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Discursos sobre a leitura:

uma análise de vídeo-campanhas


em prol dessa prática
Simone Garavello Varella*
Luzmara Curcino**

Resumo
Este artigo, depreendido de algu- Introdução
mas constatações a que chegamos a
partir de nossa dissertação de Mes- “Percorrer a história da leitura no
trado, empreende o levantamento de Brasil é percorrer a história de um la-
algumas representações de práticas
de leitura contemporâneas por meio mento”. Assim afirma a pesquisadora
da análise de vídeos de incentivo à Márcia Abreu (2001b), analisando textos
leitura postados no site do YouTube. escritos por viajantes europeus tomados
Apoiando-nos em princípios da Aná-
lise do Discurso de linha francesa e como base para reconstituir as condições
da História Cultural da Leitura, de- culturais brasileiras anteriores à inde-
senvolveremos nossa análise de modo pendência. Esses registros, de acordo
a descrever eventuais representações
discursivas que se fazem da leitura com a autora, fundaram um modo de
nesses vídeos que visam promovê-la, interpretar o país, que atravessou os
assim como descreveremos as repre- séculos seguintes e, poderíamos dizer
sentações de leitor que os produtores
desses vídeos fazem do público a que que, em certa medida, perdura até hoje.
se dirigem. Portanto, buscamos em
nossa pesquisa analisar alguns indí-
cios, inscritos nas produções desses
vídeos, de projeções de práticas de *
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em
leitura, de modo a refletirmos sobre Linguística da Universidade Federal de São Carlos.
um dado imaginário que partilhamos E-mail: sgvarella@hotmail.com
hoje em dia acerca do que é a leitura, **
Doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela
de como ela deve ser exercida, do que Unesp/FCLAr – Araraquara – SP. Professora Adjunta
é ser um bom leitor e de como proce- do Departamento de Letras e do Programa de Pós-
der para promovê-la. -graduação em Linguística da Universidade Federal
de São Carlos. E-mail: luzcf@ufscar.br
Palavras-chave: Discursos sobre a
Leitura. Campanhas de incentivo. Ví- Data de submissão: jul. 2014 – Data de aceite: ago. 2014
deos do YouTube. http://dx.doi.org/10.5335/rdes.v10i2.4157

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Neles é possível verificar um antago- O povo brasileiro – não é sem mágoa que
nismo entre a vida letrada e a cultura no o dizemos – posto que deva desempenhar
em período talvez não muito remoto papel
Brasil colônia em relação à Europa. As importante no teatro do mundo, não está
pinturas oitocentistas, analisadas pela ainda preparado para consumir o livro,
autora, são uma das fontes materiais de substancial alimento das organizações viris
e fortemente caracterizadas. Faltam-lhe as
representação dessa “imagem de erudi- condições de gosto, instrução, meios, saudá-
ção e estabilidade [composta] a partir da vel direção de espírito, sem as quais não se
acumulação de símbolos de sucesso inte- pode cumprir a livre obrigação que equipara
o artesão ao capitalista, o operário ao litera-
lectual: uma biblioteca particular, livros
to, o pobre ao milionário – a de comprar,
espalhados e abertos” (ABREU, 2001b, ler, entender verdades ou ideias coligidas
p. 148, grifos nossos) que caracterizava em um volume, cuja leitura demanda fôlego
a imagem dos letrados europeus, em e cujo estudo requer tempo de que o povo em
geral não dispõe (LAJOLO e ZILBERMAN
oposição às pinturas que representaram apud ABREU, 2001b, p. 140, grifos nossos).
os intelectuais brasileiros, de forma pri-
mitiva e precária. Registros de fontes diversas (cartas
Assim, compartilhando um imagi- pessoais, notas em jornais, obras lite-
nário predominante no período, em rárias, pinturas, etc.) desse período, as-
contexto europeu, valorativo e etnocên- sim como textos contemporâneos muito
trico, acerca da leitura e do leitor, ao distintos manifestam a força que certos
se depararem com padrões culturais discursos sobre a leitura apresentam. A
e econômicos diferentes dos que eram remanência, em textos da atualidade,
relativamente comuns às metrópoles, da ideia de “crise” pela qual passa a
os viajantes europeus, segundo Abreu prática de leitura no Brasil não é, por-
(2001b) registraram suas impressões da tanto, nova. Essa crença é em grande
presença da cultura letrada na colônia parte tributária do modo como essa
apresentando as precárias condições de prática foi concebida historicamente e
vida da população, a inexistência ou a do modo como foram se constituindo os
inadequação das escolas brasileiras, o dizeres autorizados se não produzidos
reduzido número de livreiros e a má originalmente, ao menos tendo sido bas-
qualidade de seus estoques bem como o tante reiterados a partir do parâmetro
desinteresse pela leitura por parte dos idealizado para tal prática distintiva na
habitantes locais. Europa dos Séculos XVIII e XIX. Difun-
A crença em uma “insuficiência cul- dida então como atividade individual e
tural” brasileira fez com que ainda no solitária, como prática que para sua rea-
Século XIX surgissem comentários como lização faz-se necessário gosto, instrução,
o que segue: meios e saudável direção de espírito, ela
não poderia, como vemos se afirmar no
passado e no presente, vingar no Brasil,
onde a falta regula e assombra os dizeres

