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Marcello Andre Militao
Marcello Andre Militao
CURITIBA
2007
2
CURITIBA
2007
3
SUMÁRIO
RESUMO................................................................................................................ 4
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 5
CAPÍTULO 1 ....................................................................................................... 10
CAPÍTULO 2. ...................................................................................................... 21
CONCLUSÃO...................................................................................................... 42
RESUMO
INTRODUÇÃO
1
HOBSBAWN, Eric. Bandidos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1969.
7
2
FACÓ, Rui. Cangaceiros e Fanáticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
9
Maciel 3, seguem a mesma linha. Entre os que entendem o cangaço de Lampião como
superior em poderio aos coronéis, situa-se a obra de Shaker.4 Do lado oposto – coronéis
como superiores em poderio a Lampião – está o livro de Chiavenato 5, uma das mais
recentes obras sobre o assunto. Portanto, cabe também esclarecer a que ponto a
sobrevivência dos cangaceiros dependeu dos chefes políticos influentes e, se tal apoio
dos coronéis efetivamente ocorreu, porque interessou aos coronéis apoiar os
cangaceiros.
3
MACIEL, Frederico Bezerra. Lampião, seu tempo e seu reinado. Petrópolis: Vozes, 1985.
4
SHAKER, Arthur. Pelo espaço do cangaceiro Jurubeba. São Paulo: Símbolo, 1979
5
CHIAVENATO, Júlio. Cangaço, a força do coronel. São Paulo: Brasiliense, 1990
10
CAPÍTULO 1
1
FACÓ, Rui. Cangaceiros e Fanáticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
11
teatro etc., para caracterizar o “atraso” da sociedade e economia nordestinas, bem como
a ausência de consciência social dos sertanejos, no sentido de transformar as relações
“semifeudais” de produção. Suas opções para os pobres do campo, sem consciência de
classe, eram o ingresso nos bandos de cangaceiros e/ou a adesão aos grupos religiosos
com lideranças carismáticas.
Para Facó, ainda que os camponeses não tivessem objetivos claros de suas ações
nos bandos de cangaceiros e/ou religiosos, estes movimentos representavam o momento
de enfrentamento e resistência ao poder do latifúndio. Por isso, a luta heróica do
sertanejo para sua sobrevivência vai ser resgatada pela produção cultural marxista, pois
os movimentos de rebeldia do passado situavam-se como precursores de uma tradição
revolucionária. E, neste sentido, o cangaceiro tornar-se-á um problema da história
contemporânea e reconhecido, muitas vezes, como herói e mito político na luta contra
os males do latifúndio.
A transformação do cangaceiro em signo de rebelião no discurso da esquerda
nos anos de 1940 e 1950 surgiu exatamente no momento em que o cangaço deixa de ser
história para se tornar mito na produção cultural brasileira, seja literária, artística ou
acadêmica. É dentro deste contexto, que a “compreensão do cangaço se alargava para
além dos limites de sua existência efetiva, invadindo as paragens do imaginário e se
enriquecendo com significados múltiplos, que não pertenciam nem à sua origem, nem à
sua vigência real. Toda esta discussão em torno do cangaço fora norteada,
principalmente, por dois parâmetros: a oposição de certos intelectuais contra as camadas
dominantes e sua representação, o governo; um sentimento nacionalista generalizado,
que as condições econômicas reforçavam”.2
Portanto, Facó considera os cangaceiros como vanguardeiros políticos, como “o
prólogo da luta armada” que haveria de vencer o latifúndio e encaminhar a revolução
brasileira. No Nordeste, alguns autores como Frederico Bezerra Maciel, seguem a
mesma linha.3 Eric Hobsbawn faz uma análise dos cangaceiros como classe, como
bandidos sociais, como uma categoria à parte, como vingadores. “O ponto básico a
respeito dos bandidos sociais é que são proscritos rurais, encarados como criminosos
pelo Estado, mas que continuam a fazer parte da sociedade camponesa e são
considerados por sua gente como heróis, como campeões, vingadores, paladinos,
2
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. História do Cangaço. 4ª edição. São Paulo: Global, 1991 (Coleção
História Popular, n. 11), pp. 66-67.
3
MACIEL, Frederico Bezerra. Lampião, seu tempo e seu reinado. Petrópolis: Vozes, 1985.
12
justiceiros, talvez até mesmo líderes da libertação e como homens a serem ajudados e
apoiados. É essa ligação entre o camponês comum e o rebelde, o proscrito e o ladrão
que torna o banditismo social interessante e significativo”.4
Todavia, os cangaceiros sozinhos não eram poderosos o suficiente para lutar
contra os que detinham o poder. O outro extremo de análise se trava entre aqueles que
consideram os grupos de cangaceiros como os instrumentos de dominação dos coronéis,
intimidando a população pobre dos sertões nordestinos. Esta tese é estabelecida por
Júlio Chiavenato5, na qual o autor pretende acabar com os mitos a respeito do cangaço.
Para o autor, os cangaceiros não contestavam o sistema, não praticavam a guerrilha e
também não representavam os oprimidos. Chiavenato afirma que os cangaceiros
representavam os interesses dos coronéis, funcionando como instrumentos de domínio e
intimidação da população pobre nordestina. Em vez de guerrilha praticavam banditismo
de controle social, em uma região marcada pela questão fundiária e pela fome.A tese do
autor procura reforçar o conceito de que o cangaço foi um fenômeno derivado dos
interesses do poder.
Para Chiavenato é necessário “derrubar” o mito popular que afirma que o
cangaço foi um movimento popular do sertanejo contra o sistema.Segundo o autor, os
cangaceiros foram estimulados e mantidos por grupos de latifundiários para assegurar o
domínio no campo e controlar a população sertaneja.
Maria Isaura Pereira de Queiroz já indicava o uso de grupos de cangaceiros por
coronéis quando ela classificou dois tipos de bandos que existiram durante um dos
períodos mais famosos de seca no sertão, a partir de 1877. Esta autora distingue, de um
lado, um líder cangaceiro “protetor” chamado José Rodrigues, que ajudava os retirantes
e de outro, João Calangro, que garantia a ordem e a propriedade dos coronéis.6
Já em 1831, quando teve início no Brasil o período da Regência, os partidos
formados por membros da aristocracia, – exercendo o poder em lugar de D. Pedro II, o
príncipe herdeiro, então menor de idade – decidiram implementar, com o apoio
estratégico de camadas urbanas radicais, medidas de descentralização tendo em vista o
favorecimento de seus interesses privados. Assim, as províncias passaram a dispor do
direito de escolher seus presidentes por meio de sistemas eleitorais próprios. Os postos
judiciais e policiais foram preenchidos mediante eleições locais e os Conselhos de
4
HOBSBAWN, Eric. Bandidos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1969.
5
CHIAVENATO, Júlio José. Cangaço, a força do coronel. São Paulo: Brasiliense, 1990.
