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MARCELLO ANDRÉ MILITÃO

POR QUE VIRGULINO TORNOU-SE LAMPIÃO: UMA


ANÁLISE DAS RELAÇÕES DE PODER NO NORDESTE
BRASILEIRO DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA.

CURITIBA
2007
2

MARCELLO ANDRÉ MILITÃO

POR QUE VIRGULINO TORNOU-SE LAMPIÃO: UMA


ANÁLISE DAS RELAÇÕES DE PODER NO NORDESTE
BRASILEIRO DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA.

Monografia apresentada em cumprimento à


disciplina de Estágio Supervisionado em
Pesquisa Histórica, do Curso de História da
UFPR.
Orientadora: Profª. Judite Trindade.

CURITIBA
2007
3

SUMÁRIO

RESUMO................................................................................................................ 4

INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 5

CAPÍTULO 1 ....................................................................................................... 10

CAPÍTULO 2. ...................................................................................................... 21

CONCLUSÃO...................................................................................................... 42

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................. 44


4

RESUMO

Este trabalho de monografia tem como tema geral de pesquisa o cangaço,


fenômeno social que ocorreu no Nordeste do Brasil nas primeiras décadas do século
XX. Mais especificamente, o objeto de pesquisa apresenta-se na figura do cangaceiro
chamado Virgulino Ferreira da Silva, conhecido como Lampião.Tem por objetivo
investigar as causas que levaram o sertanejo Virgulino a tornar-se o bandido Lampião,
bem como analisar as relações de poder no Nordeste brasileiro. Para tanto, apresenta-se
uma contextualização social e política do período anteriormente citado e uma
recomposição da formação (biografia) de Lampião. A metodologia empregada apoiou-
se em reportagens contendo entrevistas (depoimentos de familiares do cangaceiro sobre
a vida de Lampião) publicadas na revista semanal O Cruzeiro, uma delas intitulada
“Porque Lampião entrou no cangaço”, publicada em 3 de outubro de 1953. Como fontes
complementares, obtive também uma entrevista com o próprio Lampião, provavelmente
a única que concedeu, além de matérias e excertos de jornais. Ademais, há a
necessidade de se posicionar diante de uma discussão historiográfica sobre o referido
tema: uma parte da historiografia brasileira sugere que Lampião (e o cangaço) não
passava de um fantoche, controlado pelos coronéis; a outra parte sustenta uma análise
justamente contrária, apresentando Lampião e seus cangaceiros como opositores dos
coronéis. Esta pesquisa conclui que o cangaço de Lampião tinha uma relação que não
comportava superioridade ou inferioridade constantes com os seus protetores, até
mesmo os mais ilustres coronéis. O cangaceiro não seria um revoltado contra o
coronelismo. Pelo contrário: se complementam. Os cangaceiros associavam-se aos
poderes locais ou impunham-se contra eles, resolvendo querelas e pendências
conflituosas. Estas situações dependiam das circunstâncias do momento.

PALAVRAS-CHAVE: Cangaço; cangaceiros; coronelismo.


5

INTRODUÇÃO

A grande seca de 1877-79 teve efeitos catastróficos para todo o Nordeste


brasileiro. Só no Ceará mais de 60 mil pessoas morreram de fome, sede e varíola.
Multidões de flagelados deixavam o sertão para tentar escapar da morte. E foi neste
clima de calamidade pública que surgiram os primeiros grupos de cangaceiros.

Esta monografia tem como tema de pesquisa o cangaço, entendendo-o como


um fenômeno social que ocorreu no Nordeste do Brasil nas últimas décadas do
século XIX até as primeiras décadas do século XX. Mais especificamente, o objeto
de pesquisa apresenta-se na figura do cangaceiro chamado Virgulino Ferreira da
Silva, conhecido como Lampião.Além de investigar as causas que levaram o
sertanejo Virgulino a tornar-se o bandido Lampião, esta monografia tem por
objetivo analisar as relações de poder entre cangaceiros e coronéis no Nordeste
brasileiro.

O cangaço é um tema que continua fascinando e inspirando obras em


numerosas áreas: antropologia, sociologia, história, literatura, arte, filmes e novelas.
Estas obras, na sua grande maioria, são inspiradas em torno da figura do mais
conhecido cangaceiro, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. A reverência dedicada
a Lampião é de certa forma um mito, pois para muitos ele era um paladino-justiceiro-
salteador ao mesmo tempo, considerado até como um tipo de “Robin Hood”
nordestino. Em geral, ele era tratado como herói, um nobre salteador, que tomava dos
ricos para dar aos pobres. Em 1931, o mais importante jornal americano, o The New
York Times, divulgou essa versão caridosa do criminoso. Mas a reverência ao
cangaceiro como figura nociva era exceção. Existe uma série de mitos e de
interpretações equivocadas sobre o cangaço, apresentando-o com uma auréola de
heroísmo ou de revolta contra as classes dominantes, como se o cangaço fosse uma
disposição revolucionária do sertanejo. Este projeto tem como objetivo ir além dos
mitos e entender o fenômeno do cangaço, principalmente o tipo de cangaço praticado
por Lampião e as relações deste com os poderosos locais, os coronéis latifundiários.

Para tanto, apresenta-se uma contextualização histórica da 1ª República e uma


recomposição da formação (biografia) de Lampião.A metodologia empregada
apoiou-se em reportagens e entrevistas (depoimentos de familiares do cangaceiro)
6

sobre a vida de Lampião, entrevistas estas publicadas na revista semanal “O


Cruzeiro”. Uma delas tem como título “Porque Lampião entrou no cangaço”,
publicada em 3 de outubro de 1953. Há ainda a análise de uma entrevista com o
próprio Lampião, concedida em abril de 1926 ao jornalista Otacílio Macedo em
Juazeiro, estado do Ceará, onde Lampião se encontrava a fim de receber a patente de
“capitão”, concedida pelo padre Cícero.

O cangaceiro era um tipo de bandido social, segundo Eric Hobsbawn: “O ponto


básico a respeito dos bandidos sociais é que são proscritos rurais, encarados como
criminosos pelo Estado, mas que continuam a fazer parte da sociedade camponesa e
são considerados por sua gente como heróis, como campeões, vingadores, paladinos,
justiceiros, talvez até mesmo líderes da libertação e como homens a serem ajudados e
apoiados. É essa ligação entre o camponês comum e o rebelde, o proscrito e o ladrão
que torna o banditismo social interessante e significativo.”1
Segundo Hobsbawm, o banditismo social é um fenômeno universal, dado que os
camponeses teriam todos eles um modo de vida similar, definido pelo acesso direto à
terra e a uma série de recursos naturais e de reciprocidades costumeiras na comunidade;
por isto, o banditismo social não tem um período definido numa cronologia unívoca.
Conforme Hobsbawm, a transição para o capitalismo agrário não acontece num
momento histórico específico e depende do momento em que se produz essa transição.
Nos países desenvolvidos, esta passagem aconteceu no século XVIII, enquanto nas
sociedades da América Latina, no século XX. O momento em que começa o banditismo
social pode não estar muito bem definido, mas está associado à desintegração da
sociedade tribal ou à ruptura da sociedade familiar. É evidente que o banditismo social
acaba com a difusão do capitalismo industrial e com a consolidação do Estado Nacional,
estando relacionado à emergência das classes, e da luta de classes que dão uma nova
orientação às lutas dos camponeses.
A análise de Hobsbawm baseia-se na existência de três tipos de bandidos: o
bandido nobre, como Robin Hood; os guerrilheiros primitivos; e o vingador. Estas
formas diferem segundo as regiões em que o banditismo social se desenvolveu, e que
não devem ser confundidas com as práticas de comunidades que têm no crime uma
forma de vida não diretamente relacionada com a transição para o capitalismo. Se os
bandidos alcançam uma certa notoriedade, isto se deve à influência de alguns fatores,

1
HOBSBAWN, Eric. Bandidos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1969.
7

como as crises políticas e econômicas da região, as estruturas do poder local e o poder


dos proprietários.
A imagem de Lampião combina em si a dupla posição de herói civilizador e de
bandido sanguinário. Em ambos os casos, é em relação ao seu meio social que é
definido: ele era um bandido porque a todo momento infringia regras morais, de honra,
de conduta; é herói, porque foi vítima destas mesmas regras, sem, no entanto, se deixar
vencer e introduzindo em seu meio novas regras. Na sociedade agrária nordestina era
comum um sertanejo pegar em armas para “vingar a honra”, para se defender dos
latifundiários que queriam oprimi-lo ou então para não pagar os impostos e tributos
devidos às autoridades.
O respeito por um bandido não era coisa nova no Nordeste do Brasil. Não surgiu
com as façanhas de Lampião. Teve precursores naquela região, tais como Cabeleira,
Jesuíno Brilhante, Antônio Silvino e outros. Porém, nenhum deles alcançou a fama que
se destinava a Lampião. Seja como for, o cangaceiro, considerado como homem de
grande valentia, era extremamente respeitado no Nordeste brasileiro. O que, inclusive,
favoreceu o banditismo. Ao realizar a leitura da bibliografia sobre o cangaço, pode-se
perceber a existência de uma série de mitos e de interpretações equivocadas,
apresentando-o com uma auréola de heroísmo ou de revolta contra as classes
dominantes, como se o cangaço fosse uma pré-disposição revolucionária do sertanejo.
Esta monografia tem como objetivo ir além dos mitos e entender o fenômeno do
cangaço, sendo necessário investigar as causas que levaram o sertanejo Virgulino a
tornar-se o temido Lampião e também analisar as relações de poder entre cangaceiros e
coronéis no Nordeste brasileiro, se posicionando diante de uma discussão
historiográfica sobre o cangaço praticado por Lampião: uma parte da historiografia
brasileira, apoiando-se no mito do cangaço, apresenta Lampião e seus cangaceiros como
opositores e superiores em poderio aos “coronéis” do sertão; a outra vertente sustenta
uma análise justamente contrária, afirmando que os cangaceiros não contestavam o
sistema e também não representavam os oprimidos, sugerindo que os grupos de
cangaceiros não passavam de fantoches, controlados pelos “coronéis” latifundiários.
Nesse sentido, é importante situar o cangaço na sociedade, na região, na política e
entender as relações de poder, as lutas de família e o coronelismo presente no Nordeste
do Brasil.
Como pode se notar, este projeto apresenta duas problemáticas distintas, mas
intimamente relacionadas entre si. Primeiramente, por que Virgulino tornou-se o
8

cangaceiro Lampião? Ou seja, por que os sertanejos ingressavam no cangaço? Nos


vários livros que existem sobre o cangaço, nas obras que contém entrevistas ou
depoimentos de ex-cangaceiros ou seus parentes e biógrafos, quase todos os cangaceiros
que são entrevistados afirmam que eles entraram para o cangaço por uma intriga da
polícia, ou porque eles foram ofendidos com a violação das mulheres de sua família, ou
porque fora assassinado ou espancado um parente qualquer ou ainda porque foram
expulsos de suas terras pelos coronéis.
Realmente, estes são alguns dos componentes que incentivaram a entrada de
sertanejos no cangaço. Mas cabe aqui salientar um fator fundamental: que toda essa
gente entrou no cangaço para encontrar um meio de vida, para sobreviver dentro de uma
sociedade bastante miserável. Lógico que é um simplismo muito grande achar que um
movimento intenso como foi o cangaço, durante mais de 60 anos na história do Brasil,
que atraiu centenas de bandoleiros sobreviveu tanto tempo simplesmente porque o
cangaço é o melhor meio de sobrevivência que existia no Nordeste. Infelizmente, não
era um meio de vida estendido a todos os nordestinos. Era preciso ter muita coragem
para se tornar um cangaceiro, ter muita disposição para enfrentar aquela vida que nunca
acabava bem para eles próprios.
Os aspectos econômicos do banditismo devem ser analisados de maneira
adequada. O fato de um sertanejo tornar-se cangaceiro podia ser visto como uma forma
de ascensão social e econômica, como uma forma de defesa das propriedades familiares.
O bandido também podia ser um agente intermediário nas relações econômicas
regionais, atuando por conta própria ou a mando dos poderosos regionais, neste caso os
coronéis latifundiários. E é aqui onde entra a segunda problemática do projeto: as
relações de poder entre coronéis e cangaceiros. Lampião e seu bando de cangaceiros não
contestavam o sistema do latifúndio e eram controlados e protegidos pelos “coronéis”
latifundiários? Ou os grupos de cangaceiros representavam os oprimidos e atuaram
como opositores dos latifundiários, sendo superiores em poderio aos “coronéis” do
sertão?
Há uma vertente, inspirada grandemente por Rui Facó2 que acredita que os
cangaceiros lutavam contra os coronéis e que considera estes últimos como os
opressores dos sertanejos pobres. No Nordeste, h autores como Frederico Bezerra

2
FACÓ, Rui. Cangaceiros e Fanáticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
9

Maciel 3, seguem a mesma linha. Entre os que entendem o cangaço de Lampião como
superior em poderio aos coronéis, situa-se a obra de Shaker.4 Do lado oposto – coronéis
como superiores em poderio a Lampião – está o livro de Chiavenato 5, uma das mais
recentes obras sobre o assunto. Portanto, cabe também esclarecer a que ponto a
sobrevivência dos cangaceiros dependeu dos chefes políticos influentes e, se tal apoio
dos coronéis efetivamente ocorreu, porque interessou aos coronéis apoiar os
cangaceiros.