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sobre nós e de nós sobre nós mesmos. Tal promoção da prática de leitura e de seu
pressuposto e trauma vêm orientando objeto mais emblemático, o livro. Assim,
ao longo do tempo esse imaginário do articuladamente, os esforços de distinção
déficit, essa síndrome de “primo pobre” sociocultural dos sujeitos, a afirmação do
que nos acomete. déficit cultural do outro, a eleição de obje-
Entre os fatores citados, o principal tos e práticas símbolos dessa distinção e
déficit evidenciado e afirmado ao longo desse déficit, a “constatação” e reiteração
dos tempos e que parece perdurar na da “diferença” como “crise” constituem
atualidade, conforme se apresenta em um dado discurso sobre a leitura cujas
dados de pesquisas que mensuram a origens são imprecisas, assim como de
“quantidade de leitura” dos brasileiros1, qualquer discurso, mas cuja difusão e
destacam-se como índice dessa carência, registros esparsos ou concentrados em
especificamente, os dados relativos ao certos períodos e locais nos permitem lo-
consumo/posse do “livro” (primordial- calizar ainda que temporariamente certas
mente sob a forma impressa), objeto repetições e diferenças nos dizeres, nas
cujo valor simbólico é historicamente práticas, portanto, no discurso.
reafirmado, reforçado e por isso concebi- Desses dizeres e fazeres constitui-se
do como forma de distinção sociocultural a ideia geral de que o brasileiro não lê,
daqueles que o possuem, utilizam e/ou ou de que o brasileiro lê pouco e mal,
ostentam. Conforme afirma Lajolo (2002, atestando não apenas a situação de crise
p. 34), “a existência desses leitores de em que se encontra a leitura em terras
carne e osso manifesta-se de diferentes tupiniquins. Talvez um dos tipos mais
maneiras, sendo a mais concreta de eloquentes de texto em que se afirma
todas expressa em cifrõe$ e cifrinha$”. a crise, até mais do que aqueles que a
Desse modo, “é preciso examinar com tematizam explicitamente, sejam aque-
cuidado os discursos que alardeiam o les que assumem a responsabilidade
fracasso da cultura letrada no Brasil, de promovê-la, de incentivá-la. Assim,
examinando o lugar de onde eles partem muitos e variados setores da sociedade
e seus pressupostos” (ABREU, 2001b, tomam para si a responsabilidade pela
p. 142). Esse exame não pode se furtar criação e veiculação de campanhas em
da análise da variação nas formas desse prol da leitura, valendo-se de diferentes
objeto cultural, dos dizeres dispersos e formatos e meios, mas compartilhando
de diferentes origens acerca desse ob- de um ponto em comum, a saber, de di-
jeto e por extensão das práticas de sua zeres de um tipo específico, que segundo
apropriação e daqueles que os possuem/ os estudiosos da leitura Barzotto e Britto
utilizam/ostentam. Nessa “economia” dis- (1998) e Britto (1999) corresponderiam
cursiva encontra-se o conjunto de dizeres a “mitos”, pela semelhança de seus fun-
voltados para o reforço e a manutenção da cionamentos. Tal como o “mito”, alguns

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dizeres adquirem uma força de verdade e que remonta ao final do Século XVIII
atemporal porque se autonomizam da e ao longo do XIX, uma vez que assim
própria realidade e parecem sintetizar como as casas grandes e confortáveis, os
tudo o que se poderia dizer de verdadeiro livros e as grandes bibliotecas também
sobre algo. O que se diz sobre a leitura foram alçados a formas de manifestação
e sobre o leitor, assim como a maneira de sucesso pessoal, de justificativa das
desse dizer, como bem constataram os diferenças, e como ícone de distinção.
autores, funciona de modo semelhante à Na atualidade, esses discursos sobre
produção e circulação de um “mito” cuja a leitura, cujo funcionamento se asseme-
força encontra-se exatamente no poder lha à forma de produção e circulação de
de oferecer uma explicação simples, mitos, são um exemplo bastante emble-
sintética, o que garante sua reiteração, mático da remanência de traços do olhar
a qual e essa, por sua vez, assevera sua eurocêntrico de eruditos que registraram
força de verdade. suas impressões da cultura do Brasil nos
Os dizeres sobre a leitura têm história primeiros séculos e também da rema-
e memória, logo, suas representações, nência do imaginário burguês do Século
apesar de variadas, podem ser conden- XVIII e XIX, como buscaremos refletir na
sadas em um número relativamente análise a que nos propomos nesse artigo
pequeno de “enunciáveis” sobre a leitura, de certas formas de promoção da leitura.
como os que os autores destacam: prática Com vistas a empreender o levanta-
redentora e transformadora da realidade mento de representações que se fazem
e fonte de prazer e de ilustração. Sem das práticas de leitura de brasileiros na
dúvida, é esse consenso quanto ao poder contemporaneidade, em consonância
da leitura que se encontra na origem da com o objetivo geral do grupo de pesquisa
necessidade de promovê-la e se reforça LIRE,2 analisamos, no presente traba-
e perpetua nas formas de sua promoção lho, uma modalidade específica de cam-
que se ocupam, como constatam Barzotto panhas de promoção da leitura, a saber:
e Britto (1998) de orientar, mas também aquelas que circulam em meio eletrônico,
de convencer, por mais estranho que sob a forma de vídeos de curta duração,
pareça, leitores já convencidos acerca da disponíveis no site do YouTube.3 Nossa
importância dessa prática. análise restringiu-se a levantar certas
Esse imaginário que se perpetua sob semelhanças e diferenças existentes na
a forma do funcionamento do “mito” é produção dessas vídeo-campanhas, divi-
corolário, segundo Abreu (2001a), de dindo-as, particularmente, em duas ca-
uma “associação entre leitura e enobre- tegorias: a de Campanhas propriamente
cimento do sujeito [que] foi construída ditas, e a de Protocampanhas. Com essa
historicamente, tendo recebido forte classificação geral e inicial procedemos a
impulso com a ascensão da burguesia” organização de nosso corpus de pesqui-

