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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO – UFRRJ

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS


COORDENAÇÃO DO CURSO DE HISTÓRIA

Cosmologia e Morte no Egito Antigo: o Tribunal de Osíris.

Thiago Henrique Pereira Ribeiro

Monografia do Curso de História da Universidade Federal


Rural do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Licenciado em História.

Orientador: Prof. Dr. Luís Eduardo Lobianco

Seropédica
Julho 2014
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO – UFRRJ
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
COORDENAÇÃO DO CURSO DE HISTÓRIA

Cosmologia e Morte no Egito Antigo: o Tribunal de Osíris.

Thiago Henrique Pereira Ribeiro


Matrícula: 201031037-1

Orientador: Prof. Dr. Luís Eduardo Lobianco


Monografia do Curso de História da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Licenciado em História.

Aprovada por:

_____________________________________________
Presidente, Prof. Dr. Luís Eduardo Lobianco.

_________________________________________
Parecerista, Prof. Dr. Marcos José de Araújo Caldas.

_________________________________________
Parecerista, Profª. Drª. Nely Feitoza Arrais.

Seropédica
Julho 2014
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO – UFRRJ
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
COORDENAÇÃO DO CURSO DE HISTÓRIA

In memoriam de Emanuel Ribeiro, “vô Manel”. Que o Senhor


do Oeste lhe receba com a merecida pompa e acolhimento.
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COORDENAÇÃO DO CURSO DE HISTÓRIA

AGRADECIMENTOS

O primeiro agradecimento sem dúvida deve ser feito às quatro figuras que posso
chamar de pais: Isaura Maria Lopes Pereira Cardoso, minha mãe, José Antônio Ribeiro, meu
pai, Janaína Nascimento de Oliveira, minha madrasta, e Armando Affonso Cardoso Filho,
meu padrasto. O apoio e paciência de vocês foram imensuráveis.
Ao orientador e amigo, Luís Eduardo Lobianco, por sempre ter me apoiado, ouvido e
ajudado mesmo quando eu perguntava sobre coisas que o faziam perder horas preciosas atrás
de alguma resposta. Sem sua presença, esta Monografia jamais existiria. Aos amigos Wyllian
Luiz Torres de Freitas e Rodrigo Cardoso Barbosa, por me apoiarem mesmo que
involuntariamente durante meu processo de redação da Monografia. Sem ambos, eu
provavelmente teria desistido durante o trajeto. Agradeço a Gustavo Henrique Magnani
Ferreira, cuja amizade me proporcionou tanto uma reflexão sobre meus estudo e forma de
escrita quanto a oportunidade de ter contato e conhecer pessoas interessantíssimas, muitas das
quais se tornaram amizades importantes. Igualmente agradeço a Marcos Aurélio da Silva
Francisco, pelas horas gastas em conversas e debates sobre temas de mitologias e religiões.
Minha perna sempre lhe será disponível caso queira dormir durante uma festa.
Muitas pessoas importantes cruzaram foram presentes na minha vida durante esses
anos de UFRRJ. Como a lista é longa, menciono alguns: os irmãos Kamilla Lamas Felix e
João Alves Felix Filho, representando meu grupo de amigos de Itaguaí; Joyce Cristina
Machado Figueiredo, representando os amigos que fiz no grupo PET História; Lucas Tadeu
Rocha Guimarães, Ícaro de Oliveira Marinho e Leonam Quitéria Gomes Monteiro, pelos
amigos que fiz no curso de História, e Sara Cristina Machado da Silva, pelos amigos que fiz
em meio ao meu Estágio. Aline Rodrigues da Silva e Felipe Fronchetti Dias, pelas pessoas
que vim a conhecer pela internet e que se tornaram importantes apesar da distância física.
Jorge Fernando χlbuquerque D’χmaral Moreira, que estudou comigo durante o Ensino
Médio e permaneceu ao meu lado na faculdade. Pamela da Silva dos Santos e Renan Corrêa
da Silva de Sampaio, pelos amigos que mantenho fora do curso de História ou fora da própria
UFRRJ. E, finalmente, Igor da Cruz Silva, Lumi Shiose e Lucas Florentino Varella,
representando os amigos de longa data que permanecem importantes apesar do tempo e
distanciamentos.
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO – UFRRJ
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
COORDENAÇÃO DO CURSO DE HISTÓRIA

RIBEIRO, Thiago Henrique Pereira.


Cosmologia e Morte no Egito Antigo: o Tribunal de Osíris /Thiago Henrique Pereira Ribeiro.
Seropédica: UFRRJ/ICHS, 2014.
Número de página: XI, 116: il.
Orientador: Prof. Dr. Luís Eduardo Lobianco.
Monografia (Licenciatura) – UFRRJ/ Instituto de Ciências Humanas e Sociais/ Departamento de
História, 2014.
Referências Bibliográficas: f. 110-114
1. História Antiga. 2. Egito Antigo. 3. Cosmologia e Morte. 4. História Cultural. I. Lobianco, Luís
Eduardo. II. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Instituto de Ciências Humanas e Sociais,
Curso de História. III. Licenciatura.
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO – UFRRJ
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
COORDENAÇÃO DO CURSO DE HISTÓRIA

Cosmologia e Morte no Egito Antigo: o Tribunal de Osíris.

Thiago Henrique Pereira Ribeiro

Orientador: Prof. Dr. Luís Eduardo Lobianco

Resumo da Monografia do Curso de História, Instituto de Ciências Humanas e Sociais, da


Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Licenciado em História.

A presente pesquisa analisa como a representação imagética da cena do julgamento


do morto, comumente chamada de “psicostasia”, insere-se no contexto dos recursos mágico-
ritualísticos da religião funerária egípcia. O episódio do tribunal envolve tanto o âmbito da
moralidade quanto o da magia; todavia, partimos do pressuposto de que o viés mágico era
mais fulcral, por isso a simples presença da cena na tumba beneficiava o morto. Além disso,
defendemos que a visão de mundo dos antigos egípcios não envolvia elementos “espirituais”,
portanto sendo errônea a atribuição de noções como “alma” ou “espírito” para o Egito χntigo.

Palavras-chave: Egito Antigo; Cosmologia; Morte; Religião Funerária; Tribunal de


Osíris; Psicostasia.

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Julho 2014
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INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
COORDENAÇÃO DO CURSO DE HISTÓRIA

Cosmology and Death in Ancient Egypt: the Osiris’s Judgement.

Thiago Henrique Pereira Ribeiro

Orientador: Prof. Dr. Luís Eduardo Lobianco

Abstract da Monografia do Curso de História, Instituto de Ciências Humanas


e Sociais, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Licenciado em História.

The present research analyses how the imagetic representation of the


judgement of the dead, commonly called as “psychostasia”, is inserted in the context of the
magical-ritualistic sources of egyptian funerary religion. The tribunal episode involves both
morality scope and magic; however, we depart from the presupposition that the magical bias
were more central, hence the simple presence of the scene in the tomb benefited the dead.
Furthermore, we defend that the world’s view of the ancient egyptians didn’t involve
“spiritual” elements, therefore being erroneous the attribution of notions as “soul” or
“spirit” to the Ancient Egypt.

Keywordsμ Ancient Egyptν Deathν Funerary Religionν Osiris’s Judgement;


Psychostasia.

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SUMÁRIO

Introdução ........................................................................................................................1
Capítulo 1. Fases e Alterações dos Encantamentos Funerários .................................8
1.1 Reino Antigo e Primeiro Período Intermediário ............................................9
1.1.1 Divinização Régia e Culto Solar ..................................................10
1.1.2 Pirâmides e Encantamentos .........................................................10
1.1.3 O Primeiro Período Intermediário e o Alargamento da Morte ...12
1.2 Reino Médio e Segundo Período Intermediário ............................................17
1.2.1 Os Textos dos Sarcófagos .............................................................17
1.2.2 Segundo Período Intermediário e Hicsos.....................................19
1.3 Reino Novo e o Livro dos Mortos .....................................................................21
1.3.1 O Livro dos Mortos, ou “Livro para sair à luz do dia” ...............22
1.4 Terceiro Período Intermediário e Época Tardia...........................................24
1.4.1 A Magia e a Religião Funerária no I Milênio: breve apanhado .27
Capítulo 2. O Mundo, a Magia, a Morte ....................................................................29
2.1 Cosmogonia(s) e Cosmologia ...........................................................................29
2.1.1 Cosmogonia de Heliópolis ...........................................................30
2.1.2 Cosmogonia de Hermópolis .........................................................31
2.1.3 Cosmogonia de Mênfis .................................................................32
2.1.4 Cosmologia, Dualidade e Monismo .............................................33
2.2 Religião e Magia ...............................................................................................35
2.2.1 Escrita e Imagem ...........................................................................41
2.3 A Morte, os Mortos e a Religião Funerária ...................................................43
2.3.1 Os Elementos Formadores do Ser Humano .................................48
2.3.1.1 O Corpo e a Mumificação ...................................................49
2.3.1.2 Ka ........................................................................................51
2.3.1.3 Ba e Sombra ........................................................................52
2.3.1.4 Coração ...............................................................................54
2.3.1.5 Nome ....................................................................................56
2.3.1.6 Akh .......................................................................................57
2.3.2 Destino Póstumo e Reino dos Mortos ..........................................59
2.3.2.1 O Destino Póstumo Solar ....................................................60
2.3.2.2 O Destino Póstumo de Osíris ..............................................62
2.3.2.3 Osíris e Rá ...........................................................................64
Capítulo 3. O Tribunal Egípcio dos Mortos ................................................................66
3.1 O Salão das Duas Maats ..................................................................................66
3.2 Nosso Corpus Iconográfico e Metodologia de Análise ..................................70
3.2.1 Reino Novo ...................................................................................73
3.2.1 Terceiro Período Intermediário ...................................................86
3.2.3 Época Tardia ................................................................................93
3.3 Considerações sobre o Capítulo ....................................................................106
Conclusão .....................................................................................................................109
Referências Bibliográficas ..........................................................................................110
Anexo 1: Tabela Cronológica .....................................................................................115
Anexo 2: Relação dos Deuses Juízes ..........................................................................116
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ÍNDICE DE ILUSTRAÇÃO

Figura 1 – Criatura identificada como “Morte”, trecho do papiro funerário de Henuttawy,


XXI Dinastia ....................................................................................................................45
Modelo da Grade de Leitura e Análise ............................................................................72
Figura 2 – Cena do Livro dos Mortos de Hunefer, XIX Dinastia ..................................73
Grade de Leitura e Análise do papiro de Hunefer ...........................................................76
Figura 3 – Cena do Livro dos Mortos de Ani, XIX Dinastia .........................................77
Figura 4 – Cena do Livro dos Mortos de Ani, XIX Dinastia .........................................77
Grade de Leitura e Análise do papiro de Ani ..................................................................81
Figura 5 – Cena do Livro dos Mortos de Anhai, XX Dinastia .......................................82
Figura 6 – Cena do Livro dos Mortos de Anhai, XX Dinastia .......................................83
Grade de Leitura e Análise do papiro de Anhai ..............................................................85
Figura 7 – Cena do Livro dos Mortos de Nany, XXI Dinastia .......................................86
Grade de Leitura e Análise do papiro de Nany ...............................................................89
Figura 8 – Cena do Livro dos Mortos de Nestanebtasheru, XXI ou XXII Dinastia.......90
Grade de Leitura e Análise do papiro de Nestanebtasheru ..............................................93
Figura 9 – Cena do Livro dos Mortos de Hor, XXVI.....................................................94
Figura 10 – Cena do Livro dos Mortos de Patunu ..........................................................96
Grade de Leitura e Análise do papiro de Hor ..................................................................97
Figura 11 – Cena do Livro dos Mortos de Ankhep ........................................................98
Figura 12 – Cena do Livro dos Mortos de Ankhep ........................................................98
Figura 13 – Cena do Livro dos Mortos de Ankhep ........................................................98
Grade de Leitura e Análise do papiro de Ankhep .........................................................101
Figura 14 – Cena do Livro dos Mortos de Irthorru ......................................................102
Grade de Leitura e Análise do papiro de Irthorru ..........................................................103
Figura 15 – Cena do Livro dos Mortos de Rattauí, XXVI ...........................................104
Grade de Leitura e Análise do papiro de Rattauí...........................................................106
“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver
dedico como saudosa lembrança estas Memórias Póstumas.”
Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas.

“É preciso descobrir as paixões profundas do homem diante


da morte, considerar o mito em sua humanidade, e considerar o
próprio homem como guardião inconsciente do segredo. Então, e só
então, será possível ir buscar a morte nua, limpa, desmascarada,
desumanizada, e cercá-la em sua simples realidade biológica.”
Edgar Morin, O Homem e a Morte.

“Uma geração passa, outra fica em seu lugar,


desde o tempo dos antepassados.
[...]
Ninguém volta do lugar (onde se acham)
para contar como estão,
para dizer o que precisam,
para serenar nosso coração
até irmos para onde eles foram.”
Canto de um harpista, tumba de Intef, XI Dinastia.
1

Introdução

A região do Egito localiza-se no extremo nordeste do atual continente da África. Em


meio a uma área marcadamente desértica, a existência de um rio perene, o Nilo, permite um
meio de subsistência fundamental para as pessoas que ali vivem ou viveram há milhares de
anos, seja para transporte, agricultura ou para outros fins.
Na Idade Antiga, principalmente, a civilização egípcia manteve-se relativamente coesa
ao longo de cerca de três mil anos. Por existirem desertos a Leste e a Oeste, os egípcios logo
cedo ocuparam a área ao longo do curso do Nilo desde as regiões altas do Sul (o Alto Egito)
até as regiões baixas e litorâneas do Norte (o Baixo Egito). Além dessa disposição singular, os
relevos em torno do Egito (o deserto do Saara a Oeste, deserto do Sinai e Mar Vermelho a
Leste e Mar Mediterrâneo a Norte) possibilitaram que essa civilização, até onde os indícios
nos mostram, tivesse pouco contato com povos estrangeiros durante vastos períodos de
tempo, à exceção de seus vizinhos do Sul, núbios. Isso significa que invasões e incursões
invasoras foram poucas, porém existiram.
O Antigo Egito, então, era fortemente dependente do rio Nilo, mas essa dependência
possuía seus lados positivos. Além de ser um rio perene, o Nilo possuía um ciclo constante de
aumento do nível de suas águas e retorno ao volume normal. Essa cheia ocorria regularmente
a cada ano em momentos específicos (que em nosso calendário abarcam de julho a
novembro)1, possibilitando que os egípcios a integrassem ao seu sistema de contagem de
meses. Porém, sua importância era principalmente forte para a área do plantio. O retorno das
águas do rio ao seu nível normal deixava para trás, no solo egípcio, um húmus negro
altamente fecundo e benéfico para a agricultura. Isso fez com que os egípcios chamassem seu
território ocupado de “terra negra”, kemet2 em oposição à “terra vermelha” dos desertos,
desheret3.
A presente monografia visa examinar justamente essa antiga civilização, inserindo-se
em um campo de estudos que recebe o nome de Egiptologia. As pesquisas egiptológicas
envolvem não apenas o campo da História, no qual nos encontramos, mas também
Arqueologia, Arquitetura, Química, Biologia, Engenharia, dentre outros. Sendo mais
específico, este trabalho insere-se nos estudos sobre religião funerária egípcia, isto é, o
conjunto de crenças e práticas que os antigos egípcios possuíam acerca da morte e dos mortos.

