasgos
distintivos los que caracterizan a los enunciados performativos. Lo que los hablantes de las distintas lenguas
siempre han sabido y han practicado de forma intuitiva lo formulaba por primera vez la filosofía del
lenguaje: el habla tiene potencial para modificar el mundo y para transformarlo. (FISHER-LICHTE, 2011,
p.48)

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Quanto mais os jogos se encontram próximos à oficialidade, mais próximos estão


aos atos de fala de que se refere Austin e mais distantes de seu caráter de ludicidade,
como são os jogos olímpicos, já que em sua maioria, os atos de fala são ocupados pelo
poder hegemônico, de corpos dominantes, de vidas normativas que concedem e outorgam
a oficialidade.
A partir desse entendimento, Austin inspirou autores como Jacques Derrida,
Judith Butler e Shoshana Felman, que ampliaram os estudos acerca da performatividade
para os campos da psicanálise, do feminismo e da teoria queer.
Butler tensiona a questão da performatividade para os estudos de gênero, também
com base em Foucault, e constata, a partir dos atos de fala de Austin, que “o poder
reiterativo do discurso produz os fenômenos que regulam e constrangem” (BUTLER,
1993, p. 12) os corpos marginalizados. Nesse caso, mais especificamente, os corpos
queer, termo que deriva da ressignificação do sentido pejorativo de “esquisito” para uma
categoria afirmativa de identidades não-binárias ou não circunscritas na normatividade
de gênero.
Butler evidencia que o gênero é uma construção de ações e repetições de ações
79
calcadas na naturalização da cultura e, pelo crivo “científico”, no determinismo biológico,
enquanto construções hegemônicas. Qualquer desvio da naturalização hegemônica é tido
como subalterno, como esquisito, como aberrante, visto que a construção normativa dos
gêneros se pauta na universalização dos poderes da oficialidade, como se dá nos atos de
fala, e não pela diferença, pela singularidade ou pela multiplicidade, componentes da
teoria queer.
Ao elucidar as construções performativas dos gêneros, evidencia-se o caráter
artificial – e produzido na repetição de gestos: atos performativos – que constrói histórica,
social e culturalmente as identidades de gênero:

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Por mais que crie uma imagem unificada da “mulher” (ao que seus críticos se
opõem frequentemente), o travesti (sic) também revela a distinção dos aspectos
da experiência do gênero que são falsamente naturalizados como uma unidade
através da ficção reguladora da coerência heterossexual. Ao imitar o gênero, a
drag revela implicitamente a estrutura imitativa do próprio gênero – assim
como sua contingência. Aliás, parte do prazer, da vertigem da performance,
está no reconhecimento da contingência radical da relação entre sexo e gênero
diante das configurações culturais de unidades causais que normalmente são
supostos naturais e necessárias. No lugar da lei da coerência heterossexual,
vemos o sexo e o gênero desnaturalizados por meio de uma performance que
confessa sua distinção e dramatiza o mecanismo cultural de sua unidade
fabricada. (BUTLER, 1990, p. 196-7)

A performatividade seria a fissura nas suposições naturais, já que dramatiza o


mecanismo cultural da artificialidade, ou seja, da fabricação social dos códigos dados e
assim torna visível o processo em ação, em performance, das repetições das estruturas
imitativas, nesse caso, de gênero, por sua ritualização, num contexto de crise das
representações. Tanto em Austin, quanto em Butler, apesar da performatividade ser
tratada em territórios distintos, são tratados a partir da autorreferência e da relação
constitutiva da realidade nos atos de fala ou nos atos performativos. Acerca disso, 80

Fischer-Lichte comenta a partir da noção de Butler:

Isso significa que o corpo também, em sua materialidade articular, é o


resultado da repetição de determinados gestos e movimentos. Somente este
tipo de ações dão lugar ao corpo como algo individual, sexuado, étnico e
culturalmente marcado. Assim, a identidade - como realidade corporal e social
- é sempre constituída por atos performativos. "Performativo" significa neste
sentido, sem dúvida, como em Austin: constitutivo da realidade e auto-
referencial. (FISCHER-LICHTE, 2011, p. 55, tradução nossa) 4

A crise da representação tomou de assalto diversos campos das áreas humanas no


final do século passado e inaugurou também na Antropologia os Estudos da Performance
que, influenciados pelas transformações nos campos dos estudos literários, estudos
feministas, história social (...), assimilaram a rejeição das estruturas como modelos
estáticos e absolutos, dando espaço ao imprevisto, ao indeterminado, ao fragmentado e

4
Esto significa que también el cuerpo, en su articular materialidad, es el resultado de una repetición de
determinados gestos y movimientos. Unicamente este tipo de actos dan lugar al cuerpo como algo
individual, sexuado, etnico y culturalmente marcado. Asi pues, la identidad -como realidad corporal y
social- se constituye siempre a traves de actos performativos. 'Performative' significa en este sentido, sin
duda, como en Austin: constitutive de realidad y autorreferencial. (FISCHER-LICHTE, 2011, p. 55)

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ao polifônico das subjetividades, das relações de poder e das construções narrativas dados
à pós-modernidade. Erika-Fischer fala acerca do contexto dessa mudança de paradigma:

Nos anos noventa houve uma mudança de foco na pesquisa. Começaram a


considerar os traços performativos da cultura, que até então passavam
despercebidos. Tais características dão lugar a uma maneira autônoma de se
referir (de modo prático) a realidades já existentes ou que são consideradas
possíveis, e conferem às ações e eventos culturais um caráter de realidade
específica que o modelo tradicional, centrado na ideia do texto, não
compreendia. A metáfora “a cultura como performance” começava a ganhar
importância. Nesse processo foi necessário revisar o contexto performativo
para que fosse incluído explicitamente as ações físicas. (FISCHER-LICHTE,
2011, p. 53, tradução nossa)5

O mesmo vinha se dando na esfera da arte, em que a crise da representação somava


um dos fatores ao fundo do que viria a se tornar a performance art – o giro performativo
dos anos 1960 – com o objetivo de dessacralizar a arte e aproximá-la da vida, dissolvendo
fronteiras institucionais e características formais, tais como o belo, o sublime e a própria
noção de “obra”, firmando na performatividade radical dos corpos o discurso em
processo.
Entre o ritual e o espetacular, a performance no campo da arte, assim como 81
fizeram em outros campos, colapsaram construções conceituais dicotômicas, como a
questão do “sucesso” e do “fracasso” que, como aponta Erika Fischer Lichte (2011, p.55),
seria um dos critérios de distinções entre a teoria de Austin e de Butler, e o que difere a
performance art da performatividade de Austin.
Isso porque enquanto Austin se perguntava sobre as condições funcionais para o
“sucesso” (feliz) – um parâmetro difícil de ser medido desde a performance Lips of
Thomas6 de Marina Abramovic no campo da arte – Butler, por outro lado, nos estudos de

5
En los anos noventa se produjo un cambio de enfoque en la investigación. Se empezaron a tomar en cuenta
los rasgos performatives de la cultura, que hasta ese momento habían pasado inadvertidos. Tales rasgos dan
lugar a una manera autónoma de referirse (de modo practice) a realidades ya existentes o que se tienen por
posibles, y les confieren a las acciones y acontecimientos culturales un carácter de realidad específico que
el modelo tradicional, centrado en la idea de texto, no comprehendia. La metáfora de “la cultura como
performance” empezaba a ganar en importancia. En ese proceso fue necesaria la revisión del concepto de
performativo para que incluyera de manera explícita las acciones físicas. (FISCHER-LICHTE, 2011, p. 53)
6
“El 24 de octubre de 1975 tuvo lugar un acontecimiento notable y digno de reflexión en la galería
Krinzinger de Innsbruck. La artista yugoslava Marina Abramovic presentó su performance Lips of Thomas.
La artista dio comienzo a la performance despojándose de toda su ropa. Después, Abramovic se dirigió
hacia la pared posterior de la galería para clavar una fotografía de un hombre de pelo largo que se parecía
a ella y la enmarco en una estrella de cinco puntas. Desde allí se dirigió a una mesa cercana cubierta por un
mantel bianco sobre la que había una botella de vino tinto, un tarro de miel, una copa de cristal, una cuchara
de plata y un latigo. Se sentó en una silla junto a la mesa, tomó el tarro de miel y la cuchara de plata.

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gênero, perguntava-se sobre as condições fenomenológicas da incorporação


(embodiment), no sentido da fabricação performativa dos gêneros.
A partir dessa análise entre a performatividade desenvolvida no espectro de Austin
e, mais tarde, por Butler, Erika Fisher-Lichte compreende que em ambos os casos há uma
tendência ao estreitamento no que concerne ao performativo das realizações cênicas
(ritualizadas e públicas). E que tanto o termo “performance” quanto o “performativo”
seriam derivações da noção artística de “to perform” e, ainda que nenhum dos dois usem
diretamente a noção de “realização cênica” em suas teorias, a autora defende que seria
possível dizer que a essência da performatividade aí reside e, partindo disso, juntamente
da análise da performance de Marina Abramovic, elabora sua obra sobre a estética do
performativo.
A autora elabora a partir de estudos teatrais na Alemanha que, no início do século
XX, reivindicam a autonomia de uma disciplina própria para a investigação das
realizações cênicas. Nesse desenvolvimento, as ideias de mito e de ritual – e a relação de
primazia do primeiro sobre o segundo – são invertidas. O ritual passa a ser entendido, a
partir da revisão dos ritos e mitos gregos, como preponderante no entendimento sobre o
82
teatro, ganhando e retomando o corpo e o acontecimento para o centro, desestabilizando
o império textual como a “essência” do teatro. A performatividade seria não uma
consequência contemporânea do teatro, mas seu pressuposto.
As relações entre performance, teatro e ritual tem sido explorada amplamente no
campo das artes, como questiona o diretor de teatro e pesquisador americano Richard
Schechner criador do Performance Studies em Nova Iorque (2012, p. 82): “origens da
performance: se não é ritual, então o que é?”. Deixa evidente não só uma aproximação

Lentamente empezó a vaciar el tarro de un kilo hasta comerse todo su contenido. Después vertió vino tinto
en la copa de cristal y lo bebió a pequeños sorbos. Repitio esta acción hasta vaciar la botella y la copa. Acto
seguido rompió la copa con la mano derecha y la mano comenzó a sangrar. Abramovic se levantó, se dirigió
hacia la pared en la que había clavado la fotografía y, de cara a los espectadores, se rasguño en el vientre
una estrella de cinco puntas con una hoja de afeitar. De su carne brotó sangre. Entonces tomó el latigo, se
arrodillo de espaldas al publico ajo la fotografia y se azotó violentamente la espalda. Aparecieron Tlarcas
ensangrentadas. Seguidamente se tendió en una cruz hecha de bloques de hielo con los brazos bien abiertos.
Del techo colgaba un radiador orientado a su vientre cuyo calor hizo rebrotar la sangre de la estrella de
cinco puntas tallada en su carne. Abramovic permaneció inmovil tendida sobre el hielo, claramente
dispuesta a prolongar su martirio hasta que el radiador derritiera el hielo por completo. Tras permanecer
treinta minutos en la cruz de hielo sin hacer amago de irse o de interrumpir la tortura, algunos espectadores
fueron incapaces de soportar por mas tiempo su suplicio. Se apresuraron hacia los bloques de hielo, tomaron
a la artista, la recogieron de la cruz y la apartaron de allí. Con ello dieron fin a la performance.” (FISHER-
LICHTE, 2011, p.24)

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pelo que é elementar a ambos, mas uma relação de origem, como fez Erika Fisher Lichte
em sua obra, ao demarcar a origem do teatro a partir do rito (performatividade) e não do
mito (textualidade).
Para Schechner, jogar está, como no ritual, no coração da performance. Com isso,
estabelece uma diferença entre jogo e ritual que passa pela seriedade, já que o jogo seria
um elemento mais flexível e permissivo que o ritual.
No entanto, aponta para a sua dualidade, já que “o jogo pode subverter os poderes
estabelecidos, como na paródia ou no carnaval, ou então pode ser cruel”; ou como Turner,
que entendia o jogo como o “coringa do baralho”, ao mesmo tempo criativo e desonesto
(SCHECHNER, 2012, p. 92).
Além de um estado de humor, o jogo (play) é, para o autor, diferente de game, que
seria uma vertente mais estruturada e dotada de regras e previsibilidade, com objetivos
previamente marcados, aproximando a ideia de jogar a de brincar, ainda que com
componentes estruturantes. Isso permitiu uma área de manobra maior para que se mudem
as regras, bem como uma maior amplitude espaço-temporal, também mais rígida. Ao
revés, o game estaria mais localizado no tempo e no espaço, como nas mesas de baralho,
83
parques infantis ou nos estádios e com a duração mais específica.
Para Schechner quanto maior o risco, maior pode ser a diversão, o “brincar com
fogo”, como em Clifford Geertz (1926) que atenta para a radicalidade do que chama de
jogo profundo (deep play), em que os riscos são mais preponderantes que as benesses no
prazer de jogar.
Por fim, é interessante perceber a rápida diferenciação que Schechner faz do jogo
quando é performance – aberta a um público – e quando é performativo – privado e/ou
secreto. Estes, mediados por estados emocionais (instáveis) que estabelecem um certo
tipo de “comportamento incorporado inseparável dos jogadores” que ao jogarem,
estabelecem os atos de jogo (play acts) (SCHECHNER, 2012, p. 96), possuem efeitos
múltiplos e contraditórios, simultaneamente, podendo ser divertidos ou mortais, como
nos jogos de bola dos povos Maias e Astecas, em que pessoas escravizadas acabavam
oferecidas em sacrifício ao perderem.
Entre os que entendem o jogo como fundador da cultura, da arte e da religião e os
que entendem o jogo como simultaneamente sustentáculo e subversão das estruturas

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sociais, há sem dúvida, como pontua Schechner (2012, p. 127), algo que não se deixa
excluir, algo performativo, fundamentalmente.
O jogo performativo é aqui entendido pelo seu aspecto liminar – fenda produzida
nas crises – da representação, entre performance e performatividade, jogo e ritual, festa e
teatralidade, estética e política, para que seja possível pensar a complexidade destes
fenômenos contemporâneos que não se encaixam nisto ou naquilo, mas que se somam
pelos seus componentes estéticos e se esquivam, ao mesmo tempo.
Os jogos performativos não seriam brincadeiras com finalidade de diversão,
também isso. Não se restringem a espaços privados e secretos, não são puramente
didáticos, não são oficiais, não estariam nas olimpíadas, não são apenas festas, tampouco
teatro em sua forma clássica. Mas uma mistura entre corpos políticos – subalternos, queer,
vagabundos (...) – que ao agirem de acordo com regras específicas, porém móveis, lutam
(no sentido para além do que Huizinga oferece) por suas próprias representações de
identidade, ainda que as colapsem em seguida, em competições que ensaiam o ato de
brincar de tomar lugar.
Lugar no sentido de praticar o espaço ocupado, em geral, de modo clandestino ou
84
não-oficial, como no Duelo de Mc’s quando ocupa o Viaduto Santa Tereza, como a Praia
da Estação ocupa a Praça da Estação, como o Batalha de Passinhos, de modo nômade,
ocupa centro e periferia, como o Duelo de Vogue ocupa rua e clubes, como a Gaymada
ocupa, com seus corpos queer, espaços normativos em plena luz do dia.
Em poucas linhas, o Duelo de Mc’s foi organizado pelo coletivo Família de Rua,
o duelo acontece desde 2007 e hoje ocupa o Viaduto Santa Tereza no hipercentro de Belo
Horizonte, inicialmente em encontros semanais às sextas-feiras à noite. O que começou
despretensiosamente como um encontro entre amigos que ligavam o microfone em uma
caixa de som para rimarem na Praça da Estação, hoje se tornou uma das maiores
referências da cultura Hip Hop no Brasil, dando visibilidade ao free style (rima livre e
improvisada) em Belo Horizonte.
A Disputa nervosa, batalha de passinho criada pelo artista e gestor do Centro
Cultural Na favelinha, Kdu dos Anjos, que na página do evento evidencia a relação de
influência a partir do vídeo do “passinho foda” visualizado pelo Youtube, conta que hoje
a dança virou febre por toda região. Já o Duelo de Vogue, se fortaleceu a partir do interesse
do coreógrafo e performer mineiro Guilherme Morais na modalidade desde 2011, quando

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morou em Buenos Aires e teve o primeiro contato com a cultura voguing, na busca por
dançarinos que se interessassem pela dança, encontrou as meninas do Trio Lipstick e
juntos iniciaram a consolidação do movimento voguing na cidade. Por meio de sua
plataforma artística This is noT, Guilherme Morais criou em 2013 a festa Dengue, o Duelo
de Vogue que promove intensa experimentação coreográfica e que foi desenvolvido em
parceria com o Trio, que formava o júri ou compunha uma atração da festa. A gaymada
acontece desde 2015, se iniciando como uma ocupação na Praça Floriano Peixoto que
convocou as LGBTQIA+ para a luz do dia, em busca de uma socialização que partilhasse
o afeto entre seus pares. Partindo do conhecido jogo “queimada”, são atualizadas para o
contexto queer a performance entre jogo e teatro com seus devidos rituais de competição
e afirmação das identidades.
Haveria aqui, então, um sentido que esbarra na teoria de Butler. Os atos
performativos dos jogos de “duelo” repetem as estruturas e confirmam, no fazer de tais
repetições, a fabricação processual de suas identidades. E as tornando evidentes,
demonstram que não há quarta parede entre o que se é dado e o que é performado.
É possível também acessar o entendimento, juntamente ao espaço que ocupam,
85
onde jogam, onde performam, onde festejam, que, para além dos corpos, é também a
tensão dos espaços praticados que criam a dimensão performativa de tais jogos.
Justamente por se deslocarem de seus espaços de destino e contensão, são fabricados os
ruídos em relação à oficialidade e em relação à hegemonia, ainda que legitimados por ela,
em alguns casos.
Os jogos performativos seriam jogos radicais, em que a arte e a vida se misturam
não só porque assim se pretendem, mas porque ao fazer arte e jogo em espaços que são
os de visibilidade, suas vidas são automaticamente colocadas em risco, ou minimamente
em constrangimento, já que, enquanto corpos políticos, coletivamente desafiam as
narrativas dominantes: “ponha-se no seu lugar”, “lugar de mulher é...”, “lugar de negro
é...”, “voltem para os armários”, “este lugar está mal frequentado”. O território comum
continua em disputa.
Não são jogos que propõem o perigo, como os deep plays, mas acabam
despertando, por sua alegria política e estética, a violência velada dos “cidadãos de bem”
(sic) ou a violência institucional que geralmente chega para acabar com a festa e
interrompe o jogo.

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Após várias intervenções por parte da Polícia Militar no carnaval de 2018, os


blocos que geralmente se unificam no último sábado para o tradicional Vira o Santo,
compuseram a faixa “Carnaval não é caso de polícia”, de modo a manifestar sobre a
situação que marcou a perseguição a alguns blocos na capital mineira e região
metropolitana, sobremaneira aos blocos puxados pela maioria negra, LGBTQIA+ ou dos
que perpassam as ocupações de luta por moradia.

Figura 01 - Carnaval não é caso de polícia

86

Fonte: Jornal Estado de Minas, 2018

Ainda que o carnaval não postule exatamente o que aqui chamo de jogo
performativo, devido à estrutura um tanto quanto mais aberta, a carnavalização o
perpassa, quando não o gesta. Desse modo, tanto a Praia da Estação, um dos antecedentes
para o carnaval que temos hoje em Belo Horizonte, quanto o próprio carnaval de rua, são
lastros para parte dos jogos performativos supracitados.
Tais jogos performativos tendem a repetir suas estruturas de tempos em tempos,
variando de caso a caso, por demanda, por sazonalidade, por temporada, por contratação
etc. Mas todos ocorrem com certa frequência e, em sua maior parte, transitam por lugares
diferentes.
São estruturas que se preenchem com práticas lúdicas e de luta (competição) por
meio de palavras, danças, músicas (Duelo de Mc’s, Batalha de Passinhos, Duelo de

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Vogue) e o jogo propriamente dito, porém subvertido, adicionando os componentes acima


(Gaymada). O que torna visível que por mais estruturados que sejam os jogos
performativos, há uma porosidade e uma transitoriedade entre seus participantes, ainda
que os conflitos não sejam totalmente resolvidos.
Na obra seminal de Huizinga, a guerra é também possível de ser compreendida
como jogo: “Chamar “jogo” à guerra é um hábito tão antigo como a própria existência
dessas duas palavras. Já colocamos o problema de saber se isso deve ser considerado
apenas uma metáfora, e chegamos a uma conclusão negativa (HUIZINGA, 1971, p. 101):
a competição seria um dos elementos mais preponderantes.
Aqui a “disputa”, “a batalha” e o “duelo” são elementos fundantes da linguagem
dos jogos performativos abordados. É pela linguagem que a “guerra” é instaurada e
jogada, pela batalha na dança, pelo duelo de rimas, pela musicalidade, em embates que
podem durar uma edição ou uma temporada, geralmente dueladas entre duplas e mediadas
pelo júri popular, por um ou mais juízes especializados.
Quanto mais performático, ou seja, mais esteticamente radical, espetacular e
tecnicamente apurado, mais chances de ganhar a batalha. Há nesses jogos performativos
87
uma dimensão performática que é também do desempenho enquanto valoração técnica.
Reside, também nisso, um certo nível de agressividade inerente à competitividade
(agón) de cada batalha, e em certos casos a emoção é mediada pelo nível de agressividade
dispendida e performada, levando a uma espécie de catarse coletiva, pelo espaço
imprescindível de propulsão e participação direta do público que aplaude, grita, canta e
dança junto.
Embora não sejam violentos, os jogos performativos, por serem compostos por
corporeidades que sofrem violências das mais diversas, desde a discriminações cotidianas
a ações institucionais, não se dão em um campo de suavidades.
Haveria aí justamente um estado de canalização coletiva das opressões diárias, o
espírito agonístico de que trata Huizinga, sendo expurgado por meio de cada linguagem
artística em jogo? Suzana Guerra Albornoz comenta a partir das noções de Huizinga:

O espírito agonístico está associado à violência e a violência civiliza-se no jogo


de competição. O jogo pode ser o modo de conhecermos as coisas, mas tem
que ser regrado. Os jogos de combate, os jogos propriamente ditos, são o
caminho para superar a violência sem regras, dessa tendência agonística da
cultura humana, tão irracional. (ALBORNOZ, 2009, p.83)

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Nisso, a transformação da violência sofrida se tornaria uma estética-política de


resistência, a transubstanciação da violência em agressividade, tão comum ao jogo, não
apenas com o intuito bélico de ganhar e dominar. Sobretudo pelo processo coletivo que é
criar uma linguagem que se partilha, em que são jogadas e postuladas as existências em
suas máximas potências, pelo ato de brincar de tomar lugar, já que os lugares dados às
suas existências não bastam, porque oprimem, não cabem, segregam.
Diferentemente da guerra, as batalhas do jogo performativo criam, instauram
novos mundos, partilham linguagens, canalizam as paixões tristes em paixões alegres,
sem nenhuma pretensão de pureza, e formam modos de ser e estar no mundo muito
singulares em sua ética e estética. É na luta (lúdica) enquanto processo, enquanto ato
restaurador, que parece residir a potência desses jogos performativos. Brincar de tomar
lugar é a luta lúdica do jogo performativo.
Há também a sua dimensão pedagógica em brincar de tomar lugar, ainda que não
seja a finalidade primeira. Ao serem praticados, acabam desenvolvendo a aprendizagem
criativa, a capacidade de improvisação, a criticidade, o ritmo, a argumentação e a
narrativa de si, como inerente ao lúdico. 88
Se nos faltam ágoras, espaços de debate político, não seriam os duelos, jogos
performativos da não oficialidade, outros modos (lúdicos-estético-políticos) de colocar
em pauta não apenas os discursos, mas também aqueles corpos que nunca estiveram no
coração do poder democrático? Ágoras performativas, ágoras frágeis, porque lúdicas.
Assim como na Grécia antiga, tanto a tragédia quanto a comédia se apresentavam
em forma de jogo e tinham o componente da competição explícito, assim descreve Suzana
Guerra Albornoz:

A poesia também tem apresentado, por toda a sua já longa história, um caráter
de jogo e competição. Isso era explícito no concurso trágico na Grécia, onde
tanto a tragédia, como a comédia apresentavam-se sob o signo da competição.
A festa de Dionísio era a moldura sagrada para ocorrerem os
grandes jogos artísticos competitivos. Os concursos literários, prática ainda
viva na atualidade, conservam algo da combatividade agonística do concurso
trágico. (ALBORNOZ, 2009, p. 95)

Os jogos performativos são espécies de festas – microfestas – que não são


necessariamente pequenas, e que cabem dentro de acontecimentos festivos mais

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complexos, como o exemplo do Arraiá da favelinha que abriga os Duelos de Vogue e a


Disputa Nervosa.
Assim, preservam certa autonomia, porque acontecem inicialmente por si e em si,
mas também podem dialogar com outros jogos ou comporem festivais, festas mais
abrangentes, ocupações temporárias e carnavalizações, alternando elasticamente suas
proporções.
O grau de carnavalização de cada um dos jogos performativos de duelo aqui
apresentados parece ser mediado por fatores tão singulares quanto singulares são as cenas.
Se há nas subculturas do passinho e do vogue muito potencial de carnavalização, deve ser
porque a alegria praticada parece produzir rupturas imediatas com a linguagem oficial,
ainda que flerte com ela por sobrevivência.
À medida em que os corpos vibram muito além da linha disciplinar e oficial –
seja do ideário burguês, cristão, militar, pedagógico, burocrático, acadêmico, virtuoso (...)
– são formações estéticas que tendem a expansão e não à constrição, talvez pela natureza
performativa de efervescência dos gestos, das vestes deixam-ver-o-corpo ou o expande,
como nas performances drags, da agressividade ou malemolência na dança nada etérea,
89
pelo rasgo e pela ginga da música sincopada, música e dança como uma coisa só, pela
mistura entre as formas, não há pureza estética, assim não se pretende conter.
Em conclusão, o sucesso e o fracasso, ou como em Austin, o status “feliz” ou
“infeliz” como parâmetro, não são definidos pelo resultado da competição, como em uma
partida olímpica, mas talvez pelo nível de participação performativa dos jogadores. Pelo
pacto entre jogo e performatividade, que assume uma forma visível nos gestos dos
jogadores e no grau de euforia e inúmeras formas de resposta do público.
Inicialmente, as narrativas partem de observações e reivindicações sobre o uso
social dos espaços, como na Praia da Estação, firmando-se como um movimento de
contingências sobre o direito à cidade, sobre pensar “a cidade que queremos”. Desse
modo, o direito à cidade ganha contornos e vozes que, brincando de tomar lugar, vem
construindo linhas de ações e pautas mais específicas, e ainda assim, convivem nos
mesmos espaços e constroem estéticas muito distintas, mas que partilham a linguagem
efêmera da festa e/ou do jogo, de uma alegria constitutiva.

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Referências

AUSTIN, John Langshaw. Como Fazer as Coisas com Palavras. Segunda Edição. Oxford: University Press, 1976.

ALBORNOZ, Suzana Guerra. Jogo e trabalho: do homo ludens, de Johann Huizinga, ao ócio criativo, de Domenico
De Masi. Cad. psicol. soc. trab. [online]. 2009, v.12, n.1. Disponível em:
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-37172009000100007&lng=pt&nrm=iso>. ISSN
1516-3717.

BAKHTIN, Mikhail. Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo:
HUCITEC, 2003.

BUTLER, Judith. Corpos em Aliança e a Política das Ruas. Notas Sobre Uma Teoria Performativa de Assembleia.
Trad. Fernanda Siqueira Miguens. São Paulo: Civilização Brasileira, 2018.

FISCHER-LICHTE, E. Estética de lo performativo. Perucha. Madrid: Abada, 2011.

HUIZINGA, J. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1971.

PINTO, Joana Plaza. Pragmática. In: MUSSALIN, Fernanda; Bentes, Anna Christina. (Orgs.). Introdução à
Linguística: domínios e fronteiras. 7 ed, vol. 11. São Paulo: Cortez, 2011.

SCHECHNER, Richard. Performance e Antropologia de Richard Schechner. Org. Zeca Ligiéro. Mauad X, Rio de
Janeiro, 2012.

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PORTAL DA MEMÓRIA: um monumento em partilha

Portal of memory: a monument in sharing

Maria Tereza Dantas Moura 1


Rita Lages Rodrigues 2

Resumo: O Portal da Memória, escultura de Jorge dos Anjos inaugurada em 2007, é um monumento
dedicado à religiosidade afro-brasileira, à África e à cultura dos descendentes de ancestrais africanos,
inserindo-se em uma cidade partida, partilhada por grupos diversos. Compreende-se a partilha do espaço
urbano sensível em seu duplo sentido, conforme apresentado por Rancière: é algo que faz parte de um
conjunto comum, mas também aquilo que é dividido por grupos distintos. O espaço da Lagoa foi, por
décadas, considerado um espaço criado para lazer da elite da capital, onde, desde 1957, há a partilha com
grupos de religiosidade afro-brasileira, pois lá ocorrem celebrações dedicadas a Iemanjá. Para refletirmos
sobre a hibridização de culturas formadoras da cidade, em que religiosidade, dominação, raças, existências
se encontram, escolhemos como ponto de partida O Portal da Memória e a festa de Iemanjá.

Palavras-Chaves: Portal da Memória. Jorge dos Anjos. Festa de Iemanjá.

Abstract: Portal da Memória, a sculpture by Jorge dos Anjos inaugurated in 2007, is a monument dedicated
to Afro-Brazilian religiosity, Africa and the culture of the descendants of African ancestors, inserted in a 91
broken city, shared by different groups. The sharing of sensitive urban space is understood in its double
sense, as presented by Rancière: it is something that is part of a common set, but also what is divided by
different groups. The Lagoa space was, for decades, considered a space created for the leisure of the capital's
elite, where, since 1957, it has been shared with Afro-Brazilian religious groups, as there are celebrations
dedicated to Iemanjá. In order to reflect on the hybridization of cultures that form the city, in which
religiosity, domination, races, existences meet, we chose the Portal of Memory and the feast of Iemanjá as
a starting point.

Keywords: Memory Portal. Jorge dos Anjos. Feast of Yemanja.

Quem caminha em volta da Lagoa da Pampulha depara-se com um portal em ferro


emoldurando Iemanjá, orixá feminino, orixá do mar. É, em verdade, um monumento às
tradições e aos povos afrodescendentes que vivem na cidade, carregado de sentidos, em
sua cor de ferro terra chão, a proteger Iemanjá que se torna, em Belo Horizonte, além de
orixá da vida nas águas, orixá das águas doces e hoje poluídas da lagoa artificialmente
construída.

1
Mestra em Preservação do Patrimônio Cultural no PPGArtes da UFMG. E-mail: terezamoura@gmail.com
2
Professora - Doutora de Teoria e História da Arte da EBA/UFMG. E-mail: ritalagesrodrigues@gmail.com

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A obra, de autoria do artista Jorge dos Anjos, materializa a experiência da diáspora


negra e possibilita a reelaboração das identidades locais, efetivando-se no solo da cidade
como monumento, documentando a permanência de simbologias africanas
reconfiguradas no solo da cidade e, principalmente, trazendo à tona a historicidade de
nossas identidades, constituídas não de um, mas de muitos povos (HALL, 2003, p.30). A
concepção binária da diferença presente no conceito fechado de diáspora não representa
a realidade das existências, por estar fundada em uma oposição rígida, de percepção
excludente do outro. Como Stuart Hall analisa as configurações sincretizadas da
identidade cultural caribenha, pensamos a identidade brasileira a partir da ideia de
différance de Derrida: “uma diferença que não funciona através de binarismos, fronteiras
veladas que não separam finalmente, mas são também places de passage, e significados
que são posicionais e relacionais, sempre em deslize ao longo de um espectro sem começo
nem fim. A diferença, sabemos, é essencial ao significado, e o significado é crucial à
cultura” (Ibid. p.33).
A cultura é uma produção, um passado/presente/futuro em elaboração “não é uma
questão do que as tradições fazem de nós, mas do que nós fazemos das nossas tradições
92
[...]Estamos sempre em processo de formação cultural. A cultura não é uma questão de
ontologia, de ser, mas de se tornar” (Ibid. p.43). A África é produzida dentro da narrativa
híbrida latino-americana, torna-se África no Novo Mundo, “no turbilhão violento do
sincretismo colonial reforjada na fornalha do panelão colonial” (Ibid. p.39). A potência
da obra que traz a memória do outro continente está em sua reinvenção, um território que
produzido miticamente torna-se real em um portal que se materializa no espaço da cidade,
posicionando politicamente a presença de sujeitos antes silenciados.
A presença deste monumento à religiosidade afro-brasileira, à África e à cultura
de seus ancestrais encontra uma cidade partida que é também partilhada por sujeitos
diversos. A partilha do espaço urbano sensível é compreendida no duplo sentido
apresentado por Rancière: é algo que faz parte de um conjunto comum, mas também
aquilo que é dividido, onde cabe a diferença (RANCIÈRE, 2005, p.07). O Portal da
Memória, inaugurado em 2007, partilha um espaço que por décadas foi considerado um
espaço elitista, criado para o lazer dos grupos mais abastados da capital, no entanto, foi
um espaço partilhado, pois lá ocorria, desde 1957, o final da carreata da festa de Iemanjá
que saía da Praça da Estação e terminava na orla. Em 1982 a primeira escultura de Iemanjá

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foi ali instalada para marcar este lugar que em uma temporalidade cíclica, anualmente,
apontava para a presença do povo negro no território da urbe. É fundamental percebermos
que a efetivação da presença destas práticas e da matéria deu-se em momentos em que
ventos democráticos voltavam a soprar no Brasil.
A escultura de Iemanjá ali presente não traz grandes inovações em termos
estéticos, representando a entidade de forma que podemos nomear como clássica, sem
fazer uma representação estética explicitamente conectada com uma africanidade recriada
no presente, mas estabelecendo uma relação direta com a cultura negra a partir da figura
ali representada. Ela, em si, também é fruto do hibridismo cultural que ocorre em terras
americanas.
Já o Portal da Memória resulta de um processo de reelaboração da origem africana
por afrodescendentes. Em um processo híbrido, o artista busca formas artísticas na África,
em uma África que faz parte de um processo de reinvenção no território que chamamos
Brasil, para reelaborá-las em uma realidade distinta e, ao mesmo tempo, próxima da ideia
de África, distinta por partilhar de um espaço distinto, de uma cultura que não é somente
africana no sentido territorial e étnico restrito, que se torna afro-brasileira ao trazer
93
elementos que a conectam com formas artísticas em diálogo com a tradição construtiva
de uma arte que se pretendia universal. Esta arte que se pretendia universal reinventou-se
no século XX a partir de artes africanas e latino-americanas, dentre outras. Uma
reinvenção dialeticamente repleta de colonialismos, de elementos de dominação
eurocêntrica, uma obra forjada no entrecruzamento de culturas, não há como falarmos do
Portal da Memória sem nos referirmos à África, aos povos afrodescendentes, ao Brasil, à
ideia de povo brasileiro, à ideia de Arte.
O Portal da Memória, Portal, a porta principal, geralmente ornamentada de uma
igreja, de um grande edifício, abre-se para a Lagoa. Seu sentido físico de entrada no
interior de uma construção é aqui ressignificado, é um portal para outras existências
possíveis na cidade, um portal para a África, uma África mítica e não mítica, uma África
de memórias e permanências possíveis que se apresenta no território da cidade. Portal
também remete à abertura para outras possibilidades em tempos de internet,
ressignificando a existência, torna-se um portal de proteção para a escultura. Não é um
portal qualquer, é o portal da memória, memória de um povo, memória de povos que,
mesmo arrancados de seus espaços originários a partir de um processo de dominação

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colonial, conseguiram manter tradições, ressignificá-las e permanecerem vivos em um


processo de reinvenção.

A porta simboliza o local de passagem entre dois estados, entre dois


mundos, o conhecido e o desconhecido, a luz e as trevas o tesouro e a
pobreza extrema. A porta se abre sobre um mistério. Mas ela tem um
valor dinâmico, psicológico; pois não somente indica uma passagem,
mas convida a atravessá-la. É um convite à viagem rumo a um além. A
passagem a qual ela convida é, na maioria das vezes, na acepção
simbólica, do domínio do profano ao sagrado. Assim são os portais das
catedrais, os torana hindus, as portas dos templos ou cidades khmers,
os torii japoneses etc. (CHEVALIER, 1982, p.734-735)

A memória, em uma de suas acepções a faculdade de conservar informações,


inicialmente como algo psíquico ou biológico, esparrama-se e configura-se pelo social,
no campo psíquico relembra, mas principalmente ressignifica. O monumento é fruto de
uma memória social, mas também individual do artista que o elabora. A memória de uma
coletividade, para além de uma conquista, “é também um instrumento e um objeto de
poder. São as sociedades cuja memória social é, sobretudo oral, ou que estão em vias de
constituir uma memória coletiva escrita, aquelas que melhor permitem compreender essa
luta pela dominação da recordação e da tradição, essa manifestação da memória.” (LE 94

GOFF, 2013, p.45).


A força do monumento de 2007 encontra-se na inscrição de simbologias das
religiosidades afro-brasileiras no solo de uma cidade viva, onde populações distintas, de
procedências diversas, esbarram-se, chocam-se, somam-se, mas estes espaços não são
delimitados para uso restrito de alguns grupos, pois “Com o crescimento das cidades,
interação entre grupos diferentes foi ampliada e tornou-se complicado, senão impossível,
delimitar qual era espaço de quem. A ocupação do espaço deu-se de acordo com a
ocasião” (SILVA, 2019, p.30).
O espaço público é o espaço por excelência dos rituais políticos, em especial em
um momento como o contemporâneo de fragmentação dos grupos, de valorização das
identidades múltiplas que fazem parte da formação de quaisquer populações humanas,
“[...] é tão difícil quanto urgente lutar para que prevaleçam, na construção do espaço
público, o respeito e o sentimento de responsabilidade pelo semelhante e pelo diferente”
(ARANTES, 2000, p.163). A conquista do espaço público por grupos antes excluídos é

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uma conquista dos direitos humanos, que colocam como fundamental a partilha dos
espaços por atores plurais.
O Espaço público não é propriedade privada de ninguém, é aquele que pulsa por
conter uma multiplicidade de existências, de culturas, de classes, em uma cidade
partilhada. Deve ser o espaço da utopia, da construção da coletividade, uma coletividade
marcada pela diferença e não pela homogeneização do capital, que tudo transforma em
mercadoria. Como tratado pela filósofa Seyla Benhabib (1992), a luta por tornar algo
público é uma luta por justiça. Neste sentido, a ocupação do espaço público por um
monumento coletivo de grupos antes dele alijados é uma conquista justa e necessária para
a existência destes grupos na cidade.
O direito à cidade por parte de comunidades que não se identificam com as
esculturas europeizantes, de forma clássica, europeia, moderna, ou com seus edifícios
ecléticos ou modernos, deve ser ampliado também na efetivação de novas formas e
simbologias no tecido urbano, o direito à cidade é o direito à liberdade, mas, também, o
“direito à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto do direito
à propriedade)” (LEFEBVRE, 2001, p.134). A presença das obras de Jorge dos Anjos no
95
solo de Belo Horizonte efetiva, em parte, o direito à cidade da comunidade afro-brasileira,
o direito à obra e o direito à apropriação do espaço público.

O Portal da Memória: novas imagens da cidade

O modo como identificamos a cidade é estruturado pelas sensações


proporcionadas pela vivência cotidiana nos espaços urbanos, nossos sentidos: visão,
audição, tato, olfato, paladar são aliados para criar as relações de afeto com os lugares da
cidade e a maneira como percebemos estes espaços. O conjunto dessas relações será o
responsável pela formação da imagem que cada um carrega na memória sobre trechos e
partes da cidade, a partir dele que criamos relações de pertencimento e identidade. Os
diferentes grupos se relacionam com a malha urbana estabelecendo cartografias afetivas,
reconhecendo os sinais, identificando os seus semelhantes e reconhecendo diferenças.
“[...] nossa percepção da cidade não é abrangente, mas antes parcial, fragmentária,
misturada com considerações de outra natureza. Quase todos os sentidos estão em
operação, e a imagem é uma combinação de todos eles” (LYNCH, 2011, p. 02).

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A cidade se faz representar através de suas imagens e é por meio delas que se faz
conhecer, sendo essas imagens urbanas signos da cidade e mediadoras do seu
conhecimento. Cada cidadão constrói sua própria imagem da cidade, a partir de suas
vivências pessoais e também participa da criação coletiva da imagem da cidade. A
arquitetura e os monumentos possuem grande peso na criação das imagens coletivas. “A
imagem é um dado e corresponde a uma concreta intervenção construída na cidade, o
imaginário é um processo que acumula imagens e é estimulado ou desencadeado por um
elemento [...]” (FERRARA, 1997, p.194).
Os dois conceitos, de imagem e de imaginário, qualificam a cidade,
correspondendo à capacidade cognitiva do homem de produzir informações em todas as
suas relações sociais, ficando difícil dissociar a imagem do imaginário, uma vez que a
imagem do ambiente é particular para cada indivíduo por estar impregnada de lembranças
e significados. Trataremos por imagem o conjunto imagem/imaginário formado pelas
estruturas tangíveis e intangíveis, buscando no objeto físico características que lhe
conferem uma alta probabilidade de evocar uma imagem mental clara e facilmente
identificável em qualquer observador.
96
Assim sendo, o Portal da Memória se estabelece não só como um lugar, mas como
uma imagem, imagem de um fragmento da cidade, ou de uma parte da Pampulha. Essa
imagem é construída não só pelas partes físicas, a praça, a lagoa, o pedestal com a Rainha
do Mar, o portal e a avenida, como também pelas relações climáticas, como o pôr-do-sol,
que inspira diversas fotos desse lugar, pelas bicicletas, ciclistas e caminhantes que
diariamente ocupam a orla, bem como os eventos esportivos que utilizam do largo da
praça para criar pontos de apoio, as noivas fazendo seus books de casamento e finalmente
os eventos associados à comunidade negra, que são os que conseguem integrar um maior
número de elementos simbólicos e significativos dando sentido cognitivo ao lugar,
estabelecendo as relações diretas entre as formas físicas e as espirituais, e são também os
eventos que exploram o uso simbólico dos demais sentidos na produção de um discurso,
o som do tambor, o canto, o cheiro do incenso, a plasticidade das indumentárias, a dança.
Além do uso político do lugar, da luta pela igualdade racial, pela liberdade de
culto, “[...] um cenário físico vivo e integrado, capaz de produzir uma imagem bem
definida, desempenha também um papel social. Para fornecer a matéria-prima para os
símbolos e as reminiscências coletivas da comunicação de grupo” (LYNCH, 2011, p.05).

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Nesse caso, o Portal da Memória tem um grande alcance e expressa o sentido da luta e da
liberdade dos povos negros, com uma ampla capacidade de comunicação, agregando
eventos comemorativos e se caracterizando como um marco dentro do espaço da cidade.
O Portal auxilia na organização do espaço como um todo, é nitidamente identificável pela
amplidão da vista. Esta espacialidade auxilia na leitura dos símbolos apresentados pelo
Portal, facilmente reconhecíveis para os que dominam a simbologia religiosa ali presente.
O fato de as festas de Iemanjá, tanto a que ocorre em agosto, quanto a que ocorre em
fevereiro, acontecerem no largo do portal e se repetirem de forma cíclica, aumenta a força
da imagem para que ela se torne um marco da cidade.
Ao analisarmos o Portal da Memória buscamos entender o processo de formação
da imagem, identificando o Portal da Memória, como um objeto único, qualificado e em
destaque na paisagem pelos seus seis metros de altura e três toneladas, em aço corten,
retangular, com abertura no centro, criando uma porta com os contornos repletos de
desenhos e símbolos. Em termos de simbologias afro-brasileiras, o artista relata que
procurou seguir sua intuição3: Exu, a força primeira, o caminho, está próximo ao chão,
embaixo. No centro, em cima, Oxalá ladeado por Ogum e Xangô. Iansã, Iemanjá e Oxum.
97
O panteão Iorubá ocupando seu espaço na orla da lagoa. Seu espaço na arte. Seu espaço
nas correntes construtivistas da arte em diálogo com saberes ancestrais, reelaborados pelo
artista a partir do “fazer artesanal próprio do ferreiro Ogum e do pedreiro Xangô, orixás
que o protegem no universo do Candomblé” (RIBEIRO, 2015, p. 19).

Inventa uma ‘escrita não codificável’, mas perfeitamente reconhecível


como algo que aponta para o território sensível que ele habitou. Essa
poética original é que irá, com o tempo, consolidar a obra de Jorge como
uma das mais singulares e substantivas expressões da cultura
afrobrasileira. (SAMPAIO, 2010, p.27)

Jorge dos Anjos é um artista afrodescendente, nascido em Ouro Preto, em 1957,


estudou na Fundação de Arte de Ouro Preto (FAOP), onde desenvolveu sua linguagem
artística na pintura, no desenho, na gravura e na escultura, tendo como professores Ana

3
Jorge dos Anjos falou sobre a simbologia do portal em entrevista realizada em 26 de março de 2021. Esta
entrevista foi dada à equipe redatora do memorial do artista apresentado ao Programa de Pós-Graduação
em Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, para fins de indicação à obtenção do título de Doutor
por Notório Saber. O processo encontra-se em trâmite na instituição e o resultado final acerca da atribuição
do título deve sair até o final de 2022.

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Amélia Lopes, Nello Nuno, Jair Afonso Inácio e Amilcar de Castro, entre outros. Sua
produção é de extrema relevância para o cenário das artes em Minas Gerais e no Brasil,
com destacada circulação de suas obras em âmbito local, nacional e internacional. Marília
Andrés Ribeiro, na apresentação do livro Jorge dos Anjos, Depoimento, (ANJOS, 2002)
o insere na vertente construtiva da arte contemporânea e destaca sua poética voltada para
as raízes afro-brasileiras.
A estrutura, que traz a relação com a escultura Rainha do Mar, com a Lagoa da
Pampulha, com a Paisagem Cultural Moderna da Pampulha e com as Festas de Iemanjá e
o significado, que decifra a obra de arte passando pelo seu processo construtivo, pela
geometria sensível e pelas possíveis leituras dos símbolos representados, que nos ajudarão
a compreender o portal não só pelo que ele representa visualmente, mas pelo que ele
simboliza no campo do patrimônio cultural. O Portal da Memória vem expressar a
diversidade cultural da cidade, se colocando de modo visual e imponente na orla da lagoa,
figurando nos cartões postais, nas selfies de fim de tarde e nos registros de eventos
esportivos, entre outros. Lutando pelo espaço e reconhecimento de uma Pampulha que
não pertence somente à paisagem cultural moderna representada pelas edificações de
98
Oscar Niemeyer.
As obras de Jorge dos Anjos ocupam a cidade de Belo Horizonte já há algumas
décadas. Seja de forma efêmera, ou não, estão distribuídas por vários pontos de Belo
Horizonte, em espaços públicos ou visíveis do espaço público, dialogando com a cidade
e suas construções, compondo cenários e planos para a população. A força dos signos
presentes nas esculturas é ativada a cada passo, a cada encontro, estabelecendo uma
identificação, uma familiaridade com as formas propostas, constituindo uma nova
identidade imagética de Belo Horizonte, comprometida com a valorização de
coletividades afro-brasileiras.
Uma das obras mais representativas de Jorge dos Anjos em espaço público é o
Monumento Liberdade e Resistência, situado na praça Marechal Deodoro, Avenida
Brasil, em Belo Horizonte. Obra datada de 1995, é uma homenagem aos 300 anos de
Zumbi dos Palmares. Na região do Bairro de Santa Efigênia, cujo próprio nome carrega
referências híbridas, diaspóricas, além do Monumento a Zumbi, estão outras duas
esculturas, uma localizada no canteiro central da Avenida Churchill e a outra, de 2010,
instalada na Praça Floriano Peixoto.