6
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Os cangaceiros. São Paulo: Duas Cidades, 1977, p. 63.
13
Províncias, que possuíam caráter apenas consultivo, viriam a ser substituídos por
Assembléias Legislativas com amplos poderes, como, por exemplo, o de estipular
normas legais nas áreas civil, militar, política e econômica dos municípios.
A descentralização militar seria efetuada com a criação da Guarda Nacional em
1831, que investiria grandes proprietários de terra e pessoas eminentes de povoados nos
cargos de coronel, major ou capitão, outorgando-lhes a prerrogativa de formar milícias,
ou seja, forças militares de caráter privado, para exercer funções policiais e militares
que deveriam ser prerrogativas do poder público. Assim, dispondo de poder militar, os
coronéis passaram a exercer o monopólio da violência legal nas regiões sob sua
jurisdição, gozando de impunidade judicial.7
Fazer parte da Guarda Nacional implicava deveres e, por conseqüência,
privilégios. Entre estes últimos, figurava o direito de não poder ser preso por um oficial
de patente inferior, nem mesmo ficar numa prisão comum; um simples soldado não
podia revistar um oficial, mesmo num delito flagrante. Como conseqüência, o termo
coronel tomou uma conotação política, sendo utilizado para a maioria dos que estavam
na reserva entre os grandes proprietários e os grandes comerciantes, entre aqueles que
detêm o poder. Assim, o título de coronel tornou-se sinônimo de chefe político local.
Com a proclamação da República em 1889 e o estabelecimento de um sistema
federativo de governo, cada Estado federado poderia contrair empréstimos externos e
beneficiar-se do imposto sobre as exportações, prerrogativas essas que viriam a
fortalecer excessivamente os Estados produtores de café, mais especificamente São
Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. O resultado desse arranjo político, com o
enfraquecimento do poder central e de seu controle político pelos cafeicultores e
pecuaristas, foi a oligarquização da República.
O poder político das oligarquias estaduais tornou-se uma das principais
características das primeiras décadas republicanas, período conhecido como Primeira
República. Na obra de Nelson Werneck Sodré, Formação histórica do Brasil (1962), a
Primeira República é pensada em termos de um sistema de dominação do latifúndio,
cuja dinâmica se configura em três fases: a da implantação, em que haveria um
predomínio do poder da classe média através da atuação dos militares; a da
consolidação, em que o controle exclusivo estaria nas mãos das oligarquias
7
PRADO JR., Caio. Evolução Política do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 14ª. ed., 1985, p. 141.
14
8
SODRÉ, Nelson Werneck. Formação histórica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1962.
15
O poder do chefe local foi definido assim por Victor Nunes Leal: “A essência,
portanto, do compromisso“coronelista” - salvo situações especiais que não constituem
regra - consiste no seguinte: da parte dos chefes locais, incondicional apoio aos
candidatos do oficialismo nas eleições estaduais e federais; da parte da situação
estadual, carta-branca ao chefe local governista (de preferência o líder da facção local
majoritária) em todos os assuntos relativos ao município, inclusive na nomeação de
funcionários estaduais do lugar.”9
O fenômeno do coronelismo não correspondeu a um reforço do poder local
através de mais benefícios aos antigos senhores rurais, pois estes nunca chegaram a
abandonar sua autonomia; no entanto, durante a Primeira República, os coronéis podiam
usufruir de duas autonomias: a legal e a extra-legal. Se a primeira não funcionasse, a
segunda era usada largamente. Isso representou uma verdadeira carta-branca na
nomeação dos chefes de polícia, dos encarregados de receber impostos, dos titulares de
outras funções administrativas possíveis, os quais mantinham fora do conhecimento dos
funcionários do Governo Federal quase todas as ações do chefe local, incluindo atos
arbitrários, certamente violentos. Esse poder extra-legal está, evidentemente, reservado
unicamente aos amigos do governo ao nível de Estado.
Os fazendeiros podiam aceitar um chefe local dominando sobre todos por várias
razões: as qualidades do chefe, as tradições (um posto para os da mesma família) e os
fatores econômicos (os proprietários mais ricos e com mais “voz” nas eleições, que
podiam gastar mais nas campanhas eleitorais). Há ainda as relações familiares que
devem ser levadas em consideração por representarem um papel importante, como os
casamentos. No sistema coronelista, os casamentos foram empregados de duas
maneiras: o casamento no interior da própria parentela – maneira de impedir que a
fortuna fosse para as mãos de estranhos ou se dividisse; e o casamento fora da parentela,
tendo como resultado a aliança de dois grupos poderosos que passavam a ser “parentes”
e portanto unidos.
Numa sociedade em que as relações básicas se haviam sempre regido pela
reciprocidade dentro da parentela, tanto na mesma camada, quanto entre camadas de
posição sócio-economica diferente, o mesmo modelo se estende ao setor político, no
momento em que este ganha amplitude. Isto faz com que a causa de um chefe seja
realmente a causa dos chefiados, de maneira clara e concreta. Se o coronel era da
9
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo, no Brasil.
São Paulo: Alfa-Omega, 2. ed., 1975, pp. 49-50.
16
“situação”, seus apaniguados tinham liberdade de ação para fazer o que quisessem, com
a certeza de ficarem impunes; quando o coronel se encontrava na “oposição”, ele e sua
gente eram perseguidos, aprisionados e revidavam pagando violência com violência.
Sobre este aspecto, Maria Isaura Pereira de Queiroz salienta que “... os coronéis se
devoraram entre si, muito mais do que devoraram seus apaniguados; situação e
oposição se chocavam em entreveros sangrentos, muito mais do que os chefes de uma e
outra com relação aos subordinados. Toda a história da Primeira República é formada
por lutas deste tipo, muito mais do que pela opressão dos coronéis a seus inferiores.”10
Portanto, percebe-se que dentro e fora da das parentelas, as relações podiam ser
de aliança, com base nos laços afetivos e na semelhança de interesses econômicos e
políticos; mas também podiam ser de competição e de rivalidade, levando a conflitos
sangrentos, desencadeados até por causas aparentemente sem importância. Também não
eram raros as rupturas no interior das parentelas, levando à formação de dois novos
grupos que se distinguiam pela ferocidade de suas relações. Na base destes
dilaceramentos estavam quase sempre ambições de mando e decorriam da possibilidade
de ascensão a postos mais elevados na hierarquia do poder. Aquele que tem o poder
pune os inimigos, como exprimia um ditado popular da época: “para os amigos, tudo,
para os inimigos o rigor da lei!”