3
MACIEL, Frederico Bezerra. Lampião, seu tempo e seu reinado. Petrópolis: Vozes, 1985.
4
SHAKER, Arthur. Pelo espaço do cangaceiro Jurubeba. São Paulo: Símbolo, 1979
5
CHIAVENATO, Júlio. Cangaço, a força do coronel. São Paulo: Brasiliense, 1990
10

CAPÍTULO 1

Coronelismo e cangaço: uma relação delicada

Em 28 de julho de 1938, o mais famoso dos cangaceiros,Virgulino Ferreira da


Silva, o Lampião, foi traído por seu “coiteiro” (coiteiro era a designação dada a aqueles
que ajudavam os cangaceiros) e morto, juntamente com Maria Bonita, sua companheira
e mais nove membros de seu grupo. O desaparecimento de Lampião anunciou o fim do
cangaço. Corisco, apelido de Cristino Gomes da Silva Cleto, homem de confiança de
Lampião e também um dos chefes importantes de sub-grupos, tentou vingar a morte do
rei do cangaço e encontrou sua própria morte em 1940. Oficialmente, foi o fim do
cangaço. Os demais cangaceiros se renderam, pois o presidente Getúlio Vargas havia
prometido anistia aos que se entregassem após a morte de Lampião.
A longa sobrevivência de Lampião e sua atuação por quase 20 anos nos sertões
nordestinos deveram-se há certos fatores tais como: excelentes estratégias, como não se
arriscar em demasia nos combates, prevenir reencontros com as forças policiais, além de
possuir bom conhecimento dos sertões por onde andavam. Ademais, os cangaceiros
também se aproveitaram de uma constituição federalista (que proibia forças policiais
perseguidoras de cangaceiros, conhecidas como “volantes”, de entrarem em outros
estados, a fim de continuarem suas perseguições aos cangaceiros) e usufruíram do apoio
de uma parte dos habitantes do sertão e, em último caso, mas não menos importante, o
apoio de protetores poderosos, os coronéis.
Entretanto, como o último ponto trás uma controvérsia, este trabalho se propõe a
analisar a que ponto a sobrevivência dos cangaceiros dependeu dos chefes políticos
influentes e por que aos coronéis interessava apoiar os bandidos. Mas antes é necessário
definir os coronéis e os cangaceiros, os diferentes argumentos e as relações entre os
coronéis e os cangaceiros, dependentes dessas definições.
Há uma vertente, inspirada por Rui Facó que prega que os cangaceiros lutavam
contra os coronéis e que precisamente considera os últimos como os opressores dos
sertanejos pobres.1 Dentro da produção cultural marxista, Facó elabora a idéia de que os
fenômenos de “fanatismo religioso” e “banditismo” corriam por conta da estrutura
feudal ou semifeudal do Nordeste brasileiro. Assim, o autor incorpora, em sua análise, a
tradição cultural do sertão medieval, presente na literatura de cordel, romances, peças de

1
FACÓ, Rui. Cangaceiros e Fanáticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
11

teatro etc., para caracterizar o “atraso” da sociedade e economia nordestinas, bem como
a ausência de consciência social dos sertanejos, no sentido de transformar as relações
“semifeudais” de produção. Suas opções para os pobres do campo, sem consciência de
classe, eram o ingresso nos bandos de cangaceiros e/ou a adesão aos grupos religiosos
com lideranças carismáticas.
Para Facó, ainda que os camponeses não tivessem objetivos claros de suas ações
nos bandos de cangaceiros e/ou religiosos, estes movimentos representavam o momento
de enfrentamento e resistência ao poder do latifúndio. Por isso, a luta heróica do
sertanejo para sua sobrevivência vai ser resgatada pela produção cultural marxista, pois
os movimentos de rebeldia do passado situavam-se como precursores de uma tradição
revolucionária. E, neste sentido, o cangaceiro tornar-se-á um problema da história
contemporânea e reconhecido, muitas vezes, como herói e mito político na luta contra
os males do latifúndio.
A transformação do cangaceiro em signo de rebelião no discurso da esquerda
nos anos de 1940 e 1950 surgiu exatamente no momento em que o cangaço deixa de ser
história para se tornar mito na produção cultural brasileira, seja literária, artística ou
acadêmica. É dentro deste contexto, que a “compreensão do cangaço se alargava para
além dos limites de sua existência efetiva, invadindo as paragens do imaginário e se
enriquecendo com significados múltiplos, que não pertenciam nem à sua origem, nem à
sua vigência real. Toda esta discussão em torno do cangaço fora norteada,
principalmente, por dois parâmetros: a oposição de certos intelectuais contra as camadas
dominantes e sua representação, o governo; um sentimento nacionalista generalizado,
que as condições econômicas reforçavam”.2
Portanto, Facó considera os cangaceiros como vanguardeiros políticos, como “o
prólogo da luta armada” que haveria de vencer o latifúndio e encaminhar a revolução
brasileira. No Nordeste, alguns autores como Frederico Bezerra Maciel, seguem a
mesma linha.3 Eric Hobsbawn faz uma análise dos cangaceiros como classe, como
bandidos sociais, como uma categoria à parte, como vingadores. “O ponto básico a
respeito dos bandidos sociais é que são proscritos rurais, encarados como criminosos
pelo Estado, mas que continuam a fazer parte da sociedade camponesa e são
considerados por sua gente como heróis, como campeões, vingadores, paladinos,

2
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. História do Cangaço. 4ª edição. São Paulo: Global, 1991 (Coleção
História Popular, n. 11), pp. 66-67.
3
MACIEL, Frederico Bezerra. Lampião, seu tempo e seu reinado. Petrópolis: Vozes, 1985.
12

justiceiros, talvez até mesmo líderes da libertação e como homens a serem ajudados e
apoiados. É essa ligação entre o camponês comum e o rebelde, o proscrito e o ladrão
que torna o banditismo social interessante e significativo”.4
Todavia, os cangaceiros sozinhos não eram poderosos o suficiente para lutar
contra os que detinham o poder. O outro extremo de análise se trava entre aqueles que
consideram os grupos de cangaceiros como os instrumentos de dominação dos coronéis,
intimidando a população pobre dos sertões nordestinos. Esta tese é estabelecida por
Júlio Chiavenato5, na qual o autor pretende acabar com os mitos a respeito do cangaço.
Para o autor, os cangaceiros não contestavam o sistema, não praticavam a guerrilha e
também não representavam os oprimidos. Chiavenato afirma que os cangaceiros
representavam os interesses dos coronéis, funcionando como instrumentos de domínio e
intimidação da população pobre nordestina. Em vez de guerrilha praticavam banditismo
de controle social, em uma região marcada pela questão fundiária e pela fome.A tese do
autor procura reforçar o conceito de que o cangaço foi um fenômeno derivado dos
interesses do poder.
Para Chiavenato é necessário “derrubar” o mito popular que afirma que o
cangaço foi um movimento popular do sertanejo contra o sistema.Segundo o autor, os
cangaceiros foram estimulados e mantidos por grupos de latifundiários para assegurar o
domínio no campo e controlar a população sertaneja.
Maria Isaura Pereira de Queiroz já indicava o uso de grupos de cangaceiros por
coronéis quando ela classificou dois tipos de bandos que existiram durante um dos
períodos mais famosos de seca no sertão, a partir de 1877. Esta autora distingue, de um
lado, um líder cangaceiro “protetor” chamado José Rodrigues, que ajudava os retirantes
e de outro, João Calangro, que garantia a ordem e a propriedade dos coronéis.6
Já em 1831, quando teve início no Brasil o período da Regência, os partidos
formados por membros da aristocracia, – exercendo o poder em lugar de D. Pedro II, o
príncipe herdeiro, então menor de idade – decidiram implementar, com o apoio
estratégico de camadas urbanas radicais, medidas de descentralização tendo em vista o
favorecimento de seus interesses privados. Assim, as províncias passaram a dispor do
direito de escolher seus presidentes por meio de sistemas eleitorais próprios. Os postos
judiciais e policiais foram preenchidos mediante eleições locais e os Conselhos de

4
HOBSBAWN, Eric. Bandidos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1969.
5
CHIAVENATO, Júlio José. Cangaço, a força do coronel. São Paulo: Brasiliense, 1990.
6
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Os cangaceiros. São Paulo: Duas Cidades, 1977, p. 63.
13

Províncias, que possuíam caráter apenas consultivo, viriam a ser substituídos por
Assembléias Legislativas com amplos poderes, como, por exemplo, o de estipular
normas legais nas áreas civil, militar, política e econômica dos municípios.
A descentralização militar seria efetuada com a criação da Guarda Nacional em
1831, que investiria grandes proprietários de terra e pessoas eminentes de povoados nos
cargos de coronel, major ou capitão, outorgando-lhes a prerrogativa de formar milícias,
ou seja, forças militares de caráter privado, para exercer funções policiais e militares
que deveriam ser prerrogativas do poder público. Assim, dispondo de poder militar, os
coronéis passaram a exercer o monopólio da violência legal nas regiões sob sua
jurisdição, gozando de impunidade judicial.7
Fazer parte da Guarda Nacional implicava deveres e, por conseqüência,
privilégios. Entre estes últimos, figurava o direito de não poder ser preso por um oficial
de patente inferior, nem mesmo ficar numa prisão comum; um simples soldado não
podia revistar um oficial, mesmo num delito flagrante. Como conseqüência, o termo
coronel tomou uma conotação política, sendo utilizado para a maioria dos que estavam
na reserva entre os grandes proprietários e os grandes comerciantes, entre aqueles que
detêm o poder. Assim, o título de coronel tornou-se sinônimo de chefe político local.
Com a proclamação da República em 1889 e o estabelecimento de um sistema
federativo de governo, cada Estado federado poderia contrair empréstimos externos e
beneficiar-se do imposto sobre as exportações, prerrogativas essas que viriam a
fortalecer excessivamente os Estados produtores de café, mais especificamente São
Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. O resultado desse arranjo político, com o
enfraquecimento do poder central e de seu controle político pelos cafeicultores e
pecuaristas, foi a oligarquização da República.
O poder político das oligarquias estaduais tornou-se uma das principais
características das primeiras décadas republicanas, período conhecido como Primeira
República. Na obra de Nelson Werneck Sodré, Formação histórica do Brasil (1962), a
Primeira República é pensada em termos de um sistema de dominação do latifúndio,
cuja dinâmica se configura em três fases: a da implantação, em que haveria um
predomínio do poder da classe média através da atuação dos militares; a da
consolidação, em que o controle exclusivo estaria nas mãos das oligarquias