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Em parceria com arquitetos, o artista estabelece obras em edifícios na cidade, são


painéis em relevo e esculturas que figuram nas fachadas situadas em importantes avenidas
da capital mineira. Em 2019, foi inaugurada no Centro de Referência da Juventude (CRJ),
na Praça da Estação, em aço oxidado, tem 4 metros de largura e 6 de altura, a escultura
Aya: a árvore da vida pela vida ou Memorial pela vida da Juventude negra, na trajetória
do artista e da cidade, um aprofundamento em questões essenciais para a comunidade
negra, inserindo a luta contemporânea pela sobrevivência dos jovens negros, que vivem
em meio à violência urbana, sendo suas principais vítimas. Além disso, houve algumas
exposições, de caráter efêmero, geralmente dentro da programação do Festival de Inverno
da UFMG ou do Festival de Arte Negra que colocaram algumas obras de grande formato
em espaços públicos da cidade.
Das esculturas espalhadas pela cidade, o Monumento Liberdade e Resistência, o
Memorial pela vida da Juventude Negra e o Portal da Memória se destacam por serem
também monumentos.

O Portal, a Paisagem e a festa: muito além do moderno


99

Paisagens Culturais são propriedades culturais e representam a relação


entre trabalhos da natureza e do homem, designado no Artigo 1 da
Convenção. São ilustrativas da evolução e das formas de ocupação da
sociedade humana através do tempo, sob a influência das limitações e,
ou oportunidades apresentadas pelo ambiente natural e sucessivas
forças sociais, econômicas e culturais tanto externas quanto internas.
(UNESCO, 2008 - Tradução livre)

É na relação entre o homem e a natureza, entre a cultura e o natural, em que


encontramos a paisagem. Como já apontava Milton Santos, paisagem é “um conjunto de
formas que num dado momento exprimem as heranças que representam as sucessivas
relações localizadas entre o homem e a natureza” (SANTOS, 2006, p.66). À palavra
paisagem, acrescentamos a cultura e, assim, temos o conceito já muito debatido, de
paisagem cultural. A ideia de paisagem cultural aborda tanto o aspecto material quanto o
aspecto simbólico, essencial quando referimo-nos à cultura. Assim, paisagem “[...] antes
de poder ser um repouso para os sentidos, a paisagem é obra da mente. Compõe-se tanto
de camadas de lembrança quanto de estratos de rocha” (SCHAMA, 1996, p.17). São

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muitas e diversas as manifestações que podem vir a ser consideradas como ‘Paisagem
Cultural’ – “de jardins projetados a paisagens urbanas, passando por campos agrícolas,
rotas de peregrinação entre outras [...]” – o que leva a indefinições e controvérsias de toda
natureza (CASTRIOTA, 2009, p.13).
O Portal da Memória é constituinte da paisagem, qualificando-a e integrando-se a
ela, construindo-a. O Portal insere-se em um trecho da orla da Lagoa da Pampulha que
presta homenagem às culturas de matrizes africanas, conhecida por Praça de Iemanjá.
Compõem esta paisagem, a obra Portal da Memória, a escultura de Iemanjá, escultura em
bronze, datada de 1988, obra do artista José Synfronini de Freitas Castro, o espelho d'água
e contexto onde estão inseridos que recentemente foi nomeado como paisagem cultural
do Patrimônio Moderno, ao ser reconhecida pela UNESCO como patrimônio da
Humanidade. A religiosidade dos afrodescendentes também é integrante da paisagem da
Pampulha, não só pela presença material do portal e da escultura, mas pelas manifestações
religiosas que lá ocorrem desde o final dos anos 1950.
A festa, a escultura de Iemanjá, o Portal, todos, em conjunto, constituem
patrimônio da cidade de Belo Horizonte. Na construção da ideia de patrimônio cultural,
100
em vigor em organismos internacionais desde os anos 1970, Nestor Garcia Canclini
(1996) frisa que o patrimônio cultural possuiria três aspectos básicos: não inclui apenas a
herança de cada povo, mas também os bens culturais visíveis e invisíveis; releva-se os
usos sociais que relaciona esses bens com as necessidades contemporâneas das maiorias;
e, em oposição a uma seletividade que privilegiava os bens culturais produzidos pelas
classes hegemônicas, reconhece-se que o patrimônio de uma nação também se compõe
dos produtos da cultura popular. O patrimônio encontra-se, então, atravessado pela ação
de três tipos de agentes: o setor privado, o Estado e os movimentos sociais. É exatamente
neste contexto de lutas de reconhecimento do patrimônio cultural de grupos à margem,
que se encontra o Portal da Memória.
Nos anos 1940, construiu-se um complexo de lazer em torno da Lagoa da
Pampulha, integrante de um projeto de modernização da capital idealizado durante a
prefeitura de Juscelino Kubitschek. Fazem parte do conjunto arquitetônico edificações
como a Casa do Baile, Igreja de São Francisco, Iate tênis Clube e o Museu de Arte da
Pampulha, antigo Cassino. Além do conjunto arquitetônico moderno e seus jardins, o
entorno da lagoa recebeu outros atrativos de lazer ao longo do tempo como estádio de

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futebol, ginásio e zoológico. Foi uma região pensada e projetada nos anos 1940, para
deleite de finais de semana da elite belorizontina. No entanto, o tempo transformou o
projeto em uma paisagem distinta da inicialmente concebida. As ações dos homens
sempre escapam aos projetos de urbanistas e arquitetos, transformam a realidade em algo
distinto, modificam os planos, mostram que a sociedade racional, sonhada em um mundo
moderno, sempre escapa pelos dedos da existência concreta das humanidades.
A ocupação de parte da orla por um grupo social de tradições afro-brasileiras, que
reivindica o uso de um espaço destinado às elites, representa uma transformação da
paisagem, marcada por disputas ao longo das décadas para a inclusão e a permanência da
escultura de Iemanjá na Lagoa. O portal passa a compor o cenário e cria um ambiente
inteiramente novo, inserindo signos, símbolos e imagens da cultura afro-brasileira em
meio ao espaço urbano e aos elementos naturais. Esta nova paisagem torna-se marco da
cidade, embora esteja sempre referida marginalmente, não sendo incluída nos guias
turísticos oficiais, nem contemplada no reconhecimento da UNESCO, ela confere
identidade a grupos da cidade. É neste local que acontece a festa de Iemanjá, evento que
reúne milhares de pessoas todo ano, acontecem também outros encontros em torno a
101
Iemanjá que mobilizam centenas de pessoas. Em 2018 foi o lugar escolhido para receber
o Rei de Ifé, da Nigéria, quando em visita a Belo Horizonte.

A festa de Iemanjá

O histórico das religiões afro-brasileiras em Belo Horizonte antecede a fundação


da capital, com os calundus praticados na região de Curral del Rei. Os congados se
estabeleceram desde os primeiros anos da cidade e ainda hoje marcam seu espaço na
metrópole. A umbanda, na capital mineira, foi constituída antes do candomblé, este
último teria surgido pelo final dos anos de 1960 a partir de umbandistas que buscavam
nos fundamentos do candomblé uma forma de sustentação espiritual de seus terreiros. A
primeira festa de Iemanjá de Belo Horizonte data de 1957. Nos primeiros anos, acontecia
na Praça de Estação e seguia em carreata até a Lagoa da Pampulha. Posteriormente,
passou a acontecer na orla da lagoa e, ali, iniciou-se a ressignificação daquele espaço. A
festa de Iemanjá foi criada com o intuito de “[...] garantir o espaço da religião em uma

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sociedade fortemente marcada pelo catolicismo e preconceituosa em relação às


manifestações de matriz africana” (MORAIS, 2010, p.79).
A data da festa de Iemanjá na Lagoa da Pampulha é no dia 15 de agosto, ou no
primeiro final de semana depois, dia em que se comemora a Assunção de Nossa Senhora.
As tradicionais festas de Iemanjá de Salvador, BA, ocorrem no dia 02 de fevereiro. Desde
2014, o Afoxé Bandarerê se encarregou de organizar homenagens ao orixá na cidade
também no dia 02 de fevereiro. “[...] Este ato quebra preconceitos religiosos e racistas,
conquista cada vez mais a integração entre os membros de religiões de matriz africana e
promove a igualdade racial dentro do Carnaval de BH, a festa mais popular da cidade”
(IEMANJÁ, 2017), relata Márcio, mais conhecido como Tata.
A água tem um significado especial para as religiões de matrizes africanas, e a
Lagoa da Pampulha é um ponto de confluência de águas, carregando um forte
simbolismo. Por isso a escolha do local para a festa em substituição ao mar, à beira da
praia. Essa substituição faz parte da dinâmica de adaptação do culto à vida moderna, “[...]
O culto também interage com os espaços urbanos. Oferenda aos orixás são depositadas
em encruzilhadas, praças e lagoas” (MORAIS, 2010, p. 32).
102
A vigésima festa em homenagem a Iemanjá, ocorrida nos anos de 1970, evidencia
a dificuldade e as controvérsias sobre a substituição do elemento sagrado “mar” pela lagoa
e as justificativas encontradas pelos fiéis para as homenagens serem realizadas ali,
entregando-se presentes “à Ialoxá, que é a Deusa dos lagos, para serem levados através
dos rios à Iemanjá” (SILVA, 1998, p.78 apud MORAIS, 2010, p.81). Tata Tancredo4
criou este artifício para os umbandistas realizarem as festividades, pois não existiam
“fundamentos religiosos para tal, considerando o estado não ser banhado pelo mar” (Ibid:
81). No entanto, é fundamental lembrarmos o caráter dinâmico das culturas e o constante
processo de mudança na religiosidade, a festa é a Festa de Iemanjá.
São poucos os registros e documentos sobre as religiões de matriz africana em
Belo Horizonte, o que faz a inauguração do monumento a Iemanjá, a escultura Rainha
das Águas, na Lagoa da Pampulha em 1982, um marco histórico no reconhecimento pelo

4
Tancredo da Silva Pinto (1904-1979/Rio de Janeiro), nos anos 1950 difundiu o culto a Iemanjá no país e,
por meio da Confederação Umbandista do Brasil, incentivou a criação de várias instituições dessa natureza,
incluindo, em Belo Horizonte, a Federação Espírita Umbandista do Estado de Minas Gerais, em 1956.
(Morais, 2010: 75)

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poder público dessa comunidade e das religiões de matriz africana. Em 1982 também foi
colocado um monumento, Preto-Velho, na praça 13 de maio, no bairro Silveira (região
Nordeste). Ainda na década de 1980 foram publicadas duas leis oficializando as festas,
de preto-velho (Lei 4.454) e de Iemanjá (Lei 4.463), em 1987 uma norma que dispõe
sobre as festas é sancionada determinando “que os eventos serão promovidos pela
Federação Espírita do Estado de Minas Gerais, com o apoio da Secretaria Municipal de
Cultura e Turismo, indicando assim um envolvimento oficial do poder público”
(MORAIS, 2010, p.87). Em 2019 as Festas de Iemanjá e dos Pretos Velhos foram
reconhecidas como Patrimônio Imaterial do Município de Belo Horizonte.
A primeira imagem de Iemanjá colocada em um pedestal em uma praça na
margem da lagoa foi elaborada pelo artista José Synfronini de Freitas Castro em 1982.
Esculpida em mármore, um material de menor dureza, sofreu inúmeras depredações,
sendo rapidamente desfigurada, o que fez com que a imagem fosse retirada e o artista
convidado a elaborar outra escultura mais resistente aos possíveis ataques. A nova
escultura foi feita em bronze, em 1988. As depredações continuaram, com impactos
menores devido à dureza do material. A Federação Espírita, juntamente com a Prefeitura,
103
começou a realizar algumas modificações na praça, tentando evitar os ataques durante as
décadas seguintes, chegando a ser sugerido pela Prefeitura que a imagem fosse retirada.
Em 2007, após a pressão da Federação, houve a reestruturação da praça, com o recuo da
imagem de Iemanjá para dentro da água e a criação do portal. De acordo com o então
secretário municipal da Regional Pampulha, Flávio de Lemos Carsalade: “[...] Para
chegar até a estátua ficou perigoso, já que seu pedestal está a mais de dois metros de
profundidade” (GIUDICE, 2007).
No dia da festa, na praça de Iemanjá realizam-se ritos e oferendas para a Deusa
do Mar, cada terreiro fica responsável por organizar seu ritual particular e participar de
uma grande celebração conjunta organizada pela Federação. Nesse evento, o Portal,
inserido na paisagem juntamente com a lagoa e a escultura Rainha das Águas, torna-se
cenário para uma performance, com vestimentas, paramentas, flores e defumadores
trazendo para os participantes uma vivência sensorial do espaço da cidade.
As referências simbólicas e afetivas dos cidadãos que participam dessas
manifestações culturais tornam-se parte ativa do processo de apropriação e valorização
da paisagem. A ocupação desse espaço pela sociedade atribui significado ao local público,

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onde o cidadão se reconhece e se identifica com o patrimônio, vendo sua história


relacionada aos objetos da cidade.

Considerações finais

Como apresentamos ao longo de nosso texto, as obras de Jorge dos Anjos em Belo
Horizonte materializam formas afrodescendentes na cidade. A presença desta
comunidade em forma de esculturas e monumentos foi efetivada tardiamente pela
primeira escultura de Iemanjá instalada em 1982 e pela obra Monumento a Zumbi, de
1995. A obra central aqui enfocada, o Portal da Memória, de 2007, traz, em seu nome e
nos símbolos que a constituem, referências fundamentais da religiosidade e da cultura
afro-brasileira, fazendo com que as memórias de um povo antes excluído do espaço
público ocupem materialmente o espaço da cidade. A Festa de Iemanjá, patrimônio
imaterial, razão primeira da existência deste monumento e da escultura de Iemanjá é
presentificada pelas obras e são estes objetos, por sua vez, responsáveis por recordar aos
habitantes e visitantes da cidade a existência da festa, da cultura afro-brasileira e das
104
memórias da diáspora no território urbano.

Referências

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https://www.otempo.com.br/cidades/inaugurado-portal-para-proteger-iemanja-1.308114 Consultado em 19.06.2021.

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IEMANJÁ será homenageada na Pampulha. Jornal O Tempo. Belo Horizonte, 03 fevereiro 2017. Disponível em:
https://www.otempo.com.br/cidades/iemanja-sera-homenageada-na-lagoa-da-pampulha-1.1431405. Acesso em:
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105

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LAGOINHA, O BERÇO DO SAMBA DE BELO


HORIZONTE? História, Memória e Tradição

Lagoinha, ¿la cuna de la samba en Belo Horizonte? Historia, Memoria y Tradición

Renata Lopes1

“Praça Vaz de Mello”


E ela tão longe de mim.
E assim, de cachaça em cachaça
Vou vivendo ali na Praça
Botequim em botequim.
Sou todo da Lagoinha
Assim como ela é só minha
E eu sou seu bem querer.
Sair dali eu não posso
Este é o problema nosso
Eu prefiro te esquecer.

Celso Garcia e Jair Silva

Resumo: Neste texto, pretendemos apontar de que maneira o samba emerge na Lagoinha e como ele é visto 106
pela cidade, compreender de que forma a memória sobre o bairro reflete em duas composições feitas na
década de 1980, e como o samba está presente atualmente nos agentes culturais. O método utilizado foi a
pesquisa bibliográfica, tendo como principal referência a Cartografia Cultural do Bairro Lagoinha,
produzida em 2019 e que realizou grande mapeamento das atividades culturais, bem como o
reconhecimento de pessoas significativas para a história e a memória da Lagoinha.

Palavras Chave: Samba. Lagoinha. História.

Resumen: En este texto, pretendemos señalar cómo surge la samba en Lagoinha y cómo es vista por la
ciudad, para comprender cómo la memoria del barrio se refleja en dos composiciones realizadas en la
década de 1980, y cómo la samba está presente actualmente en agentes culturales. El método utilizado fue
la investigación bibliográfica, teniendo como referencia principal la Cartografía Cultural del barrio
de Lagoinha, producida en 2019, que realizó un gran mapeo de las actividades culturales, así
como el reconocimiento de personas significativas para la historia y la memoria de Lagoinha.
Palabras clave: Samba. Lagoinha. Historia.

1
Pós-Graduada em Psicopedagogia Clínica e Institucional (Estácio de Sá), Pós-Graduada em Tecnologias Educacionais
pelo Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG), Mestranda no Programa de Pós Graduação em História, na linha social
da cultural na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: renatalopespinto01@gmail.com.

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Introdução
A Lagoinha, situada na região Noroeste de Belo Horizonte, é um dos bairros mais
antigos da cidade. Apesar de sua localização na área pericentral, é tido como local
periférico desde a sua formação, que se deu no final do século XIX, junto à construção
da nova capital de Minas Gerais. A região sempre foi significativa por proporcionar ao
longo do tempo artigos diferentes subsidiando o crescimento da cidade. Esteve presente
no fornecimento de produtos hortifrutigranjeiros, na produção de matéria prima para as
construções, através da exploração de pedras na atual Pedreira Prado Lopes e da Pedreira
da Lagoinha, além de ser local de chegada de materiais e demais insumos, através da linha
do trem que ligava Belo Horizonte a Divinópolis, posteriormente como local de
passagem, com a instalação da rodoviária e do complexo viário da Lagoinha.

O nome deste bairro é mais antigo do que o próprio arraial de Curral Del Rei,
conforme tivemos ensejo de ver pela carta de sesmaria de João Leite da Silva
Ortiz, pois na designação da divisa das terras concedidas àquele bandeirante,
no cercado, já o local figurava com o nome de Lagoinha, que assim se chamou
pelo fato de ter existido ali, outrora, uma lagoa mais ou menos no local em que
hoje ficam as ruas Diamantina, Itapecerica, Adalberto Ferraz e Formiga.
(BARRETO, 1995, p. 270)
107
A sua ocupação ocorreu durante a execução do plano da Comissão Construtora2
que estava a construir a nova capital do Estado. Diferente dos bairros localizados dentro
da atual avenida do Contorno, que foram projetados para abrigar servidores públicos e
governantes, a Lagoinha recebeu empregados, empreiteiros, “imigrantes italianos,
portugueses, turcos, espanhóis, migrantes do interior de Minas Gerais e de outros estados
brasileiros” (FREIRE, 2011, p.2).
Segundo Freire (2011) a sua ocupação remonta ao antigo Curral Del Rey3,
classificado como área suburbana, por estar fora dos limites do cinturão da avenida do
Contorno. Sendo formado a partir da junção das colônias agrícolas Carlos Prates e

2
A Comissão Construtora da Nova Capital era chefiada pelo engenheiro Aarão Reis e compunha-se de uma
equipe de engenheiros, arquitetos e urbanistas, cujos trabalhos estenderam-se entre os anos de 1894 e 1897,
data da inauguração da cidade. Fonte: https://prefeitura.pbh.gov.br › Acesso em: 15 Ago 2022.
3
Citação retirada do livro Memória Histórica e Descritiva que demonstra o tempo de fundação do Curral
Del Rey - Nestas duas primeiras partes faço, com os elementos que pude adquirir, um histórico do arraial
de Curral dei Rei, depois Belo Horizonte, desde a sua fundação, em 1701, por João Leite da Silva Ortiz, até
a época em que aqui se ia instalar a Comissão Construtora da Nova Capital, bem como o histórico do
problema da mudança da capital através dos tempos idos (BARRETO, 1996, p. 64).

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Américo Werneck, que foram incorporadas formalmente à região suburbana de Belo


Horizonte nas décadas de 1910 e 1920.
A área pericentral registra a história da imigração para a metrópole em
construção e a reivindicação de serviços urbanos. Aparentemente é o espaço
apropriado para as classes médias e de exclusão progressiva das camadas de
menor renda, que permanecem apenas nas porções mais afastadas. Sua
importância regional é crescente, graças à substituição do uso residencial pelo
comercial e de serviços ao longo das vias arteriais. A partir dos anos 80,
começa a perder população em termos absolutos, embora apresente a mais alta
densidade demográfica da RMBH e intensifique sua verticalização a partir dos
anos 90. (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2007, p. 27)

Muitas modificações urbanas ocorridas desde a década de 1970, como construção


de viadutos, a abertura de avenidas e a demolição de praças, fizeram com que a Lagoinha
se transformasse. A região acabou perdendo espaços de sociabilidade, o que resultou em
certo esquecimento da sociedade e do poder público a seu respeito, ao longo do tempo.
Berman (1982) sintetiza em seu texto a chegada da modernidade no Bronx, Estados
Unidos entre 1950/1960 com demolições e construções de vias expressas chefiadas pelo
prefeito Robert Moses. De modo semelhante, as transformações ocorridas na Lagoinha
com a construção de viadutos e alargamento de vias pode ser entendido como mecanismos
de implantação da modernidade. Cumpre ressaltar que outras intervenções foram 108
realizadas como desapropriações, alargamento da Avenida Antônio Carlos, instalação do
BRT MOVE, entre outras ações que interferiram na conformação do bairro.
A Lagoinha, atualmente, é reconhecida como patrimônio histórico de Belo
Horizonte e está inserida no conjunto urbano dos bairros Lagoinha, Bonfim e Carlos
Prates, tombados em 2016, “reconhecendo sua importância arquitetônica, histórica,
afetiva e simbólica para a cidade” (PREFEITURA DE BELO HORIZONTE, 2016, p. 2).
Apesar deste reconhecimento, a região encontra-se em processo de degradação muito
avançado, sendo necessário implementar medidas emergenciais de resgate cultural.
Cumpre ressaltar que o Plano Diretor de Belo Horizonte, por meio da Lei Municipal nº
11.181/20194, em seus artigos de número 239 a 244, estabelece critérios para a
recuperação econômica e sociocultural, além da preservação e da valorização do
patrimônio cultural, ocupação de imóveis, entre outras medidas.
Podemos perceber certo interesse dos agentes públicos na requalificação do
bairro, visto os levantamentos culturais e projetos de revitalização lançados como o

4
A lei 11.181/2019 completa está disponível no site da Câmara Municipal de Belo Horizonte.

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Projeto Lagoinha (1994-1997), o Inventário do Patrimônio Urbano e Cultural de Belo


Horizonte Bairro Lagoinha (1995), a Operação Urbana Consorciada Antônio Carlos Leste
Oeste - OUC-ACLO (2014-2015), a Cartografia Cultural do Bairro Lagoinha - CCBL
(2019). Embora tais propostas sejam bem elaboradas, pouco refletiram nos espaços de
sociabilidade, ruas, casas e comércios instalados na região.
Ainda que haja todo este processo de descaracterização, a Lagoinha não deixa de
fazer parte da história e da memória da cidade. Sempre é lembrada como reduto da boemia
de Belo Horizonte, onde, na antiga praça Vaz de Mello, ficavam os botequins e o
comércio e, no seu entorno, as feiras, o baixo meretrício e o carnaval. Esta região,
também, abriga o notório posto de berço do samba belorizontino.
Neste texto, pretendemos apontar de que maneira o samba emerge na Lagoinha e
como ele é visto pela cidade, compreender de que forma a memória sobre o bairro reflete
em duas composições feitas na década de 1980, e como o samba está presente atualmente
nos agentes culturais. O método utilizado foi a pesquisa bibliográfica, tendo como
principal referência a Cartografia Cultural do Bairro Lagoinha, produzida em 2019, que
realizou grande mapeamento das atividades culturais, bem como reconhecimento de
109
pessoas significativas para a história e a memória da Lagoinha.

Da construção de Belo Horizonte à ocupação da Lagoinha, um breve


histórico

Conforme Freire (2009) Belo Horizonte emerge com o propósito de definir um


traçado urbano que pudesse racionalizar as formas de ocupação incipientes e transformar
as sedes em urbes permanentes. Em 1891, o plano era transferir a sede do governo de
Minas Gerais de Ouro Preto para outra localidade. Esta decisão se deu no contexto da
transição do império para a república, onde os republicanos desejavam romper com as
tradições monárquicas, tornando o estado moderno e industrializado. Mas, para isso
acontecer, seria necessário construir uma capital centralizada, que pudesse promover
acesso e comunicação mais facilmente, além de equilibrar as disputas de poder que
estavam em voga no momento político.

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A nova cidade, planejada de acordo com os valores modernos, promoveria a


liberdade republicana, expressando, no espaço edificado, o poder e a liberdade.
Sobretudo, romperia com os símbolos e traços do período colonial, estigma da
dominação e possibilidade de projeção do futuro. (FREIRE, 2009, p. 33)

Com o plano já definido, de acordo com o Anexo IV, Prefeitura de Belo Horizonte
– PBH, 2018, em 17 de dezembro de 1893, foi promulgada pelo Governo a Lei nº III que
aprovou o plano de Belo Horizonte e mudou o nome da capital, de Belo Horizonte para
Cidade de Minas, que vigorou até 1901, quando retornou à denominação anterior.
Posteriormente, em 14 de fevereiro de 1894, por meio do Decreto n.º 680, foi criada a
Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC), sendo chefiada pelo engenheiro Aarão
Reis5. Neste decreto, também era definido o prazo para a conclusão das obras em quatro
anos. Com o intuito de garantir os materiais de construção, em 1895 foi implementado
um ramal férreo de quinze quilômetros ligando Belo Horizonte à Rede Central do Brasil,
que facilitaria as obras da nova cidade (BARRETO, 1996, p. 382.)
A construção da então Cidade de Minas, que posteriormente seria denominada
Belo Horizonte, foi delegada a um grupo comandado pelo engenheiro Aarão Reis, sendo
que, em 1895, a planta geral foi finalizada. Em 5 março de 1894, as obras foram iniciadas 110
6
na Lagoinha e, em abril de 1895, concluiu-se a Planta Geral, sendo em dezembro de 1897
a cidade inaugurada. O projeto foi inspirado em cidades com planejamento urbano
moderno como Paris, Washington e La Plata, levando em consideração condições de
higiene e de circulação humana. A planta dividiu a cidade em três principais regiões -
área central urbana, área suburbana e área rural - que diferiam em relação a usos, divisão
e ocupação de cada uma delas.

5
Aarão Reis, durante o período de sua administração, montou sua equipe e apresentou instruções
minimamente detalhadas para execução das obras a serem iniciadas imediatamente. Foram iniciados os
trabalhos de construção, com um grupo de 194 técnicos e funcionários. O trabalho foi dividido em seis
seções de serviço da seguinte forma: Administração Central, Contabilidade, Escritório Técnico -
responsável pela área de arquitetura, Estudo e Preparo do Solo e Subsolo, Viação, Edificação e Eletricidade.
(Anexo IV, Prefeitura de Belo Horizonte, 2018, p. 1) Disponível em:
https://prefeitura.pbh.gov.br/sites/default/files/estrutura-de-governo/politica-urbana/2018/planejamento-
urbano/cca_anexo_iv_-_sintese_da_historia_de_bh.pdf
6
Conforme a Lei Nº 11.346/2022, de 1º de março de 2022, em seu artigo primeiro “Fica instituído o Dia
da Lagoinha, a ser comemorado, anualmente, no dia 5 de março, data em que, em 1894, iniciaram-se, na
região da Lagoinha, as obras da construção de Belo Horizonte”. Informações e lei completa disponível no
site da Câmara Municipal de Belo Horizonte. Disponível em:
https://www.cmbh.mg.gov.br/vereadores/wesley/legislacao. Acesso em 15 nov. 2022.

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Figura 1 - Traçado geométrico do centro e distância da Lagoinha.

111
Fonte: PANORAMA de Belo Horizonte: Atlas Histórico

Acima, podemos verificar na Planta Cadastral de Belo Horizonte a disposição das


ruas do centro de Belo Horizonte e a Avenida do Contorno separando a região central da
do Córrego do Pastinho, os Menezes e a Lagoinha. A ocupação da Lagoinha se deu junto
à execução do projeto de Aarão Reis, com características periféricas, uma vez que estava
fora dos limites da Avenida do Contorno. Os bairros localizados fora do centro
apresentavam ruas tortuosas e estreitas, com contornos heterogêneos. Os residentes da
Lagoinha, como dito anteriormente, eram basicamente trabalhadores, migrantes e
imigrantes que vieram para ajudar na construção da nova capital, se fixando em local
próximo ao canteiro de obras para facilitar o trajeto entre casa e trabalho.
Por sua localização, a Lagoinha esteve e está presente em diversos aspectos do
crescimento citadino. Inicialmente, participou do abastecimento hortifrutigranjeiro da
cidade por estar entre o centro e a colônia agrícola Carlos Prates. Por volta dos anos 1910
e 1920, houve a instalação do ramal férreo que ligava Belo Horizonte a Divinópolis, que

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abastecia a cidade de matérias primas, gêneros alimentícios e outros artigos. A iluminação


e o transporte foram instalados na Lagoinha no ano de 1909 deixando a população um
pouco mais confortável. Entretanto, o serviço de fornecimento de água foi instalado
somente em 1930 em substituição aos chafarizes públicos existentes.
Na década de 1930, a capital passava por significativo crescimento econômico,
sendo necessário a abertura de vias e expansão territorial. Com isso, podemos dizer que
o início das transformações ocorridas na Lagoinha se deu em meados de 1933 com os
investimentos na região norte, abertura do aeroporto Carlos Drummond de Andrade e
calçamento da “Estrada Velha da Pampulha”, em 1937, onde hoje é a região da rodoviária.
Em 1948, foi iniciada a construção do túnel Lagoinha-Concórdia (Túnel Souza Lima)
concluído apenas em 1971, ligando o centro de Belo Horizonte à região Noroeste, como
medida para desafogar os viadutos Floresta e Santa Tereza (FREIRE, 2009, p. 45).
Tais modificações acabaram por transformar a paisagem do bairro. A Praça Vaz
de Melo que constituía um quarteirão entre a Ferrovia e a Avenida Presidente Antônio
Carlos também passou por transformações como a construção de viadutos, alargamento
e fechamento de vias, construção do metrô de superfície, entre outros. Conhecida por ser
112
reduto do baixo meretrício e dos boêmios de segunda classe, a praça teria sido batizada
em homenagem a um dos principais comerciantes do local, Guilherme Vaz de Melo. Ante
a utilização desse espaço por esse grupo, a Lagoinha foi considerada um dos berços do
samba em Belo Horizonte, onde dessa época vem a designação do popular “copo
lagoinha”, atribuído a um modelo comum de copo de vidro muito usado nos botequins e
rodas de samba tradicionais da região.

Figura 2 - Praça Vaz de Melo (1960)

Fonte: Acervo do Museu Histórico Abílio Barreto.

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Figura 3 - Vista aérea da Lagoinha

Fonte: Prefeitura Municipal de Belo Horizonte.

Como podemos perceber, a Lagoinha sofreu e ainda sofre com as intervenções 113
realizadas ao longo do tempo, perdendo seus espaços de sociabilidade como cinemas,
praças, feiras, mercados, entre outras coisas. Atualmente, a região passa por um processo
de degradação muito grande. No entanto, artistas, músicos e ações realizadas pela
sociedade civil têm resistido. Como veremos na próxima seção, o samba e as escolas de
samba trazem à tona memórias do que a Lagoinha já foi e a esperança do que ela ainda
pode se tornar, uma vez que é patrimônio da cidade.

Lagoinha, o berço do samba belorizontino?

De acordo com Silva (2015), quem falava em samba no Rio de Janeiro, no início
do século XX, eram pessoas ligadas às comunidades de negros e mestiços vindos da
Bahia, que se fixaram em bairros próximos ao cais do porto. Nesses locais, viviam
predominantemente negros alforriados e imigrantes vindos do interior. Essas pessoas
eram muito festeiras, gostavam de cantar, comer, beber e dançar, sendo que realizavam
esse tipo de festejo em suas terras natais os chamando de “samba”. Essa mesma palavra
era usada por eles para denominar uma modalidade musical coreográfica, a qual consistia
na formação de uma roda, em que no centro alguém começa a dança e dançando escolhe

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alguém do sexo oposto. A escolha era feita através da umbigada, gesto coreográfico que
em uma das linhas do tronco banto chamava-se “semba”, suposta origem da palavra
samba.
Percebe-se que as origens do samba estão ligadas a festejos e pessoas que
moravam nos subúrbios. Assim, de forma semelhante ao Rio de Janeiro, o bairro
Lagoinha tem em sua constituição pessoas de locais diferentes, trabalhadores e indivíduos
com baixa condição financeira. Essa mistura heterogênea deu origem ao reduto do samba
belorizontino.
Segundo a Cartografia Cultural do Bairro Lagoinha (2019) o samba é um dos
principais elementos culturais da região, visto que a música foi a mais expressiva dentre
o total de referências mapeadas. Esta centralidade musical é inerente à formação
sociocultural da Lagoinha. Desta maneira, conformaram “territorialidade popular,
operária, baixa-renda, mestiça e, sobretudo, plural, o samba sobressaiu, nesse universo,
como o gênero musical por excelência, da Lagoinha” (CCBL, 2019, p. 87).
De acordo com o levantamento realizado em 2019, o samba está presente em
diversas esferas da vida coletiva, desde a familiar, passando pela religiosidade,
114
sociabilidade, refletindo em sambistas, blocos de carnaval, escolas de samba, afoxés,
casas de samba, canções, entre outras formas. Podemos compreender que a sua vocação,
boêmia e festeira, está ligada às dimensões da cultura do samba, “este gênero musical
está, portanto, vinculado ao cotidiano local e a uma criação comum, baseada em gentes e
em suas histórias vividas na Lagoinha” (CCBL, 2019, p. 87).
Ressalta-se que os grupos heterogêneos que fizeram parte da formação do bairro,
principalmente negros e mestiços do interior do estado, trouxeram junto “os hábitos rurais
das cerimônias e festas religiosas, dos batuques e das rodas dos batuqueiros [...] ao som
de estribilhos marcados por palmas e percussão improvisada” (AZEVEDO, 2013, p. 125).
Essas informações são muito significativas no que se refere à história dos sambistas da
região, conforme CCBL (2019):

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José Luiz Lourenço, o Mestre Conga. Nascido em 1927 no município de Ponte


Nova, na Zona da Mata mineira, Conga é filho de um lavrador e sanfoneiro e
de uma dona de casa. Sua relação com a cultura popular afro-brasileira ocorreu,
portanto, desde a infância, quando tomou contato com diversas manifestações,
“como o calango, a batucada, o samba rural e a congada”, o que influenciou de
modo incontornável a sua vida no samba (Almanaque do Samba). O sambista
é considerado um dos pilares do samba de Belo Horizonte, um de seus
principais personagens, uma vez que viveu a criação das primeiras escolas de
samba da cidade que, não por acaso, tiveram origem na região da Lagoinha.
Outro expoente do samba na região, Milton Rodrigues Horta, nasceu em 1934,
no município mineiro de Itaponhacanga, onde se educou em determinadas
tradições populares que o acompanhou até a capital Belo Horizonte, para onde
migrou em 1949, aos 15 anos de idade, e se tornou o famoso Mestre Lagoinha,
compositor de importantes sambas da cidade. (CCBL, 2019, p. 90)

A história de Belo Horizonte é intrínseca à história da Lagoinha, pois as duas estão


ligadas de formas bastante peculiares. Como já sabemos, a região foi ocupada por
trabalhadores que ajudaram na construção de Belo Horizonte. Desta maneira, a dinâmica
de bairro foi sendo construída aos poucos com a instalação de pequenos comércios e
serviços, além dos ambientes de socialização. Segundo Freire (2009), a vida social na 115
Lagoinha foi intensa por ter sido, desde o início, um bairro boêmio, de tradição musical,
do samba e da prostituição da cidade. Por isso, foi por vezes comparado com a Lapa, no
Rio de Janeiro. Os tempos áureos da boemia na região ocorreu até a década de 1950,
estando localizada na Praça Vaz de Melo que, em 1981, foi completamente demolida para
dar lugar ao metrô de superfície, ao complexo viário que ligaria a região norte a sul da
cidade e para a abertura da Avenida Antônio Carlos.
De acordo com o levantamento realizado pela Cartografia Cultural (2019), o
desenvolvimento do samba na Lagoinha se deu por encontrar lugar nas sociabilidades dos
quintais, casas, barracos e espaços das religiões afro-brasileiras nas comunidades de vilas.
Outro universo que favoreceu o florescimento do samba na Lagoinha foram os bares e
botequins da região, locais onde ocorriam reuniões de sambistas e compositores. Pai
Ricardo Moura, zelador da Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente, localizada na Vila
Senhor dos Passos, conta que o samba esteve presente nos terreiros do bairro desde a
década de 1950:

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O samba nasce dentro dos terreiros. Está escrito em tudo enquanto é livro. O
samba nasce no terreiro, as danças nascem a partir dos costumes afro-
indígenas. E isso acontece na Vila também. Assim como as cores, os ofícios,
também [...] É o mesmo povo de terreiro que samba. É o mesmo povo de
terreiro que desce para o carnaval. (Entrevista Ricardo Moura - Débora Silva
e Guilherme Eugênio, para a CCBL 27/05/2019)7

A senhora Iolanda Alves Guerra, nascida em 1933, moradora da Pedreira Prado


Lopes durante toda a sua vida, que também faz parte da história do samba e da Lagoinha,
foi durante anos a porta-bandeira da Escola de Samba Unidos da Pedreira. Ela conta de
que forma ocorriam os sambas nas casas do morro:

[...] tinha a família dos Pereira, do Hélio Pereira, todos lá eram policiais mais
tinha samba de terreiro e depois tinha o Vitório com a escola de samba. Mais
só que a minha... meus pais não aceitavam gente frequentar. [...] O samba de
terreiro era no terreiro da família Pereira, tinha hora de terminar porque você
sabe né? Tinha que ter respeito, mas sempre teve respeito. (Entrevista Iolanda
Alves Guerra - Débora Silva e Hugo Rocha, para a CCBL 24/05/2019).

Diante o exposto, podemos compreender como a dinâmica social reflete na


(re)definição de lugares e espaços, nas maneiras de (con)viver e de se relacionar. Neste
caso, o advento musical demonstra a sua potencialidade em ressignificar e aproximar
experiências, pessoas e relações. Bem como, a maneira como houve a apropriação dos 116

espaços pelo samba, que saiu dos becos e terreiros da Pedreira Prado Lopes, passando
pela Praça Vaz de Melo, chegando até os desfiles da Avenida Afonso Pena.

Escolas de samba e blocos de carnaval

De acordo com a CCBL (2019), além do samba e dos sambistas, a Lagoinha


também foi o local de origem da primeira escola de samba a desfilar em Belo Horizonte,
a Escola de Samba Pedreira Unida, fundada em 1937, por moradores da Pedreira Prado
Lopes. A Estação Surpresa foi outra agremiação que emergiu no contexto musical da
Pedreira, junto com a Escola de Samba Unidos dos Guaranis que despontou em 1964.
Toda essa efervescência carnavalesca faz da Pedreira Prado Lopes o berço do samba de
Belo Horizonte.

7
As entrevistas citadas neste artigo foram realizadas durante a realização da Cartografia Cultural do Bairro
Lagoinha, executado pela Peixe Vivo Histórias, contratada pela Prefeitura de Belo Horizonte em 2019,
sendo a sua utilização autorizada.

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Como as escolas de samba, a Lagoinha também foi espaço de formação de blocos


caricatos, como o Bloco Leão da Lagoinha, que surgiu em 1947 a partir da reunião de
alguns músicos e é considerado o mais antigo da cidade. De acordo com Jairo do
Nascimento, atual responsável pelo bloco:

Não existia bloco de rua, o Leão da Lagoinha foi o primeiro bloco de rua que
nasceu aqui na Rua Itapecerica. Um grupo de jovens que não tinha
oportunidade de pular o carnaval, eles se vestiram de mulher e ficaram na porta
de casa ali fazendo o próprio carnaval deles né? (Entrevista Jairo Nascimento
Moreira - Hugo Rocha, para a CCBL, 27/08/2019)

Em 1948, a brincadeira se tornou tradição, após a concentração, o bloco saía pelas


ruas até chegar à Avenida Afonso Pena, onde abria os desfiles das escolas de samba. Por
vários anos, o bloco se manteve com pouca movimentação, mas nunca deixou de existir.
Em 2010, houve uma mobilização para sua retomada, ganhando fôlego em 2017 a partir
do novo contexto do carnaval belorizontino. Citamos ainda que, a partir do Leões, surgiu
a Banda Mole em 1975, um dos mais tradicionais blocos carnavalescos da cidade “Então,
parte dessa diretoria que era o Jacaré, o Jacaré Ladeira, é Elvécio, eles fundaram a Banda
117
Mole. [...] Então a Banda Mole saiu do Leão da Lagoinha” Entrevista Jairo Nascimento
Moreira, 27/08/2019.

Figura 4 - Desfile do bloco de carnaval “O Leão da Lagoinha” (1950/1960).

Fonte: Museu Histórico Abílio Barreto.

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Figura 5 - Escola de samba Surpresa desfila na Afonso Pena na década de 1960.

Fonte: Google.

Aqui, citaremos alguns dos blocos e agremiações que emergiram na região da


Lagoinha, pois são muitos e seria necessário um estudo mais aprofundado e específico 118

para ressaltar a importância e a contribuição que cada um teve para a formação cultural
de Belo Horizonte. Ressalto ainda a importância dos compositores, sambistas,
sambadores, sambadeiras e músicos que fizeram e fazem a história da música da
Lagoinha.
Além dos já citados Bloco Leão da Lagoinha, Afoxé Ilê Odara e da Banda Mole,
podemos também mencionar como referências significativas musicais e culturais como
Mestre Conga, Ronaldo Coisa Nossa, Raimundo do Pandeiro, Dona Yolanda Alves e
Adélia Mendes, o Bloco Cintura Fina, o Bloco Orisamba, o grupo musical Conversamba,
Velha Guarda da Unidos dos Guaranis e a Ressaca de Carnaval da Lagoinha8.
A Lagoinha, desde de antes do seu período boêmio, foi mal vista pelo restante da
cidade, primeiro por não estar de acordo com os preceitos modernos que abarcavam o
pensamento modernizador e higienista da época. Posteriormente, pelas características
boêmias e, atualmente, pelo estado de degradação e instalação de moradores em situação
de rua na região. No entanto, cabe salientar o importante papel que o bairro teve e ainda

8
As informações podem ser encontradas na Cartografia Cultural do Bairro Lagoinha realizada em 2019.

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tem para a música e cultura belorizontina. Ressaltamos que cabe ao poder público e à
sociedade civil agirem juntos para manter o que ainda há de melhor na Lagoinha, tanto o
patrimônio edificado, quanto os agentes detentores dos saberes que lá residem.
Ainda como referência, podemos citar o grupo Conversamba que surgiu em 2015
e se reúne no antigo Mercado da Lagoinha, atual Centro Cultural Liberalino Alves de
Oliveira, em ensaios abertos para toda a população. O grupo conta com pessoas de várias
localidades da cidade. No entanto, abarca a velha guarda que esteve presente nos sambas
da Lagoinha na década de 1950 e, na atualidade, sendo composto por Dona Yolanda,
Mestre Lagoinha, Ronaldo Coisa Nossa, Mestre Conga e Rodrigo Santos. Essa iniciativa
é importante para o reconhecimento musical da Lagoinha, além de aproximar cantores
mais novos da tradição.

Reminiscências e o samba memorialístico

O conceito de memória é amplo, já foi discutido por vários estudiosos do assunto,


vejamos algumas definições acerca do tema. Para Jacques Le Goff (1990) a memória é o
domínio do que se pode conservar certas informações permitindo ao sujeito atualizar 119
impressões ou informações passadas ou reinterpretadas como passadas, a memória estaria
nas bases da história misturando-se ao documento, o monumento e a oralidade. Para
Halbwachs (2004), as lembranças se fortificam graças aos relatos coletivos, que por sua
vez, se reforçam por meio das comemorações públicas de acontecimentos que marcam a
memória coletiva.
Para Pollack (1989), a memória, que é comum ao grupo, fundamenta e reforça
sentimentos de pertencimento e fronteiras socioculturais, além de apresentar o
contraponto entre esquecimento e silêncio onde se pode trazer à memória um
esquecimento ou mesmo esquecer memórias. Para Nora (1993), o lugar de memória
supõe, para início de jogo, a justaposição de duas ordens de realidades: uma realidade
tangível e apreensível, às vezes material, às vezes menos, inscrita no espaço, no tempo,
na linguagem, na tradição, e uma realidade puramente simbólica, portadora de uma
história. A noção é feita para englobar ao mesmo tempo os objetos físicos e os objetos
simbólicos, com base em que eles tenham ‘qualquer coisa’ em comum.
O bairro Lagoinha pode ser considerado um lugar de memória, onde ficaram
circunscritas àquelas vivências na Praça Vaz de Melo, pois, quando se fala sobre o bairro,

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existem reminiscências do que já se passou, com um grande saudosismo. Principalmente,


por moradores dos bairros próximos ou mesmo moradores de Belo Horizonte, que apenas
possuem a memória coletiva da Lagoinha, de ouvir falar, de saber que já existiu, mas não
necessariamente se viveu.

Os lugares de memória são, antes de tudo, restos. A forma extrema onde


subsiste uma consciência comemorativa numa história que a chama, porque ela
a ignora. É a de desritualização de nosso mundo que faz parecer a noção. [...]
O que secreta, veste, estabelece, constrói, decreta, mantém pelo artifício e pela
vontade de uma coletividade fundamentalmente envolvida em sua
transformação e sua renovação. Os lugares de memória nascem e vivem do
sentimento que não já memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que
é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios
fúnebres, notariar atas porque essas operações são naturais. (NORA, 1993
p.11, 12)

Nessa perspectiva, podemos citar as letras dos sambas compostos na década de


1980 em homenagem à Lagoinha, que carregam a lembrança dos tempos áureos vividos
pelos compositores. Ainda, é possível compreender de que maneira as intervenções
urbanas afetaram os espaços de sociabilidade da região.
120
Adeus, Lagoinha, adeus
Estão levando o que resta de mim
Dizem que é força do progresso Ontem eu disse adeus à Lagoinha
Um minuto eu peço Hoje eu digo bom-dia metrô
Para ver seu fim Mas tudo isso porque só agora que o progresso ali
Praça Vaz de Mello da folia chegou
Da gostosa boemia Minha Praça Vaz de Mello
E de muito valentão A nossa Praça de tradição
Vou lembrar Joel compositor Naquela famosa Praça que só ficou recordação
E os amigos lá da praça Me lembro de Joel Honorato
Lembrarei com emoção Que era um compositor de fato
Coisas da matéria eu não ligo E de Athaíde Machado
Mas preciso de um abrigo Que já foram pro lado de lá
Pro meu coração O famoso Rômulo Paes
Adeus, Lagoinha. Os famosos autores de Minas Gerais

(Gervásio Horta e Milton Rodrigues Horta (Milton Rodrigues Horta - Mestre Lagoinha)
Mestre Lagoinha 1980)

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Nas composições acima - escritas por Gervásio Horta9 e Mestre Lagoinha10 - é


possível estabelecer relações como a forma abrupta das demolições não possibilitou que
houvesse tempo para a despedida, ainda, como os personagens e amigos da boemia foram
substituídos pela modernidade trazida pelos meios de transporte através do Complexo
Viário da Lagoinha e do Metrô de superfície.

A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela
está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do
esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a
todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas
revitalizações. (NORA, 1993 p.9)

Como forma de materialidade da memória, a rememoração de eventos, lugares e


cultura do bairro que foi ocupado antes da inauguração da cidade, evidencia o resgate da
memória. Devido às diversas intervenções que modificaram não só o espaço físico do
bairro Lagoinha, mas, também, os espaços de sociabilidade como a Praça Vaz de Melo
que foi demolida, o Mercado da Lagoinha, a Feira de Amostras, o ginásio do Paissandu,
o Mercado Mauá, o Cine São Geraldo, além de interferir em seu cotidiano, interferiram
diretamente no acesso e no convívio de seus moradores. Ao trazer novas perspectivas 121
sobre a revitalização do espaço, as memórias afetivas emergem ao monumentalizar
momentos vividos na história da região. “Os lugares de memória são, antes de tudo,
restos. A forma extrema onde subsiste uma consciência comemorativa numa história que
a chama, porque ela a ignora” (NORA, 1993, p. 12).