Em sua análise, Victor Nunes Leal procura examinar sobretudo o sistema, a
estrutura e a maneira pelas quais as relações de poder se desenvolviam na Primeira
República, a partir do município. Na sua concepção, o coronelismo é um sistema
político, uma complexa rede de relações que vai desde o coronel até o presidente da
República, envolvendo compromissos recíprocos. O coronelismo, além disso, é datado
historicamente. Na visão de Leal, ele surge na confluência de um fato político com uma
conjuntura econômica. O fato político é o federalismo implantado pela República em
substituição ao centralismo imperial. O federalismo criou um novo ator político com
amplos poderes, o governador de estado. O antigo presidente de Província, durante o
Império, era um homem de confiança do Ministério, não tinha poder próprio, podia a
qualquer momento ser removido, não tinha condições de construir suas bases de poder
na Província à qual era, muitas vezes, alheio. No máximo, podia preparar sua própria
eleição para deputado ou para senador.
10
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo local na vida política brasileira. São Paulo:
Instituto de Estudos Brasileiros, 1969.
17
11
CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual. In:
Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, vol. 40, nº 2, 1997, pp. 229-250.
12
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O coronelismo numa interpretação sociológica. In: FAUSTO,
Boris (org.) História Geral da Civilização Brasileira (tomo III, vol. 1). São Paulo: DIFEL, 1975, pp. 153-
190.
19
poder para quem possuía capitais para explorá-la ou para quem conseguia reunir gente
que, em troca de uma parcela, se obrigasse a servir e a defender o proprietário
De acordo com a autora, um coronel importante constituía uma espécie de
elemento socioeconômico polarizador, que servia de referência para se conhecer a
distribuição dos indivíduos no espaço social, fossem estes seus pares ou seus inferiores.
O coronel era o elemento chave para se saber quais as linhas políticas divisórias entre os
grupos e os subgrupos na estrutura tradicional brasileira. A pergunta: “Quem é você?”
recebia invariavelmente a resposta : “Sou gente do coronel Fulano”. Esta maneira de
redargüir dava imediatamente a quem ouvia as coordenadas necessárias para conhecer o
lugar socioeconômico do interlocutor, além de sua posição política. A formulação
“gente” indicava individuo de nível considerado inferior, que podia inclusive ser
parente, mas seria parente pobre.
Em segundo lugar, a ligação com o coronel Fulano também dava imediatamente
a conhecer se o individuo estava em posição de apoio ao poder local ou regional, ou
contrário a este pois ninguém desconhecia a atitude dos coronéis, com relação à situação
ou à oposição. Finalmente, também a posição do coronel Fulano com relação a outros
coronéis era conhecida de todos; o individuo que era seu protegido também tinha as
mesmas alianças e as inimizades, isto é, se colocava como aliado ou antagonista da
“gente” de outros coronéis. Noutras palavras, “gente” do coronel significava então a
clientela deste.
A localização sócio-política tendo por ponto de referência o coronel não era,
porém, peculiar apenas aos indivíduos das camadas inferiores, mas se estendia a todos
os escalões sociais. Todo coronel era integrante em nível elevado de um grupo de
parentela mais ou menos vasto e os grandes coronéis se constituíam realmente em
chefes supremos tanto de sua parentela quanto de parentelas aliadas.
Segundo Maria Queiroz, ao se decidir estudar a estrutura coronelística de uma
região, há de se verificar também se o local se trata de região em que o mando de um
coronel ou de uma parentela é único e rígido; ou se trata de local em que diversas
famílias disputam o poder. No primeiro caso, trata-se realmente de um poder absoluto,
mas por isso mesmo que é absoluto não dá margem quase a lutas. Estas últimas podem
ser terríveis quando duas ou mais famílias pretendem “reinar”.
A autora conclui que a multiplicidade dos coronéis é o aspecto essencial, a
originalidade da estrutura política do Brasil na Primeira República, traço que se prende
20
CAPÍTULO 2
As relações de poder entre cangaceiros e coronéis
Apesar das descrições dadas pelos autores aos cangaceiros sertanejos rebeldes
com o estereotipo de homens pobres, os chefes dos grupos de cangaceiros vinham de
fato de famílias que possuíam propriedades. Os cangaceiros chefes Jesuíno Brilhante e
Sebastião Pereira (Sinhô Pereira) provinham de famílias importantes. Antonio Silvino
também tinha ascendentes ilustres, entre eles os Brilhante. Lampião veio de uma família
um pouco menos importante, mas que pertencia ao mesmo meio. Sua família, os
Ferreira, eram os inimigos de seu vizinho José Saturnino. Este último contava com o
auxílio dos Nogueira, pois era casado com uma mulher da família dos Nogueira.
Pode-se perceber que uma das causas do surgimento do cangaço foram as longas
lutas de famílias. Certamente algumas dessas lutas podem ter durado gerações, pois
algumas lutas remontam às vezes à época colonial, como a que opunha os Monte e os
Feitosa, no Ceará; a luta entre os Carvalho e os Pereira, em Pernambuco, data do século
XIX e se prolongou por uma boa parte do século XX; os Brilhante lutaram contra os
Limões, no Rio Grande do Norte; Silvino Ayres e Antonio Silvino lutavam pelos
Dantas-Cavalcanti Ayres combatendo contra os Carvalho Nóbrega, dos quais Liberato
Nóbrega era um dos representantes.
Até recentemente, as querelas das famílias continuaram no Nordeste. No estado
de Alagoas, os Calheiros combateram os Omena, durante os anos 80, em pleno centro
de Maceió. Em Pernambuco, em Exu, uma pequena vila do sertão, a luta entre os
Alencar de um lado contra os Sampaio e os Saraiva de outro, eclodiu primeiro em 1949
até os anos 80, com assassinatos e sem o conflito cessar, a tal ponto que o estado de
Pernambuco, por meio de um alto dignitário da Igreja, se encarregou de resolver os
problemas entre as famílias, em vão. A justiça, por sua vez, não pode tomar um partido,
pois se um processo vai aos tribunais, o assassino fica livre por falta de provas. Assim,
as vinganças continuaram.
Uma ilustração do vigor das querelas é um depoimento do coronel Antônio
Pereira. Encarcerado em 1917 na penitenciária de Fortaleza e solto em seguida por uma
ordem de habeas-corpus, este homem falou sobre a luta de sua família contra os
Carvalho, em uma entrevista publicada no Correio do Ceará e citada na obra de
Leonardo Mota: “... não há governo que dê jeito à minha luta com os Carvalho. Isto é
uma questão de sangue! Só quando Deus acabar com o último Pereira, é que Carvalho
22
deixa de ter inimigo neste mundo... o sr. Quer saber de uma coisa? Lá no meu Pajeú,
quando um menino da família Pereira começa a crescer, vai logo dizendo: Tomara já
ficar homem, pra dar cabo de um Carvalho! A mesma coisa dizem os meninos deles. É
o que eu digo: é uma questão de sangue!”1
Se uma mulher da família Carvalho se casasse com alguém da família Pereira ou
vice-versa - isso ocorria ocasionalmente – a mulher automaticamente se torna membro
da família de seu marido. Só os homens das famílias podiam permanecer entre os seus.
Atualmente, os Carvalho e os Pereira não se matam mais, mas não mantém relações de
amizade e não entram em uma loja onde um membro da família inimiga é proprietário.