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sa de mestrado (do qual apresentamos reiteram-se, alteram-se na produção
uma pequena amostra neste artigo), de desses vídeos e que se constituem em um
modo a buscar recorrências internas a campo associado sincrético de relações
esses dois conjuntos e também externas semânticas.
na relação de um conjunto com o outro. Apoiamo-nos ainda em alguns legados
Conforme constatamos, há uma regu- da História Cultural da Leitura, tal como
laridade bastante acentuada no que se desenvolvidos por Roger Chartier, em
diz e no modo como se promove a leitura particular, no que se refere à noção de
nesses textos, o que seria tributário, representações tendo em vista que elas
como discutiremos, desse funcionamen- [as representações]
to socio-histórico dos discursos. Há, no [...] não são simples imagens, verídicas ou
entanto, diferenças quanto aos modos enganosas, do mundo social. Elas têm uma
de formulação e de circulação, enfim, energia própria que persuade seus leitores
ou seus espectadores [de] que o real corres-
quanto ao modo de funcionamento técni- ponde efetivamente ao que elas dizem ou
co, institucional, autoral dos textos das mostram (CHARTIER, 2011, p. 27).
vídeo-campanhas desses dois conjuntos
Assim, quando se enuncia que “A
que constituem nosso material de pes-
leitura transforma sua vida” ou “Ler
quisa, que nos cabe mensurar a partir
pode garantir seu futuro”, 4 essas são
da análise das estratégias de escrita (de
representações que se fazem das prá-
produção) de que se valem.
ticas de leitura de tal modo enraizadas
no imaginário coletivo e compartilhadas
Fundamentação teórica como verdadeiras que sua afirmação,
reiteração e interpretação se automa-
Valer-nos-emos, em nossa análise, do
tizam e ganham a dimensão das coisas
aporte teórico da Análise de Discurso, em
óbvias. Assim, essas representações, que
especial, de considerações feitas por e a
são discursivas, que funcionam discur-
partir de textos fundamentais de Michel
sivamente, manifestam-se, tal como o
Pêcheux e Michel Foucault, que nos
discurso, nas formas materiais de objetos
orientam na identificação de discursos
culturais de leitura (livros, móveis, revis-
que subsidiam a produção desses vídeos
tas, jornais), nos textos (que tematizam
e na descrição de seu funcionamento com
ou não a leitura, ficcionais ou científicos,
vistas à análise das diferentes materiali-
pelo modo como são escritos ou pelo que
dades discursivas que os compõem, cuja
dizem), nas declarações de sujeitos, de
seleção e emprego têm impacto sobre os
instituições (sejam eles leitores ou não,
efeitos de sentido que potencialmente
sejam elas ligadas diretamente ou não
podem ser gerados em sua interpretação;
à leitura).
na observação, enfim, dos enunciados
Dedicando-nos à análise dessas
verbais e não verbais que se repetem,
vídeo-campanhas, buscamos compre-

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ender certas formas de emergência de demos à seleção daqueles que figurariam
discursos sobre a leitura que circulam no corpus de nosso trabalho, baseados no
na atualidade, considerando, segundo levantamento de certas regularidades
Foucault (2012), as formas de controle na produção e circulação primeira dos
que se exercem sobre essa emergência e vídeos quanto ao “que” enunciam, que
que correspondem a uma “ordem discur- discursos sustentam essas campanhas,
siva” que regula o que pode e deve ser que valores e ideias reproduzem, mas
dito e sob que formas o dizer pode ser também quanto ao “como” enunciam, que
manifesto. É a “ordem do discurso” que estratégias de escrita são empregadas na
atribui o status de verdadeiro a um dizer, produção dos vídeos (escolhas lexicais,
em detrimento de outros, que autoriza e frasais ou imagéticas), que sujeitos e
desautoriza os sujeitos a se apropriarem que instituições assumem a enunciação.
desses dizeres, que, enfim, determina A seleção desses vídeos, sua classi-
quais são os dizeres que permanecerão ficação inicial em Campanhas e Proto-
para além de sua enunciação e que ou- campanhas, sua conjunção em subgru-
tros desaparecerão tão logo finda a sua pos com outros vídeos, considerando as
elocução. semelhanças constatadas no que dizem e
no modo como o fazem, consistiu nos pro-
Procedimentos cedimentos que adotamos de construção,
organização e análise do corpus, tendo
metodológicos em vista assinalar certas representações
Para a constituição do corpus efetivo de práticas de leitura que compartilham.
de análise de nossa pesquisa de mestra- Dessa forma, nosso corpus de análise
do, nosso levantamento dos vídeos de compôs-se de 35 vídeos. Desses, confor-
incentivo à leitura deu-se por meio da me nossa classificação preliminar, nove
busca por palavras-chave como leitura, se inseriram na categoria Campanhas e
incentivo à leitura e importância da 26 na categoria Protocampanhas, pos-
leitura, na barra de pesquisa do site do tadas no YouTube entre os anos de 2007
YouTube. Essa busca nos apresentou um e 2012 e com duração variável de 0:20
número significativo de vídeos, o que já segundos a 6:00 minutos, aproximada-
indicia a relevância de que a prática de mente.5
leitura e a sua promoção dispõem entre A opção por analisar os vídeos nesse
nós, hoje. Tal busca também foi facilitada período se deveu ao fato de no final de
por uma ferramenta do próprio site que 2006 o Google ter comprado essa plata-
permite ao usuário, ao selecionar um ví- forma de compartilhamento de vídeos, o
deo, ter à disposição uma lista de outros que, possivelmente, popularizou-a junto
vídeos com conteúdo semelhante. Depois aos internautas, e o ano de 2012 coincide
de feito o levantamento dos vídeos, proce- com nosso primeiro ano de Mestrado,

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época em que coletamos os vídeos de anônimos ou por instituições de renome,
incentivo à leitura. de forma leiga ou profissional, para cir-
A classificação inicial e mais genérica cular em mídias tradicionais ou para cir-
dos vídeos em prol da leitura em Campa- cular exclusivamente via internet etc.).
nhas e Protocampanhas adveio da nossa Se, graças às remanências do que se diz
constatação de diferenças importantes sobre a leitura nesses vídeos pudermos
tanto do ponto de vista da produção de início crer que dizem a mesma coisa e
quanto da forma de circulação original que seu dizer funciona de maneira seme-
desses vídeos. Embora essa classifica- lhante, contudo, as distintas estratégias
ção possa sinalizar para uma distinção de escrita mobilizadas nos permitem
valorativa, em que uma é classificada aceder a algumas representações de
como menor em relação à outra, nosso práticas da leitura contemporâneas à
intuito foi o de tornar mais visíveis as medida que, valendo-se do modelo de
diferenças de suas motivações, de suas enunciação predominante das Campa-
estratégias de escrita, das instituições nhas, as Protocampanhas atualizam-no
que as validam ou não, das formas de de maneira particular como pretendemos
circulação distintas tanto do ponto de demonstrar nas análises.
vista técnico quanto simbólico. Para que Com vistas a dar visibilidade às dife-
pudéssemos descrever o funcionamento renças e semelhanças dos vídeos do cor-
discursivo desses vídeos em prol da lei- pus, aqueles que designamos como Cam-
tura que, se se assemelham quanto ao panhas correspondem aos vídeos produ-
“que”enunciam acerca da leitura, o mes- zidos por instituições, em sua maioria
mo não se pode dizer em relação ao modo ligadas ao universo dos livros tais como
como o fazem, o modo como circulam, os bibliotecas, editoras, instituições de
recursos de que se valem, as instituições ensino superior, ou outras instituições,
a que pertencem, as posições sujeito a como bancos, que compartilham valores
partir das quais enunciam. similares em relação à leitura e se ad-
São a essas variações que gostaríamos vogam a responsabilidade de promovê-la
de dar relevo e demonstrar como a “or- e/ou objetivam gozar do prestígio que a
dem discursiva” se estabelece não apenas promoção dessa atividade gera para seus
sobre o “que” se pode e se deve enunciar produtos ou fins comerciais. Já os vídeos
sobre a leitura, mas também determina designados como “Protocampanhas” são
(e produz sentido por essa determinação) aqueles produzidos por indivíduos, em
o modo e as formas de dizer (na escolha sua maioria, não especialistas, seja em
do gênero, nas posições enunciativas as- resposta a uma demanda escolar (como
sumidas pelos sujeitos, na credibilidade requisito para obtenção de notas em uma
ou não que esses enunciados adquirem disciplina) seja por iniciativa espontânea
porque foram produzidos por indivíduos ou não declarada.