9
Gervásio Barbosa Horta, é cantor e compositor nascido em uma família de musicistas em 2 de agosto de
1937 em Teófilo Otoni, no Estado de Minas Gerais. A avó e a mãe foram professoras de piano. Em 1954 a
família mudou-se para Belo Horizonte. Dois anos depois mudou-se para o Rio de Janeiro, onde cursou
Administração na Fundação Getúlio Vargas. No ano de 1959 retornou a Belo Horizonte, onde trabalhou na
Revista Silhueta. Foi nomeado assessor especial do Governo de Minas, cargo que manteve até 1996, quando
se aposentou. Trabalhou também no jornal Última Hora, montou uma agência de publicidade e dedicou-se
a compor jingles políticos e comerciais. Iniciou a carreira artística como jinglista, compôs marchinhas de
carnaval, e várias canções em parceria com Rômulo Paes, como que um cronista musical da cidade de Belo
Horizonte. Disponível em http://www.dicionariompb.com.br/gervasio-horta/biografia acesso em: 12 Ago
2010.
10
Milton Rodrigues Horta, conhecido como Mestre Lagoinha, nasceu em 1934, no município mineiro de
Itaponhacanga, onde se educou em determinadas tradições populares que o acompanhou até a capital Belo
Horizonte, para onde migrou em 1949, aos 15 anos de idade, e se tornou o famoso Mestre Lagoinha,
compositor de importantes sambas da cidade. Informações dadas durante a entrevista concedida a Débora
Raíza, Raul Lanari e Laura Moura.

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Pode-se dizer que o espaço físico material estava sendo utilizado como suporte
para a consolidação de uma memória coletiva imaterial, onde a monumentalização do
bairro Lagoinha traria um lugar de memória como suporte para as canções.

Considerações Finais

O presente artigo pretendeu apresentar a história do samba de Belo Horizonte que


surgiu no bairro mais antigo da cidade, demonstrando que a formação sociocultural da
Lagoinha interferiu diretamente nos reflexos urbanos e culturais da região. A sua origem
heterogênea inscreveu características que ecoaram na música e na musicalidade dos
compositores que frequentavam a região.
Cumpre ressaltar que este texto é um estudo parcial de uma pesquisa ainda em
andamento sobre o bairro Lagoinha e suas referências culturais, sendo que existem
diversas informações relevantes que não constam no artigo. No entanto, a partir do que
se pode observar, é que por mais que a região tenha sido reconhecida como patrimônio
em 2016, há um processo de degradação muito grande, com acúmulo de lixo e de
moradores em situação de rua, principalmente nas proximidades dos viadutos do 122
Complexo da Lagoinha e imediações da Avenida Antônio Carlos. Acreditamos que por
meio de esforços conjuntos entre municipalidade e sociedade civil é possível fazer uma
recuperação não do que era, mas do que ainda resta da Lagoinha.
Considerando que a Lagoinha é o berço do samba de Belo Horizonte, a divulgação
dessa informação é pouco difundida para o restante da cidade, ficando circunscrita
basicamente aos moradores que têm algum contato com os mencionados grupos e/ou
pessoas de referência e aos pesquisadores da região. Diante disso, consideramos a
relevância de difundir, bem como, apresentar através de projetos os sambas, sambistas e
grupos de samba existentes na localidade para que haja identificação entre cidade e bairro.
Em virtude do que foi mencionado sobre a memória, percebemos que existe
grande rememoração dos tempos áureos da boêmia e comparação entre os anos de 1950
e 2022, onde os processos de transformação da cidade interferiram na sociabilidade dos
moradores. Esses aspectos podem ser vistos nas músicas compostas por Gervásio Horta
e Mestre Lagoinha que mencionam o saudosismo em relação à praça, local onde eram
realizados os encontros dos amigos que se reuniam para cantar.

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Portanto, a Lagoinha é o berço do samba de Belo Horizonte, não apenas do samba,


mas também de blocos caricatos como o Leão da Lagoinha e a Banda Mole, além das
agremiações Escola de Samba Pedreira Unida e Escola de Samba Surpresa. Logicamente
que existem outros dados significativos a serem estudados, no entanto, a pesquisa ainda
está em andamento, sendo que, em breve, terá novos desdobramentos acerca da história,
da memória e da cultura do bairro mais antigo da cidade.

Referências
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Horizonte. 2006 Tese (Doutorado em História) Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal
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FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Escola de Governo de Minas Gerais. Gestão do espaço metropolitano:
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Dissertação (mestrado em ciências sociais) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 2009.

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PREFEITURA DE BELO HORIZONTE, Conhecendo o Patrimônio Cultural de Belo Horizonte, Secretaria


Municipal de Cultura e Fundação Municipal de Cultura, 2021. Disponível em:
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PREFEITURA DE BELO HORIZONTE. Cartografia Cultural do Bairro Lagoinha, 2019, Peixe Vivo Histórias.

PREFEITURA DE BELO HORIZONTE, ANEXO IV – Síntese da História de Belo Horizonte, 2018 disponível em:
https://prefeitura.pbh.gov.br/sites/default/files/estrutura-de-governo/politica-urbana/2018/planejamento-
urbano/cca_anexo_iv_-_sintese_da_historia_de_bh.pdf acesso em 15 out. 2022.

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SILVEIRA, Brenda. Lagoinha a cidade encantada. Belo Horizonte: Edição da autora, 2005.

124

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Dossiê

Entrevista
Rita Ribeiro

125

Foto: Acervo Pessoal.

Doutora em Geografia, Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Design da


Universidade do Estado de Minas Gerais. Líder do Grupo de Pesquisa Design &
Representações Sociais, dedica-se a trabalhos ligados às culturas urbanas, processos
sociais e divulgação científica.

1) Como surgiu o seu interesse por pesquisar o Quarteirão do Soul e


como foi seu trajeto de pesquisa? Quais fontes você utilizou?

Sempre digo para os meus alunos que os nossos objetos de pesquisa se apresentam
para nós das formas mais inusitadas, desde que tenhamos os olhos abertos para
ver. E foi assim com o Quarteirão. Já tinha começado o meu doutorado com outra
Dossiê

proposta totalmente diferente. Eu sou apaixonada por Belo Horizonte e queria


estudar questões culturais relacionadas ao espaço urbano. Porém, também fui
durante muitos anos radialista e adoro música. Um dia, ao atravessar o cruzamento
da Rua São Paulo com a Goitacazes, enquanto esperava, comecei a ouvir James
Brown, que amo! Levei um susto enorme ao atravessar e ver uns senhores
dançando ao lado de uma Caravan. Explico o susto: até então, pensava que a rua
era um espaço de dança apenas para os jovens. Duas semanas depois, passando
pelo mesmo local, vi uma faixa: “Bem-vindos ao Quarteirão do Soul, aqui a velha
guarda se reúne”. Esse momento foi como uma revelação. Decidi acompanhar o
que estava acontecendo. Durante quatro sábados, eu ficava do outro lado da rua
observando o movimento. No quinto sábado, depois que eles já tinham se
familiarizado com a minha presença, atravessei a rua e me apresentei a eles. E
então o universo da black music me puxou para dentro.

As fontes de pesquisa naquele momento eram bem escassas. Consegui diversos


livros em sebos do país todo, algumas revistas importadas, mas o principal foi ter
acesso às fontes primárias, os integrantes do movimento black daqui, do Rio de 126
Janeiro e de São Paulo. Conheci pessoas maravilhosas ao longo da pesquisa.

2) De acordo com a sua pesquisa, como surgiu o Quarteirão do Soul


em Belo Horizonte?

Nesse dia em que passei e vi pessoas dançando, sete amigos, foi exatamente o dia
em que eles resolveram criar o Quarteirão, como me contaram depois. Ao
começarem a lembrar dos bailes black dos anos 70, eles foram relembrando os
amigos que estavam ficando velhos e deprimidos. A ideia então foi exatamente
resgatar o espírito fraterno que caracteriza a soul music e trazer essas pessoas para
dançar e se divertir novamente.

Lembrando que nos anos 70 o movimento black era muito forte em Belo
Horizonte. Assim como no Rio de Janeiro, com a influência do programa de rádio
do Big Boy e seus Bailes da Pesada, em BH tínhamos a Rádio Cultura e o
Dossiê

Geraldão que não apenas tocava black music, mas também traduzia as letras,
exaltando a cultura soul. Isso foi muito importante para criar o movimento aqui.
Um fato curioso é que os blacks de BH são considerados os mais elegantes do
Brasil.

3) Como se deu a relação desse movimento com a cidade ao longo dos


anos?

Nunca foi muito tranquila, infelizmente. Ao ressaltar a elegância dos blacks daqui,
existe uma explicação que tem a ver com a cidade. Nos anos 70 a repressão
policial era muito grande, principalmente contra os negros, fato que ainda hoje
continua a ocorrer. Uma solução que os blacks pensaram foi usar terno. Assim
ficariam menos vulneráveis. E foi se instalando essa cultura da elegância que
ainda hoje permanece. Por ser um movimento de pessoas, na maior parte,
advindas da periferia, o Quarteirão do Soul sempre foi objeto de perseguições.
Tanto que ele foi transferido pela Prefeitura para diversos locais da cidade. Hoje,
127
infelizmente, ele acontece esporadicamente nas tardes de domingo na Praça Sete.
Uma grande perda para a cultura local, pois o sábado a tarde era o momento em
que a maioria dos frequentadores já estava disponível e poderia participar.
Domingo, ainda mais à tarde, fragilizou o movimento.

4) Como se caracteriza a relação identidade e espaço entre o


Quarteirão do Soul, seus integrantes e a cidade?

Se hoje temos tantos eventos que tomam as ruas de nossa cidade, nem vou citar o
carnaval, devemos esse mérito, em muito, ao Quarteirão do Soul. Eles se
instalaram ali e não perguntaram a ninguém se poderiam ou não usar a rua. Essa
lógica é perfeita. A cidade deveria ser um espaço de todos. A rua não é de
ninguém. A visibilidade desse movimento trouxe também a possibilidade de
outras tribos se encontrarem e ocuparem os espaços da cidade. Os skatistas na
Praça Sete, os meninos do hip-hop no Viaduto Santa Tereza. As diversas
Dossiê

identidades vão se reconhecendo e se apropriando dos locais. Esse é um


movimento que mostrou que é um direito nosso estar na rua. E, mesmo estando
confinado a um triste domingo, o poder do movimento é marca em nossa cidade.
Lembrando o lema dos Black Panthers, uma das grandes inspirações do
movimento: “all power to the people.”

128
Artigos Livres

ÀS MARGENS DA CIDADE OFICIAL: uma análise das


paisagens e das personagens anônimas das fotografias produzidas
em Belo Horizonte no período 1925-1930

On the margins of the official city: an analysis of landscapes and anonymous characters in
photographs produced in Belo Horizonte in the period 1925-1930

Alessandro Borsagli1
Brenda Melo Bernardes2
Amaro Sérgio Marques3

Resumo: O artigo analisa, a partir do acervo de imagens do Museu Histórico Abílio Barreto e do Arquivo
Público da Cidade de Belo Horizonte, os primeiros registros mais consistentes e detalhados de regiões até
então não fotografadas de maneira oficial e os elementos e personagens anônimos que compõem a coleção
de imagens que documentam visualmente as obras ocorridas entre os anos de 1925 e 1930. A partir da
análise das imagens observa-se não só a profunda modificação ocorrida na paisagem urbana da porção
correspondente aos bairros Barro Preto e Barroca, mas também a grande presença da população negra e
imigrante em Belo Horizonte que, de alguma maneira, acabaram ignorados e mesmo invisibilizados pela
historiografia tradicional, apesar de fazerem parte da construção e das práticas culturais, sociais e urbanas
que caracterizam o espaço urbano da capital mineira e das demais cidades brasileiras dentro de todo o seu
dinamismo urbano e paisagístico.
129
Palavras chave: Belo Horizonte. Fotografia. Paisagem urbana. Inclusão Social.

Abstract: The article analyse, from the collection of images of the Museu Histórico Abílio Barreto and
Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, the first images more consistent and detailed of regions until
then not officially registered, the anonymous elements and characters that make up the collection of images
that make up the collection of images that visually document the works that took place between the years
1925 and 1930. From the analysis of the images of the period, it is possible to observe not only the profound
changes that occurred in the urban landscape of the portion corresponding to Barro Preto and Barroca, but
also the presence of the black and immigrant population in Belo Horizonte, characters that, somehow, ended
up ignored and even made invisible by traditional historiography despite being part of the construction and
cultural, social and urban practices that characterize the urban space of the capital of Minas Gerais
and other Brazilian cities within all its urban and landscape dynamism.

Keywords: Belo Horizonte, Photography, Urban landscape, Social inclusion.

1
Mestre em Geografia (PPGG-TIE PUC Minas), autor do site Curral del Rey e de diversos livros sobre a Geografia
Histórica de Belo Horizonte. Professor da Educação Básica pela rede particular de ensino. E-mail: borsagli@gmail.com
2
Mestre e Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pela Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas
Gerais. Professora substituta no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais, campus Santa
Luzia. E-mail: brenda.mbernardes@gmail.com
3
Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais. Professor
substituto na Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: amarosergiomarques@gmail.com

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Artigos Livres

Introdução

A cidade de Belo Horizonte foi imaginada, planejada e construída a partir dos


anseios políticos que buscavam romper com o passado colonial e tortuoso das cidades
mineiras, da qual Ouro Preto era a representação máxima do século do ouro.
Nesse contexto, sob a perspectiva urbano-paisagística, ao longo dos 125 anos de
existência, a capital mineira tem passado por transformações dinâmicas e profundas de
ordem urbana, ambiental, econômica e social, onde a fotografia exerce um importante
papel para o conhecimento e análise das transformações ocorridas na paisagem urbana.
É importante destacar que, no caso de Belo Horizonte, as transformações urbanas
e paisagísticas mais notáveis aconteceram em diversos períodos, desde a inauguração da
capital no ano de 1897 até a atualidade, deixando fragmentos na paisagem e na memória
da população, que nos últimos anos tem se interessado cada vez mais por fotografias que
ajudam a compreender a dinâmica da evolução urbano-paisagística da capital.
Em análise sobre as características históricas de ocupação de Belo Horizonte, os 130
registros fotográficos feitos entre os anos de 1897 e 1920, na sua maioria, compreendem
apenas as áreas que se encontravam urbanizadas, ou seja, as porções do sítio delimitado
pela Comissão Construtora da nova Capital (CCNC) para ser ocupado pela nova capital
ao passo que, as áreas que se encontravam desocupadas ou com aglomerações
espontâneas não foram, ao que tudo indica, fotografadas de maneira oficial.
No entanto, observa-se que já existiam em Belo Horizonte assentamentos
informais desde a sua fundação, ocupando áreas que se encontravam dentro do perímetro
delimitado pela CCNC (BORSAGLI, 2016a, p.19). Nas fontes consultadas sobre o
processo de ocupação de Belo Horizonte verifica-se a falta de registros fotográficos
consistentes das primeiras favelas, dos primeiros bairros operários e da população que lá
residia, ao mesmo tempo em que inexistem registros cartográficos ou menções de
destaque nos relatórios oficiais que abordem a questão da presença das populações de
menor poder aquisitivo dentro do perímetro planejado pela Comissão Construtora da
Nova Capital.

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Nesse sentido, o objetivo do artigo é analisar, a partir das imagens produzidas


entre os anos de 1925 e 1930, período em que ocorrem os primeiros registros mais
consistentes e detalhados de regiões até então não fotografadas de maneira oficial, os
elementos e personagens anônimas que compõem a coleção de imagens que atualmente
se encontram sob a guarda do Museu Histórico Abílio Barreto e dos mapas que se
encontram sob a guarda do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte.
A fotografia histórica é um instrumento de grande importância para que se possa
compreender as transformações ocorridas na paisagem urbana da cidade de Belo
Horizonte, ao mesmo tempo em que possibilita o estudo e a análise de todo o conteúdo
cultural que se encontra presente nas fotografias e postais.
Assim, optou-se por analisar as imagens devido à presença da população
oficialmente invisível na história de Belo Horizonte, compostas em sua maioria por
operários de descendência africana – muitos deles possivelmente atraídos pela promessa
de emprego em função do enorme volume de obras geradas com a construção da nova
capital, que não se limita à sua inauguração política-oficial ocorrida em dezembro de
1897, e de imigrantes, em grande parte italianos e portugueses, responsáveis pela
131
execução de dezenas de obras de infraestrutura urbana no período analisado.

Paisagem, fotografia e Belo Horizonte (1894-1930)

A paisagem para Leite (2006, p.47) é o resultado do equilíbrio entre múltiplas


forças e processos temporais e espaciais, ou o reflexo da relação entre o ser humano e a
natureza. Para a autora, a percepção do tempo, do espaço e da natureza muda com a
evolução cultural, fato que obriga as sociedades a buscarem novas configurações de
organização do território para a manifestação da sua cultura em diversas formas, onde a
paisagem modificada pelo ser humano se torna uma paisagem cultural que atende a
critérios estéticos e funcionais estabelecidos pelas sociedades.
Em suas reflexões, Alain Roger (2007) aborda sobre as dimensões inerentes à
construção da paisagem, destacando que a paisagem é constituída pela correlação dos
seus elementos construídos (in situ), que corresponde à materialidade e a inserção do
sujeito no local, com seu caráter simbólico (in visu). Essa dimensão onírica exerce um

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papel fundamental na transformação do lugar em paisagem, por meio da interpretação de


seus aspectos subjetivos.
A experiência paisagística, deste modo, contrariamente ao ato de recolher
impressões, corresponde a uma visão mais elaborada a partir da bagagem cultural do
indivíduo e da sua capacidade de interpretação, manipulação e sistematização dos
elementos que a compõem. Collot (2012, p.11) ao analisar a percepção de paisagens
coloca que “[...] ela não se limita a receber passivamente os dados sensoriais, mas os
organiza para lhes dar um sentido. A paisagem percebida é, desse modo, construída e
simbólica”.
A relação entre o meio e o ser humano é inegável, visto que as civilizações
modificam o meio de acordo com os seus valores e interesses, ou seja, a paisagem do
presente é a consequência histórica da interação entre o organismo e o ambiente
(MATHEWSON; SEEMAN, 2008, p.76).
Nesse sentido, a partir da associação homem e natureza em um determinado
tempo/espaço, e a ação coletiva com a finalidade de modificar o meio a partir das
necessidades e na busca de uma melhor adaptação ao sítio habitado, a paisagem urbana
132
passa a existir, tornando-se objeto de análise e de reflexão com o intuito de se
compreender as formas e as relações entre o meio e o ambiente construído.
No caso de Belo Horizonte, capital imaginada, planejada e construída em um sítio
que já se encontrava ocupado pelo arraial de Belo Horizonte, antigo Curral del Rey, as
transformações no espaço visando adaptá-lo de acordo com os interesses de ordem técnica
e política que nortearam os trabalhos da CCNC levaram, não só à destruição do arraial
surgido no primeiro quartel do século XVIII, mas também à expulsão de um grande
número de habitantes, em sua maioria de baixa renda, com poucas posses e nenhuma
influência política (BORSAGLI, 2017, p.60).
De acordo com Dias (1897, p.35) grande parte da população curralense expulsa
do arraial se refugiou nos povoados da freguesia, em particular os povoados do Calafate
e Piteiras, logo transformados em bairros suburbanos nos primeiros anos da nova capital.
Em menor escala os povoados de Cachoeira, João Carlos, Bento Pires e Cardoso também
receberam os curralenses expulsos ou parcialmente indenizados pelo Estado.
Nesse sentido, pode-se inferir que a população curralense, expulsa ou indenizada,
tornou-se anônima após a destruição do arraial que, antes da sua completa demolição, foi

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registrado a partir de inúmeras fotografias que comprovariam de maneira visual toda a


transformação paisagística do sítio escolhido para a nova capital de Minas Gerais,
ressaltando que somente o Padre Francisco Martins Dias (1897) fez alusão à existência e
ao destino dos menos abastados.
Nesse contexto de transformações contínuas e profundas no espaço geográfico e
na própria sociedade, a fotografia pode ser considerada um importante recurso de
compreensão da história de Belo Horizonte, como observado por Borsagli (2021, p.10),
uma vez que surgiu e se desenvolveu ao longo do século XIX, sendo considerada um
produto cultural de relevância não só artística, mas também documental e comprobatória,
sendo possível por meio dela visualizar e compreender as transformações que ocorreram
na paisagem.
A fotografia foi utilizada pela Comissão Construtora da Nova Capital como um
instrumento que comprovaria as transformações da paisagem a partir dos feitos no
processo de construção de Belo Horizonte, tendo destaque, nesse período, o avanço das
obras de construção do novo centro administrativo do Estado e a criação de um gabinete
fotográfico no ano de 1894 que tinha finalidades documentais e propagandistas, uma vez
133
que a ideia de construção de uma cidade racional e geométrica, onde o espaço deveria ser
hierarquizado e a natureza controlada, era até então inédito no Brasil.
Nos primeiros anos que se sucederam à inauguração da capital, ocorrida no ano
de 1897, a fotografia com finalidades de registro documental continuou a ser feita de
maneira regular registrando, de maneira pontual, os espaços públicos e as obras que
seguiam a ocorrer de forma contínua, apesar da extinção da CCNC no ano de 1898.
Nesse mesmo período as fotografias passaram também a ilustrar os cartões postais
que continham as imagens e perspectivas de uma moderna cidade dos trópicos. Tal
projeto político, dotado de um plano urbanístico, apresentava, nas dezenas de postais
veiculados a partir das primeiras décadas do século XX, suntuosos edifícios em meio a
grandes espaços vazios e paisagens pitorescas com fortes traços rurais, em meio à
geometria parcialmente executadas das vias (BORSAGLI, 2016a, p.79).
A partir da década de 1920, uma parte considerável das fotografias feitas pelo
poder público possuía como principal característica o registro das obras de urbanização e
saneamento realizadas em Belo Horizonte. Esta foi uma década que pode ser dividida em
duas partes: na sua primeira metade as fotografias apresentavam, em geral, os elementos

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naturais como entraves à expansão do traçado ortogonal, sendo compostas por imóveis
residenciais coexistindo com pastos, matas e cursos d’água em leito natural, elementos
responsáveis pela interrupção das vias planejadas.
Como exemplo desta situação pode-se destacar as imagens realizadas pela
administração estadual de Mello Viana (1924/1926), que serviriam como prova visual
para a execução das obras que foram realizadas na segunda metade da década, visto a
necessidade de se controlar o meio em prol de uma cidade salubre, higiênica e organizada.
Nesse contexto, observa-se que a partir do ano de 1926 as imagens das obras
realizadas pelas administrações municipais passaram a ilustrar boa parte dos relatórios
anuais apresentados ao Conselho Deliberativo do Município de Belo Horizonte e, após o
ano de 1936, passaram a ser relacionados pela Câmara Municipal. Os primeiros relatórios
ilustrados foram elaborados na gestão de Christiano Machado (1926/1929) e
contemplavam, basicamente, as obras de canalização, saneamento e pavimentação de vias
(BORSAGLI, 2016a, p.123).
Muitas das fotografias, organizadas em álbuns fotográficos denominados
Calçamento de Ruas de Belo Horizonte, Obras de Canalização e Saneamento Básico de
134
Belo Horizonte, Aspectos da Cidade de Belo Horizonte, Conjunto de Obras Públicas
e Obras Públicas da Prefeitura de Belo Horizonte durante a gestão de Christiano
Machado, foram enviadas para diversos estados para fins de propaganda, uma vez que o
presidente do Estado Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, dentro do acordo político entre
São Paulo e Minas Gerais, que elegeu grande parte dos presidentes do período da
República Velha (1894/1930), tinha pretensões de ser o próximo candidato à presidência
da república, nas eleições de 1930.
É importante destacar que as fotografias produzidas nesse período apresentam não
só paisagens, mas também elementos e personagens que até então não se encontravam
registrados de maneira oficial, como habitações de baixa renda e a presença da população
operária que trabalhavam nas obras de infraestrutura e urbanização da “Cidade Oficial”.
Tratando-se especificamente da relação da paisagem com a fotografia, Sontag
(2004) ressalta que a fotografia serviria para conferir importância ao lugar. Nessa medida,
parece razoável supor que os trabalhadores registrados durante o período de construção
da nova capital de Minas Gerais, deveriam estar - mesmo que de maneira subalterna -

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registrados através das lentes dos fotógrafos contratados para essa função4. Ao mesmo
tempo, esses trabalhadores, quase sempre negros e pardos, desempenham funções pouco
valorizadas no contexto da construção civil, como a abertura de valetas para os serviços
de saneamento básico, ou mesmo na escavação e transporte de terra, em função de
serviços de terraplanagem, entre outros serviços delegados à população mais pobre da
capital.
Nesse período, a fotografia em Belo Horizonte já havia se popularizado, e os
registros fotográficos passaram a ser mais regulares e abrangentes, sendo, inclusive, a
partir desse momento também praticada como hobby, para além dos profissionais já
habituados a registrar de maneira documental e artística diversos aspectos da capital.
Outros fotógrafos, como Wilson Baptista e Augusto Guerra Coutinho, passaram a
registrar cenas do cotidiano de uma cidade que crescia para todos os lados e para cima
(BORSAGLI, 2016, p.105).
Através da lente dos fotógrafos, a transformação da paisagem urbana de Belo
Horizonte a partir da década de 1930 foi sistematicamente registrada, e sob essa
perspectiva, pouco estudada, assim como a presença de elementos e personagens
135
“invisíveis” nas fotografias feitas até a primeira metade da década de 1920 e nas pesquisas
que tinham como objeto a análise do processo de evolução urbana da capital mineira.
Nesse contexto, é importante observar que a partir da associação homem/natureza
em um determinado tempo/espaço, e a ação coletiva com a finalidade de adaptar e
modificar o meio a partir das necessidades específicas de cada grupo social, na busca de
uma melhor adaptação ao sítio habitado, a paisagem urbana passa a existir, tornando-se
objeto de análise e de reflexão.
Tais reflexões perpassam pelas formas e relações entre o meio, a sociedade e o
ambiente construído onde a fotografia, analisada de maneira criteriosa e ciente das
motivações e interesses que envolveram a sua concepção, pode exercer um papel crucial
no processo de reconstrução geográfico-histórico, assim como na identificação de
personagens que se encontram anônimos em grande parte das pesquisas sobre o processo

4
É importante ressaltar que, exceção feita a Gines Gea Ribera e Igino Bonfioli, os demais profissionais
responsáveis pelos registros fotográficos analisados no presente artigo ainda não foram totalmente
identificados.

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de evolução urbana, econômico, político e social de Belo Horizonte, em particular a partir


da década de 1920, recorte temporal do presente artigo.

A cidade oficial e a paisagem real: uma análise perceptiva das imagens


produzidas durante as administrações de Cristiano Machado (1926-
1929), Alcides Lins (1929-1930)

Dentro de todo o processo de evolução urbana de Belo Horizonte, a segunda


metade da década de 1920 se caracteriza pelas inúmeras obras patrocinadas pelo poder
público estadual na capital mineira, que já apresentava uma população superior a 80.000
habitantes no final de 1925 (PENNA, 1997, p.207). Com a ascensão ao governo de Minas
Gerais no ano de 1926, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada nomeou Cristiano Monteiro
Machado para administrar a capital em substituição a Flávio Fernandes dos Santos,
nomeado pela administração anterior e responsável pelo início da expansão urbana na
zona planejada, até então restrita ao perímetro delimitado pela CCNC para a nova capital
nos anos de 1896/1897 (BORSAGLI, 2016a, p123).
Tal manobra política tinha finalidades específicas: o governador precisava de um 136

homem de sua confiança no controle da capital, pois desejava se tornar o próximo


candidato para disputar a Presidência da República em 1930, visto que Minas Gerais e
São Paulo estavam se alternando na presidência do Brasil desde os últimos anos do século
XIX. Antônio Carlos viu em Belo Horizonte a oportunidade que precisava para se
promover e para isso não poupou esforços nem dinheiro público para continuar a
expansão urbana dentro da zona urbana planejada e a melhoria dos equipamentos públicos
e infraestrutura urbana necessários para dar suporte a tal crescimento.
Em Belo Horizonte a garantia da continuidade da expansão urbana de acordo com
a Planta da nova capital (1895), também era responsabilidade do Estado. Nesse contexto,
entre os anos de 1926 e 1930 foram realizadas de maneira simultânea inúmeras obras que
consistiam em abertura de vias, regularização dos bairros parcialmente urbanizados e
planejados e o saneamento dos vales dos córregos da Serra, Acaba Mundo, Leitão e
Pintos. Nesse contexto, as obras de infraestrutura realizadas proporcionaram um rápido
retorno financeiro para o município a partir da comercialização dos lotes assentados dos
vales do Acaba Mundo, Serra (bairro Funcionários e Santa Efigênia) e Leitão (Lourdes).

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As obras realizadas nessa década acabaram por inaugurar em Belo Horizonte uma
nova prática política que se tornou comum nas administrações municipais das décadas
seguintes: o registro fotográfico das obras que eram realizadas na cidade, distribuídos e
veiculados pelos periódicos da capital mineira e dos principais centros urbanos do Brasil.
As imagens foram, ainda, organizadas em diversos álbuns impressos e enviados para os
órgãos públicos estaduais das cinco regiões brasileiras (BORSAGLI, 2016b, p.72) e
separados por temas, a saber: Calçamento de Ruas de Belo Horizonte, Obras de
Canalização e Saneamento Básico de Belo Horizonte, Aspectos da Cidade de Belo
Horizonte, Conjunto de Obras Públicas entre outros álbuns produzidos no período.
Nesse sentido, é importante observar que os primeiros registros fotográficos das
obras ou dos locais que posteriormente foram urbanizados datam da primeira metade da
década de 1920 e apresentam em geral os elementos naturais como entraves na expansão
do tecido urbano, imóveis residenciais coexistindo com pastos, matas e cursos d’água em
leito natural, muitas vezes responsáveis pela interrupção das vias planejadas pela CCNC.
Ou seja, as imagens e as paisagens adquiriram importância política e foram veiculadas e
usadas para justificar as obras realizadas nos anos seguintes, visto a necessidade de se
137
controlar o meio em prol de uma cidade salubre, higiênica e organizada e em
consequência promover as administrações públicas responsáveis pela execução das obras.
As imagens produzidas na segunda metade da década de 1920 possuem ainda uma
importante característica: a presença de elementos e de população que até então, de
maneira oficial, eram mencionados de maneira sucinta nos documentos oficiais e nos
periódicos da capital. Como visto anteriormente, as imagens feitas ao longo das três
primeiras décadas de existência de Belo Horizonte contemplavam em sua maioria as
paisagens da porção da Cidade Oficial relativa à região central e aos bairros Funcionários,
Floresta e pequenas porções dos bairros adjacentes.
As demais regiões, em particular a porção suburbana e o bairro operário do Barro
Preto, que juntas abrigavam até a década de 1920 mais da metade da população da capital
(BORSAGLI, 2019, p,140), até o presente momento, não se tem conhecimento de
registros fotográficos das décadas de 1900 e 1910 que apresentem de maneira clara a
disposição espacial das casas e vias, em particular a porção compreendida pelas VII, IX
e XII Seção Urbana que se encontram registradas nas plantas elaboradas pelas
administrações municipais como regiões urbanisticamente vazias (Figura 1), mas que já

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se encontravam parcialmente ocupadas por pequenas casas construídas pelos operários


assentados na região do Barro Preto/Barroca, cujo bairro operário havia sido criado
através do decreto 1516 no ano de 1902 e era composto em geral por habitantes oriundos
das favelas do Alto da Estação e do Leitão, demolidas após a criação do bairro.

Figura 1 – Parte da Planta Geral da Cidade de Belo Horizonte, em 1928.

138

Legenda: onde se encontram destacadas parte das VIII, IX e XII Seção Urbana (bairros de Lourdes,
Santo Agostinho, Barroca e Barro Preto), representadas na planta como regiões majoritariamente
despovoadas, 1928 (modificado de acervo do APCBH)
Fonte: Acervo APCBH

Nesse sentido, ainda que nas três primeiras décadas, de maneira oficial, não
tenham sido realizados registros das porções vazias inseridas dentro dos limites da
Avenida do Contorno, as imagens feitas ao longo da segunda metade da década de 1920
mostram que uma parte das terras que integram as VII e IX Seção Urbana já se encontrava
ocupada por casas espalhadas em meio aos terrenos desapropriados pela CCNC no ano
de 1894 (Figuras 2, 3) e que ainda se encontravam em vias de urbanização no trecho
compreendido entre as Avenidas do Contorno, Paraopeba (Augusto de Lima) e São
Francisco (Olegário Maciel), vias que então se encontravam em processo de abertura.

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Figuras 2 (A,B,C) – Parte da Planta Geral da Cidade de Belo Horizonte, em 1929

139

Legenda: Parte da XII Seção Urbana no ano de 1929, onde se destacam a abertura da Avenida do
Contorno, inaugurada no ano de 1940 e três dos inúmeros elementos que compunham a paisagem urbana
do período: (A) uma moradora em possíveis afazeres domésticos ao lado da casa e de um
estabelecimento comercial (Casa São Miguel). (B) O portal do antigo Prado Mineiro na Rua Diabase,
ainda existente. (C) Uma moradora do bairro operário do Barro Preto em serviços de lavagem de roupas
nos fundos de sua casa, em primeiro plano um dos trabalhadores responsáveis pela condução da terra
oriunda da terraplanagem realizada durante a abertura da avenida.
Fonte: Acervo MHAB

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Figura 3 (D) – Parte da XII Seção Urbana no ano de 1929

Legenda: onde se destacam a abertura da Rua Uberaba, no cruzamento com Avenida do Contorno, o
edifício da Cadeia Pública em fase final de construção e as casas que integravam o bairro Operário do
Barro Preto e a Barroca (D).
Fonte: Acervo MHAB

É importante ressaltar ainda a presença de elementos nas imagens que remetem 140

ao ambiente rural como campos cerrados, culturas de milho e banana, essa última presente
em grande parte das imagens do período, geralmente próximas dos cursos d’água ou nos
fundos das casas, em clara discordância com o ordenamento imaginado, planejado e
realizado na VII e IX Seção Urbana três décadas após a inauguração da capital como
observado por Borsagli (2016a) e presente nas plantas da delimitação temporal 1895-
1930.
As obras de infraestrutura urbana realizadas no período apresentam uma
importante característica em relação às imagens até então produzidas em Belo Horizonte:
a presença dos operários responsáveis pela execução das obras sempre em segundo plano,
ou seja, em posição de subalternidade durante a execução do principal objeto e motivo
pelo qual se realizou o registro (Figuras 4 e 5). Nessa conjuntura, é possível ainda
perceber a forte presença da população negra e imigrante nos registros, em geral
executando trabalhos braçais relacionados à abertura das vias, terraplanagem,
assentamento de manilhas e demais obras que demandavam grande esforço físico por
parte do trabalhador.

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A presença dos operários na capital mineira era desde a sua inauguração motivos
de debates e discussões por parte da Comissão e posteriormente das administrações
municipais e de alguns políticos do Estado, que antes de assentar grande parte da
população favelada na região do Barro Preto, de maneira provisória, chegou a cogitar a
sua devolução para os seus locais de origem (BORSAGLI, 2016a, p.80).

Figura 4 – Obras de saneamento no bairro operário do Barro Preto, em 1929.

141

Legenda: Ao fundo o Pico Belo Horizonte (1) se destacando em meio a uma paisagem de fortes
características rurais, entretanto em um trecho possivelmente localizado a pouco mais de dois quilômetros
da Praça da Liberdade, em 1929
Fonte: Acervo MHAB

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Figura 5 – Operários durante as obras de saneamento no bairro operário do Barro Preto, em 1929.

Legenda: Observa-se que apesar da presença do elemento humano na imagem, o motivo para a produção
da foto era o saneamento e a urbanização de um local que se encontrava ocupado de maneira provisória,
fato que pode ser corroborado pelas casas em processo de demolição, em 1929.
Fonte: Acervo MHAB
142

A marginalização da população operária e imigrante também é explícita nas


observações feitas por Barreto (1997, p.347-351), onde atribui a muitos operários,
imigrantes e elementos adventícios, reputação duvidosa e responsáveis pelo surgimento
de cafuas e barracões improvisados em bairros que o autor considerava como suburras5
da nova capital, um ponto de vista que possivelmente era compartilhado por um grupo
considerável de pessoas das classes mais abastadas, ainda que a capital mineira só pôde
ser inaugurada a tempo graças ao árduo trabalho realizado pela população operária
oriunda de diversas regiões do Brasil e do exterior.
Nesse sentido, é importante destacar a importância dos registros fotográficos
realizados ao longo da década de 1920, que corroboram a existência de população e
moradias até então inexistentes nos registros oficiais, ressaltando que os registros
histórico-fotográficos na atualidade se tornaram objetos de grande importância para os

5
Suburra, que também pode ser entendido como subúrbio ou bairro de péssima fama, geralmente era
empregado para se referir aos locais que abrigam casas de prostituição e meretrizes.

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estudos das transformações ocorridas na paisagem urbana de Belo Horizonte ocorridas a


partir do período aqui analisado.
A Favela da Barroca, que ocupava grande parte da região da Barroca, o bairro
operário do Barro Preto (Figuras 6 e 7) e a Favela da Praça 14 de setembro (Raul Soares)
eram no período 1925-1930 uma incômoda realidade para uma cidade de base higienista
que procurava controlar, ordenar e racionalizar o espaço urbano de acordo com os planos
traçados pela CCNC. Nesse contexto, sob o pretexto de urbanização das Seções ocupadas
por moradias operárias e por barracões dentro da Avenida do Contorno, que ainda se
encontrava em vias de conclusão na porção correspondente ao vale do córrego do Leitão,
a população operária foi removida, em alguns casos expulsa, e reassentada nos anos
seguintes em áreas dotadas de pouca ou quase nenhuma infraestrutura, como o Pasto da
Prefeitura (bairro Concórdia) ou às margens do ribeirão Arrudas, para onde se dirigiram
grande parte da população expulsa (Vila dos Marmiteiros).
Em poucos anos a urbanização da VII e XII Seção Urbana foi concluída e a região,
após a venda dos lotes obtidos com a regularização e inserção da região do traçado da
capital planejada rapidamente se adensou, ao mesmo tempo em que o traçado ortogonal,
143
ordenado e retilíneo, acabou por suprimir da paisagem os inúmeros elementos que davam
à região aspectos de um enclave urbano-informal de traços fortemente rurais.

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Figura 6 – Obras de abertura da Avenida do Contorno (E), em trecho próximo ao cruzamento com
Avenida Augusto de Lima durante a urbanização da XII e VIII Seção Urbana (Barro Preto), 1929.

Legenda: Detalhe para a presença da população negra na imagem, além do elemento rural que desapareceu
poucos anos após o registro, tanto na zona urbana planejada quanto na porção suburbana que se encontra
na imagem em segundo plano, correspondente ao bairro Carlos Prates à esquerda e ao bairro e ao Cemitério
do Bonfim na parte superior direita.
Fonte: Acervo MHAB
144

Figura 7 – Parte da Planta da cidade de Belo Horizonte, 1930.

Legenda: Em destaque uma parte da VIII e XII Seção Urbana, os locais referentes as figuras 2, 3 e 6,
sendo possível ainda observar os edifícios da Cadeia Pública (01) e o Abrigo de Menores (02), edifícios
ainda existentes e que não se encontram representados na Planta de 1928. (Escala 1:15.000 e integrante da
Carta física e política do Estado, publicada no ano de 1930).
Fonte: Acervo BN

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A grande maioria das obras de infraestrutura urbana se encontravam concluídas


no início de 1930 e apesar de toda a propaganda feita pelo governo do Estado, Antônio
Carlos não foi o candidato do acordo político Minas-São Paulo, que acabou rompendo e
escolhendo Júlio Prestes para concorrer à Presidência da República, ruptura que abriu
caminho para a queda da República Oligárquica e a ascensão de Getúlio Vargas ao poder.
Ainda assim, o legado fotográfico deixado pelo Governo Estadual do período,
usado como propaganda de uma gestão que promoveu o desenvolvimento da capital e de
uma parte do Estado se apresenta como um dos mais importantes conjuntos iconográficos
da história de Belo Horizonte, que atestam o início da transformação de uma capital
interiorana, puramente administrativa e com fortes traços rurais, para uma urbe que
procurava se reafirmar frente às mudanças vislumbradas no horizonte pós 1930.
A partir da década de 1930 as obras executadas em Belo Horizonte foram
sistematicamente registradas pelas administrações municipais, e não se viu mais a capital
mineira apenas nos postais de ângulos cuidadosamente fabricados (Figura 8), mas
também das paisagens profundamente modificadas a partir da ação de particulares e do
145
próprio Poder Público, que havia passado a registrar o “antes” e o “depois” das regiões
municipais como informação/propaganda visual, além da presença cada vez mais
marcante das populações oficialmente e visualmente invisíveis e que se encontravam à
margem da sociedade e da cidade.

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Figura 8 – Postal da primeira metade da década de 1930 de parte do Barro Preto compreendida
entre as ruas Ouro Preto (F) e Paracatu (G), ambas em fase final de pavimentação.

Legenda: Detalhe para a ocupação das encostas próximas ao 12º Batalhão de Infantaria e na porção inferior
da imagem uma pequena casa às margens do ribeirão Arrudas em leito natural, possível reminiscência do
bairro operário.
Fonte: Acervo MHAB 146

Considerações finais

Em Belo Horizonte a fotografia exerce um papel de grande importância para o


conhecimento e análise das suas paleopaisagens, assim como a presença de elementos e
personagens anônimas que muitas vezes não se encontram registrados pela historiografia
oficial da capital mineira.
Nesse sentido, os acervos fotográficos que se encontram sob a guarda de
instituições como o Arquivo Público Mineiro, Arquivo Público da Cidade de Belo
Horizonte e Museu Histórico Abílio Barreto possuem grande importância não só para a
visualização e compreensão das transformações ocorridas na paisagem urbana da capital,
mas também na descoberta de lugares e personagens que, de alguma maneira, acabaram
ignorados e mesmo invisibilizados apesar de fazerem parte da construção e dos processos

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que tanto caracterizam as cidades brasileiras dentro de todo o seu dinamismo urbano,
cultural, social e paisagístico.
A partir da análise das imagens do período 1925-1930 ficou claro não só a
profunda modificação ocorrida na paisagem urbana da porção correspondente ao Barro
Preto e Barroca, mas também a presença da população negra e imigrante em Belo
Horizonte apesar da historiografia tradicional relegar a parte dessa população o
ostracismo e o descaso, ressaltando que são personagens cujo protagonismo na
construção, na cultura e nos costumes da capital mineira não se pode ser ignorado
ressaltando que, dentre inúmeros elementos, a paisagem urbana abarca o espaço
construído, a organização da vida social e as diferenças na apreensão e uso da cidade onde
a paisagem é, além de tudo, um território onde ocorre o choque das diferenças e dos
contrastes.
Ao mesmo tempo, a presença da população operária dentro da porção urbana
compreendida pela Avenida do Contorno no período analisado, instalada de maneira
informal e desordenada, um contraponto em relação à rígida e inflexível malha ortogonal
da capital, possivelmente era vista como uma ameaça ao plano estabelecido pela CCNC
147
no ano de 1895 e seguido à risca pelas administrações municipais e pelas elites que não
desejavam ter próximas das suas residências bairros ou favelas, um possível motivo da
não representação dos bairros operários e favelas nas Plantas analisadas dentro do recorte
temporal, uma vez que a sua presença nas Seções Urbanas era tida como provisória.
Enfim, por meio desta análise buscou-se contribuir para a visibilidade e a
valorização da classe operária, dos imigrantes não abastados e da população negra que
possuem protagonismo, ainda que não reconhecido de maneira oficial, na história de Belo
Horizonte, e de paisagens que transformadas e modificadas pela ação humana, se moldam
e se adaptam de acordo com as necessidades e os interesses de grupos específicos e em
consequência transformando as relações da sociedade com o meio e com a cidade,
ressaltando que a população de menor poder aquisitivo em Belo Horizonte, de maneira
oficial, passou a existir no município apenas na década de 1950 na administração do
prefeito Celso Mello de Azevedo, durante o processo de metropolização da capital
mineira.

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(Mestrado em Geografia). Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2019.
148
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TIPOLOGIAS DE HABITAÇÃO COLETIVA EM BELO


HORIZONTE, NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX:
registros do acervo do APCBH

Typologies of collective housing in Belo Horizonte, in the first half of the 20th century:
data from the APCBH collection

Jurema Marteleto Rugani1


Maria Marta dos Santos Camisassa2

Resumo: Este texto vem discutir a importância da consulta aos registros do acervo de projetos
arquitetônicos aprovados pela Prefeitura Municipal, sob a guarda do Arquivo Público da Cidade de Belo
Horizonte (APCBH), para a compreensão dos processos de evolução e transformação urbana do município.
As coleções e os conjuntos de documentos disponíveis no APCBH sugerem diversas possibilidades de
abordagem ao pesquisador, que se revelam desde os materiais de suporte, os respectivos conteúdos e os
períodos aos quais se relatam, entre outras. Neste trabalho, o foco converge para as soluções adotadas no
enfrentamento das demandas por moradia e trabalho dentro do processo de construção e consolidação da
nova capital mineira nas suas primeiras décadas de existência. Paralelamente, o aspecto econômico-
financeiro levanta questões, em especial, sobre a produção e a conformação do espaço construído através
do capital privado. 149
Palavras-chave: Belo Horizonte-MG. Acervo de Projetos arquitetônicos. Fontes Primárias.

Abstract: This article brings a discussion on the importance of accessing to the data of architectural designs
approved by the Municipality, under the guardianship of the Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte
(APCBH – Public Archive of the City of Belo Horizonte, for the understanding of its evolution and urban
transformation process. The collections and funds of documents available at the APCBH suggest many
possibilities of approaches by the researcher which are revealed from the support means, the respective
contents and periods to which they are related, among others. In this piece of work, the focus converges to
the adopted solutions in the household and labour demands within the process of construction and
consolidation in the new capital of the State of Minas Gerais in its first decades. Meanwhile, the economic
and financial aspects are raised especially on the production and conformation of the built environment by
the private capital.

Keywords: Belo Horizonte-MG. Architectural designs’ collection. Primary sources.

1 Arquiteta e Urbanista (EA-UFMG), Mestre em Arquitetura e Urbanismo (EA-UFMG), Especialista em Urbanismo


(UFMG) e em Revitalização Urbana e Arquitetônica (UFMG), Consultora em Planejamento Urbano e Regional e
Patrimônio Cultural, Pesquisadora Independente.
2
Arquiteta e Urbanista (EA-UFMG), Doutora em Teoria e História da Arte (University of Essex, Inglaterra),
AAGradDiploma (Architectural Association School of Architecture, Inglaterra), Professora Associada IV/Aposentada
(Universidade Federal de Viçosa, MG).