7
PRADO JR., Caio. Evolução Política do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 14ª. ed., 1985, p. 141.
14

latifundiárias; e a do declínio, marcada pela expansão da burguesia industrial e da classe


média, e pela disputa desses setores pelo controle do poder.8
Como parte integrante dessas oligarquias latifundiárias, estavam os coronéis que
passaram a desempenhar uma função política crucial: a de controlar os votos do
eleitorado rural. Em troca, os governos estaduais concederam aos coronéis uma série de
prerrogativas que aumentaram ainda mais o seu poder. Estes passaram a distribuir
empregos e cargos públicos a seus protegidos, assistência médica, hospitalar e judicial,
vagas em escolas e socorro em situações de calamidade (particularmente as secas, no
Nordeste). Muitas vezes, o recurso da opressão e da violência era empregado para
controlar o voto de cabresto.
E, mais uma vez, a descentralização política promovida pelo regime republicano
irá favorecer o aprofundamento das tensões sociais existentes. quando as oligarquias
rurais, gozando de plena autonomia, passaram a exercer um poder extremamente
arbitrário, violento e opressivo sobre a população local.
Está em vigência, portanto, o arbítrio dos coronéis que, nos limites de seus
domínios, exercem um poder quase absoluto, sem restrições, fundado na dominação
pessoal efetivada por meio da contraprestação de serviços e de favores e garantida por
intermédio da violência legal.
Nas primeiras décadas do século XX, o grau de legitimidade do poder público
era ainda baixo devido aos vícios existentes no sistema de representação partidária e
eleitoral. Dessa forma, o Estado estava constituído para preservar certos interesses
particulares de indivíduos e famílias colocando em risco os interesses mais gerais. O
caráter oligárquico do Estado se exprimia nos sertões na forma de opressão e de
violência perpetrada pelos latifundiários contra a população pobre.
Na Primeira República, cumprindo o seu papel dentro de um sistema
oligárquico, o voto simbolizava uma prova de fidelidade e lealdade às situações
estaduais. A despeito das diferenças em termos de cacifes políticos dos atores
envolvidos nesse jogo de barganhas e das práticas fraudulentas observadas no período, o
voto era essencialmente uma moeda de troca. Assim, através do controle do eleitorado
rural, era possível aos donos de terras e chefes políticos locais recriar o paraíso perdido
do sufrágio censitário.

8
SODRÉ, Nelson Werneck. Formação histórica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1962.
15

O poder do chefe local foi definido assim por Victor Nunes Leal: “A essência,
portanto, do compromisso“coronelista” - salvo situações especiais que não constituem
regra - consiste no seguinte: da parte dos chefes locais, incondicional apoio aos
candidatos do oficialismo nas eleições estaduais e federais; da parte da situação
estadual, carta-branca ao chefe local governista (de preferência o líder da facção local
majoritária) em todos os assuntos relativos ao município, inclusive na nomeação de
funcionários estaduais do lugar.”9
O fenômeno do coronelismo não correspondeu a um reforço do poder local
através de mais benefícios aos antigos senhores rurais, pois estes nunca chegaram a
abandonar sua autonomia; no entanto, durante a Primeira República, os coronéis podiam
usufruir de duas autonomias: a legal e a extra-legal. Se a primeira não funcionasse, a
segunda era usada largamente. Isso representou uma verdadeira carta-branca na
nomeação dos chefes de polícia, dos encarregados de receber impostos, dos titulares de
outras funções administrativas possíveis, os quais mantinham fora do conhecimento dos
funcionários do Governo Federal quase todas as ações do chefe local, incluindo atos
arbitrários, certamente violentos. Esse poder extra-legal está, evidentemente, reservado
unicamente aos amigos do governo ao nível de Estado.
Os fazendeiros podiam aceitar um chefe local dominando sobre todos por várias
razões: as qualidades do chefe, as tradições (um posto para os da mesma família) e os
fatores econômicos (os proprietários mais ricos e com mais “voz” nas eleições, que
podiam gastar mais nas campanhas eleitorais). Há ainda as relações familiares que
devem ser levadas em consideração por representarem um papel importante, como os
casamentos. No sistema coronelista, os casamentos foram empregados de duas
maneiras: o casamento no interior da própria parentela – maneira de impedir que a
fortuna fosse para as mãos de estranhos ou se dividisse; e o casamento fora da parentela,
tendo como resultado a aliança de dois grupos poderosos que passavam a ser “parentes”
e portanto unidos.
Numa sociedade em que as relações básicas se haviam sempre regido pela
reciprocidade dentro da parentela, tanto na mesma camada, quanto entre camadas de
posição sócio-economica diferente, o mesmo modelo se estende ao setor político, no
momento em que este ganha amplitude. Isto faz com que a causa de um chefe seja
realmente a causa dos chefiados, de maneira clara e concreta. Se o coronel era da

9
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo, no Brasil.
São Paulo: Alfa-Omega, 2. ed., 1975, pp. 49-50.
16

“situação”, seus apaniguados tinham liberdade de ação para fazer o que quisessem, com
a certeza de ficarem impunes; quando o coronel se encontrava na “oposição”, ele e sua
gente eram perseguidos, aprisionados e revidavam pagando violência com violência.
Sobre este aspecto, Maria Isaura Pereira de Queiroz salienta que “... os coronéis se
devoraram entre si, muito mais do que devoraram seus apaniguados; situação e
oposição se chocavam em entreveros sangrentos, muito mais do que os chefes de uma e
outra com relação aos subordinados. Toda a história da Primeira República é formada
por lutas deste tipo, muito mais do que pela opressão dos coronéis a seus inferiores.”10
Portanto, percebe-se que dentro e fora da das parentelas, as relações podiam ser
de aliança, com base nos laços afetivos e na semelhança de interesses econômicos e
políticos; mas também podiam ser de competição e de rivalidade, levando a conflitos
sangrentos, desencadeados até por causas aparentemente sem importância. Também não
eram raros as rupturas no interior das parentelas, levando à formação de dois novos
grupos que se distinguiam pela ferocidade de suas relações. Na base destes
dilaceramentos estavam quase sempre ambições de mando e decorriam da possibilidade
de ascensão a postos mais elevados na hierarquia do poder. Aquele que tem o poder
pune os inimigos, como exprimia um ditado popular da época: “para os amigos, tudo,
para os inimigos o rigor da lei!”
Em sua análise, Victor Nunes Leal procura examinar sobretudo o sistema, a
estrutura e a maneira pelas quais as relações de poder se desenvolviam na Primeira
República, a partir do município. Na sua concepção, o coronelismo é um sistema
político, uma complexa rede de relações que vai desde o coronel até o presidente da
República, envolvendo compromissos recíprocos. O coronelismo, além disso, é datado
historicamente. Na visão de Leal, ele surge na confluência de um fato político com uma
conjuntura econômica. O fato político é o federalismo implantado pela República em
substituição ao centralismo imperial. O federalismo criou um novo ator político com
amplos poderes, o governador de estado. O antigo presidente de Província, durante o
Império, era um homem de confiança do Ministério, não tinha poder próprio, podia a
qualquer momento ser removido, não tinha condições de construir suas bases de poder
na Província à qual era, muitas vezes, alheio. No máximo, podia preparar sua própria
eleição para deputado ou para senador.

10
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira. São Paulo:
Instituto de Estudos Brasileiros, 1969.
17

O governador republicano, ao contrário, era eleito pelas máquinas dos partidos


únicos estaduais, era o chefe da política estadual. Em torno dele se arregimentavam as
oligarquias locais, das quais os coronéis eram os principais representantes. Seu poder
consolidou-se após a política dos estados implantada em 1898, no governo de Campos
Sales, quando este decidiu apoiar os candidatos eleitos "pela política dominante no
respectivo estado".
A conjuntura econômica, segundo Leal, era a decadência econômica dos
fazendeiros. Esta decadência acarretava enfraquecimento do poder político dos coronéis
em face de seus dependentes e rivais. A manutenção desse poder passava, então, a
exigir a presença do Estado, que expandia sua influência na proporção em que diminuía
a dos donos de terra. O coronelismo era fruto de alteração na relação de forças entre os
proprietários rurais e o governo e significava o fortalecimento do poder do Estado antes
que o predomínio do coronel. O momento histórico em que se deu essa transformação
foi a Primeira República, que durou de 1889 até 1930.
Nessa concepção, o coronelismo é, então, um sistema político nacional, baseado
em barganhas entre o governo e os coronéis. O governo estadual garante o poder do
coronel sobre seus dependentes e seus rivais, sobretudo cedendo-lhe o controle dos
cargos públicos, desde o delegado de polícia até a professora primária. O coronel
hipoteca seu apoio ao governo, sobretudo na forma de votos. Os governadores dão seu
apoio ao presidente da República em troca do reconhecimento deste de seu domínio no
estado. O coronelismo foi a fase de processo mais longo de relacionamento entre os
fazendeiros e o governo, sendo definitivamente enterrado em 1937, em seguida à
implantação do Estado Novo e à derrubada de Flores da Cunha, o último dos grandes
caudilhos gaúchos.
Contudo, embora as práticas de natureza coronelística representem o principal
componente do sistema político da Primeira República e nelas os chefes locais atuem
como intermediários nas relações entre as populações rurais e o Estado - o que vem
romper com a idéia da existência de uma dicotomia entre o público e o privado,
apontado para uma certa fluidez nos limites entre estas esferas -, o coronelismo não
abrange todas as formas de articulação política no período. Práticas clientelísticas
também faziam parte daquela dinâmica política. O clientelismo, no entanto, não é um
18

sistema. Trata-se na verdade de um atributo variável de sistemas políticos macro que


perpassam toda a história política do país.11
Neste tipo de relação, políticos ou o governo trocam com setores pobres da
população votos por empregos e serviços sem a mediação de terceiros. É o caso das
práticas comuns em épocas eleitorais, que muitas vezes são confundidas com
coronelismo. É razoável supor, contudo, que nas práticas clientelísticas observadas na
Primeira República o cidadão ativo, sem maior projeção no mundo político, utilizava-se
da mesma estratégia acionada pelos chefes locais no que diz respeito à busca da aliança
com o governo. Ambos empenhavam sua fidelidade política em troca de um benefício.
A grande diferença é que no compromisso entre o governo e os chefes locais estes
últimos obtinham uma autonomia extralegal para continuar influindo nos rumos da
política municipal, ao passo que na aliança dos cidadãos ativos com o governo, o que os
primeiros obtinham era o atendimento a necessidades variadas e, principalmente, um
emprego público como forma de prover o seu sustento.
É importante notar ainda que na medida em que vão se processando mudanças
no perfil da sociedade brasileira, com o avanço da população urbana sobre a rural, a
emancipação do poder judiciário com relação ao poder privado e o Estado ou governo
passa a estabelecer uma relação direta com o eleitorado, o coronelismo tende a
decrescer na mesma proporção em que aumenta o clientelismo.
Assim, se o coronelismo na obra de Victor Nunes é um sistema político
historicamente datado, específico da Primeira República, originário da confluência de
um fato político - o federalismo implantado pela República- e de uma conjuntura
econômica, nos trabalhos de autores como Maria Isaura Pereira de Queiroz o
conceito de coronelismo ganha uma amplitude significativa, passando a incorporar
manifestações urbanas e conjunturas históricas mais atuais.12
Queiroz amplia a caracterização do coronelismo para incorporar manifestações
urbanas, em que podem ser definidos como coronéis os comerciantes, muitas vezes
desvinculados da propriedade da terra. Segundo esta autora, no Brasil o poder
decorrente de outros bens de fortuna (como o comércio) superou o poder trazido
exclusivamente pela posse da terra, isto porque a posse da terra só se tornou fonte de