1
A cheia do Nilo perdurou até o século XX de nossa era, chegando ao fim apenas com a conclusão da Represa de Assuã
na década de 1970.
2
Nome, aliás, utilizado até os dias de hoje para se referirem ao seu país.
3
DAVID, Rosalie. Religião e Magia no Antigo Egito. São Paulo: Difel, 2011, pp. 34-35.
2

A palavra religião será usada ao longo de toda esta pesquisa, mas, ao invés de aplicá-
la como se atendesse a algum entendimento pré-suposto, sentimo-nos na obrigação de fazer
um tratamento desse vocábulo. Seguimos o paradigma de Moacir Santos e Gertie Englund, os
quais afirmam que o termo religião não é propriamente aplicável ao Egito Faraônico, visto
que é utilizado para expressar elementos que vão além do que o Ocidente hoje entende por
religião e que enquadraríamos nos campos de Teoria Política ou Sociologia, por exemplo4.
Ademais, afirma Santos que inexiste um termo na antiga língua egípcia que sequer se
aproxime do nosso entendimento de religião. Englund, por fim, chega a citar um trabalho de
Erick Hornung, publicado em 1972, no qual este alega que seria preferível falar em “ciência
egípcia” devido à multiplicidade de áreas que essa expressão é capaz de abarcar.
Religião é uma palavra que provém do latim religio, cuja origem etimológica é dupla:
relegere e religare. Cristiane de Azevedo diz que enquanto a primeira origem provém do
politeísmo romano, a segunda estruturou-se mediante o esforço de filósofos cristãos5. Por
relegere, entende-se o zelo e a prudência com a realização correta dos cultos6, enquanto
religare significa uma reunião ou religação com o divino7. Notemos que o sentido da religio-
relegere faz alusão aos moldes da religião romana e de sua atenção e importância aos ritos
públicos, enquanto que a religio-religare entra de acordo com o preceito cristão de submissão
e relação com um deus supremo. Azevedo afirma que a aproximação de religio com religare
feita por pensadores cristãos guiou-se pelo intuito de separar a religio do “paganismo
supersticioso” de Roma e aproximá-lo da “verdadeira religião” dos cristãos8.
Assim, podemos expressar o que talvez seja um axioma: religião é uma palavra
oriunda do latim religio, com etimologia relacionada à tradição romana ou à cristã. Não
bastasse essa origem, o termo sofreu significativa mutabilidade ao longo da história do
Ocidente. Isto, no entanto, não impediu que uma série de escritores, pensadores e estudiosos
usassem a palavra religião de forma genérica para casos e contextos fora do Ocidente, muitas
vezes recaindo em simplificações ou deturpações do objeto que se está tentando analisar ou

4
SANTOS, Moacir Elias. Jornada para a Eternidade: as concepções de vida post-mortem real e privada nas tumbas
tebanas do Reino Novo - 1550 - 1070. Tese de Doutorado, orientada pelo Professor Doutor Ciro Flamarion Cardoso. Niterói:
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, 2012, 467 f., p. 21, e ENGLUND, Gertie. “Gods as a
Frame of Reference on Thinking and Concepts of Thought in χncient Egypt”. In: ENGLUND, Gertie (org.). The religion of the
ancient Egyptians: Cognitives structures and popular expression. Uppsala: Acta Universitatis Upsaliensis, 1989, p. 8.
5
DE AZEVEDO, Cristiane A. A Procura do Conceito de Religio: entre o relegere e o religare. In: Religare, vol. 7, nº 1,
pp. 90-96. João Pessoa: UFPB, 2010, p. 90.
6
Ibidem, p. 91.
7
Ibidem, p. 93.
8
Ibidem, p. 94.
3

explicar. Portanto, religião tornou-se um conceito, um perigoso recurso de estudo em


decorrência das facilidades e riscos que traz.
Apesar de tudo isso, empregaremos a palavra religião justamente como ferramenta de
estudo sem, contudo, perder de vista a relativização de Santos e Englund nem tampouco sua
origem etimológico-linguística e a mutabilidade temporal da palavra. Desta forma, é
importante definirmos o que compreendemos por religião e, principalmente, em relação a que
aplicamos esse termo no contexto do Egito Antigo.
Definições do conceito de religião são vastas. Jonathan Smith menciona que, em
1912, o estudo de James Henry Leuba intitulado Psychological Study of Religion listou mais
de cinquenta interpretações e conceitualizações possíveis para religião. Smith argumenta que
isso é positivo, pois demonstra que o conceito possui uma gama de compreensões e definições
que podem estar corretas ou incorretas, em maior ou menor grau, dependendo do caso em
questão9. Seguindo essa linha, pode-se dizer que é viável escolher algumas dentre essas várias
definições e conceitualizações de religião e testar sua aplicabilidade no Egito Antigo.
Obviamente, não analisaremos mais de cinquenta definições diferentes de religião
(mesmo porque o número destas certamente aumentou no intervalo de mais de cem anos entre
a publicação do livro de James Leuba e a atualidade). Seria um esforço desnecessário,
enfadonho e prolixo para o presente estudo. Contudo, fazer o teste com algumas definições já
formuladas de religião pode vir a ter alguma utilidade. Por exemplo, há a categorização
elaborada por Durkheim, “uma religião é um sistema solidário de crenças e de práticas
relativas a coisas sagradas, isto é, separadas, proibidas, crenças e práticas que reúnem numa
mesma comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles que a elas aderem.”10, e a
definição de Geertz, “um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas,
penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da formulação de
conceitos de uma ordem de existência geral e vestindo essas concepções com tal aura de
fatualidade que as disposições e motivações parecem singularmente realistas”11.
É um truísmo dizer que as conceitualizações de Durkheim e Geertz foram produzidas
em locais em épocas diferentes, com base em análises e referenciais teóricos e empíricos
diversos (que, no entanto, poderiam se assemelhar), mas com o objetivo comum de fornecer
um entendimento cristalizado e coeso à ideia de religião. Ambos, porém, possuem vantagens
e desvantagens de serem aplicados ao contexto do Antigo Egito.
9
SMITH, Jonathan Z. “Religion, Religions, Religious”. In: TAYLOR, Marc C. (ed.). Critical Terms for Religious
Studies. Chicago: University of Chicago Press, 1998, p. 281.
10
DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo:
Martins Fontes, 2009, p. 32.
11
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2012, p. 67.
4

A formulação de Durkheim nos é interessante por usar a palavra crença e evitar o


termo mito. Esta é uma expressão mais corriqueira, mas Eliade tem razão ao dizer que mito
possui uma carga negativa e pejorativa de “falso, falacioso” desde a filosofia grega clássica12.
Entendemos que ao falar em crenças, Durkheim mantém o mesmo sentido e ainda evita tal
conotação pejorativa usual. Contudo, seu emprego da palavra igreja é pernicioso pois, por
mais que ele alargue sua significação para abranger a totalidade de um povo13, seu uso pode
levar a entender a existência de uma espécie de culto da forma que é comum no Cristianismo,
principalmente dentro de um templo, realizado por sacerdotes e assistido por um público leigo
que dele se beneficia de alguma forma e pode exercer alguma participação. Ademais, há
pesquisadores que afirmam ser errônea a aplicação da dicotomia sagrado x profano como se
tratando de campos delimitados, um dos pressupostos básicos da definição de Durkheim, para
o caso do Egito Antigo14. Estes pontos serão abordados de modo mais objetivo posteriormente
neste trabalho.
Já a categorização dada por Geertz é interessante por chamar a atenção à questão
simbólica (altamente marcante no Egito) e por tratar da relação entre a cosmologia e as ações
e os comportamentos sociais (ou ethos) de um povo. São apontamentos bastante profícuos
para serem levados ao Egito Faraônico, como também se verá posteriormente. Consideramos,
porém, perigoso o ato de começar definindo religião como um sistema. Por mais que, de um
lado, sistema indique confluência, comunicação e inter-relações entre uma série de elementos,
por outro lado também pressupõe um todo relativamente definido com fronteiras observáveis.
Não nos parece seguro chamar de sistema um conjunto rico de crenças, ritos e práticas que
perdurou por bem mais de dois mil anos15.
Escolhemos tratar as definições de Geertz e Durkheim por serem duas propostas
conceituais que nos ajudam a refletir sobre o fenômeno da religião no Egito Antigo. Contudo,
ainda nos resta dar uma explicação para o que compreendemos ser tal fenômeno, e nisto
somos fortemente auxiliados por Jan Assmann.
Assmann usa o trabalho de Thomas Luckmann (The Invisible Religion, de 1967) como
referência para apresentar a relação entre religião visível e invisível. Enquanto a religião

12
Para uma discussão completa sobre isso, ver ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 7-8.
Para uma discussão mais completa, ver capítulos VIII e IX desta obra.
13
DURKHEIM, Émile. Op. cit., p. 28.
14
O debate sobre a aplicação de sagrado e laico ou profano não será tratado neste trabalho, mas, para um breve
tratamento desta questão em especial, ver JOÃO, Maria Thereza David. Dos Textos das Pirâmides aos Textos dos Sarcófagos: a
“democratização” da imortalidade como um processo sócio-político. Dissertação de Mestrado, orientada pelo Professor Doutor
Marcelo Rede. Niterói: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, 2008, 179f., pp. 62-63.
15
Apesar de uma característica estabilidade cultural e religiosa durante praticamente toda a história do Egito Faraônico, há
diversos elementos que se alteraram, foram inseridos ou caíram em desuso. Um exemplo disso é o processo chamado de
“democratização” do pós-morte que será abordado no primeiro capítulo deste trabalho.
5

visível é aquela que acontece no rito, na reza, no ato de uma oferenda, a religião invisível é o
padrão que valida e norteia tanto a religião visível quanto os demais segmentos de uma
sociedade16. Assmann prossegue aplicando esses conceitos ao Egito; ao afirmar que a religião
invisível se aproxima da noção de Maat17, enquanto a religião visível se encontra nos cultos
aos deuses e aos mortos. Maat, segundo este autor, não é definida diretamente, mas deduzida
a partir de um conjunto vasto de escritos18; porém, também é o princípio básico de ação e
compreensão, ethos e cosmologia, no Egito Antigo, atuando tanto nos elementos do que
chamamos de religião visível quanto em outros, como justiça e administração.
Dessa forma, afirmamos que compreendemos religião no Egito como referência ao
que Assmann chama de religião visível, isto é, os cultos, ritos e práticas referentes a deuses e
mortos. É válido ressaltar que, apesar de já haver expressado que não há equivalente ao que
compreendemos como religião na atualidade, Assmann afirma que os egípcios chamavam de
“satisfazendo os deuses” as práticas de culto e serviço aos deuses19. Portanto, usarei a
expressão religião como em sua etimologia de relegere, da observância e zelo do culto para
com os nTrw (deuses) e os akhu (mortos renascidos).

Um tema que perpassa toda a religião funerária egípcia é a ideia de regeneração,


possível de ser posta ao lado de renascimento. Os egípcios acreditavam que os seres
cansavam-se e desgastavam suas forças e energias ao longo do tempo e para recuperá-las
deveriam regenerar-se de alguma maneira. Mas a regeneração em última instância implicava
um novo nascimento, o que por sua vez poderia necessitar de uma morte prévia. Assim, a
relação entre morte e renascimento era uma das formas mais poderosas para a regeneração,
tendo o sol como seu exemplar mais característico.
Os egípcios elaboraram várias metáforas para regeneração a partir da natureza, como
os hábitos de algum animal ou o ciclo do Nilo. O sol foi o mais fundamental. A alternância
entre amanhecer e anoitecer foi vista como um nascer e morrer do sol, o qual reaparecia no
dia seguinte com suas forças renovadas. Assim, o sol para os egípcios era uma potência
regeneradora e também criadora, exercendo influências fortíssimas na religião como um todo.
Dentre o conjunto de crenças e práticas do âmbito tanatológico egípcio, o cerne de
nossa pesquisa é uma concepção específica: a de que o morto passa por um julgamento divino
em que suas ações feitas em vida possibilitarão ou não que ele rume para o reino dos mortos.
16
ASSMANN, Jan. Religion and Cultural Memory. Stanford: Stanford University Press, 2006, p. 32.
17
Maat era a expressão da ordem cósmica, possivelmente o elemento de maior importância na visão de mundo dos antigos
egípcios, além de também estar associada às ideias de verdade e à justiça.
18
ASSMANN, Jan. Op. cit., p. 38.
19
Ibidem, p.42.
6

Esta ideia surge a partir de um período da história egípcia chamado de Reino Novo, mas
torna-se tão fulcral para o pensamento funerário que perdura durante séculos.
Devido a isto, o recorte cronológico de nossa pesquisa se inicia com o Reino Novo e
avança até o fim do período faraônico, marcado pela conquista de Alexandre da Macedônia
em 332 AEC. Durante todo esse período, e ainda além, o julgamento do morto foi
representado em iconografias que acompanhavam uma série de “textos mágicos” cujo
compêndio é comumente chamado de Livro dos Mortos. Cada um de seus textos é chamado
pelos estudiosos de Encantamento ou Capítulo, sendo a cena do julgamento correspondente
ao de número 125.
Com base, portanto, no Livro dos Mortos, nosso objetivo nessa pesquisa é mostrar que
as cenas imagéticas do julgamento eram, na verdade, mais um “texto” mágico utilizado na
religião funerária, consistindo em um forte auxílio para que a pessoa morta conseguisse sua
regeneração e fosse para o reino dos mortos. Para tanto, julgamos necessário fazer um
tratamento prévio de questões como as ideias egípcias sobre cosmologia (a forma como se vê
o mundo), os Encantamentos do Livro dos Mortos, a relação entre magia e religião e, claro, a
morte e os mortos. Assim sendo, realizamos uma divisão da Monografia em três capítulos
descritos a seguir.
No primeiro, analisamos os Encantamentos e seu papel na religião funerária desde o
seu primeiro surgimento, no III milênio AEC. Desta forma, mostramos um panorama do
desenvolvimento desses elementos, suas alterações e características principais, de forma a
inserir o Livro dos Mortos em uma tradição que remonta a bem antes de seu surgimento.
Evidentemente, o Livro será especialmente apresentado e tratado no capítulo. Além disso,
fizemos uma breve explicação de cada período e sua relação com a religião funerária e os
Encantamentos, de forma a situá-los em seus contextos.
No segundo capítulo, tratamos especialmente de aspectos de pensamento e crenças
egípcias. Começamos explicando os principais tópicos de sua visão de mundo a partir de
como concebiam que este havia sido criado, em outras palavras, relacionando cosmologia e
cosmogonia. Devemos ressaltar que tratamos especialmente dos pontos cosmológicos
relativos à ordem cósmica, não nos preocupando em abordar como entendiam a terra, o céu ou
as estrelas. Em seguida, abordamos a magia egípcia e seu papel na religião, dando destaque à
função desempenhada pelas produções escritas e imagéticas dos egípcios. Por fim, fizemos
uma discussão sobre a religião funerária, começando pela visão sobre a morte, a forma na
qual os humanos existiam após sua ocorrência e terminando em para onde se destinavam os
mortos. Fazendo um paralelismo com o Cristianismo, seria uma abordagem de como a alma
7

da pessoa desprendeu-se de seu corpo e foi para o Paraíso. Para os egípcios, porém, a
dinâmica era muito diferente e envolvia questões mais complexas do que a simples ideia de
porção espiritual incorpórea. Ressaltamos que foi dado maior destaque às crenças do que às
práticas, culminando em um menor tratamento a questões como preparo do corpo e da tumba.
Todavia, compreendemos e enfatizamos que tais etapas eram fundamentais e que a pouca
ênfase se deveu em virtude do objetivo desta pesquisa.
O terceiro e último capítulo aborda especificamente a cena em que o morto é julgado.
Efetuamos primeiro uma descrição dos aspectos gerais desse tribunal de deuses e em seguida
partimos para a análise de nove exemplares selecionados em sites de museus. A análise
consistiu em uma abordagem descritiva e explicativa de cada elemento imagético nas cenas,
para em seguida ser feito um cômputo e numeração com o auxílio de uma grade analítica. O
processo metodológico total será melhor explicado no capítulo em si.
Para encerrar, confessamos que a questão do idioma nos foi uma barreira considerável.
Não possuímos conhecimentos aprofundados sobre língua e escrita egípcia a ponto de
podermos ler e compreender os originais, o que resultou em uma dependência de traduções
feitas em português, inglês ou espanhol (este em menor número). Contudo, principalmente
para o caso de análise das fontes iconográficas, quando não dispúnhamos de uma tradução ou
indicação de determinado conteúdo escrito presente, restava-nos apenas ignorá-lo. Em mais
de uma ocasião nos foi possível arriscar sobre o que se tratavam graças ao reconhecimento de
símbolos específicos, mas sem uma confirmação dada por estudiosos ou pelos museus dos
quais conseguimos as imagens, não seguimos tais palpites por questões de ética e riscos de
erros analíticos.
8