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Introdução

Da experiência do registro – que na atualidade compreende o sentido abrangente


da experiência humana desde os tempos mais recuados da pré-história e os vestígios
encontrados nas cavernas – até a guarda ou custódia dos documentos em seus mais
variados suportes, cuja produção se intensificou na medida da evolução dos sistemas de
escrita (PAES, 2002), da tipografia e das tecnologias atuais, surge a necessidade de
lugares apropriados à custódia, manutenção e organização desses documentos, “desde as
civilizações pré-clássicas até aos dias de hoje”, como destaca Porto (2013).
A definição de arquivos, segundo a legislação brasileira, é regulamentada pela Lei
n⁰ 8.159, de 8 de janeiro de 1991, que dispõe sobre a política nacional de arquivos
públicos e privados, no seu artigo 2⁰:

Consideram-se arquivos, para os fins desta Lei, os conjuntos de documentos


produzidos e recebidos por órgãos públicos, instituições de caráter público e
entidades privadas, em decorrência do exercício de atividades específicas, bem
como por pessoa física, qualquer que seja o suporte da informação ou a
natureza dos documentos. (BRASIL, 1991)
150
Essa definição confere com a assertiva de Machado e Camargo (2000, p.14) que
caracterizam o arquivo público municipal como “[...] instituição responsável pelos
conjuntos de documentos acumulados por órgãos dos poderes executivo e legislativo, no
âmbito da administração municipal direta ou indireta”.
Importante esclarecer desde logo que a custódia3, para se realizar de fato, requer
os cuidados e informações relativos às respectivas cidades de origem. No caso de Belo
Horizonte, cidade projetada na passagem do século XIX para o XX, e, portanto, já
pensada em termos racionalizados de concepção e projeto físico-territorial regidos pelos
princípios sanitaristas da época, os registros relativos às propostas de organização e
esquadrinhamento do espaço escolhido para abrigar a nova capital do Estado de Minas
Gerais constituem notável conjunto documental – coleções e fundos oriundos de fontes

3 Lugar onde se guarda alguma coisa com segurança (Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Aurélio
Buarque de Holanda Ferreira e J.E.M.M. Editores Ltda., 2ª ed., Ed. Nova Fronteira, 1986).
Ação ou resultado de proteger, guardar algo ou alguém (custódia de títulos/dos filhos); TUTELA.
(Dicionário Caldas Aulete Digital. https://www.aulete.com.br/)
Responsabilidade jurídica de guarda e proteção de arquivos (1), independentemente de vínculo de
propriedade. (BRASIL. ARQUIVO NACIONAL. Dicionário brasileiro de terminologia arquivística. Rio
de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.)

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públicas e privadas – que atesta os processos de intervenção e evolução sobre esse mesmo
território. Como exemplo desse contexto, todo o “acervo documental gerado pela
Comissão criada pelo governo de Minas Gerais, [...] em fins do século XIX, para planejar
e construir a capital Belo Horizonte” (PBH, 2020)4 foi reunido e catalogado, sendo
integrado desde 20155 ao Programa Memória do Mundo (Memory of the World – MOW)
da Unesco, que reúne os principais documentos da história mundial. Trata-se do Acervo
da Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC) – Belo Horizonte (1892-1903), um
“Conjunto de documentos textuais, cartográficos e iconográficos gerados a partir das
atividades técnicas e das rotinas administrativas da comissão responsável pela concepção,
planejamento e construção da capital de Minas no alvorecer da República brasileira”6.
Os termos acima refletem a disposição do município no cumprimento do que
estabelece o parágrafo 2⁰. do artigo 216, da Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988, ao grafar que “cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão
da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos
dela necessitem” (BRASIl, 1988). Ao arquivo público municipal, portanto, compete ainda
um papel crítico fundamental no que se refere à orientação e procedimentos de
classificação, armazenamento e eventual eliminação dos documentos, conforme 151
preconiza o Conarq – Conselho Nacional de Arquivos (BRASIL, 2014). No âmbito
histórico e cultural, cabe ao arquivo:

acompanhar o recolhimento de documentos de valor permanente ou histórico


[...], procedendo ao registro de sua entrada no referido órgão e ao
encaminhamento de cópia desse registro às unidades de origem, responsáveis
pelo recolhimento, além de assegurar sua preservação e acesso.
(BRASIL, 2014, p.30)

Cabe ainda reforçar a importância dos arquivos públicos considerado o contexto


da Lei de Acesso à Informação – Lei n⁰ 12.527, de 18 de novembro de 2011, que

4 Os documentos da coleção estão divididos em três instituições. A maior parte está no Arquivo Público
da Cidade, que guarda 2.806 itens. Há ainda 1.240 itens no Museu Histórico Abílio Barreto e 94 no
Arquivo Público Mineiro. Observatório dos arquivos da Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Disponível em: https://poarmbh.eci.ufmg.br/tag/memoria-e-patrimonio/
Acervo Comissão Construtora da Nova Capital. Disponível em: https://prefeitura.pbh.gov.br/fundacao-
municipal-de-cultura/arquivo-publico/acervo/comissao. Acesso em: 28 nov. 2021.
5 Cf.: http://mow.arquivonacional.gov.br/index.php/acervos-brasileiros/registro-nacional.html
6 Bens de Patrimônio Brasileiros Nominados no Registro Nacional do Brasil do Programa Memória do

Mundo - MOW da UNESCO. Disponível em:


http://mow.arquivonacional.gov.br/images/pdf/MOW_tabela_acervos_2007_2018_com_links.pdf.
Acesso em: 28 nov. 2021.

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regulamentou o acesso a informações públicas no Brasil, conferindo maior efetividade às


disposições contidas na Constituição de 1988, considerando que é ao nível do município
que se registram as maiores demandas por dados e informações.

O arquivo público municipal tem por finalidade formular e implementar a


política municipal de arquivos, por meio da gestão, tratamento técnico,
transferência, recolhimento, preservação e divulgação dos documentos
arquivísticos, em qualquer suporte ou formato, garantindo, desta forma, pleno
acesso à informação com vistas a subsidiar as decisões governamentais de
caráter político-administrativo, apoiar o cidadão na defesa de seus direitos,
além de fomentar o desenvolvimento científico e divulgar o patrimônio
documental. (BRASIL, 2014, p.20)

Ainda sobre a relevância do acervo para a compreensão da paisagem urbana da


cidade, reportamo-nos à publicação “A Cidade Legal” constante no volume 5 da série “O
Arquivo e a Cidade”, do APCBH (2018), onde se lê:

Elementos constituintes da paisagem urbana, as edificações ganham destaque


como testemunhos da história da cidade. A preservação do acervo de projetos
arquitetônicos do Fundo SMARU7 assegura a existência de importantes fontes
para a construção dessa história, visto que os documentos trazem uma gama de
informações sobre assuntos variados. (APCBH, 2018, p.45)
152
Esse material cobre, portanto, um período que começa na primeira década da
República Velha até os dias atuais, em uma cidade fundada justamente como exemplo de
um tempo e de um espaço republicano. Neste ponto, chama a atenção a função dos
documentos de projetos arquitetônicos aprovados pela municipalidade no conjunto do
acervo do APCBH dentro do amplo espectro da produção capitalista do espaço urbano
(HARVEY, 2005; VAZ, 2002; MARICATO, 1982; 2002; ROLNIK, 1988) por se tratar
de uma cidade nova projetada, recém-inaugurada, além de ser um dos primeiros
experimentos da propriedade privada de grau zero sob a nova Lei de Terras (1850).

7 SMARU ou Secretaria Municipal Adjunta de Regulação Urbana, atualmente denominada SUREG –


Subsecretaria de Regulação Urbana, responsável pelos processos de licenciamento “[...] de edificações, de
parcelamento do solo, de atividades econômicas, de posturas e de obras em logradouros públicos. Além
disso, promove a Baixa de Construção, ação fundamental na concretização e consolidação dos dados
urbanísticos relevantes à regularidade dos imóveis na cidade.” Cf.: https://prefeitura.pbh.gov.br/politica-
urbana/regulacao-urbana. Acesso em: 28/11/21.

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Registros do acervo do APCBH

No que se refere à pesquisa sobre processos de evolução ou transformação da


cidade, são importantes os dados documentais específicos, relativos às informações
catalogadas sobre as unidades de lotes ou quadras, referenciados a partir do
endereçamento postal (logradouro, número, complemento), dos Índices Cadastrais
utilizados para a composição de cobrança do IPTU (Imposto Predial Territorial Urbano)
ou dos números de quadra, lote e seção urbana, conforme registro cartorial. Tais dados
compreendem importante repositório informativo dos processos de gestão territorial e
urbana da cidade, oriundo das secretarias de planejamento e regulação urbana.
A partir da identificação de determinadas edificações, é possível investigar
processos de transformação relativos a qualquer área ou região da cidade, que se apresenta
na forma de registros de projeto inicial, acréscimos, alterações e/ou substituições de
projetos, consoante às disposições da legislação, e denotativos dos respectivos períodos,
com suas características estéticas e funcionais. Esses dados também podem ser
confrontados com plantas cadastrais e/ou imagens de aerofotogrametria encomendadas
pela administração municipal. Destaca-se para a presente pesquisa a consulta ao conjunto 153

de Plantas Cadastrais, elaboradas para a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), pela


Companhia Auxiliar de Serviços de Administração – Engenheiros e Administradores,
publicadas em 1942, durante a gestão do então prefeito Juscelino Kubitschek, e
disponíveis no acervo do APCBH em vias impressa e digital. A Figura 1 é ilustrativa do
formato desse conjunto.

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Fig. 01 - Planta Cadastral Belo Horizonte - Administração Juscelino Kubitschek - 1942

154

Legenda: Folha F-2-01-02, correspondente a parte da 6ª. Seção Suburbana e parte da 14ª. Seção
Urbana
Fonte: Acervo APCBH – Fundo SUREG.

Diversos pesquisadores já se debruçaram sobre aspectos importantes para a


compreensão do processo de evolução e desenvolvimento da cidade, tendo recorrido ao
acervo do APCBH para pesquisa e acesso aos dados e registros. Destacamos, nesse
contexto, o trabalho elaborado por Luiz Mauro do Carmo Passos (1996) que analisa as
transformações tipológicas dos edifícios de apartamento, no período compreendido entre
meados dos anos 1930 e a década de 1970, o que vem a ilustrar também o processo

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concomitante de verticalização na região central da capital que, por sua vez, também é
objeto da atenção de outros pesquisadores como Noronha (1999) e Nery (2001). As
observações relativas aos desenhos de plantas e fachadas relacionam-se ao contexto da
capital que desde sempre pretendeu ser moderna embora os reticentes signos de uma
sociedade arcaica dominante e pouco afeita a inovações mais profundas, sobretudo no
primeiro quartel do século.
Retomando o fio da verticalização, nesse sentido ainda na década de 1930 são
estabelecidas leis8 para a área central – “lugar de negócios e de oportunidades, onde as
construções deveriam atingir alturas vertiginosas” (MAIA, 2004, p.167). A proposta
visava promover uma verticalização da ‘metrópole’, regulamentando-se critérios de
zoneamento e alturas máximas (NORONHA, 1999). Tudo isso corrobora para a
necessidade de acesso de pesquisadores e do público em geral a todo esse acervo
documental cujo guardião oficial é o APCBH.
A relevância dos arquivos não se afirma apenas através da pesquisa acadêmica.
Pelo contrário: são diversas as demandas cotidianas que se baseiam em dados desse
acervo, como as buscas sobre documentos do Cemitério do Bonfim (Livros de Registro
de Sepultamento, Livros de Protocolos de Processos, Livro de Arrecadação da Seção de 155
Rendas Patrimoniais e Livro de Divisão de Patrimônio), hoje sob a guarda do APCBH.
Ainda e não menos importantes são os laudos com finalidades as mais diversas que
buscam embasamento nos registros pertencentes ao acervo, como os que devem atender
às exigências dos trabalhos periciais de imóveis. Nesses, além das vistorias técnicas,
mensuração e coleta de dados in loco, são exigidas pesquisas relativas ao histórico e
concepção projetual do imóvel, envolvendo documentação de períodos anteriores, como
plantas, fotos e outros registros. Registre-se ainda a pesquisa histórico-cultural de obras
notáveis do conjunto construído e/ou aprovado pela PBH, nem sempre de caráter
exclusivamente acadêmico. Exemplo disso são os projetos de antigos abrigos de bondes,
desativados nos anos sessenta, e de outros prédios pertencentes à municipalidade. Há
também projetos de residências de ilustres personagens (ex.: Residência do Sr. Alfredo
Balena, localizada na Av. Afonso Pena, já demolida; Casa Juscelino Kubitschek, na

8 Em 4 de setembro de 1930 foi aprovada a Lei nº 363, que estabelecia o regulamento geral de construções
de Belo Horizonte, posteriormente modificada pelo Decreto nº 165, de 1° de setembro de 1933. Em 1934,
foi elaborado o Plano de Urbanismo da Cidade de Belo Horizonte, de autoria de Lincoln Continentino, que
tinha por objetivos controlar o processo de expansão urbana e, ao mesmo tempo, promover o adensamento
da zona central.

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Pampulha) ou projetos de ilustres arquitetos (como a residência particular de João Lima


Pádua, no bairro de Santo Agostinho, de autoria de Oscar Niemeyer).
São, portanto, incontáveis as tipologias que ratificam a intensa produção privada
do espaço construído. Percebe-se também com frequência no tecido urbano ainda
existentes no cenário atual sequências de casas construídas lado a lado com implantação
e número de pavimentos iguais e/ou semelhantes, eventualmente com pequenas
diferenças estéticas. Por exemplo, o “Projecto para construção de 3 casas a fazer-se nos
lotes 28-29 do Quart. 2° da 14ª. Secção Urbana para o Sr. Soren Nielsen”, projeto de João
Morandi, aprovado em 1907, com igual composição de fachada para a mesma planta-tipo,
que se repete para os três terrenos contíguos (Figura 2). Essa particularidade da planta-
tipo que é implantada em lotes contíguos da mesma face de quadra aponta no sentido de
um empreendimento imobiliário da iniciativa privada recorrente nessa fase de expansão
da capital mineira. Quase duas décadas depois, é aprovado um “Projecto para aumento
do prédio n° 260 da rua Silva Jardim”, modificação que incide sobre o lote n° 29 do
“quarteirão 2 – 14ª secção urbana”, já de propriedade do Sr. Carlos de Paula Andrade,
aprovado em 1924, onde se identificam alterações na planta e na fachada.
156
Figura 2 - Projeto para a construção de 3 casas – 1907

Legenda: Projeto para a construção de 3 casas fazer-se nos lotes 28-29 do quarteirão
2º. da 14ª. Secção Urbana para o Sr. Sören Nielsen; Belo Horizonte, 1907; proj. João
Morandi;
Fonte: Acervo APCBH – Fundo SUREG.

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Mais recentemente, autores têm contribuído para evidenciar “o valor histórico


desses acervos no Brasil” e no exterior, sejam institucionais ou particulares, sobretudo as
fontes relacionadas à arquitetura e ao urbanismo, e o seu papel e relevância pedagógica
para “a formação, a memória e a prática em arquitetura e urbanismo” (LIRA et al., 2021,
p.2).

Premissas de investigação, método de trabalho

De forma empírica, durante esta pesquisa foram levantados – in situ e a olho nu –


endereços (logradouro, número, bairro) de edifícios de habitação coletiva mais antigos,
tipologias características do que foi produzido entre as décadas de 1920 e 1950 com no
máximo quatro pavimentos, localizados em alguns bairros de caráter residencial. De
posse desses dados, foi dado início à busca no APCBH dos respectivos projetos
arquitetônicos. Em princípio, foram tomados bairros tradicionais da cidade com potencial
de ocupação nesse período como pontos de investigação.
Desde o início, a intenção era entender o processo de expansão e de construção 157
dessa paisagem suburbana, nos trechos que se desenvolveram nas proximidades da
Avenida do Contorno ou ao longo de artérias articuladoras entre a zona urbana central e
os bairros que se conformam a partir da demanda por áreas próprias para o assentamento
urbano, porém mais acessíveis economicamente.
A Cidade de Minas entra no século XX três anos após sua inauguração, em 1897.
Isso faz de seu espaço edificado um acervo característico do Mundo Moderno
contemporâneo. Da arquitetura oitocentista existente na região, antes da construção da
nova capital mineira, não sobrou praticamente nada a não ser a sede da antiga Fazenda
do Leitão, bem conservada e onde atualmente funciona o Museu Histórico Abílio Barreto,
em local a apenas uns cem metros da antiga Avenida 17 de Dezembro, hoje chamada de
Avenida do Contorno, no atual bairro Cidade Jardim, limite da área urbana no plano
urbanístico de Aarão Reis. Afora esse edifício, toda a ocupação e expansão da cidade tem
sido palco das intervenções arquitetônicas dos últimos cento e poucos anos.
A demolição de todo o núcleo urbano do antigo Curral del Rei foi um fato que
antecipou em alguns anos o “bota-abaixo” de Pereira Passos na região central do Rio de
Janeiro. As novas construções adotaram, assim como lá, as linguagens formais desde o

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Ecletismo típico brasileiro do século XIX e início do século XX, passando pela introdução
de soluções mais modernas até as mais contemporâneas, acompanhando o
desenvolvimento das tecnologias e da legislação no tocante à avaliação das formas de
construir e habitar em uma cidade sobretudo “republicana”.
Partindo da observação em campo de edificações existentes em seções urbanas
e/ou suburbanas da antiga conformação, deparamo-nos com uma sucessão de registros de
projetos que, para além das características projetuais e estéticas, oferecem um vislumbre
das alternativas de morar e viver – de forma coletiva – na recém-implantada capital do
Estado.
A arquitetura de exceção projetada por expoentes brasileiros da arte de construir
nesse contexto tem seus exemplares significativos nos prédios do governo municipal e
estadual, nas obras do conjunto da Pampulha e em obras construídas pela elite local, seja
para sua própria residência seja para seus negócios9. Já no plano do cotidiano, no entorno
imediato e paralelamente ao surgimento desses elementos de excepcionalidade, as
demandas da população conformaram uma paisagem urbana ocupada por exemplares tão
importantes (ou mais) que os ditos excepcionais. É nessa paisagem que se revela o caráter
físico-construído da cidade indissociável da geografia peculiar dessa localidade 158
montanhosa tão bem caracterizada nos versos de Rômulo Paes10, quando faz referência
ao antigo bonde que subia “Bahia” e descia “Floresta”. De fato, até finais da década de
cinquenta, o bonde elétrico, o primeiro veículo instalado em 1905 como transporte
público coletivo da capital, subia o aclive da Rua da Bahia com o letreiro “Bahia” e, na
volta descia já indicando “Floresta”, em direção ao bairro de mesmo nome, localizado na
outra extremidade.
Neste contexto, o foco desta pesquisa tem sido a arquitetura doméstica do homem
comum. Seja aquela construída e aprovada com o nome do usuário final, seja aquela
construída e aprovada para fins rentistas. É importante ressaltar que a produção
profissional de arquitetos de ampla atuação seja em projetos de grande porte ou em

9O trabalho do Danilo M. Macedo (2008) apresenta um levantamento minucioso sobre as obras de


Niemeyer no estado de Minas Gerais, incluindo aquelas em Belo Horizonte, sejam as projetadas,
construídas e/ou demolidas.
10 “A minha vida é esta, subir Bahia e descer Floresta”, versos de Rômulo Paes (PAES apud MIRANDA,

1996, p.154), que sintetizam a vitalidade e importância histórica e cultural da Rua da Bahia, em seus
aproximados três quilômetros, ligando a Praça da Liberdade (centro do poder administrativo) e o centro
comercial da cidade.

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projetos de menor porte, esses últimos considerados periféricos ou de pouca importância,


é raramente apresentada até mesmo em estudos monográficos. Por exemplo, no livro
sobre a obra do arquiteto Raffaello Berti11 (BERTI, 2000) aparecem ricamente ilustrados
os projetos de maior visibilidade. Outros aparecem sem ilustração em uma lista no final
do livro (p.234-240). Porém, se do ponto de vista dos leitores as obras mais famosas são
recorrentemente as mais exploradas, do ponto de vista do produtor dessas obras talvez
não seja bem assim. Essa produção relegada ao segundo plano é parte da formação
contínua do profissional, do desenvolvimento e evolução de suas ideias, das decisões
finais entre as opções possíveis, na experimentação de soluções projetuais além de servir
à sua carreira profissional como fonte de recursos financeiros e monetários. Ao mesmo
tempo, essa produção muitas vezes prolífica é como a “entourage” das grandes ideias/das
grandes obras.
A história local e a história da vida social/privada têm boa parte de seus
“documentos” (entendido segundo o conceito de Jacques LE GOFF, 2003) justamente
nesse ambiente. Daí a riqueza inesgotável do acervo do APCBH. A cada solicitação de
vistas do projeto arquitetônico de um aparentemente simples imóvel, surgem das gavetas
do Arquivo pastas com uma riqueza de informações muitas vezes inesperada sobre o 159
histórico de cada uma dessas construções.

Casos de estudo: das normativas e das soluções

No âmbito desta pesquisa cujo foco se assenta na evolução dos projetos de


habitação coletiva e nas transformações que se produzem no espaço urbano, considerado
o contexto do processo de urbanização da então jovem capital das primeiras décadas,
como já foi dito, o interesse se concentra não na produção de exceção, mas sobretudo
naquela que, pouco a pouco, conformaria as feições da paisagem dos bairros hoje ditos
“tradicionais”. Nesses, ainda encontramos trechos característicos dessa produção pelo
menos da primeira metade do século XX associada às necessidades de moradia e trabalho
dos contingentes populares que afluíam à capital (GUIMARÃES, 1991, p.55;

11 Arquiteto e artista de origem italiana, radicado em Belo Horizonte, com várias obras importantes como
o prédio do Hospital da Santa Casa de Misericórdia (anos 1940), na capital mineira.

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BARRETO, 1996, p.638) composta por unidades unifamiliares, pequenos sobrados e, por
que não, as habitações coletivas.
A existência de pequenos prédios de habitação coletiva (casas de apartamentos,
casas de cômodos e casas de pensão, como aparece na legislação da época) ou mesmo de
casas geminadas configura por si mesma um indício do processo autônomo e incipiente
de adensamento urbano realizado quase que exclusivamente pelo investimento privado12.
Segundo o Decreto Municipal n° 165/1933, cap. X (BELO HORIZONTE. Decreto n°
165/1933), eram consideradas casas de apartamentos “aquellas que possuam grupos de
aposentos com cozinha separada para cada moradia particular” (art. 219). Já as casas de
cômodos eram definidas como “as habitações collectivas, que aluguem commodos a
differentes pessoas” (art. 220), dispondo, entre outros, de “latrinas e banheiros, em
commodos separados, privativos para cada sexo, na proporção de uma para vinte pessoas”
(art. 221, alínea a), segundo o mesmo decreto.13
Este é o caso da quadra 001, situada na VIª. Seção Suburbana, onde identificamos
projetos aprovados sucessivamente para o mesmo lote ou conjunto de lotes, substituindo,
alterando ou acrescentando área construída ao original, todos pela iniciativa privada14. A
tipologia habitacional somente nessa quadra até os anos 1950 corrobora com a variedade 160
de propostas seja para habitação, para comércio ou para os dois juntos. Interessante
observar o “Projeto de uma casa a construir-se...”, de propriedade do Sr. José Castillos
(Figura 3 - ver anexo), de cujos três cômodos, o único que tem seu uso claro é o salão
frontal com duas amplas portas de entrada, deixando uma interrogação para as funções

12 Raros são os exemplos de edifícios habitacionais com patrocínio do setor público como os conjuntos
residenciais do IAPI (Instituto de Aposentadoria e Previdência dos Industriários), no Bairro da Lagoinha,
e outro do IAPB (Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários), no bairro Cidade Jardim além do
Conjunto JK, promovido pelo Governo do Estado de Minas Gerais, com projeto de Oscar Niemeyer, todos
eles de meados do século XX.
13 Essa legislação mudou a nomenclatura em 1940, com o novo Regulamento de Construções da Prefeitura

de Belo Horizonte, considerando duas formas de habitação permanente, além das habitações unifamiliares:
as Habitações Coletivas em Geral e as Casas de Apartamentos, ambas sob a classificação de “Construções
para Fins Especiais”. No primeiro caso, as acomodações deveriam conter instalações sanitárias e de banho,
independentes, “para cada grupo de quinze moradores ou fração, separadas para cada sexo ou indivíduo...”.
No caso das Casas de Apartamentos, previstas com mais de um pavimento, cada unidade habitacional
deveria conter pelo menos dois cômodos, sendo um deles destinado a instalação sanitária e de banho. Os
dispositivos obrigatórios nessa última modalidade são a existência de uma portaria, de serviços contra
incêndio e de depósito de lixo, sendo facultativos sanitários para uso coletivo, sala administrativa,
depósitos, etc. (BELO HORIZONTE, 1940, Cap. IX, itens 1 e 2, art. 158-164). Esse Decreto-Lei esteve
vigente até 2009, com modificações pontuais não alterando essa classificação.
14 Essa quadra, de formato triangular, pode ser vista na Figura 1, da Planta Cadastral (1942), na parte

inferior da imagem.

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dos outros dois ao fundo. A esses exemplares há uma superposição de projetos de


“modificação e augmento” que foi identificada em um período muito curto de tempo, o
que pode ser interpretado como expressão de intensa urbanização nessa pequena porção
da cidade.

Figura 3 – Projeto de casa, 1898

161

Legenda: Projeto de uma casa a construir-se na Parte 4 do Lote no. 01 do Quart. 1 da Secção VIª.
Suburbana, propriedade do Ilmo. Sr. José Castillos; Belo Horizonte, 1898; proj. não-identificado;
Pasta Seção Suburbana 106; Q 001; Lote 001, 001 (P), 002, 002 (P), Rua Itajubá 3/3.
Fonte: Acervo APCBH. Fundo SUREG.

Quanto aos projetos encontrados no acervo, são também várias as possíveis


observações de certas recorrências como, por exemplo, a instalação e construção de
fornos a lenha de padarias. A própria construção já é um evento notável por depender de
conhecimento específico e investimento financeiro de maior vulto, do que se depreende
a importância da escolha da localização desse tipo de empreendimento. Esse segmento
do comércio significa a instalação de um ponto de referência importante para a vizinhança
consolidada ou em processo de consolidação e subsidia as análises sobre a abrangência
da sua clientela. No caso da quadra 001 da VIª Seção Suburbana, há o projeto de um
desses fornos (Figura 4). Não obstante, foi encontrado um projeto do mesmo equipamento
a uns 200-300m de distância, porém na XIVª Seção Urbana, correspondente à parte
interna à Av. do Contorno, na Rua Itajubá. O projeto do primeiro forno está datado de
1899 localizado nos fundos de uma casa térrea, de fato, uma de oito casas operárias já

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aprovadas em 1898 na Rua Curvelo, cujo proprietário foi o Sr. Giuseppe Albano. O
segundo projeto (Figura 5) na mesma região é de 1931, de propriedade do Sr. Antônio
Baptista [Scali] localizado na esquina de Rua Itajubá com Rua Silva Jardim15, sendo que
em 1967 a edificação é substituída por um novo projeto arquitetônico passando a ser
constituída por um grupo de lojas após ter sido demolida toda a construção onde ficava
uma residência e as instalações da padaria. Esses projetos parecem ser fortes indícios de
uma urbanização precoce e intensa do Bairro Floresta nos dois lados da Av. do Contorno.

Figura 4 – Projeto para o aumento de imóvel, 1899

162

Legenda: Augmento de um puchado [sic] a fazer-se em uma parte do Lote 1 do Quart. 1 Seção
6ª. Suburbana de propriedade do Snr. José Albano; Belo Horizonte, 1899; proj. não-identificado;
Pasta Seção Suburbana 106; Q 001; Lote 001, 001 (P), 002, 002 (P), Rua Itajubá 2/3.
Fonte: Acervo APCBH. Fundo SUREG.

15 Há um outro projeto com data ilegível, para o mesmo lote, mas certamente anterior a esse de 1931, onde
consta área para “fabrico de pão”, cômodo para “empregados” e depósito de lenha e animais.

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Figura 05 -Projeto para aumento e modificação de prédio, 1931

Legenda: Projecto de augmento e modificações no prédio construído nos lotes 25 e 26 do


quarteirão 1 da 14ª. Secção Urbana; proprietário Antonio Baptista [Scali?]; Belo Horizonte, 1931;
proj. ilegível; Pasta Seção Urbana 14; Q 001; Lotes 25-26.
Fonte: Acervo APCBH. Fundo SUREG.

163

Vale lembrar que o território do referido bairro se estendia desde uma porção
menor da zona urbana, seguindo-se porção maior da suburbana e ainda uma parte pequena
da zona rural que foi posteriormente incorporada à cidade (VELOSO, 2020, p.61). Por
sua localização e fácil articulação à Estação Ferroviária, o bairro Floresta recebeu desde
o início um aporte mais significativo de população, relativamente heterogênea em sua
composição, que incluía colonos e imigrantes e também trabalhadores e operários que
construíram a capital, e outros segmentos de baixa renda (VELOSO, 2020, p.61,68).
Paralelamente, davam-se as disputas por assentamento da mão de obra operária da
construção da capital. Buscando enfrentar, ainda que tardiamente, o vácuo do
planejamento quanto às demandas dos trabalhadores, o Decreto n° 2.486, de 30 de março
de 190916 impôs restrições estabelecendo parte da VIIIª Zona Urbana, a região conhecida

16MINAS GERAIS. Decreto nº 2.486, de 30 março 1909. Designa a área para habitações operárias e
contém outras providências. Belo Horizonte, 1909.

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como Barro Preto, como apropriada para construções de habitação operária limitadas a
um pavimento, onde se estabeleceu a primeira Vila Operária17 da capital (LE VEN, 1977).
O caso das padarias e suas instalações não são os únicos comprovantes desse
processo de urbanização. No acervo do APCBH, em levantamento que inclui outros
vetores de crescimento da malha urbana inicial, estão disponíveis muitos projetos de
habitação coletiva, de variados tipos, indo desde casas geminadas até prédios ou casas de
apartamentos e também edifícios aparentemente construídos para a instalação de pensões.
Só no pequeno triângulo que é composto pela Av. Contorno, Rua Itajubá e Rua Curvelo,
já em 02 de março de 1898, um ano após a inauguração da cidade, foi aprovado um projeto
de uma casa geminada com cômodo para negócios na frente, projetada por Joaquim
Bejarano, em lote da Rua Itajubá, de propriedade da Sra. D. Dorinda Portos (Figura 6).
No mesmo ano de 1898, é aprovado o conjunto de oito casas em fita, denominadas no
título do projeto como “oito casas operárias”, situadas na Rua Curvelo, na mesma quadra
em questão, infelizmente com assinatura ilegível do responsável pelo projeto
arquitetônico (Figura 7), de propriedade de Agostino [Ruibo] Ramos e José Castillos.

Figura 06 – Projeto de duas casas para moradia, 1898 164

Legenda: Projecto de duas casas para moradia a construírem-se no lote no. 2 do quarteirão no.
1 da Secção VI, suburbana, propriedade da Exma. Snra. D. Dorinda Portos. Belo Horizonte,
1898; proj. Joaquim Bejarano; Pasta Seção Suburbana 106; Q 001; Lote 001, 001 (P), 002, 002
(P), Rua Itajubá 2/3.
Fonte: Acervo APCBH. Fundo SUREG.

17 Nesta pesquisa, não se considerou a busca por projetos de vilas ou avenidas para as quais foram
estabelecidas diretrizes específicas, de acordo com a legislação vigente.

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Figura 07 – Projeto de 8 casas operárias, 1898

Legenda: Projecto de oito casas operarias a construir-se nas partes 11 e 12 do Lote no. 1 e 2 do
Quarteirão 1 da Secção VI Suburbana, propriedade dos Ill. os Srs. Agostino Ramos e José Castillos.
Belo Horizonte, 1898; proj. não-identificado; Pasta Seção Suburbana 106; Q 001; Lote 001, 001 (P),
002, 002 (P), Rua Curvelo 1/2.
Fonte: Acervo APCBH. Fundo SUREG.
165

Ainda na mesma quadra, aparece outro projeto de casas geminadas e “armazém”,


aprovado em 1913, com projeto de João Morandi, também de propriedade particular dos
senhores Vicenti [sic] e Miguel [Longo?] (Figura 8).

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Figura 08 – Projeto para acréscimo em prédio já construído, 1913

166
Legenda: Projecto [sic] de um acréscimo a executar-se no prédio já construído no lote no. 1
(parte) do quarteirão 1 da VIa. Secção Suburbana de propriedade dos Sen res Vicente e Miguel
[Longo?]; Belo Horizonte, 1913; proj. João Morandi;
Fonte: Acervo APCBH. Fundo SUREG.

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No ano de 1928, surge um projeto de um “salão” amplo no nível térreo, aberto


para comércio, e um “terraço” no primeiro andar (Figura 9) na esquina da Av. do
Contorno com a Rua Curvelo.

Figura 09 – Projeto de Salão amplo e terraço, 1928

167

Legenda: Projecto [sic]a ser construído em uma parte do Lote no. 1 Quarteirão
no. 1 da VI Secção Suburbana de propriedade do Snr. Oscar da Cunha Carvalho;
Belo Horizonte, 1927; proj. Miguel Noce; Eng. Adhemar Rodrigues.
Fonte: Acervo APCBH. Fundo SUREG.

Nesse mesmo local e no mesmo ano, encontra-se um projeto de “augmento e


construção” do que poderia ser um hotel ou casa de cômodos no primeiro andar, com
dezesseis quartos com dependências para uso coletivo, permanecendo o citado salão no
andar térreo e acréscimo de área ocupada com novas lojas (Figura 10).

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Figura 10 – Projeto de aumento de construção de lote, 1928

168
Legenda: Projecto de augmento e construcção para o Lote No. 1, Quarteirão no. 1 da VI
Secção; Belo Horizonte, 1928; proprietário: Gallepe Falah; proj. [ilegível]; Av. Contorno
esq. Rua Curvelo 2/2. Folha 2, Fachada.
Fonte: Acervo APCBH. Fundo SUREG.

Assim é que os exemplos de projetos de reforma e ampliação vão se sobrepondo


aos projetos iniciais, muitas vezes mais acanhados em escala, o que justifica a observação
de uma expansão urbana com maior adensamento realizado de forma paulatina,
dependendo do perfil de demandas nessa ou naquela região.

A moradia e a renda

Uma fonte bibliográfica obrigatória para o campo da arquitetura e da construção


civil no âmbito internacional ao longo de muitas décadas do século XIX foi a publicação
do periódico francês editado por César Daly (1811-1893), grande admirador da obra do
Barão Haussmann, prefeito de Paris (1853-1870), que oferecia a seus leitores

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(provavelmente em função da demanda de especuladores imobiliários da época e


empreiteiros da construção civil) projetos de “Maisons de Rapport” que são ao fim e ao
cabo prédios de apartamentos construídos para aluguel e que ocupam sem sombra de
dúvida a maior parte das páginas dessa publicação. Trata-se da Revue Générale de
l’Architecture et des Travaux Publics (Paris, 1840-1890). Embora não se proponha no
contexto desta pesquisa sobre alguma relação direta com o processo de urbanização e
adensamento na cidade de Belo Horizonte, cujo foco são projetos de habitação coletiva e
as transformações que se impõem sobre o espaço urbano, não se pode deixar de citar uma
referência tão importante na divulgação de novas ideias correntes naquela que era então
considerada mundialmente como a “Cidade Luz”. Por outro lado, os projetos higienistas
em curso em várias capitais e cidades brasileiras não deixam dúvidas sobre o processo de
substituição de construções insalubres por outras mais arejadas, “higiênicas”, mas ao
mesmo tempo mais controladas pelos órgãos públicos. Algumas exceções de prédios de
destaque na malha do hipercentro são, porém, dignos de nota como o Edifício Lutetia18,
o Edifício Mariana ou o Edifício Acaiaca, construídos algumas décadas depois do fim da
publicação francesa, mas que certamente foram influenciados por linguagens estrangeiras
em voga na época. 169
No entanto, o que se quer destacar neste ponto do texto é a prática econômica
rentista tão cara ao sistema liberal capitalista em vigor na época (LEMOS, 1996;
BONDUKI, 1998). Assim, não são raros os projetos aprovados pela Prefeitura de Belo
Horizonte, no recorte histórico da primeira metade do século XX, cujos títulos com a
expressão “Projeto de prédio para renda a ser construído em ...” já demonstram o interesse
financeiro capitalista nessas construções. Na mesma quadra de lotes no bairro da Floresta,
citada acima, encontra-se um projeto intitulado “Projecto de um edifício para renda, a ser
construído no Lote 1 – quarteirão n° 1 da VIª Secção Suburbana”, de propriedade do Sr.
Nagib Galeppe Farah e projetado por Angelo Murgel, aprovado em 1933 (Figura 11).
Trata-se de um edifício com lojas no nível térreo e nada menos que quinze quartos no
andar superior, voltados para um corredor central, com banheiros coletivos, cozinha,
terraço, rouparia e sacada ampla na fachada. De acordo com a legislação vigente, trata-se

18 Nery (2013, p.29) faz referência à influência ‘gritante’ percebida entre um edifício construído em Paris,
de 1937, e o Edifício Lutetia em Belo Horizonte, de 1939. A autora destaca que as semelhanças se dão “em
volumetria e proporção, na implantação em lote de esquina e articulação dos planos compositivos separados
em base corpo e coroamento”.

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de uma “casa de cômodos”, como citado acima. Na fachada, o edifício levava o nome
“Edifício Monte Líbano”, com as iniciais do proprietário NGF. Esse projeto dispunha de
elevador e previa acréscimo no ano subsequente de mais dois pavimentos.

Figura 11 – Projeto do edifício Monte Líbano, 1933

Legenda: Projecto [sic] de um edifício para renda a ser construído no Lote no. 1, Quarteirão no. 1 da VIa.
Secção Suburbana; propriedade do Snr. Nagib Galeppe Falah; Belo Horizonte, 1933; eng. archto. Angelo
A. Murgel; Pasta Seção Suburbana - Av. Contorno 1/2.
Fonte: Acervo APCBH. Fundo SUREG

170
As casas geminadas como exemplares de arquitetura doméstica dessa economia
rentista foram protagonistas na ocupação do território belo-horizontino desde seus
primórdios e sua existência está registrada em cartões postais de época (Figura 12).
Exemplares dessas casas de parede-meia encontrados at random no acervo do APCBH e
visíveis nas plantas cadastrais em várias regiões da cidade19 parecem ter sido uma das
opções de moradia e de claro interesse de um mercado imobiliário de caráter liberal que,
com amplo apoio do setor político, se estruturava desde antes da inauguração da capital
(PENNA, 1997).

19Exemplo disso é a série de casas geminadas construídas na Rua Buarque Macedo, que liga a Rua Jacuí
com a Rua Salinas, vista na Planta Cadastral (1942) F2-01-02, a mesma da Imagem 01.

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Figura 12 - Casas geminadas, demolidas, rua da Bahia.

Legenda: Casas geminadas, demolidas, rua da Bahia nos. [615-637]. Bello Horizonte; Vista Parcial –
Viaducto.
Fonte: Bello Horizonte: bilhete postal. Coleção Otávio Dias Filho. Belo Horizonte: Centro de Estudos
Históricos e Regionais/Fundação João Pinheiro, 1997. Coleção Centenário. p. 141. 171

São inúmeros os projetos aprovados pela Prefeitura de Belo Horizonte ainda nas
primeiras décadas da primeira metade do século XX, cujos títulos já demonstram o
interesse capitalista nessas construções. Assim, já encontramos registros indicativos de
processos rentistas que são referenciados desde os títulos, tais como o projeto do arquiteto
Ângelo Murgel, já citado e descrito acima, o “Projecto de duas casas de negócio com
moradia para edificar no lote urbano n° 23 secção VI.... de 1897” e o “Projecto de seis
grupos de casas a construir nos lotes [...] da secção 2ª. Urbana....” de 1909, cada grupo
com duas unidades de moradia geminada na região central; e ainda o “Projecto para
construir quatro casas situ ...” de 1915; e outro acusando modificação em construção
também com habitações geminadas de 1929, esses dois últimos localizados na área da ex-
colônia Carlos Prates. Isso atesta também um processo de expansão da urbanização sem
verticalização como ocorria na região central da cidade, alimentado por aqueles setores
que, não podendo pagar por terrenos nessa área, buscavam localizações de custo mais

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acessível na região suburbana20 mas que não deixavam de acelerar a ocupação dos
terrenos disponíveis.
É interessante observar, ainda, as transformações que se dão em nível fundiário,
tanto em termos de transferência de titularidade quanto em relação à progressiva
reconfiguração dos lotes. Este é o caso do quarteirão de n° 14 da 2ª Seção Urbana onde,
não se tendo completado a construção “de seis grupos de casas [geminadas]”21 (Figura
13), já em fins da década de 1930 será o lugar da implantação do denominado Edifício
Lutetia22, projetado com lojas no térreo e apartamentos nos outros cinco andares
(PASSOS, 1998). Quanto ao segundo caso, verifica-se principalmente nas glebas
originariamente generosas das ex-colônias agrícolas, subdivididas em frações que irão
conformar a sucessão de frentes estreitas de lotes identificadas nas principais vias e eixos
de ocupação, nos vetores de expansão sobretudo a oeste da cidade, na região suburbana
da ex-colônia Carlos Prates.23

172

20 A especulação imobiliária elevou o custo dos terrenos na área central e induziu a busca de alternativas
economicamente mais viáveis na região suburbana e rural, promovendo processos de ocupação fora dos
limites da zona urbana, para além da Contorno (GUIMARÃES, 1991).
21 De acordo com o projeto para “seis grupos de casas [geminadas] a construir nos lotes 1, 2, 3, 4, 5, 6” do

quarteirão situado na Praça 7 de Setembro, seriam quatro grupos de casas térreas, idênticas, com três
quartos, duas salas e demais dependências, com plantas rebatidas, voltadas para a Avenida Amazonas e
dois outros grupos, também idênticos, voltados para a Rua Carijós. Na planta de situação, parece haver dois
outros grupos de casas igualmente geminadas e em fita, já construídos voltados para a Rua São Paulo. Esse
projeto foi aprovado em data ilegível, apesar de aparecer a data de 25.mar.1909, junto à assinatura do
arquiteto João Morandi.
22 De autoria de Mário dos Santos Maia, a construção do Edifício Lutetia (curiosamente batizado com o

antigo nome da capital parisiense) foi um empreendimento imobiliário do Banco Hipotecário e Agrícola
do Estado de Minas Gerais, conforme consta no projeto original.
23 Esse aspecto é analisado e aprofundado por Aguiar (2006), em sua tese de doutorado.

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Figura 13 – Projeto de casas geminadas, 1909

173

Legenda: Projecto de seis grupos de casas a construir nos lotes 1,2,3,4,5,6 do quarteirão 14 da Secção
2ª Urbana, de propriedade do Ilmo. Sr. Dr. João Vianna. Belo Horizonte, 25 de março de 1909. O
architecto: João Morandi.
Fonte: Acervo APCBH. Fundo SUREG.

Outra fonte que corrobora o movimento crescente de novos projetos e construções


na capital são os “Relatórios de Prefeito”24 que também fazem parte do acervo do
APCBH. Os quantitativos relativos à aprovação de projetos por sua vez alimentam o
conjunto de dados e informações as mais diversas constantes dessa coleção e que recuam
até o período de 1899-1900, biênio este sob a administração do prefeito Fernando Pinto
Monteiro. Neste, por exemplo, está registrado que:

24 A coleção "Relatórios dos Prefeitos", disponível no Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte
(APCBH), é a fonte principal de pesquisas sobre a administração pública municipal. Como diz Mesquita
(2014, p.430), ao apresentar “as atividades realizadas durante o ano administrativo sob o ponto de vista de
seus autores”, os prefeitos “sempre elaboram um discurso positivo sobre as suas realizações”. Por outro
lado, estão ali registrados os dados consolidados indispensáveis à pesquisa e que dizem sobre a dinâmica
da cidade e as políticas públicas municipais.

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É assim que de 12 de setembro do anno passado a 31 de julho do corrente,


foram approvadas 118 plantas de prédios a serem construídas na zona urbana
e 57 na zona suburbana, ao todo 175. [sic] (CIDADE DE MINAS, 1900, p.9)

O mesmo ocorre em relação às movimentações imobiliárias, sendo registrados


para esse período os quantitativos referentes à venda e à concessão de lotes, sendo estes
últimos discriminados segundo as concessões feitas aos proprietários de Ouro Preto, de
Belo Horizonte (antigo arraial) e concessões diversas segundo a legislação vigente
(CIDADE DE MINAS, 1900, p.10).
Como se pode notar, a busca empírica por projetos de habitação coletiva não se
restringiu aos projetos de prédios de apartamentos. O acesso ao suporte material e
subsequente análise das Plantas Cadastrais forneceu indícios da existência de vários tipos
de moradia. Nesse breve apanhado, além dos aspectos de organização dos espaços
funcionais da habitação e do comércio acima descritos, não se poderia deixar de
mencionar as diferenciações observadas nos volumes das edificações em terrenos de
esquinas, construções térreas ou assobradadas de dois até quatro pavimentos. Nessas,
além dos ornamentos de influência neoclássica e/ou Art-Déco, os elementos compositivos
das fachadas são organizados aparentemente para maior destaque dos planos das esquinas
174
que ora se resolvem em planos chanfrados, ora em superfícies curvas coroadas por
platibandas elevadas e mais ricamente trabalhadas. Em geral, esses exemplares
apresentam usos mistos de habitação e comércio. Quando térreos, os espaços das lojas
abrem-se para as duas vias e também para a face da esquina, tendo a moradia aos fundos.
Quando resolvidos em mais pavimentos, as habitações (nas variações possibilitadas pela
legislação vigente) passam a ocupar os andares superiores, cujo acesso se dá por escada
desde o nível das lojas.

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Considerações Finais

Numa cidade onde o ritmo de transformação tem sucessivamente apagado


memórias e lugares, a possibilidade do acesso às fontes primárias de antigos projetos
cujas construções de há muito foram demolidas ou descaracterizadas, reveste-se de
importância fundamental ao processo de compreensão e análise das dinâmicas urbanas.
Assim é o caso do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, cujo acervo de projetos
e coleções de leis, entre outros itens, possibilita apreender os vestígios (no caso,
“monumentos”, segundo a definição de Le Goff) de construção e substituição que, em
menos de um século, se desenrolaram sobre a geografia dessa paisagem urbana tão
modificada.
Torna-se evidente, através desta pesquisa, a estreita relação entre a normativa
urbanística e os processos dinâmicos de construção e expansão da cidade, que ainda
evidenciam as diferenças que se estabelecem entre os espaços ocupados pelos segmentos
de maior e de menor renda. 175

No âmbito da pesquisa nos acervos, descortinam-se aspectos da construção


histórica do espaço e as possibilidades de análise relacionadas aos próprios objetos de
análise, as edificações e seus respectivos projetos. Estes, além das soluções técnicas,
deixam entrever os trejeitos, preconceitos e modismos de cada época, desvelando a
sociedade por trás das fachadas que, eventualmente, subsistem ao passar do tempo e
incitam ao “redescobrimento” dos registros ocultos/ocultados da cidade. Assim é com as
formas que a habitação assume nas primeiras décadas de uma cidade planejada que, no
entanto, não apresentava lugares ou alternativas para a moradia dos trabalhadores que a
construíram. À chegada de migrantes de toda parte, responde o setor que se organizara,
desde antes da inauguração da capital, em torno das possibilidades da exploração
imobiliária.
Das casas de cômodos às casas de apartamentos, passando pelas soluções
geminadas, evoluem concepções e modos de morar, cuidadosamente grafados segundo
as normativas do gestor público. Essas camadas do registro objetivo das construções (ou
da sua intenção) e dos lugares (quadras, lotes) – ou o corpo dos fatos, como em Lévi-

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Strauss parafraseando Durkheim (DURKHEIM, 1925, apud LEVI-STRAUSS, 1997,


p.268-269) - como tal subsistem no espaço qualificado do arquivo e oferecem novas
possibilidades de entendimento desse período singular em que se consolidava a nova
capital de Minas Gerais.