11
CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual. In:
Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, vol. 40, nº 2, 1997, pp. 229-250.
12
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O coronelismo numa interpretação sociológica. In: FAUSTO,
Boris (org.) História Geral da Civilização Brasileira (tomo III, vol. 1). São Paulo: DIFEL, 1975, pp. 153-
190.
19

poder para quem possuía capitais para explorá-la ou para quem conseguia reunir gente
que, em troca de uma parcela, se obrigasse a servir e a defender o proprietário
De acordo com a autora, um coronel importante constituía uma espécie de
elemento socioeconômico polarizador, que servia de referência para se conhecer a
distribuição dos indivíduos no espaço social, fossem estes seus pares ou seus inferiores.
O coronel era o elemento chave para se saber quais as linhas políticas divisórias entre os
grupos e os subgrupos na estrutura tradicional brasileira. A pergunta: “Quem é você?”
recebia invariavelmente a resposta : “Sou gente do coronel Fulano”. Esta maneira de
redargüir dava imediatamente a quem ouvia as coordenadas necessárias para conhecer o
lugar socioeconômico do interlocutor, além de sua posição política. A formulação
“gente” indicava individuo de nível considerado inferior, que podia inclusive ser
parente, mas seria parente pobre.
Em segundo lugar, a ligação com o coronel Fulano também dava imediatamente
a conhecer se o individuo estava em posição de apoio ao poder local ou regional, ou
contrário a este pois ninguém desconhecia a atitude dos coronéis, com relação à situação
ou à oposição. Finalmente, também a posição do coronel Fulano com relação a outros
coronéis era conhecida de todos; o individuo que era seu protegido também tinha as
mesmas alianças e as inimizades, isto é, se colocava como aliado ou antagonista da
“gente” de outros coronéis. Noutras palavras, “gente” do coronel significava então a
clientela deste.
A localização sócio-política tendo por ponto de referência o coronel não era,
porém, peculiar apenas aos indivíduos das camadas inferiores, mas se estendia a todos
os escalões sociais. Todo coronel era integrante em nível elevado de um grupo de
parentela mais ou menos vasto e os grandes coronéis se constituíam realmente em
chefes supremos tanto de sua parentela quanto de parentelas aliadas.
Segundo Maria Queiroz, ao se decidir estudar a estrutura coronelística de uma
região, há de se verificar também se o local se trata de região em que o mando de um
coronel ou de uma parentela é único e rígido; ou se trata de local em que diversas
famílias disputam o poder. No primeiro caso, trata-se realmente de um poder absoluto,
mas por isso mesmo que é absoluto não dá margem quase a lutas. Estas últimas podem
ser terríveis quando duas ou mais famílias pretendem “reinar”.
A autora conclui que a multiplicidade dos coronéis é o aspecto essencial, a
originalidade da estrutura política do Brasil na Primeira República, traço que se prende
20

diretamente à estrutura sócio-econômica tradicional do país, fundamentada em grupos


de parentesco de sangue com suas alianças e grupos de associados políticos-
econômicos. O coronelismo se integra como um aspecto específico dentro do conjunto
formado pelos chefes que compõem o mandonismo local brasileiro. Embora aparecendo
a apelação de coronel desde a segunda metade do Império, é na Primeira República que
o coronelismo atinge sua plena expansão e a plenitude de suas características.
21

CAPÍTULO 2
As relações de poder entre cangaceiros e coronéis

Apesar das descrições dadas pelos autores aos cangaceiros sertanejos rebeldes
com o estereotipo de homens pobres, os chefes dos grupos de cangaceiros vinham de
fato de famílias que possuíam propriedades. Os cangaceiros chefes Jesuíno Brilhante e
Sebastião Pereira (Sinhô Pereira) provinham de famílias importantes. Antonio Silvino
também tinha ascendentes ilustres, entre eles os Brilhante. Lampião veio de uma família
um pouco menos importante, mas que pertencia ao mesmo meio. Sua família, os
Ferreira, eram os inimigos de seu vizinho José Saturnino. Este último contava com o
auxílio dos Nogueira, pois era casado com uma mulher da família dos Nogueira.
Pode-se perceber que uma das causas do surgimento do cangaço foram as longas
lutas de famílias. Certamente algumas dessas lutas podem ter durado gerações, pois
algumas lutas remontam às vezes à época colonial, como a que opunha os Monte e os
Feitosa, no Ceará; a luta entre os Carvalho e os Pereira, em Pernambuco, data do século
XIX e se prolongou por uma boa parte do século XX; os Brilhante lutaram contra os
Limões, no Rio Grande do Norte; Silvino Ayres e Antonio Silvino lutavam pelos
Dantas-Cavalcanti Ayres combatendo contra os Carvalho Nóbrega, dos quais Liberato
Nóbrega era um dos representantes.
Até recentemente, as querelas das famílias continuaram no Nordeste. No estado
de Alagoas, os Calheiros combateram os Omena, durante os anos 80, em pleno centro
de Maceió. Em Pernambuco, em Exu, uma pequena vila do sertão, a luta entre os
Alencar de um lado contra os Sampaio e os Saraiva de outro, eclodiu primeiro em 1949
até os anos 80, com assassinatos e sem o conflito cessar, a tal ponto que o estado de
Pernambuco, por meio de um alto dignitário da Igreja, se encarregou de resolver os
problemas entre as famílias, em vão. A justiça, por sua vez, não pode tomar um partido,
pois se um processo vai aos tribunais, o assassino fica livre por falta de provas. Assim,
as vinganças continuaram.
Uma ilustração do vigor das querelas é um depoimento do coronel Antônio
Pereira. Encarcerado em 1917 na penitenciária de Fortaleza e solto em seguida por uma
ordem de habeas-corpus, este homem falou sobre a luta de sua família contra os
Carvalho, em uma entrevista publicada no Correio do Ceará e citada na obra de
Leonardo Mota: “... não há governo que dê jeito à minha luta com os Carvalho. Isto é
uma questão de sangue! Só quando Deus acabar com o último Pereira, é que Carvalho
22

deixa de ter inimigo neste mundo... o sr. Quer saber de uma coisa? Lá no meu Pajeú,
quando um menino da família Pereira começa a crescer, vai logo dizendo: Tomara já
ficar homem, pra dar cabo de um Carvalho! A mesma coisa dizem os meninos deles. É
o que eu digo: é uma questão de sangue!”1
Se uma mulher da família Carvalho se casasse com alguém da família Pereira ou
vice-versa - isso ocorria ocasionalmente – a mulher automaticamente se torna membro
da família de seu marido. Só os homens das famílias podiam permanecer entre os seus.
Atualmente, os Carvalho e os Pereira não se matam mais, mas não mantém relações de
amizade e não entram em uma loja onde um membro da família inimiga é proprietário.
Na família era considerada também a parentela: faz-se parte da família pelos
laços de sangue, incluindo as crianças não-legitimas e também aqueles que se uniam
pelo casamento e pelo compadrio. O coronel era o chefe da família e, através do
compadrio, seus empregados faziam parte da família. O compadrio, ao envolver
fazendeiros e sitiantes se convertia em um instrumento de dominação, mas ao mesmo
tempo cria uma aparente igualdade entre compadres. O próprio tratamento igualitário
fazia parte da trama de dominação. Trocava-se auxílio econômico por filiação política:
compadres e outros sitiantes eram votantes incondicionais dos fazendeiros e dos
candidatos indicados por eles.
Essa dominação tinha como um dos seus pressupostos o constante refazer de
contraprestação de serviços, impondo um limite à arbitrariedade do dominante:
fidelidade e lealdade apoiados em um esquema de favores recíprocos terminavam por
anular totalmente a possibilidade dos dominados se auto-representarem, se constituírem
como entidades dotadas de interesses e existência autônoma. Não é possível a
descoberta de que sua vontade está presa à do superior, pois o processo de sujeição tem
lugar como se fosse natural e espontâneo. Assim, a dominação pessoal transforma
aquele que a sofre numa criatura domesticada: proteção e benevolência lhe são
concedidas em troca de fidelidade e serviços.
As promessas dos coronéis para com os agregados tinham uma obrigatoriedade
restrita: quando necessário e conveniente aos fazendeiros, rompiam-se facilmente as
obrigações decorrentes das associações morais em favor das ligações de interesse,
expulsando-os de suas terras. Este rompimento expunha a fragilidade das obrigações

1
MOTA, Leonardo. Violeiros do Norte, poesia e linguagem do sertão nordestino. Fortaleza, Imprensa
Universitária do Ceará, 1962, 3ª ed., pp. 219-220.
23

pessoais e abria-se um possível caminho para a sua libertação. Postos à margem do


arranjo estrutural e dos processos essenciais à vida social e econômica, os agregados
foram os mais qualificados para enfrentar a ordem estabelecida.
Sendo o chefe da família, o coronel era considerado como o responsável por
todas as demais pessoas. Em contrapartida, os empregados se comprometiam em servir
à família, defendendo-a em caso de necessidade. Para as populações sertanejas, o acesso
à terra tinha uma importância fundamental. Os homens livres dependiam dos
fazendeiros, para terem acesso à terra. Para os fazendeiros, a presença desses agregados
em suas terras também era importante: além da ocupação e conseqüente aproveitamento
do solo, esses agregados podiam vir a ser armados, constituindo-se em instrumentos de
poder a serviço dos diversos interesses das camadas dominantes, nas suas disputas por
terras e poder político. Assim, o acesso à terra é a fonte sobre a qual se ergue a
dominação.
A terra, por si só, não é um meio de produção suficiente. Para os sertanejos
nordestinos a água também é fundamental. A propriedade das fontes de água é crucial
no sertão, principalmente durante os períodos de seca prolongada. Na realidade ocorria
um processo de monopolização, por parte dos coronéis que possuíam em suas
propriedades as mais abundantes fontes de água. Para que os sitiantes e agregados
usassem da água que se encontrava nas terras dos fazendeiros era necessária a
permissão destes últimos. Assim, a água, em determinados momentos, convertia-se
também num instrumento de dependência.
As querelas de família vinham da rivalidade pela conquista de poder político ou
através de disputas que se intensificaram entre vizinhos pela reivindicação de direitos
sobre a mesma propriedade ou de parte dela. No sertão, onde a água é raramente
abundante, um ribeiro situado entre dois proprietários podia ser causa de sérios
problemas durante as épocas de seca. Os limites entre as propriedades inexistiam, pois
não havia muros ou cercas e os animais andavam livremente.
Os vaqueiros se encarregavam na tarefa de reconduzir os animais extraviados e
de encaminhá-los aos proprietários. Essa “recuperação” de animais extraviados tornou-
se causa de conflitos sérios no Nordeste entre muitos proprietários, assim como o roubo
de cavalos, que era considerado pior ainda. Por outro lado, matar o gado de seus
inimigos também era comum e era uma maneira de satisfazer sua vingança. A querela
entre os Ferreira (família de Lampião) e seu vizinho José Saturnino teve inicio nas
declarações dos Ferreira de que um morador de José Saturnino tinha roubado uma de
24

suas cabras. Mas nesse ponto, é interessante passar a analisar a reportagem de Luciano
Carneiro intitulada “Porque Lampião entrou no cangaço”, publicada na Revista “O
Cruzeiro” de 3 de outubro de 1953.2
Pode-se questionar porque uma revista com circulação nacional como “O
Cruzeiro”, reconhecida como uma das maiores publicações brasileiras em sua época
áurea, publicaria em suas páginas reportagens sobre Lampião, mesmo passados quinze
anos após a morte do cangaceiro, que ocorreu em 1938. Primeiramente, ressalte-se que a
reverência dedicada ao cangaceiro é de certa forma um mito, pois para muitos ele era
um paladino-justiceiro-salteador ao mesmo tempo, considerado até como um tipo de
“Robin Hood” nordestino.
A entrevista concedida por João Ferreira, (o único irmão de Lampião que não
entrou para o cangaço como os demais) foi a fonte principal do repórter Luciano
Carneiro. Percebe-se também que os dados históricos e cronológicos sobre a entrada de
Virgulino no cangaço, dados estes que Luciano Carneiro obteve de João Ferreira, são
fragmentados. Contudo, todas as análises que consultei são unânimes em afirmar que o
âmago da questão foi um vizinho dos Ferreira, José Saturnino.
O repórter Carneiro pretendia conhecer a história de João sobre a família
Ferreira, examinando cada detalhe de seu depoimento com os demais sobreviventes da
época, inclusive com as autoridades daquele tempo e com os inimigos da família
Ferreira. Não aceitando esta proposta de Carneiro, João só concordou em falar se o
repórter não comparasse e misturasse sua entrevista com uma entrevista de José
Saturnino, que ainda vivia em 1953. Ademais, o repórter chegou a sugerir que João e
Saturnino fossem entrevistados juntos, coisa que João não aceitou, declarando que
nunca ficaria próximo do responsável pela desgraça de sua família, nem numa
entrevista. Sertanejos dificilmente perdoam ou “engolem” afrontas. João só concordou
em ser entrevistado se o repórter não entrevistasse Saturnino e, assim, a entrevista
ocorreu.
Os Ferreira moravam em Serra Vermelha, município de Serra Talhada, em
Pernambuco. Dedicavam-se à agricultura e à criação de animais. José Ferreira, o pai
de Virgulino, era adversário político de seu vizinho José Saturnino, mas ambos