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Campanhas e Protocampanhas tam- proponham a promover essa prática, o
bém se diferenciam em quatro outros fazem explorando temas específicos, e
aspectos, como demonstraremos, poste- são esses temas específicos (ou prepon-
riormente, nas análises. Tais aspectos derantes) explorados nos vídeos que nos
referem-se à motivação de sua produção, exigiram subcategorizar os vídeos de
a sua validação no que diz respeito ao Campanhas e Protocampanhas, segundo
gênero (campanha), ao grau de especia- a exploração e a força de dois eixos temá-
lização de sua elaboração e aos meios ticos principais porque mais reiterados
para os quais originalmente foram fei- que, conforme dissemos anteriormente,
tas, já que, embora todos esses vídeos referem-se às regularidades encontra-
estejam disponíveis no site do YouTube, das no que tange às representações das
alguns deles foram produzidos para cir- práticas de leitura veiculadas nesses
cular inicialmente em outros meios de vídeos. São eles: “Quem lê, progride” e
comunicação mais tradicionais como a “Quem lê, viaja”.6 No interior desses dois
TV aberta, e apenas posterior ou conco- principais eixos ou temas recorrentes,
mitantemente foram postados nesse site também encontramos outros enunciados
de compartilhamento de vídeos. remanentes e que sintetizam representa-
Com vistas a tornar mais acessível ções das práticas de leitura, intrínsecas
às amostras do corpus de análise, que ou complementares às representações
por sua natureza de vídeo oferecem di- temáticas mais recorrentes. Para o
ficuldades de registro sob a forma de um artigo que ora se apresenta, visamos à
texto impresso, optamos por “congelar” apresentação de um desses eixos temá-
e “colar” algumas de suas imagens de ticos, a saber, “Quem lê, progride”, mais
modo a exemplificar algumas sequências especificamente as indicações acerca do
narrativas e as estratégias de escrita uti- “que/como” é indicado que se leia para
lizadas pelas campanhas. Também nos progredir.
preocupamos em indicar seu endereço de Algumas peculiaridades apresenta-
origem no YouTube, para uma eventual das no momento dessa subcategorização
consulta ao vídeo em sua completude. deixaram mais evidentes certas caracte-
Com base na categorização em Cam- rísticas das Campanhas e das Protocam-
panhas e Protocampanhas que de início panhas que corroboram nossa hipótese
desenvolvemos, e com finalidade didá- de que tais produções não podem ser
tica, empreendemos uma subcategori- tomadas genericamente como vídeos de
zação dos vídeos do corpus, tendo em incentivo à leitura. No caso das Campa-
vista as variações nas representações nhas, por serem em menor número, e de
da leitura exploradas e manifestas menor duração em função sobretudo da
nesses vídeos que, embora partilhem imposição do meio de circulação original
valores eufóricos acerca da leitura e se (tempo na TV), elas seguem um script

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que sustenta, em sua maioria, uma única sagradas, validadas socioculturalmente
afirmação (ainda que genérica) acerca de modo a reafirmar e atestar o ideal
da leitura. Assim, a identificação nessas (se não o único modo de) exercício dessa
Campanhas do predomínio de um dos prática, bem como indicar a postura
eixos temáticos supracitados mostrou- esperada dos leitores frente à leitura
-se mais simples. No que diz respeito (ao que devem ler, ao como devem ler)
aos vídeos inseridos na categoria Proto- para que tenham acesso aos benefícios
campanhas, essa identificação foi mais dessa prática (ao por que devem ler).
problemática, uma vez que não apresen- Dito de outra maneira, os enunciados
tam uma sequência narrativa muito bem parafrásticos de “Quem lê, progride”.
estruturada o que, aliado à sua duração, funcionariam de modo a responder e a
em geral mais extensa do que a dos per- produzir distinções entre sujeitos e prá-
tencentes à primeira categoria, somada ticas a partir das perguntas: “Quem lê
ao fato de que esses acumulam diversas o que se deve ler, progride.” e “Quem
representações das práticas de leitura lê como se deve ler, progride”.
acabaram por tornar mais complexa Nas Campanhas pudemos constatar
sua subclassificação, haja vista a neces- que a prática de leitura difundida/defen-
sidade de pensarmos em conjuntos que dida é aquela prioritária ou exclusiva-
abarcassem a heterogeneidade de seus mente realizada pelo consumo de livros
discursos e reproduzissem o imaginário impressos (especialmente de um dado
geral que se faz presente nesses vídeos. gênero, para fins de entretenimento)
e empreendida frequentemente pelos
Resultados e análise leitores (como hábito).
Embora reproduza a relação direta
Os vídeos inseridos no eixo temático e por isso exclusiva entre a leitura e o
“Quem lê, progride” partilham um ima- livro (ou seja, só se reconhece como lei-
ginário da leitura como prática redentora tura de valor, aquela de livros), tendem
e transformadora da realidade social. a vincular os “ganhos” da leitura, em sua
Pudemos verificar que as paráfrases maioria, a ganhos de ordem quantitati-
efetuadas nos enunciados que compõem va e/ou mais material, ou seja, ganhos
os vídeos são sempre voltadas a respon- intelectuais, profissionais, econômicos.
der, em certa medida, a um “o que/como É o caso, por exemplo, de uma série de
(de que modo)” se deve ler e “por que” a vídeos que constitui a Campanha produ-
leitura é compreendida desse modo. zida pelo Banco Itaú, para divulgar sua
No primeiro caso, as “respostas” à marca por meio de ação de doação de li-
questão “o quê? como?” sinalizam para vros infantis, com o mote “Leia para uma
uma enunciação propositiva, com a rei- criança”. A campanha consiste na vincu-
teração/indicação de formas de ler con- lação do nome da marca a uma atividade
com valor simbólico agregado (doação de