176

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BELO HORIZONTE ATRAVÉS DAS PÁGINAS DA


REVISTA BELLO HORIZONTE (1933-1950)

Belo Horizonte through the pages of the magazine Bello Horizonte (1933-1950)

Yasmine Ávila Catarinozzi da Costa1


Sérgio Antônio Silva 2

Resumo: Este artigo traz um recorte da dissertação de mestrado intitulada “Design e Memória Gráfica
mineira: um estudo da revista Bello Horizonte (1933-1950)” e tem como objetivo apresentar a trajetória e
os colaboradores da revista, destacando o espírito de modernidade que prosperou na cidade de Belo
Horizonte nas décadas de 1930-1950. Foram identificados exemplares catalogados e disponíveis para
consulta física e/ou digital ao público nos acervos do Arquivo Público Mineiro (APM), do Arquivo Público
da Cidade de Belo Horizonte (APCBH); da Coleção Linhares (UFMG); e da biblioteca do Instituto Cultural
Amílcar Martins (ICAM). Os resultados obtidos a partir desta investigação demonstram que a revista Bello
Horizonte é repleta de narrativas visuais que reverenciam a vida social na capital mineira (personagens,
costumes, desigualdades e crises), bem como a sua estrutura física (edifícios, avenidas, comércios, ruas e
praças).

Palavras-chave: Design. Indústria gráfica-memória. Belo Horizonte. Periódicos. 180

Abstrat: This article presents an excerpt from the master's thesis entitled "Design and Graphic Memory
from Minas Gerais: a study of the magazine Bello Horizonte (1933-1950)" and aims to present the trajectory
and the collaborators of the magazine, highlighting the spirit of modernity that thrived in city of Belo
Horizonte in the 1930s-1950s. Cataloged copies were identified and available for physical and/or digital
consultation to the public in the collections of the Arquivo Público Mineiro (APM), the Public Archive of
the City of Belo Horizonte (APCBH); from the Linhares Collection (UFMG); and the library of the Amílcar
Martins Cultural Institute (ICAM). The results obtained from this investigation demonstrate that the Bello
Horizonte magazine is full of visual narratives that revere the social life in the capital of Minas Gerais
(characters, customs, inequalities and crises), as well as its physical structure (buildings, avenues, shops,
streets and squares).

Keywords: Design. Graphics-memory industry. Belo Horizonte. Periodicals.

1
Graduada em Desenho Industrial – Programação Visual (UFES) e Mestre em Design (UEMG), Belo Horizonte, Minas
Gerais, Brasil. Email: yasmineavilac@outlook.com
2
Professor Doutor, Programa de Pós-Graduação em Design da Escola de Design da Universidade do Estado de Minas
Gerais (UEMG), Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Email: sergio.silva@uemg.br

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Introdução
Este artigo traz um recorte da dissertação de mestrado intitulada “Design e
Memória Gráfica mineira: um estudo da revista Bello Horizonte (1933-1950)”3. O
objetivo do estudo é identificar o que caracteriza o projeto gráfico da revista Bello
Horizonte, que circulou nas décadas de 1930 - 1950, e de que maneira ele é relevante para
a história do design e memória gráfica. A definição do tema ocorreu após a constatação
da carência de pesquisas dedicadas à trajetória e ao design gráfico da revista em questão.
Este artigo não tem por objetivo apresentar o conjunto dos resultados obtidos, mas
sim um recorte, que apreende a trajetória e os colaboradores da revista Bello Horizonte,
destacando o espírito de modernidade que prosperou na capital mineira nas décadas de
1930 - 1950. O artigo justifica-se por promover a identificação de hábitos, técnicas e
personagens presentes em um dos estados mais importantes do país, contribuindo para
preencher lacunas na história do design gráfico local e brasileiro. Além disso, o estudo
corrobora a importância dos estudos em Memória Gráfica Brasileira, uma vez que revela
em seus resultados as marcas de uma identidade visual brasileira.
181
A escolha da revista Bello Horizonte como fonte primária coloca-a no âmbito da
pesquisa documental, elaborada a partir de materiais que não receberam tratamento
analítico (GIL, 2010). Trata-se, também, de uma pesquisa bibliográfica fundamentada
principalmente em textos de referência. Dito isto, será apresentado o caminho percorrido
na identificação dos acervos da revista localizados dentro da cidade de Belo Horizonte e
os resultados obtidos a partir da aproximação do pesquisador com o momento histórico-
social em que a publicação foi produzida e o contexto histórico da cidade em que circulou.
Os desdobramentos da análise gráfica serão apresentados em uma publicação futura.
A partir de 1920, Belo Horizonte passava por uma expansão urbana com o
crescimento de novos bairros, bem como a modernização de alguns aspectos de sua vida
cotidiana, como o aquecimento da economia e a criação de novos postos de trabalho. A
cidade adquiria ares de capital, com vida social intensa e diversificação entre os grupos
sociais instalados em seu território (VIEIRA, 1997). O número de oficinas tipográficas
cresceu significativamente e a criação do Correio Mineiro deu início à segunda fase da
imprensa belo-horizontina (PEREIRA, 2009).

3
Vinculada ao Programa de Pós-graduação em Design da Universidade do Estado de Minas Gerais.

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Posteriormente, na década de 1930, a imprensa de Belo Horizonte começava a se
firmar em termos de jornalismo mais moderno, noticioso e com linguagem objetiva
(PEREIRA, 2009). Linhares (1995) complementa que neste período a imagem da
imprensa moderna começou a se delinear com a produção de jornais mais permanentes,
de melhor qualidade gráfica, com equipamentos próprios e tecnologia mais avançada. E,
muitas vezes, acompanhando as tendências artísticas vigentes à época. Dessa maneira,
jornais e revistas circularam com certa regularidade entre a sociedade mineira, atuando na
manutenção da cultura e da memória, em inúmeras perspectivas. Foi neste contexto que
surgiu, em 1933, a revista Bello Horizonte.

Identificação do acervo

A princípio, foram identificados exemplares físicos catalogados e disponíveis para


consulta pelo público nos acervos do Arquivo Público Mineiro (APM), que possui
aproximadamente 180 números; e em formato digital no Arquivo Público da Cidade de
182
Belo Horizonte (APCBH). No APCBH, estão disponíveis 50 títulos digitalizados para
consulta online4, ao lado de inúmeras outras revistas belo-horizontinas, o que facilita o
trabalho do pesquisador.
Entretanto, o APM, além de não possuir o material em mídia digital, não permite
a reprodução de documentos por terceiros, ou seja, caso necessário não poderia ser
realizado o registro fotográfico, pois o próprio APM oferece o serviço (mediante
pagamento) de reprodução (digitalização) de documentos. Ademais, em decorrência das
medidas de prevenção à pandemia de COVID-19 (nos anos em que o presente estudo foi
realizado), que ocasionaram a suspensão das atividades de atendimento ao público nos
arquivos públicos e bibliotecas, tornou-se inviável a análise do material físico.
Diante do imprevisto, solicitamos os números digitalizados da revista disponíveis
na Coleção Linhares, sob posse da Universidade Federal de Minas Gerais. O acervo
encontra-se incompleto, possuindo apenas 27 números digitalizados nas cores preto e
branco. Por outro lado, foram localizados e considerados na investigação dois exemplares

4
Disponível em: pbh.gov.br/apcbh. Acesso em: 20 de ago. 2022.

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publicados nas datas de junho/1948 e setembro/1948; um exemplar de janeiro/1949; e um
de fevereiro/1950.
Por fim, identificamos um acervo com 28 exemplares na biblioteca do Instituto
Cultural Amílcar Martins (ICAM). O instituto não possui o material em mídia digital e
com atendimento presencial de consultas. Registramos que, para nossa surpresa, constam
nos dados do ICAM exemplares publicados durante a década de 1950, que correspondem
aos N. 199 – dezembro/1954; e N. 201 – março/1955. Ou seja, é possível que a revista
tenha se estendido e ainda existam exemplares a serem descobertos.
No presente artigo foram utilizados os acervos disponibilizados em mídia digital
pelo APCBH e aqueles pertencentes à Coleção Linhares, o que, desconsiderando os
exemplares repetidos, somaram um total de 69 revistas. A partir desses números,
apresentamos a história da revista Bello Horizonte, sua trajetória editorial, seus
colaboradores e mudanças históricas no contexto em que esteve inserida.
Levando em conta o recorte do estudo, previamente verificamos que a revista
passou por diversas mudanças de diretores, o que refletiu na forma de pensar a publicação.
Sendo assim, consideramos a divisão entre o período de 1933-1946, especialmente sob a
direção do fundador da revista Augusto Siqueira e seu o período pós-falecimento, sob a 183
direção do jornalista Miguel Chalup (1947-1948) e Edson Bonifácio Costa (1948-1950).
De antemão gostaríamos de esclarecer que a grafia original de “Bello” é com
duplo “LL”. No entanto, a reforma ortográfica Nº 20.108, de 15 de junho de 1931,
extinguiu as consoantes geminadas. Com a alteração, passa-se a usar: sábado, belo, efeito,
em vez de sabbado, bello, effeito. Assim, por volta de 1940, a revista adota a grafia “Belo”
para compor o título da publicação. Nesta pesquisa consideramos que seja melhor utilizar
a grafia que consagrou a publicação: Bello Horizonte.

Bello Horizonte: fundador e diretor

Augusto Siqueira (Figura 1), fundador e diretor da revista por treze anos
ininterruptos, trabalhou na imprensa de Porto Alegre, de onde se transferiu para os Diários
Associados de Belo Horizonte (CARVALHO; BARBOSA, 1994). Em um trecho do livro
O Desatino da Rapaziada, Humberto Werneck (2012, p. 116) cita que a lembrança mais
forte de Fernando Sabino em sua passagem pela Bello Horizonte teria sido a figura de

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Augusto Siqueira, o qual descreveu como “um sujeito de olhos verdes saltados, que vivia
para cima e para baixo em carros de praça (ainda não se dizia táxi), debruçado para fora
da janela”.

Figura 1 - Augusto Siqueira

Legenda: (1) retrato original e (2) retrato colorizado digitalmente


Fonte: Coleção Linhares (N. 185 – junho/1947). (UFMG).

Siqueira é citado na obra Itinerário da Imprensa de Belo Horizonte 1985-1954, 184


do jornalista Joaquim Linhares (1995, p. 308), como um herói, pois apenas “homens feitos
de fibras de herói poderiam manter, como ele o fez, uma revista regularmente publicada
durante 13 longos anos, em um meio tão ingrato e reconhecidamente avesso a todas as
tentativas tendentes à elevação de nosso nível cultural”. Linhares (1995, 308) também
destacou a constante preocupação de Siqueira com a Bello Horizonte: “Se vivesse ele uma
eternidade, uma eternidade também viveria a sua querida revista”.
Não foram obtidos mais detalhes sobre a biografia de Siqueira, além das
informações que aparecem nas páginas da própria revista. O número de 3 de junho de
1938 traz uma nota na seção Vida Elegante em comemoração ao seu aniversário5.
Conforme o texto, Siqueira nasceu em 18 de maio (não possui informações sobre ano e
local de nascimento). A nota vem acompanhada de uma caricatura com autoria de
Rodolpho Marques, um dos principais ilustradores da revista. A edição de maio de 1940
(N. 115) traz outra nota acompanhada de uma fotografia, dessa vez em comemoração ao
quinto aniversário de sua filha Lili, com a Sra. Maria Balbi de Siqueira6.

5
BELLO HORIZONTE, n. 93, 3 de junho de 1938, p. 51.
6
BELLO HORIZONTE, n. 116, maio de 1940, p. 67.

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Embora pouco se saiba sobre sua história de vida, tanto as declarações encontradas
nas obras de Linhares (1995) e Werneck (2012) quanto os textos retirados das páginas da
revista demonstram que Augusto Siqueira foi uma personalidade marcante para a
imprensa de Belo Horizonte. Como fundador e diretor da revista cumpriu com êxito seu
propósito de dar aos belo-horizontinos uma revista genuinamente mineira. É lamentável
que não se possa ter tido acesso a um volume maior de informações a seu respeito.

Revista semanal, literária e noticiosa (1933-1946)

A revista Bello Horizonte, terceira publicação de mesmo nome7, foi anunciada


como uma “Revista semanal, literária e noticiosa” com a rubrica “de variedades”, muito
comum para as publicações do período. Seu primeiro número, lançado em 19 de agosto
de 1933 (Figura 2), apresentava na capa uma ilustração de Fernando Pierucetti (conhecido
como Mangabeira) e defendia a proposta de ser uma revista simples e modesta, mas
também interessante, leve e agradável. Seu editorial de abertura explicita tais intenções:
“Esta revista não pretende nada porque pretende tudo: agradar. E como é difícil agradar?
185
[...] BELLO HORIZONTE custa 400 réis. Tabela fixa. Democrática. Deseja
simplesmente, honestamente agradar. Como já dissemos. E repetimos. E esperamos que
agrade”. (BELLO HORIZONTE, n. 1, 19 de agosto de 1933, p. 5).

7
Com o mesmo nome existiram duas outras publicações em formato de jornal. O primeiro entre os anos de
1895-1899, jornal católico fundado pelo Padre Francisco Martins Dias (PEREIRA, 2009); e o segundo nos
anos de 1905-1906 (LINHARES, 1995).

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Figura 2 – Capa da Revista Bello Horizonte

Legenda: (1) Capa e (2) página editorial


Fonte: Coleção Linhares (UFMG) - (N. 1 – agosto/1933).

Desde sua primeira edição o custo do exemplar avulso era de $400 réis e o atrasado
$600 réis. A redação da Bello Horizonte, a princípio, ficava localizada na rua Amazonas,
119, passando por diferentes locais, Avenida Afonso Pena, 547; Avenida Afonso Pena,
186
398-1; em 1940 mudou-se por motivos de obra para a Rua Caetés, 360; e posteriormente
para Avenida Afonso Pena, 526. Lançada como revista semanal, era publicada aos
sábados e circulou principalmente na capital mineira, apesar de com o tempo ter sido
distribuída em outras grandes cidades do estado e adotar o sistema de vendas por
assinatura. Buscando ampliar o seu público leitor além das fronteiras do estado de Minas
Gerais, em algumas edições da década de 1940, chegou a anunciar representantes no Rio
de Janeiro, São Paulo, Vitória, Salvador e Goiás.
Durante certo período de 1935 ou 1936 (não se pode precisar, uma vez que não
possuímos exemplares nos anos de 1935) fazem parte da direção da revista o ilustrador
Érico de Paula e Floriano Peixoto de Paula, este último permanecendo até 1940. Além
dos diretores, a revista mantinha um número expressivo de colaboradores, como Djalma
Andrade, Luiz de Béssa, Newton Prates, Francisco Martins, Rubem Braga, Edmundo Lys
(pseudônimo de Antônio Gabriel de Barros Vale), Orlando Rocha, Evagrio Rodrigues,
Pedro Aguinaldo Fulgêncio, Erotides Diniz, Ary Theodoro, Célio Goyatá, Newton
Belleza, Jair Silva e Bezerra Gomes. Não muito diferente de outras publicações da época,

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Bello Horizonte privilegiava a coletividade, como se a revista só pudesse existir a partir
da ação organizada de grupos.
As ilustrações da revista inicialmente ficaram por conta dos competentes artistas
gráficos mineiros Domingos Xavier de Andrade, ou simplesmente Monsã (1903-1940),
Fernando Pieruccetti, Érico de Paula, e posteriormente Rodolpho Marques de Souza
(Figura 3a), que segundo a pesquisa pode ser considerado um dos principais ilustradores
da revista. Não foi encontrada nenhuma informação detalhada a seu respeito, a não ser
uma pequena nota na edição de agosto de 1940 (N. 119), parabenizando o ilustrador por
mais um ano de vida completado no dia 7 de julho (novamente, não possui informações
sobre ano e local de nascimento).

Figuras 3a e 3b - O ilustrador da Revista, Rodolpho Marques, retrato colorizado


digitalmente e seu anúncio

187

Legenda: (e (2) publicidade do ilustrador divulgada nas páginas de Bello Horizonte


Fonte: Acervo APCBH (N. 119 – agosto/1940 e N. 93 – junho/1938).

Outro grande colaborador foi o já citado Monsã, que entre outros não menos
importantes, foi um pioneiro das artes gráficas em Minas Gerais, no que se refere à
publicidade e à caricatura. Segundo o historiador Mascarenhas (2011), Monsã é natural
de São João Del Rei (MG) e iniciou seus estudos, assim como Érico de Paula, no Rio de
Janeiro, porém não concluiu nenhuma escola superior. Em Belo Horizonte, produziu,
desde a década de 1920, cartazes de teor político, comercial e de saúde pública. Trabalhou
como caricaturista em várias revistas ilustradas da cidade. Ganhou ainda jovem muito
reconhecimento por sua criatividade e obra, sendo visível no artista mineiro a influência
de J. Carlos (1884-1950), estimado ilustrador carioca.
Ao longo das edições da revista, foram identificadas tanto nas capas como nas
páginas internas diversas ilustrações e caricaturas assinadas por outros artistas gráficos

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como Ângelo Bigi, Alberto André Feijó Delpino, Julius Kaukal, H. Fernandinho, Antônio
Rocha, Iracema, Sílvio Costa, Ruy Frade, M. Chaves, Luís Carlos, D. Libeskind, Faria
Júnior. Nem todos os nomes podem ser verificados, pois era comum na época o uso de
pseudônimos. A publicação sofreu ainda influências de tendências vanguardistas
europeias, especialmente o Art Déco, presente na constante representação da figura
feminina e no uso de formas geométricas, assim como na própria arquitetura e decoração
da cidade. Tais artistas captavam os acontecimentos cotidianos que refletiam o conceito
de modernização, como o advento do automóvel e da luz elétrica.
A ambição de modernidade não dizia respeito somente à estética, mas também ao
conteúdo. Ao folhear as páginas internas da revista percebemos inicialmente um discurso
direcionado ao público masculino e à família, com sessões dedicadas às mulheres, jovens,
crianças e outros grupos. Entre os seus diversos temas a revista apresentava muitos
poemas e contava com seções de contos e crônicas, notícias e reportagens, humor, rádio
e cinema, literatura, moda e beleza. Havia também grande destaque para a vida urbana
com matérias sobre eventos e inaugurações; fotos das praças e demais espaços públicos;
de personalidades políticas e pessoas anônimas da capital, principalmente as mulheres,
fotografadas nas saídas das “matinées” na Avenida Afonso Pena e das missas (Figura 4). 188

Figuras 4a e 4b - Exemplos de páginas das seções da Revista

Legenda: Sahida da Missa (4a) e Depois da Matinéé (4b).


Fonte: Acervo APCBH. (N. 03 – 9 de set./1933 e N. 05 – 23 de set./1933)

Bello Horizonte registrou também um hábito social dos belo-horizontinos, o


footing – ação de andar pela cidade, onde se podia conhecer novas pessoas e até mesmo

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um novo par romântico, além de apreciar o comércio da cidade. Footing (1933-1934) era
também o nome de uma seção, que trazia crônicas sobre o footing da semana,
acompanhado de algumas fotografias das moças que transitavam pelos pontos de
encontros como bares, cafés, clubes e falavam sobre modos de se vestir e de se portar,
principalmente das mulheres. Além disso, existia uma certa divisão entre os gêneros e
classes sociais, tanto na disposição nos espaços, como na forma de participar das
atividades cotidianas, inclusive desse lazer.
O espaço reservado à página editorial trazia o cabeçalho da revista com o logotipo,
slogan, número e data da publicação, nome do diretor e recebeu diferentes nomes ao longo
de sua existência. O primeiro deles foi Avenida, a coluna que informava o que acontecia
no Bar do Ponto e nas redondezas deste com a Av. Afonso Pena – posteriormente ganhou
uma coluna própria, com poemas assinados por Dom Ruy, pseudônimo utilizado por
Djalma Andrade8. O escritor também era responsável por assinar os poemas da coluna
ELLES E ELLAS, de curta duração (1939-1940). Personalidade emblemática de seu
tempo, Andrade era um indivíduo que se dedicava tanto ao jornalismo quanto às letras.
Nesse sentido, inovou ao criar um estilo jornalístico literário próprio, fazendo poesia com
os nomes e fatos apresentados na revista e sobre a cidade de Belo Horizonte. 189
Tendo em vista a importância da publicidade na prosperidade e manutenção de
uma revista, Bello Horizonte explorou esse recurso com espaços privilegiados e
reservados para a publicação de propagandas e anúncios, que chegavam a ocupar páginas
inteiras. Os anúncios apresentavam produtos e comércios da cidade de Belo Horizonte,
entre os mais recorrentes estão o Bar do Ponto, à Av. Afonso Pena, 1048; Bar Tip-Top, à
Rua Espírito Santo, 588; Bar Brasil, no andar térreo do Cine Brasil, localizado na Praça
Sete; sorveteria e bar Trianon, à Rua Bahia, 911; Agência Sant’Anna, Ulysses
Vasconcellos, entre outros. Os demais anunciantes da revista eram do ramo de alimentos
e bebidas; farmácias e medicamentos; e instituições estatais e privadas. Em pouco tempo
as aparições publicitárias em torno de bens de consumo e novidades tecnológicas
surgiram de forma crescente e contínua. Em algumas edições fez a divulgação de outras
revistas da época, como Careta e Fon-Fon, importantes publicações cariocas.

8
Djalma Andrade nasceu em 3 de dezembro de 1891, no distrito de Queluz, hoje Conselheiro Lafaiete,
localizado em Congonhas. Faleceu em 1975, na capital mineira. Foi presidente da Academia Mineira de
Letras e seu soneto Caridade foi traduzido em dez línguas (CARVALHO; BARBOSA, 1994).

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A imagem feminina foi explorada pela revista ora como símbolo de erotismo e
liberdade, ora ocupando papéis tradicionais como dona de casa e associada à figura de
“mãe”. Personificando a “rainha do lar”, a mulher foi destacada nos anúncios do ramo
alimentício; dos eletrodomésticos; e de moda e beleza. Em geral, eram aqueles que
reafirmavam seus antigos papéis domésticos e familiares, como a responsável pela casa
e educação dos filhos. Ao contrário, o homem foi retratado como sedutor e conquistador.
Essa construção da imagem masculina pode ser observada não apenas nas capas como
nos anúncios de negócios, cigarros, cervejas e de alfaiatarias, reforçando sutilmente a
suposta superioridade deste gênero no imaginário social da época.
A desigualdade entre os sexos, da qual a revista era apenas um reflexo, aparece na
edição de 22 de dezembro de 1933 (N. 16), em que a publicação reproduziu a solenidade
de entrega de diplomas à terceira turma de senhoritas da Escola de Economia do Lar,
instituída na capital mineira pela Companhia Força e Luz de Minas Gerais. A festa,
realizada no Colégio Izabella Hendrix, terminou com uma demonstração dos métodos
adquiridos, no qual as dezoito alunas que concluíram o curso serviram às pessoas
presentes os mais finos doces, feitos por elas próprias.
Já a relação entre a revista e a urbanização da capital mineira pode ser analisada a 190
partir dos vários poemas e crônicas que faziam referência à Avenida Afonso Pena e à Rua
da Bahia, e posteriormente falavam sobre a Praça Sete ou a Praça da Liberdade. Bello
Horizonte fazia questão de exaltar como a cidade cresceu e se tornou símbolo de trabalho
e otimismo reproduzindo matérias e reportagens sobre novos edifícios e espaços/obras
inauguradas. Além de Belo Horizonte, outras cidades mineiras são mencionadas em
colunas, principalmente em relação aos esportes, pontos turísticos, festas e eventos
tradicionais.
Notamos que a região central de Belo Horizonte sempre esteve no cerne dos
acontecimentos sociais. Na década de 1930, a Avenida Afonso Pena era reconhecida
como a mais importante avenida da cidade, assim como a Rua da Bahia era considerada
a principal rua do Centro. No encontro das duas, além dos comércios, dos bares e cafés,
em especial o Bar do Ponto, famoso local de encontro entre os políticos e intelectuais da
época, situava-se a estação central dos bondes. Essa circunstância fazia do local um ponto
de grande circulação de pessoas e a importância do encontro das duas vias foi destacada
na edição de 16 de novembro de 1933 (N. 12).

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Esse ângulo reto formado no coração de Bello Horizonte pela rua da Bahia e
pela avenida Affonso Penna, em todo o esplendor de sua belleza elegante, já
está celebre na memória da nossa cidade moderna. Ali, a cidade genuflecte-se,
como numa procissão de fé. É a ronda das mulheres mais bellas e elegantes,
que passam numa espuma de sedas e numa onda de perfumes, na hora macia
da tarde, quando até o ar parece mais leve. O encontro dessas ruas elegantes,
até faz lembrar o reflexo de fadas encantadas passando por dois espelhos, como
nas nossas histórias de crença. Quanta belleza, quanto esplendor nesse vae e
vem constante (BELLO HORIZONTE, n. 12, novembro de 1933, p. 8).

Posteriormente, em 1937, foram inaugurados mais dois abrigos na Praça 7, ponto


obrigatório para os bondes de todas as linhas. Com as novas paradas, foi demolido o
prédio da Agência de Bondes, localizado no cruzamento da Avenida Afonso Pena com
Rua da Bahia e o ponto principal passou a ser na Avenida Afonso Pena com a esquina
Avenida Amazonas. As implicações desse deslocamento refletiram no editorial da revista
Bello Horizonte, conforme publicação de 12 de junho de 1937:

A Praça 7, agora, virou sala:


E´ali que se “corta”, é ali que se fala...
Segredam, quando passas, junto ás louras,
Que já não és, amor, o que tu fôras...
Ninguém sabe, meu bem, si és feliz, 191
Si já encontraste aquelle que te quis...
Agora isso é verdade; o povo dil-o:
Quando tu queres isso, é bem aquillo...
–Veja que loura vem passar, depois... –
É ”blonde”, sim, – mas H²O²[...]
Olha quem vae ali: E´ um caso sério...
A sua vida – dizem – é um mysterio...
Um bom malandro; nunca viu trabalho...
Outra vida não quer: – é do baralho...[...]
(BELLO HORIZONTE, n. 82, junho de 1937, p.15).

As páginas seguintes da mesma edição traziam uma crônica de autoria de


Astolpho Gazolla, intitulada “O Bar do Ponto Morreu”. O texto lamentava o fim do antigo
Bar do Ponto, e fazia críticas à transferência da estação central para a Praça Sete, além de
expor um apelido comum ao obelisco presente no centro da praça: “O Bar do Ponto estava
velho e feio. A Praça 7 é moça e bonita. E tem pirolito e cinema. E, também, um círculo
grande, onde os bondes brincam de roda. De ciranda, cirandinha...”. Em outro momento
o autor expressa que só os políticos juraram fidelidade e serão solidários ao Bar do Ponto,
mesmo sem grande circulação de pessoas e mulheres bonitas passando. Com a
justificativa de que os velhos coronéis do interior o consideravam símbolo de uma velha
instituição mineira.

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Antigamente no meio do calor da discussão, os políticos viam uma mulher


bonita. Tomavam um fôlego. Ficavam olhando a mulher bonita e se esqueciam
da mulher feia. Depois a bonita desaparecia e a “feia” voltava. E atiçava outra
vez a discussão. Mas, em pouco, passava outra bonita. E a paz descia sobre os
políticos. Era a mulher intervindo na política. Sua graça era oásis no deserto
tropical das discussões dos políticos do Bar do Ponto. Mas, a mulher bonita
está agora olhando o brinquedo dos “bondes” na Praça 7. E os políticos estão
discutindo com raiva no Café do Bar do Ponto! (BELLO HORIZONTE, n. 82,
junho de 1937, p.16).

Após o primeiro aumento de preço em 1936, passando a custar $600 réis na


capital, em 1939 ocorre o segundo aumento significativo, chegando a Rs 1$000 (mil réis).
Neste mesmo ano a revista deixa de ser semanal e passa a ser mensal. Curiosamente,
quase ao mesmo tempo em que o centro da cidade se deslocou para a Praça Sete. Foi
divulgada ainda uma nova lista de colaboradores efetivos. O propósito editorial era
fornecer aos leitores páginas formadas pelas mais significativas expressões literárias da
terra mineira, apresentando nomes como Mário Mattos, Eduardo Frieiro, Luiz de Bessa,
Newton Prates, Guilhermino César, João Alphonsus, Paulo Rehfeld, Cacy Cordovil,
Emílio Moura, Franklin de Salles, João Dornas Filho, Genesco Murta, João Anatólio
Lima, Djalma Andrade, Celestino Leal, Narbal Mont’Alvão, Alcides Curtis Lima, Austen
Amaro, Alvares da Silva, Jorge Azevedo e Alvarus de Oliveira. 192
Os espaços reservados aos poemas, aos contos e às crônicas ocupavam boa parte
da revista e foram essenciais na construção da sua identidade editorial. Bello Horizonte
estampava textos de escritores mineiros e outros autores de realce no cenário literário do
país, como Machado de Assis, Monteiro Lobato, Humberto de Campos, Graciliano
Ramos e Olavo Bilac. Além de textos publicados originalmente em outros países e
traduzidos para o português, como de Baudelaire e Louis John Steele. Essa era uma forma
de estabelecer vínculos literários através de diferentes gêneros.
À medida que a cidade foi crescendo, a revista Bello Horizonte também evoluiu.
As reportagens e a publicidade ganharam cada vez mais espaço. As páginas falavam não
apenas sobre as realizações públicas e particulares como todos os aspectos do progresso
e da sociedade – fatos não só de Minas, como de outros estados do país, especialmente
da Bahia e Goiás. Já não tinha mais notícias sobre o footing, a avenida ou a Praça. As
“soirées” também já não apareciam tanto. A recorrência de assuntos relacionados à
política, tanto nas capas quanto nas páginas internas, indica uma tentativa de
redirecionamento de público, embora nunca tenha deixado de falar de seus “ilustres

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moradores”. Em 1940, passa a adotar a grafia “Belo” no nome, devido à já mencionada
reforma ortográfica que extinguiu as consoantes geminadas.
Diferente de um período anterior, em que a cidade se encontrava estagnada, a
edição especial de aniversário publicada em setembro de 1939 (N. 107) trouxe a matéria
“A cidade através dos números”. A notícia informava que Belo Horizonte sem dúvidas
era a cidade brasileira com o mais rápido desenvolvimento do país. Em 1900, a capital
mineira contava com 13.472 habitantes; em 1930, a população era de 116.981 habitantes
(o projeto inicial previa 100.000 moradores ao longo de 100 anos); em 1938, a população
quase que dobrou, atingindo a marca de 208.177 habitantes. O inesperado crescimento
populacional acelerado fez com que aumentasse também o número de prédios e edifícios.
Em 1905 a cidade possuía 3.213 prédios; em 1938 já contava com 29.695, concluídos em
um curto período.
Na edição de agosto (N. 119) de 1940, um texto de Murilo Rubião cita que os
arranha-céus de Belo Horizonte são os edifícios mais magros do país. Para o Rubião a
cidade cresceu tanto que “a vista cansada de bellorizontino de dez anos atraz não se
acostuma ao progresso de sua cidade e teima em vê-la com um pessimismo de fazer inveja
ao prof. Aníbal Mattos...” (p. 100), fazendo referência a críticas anteriores de Aníbal 193
Mattos, que havia declarado que a cidade não conhecia a diversão, que seu povo era
esquisito e vivia incomodado com a vida alheia. No entanto, nas palavras de Murilo
Rubião, a capital que escutava “os palpites políticos no Bar do Ponto (esse “Bar do Ponto”
que hoje é “rotisserie” e ninguém sabe o que é – nunca ouve isso por aqui) – cresceu
demais. A vida é vertiginosa nas suas ruas, os prédios subiram muito, ninguém tem tempo
para sentir o odor das magnólias” (p. 100).
A matéria “O Vertiginoso Evoluir de Belo Horizonte”, do historiador Abílio
Barreto, apontou o ano de 1922 como fundamental na modificação da paisagem urbana
da capital, pois a cidade havia se desvinculado do fantasma da Primeira Guerra e
começado a mudar seus ares “interioranos” em busca do crescimento e industrialização,
necessários para se transformar em metrópole9. Entretanto, destaca que:

9
BELLO HORIZONTE, n. 166, julho/agosto de 1944, p. 42.

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A fase de mais intenso progresso desta começou em 1935, com a sua


transfiguração decorrente de uma série imensa e grandiosa de melhoramentos,
realizados no período administrativo do Prefeito Otacílio Negrão de Lima,
mandatário da confiança do Excelentíssimo Senhor Governador Benedito
Valadares. Em seguida, após moderado período administrativo do Prefeito José
Oswaldo de Araújo, que se caracterizou por um regime de economia, tivemos
a dinâmica e arrojada fase governamental do Prefeito Juscelino Kubitschek de
Oliveira, fortemente prestigiado pelo Excelentíssimo Senhor Governador
Benedito Valadares e foi então que o progresso de Belo Horizonte culminou,
não obstante de todos os óbices com que tem lutado decorrentes da segunda
guerra mundial (BELLO HORIZONTE, n. 166, julho/agosto de 1944, p. 42).

O que se apreende é que Belo Horizonte possuía o aspecto de uma metrópole


madura, devido ao seu assombroso desenvolvimento, porém era uma cidade jovem em
seu traçado moderno, nas suas construções e sentido urbanístico. Isto marca não apenas
a forma como a cidade foi projetada e construída como a própria subjetividade do belo-
horizontino. Seus novos hábitos, mudanças de comportamento e práticas de consumo,
fomentados por uma pequena parcela afortunada da sociedade mineira, são destacados
com ênfase, enquanto os conflitos, tensões e problemas inerentes à urbanização são
ocultados. É interessante ressaltar que embora tenham sido observadas questões de gênero
e classe social, não foram encontradas questões étnico-raciais. 194

Bello Horizonte deixava claro sua associação com política ao afirmar que a cidade
progredia admiravelmente graças aos esforços de seu povo e de seu governo. Isto fica
ainda mais evidente devido à recorrência de notícias e matérias sobre política desde as
suas primeiras edições, ganhando cada vez mais espaço ao longo dos anos. Entre as
personalidades políticas mais citadas na revista destacamos os nomes dos prefeitos de
Belo Horizonte, Otacílio Negrão Lima (Partido Republicano Mineiro/Partido
Republicano), que ocupou dois mandatos nos anos de 1935-1938 e 1947-1951; José
Osvaldo de Araújo (Partido Progressista), em 1938-1940; Juscelino Kubitscheck (Partido
Social Democrático), em 1940-1945; os governadores Olegário Maciel (Partido Social
Nacionalista), em 1930-1933 e Benedito Valadares (Aliança Liberal), em 1933-1940; e o
Presidente Getúlio Vargas, em 1930-1945 (e 1951-1954).
Para comemorar os 45 anos de existência da capital, a edição de janeiro de 1943
(N. 148), trouxe uma série de reportagens sobre o seu acelerado crescimento sob a
administração do prefeito Juscelino Kubitscheck, que encontrou máximo apoio do
governador vigente de Minas Gerais, Benedito Valadares. Este último se tornaria um dos

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mais fiéis aliados de Vargas nos embates políticos travados pelo presidente. Assim como
Kubitscheck, Benedito Valadares era constantemente citado na Bello Horizonte. Dessa
maneira, a revista ajudou a consolidar a imagem de político hábil, que tinha a ambição de
construir um estado forte, com influência na área industrial e econômica. Em conjunto
com o prefeito Juscelino Kubitscheck, em seu governo foi construída a “Cidade
Industrial”, em Contagem, o primeiro distrito industrial implantado no país.
Ainda nessa edição (N. 148), são apresentadas algumas das expressões que poetas
e escritores ilustres se valiam para se referenciar à capital em ascensão: “cidade sorriso”;
“cidade vergel”; “miradouro do céu”. Além dessas, Belo Horizonte ficou conhecida ainda
como a “cidade do asfalto”, visto que sua área pavimentada foi uma das maiores do país
durante o período. A estatística apresentada era que até 1933 tinham sido feitos na capital
1.378.059 metros quadrados de calçamento. A partir de 1934, entretanto, os números se
tornaram muito maiores, chegando, em 1941, a alcançar 590.984,22 metros quadrados de
pavimentação de vias públicas10. Com o calçamento de ruas, avenidas e praças, que
tomaram aspectos mais interessantes e conferiram maior valorização à propriedade
particular, várias outras melhorias foram proporcionadas à população, como iluminação,
canalização de esgoto e água e a criação de bairros populares. 195
Afastada do centro, a Lagoa da Pampulha é retratada pela revista como uma das
mais importantes e mais belas realizações da administração de Juscelino Kubitscheck.
Segundo Pereira (2009), essa era uma forma de integrar a cultura da cidade e o espírito
modernista. Ao redor de um grande lago artificial, construiu-se um centro de turismo.
“Erguem-se agora pitorescas vivendas e centros de esporte e diversões: o Cassino, a Casa
do Baile o Yatch-Club, lugares onde os visitantes passarão horas agradáveis de
repouso”11. O Cassino, edifício que integrava o Conjunto Arquitetônico projetado por
Niemeyer, oferecia à alta sociedade belo-horizontina diversas atrações em seus salões
como jogos, apresentações, dança e jantares. Além disso, possuía um grill-room, no qual
as mesas ficavam dispostas nas laterais enquanto acontecia alguma apresentação no
centro. Conhecido como “grill” da Pampulha, o ambiente oferecia jantares dançantes,
carnavais e festas de final de ano, sendo estes eventos muito divulgados nas páginas da
revista.

10
BELLO HORIZONTE, n. 148, janeiro de 1943, p. 53.
11
BELLO HORIZONTE, n. 148, janeiro de 1943, p. 52.

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Além das obras públicas, foram destacadas na edição de janeiro de 1944 (N. 160),
as realizações de assistência social do prefeito Juscelino Kubitscheck. Eram vários os
empreendimentos de natureza social, que visavam beneficiar as classes mais populares
da metrópole, tais como o Hospital Municipal, o “Lar dos Meninos” e os Postos de
Assistência. Nota-se aqui, uma preocupação da administração pública de Juscelino
Kubitscheck para com os problemas de interesse coletivo. O “Restaurante da Cidade”,
localizado na Avenida do Contorno, foi planejado para ser um restaurante popular, em
que cada refeição custava apenas a importância de Cr 1,40 (um cruzeiro e quarenta
centavos). Essa era uma estratégia de enfrentamento ao problema de alimentação das
classes mais baixas e operárias. Para o desenvolvimento cultural, artístico e intelectual da
cidade foi realizada a construção do Teatro Municipal, a criação da Sinfônica de Belo
Horizonte, o Instituto de Belas-Artes, reunindo a arquitetura e as mais belas artes. Estes
são indícios que Belo Horizonte se transformara na cidade do turismo12.
A edição especial de julho/agosto de 1944 (N. 166) celebrou os doze anos de
circulação da revista, decorridos em ininterrupta atividade. Nas palavras do fundador e
diretor Augusto Siqueira: “Mercê de Deus, aqui estamos, a mais antiga revista ilustrada
de Minas, em circulação” (p. 1). Em outro trecho, o diretor agradece sobretudo ao apoio 196
dos colaboradores, anunciantes e leitores. Além de reforçar os mesmos propósitos com
que iniciaram a publicação: “o lema de bem servir a coletividade” (p. 1). De modo
semelhante, Siqueira relembra na edição de agosto de 1946 (N. 184) os caminhos e
dificuldades percorridas para manter a revista Bello Horizonte em circulação por catorze
anos ininterruptos e cita a deficiência de material gerada pela Segunda Guerra Mundial
(na época recém terminada), cujos efeitos perduram por longos anos.
Augusto Siqueira faleceu em 4 de outubro de 1946, em pleno exercício de suas
atividades como diretor revista Bello Horizonte. Após um período de inatividade da
revista, na edição de junho de 1947 (N. 185), a crônica “Morreu um apaixonado da
capital”, de Moacir Andrade, cronista do Diário da Tarde, sob o pseudônimo de Gato
Felix (ou José Clemente), faz uma homenagem ao espírito do jornalista dito como
pioneiro das grandes campanhas jornalísticas. Em nota, é trazida a informação que o texto

12
BELLO HORIZONTE, n. 166, julho/agosto de 1944, p. 56.

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foi originalmente publicado na edição do dia 7 de outubro de 1946, dias após o seu
falecimento.

É um pedaço de Belo Horizonte que se vai com a morte de Augusto Siqueira.


Ele era inconfundivelmente uma figura da cidade. Mais ainda, parecia uma
peça, um membro, um órgão da cidade. A capital se refletia nele, no seu
dinamismo, na sua capacidade de lutar e vencer obstáculos, na ânsia de criar e
aperfeiçoar, na fraternidade acolhedora, na generosidade, na alegria
permanente. Nunca ninguém registrou o flagrante de um desespero de Augusto
Siqueira, de uma cólera, dessas que todos temos diante dos episódios da vida.
[...] Com um amor imenso pela capital, entusiasmava-se pelas iniciativas que
representavam seu progresso. Esse amor espelhava-se na sua revista Belo
Horizonte. Não se limitou a dar-lhe o nome da capital: fê-la para ela. Antes de
Siqueira parecia improvável uma revista vencer em Belo Horizonte [...] Deu a
Belo Horizonte o que prometera. Mostrou que a capital, tão rica de substância
criadora, comprovada nos inúmeros aspectos de seu progresso, não poderia ser
portadora da deficiência que diziam, quando se falava de apresentar uma
revista que fosse bem sua filha: na beleza do porte e na graça do espírito. Belo
Horizonte não é só filha de Siqueira. É fruto de seu grande amor à cidade. Por
ela fez todos os sacrifícios. Suas paixões eram duas: pelo seu lar e pela revista.
(BELLO HORIZONTE, n. 185, junho de 1947, p. 32).

Nova fase: Miguel Chalup (1947-1948)


Após a morte de Siqueira, a revista Bello Horizonte foi suspensa, voltando a ser
publicada com o número 185, em junho de 1947. Em um curto período de tempo, esteve 197
sob a direção do ilustre jornalista Miguel Chalup, que lhe imprimiu novos contornos e
arranjos (Figura 5). A redação ficou por conta de Floriano de Paula e Domingos D'Angelo
(que só participou deste número) e a gerência, por conta de Wagner Gomes. A redação e
administração ficavam localizadas na Avenida Afonso Pena, 526. As ilustrações nessa
fase eram de Luís Carlos e Antônio Rocha. As fotografias eram realizadas por Francisco
Fernandes, Eugênio, H. Silva, Augusto Cardoso, Francisco Martins; e os clichês eram
fornecidos pela Fotogravura Minas Gerais.

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Figuras 5ª e 5b - Capa e editorial da Revista Belo Horizonte

Legenda: Capa da Revista Belo Horizonte com a fotografia da atriz e cantora americana,
Janis Paige (5a) página do Editorial (5b).
Fonte: Acervo APCBH (N. 188 – dez./1947)

Nesta fase, Bello Horizonte contou com colaboradores consagrados, incluindo


nomes da primeira geração modernista, como Carlos Drummond de Andrade, Rubem
198
Braga, Mário Mattos, Murilo Rubião, Edson Costa, J. Guimarães Alves, Aparício Torelly,
Marques Rebelo, José Renato Santos Pereira, Jorge Azevedo, José Oswaldo de Araújo,
Nei Otaviani Bernis, José Lins do Rego, Heli Menegale, Aires da Mata Machado Filho,
Carlos Prestes, Lindouro Gomes, Abílio Barreto, Olga Tesla, Lauro Pacheco de Medeiros,
Roberto C. A. Cunha, Abelardo Bentes de Carvalho, José Geraldo Santos Pereira, José
Vaz, Aloisio Leite Guimarães e Rubens Rezende Neves.
A página editorial da edição de junho de 1947 (N. 185), com o título de “Praça 7”,
dizia que Belo Horizonte era uma cidade sem divertimento, nada além do cinema. O
ambiente musical não se movimentava mais de uma vez por mês, através do concerto da
Orquestra Sinfônica. No texto indaga-se: “E onde está o teatro mineiro? Praticamente não
existe”. Na visão do diretor Miguel Chalup, a cidade chegou a um elevado grau de
desenvolvimento intelectual, mas este já há muito tempo se encontrava estagnado e à
espera de uma renovação “para sair da mediocridade”. Em outro trecho, comunicava que
o Governo Federal “em uma medida de saneamento moral” (p. 1), extinguiu a liberação
dos cassinos, que no período da ditadura (1937-1945) havia sido oficializada. No entanto,
o “jogo do bicho” continuava clandestinamente e foi apontado como uma das causas da

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miséria das populações. Em Belo Horizonte, o “jogo do bicho” era realizado de maneira
desenfreada.
Na mesma edição (N. 185), destacaram-se as reportagens sobre a fome e a
tuberculose. A matéria “Fome” alertava que a fome estava ganhando espaço nos barracões
e aumentando, a cada instante, as caravanas de necessitados que povoavam os corredores
e os leitos dos hospitais para tuberculosos indigentes. “De vez em quando, no Pronto
Socorro Policial, aparecem diversos casos de fome. Constantemente as colunas dos
jornais se enchem com pedidos de donativos: E’ uma viúva abandonada exposta a miséria;
é um jovem atacado de insidiosa moléstia [...]” (p. 4). Em outra matéria, assinada por
Miguel Chalup, são reproduzidos três depoimentos de pracinhas acometidos pela
tuberculose, evidenciando ainda mais as sérias dificuldades do custo de vida e as misérias
dela decorrentes. Sob a direção de Chalup, nota-se uma revista mais contestadora e que
registrou algumas das inúmeras tensões que marcavam a época.

Uma revista de Minas para o Brasil (1948-1949)

199
Um ano mais tarde, com o slogan “Uma revista de Minas para o Brasil”, Bello
Horizonte entrou em nova fase. A edição 189, de junho de 1948 anunciava como
proprietário, diretor e redator-chefe Edson Bonifácio Costa, e Hélio d'Alessandro
Sarmento como secretário, substituído no número 190, por Celius Aulicus, na função de
redator-secretário. Este, por sua vez, no número 191, foi substituído por Tarcísio Coelho
Cleto, com a função de diretor-superintendente. Em nota, a página editorial trazia um
pedido de desculpas aos anunciantes e leitores em geral pelas falhas de várias naturezas
que podiam ser observadas naquela edição, cometidas involuntariamente em virtude de
certos imprevistos.
Na edição de setembro de 1948 (N. 190), foi publicado o texto intitulado “A arte
moderna em Minas”, uma reportagem de Milton Pedrosa. O jornalista cita dois nomes
que marcaram os primórdios da Arte em Minas Gerais: Aleijadinho e o pintor Manoel da
Costa Ataíde. Em outro momento do texto o autor menciona que, no Brasil, a palavra
moderno está ligada ao movimento de 1922 (realizado em São Paulo). Contudo, ressalta
que de Minas saíram inúmeros “escultores, pintores, ilustradores, desenhistas,

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caricaturistas, artistas em geral, mas nada que se possa chamar propriamente de
modernismo surgiu até os recentes anos de 1943 e seguinte” (p. 39).
Diante do exposto, vale ressaltar que, conforme Ribeiro (1996), a arte iniciada na
Semana de 1922 teve grande apoio e adesão, com manifestações de intelectuais mineiros,
que se encontravam em bares tradicionais como o Bar do Ponto, estabelecendo um
intercâmbio intenso com os poetas e artistas paulistas. As ideias literárias modernistas
foram bastante difundidas, através do jornal Diário de Minas, apresentando sinais de
consolidação com os lançamentos de A Revista (1925-1926), Verde (1928) e Leite
Crioulo (1929). Embora menos conhecidas, essas publicações formam um capítulo
curioso e relevante na história do modernismo brasileiro.