Capítulo 1: Fases e Alterações dos Encantamentos Funerários

Tradicionalmente, a Egiptologia divide o Egito Faraônico em Dinastias régias,


normalmente registradas em algarismos romanos. Desta forma, a história do Egito Faraônico
é repartida em 30 Dinastias (alguns pesquisadores afirmam serem 31), da I à XXX (ou
XXXI). Tal organização foi feita pelo sacerdote Maneton (323-245 AEC) e adotada pelos
estudiosos do Egito20.
As Dinastias, por sua vez, são agrupadas em períodos maiores normalmente chamados
de reinados21, os quais se sucedem cronologicamente da Unificação22 à conquista por
Alexandre23. Assim, temos: Reino Antigo, Reino Médio, Reino Novo e Reino Tardio (ou
Época Tardia, outra forma comum de se expressar este período). Entre cada um destes Reinos
há “interlúdios” chamados de Períodos Intermediários (três, ao total), marcados por contextos
diversificados de instabilidade interna e externa. Não era anormal que mais de uma Dinastia
coexistisse durante um destes Períodos Intermediários. Ademais, antes do Reino Antigo há o
Período Arcaico ou Dinástico Inicial, o qual contém as duas primeiras Dinastias (alguns
afirmam que as três primeiras), e o período chamado de Pré-Dinástico, anterior à Unificação
política.
Essa organização em Dinastias, Reinados e Períodos é útil, visto que permite que
falemos de cada época em termos gerais antes de tratar de questões mais específicas.
Entretanto, trata-se de uma divisão com base no viés da política, o que implica dizer que
demais âmbitos da sociedade egípcia (econômicos, culturais, religiosos, etc.) não
necessariamente seguem tal divisão arbitrária. Por mais que as questões políticas os
afetassem, suas temporalidades de ação e existência (ou seja, quando e por quanto tempo
estiveram vigentes) não seguem unicamente a lógica política.
As ideias e práticas religiosas são o exemplo mais marcante disso. Foram formadas e
consolidadas logo no Dinástico Inicial (com muitos pontos e elementos remetendo ao Pré-
Dinástico) e perduraram durante toda a história do Egito Faraônico, exercendo influência até
nos períodos posteriores. A estabilidade foi marcante e as alterações poucas, mas não
deixaram de existir nem de serem substanciais. Novos elementos surgiram, muitos se
20
DAVID, Rosalie. Op. cit., p. 38-39. A adição ou não de uma trigésima primeira Dinastia varia, mas, quando ocorre, é
para especificar um período de 343 a 332 AEC em que o Egito foi novamente governado por reis de origem persa, logo antes da
conquista por Alexandre da Macedônia.
21
Há pesquisadores que utilizam a expressão Império no lugar de Reinado. Entendemos que um Império requer expansão
e domínio de outros territórios; contudo, para não entrar nos méritos de tal discussão, seguiremos com o uso da palavra Reinados.
22
A unificação do território egípcio, provavelmente, aconteceu por volta de 3100 AEC e segundo Maneton foi realizada
por Menés, um regente do reino do Sul. Ainda há discussões intensas sobre a identidade deste Menés a as razões que efetivamente
levaram ao processo de unificação.
23
Ocorrida em 332 AEC.
9

modificaram e outros caíram em desuso ou foram esquecidos, às vezes retornando séculos


após. Isso se torna evidente ao analisarmos a religião funerária, cuja trajetória foi influenciada
pelas questões políticas e dinásticas.
Feitas essas considerações, apresentaremos a seguir um panorama de desenvolvimento
de certos elementos da religião funerária que levou ao surgimento, no Reino Novo, do
material que aqui servirá como fonte e objeto de estudo. Para tanto, será efetuado um breve
preâmbulo dos Reinos anteriores e um aprofundamento maior do Reino Novo em diante, de
forma que possamos identificar como tal documentação surgiu e em que os contextos
seguintes o a influenciaram.

1.1 Reino Antigo e Primeiro Período Intermediário

O Reino Antigo ocupa parte considerável do III milênio AEC. Em geral, os


egiptólogos afirmam que ele durou do século XXVII ao século XXII AEC, abarcando da III à
VII ou VIII Dinastias24. Foi um período de bastante centralização política e administrativa,
marcado por grandes construções como as Pirâmides e a Esfinge de Gizé.
Após o final da V Dinastia, contudo, observa-se um gradativo enfraquecimento do
poder monárquico central junto de um fortalecimento de poderios locais. O Egito no Reino
Antigo foi dividido em unidades administrativas chamadas de spAt em egípcio (ou, como
foram futuramente chamadas em grego, ό ος). Inicialmente cada spat recebia a visita de
emissários régios que cuidavam da administração sem se fixarem na localidade 25; com o
tempo, cada funcionário passou a ser responsável por um spat e a nele fixar residência. Logo
seus cargos administrativos passaram a ser hereditários26. O enfraquecimento régio foi
seguido por um fortalecimento de tais funcionários locais, os quais não tardaram a se
comportar como elites e a exercerem influências em suas localidades. A equação
enfraquecimento central versus fortalecimento local deu a tônica do Primeiro Período
Intermediário, o qual também teve outros fatores determinantes, como epidemias de fome e
invasões beduínas27 (povos que viviam a Oeste).

24
A datação deste período, assim como os dos demais, varia de acordo com o pesquisador.
25
JOÃO, Maria Thereza David. Op. cit., p. 22.
26
Ibidem, p. 23.
27
DAVID, Rosalie. Op. cit., p. 185.
10

1.1.1 Divinização Régia e Culto Solar

O Reino Antigo, principalmente por volta da IV e V Dinastias, é marcado pelo ápice


da figura do faraó. Este era considerado divino, Hórus28 enquanto vivo, e desde a IV Dinastia
adotou o epíteto de “Filho de Rá”, mostrando seu envolvimento e comprometimento ao culto
do deus solar.
O rei era estimado como um enviado dos deuses e um próprio deus entre os homens.
Suas ações eram responsáveis por garantir a permanência do equilíbrio cósmico e evitar o
retorno do Caos original. Ademais, sua adoção da alcunha de “Filho de Rá” o relacionou à
“teologia” solar, o que serviu para intensificar seu poder e influência29. Rá era um dos nomes
do deus solar. O sol para os antigos egípcios era um elemento com força criadora e
regeneradora. São-lhe atribuídas funções religiosas importantes, tais como a ressurreição de
mortos, a regeneração de forças, o papel central em mitos sobre a criação do universo e o
confronto contínuo com as forças do Caos. O culto e os sacerdotes de Rá foram bastante
fortes no Reino Antigo, com destaque especial para a V Dinastia30, quando diversos
complexos templários31 destinados ao sol foram construídos, apesar de termos encontrado
apenas alguns poucos destes32.
O rei assumia papeis de supremacia na ideologia régia do Reino Antigo. Contudo, o
enfraquecimento monárquico fez com que aspectos humanos do faraó fossem mais
comumente levantados. A partir dos períodos seguintes, torna-se mais frequente a alegação
de que o ofício de monarca era divino e que seu ocupante, um humano, era imbuído desse
status divino a partir de uma série de rituais de entronização e renovação de forças. Contudo,
não deixava de ser um humano suscetível a falhas.

1.1.2 Pirâmides e Encantamentos

É do Reino Antigo que datam muitas das maiores e mais conhecidas pirâmides, como
as três localizadas no Planalto de Gizé. Neste período, a pirâmide era um tipo de tumba
destinada especialmente para uso do faraó. A palavra egípcia para pirâmide era mr, cujo

28
Deus com cabeça de falcão, Hórus foi uma das divindades mais importantes do panteão egípcio. Seu papel mitológico
será melhor apresentado e explicado no segundo capítulo desta Monografia.
29
JOÃO, Maria Thereza David. Op. cit., p. 8
30
A própria origem da V Dinastia foi mitologicamente creditada ao deus solar. Para maiores detalhes, ver: ARAÚJO, Luís
Manuel de. Mitos e Lendas do Antigo Egipto. Lisboa: Livros e Livros, 2005, pp. 177-181.
31
O templo no Egito Antigo consistia em um conjunto de construções com funções específicas. Aquilo que chamaríamos
de templo de facto seria o centro do complexo, o local em que a estátua da divindade cultuada ficava depositada e ritos eram
realizados pelos sacerdotes. Esta sala central era altamente restrita, com acesso permitido a apenas alguns sacerdotes.
32
DAVID, Rosalie. Op. cit., p. 158.
11

significado de acordo com Rosalie David é de “Local de χscensão”33. Isto se deve ao fato da
pirâmide não ser meramente um depositório para o corpo do faraó morto, mas sim um meio
de garantir sua imortalidade póstuma e elevação aos deuses.
A pirâmide mais antiga conhecida foi a construída por Djoser, primeiro governante da
III Dinastia34. Feita em Saqqara, próxima a Mênfis, possui um formato que lembra uma
escadaria ascendente (disto resulta sua alcunha de Pirâmide de Degraus de Saqqara). Já as
pirâmides do Planalto de Gizé, mais famosas, foram construídas pelos reis Khufu, Khafre e
Menkaure da IV Dinastia. Suas formas com os lados em rampa parecem ter alusão ao culto
solar35, além de possivelmente também implicarem em uma elevação do rei à imortalidade.
As pirâmides diminuíram de tamanho após a de Menkaure, mas esse tipo de tumba foi
utilizado ao menos até a XIII Dinastia.
Para este trabalho, nos interessa um conjunto de escritos encontrados em certas
pirâmides que receberam o nome de Textos das Pirâmides. Os Textos eram um conjunto de
Encantamentos com o objetivo de possibilitar que o faraó alcançasse sua nova vida após a
morte. Há Encantamentos do tipo nas pirâmides dos reis Unas (último da V Dinastia), Teti,
Pepi I, Merenra, Pepi II (todos da VI Dinastia) e Ibi (VIII Dinastia), além de também
aparecerem nas pirâmides das rainhas Neith, Iput II, Wedjebetni (esposas de Pepi II) e
Ankhesenpepi II (esposa de Pepi I)36.
Os Encantamentos variam em número e ordem de uma pirâmide a outra. Ao todo, a
Egiptologia definiu que os Textos das Pirâmides são uma coletânea de 759 Encantamentos37,
espalhadas pelas pirâmides supracitadas. Em seu intento de garantir a imortalidade post
mortem dos donos das tumbas, os Textos mesclavam tradições referentes a um destino
póstumo estelar, um solar e um osiriano38. Ao invés de serem consideradas contraditórias, a
variedade de possibilidades aumentava as chances de se conseguir a imortalidade póstuma. A
diversidade de explicações e abordagens sobre um tema é uma característica do pensamento
egípcio39.
John Taylor afirma que os Textos das Pirâmides possuem estruturação e organização
específicas. O funcionamento de um Encantamento é determinado não só pelo seu conteúdo e

33
DAVID, Rosalie. Op. cit., p. 138.
34
DAVID, Rosalie. Op. cit., p. 139, e TAYLOR, John H. Death and the Afterlife in Ancient Egypt. London: The
British Museum Press, 2001, p. 141-142.
35
Em geral, aponta-se que o formato das pirâmides alude à pedra Benben, um elemento que consta no mito cosmogônico
de Heliópolis. Ver: DAVID, Rosalie. Op. cit., p. 122.
36
MARK, Smith. Democratization of the Afterlife. In: DIELEMAN, Jacco; WENDRICH, Willeke. UCLA Encyclopedia
of Egyptology. Los Angeles, 2009.
37
JOÃO, Maria Thereza David. Op. cit., p. 75.
38
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 193.
39
HORNUNG, Erik. Conceptions of god in ancient Egypt: the one and the many. New York: Cornell University Press,
1996, pp. 240-241.
12

as formas de como devem ser lidos, mas também pelo seu posicionamento nas paredes da
pirâmide. Este autor apresenta ainda uma divisão classificatória dos Textos em três categorias:
primeiro, Encantamentos destinados a proteger o morto de criaturas e entidades
potencialmente hostis; segundo, Encantamentos utilizados durante rituais funerários efetuados
dentro da pirâmide; e terceiro, Encantamentos de uso pessoal do falecido em diversas
situações, particularmente durante sua transição para o reino dos mortos40.
Apesar de serem exclusividade da realeza, há algumas evidências que mostram o uso
de partes dos Textos das Pirâmides por membros da elite antes mesmo do fim do Reino
Antigo, como foi exaustivamente mostrado por Mark Smith em seu artigo publicado poucos
anos atrás41. Isso aponta para um já alargamento de elementos da religião funerária para fora
da esfera da realeza, um processo que tradicionalmente recebe a titulação de
“democratização” do pós-morte.

1.1.3 O Primeiro Período Intermediário e o Alargamento da orte

O chamado Primeiro Período Intermediário durou aproximadamente duzentos anos.


Não há consenso sobre quais Dinastias fizeram parte desta época, mas podemos estipular que
abarcou da VII/VIII até a XI ou XII. Marcadamente, foi um período em que as elites de cada
spat exerceram poder e administração consideráveis, enquanto o Estado centralizado
praticamente deixou de existir. É certo que houve uma coexistência de Dinastias e uma nova
polarização entre Norte e Sul, ocorrendo uma disputa entre as cidades de Tebas (no Alto
Egito) e Heracleópolis (no Baixo Egito).
Há muitas teorias sobre o que levou ao colapso do Reino Antigo. Rosalie David
enfatiza questões econômicas: enquanto o Estado empobrecia ao doar terras a nobres, isentar
os impostos de complexos templários e gastar excessivamente na construção e manutenção de
templos e pirâmides, poderios locais enriqueciam e aumentavam em importância 42. Maria
Thereza faz um balanço maior das hipóteses de pesquisadores43. Pontos como fortalecimento
sacerdotal do culto solar e empobrecimento estatal parecem ser comuns dentre as
argumentações. Essa autora ainda adiciona a suposição de que cheias insuficientes do Nilo
causaram dificuldades na produção de alimentos e, consequentemente, crises de fome44.

