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PROCESSOS IDENTITÁRIOS

EM CONTOS ANGOLANOS CONTEMPORÂNEOS (2005-2011) 1

Bianca Magalhães Wolff 2


(Cnpq/UESC)
Inara de Oliveira Rodrigues3
(UESC)

Resumo: Apresenta-se neste trabalho uma análise sobre contos do escritor angolano João
Melo sob a perspectiva dos estudos pós-coloniais, problematizando-se de que modo, na
obra O homem que não tira o palito da boca (2009), são representados os processos
identitários. O conceito de identidade encontra-se fundamentado em Bauman (2005) e
Hall (2006), e as noções de crítica pós-colonial em Hamilton (1999) e Leite (2003),
principalmente. O desenvolvimento da pesquisa, de caráter eminentemente bibliográfico,
permitiu perceber que, a atual narrativa angolana mostra o caráter pluralizado em que se
encontra a cultura angolana e os desafios que esses povo enfrenta em meio a uma busca
pela construção da identidade nacional. Além disso, percebe-se que as questões
identitárias são atravessadas por uma escrita marcada pela ironia e pela crítica ao passado
conscientemente assentada nas incertezas do presente.

Palavras-chave: Literatura e Cultura. Globalização e Identidade. Pós- colonialismo.

Abstract: Show up in this work one analysis about stories of angolan writer João Melo
sob perspective of post-colonial studies, questioned how do the work literary O homem
que não tira o palito da boca (2009) it are represented the identity processes. The concept
of identity find out based in Bauman (2005) and Hall (1999), and the notions of censure
post-colonial in Hamilton (1999) and Leite (2003). The development of research, of
eminent character bibliographer, allowed to see, that, in the present angolan narrative,
exposes the character pluralized of the Angolan culture and the challenges that people
faces while seeking to build the national identity. Besides, perceives that the identity
questions are crossed by one writing marked by ironic and criticism at past consciously
hold in the present uncertainness.

Key- words: Literature and Culture. Globalization and Identity. Post- Colonialism.

1Este artigo apresenta resultados parciais do projeto de Iniciação Científica (Cnpq/UESC) “Literaturas
Africanas de Língua Portuguesa: oralidade, identidade e resistência”, coordenado pela Profª Drª. Inara de
Oliveira Rodrigues (DLA/UESC).
2 Aluna do Curso de Letras da Universidade Estadual de Santa Cruz, bolsista de Iniciação Científica

CNPq//UESC. wolffbianca@hotmail.com.
3 Orientadora. Prof.ª Dr.ª do Curso de Letras e do Mestrado em Letras Linguagens e Representações da

Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). profeinaraletras@hotmail.com.

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O PAPEL DOS ESTUDOS PÓS- COLONIAIS NA LITERATURA LUSÓFONA

As Literaturas Africanas de Língua Portuguesa tem sido objeto de estudo para a


crítica pós-colonial, teoria que vem causando controvérsias em função das diferentes
concepções sobre o termo “pós-colonial”. De modo geral, entretanto, muito mais do que
uma marca de temporalidade, boa parte dos estudiosos que se debruçam sobre o tema
concluem que “ao contrário dos pós-modernistas, que carregam o passado nas costas, mas
que fixam os olhos no futuro, os pós- colonialistas encaram o passado enquanto
caminham para o futuro” (HAMILTON, 1999, p.17).
Segundo Leite (2003), embora o termo “pós-colonial” seja de origem anglo-
saxônica, este conceito foi adequado aos estudos literários africanos lusófonos nos anos
70 e passou a ser estudado para discutir os efeitos culturais da colonização, então passou
a ser entendido como estratégias para refutar a visão colonial e resistir ao conjunto de
ideologias colonialistas implicando uma nova visão de mundo não só para as literaturas
emergentes, mas também para textos literários da ex-colônia. Além disso, os estudos pós-
coloniais “abrange questões tão complexas, variadas e interdisciplinares, como
representação, sentido, valor,..., diferença, hibridização, etnicidade, identidade... criando
alguma instabilidade no domínio dos estudos literários tradicionais” (LEITE, 2003, p.13,
grifo nosso).
A partir desses pressupostos, o objetivo do presente trabalho consiste em
evidenciar elementos do processo de construção identitária presentes nos contos
“Madinusa” e “O meu primeiro milhão de dólares” que compõem o livro de contos O
Homem que não tira o palito da boca (2009) do escritor angolano João Melo. Esse tema
tem sido objeto de investigação, visto que se pode reconhecer em Angola um movimento
construção de sua identidade, mas atravessado por desafios do atual mundo globalizado,
que tornam a identidade algo imprevisível, em constante movimento (BAUMAN, 2005),
e que não é algo acabado que está dentro de nós a partir do nascimento, mas sim algo que
se forma gradualmente sem alcançar uma plenitude (HALL, 2006).