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livros7, incentivo à leitura, promoção da por analogia com o que é enunciado
leitura para crianças etc.). O primeiro imageticamente. Também reitera a re-
vídeo da série, intitulado “Itaú – Sala presentação da leitura, segundo a qual é
de Espera8”, explora a representação da preciso ler sempre, frequentemente, mas
leitura, segundo a qual é preciso ler livro não qualquer coisa, uma vez que pela
impresso, e frequentemente. especificidade do público a que se dirige,
Nesse vídeo, a leitura com valor há a sugestão de ler textos de ficção, em
específico, os contos de fadas.
simbólico é aquela de gêneros de ficção,
No tocante à relação de interlocu-
com fins de entretenimento, a partir de
ção estabelecida, nessa Campanha, a
livros impressos. Para tanto, a estratégia
estratégia de escrita empregada é a de
de escrita utilizada foi a de apresentar convocação dos pais ou responsáveis
uma série de personagens de histórias para lerem para crianças, tal como enun-
infantis tais como Chapeuzinho Ver- ciado verbalmente “Só depende de você”.
melho, Lobo Mau, Cinderela, um sapo Essa convocação de pais e responsáveis
com vestes de príncipe, entre outros também fica evidente pelo slogan que
personagens, todos em uma sala de es- norteia as Campanhas dessa ação de
pera, aguardando ser chamado, tal como doação de livros infantis “Leia para uma
enunciado verbalmente no vídeo “Tem criança”. O enunciador assume, então,
um monte de histórias esperando para uma posição hierárquica em relação
serem lidas” e reiterado pela relação em ao enunciatário quando se coloca como
princípio homológica estabelecida com aquele que sabe e aconselha os demais,
o que é enunciado imageticamente uma e quando pressupõe a necessidade des-
vez que, na sequência, e ao toque de se conselho pela hipotética ausência
da prática incentivada entre aqueles a
um alarme, a personagem Cinderela se
levanta e caminha rumo a uma sala na quem se dirige.
qual, posteriormente, é possível ver sua
Figura 1: Extraída do vídeo “Itaú – Sala de Espera”
imagem estampada em uma das páginas
de um livro que o pai lê para a filha.
Abaixo a transcrição do vídeo na
totalidade:
[Narrador] Tem um monte de histórias espe-
rando para serem lidas. Só depende de você.
[voz do mago dirigindo-se à cinderela] Sua vez!
[Narrador] Leia para uma criança. Histó-
rias ajudam no aprendizado e desenvolvi-
mento infantil. Mude, e conte com o Itaú pra
mudar com você.
Como dissemos anteriormente, Cam-
O enunciado “Tem um monte de his- panhas e Protocampanhas guardam
tórias esperando para serem lidas”, se semelhanças no tocante aos discursos
estabelece em uma relação homológica veiculados em ambas as produções au-

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diovisuais, discursos cuja reiteração foi Figura 2: Extraída do vídeo “Incentivo à Leitura
responsável pelo relativo consenso que Universitária”
há em relação ao que dizer atualmente
sobre a leitura. No entanto, se nas Cam-
panhas as representações das práticas
de leitura tendem a ser mais tradicio-
nais, insistindo, por um lado, na relação
direta e exclusiva entre leitura e livro
impresso, na representação de textos de
origem ficcional e de entretenimento, e
na ênfase no aspecto quantitativo, ou
seja, quanto mais livro lido melhor, nas Figura 3: Extraída do vídeo “Incentivo à Leitura
Protocampanhas, essas representações Universitária”
se avizinham de outras.
Na Protocampanha denominada “In-
centivo à Leitura Universitária”, 9 em
consonância com os discursos veiculados
nas Campanhas, essa alegada crise de
leitura é apresentada em decorrência
da competição com outros meios de co-
municação, nesse caso, o computador.
A competição entre o livro impresso e o
Assim, valendo-se de discursos sus-
computador, ou o universo virtual, é, en-
tentáveis evidenciados tanto pela refe-
tão, construída por meio da atualização
rência aos diferentes gastos energéticos
dos discursos acerca da sustentabilidade,
em uma e em outra atividade, quanto
tão caros na contemporaneidade. Desse
pela utilização do verbo economizar em
modo, o vídeo é iniciado com a imagem de
seu modo imperativo Economize, para
uma tomada na qual é plugado o carre-
atestar a prática de leitura que crê le-
gador de bateria de um computador. Na
gítima, as estratégias de escrita dessa
sequência há uma referência ao gasto
Protocampanha também nos permitem
de energia “200 Watt”. Posteriormente é
outras reflexões. Primeiramente a pres-
mostrado um livro aberto e uma mão que
suposição de que os universitários não
muda suas páginas e na continuidade a
leem, porque ficam muito tempo no com-
mesma referência ao gasto calórico “1
putador, como se as leituras realizadas
Caloria”.
em tela também não fossem uma sua
modalidade. Em segundo lugar, acerca
da concepção de cultura que é reprodu-
zida nesse vídeo.