40
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 194.
41
MARK, Smith. Op. cit.
42
DAVID, Rosalie. Op. cit., pp. 183-184.
43
JOÃO, Maria Thereza David. Op. cit., pp. 20-21.
44
Ibidem, p. 21.
13

Talvez o elemento que mais fomente estudos sobre o Primeiro Período Intermediário
seja o processo chamado “democratização” do pós-morte. Basicamente, trata-se de uma
tentativa dos estudiosos de como explicar que textos funerários, que outrora eram
exclusividade régia, passaram a ser utilizadas por pessoas membros das elites45. Em outras
palavras, é um intento de explicar como os Textos das Pirâmides se desenvolveram para os
Textos dos Sarcófagos.
O estudo e o uso disso do que se chama “democratização” do pós-morte possui suas
complicações, a começar pelo próprio nome. τ termo de origem grega “democratização”
pode gerar a ideia de que os elementos funerários tornaram-se acessíveis à grande maioria da
população, quando na verdade os custos para a construção e equipamento das tumbas, além da
execução dos ritos funerários, permaneceram um fator excludente das camadas com menor
capacidade aquisitiva durante praticamente toda a história do Egito dinástico. Por isso, Maria
Thereza propõe o uso do termo “alargamento” como substituto de “democratização”, uma
opção que evita tal armadilha terminológica e ainda mantém a “ideia de algo que era, de certa
maneira, restrito, e posteriormente se difundiu.”46.
χ proposta de uso do termo “alargamento” será adotada neste trabalho. Contudo, as
dificuldades no estudo deste processo estão além da simples questão de seu nome. O principal
problema reside no fato de praticamente inexistirem referências materiais diretas ao
alargamento do pós-morte, à exceção dos posteriores Textos dos Sarcófagos47.
Um escrito que possivelmente faz uma alusão ao processo de alargamento é das
Admoestações de Ipur-Ur. Neste texto, Ipur-Ur, um sábio, queixa-se de um contexto de crise
pela qual está passando o Egito, lançando críticas a um governante fraco que não consegue
reverter a situação48. Foi encontrado em Mênfis e está conservado no Papiro de Leyden 33449.
Trata-se de um exemplar da XIX Dinastia, mas provavelmente é uma cópia de um original do
Reino Médio que trata de acontecimentos do Primeiro Período Intermediário50. Não obstante,
há intenso debate relativizando não apenas as datações do texto e de seus acontecimentos,
como também da identidade do autor e da própria veracidade do que é relatado51.
Caso sigamos o viés analítico que afirma se tratar de acontecimentos do Primeiro
Período Intermediário, podemos interpretar três linhas como sendo de possíveis referências ao
alargamento:

45
Ibidem, p. 35.
46
Ibdem, p. 36.
47
Idem nota acima.
48
ARAÚJO, Emanuel. Escrito para a Eternidade: a literatura no Egito faraônico. Brasília: UnB, 2000, p. 175.
49
Ibidem, p. 176.
50
Idem nota acima.
51
Idem nota acima.
14

Em verdade as fórmulas mágicas foram divulgadas,


tornaram-se ineficazes porque são repetidas por todo mundo 52.
53
[...] e os segredos dos reis do Alto e do Baixo Egito são divulgados .

Não há indícios de que esses trechos referem-se ao contexto funerário, mas podem ser
analisadas neste sentido. Destarte, as duas primeiras linhas denunciam o maior uso dos
Encantamentos funerários por pessoas de fora do meio régio e uma consequente perda de
eficácia mágica. A terceira pode fazer referência aos conhecimentos religiosos dotados pelos
reis, quais sejam: nomes de deuses, elementos do reino dos mortos, dentre outros.
Jorgen Sorensen usa o conceito de acesso divino para tratar das mudanças referidas
pelo alargamento. Acesso divino refere-se à possibilidade de se obter um destino póstumo
junto aos deuses. Sua base de análise leva em consideração as representações em textos e
imagens funerárias. Sorensen aponta três modos de ocorrer o acesso divino: a) execução de
ritual em templo; b) imitação de ações mitológicas ou identificação a uma divindade; c)
conhecimento religioso54.
O rei detinha as três formas de acesso divino no Reino Antigo. Os demais mortos
recebiam ritos funerários e poderiam se dizer, nos textos de suas autobiografias, detentores de
conhecimentos religiosos, mas não podiam representar tais conhecimentos em imagens e
textos55. Sorensen defende que o ponto central do acesso divino é a representação de seus
componentes (a, b ou c) na arte ou escritos funerários. Por exemplo, eram os sacerdotes que
executavam os rituais nos templos durante o Reino χntigo. Contudo, o rei era o “senhor dos
ritos”; a execução dos cultos aos deuses era sua tarefa, outorgada aos sacerdotes como seus
representantes. Mesmo que na prática fossem estes que efetuassem os ritos, as representações
artísticas poderiam mostrar apenas o rei desempenhando tal função56.
Com os Textos dos Sarcófagos, os mortos não-reais obtiveram acesso divino de tipo b
e c. Passaram a ser comumente identificados a Osíris e outros deuses, além de demonstrarem
possuir conhecimentos acerca de deuses, seus nomes, topografia do reino dos mortos, dentre
outros57. Já o tipo a só veio a ser acessível séculos mais tarde. É em meados da XVIII
Dinastia que começam a surgir representações do morto prestando culto a uma divindade face

52
Ibidem, p. 183.
53
Ibidem, p. 184.
54
SORENSEN, Jorgen Podemann. “Divine χccess: the so-called democratization of Egyptian funerary literature as a
socio-cultural process”. In: ENGLUND, Gertie (org.). The religion of the ancient Egyptians: Cognitive structures and popular
expression. Uppsala: Acta Universitatis Upsaliensis, 1989, p. 110.
55
Ibidem, p. 113. Possivelmente, é desse tipo de conhecimento que Ipur-Ur se refere no trecho citado acima.
56
Ibidem, p. 111.
57
Ibidem, p. 114.
15

à face, sem a mediação do faraó ou de um hino votivo58 (estes recursos intermediários eram
utilizados por volta do início dessa Dinastia)59.
Maria Thereza tenta criticar o acesso divino de Sorensen a partir do componente a. Ela
lembra, e muito bem, que os sacerdotes eram os principais realizadores de cultos e ritos 60, e
ainda acrescenta que, com o enfraquecimento régio, as elites locais exerceram funções que
incluíam as execuções de rituais nos complexos templários. Porém, ela esbarra em um ponto
aqui já destacado: não é a execução real e periódica a que Sorensen se refere, mas sim sua
representação artística ou textual.
Uma interessante crítica ao alargamento da pós-morte foi feita por Mark Smith. Sua
argumentação central é a de que membros da elite já detinham acesso a textos e
Encantamentos funerários em finais do Reino Antigo61. Para tanto, é mencionada uma série de
exemplos, datados principalmente da VI Dinastia em diante62, nos quais aparecem
representações ou alusões escritas de que o morto possui conhecimento de Encantamentos ou
de questões necessárias para se obter o pós-morte. Sorensen já havia postulado que há casos
em que o morto se diz dotado de tal conhecimento, porém sem mostrá-lo representado, mas
Smith salienta a diferença entre acesso e representação63. Ele afirma que não podemos
garantir que tais textos e Encantamentos não fossem recitados nos funerais de membros da
elite cujas tumbas não mantiveram registros de tais elementos. Apesar da representação
imagética e textual ter significações cosmológicas e religiosas importantes, como se verá
posteriormente neste trabalho, sua ausência de fato não é um indício fiel de não acesso aos
textos e Encantamentos.
A conclusão de Smith é a de que, por mais que o número de indivíduos com uso de
Encantamentos funerários tenha aumentado, não houve uma abrangência maior de grupos
sociais com acesso a tais componentes da religião funerária64. Porém, há um pequeno deslize
em sua abordagem. Esta se pauta na alegação de que o alargamento do pós-morte é um
processo ocorrido durante o Primeiro Período Intermediário, porém ignora a abrangência e
diversidade cronológica que lhe é dada pela Egiptologia, algo que já foi aqui afirmado mais
de uma vez. Ademais, pode-se afirmar que, de acordo com sua argumentação e datações
utilizadas, o alargamento teve suas causas ou se iniciou ainda em finais do Reino Antigo, por
volta da V ou VI Dinastia.

58
Ibidem, p. 121.
59
Ibidem, p. 120.
60
JOÃO, Maria Thereza David. Op. cit., p. 95.
61
MARK, Smith. Op. cit., p. 2.
62
Ibidem, pp. 2-3.
63
Ibidem, p. 10.
64
Ibidem, p. 9.
16

Em geral, o enfraquecimento régio é apontado como elemento causador do


alargamento. Maria Thereza vai de encontro a esse pensamento, mas afirma que não se
enfraqueceu como ponto de referência65. Em sua Dissertação, ela analisa e mostra que o
ideário e elementos cosmológicos e argumentativos da monarquia egípcia foram usados por
chefes de “spats”66 diversos, a fim de legitimarem e glorificarem suas ações67. Apesar disso,
a noção de que o rei era humano e poderia vir a falhar alimentou um sentimento de
insegurança quanto à obtenção da imortalidade póstuma, o que por sua vez fomentou a busca
por meios que não passassem pela dependência do faraó.
Em tal ponto, a argumentação de Maria Thereza se assemelha à de Finnestad. Esta
autora afirma que o rei era a encarnação de toda a comunidade do Egito e por isso seus atos
representavam as ações de todos os egípcios na manutenção da ordem cósmica68. Desta
forma, a obtenção da imortalidade póstuma pelo faraó, sobretudo no Reino Antigo,
beneficiava a todos os egípcios69. O alargamento, segundo Finnestad, resultou de uma
insatisfação com o ritual funerário centrado no faraó70. Se tal descontentamento ritual for o
mesmo que o sentimento de insegurança atestado por Maria Thereza, então a argumentação
de Finnestad aponta implicitamente para o enfraquecimento da figura do rei descrito por
Maria Thereza.
Seja como for, é certo que as mudanças iniciadas ainda no fim do Reino Antigo
acabaram por afetar elementos da religião funerária. O Primeiro Período Intermediário
perdura até a XI ou XII Dinastia, quando Tebas suprime Heracleópolis e ascende como a nova
capital do Egito. Mentuhotep II (2060-2010 AEC), da XI Dinastia, foi quem iniciou o
processo de reunificação do Egito71, o que leva alguns a afirmaram ser ele o fundador do
Reino Médio72. Porém, como a centralização apenas se efetivou com os Amenemhat da XII
Dinastia73, alguns afirmam que o Reino Médio apenas se inicia com Amenemhat I74.

65
JOÃO, Maria Thereza David. Op. cit., p.117.
66
χs aspas foram aqui colocadas por se tratar de uma forma plural “aportuguesada” de um termo originalmente em língua
egípcia antiga.
67
JOÃO, Maria Thereza David. Op. cit., p. 59.
68
FIσσESTχD, Ragnhild ψjerre. The Pharaoh and the ‘Democratization’ of Post-mortem Life. In: Englund, Gertie (org.).
Op. cit., p. 91.
69
Ibidem, p. 91.
70
Ibidem, p. 92.
71
JOÃO, Maria Thereza David. Op. cit., p. 20.
72
Ibidem, p. 22.
73
Ibidem, p. 20.
74
DAVID, Rosalie. Op. cit., p. 201.
17

1.2 Reino Médio e Segundo Período Intermediário

A XII Dinastia iniciada por Amenemhat I atuou em prol da recentralização política do


Egito. A fim de serem evitados problemas com sucessão, adotou-se uma prática que foi
chamada de corregência: o sucessor era escolhido e começava a governar ao lado de seu
antecessor, ainda vivo75. A ideologia régia permaneceu afirmando sua origem divina, mas
David76 diz que os faraós agora davam mais ênfase às suas qualidades pessoais enquanto
regentes e à influência das ações dos deuses: “ele [o rei] fora eleito pelos deuses, agia segundo
seus comandos e creditava a eles suas vitórias”77.
Os governantes dessa Dinastia retomaram a tradição de construir complexos de
pirâmides para uso como tumbas. Erigidas na margem oeste a It-towy, a nova capital situada
ao Sul de Mênfis, essas novas pirâmides voltaram a agregar tumbas de nobres ao no seu
entorno, assim como ocorrera no Reino Antigo. Contudo, muitos dos membros das elites
foram sepultados em túmulos talhados na rocha em suas próprias localidades 78. As elites de
cada spat parecem ter exercido resistência no início da XII Dinastia, mas ações dos faraós, ao
que tudo indica, conseguiram contê-las. Não há registro da continuação de tais poderios locais
após o reinado de Senusret III (1878-1843 AEC)79.

1.2.1 Os Textos dos Sarcófagos

Os sepultamentos de cortesãos neste período continham uma série de Encantamentos e


fórmulas mágicas que remetiam aos Textos das Pirâmides. Chamados de Textos dos
Sarcófagos pelos egiptólogos tratam-se do principal resultado do processo de alargamento
aqui já tratado. O título de Textos dos Sarcófagos foi cunhado pelo fato de os Encantamentos
terem sido majoritariamente encontrados inscritos em ataúdes, mas há exemplos de inscrições
em paredes de tumbas, máscaras de múmias e papiros80.
Apesar de ser tratado como um conjunto textual, Maria Thereza sustenta que isto é
uma construção de estudiosos modernos e que os egípcios não encaravam os Encantamentos
como parte de um corpus maior81. Estes possuíam variações regionais, seja em questão de

75
Ibidem, p. 202.
76
Ibidem, p. 203-204.
77
Ibidem, p. 204.
78
Ibidem, p. 201-202.
79
Ibidem, p. 202.
80
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 194.
81
JOÃO, Maria Thereza David. Op. cit., p. 85.
18

estilo de inscrição ou dos elementos enfatizados em cada localidade82, o que por sua vez é um
resultado do contexto de descentralização e regionalização do Primeiro Período Intermediário.
Os Textos dos Sarcófagos guardam relações de organização e presença de mesmos
Encantamentos com os seus antecessores, os Textos das Pirâmides. Contudo, inserções,
alterações e desenvolvimento de novos elementos ocorreram. Talvez o principal ponto de
mudança seja que, além do pós-morte solar, os novos Textos dedicaram ênfase ao destino
póstumo ctônico, descrito agora de forma mais pormenorizada, repleto de presenças hostis e
ameaças capazes de afetarem o morto em sua jornada83 póstuma84.
A magia85 era o principal recurso utilizado a fim de salvaguardar o morto de toda sorte
de perigos. Maria Thereza argumenta que, durante a era de apogeu das pirâmides, o prestígio
material e equipamento das tumbas eram fundamentais para a aquisição do post-mortem,
enquanto a magia exercia um papel importante, porém mais reduzido86. Todavia, o contexto
de instabilidade de fins do Reino Antigo e do Primeiro Período Intermediário provavelmente
causou dificuldades na obtenção de recursos e materiais para a confecção de túmulos. A fim
de se evitar que o pós-morte fosse comprometido, deu-se maior ênfase ao papel da magia para
tal objetivo87. Desta forma, torna-se importante a existência de Encantamentos que garantam
proteções, alimentos para o morto88 e até o equipamento da tumba89. Malgrado isso, vale
destacar que o elemento material ainda mantinha sua influência; caso o morto conseguisse
uma tumba equipada e a posse dos recursos mágicos, melhor seria para que garantisse o post-
mortem90.
Uma questão importante nos Textos dos Sarcófagos era a restituição ao morto de sua
família e convívio social. Encantamentos específicos dedicavam-se a reunir o falecido com
seus pais, consorte, filhos, criados e amigos, por vezes coagindo os deuses com ameaças caso
relutassem a acatar esse desejo91. A questão de pertença à comunidade mesmo após a morte
foi fulcral durante toda a história dinástica, e provavelmente a ênfase ao convívio familiar

82
Ibidem, p. 84.
83
Uma das crenças funerárias mais corriqueiras era que o falecido, após efetuados os rituais de sepultamento, realizaria
uma jornada para chegar ao local onde gozaria da imortalidade póstuma. Assim como outros elementos, este será melhor tratado no
segundo capítulo desta Monografia.
84
JOÃO, Maria Thereza David. Op. cit., p. 158.
85
O papel da magia e sua relação com a religião também será um tema desenvolvido no segundo capítulo.
86
JOÃO, Maria Thereza David. Op. cit., pp. 142-143.
87
Ibidem, pp. 143-144.
88
Acreditava-se que o morto deveria ser alimentado constantemente para que pudesse continuar a existir. Diversos ritos e
práticas destinavam-se a sorver o falecido de comida e bebida, dentre eles a alimentação via Encantamentos.
89
JOÃO, Maria Thereza David. Op. cit., p. 147.
90
Idem nota acima.
91
Ibidem, pp. 154-155.
19

neste período seja pela importância que as famílias extensas exerceram nos “spats” em meio à
descentralização92.
Dentre os desenvolvimentos desses Textos, o mais destacável foram os chamados
“guias para o pós-morte”, um conjunto de Encantamentos e representações do reino dos
mortos subterrâneo. Forneciam informações sobre a jornada que o morto deveria realizar para
chegar ao seu novo local de existência, normalmente com mapas e informações
topográficas93. O Livro dos Dois Caminhos foi o mais importante destes “guias”94; costumava
ser pintado no chão do sarcófago e recebeu tal alcunha por mostrar dois trajetos, um terrestre
e outro aquático95.
Apesar de agora mais presentes e difundidos, os Encantamentos dos Textos dos
Sarcófagos não eram de uso universal. O custo para sua inserção nas tumbas (para não dizer
do próprio custo de se construir uma tumba) permaneceu um fator excludente importante que
sempre devemos ter em mente ao tratar de tal assunto. Porém, os novos temas e
desenvolvimentos que inauguraram foram marcantes para a religião funerária, afetando
consideravelmente os períodos posteriores.