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QUESTÕES IDENTITÁRIAS POR TRÁS DA IRONIA NOS CONTOS
“MADINUSA” E “O MEU PRIMEIRO MILHÃO DE DÓLARES”

Mastiga a própria desgraça


com ela improvisa uma farra
precisa de uma boa maka
como do ar para respirar
acha o mundo demasiado pequeno
pró seu coração
ri à toa fornica por disciplina
revolucionária
jura que um dia será potência
gosta de funje todos os sábados
e foge do trabalho na segunda
mas fica limão
quando lhe querem abusar

(Homo angolensis – João Melo)

O escritor João Melo nasceu em Luanda em 1955, é jornalista, publicitário,


professor universitário, deputado à Assembleia Nacional de Angola e membro fundador
da União de Escritores Angolanos da qual já foi secretário-geral, presidente da Comissão
Diretiva e presidente do Conselho Fiscal. Como escritor, poeta, ensaísta, contista e
cronista, já publicou onze livros para vários idiomas (MELO, 2009).
Dentre suas obras literárias, destaca-se O homem que não tira o palito da boca
(2009), livro que reúne quinze contos, e embora tratem de histórias com temáticas
diferentes, podemos notar que as narrativas reconhecem a realidade cultural diversa de
Angola, abordam algumas contradições existentes no país, conflitos, problemas como a
corrupção e, sobretudo questionamentos identitários. Assim, os contos não só permeiam
nos campos da ficção, como também abordam eventos que precederam e sucederam à
independência de Angola e que compõem o seu processo histórico e cultural. Dentre os
contos que compõem essa antologia encontram-se os contos “Mandinusa” e “O meu
primeiro milhão de dólares” (2009).
O conto “Madinusa” (2009), assim como os outros contos, trata-se de uma
metanarrativa onde a voz do autor está marcadamente presente. A história ocorre no
nordeste brasileiro, de modo que, o autor explica previamente que mesmo sendo autor
angolano pode ultrapassar os limites de seu país assim como “escritores americanos que

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escrevem sobre a Tailândia, os franceses que escrevem sobre o México... A cena
(etimologicamente falando) agora é global...” (MELO, 2009, p.53). Aliás:

O surgimento das literaturas africanas é em simultâneo momento de (in)


definição, de partilha e de ruptura com a literatura do país colonizador;
verificar as épocas em que as fronteiras ainda se tocam, ou ainda as
relações aparentemente disjuntivas e ao mesmo tempo, em certos casos,
mais fluidas, entre o desabrochar da ficção pós- colonial e o
desenvolvimento da literatura colonial... são aspectos que é necessário
desenvolver teoricamente e prospectar com a maior seriedade e rigor
em cada uma das literaturas nacionais (LEITE, 2003, p.35-36, grifo
nosso).