A revista dos mineiros (1949-1950)


Posteriormente, a edição de janeiro de 1949 (N. 191), anunciava a Bello Horizonte
como “A revista dos mineiros”. A direção permaneceu com Edson Bonifácio Costa, e
Joaquim Brum de Almeida como gerente. A redação e administração estavam localizadas
na Rua da Bahia, 1055. As ilustrações eram de Antônio Rocha, Rodolpho Marques, Faria
200
Junior e Tenente. Em suas páginas trouxe desde reportagens sobre a necessidade de a
Biblioteca Pública evoluir quanto conteúdos direcionados exclusivamente para as
mulheres, como as colunas e matérias sobre moda e tarefas domésticas. Entre os anos de
1943 até 1950, ocorreram variações de preço entre Cr$ 1,00 até Cr$ 3,00 cruzeiros (nova
padrão monetário do período em questão). Se comparada a outras revistas publicadas no
mesmo período no país, Bello Horizonte era relativamente barata e atendia o público da
classe média mineira.
A última das revistas examinadas foi publicada em fevereiro de 1950. Nessa
época, a redação e administração ficavam localizadas na Rua Rio de Janeiro, 282. O
editorial trazia o discurso proferido por JK na inauguração do Hospital Municipal. Uma
das matérias dessa edição discorre sobre o incentivo dado à cultura artística e literária,
durante a segunda gestão do prefeito Otacílio Negrão de Lima, em prol do
engrandecimento de Minas – a partir de iniciativas tanto no campo da Música, como da
Pintura e das Letras. Uma das iniciativas foi a realização de um evento solene para a
entrega do prêmio de cinco mil cruzeiros ao Sr. José Ribeiro Machado, autor do trabalho

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classificado em primeiro lugar no “Concurso Permanente de Contos”. O evento ainda
contou com a exposição do jornalista, pintor e desenhista Moacir Andrade.
Para Linhares (1995), a edição de fevereiro de 1953 teria sido a última a ser
publicada. Contudo, ao longo da pesquisa foram localizados exemplares até o ano de 1955
(resguardados no Instituto Cultural Amílcar Martins), o que sugere um esforço pela
continuidade da revista, ainda que nesta pesquisa não se possa ter tido acesso a
informações mais consistentes a respeito. Em síntese, observando as narrativas visuais e
textuais presentes nos exemplares disponíveis, podemos refletir sobre os valores e as
representações da mineiridade expostas em suas páginas. A revista é repleta de narrativas
visuais que reverenciam a vida social na capital mineira (personagens, costumes,
desigualdade e crises), bem como a sua estrutura física (edifícios, avenidas, comércios,
ruas e praças). É uma relíquia da memória daquele tempo.

Considerações finais
Em geral, a revista Bello Horizonte procurava ser, na medida do possível, um
reflexo da vida mineira, no que ela tem de mais expressiva. A publicação passou por 201
diversas alterações em seu projeto editorial gráfico além de registrar as transformações
urbanas e os aspectos sociais da cidade que crescia em ritmo acelerado. Em paralelo com
outras publicações da época, a revista estava integrada com o momento de busca de
representação da modernidade. E acima de tudo, manteve sua proposta de agradar seu
público leitor, especialmente o belo-horizontino.
Com um renomado corpo editorial, características gráficas e técnicas, além da
variedade de conteúdos e anunciantes culminaram em uma notória audiência, que foi
determinante para a longevidade da publicação. A revista revelou uma evolução não
apenas gráfica, como um amadurecimento editorial e comercial. Fazia questão de
prestigiar as várias aparições de membros da alta sociedade mineira e comércios locais,
atuando claramente na construção de interesses, hábitos e comportamentos da população
belo-horizontina.
Assim, as narrativas observadas foram essenciais para compreender a sociedade
daquele período e como a revista registrou a história de seu público. Os momentos de
transformações e os conflitos entre novos e velhos costumes, registram a existência de
uma expressiva manifestação modernista realizada nesse período. Dessa forma, a nova

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capital com suas largas avenidas, praças, cinemas e locais de entretenimento representava
o centro de referência para as cidades interioranas de Minas Gerais.
O final deste estudo se revela como o início de vários outros problemas de
pesquisa a serem respondidos, já que algumas lacunas inerentes a qualquer pesquisa e os
imprevistos gerados pela pandemia durante o estudo impossibilitaram uma abrangência
maior acerca do assunto. Ficaram, entre outros, questionamentos sobre a história de vida
do fundador e diretor Augusto Siqueira, tendo em vista sua expressiva contribuição para
imprensa mineira ao manter uma publicação por catorze anos ininterruptos. Além disso,
a ausência de exemplares de todos os anos de circulação da revista abriu margem para a
continuação da pesquisa e a busca pelas edições faltantes.
O contato com um material tão representativo da mineiridade nos trouxe uma
satisfação a mais e um acréscimo na nossa conexão com a história e a memória de Belo
Horizonte. Esperamos colaborar na difusão da memória e da identidade gráfica local e
brasileira.

Agradecimentos
202
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES).

Referências
GIL, Antônio C. Como elaborar projetos de pesquisa. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2010.

CARVALHO, André; BARBOSA, Waldemar (Org.). Dicionário bibliográfico: imprensa mineira. Belo Horizonte:
Armazém de Ideias, 1994.

LINHARES, Joaquim Nabuco. Itinerário da imprensa de Belo Horizonte 1895-1954. Belo Horizonte: Fundação João
Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1995.

MASCARENHAS, André. Traços de Belo Horizonte: a contribuição dos caricaturistas para o Modernismo na Cidade
Moderna. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2011.

PEREIRA, Lígia M. L. 200 anos da indústria gráfica no Brasil: trajetória em Minas Gerais. Belo Horizonte: Prefácio
Comunicação, 2009.

RIBEIRO, Marilia A. Modernismo e vanguardas: os olhares artísticos de Minas. Revista Locus, Juiz de Fora, v. 2, n.1,
p. 87-97, 1996.

VIEIRA, Ivone L. Emergência do modernismo. In: RIBEIRO, Marília Andrés; SILVA, Fernando Pedro (Org.). Um
século de história das artes plásticas em Belo Horizonte. Belo Horizonte: C/Arte, 1997.

WERNECK, Humberto. O desatino da rapaziada: jornalistas e escritores em Minas Gerais (1920-1970). 2. ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 2012.

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BORRACHALIOTECA SOBRE RODAS: mobilidade para


ações culturais na cidade

Borrachalioteca sobre rodas: mobility for cultural actions in the city

Rita A. C. Ribeiro1
Anderson A. Horta2

Resumo: A Borrachalioteca, foco do nosso trabalho, pode exemplificar como os valores se misturam e
transformam o ambiente tendo o design como um agente nesse processo. Mistura de borracharia com
biblioteca, é um projeto que surgiu há cerca de quinze anos na cidade de Sabará, município da região
metropolitana de Belo Horizonte, funcionando em condições precárias, mas produzindo diversas atividades
culturais na cidade e em seu entorno. Nossa proposta foi o desenvolvimento da Borrachalioteca Sobre
Rodas, ou B.S.R., um veículo que promove a mobilidade no transporte dos livros e dá apoio às outras
atividades desenvolvidas pelo grupo. Este trabalho apresenta, portanto, como o design pode ser um agente
na promoção cultural e na ressignificação dos espaços urbanos.

Palavras-chave: Educação. Design. Promoção cultural.

Abstract: The Borrachalioteca, focus of our work, can well exemplify how values mix and transform the
environment with design as an agent in this process. Mixing a rubber shop with a library is a project that
emerged about fifteen years ago in the city of Sabará, a municipality in the metropolitan region of Belo 203
Horizonte, Brazil. Operating in precarious conditions, but producing various cultural activities in the city
and its surroundings, our proposal was the development of the Borrachalioteca Sobre Rodas, or B.S.R. a
vehicle that promotes mobility in the transport of books and gives support to other activities developed by
the group. This work presents, therefore, how design can be an agent in promoting the mobility of
elaborated actions in the cultural promotion and in the resignification of urban spaces.

Keywords: Education. Design. Cultural Promotion.

Introdução
Nos anos 1970, o filósofo Henri Lefebvre publica A Revolução Urbana que abre
novamente um campo de discussão acerca das várias possibilidades de percepção dos
fenômenos urbanos, não apenas como relações que se estabelecem na esfera do domínio
econômico, mas levando em consideração as várias relações sociais que são constituídas
a partir da cidade. Lefebvre pensa o fenômeno urbano como um campo que não se atrela
a nenhuma ciência propriamente dita, pois, para analisá-lo, dentro da sua totalidade,
vários campos de saber devem se entrecruzar.

1
Programa de Pós-Graduação em Design da UEMG. E-mail: rita.ribeiro@uemg.br
2
Programa de Pós-Graduação em Design da UEMG. E-mail: anderson.horta@uemg.br

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A obra de Lefebvre, passados quase 50 anos de sua publicação, é plena de frescor


e indagações que nos permitem compreender as diversas manifestações sociais que
permeiam a sociedade. Para Lefebvre, o fenômeno urbano se apresenta como realidade
global, que implica o conjunto da prática social, uma globalidade que não pode ser
apreendida por apenas um parâmetro de investigação. O filósofo chama a atenção para a
necessidade de utilização de todos os procedimentos progressivos e regressivos da
análise, respeitadas as especificidades de cada ciência, sem os quais não é possível
conceber a “ciência do fenômeno urbano”, já que este não constitui-se como um sistema
único de signos. Para o autor, a prática urbana ultrapassa de longe esta sistematização,
incorporando uma série de signos e significações em vários níveis, sejam eles: o das
modalidades da vida cotidiana, o da sociedade urbana no seu conjunto, o do espaço-tempo
urbano particularizado.

O conceito de cidade não corresponde mais a um objeto social. Portanto,


sociologicamente trata-se de um pseudo-conceito. Não obstante, a cidade tem
uma existência histórica que não se pode desconsiderar. [...] Uma imagem ou
representação da cidade pode se prolongar, sobreviver às suas condições,
inspirar uma ideologia e projetos urbanísticos. Dito de outro modo, o “objeto”
sociológico “real”, neste caso, é a imagem e, sobretudo, a ideologia! 204
(LEFEBVRE, 2003, p.61)

O autor percebe a cidade como um espaço que ultrapassa os limites físicos em que
cada construção, bem como as relações, que a partir dali se estabelecem, são pensadas
dentro de uma determinada ideologia. Lefebvre argumenta que a “realidade do fenômeno
urbano seria a de um objeto virtual” (LEFEBVRE, 2003, p.61). Virtual no sentido de que
as suas relações se estabelecem a partir de um determinado imaginário social e virtual,
posto que em constante mutação, portanto impossível de ser apreendido em sua
totalidade.
Aos olhos do estudioso deste milênio, para quem as relações configuram-se de
forma cada vez mais virtual, possibilitadas pelas diversas mediações que vão desde os
meios de comunicação de massa, passando pela telefonia celular e, cada vez mais, pela
Internet, a visão de Lefebvre encontra perfeita sintonia no debate atual, pois é um conceito
que faz parte do nosso cotidiano. Ao implicar o fenômeno urbano como um objeto virtual,
Lefebvre, de certa forma, antecipa o fenômeno da globalização, metropolização e dos
multiculturalismos que norteiam a discussão nos dias de hoje, presente em grande parte
do repertório dos teóricos, entre eles Manuel Castells, a princípio, um de seus maiores

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críticos.
Seguindo a visão globalizante do fenômeno urbano apresentada por Lefebvre,
temos o trabalho de Milton Santos, para quem “cada lugar é à sua maneira, o mundo”.
Santos trabalha a dimensão do fenômeno urbano considerando as duas vertentes: o global
e a sua influência, pensando, ao mesmo tempo, a dimensão local. Para o autor “a uma
maior globalidade, corresponde uma maior individualidade” (SANTOS, 2002, p.252). O
global e o local se intercalam e se complementam nas relações estabelecidas na cidade.
Para o autor, a comunicação (seja pessoal ou de massa) fornece o elo para as duas
dimensões.
Uma das premissas de Santos é o olhar voltado para o cotidiano, como uma
redescoberta da dimensão local, levando-se em consideração as práticas sociais. Na visão
do autor, este seria um “retorno” ao cotidiano, já que esta é uma visão difundida por
autores como Simmel e Lefebvre. O cotidiano, para Santos, representa uma “quinta
dimensão do espaço banal, o espaço dos geógrafos”. Entender a materialidade que se
configura na relação entre cotidiano, espaço e movimentos sociais é um dos grandes 205
desafios que o autor aponta, pois “enquanto outros especialistas podem escolher, na
listagem de ações e na população de objetos, aqueles que interessam aos seus estudos
setoriais, o geógrafo é obrigado a trabalhar com todos os objetos e todas as ações”
(SANTOS, 2002, p.257). A percepção do cotidiano, da constituição das diversas
identidades e dos movimentos sociais que ali se delineiam e como estes movimentos
interferem na transformação e apropriação do espaço urbano, constituem alguns dos
maiores desafios, mas também a grande ousadia do pesquisador que pode transitar entre
as diversas áreas do conhecimento.
Assim, o design como disciplina perpassa os diversos processos sociais. Sua
característica multidisciplinar possibilita as mais diversas interações com os variados
campos do conhecimento, deles se aproveitando e com eles contribuindo ao mesmo
tempo.

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Na contemporaneidade o design tem configuração diversa, com inúmeras


possibilidades de relações e associações. É uma grande rede, um tecido
entrelaçado e articulado, repleto de significações resultantes do entrelaçamento
e articulação de signos que geram linguagens diferenciadas. Essa grande rede
flexível atua na esfera da informação, comunicação e conhecimento, tem como
foco central o homem, as dinâmicas e produções culturais que o envolvem.
(MOURA, 2011, p. 89)

Dentro dessa visão globalizante do processo do design na contemporaneidade,


pensamos em sua interface com a educação. A constante evolução dos dispositivos
tecnológicos e midiáticos revolucionou não apenas as formas de comunicação, mas
também os processos de aprendizagem. Hoje, qualquer criança pode navegar na internet
e pesquisar o que desejar. No entanto, os padrões do ensino tradicional ainda não foram
capazes de estabelecer diretrizes que façam frente à sedução das novas mídias. Como
afirma Gadotti (2011):

O aluno quer saber, mas não quer aprender, não quer aprender o que lhe é
ensinado e nem como é ensinado. [...] a escola ensina num paradigma e o aluno
aprende num outro. O que fazer diante do paradoxo: o aluno quer saber, mas
não quer aprender? A escola precisa estar atenta às mudanças profundas que o
contexto midiático contemporâneo está provocando na cabeça de crianças e 206
jovens. (GADOTTI, 2011, p. 64-65)

Nesse sentido, entendemos que a contribuição do Design nos processos de ensino


e aprendizagem pode ser um diferencial, pois em suas especificidades ele dialoga com a
sociedade, vai refletir seus comportamentos e será objeto de sua própria transformação.
Pensamos aqui no processo de pensamento do Design enquanto disciplina e não nos
produtos propriamente ditos, ou nas interfaces tecnológicas que ele estabelece.

O design é uma atividade criativa cujo objetivo é estabelecer as qualidades


multifacetadas de objetos, processos e serviços e seus sistemas em ciclos de
vida completos. Portanto, design é o fator central da humanização inovadora
de tecnologias e o fator crucial do intercâmbio cultural e econômico. (ICSID,
2008)

O melhor ativo dos designers, atualmente, reside na sua percepção para ver a
interconexão do mundo de um modo humanista. Nesse contexto, o Design se torna a
linguagem dominante para promover a inovação. Pois cabe a ele o papel de viabilizar a
natureza participativa dos profissionais, consumidores e da comunidade em geral, em
torno de um novo conjunto de regras que privilegiam a usabilidade, mas pensando
também nos fatores emocionais e na sustentabilidade. Assim, a função social do design

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transcende a forma e passa a pensar no projeto como parte de uma cadeia de valores
sociais, que privilegia o humano.

O projeto aqui descrito e objeto do presente estudo foi desenvolvido e executado


pelo Grupo de Pesquisa Design e Representações Sociais (CNPq), vinculado ao Programa
de Pós-Graduação em Design da Universidade do Estado de Minas Gerais. A
Borrachalioteca, foco do nosso trabalho, pode bem exemplificar como os valores se
misturam e transformam o ambiente e como o design é um agente nesse processo.
Borrachalioteca – mistura de borracharia com biblioteca – é um projeto que surgiu há
cerca de quinze anos na cidade de Sabará, município da região metropolitana de Belo
Horizonte. O projeto teve início com a ideia de Marcos Túlio Damascena, filho do dono
do estabelecimento, em colocar livros na borracharia, localizada num dos bairros
periféricos da cidade.

Figura 1 - Borrachalioteca em Sabará/MG

207

Fonte: Borrachalioteca. https://www.borrachalioteca.com.br. Acesso em: 07 jan. 2022.

O projeto começou timidamente, mas hoje já são três espaços, outras unidades
foram inauguradas entre 2008 e 2010: a Sala San Salvador, no bairro Cabral; a Casa das
Artes, com livros infantojuvenis e literatura de cordel; e o Espaço Libertação pela Leitura,
no presídio municipal de Sabará. “O último é um trabalho muito especial. Ouvi de um

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detento que a biblioteca era como uma janela para o mundo”, diz Marcos Túlio3. O
acervo, que conta com doações, já ultrapassa a marca dos 12 mil livros, disponíveis para
empréstimo a toda a comunidade. O volume de empréstimos mensal gira em torno dos
220 exemplares e os frequentadores, em sua maioria, são jovens e crianças de baixa renda.
Apesar de distanciar apenas 14 km de Belo Horizonte, a cidade de Sabará possui
um dos mais baixos IDH da região metropolitana – 0,773. Apesar de todo êxito - a
iniciativa inclusive já recebeu o Prêmio Viva Leitura 2007, que faz parte do Plano
Nacional do Livro e Leitura, do Ministério da Educação e Cultura (MEC) - os espaços
das Borrachaliotecas não receberam nenhum tipo de planejamento. A Borrachalioteca
principal, que funciona agora ao lado da Borracharia, não possui instalações que
permitam aos usuários um maior conforto para a leitura, ou mesmo para a consulta ao
acervo.
A presente proposta tem como objetivo apresentar o processo de criação de um
artefato que promove mobilidade das ações ali desenvolvidas, permitindo que estas sejam
apresentadas nos diversos pontos da cidade e da circunvizinhança. Nossa ideia foi aliar à 208
experiência da leitura a noção da ressignificação e de mobilidade. Da mesma forma que
um espaço pode se transformar em função do uso - uma simples borracharia se transforma
em espaço de difusão cultural - nossa intenção foi despertar no público frequentador dos
eventos a ideia de que, assim como a leitura pode revelar novos caminhos, as ações podem
também acontecer nos espaços mais inusitados, ampliando o seu espectro de atuação, a
partir do momento em que é possível transitar pelo espaço urbano levando os projetos
para o maior número de pessoas e de comunidades.

Reconfigurando os espaços da cidade

A metropolização de alguns centros urbanos estabeleceu novas formas de


relacionamento e percepção da cidade. O crescimento urbano, associado ao
desenvolvimento tecnológico, atribui outros sentidos para a cidade, novas influências vão
se delineando e criando diferentes parâmetros de sociabilidade. Tais parâmetros, muitas
vezes, sofrem influência direta das novas tecnologias da informação. A internet, cada vez

3
Jornal Hoje em dia. Disponível: www.hojeemdia.com.br . Dia 14 out. 2012.

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mais, promove novas formas de interação social, que acabam por influenciar a forma
como as cidades são percebidas, não apenas por seus habitantes, mas também por outras
pessoas distantes espacialmente.
Essas novas formas virtuais de promoção do espaço urbano possibilitam outros
sentidos de pertencimento e mesmo de afinidade com os seus objetos. Carlos (2007)
reafirma uma preocupação com a cidade pensada nos aspectos físicos ou como meio
ambiente urbano, ignorando-se a prática socioespacial que dá forma e conteúdo. Seguindo
essa linha, deve-se pensar em uma cidade que extrapola os sentidos geográficos e físicos
de um espaço. Ruas, praças, edifícios e monumentos são agregados de valores a partir do
momento em que as pessoas interagem e fazem uma leitura de seus atributos de acordo
com a sua vivência e valores pessoais. Criam-se, reinventam-se seus espaços a cada
momento, construindo assim a sua identidade.
Lefebvre (1985) afirma que, se existem a produção e o processo de produção do
espaço, existe também a história. A história do espaço, de sua produção enquanto 209
realidade, de suas formas e representações não se confunde nem com o encadeamento
causal dos fatos ditos históricos, nem tampouco com a sucessão dos costumes e leis, das
ideias e ideologias, das estruturas socioeconômicas ou das instituições. As forças
produtivas (natureza, trabalho e organização do trabalho, técnica e conhecimento) assim
como as relações de produção têm um papel na produção do espaço. Cada sociedade, com
seu desenvolvimento peculiar produz códigos de entendimento e representação. Esses
códigos permitem a organização urbana, por diversas vezes conturbadas, do que virá a se
constituir saber e poder enquanto instituição.
Os códigos espaciais, assim entendidos como formas simbólicas, permitirão que
se vivencie, se compreenda e se produza o espaço. Não a partir de um simples processo
de leitura. Os códigos reúnem os signos verbais - palavras e frases e o sentido que resulta
de um processo de significação e os signos não verbais - música, sons, chamados,
construções arquitetônicas.
Castells (2002) propõe que a identidade deve ser compreendida como processo de
construção de significados baseado em aspectos culturais e podem ser formados a partir
de instituições, mas somente assumem tal condição quando os atores sociais, ou seja, os
cidadãos, as internalizam, construindo o seu significado com base nesse processo. Essa
construção da identidade é também fomentada por elementos simbólicos mediados, que

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produz uma interação à distância ou mesmo virtual. Não é necessário dividir o mesmo
espaço físico para compartilhar sentimentos e experiências. Ainda, na visão do autor, para
que o sentimento de pertença ou uma identidade cultural aconteça é necessário uma
mobilização social, os indivíduos necessitam de movimentos urbanos, não exatamente
revolucionários, pelos quais são revelados e defendidos interesses em comum, e a vida é
compartilhada de algum modo e um novo significado pode ser produzido.
Lefebvre (1985) aponta que a autonomização relativa do espaço, como
realidade resultante de um longo processo, introduziu novas contradições que se
indicariam a partir da relação dialética estabelecida pela tríade: o percebido, o
concebido e o vivido, que se traduziriam espacialmente pelas práticas espaciais, ou seja,
uma associação entre a realidade cotidiana e a rotina urbana, as rotas e redes que
incorporam fluxos físicos e materiais, possibilitando a interação entre produção e
reprodução social. A representação do espaço ou o espaço concebido é aquele criado a
partir de formulações de cientistas, urbanistas, arquitetos e planejadores. E, por último, 210
espaço de representação, o espaço vivido, aquele que se constitui pelas formas
simbólicas, que é vivido pelas imagens e associações.
O vivido, o concebido e o percebido juntam-se constituindo consensos, códigos e
linguagem comuns, de forma que os membros dos grupos sociais possam transitar por
eles sem se perderem. Para o autor, as representações do espaço são permeadas
pelo saber (entendido como conhecimento associado à ideologia), sempre relativo e
em transformação. Elas serão objetivas, ainda que passíveis de revisão. Abstratas à
primeira vista, as representações do espaço mantêm na prática social e política as
relações estabelecidas entre os objetos e as pessoas.
Tendo como parâmetro a importância do reconhecimento dos valores difundidos
pela Borrachalioteca, sem perder sua identidade, pensamos numa forma de promover o
trabalho, possibilitando que esse espaço se torne um espaço móvel. Assim surgiu nosso
projeto.

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Borrachalioteca Sobre Rodas – BSR.

Depois de diversas visitas para briefing e observação do funcionamento da


Borrachalioteca in loco, foi possível identificar que as condições legais dos espaços em
que ela funciona são frágeis e voláteis. Nenhum dos imóveis sede é de propriedade da
Borrachalioteca ou de seus idealizadores. Todos estão disponíveis como empréstimo sem
nenhuma forma de contrato de duração, ou mesmo em condição de espaço alugado, que
pode ser demandado pelo proprietário a qualquer momento.
Sendo assim, quaisquer interferências feitas nos ambientes teriam como condição
ser móveis, acompanhando a Borrachalioteca em caso de mudança de espaço. Essa
solução limitaria quaisquer possibilidades de arranjo de adequação, impossibilitando
mudanças de impacto mais profundo na estrutura dos espaços, já necessárias por suas
condições atuais. Além de que, a maioria dos eventos de que a Borrachalioteca participa
não acontecem necessariamente dentro desses espaços, que ocorrem em formato de
visitas a escolas ou ocupação momentânea de espaços públicos durante eventos das 211

cidades.
Por essas razões, decidimos propor uma sede móvel, itinerante, que pudesse
expandir o alcance da Borrachalioteca nas comunidades a que ela atende e em suas
participações em eventos, tanto na cidade de Sabará quanto fora dela. A proposta da
criação, desenvolvimento e produção de uma unidade móvel para a Borrachalioteca
consistiu na criação de uma carretinha reboque, puxada por qualquer automóvel
abrangendo as principais demandas da organização, tais como flexibilidade,
disponibilização de livros para a comunidade e realização de eventos com atrações
culturais, como contação de histórias para crianças, recitais de poesia e saraus, etc.
Seguindo abordagem Vergantiana (2012), tendo como princípio a ideia de
proposta que parte da percepção dos designers envolvidos no projeto, somadas à sua
interpretação criativa do cenário atrelada a repertório e referências pregressas, ganha
forma um conceito que dirigiu a concepção do objeto B.S.R. em fusão às condições já
mencionadas. Esse conceito pode ser sintetizado pela palavra “mutação”.
Em seguida, foram assimiladas referências e inspirações, sendo a principal delas
as carruagens típicas construídas e utilizadas por povos ciganos desde a antiguidade.

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Dessas inspirações, foram absorvidas formas, maneiras de organização que possibilitam


adaptações de acordo com os espaços ocupados interinamente e a própria lógica da
utilização múltipla de um pequeno veículo que se desdobra em diversos espaços.
Esse processo resultou na concepção do design da carretinha B.S.R., que conta
com portas laterais que, quando fechadas, otimizam espaço interno e protege os livros,
mas que os disponibiliza ao acesso de forma organizada e de fácil visualização quando
abertas, mostrando livros adultos e juvenis pela lombada e infantis pelas capas por meio
de prateleiras com profundidades distintas, além de funcionar como anteparos contra o
sol e a chuva. B.S.R. conta, também, com uma porta traseira que vira palco no alto de
uma pequena escada para recitação de poesias, servindo, ainda, de varal para exposição
de cordéis produzidos nas oficinas da Borrachalioteca.

Figura 2 - Composição de imagens da BSR no projeto original

212

Fonte: Elaborado pelos autores – 21 fev. 2015.

Toda a estrutura é iluminada em pontos estratégicos, permitindo seu


funcionamento noturno. A carretilha transporta, em seu interior, o mobiliário para

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ocupação de praças e outros espaços urbanos nas ações promovidas pela iniciativa, além
de caixas de livros e objetos utilizados nas oficinas. A montagem de imagens a seguir
mostra o projeto concebido originalmente, passando por concessões durante o processo
de fabricação.
A Borrachalioteca Sobre Rodas obteve êxito em sua inauguração nos dias 5 e 6
de dezembro de 2015 no Festival de Jabuticaba de Sabará. O evento contava com artesãos,
produtores de jabuticabas, fabricantes de variedades de jabuticabas como geleias, doces
caseiros, sabonetes, essências e perfumes, entre outras centenas de produtos. Além de
tudo, houve várias apresentações de cunho artístico e musical. O grupo da
Borrachalioteca, “Arautos da Poesia”, se apresentou oferecendo poesias aos cidadãos e
visitantes da cidade.
A BSR teve o seu lugar no evento expondo os livros e convidando leitores e
curiosos para se aproximarem. O resultado foi de plena interatividade entre os indivíduos
e a BSR. Contando com pufes de pneu e outros assentos, crianças, jovens e adultos de 213
todas as idades pegavam livros e se sentavam em algum lugar para ler. A B.S.R.
conseguiu atingir a demanda na facilidade do transporte dos livros até o evento, bem como
a exposição e o convite para a comunidade. “O que temos aqui são pessoas que gostam
de ler e se sentem à vontade com esse momento. Muita gente diz que brasileiro não gosta
de ler e aqui vemos que isso não é verdade. Aqui está cheio de gente o dia todo.” A fala
de Luciane, uma das organizadoras do projeto da Borrachalioteca.
Nos quase 10 anos de funcionamento, interrompido apenas pela pandemia de
Covid-19, ela vem se transformando em um marco das ações culturais desenvolvidas pela
Borrachalioteca. Objetivando proporcionar momentos de leitura ao ar livre, com
apresentações do grupo de poesia e doações de livros, ela segue levando os hábitos de
leitura e promovendo entretenimento sociocultural nas regiões do entorno de Sabará. Na
visão de Marco Túlio Damascena4, seu organizador: “Além de distribuição de livros,
também fazemos venda de livros excedentes na biblioteca com preço módico. Também,
a partir da utilização do veículo, fazemos oficinas de mediação de leitura, de Cordel e
xilogravura.” ( DAMASCENA, 2022). A BSR é presença constante no calendário de
eventos da cidade, como Damascena aponta:

4
Marco Túlio Damascena em entrevista aos autores realizada por e-mail em 27/07/2022.

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Considerando o pós pandemia, utilizamos a BSR em eventos oficiais da


prefeitura que são: Festival do Ora-pro-nóbis, Festival da Jabuticaba e na FLIS
- Festa Literária de Sabará, que é coordenada por nós. Além dos pedidos
esporádicos, como em escolas e outros eventos literários, como em Itapecerica.
(DAMASCENA, 2022)

Uma iniciativa construída a partir de um projeto de pesquisa financiado pelo


CNPq, propiciou a criação de um instrumento de difusão cultural que transita pela cidade.
Assim, entendemos a importância de ações que tragam a universidade para fora de seus
muros, e a necessidade do constante investimento no campo social. É possível visualizar
o funcionamento da B.S.R. sendo utilizada na composição de imagens (Figuras 3, 4, 5 e
6) a seguir.

Figuras 3, 4, 5 e 6 - Imagens da BSR em utilização

214

Fonte: Elaborado pelos autores. 18 nov. 2018

Considerações Finais

A apropriação da cidade pauta-se cada vez mais pelas regras do consumo. Aqueles
que não consomem são afastados dos lugares, pois não tem porque estar ali, já que o
consumo passa a ser a razão da existência do espaço, em detrimento de outros valores.

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Nestor Canclini (1999) aponta que as mudanças na maneira de consumir alteraram as


possibilidades e formas do exercício da cidadania. As diferenças de capacidade de
consumo se justificavam até meados do século XX pela ampliação da igualdade dos
direitos abstratos como o voto, participação política, pertencimento a entidades de classe.
Com o declínio da política e a crescente descrença nas instituições, os cidadãos se veem
diante da criação de novas formas de participação.

Homens e mulheres percebem que muitas das perguntas próprias dos cidadãos
— a que lugar pertenço e que direitos isso me dá, como posso me informar,
quem representa meus interesses – recebem sua resposta mais através do
consumo privado de bens e dos meios de comunicação de massa do que nas
regras abstratas da democracia ou pela participação coletiva nos espaços
públicos. (CANCLINI, 1999, p.37)

O consumo e o consequente consumo dos lugares na cidade determinam as


posições do sujeito. Alguns espaços, ainda que públicos, não se configuram como espaços
de todos. O outro não cabe ali, pois não pode consumir o que se vende. No entanto, a
própria dinâmica do ser humano faz com que a proposição não se configure como
215
totalmente verdadeira. Espaços destinados ao consumo apenas voltados para
determinadas faixas da população frequentemente veem-se tomados por outras camadas
sociais que não têm o poder de consumo, mas, em contrapartida, se apropriam daqueles
espaços, mesmo como forma de oposição à ordem vigente. Assim vemos os mais diversos
grupos sociais que se apropriam de espaços que, à primeira vista, em nada se
identificariam com tais frequentadores.

A cidade é o lugar da praça e do encontro. É o espaço inventado pelo homem,


para a conversa, para o diálogo. Nele, os homens se encontram e se
reconhecem. Contraditoriamente, entretanto, é no lugar do encontro, do
diálogo, da criação de identidades que se desenvolve o espaço do
estranhamento. A cidade é, portanto, o lugar da alteridade: onde se é outro,
onde o estranhamento evidencia a condição daquele que não se reconhece no
objeto que cria. (HISSA, 2006, p.89)

A apropriação dos espaços da cidade pelos cidadãos é uma luta constante.


Raramente percebemos em nossas cidades a disposição do poder público em promover a
integração dos espaços com os usuários. Iniciativas como a de Túlio Damascena, que
cresceu cercado por pneus e, apaixonado por livros, resolveu transformar o espaço da
borracharia paterna e biblioteca, não são tão comuns, mas refletem o desejo de
compartilhamento do conhecimento e, por isso, devem ser incentivadas.

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Nesse sentido, o design pode e deve agir como um agente de incentivo dessas
práticas. Ao incorporar as questões ligadas à cidadania, o papel do design amplia-se na
cidade, pois cada vez mais novas funções são a ele atribuídas. Os sentidos da cidade são,
em parte, construídos pelos afetos incentivados pelo design e seus objetos.
Assim, o papel do designer e sua responsabilidade como agente de transformação
social, transcende a escolha de materiais e abre a ele um novo campo repleto de
possibilidades. A perspectiva do projeto foi dialogar de perto com as instâncias sociais e
criar um artefato que contribuísse com a proposta de promoção da leitura. Acreditamos
que esse é um caminho.

Referências
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 1999.
CARLOS, Ana Fani A. Espaço Tempo na Metrópole. São Paulo: Contexto, 2001.
CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
DAMASCENA, Marco Túlio. Entrevista concedida aos autores por e-mail em 27/07/2022.
GADOTTI, Moacir. Boniteza de um sonho: ensinar e aprender com sentido. São Paulo: Ed,L, 2011. 216
HISSA, Cássio Eduardo Viana. Ambiente e vida na cidade. In: BRANDÃO, Carlos Antônio Leite (Org.). As cidades
da cidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p. 81-92.
LEFEBVRE, Henri. La production de l’espace. Paris: Éditions Anthropos, 1985.
_____. A revolução urbana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.
LÖBACH, Bernd. Design Industrial. Bases para a configuração dos produtos industriais. São Paulo: Edgard Blücher,
2001.
MANZINI, Ézio. O visionário do design sustentável In: Planeta Sustentável. Ed.19/07/2007.
MOURA, Mônica. Ensino e design no contemporâneo: dúvidas, desafios, expressões e discursos. In: Ensaios em
Design: ensino e produção de conhecimento. Bauru, Canal 6, 2011. P.82-113.
http://borrachalioteca.blogspot.com.br/. Consultado em 26/08/2022.
http://www.hojeemdia.com.br/minas/biblioteca-dentro-de-borracharia-cria-novos-leitores-em-sabara-1.44744.
Consultado em 26/08/2022.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2002.
VERGANTI, Roberto. Design-driven innovation: mudando as regras da competição: a inovação radical do significado
de produtos. São Paulo: Canal Certo, 2012.

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INDUSTRIALIZAÇÃO NA ZONA URBANA DE BELO


HORIZONTE E A LEGISLAÇÃO MUNICIPAL (1922-1926)

Industrialization in the urban area of Belo Horizonte and municipal legislation (1922-1926)

Marina Rozendo Silva1


Maria Lúcia Prado Costa2

Resumo: Por meio do cotejamento entre o Índice de Lotes Urbanos do APCBH e as leis emitidas pelo
prefeito Flávio Fernandes, foi possível pesquisar a efetivação da concessão de lotes urbanos para promoção
da indústria na Capital, entre 1922 e 1926. Neste paralelo, foram identificadas as indústrias efetivamente
instaladas e, ainda, através de outras fontes primárias e secundárias, conhecer o perfil dos industriais
envolvidos. De fato, a política implementada pelo prefeito naqueles anos para industrialização na zona
urbana de Belo Horizonte foi relativamente eficaz.

Palavras-chave: Belo Horizonte. Lotes Urbanos. Industrialização

Abstract: Through the comparison between the APCBH's Urban Lot Index and the laws issued by Mayor
Flávio Fernandes, it was possible to research about the realization of the concession of urban lots to promote
the industry in the Capital, between 1922 and 1926. This comparison allowed us to identify the industries
effectively installed and through other primary and secondary sources, to know the profile of the industries
involved. In fact, the policy implemented by the mayor in those years for industrialization in the urban area
of Belo Horizonte was relatively effective. 217

Keywords: Belo Horizonte. Urban Lots. Industrialization

Introdução

Estudo anterior sobre a revisão e atualização do Índice de Lotes Urbanos de Belo


Horizonte do APCBH (1895-1929?), publicado na edição n. 6 dessa mesma Revista
(COSTA, SILVA, 2019), evidenciou uma série de normas emitidas pelo prefeito Flávio
Fernandes do Santos, entre 1922 e 1926. Ele foi o prefeito mais profícuo em promulgação
de leis, na série estudada, entre 1895-1929. Ao todo, foram dele 16 leis (44%) entre as 36
emitidas entre 1895 e 1931, citadas no Índice.

1 Bacharel em Geografia e Mestre em Geografia e Análise Ambiental. E-mail:


marinarozendo@yahoo.com.br
2 Historiadora e Mestre em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável. E-mail:
lucia@biosconsultoria.com.br
Apoio: Bios Consultoria: www.biosconsultoria.com.br

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Deste total de leis, cinco delas propunham a concessão de lotes - através de


“venda”; ou “concessão”; ou “concessão de terrenos independente de hasta pública” -
para implantação de indústrias no perímetro urbano de Belo Horizonte.
O presente estudo se propôs a checar se de fato as concessões propostas foram efetivadas,
a partir do paralelo entre os dados do Índice e aqueles informados nas referidas leis.
Procurou-se desenhar ainda o perfil dos industriais beneficiados e a tipologia das
indústrias que pretendiam implementar.
O estudo se inicia com o cotejamento das ementas dessas leis. Em seguida,
apresentam-se os quadros com os lotes concedidos ou vendidos sob o favorecimento de
cada uma das normas municipais, segundo a indicação do Índice.
Para discussão dos dados colhidos, quadro a quadro, foram acrescidas informações
extraídas dos Relatórios do Prefeito Flávio Fernandes dos Santos ao Conselho
Deliberativo de Belo Horizonte e da documentação deste Conselho do fundo do Arquivo
Público Mineiro (APM), nos anos aqui estudados. Acrescentaram-se, ainda, para
composição do perfil dos industriais favorecidos, verbetes colhidos do texto de Zuleide
Filgueiras (2016), e de outras fontes.
218

Leis do Prefeito Flávio Fernandes de incentivo à indústria citadas no


índice

O Quadro 1 abaixo traz a relação das cinco leis e respectivas ementas, da gestão
de Flávio Fernandes dos Santos, incidentes no Índice e referentes à cessão/venda de lotes
urbanos para industriais. Observa-se que apenas a Lei n. 288/1925 faz cessão dos lotes.
As demais autorizam a venda, independentemente de hasta pública. Em negrito, estão os
industriais beneficiados por mais de uma das leis estudadas.

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Quadro 1 – Leis do Prefeito Flávio Fernandes referentes a lotes para projetos industriais em Belo
Horizonte citadas no Índice de Lotes Urbanos

Nº Lei Data Detalhamento da Ementa


[...] Vender, independentemente de hasta pública e por preços previamente
ajustados a Enéa José Magnavacca, os lotes 14, 16, 18 e 22 do quarteirão 20 da
1 236 17/10/1922
2ª secção urbana, para ampliar a sua industria e montar altos fornos de
sederurgia.
Autorização para venda de terrenos, independentemente de hasta publica, a
diversos industriais: Hurtado Filho; José de Oliveira Monteiro; Oscar Breyer
2 261 05/10/1923 Agostinho Provezano; Renato Boschi; Pedro Follini; Domingos Gatti e a Jacomo
Romanizzio; João Felipe Mussel; Zeno Pereira e Filho; Sylvio Pirane; Aldacina
Barbosa de Souza/Alcina; Ismael Libanio: laboratório
Autorização da venda de terrenos, independentemente de hasta pública, a
diversos industriais: Homero de Aguiar;
3 275 07/04/1924 Antonio Murthé; Companhia Constructora de Cimento Armado; José Vartuli;
Basilio d’Avila; Euvaldo Lodi ou empresa que organizar; S.A. Lithographica e
Mecanica União Industrial; Carlos Villani.
Autorização da concessão gratuita a S. F. Cavazza (fabrica de tela metálica).
Autorização para venda independentemente de hasta púbica a Jose Mariano da
Silveira; Alexandrino Costa; Mario Pastore; J. Carlos Xavier; Luiz Minardi; Faria,
4 288 08/04/1925
Irmão e Comp.; Francisco Celeste; Josino Mendes; Agostinho Martini; Octaviano
Lapertoza e Salvador Impellizieri; Francisco Rocha; Socrates Renan de Faria Alvim
e Aristoteles Juvenal de Faria; Paulino & Comp.; João Ricaldoni Filho.
Autoriza a venda de terrenos, independentemente de hasta pública e por preços 219
ajustados, a diversos industriais. Domingos Gatti e Jacomo Romanizzio, para
montagem de uma fábrica de confecções de roupas para crianças;
Guimarães & Irmãos ou empresa que organizarem, para montagem de
5 302 30/03/1926 typographia, lithographia, estamparia em latas, etc.; Hermano Brandão, para
montagem de uma fábrica de biscoitos; Valladares Castro & Cia., para installação
de uma lavanderia modelo; Alipio Guimarães Goulart, para montagem da
"Polyndustria Horizontina", de beneficiamento de milho e outros cereaes; C.
Costa & Cia., para ampliar sua industria e annexar-lhe outras.
Legenda: Índice de Lotes Urbanos e legislação mencionada. Obs.: em negrito os nomes reincidentes.
Fonte: Elaborado pelas Autoras (2021)

Lei 236/1922 - Enea Jose Magnavacca/Eneas/ Magnavacca e Filhos/ H. Magnavarra

O Quadro 2 traz a relação dos lotes de Eneas Jose Magnavacca, de Magnavacca e


Filhos e H. Magnavarra, segundo o Índice de Lotes Urbanos. Em negrito, os lotes citados
na lei estudada.

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Quadro 2 - Relação de Lotes de Enea Jose Magnavacca, Magnavacca e Filhos e H. Magnavacca,


identificados no Índice de Lotes Urbanos.

Nº Beneficiado Data Lote e quarteirão Seção Lei


1 Enea Jose Magnavacca 28/11/1911 1 do quarteirão 26 VI NI
2 Enea Jose Magnavacca 05/03/1912 7 do quarteirão 20 II NI
3 Eneas Jose Magnavacca 28/11/1916 17 e 19 do quarteirão 20 (cessão) II NI
4 Magnavacca e Filhos 22/09/1917 13 do quarteirão 20 (herança) II NI
5 H. Magnavarra (?) 15/09/1922 6 do quarteirão 27 II NI
5 Enea Jose Magnavacca 29/12/1922 14, 16, 18 e 22 do quarteirão 20 II NI
6 Enea Jose Magnavacca 13/11/1923 5 do quarteirão 30 VIII NI
7 Magnavacca e Filhos 28/07/1924 4, 5, 6, 8, 10 e 12 do quarteirão 20 II NI
Legenda: Índice de Lotes Urbanos / NI = Não Informado no Índice / Negrito = Lotes citados na lei
estudada
Fonte: Elaborado pelas Autoras (2021)

Entende-se que a primeira lei estudada, n. 236/1922, apesar de não citada no


Índice, foi efetivada, pois Enea José comprou os lotes 14, 16, 18 e 22 do quarteirão 20 da
II seção urbana, “para ampliar sua indústria e montar altos fornos de siderurgia”,
conforme preconizava a norma e confirmado pelo Índice. Àquela data, o industrial já
possuía lotes no mesmo quarteirão. Em 1924, adquiriria mais cinco lotes na mesma 220

quadra.
Na pesquisa, constatou-se ainda que, além da lei 262/1922, outras quatro normas
municipais foram elaboradas para favorecer especificamente a indústria Magnavacca e
Filhos, entre 1916 e 1924, conforme Quadro 3.

Quadro 3 – Leis Municipais referentes à indústria de Eneas Jose Magnavacca


Lei Data Objeto
n. 120 18/10/1916 Cessão a Eneas Jose Magnavacca dos lotes 17 e 19 do quarteirão 20 da II seção
urbana
n. 207 05/10/1921 Aforamento dos lotes 20 e 21 do 27º quarteirão da II seção urbana para ampliação
das oficinas de fundição de metaes e fábrica de artefatos de ferro de sua
propriedade
n. 246 11/04/1923 Isenção de impostos e taxas por cinco anos à firma Magnavacca e Filhos
n. 265 20/03/1924 Venda por preço previamente ajustado, independente de hasta pública de um
terreno a Magnavacca e Filhos para desenvolvimento de sua indústria siderúrgica
Legenda: Legislação e Relatórios de Prefeitos
Fonte: Elaborado pelas Autoras (2021)

Na petição ao Conselho Deliberativo de Belo Horizonte, sob a guarda do Arquivo


Público Mineiro (APM), os Magnavacca argumentavam, que:

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Neste momento, que o poder executivo da República está vivamente


empenhado no desenvolvimento da siderurgia nacional, que será o fator
decisivo de nossa independência econômica, é justo que o Conselho Municipal
conceda o que se pede. (Caixa 12 – CDBH. APM)

Parecer do Conselho Deliberativo de Belo Horizonte, de setembro de 1923, em


resposta à petição, foi favorável à concessão dos lotes 4, 5, 6, 8, 10 e 12 do quarteirão 20
da 2ª seção a Magnavacca & Filhos, “para desenvolvimento de suas oficinas siderúrgicas
à rua Rio Grande do Sul”.
A Siderúrgica Magnavacca3 é citada no Almanak Laemmert, de 1931, em Belo
Horizonte, à rua Rio Grande do Sul, n. 178. Na proposta de dicionário dos italianos
homenageados com nomes de rua na Capital, lê-se que a fundição dos Magnavacca se
localizava, entretanto, na rua Rio de Janeiro, na década de 1910:

Estudo de Lígia Pereira sobre a importância da imigração italiana para o


desenvolvimento de Minas Gerais (s/data) destaca a atuação de Enea Magnavacca. Em
1920, a sociedade compreendia ainda os filhos Hamleto e Arcangelo.

“Fundição Moderna” - Impossível falar em atividade industrial em Belo 221


Horizonte no início do século XX sem mencionar a família Magnavacca. Enéa
José Magnavacca chegou ao Brasil nos primeiros anos do século XX em busca
de oportunidades e figura entre os pioneiros que abriram caminho para os
industriais que vieram depois. Desembarcou no Rio de Janeiro e depois de
passar por Juiz de Fora, São João Del Rei e Sete Lagoas se instalou em Belo
Horizonte, onde fundou, em 1908, a Fundição Moderna. A indústria tinha um
alto-forno, fazendo ferro gusa e fundição de peças, além da indústria mecânica.
Fazia moendas de cana, britadores, arados, vagonetas, inclusive para a rede
ferroviária e vagonetas para mineração. A parte de serralheria também foi
muito importante. Nos anos 1920, Enéa José se associou aos filhos, Hamleto e
Arcangelo 4 e o empreendimento passou a se chamar Fundição Moderna -
Magnavacca & Filhos. (PEREIRA, s/d/ p. 8) (grifos nossos)

3 MAGNAVACCA, Enea Jose. Enea Magnavacca era ferreiro, em Belo Horizonte. Na década de 1910, sua oficina de
fundição localizava-se na rua Rio de Janeiro. (FILGUEIRAS, 2016, p. 516)
4 O Dicionário proposto por Filgueiras traz ainda os verbetes de Victorio Magnavacca e Hameletto Magnavacca. Não

há menção a Arcangelo.

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Lei n. 261/1923

Dos 12 industriais – individuais ou em duplas – citados na lei n. 261/1923, o Índice


confirma a concessão de 11 lotes para oito deles, conforme Quadro 4. Três nomes citados
na lei não constam do Índice. Em negrito, os lotes com referência à lei estudada.