1.2.2 Segundo Período Intermediário e Hicsos

A XIII Dinastia não conseguiu manter a estabilidade como fez sua antecessora. David,
com base em Manethon, diz que os reis dessa Dinastia foram numerosos e com reinados
curtos, além de mais fracos e menos influentes do que a realeza96. A autora levanta a hipótese
de que a XIII Dinastia coexistiu com a XIV, talvez até com outras linhagens regenciais 97, mas
afirma não parecer ter ocorrido uma ruptura política entre a XIII e a XII Dinastias98.
O enfraquecimento do poder central possivelmente facilitou a incursão e ascensão ao
poder de um povo estrangeiro que ficou conhecido como hicsos. Provavelmente originários da
região da Ásia Menor, os hicsos instalaram-se no Delta Oriental (Baixo Egito) e governaram
como a XV Dinastia a partir de uma nova capital, Avaris. Alguns pesquisadores, como
Alexandra do Vale, consideram a presença hicsa como o marco inicial do Segundo Período

92
Ibidem, pp. 157-158.
93
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 195.
94
Idem nota acima.
95
Ibidem, p. 196.
96
DAVID, Rosalie. Op. cit., p. 239.
97
Ibidem, p. 241.
98
Ibidem, p. 239.
20

intermediário99. Já para David, o próprio término da XII Dinastia marca o fim do Reino
Médio100.
A palavra hicso provém do grego hyksos, o qual por sua vez deriva do egípcio HqA
xAswt (lê-se “heqa khasut”), cujo significado é “governante das terras estrangeiras”101. Essa
expressão foi aplicada aos regentes hicsos, mas era utilizada antes como forma de designar os
líderes de comunidades beduínas que se localizavam a Nordeste do Egito 102. A memória
guardada pelos egípcios sobre os hicsos é altamente pejorativa, alegando que sua entrada foi
por meio de uma invasão brutal e seu período de governo oprimiu o povo e tradições
egípcias103. Contudo, estudos modernos apontam que os hicsos adotaram e fomentaram muito
da burocracia e costumes do Egito. Alexandra do Vale diz que os governantes hicsos
utilizaram nomenclaturas egípcias e costumavam gravar seus nomes em monumentos que
encontravam, uma prática comum aos faraós104.
A forma como os hicsos adentraram e conseguiram obter poder político no Egito é
alvo de muitos debates e controvérsias. Na Antiguidade, perdurou a visão de que se tratou de
uma invasão armada e feroz, algo, como dissemos, provavelmente fomentada pela tradição
pejorativa posterior adotada pelos egípcios105. Estudos modernos tendem a relativizar esse
entendimento, mas as teorias de como os hicsos ingressaram e ascenderam variam106. Não
obstante, atualmente há um relativo consenso de que a entrada hicsa foi um processo
migratório longo e gradual107, com a ocupação de uma região sendo facilitada pelo contexto
de queda do controle estatal.
O primeiro regente hicso foi coroado em Mênfis, mas exerceu o governo utilizando
Avaris como capital108. A XIII Dinastia foi acuada para Tebas, no Alto Egito, onde pôde
exercer poder na região em troca de pagamento de tributos aos hicsos. Da XIII Dinastia
originaram-se a XVI e a XVII, esta responsável por uma série de tentativas de reconquista do
Norte109.

99
VALE, Alexandra Pinto Antunes do. O Conto de Apepi e Sequenenra (Reino Novo, XIXª Dinastia): Uma Análise
Histórico-Literária. Dissertação de Mestrado, orientada pelo Professor Doutor Ciro Flamarion Cardoso. Niterói: Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, 2013, 134 f., p. 21.
100
DAVID, Rosalie. Op. cit., p. 239.
101
VALE, Alexandra Pinto Antunes do. Op. cit., p. 21.
102
DAVID, Rosalie. Op. cit., p. 241.
103
Idem nota acima.
104
VALE, Alexandra Pinto Antunes do. Op. cit., p. 24.
105
Ibidem, p. 22 e DAVID, Rosalie. Op. cit., p. 241.
106
Um pequeno debate pode ser visto em VALE, Alexandra Pinto Antunes do. Op. cit., p. 22-23.
107
DAVID, Rosalie. Op. cit., p. 240.
108
VALE, Alexandra Pinto Antunes do. Op. cit., p. 23.
109
Ibidem, p. 24.
21

Os hicsos foram expulsos após uma série de campanhas militares levadas a cabo pela
XIII Dinastia, porém apenas se concluiu com Ahmés, fundador da XVIII Dinastia110. A
presença hicsa deixou dois legados importantes para o Egito: primeiro, um maior arcabouço
de tecnologias, conhecimentos e experiências bélicas; segundo, uma maior preocupação e
interesse por terras estrangeiras. Ambos os elementos fomentaram diversas empreitadas
militares e conquistas territoriais no subsequente período chamado de Reino Novo111.

1.3 Reino Novo e o Livro dos Mortos

Reino Novo é o nome dado ao período que vai do século XVI ao XI AEC, abarcando
as Dinastias XVIII, XIX e XX112. Foi uma época em que o Egito lançou-se militarmente aos
territórios a Sul e a Nordeste, avançando e logo cedo ocupando uma área que vai do Norte da
Núbia113 até o Norte do Eufrates114 na Mesopotâmia115. Isso fez com que os egípcios
entrassem em contato com outros impérios de então, com relações variando entre confronto
militar e paz mediante acordos. Ademais, tais expansões não apenas aumentaram as riquezas
do Egito graças aos saques e prisioneiros de guerra116, como também gerou um maior influxo
de pessoas vindas de outros lugares e que traziam consigo suas próprias crenças e deuses,
alguns destes sendo assimilados a divindades nativas e recebendo culto dentre egípcios117.
Tebas serviu como capital durante quase todo o período. Durante a XVIII Dinastia foi
centro religioso, político, local principal de residência real e também onde se encontrava a
necrópole dos reis118. Já na XIX Dinastia, seu papel de centro administrativo foi substituído
por Mênfis119. A região a Oeste de Tebas, na margem ocidental do Nilo, foi o local de
sepultamento de quase todos os regentes do Reino Novo e é atualmente chamado de Vale dos
Reis120. Relacionado a este há uma localidade próxima que guarda enterramentos de rainhas e
princesas das Dinastias XIX e XX e que foi alcunhada de Vale das Rainhas121. Ademais, os
trabalhadores alocados para a construção das tumbas reais formaram uma aldeia próxima que
presentemente é chamada de Deir el-Medina. Ambos os Vales e a aldeia são locais de

110
Ibidem, p. 27.
111
Idem nota acima e DAVID, Rosalie. Op. cit., pp. 243-244.
112
Apesar de variações quanto às datações específicas, há certo consenso acerca dessa cronologia apontada.
113
Isto é, a região localizada ao Sul do Egito e que corresponde ao atual Sudão.
114
Aproximadamente a região dos atuais Síria e Iraque.
115
DAVID, Rosalie. Op. cit., p. 244.
116
Ibidem, p. 245.
117
Ibidem, pp. 362-363.
118
Ibidem¸ p. 249.
119
Ibidem, p. 330.
120
Ibidem, p. 271.
121
Ibidem, p. 277.
22

importantes estudos sobre o Reino Novo, com destaque especial à aldeia de trabalhadores que
contém tumbas e sepultamentos construídos pelos próprios habitantes.

1.3.1 O Livro dos Mortos, ou “Livro para sair à luz do dia”

O estudo da religião funerária egípcia no Reino Novo possui a vantagem de contar


com os três locais de sepultamentos citados acima (apesar de que, na prática, Deir el-Medina
tenha sido uma vila e não uma necrópole). É-nos possível ter acesso a um conjunto grande de
fontes e informações provenientes das tumbas122, observando como tais materiais sofreram
interrupções, alterações e inovações em relação aos períodos anteriores. Destas, a mais
destacável é um novo conjunto de Encantamentos funerários que recebeu o nome de Livro dos
Mortos. Trata-se de um “herdeiro” dos textos das Pirâmides e dos Textos dos Sarcófagos,
mas, da mesma forma que ocorreu na passagem do primeiro para o segundo corpus, o Livro
dos Mortos apresentou continuidades e desenvolvimentos quanto aos seus anteriores.
Inicialmente, o Livro dos Mortos era registrado em caixões ou em mortalhas de linho
das múmias. O formato em papiro surgiu por volta da metade do século XV AEC123, em
meados da XVIII Dinastia, e se tornou usual desde então. Os papiros do Livro possuíam uma
variação de tamanho considerável124 e poderiam ser depositados em diversos locais, como
nichos da parede da tumba, sobre o ataúde, em estatuetas com forma de divindades ou até
enrolados nas bandagens da múmia125. Seus componentes eram tanto Encantamentos quanto
as chamadas vinhetas, as quais consistem em ilustrações que tanto poderiam estar
relacionadas a um Encantamento quanto poderiam ser sua própria forma de registro (em
outras palavras, um Encantamento poderia ser grafado em imagem ao invés de texto126). O
número de Encantamentos e de vinhetas era baixo ao início e cresceram com o passar do
tempo, porém as vinhetas tiveram crescimento maior127. Ademais, enquanto as vinhetas
possuíam uma grande profusão de cores, os textos dos Encantamentos eram inscritos em
preto, com uso do vermelho para seus títulos ou para enfatizar algum trecho que fosse
importante (em ocasiões raras o amarelo aparece como substituto do vermelho).128

122
Mesmo que a única tumba encontrada relativamente intacta seja a de Tutancâmon, de finais da XVIII Dinastia. Ibidem,
p. 274.
123
ANDREWS, Carol A. R. Introduction. In: FAULKNER, Raymond O. The Ancient Egyptian Book of the Dead.
London: The British Museum Press, 2010, p. 11.
124
Ibidem, p. 15.
125
Ibidem, p. 16 e DAVID, Rosalie. Op. cit., p. 344.
126
ANDREWS, Carol A. R. Introduction. In: FAULKNER, Raymond O. Op. cit., p. 12.
127
Idem nota acima.
128
Ibidem, p. 15.
23

Tanto o nome de Livro dos Mortos quanto a enumeração dos Encantamentos são
devidos ao trabalho do egiptólogo alemão Karl Lepsius em meados do século XIX EC129.
Originalmente, a contabilização era de 165 Encantamentos, mas acréscimos posteriores
fizeram com que o número ficasse em torno de 200. Contudo, nenhum exemplar encontrado
possui essa quantidade130. O Livro costumava ser feito sob encomenda para uma pessoa, a
qual possivelmente escolhia os Encantamentos que lhe interessassem ou que lhe fossem
desejados. Quem não pudesse arcar com o custo disso poderia adquirir uma cópia pré-pronta
do Livro, o qual teria espaços em branco para a colocação do nome do dono131. Inexistia uma
ordenação pré-definida dos Encantamentos durante o Reino Novo. Os conjuntos deste período
fazem parte do que os pesquisadores chamam de recensão tebana e ocasionalmente
apresentam erros como repetições ou enganos na escrita dos textos132. Apenas na passagem da
XXV para a XXVI Dinastia uma sequência dos Encantamentos foi estabelecida, começando
pelo sepultamento do morto e culminando em sua transformação numa nova forma de
existência133. A esse novo conjunto ordenado deu-se o nome de recensão saíta.
Apesar da ausência de um ordenamento pré-estabelecido na recensão tebana, Ciro
Flamarion alega que os antigos egípcios viam-na como um conjunto possuidor de sentido. Isto
pode ser constatado, de acordo com sua argumentação, pela existência de um título
(originalmente esporádico, mas que se tornou padrão a quando da XIX Dinastia) que, ao ser
traduzido, fica algo como “Livro para sair à luz do dia”134. Este título liga-se ao ponto central
do Livro, qual seja possibilitar que o morto obtenha acesso às forças regeneradoras do sol e
retorne à sua tumba ao anoitecer. Como o deus solar passava pelo reino dos mortos135 ao
anoitecer e durante a noite, o morto estaria garantido de acesso constante ao sol136.
A existência das vinhetas configura-se em uma das novidades do Livro dos Mortos
frente aos Textos anteriores137. Outras alterações são passíveis de serem citadas, como a
substituição do desejo de reencontro com família, criados e amigos (ponto, como vimos,
importante nos Textos dos Sarcófagos) por um reencontro apenas com pai e mãe138. Porém, o

129
CARDOSO, Ciro F. S. Tempo e espaço no antigo Egito: sua fundamentação mítica sob o Reino Novo. In: CARDOSO,
Ciro F. S. & OLIVEIRA, Haydée (orgs.). Tempo e espaço no Antigo Egito. Niterói, PPGHistória – UFF, 2011, p. 80.
130
ANDREWS, Carol A. R. Introduction. In: FAULKNER, Raymond O. Op. cit., p. 11.
131
Idem nota acima.
132
Ibidem, p. 14 e CARDOSO, Ciro F. S. Tempo e espaço no antigo Egito: sua fundamentação mítica sob o Reino Novo.
In: CARDOSO, Ciro F. S. & OLIVEIRA, Haydée (orgs.). Op. cit., p. 79.
133
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 198.
134
CARDOSO, Ciro F. S. Tempo e espaço no antigo Egito: sua fundamentação mítica sob o Reino Novo. In: CARDOSO,
Ciro F. S. & OLIVEIRA, Haydée (orgs.). Op. cit., p. 80.
135
O chamado ciclo solar será mais um tema explicado adiante.
136
CARDOSO, Ciro F. S. Tempo e espaço no antigo Egito: sua fundamentação mítica sob o Reino Novo. In: CARDOSO,
Ciro F. S. & OLIVEIRA, Haydée (orgs.). Op. cit., p. 80.
137
ANDREWS, Carol A. R. Introduction. In: FAULKNER, Raymond O. Op. cit., p. 12.
138
CARDOSO, Ciro F. S. Tempo e espaço no antigo Egito: sua fundamentação mítica sob o Reino Novo. In: CARDOSO,
Ciro F. S. & OLIVEIRA, Haydée (orgs.). Op. cit., pp. 84-85.
24

desenvolvimento mais digno de nota talvez seja a existência de um tribunal para acesso ao
reino dos mortos. Presidido pelo deus Osíris, o intuito do tribunal era julgar as ações
efetuadas pelo morto durante seu período de vida. Um conjunto de Encantamentos objetivava
auxiliá-lo neste momento crucial, em especial o de número 125, no qual o falecido negava
diversas acusações a uma série de juízes. O julgamento era ocasionalmente representado em
vinhetas e, como tal cena imagética se trata do ponto central deste trabalho, os elementos de
tal tribunal serão devidamente trabalhados mais adiante.
O uso do Livro dos Mortos perdurou para além do Reino Novo. A saber, o exemplar
mais recentemente encontrado data de 63 EC139. O Livro tornou-se um elemento comum do
enxoval funerário, algo que, graças à sua importância atribuída a questões que classificamos
como éticas140 fez com que muitos o adjetivassem de “ψíblia do Egito χntigo”. Isto foi
bastante fomentado por estudiosos que tentavam apontar elementos protocristãos e/ou
monoteístas no Egito Antigo141, um intento que atualmente não encontra mais terreno fértil
nos estudos egiptológicos142. Ademais, sua presença constante por mais de mil anos garantiu
que o Livro dos Mortos se tornasse popular tanto entre pesquisadores quanto entre um público
maior mais ligado a questões de magia.