2
CARNEIRO, Luciano. Porque Lampião entrou no cangaço. In: Revista semanal “O Cruzeiro”. Rio de
Janeiro, 3 de outubro de 1953, ano XXV, número 51, pp. 38-41, cont. 36, 42,88 e 6.
25

mantinham boas relações. A inimizade entre os Ferreira e Saturnino começou em 1916,


quando Virgulino contava 19 anos de idade.
As causas citadas para esta inimizade foram invasões de propriedade pretensos
roubos de animais. Grandes brigas entre famílias sertanejas nasciam de tais incidentes.
As fazendas não eram cercadas e, apesar disso, os fazendeiros demonstravam um
exagerado senso de honra quando se tratava de proteção de seus rebanhos.
Os Ferreira acusavam um dos moradores de Saturnino de estar roubando suas
cabras. Por seu lado, Saturnino entendeu que a vinda às suas terras de um parente dos
Ferreira, que era chefe de polícia, assim como as acusações, eram uma afronta.
Também acusou os filhos dos Ferreira de maltratarem seus animais e avisou-os para se
afastarem de suas terras.
É difícil julgar quem tinha razão. Se os Ferreira eram culpados das acusações,
talvez seus atos tenham sido em represália pelo roubo de suas cabras. Ademais, os filhos
de José Ferreira já eram conhecidos por sua valentia e não estavam dispostos a recuar.
Um sertanejo nordestino se sente rapidamente insultado: uma palavra
considerada como ofensa, uma dança recusada, ou pior, um membro da família
assassinado, uma filha ou irmã violentadas (um fato muito sério no Nordeste daquela
época, onde um homem com o mínimo de respeito não se casava com uma mulher que
já tivesse tido relações sexuais, ainda mais se foi uma mulher forçada). Nos casos
citados acima, de acordo com a “proteção” que dispunha, o infrator era absolvido ou
condenado. Ademais, um homem nordestino que não defendia sua honra e a de sua
família não era verdadeiramente respeitado.
Das acusações trocadas entre as duas famílias passaram-se aos insultos; dos
insultos, como conseqüência lógica, à violência. Segundo João Ferreira, foi Saturnino
quem estimulou seus moradores e agregados a hostilizarem os Ferreira. Houve revanche
por parte dos Ferreira e ocorreram ferozes tiroteios entre os membros da duas famílias..
José Ferreira, ao que tudo indica, era um homem pacato e honesto, sem a
valentia de seus filhos. Portanto, procurou entrar em acordo com Saturnino, esperando
assim evitar mais violência. Os acordos entre litigantes para a solução de problemas de
justiça, não eram fora do comum, numa terra onde as instituições públicas eram fracas e
geralmente corruptas.
João Ferreira afirmou que seu pai, contando com menos prestígio político, foi
desfavorecido e praticamente obrigado a vender sua próspera fazenda e se mudar. A
esta mudança seguiram-se outras, todas motivadas pelo conflito com Saturnino e com
26

os parentes deste, os Nogueira. Entretanto, antes desta primeira mudança as


autoridades patrocinaram um acordo entre os Ferreira e Saturnino: ficou combinado
que os Ferreira não pisariam mais em Serra Vermelha e que Saturnino não iria mais a
Nazaré aonde os Ferreira iriam se estabelecer. A situação parecia ter voltado ao
normal até o dia em que Saturnino, acompanhado por um Nogueira, quebrou o acordo
e foi à feira de Nazaré, com o pretexto de cobrar uma dívida. Ambos foram vistos por
Virgulino e Manoel Lopez (um tio que vivia com os Ferreira) que acharam que a
violação do acordo era uma afronta. Então, Virgulino e seu tio se retiraram para
tocaiar Saturnino.
A vingança tem para o sertanejo a força de um dever, um código de honra onde
o verbo perdoar não existe e onde é covarde aquele que apanha ou é ultrajado e não
reage. Na reportagem, João Ferreira declarou que Virgulino e Manoel atiraram em
Saturnino “só para assustar”. Na verdade não se sabe se Virgulino e seu tio queriam
amedrontar seus inimigos ou matá-los. O certo é que ninguém se feriu neste incidente.
Enfurecido, Saturnino deu o troco no dia seguinte, reunindo mais ou menos
quinze homens e atacando a fazenda dos Ferreira. Estes reagiram e travou-se um forte
tiroteio.Os atacantes se retiraram, com um ferido. O ataque assustou os Ferreira, visto
que colocava em perigo a segurança de toda a família. Mostrou-lhes claramente o risco
que corriam. Daí em diante, os irmãos Antônio, Livino e Virgulino só andavam
armados, começando a adquirir reputação de cangaceiros, inclusive trajando-se como
tal e sendo particularmente influenciados pelo bando de Sebastião Pereira, o “Sinhô
Pereira”, como era mais conhecido.
Os Ferreira ficaram ainda mais complicados, depois de terem entrado em
conflito com as famílias dominantes de Nazaré (conflito motivado pelo fato dos irmãos
Ferreira não aceitarem andar desarmados e serem acusados de perturbar a ordem
pública). Os maiorais de Nazaré conseguiram que um destacamento policial fosse
instalado e esse destacamento agiria de acordo com eles, pois naquela região era rara
a imparcialidade da polícia. As autoridades policiais insistiram em desarmar os
Ferreira e como estes não cederam, abriu-se o fogo.
Foi o primeiro atrito do futuro Lampião com a polícia. Deste confronto armado,
Livino saiu ferido e foi preso pela polícia. Novo acordo, nova mudança forçada: Livino
seria libertado se os Ferreira se retirassem de Nazaré e assim ocorreu.
A nova sede da família Ferreira foi uma fazenda alugada em Água Branca, em
Alagoas. Esta mudança foi feita provavelmente em 1920 e os Ferreira já não estavam
27

bem de vida como antes, pois as mudanças tinham abalado as finanças da família.
Infelizmente, a paz que José Ferreira procurava para sua família, também não seria
encontrada em Alagoas.
Segundo João Ferreira, seus irmãos já estavam exaltados e não queriam desistir
de se vingarem de Saturnino. Além disso, os três irmãos Ferreira mais velhos estavam
ligados a Antônio Matilde, que também fora obrigado a se afastar por causa de
Saturnino e dos Nogueira. De qualquer modo, parece que nem Matilde nem os Ferreira
queriam esquecer e em uma ocasião voltaram a Pernambuco para atacar as fazendas
de Saturnino, matando o gado, tocando fogo nas casas e causando terror entre os
moradores de Saturnino. Algum tempo depois, o mesmo grupo atacou as fazendas dos
Nogueira, em Pernambuco.
Em vista destes acontecimentos, a polícia de Água Branca começou a suspeitar
de Matilde e dos Ferreira. Segundo João Ferreira, o comissário civil da vila de
Pariconhas foi à fazenda onde os Ferreira haviam se estabelecido e revirou tudo, com a
alegação de procurar armas e objetos furtados.
Geralmente a polícia sertaneja era brutal e buscas como estas citadas por João
Ferreira significavam a destruição quase total do conteúdo das casas, além de maus
tratos e espancamentos aos moradores. Por sorte, a família Ferreira não se encontrava
em casa na hora da batida policial.
Mas as represálias policiais não pararam por aí. Quando o próprio João teve
que ir a Água Branca comprar remédios, a polícia o prendeu, um claro ardil para
intimidar os Ferreira. Virgulino, Antônio e Livino partem à procura do irmão e são
emboscados pelo delegado de Água Branca. Reagem e conseguindo escapar, enviam
um aviso ao delegado que se João não fosse solto, eles tocariam fogo na cidade.
Pode-se perceber que ousadia não faltava ao futuro Lampião e a seus irmãos,
pois mesmo em inferioridade numérica, pareciam dispostos a enfrentar toda a polícia de
Água Branca. Isto não ocorreu e João foi solto.
Como não podiam mais ficar em Água Branca, José Ferreira mais uma vez foi
obrigado a se mudar, “fugir”, segundo João. Entretanto, para José, o problema de seus
três filhos mais velhos era o mais premente no momento e assim decidiu que os três
deixariam Alagoas e que procurassem a família mais tarde. Durante a viagem de José
Ferreira e os filhos restantes para Mata Grande, falece Maria, esposa de José. Triste e
desanimado, José aceitou a hospitalidade de um amigo da família, Fragoso, e ficaram
na casa deste último, num lugar chamado Engenho.
28

Eis que antes de partirem e para se vingar, os três irmãos Ferreira, juntamente
com Antônio Matilde, surram o comissário de Pariconhas e arrebentam a mercearia
deste. Também humilharam o delegado, amarrando-o em um poste. Assim,
conseguiram armar uma grande encrenca com a polícia alagoana.
É interessante notar que algumas das testemunhas nesta época já se referiam a
Virgulino como Lampião, de acordo com João Fereira. Naquele tempo já tinha
adquirido o apelido com o qual ficaria famoso. A origem deste apelido é muito discutida
entre os autores, mas a versão mais aceita é a de que Virgulino tinha muita habilidade
ao atirar com um rifle de repetição, que chegava a dar a impressão de uma luz contínua
na escuridão. No entanto, os apelidos entre os cangaceiros eram muito comuns e, às
vezes, eram dados sem nenhuma razão aparente. Lampião pagou caro por esta fama
adquirida,como veremos abaixo.
O ataque à cidade de Pariconhas ocorreu no dia 9 de maio de 1921. Nove dias
depois, José Ferreira morreria pelas mãos de uma volante policial chefiada pelo
sargento José Lucena, que buscava prender os irmãos Ferreira. Esta força policial
cercou a casa de Fragoso e assassinou José Ferreira e o proprietário Fragoso. Por
sorte, João contou que ele e os irmãos menores estavam no campo e sobreviveram.
Para se justificar, a polícia declarou que tinha encontrado na casa objetos roubados
em Pariconhas.
Se tiver sido verdade essa versão policial, os rapazes devem ter visitado o pai
depois do ataque a Pariconhas. Este é um ponto crítico na discussão, pois o ataque à
casa de Fragoso não foi justificado por nenhum acontecimento anterior e,
conseqüentemente, a entrada definitiva de Lampião para o cangaço foi devido ao
assassinato de seu pai pela polícia. Naturalmente, João Ferreira seguiu aquele ponto de
vista. Entretanto, João não se lembrou se foi em 1920 ou 1921, nem também a
seqüência exata dos acontecimentos.
A morte de José Ferreira foi uma das maiores tragédias na vida de Lampião. Na
ocasião da morte de José, seus filhos mais velhos estavam voltando para Mata Grande
para encontrarem o pai e os demais irmãos. Com a notícia da morte do pai, os rapazes
acorreram à propriedade de Fragoso para traçar os novos rumos da família. Segundo
conta João, já a essa altura Virgulino tinha ascendência sobre os irmãos mais velhos e
foi Virgulino quem incumbiu João de levar para Pernambuco e cuidar dos outros
quatro irmãos menores. Assim, João partiu e nunca acompanhou seus irmãos no
cangaço. Virgulino declarou a Antônio e Livino que tinham perdido propriedades e
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criações com as mudanças forçadas, que a mãe morrera de tanto sofrer e o pai fora
assassinado pelos próprios homens que tinham a obrigação de protegê-lo. Para
Virgulino, Antônio e Livino a sorte estava lançada: já que haviam perdido tudo, iriam
lutar e matar até morrer. Nesse ponto, encerra-se a entrevista de João Ferreira cedida ao
“O Cruzeiro” sobre a entrada de Virgulino no cangaço.
Qualquer probabilidade de que as vidas dos integrantes da família Ferreira
pudessem ser conduzidas por caminhos pacíficos estava agora irremediavelmente
perdida. Pelos ataques a seus inimigos e as encrencas com a polícia, os irmãos Ferreira
já estavam marcados como criminosos. Já tinham traçado um caminho sem volta.
Resolvendo viver do crime e lutar contra a polícia para vingar a morte do pai eles
abandonaram qualquer esperança de poder voltar a uma vida normal e, dali em diante,
teriam que viver somente do cangaço.
Embora a entrada de Virgulino no cangaço possa ser atribuída ao contexto das
condições da sociedade em que viveu e o exame de seus atos possa explicar em parte
suas razões para este passo, há muitas perguntas sem respostas. O acontecimento pode
sempre fugir à compreensão total. É difícil explicar porque alguns homens se tornam
criminosos, enquanto outros (como João, por exemplo), vivendo dentro das mesmas
condições sociais e sujeitos às mesmas tribulações, não se tornam. Na verdade, a
diferença parece estar na interação dos acontecimentos e condições com o
temperamento individual. Talvez tenha sido a ousadia de Virgulino e também um pouco
de perversidade, combinadas com sua crescente frustração, que o impeliram a seguir o
caminho que iria pôr em perigo a vida de sua família e que no fim, quando outros
poderiam ter recuado, o levaram a cruzar o limite e entrar no cangaço. Talvez tenha sido
uma mistura de caráter e circunstância que transformou o sertanejo Virgulino no
cangaceiro Lampião.
Por ironia da sorte, Lampião e seus irmãos não conseguiram vingar
satisfatoriamente a morte de seu pai. Os dois homens que eles diziam serem mais
responsáveis, José Saturnino e o sargento José Lucena, sobreviveram aos Ferreira, por
muitas décadas. Era realmente difícil punir os responsáveis pelo crime, pois estes eram
protegidos por fortes grupos armados. Também é possível que Lampião e seus irmãos
tenham abandonado a idéia de eliminá-los, pois logo tiveram que procurar mais em
defender suas próprias vidas. Contudo, a meta declarada de Lampião de vingar a morte
de seu pai, deu à sua carreira de fora da lei uma razão que ajudou a criar a lenda do
cangaceiro justiceiro e vingativo.
30