A história é sobre a distinta Madinusa, filha de um mecânico da Força Aérea dos


Estados Unidos chamado Peter Simpson e uma prostituta chamada Maria Aparecida.
Madinusa não conhecera seu pai, pois este servia ao Império o que impedia qualquer
formação de laços, assim seus momentos de lazer deveriam ser “auto-suficientes, pelo
que, depois de gozá-los, era interdito voltar a cabeça para trás, mesmo que fosse
simplesmente para procurar alguns restos ou sinais que acaso tivesses sido esquecidos”
(MELO, 2009, p.54).
Madinusa é descrita como uma jovem de dezesseis anos de “cor achocolatada
escura, o que tornava ainda mais inusitados os dois olhos verdes e o cabelo liso” (MELO,
2009, p.55), mas, ao invés de sua excepcional aparência, o que leva a uma “absurda”
visita de “G.W.Buch àquele ponto perdido do planeta para convidar pessoalmente a
jovem Madinusa... a visitar Washington” é o seu nome:

O renomado especialista determinou rapidamente,... que Madinusa não


passava da aglutinação de uma expressão visceralmente ligada, tal
como uma outra- The american way of life -, ao domínio do Império:
made in USA. O aprofundamento do estudo permitiu- lhe confirmar os
rumores transferidos de geração em geração pela tradição oral dos
nativos, segundo os quais quando Peter Simpson esteve na cidade, no
decurso da Segunda Guerra Mundial, a mesma era abastecida pela força
Aérea norte-americana, sobretudo com enlatados made in USA que
muito contribuíram para mitigar a fome daqueles desgraçados, filhos de
índios, negros e portugueses, os mouros da Europa... Maria Aparecida
era uma grande consumidora dessa lataria, com a qual o mecânico Peter
Simpson a compensava pelos momentos de lazer que ela lhe
proporcionava. A gratidão de Maria Aparecida era tanta que resolveu
reconhecer perante todos que sua filha tinha sido made in USA, embora
não geograficamente (tratou-se digamos assim de um serviço prestado
a domicílio por Peter Simpson). Era preciso, pois, exaltar essa inusitada
contribuição do império a riqueza onomástica da língua portuguesa
(MELO, 2009, p.59-60).
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Embora a narrativa tenha como cenário o nordeste brasileiro, o presente conto
pretende não só ironizar o “Imperialismo” dos Estados Unidos, sobre a América, mas sim
toda forma de Imperialismo caracterizado pela dominação e que utiliza “uma panóplia de
estratégias, procedimentos, recursos e tecnologias para controlar democrática e
implacavelmente os seus súditos, onde quer que eles estejam” (MELO, 2009, p.58). Além
disso, o conto expõe a perversidade e condição sub-humana do povo durante o processo
de dominação e ironiza também o sentimento de superioridade cultural do país
dominador.
Na narrativa, os personagens são manipulados por uma “lataria”, o que na
atualidade pode representar talvez os aparelhos de última geração, as roupas de grife, fast-
food ou qualquer outra coisa, “atuante numa escala global, que atravessam fronteiras
nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações
de espaço-tempo” que implica a globalização (HALL, 2006, p.18).
Segundo Hall (2006), é exagerada a ideia de que a globalização exterminará a
identidade nacional, no entanto, “É mais provável que ela vá produzir, simultaneamente,
novas identificações ‘globais’ e novas identificações ‘locais’”(HALL, 2006, p.21).
Assim,
a globalização tem, sim, o efeito de contestar e deslocar as identidades
centradas e ‘fechadas’ de urna cultura nacional... tem um efeito
pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de
possibilidades e novas posições de identificação (HALL, 2006, p.23).

Portanto, fazendo uma ligação aos estudos de BAUMAN (2005) sobre o


conceito de identidade, é possível compreender que esse termo, nos tempos atuais, em
nossa época “líquido-moderna” é visto como algo evasivo e escorregadio e por mais que
o homem busque pela construção de sua identidade, os desafios presentes no mundo
globalizado tornam a identidade algo imprevisível e que está em constante movimento.
Diante disso:

A textualidade pós- colonial é necessariamente um fenômeno


hibridizado, ou plural no sentido de coexistência de uma pluralidade de
formas e de propostas, resultantes da relação entre os sistemas culturais
europeus enxertados e as ontologias indígenas, com o seu impulso de
criar ou recriar identidades locais, novos campos literários. Não é
possível regressar a uma pureza pré- colonial absoluta, tal como não é
possível criar formações nacionais, totalmente independentes das suas
implicações históricas na empresa colonial. As literaturas africanas de
língua portuguesa, com a criação dos seus campos literários específicos,
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relatam as narrativas desse impossível regresso ao passado,
entretecendo, com sabedoria, a sua reinvenção (LEITE, 2003, p.36).