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Bauman (2012, p. 90), buscando ex- a leitura e sobre a lógica da distinção
plicar o conceito hierárquico de cultura que se estabelece entre quem lê e quem
e o modo como o mesmo indica, de certa não lê, da compreensão de que a leitura
forma, uma falta de reflexão acerca do deve ser uma prática realizada sempre,
que efetivamente pode ser compreendido por prazer, e que para isso é preciso ler
por cultura, afirma que: apenas textos ficcionais, de preferência
Tendemos a classificar aqueles com quem já consagrados; por outro, a pressão do
travamos contato segundo seu nível cultu- mercado como fonte difusora de títulos,
ral. Se o distinguimos como uma “pessoa que se vale do valor simbólico do livro,
culta”, em geral queremos dizer que ele é
muito instruído, educado, cortês, requintado para promover Best-sellers atuais.
acima de seu estado “natural” nobre. Presu-
mimos tacitamente a existência de outros Figura 4: Extraída do vídeo “A importância da
que não possuem nenhum desses atributos. leitura”
Uma “pessoa que tem cultura” é o antônimo
de “alguém inculto”.

Podemos constatar que o termo cul-


tura empregado nessa Protocampanha
repercute, de certo modo, essa forma
de compreensão do próprio termo. Con-
tudo, o traço distintivo entre pessoas
consideradas cultas e incultas remete
à quantidade de leitura efetuada sob
a forma do livro impresso, embora sem Figura 5: Extraída do vídeo “Manifesto à Leitura”
uma indicação direta sobre qual gênero
de leitura está em jogo, em detrimento
do tempo gasto em frente ao computador.
Sistematicamente, a maioria dos
vídeos postados no YouTube oferece à
pergunta “o que ler?”, a mesma res-
posta: ler, ler sempre, livros impressos,
de ficção, de preferência de literatura
clássica. Por vezes circulam referências
a obras de outros gêneros, mais contem-
Outro aspecto semelhante entre esses
porâneos, em especial a títulos de Best-
dois vídeos é a atribuição ao livro de
-sellers. Isso sinaliza, conforme se pode
um poder redentor e transformador da
observar nos vídeos das Protocampanhas
realidade social. Também há a explícita
intituladas “A importância da leitura”,10
indicação sobre o gênero que assegura
e “Manifesto à Leitura”,11 por um lado,
essa transformação: o literário. Na Pro-
a força do imaginário tradicional sobre

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tocampanha “A importância da leitura” grandes obras literárias. De modo que
essa indicação se dá tanto pela relação há o que poderíamos tomar como uma
estabelecida entre o enunciado verbal relação de contradição uma vez que se
Mas se você usá-lo de forma ideal e o quer promover a leitura, e, por conse-
enunciado imagético de um livro aberto guinte o livro, ao mesmo tempo em que
no qual está escrito Literatura, palavra a estratégia de escrita utilizada nesses
da qual sai uma luz, quanto pela apre- vídeos privilegia o uso de exemplos que
sentação de uma série de nomes de au- se valem de vídeos cinematográficos ou
tores nacionais e internacionais da alta televisivos, contradizendo o que é enun-
literatura ou literatura erudita. Essa ciado verbalmente e, por essa contradi-
forma ideal de se valer dos livros é que ção, revelando um traço do perfil leitor
faz com que a leitura seja redentora e da atualidade, exposto a um número
transformadora da realidade social Você maior de objetos culturais, acostumado
evolui e sua vida também... às adaptações audiovisuais de livros.
Contudo, ainda que a estratégia de Além disso, os gêneros, títulos e au-
escrita empregada nesse vídeo seja a de tores citados indiciam o que leem e o
defesa ou de afirmação da importância porquê leem (condições socioculturais)
da leitura por meio de uma tentativa esses leitores que assumem a tarefa de
de sedução, o que por um lado não po- promover a leitura. Suas referências a
deria ser diferente já que se trata de títulos clássicos demonstram o papel
uma campanha de incentivo à leitura, da escola na indicação de leituras que
estabelece-se uma relação curiosa entre constituem um currículo de base (Ma-
o que é enunciado verbal e imagetica- chado de Assis, Aluísio de Azevedo). Já
mente quando se intenta exemplificar os suas indicações de Best-sellers de gê-
mundos, por exemplo, de ação e aventura neros ficcionais voltados para o público
ou as terras mágicas a que possivel- jovem (sagas, trilogias, thrillers etc.), e a
mente serão apresentados aqueles que referência às adaptações fílmicas, sina-
se aventurarem pelo mundo da leitura, lizam essa outra instituição promotora
pois para tanto utilizam-se excertos de da leitura entre os jovens: o mercado
filmes de terror, de ficção científica ou de best-sellers, cujo motor comercial é
somente de ficção, como uma encenação a produção de megaproduções fílmicas
do “Auto da Barca do Inferno” de Gil para esse segmento.
Vicente e também da minissérie “Capi- Vemos que, diferentemente das Cam-
tu” baseada na obra Dom Casmurro de panhas, a estratégia de escrita emprega-
Machado de Assis e exibida pela Rede da nas Protocampanhas para convocar
Globo, ao invés, por exemplo, de serem os leitores a gozarem dos benefícios
utilizados excertos de livros considerados propiciados pela leitura listados é a de
pelos idealizadores da campanha como aconselhar por meio de uma relação

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de intimidade com o interlocutor, evi- Assim, o modo de se destacar dos de-
denciada, por exemplo, pela linguagem mais perante uma generalizada suposta
informal tá (verbo estar), quanto pelo falta de conhecimento, consequência di-
que chamamos genericamente de objeti- reta da falta de leitura, é se tornar leitor.
vidade do conclame/convocação expresso Com relação a esse imaginário con-
no vídeo “Ler em 15 lições”12 (tal como temporâneo do que seja “ser leitor”, tido
imagem abaixo), uma vez que esse modo como um traço distintivo entre as pes-
direto é a forma como normalmente nos soas à medida que seria avalista, entre
comunicamos com pessoas próximas. outras coisas, de uma redenção indivi­
dual, Britto (1999) afirma que
Figura 6: Extraída do vídeo “Ler em 15 lições” [...] assim como não faz sentido dizer que
alguém, por ser cliente, eleitor, usuário ou
assegurado, torna-se melhor ou pior, mais
ou menos crítico, também não faz sentido
afirmar que o indivíduo é melhor ou pior,
mais ou menos crítico, por ser leitor.