Quadro 4 – Industriais citados na Lei n. 261/1923 e identificados no Índice de Lotes Urbanos


Nº Beneficiado Data Lote e quarteirão Seção Lei
1 03/04/1922 18 do quarteirão 35 VIII NI
A. Hurtado Filho
(cessão)
2 José de Oliveira 25/10/1923 6 do quarteirão 11 II 137
Monteiro e Guilherme 09/11/1925 5 do quarteirão 11 II 310
Pinto da Fonseca
3 Oscar Breyer Não citado no Índice

4 10/10/1928 12 do quarteirão 11 II NI
Agostinho Provenzano
27/11/1929 10 do quarteirão 11 II 310
5 João Felipe Mussel Não citado no Índice
6 Zeno Pereira e Filho Não citado no Índice
7 22/09/1923 6 do quarteirão 19 III 137
12/11/1923 8 do quarteirão 19 III 261 e
222
137
Ismael Libanio 03/08/1927 14 e 16 do quarteirão 19 IX NI
13/11/1925 1 do quarteirão 22 VI 137
13/11/1925 3 do quarteirão 22 VI 137
03/09/1926 2 do quarteirão 22 VI 137
8 14/11/1923 4 do quarteirão 27 II 137
Renato Boschi
14/11/1923 5 do quarteirão 27 II 137
9 Pedro Folini 20/11/1923 6 do quarteirão 7A I NI
10 Domingos Gatti e 05/12/1923 NI do quarteirão 21 II NI
Jacommo Romanizzio
11 Sylvio Pirani 24/03/1925 7 do quarteirão 13 II NI
12 Aldacina Barbosa de 12/11/1923 6 do quarteirão 13 II NI
Souza / Alcina
Legenda: Índice de Lotes Urbanos / NI = Não Informado no Índice / Negrito = Lote com referência à lei
estudada
Fonte: Elaborado pelas Autoras (2021)

Perfil dos industriais citados na Lei n. 261/1923

1. Hurtado Filho: o lote nº 5, do quarteirão nº 11, da 2ª secção urbana para fábrica de


papelão, segundo a lei. A incidência identificada no Índice é de 1922, portanto, anterior
à data da lei. O Almanak Laemmert traz propaganda da fábrica de calçados finos de
Hurtado Filho, em 1924, à Avenida Afonso Pena, 363.

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2. José de Oliveira Monteiro: os lotes nº 6 e 8 do quarteirão nº 11, da 2ª secção urbana,


segundo a lei. É citado no Índice, mas associado ao nome de Guilherme Pinto da Fonseca.
Há certa coincidência entre os dois lotes citados na lei: lotes 6 e 8 do quarteirão 11 da 2ª
seção urbana com aqueles mencionados no Índice: 6 e 5 do mesmo quarteirão. A lei
informada no Índice não coincide, contudo, com a estudada.
3. Oscar Breyer: os lotes nº 4 e 5 do quarteirão nº 7A da primeira secção urbana, segundo
a lei. Não é citado no Índice.
4. Agostinho Provezano: os lotes nº 23 e 24, do quarteirão nº 12, da segunda secção
urbana, segundo a lei. Há duas incidências para Agostinho Provezano no Índice, em dois
lotes vizinhos do quarteirão 11 da 2ª seção, em 1928 e 1929. Supõe-se ter havido alguma
permuta. No Dicionário de Italianos, proposto por Filgueiras, lê-se o seguinte verbete:

PROVENZANO, Agostinho (Logonbardi / Itália, 11/01/1877 – Belo


Horizonte/MG, 11/05/1957) [...] Agostinho Provenzano se dedicava,
em Belo Horizonte, à fabricação de móveis, sendo proprietário da
Fábrica de Móveis Renascença. Em 1916, era dono de uma marcenaria
e carpintaria, localizada na rua da Bahia, 1030. (FILGUEIRAS, 2016,
p. 708)

4. José Felipe Mussel: os lotes nº 1 e 2, quarteirão nº 9, da segunda secção urbana, segundo


223
a lei. Não é citado no Índice.
5. Zeno Pereira e Filho: o lote nº 1, do quarteirão nº 13, da segunda secção urbana,
segundo a lei. Não é citado no Índice.
6. Ismael Libanio: dois lotes sem especificação da localização para laboratório químico e
farmacêutico, segundo a lei. Dos seis lotes incidentes no Índice para Ismael Libanio,
apenas um deles refere-se à lei estudada, mas conjugada à lei n. 310/1926. As incidências
vão de 1923 a 1927. O memorialista Pedro Nava na descrição da rua da Bahia, no livro
Beira Mar, relembra da: Farmácia Americana do plácido e amável Seu Ismael Libanio.
Era a mais importante de Belo Horizonte. Fornecia para o Estado e era representante
exclusivíssima da Casa Lutz Ferrando & Cia. (NAVA, 2013, p. 13) (grifo nosso)

7. Renato Boschi: os lotes nº 4 e 5, do quarteirão nº 27, da segunda secção urbana, segundo


a lei. As ocorrências do Índice coincidem com as da lei estudada.
8. Pedro Follini: o lote nº 6 do quarteirão nº 7A da primeira secção urbana, segundo a lei.
A ocorrência do Índice coincide com a da lei estudada.
9. Domingos Gatti e Jacomo Romanizio: dois lotes do quarteirão nº 2, da segunda secção
urbana, segundo a lei. Citados com os nomes conjugados uma vez no Índice, em

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5/12/1925, referente a apenas um lote da 2ª seção urbana. No Dicionário proposto por


Filgueiras, há os seguintes verbetes:

GATTI, Domingos (Piemonte/Itália, 27/04/1875 – Belo Horizonte/MG,


01/01/1962) Filho do italiano Francesco Gatti e Martha Becaria Gatti,
Domingos veio para o Brasil com 23 [...] anos de idade, com os pais e os irmãos
[...]. Em Belo Horizonte, fez história na região conhecida hoje como Barreiro
de Baixo, pois, em 26 de abril de 1928, adquiriu do Sr. Sinfrônio Brochado
parte de suas terras [...] Faleceu aos 87 (oitenta e sete) anos de idade, [...], em
02/01/1962. (FILGUEIRAS, 2016, p. 427)
ROMANIZIO, Jacomo (Itália, s.d. – Belo Horizonte, 13/06/1952). Italiano, foi
casado com a também italiana Nina Bernis. [...] (FILGUEIRAS, 2016, p. 741)

Os dois serão objeto de outra lei do mesmo prefeito, referente à concessão de lotes
urbanos, conforme detalhado mais adiante.
10. Sylvio Pirani: o lote nº 7, do quarteirão nº 13, da segunda secção urbana, segundo a
lei. Citado uma vez no Índice, no mesmo lote mencionado na lei. O Almanak Laemmert
informa a marcenaria de Sylvio Pirani, em 1924 a 1926 e 1930, à rua Tupinambás, n. 438,
em Belo Horizonte.
11. Aldacina Barbosa de Souza/Alcina: o lote nº 6, do quarteirão nº 13, da segunda secção
urbana, segundo a lei. Há coincidência entre o informado no Índice e a lei estudada. O
Almanak Laemmert informa, em 1930, fábrica de flores na rua Caetés, n 601, em nome 224

de Alcina Barbosa de Souza.

Lei n. 275/1924

Dos oito industriais citados na lei n 275/1924, o Índice confirma apenas a venda para três
deles e não faz menção a outros três, conforme Quadro 5. Ao todo foram destinados seis
lotes urbanos por força desta lei. Em razão das diversas grafias possíveis identificadas no
Índice para o nome do industrial, adotou-se inseri-las no quadro. Em negrito, os lotes com
referência à lei estudada.

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Quadro 5 – Industriais citados na Lei n. 275/1924 e identificados no Índice de Lotes Urbanos


Nº Beneficiado Data Lote e quarteirão Seção Lei
1 Homero de Aguiar Não citado no Índice

2 Companhia Constructora de Não citado no Índice


Cimento Armado
3 S.A. Lithographica e Mecanica Não citado no Índice
União Industrial
11/11/1912 5 do quarteirão 8 I NI
04/02/1911 6 do quarteirão 27 I NI
01/08/1919 4 do quarteirão 29 II NI
05/11/1912 1 do quarteirão 20 II NI
04/11/1903 6 do quarteirão 29 II NI
08/06/1926 21 do quarteirão 22 VIII 137
20/09/1923 5 do quarteirão 27 I NI
4 Carlos Villani/Carlo Villani/ Carlo 07/04/1913 7 do quarteirão 20 II NI
Velani/ Carlo Vilan 23/03/1920 11 do quarteirão 21 V (carta de NI
arrematação)
23/04/1921 6 do quarteirão 8 I NI
18/01/1897 8 do quarteirão 28 I NI
22/09/1920 1 do quarteirão 19 II NI
15/05/1924 6 do quarteirão 19 II NI
22/09/1920 5 do quarteirão 19 III NI
22/09/1923 4 do quarteirão 3 III NI 225
09/02/1925 1, 2, 3 e 7 do II 275
quarteirão 4
29/03/1927 6 do quarteirão 23 III 137
29/03/1927 18 a 24 do quarteirão IX 225 e 310
Antonio Mourthé/ Murthé/ 21
5 Antonio Murtha 27/11/1925 5 do quarteirão 26 X 310
06/05/1926 6 do quarteirão 26 X 310
29/09/1923 7 e 8 do quarteirão 26 III (permuta) 137
27/04/1922 23 do quarteirão 26 X NI
6 29/09/1925 1 do quarteirão 9 II 243 e 288
José Vartulli/ José Vartuli
30/09/1924 2 do quarteirão 9 II 275
27/06/1924 1 e 5 do quarteirão 10 II NI
7 Basílico de Avila/ 06/10/1910 11 do quarteirão 20 II NI
Bazílio Dávila/ Basílio D’Ávila 21/02/1931 19 do quarteirão 15 VII 310
8 30/09/1924 2 do quarteirão 6 II 275 e 137
Euvaldo Lodi
02/07/1925 1 e 2 do quarteirão 9 III 225 e 137
Legenda: Índice de Lotes Urbanos / NI = Não informado no Índice / Negrito = Lote com referência à lei
estudada
Fonte: Elaborado pelas Autoras (2021)

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Perfil dos industriais citados na Lei

1. Homero de Aguiar: não identificado no Índice. Parecer do Conselho Deliberativo de


29/03/1924 aprova o Projeto de lei n. 13 que concedia lotes a Homero de Aguiar para
“fabricação de meias”. (Caixa 12. CDBH. APM)
2. Companhia Constructora de Cimento Armado: não identificada no Índice. Mas
Requerimento de 10 de abril de 1924 da Companhia Constructora de Cimento Armado,
situada à rua Goyaz n. 64, pede a doação de lotes “considerando que, dado o incremento
que vem tendo seus trabalhos e suas operações na cidade, tem necessidade de abreviar
organização de depósito e oficinas.” (Caixa 12. CDBH. APM)
3. S.A. Lithographica e Mecanica União Industrial: não identificada no Índice. Mas
Requerimento apresentado pela empresa ao Conselho Deliberativo em 29/03/1924
informa que era sediada em Juiz de Fora. Seu presidente era Augusto de Andrade Alves.
Requisitava cinco lotes urbanos para instalação da empresa. (Caixa 12. CDBH. APM)
4. Carlos Villani/Carlo Villani/ Carlo Velani/ Carlo Vilani: o Índice cita 15 incidências.
Ele figura na relação de fábricas de massas alimentícias, à avenida Afonso Pena, n. 303, 226

conforme Almanak Laemmert, de 1911 até 1930, com alguns intervalos. O Projeto 8 do
Conselho Deliberativo, datado de 26/03/1924, autorizava a venda ao Sr. Carlos Villani,
independente de hasta pública e para fins industriais, o lote 6 do Quarteirão 19, da 2ª
seção urbana. (Caixa 12. CDBH. APM). O lote mencionado consta no Índice, apesar de
nele não haver referência à lei estudada.
O industrial também é citado por Filgueiras (2016): VILLANI, Carlo (Itália,s.d.) Carlo
Villani possuía uma fábrica de macarrão na Estação, que foi vendida para o também italiano
Agostino Martini. (FILGUEIRAS, 2016, p. 873).
5. Antonio Mourthé/ Murthé/ Antonio Murtha: o Índice faz sete referências para Antonio
Mourthé, mas apenas uma menciona a lei estudada. No Almanak Laemmert, ele figura
como engenheiro do estado de Minas Gerais, de 1914 a 1922, e como professor da Escola
de Engenharia de 1924 a 1926. Em requerimento de 31/03/1924 ao Conselho
Deliberativo, “Antonio Mourthé, engenheiro construtor, com escritório à avenida
Paraopeba, n. 180” solicita “o terreno necessário para nelle ser feita a construcção
definitiva de suas oficinas já existentes e augmentado o número de mecanismos da
mesma”. (Caixa 12. CDBH. APM)

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6. José Vartulli/ Vertulli: o Índice faz referência a dois lotes para José Vartulli, sendo que
um atinente à lei estudada. No requerimento apresentado ao Conselho Deliberativo em
22/03/1924, Jose Vartulli (ou Vertulli) identifica-se como “proprietário de fábrica de
calçados nesta Capital”. (Caixa 12. CDBH. APM)
7. Basílico de Avila/ Bazílio Dávila/ Basílio D’Ávila.: o Índice faz referência a três lotes,
mas nenhum parece tratar-se da lei estudada. Em requerimento apresentado ao Conselho
Deliberativo, em 25/03/1924, Basílio d’Ávila informa que “desejando estabelecer nesta
Capital uma grande manufatura de fumo, cigarros e productos correlatos” requer lotes
para edificação. (Caixa 12. CDBH. APM)
8. Euvaldo Lodi: O Índice faz referência a dois lotes para Lodi, mas apenas um se reporta
explicitamente à lei pesquisada. Requerimento de 10/04/1924 do engenheiro Euvaldo
Lodi solicita cinco lotes ao Conselho Deliberativo “para montar um estabelecimento
frigorífico, para conservação de carnes verdes, fructas, peixes, e outros animais de caça”,
assim como, “um entreposto de pasteurização de leite”, na Capital. (Caixa 12. CDBH.
APM). O Prefeito Flávio Fernandes, porém, considera o número de lotes um exagero.
No Dicionário proposto por Filgueiras, lê-se:
227
LODI, Euvaldo (Ouro Preto/MG, 09/03/1896 – São Paulo/SP, 19/01/1956).
Político, engenheiro e industrial. Filho dos imigrantes italianos Luis Lodi e de
Anunciata Mora Lodi. [...] diplomou-se como Engenheiro Civil e de Minas
pela Escola de Minas de Ouro Preto, em 1920. Depois de formado, fixou-se no
Rio de Janeiro, Capital do Brasil, onde trabalhou em empresas de construção
de estradas e de exploração de jazidas de minério de ferro e de minas de carvão,
e instalou fornos metalúrgicos em Minas Gerais. Em 1923, fez parte da
comissão que estabeleceu a política nacional no setor siderúrgico.
(FILGUEIRAS, 2016, p. 499).

Lei n. 288/1925

Dos 15 industriais citados na Lei n. 288/1925 – individualmente ou em dupla –, o


Índice confirma a venda “por preço previamente ajustado” para quatro deles,
comprovadamente pela lei estudada, conforme Quadro 6. Sete (50%) dos industriais
citados na lei não constam do Índice. Ao todo foram destinados 13 lotes urbanos para fins
industriais. Desses 13, seis do mesmo quarteirão e da mesma data eram de J. Carlos
Xavier.

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Quadro 6 – Industriais citados na Lei n. 288/1925 segundo o Índice de Lotes Urbanos (1895-1929)
Nº Beneficiado Data Lote e quarteirão Seção Lei
S. F. Cavazza (fabrica de tela Não citado no Índice
1
metálica)
2 Jose Mariano da Silveira Não citado no Índice
3 Alexandrino Costa 22/06/1927 24B do quarteirão 2 XIV NI
4 Mario Pastore 18/08/1925 4 e 5 do quarteirão 9 III 288 e 310
30/03/1926 4 do quarteirão 19 IX 288
30/03/1926 5 do quarteirão 19 IX 288
30/03/1926 6 do quarteirão 19 IX 288
5 J. Carlos Xavier
30/03/1926 8 do quarteirão 19 IX 288
30/03/1926 10 do quarteirão 19 IX 288
30/03/1926 12 do quarteirão 19 IX 288
22/05/1925 6 e 7 do quarteirão 31 IX 288 e 310
6 Luiz Minardi 05/02/1927 6 do quarteirão 41 VIII 33
(cessão)
7 Faria, Irmão e Comp. Não citado no Índice
8 Francisco Celeste Não citado no Índice
9 Josino Mendes Não citado no Índice
31/10/1903 8 do quarteirão 28 I NI
16/01/1904 1 do quarteirão 30 I NI
Agostinho Martini/ Agostino 17/02/1904 2 do quarteirão 30 I NI
10
17/02/1904 3 do quarteirão 30 I NI
18/01/1904 10 do quarteirão 28 I NI
03/01/1925 NI do quarteirão 27 IX NI
Octaviano Lapertoza e Não citado no Índice
11 228
Salvador Impellizieri
12 Francisco Rocha Não citado no Índice
Socrates Renan de Faria 23/11/1925 1, 6 e 7 do VIII Lei 288
13 Alvim e Aristoteles Juvenal quarteirão 20
de Faria
14 Paulino e Comp. Não citado no Índice
11/12/1928 13 do VIII (permuta) NI
João Ricaldoni Filho. quarteirão 35
15
João Ricaldoni Filho e 15/04/1924 15 do VIII Lei 137
Domingos Ricaldoni quarteirão 35

Fonte: Índice de Lotes Urbanos / NI = Não informado no Índice / Negrito = Lotes com referência à lei
estudada
Fonte: Elaborado pelas Autoras (2021)

Perfil dos industriais citados na Lei n.288/1925

1. S. F. Cavazza: não há incidência no Índice. Trata-se da única “doação” de terreno,


segundo o texto da lei. No Dicionário, proposto por Filgueiras, há o seguinte verbete:

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CAVAZZA, Salvatore (Emilia-Romagna/Itália, 16/05/1870 – Belo


Horizonte/MG, 05/09/1937). Em 1912, veio para o Brasil, tendo desembarcado
no porto de Santos. [...] No ano seguinte, transferiram-se para Belo Horizonte.
Em 1913, estabeleceu-se com a firma individual na Avenida Francisco Sales,
957, Bairro Santa Efigênia. Tratava-se de pequena indústria de telas de arame
e peneiras industriais, que ali se encontra até hoje em pleno funcionamento.
[...] (FILGUEIRAS, 2016, p. 271) (grifos nossos)

2. José Mariano da Silveira: não identificado no Índice.


3. Alexandrino Costa: identificado com um único lote no Índice, contudo, sem referência
à lei estudada.
4. Mario Pastore: há um único lote no Índice. Este lote refere-se à lei estudada. Mario
Pastore é citado como dono de fábrica de pianos no Almanak Laemmert de 1931. A
fábrica era situada na rua Tupinambás, n. 1065. No Dicionário proposto no Filgueiras, lê-
se: PASTORE, Mario (Itália, 1885 – Belo Horizonte/MG, 30/06/1961) Filho do italiano
Frederico Pastore, viúvo, comerciante. (FILGUEIRAS, 2016, p. 650)
5. J. Carlos Xavier: seis lotes foram “vendidos” a José Carlos Xavier, no âmbito da lei n.
288/1925, apesar da norma falar em cessão gratuita. Todos no quarteirão 19 de IX seção
urbana e na mesma data de 30/06/1926. A peculiaridade é que todos os seis lotes serão
vendidos para Theotonio Caldeira Tavares, em 30/01/1929. Esta transação sugere a pouca 229

efetividade da implementação da lei para o industrial que a requisitou. Destaca-se que


Theotonio Caldeira Tavares figura com 19 incidências no índice, sendo quatro
consorciadas a João Caldeira Tavares, José Ponir/Puri e José Bazzini/Bazzoni.
6. Luiz Minardi, Irmão e Co.: Há no Índice dois lotes para Luiz Minardi, sendo um deles
referente à lei estudada. No Dicionário proposto por Filgueiras, lê-se: MINARDI, Luiz
(Itália, 1882 – Belo Horizonte, 1967) O italiano Luiz Minardi era dono de uma olaria e
comercializava artefatos de cimento e gesso, na avenida Bias Fortes, 1035. (FILGUEIRAS, 2016,
p. 575)

7. Faria, Irmão e Comp.: não identificado no Índice.


8. Francisco Celeste: não identificado no Índice.
9. Josino Mendes: não identificado no Índice.
10. Agostinho Martini/ Agostino: há cinco lotes identificados no Índice, sem, contudo,
referenciarem-se à lei estudada. Segundo Filgueiras (2016):

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MARTINI, Agostino (San Giovanni in Perciteto/Bolonha/Itália, 1866 – Belo


Horizonte/MG, 1948). Construtor e industrial [...]. Imigrou para o Brasil em
1894, residindo, primeiramente, em São Paulo, onde trabalhou na Câmara
Municipal. Posteriormente, transferiu-se para Minas Gerais, fixando residência
em Ouro Preto/MG, e mudou-se, pouco tempo depois, para Belo Horizonte.
Como integrante da Comissão Construtora da Nova Capital, participou dos
serviços de terraplenagem da cidade em construção e da abertura de ruas e
avenidas [...]. Foi responsável por diversas construções em Belo Horizonte,
citando-se a do Reservatório de Água da Serra e a das primeiras redes de água
e esgoto da Capital. [...] Transferiu-se, em 1906, para Manaus [...]. De volta a
Belo Horizonte, a partir de 1914, além de suas atividades ligadas à construção,
passou a se dedicar ao ramo industrial, montando a Padaria Suíça, na Rua
Tiradentes, 175, e, em seguida, a Fábrica de Massa Alimentícias Martini. [...]
Agostino Martini comprou a fábrica de macarrão, que ficava nas proximidades
da Estação, e que fora do italiano Carlo Vilani [também citado neste estudo].
Esses estabelecimentos compunham-se de diversos armazéns de mantimentos
e molhados por atacado, de depósito de vinhos importados, fábrica de massas
e padaria. Em 1947, pouco antes de seu falecimento, fundou a Padaria e
Confeitaria Martini. (FILGUEIRAS, 2016, p. 542)

11. Octaviano Lapertoza e Salvador Impellizieri: Salvador Impellizieri é citado no Índice


seis vezes, mas sem referência à lei aqui estudada. Octaviano Lampertoza é mencionado
oito vezes na mesma fonte sendo duas, associado à sua mulher. Há incidência de Salvador
Impellizieri e outros, associado a Olynto Orcini. Há duas incidências para Salvador 230
Impellizieri associado a Octaviano Lapertoza e Vitor Mancini. No Dicionário, proposto
por Filgueiras, lê-se:

LAPERTOSA, Octaviano (Roma/Itália, 1889 – Belo Horizonte/MG,


1944). Arquiteto e construtor. [...]. Foi responsável por alguns projetos
de construção, de acréscimo e de reforma em edificações de Belo
Horizonte. Sabe-se que em 1919 teve matrícula, como construtor,
registrada na Diretoria de Obras Públicas da Prefeitura de Belo
Horizonte. [...] (FILGUEIRAS, 2016, p.402)

IMPELLIZIERI, Salvatore Gagliani (Itália, ? – ?,?) Marceneiro. Era


proprietário de uma pequena fábrica de móveis, localizada na rua
Goitacases que, mais tarde, foi transferida para o Barro Preto, rua Rio
Grande do Sul, 80 e, depois, para o Carlos Prates, dando origem à
Impellizieri Móveis. [...]. (FILGUEIRAS, 2016, p. 469)

12. Francisco Rocha: não incidência no Índice. Não foi identificada outra informação
sobre Francisco Rocha nas fontes pesquisadas.
13. Socrates Renan de Faria Alvim e Aristoteles Juvenal de Faria: há três incidências para
Aristoteles Juvenal de Faria Alvim, uma em 1927 e duas em 1928. Há duas incidências
individuais para Socrates Renan de Faria Alvim, ambas em 11/03/1923. Há uma
incidência para os dois irmãos, em 23/11/1925, referente à lei n. 288 – o que sugere a

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efetividade da norma. O Dicionário Bibliográfico de Minas Gerais: 300 Anos de História


(ICAM, 2013) traz o seguinte verbete.

Aristóteles Juvenal de Faria Alvim (Rio de Janeiro 1891- Belo


Horizonte1965): Engenheiro civil, formado na primeira turma da Escola de
Engenharia da UMG, 1916. Prestou serviços em Belo Horizonte, onde
construiu diversos edifícios e por meio de suas firmas, organizou e planificou
bairros e vilas. Construiu pontes no interior de Minas e obras de água e esgoto
em diversas localidades mineiras [...]. Em 1922, fundou a firma
Empreendimentos Silvério Silva e Alvim, em sociedade com seu sogro e um
irmão, ocupando até a sua morte o cargo de diretor-presidente, bem como a SS
Companhia, Empreendimentos e Participações. [...]. (ICAM, 2013)

Seu sogro, Silvério Silva, conjugado ao nome de sua empresa, Silvério Silva & Cia. e
Silvério Silva e Alvim, figura como o nono maior adquirente de lotes urbanos no Índice
do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. (COSTA, 2021)
14. Paulino e Comp.: não identificado no Índice.
15. João Riccaldoni Filho/ Ricaldoni: há duas referências a este industrial no Índice. Uma
individual e outra associado a Domingos Riccaldoni. Nenhuma, entretanto, concernente
à lei estudada. No Dicionário, proposto por Filgueiras, há os seguintes verbetes sobre os
Ricaldoni, nenhuma, entretanto, referente à atividade industrial:
231

RICALDONI FILHO, João (Itália, 1893 – Belo Horizonte/MG, 1949).


Construtor e mestre de obras. Teve matrícula registrada em 1923, na Diretoria
de Obras Públicas da Prefeitura de Belo Horizonte. João Ricaldoni Filho foi
um dos muitos imigrantes italianos que aqui chegaram na virada do século. Em
1885, com apenas 6 anos de idade, veio com os pais, que constituíam mão-de-
obra pelo Governo Mineiro. [...] Aprendeu o ofício de construtor e teve a
segunda carteira de construtor licenciado em Belo Horizonte. Sob sua direção,
foram construídos vários prédios públicos em Belo Horizonte [...].
(FILGUEIRAS, 2016, p. 725)

RICCALDONI, Domingos (Caieira/SP, 27/05/1896 – Belo Horizonte/MG,


03/11/1969) Filho do imigrante italiano João Ricaldoni e de Madalena Vilas
Boas. Seu pai veio para o Brasil e se instalou no Estado de São Paulo,
inicialmente no município de Caieira e, depois, por volta de 1898, em Miguel
Burnier, Minas Gerais. Domingos, com apenas 8 (oito) anos de idade já
trabalhava na Usina Wigg, no KM 508 da Central do Brasil. Em 1906, veio
para a nova capital de Minas Gerais, onde exerceu a atividade de construtor
civil. A partir de 1920, executou várias obras públicas em Belo Horizonte,
como grupos escolares e praças de esportes [...] (Idem, Ibidem)

Requerimento de Domingos Ricaldoni ao Conselho Deliberativo de Belo


Horizonte, em 7 de outubro de 1926, solicitava que lhe fosse permitido alterar o uso do
lote, de industrial para residencial. Esclarecia que o lote fora obtido pelo irmão João
Ricaldonni Filho para fins industriais, “mas os negócios lhe atrapalharam”. Por isso, ele,

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Domingos, comprara o mesmo lote da prefeitura”, mas queria destiná-lo para edificação
de residência, já que não dispunha de uma. (Caixa 13. CDBH. APM)

Lei n. 302/1926

Dos seis industriais – individuais ou coletivos – citados na Lei n. 302/1926, o


Índice confirma a venda para três deles, conforme Quadro 7. Apenas dois deles,
entretanto, apresentam referência específica à lei n. 302/1926, conforme destacado em
negrito. Ao todo foram destinados nove lotes urbanos para fins industriais, sendo seis
deles para Hermano Brandão. Duas indústrias citadas na lei não figuram no Índice.

Quadro 7 – Industriais citados na Lei n. 302/1926 segundo o Índice de Lotes Urbanos (1895-1929)

Nº Beneficiado Data Lote e quarteirão Seção Lei


Mencionada
1 Domingos Gatti e Jacomo O5/12/1923 NI do quarteirão 21 II NI
Romanizzio
2 Guimarães & Irmãos Não citado no Índice
Hermano Brandão 17/12/1926 13, 17 e 19 do IX Lei 302
quarteirão 21
3 17/12/1926 15, 20 e 21 do IX Lei 302 232
quarteirão 21
4 Valladares Castro & Cia. Não citado no Índice
5 Alipio Guimarães Goulart 05/05/1926 4 do quarteirão 9 II NI
12/08/1926 1 do quarteirão 15 III Lei n. 243 e Lei
n. 137
6 C. Costa & Cia 20/11/1926 7 do quarteirão 11 IX Lei 302
20/11/1926 8 do quarteirão 11 IX Lei 302
20/11/1926 10 do quarteirão 11 IX Lei 302
Legenda: Índice de Lotes Urbanos / NI = Não informado no Índice / Negrito = Lote com referência à lei
estudada
Fonte: Elaborado pelas Autoras (2021)

Perfil dos industriais citados na lei n. 206/1926

1. Domingos Gatti e Jacomo Romanizzio: para ambos os nomes associados só há, no


Índice, a venda de 1923, já citada em outro item deste texto. Há ainda dois lotes datados
de 1926, mas referentes apenas a Jacomo Romanizzio. Para Domingos Gatti isoladamente
há dois registros: um 21/11/1925, dos lotes 8 e 10 do quarteirão 19 da seção VIII e outro
de 05/08/1926 do 12 do mesmo quarteirão. O perfil dos dois industriais já foi apresentado
em outro item deste texto. A lei determinava a doação de lote “para montagem de uma

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fabrica de confecções de roupas para crianças”. A mesma destinação está confirmada no


parecer do Conselho Deliberativo de Belo Horizonte, de 19/03/1926, do fundo do APM.
2. Guimarães & Irmãos: não há referência no Índice para esta empresa. A lei determinava
a venda de lote “ou empresa que organizarem, para montagem de typographia,
lithographia, estamparia em latas, etc.”.
3. Hermano Brandão: no Índice há duas incidências, no total de seis lotes, todos referentes
à lei estudada e à mesma data, 12/07/1926. A lei determinava a venda de lote para
Hermano Brandão “para montagem de uma fabrica de biscoitos”.
4. Valladares Castro & Goulart: não incidência desta empresa no Índice. A lei
determinava a venda de lote “para installação de uma lavanderia modelo”.
5. Alipio Guimarães Goulart: há duas incidências no Índice, sem, contudo, referência à
lei estudada. A lei determina a venda de lote “para montagem da "Polyndustria
Horizontina", de beneficiamento de milho e outros cereais”.
6. C. Costa & Cia: há três incidências para esta empresa no Índice, referente a três lotes,
todos no âmbito da lei aqui estudada e com a mesma data, 20/11/1926. A lei determinava
a venda do lote a esta empresa “para ampliar sua industria e annexar-lhe outras”. A
peculiaridade desta empresa é que todos os três lotes foram vendidos para Heralclydes da 233

Silva, em 20/02/1929. Este fato sugere que a indústria não teria sido implementada, pela
empresa beneficiada pela lei aqui estudada.

Considerações Finais

A tentativa de identificar a efetividade das leis de concessão de lotes para a


indústria no perímetro urbano de Belo Horizonte, emitidas pelo prefeito Flávio Fernandes
dos Santos (1922-1926), a partir da análise do Índice de Lotes Urbanos, apresentou
resultados interessantes.
Foi possível concluir que houve relativa efetividade das cinco leis municipais para
favorecer a instalação de indústrias por venda independentemente de hasta pública ou
cessão de lotes urbanos naquele período.
As cinco leis citadas no Índice propunham beneficiar 42 industriais – contados
individualmente ou em duplas ou ainda como sociedade. Desses 42 industriais, 19 ou
45% deles foram comprovadamente beneficiados pelas leis estudadas, com um ou vários
lotes, segundo a verificação permitida pelo cotejamento do Índice.

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Constatou-se ainda que alguns dos industriais beneficiados já haviam sido


obsequiados por leis de gestões anteriores. Muitos já eram proprietários de lotes urbanos
antes do benefício da lei estudada e/ou mesmo depois. O caso mais destacado nesta
tipologia foi o de Eneas Jose Magnavacca ou de Magnavacca e Filhos ou também grafado
H. Magnavarra, a quem se destinaram 17 lotes urbanos. Para ele e sua empresa houve
cinco leis específicas entre 1916 e 1925.
Constatou-se que 15 (35%) dos beneficiários das leis não figuram, entretanto, no
Índice, o que sugere a não efetivação do privilégio concedido pelo Poder Público. A
documentação do Conselho Deliberativo de Belo Horizonte, do fundo do APM, indica
ainda a possibilidade de, mesmo dispondo do lote, a indústria não ter progredido.
Observou-se, ainda, nessas fontes, um pedido comum a várias solicitações de que os lotes
fossem próximos à estação da Estrada de Ferro Central do Brasil, para facilitar o
escoamento da produção.
Na relação dos industriais, informados na legislação estudada, há vários
sobrenomes italianos, mas foi possível comprovar esta ascendência para apenas 15 (35%)
deles. Corrobora-se, portanto, a hipótese da contribuição dos italianos e seus descendentes
para o processo de industrialização no perímetro urbano da Capital, fato exaltado pela 234

historiografia sobre a cidade.


A pesquisa evidenciou ainda a tipologia da indústria que se pretendia implementar
no perímetro urbano: tipografias e litografias; lavanderia; matadouros, galinheiro;
laticínios; ornamentos de mármore; beneficiamento de fumo; de milho e de cereais;
massas alimentícias; fábrica de balas; de sapatos; de flores artificiais; de meias; de roupas
para crianças; oficina cinematográfica; adubos químicos. Há apenas uma incidência de
fornecimento de veículos. No setor de infraestrutura, destacava-se a indústria siderúrgica,
e a focada na construção civil (carpintaria, serralheria, etc.); de esmeril e a de fabricação
de transformadores.
Dentro de suas limitações, o estudo aqui apresentado demonstra a possibilidade
de um melhor entendimento sobre o alcance e a limitação da ação do Poder Público no
favorecimento de industrialização da zona urbana da Capital, na década de 20 do século
passado, com base em fontes primárias.

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Referências

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diversos industriaes. Disponível em: <https://www.cmbh.mg.gov.br/atividade-legislativa/pesquisar-
legislacao/lei/261/1923>. Acesso em: 10 mar. 2020.

______. Lei n. 265 de 20 de março de 1924. Auctoriza o Prefeito a vender, por preço previamente ajustado,
independente de hasta publica, um terreno á firma Magnavacca & Filhos. Disponível em:
<https://www.cmbh.mg.gov.br/atividade-legislativa/pesquisar-legislacao/lei/265/1924>. Acesso em: 10 mar. 2020.

______. Lei n. 266 de 20 de março de 1924. Auctoriza o Prefeito a vender um terreno a Moreira & Comp.,
independente de hasta publica. Disponível em: <https://www.cmbh.mg.gov.br/atividade-legislativa/pesquisar-
legislacao/lei/266/1924>. Acesso em: 10 mar. 2020.

______. Lei n. 267 de 27 de março de 1924. Auctoriza a venda do lote n. 3 do quarteirão 3-A, da 1ª secção urbana,
independente de hasta pública. Disponível em: <https://www.cmbh.mg.gov.br/atividade-legislativa/pesquisar-
legislacao/lei/267/1924>. Acesso em: 10 mar. 2020.

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Artigos Livres

______. Lei n. 270 de 31 de março de 1924. Auctoriza o Prefeito a vender terreno para fins industriais independente
de hasta pública. Disponível em: <https://www.cmbh.mg.gov.br/atividade-legislativa/pesquisar-
legislacao/lei/270/1924>. Acesso em: 23 jan. 2020.

______. Lei n. 274 de 7 de abril de 1924. Auctoriza a venda de terreno, independente de hasta publica, para fins
industriaes. Disponível em: <https://www.cmbh.mg.gov.br/atividade-legislativa/pesquisar-legislacao/lei/274/1924>.
Acesso em: 10 mar. 2020.

______. Lei n. 275 de 7 de abril de 1924. Autoriza a venda de terrenos a diversos industriaes. Disponível em:
<https://www.cmbh.mg.gov.br/atividade-legislativa/pesquisar-legislacao/lei/275/1924>. Acesso em: 10 mar. 2020.

______. Lei n. 288 de 8 de abril de 1925. Auctoriza a concessão de terrenos a diversos industriaes. Disponível em:
<https://www.cmbh.mg.gov.br/atividade-legislativa/pesquisar-legislacao/lei/288/1925>. Acesso em: 10 mar. 2020.

______. Lei n. 302 de 30 de março de 1926. Auctoriza a venda de terrenos, independente de hasta publica e por
preços ajustados, a diversos industriaes. Disponível em: <https://www.cmbh.mg.gov.br/atividade-
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COSTA, Maria Lúcia Prado; SILVA, Marina Rozendo. Fontes para a história de Belo Horizonte: revisão do Índice
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COSTA, Maria Lúcia Prado. Principais Adquirentes de Lotes de Belo Horizonte: 1895-1931 segundo o Índice de
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236
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Pareceres e Projetos do Conselho Deliberativo de Belo Horizonte: CDBH – Caixa 11: 1922-1924; CDBH – Caixa
12: 1924 e CDBH – Caixa 13: 1925 -1926. Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte.

PEREIRA, Lígia Maria Leite. Imigração italiana e desenvolvimento em Minas Gerais. Ponte entre Culturas. s/d.
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Gerais_Ligia_Maria_Leite_Pereira.pdf>. Acesso em: 29 jan. 2020.

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Educação Patrimonial

VAMOS PASSEAR NA PRAÇA?


Educação patrimonial para crianças

Shall we walk in the square? Heritage education for children

Marcela Camargos Dias1


Marília de Fátima Dutra de Ávila Carvalho 2

Resumo: Tratamos de proposta pedagógica de educação patrimonial que se apropria culturalmente da


arte exposta em espaço público para o nível de Ensino Infantil. Nossos objetivos são apresentar como o
professor de Educação Infantil planeja vivências extraclasse em espaços expositivos de arte pública em
Belo Horizonte e melhorar o repertório do professor de Educação Infantil, habilitando-o a investir na
própria formação e ampliando o modo como atuam com as crianças nas instituições de Educação Infantil.
O caminho percorrido é a experimentação da observação da arte exposta publicamente na cidade, uma
cidade educadora, por meio do estudo do acervo de dez esculturas da Praça da Liberdade, em Belo
Horizonte, do século XIX ao XXI, que conduzem o olhar às mudanças que a arte sofreu nesses três
séculos. Concluímos que passear na Praça com as crianças ampliou o olhar do professor, das crianças de
zero a seis anos e de seus familiares. 237

Palavras-Chave: Praça da Liberdade. Educação Infantil. Educação patrimonial.

Abstract: We are dealing with a pedagogical proposal of heritage education that culturally appropriates
the art exhibited in public space for the kindergarten level. Our objectives are to present how Early
Childhood Education teachers plan extracurricular experiences in public art exhibition spaces in Belo
Horizonte and improve the Early Childhood Education teacher's repertoire, enabling them to invest in
their own training and expanding the way they work with children in Early Childhood Education
Institutions. The path taken is the experimentation on the observation of art publicly exposed in the city,
an educating city, through the study of the collection of ten sculptures of Praça da Liberdade in Belo
Horizonte, from the 19th to the 21st century, which lead the look to the changes that art has suffered in
these three centuries. We concluded that walking in the square with the children broadened the
look of the teacher, children from zero to six years old and their families.

Keywords: Liberty Square. Child education. Heritage education.

1Assessora pedagógica da Diretoria Regional de Educação Oeste (Dire-O). E-mail: marcela.dias@edu.pbh.gov.br


2 Professora de Práticas de Ensino do Curso Licenciatura em Artes Visuais da Universidade do Estado de Minas
Gerais (aposentada). E-mail: mariliadefatimaavilacarvalho@gmail.com

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Educação Patrimonial

Introdução

Será que conhecemos o potencial da Praça da Liberdade (Figura 01), a praça


mais bonita de nossa cidade? Como podemos levar alunos para visitar a Praça e
sensibilizá-los para a arte ali exposta?
Por que mostrar a arte pública para crianças tão pequenas (seis anos de idade)?
Acreditamos que a sensibilização para a arte começa cedo.

A relevância e a influência da arte na Educação Infantil é algo


reconhecido, que provoca a interação, a participação e a motivação
das crianças por meio de diferentes saberes que envolvem a
sensibilidade humana e cultural. (PIEDADE e HABOWSKI, 2019).

Figura 1 – Praça da Liberdade – s.d.

238

Autor: Fotógrafo Waldermar Sabino.


Fonte: Fundo ASCOM/APCBH

É importante mobilizar a curiosidade dos alunos sobre as formações artísticas


em constante transformação cultural e aprender a distinguir as diversas modalidades de
manifestações artísticas, por meio da escolha de acervos que a cidade oferece. A arte
exposta publicamente na cidade é uma fonte inestimável de aprendizagem. A Praça da

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Educação Patrimonial

Liberdade oferece acervos ao ar livre: esculturas e murais cerâmicos, acervo dos


museus, centros culturais e do palácio que semanalmente são muito visitados por
excursões provenientes de bairros distantes do centro da capital e até mesmo de outras
cidades. As praças: Praça da Liberdade, do Papa, a de Santa Efigênia, a de Santa Tereza,
a da barragem Santa Lúcia, todas andam bem cheias em qualquer dia, especialmente
nos fins de semana (GUALBERTO, s.d.).
Experiências como essa abrem novas maneiras do professor realizar trabalhos
de expressão artística, a partir do conhecimento de novas possibilidades estéticas. É um
grande desafio reinventar experiências pedagógicas. Nossos objetivos são apresentar
como o professor de Educação Infantil planeja vivências extraclasse em espaços
expositivos de arte pública em Belo Horizonte e melhorar o repertório do professor de
Educação Infantil, habilitando-o a investir na própria formação e ampliando o modo
como atuam com as crianças nas instituições de Educação Infantil.
Antes de levar a criança à praça, é necessário que o professor descubra,
primeiramente para si mesmo, o valor e a riqueza das manifestações artísticas na cidade
e as compartilhe com seus alunos.
239
Discutimos sobre um projeto cultural de visitação às esculturas da Praça da
Liberdade, percorrendo o seguinte caminho: o papel articulador do Poder Público, a
necessidade de investir na formação continuada do professor de Educação Infantil, o
potencial lúdico da Praça da Liberdade. Apresentamos como se organizaram os três
momentos do caminho percorrido: na escola, na praça e de volta à escola na pós-visita.

O papel articulador do Poder Público para repensar a cidade para as


crianças

Segundo Moll (2008), o Poder Público pode desempenhar um importante papel


como articulador de iniciativas e sujeitos sociais, financiador de ações que nascem das
necessidades e exigências de cada projeto concebido e mediador dos interesses em
relação à ocupação do espaço público.
Os gestores municipais da Educação Infantil perceberam que havia uma lacuna
na formação dos educadores das creches conveniadas à Prefeitura Municipal de Belo

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Horizonte e das Unidades Municipais de Educação Infantil em relação à ampliação do


horizonte artístico e cultural e criaram esse projeto cultural de visitação mediada à Praça
da Liberdade, voltado para os professores da Educação Infantil, visando formação
continuada e atualização em arte e cultura.
O papel do Poder Público Municipal belorizontino como articulador de uma
política educacional da cidade para as crianças é determinar que a Secretaria Municipal
de Educação da Prefeitura de Belo Horizonte apoie planos quadrianuais de
fortalecimento da atenção à Educação Infantil, em nível local (através das suas
regionais); desenvolver ações e propostas de melhoria da qualidade do ensino para
crianças junto ao município; desenvolver ações de monitoramento e avaliação de
planos, projetos voltados para a criança de zero a seis anos de idade em colaboração
com as creches conveniadas à PBH e UMEIs.
Cabe à Secretaria Municipal de Educação definir e implementar a política
municipal para a Educação Infantil, em consonância com a legislação vigente e com os
princípios expressos na Política Nacional e Estadual de Educação Infantil, promover a
formação continuada dos professores e de outros profissionais que atuam nas
240
instituições de Educação Infantil.
A experiência aqui relatada aconteceu no âmbito de um projeto municipal
intitulado Belo Horizonte - Cidade educadora enquanto ação do Poder Público
Municipal em parceria com organização internacional, para promoção da inserção da
criança nos espaços públicos da cidade.

Formação continuada do professor da Educação Infantil em educação


estética e patrimonial

Segundo Leite e Ostetto (2012), nossa “questão central é a educação estética e


suas diversas facetas”, importa-nos tanto a educação estética do professor quanto a do
aluno. As autoras dizem que a arte contemporânea (desde a Arte Moderna) tem se
movido, em grande parte, pelo mote da transgressão. Isso em parte é verdade. Por outro
lado, a escola se pauta pela normatização, o que traz uma relação conflituosa por
princípio. Mas queremos mostrar que, no cotidiano educativo, o professor não precisa

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Educação Patrimonial

ter receio de trabalhar com educação estética pela arte. Basta buscar com cuidado aquilo
que vai trazer para a apreciação das crianças.
Muitos professores se queixam que alunos provenientes de famílias evangélicas
não têm permissão dos pais para visitarem exposições de arte, pela resistência que suas
famílias apresentam às imagens e ao aspecto transgressor da arte atual. Há também
professores evangélicos que também relutam diante desse clima transgressor da arte
moderna e contemporânea (de alguma arte, não de toda a arte). É possível vencer essa
resistência (dos pais, ou do próprio professor) buscando o apoio pedagógico da escola
para montar um plano de aulas plausível, que se dirija à visitação a obras de arte em
espaço público (como as praças), ou semi-público (como museus), ou num outro modo
de dizer, a educação em espaço formal (a escola) e não formal (a praça, o museu) e que
agrade a todos, sem empecilhos.
A formação das professoras para conhecer em profundidade a Praça com seus
museus passou por dois momentos no mesmo dia: primeiro a visita às esculturas da
Praça da Liberdade mediada por uma expert em arte pública; segundo a visita mediada
agendada previamente ao Memorial Minas Vale que é um museu artístico e cultural
241
dedicado às tradições do povo mineiro; é um “museu de experiência”.
Quanto à visitação às esculturas expostas em uma praça da cidade, é uma boa
opção didática para o professor porque, segundo Yolanda Reyes (2019), oferece
“condições de diálogo para que, em torno de cada (escultura), se possam tecer as vozes,
as experiências e as particularidades de cada criança, com seu nome e sua história”. Em
casa, ou no seu bairro, longe do centro da cidade, fica distante do acervo exposto
publicamente na Praça da Liberdade e assim a criança e o professor ficam limitados no
seu repertório estético, necessitando de projetos na escola que favoreçam experiências
de visitação extraclasse a praças e museus.
As esculturas da Praça foram cuidadosamente selecionadas pela curadora da
Praça da Liberdade, a professora Conceição Piló (já falecida) e que foi incumbida por
muitos anos pelo Governador do Estado da curadoria da Praça e do Palácio da
Liberdade. Essa curadoria passou ao controle do Circuito Liberdade, circuito cultural
que inclui a praça, o palácio, e todos os museus e centros culturais ali existentes, desde
2010. Conhecer a Praça e seu entorno é dar um mergulho fecundo na história da nossa
capital. É um lugar, conforme Yolanda Reyes (2019), onde se materializa o triângulo

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amoroso que envolve três componentes: o acervo (no nosso caso as esculturas da
Praça), os leitores (cada visitante) e o mediador (o professor, ou o expert em arte e
cultura). A escola é o elo que promove esses encontros tão importantes na formação
continuada do professor.
O acervo de dez esculturas da Praça da Liberdade em Belo Horizonte, do século
XIX ao século XXI, conduz o olhar às mudanças que a arte sofreu nesses três séculos:
inicialmente eram esculturas fielmente naturalistas, apoiadas sobre pedestal alto, que
impõe uma postura de reverência diante da obra, realizadas em forma blocada em
material nobre (mármore e bronze). Com o passar do tempo, já em meados do século
XX, as esculturas deixaram de ser naturalistas, tornaram-se abstratas, em forma vazada,
a altura do pedestal foi diminuída, passando a ser pequeno, com material não nobre
(sucata de aço corten). No século XXI, o pedestal desapareceu e as obras são apoiadas
diretamente no chão, vazadas de forma que o espectador penetra dentro da escultura,
em material não nobre (resina acrílica, latão).

