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O pensamento africano no século XX

Livro reúne ideias dos principais


pensadores africanos do século 20
Paulo Henrique Pompermaier
3 de fevereiro de 2017

Para o organizador da obra, José Rivar Macedo, todo o conhecimento produzido pelo
Ocidente sobre a África corresponde a ‘formas de predação’

Com o “modesto” objetivo de apresentar as principais linhas de pensamento de autores


africanos, o livro O pensamento africano no século XX reúne textos de dezesseis especialistas
brasileiros que apresentam um panorama geral da intelectualidade africana no século passado.
“Conforme apontaram estudiosos eminentes, o conhecimento produzido pelo Ocidente sobre a
África correspondeu a formas de predação em diversos níveis, e a restituição da autonomia
plena implica na devolução aos africanos de sua capacidade de resolver seus próprios
problemas, de gerir suas riquezas, de conhecer o seu passado, discutir o seu presente e esboçar
as linhas de seu futuro”, afirma o organizador da obra, o professor da UFRGS José Rivair
Macedo.
O anti-colonialismo, a descolonização e o pós-colonialismo da África são alguns dos temas
essenciais tratados por esses pensadores africanos, que, participando dos movimentos de
libertação do continente, foram chefes de Estado, filósofos, escritores, historiadores e
cientistas sociais. Entre eles, estão nomes como Léopold Sédar Senghor, Joseph Ki-Zerbo,
Frantz Fanon, Achille Mbembe e Paulin Hountondji.
Em entrevista à CULT, o professor falou sobre as raízes e a importância do movimento.
CULT – A África é um continente com mais de 50 países. Dentro dessa diversidade
cultural, religiosa, política e social, como você definiria um pensamento africano?
José Rivair Macedo – É muito difícil formular uma definição precisa do que seria o
“pensamento africano”. As conceituações são forçosamente limitadas e quase sempre
restringem as possibilidades de apreensão da complexidade do real. Em última instância, não
existe um “pensamento africano”, como também não existem um “pensamento europeu”, um
“pensamento ocidental” ou um “pensamento brasileiro”. Entretanto, se a diversidade é o que
prevalece na base das experiências locais e na originalidade das vivências compartilhadas
pelas dezenas de organizações estatais e pelos inumeráveis grupos etnolinguísticos espalhados
pelo continente, nos últimos séculos o processo de unificação planetária promovido pelo
capitalismo ocidental classificou, hierarquizou e criou formas de domínio de caráter
econômico, político e cultural e forçou a aproximação entre pessoas, grupos e instituições
originalmente distintas, gerando pautas de reivindicação comuns. Então, embora a ideia de um
“pensamento africano” guarde em si uma parcela de artificialidade, ela passou a existir
gradualmente a partir do momento em que pessoas nascidas em diferentes partes da África – e
mesmo fora dela, na Diáspora negra – passaram a reivindicar para si uma identidade ancestral
comum.
Quando isso começou?
É muito provável que isso tenha acontecido pela primeira vez no princípio do século 16,
quando o erudito afro-muçulmano de origem marroquina chamado Hassan al-Wazzan (c.
1486- c. 1535) foi levado prisioneiro para as cortes da atual Itália, onde se tornou secretário
do papa Leão X e, com o nome católico de “João Leão o Africano” escreveu a primeira obra
de caráter enciclopédico sobre o continente, a Description de l’Afrique (1530), que até o
século 18 seria uma referência obrigatória de leitura sobre o Magreb e a África subsaariana
pelos letrados europeus. Séculos depois, na primeira metade do século 18, no mesmo contexto
em que adeptos do ideário iluminista viam os nativos do continente africano como seres
desprovidos de plena humanidade, relegando-os a estágios inferiores na escala evolutiva ou
negando-lhes a capacidade de gerir de modo autônomo sua existência, um homem nascido na
antiga região da Costa do Ouro (atual república de Ghana), chamado Anton Whilelm Amo
(1703-1753), formou-se em Filosofia e lecionou em universidades germânicas de Halle,
Wittemberg e Iena, adotando para si o nome de Amo Guinea Afer, isto é, “Amo guineense, o
africano”. Vê-se então que, nesses casos, o genitivo objetivo “africano” resulta de
pertencimentos construídos, reivindicados. Tendo isso em mente, e em conformidade com os
argumentos do filósofo marfinense Paulin Hountondji, um dos intelectuais enfocados em
nosso livro, defino como “pensamento africano” um conjunto de textos escritos por
intelectuais que se afirmam como africanos, elaborados com a finalidade de expressar ou
interpretar a posição de seus congêneres em relação ao mundo. Este se distingue dos saberes
inerentes aos sistemas religiosos tradicionais, calcados na oralidade e na ancestralidade; do
pensamento negro diaspórico, com que parcialmente se identifica; e do pensamento de tipo
eurocêntrico, difundido no continente no período de dominação colonial, ao qual, aliás,