Na família era considerada também a parentela: faz-se parte da família pelos
laços de sangue, incluindo as crianças não-legitimas e também aqueles que se uniam
pelo casamento e pelo compadrio. O coronel era o chefe da família e, através do
compadrio, seus empregados faziam parte da família. O compadrio, ao envolver
fazendeiros e sitiantes se convertia em um instrumento de dominação, mas ao mesmo
tempo cria uma aparente igualdade entre compadres. O próprio tratamento igualitário
fazia parte da trama de dominação. Trocava-se auxílio econômico por filiação política:
compadres e outros sitiantes eram votantes incondicionais dos fazendeiros e dos
candidatos indicados por eles.
Essa dominação tinha como um dos seus pressupostos o constante refazer de
contraprestação de serviços, impondo um limite à arbitrariedade do dominante:
fidelidade e lealdade apoiados em um esquema de favores recíprocos terminavam por
anular totalmente a possibilidade dos dominados se auto-representarem, se constituírem
como entidades dotadas de interesses e existência autônoma. Não é possível a
descoberta de que sua vontade está presa à do superior, pois o processo de sujeição tem
lugar como se fosse natural e espontâneo. Assim, a dominação pessoal transforma
aquele que a sofre numa criatura domesticada: proteção e benevolência lhe são
concedidas em troca de fidelidade e serviços.
As promessas dos coronéis para com os agregados tinham uma obrigatoriedade
restrita: quando necessário e conveniente aos fazendeiros, rompiam-se facilmente as
obrigações decorrentes das associações morais em favor das ligações de interesse,
expulsando-os de suas terras. Este rompimento expunha a fragilidade das obrigações
1
MOTA, Leonardo. Violeiros do Norte, poesia e linguagem do sertão nordestino. Fortaleza, Imprensa
Universitária do Ceará, 1962, 3ª ed., pp. 219-220.
23
suas cabras. Mas nesse ponto, é interessante passar a analisar a reportagem de Luciano
Carneiro intitulada “Porque Lampião entrou no cangaço”, publicada na Revista “O
Cruzeiro” de 3 de outubro de 1953.2
Pode-se questionar porque uma revista com circulação nacional como “O
Cruzeiro”, reconhecida como uma das maiores publicações brasileiras em sua época
áurea, publicaria em suas páginas reportagens sobre Lampião, mesmo passados quinze
anos após a morte do cangaceiro, que ocorreu em 1938. Primeiramente, ressalte-se que a
reverência dedicada ao cangaceiro é de certa forma um mito, pois para muitos ele era
um paladino-justiceiro-salteador ao mesmo tempo, considerado até como um tipo de
“Robin Hood” nordestino.
A entrevista concedida por João Ferreira, (o único irmão de Lampião que não
entrou para o cangaço como os demais) foi a fonte principal do repórter Luciano
Carneiro. Percebe-se também que os dados históricos e cronológicos sobre a entrada de
Virgulino no cangaço, dados estes que Luciano Carneiro obteve de João Ferreira, são
fragmentados. Contudo, todas as análises que consultei são unânimes em afirmar que o
âmago da questão foi um vizinho dos Ferreira, José Saturnino.
O repórter Carneiro pretendia conhecer a história de João sobre a família
Ferreira, examinando cada detalhe de seu depoimento com os demais sobreviventes da
época, inclusive com as autoridades daquele tempo e com os inimigos da família
Ferreira. Não aceitando esta proposta de Carneiro, João só concordou em falar se o
repórter não comparasse e misturasse sua entrevista com uma entrevista de José
Saturnino, que ainda vivia em 1953. Ademais, o repórter chegou a sugerir que João e
Saturnino fossem entrevistados juntos, coisa que João não aceitou, declarando que
nunca ficaria próximo do responsável pela desgraça de sua família, nem numa
entrevista. Sertanejos dificilmente perdoam ou “engolem” afrontas. João só concordou
em ser entrevistado se o repórter não entrevistasse Saturnino e, assim, a entrevista
ocorreu.
Os Ferreira moravam em Serra Vermelha, município de Serra Talhada, em
Pernambuco. Dedicavam-se à agricultura e à criação de animais. José Ferreira, o pai
de Virgulino, era adversário político de seu vizinho José Saturnino, mas ambos
2
CARNEIRO, Luciano. Porque Lampião entrou no cangaço. In: Revista semanal “O Cruzeiro”. Rio de
Janeiro, 3 de outubro de 1953, ano XXV, número 51, pp. 38-41, cont. 36, 42,88 e 6.
25
bem de vida como antes, pois as mudanças tinham abalado as finanças da família.
Infelizmente, a paz que José Ferreira procurava para sua família, também não seria
encontrada em Alagoas.
Segundo João Ferreira, seus irmãos já estavam exaltados e não queriam desistir
de se vingarem de Saturnino. Além disso, os três irmãos Ferreira mais velhos estavam
ligados a Antônio Matilde, que também fora obrigado a se afastar por causa de
Saturnino e dos Nogueira. De qualquer modo, parece que nem Matilde nem os Ferreira
queriam esquecer e em uma ocasião voltaram a Pernambuco para atacar as fazendas
de Saturnino, matando o gado, tocando fogo nas casas e causando terror entre os
moradores de Saturnino. Algum tempo depois, o mesmo grupo atacou as fazendas dos
Nogueira, em Pernambuco.
Em vista destes acontecimentos, a polícia de Água Branca começou a suspeitar
de Matilde e dos Ferreira. Segundo João Ferreira, o comissário civil da vila de
Pariconhas foi à fazenda onde os Ferreira haviam se estabelecido e revirou tudo, com a
alegação de procurar armas e objetos furtados.
Geralmente a polícia sertaneja era brutal e buscas como estas citadas por João
Ferreira significavam a destruição quase total do conteúdo das casas, além de maus
tratos e espancamentos aos moradores. Por sorte, a família Ferreira não se encontrava
em casa na hora da batida policial.
Mas as represálias policiais não pararam por aí. Quando o próprio João teve
que ir a Água Branca comprar remédios, a polícia o prendeu, um claro ardil para
intimidar os Ferreira. Virgulino, Antônio e Livino partem à procura do irmão e são
emboscados pelo delegado de Água Branca. Reagem e conseguindo escapar, enviam
um aviso ao delegado que se João não fosse solto, eles tocariam fogo na cidade.
Pode-se perceber que ousadia não faltava ao futuro Lampião e a seus irmãos,
pois mesmo em inferioridade numérica, pareciam dispostos a enfrentar toda a polícia de
Água Branca. Isto não ocorreu e João foi solto.
Como não podiam mais ficar em Água Branca, José Ferreira mais uma vez foi
obrigado a se mudar, “fugir”, segundo João. Entretanto, para José, o problema de seus
três filhos mais velhos era o mais premente no momento e assim decidiu que os três
deixariam Alagoas e que procurassem a família mais tarde. Durante a viagem de José
Ferreira e os filhos restantes para Mata Grande, falece Maria, esposa de José. Triste e
desanimado, José aceitou a hospitalidade de um amigo da família, Fragoso, e ficaram
na casa deste último, num lugar chamado Engenho.