Voltando à questão acerca das indi-


cações de leitura validadas para atestar
sua verdadeira prática, nessas produções
audiovisuais não é considerada apenas a
Contudo, se nessa Protocampanha leitura que se faz em grande quantidade,
o aconselhamento se dá por um viés sob a forma do livro impresso e prefe-
de inclusão, que poderia ser traduzido rencialmente de renomados autores da
em linhas gerais como “não fique fora alta literatura. Também são legitimados
dessa já que todo mundo está lendo” o muitos tipos de leitura e muitas maneiras
mesmo não ocorre com o vídeo intitu- de ler.14
lado “A importância da leitura”.13 Essa Um dos vídeos sintomáticos com
Protocampanha tem uma construção relação à indicação de outros tipos de
muito semelhante (quase idêntica) à do leitura que não aqueles comumente co-
vídeo homônimo, já apresentado nesse nhecidos, em se tratando de campanhas
tópico de análise. Em ambas, a leitura é de incentivo à leitura, é o intitulado
apresentada como traço distintivo entre “Ler em 15 lições”.15 Nele, inicialmente,
detentores e não detentores de conheci- apresentam-se 15 razões pelas quais a
mento, tal como reproduzido abaixo: leitura ajuda nos estudos. Posteriormen-
te são elencados outros tipos de leitura
Não seja mais um na multidão...Seja um leitor! validados para se atestar a verdadeira
Não seja mais um entre muitos cegos... Seja um leitor!
prática de leitura, tal como o excerto
transcrito abaixo:

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Ler em outras línguas como da leitura sob a forma impressa,
Ler livros virtuais
Através do computador
incutindo, em ambas, novidade e tec-
Há a leitura de sinais ou libras nologia.
Há a leitura em braile
Outra curiosidade no tocante a esse
Tem também o audiobook
E a leitura de receitas vídeo não diz respeito à relação estabele-
Leitura de bula de remédio cida entre os enunciados que o compõem,
Leitura de figuras
E a minha preferida... A leitura no banheiro.
mas ao que é efetivamente enunciado,
como demonstrado abaixo:
Figura 7: Extraída do vídeo “Ler em 15 lições”
Figura 8: Extraída do vídeo “Ler em 15 lições”

Assim como na apresentação dos 15


motivos ou lições pelos quais se crê que Desse modo, entre as muitas manei-
a leitura ajuda nos estudos, na conti- ras de ler elencadas nesse vídeo está
nuação do vídeo a estratégia de escrita também a leitura no banheiro. Acredi-
empregada é a da tentativa de ilustra- tamos que o estranhamento bem como o
ção do que é enunciado verbalmente na efeito de sentido jocoso gerado por essa
Protocampanha. Decorre daí que, por asserção, e corroborado pela imagem es-
vezes, estabelecem-se algumas relações colhida para ilustrá-la, deve-se ao fato de
curiosas, como por exemplo, a represen- essa representação da leitura fugir aos
tada abaixo. estereótipos aceitos como verdadeiros
A imagem escolhida para ilustrar em se tratando dessa prática, realizada
o enunciado verbal Tem também o au- normalmente em bibliotecas, escolas ou
diobook é a imagem da Mona Lisa de no interior da casa, e feita por leitores
Leonardo da Vinci, obra mundialmente por vezes compenetrados, por outras com
conhecida. Acreditamos que a escolha expressão tranquila e sorridente, mas
por representá-la caricaturalmente aqui, sempre solene diante da entidade “livro”
usando óculos escuros e fone de ouvido e e da prática de leitura. Essa jocosidade
portando o que seria um audiobook [sic] também se deve ao fato de essa Proto-
e mais uma espécie de chapéu amarelo campanha publicizar o impublicável, ou
se deve à tentativa de quebrar o ar de seja, apesar de essa prática de leitura ser
tradição e seriedade dessa pintura bem comum, a referência a ela, principalmen-

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te em se tratando de uma campanha, não prática redentora e transformadora da
costuma ser explícita. realidade social, discutimos quais são
Assim, acreditamos que a estratégia as formas de ler e os objetos de leitura
de escrita empregada foi a da tentativa validados que assegurariam os benefícios
de aproximação e relativa dessacralização que essa prática promove, vinculados à
da prática e dos objetos por meio da con- sua capacidade de transformar a reali-
trariedade de padrões pré-definidos para dade social de um indivíduo. No tocante
a leitura, apresentando-a como atividade às Campanhas, as leituras validadas
simples e rotineira a minha preferida. para atestar sua verdadeira prática são
aquelas que se apropriam do objeto livro
Considerações finais impresso, com frequência, de gêneros
específicos, em particular de orientação
Buscamos demonstrar ao longo deste literária e/ou ficcional de modo geral
trabalho que, em grande parte tributária (principalmente quando se trata da lei-
do modo como a leitura foi concebida tura para crianças e jovens). Com relação
historicamente e do modo como foram se à postura leitora esperada, que pode
constituindo os dizeres autorizados sobre ser apreendida por meio das formas de
nós e de nós sobre nós mesmos, o ima- abordagem do leitor-interlocutor desses
ginário de uma alegada crise da leitura vídeos, pressupõe-se estar se dirigindo a
no nosso país, relacionado diretamente leitores “especializados” ou então adul-
com a questão do consumo de livros, é tos, maduros, que têm a obrigação de for-
recorrente. mar mais leitores (crianças, jovens). No
Ainda que oriundo de discursos que tocante às Protocampanhas, se, assim
remontam historicamente, segundo Már- como os vídeos das Campanhas, indicam
cia Abreu (2001b), ao Brasil Colônia, tal a necessidade de que se leia sempre e
imaginário é remanente na contempora- muito e sob a forma impressa de livros,
neidade e faz com que muitos e variados principalmente de alta literatura, tam-
setores da sociedade tomem para si a bém reproduzem outro imaginário, que
responsabilidade pela criação e veicu- por sua vez valida outros tipos de leitura
lação de campanhas em prol da leitura. feitas em diversos objetos culturais e de
Levantamos, assim, algumas repre- vários gêneros, ainda que, ao fazê-lo,
sentações discursivas da leitura e do lei- de certo modo, ilustre algumas dessas
tor brasileiro contemporâneo manifestas asserções com imagens de livros sob sua
nessas campanhas, e apreendidas por forma impressa.
meio da análise de vídeo-campanhas de Também pudemos constatar que ne-
incentivo à leitura que circulam no site las, diferentemente das Campanhas, em
do YouTube. sua maioria, a relação estabelecida com
Assim, tendo em vista os discursos o interlocutor não pressupõe estar se di-
contemporâneos acerca da leitura como rigindo a bons leitores que precisam ser