muitas vezes se opõe ao oferecer alternativas endógenas de explicação dos fenômenos sociais,
políticos, econômicos e culturais.
Há um elemento, além da geografia, que une os pensadores trabalhados no livro, uma
temática que você percebe como o centro das preocupações desses intelectuais?
Ao contrário do que ocorreu nos séculos anteriores da longuíssima história da África, quando
os africanos eram plenamente senhores de seu destino, no século 20 seus povos viveram
durante décadas sob dominação colonial, lutaram pela autodeterminação e foram forçados a
reconstituir sua existência no contexto da descolonização e da reorganização político-social
do período pós-colonial. A fratura colonial e seu duplo, o racismo, produziram aproximações
potencialmente inovadoras entre africanos e afro-americanos, e movimentos de valorização
cultural e de afirmação político-social lastreados na ideia de uma solidariedade
transcontinental entre os povos negros – em primeiro lugar o Pan-africanismo, e os conceitos
de “personalidade africana” e “negritude”. Alguns intelectuais estudados no livro participaram
ativamente da história política, liderando movimentos de libertação e ajudando a criar nações
(Frantz Fanon, Amilcar Cabral), certos deles alcançaram a posição de chefes de Estado
(Léopold Sédar Senghor, Kwame Nkrumah). Outros são filósofos (Marcien Towa, Paulin
Hountondji, V. Y.Mudimbe, Severino Ngoenha), historiadores (Joseph Ki-Zerbo), escritores
(Wole Soyinka) ou cientistas sociais (Cheikh Anta Diop, Achille Mbembe) que ganharam
notoriedade ao propor explicações sobre a condição dos africanos no cenário internacional,
sobre as alternativas encontradas por eles para criar instituições políticas e sociais modernas,
rompendo ou não com as formas tradicionais de organização vigentes em todo o continente.
Não há o perigo de homogeneizar essa diversidade ao se falar em ‘pensamento
africano’?
Em face do dilema diante da escolha entre a unidade e a diversidade, seguimos a posição do
eminente cientista social Elikia Mbokolo, da École dês Hautes Études en Sciences Sociales,
para quem, na África como em todo lugar, a história é marcada por processos dinâmicos, com
continuidades, adaptações e rupturas. Alguns desses processos aproximam povos e
sociedades, outros produzem identidades locais, intercâmbios e intensa circulação de estilos
de vida, crenças e ideias, modelos de organização sócio-política. Unidade e diversidade são
elementos intercambiáveis para a explicação do real africano, e a escala que melhor convém
escolher para interpretá-lo – única, da África, ou múltipla, das Áfricas -, depende dos
objetivos pretendidos. Quanto mais o foco se deslocar do exterior para o interior do
continente, mais prevalecerá a diversidade, a singularidade e a especificidade
étnicolinguística, religiosa, cultural, regional. Mas convém não esquecer que, no período
contemporâneo, essas dinâmicas locais são, a todo o instante, afetadas em virtude de
processos de unificação econômica e políticas exteriores a que estão ligados fenômenos de
extroversão desenvolvidos pelas elites africanas associadas ao capital internacional. De modo
que, seja qual for a escala de análise, as formas de expressão do ser africano são
eminentemente periféricas, subalternas, enquadradas segundo critérios de distinção étnico-
racial impostos de fora para dentro. Entendo que o perigo da homogeneização ronda as
interpretações generalizantes, globalizantes, pouco propensas a considerar a complexidade e o
papel dos contextos regionais e locais, mas o acento na diversidade guarda também seus
riscos, e num ensaio famoso Kwame Nkrumah denunciou o perigo da balcanização do
continente como o mais perverso efeito do neocolonialismo. Gosto particularmente da posição
defendida pelo escritor Chinua Achebe, citada em epígrafe num dos capítulos do livro de
Anthony Kwame Appiah intitulado Na casa de meu pai (1997), quando o romancista diz:
“Sou um escritor ibo, porque essa é minha cultura básica; nigeriano, africano e escritor…
Não, primeiro negro, depois escritor. Cada uma dessas identidades efetivamente invoca certo
tipo de compromisso de minha parte. Devo enxergar o que é ser negro – e isso significa ser
suficientemente inteligente para saber como gira o mundo e como se saem os negros no
mundo. É isso que significa ser negro. Ou africano – dá no mesmo: que significa a África para
o mundo? Quando se vê um africano, que significa isso para o homem branco?”
O livro ajuda a colocar os povos africanos como protagonistas da história?
Espero que sim. Já se tornou lugar comum considerar a África como o “berço da
humanidade”. Poucos hoje se dão conta que há sessenta anos tal assertiva seria tomada como
um disparate, um absurdo. As publicações de Cheikh Anta Diop, a começar por Nações
negras e cultura (1954) inovaram ao introduzir o debate sobre a anterioridade africana na