1.4 Terceiro Período Intermediário e Época Tardia

Desde o início da XVIII Dinastia, os reis do Reino Novo em sua maioria incentivaram
o culto a Amon. Este deus vinha se tornando importante na região de Tebas desde cerca da XI
Dinastia143, mas, no Reino Novo, ele foi fundido ao deus solar e ascendeu ao posto de regente
cósmico, recebendo o título de “Rei dos Deuses”144. Há pesquisadores que afirmam que tais
elementos foram desenvolvidos já com os Amenemhat do Reino Médio145, mas o que nos
interessa aqui é constatar que o clero de Amon cresceu no Reino Novo ao ponto de muitas
vezes causar problemas aos faraós.
Durante o Reinado de Ramsés XI (1099-1069 AEC), o último regente da XX Dinastia
(consequentemente, do Reino Novo), os poderes e a influência do sumo sacerdote de Amon

139
Ibidem, p. 79.
140
Apesar do elemento moral e ético, deve-se ter em mente que a magia é central no Livro dos Mortos.
141
CARDOSO, Ciro F. S. Tempo e espaço no antigo Egito: sua fundamentação mítica sob o Reino Novo. In: CARDOSO,
Ciro F. S. & OLIVEIRA, Haydée (orgs.). Op. cit., p. 81.
142
Para uma discussão completa sobre as tentativas de se apontar um monoteísmo egípcio, ver o capítulo “Historical
Introduction” da obra HτRσUσG, Erik. Op. Cit.. A fim de fazer jus à toda gama de pesquisas sobre o Egito, devemos lembrar que
um debate do tipo se concentra atualmente no caso da Reforma de Amarna.
143
WILKINSON, Richard H. The Complete Gods and Goddesses of Ancient Egypt. New York: Thames & Hudson,
2003, p. 92.
144
DAVID, Rosalie. Op. cit., p. 246.
145
Ver: CASTEL, Elisa. Gran Diccionario de Mitologia Egipcia. Madrid: Aldebarán, 2001, p. 16.
25

em Tebas cresceram a tal ponto que esse cargo se tornou hereditário 146. A latente polarização
entre Norte e Sul se tornou verídica com as ações de Ramsés XI: O Sul (Tebas) ficou a
encargo de Herihor, um sumo sacerdote com funções militares, enquanto o Norte (na nova
capital, Tânis) ficou sob a tutela de Smendes, futuro fundador da XXI Dinastia. Este foi o
cenário político de inícios do Terceiro Período Intermediário147, o qual tem início com a morte
de Ramsés XI.
Em geral, considera-se que o Terceiro Período Intermediário vai do século XI ao
século VII AEC. Nessa época, o Egito viu pela primeira vez o surgimento de Dinastias
estrangeiras. As Dinastias XXII e XXIII são de origem líbia. Os assim chamados líbios eram
um dos povos localizados no deserto a Oeste do Egito148. Fixaram-se na região do Delta
Oriental no reinado de Ramsés III (século XII AEC, XIX Dinastia) em troca de atuação
militar em prol do Egito149. Não obstante sua origem externa, fontes textuais do Terceiro
Período Intermediário não apresentam os líbios como estrangeiros150.
Outra Dinastia de procedência estrangeira é a XXV, conhecida como Dinastia Núbia.
Os núbios eram o povo localizado ao Sul do Egito, no local que hoje corresponde ao Sudão, e
eram chamados de nehesi pelos egípcios151. As relações entre egípcios e núbios se
prolongaram desde antes do Reino Antigo, porém foram marcadas por imposições e tentativas
de controle por parte dos egípcios, os quais tinham interesse nos recursos animais, minerais e
de mão-de-obra da Núbia152. A dominação e o governo núbios, iniciados em finais do século
VIII AEC153, foram uma inversão de tal quadro que poderíamos chamar de uma ironia
histórica.
A XXV Dinastia caiu poucas décadas após graças às ações de um império oriundo da
Mesopotâmia: a Assíria. O império assírio marchou sobre o Egito e expulsou os núbios, os
quais ainda tentaram duas tentativas malogradas de retomar o poder154. O Egito manteve-se
como parte do império assírio até que o enfraquecimento deste possibilitou que um de seus
vassalos, que controlava parte significativa do Delta, ascendesse e reunificasse o Egito.

146
DAVID, Rosalie. Op. cit., pp. 383-384.
147
Ibidem, p. 384.
148
ZAYED, Abd el Hamid & Devisse, Jean (col.). Relações do Egito com o resto da África. In: MOKHTAR, Gamal (ed.).
História Geral da África II: África Antiga. Brasília: Unesco, 2010, p. 101.
149
Ibidem, p. 102.
150
TAYLOR, John H. The Third Intermediate Period. Apud: SANTOS, Moacir Elias. Da Morte à Eternidade: A
Religião Funerária no Egito do Primeiro Milênio A.C.. Dissertação de Mestrado, orientada pelo Professor Doutor Ciro Flamarion
Cardoso. Niterói: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, 2002, 266 f., p. 15.
151
ZAYED, Abd el Hamid & Devisse, Jean (col.). Relações do Egito com o resto da África. In: MOKHTAR, Gamal (ed.).
Op. cit., p. 105.
152
Idem nota acima.
153
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2002, p. 18.
154
Ibidem, p. 19.
26

Assim, por volta de meados do século VII AEC, um indivíduo chamado Psametek toma o
poder e funda a XXVI Dinastia, dando início ao período que chamamos de Época Tardia155.
A chamada Época Tardia abarca do século VIII ou VII até o ano de 332 AEC. Assim
como ocorreu no Terceiro Período Intermediário, o Egito da Época Tardia sofreu invasões e
teve Dinastias estrangeiras, porém apenas de uma origem: persa. A XXVI é de procedência
nativa. Durante sua vigência, o âmbito cultural egípcio foi marcado por um interesse em
hábitos, vestimentas e estilos artísticos de períodos anteriores156. Já no setor econômico, o
Egito tornou-se próspero graças a um desenvolvimento da agricultura que possibilitou a
existência de excedentes agrícolas comercializáveis com outros povos, principalmente
gregos157.
A XXVI Dinastia é derrubada em 525 pelo avançar dos persas, império oriundo de
além da Mesopotâmia158. A Dinastia seguinte teve oito governantes de ascendência persa, os
quais, ao que indicam as fontes, se identificaram como faraós e intensificaram cultos a deuses
egípcios159, algo que os tornou mais aceitáveis aos egípcios160. Todavia, o regime persa foi
opressivo em certo sentido e ocorreram tentativas de retomada do trono por parte de
egípcios161.
O domínio persa cessa nos últimos anos do século V AEC com a ascensão da XXVIII
Dinastia. Esta foi efêmera; seu único governante, Armytaios, foi deposto em 399 por meio de
uma usurpação do trono, menos de cinco anos após sua obtenção do poder. A Dinastia XXIX
por sua vez foi uma rápida sucessão de breves reinados, sendo logo substituída pela Dinastia
XXX162. Esta governou por um período curto, mas foi marcante pelas muitas obras realizadas
em cidades como Karnak em Hermópolis, principalmente nos templos, em virtude da
tentativa de reforçar a ideia de que os desejos divinos eram orientadores das ações políticas163.
Contudo, sua época de vigência sofreu com a constante ameaça do retorno persa, o que se
efetivou em uma nova dominação iniciada em 341 AEC. Os persas mantiveram-se
novamente no Egito até 332 AEC164, ano da chegada e conquista de Alexandre da Macedônia
e de início do assim chamado Período Ptolomaico165.

155
Ibidem, p. 20.
156
DAVID, Rosalie. Op. cit., p. 403-404. Para esta autora, o interesse em elementos tradicionais egípcios é fruto do
constante influxo de estrangeiros, mesmo que estes tenham sido importantes para o estabelecimento e manutenção da Dinastia.
157
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2002, p. 22.
158
DAVID, Rosalie. Op. cit., p. 403.
159
Ibidem, p. 404.
160
Ibidem, p. 409.
161
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2002, p. 23.
162
Idem nota acima.
163
Ibidem, pp. 23-24.
164
Alguns pesquisadores consideram que esse período de segunda dominação persa consiste em uma XXXI Dinastia.
165
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2002., p. 24.
27

1.4.1 A Magia e a Religião Funerária no I Milênio: breve apanhado

Juntos, o Terceiro Período Intermediário e a Época Tardia abrangem cerca de 700


anos, o que equivale a uma parcela considerável do I milênio AEC166. Como foi mostrado,
ambos tiveram sucessivos momentos de crise interna e pressão/ocupação externa, algo que
por sua vez dificulta a obtenção de fontes para a reconstituição histórica dos períodos167.
Um ponto destacável do momento de passagem do Reino Novo ao Terceiro Período
Intermediário é o contexto de numerosos saques a tumbas e templos, visto se tratarem de
locais em que se poderiam obter alimentos e bens para comércio num momento de novas
dificuldades para o Egito168. Tratou-se de uma prática condenável pelos danos materiais e
“espirituais” causados ao morto, o que fez com que o alto sacerdócio tebano de χmon
incentivasse que múmias furtadas fossem resgatadas e recebessem novo sepultamento a fim
de evitar que tais falecidos tivessem problemas no pós-morte169. Não obstante, a instabilidade
econômica de finais da XX Dinastia e do Terceiro Período Intermediário tornou comum a
prática da reutilização de tumbas170, sarcófagos e itens de enxovais funerários de outros
períodos. Os saques em prol da obtenção de recursos para novos sepultamentos chegaram a
ser incentivados por autoridades do momento171.
Isso não significa que a religião funerária enfrentou um colapso no I milênio. Os ritos
fúnebres eram realizados de forma reduzida, mas eram os mesmos de antes172. As tumbas e
seus conteúdos podem ter diminuído em número e proporção, mas não deixaram de existir
nem tampouco de apresentar desenvolvimentos. Exemplos disso são tumbas dotadas de
dispositivos que as enchessem de areia caso fossem invadidas173 e as estatuetas mumiformes
ou deiformes que continham cavidades para a inserção de pergaminhos funerários, como o
Livro dos Mortos.
No tocante à magia e aos Encantamentos funerários, os Textos das Pirâmides e dos
Sarcófagos foram reutilizados na Época Tardia174 em função dos esforços de revitalização de
tradições. Quanto ao Livro dos Mortos, já mencionamos que sua utilização perdurou para
além do Reino Novo. Sua maior inovação no período foi a já dita ordenação da recensão

166
Mesmo que o início do Terceiro Período Intermediário seja apontado para o último século do II milênio AEC.
167
DAVID, Rosalie. Op. cit., p. 405.
168
Ibidem, p. 381.
169
Ibidem, pp. 388-389.
170
Muitas vezes para enterros coletivos.
171
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 182.
172
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2002, p. 24.
173
Idem nota acima.
174
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 199.
28

saíta, a qual recebe este nome por ter sido Sais a cidade de origem e a capital da XXVI
Dinastia. O Livro dos Mortos começou a ser gradativamente substituído por outras literaturas
funerárias do século IV AEC em diante175, mas não se extinguiu até o Período Romano.

175
Idem nota acima.
29

Capítulo 2: O Mundo, a Magia, a Morte

No primeiro capítulo deste trabalho, nos dedicamos a apresentar uma trajetória do


desenvolvimento dos Encantamentos funerários em paralelo a uma breve exposição da
história do Egito Antigo em diversos períodos. Deixamos, contudo, de abordar diversos
pontos cruciais, tais como o pensamento egípcio sobre a morte, as principais divindades que a
ela se relacionam e até a função da magia e dos tão exaustivamente apontados Encantamentos.
O trato desses e de outros pontos é melhor realizável caso o leitor se encontre
familiarizado a questões contextuais e de organização cronológica do Egito Dinástico. Uma
vez que já fornecemos tais ferramentas no capítulo anterior, passaremos a falar sobre a
religião funerária propriamente dita, tratando dos elementos que mais são pertinentes ao
presente estudo176.
Não obstante, de nada adianta tratar das concepções egípcias acerca dos mortos e da
morte sem ter conhecimento de seu pensamento sobre o mundo e de como as ações humanas o
afetavam. Doravante, antes de adentrarmos ao debate sobre a religião funerária egípcia,
abordaremos sua cosmologia, isto é, a maneira (ou maneiras) com que os antigos egípcios
viam, concebiam e entendiam o mundo. E, possivelmente, a melhor maneira de se explicar a
visão de mundo é começar pelo surgimento do próprio cosmos177.

2.1 Cosmogonia(s) e Cosmologia

Os mitos que se dedicam a abordar o surgimento do mundo são chamados de


cosmogônicos. É importante lembrar que o mundo não possui o sentido que atualmente lhe
atribuímos e que talvez seja melhor expresso pela figura do mapa mundi. O mundo
apresentado pelos mitos possui um começo conhecido que em geral envolve as ações de
forças ou entidades sobre-humanas. Ele pode conter os lugares dos vivos e dos mortos, dos
humanos e dos deuses, centra-se na comunidade que acredita no mito ou também envolve o
surgimento dos pontos ao entorno, sejam eles aliados ou inimigos. Mircea Eliade, tanto em
sua obra O Sagrado e o Profano quanto em Mito e Realidade, mostra as várias funções que os
mitos cosmogônicos podem possuir, como a edificação de uma casa ou a cura de uma doença.