Assim como Lampião, Jesuíno Brilhante, Antonio Silvino e Sinhô Pereira são
todos considerados chefes cangaceiros, porque suas famílias se encontraram em certo
momento como a oposição. Nos casos de Silvino e de Lampião, ambos tiveram seu pai
morto e, como os assassinos eram protegidos, essas mortes trouxeram desejo de
vingança.
Para poder analisar as relações entre cangaceiros e coronéis, é importante
também definir os cangaceiros, a razão pela qual alguém era considerado cangaceiro, a
sua posição social e a sua situação perante o coronel. Maria Isaura Pereira de Queiroz
distingue dois tipos de cangaço: o de vingança, o banditismo vingador, tradicional entre
as lutas de famílias; e o cangaço como modo de vida, devido a fatores socioeconômicos,
o qual continuou advindo das querelas entre as famílias, mas constituiu-se como única
saída para o sertanejo pobre na conjuntura sócio-econômica deste período (1900-1930),
isto ao menos fora das fileiras da polícia.3
Amaury de Souza distingue também dois tipos de cangaço, sendo o primeiro tipo
classificado por este autor como o cangaceiro herói e o segundo como um bandido
profissional, que se limitava e não era um rebelde contra o sistema estabelecido.4
Segundo Amaury de Souza, os pequenos proprietários, uma vez inseridos no cangaço,
tinham que preservar um mínimo de prestígio social; para eles, era quase impossível
abandonar o cangaço, como fizeram Sinhô Pereira e Luís Padre, que pertenciam a
famílias importantes e podiam ser apoiados em uma vida pós-cangaço.
Voltando a tratar dos tipos de cangaço, as definições de Frederico
Pernambucano de Mello5 parecem estar mais corretas. Este autor distingue três tipos de
cangaço: o cangaço-meio de vida, o cangaço de vingança e o cangaço-refúgio. Estes
dois últimos tipos se enquadram no banditismo vingador considerado por Maria
Queiroz. A maior parte dos cangaceiros (entre eles os quatro chefes de bando já
mencionados) entrou neste meio para se vingar por uma razão ou por outra: desejo de
vingança pela morte de um membro de sua família - que foram os casos de Antonio
Silvino e de Lampião – ou porque queriam satisfazer sua vingança, mas tinham a
necessidade de se manter sob proteção contra as autoridades.

3
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Os cangaceiros. São Paulo: Duas Cidades, 1977, pp. 207-208.
4
SOUZA, Amaury de. O cangaço e a política da violência no Nordeste brasileiro. São Paulo: Revista
Dados, nº 10, 1973, pp. 97-125.
5
MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do Sol - Violência e banditismo no Nordeste do
Brasil. Recife: A Girafa, 2005, p. 140.
31

Um exemplo desse tipo de cangaço- refúgio é o cangaceiro Ângelo Roque da


Costa, o Anjo Roque, membro do grupo de Lampião, que assassinou o estuprador de
sua irmã e em seguida foi vítima de represálias de uma poderosa família.As duas
últimas categorias (refúgio e vingança) podem ser consideradas como uma só, como
Mello dá a entender em sua obra. Os grandes protótipos do cangaço de vingança foram
Jesuíno Brilhante e Sebastião Pereira, o Sinhô Pereira. Pelo cangaço-meio de vida, os
exemplos são Antonio Silvino e Lampião. Estes dois últimos foram, num primeiro
instante, vingadores e posteriormente adotaram o cangaço como meio de vida, para se
manterem na lucrativa “profissão”.
A questão evidente está em saber se chefes cangaceiros como Silvino e Lampião
experimentaram o desejo de deixar o cangaço, se avaliaram uma possibilidade real de
mudar seu modo de vida (como fez Sinhô Pereira) sem correr riscos para eles mesmos e
seus homens, ou se ficavam efetivamente entre os cangaceiros. Ao cometerem uma série
de violências em busca de vingança ou para se imporem, os cangaceiros criaram novos
inimigos, que por sua vez, desejavam defender sua honra e poder, se aliando as forças
policiais, conhecidas como volantes, e lutando nas mesmas condições de seus
adversários cangaceiros.
Os participantes mais engajados nas volantes eram aqueles que haviam
ingressado na luta por razões pessoais, entre estas, os abusos sofridos por parte dos
cangaceiros nos saques e pilhagens. Para os sertanejos, a brutalidade da polícia, que
seguia os grupos de cangaceiros, era muitas vezes pior do que aquela sofrida quando da
passagem dos bandidos, porque as batidas das volantes eram permitidas pelas
autoridades. O que levou ao um grande número de sertanejos a tomarem uma decisão:
irem engrossar às fileiras dos cangaceiros, aderindo ao banditismo ou ingressarem nas
volantes policiais para perseguir os bandidos.
A distinção entre o cangaço de vingança e o cangaço meio de vida é importante.
O chefe cangaceiro Sinhô Pereira é considerado como um cangaceiro vingador,
limitando-se a combater pelas causas de luta de sua família. Mais: não precisava de
“contribuições” de terceiros, pois sua família abastada garantia a sua manutenção e de
seu bando.
A situação era bem diferente para Silvino e Lampião. Estes precisavam das
“contribuições”, extorquindo valores de grandes proprietários em troca de seus serviços.
A maior necessidade era manter-se a si e a seus homens com armas e munições
suficientes e, para isto, os cangaceiros se aproximavam de fontes ligadas à polícia, os
32

coronéis. Por este intermédio, os cangaceiros tiveram acesso a armas de uso exclusivo
militar, como as do tipo Winchester, que foram utilizadas principalmente pelos
cangaceiros do grupo de Lampião. Além de armas e munições, recebiam uniformes e
abrigo desses coronéis, em caso de perseguições.
Uma proteção semelhante só poderia ser fornecida pelos coronéis, o que
implicava que o cangaceiro, apesar de sua situação de independência, era realmente
dependente de seus protetores, se não todo o tempo, ao menos momentaneamente. E por
que interessava aos coronéis cooperar com os cangaceiros? As razões variam. Um
coronel podia agir por receio de ser atacado ou por pragmatismo, uma vez que por um
tempo significativo no sertão os bandidos demonstraram um poderio maior do que a
polícia. Os grupos de cangaceiros também podiam ser cooptados e utilizados na
execução de vingança contra inimigos políticos.
Portanto, não é possível sustentar a hipótese de antagonismo entre cangaceiro e
coronel, tendo prosperado uma tradição de simbiose entre essas duas figuras,
representada por gestos de auxílio recíproco, porque assim lhes apontava a
conveniência. Ambos se fortaleciam com a celebração de alianças de apoio mútuo,
representando, para as duas partes, condição de maior poder. Por força dessas alianças,
o bando colocava-se a serviço do fazendeiro ou chefe político, que se convertia, em
contrapartida, naquela figura responsável pela conservação do caráter endêmico de que
o cangaço sempre desfrutou no Nordeste, que foi o coiteiro.
Muitos coronéis mantiveram bom relacionamento com os cangaceiros, chegando
a protegê-los e acolhê-los em suas fazendas, embora sua motivação para isso não fosse
exatamente bondade ou simpatia. Seus interesses pessoais sempre falaram mais alto que
qualquer sentimento.Os coronéis visavam suas próprias vantagens e lucros e não era
nenhum acontecimento incomum abrigar um cangaceiro e em seguida traí-lo. Por outro
lado, visto que a proteção foi de interesse vital para os cangaceiros, estes últimos não
podiam atacar sem discernimento. Um equilíbrio delicado entre amigos e inimigos foi
necessário para que os grupos de cangaceiros pudessem sobreviver por tanto tempo. O
padre José Kherle, confessor e amigo pessoal de Lampião e de sua família desde a
década de 20, em uma entrevista concedida a Revista Manchete e publicada em 29 de
abril de 1972, chegou mesmo a afirmar:
33

“Lampião sempre foi protegido por chefes políticos e grandes donos de terras.
Deles, em troca de serviços, Lampião recebia armas e mantimentos.”6
As relações políticas de Lampião com pessoas poderosas, como de resto ocorre
com o cangaço em geral, foram necessárias para a preservação do bando. Alguns pontos
de vista um pouco imprecisos relativos à independência de Lampião e dos demais
bandidos são tão comuns como os que os compreendem como armas de aluguel. Arthur
Shaker entende o cangaço de Lampião como superior em poderio aos coronéis.7 Do lado
oposto - coronéis como superiores em poderio a Lampião está o livro de Chiavenato.8
Shaker sugere que a fonte de poder de Lampião seria a fraqueza do coronelato em sua
área de influência e que os potentados locais não teriam força suficiente para combatê-
lo, e que, por isso, submetiam-se às suas exigências e procuravam colaborar. Já para
Chiavenato, Lampião não passou de um joguete nas mãos dos coronéis que o utilizaram
para depor seus inimigos políticos e eleger seus aliados. Segundo este autor, o cangaço
durou enquanto manteve o braço armado na fazenda, enquanto houve necessidade de
defendê-la dos interesses de uma massa trabalhadora insatisfeita e porque as novas leis
eleitorais permitiram que os coronéis controlassem as eleições através dos votos de
cabresto, com a morte por encomenda substituindo as guerras de família. A própria
história rural recente é uma refutação à argumentação deste autor.
Quanto a Shaker, sua hipótese parece esbarrar em problemas factuais da própria
época em questão, pois há evidências de que existiram muitos coronéis e fazendeiros
que, com homens e armas, tentaram se defender dos possíveis ataques realizados por
cangaceiros, como no ataque frustrado de Lampião a cidade de Mossoró, no Rio Grande
do Norte, em 1927, quando o grupo de cangaceiros foi derrotado e repelido por grupos
de moradores armados.
Ressalte-se ainda que em momentos em que o poder dos cangaceiros era
reconhecidamente inferior, abria-se a possibilidade de homens autônomos dos bandos
viverem como jagunços ou manterem-se sob a proteção de um chefe de jagunços. Isto
comprova que, regra geral, o cangaço de Lampião tinha uma relação que não
comportava superioridade ou inferioridade constantes com os seus protetores, até
mesmo os mais ilustres. Estas situações dependiam das circunstâncias do momento.