História da Humanidade e ao reivindicar o vínculo matricial entre o Egito e a África negra.
Envoltas em polêmica e seguidas de intenso debate, as ideias diopianas exerceram forte
influência na tendência interpretativa conhecida como afrocentrismo, que, por sua vez, foi e
continua a ser fundamental como base de sustentação teórico-conceitual dos movimentos
negros americanos. Independente do quanto tenham, ou não, lastro em dados empíricos, do
quanto comportem mais de ideologia do que de conhecimento cientificamente comprovado –
e aqui a definição de “ciência” esbarra em pressupostos que não são consensuais -, a recepção
e difusão do ideário afrocentrista reveste-se de grande eficácia simbólica, cultural, social.
Porem, se a defesa da anterioridade, especificidade ou autenticidade africana correm o perigo
de recair em essencialismos e em contra-discursos, o reconhecimento das dinâmicas africanas
de longa duração defendidas nos anos 1960-1970 por Joseph Ki-Zerbo abriram outras
possibilidades ao reconhecimento do protagonismo dos povos africanos na história. Os ritmos,
temporalidades, circularidade e entrecruzamentos que dão sentido às diversas experiências
históricas do continente provam a autonomia de suas instituições originárias e sua enorme
capacidade de adaptação e resistência. Uma das marcas distintivas dos africanos no mundo
tem sido sua propensão para lidar com diferentes signos, conferindo-lhes sentidos
reconfigurados, recompondo-os de acordo com o contexto e com a situação em que se veem
inseridos, dentro e fora do continente.
Normalmente a Grécia Antiga é colocada como o berço da filosofia. Produções
intelectuais, contemporâneas aos filósofos antigos, de outras partes da África, como do
Egito, muitas vezes são ignorados quando se fala do surgimento da filosofia porque não
carregam o racionalismo ocidental. Você acha que ainda há esse processo de
desvalorização da produção intelectual não eurocêntrica?
Seria preciso problematizar nossa ideia de “normalidade” e admitir o quanto nosso
desconhecimento de outras culturas e formas de pensamento decorre de limitações inerentes a
nossa condição subalterna. Desde o título de uma de suas obras, o filósofo Paulin Hountondji
formula a questão que em minha opinião deveria ser central: La rationalité, une ou plurielle?
(A racionalidade, una ou plural?) (2007). O que tem sido colocado em discussão é a eleição
da filosofia e do logos helênico ressignificado em ambiente judaico-cristão como paradigma
universal de conhecimento. Para o filósofo e filólogo V. Y. Mudimbe, da Universidade de
Duke, a gnose africana resulta de sucessivas interações entre tradições, formas de
conhecimento nutridos pela tradição oral, e o saber formal de tipo ocidental. Também
Hountondji tem desenvolvido diversos seminários e orientado projetos de investigação sobre
o que ele denomina de “conhecimentos endógenos”, em que o saber formal e o saber-fazer, o
escrito e o oral, a tradição ancestral e a ciência não são colocados em confronto, e sim em
interação. O importante é ter em mente que os processos de aquisição, acumulação e
transmissão de conhecimento não são isolados, mas se encontram em constante circulação,
sendo apropriados e utilizados de acordo com diferentes interesses e finalidades.
Qual é a importância deste livro?
A elaboração de uma obra como a que aqui se discute assume de imediato uma posição em
face do etnocentrismo e reveste-se de caráter anti-racista. Não quer dizer que apenas pessoas
originárias da África devam ter exclusividade nas interpretações formuladas sobre sua
realidade, mas que é importante garantir a elas espaço de enunciação, de modo a conhecermos
diretamente sua palavra, seus pontos de vista. Conforme apontaram estudiosos eminentes,
entre os quais o historiador nigeriano Toyn Falola, o conhecimento produzido pelo Ocidente
sobre a África corresponde a formas de predação em diversos níveis, e a restituição da
autonomia plena implica na devolução aos africanos de sua capacidade de resolver seus
próprios problemas, de gerir suas riquezas, de conhecer o seu passado, discutir o seu presente
e esboçar as linhas de seu futuro, enfim, implica em lhes conferir “poder de definição”. Nosso
livro não pretende atingir o público acadêmico, menos ainda os especialistas em Estudos
Africanos, para quem a maior parte dos assuntos tratados é familiar. Alguns intelectuais aqui
estudados (Léopold Senghor, Joseph Ki-Zerbo,Frantz Fanon, Amílcar Cabral, Severino
Ngoenha) tem sido mais ou menos estudados em dissertações e teses, enquanto outros
(Kwame Nkrumah, Marcien Towa, Cheikh Anta Diop, Paulin Hountondji, V. Y. Mudimbe,
Achille Mbembe) carecem de estudos especializados em nosso país. O livro tem o objetivo
modesto de apresentar as principais linhas de rumo da obra desses autores, cujos textos são
essenciais para a compreensão do colonialismo, anti-colonialismo e pós-colonialismo na
África.

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