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Eis que antes de partirem e para se vingar, os três irmãos Ferreira, juntamente
com Antônio Matilde, surram o comissário de Pariconhas e arrebentam a mercearia
deste. Também humilharam o delegado, amarrando-o em um poste. Assim,
conseguiram armar uma grande encrenca com a polícia alagoana.
É interessante notar que algumas das testemunhas nesta época já se referiam a
Virgulino como Lampião, de acordo com João Fereira. Naquele tempo já tinha
adquirido o apelido com o qual ficaria famoso. A origem deste apelido é muito discutida
entre os autores, mas a versão mais aceita é a de que Virgulino tinha muita habilidade
ao atirar com um rifle de repetição, que chegava a dar a impressão de uma luz contínua
na escuridão. No entanto, os apelidos entre os cangaceiros eram muito comuns e, às
vezes, eram dados sem nenhuma razão aparente. Lampião pagou caro por esta fama
adquirida,como veremos abaixo.
O ataque à cidade de Pariconhas ocorreu no dia 9 de maio de 1921. Nove dias
depois, José Ferreira morreria pelas mãos de uma volante policial chefiada pelo
sargento José Lucena, que buscava prender os irmãos Ferreira. Esta força policial
cercou a casa de Fragoso e assassinou José Ferreira e o proprietário Fragoso. Por
sorte, João contou que ele e os irmãos menores estavam no campo e sobreviveram.
Para se justificar, a polícia declarou que tinha encontrado na casa objetos roubados
em Pariconhas.
Se tiver sido verdade essa versão policial, os rapazes devem ter visitado o pai
depois do ataque a Pariconhas. Este é um ponto crítico na discussão, pois o ataque à
casa de Fragoso não foi justificado por nenhum acontecimento anterior e,
conseqüentemente, a entrada definitiva de Lampião para o cangaço foi devido ao
assassinato de seu pai pela polícia. Naturalmente, João Ferreira seguiu aquele ponto de
vista. Entretanto, João não se lembrou se foi em 1920 ou 1921, nem também a
seqüência exata dos acontecimentos.
A morte de José Ferreira foi uma das maiores tragédias na vida de Lampião. Na
ocasião da morte de José, seus filhos mais velhos estavam voltando para Mata Grande
para encontrarem o pai e os demais irmãos. Com a notícia da morte do pai, os rapazes
acorreram à propriedade de Fragoso para traçar os novos rumos da família. Segundo
conta João, já a essa altura Virgulino tinha ascendência sobre os irmãos mais velhos e
foi Virgulino quem incumbiu João de levar para Pernambuco e cuidar dos outros
quatro irmãos menores. Assim, João partiu e nunca acompanhou seus irmãos no
cangaço. Virgulino declarou a Antônio e Livino que tinham perdido propriedades e
29
criações com as mudanças forçadas, que a mãe morrera de tanto sofrer e o pai fora
assassinado pelos próprios homens que tinham a obrigação de protegê-lo. Para
Virgulino, Antônio e Livino a sorte estava lançada: já que haviam perdido tudo, iriam
lutar e matar até morrer. Nesse ponto, encerra-se a entrevista de João Ferreira cedida ao
“O Cruzeiro” sobre a entrada de Virgulino no cangaço.
Qualquer probabilidade de que as vidas dos integrantes da família Ferreira
pudessem ser conduzidas por caminhos pacíficos estava agora irremediavelmente
perdida. Pelos ataques a seus inimigos e as encrencas com a polícia, os irmãos Ferreira
já estavam marcados como criminosos. Já tinham traçado um caminho sem volta.
Resolvendo viver do crime e lutar contra a polícia para vingar a morte do pai eles
abandonaram qualquer esperança de poder voltar a uma vida normal e, dali em diante,
teriam que viver somente do cangaço.
Embora a entrada de Virgulino no cangaço possa ser atribuída ao contexto das
condições da sociedade em que viveu e o exame de seus atos possa explicar em parte
suas razões para este passo, há muitas perguntas sem respostas. O acontecimento pode
sempre fugir à compreensão total. É difícil explicar porque alguns homens se tornam
criminosos, enquanto outros (como João, por exemplo), vivendo dentro das mesmas
condições sociais e sujeitos às mesmas tribulações, não se tornam. Na verdade, a
diferença parece estar na interação dos acontecimentos e condições com o
temperamento individual. Talvez tenha sido a ousadia de Virgulino e também um pouco
de perversidade, combinadas com sua crescente frustração, que o impeliram a seguir o
caminho que iria pôr em perigo a vida de sua família e que no fim, quando outros
poderiam ter recuado, o levaram a cruzar o limite e entrar no cangaço. Talvez tenha sido
uma mistura de caráter e circunstância que transformou o sertanejo Virgulino no
cangaceiro Lampião.
Por ironia da sorte, Lampião e seus irmãos não conseguiram vingar
satisfatoriamente a morte de seu pai. Os dois homens que eles diziam serem mais
responsáveis, José Saturnino e o sargento José Lucena, sobreviveram aos Ferreira, por
muitas décadas. Era realmente difícil punir os responsáveis pelo crime, pois estes eram
protegidos por fortes grupos armados. Também é possível que Lampião e seus irmãos
tenham abandonado a idéia de eliminá-los, pois logo tiveram que procurar mais em
defender suas próprias vidas. Contudo, a meta declarada de Lampião de vingar a morte
de seu pai, deu à sua carreira de fora da lei uma razão que ajudou a criar a lenda do
cangaceiro justiceiro e vingativo.
30
Assim como Lampião, Jesuíno Brilhante, Antonio Silvino e Sinhô Pereira são
todos considerados chefes cangaceiros, porque suas famílias se encontraram em certo
momento como a oposição. Nos casos de Silvino e de Lampião, ambos tiveram seu pai
morto e, como os assassinos eram protegidos, essas mortes trouxeram desejo de
vingança.
Para poder analisar as relações entre cangaceiros e coronéis, é importante
também definir os cangaceiros, a razão pela qual alguém era considerado cangaceiro, a
sua posição social e a sua situação perante o coronel. Maria Isaura Pereira de Queiroz
distingue dois tipos de cangaço: o de vingança, o banditismo vingador, tradicional entre
as lutas de famílias; e o cangaço como modo de vida, devido a fatores socioeconômicos,
o qual continuou advindo das querelas entre as famílias, mas constituiu-se como única
saída para o sertanejo pobre na conjuntura sócio-econômica deste período (1900-1930),
isto ao menos fora das fileiras da polícia.3
Amaury de Souza distingue também dois tipos de cangaço, sendo o primeiro tipo
classificado por este autor como o cangaceiro herói e o segundo como um bandido
profissional, que se limitava e não era um rebelde contra o sistema estabelecido.4
Segundo Amaury de Souza, os pequenos proprietários, uma vez inseridos no cangaço,
tinham que preservar um mínimo de prestígio social; para eles, era quase impossível
abandonar o cangaço, como fizeram Sinhô Pereira e Luís Padre, que pertenciam a
famílias importantes e podiam ser apoiados em uma vida pós-cangaço.