A Praça da Liberdade é um lugar de memória com potencial lúdico


242
para crianças

Conforme Pierre Nora (1993), “lugares de memória são lugares onde ancorar
sua memória. A necessidade da memória é uma necessidade da história (...) memória é
vida, um elo vivido no eterno presente”. Ao passear na Praça da Liberdade com as
professoras, a mediadora trouxe memórias do que foi a Praça para outras gerações: o
coreto onde a Banda da Polícia Militar tocava valsas para as pessoas dançarem; as
alamedas dos canteiros de roseiras floridas onde os rapazes cortejavam as mocinhas
com a frase galante “uma flor entre as flores”; a alameda central por onde passou a
carruagem com o rei e a rainha da Bélgica, provocando uma revoada de pardais como
nunca vista e que encantou a rainha; a mesma alameda das palmeiras abrigando
inúmeras manifestações públicas de repúdio a algum ato do governo; os ciprestes que
vieram da Europa e morreram de velhos, mais de cem anos depois; como diz Maurice
Halbwachs (2006), “há tantas memórias quantos grupos existem; ela é, por natureza,
múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada”.

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Apreciar a produção artística exposta publicamente na Praça da Liberdade é


também compreender o contexto histórico em que está inserida. A Praça da Liberdade
e seu conjunto arquitetônico são referenciais simbólicos do patrimônio material e
imaterial da capital mineira.
Qual a compreensão dos moradores sobre sua própria cidade? Capital
metropolitana, a escala dessa urbs é gigantesca. A maioria das pessoas que circulam ali
vem de diferentes cidades do entorno e desconhece a história da capital mineira.
A Praça é um lugar lúdico para crianças, haja vista a presença sempre constante
de crianças nesse espaço público. As vivências na praça certamente passarão a fazer
parte das memórias dos pequeninos. Como ressalta Vigotski (2009): “as emoções
provocadas pelas imagens artísticas (vivenciadas na visita à Praça) são completamente
reais e vividas por nós de verdade, franca e profundamente (...), todo sentimento que
provoca é verdadeiro”. Elas vão guardar para sempre na memória aquele passeio.

O caminho percorrido
243

Os passeios foram organizados conforme um roteiro de vivência estético-


cultural, criado por uma expert em arte pública, que focou na educação estética das
professoras e na educação patrimonial. Por educação estética referimo-nos ao
estabelecimento de uma relação sensível, de beleza, de harmonia com o mundo, que
envolve possibilidades de apreciação, criação e análise de obras de arte (DUARTE
JÚNIOR, 2010). Quanto à metodologia utilizada de Educação Patrimonial seguiu
conforme Horta, Grumberg e Monteiro (1999). Procurou-se explorar as dimensões do
patrimônio cultural existentes na Praça da Liberdade: cultura, patrimônio, memória e
identidade, história da cidade, desde a construção inicial da capital mineira.
A visita à Praça da Liberdade com as crianças aconteceu em três momentos: o
primeiro na escola na sala de aula, o segundo na praça e o terceiro de volta à escola.
Cada um desses momentos teve um conjunto de atividades didáticas. Não podemos
esquecer o momento zero que deu origem, que antecede a tudo, que foi a formação
cultural (estética e patrimonial) das professoras, promovida junto às Regionais da
Educação Infantil pela SMED/PBH.

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A seguir, trazemos fotografias de autoria de Marília de Fátima Dutra de Ávila


Carvalho, no momento de visitação à praça. Nelas, podemos ver a presença das
crianças. O projeto de visitação às esculturas com as crianças foi realizado após o
projeto da visita das professoras à Praça da Liberdade. O roteiro da visita das
professoras à Praça começou pelo coreto e depois percorremos a Praça, parando diante
de cada uma das dez esculturas, que são as seguintes (Figuras 02 até 14).

Figura 02 - Coreto Figura 03 - Moça mirando o espelho Figura 04 - Fonte das Três Graças
d’água

244

Figura 05 - Busto do jornalista Figura 06 - Busto do senador Figura 07- Herma3 do poeta
José Maria Teixeira de Bueno Brandão (1958) Bernardo Guimarães (1925)
Azevedo Junior

3 A diferença entre herma e busto é que a herma só retrata a figura com a cabeça e o pescoço. Já o busto
retrata a figura com a cabeça, o pescoço e o ombro.

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Figura 08 - Busto do Figura 09 - Busto de Dom Figura 10 - Escultura moderna.


Prefeito Pedro II Autor Ricardo Carvão Levi (1990)
Bias Fortes (1927)

245

Figura 11 - Laranja da Rainha da Sucata (2000)

Legenda: Obra dos artistas plásticos, Éolo Maia e Sílvio Podestá (2000)

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Figura 12 - Encontro Figura 13 - Biblioteca Pública Estadual Figura 14 - Vendedor de


Marcado Luiz de Bessa algodão doce

Legenda: Obra do artista


plástico, Leo Santana
(2000)

Diante de cada escultura, respondemos a perguntas norteadoras sobre


observação de esculturas. As perguntas foram preparadas pela mediadora, visando sua 246
futura utilização com as crianças. As chaves de leitura de cada escultura são as
seguintes: É fielmente naturalista? É blocada ou vazada? Tem pedestal? O material é
nobre? O que mudou de uma escultura para outra? Como essas perguntas são muito
complexas para as crianças, criamos para elas outra série de perguntas, que foram: de
que material vocês acham que ela é feita? Qual a cor do material? Essa escultura está
em cima de alguma coisa? Essa coisa se chama pedestal. Qual o tamanho desse
pedestal? É maior que você, ou é menor que você? Ou esta escultura está apoiada
diretamente no chão? As perguntas a serem direcionadas às crianças precisam ser muito
concretas.
A mediação para crianças tem que ser bem objetiva, sem rodeios, porque é da
natureza infantil ser disperso; crianças prestam atenção a muitas coisas ao mesmo
tempo e prestam atenção a coisas que são aparentemente supérfluas, mas que fazem
sentido para elas. A mediação nesse caso é sinônimo de facilitação para promover a
interação das crianças com um rico universo de linguagens de arte que contribuem para

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a organização de seu modo de ser e estar no mundo (BELMIRO e GALVÃO, In LIMA


et al, 2017).
A busca pelo belo, pela expressividade, a atenção ao que aparentemente é
supérfluo são características que facilmente identificamos na criança e no artista
(BAPTISTA, In LIMA e outras, 2017): “todo aquele que se põe a ouvir a resposta das
crianças é um espírito revolucionário (DOLTO, 2005). Ouçamos as crianças!” Assim
vamos revolucionar o nosso cotidiano ... (LIMA e outras, 2017).
Outro dado importante foi a participação de familiares na visita à praça. Quando
terminou a visita, uma mãe que participou do passeio disse “Esse passeio foi muito
melhor do que levar meu filho ao shopping!”. Por isso, a família não pode ficar de fora
de um bom passeio extraclasse como esse. A escola deve convidar as famílias a
participar do passeio junto com as crianças e surpreendentemente os adultos se dão
conta que há muitas coisas que eles ainda podem aprender, junto com as crianças.

Atividades realizadas

247
Atividades pedagógicas
O professor tem contato com a pesquisa bibliográfica e documental sobre a
Praça da Liberdade e os equipamentos do Circuito Liberdade. Dentre as dez esculturas
existentes na praça, o professor seleciona cinco (não é possível escolher muitas, porque
a atenção das crianças é dispersa, haverá muitas coisas para ver). Sugerimos que o
professor escolha as seguintes esculturas para visitar com as crianças: moça mirando o
espelho d’água, fonte das três graças, laranja da Rainha da Sucata, o Encontro Marcado
em frente à Biblioteca Pública, a escultura de Ricardo Carvão Levi no coreto.
Conforme Dias e Moraes (2015), “a experiência cultural suscita perguntas,
provoca a reflexão crítica de valores e contribui para a formação não só do profissional
de educação, mas também do sujeito em situação de aprendizagem”. Os métodos
pedagógicos que orientam a aprendizagem da criança são criados em conformidade
com a psicologia infantil. O professor tem perguntas motivadas por suas próprias
reflexões. O professor deve estar preparado para as perguntas que serão feitas pelos
alunos na visitação às obras de arte; há crianças muito curiosas e “perguntadeiras”.

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Sobre a curiosidade natural das crianças, citamos uma pergunta feita por um
aluno de cinco anos diante da escultura Encontro Marcado: "Todos os escritores estão
com um livro na mão. Porque aquele escritor que está em pé não tem nenhum livro?”
Observando a arte, a criança amplia, aos poucos, o horizonte dos sentidos e enriquece
sua sensibilidade estética. Aprende a perceber a realidade de diversos ângulos, sob
diversos aspectos. A arte abre os corações para a beleza, a sabedoria, a paz, o amor.

Atividades de sensibilização dos alunos


Antes da excursão acontecer, o professor deve realizar algumas atividades de
sensibilização dos alunos, por exemplo conversar com os alunos sobre a paisagem
externa da escola e a paisagem urbana no caminho entre a casa e a escola. Se for
possível, uma boa atividade de sensibilização é fazer um passeio com as crianças em
volta do quarteirão onde se situa a creche ou UMEI, como uma primeira visita
extraclasse, na qual os alunos são preparados, por exemplo, para andar em duplas de
mãos dadas, em fila (Um atrás do outro igual gafanhoto).
248

Atividades da logística da excursão escolar


Junto com a creche ou UMEI o professor organiza as ações necessárias para
viabilizar a visita extraclasse (reserva do ônibus, obtenção da permissão das famílias,
lanche). Na preparação da visita, o professor explica para os alunos porque irão visitar
a Praça da Liberdade, explica o que são esculturas, fala que serão observadas cinco
esculturas. Combina que três alunos usarão celulares para fotografar as coisas
interessantes da Praça. O professor combina como proceder no ônibus, na Praça, para
atravessar a rua, não falar alto, não gritar, não correr, não desobedecer, não sair de perto.
Na visita em campo, o professor de arte com seus alunos praticam a técnica da
observação direta intensiva às obras de arte, com experimentação visual e tátil.
O roteiro da visita à Praça da Liberdade é o seguinte: começa pelo coreto, onde
a professora pergunta para os alunos quais figuras (geométricas) eles estão vendo (há o
círculo da rosa dos ventos no piso e há triângulos no teto). Depois os alunos descem a
escada do coreto em duplas e caminham até o lago com a escultura Moça Mirando o
Espelho d’água. Para chegar perto do lago as crianças têm que passar por um buraco na

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cerca viva de plantas que rodeia o lago, as crianças brincam que ali é uma
‘entrada secreta’. A professora pergunta: onde está a moça? Onde está o espelho de
água? As crianças procuram o espelho no fundo do lago, mas acabam descobrindo seus
reflexos na superfície do lago, bem como o reflexo da escultura. Deslocam-se até o lago
das Três Graças. Lá a professora pergunta: vocês estão vendo a sereia? Vocês estão
vendo as três moças de mãos dadas? Depois andam pelas alamedas cheias de rosas. A
professora fala: Olhem e cheirem as flores, que lindas! Atravessam a rua com o sinal
fechado e vão até o prédio chamado Rainha da Sucata e ali observam a escultura da
laranja. A professora fala: Essa escultura está em cima do chão, sem pedestal, vocês
podem tocar nela.
Depois atravessam a Avenida Bias Fortes e vão até o jardim da Biblioteca
Pública onde está a escultura Encontro Marcado. As crianças abraçam os escritores,
sentam no banco ao lado deles. A professora conta a história da escultura: cinco amigos
escritores marcam um encontro e cada um traz o seu livro. Depois as crianças entram
na Biblioteca Pública, que está sempre aberta ao público visitante, e se dirigem ao setor
249
de livros infantis. Muitas crianças nunca viram um livro. Ficam surpresas com as
estantes cheias de livros. Sentam nas mesas e manuseiam os livros que as bibliotecárias
separam para elas. Ficam maravilhados! Por que ler para crianças tão pequenas - ou o
que pode uma criança? O que pode a infância em uma criança? Porque a leitura e a
literatura também são direitos. Ler para uma criança é apostar no que pode uma criança.
Mas é principalmente apostar na infância, não para transformar as crianças em algo
distinto do que são, mas para promover potências de vida infantil (LIMA, 2017). Depois
voltam à Praça. Perto do coreto observam a escultura moderna de Ricardo Carvão Levi.
Tocam na escultura, a professora ensina: olhem pelo buraco da escultura o que vocês
estão vendo do outro lado? Encerra-se a visita indo para a escadaria do Memorial Minas
Vale.
O final da excursão teve um elemento surpresa. O vendedor de algodão doce
(Fig.14) acompanhou as crianças durante toda a excursão; no final, quando as crianças
sentaram na escadaria do Memorial Minas Vale antes de entrar no ônibus, as
professoras fizeram uma vaquinha e compraram um algodão doce para cada criança.
Este foi um momento mágico de puro deleite! Depois de se lambuzarem as crianças

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entraram aos pares no Memorial Minas Vale e foram até o banheiro para lavar as mãos,
o que também foi motivo de muita curiosidade para todas, ao entrar num prédio com
escadarias suntuosas atapetadas de vermelho que elas acharam tão grandes quanto de
um palácio!

Atividades para “fechar a Gestalt"


Voltando à sala de aula, o professor organiza atividades didáticas para o aluno
sintetizar a observação num produto concreto e sintetizar o conhecimento adquirido:
modelagem, observação das imagens captadas no celular do grupo de alunos
incumbidos de fotografar a visita. Conversou-se sobre o que cada criança mais gostou
na visita. No retorno à sala de aula, os alunos resolveram fazer uma réplica da escultura
da Moça mirando o espelho d’água com massinha de modelar e outros materiais. As
crianças recriaram imagens e figuras explorando e desenvolvendo o repertório que lhe
foi apresentado na visita extraclasse. Observou-se que as crianças de fato fizeram uso
do aprender imaginativo, utilizando a experiência artística com capacidade que
250
surpreendeu as professoras.
É muito importante compartilhar a oportunidade de visita extraclasse com as
famílias dos alunos. As fotografias das crianças na praça são postadas no site da escola
e as famílias são convidadas a observar essas fotos pelo site.

Conclusões

Vamos recuperar um pouco do que falamos. Vamos falar da nossa aposta no


que pode uma criança quando estimulada e quando lhe é garantido o direito ao acesso
à cultura e à arte na primeira infância. Será que é cedo para isso? Certamente não.
Concluímos que quanto mais cedo apresentarmos a arte e a cultura para crianças de
zero a seis anos de idade mais estaremos contribuindo para que elas ampliem seu olhar
sobre esse universo mágico que é a imaginação humana. Para Vigotski (2009), todas as
formas de imaginação contêm em si elementos afetivos que influem no sentimento.
A beleza possui, para as crianças, um peso significativo que, muitas vezes,
supera, por exemplo, a dimensão prática da atividade. Foi possível perceber a atenção

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concentrada das crianças para as belezas da Praça da Liberdade e seu entorno


(GOUVEIA, 2011). Concluímos também que a visita de uma criança acompanhada de
seus familiares, junto com a Escola, amplia a visão da família em relação à educação
das crianças, favorece um ambiente de socialização, entre a escola e as famílias, a
criança se sente importante por estar oportunizando à sua família o contato com a
cultura. A arte amplia a visão de mundo da criança e da família. A visita extraclasse
acompanhada pela família contribui para a inclusão no mundo da cultura, ajuda a mudar
para melhor o universo da Educação Infantil.
Concluímos também que o primeiro contato das crianças com a arte é sempre
físico. Elas a exploram com os cinco sentidos: sentem a textura, o peso, observam o
formato, o tamanho, olham a profusão de cores, até testam o sabor e procuram
relacioná-la com experiências anteriores. Elas provam a arte como experimentação
(inspirado em Celia A. BELMIRO e Cristiene GALVÃO, In: LIMA, 2017).
Acreditamos, com essa experiência, ter contribuído no desenvolvimento
integral da criança até seis anos de idade em seus aspectos “físico, psicológico,
251
intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade” (art. 29 da
LDB).

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“Tudo o que é sólido desmancha no ar”: a construção de


Belo Horizonte entre idealização e precarização

Autores: Larissa Renner de Ávila Alves1 e Lucas Fernandes2


Nível de ensino: Médio
Tema: "Tudo o que é sólido desmancha no ar": a construção de Belo Horizonte entre
idealização e precarização

Disciplina: História
Interdisciplinaridade: Geografia e Sociologia
Transversalidade: relações de raça e classe, cidadania e modernidade

Descrição sumária dos documentos:


DOCUMENTO 1 - Mapa da construção de Belo Horizonte idealizado em 1895 pela Comissão
Construtora da Nova Capital (CCNC). Fonte: APCBH.
DOCUMENTO 2 - Mapa Turístico de Belo Horizonte. Setembro/2019. Fonte: Belotur.
DOCUMENTO 3 - Registro fotográfico do início do século XX de uma cafua no local onde
atualmente encontra-se o bairro Lourdes, fora dos limites da Avenida do Contorno. Fonte: 254
APCBH.
DOCUMENTO 4 - Matéria de jornal: PERUCCI, G. Sinônimo de Charme. Jornal Estado de
Minas. Belo Horizonte. Novembro/2015.
DOCUMENTO 5 - Fotografia aérea com o Conjunto IAPI ao centro. Fonte: APCBH.
DOCUMENTO 6 - Mapa de Belo Horizonte de agosto de 2020, com as vilas e favelas
destacadas. Fonte: Urbel em https://prefeitura.pbh.gov.br/urbel/vilas-e-favelas. Acesso em
17/11/2022.

1
Graduanda em História na UFMG. E-mail: larissarenneraa@gmail.com
2
Graduando em História na UFMG. E-mail: fernandes-luca@hotmail.com

REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 9, n. 9, dezembro de 2022 - ISSN: 2357-8513
Educação Patrimonial

Objetivos da atividade

O objetivo principal desta sequência didática é que os estudantes possam problematizar,


a partir da análise de fontes - como mapas, reportagens e fotografias -, a construção e a
organização da capital mineira. Seguindo alguns princípios da didática da história alemã, bem
como da escola educacional inglesa de Goodson, da qual Circe Bittencourt carrega influências,
considera-se importante que a prática historiográfica esteja presente na construção do
conhecimento histórico escolarizado. A partir disso, é possível conceder ferramentas para que
cada um possa construir narrativas e desenvolver perspectivas sobre o local onde vivem. Os
documentos históricos, utilizados como fontes, podem fomentar a capacidade intelectual e
afetiva dos estudantes de criar interpretações sobre as problemáticas de seu presente,
concebendo-o a partir dos olhos da História.
A República brasileira é marcada por contradições. Proclamada por um monarquista,
colega de Pedro II, teve como principais metas a ordem e o progresso. Para tal, procuraram
renomear as estruturas da monarquia bacharelista que, de maneira geral, permaneceu intacta.
255
A organização oligárquica, pós-governos militares, idealizaram uma república aos moldes
europeus, que enxergava as diferenças entre brasileiros e ingleses ou franceses como
desigualdades. Para superá-las, então, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia e o
processo de modernização do país foram definitivamente marcados por uma política higienista.
A urbanização do Rio de Janeiro é um dos maiores exemplos demonstrados nos livro didáticos
e nos currículos escolares; com ela, a capital brasileira deveria ser transformada em uma “Paris
tropical”, mas, para tanto, as moradias dos brasileiros foram demolidas e estes trabalhadores se
mudaram para os arredores do centro, formando as periferias.
Com isso, pode-se perceber que o sistema republicano do Brasil tem por base a
separação entre o idealizado e a sua derradeira precarização. A modernidade, pautada no
nacionalismo e no progresso, não se estabeleceu de modo democrático, e seus efeitos são
presentes e perturbadores até os dias atuais. A periferização é decorrente da tentativa de
modernizar o país com perspectivas europeias e higienistas. Desse processo, não se pode
ignorar as substâncias raciais e eugenistas que motivaram a formulação de projetos que
separam ambientes destinados a pessoas brancas e aqueles a pessoas não-brancas.

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Apesar de o próprio termo trazer uma reflexão particular, entenderemos a periferia


como lugar geograficamente afastado das atividades econômicas centrais da metrópole e
socialmente segregado da sociedade. A definição do conceito também varia ao pensarmos nas
múltiplas características regionais que temos dentro do Brasil, e por isso a proposta irá focar
na região central da nova capital e seus entornos. É preciso que os alunos compreendam a
importância de se estudar a separação socioespacial e como esses limites são determinantes na
vida de alguns grupos.

Procedimentos/estratégia de ensino

Para realizar essa reflexão, o professor deve se basear em quatro pilares:


a) A contextualização da construção de Belo Horizonte e seu planejamento estratégico;
b) A comparação entre uma reportagem do jornal Estado de Minas de 2015 sobre o
bairro Lourdes e uma fotografia do início do século XX da mesma região;
c) A reflexão sobre a definição de periferia ir além da localização geográfica: diante
das nuances contraditórias da igualdade postulada pela modernidade, é imprescindível pensar
a desigualdade racial nos projetos de urbanização; 256

d) Os deslocamentos dos pontos periféricos da cidade de Belo Horizonte como


resultado da urbanização.

O primeiro pilar tem como fonte primária o mapa da construção de Belo Horizonte
(Documento 1), que mostra o planejamento de ruas e espaços de convivência social dentro da
Avenida do Contorno. Nesta etapa, é importante levar em conta alguns referenciais teóricos no
que diz respeito à utilização dos mapas como fontes históricas. Para que haja uma escolarização
dos métodos historiográficos, é necessário que a professora ou o professor garanta que os
estudantes circulem por habilidades básicas como descrição da fonte, autoria e contexto, a fim
de que seja possível que eles coloquem em dinamização seus conhecimentos prévios acerca da
história local no exercício de interpretar o contexto mais amplo - no caso, a modernização do
Brasil.

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DOCUMENTO 1 - Mapa da construção de Belo Horizonte idealizado em 1895 pela


Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC)

257
Fonte: APCBH.

Sabendo disso, a fim de que os estudantes sejam os protagonistas da produção do


conhecimento, é interessante que o docente guie eles, através de perguntas norteadoras, a
compreenderem como a Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC) organizou a
disposição das residências e o público alvo dessa construção. O engenheiro chefe da Comissão,
Aarão Reis, se inspirou nos moldes franceses de Haussmann, e idealizou uma cidade funcional,
com muitas praças, ruas largas, quarteirões bem definidos e prédios públicos estrategicamente
localizados. Tudo isso com a pretensão de um ambiente moderno que refletisse os novos ares
da República brasileira (JULIÃO, 1992). Seria proveitoso, portanto, que os alunos se
atentassem à organização simétrica dos quarteirões, das ruas e avenidas, bem como do próprio
formato inicial no planejamento da cidade. O progresso e a ordem estavam, nesse caso,
diretamente relacionados à regularidade do espaço urbano.
A nova capital foi planejada para receber os funcionários do Estado transferidos da
antiga capital - Ouro Preto - e famílias de relevância econômica no contexto político da época,

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e não contava com um local para os trabalhadores residirem. Isso fez com que esse grupo
esquecido se firmasse ao redor da área planejada, que era inclusive onde a grande massa
trabalhava. Então basicamente aqueles que trabalhavam na construção se instalaram na zona
suburbana, que rodeia a zona urbana e que, ao contrário desta, não havia sido ocupada de forma
planejada, em termos de infraestrutura, levando a um crescimento desorganizado.
O uso de documentos na sala de aula é uma ótima tática para fazer com que o ensino
de história seja mais próximo ao ofício do historiador e, nessa perspectiva, não se pode esperar
que o professor explique o conteúdo inteiramente. Espera-se que o documento não seja
utilizado como uma comprovação do exposto, mas sim como gerador de reflexões. Assim, os
estudantes devem problematizar e interrogar os elementos do documento por si, com a
orientação do professor, estabelecendo conexões entre seus conhecimentos e sua vivência
prática.
Sendo assim, os alunos devem realizar uma análise do mapa da construção da cidade e
identificar os bairros ali presentes. Os nomes das ruas e as praças conhecidas podem ajudar
nesse estudo. Para complementar, é interessante a comparação com um mapa atual da capital
mineira (Documento 2), a fim de compreender a expansão urbana e o recorte geográfico em
que a zona urbana primordialmente idealizada se situava. Sobre essa análise, as seguintes 258

perguntas podem ser feitas para desencadear a discussão:

- Analisando o mapa da Construção, como Belo Horizonte foi planejada e por que seguiu
esse modelo? Quais são as mudanças que podemos reparar na configuração espacial da
cidade ao comparar o mapa de 1895 e o de 2019?

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DOCUMENTO 2 - Mapa Turístico de Belo Horizonte. Setembro/2019

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Fonte: Belotur.

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260

Fonte: Belotur.

O segundo pilar se baseia no trabalho de investigação comparativa entre dois


documentos referentes ao bairro Lourdes, uma fotografia mais antiga, do início do século XX
(Documento 3), e uma reportagem do Estado de Minas publicada em novembro de 2015
(Documento 4). Esse bairro, apesar de ter sua maior parte dentro da área urbana, também possui
algumas ruas fora da Avenida do Contorno. Nesses terrenos mais afastados é que estavam os
tipos de habitações mais simples, como é possível observar na fotografia. Nessas casas viviam
famílias que, em sua grande maioria, vieram para Belo Horizonte trabalhar na construção da
cidade, mas que não tinham condições de residir dentro dos limites da área planejada. Essas
pessoas, por pertencerem a uma classe econômica mais baixa, foram segregadas espacialmente
e é importante pensar na discrepância da magnitude dos casarões da área urbana e nas casas
como as cafuas na área suburbana. No entanto, com o crescimento da cidade, as zonas

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periféricas foram se deslocando e a ocupação dos espaços mudou. Analisando o presente, que
é retratado na reportagem, percebe-se que o bairro Lourdes é habitado por famílias de classe
média alta e a estética urbana é totalmente diferente. Os alunos, ao compararem os documentos,
devem essencialmente perceber essas mudanças e compreender a volatilidade das definições
sociais baseadas no espaço geográfico. Sugere-se que o professor forneça um estudo dirigido
para que a comparação possa ser sistematizada. O objetivo é que as questões levem os alunos
a refletir que a periferia pode ser translocada, possivelmente pela gentrificação, crescimento
urbano, etc. Assim, pode-se levá-los a problematizar a própria construção de prédios e sua
relação com o crescimento da população e da economia. Com esses parâmetros do
entendimento dos alunos, os professores devem fazer um balanço da temática e fomentar
discussões na sala de aula, compartilhando as diferentes perspectivas e vivências. Para
incentivar a discussão, o professor pode usar as seguintes perguntas:

- É possível que um mesmo território seja ocupado por grupos sociais tão
distintos no intervalo de poucos anos? A partir da fotografia e da reportagem, é
possível identificar qual grupo ocupava essa área no início do século XX e qual
grupo ocupa atualmente? Como esta transformação está relacionada à dinâmica 261

histórica da cidade?

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DOCUMENTO 3 - Registro fotográfico do início do século XX de uma cafua no local onde


atualmente encontra-se o bairro Lourdes, fora dos limites da Avenida do Contorno

262

Fonte: APCBH

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DOCUMENTO 4 – Matéria sobre o bairro de Lourdes

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Fonte: PERUCCI, G. Sinônimo de Charme. Jornal Estado de Minas. Belo Horizonte. Novembro/2015.

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Detalhe da matéria:

Fonte: PERUCCI, G. Sinônimo de Charme. Jornal Estado de Minas. Belo Horizonte. Novembro/2015.

Exercidas as atividades que cumprem os dois primeiros pilares, o próximo se determina


como uma reflexão interpretativa da noção de periferia para além de um contexto geográfico. 264

A idealização da modernidade é uma sociedade em que a igualdade seria um direito exercido


por todos os cidadãos. Entretanto, quando a prerrogativa é confrontada por sujeitos dissidentes
a fim de que ela seja uma reivindicação concretizada, nota-se que se instaura a relativização da
ideia de igualdade, e daí decorre a precarização social. Segundo o estudioso Osmundo Pinho,

os limites do universalismo [da igualdade] estão assim postos pelo caráter


histórico e seletivo da afirmação da universalidade individualizada, na
verdade encarnada (in-corporada), em termos objetivos, no homem branco,
proprietário e heterossexual. (PINHO, 2017, p. 369).

Em outras palavras, há uma dialética entre os valores igualitários da modernidade e as


práticas antidemocráticas da modernização. Os indivíduos, contraditoriamente tratados em sua
coletividade, são submetidos à exclusão e ao silenciamento caso eles não se enquadrem na
“universalidade individualizada” da qual fala Pinho no trecho anterior. A consolidação dos
direitos políticos e sociais é condicionada por determinantes históricos, como a normatividade
imposta pelos dirigentes políticos e as desigualdades de classe e raça.
Nesse sentido, o racismo brasileiro deve ser compreendido de acordo com sua
complexidade, inserido como um valor da modernidade, que se utilizou dele nos âmbitos

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sociais coextensivamente aos geográficos. A análise das fontes que evidenciam o planejamento
estratégico de Belo Horizonte e a transformação e translocação das periferias, portanto, devem
levar o estudante a refletir, neste momento, como um componente silenciado que cria o
chamado habitus racial brasileiro (apud SALES Jr., 2006). Isso é, objetiva-se, agora, identificar
que não é necessário uma afirmação clara do discurso racista das autoridades, mas a própria
tentativa de esconder grande parte da população preta na periferia, construindo obras, que, por
exemplo, impedem a sua identificação nas grandes avenidas. No caso, o conjunto IAPI3
(Documento 5) é, em certo sentido, a invisibilização da periferia no cruzamento da Avenida
Antônio Carlos. Esse fator contribui para a naturalização do status quo e da reprodução das
desigualdades, influenciando na distribuição de lugares e de oportunidades.

DOCUMENTO 5 - Fotografia aérea com o Conjunto IAPI ao centro

265

Fonte: APCBH.

Sendo assim, é importante que os estudantes se apropriem dos documentos e cheguem


ao conhecimento de que a cidade em que vivem é um espaço formado por contradições entre

3
O Conjunto Habitacional IAPI Lagoinha foi planejado durante a gestão de Juscelino Kubitschek na nova capital
mineira. Ele foi idealizado a fim de garantir assistência social e previdenciária aos trabalhadores industriais.

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centro e periferia e segregação e inclusão. “Tudo o que é sólido se desmancha no ar”: a famosa
frase de Karl Marx serve, aqui, para mostrar que a sociedade civil e os grupos econômicos, na
empreitada de dar forma ao ideal de progresso, entram em conflitos que fazem com que se
organizem em espaços separados, guetizados e repletos de injustiças. O professor, para que os
alunos discutam sobre essa problemática, pode usar os questionamentos:

- Como a organização espacial de uma cidade contribui para a exclusão social de


grupos? E como isso se manifesta em Belo Horizonte?

Por fim, para que os alunos entendam a mutabilidade da construção espacial de uma
cidade, e nesse caso especificamente de Belo Horizonte, que teve seu primeiro recorte
inicialmente planejado, o professor deve explicar sobre os deslocamentos das periferias, com
a ajuda do mapa de vilas e favelas do 2020 (Documento 6). Nas primeiras décadas da cidade,
as comunidades de famílias excluídas do planejamento urbano se concentravam nos entornos
da Avenida do Contorno, e as primeiras favelas formadas se assemelham na proximidade do
centro, como a Pedreira Prado Lopes e o Aglomerado da Serra.
266

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DOCUMENTO 6 - Mapa de Belo Horizonte de agosto de 2020, com as vilas e favelas destacadas

267

Fonte: Urbel em https://prefeitura.pbh.gov.br/urbel/vilas-e-favelas.


Acesso em 17 nov. 2022.

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Juscelino Kubitschek, ao ser indicado para o cargo executivo municipal de Belo


Horizonte, em 1940, outorgou a si a responsabilidade de fazer com que a cidade se
modernizasse. Inspirado por objetivos industrialistas, que depois se reproduziram de forma
mais potente na construção de Brasília, engenheiros e construtores civis, a mando de JK,
colocaram em prática projetos de desenvolvimento da cidade industrial e, também, da cidade
universitária. Um dos maiores exemplos é o levantamento do conjunto populacional IAPI, cuja
organização se enquadra nos parâmetros modernistas, e se coloca em primeiro plano da
paisagem geográfica vista da atual Avenida Antônio Carlos. Anteriormente, essa região de
visibilidade era ocupada por uma favela e, com a construção do conjunto habitacional, a
população local foi removida. Se, nos planos de Juscelino, tal monumento era direcionado ao
balanceamento das classes sociais, dando oportunidade para que os sujeitos periféricos
possuíssem moradia de maior saneamento, o ocorrido não foi o mesmo. Na verdade, grande
parte das alocações dos prédios foi ocupada por funcionários públicos e membros do exército
brasileiro que combateram na Segunda Guerra Mundial (NERY, 2005). Tendo isso em mente,
os estudantes podem inferir que o IAPI possui uma função de ocultar as desigualdades sociais
- já que interfere na visibilidade das classes baixas frente às médias e altas da região da
Pampulha. Segundo Nery, o conjunto populacional em questão é símbolo de poder, no sentido 268

de que sua arquitetura passa uma mensagem modernista/modernizadora, de acordo com os


interesses dominantes de dissimular o racismo e a tentativa de impedimento de acesso a
condições igualitárias (NERY, 2005). Para finalizar a discussão, o professor pode realizar essas
perguntas:

- Analisando o mapa, em quais regiões as vilas e as favelas de Belo Horizonte


estão concentradas atualmente? Qual a relação entre a posição geográfica das
vilas e favelas e a concentração renda da cidade?

Em síntese, esperamos que essa atividade traga uma reflexão crítica acerca da
mutabilidade das definições geográficas em uma cidade, nesse caso, Belo Horizonte. Para
estruturar a discussão, os alunos terão como base o estudo dos deslocamentos dos espaços
periféricos e a relação com a raça. O objetivo é que os estudantes saiam da aula tendo em mente
as intencionalidades ocultas na organização espacial dos municípios.

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Referências

BITTENCOURT, Circe. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez. 2005.

JULIÃO, Letícia. Belo Horizonte: itinerários da cidade moderna (1891-1920). Dissertação (Mestrado em Ciência Política) –
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 1992.

NERY, Juliana Cardoso. O IAPI de Belo Horizonte – entre proposta social e propaganda ideológica. Seminário Nacional
Docomomo. Disponível em: https://docomomobrasil.com/wp-content/uploads/2016/01/Juliana-Cardoso-Nery.pdf. Acesso
em 10 nov 2022.

PAIVA, Luiz André; GARCIA, André Luiz; MAFRA, Flávia Luciana Naves; ANDRADE, Luis Fernando Silva;
OLIVEIRA, Maria de Lourdes Souza. Direito à cidade: um grito e uma demanda para as políticas micro e macroterritorial.
Rio de Janeiro: Direito da Cidade. 2017, vol. 09, nº 3. p. 1002-1121.

PINHO, Osmundo. O enigma da desigualdade. In: TORNQUIST, Carmen Susana; COELHO, Clair Castilhos; LAGO, Mara
Coelho de Souza; LISBOA, Teresa Kleba. Leituras de resistência: corpo, violência e poder. Editora Mulheres. 2017, vol 1.

ULTRAMARI, Clovis; JAZAR, Manoela Massuchetto. O direito à cidade em dois cenários literários brasileiros: Quarto de
Despejo e Becos da Memória. Rio de Janeiro: Direito da Cidade. 2021, vol. 13. p. 1126-1144.

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Debates sobre anistia e redemocratização em Belo Horizonte


(MG): uma análise a partir de um discurso
da vereadora Helena Greco

Autora: Maria Cruz Ferraz1

Nível de ensino: Ensino médio

Tema: Debates sobre anistia e redemocratização em Belo Horizonte (MG): uma análise
a partir de um discurso da vereadora Helena Grecco.

Disciplina: História

Interdisciplinaridade: Sociologia

Transversalidade: Direitos Humanos; Cidadania; Gênero e História; Fontes


documentais e Memória.

Descrição sumária dos documentos: Ata e trecho de gravação em áudio de reunião 270
ocorrida na Câmara Municipal de Belo Horizonte em 18/09/1990.

Documentos

Título: Leis e Projetos de Lei transformado em leis do acervo da Câmara Municipal de


Belo Horizonte (CMBH).

Gênero: Textual - Projetos de Lei - Folhas avulsas

Instituição de guarda: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte

Notação do documento: Fundo Diretoria Geral da CMBH. Subfundo Diretoria do


Legislativo. Série Projetos de Lei Transformados em Lei e Série Proposições.

1 Doutoranda em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF)

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Documento 1
Título: Ata da 2ª Reunião Ordinária ocorrida 18/09/1990 na Câmara Municipal de Belo
Horizonte

Gênero: textual (formatos: folha avulsa, encadernação, panfleto, flyer, folder, folheto,
jornal, convite)
Instituição de guarda: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte

Notação do documento: APCBH//DR.01.01.03_0049, páginas 017 a 021.

Documento 2
Título: Gravação em áudio de discurso proferido pela vereadora Helena Greco em
18/09/1990 na Câmara Municipal de Belo Horizonte e sua transcrição em texto.

Gênero: audiovisual

Instituição de guarda: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte

Notação do documento: APCBH//DR.02.02.00_0550


271

Objetivos da atividade
O processo de redemocratização do Brasil, nos anos 1980, envolveu esforços de
diferentes setores sociais e transformações na estrutura política do país. Neste contexto,
o debate sobre garantia de direitos era tema constante nos discursos realizados nas casas
legislativas. O objetivo desta proposta pedagógica é, portanto, pensar o debate público
sobre anistia, democracia, direitos humanos e liberdade na construção de novos valores
sociais para o país no início dos anos 1990.

Ambientada após debates em sala de aula sobre a Ditadura Civil-Militar (1964-1985) e a


transição democrática (1985-1990), esta proposta se utiliza de um discurso realizado na
Câmara Municipal de Belo Horizonte pela vereadora Helena Greco (liderança do
Movimento Feminino pela Anistia) para pensar as bases dos discursos políticos e sociais
no Brasil ao longo dos anos 1990. Com isso, busca-se analisar criticamente o legado das
mobilizações contra a Ditadura, o espaço das mulheres no debate público e o papel das
casas legislativas para a consolidação da democracia.

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Por fim, a proposta também objetiva retomar o conceito de “fontes históricas” e, a partir
dos documentos apresentados, ressaltar a relevância do “confronto de fontes
documentais”. Ao comparar o documento textual com o audiovisual, busca-se auxiliar
os(as) alunos(as) na compreensão da complexidade do fazer historiográfico e debater
sobre o ofício do(a) historiador(a).

Procedimentos/estratégia de ensino

Mapeamento de conhecimentos prévios

O início da abordagem de novos temas de ensino requer a busca por conhecimentos


prévios dos(as) alunos(as) visando mapear questões já conhecidas ou não. Com isso, é
possível retomar temas anteriormente trabalhados e auxiliar na contextualização do
debate que se deseja propor.

Nesta etapa, propõe-se, portanto, o levantamento de uma série de questões junto aos(às)
alunos(as), para que a classe possa formular respostas coletivamente:
- O que é democracia?
- O que foi a Ditadura Civil-Militar no Brasil?
- O que foram os movimentos pela anistia?
- O que foi a Lei da Anistia? 272
- Como era a participação de mulheres nas mobilizações contra a Ditadura?
- Como a Ditadura Civil-Militar acabou?
- O que é o poder legislativo?
- Como funcionava o poder legislativo durante a Ditadura? E como funciona agora?
- O que são os direitos humanos?
- O que é liberdade política?
- De que forma foram punidas as violações de direitos humanos promovidas pelo Estado
durante a Ditadura?
- O que são fontes históricas?
- Quais tipos de fontes históricas vocês conhecem?

Contextualização do tema

A partir das respostas dos(as) alunos(as) sobre as questões levantadas, propõe-se a


realização de uma apresentação geral do contexto do tema que se deseja trabalhar. Com
isso, é necessário responder às perguntas levantadas durante o mapeamento, focando nos
temas que geraram mais dúvidas entre os(as) alunos(as).
Esta contextualização do tema deve abordar, de forma sucinta, as seguintes questões:
- Os conceitos de “democracia”, “liberdade política”, “direitos humanos” e “anistia”;
- Relembrar discussões sobre o período final da Ditadura Civil-Militar (1964-1985), o
Movimento Feminino pela Anistia, contextualizar a atuação da organização em Belo
Horizonte e tratar da liderança de Helena Greco neste movimento;
- Falar brevemente sobre a história e o funcionamento da Câmara Municipal de Belo
Horizonte, especificamente das reuniões plenárias;

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- Retomar a noção de “fonte histórica” e de gêneros documentais.

Atividade de análise documental

Nesta etapa, propõe-se a entrega de uma atividade individual a ser realizada em casa pelos
alunos. Segue a atividade sugerida:

Atividade de análise documental: o discurso da vereadora Helena Greco


(18/09/1990)
1 – Leia atentamente o Documento 1 (Ata da 2ª Reunião Ordinária ocorrida 18/09/1990
na Câmara Municipal de Belo Horizonte) e responda às seguintes questões:
a) A qual gênero pertence este documento (textual, iconográfico, audiovisual, etc)?
b) Quem produziu este documento?
c) Do que se trata este documento?
d) Segundo o documento, qual o assunto abordado pela vereadora Helena Greco
durante a sua fala como oradora inscrita?
e) A partir do documento, é possível identificar outros vereadores tratando do
mesmo assunto?
f) Analisando o documento, é possível identificar os impactos da fala da vereadora
Helena Greco?

2 – Ouça atentamente o Documento 2 (Gravação em áudio de discurso proferido pela


vereadora Helena Greco em 18/09/1990 na Câmara Municipal de Belo Horizonte)
enquanto acompanha a sua transcrição. Em seguida, responda às questões:
273
a) A qual gênero pertence este documento (textual, iconográfico, audiovisual, etc)?
b) Quem produziu este documento?
c) Do que se trata este documento?
d) O que a vereadora quis dizer quando falou em “marcas, cheiros e vozes” que
permanecem?
e) A quais “desaparecidos” a vereadora fez referência?
f) Qual a importância da memória sobre os acontecimentos da Ditadura Civil-
Militar (1964-1985), segundo a vereadora?
g) A vereadora traçou paralelos entre crimes e violações ocorridos durante a
Ditadura e no contexto de sua fala em 1990. Quais crimes e violações são esses?
h) Quais críticas a vereadora fez em relação ao processo de anistia aos militares
participantes da Ditadura Civil-Militar (1964-1985)?
i) Qual o posicionamento dos vereadores que comentaram o discurso realizado pela
vereadora Helena Greco?

3 – Leia novamente o Documento 1 no trecho em que trata da fala da vereadora Helena


Greco (página 2, linhas 12 a 22). Em seguida, responda às questões:
a) Quais as diferenças entre o Documento 1 e o Documento 2?
b) Sobre a fala da vereadora Helena Greco, quais informações possuem no
Documento 1 que não são identificadas no Documento 2?
c) Quais informações possuem no Documento 2 que não são identificadas no
Documento 1?
d) Em sua opinião, algum dos documentos traz mais informações sobre a fala
realizada pela vereadora Helena Greco? Se sim, qual deles?

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Anexos da atividade de análise documental:

DOCUMENTO 1 (cinco páginas)

Ata da 2ª Reunião Ordinária ocorrida 18/09/1990 na Câmara Municipal de Belo


Horizonte

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REAPCBH – Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, v. 9, n. 9, dezembro de 2022 - ISSN: 2357-8513
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Documento 2

Gravação em áudio de discurso proferido pela vereadora Helena Greco em


18/09/1990 na Câmara Municipal de Belo Horizonte e sua transcrição em texto

Observação 1: Propõe-se o compartilhamento do áudio com os alunos via plataformas


digitais. No caso daqueles que não puderem ter acesso ao conteúdo em casa, sugere-se
deixá-lo disponível para acesso em algum computador na instituição de ensino.

Observação 2: Sugere-se que a transcrição do áudio seja feita e disponibilizada de forma


a facilitar a compreensão do conteúdo do áudio. É importante, ainda, que sejam
adicionadas notas explicativas quanto aos(às) vereadores(as) que aparecem na gravação
e alguns temas que são citados. Busca-se, com isso, melhor contextualização das falas,
como, por exemplo, quando é citado o movimento “Tortura Nunca Mais”. 278

Observação 3: A qualidade do áudio pode inviabilizar a compreensão de alguns trechos.


Por isso, caso seja possível, sugere-se realizar tratamento digital do documento antes da
realização da atividade.

Mapeamento dos impactos da atividade, discussão sobre os documentos analisados


e apresentação do tema

Nesta etapa da proposta, sugere-se mapear a percepção dos(as) alunos(as) sobre a


atividade de análise documental, buscando impressões e sensações causadas pela leitura
da ata de reunião e escuta do discurso. Neste momento, é válido que sejam levantadas
questões para a classe, como, por exemplo:
- O que acharam da atividade de análise documental?
- Quais dificuldades vocês tiveram durante sua realização?
- O que acharam da qualidade da gravação em áudio?
- De que forma a transcrição auxiliou na compreensão do discurso?
- Existem diferenças entre a transcrição e o áudio? Quais?
- O que sentiram em relação ao que foi falado pela vereadora Helena Greco?
- Qual a importância desses documentos para o estudo da História do Brasil?
- Qual a importância da existência de instituições públicas que guardam e organizam esses
documentos?
- A partir da atividade, como vocês percebem o trabalho dos(as) historiadores(as)?

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Após este novo mapeamento e das discussões geradas em classe pelas questões
levantadas, propõe-se a apresentação do tema. Para isso, é importante que sejam
abordados os seguintes tópicos:
- Os debates sobre a anistia concedida aos militares com o fim da Ditadura;
- A entrada dos(as) militantes que lutaram contra a Ditadura em instituições públicas,
especialmente nas casas legislativas, e suas atuações dentro destes espaços;
- A construção da Constituição Federal de 1988 e da Lei Orgânica de Belo Horizonte de
1990. A busca por garantias e direitos fundamentais e o legado da Ditadura na violação
destes direitos;
- Os diferentes projetos políticos, sociais e econômicos para o Brasil nos anos 1990.
Debates entre a direita e a esquerda brasileiras neste período;
- A importância das fontes documentais, sua organização, acesso e guarda adequados. A
relevância do “confronto de fontes” para o fazer historiográfico e da compreensão da
especificidade de cada tipo documental;
- A análise do discurso da vereadora Helena Greco e sua compreensão enquanto
construção de uma memória sobre a Ditadura. Os possíveis objetivos do discurso e os
elementos que apontam alguns impactos que a vereadora buscava causar.

Por fim, propõe-se que a apresentação explicativa do tema seja intercalada com pequenos
trechos da gravação em áudio do discurso proferido pela vereadora Helena Greco. Com
isso, objetiva-se apresentar os temas conectando com a análise documental.

Considerações finais 279


Após a apresentação do tema e da discussão sobre os documentos analisados, é possível
propor aos(às) alunos(as) que elaborem um pequeno texto sobre a temática ou, ainda,
sugerir pesquisas sobre temas correlatos, como, por exemplo, sobre a “Comissão
Nacional da Verdade” e o seu relatório final. É importante que, ao final da discussão,
os(as) alunos(as) tenham maior compreensão sobre os sentidos das fontes documentais e
as diferentes formas de analisá-las.

Referências
PAULA, A. G. Pensar a democracia: o Movimento Feminino pela Anistia, as Mães da Praça de Maio e os
intelectuais. In: ENCONTRO INTERNACIONAL DA ANPHLAC, 11., 2014, Niterói. Anais… São
Paulo: ANPHLAC, 2014. Disponível
em: http://antigo.anphlac.org/sites/default/files/Adriana%20de%20Paula.pdf Acesso em: 04. dez. 2022.

SILVA, Regina Helena Alves (Coord) et al. O Legislativo e a Cidade: Domínios de Construção do Espaço
Público. Belo Horizonte: CMBH, 1998.

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