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convencidos da necessidade de formar clusivamente em levantar dados sobre a leitura
e o consumo de livros por habitante.
mais leitores, mas o outro é caracteri- 2
Os pesquisadores do LIRE – Laboratório de
zado como o lugar da falta e, portanto, é Estudos Interdisciplinares das Representações
necessário convencê-lo a se tornar leitor discursivas do leitor brasileiro contemporâneo
– dedicam-se à análise de representações do
para que tenha acesso à redenção e à leitor, em especial do leitor popular, em proje-
transformação de sua realidade social. tos desenvolvidos em nível de TCC, Iniciação
Científica, Iniciação à Docência (PIBID), Mes-
trado, Doutorado e Pós-doutorado. Para acesso
Discourses about reading: a informações e trabalhos de pesquisadores do
grupo cf.>.
an analysis of video campaigns 3
O YouTube, junção das palavras do idioma
of this practice inglês “You” e “Tube” que em português seria
alguma coisa como “você transmite”, é um site,
fundado em 2005 por Chad Hurley, Steve Chen
Abstract e Jawed Karim, três então funcionários da
In this article we aim to review PayPal, que foi adquirido em 2006 pelo Google,
e que, como o próprio nome sugere, permite aos
some representations of contempora-
usuários da rede compartilharem vídeos de
ry reading practices present in vide- diversas origens, qualidades, tamanhos, com
os to promote reading posted on the pessoas do mundo todo por meio dessa plata-
YouTube website. Based on principles forma. O site é popular junto aos internautas
of Discourse Analysis and Cultural justamente pelo fato de viabilizar que qualquer
History of Reading, we will deve- pessoa no mundo que conte com aparelhos
lop our analysis in order to describe para produção dos vídeos e um computador
some discursive representations made com internet possa carregar e compartilhar
seus vídeos, exceto os protegidos por copyright,
about reading in these videos. utilizando os formatos Adobe Flash e HTML5.
4
Enunciados extraídos de vídeos que compõem
Keywords: Reading; Encourage read- nosso corpus de análise.
ing; audiovisual campaigns. Videos 5
Dada a dificuldade em se trabalhar com objetos
from YouTube de origem virtual tendo em vista a facilidade
com que são postados, mas também retirados
da rede, optamos por baixar do site do YouTube
Notas os vídeos que compõem nosso corpus de análise
e arquivá-los na memória do computador a
1
A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, enco- fim, única e exclusivamente, de garantir que
mendada pela Câmara Brasileira da Indústria do pudéssemos ter acesso a eles mesmo que não
Livro (CBL), Sindicato Nacional das Editorias de estivessem mais disponíveis na internet.
Livros (Snel), Associação brasileira de editores
6
É importante ressaltar que tais enunciados
de livros (ABRELIVROS) encontra-se em sua que nos serviram de títulos das subcategorias
terceira edição (2012) e se auto declara como o não são veiculados ipsis litteris nos vídeos, mas
mais completo estudo acerca do perfil do leitor podem ser depreendidos por meio de paráfra-
brasileiro. Apresenta dados que indicam que os ses efetuadas em relação aos enunciados que
brasileiros leem em média 4 livros ao ano (incluin- os compõem uma vez que “pode-se dizer que
do os didáticos), número que corresponde a um ela[s] constitui[em] a evocação lateral daquilo
decréscimo de consumo de livros em comparação que se sabe a partir de outro lugar e que serve
com a mesma pesquisa realizada em 2008 na qual para pensar o objeto da proposição de base”
se levantou o número de 4,7 livros ao ano por (PÊCHEUX, 1988, p. 111).
brasileiro. A pesquisa, embora consulte os leitores
7
Conforme orientações no site do banco, clientes
de forma ampla sobre o que leem, não contabiliza e não clientes poderiam receber a doação de
a leitura de qualquer texto, interessando-se ex- livros, que seria efetuada mediante o preen-
chimento de um cadastro no site do banco, que

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então enviaria um kit com três livros infantis FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula
para o endereço da inscrição. inaugural no Collège de France, pronunciada
8
Disponível em: <http://www.youtube.com/ em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Edi-
watch?v=FGVx6Y8DaUc>. ções Loyola, 2012.
9
Disponível em: <http://www.youtube.com/watc
h?v=LSqHxxKqUNs&feature=related>. LAJOLO, M. Os leitores, esses temíveis des-
10
Disponível em: <http://www.youtube.com/ conhecidos. In: LAJOLO, M. Do mundo da
watch?v=yFtdZ5J8yJA>. leitura para a leitura do mundo. São Paulo:
11
Disponível em: <http://www.youtube.com/ Ática, 2002. p. 33-40.
watch?v=ySHtEcKC9Ws>.
12
Disponível em: <http://www.youtube.com/ PÊCHEUX, M. Da filosofia da linguagem à
watch?v=pMVI15u0Mlk>. teoria do discurso. In: Semântica e discurso:
13
Disponível em: <http://www.youtube.com/ uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas:
watch?v=5D3BO7DyQ3M>. Editora da UNICAMP, 1988. p. 850-139.
14
Enunciado extraído do vídeo “Ler em 15 lições”.
15
Disponível em: <http://www.youtube.com/
watch?v=pMVI15u0Mlk>.

Referências
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nível em: <http://www.unicamp.br/iel/memo-
ria/Ensaios/Marcia/marcia.htm>. Acesso em:
09 ago. 2013. (2001a)
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ceitos em leitura. In: MARINHO, Marildes
(Org.). Ler e navegar: espaços e percursos da
leitura. Campinas: Mercado de Letras; ALB,
2001b. p. 139-157.
BARZOTTO, V. H.; BRITTO, L. P. L. Promo-
ção X Mitificação da Leitura. In: Boletim in-
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Rio de Janeiro: Zahar, 2012. p. 83-154.
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CHARTIER, R. Uma trajetória intelectual:
livros, leituras, literaturas. In: ROCHA,
J. C. C. (org.). Roger Chartier: a força das
representações: história e ficção. Chapecó:
Argos, 2011. p. 21-53.

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