Voltando a tratar dos tipos de cangaço, as definições de Frederico
Pernambucano de Mello5 parecem estar mais corretas. Este autor distingue três tipos de
cangaço: o cangaço-meio de vida, o cangaço de vingança e o cangaço-refúgio. Estes
dois últimos tipos se enquadram no banditismo vingador considerado por Maria
Queiroz. A maior parte dos cangaceiros (entre eles os quatro chefes de bando já
mencionados) entrou neste meio para se vingar por uma razão ou por outra: desejo de
vingança pela morte de um membro de sua família - que foram os casos de Antonio
Silvino e de Lampião – ou porque queriam satisfazer sua vingança, mas tinham a
necessidade de se manter sob proteção contra as autoridades.
3
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Os cangaceiros. São Paulo: Duas Cidades, 1977, pp. 207-208.
4
SOUZA, Amaury de. O cangaço e a política da violência no Nordeste brasileiro. São Paulo: Revista
Dados, nº 10, 1973, pp. 97-125.
5
MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do Sol - Violência e banditismo no Nordeste do
Brasil. Recife: A Girafa, 2005, p. 140.
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coronéis. Por este intermédio, os cangaceiros tiveram acesso a armas de uso exclusivo
militar, como as do tipo Winchester, que foram utilizadas principalmente pelos
cangaceiros do grupo de Lampião. Além de armas e munições, recebiam uniformes e
abrigo desses coronéis, em caso de perseguições.
Uma proteção semelhante só poderia ser fornecida pelos coronéis, o que
implicava que o cangaceiro, apesar de sua situação de independência, era realmente
dependente de seus protetores, se não todo o tempo, ao menos momentaneamente. E por
que interessava aos coronéis cooperar com os cangaceiros? As razões variam. Um
coronel podia agir por receio de ser atacado ou por pragmatismo, uma vez que por um
tempo significativo no sertão os bandidos demonstraram um poderio maior do que a
polícia. Os grupos de cangaceiros também podiam ser cooptados e utilizados na
execução de vingança contra inimigos políticos.
Portanto, não é possível sustentar a hipótese de antagonismo entre cangaceiro e
coronel, tendo prosperado uma tradição de simbiose entre essas duas figuras,
representada por gestos de auxílio recíproco, porque assim lhes apontava a
conveniência. Ambos se fortaleciam com a celebração de alianças de apoio mútuo,
representando, para as duas partes, condição de maior poder. Por força dessas alianças,
o bando colocava-se a serviço do fazendeiro ou chefe político, que se convertia, em
contrapartida, naquela figura responsável pela conservação do caráter endêmico de que
o cangaço sempre desfrutou no Nordeste, que foi o coiteiro.
Muitos coronéis mantiveram bom relacionamento com os cangaceiros, chegando
a protegê-los e acolhê-los em suas fazendas, embora sua motivação para isso não fosse
exatamente bondade ou simpatia. Seus interesses pessoais sempre falaram mais alto que
qualquer sentimento.Os coronéis visavam suas próprias vantagens e lucros e não era
nenhum acontecimento incomum abrigar um cangaceiro e em seguida traí-lo. Por outro
lado, visto que a proteção foi de interesse vital para os cangaceiros, estes últimos não
podiam atacar sem discernimento. Um equilíbrio delicado entre amigos e inimigos foi
necessário para que os grupos de cangaceiros pudessem sobreviver por tanto tempo. O
padre José Kherle, confessor e amigo pessoal de Lampião e de sua família desde a
década de 20, em uma entrevista concedida a Revista Manchete e publicada em 29 de
abril de 1972, chegou mesmo a afirmar:
33
“Lampião sempre foi protegido por chefes políticos e grandes donos de terras.
Deles, em troca de serviços, Lampião recebia armas e mantimentos.”6
As relações políticas de Lampião com pessoas poderosas, como de resto ocorre
com o cangaço em geral, foram necessárias para a preservação do bando. Alguns pontos
de vista um pouco imprecisos relativos à independência de Lampião e dos demais
bandidos são tão comuns como os que os compreendem como armas de aluguel. Arthur
Shaker entende o cangaço de Lampião como superior em poderio aos coronéis.7 Do lado
oposto - coronéis como superiores em poderio a Lampião está o livro de Chiavenato.8
Shaker sugere que a fonte de poder de Lampião seria a fraqueza do coronelato em sua
área de influência e que os potentados locais não teriam força suficiente para combatê-
lo, e que, por isso, submetiam-se às suas exigências e procuravam colaborar. Já para
Chiavenato, Lampião não passou de um joguete nas mãos dos coronéis que o utilizaram
para depor seus inimigos políticos e eleger seus aliados. Segundo este autor, o cangaço
durou enquanto manteve o braço armado na fazenda, enquanto houve necessidade de
defendê-la dos interesses de uma massa trabalhadora insatisfeita e porque as novas leis
eleitorais permitiram que os coronéis controlassem as eleições através dos votos de
cabresto, com a morte por encomenda substituindo as guerras de família. A própria
história rural recente é uma refutação à argumentação deste autor.
Quanto a Shaker, sua hipótese parece esbarrar em problemas factuais da própria
época em questão, pois há evidências de que existiram muitos coronéis e fazendeiros
que, com homens e armas, tentaram se defender dos possíveis ataques realizados por
cangaceiros, como no ataque frustrado de Lampião a cidade de Mossoró, no Rio Grande
do Norte, em 1927, quando o grupo de cangaceiros foi derrotado e repelido por grupos
de moradores armados.
Ressalte-se ainda que em momentos em que o poder dos cangaceiros era
reconhecidamente inferior, abria-se a possibilidade de homens autônomos dos bandos
viverem como jagunços ou manterem-se sob a proteção de um chefe de jagunços. Isto
comprova que, regra geral, o cangaço de Lampião tinha uma relação que não
comportava superioridade ou inferioridade constantes com os seus protetores, até
mesmo os mais ilustres. Estas situações dependiam das circunstâncias do momento.
6
Idem, p. 317.
7
SHAKER, Arthur. Pelo espaço cangaceiro. São Paulo: Símbolo, 1979.
8
CHIAVENATO, Júlio . Cangaço, a força do coronel. São Paulo: Brasiliense, 1990.
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Deve ficar claro que o relacionamento entre cangaceiro e coronel não produzia
vínculo de subordinação exclusiva para qualquer das partes. A característica principal
do cangaceiro, o traço que o faz único, é a ausência de patrão. Mesmo quando ligado a
fazendeiros, por força de alianças celebradas, o chefe de grupo não assumia
compromissos que pudessem tolher-se à liberdade. A convivência entre eles fazia-se de
igual para igual, agindo o cangaceiro como um fazendeiro sem terras, cioso das
prerrogativas que lhe eram conferidas pelo poder das armas.