6
Idem, p. 317.
7
SHAKER, Arthur. Pelo espaço cangaceiro. São Paulo: Símbolo, 1979.
8
CHIAVENATO, Júlio . Cangaço, a força do coronel. São Paulo: Brasiliense, 1990.
34

Deve ficar claro que o relacionamento entre cangaceiro e coronel não produzia
vínculo de subordinação exclusiva para qualquer das partes. A característica principal
do cangaceiro, o traço que o faz único, é a ausência de patrão. Mesmo quando ligado a
fazendeiros, por força de alianças celebradas, o chefe de grupo não assumia
compromissos que pudessem tolher-se à liberdade. A convivência entre eles fazia-se de
igual para igual, agindo o cangaceiro como um fazendeiro sem terras, cioso das
prerrogativas que lhe eram conferidas pelo poder das armas.
Em março de 1926, atendendo ao pedido de Padre Cícero e do deputado federal
Floro Bartolomeu, Lampião se dirigiu a Juazeiro do Norte, a fim de receber a patente de
“capitão” e lutar contra as forças da Coluna Prestes. Durante sua estadia em Juazeiro,
Lampião concedeu uma entrevista ao jornalista Otacílio Macedo, que foi publicada no
jornal O Ceará, edição de 17 de março de 1926. Passemos agora a analisar o conteúdo
dessa entrevista, que é considerada pelos historiadores como fundamental para melhor
conhecimento do cangaço. Foram adaptaram os termos regionais à linguagem corrente.
Lampião começou dizendo:
“Chamo-me Virgolino Ferreira da Silva e pertenço à família Ferreira, do riacho
de São Domingos, município de Vila Bela. Meu pai por ser perseguido pela família
Nogueira e em especial por José Saturnino, nosso vizinho, resolveu retirar-se para o
município de Águas Brancas, no estado de Alagoas.”
Nesse trecho inicial da entrevista, pode-se perceber que as informações dadas
por Lampião coincidem com as prestadas por João Ferreira à Revista O Cruzeiro,
descritas acima.
Lampião continuou:
“Mesmo assim as perseguições não cessaram. Em 1917,em Águas Brancas, meu
pai, José Ferreira, foi assassinado pelos Nogueira e Saturnino. Não confiando na ação
da justiça pública, porque os assassinos eram protegidos pelos grandes resolvi pela
vingança. Não perdi tempo. Juntei meus recursos e enfrentei a luta dali em diante. Não
escolhia a quem matar, bastando que pertencesse a famílias inimigas e sei que reduzi
bastante o número delas.”
Apesar de Lampião assegurar que sua entrada no cangaço deve-se ao desejo de
vingança pela morte de seu pai e de que ele reduziu bastante o número dos integrantes
das famílias inimigas, ele e seus irmãos não conseguiram vingar satisfatoriamente a
morte de seu pai, pois os dois homens que eles diziam serem os mais responsáveis pelo
assassinato de seu pai, José Saturnino e o sargento José Lucena, sobreviveram aos
35

Ferreira, por muitas décadas. No entanto, esta meta declarada de Lampião de vingar a
morte de seu pai, deu à sua carreira de bandido uma razão que ajudou a criar a imagem
do cangaceiro justiceiro e vingativo.
A interessante categoria de “escudo ético” apresentada por Mello9 está já contida
na tábua de valores do sertanejo e este o identifica nos atos de Lampião. O escudo ético
é a forma através da qual o cangaceiro profissional justifica a sua adesão à vida
criminosa. Mas a sua própria conduta já não condizia com seu discurso; ao não se
vingar dos assassinos de seu pai, já era possível identificar nas ações de Lampião o
perfil do bandido comum, utilizando o cangaço como meio de vida.
Lampião fez a opção pelo caminho do cangaço para poder sobreviver, sob o
pretexto de vingar-se dos assassinos de seu pai. Não optou pela liderança e organização
de lavradores revoltados e de trabalhadores explorados porque não tinha formação
política alguma. Lampião nunca foi um líder de rebeliões ou um modelo que servisse
para a formação de consciência política para camponeses revoltados.
Na seqüência da entrevista, Lampião não deixou de mencionar seu mentor
dizendo:
“Já pertenci ao grupo de Sinhô Pereira, a quem acompanhei durante dois anos.
Muito me afeiçoei a este meu chefe, porque é leal e valente batalhador. Se um dia
voltasse ao cangaço, eu iria ser seu cabra.”
Nesse ponto da entrevista, Lampião refere-se ao período exatamente anterior à
formação de seu próprio grupo de cangaceiros, quando por dois anos pertenceu ao grupo
chefiado por Sinhô Pereira, e que, quando este último resolveu abandonar o cangaço em
1922 e exilar-se em Goiás, coube a Lampião assumir a liderança do bando.
Sobre suas andanças e seus perseguidores declarou:
“Tenho percorrido os sertões de Pernambuco, Paraíba e Alagoas e uma
pequena parte do Ceará. Com as polícias desses estados já entrei em combate inúmeras
vezes. A polícia de Pernambuco é disciplinada e valente, e muito cuidado me tem dado.
Mas a polícia da Paraíba é covarde e insolente. Atualmente há um contingente da força
pernambucana de Nazaré que está praticando as maiores violências por aí,
comportando-se como a polícia paraibana costuma fazer.”

9
MELLO, Frederico Pernambucano de. op. cit., pp. 132-133.
36

Os perseguidos pela polícia procuravam proteção - quando não a tinham em seu


lugar de origem - na migração. Quando a perseguição de uma força policial de um
Estado aumentava muito, os grupos de cangaceiros se deslocavam para outros Estados
do Nordeste, se aproveitando de uma constituição federalista que proibia forças policiais
perseguidoras de cangaceiros, de entrarem em outros estados, a fim de continuarem suas
perseguições aos cangaceiros.
Referindo-se a seus coiteiros, Lampião esclareceu que:
“Não tenho tido propriamente protetores. A família Pereira, de Pajeú, é que tem
me protegido mais ou menos. Em toda parte encontro bons amigos que tudo me
facilitam e que me escondem quando a perseguição dos governos aumenta muito. Se
não tivesse necessidade de procurar meios para a manutenção dos meus companheiros,
poderia ficar oculto, sem nunca ser descoberto pelas forças que me perseguem.”
A lógica que presidiu as relações entre cangaceiros e coiteiros estava cabalmente
implantada no contexto sócio-cultural de sua referência, apenas tendo sido incorporada
e rearticulada em novas condições, de modo a favorecer aqueles a quem em geral cabia
o maior ônus resultante destas relações de aliança. Para os sertanejos, Lampião foi o
“outro”, mas apesar de diferente, os sertanejos absorveram-no, criando com Lampião
laços de proximidade, estendendo-lhe relações no seio de sua comunidade de parentes,
compadres e aliados.
Nessas relações, cabia a Lampião, pelo poder por ele exercido de forma
contextualmente inteligível, uma posição de dominância. Seus atos e os de seus homens
representaram um novo status, uma inserção em outro segmento. Ainda que não
oficialmente reconhecido como tal, esse segmento do cangaço contou com o
reconhecimento social, de modo que dele se podia esperar certas atitudes, a ele
recorreu-se em determinadas situações e com ele estabeleceram-se certas relações.
Assim, Lampião impôs uma alteração profunda nas relações sertanejas, dando um salto
na hierarquia informal de poder. Também fica claro nesse trecho da entrevista a
necessidade de aproximação dos cangaceiros com coiteiros poderosos, como os
coronéis, para a “manutenção” dos companheiros de Lampião e dele próprio.
Na seqüência da entrevista, Lampião fez uma ressalva importante no que diz
respeito a suas relações com os coronéis, ao dirigir crítica ao coronel José Pereira Lima
e ao falar de sua “profissão”:
37

“De todos meus protetores, só um me traiu miseravelmente. Foi o coronel José


Pereira Lima, chefe político de Princesa. É um homem perverso, falso e desonesto, a
quem servi durante anos, prestando os mais vantajosos favores de nossa profissão.”
Os relatos acerca das relações entre Lampião e o coronel José Pereira Lima,
chefe político de Princesa, na Paraíba, deixam entrever alguma distancia entre os dois.
A proteção dada a Lampião por este último teria sido intermediada por outros chefes
menos importantes, sendo exercida diretamente por Marçal Diniz, sogro de José Pereira.
No entanto, os ataques desferidos pelos cangaceiros chefiados por Antonio, irmão de
Lampião, a cidade de Souza (área de influencia do coronel José Pereira) seguidos de
saques e pilhagens, acabaram por irritar José Pereira que não só retira a sua proteção
como começa a perseguir o bando de cangaceiros, insuflando a polícia paraibana a
persegui-los. Também fica claro que as relações de proteção envolvendo coronéis e
cangaceiros eram momentâneas, dependendo dos interesses de cada um dos envolvidos.
Outro ponto importante a ser salientado neste trecho da entrevista é que o
próprio Lampião admite necessitar de protetores como os coronéis, aos quais o rei do
cangaço afirma prestar vantajosos favores de sua “profissão”, como assassinatos e
intimidação de inimigos políticos, saques, extorsão e seqüestros.
A respeito da maneira como vivia, Lampião disse:
“Consigo meios para manter meu grupo pedindo recursos aos ricos e tomando à
força daqueles que se negam a prestar-me auxílio.Tudo quanto tenho adquirido em
minha vida de bandoleiro mal tem chegado para as enormes despesas com meu
pessoal. Gasto muito comprando armas e munições e tenho gasto distribuindo esmola
aos necessitados.”
Um dos enganos muito comuns quando se trata de cangaceiros, é afirmar que
todos eram pessoas sem terra, deserdados da vida, que não tinham nada e que por isso
eram forçados a permanecer naquela vida de crimes. Este pensamento está longe da
verdade. O próprio Lampião era proprietário de algumas fazendas.
Sobre as perseguições e suas fugas, deixou claro:
“Tenho conseguido escapar da tremenda perseguição que me movem os
governos, brigando e correndo quando vejo que não vou conseguiu resistir ao ataque.
Além disso, sou muito vigilante e, se confio, é sempre desconfiando. Nunca conseguirão
apanhar-me em campo aberto. Recebo muitas informações de meus amigos, sendo
sempre avisado sobre o movimento das tropas. Meu serviço de espionagem é útil.”
38

Lampião demonstra ter confiança nos seus coiteiros e informantes que lhe
avisavam sobre a movimentação das forças policiais.
Seu comportamento mereceu comentários bastante francos:
“Tenho cometido violências e depredações, vingando-me dos que me
perseguem.Costumo respeitas as famílias, por mais humildes que sejam. Quando
acontece de alguém do meu grupo desrespeitar uma mulher, castigo severamente. Até
agora não desejei abandonar a vida de armas, com a qual já me acostumei e sinto-me
bem assim. Mas mesmo que não fosse assim não conseguiria deixar este tipo de vida,
porque os inimigos não se esquecem de mim. Por isso, eu também não posso nem devo
deixá-los tranqüilos. Poderia retirar-me, indo para algum lugar longínquo, mas acho
que isso seria uma covardia e não quero nunca passar por covarde.”
Aqui Lampião afirma ser perseguido e, por isto, procura justificar seus atos de
violência e vingança. Outro aspecto interessante destacado por Lampião era sobre as
relações dos cangaceiros de seu grupo com mulheres: estupros e assédio a mulheres
casadas não eram permitidos, sendo punidos. Lampião também se refere a um possível
afastamento da vida de cangaceiro, mas considera ser difícil deixar sua “profissão”,
como veremos mais adiante.
Sobre as pessoas que tinha contato:
“Geralmente gosto de todas as classes. Tenho alguma preferência pelas classes
mais conservadoras, como agricultores, fazendeiros, comerciantes e outros, por serem
homens que trabalham. Tenho veneração e respeito pelos padres, porque sou católico.
Sou amigo dos telegrafistas, porque alguns têm me salvo de grandes perigos. Acato os
juízes, que são homens da lei e não atiram em ninguém. Só detesto realmente uma
classe: a dos soldados, que são meus constantes perseguidores. Reconheço que muitas
vezes eles me perseguem porque são obrigados e só por isso é que ainda poupo alguns
quando os encontro fora do campo de luta.”
Neste trecho da entrevista que concedeu, constata-se que Lampião lutava contra
o poder público corporificado enquanto Estado, não contra as elites dominantes
representadas politicamente por esse mesmo Estado. Lampião mostrou-se conservador
nos costumes, com preferências claras pelas classes dominantes e no modo de vida que
gostaria de levar longe do cangaço. Percebe-se claramente que Virgulino Ferreira da
Silva não pretendia subverter a ordem injusta e opressiva vigente no sertão.
Sobre seus companheiros:
39