Assim, por meio do conto “Madinusa” (2009), João Melo expõe o caráter
pluralizado que a identidade tomou, de modo que o objetivo da busca identitária de
Angola não se trata de uma pretensa busca por uma identidade pura, antes:

As literaturas africanas emergentes recorrem aos seus próprios espaços


culturais, periféricos do ponto de vista do centro, em busca não de uma
mítica ou pretensa “autenticidade” pré- colonial, mas do material
poético nativo, passado e presente (e sujeito a descrição e re-
orientação), que lhes garanta a “ invenção” de um campo literário
diferente , sujeito à recuperação, integração e eventual hibridização
também de modelos outros, estrangeiros... criando no caso dos textos
criativos, novos códigos para os inscrever (LEITE, 2003, p.28).

Segundo Hamilton (1999), após a independência, as literaturas africanas


passaram a se interessar em produzir uma literatura voltada para construção nacional
como forma de “Re-escrever e re- mitificar o passado...contra distorções, mistificações e
exotismos executados pelos inventores colonialistas da África” (HAMILTON, 1999,
p.18). Assim, ao mesmo que as literaturas africanas buscam reinventar suas características
que foram veladas pelo processo de colonização, essas literaturas também integram e são
influenciadas por diversas outras culturas.
O conto, também, pretende levar a uma reflexão, pelo modo como conclui,
deixando o leitor decidir o que aconteceu a Madinusa após o encontro inesperado com
Bush destacando que “não é uma novela da Globo, mas um livro de contos sérios,
profundos e responsáveis. Por essa razão, e para ser credível, esta estória só pode terminar
de uma maneira. Adivinhem” (MELO, 2009, p.62).
O conto “O meu primeiro milhão de dólares” (2009) é caracterizado por uma
linguagem de baixo calão que se inscreve na forma de depoimento de um empresário que
descreve suas ambições, como esbanja sua riqueza fruto de “muito trabalho e sacrifício”,
Esses parvalhões dos invejosos não tem noção, igualmente, das
situações por que já tive de passar, das figuras que tive de fazer, para
atingir os meus objetivos. Não sei o que por vezes, é pior: se o olhar de
superioridade moral (pretensa claro) dos gringos com quem tive de
negociar as minhas comissões, para viabilizar os negócios que lhe
interessavam, ou se a nítida e insuportável sensação de que o chefe
sempre desconfiava,... cheguei a pensar que o chefe sabia perfeitamente
de tudo e que apenas estava a cozinhar- me em banho- Maria, à espera
de uma oportunidade para me dar uma queda. Nessas ocasiões, quase
entrava em pânico, mas, felizmente, sou forte. A vida temperou-me.
Não me digam que isso não é trabalho... a minha vida não é nada fácil.

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Honestamente, não sei porquê todas as campanhas contra mim (MELO,
2009, p.168)

O presente conto expõe uma das mazelas enfrentadas por Angola: a corrupção.
Esse tema é descrito em outra narrativa que compõe a antologia O homem que não tira o
palito da boca (2009), o conto “Um angolano especial”:

- É certo que não há mais tiros, mas até quando? Todo o mundo parece
que só pensa em ficar milionário do dia para a noite!...Todo o mundo,
vírgula! Uma meia dúzia, os mesmos de sempre... As melhores terras,
diamantes, telecomunicações, transportes, petróleo... Eles ficam com
tudo, não deixam nada para ninguém!...Sim, estão a fazer umas
estradas, umas pontes, umas escolas... E o resto? Nem a maka da água
e da luz conseguiriam resolver em cinco anos!...e a corrupção? As
coisas agora são feitas às claras, parece que ninguém tem vergonha
(MELO, 2009, p.49).