176
Digo isso, pois há pontos da religião funerária egípcia que, por mais que sejam importantes, não são portadores de
acréscimos significativos para a análise dessa Monografia. Exemplos disso são os desenvolvimentos da arquitetura das tumbas
(variável em cada local e época) e das práticas de mumificação.
177
Vale ressaltar que utilizaremos as palavras mundo e cosmos como sinônimos conceituais e que as alternaremos
regularmente.
30

Entretanto, mais do que isso, Eliade atribui centralidade aos mitos cosmogônicos em relação
aos demais relatos que tratam de origens (um hábito, uma espécie animal, a morte, toda a
humanidade, etc.), visto que fornece a base do mundo em que a posterior origem de algo virá
a ocorrer178.
No caso do Egito Faraônico, temos acesso a mais de uma narrativa sobre a origem do
cosmos. Os principais mitos cosmogônicos que chegaram até nós são atribuídos às cidades de
Heliópolis, Hermópolis e Mênfis, cada qual aplicando ênfase a certa(s) divindade(s) ou
entidade(s) e descrevendo a criação do mundo de diferentes maneiras. Contudo, mesmo essas
tradições mitológicas possuem mais de uma versão sobre a cosmogonia, o que é um resultado
das diferentes fontes que dispomos para reconstituição de cada mito (exceto, como se verá, no
caso da versão menfita). Tal gama mitológica é facilmente categorizada como contraditória ou
contrastante por uma lógica Ocidental moderna, mas egiptólogos vêm enfatizando que isso
não se tratava de um problema no pensamento egípcio antigo. Segundo podemos compreender
a partir do material que possuímos, os antigos egípcios compreendiam que duas ou mais
explicações sobre um tema ou assunto não eram excludentes, mas sim complementares e
verídicas179. Assim, não é relevante nem frutífero tentar descobrir qual mito cosmogônico é o
efetivamente “verdadeiro”, mas sim tentar compreender as especificidades e importância(s) de
cada um deles.

2.1.1 Cosmogonia de Heliópolis

No mito atribuído a Heliópolis, cidade situada no Delta do Nilo, a ênfase é dada ao


deus-solar Atum, o qual é integrado na mitologia solar como a forma que Rá assume ao
entardecer180. Nosso principal recurso para estudo da cosmogonia heliopolitana são os Textos
das Pirâmides, os quais, em conjunto com textos posteriores, possibilitam a reconstrução de
variantes do mito. Apesar disso, o foco em Atum é uma espécie de elemento geral181.
Atum de forma espontânea do oceano de Caos original que precedia à criação. Ele
expele o primeiro casal divino de seu corpo: Shu, o ar, e sua irmã e consorte Tefnut, a

178
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 2011, pp. 25-26.
179
HORNUNG, Erik. Op. cit., pp. 240-241 e FINNESTAD, Ragnhild Bjerre. Egyptian Thought About Life as a Problem
of Translation. In: ENGLUND, Gertie (org.). Op. cit., pp. 29-30.
180
No ciclo diário do sol, o deus-solar assumia três formas distintas ao longo do dia: ele era Khepri ao amanhecer, Rá ao
meio dia e Atum ao cair da tarde.
181
LESKO, Leonard H. Cosmogonias e Cosmologias do Egito Antigo. In: SHAFER, Byron E. (org.). As religiões no
Egito Antigo: deuses, mitos e rituais domésticos. São Paulo: Nova Alexandria, 2002, p. 113.
31

umidade do ar182. Da união de Shu e Tefnut resulta mais um casal, Geb (divindade masculina
que representava a terra) e Nut (divindade feminina que representava o céu), os quais, por sua
vez, produzem mais dois casais de deuses: Osíris e Ísis, Seth e Néftis. Todos esses deuses
juntos formam a Enéade Heliopolitana ou Grande Enéade183, a qual possui importância
religiosa marcante e desdobra-se em vários outros episódios mitológicos. Uma importante
variante do mito descreve que Atum assumiu a forma de uma garça que pousou em um monte
rochoso e soltou um grito. Seu berro fazia parte do processo da criação e marcou “o que
deveria e o que não deveria ser.”184 Esse monte rochoso era chamado de pedra Benben e tinha
seu cume em formato de pirâmide. Uma réplica que se creditava ser a Benben original ficava
no templo de Heliópolis, enquanto sua forma influenciou a construção de diversas estruturas
piramidais185 do Reino Antigo à Época Tardia. Já a garça em que Atum se transformou era
chamada de Bennu, a qual se considerava também ter aspectos regenerativos que o levaram a
ser inserido na religião funerária186.

2.1.2 Cosmogonia de Hermópolis

Hermópolis era uma cidade localizada ao Sul de Heliópolis e que ficou marcada por
ser o centro de culto do deus Thot187. O mito da criação deste local contava a presença da
Ogdoade188, um agrupamento de oito deuses que existiam antes da criação e representam
aspectos da inexistência original. Assim, temos: “Amon e Amaunet eram o ocultamento, Huh
e Hauhet eram a ausência de forma, Kuk e Kauket eram a escuridão e Nun e Naunet eram as
águas abissais.”189. Tratavam-se de quatro casais divinos, os machos com cabeça de rã e as
fêmeas com cabeça de serpente.
A forma como a Ogdoade deu início à criação varia de acordo com os textos e as
fontes trabalhadas. O trecho a seguir de Rosalie David mostra algumas possibilidades:

182
O surgimento de Shu e Tefnut varia. Há textos que falam que Atum cuspiu Shu e vomitou Tefnut, enquanto outros
descrevem que Atum realizou um ato de masturbação, engoliu seu sêmen e cuspiu o casal. Ver: DAVID, Rosalie. Op. cit., p. 123.
183
Em egípcio, pesdjet. Como o número três simbolizava pluralidade, o nove era a pluralidade da pluralidade, o que
levava o termo pesdjet a ser aplicado a agrupamentos divinos considerados numerosos que não exatamente continham nove
membros. Ver: WILKINSON, Richard H. Op. cit., pp. 78-79 e HART, George. The Routledge Dictionary of Egyptian Gods and
Goddesses. London/New York: Routledge, 2005, p. 53.
184
DAVID, Rosalie. Op. cit., p. 122.
185
Idem nota acima e SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2012, p. 334.
186
Esse ponto será explicado adiante neste capítulo.
187
Conhecido como Djehuty em egípcio, era o deus encarregado da escrita, letramento, medições e conhecimento em
geral. Normalmente representado em estilo antropozoomórfico, um humano com cabeça de um pássaro chamado íbis.
188
Como no caso da Enéade, o número da Ogdoade também possuía seu simbolismo. Quatro representava totalidade no
Egito Antigo, doravante oito era uma totalidade duplicada e intensificada. Assim, o conjunto de oito divindades era ainda mais
importante que seus membros, os quais poderiam variar. Ver: WILKINSON, Richard H. Op. cit., p. 77.
189
LESKτ, Leonard H. “Cosmogonias e Cosmologias do Egito χntigo”. In: SHAFER, Byron E. (org.). Op. cit., p. 116.
32

[...] a vida emergia de um Ovo Cósmico que fora lançado na Ilha da


Criação por uma gansa chamada “Grande Tagarela” ou por um íbis que representava
Thoth, o chefe dos deuses de Hermópolis; e ainda em outro relato, a Ogdóada criou
um lótus que surgiu no lago Sagrado no templo em Hermópolis e abriu suas pétalas
para revelar Rá (sob a forma de uma criança ou de um besouro-escaravelho que se
transformou em um menino), que deu seguimento à criação do mundo e da
190
humanidade.

Outra variante conta que o referido Ovo Cósmico surgiu da Ogdoade e dele saiu o
demiurgo criador191. É interessante notar que versões do mito produzidas provavelmente em
Hermópolis colocavam Thot ou a própria Ogdoade efetuando a criação, enquanto que os
textos provenientes da região de Hermópolis costumam atribuir o papel de criador ao deus
solar192. Podemos observar que, dessa forma, não havia diferença significativa entre a versão
da Ogdoade e a da Enéade, uma vez que o deus solar continua surgindo do estado original de
Caos e inexistência (cujos aspectos são representados pelos casais da Ogdoade) e dá
prosseguimento à criação.

2.1.3 Cosmogonia de Mênfis

Também localizada no Baixo Egito, a cidade de Mênfis serviu como capital durante
todo o Reino Antigo. Contudo, a chamada cosmogonia menfita chegou a nós apenas em uma
inscrição em pedra datada de 710 AEC, portanto finais do Terceiro Período Intermediário.
Conhecida como Pedra de Shabaka (primeiro regente núbio, XXV Dinastia), foi
confeccionada a mando deste faraó pelo fato de seu original ter sido comido por vermes193. A
Pedra fora colocada no templo do deus Ptah em Mênfis, mas seu uso posterior como suporte
para uma coluna ou uma mó causou danificações ao texto194. Tradicionalmente, os estudos
feitos, com base na grafia do texto, afirmavam que o tal original devorado por vermes
possivelmente era datado do Reino Antigo. Já análises efetuadas de meados da década de
1970 até nossos dias apontam que o original provavelmente foi produzido por volta de 1250
AEC, no reinado de Ramsés II (Reino Novo, XIX Dinastia)195.
A versão cosmogônica presente na Pedra de Shabaka é por vezes chamada de Teologia
Menfita pelos egiptólogos. O papel central aqui é desempenhado por Ptah, deus cultuado em
Mênfis desde o Reino Antigo e que era considerado uma espécie de patrono de artesãos e

190
DAVID, Rosalie. Op. cit., p. 127.
191
LESKτ, Leonard H. “Cosmogonias e Cosmologias do Egito χntigo”. In: SHAFER, Byron E. (org.). Op. cit., p. 116.
192
Idem nota acima.
193
DAVID, Rosalie. Op. cit., p. 124.
194
ARAÚJO, Luís Manuel de. Op.cit., p. 21. Atualmente a Pedra de Shabaka se encontra no Museu Britânico.
195
DAVID, Rosalie. Op. cit., p. 124.
33

construtores. A ação criadora de Ptah não envolveu sua própria substância como nas versões
de Heliópolis e Hermópolis, mas sim seu pensamento e sua fala, razão que leva este mito a ser
considerado mais “abstrato” que os demais. Ptah surge das águas do Caos como Ptah-Tatenen,
expressão que significa “a terra que se levanta”196, e usou seu coração197 e sua língua para
criar até os demais deuses:

“[...]
Ptah-Nun, o pai que criou Atum,
Ptah-Naunet, a mãe que gerou Atum,
Ptah, o Grande, é o coração e a língua da Enéade [...]
A sua Enéade está diante dele como os dentes e os lábios de Atum, como o
sémen e as mãos de Atum. A Enéade de Atum formou-se a partir de seu sémen e dos
seus dedos. A Enéade é verdadeiramente os lábios da boca que proclamou o nome
de todas as coisas. Dela saíram Chu e Tefnut, [assim] nasceu a Enéade.
[...]
[...] A língua repete o conhecimento do coração. Ele gerou todos os deuses,
e completou a sua Enéade. Na verdade, toda a palavra divina nasce a partir do
conhecimento do coração e do comando da língua.
[...]
Ele é Ptah-Tatenen, o que gerou os deuses. Todas as coisas saíram dele, as
198
provisões, os alimentos para as oferendas divinas e todas as coisas boas.”

Os trechos apontam claramente a submissão da Enéade a Ptah, atribuindo a este a


razão dos nove de Heliópolis terem surgido. Mas também identifica Ptah com Nun e Naunet,
o casal da Ogdoade que representa as águas do Caos primordial. Assim, as cosmogonias de
Hermópolis e Heliópolis são ligadas e conjugadas em um único texto que as coloca sob a
égide de Ptah.

2.1.4 Cosmologia, Dualidade e Monismo

Como se viu, as três versões cosmogônicas apresentadas por vezes usam recursos
narrativos para aludirem e apontarem complementaridades entre si. Mas em todas elas há a
presença de uma característica comum que norteia o pensamento cosmológico egípcio: o
surgimento a partir do Caos.
Independentemente do mito em questão, é posto que havia um oceano de Caos a que
chamavam de Nun. Deste oceano surge, pelo motivo que seja, um deus que será responsável
por dar início à criação, fazendo com que passem a existir outros deuses, terra, astros celestes,

196
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2012, pp. 336-337.
197
Como se verá adiante, considerava-se que era no coração que se produziam os pensamentos.
198
ARAÚJO, Luís Manuel de. Op. cit., pp. 25-26.
34

seres vivos, etc. A criação dá origem ao mundo ordenado, e o mundo ordenado é a própria
terra do Egito.
Acontece que esse mundo ordenado que veio a existir graças à criação é o mundo, o
cosmos por excelência. É nele que se encontram humanos, animais, deuses, mortos e demais
seres da existência. Trato aqui de uma concepção teórica desenvolvida pelas escandinavas
Gertie Englund e Ragnhild Finnestad199, alcunhada de monismo. A existência é uma, e apesar
de conter espécies de subdivisões e regiões internas, estas não se configuram em planos
existenciais à parte, como vemos na ontologia cristã com a divisão entre plano corporal e
plano espiritual. Também não há a formulação de ideias antagônicas do tipo material x
imaterial ou, ponto que será essencial quando discorrermos sobre a religião funerária, corpo x
alma200. Ademais, há a centralidade na noção de vida, manifesta em caráter latente em todos
os seres da existência de forma a interligá-los, desde humanos e animais a deuses e mortos201.
Além desse elemento monista, outra característica fundamental da cosmologia egípcia
é a formulação de dualidades complementares, tais como claro x escuro, dia x noite, Alto
Egito x Baixo Egito e masculino x feminino. Vimos esta última ser expressa na Ogdoade de
Hermópolis. As consortes femininas tinham seus nomes derivados de seus pares, o que aponta
para terem sido criadas a fim de garantirem a dualidade entre masculino e feminino e, com
isso, a totalidade da criação202. Mas as dualidades sempre conduzem a uma reformulação,
uma síntese que retorna à ideia de existência unitária203; exemplo disto é a dualidade Alto e
Baixo Egito, a qual corresponde à unidade da terra do Egito.
De todas essas dualidades, uma das mais importantes é a entre Ordem e Caos, ou Maat
e Isfet em terminologia egípcia. Essa dualidade surgiu logo com o início da criação, Isfet, o
Caos, ameaça constantemente retornar e suprimir o cosmos ordenado, e para evitar que isso
ocorresse era necessário fortalecer Maat constantemente. Como vimos no capítulo anterior,
uma das principais ações do faraó era justamente reforçar a ordem cósmica de Maat e afastar
o retorno de Isfet.
Não obstante, mesmo a dualidade entre Ordem e Caos era importante na cosmologia.
A criação não fez Nun desaparecer; ele permaneceu existindo além dos limites de Maat (Drw),
o que em termos espaciais significa dizer que o Caos original encontra-se além das fronteiras
políticas egípcias (tAS). A relação entre Maat e Isfet afetou as relações dos egípcios com os

199
ENGLUND, Gertie (org.). Op. cit.
200
ENGLUND, Gertie. Gods as a Frame of Reference. In: Ibidem., p. 25 e FINNESTAD, Ragnhild Bjerre. Egyptian
Thought About Life as a Problem of Translation. In: ENGLUND, Gertie. Op. cit., p. 31.
201
FINNESTAD, Ragnhild Bjerre. Idem nota acima e CARDOSO, Ciro F. S. Deuses, Múmias e Ziggurats: uma
comparação das religiões antigas do Egito e da Mesopotâmia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999, pp. 24-25.
202
CASTEL, Elisa. Op. cit., p. 165.
203
CARDOSO, Ciro F. S. Op. cit., p. 25.
35

povos vizinhos, considerados muitas vezes como agentes do Caos a serem combatidos204. Mas
também dá a tônica de grande parte das ações religiosas egípcias, preocupadas com o
fortalecimento de Maat.