Em março de 1926, atendendo ao pedido de Padre Cícero e do deputado federal
Floro Bartolomeu, Lampião se dirigiu a Juazeiro do Norte, a fim de receber a patente de
“capitão” e lutar contra as forças da Coluna Prestes. Durante sua estadia em Juazeiro,
Lampião concedeu uma entrevista ao jornalista Otacílio Macedo, que foi publicada no
jornal O Ceará, edição de 17 de março de 1926. Passemos agora a analisar o conteúdo
dessa entrevista, que é considerada pelos historiadores como fundamental para melhor
conhecimento do cangaço. Foram adaptaram os termos regionais à linguagem corrente.
Lampião começou dizendo:
“Chamo-me Virgolino Ferreira da Silva e pertenço à família Ferreira, do riacho
de São Domingos, município de Vila Bela. Meu pai por ser perseguido pela família
Nogueira e em especial por José Saturnino, nosso vizinho, resolveu retirar-se para o
município de Águas Brancas, no estado de Alagoas.”
Nesse trecho inicial da entrevista, pode-se perceber que as informações dadas
por Lampião coincidem com as prestadas por João Ferreira à Revista O Cruzeiro,
descritas acima.
Lampião continuou:
“Mesmo assim as perseguições não cessaram. Em 1917,em Águas Brancas, meu
pai, José Ferreira, foi assassinado pelos Nogueira e Saturnino. Não confiando na ação
da justiça pública, porque os assassinos eram protegidos pelos grandes resolvi pela
vingança. Não perdi tempo. Juntei meus recursos e enfrentei a luta dali em diante. Não
escolhia a quem matar, bastando que pertencesse a famílias inimigas e sei que reduzi
bastante o número delas.”
Apesar de Lampião assegurar que sua entrada no cangaço deve-se ao desejo de
vingança pela morte de seu pai e de que ele reduziu bastante o número dos integrantes
das famílias inimigas, ele e seus irmãos não conseguiram vingar satisfatoriamente a
morte de seu pai, pois os dois homens que eles diziam serem os mais responsáveis pelo
assassinato de seu pai, José Saturnino e o sargento José Lucena, sobreviveram aos
35
Ferreira, por muitas décadas. No entanto, esta meta declarada de Lampião de vingar a
morte de seu pai, deu à sua carreira de bandido uma razão que ajudou a criar a imagem
do cangaceiro justiceiro e vingativo.
A interessante categoria de “escudo ético” apresentada por Mello9 está já contida
na tábua de valores do sertanejo e este o identifica nos atos de Lampião. O escudo ético
é a forma através da qual o cangaceiro profissional justifica a sua adesão à vida
criminosa. Mas a sua própria conduta já não condizia com seu discurso; ao não se
vingar dos assassinos de seu pai, já era possível identificar nas ações de Lampião o
perfil do bandido comum, utilizando o cangaço como meio de vida.
Lampião fez a opção pelo caminho do cangaço para poder sobreviver, sob o
pretexto de vingar-se dos assassinos de seu pai. Não optou pela liderança e organização
de lavradores revoltados e de trabalhadores explorados porque não tinha formação
política alguma. Lampião nunca foi um líder de rebeliões ou um modelo que servisse
para a formação de consciência política para camponeses revoltados.
Na seqüência da entrevista, Lampião não deixou de mencionar seu mentor
dizendo:
“Já pertenci ao grupo de Sinhô Pereira, a quem acompanhei durante dois anos.
Muito me afeiçoei a este meu chefe, porque é leal e valente batalhador. Se um dia
voltasse ao cangaço, eu iria ser seu cabra.”
Nesse ponto da entrevista, Lampião refere-se ao período exatamente anterior à
formação de seu próprio grupo de cangaceiros, quando por dois anos pertenceu ao grupo
chefiado por Sinhô Pereira, e que, quando este último resolveu abandonar o cangaço em
1922 e exilar-se em Goiás, coube a Lampião assumir a liderança do bando.
Sobre suas andanças e seus perseguidores declarou:
“Tenho percorrido os sertões de Pernambuco, Paraíba e Alagoas e uma
pequena parte do Ceará. Com as polícias desses estados já entrei em combate inúmeras
vezes. A polícia de Pernambuco é disciplinada e valente, e muito cuidado me tem dado.
Mas a polícia da Paraíba é covarde e insolente. Atualmente há um contingente da força
pernambucana de Nazaré que está praticando as maiores violências por aí,
comportando-se como a polícia paraibana costuma fazer.”
9
MELLO, Frederico Pernambucano de. op. cit., pp. 132-133.
36
Lampião demonstra ter confiança nos seus coiteiros e informantes que lhe
avisavam sobre a movimentação das forças policiais.
Seu comportamento mereceu comentários bastante francos:
“Tenho cometido violências e depredações, vingando-me dos que me
perseguem.Costumo respeitas as famílias, por mais humildes que sejam. Quando
acontece de alguém do meu grupo desrespeitar uma mulher, castigo severamente. Até
agora não desejei abandonar a vida de armas, com a qual já me acostumei e sinto-me
bem assim. Mas mesmo que não fosse assim não conseguiria deixar este tipo de vida,
porque os inimigos não se esquecem de mim. Por isso, eu também não posso nem devo
deixá-los tranqüilos. Poderia retirar-me, indo para algum lugar longínquo, mas acho
que isso seria uma covardia e não quero nunca passar por covarde.”
Aqui Lampião afirma ser perseguido e, por isto, procura justificar seus atos de
violência e vingança. Outro aspecto interessante destacado por Lampião era sobre as
relações dos cangaceiros de seu grupo com mulheres: estupros e assédio a mulheres
casadas não eram permitidos, sendo punidos. Lampião também se refere a um possível
afastamento da vida de cangaceiro, mas considera ser difícil deixar sua “profissão”,
como veremos mais adiante.
Sobre as pessoas que tinha contato:
“Geralmente gosto de todas as classes. Tenho alguma preferência pelas classes
mais conservadoras, como agricultores, fazendeiros, comerciantes e outros, por serem
homens que trabalham. Tenho veneração e respeito pelos padres, porque sou católico.
Sou amigo dos telegrafistas, porque alguns têm me salvo de grandes perigos. Acato os
juízes, que são homens da lei e não atiram em ninguém. Só detesto realmente uma
classe: a dos soldados, que são meus constantes perseguidores. Reconheço que muitas
vezes eles me perseguem porque são obrigados e só por isso é que ainda poupo alguns
quando os encontro fora do campo de luta.”