Pode-se perceber a partir desse trecho que, mesmo após a independência de


Angola, o país ainda enfrenta problemas que desafiam a construção de sua identidade,
como a corrupção e os efeitos do capitalismo, pois “a globalização é muito desigualmente
distribuída ao redor do globo, entre regiões e entre diferentes estratos da população... Os
padrões de troca cultural desigual, familiar desde as primeiras fases da globalização,
continuam a existir na modernidade tardia” (HALL, 2006, p.21).
Assim, é exposta a situação em que Angola se encontra, após a independência,
mostrando os contrastes existentes no sistema capitalista desigual. Esse contraste é
narrado também em outro conto desta antologia, o conto “A Virgem Maria do Sambila”
(2009). Sambila é uma cidade que tem “uma magnífica vista para o oceano Atlântico que
contrasta... com a degradação e a miséria das suas toscas habitações, lixo espalhado,...,
crianças rotas e estranhamente barrigudas,..., o Sambila é mais um dos museques de
Luanda” (MELO, 2009, p.31). Além disso, “Os homens e as mulheres que habitam o
Sambila não possuem qualquer glamour pós-moderno... não fazem compras mensais...
Um dia qualquer, cansados de tudo,... enforcam-se” (MELO, 2009, p.32).
Na atual sociedade capitalista, a produção de riqueza se concentra nas mãos de
uma minoria enquanto a maioria vive “num ambiente fluido, não tem como saber se o
que nos espera é uma enchente ou uma seca...” (BAUMAN, 2005, p.57). De acordo com
Bauman (2005), “homens e mulheres desta nossa época suspeitam ser... desprotegidos...
facilmente renegados e destinados à pilha de lixo quando acharem que eles não dão mais

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lucro” (BAUMAN, 2005, p.53). Assim é a atual sociedade marcada pela “versatilidade,
volatilidade e imprevisibilidade desorientadora” (BAUMAN, 2005, p.58) que Bauman
(2005) chama de “época líquido-moderna”. No conto “A Virgem Maria do Sambila”
(2009) é descrito o contexto da atual sociedade cujas características tornam ainda mais
complexa a busca pela identidade:

Este é o tempo em que vivemos...se trata de um tempo em que a única


realidade que conta é a da televisão e/ou a produzida pelos diferentes
sistemas de vídeo que nos filmam, vigiam e controlam em todo o lado.
Um tempo de personagens errantes, que ninguém sabe de onde vêm e
para onde vão, se é que querem ir mesmo para algum lugar. Um tempo
de autores permanentemente em trânsito. Um tempo dominado pela
velocidade, mas que é incapaz de produzir qualquer novidade, algo que
realmente dê um novo sentido à existência dos homens e das mulheres.
Um tempo de insegurança geral, em que o único antídoto para combater
o medo parece ser a necessidade de sucesso a qualquer custo. Ou então
fugir constantemente de um lugar para outro, até descobrir o verdadeio
entre-lugar, que simplesmente não existe (MELO, 2009, p.31).

Em “O meu primeiro milhão de dólares” (2009), o personagem/ narrador passa a


descrever suas viagens milionárias para o exterior, seus inúmeros relacionamentos
amorosos extra- conjugais e os “negócios” que faz para ganhar dinheiro fácil:

Quando estou chateado com os sacanas dos invejosos que passam a vida
a colocar mentiras sobre mim nesses paquins da tugue, vou para o Rio
de Janeiro, fico lá uma semana no bem bom e regresso fresquinho,
pronto a enfrentá-los a todos. Os gajos falam, falam, mas têm masé
inveja. Que façam como eu... quando estiverem chateados , peguem ao
avião e vão até o Rio desbundar na Barbarela, em Copacabana...Se
puderem, comprem um bilhete de primeira classe, com eu! (MELO,
2009, p163).