“Este grupo que me acompanha é composto de quarenta e nove homens, todos


bem armados e municiados, custando-me bastante sustentá-los como os sustento. Meu
grupo nunca fui muito reduzido, variando sempre entre quinze e cinqüenta homens.”
São pequenos grupos; no máximo, Lampião teve grupos formados por cinqüenta
homens. Em raras ocasiões, ele comandou cem cangaceiros, como no assalto fracassado
a cidade de Mossoró, mas, no geral, ele comandou grupos formados entre quinze e vinte
homens. Mas Lampião no seu grupo particular tinha quase sempre doze, que era o
número que ele costumava trabalhar. E como são pequenos grupos num espaço imenso,
numa região que tem polícia, que tem exército, que tem outros tipos de bandoleiros,
esses pequenos grupos seriam facilmente sufocados, esmagados e destruídos se eles não
se aliassem ao poder. A sobrevivência durante um longo tempo dos grupos de
cangaceiros, principalmente do grupo de Lampião, deve-se as alianças celebradas com
os grandes latifundiários.
Sobre o padre Cícero, Lampião foi bastante específico:
“Sempre respeitei e continuo a respeitar o estado do Ceará, porque nele não
tenho inimigos. Nunca me fizeram mal e além disso é o estado do Padre Cícero. Como
já disse, tenho a maior veneração por este santo sacerdote, porque é o protetor dos
humildes e infelizes, protegendo há muitos anos minhas irmãs que moram aqui em
Juazeiro. Tem sido para elas um verdadeiro pai. Eu ainda não conhecia o Padre
Cícero, pois esta é a primeira vez que venho a Juazeiro.”
Os cangaceiros, assim como boa parte da população sertaneja, acreditavam
fielmente naquilo que Padre Cícero dispunha, pois acreditavam que este Padre era capaz
de fazer milagres. No entanto, nota-se que o próprio Padre Cícero foi um grande
proprietário de terras no Ceará, além de coiteiro de cangaceiros. O fenômeno do Padre
Cícero é um fenômeno não tanto de fanatismo religioso, mas um fenômeno de
paternalismo que se exercia por meio da religião e que servia a uma estrutura de poder
que sustentava grupos ligados ao Padre Cícero.
A respeito de sua presença ali, explicou:
“Tive um combate com os revoltosos da Coluna Prestes, entre São Miguel e Alto
de Areias. Informado de que eles passavam por ali e sendo eu um legalista, fui atacá-
los, havendo forte tiroteio. Depois da luta e estando com apenas dezoito companheiros,
vi-me forçado a recuar, deixando para trás inimigos feridos. Vim agora ao Cariri
porque desejo prestar meus serviços ao governo da nação. Tenho a intenção de
incorporar-me às forças patrióticas do Juazeiro e com elas dar combate aos rebeldes.”
40

Convocado pelo padre Cícero para dar combate aos rebeldes da Coluna Prestes,
Lampião aceitou a patente de capitão, mas na seqüência ao ser atacado por volantes
pernambucanas, que não reconheciam sua patente, Lampião esquivou-se do
enfrentamento com os tenentes guerrilheiros. Sabia não ter explicação o combate a
inimigos do mesmo governo que queria aniquilá-lo.
A uma pergunta do repórter sobre a razão de não abandonar o cangaço, Lampião
respondeu lançando uma outra pergunta:
“Se o senhor estiver em um negócio e for-se dando bem com ele, pensará em
abandoná-lo?”
Está claro que não”, respondeu o jornalista. O bandido então arrematou:
“Pois é exatamente o meu caso, estou me dando bem com esse negócio e não
pretendo abandoná-lo. Não sei se vou passar a vida toda nele. Depois, talvez me torne
um comerciante.”
É possível afirmar-se que os maiores cangaceiros, entendidos estes como os
chefes de grupo de maior expressão, gostavam da vida do cangaço. Num sertão
profundamente conturbado pelas disputas entre chefes políticos e lutas de famílias, o
cangaço representava uma ocupação aventureira, um ofício epicamente movimentado,
um meio de vida. Por isso, não se deve considerar o cangaço como despido de atrativos.
A figura do cangaceiro, homem sem patrão fixo, vivendo das armas, era razoavelmente
bem aceita naquele meio, o que favoreceu e incentivou o ingresso de muitos sertanejos
nos grupos de cangaceiros.
O próprio Lampião declarou que considerava o cangaço como um bom meio de
vida. Chegaria mesmo a defini-lo como um “negócio” nesta passagem da entrevista.
Aqui termina a entrevista concedida por Lampião em Juazeiro do Norte.
Lampião fez-se capitão em Juazeiro, por ordem do Padre Cícero e por ocasião
do combate à Coluna Prestes e, se pouco tardou para que o erro dessa nomeação fosse
reparado com o recrudescimento de sua perseguição pelas volantes, o cangaceiro jamais
renunciou a seu título. Ao não renunciar ao seu título de capitão, Lampião demonstra
que sua meta era a conquista de uma posição social como a desses seus coiteiros
poderosos e de outros tantos líderes locais com quem fez aliança.
O ingresso de Lampião e de seu grupo nos chamados Batalhões Patrióticos,
formados com o propósito de lutar contra a Coluna Prestes, concedeu aos cangaceiros
um retorno à legalidade, porém de curta duração, pois a aposta de Padre Cícero no
poder de Lampião esbarrou em muitos obstáculos sendo certamente o mais grave de
41

todos a sua fama. Nem o sertão nem as capitais nordestinas se conformariam com o
bandido munido não apenas da sua patente, como também de uniformes militares,
munição em abundancia e moderno armamento bélico, tudo isso em número suficiente
para equipar todo seu bando.
Nesse episódio há algo que merecer ser analisado: o escândalo que essa atitude
provocou. Ora, para a expulsão dos revoltosos os cangaceiros não foram os únicos
sertanejos com passado criminoso prontos a contribuir, pois as milícias privadas dos
coronéis também foram acionadas sem provocar impacto semelhante na opinião
pública. A frequência do nome de Lampião em jornais terá gerado em seu caso um
impasse insuperável, mas tanto a fama já alcançada quanto ao escândalo resultam da
singularidade de sua força armada, isto é, da sua autonomia.
42

CONCLUSÃO

Ao contrário do jagunço (que era mantido e controlado exclusivamente por um


coronel) coube ao cangaceiro promover por sua própria conta sua defesa e decidir suas
lutas e foi justamente sobre as armas que esta sua capacidade repousou em grande parte.
No caso dos cangaceiros, o apoio recebido por parte dos fazendeiros não configurou
uma dependência contínua, mas antes uma aliança momentânea que pressupunha
posição de igualdade na relação. Lampião recusou-se a renunciar sua autonomia
absoluta em favor da proteção continuada de um coronel, de que um cabra ou chefe de
jagunços costumavam usufruir. Se o fizesse, possivelmente alcançaria uma velhice
tranqüila e uma vida sem perseguições; poderia ter se radicado em algum lugar, como
fez Sinhô Pereira. Mas teria abandonado o cangaço e se converteria em jagunço, senão
em cabra, dobrando-se à vontade de outrem. A contrapartida de sua autonomia mais
completa foi uma guerra perene.
Sob que condições Lampião teria podido constituir-se e manter-se ativo por
quase 20 anos? Além do importantíssimo apoio dos coronéis, também foi devido ao
caráter propriamente nômade do cangaço de Lampião; a autonomia e a guerra perene
são inseparáveis de uma certa produção espacial, de caráter nômade, que teria facultado
ao cangaço de Lampião a multiplicação de aliados em diversos pontos e impedido pela
inconstância da presença, a plena absorção do cangaceiro em grupo monolítico de
aliados ou, como era tradicionalmente o caso, em uma parentela.
A fixação prolongada não é em si mesma vantajosa; ela promove uma condição
da vida mais favorável a indivíduos de camadas sociais menos favorecidas desde que
seja mediada pela proteção de outrem. O pequeno proprietário não submisso a uma
parentela mais poderosa encontra freqüentemente no isolamento, na responsabilidade e
na renúncia à proteção, ou seja, no agravamento de sua vulnerabilidade, o custo de sua
independência.
Portanto, pode-se concluir que a mobilidade de Lampião e de seus “cabras”
gerou proteção sem gerar dependência. A irregularidade da trajetória e das visitas, junto
a uma multiplicação dos pontos de aliança garantiram a Lampião, por quase 20 anos,
proteção e autonomia. Primeiro, pelo fato de seu poder consolidar-se na medida em que
ele vaga, fazendo-se conhecido e atuando em momentos fundamentais da vida social.
Ao multiplicar seus pontos de apoio, através dos arranjos locais, o poder de Lampião
ampliou-se e facultou o alargamento espacial do cangaço. Foram as alianças com
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segmentos sociais das camadas inferiores que fortaleceram o chefe dos cangaceiros o
suficiente para que ele pudesse manter relações com os representantes das camadas
dominantes em condições de igualdade.
Percebe-se que as fronteiras e o alcance do cangaço são vastos. No lugar de um
espaço fechado, os cangaceiros tinham à sua disposição um raio de ação que poderia ser
expandido em várias direções. As extremas mobilidades associadas à imprevisibilidade
dos deslocamentos de Lampião ofereciam o maior obstáculo ao sucesso dos seus
perseguidores das volantes, os “macacos”. Estes últimos, por seu lado, empreenderam
um longo aprendizado acerca de seus inimigos cangaceiros, aprendizado este passível
de ser traduzido no esforço de compreensão da relação entre o seu nomadismo e as suas
práticas de reciprocidade enquanto estratégia de guerra e de poder.
Pode-se concluir que a evolução da repressão ao cangaço consistia em uma
tentativa de desvendar essa espécie de segredo tático da mobilização do inimigo, que,
para efetivar essa mobilização, dependia do auxílio dos coiteiros. Desde os primeiros
anos do cangaço de Lampião, a principal tarefa de que se incumbiram as forças policiais
no sertão foi a de deter o cangaço e nos últimos anos do cangaço a missão resumia-se
em eliminar Lampião.
Nas suas relações com os coiteiros, havia dois tipos de perigos para os
cangaceiros: 1) a traição voluntária, quando o coiteiro por espontânea vontade
“entregava” o bando; 2) a delação forçada, que ocorria quando a polícia espancava ou
ameaçava de morte os coiteiros e estes últimos acabavam falando sobre o paradeiro dos
cangaceiros. Este segundo caso parece ter sido o de Pedro de Cândido, coiteiro de
Lampião, que, ameaçado de morte pelo Tenente João Bezerra, indicou a localização
exata do esconderijo de Lampião em Angico, Sergipe. Então, a volante comandada por
João Bezerra, em julho de 1938, surpreendeu o bando de Lampião, massacrando o
grupo que contava com onze cangaceiros, incluindo nesse número Lampião e sua
companheira Maria Bonita.
Com a morte de Lampião, o cangaço chegava ao fim. Muitos cangaceiros se
entregaram, mas Corisco e seu bando não se renderam. Perseguido pela polícia de
vários estados, o grupo de Corisco foi dizimado em 1940. Entre as razões do declínio do
cangaço, destacaram-se os progressos materiais (melhores comunicações e melhores
armas das forças perseguidoras), o desenvolvimento econômico e, sobretudo, uma
maior e mais eficiente penetração da autoridade do governo do Estado Novo no sertão.
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