Neste trecho da entrevista que concedeu, constata-se que Lampião lutava contra
o poder público corporificado enquanto Estado, não contra as elites dominantes
representadas politicamente por esse mesmo Estado. Lampião mostrou-se conservador
nos costumes, com preferências claras pelas classes dominantes e no modo de vida que
gostaria de levar longe do cangaço. Percebe-se claramente que Virgulino Ferreira da
Silva não pretendia subverter a ordem injusta e opressiva vigente no sertão.
Sobre seus companheiros:
39
Convocado pelo padre Cícero para dar combate aos rebeldes da Coluna Prestes,
Lampião aceitou a patente de capitão, mas na seqüência ao ser atacado por volantes
pernambucanas, que não reconheciam sua patente, Lampião esquivou-se do
enfrentamento com os tenentes guerrilheiros. Sabia não ter explicação o combate a
inimigos do mesmo governo que queria aniquilá-lo.
A uma pergunta do repórter sobre a razão de não abandonar o cangaço, Lampião
respondeu lançando uma outra pergunta:
“Se o senhor estiver em um negócio e for-se dando bem com ele, pensará em
abandoná-lo?”
Está claro que não”, respondeu o jornalista. O bandido então arrematou:
“Pois é exatamente o meu caso, estou me dando bem com esse negócio e não
pretendo abandoná-lo. Não sei se vou passar a vida toda nele. Depois, talvez me torne
um comerciante.”
É possível afirmar-se que os maiores cangaceiros, entendidos estes como os
chefes de grupo de maior expressão, gostavam da vida do cangaço. Num sertão
profundamente conturbado pelas disputas entre chefes políticos e lutas de famílias, o
cangaço representava uma ocupação aventureira, um ofício epicamente movimentado,
um meio de vida. Por isso, não se deve considerar o cangaço como despido de atrativos.
A figura do cangaceiro, homem sem patrão fixo, vivendo das armas, era razoavelmente
bem aceita naquele meio, o que favoreceu e incentivou o ingresso de muitos sertanejos
nos grupos de cangaceiros.
O próprio Lampião declarou que considerava o cangaço como um bom meio de
vida. Chegaria mesmo a defini-lo como um “negócio” nesta passagem da entrevista.
Aqui termina a entrevista concedida por Lampião em Juazeiro do Norte.
Lampião fez-se capitão em Juazeiro, por ordem do Padre Cícero e por ocasião
do combate à Coluna Prestes e, se pouco tardou para que o erro dessa nomeação fosse
reparado com o recrudescimento de sua perseguição pelas volantes, o cangaceiro jamais
renunciou a seu título. Ao não renunciar ao seu título de capitão, Lampião demonstra
que sua meta era a conquista de uma posição social como a desses seus coiteiros
poderosos e de outros tantos líderes locais com quem fez aliança.
O ingresso de Lampião e de seu grupo nos chamados Batalhões Patrióticos,
formados com o propósito de lutar contra a Coluna Prestes, concedeu aos cangaceiros
um retorno à legalidade, porém de curta duração, pois a aposta de Padre Cícero no
poder de Lampião esbarrou em muitos obstáculos sendo certamente o mais grave de
41
todos a sua fama. Nem o sertão nem as capitais nordestinas se conformariam com o
bandido munido não apenas da sua patente, como também de uniformes militares,
munição em abundancia e moderno armamento bélico, tudo isso em número suficiente
para equipar todo seu bando.
Nesse episódio há algo que merecer ser analisado: o escândalo que essa atitude
provocou. Ora, para a expulsão dos revoltosos os cangaceiros não foram os únicos
sertanejos com passado criminoso prontos a contribuir, pois as milícias privadas dos
coronéis também foram acionadas sem provocar impacto semelhante na opinião
pública. A frequência do nome de Lampião em jornais terá gerado em seu caso um
impasse insuperável, mas tanto a fama já alcançada quanto ao escândalo resultam da
singularidade de sua força armada, isto é, da sua autonomia.
42
CONCLUSÃO
segmentos sociais das camadas inferiores que fortaleceram o chefe dos cangaceiros o
suficiente para que ele pudesse manter relações com os representantes das camadas
dominantes em condições de igualdade.
Percebe-se que as fronteiras e o alcance do cangaço são vastos. No lugar de um
espaço fechado, os cangaceiros tinham à sua disposição um raio de ação que poderia ser
expandido em várias direções. As extremas mobilidades associadas à imprevisibilidade
dos deslocamentos de Lampião ofereciam o maior obstáculo ao sucesso dos seus
perseguidores das volantes, os “macacos”. Estes últimos, por seu lado, empreenderam
um longo aprendizado acerca de seus inimigos cangaceiros, aprendizado este passível
de ser traduzido no esforço de compreensão da relação entre o seu nomadismo e as suas
práticas de reciprocidade enquanto estratégia de guerra e de poder.
Pode-se concluir que a evolução da repressão ao cangaço consistia em uma
tentativa de desvendar essa espécie de segredo tático da mobilização do inimigo, que,
para efetivar essa mobilização, dependia do auxílio dos coiteiros. Desde os primeiros
anos do cangaço de Lampião, a principal tarefa de que se incumbiram as forças policiais
no sertão foi a de deter o cangaço e nos últimos anos do cangaço a missão resumia-se
em eliminar Lampião.
Nas suas relações com os coiteiros, havia dois tipos de perigos para os
cangaceiros: 1) a traição voluntária, quando o coiteiro por espontânea vontade
“entregava” o bando; 2) a delação forçada, que ocorria quando a polícia espancava ou
ameaçava de morte os coiteiros e estes últimos acabavam falando sobre o paradeiro dos
cangaceiros. Este segundo caso parece ter sido o de Pedro de Cândido, coiteiro de
Lampião, que, ameaçado de morte pelo Tenente João Bezerra, indicou a localização
exata do esconderijo de Lampião em Angico, Sergipe. Então, a volante comandada por
João Bezerra, em julho de 1938, surpreendeu o bando de Lampião, massacrando o
grupo que contava com onze cangaceiros, incluindo nesse número Lampião e sua
companheira Maria Bonita.
Com a morte de Lampião, o cangaço chegava ao fim. Muitos cangaceiros se
entregaram, mas Corisco e seu bando não se renderam. Perseguido pela polícia de
vários estados, o grupo de Corisco foi dizimado em 1940. Entre as razões do declínio do
cangaço, destacaram-se os progressos materiais (melhores comunicações e melhores
armas das forças perseguidoras), o desenvolvimento econômico e, sobretudo, uma
maior e mais eficiente penetração da autoridade do governo do Estado Novo no sertão.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHANDLER, Billy Jaynes. Lampião, o rei dos cangaceiros. Rio de Janeiro: Paz
e Terra,1980.
PRADO JR., Caio. Evolução Política do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 14ª. ed.,
1985, p. 141.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. História do Cangaço. 4ª edição. São Paulo:
Global, 1991, (Coleção História Popular, n. 11), pp. 66-67.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Os cangaceiros. São Paulo: Duas Cidades,
1977.
(tomo III, vol. 1). São Paulo: DIFEL, 1975, pp. 153-190.