O conto revela o íntimo daqueles que estão no poder de uma sociedade onde o
que importa é o capital onde “A maka é que todos querem uma lasca do osso” (MELO,
2009, p.168), permitindo ao leitor entender o contexto ao qual a Angola está inserida.
Nesse sentido é que os estudos pós- coloniais estão interessados em “equacionar algumas
das especificidades contextuais desta nossa área, para não corrermos os riscos de
superficial adaptação terminológica de concepções teóricas... permitindo a adequação e
ou diferenciação de certo número de questões” (LEITE, 2003, p.17, grifo nosso).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Ao colocarmos em vista alguns contos que compõem a obra O homem que não
tira o palito da boca (2009) pode-se perceber uma reflexão acerca de questões de caráter
cultural, social e econômico que são temas recorrentes na literatura angolana, tendo em
vista a recente formação do país. A partir da análise realizada, reafirma-se, o quanto a
literatura permite o conhecimento e o reconhecimento de realidades históricas, sociais,
econômicas e culturais, como a de Angola.
No âmbito dos estudos pós-coloniais, a literatura dos países africanos de língua
portuguesa vale-se de textos criativos que revelam uma nova visão diante de um olhar
construído durante o processo de colonização marcado pelo racismo e que tentou
obscurecer a pluralidade cultural do povo colonizado. Além disso, a literatura emergente
revela o que caracterizou o processo de dominação ao qual países, dentre eles a Angola,
estiveram sujeitos.
Por meio de ironia, o autor expõe em seu conto “Madinusa” (2009) alguns
elementos que caracterizam o Imperialismo, processo de dominação que subjugou muitos
povos, dentre estes a Angola que por décadas foi explorada em todos os sentidos. Além
disso, permitiu entender que na atual sociedade, ao invés de existir uma identidade
nacional pura, na verdade, existe uma identidade que resulta do diálogo entre o local e o
global. Além disso, a identidade é um processo complexo, formado em função da história
e das situações vivenciadas pelos indivíduos, não é algo fixo, nem depende apenas do
nascimento, língua e nome. Além disso, no atual sistema globalizante dominado pela
imprevisibilidade e versatilidade tornou-se um desafio construir uma identidade sólida.
Assim, no lugar de uma “essência” a identidade é um processo inacabado e em constante
processo de construção.
Já o conto “O meu primeiro milhão de dólares” (2009) expõe até que ponto os
indivíduos, de uma sociedade que gira em torno do capital, pode chegar, mostrando uma
das “makas” que marcadamente está presente no país de Angola, a crassa corrupção.
Assim, a narrativa permite entender o contraste entre a vida glamorosa daqueles que estão
no poder e aqueles que estão à margem da sociedade, dominados pela incerteza o que
torna ainda mais desafiador a busca por uma identidade, diante das privações as quais os
indivíduos estão sujeitos. Ambos os textos, “Madinusa” (2009) e “O meu primeiro
milhão de dólares” (2009), evidenciam que a construção identitária de um povo trata-se
de uma busca contínua e essa busca tornou-se ainda mais complexa com acontecimentos
que obscureceram o passado, com a globalização e os desafios atrelados a esta, assim,é

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atravessando esses obstáculos que o país de Angola tenta construir sua identidade e firmar
seu futuro.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmund. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2005.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP & A, 2006.

HAMILTON, Russell. A literatura dos PALOP e a Teoria Pós-colonial. In: Anais... IV


ENCONTRO DE ESTUDOS COMPARADOS DE LITERATURAS DE LÍNGUA
PORTUGUESA. São Paulo, USP, 1999.

LEITE, Ana Mafalda. Literaturas Africanas e Formulações Pós-Coloniais. Lisboa: Colibri,


2003.

MELO, João. O homem que não tira o palito da boca. Alfragide: Editorial Caminho, 2009.

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