2.2 Religião e Magia

Uma das maiores marcas e estereótipos do Egito Antigo frente a outras civilizações,
desde a Antiguidade, é de que se trata de uma terra de grandes conhecimentos e utilização da
magia. Principalmente no Ocidente dos últimos dois mil anos, o Egito foi encarado como um
depositório de uma espécie de grande sabedoria espiritual e/ou esotérica, cuja maior
manifestação, além das obras arquitetônicas que sobreviveram até os nossos dias, são itens
como amuletos, varinhas e Encantamentos normalmente escritos em pedra ou papiro.
Visto que estes últimos são um dos cernes da análise desta pesquisa, é imprescindível
que façamos um tratamento daquilo que é apontado como magia egípcia, da mesma forma
como abordamos o conceito de religião aplicado ao Egito Faraônico em nossa Introdução.
Igualmente à palavra religião, a conceituação do que vem a ser magia conta com uma
literatura vasta, cujo ponto mais destacável é o tratamento, seja conciliatório ou conflituoso,
da relação entre magia e religião.
Uma abordagem clássica do tema, que exerceu fortes reverberações em estudos
posteriores, foi a desenvolvida pelo antropólogo James Frazer em O Ramo de Ouro205. A
argumentação de Frazer apresenta a magia e a religião em fortes posições antagônicas. Para
ele, a magia resulta de uma combinação equivocada de disposições mentais básicas206 e
compreende ser a natureza regida por tipos de leis ou regras fixas 207. Já a religião resulta de
formulações mentais mais complexas208, necessitando que haja uma concepção teórica prévia
(a crença), para que então seja efetuada a parte prática (muitas vezes, mas não unicamente, na
forma do rito).209 A magia, por ser mais simples, é monolítica e universal, ou seja, apresenta
as mesmas características independentemente da cultura que a pratique. Já a religião é

204
Os líbios e demais habitantes do Saara, por exemplo, eram por vezes caçados e combatidos em prol de Maat. Ver:
ZAYED, Abd el Hamid & Devisse, Jean (col.). Relações do Egito com o resto da África. In: MOKHTAR, Gamal (ed.). Op. cit., p.
101.
205
The Golden Bough no título original. Apesar da obra completa consistir em doze volumes, utilizamos aqui a versão
resumida escrita pelo próprio James Frazer na década de 1920.
206
FRAZER, James G., Sir. The Golden Bough: A Study in Religion and Magic. Abridged Edition. New York: Dover
Publications, Inc., 2002, p. 49. Tais disposições mentais são as associações de ideias a partir de similaridades ou contiguidades entre
elementos da natureza. Na página posterior, Frazer diz que, caso sejam devidamente aplicadas, esses princípios geram ciência.
207
Ibidem, p. 49.
208
Religião pressupõe agentes pessoais capazes de intervenção. Ibidem, p. 54.
209
Ibidem, p. 50.
36

altamente plural e sofisticada210, o que sugere que seu surgimento na história humana foi
posterior ao surgimento da magia211 (apesar de ambas terem se complementado em estágios
mais iniciais da história humana).212
O antagonismo evidencia-se mais fortemente quando se observa a relação de ambas
com a natureza e o divino. A religião pressupõe que a natureza é regida por vontades
conscientes, normalmente exprimidas na crença em divindades ou entidades em geral. O
objetivo central da religião é, por meio de práticas que vão desde uma prece a um rito
sofisticado, agradar essas entidades para que elas interfiram na natureza em benefício de seu
praticante, de sua comunidade ou de toda a humanidade213. Já a magia, como foi dito, entende
a natureza como regida por leis imutáveis, o que permite ao mago praticante ter certeza dos
efeitos de seus esforços mágicos214. Pautada nisso, a magia visa somente forçar a natureza de
forma tal que atenda aos desejos daquele que a pratica. Mesmo quando lida com forças
espirituais (como as mesmas entidades concebidas pela religião) seu objetivo é apenas coagi-
las a agirem de acordo com as vontades do mago215.
Então, para Frazer, há não apenas uma oposição forte entre magia e religião, como
também uma espécie de contenda entre o sacerdote e o mago 216 fomentada pelo trato
despendido por cada um deles em relação ao divino: enquanto o sacerdote tem ação
conciliatória, o mago opta por um viés mais coercitivo. Uma abordagem similar a de Frazer
foi recentemente elaborada pelo sociólogo das religiões Rodney Stark. Apesar de salientar que
não há definições únicas em algum plano metafísico esperando por serem descobertas, Stark
diz que isso não inviabiliza a tentativa de se formular conceitualizações eficientes 217.
O sociólogo afirma que tanto a magia quanto a religião dependem do sobrenatural,
definindo que este “se refere a forças ou entidades acima ou fora da natureza que podem
suspender, alterar ou ignorar forças físicas.”218 Sua categorização engloba, mas não se
restringe à noção de seres sobrenaturais, normalmente adjetivados de deuses, os quais ele
entende se tratarem de “‘seres’ sobrenaturais dotados de consciência e desejos.”219
A magia segundo Stark pode lidar com algumas categoriais de seres sobrenaturais
menores, como demônios e espíritos dos mortos, mas, quando o faz, atua pela coerção,

210
Ibidem, p. 56.
211
Ibidem, p. 55.
212
Ibidem, p. 52.
213
Ibidem, pp. 50-51.
214
Ibidem, p. 49.
215
Ibidem, p. 51.
216
Ibidem, p. 52.
217
STARK, Rodney. Reconceptualizing Religion, Magic and Science. Review of Religious Research, vol. 43, nº 2, pp.
101-120. Religious Research Association, 2001, p. 101.
218
Ibidem, p. 108. Tradução livre.
219
Ibidem, p. 109. Tradução livre.
37

tentando obrigá-los a obedecer aos comandos e ordens do oficiante do rito. Já as religiões


pautam-se em comunicações e trocas com os deuses, seres sobrenaturais mais elevados220.
Ademais, enquanto a magia é instrumental e não possui racionalização sobre suas causas e
processos221, a religião preocupa-se em dar explicações sobre si e, principalmente, sobre a
vida e a existência, o que Stark chama de sentido derradeiro222. Assim, temos suas definições
de ambos os fenômenos:

“Magia refere-se a todos os esforços de manipular forças sobrenaturais


para ganhar recompensas (ou evitar custos) sem a referência a Deus ou Deuses ou
223
explicações gerais sobre a existência.”

“Religião consiste em explicações da existência baseadas em suposições


sobrenaturais e incluindo afirmações acerca da natureza do sobrenatural e sobre
224
sentido derradeiro.”

Uma terceira reflexão sobre a relação entre religião e magia é a elaborada pelo
historiador Hendrik Versnel. Em seu artigo escrito na década de 1990, Versnel começa
pontuando que tanto magia quanto religião não existem, mas que se tratam de conceitos225.
Isso é profícuo por lembrar-nos que, de fato, magia e religião são duas formulações
linguísticas que residem no plano da teoria, sendo suas aplicações na prática (ou seja, seu uso
para análise ou abordagem de qualquer agrupamento humano – não exatamente em viés
acadêmico) dependentes do interlocutor. Ademais, o conceito de magia possui sua própria
historicidade e problemas de utilização, da mesma forma que religião. Nas palavras de
Versnel:

“O moderno conceito de magia [...] é fruto de uma evolução começada em


finais da Antiguidade no contexto do conflito Judaico-Cristão com remanescentes de
cultos pagãos e que adquire suas conotações Ocidentais definitivas sobre a dupla
influência de um comparável conflito teológico entre Protestantes e Romanos
Católicos no 16º século e a subsequente evolução das ideias científicas Ocidentais.
Magia e seus [...] sintomas são conceitos essencialmente moderno-Ocidentais,
racionalistas e tendenciosos e como tais bastante inadequados para aplicação em
estudos de culturas não-Ocidentais em que dicotomias similares nem sempre podem
ser demonstradas, seja terminologicamente ou conceitualmente.”226

220
Ibidem, p. 110.
221
Idem nota acima.
222
Ibidem, p. 111.
223
Idem nota acima, tradução livre e destaques do autor desta monografia.
224
Idem nota acima.
225
VERSNEL, Hendrik Simon. Some Reflections on the Relationship Magic-Religion. Numen, vol. 38, nº 2, pp.177-191.
Leiden: BRILL, 1991, p. 177.
226
Ibidem, p. 180.
38

Quando feita, a distinção entre magia e religião normalmente baseia-se na afirmação


de que a primeira é manipulativo-coercitiva e a segunda, emocional-suplicante227. Podemos
enquadrar tanto Frazer quanto Stark nesta afirmação. Versnel diz, por outro lado, que muitas
vezes há mais continuidades entre os elementos categorizações de religiosos ou mágicos do
que de fato afastamentos228.
Mas apesar de toda essa relativização, Versnel afirma que os conceitos de religião e
magia são ferramentas úteis para estudo de qualquer local e época, uma vez que fornecem
condições de compreensão por parte de um público leitor ocidental. Desde que tomemos os
devidos cuidados de analisar os termos e suas aplicabilidades para o(s) caso(s) que
estiver(em) sendo analisado(s), o uso da dicotomia magia e religião torna-se um bom
instrumento de pesquisa.
A proposição de Versnel é interessante para o presente trabalho, portanto trataremos
de magia e religião tendo como perspectiva o próprio Egito Antigo, não conceitualizações
prévias. O trato da religião já foi feito na Introdução, mas o retomemos: na proposição de Jan
Assmann, há a religião invisível, que ele aproxima da noção de Maat, e a religião visível, que
engloba os cultos, ritos e práticas destinadas a deuses e mortos. Maat, como dissemos
anteriormente, é a Ordem surgida com a Criação. Reforçá-la e mantê-la era uma das
principais preocupações dos egípcios, pois só assim evitavam que o cosmos retornasse ao
estado caótico original. A religião visível insere-se na religião invisível, o que em outras
palavras significa que os ritos e cultos egípcios, em última instância, destinavam-se à
conservação de Maat.
A egiptóloga Geraldine Pinch, em sua obra Magic in Ancient Egypt, afirma que a
religião, isto é, aquilo a que temos chamado de religião visível, e a magia do Egito Faraônico
não eram antagônicas, mas sim extremamente próximas e intercomunicáveis 229. Havia
elementos da religião que eram utilizados em práticas mágicas, assim como componentes da
magia que eram empregadas em atividades religiosas. Ademais, não havia significativa
distinção entre sacerdotes, entendidos aqui como os realizadores dos cultos nos templos, e os
magos, praticantes de magia230.
O templo egípcio era chamado de hwt nTr, “Mansão do Deus”231, sendo assim
compreendido como o lar de determinada divindade. O templo continha um espaço aberto,

227
Ibidem, p. 181.
228
Idem nota acima.
229
PINCH, Geraldine. Magic in Ancient Egypt. London: British Museum Press, 2006, p 12.
230
Idem nota acima.
231
DAVID, Rosalie. Op. cit., p. 252.
39

acessível a não-sacerdotes, no qual pessoas trabalhavam e efetuavam atividades diversas232 e


um espaço interno cuja entrada só era permitida para sacerdotes e o próprio faraó. Dentro
desta área restrita havia um recinto em que se guardava uma estátua que representava a
divindade do templo, estátua esta que era entendida como uma manifestação desse deus ou
deusa. Apenas o rei ou um alto sacerdote tinha permissão para adentrar neste recinto 233. Os
ritos ali realizados visavam não apenas a satisfazer o deus, mas renovar suas forças e
fortalecer a Ordem cósmica234.
O grosso da população leiga (isto é, não pertencente ao grupo sacerdotal) apenas
conseguia algum acesso à estátua do deus a quando da ocorrência de festivais periódicos, em
que tais estátuas eram levadas em procissão para fora de seus espaços 235. Apesar de se
enquadrarem na classificação de rituais realizados no templo236, podemos afirmar que a maior
parte do culto templário ocorria de forma alheia às pessoas. A magia envolvia-se neste ramo
da religião visível237 principalmente pela presença de cenas murais nas paredes 238 que eram
utilizadas durante determinados ritos e celebrações. Como veremos em breve, pinturas em
paredes de templos e tumbas não eram mera decoração artística.
Assim, vemos o porquê de definições de religião que a separam da magia ou que
expressam seu funcionamento pela participação de sacerdotes e uma espécie de plateia leiga
não cabem ao Egito Faraônico. A magia era utilizada durante as realizações dos cultos
templários, mas os mesmos indivíduos que os desempenhavam poderiam praticá-la fora dos
templos, seja para proveito próprio ou de outrem239. Mais ainda, eram os sacerdotes que
costumavam ser os principais executores de Encantamentos e demais formas de magia do
Egito Antigo240. Por exemplo, os sacerdotes da deusa leoa Sekhmet, apontada como causadora
de doenças, eram normalmente realizadores de magias de cura241.
O termo egípcio normalmente traduzido como magia é heka. Tratava-se de uma
espécie de força cósmica usada na Criação242. Heka era também um atributo possível de ser
possuído como uma parte de si. Deuses e reis o tinham automaticamente, mortos poderiam
obtê-lo e qualquer objeto ou elemento considerado exótico era apontado como detentor de

232
Ibidem, p. 253.
233
Ibidem, p. 255.
234
Ibidem, pp. 258-259.
235
Ibidem, p. 260.
236
Idem nota acima.
237
A parte da religião visível referente aos mortos será tratada especialmente no último tópico deste capítulo.
238
DAVID, Rosalie. Op. cit., p. 256.
239
PINCH, Geraldine. Op. cit., p. 12.
240
Ibidem, p. 50.
241
Ibidem, pp. 52-53.
242
Ibidem, p. 9.
40

heka 243. Mas heka também poderia aparecer como uma divindade, um homem com as usuais
vestimenta e barba curvada dos deuses (na Época Tardia, também foi comum representá-lo
como uma criança e apontá-lo como “filho” de casais divinos).244
Enquanto divindade, Heka poderia ser mostrado em diversas cenas e episódios
mitológicos245. Por exemplo, nos Textos dos Sarcófagos ele é descrito como tendo sido criado
por Atum no início dos tempos para auxiliá-lo na Criação; no Livro dos Portões, um item da
literatura funerária surgido no Reino Novo, Heka por vezes é mostrado fazendo parte do
cortejo que acompanha o deus solar em sua jornada diária246. Richard Wilkinson diz que Heka
não teve culto regular247, mas Pinch afirma que ele contou com alguns templos menores e
corpo sacerdotal no Baixo Egito248. Seja como for, sua figuração como divindade atuante em
mitos significativos mostra a centralidade e importância de Heka no cosmos249.
Podemos dizer que a funcionalidade da magia egípcia possuía dois preceitos básicos: a
capacidade criativa de palavras e imagens250, que será especialmente tratado adiante, e a
identificação com alguma divindade ou episódio mitológico251. O conhecimento e utilização
de mitos era um elemento fulcral para a realização de muitos Encantamentos, o que levava a
alguns pergaminhos conterem mitos descritos em um de seus lados252. Por meio disso, o
praticante de uma magia de cura poderia identificar a si mesmo253 ou seu cliente com certa
divindade de determinado relato mitológico, fazendo com que heka agisse como se estivesse
atuando nos deuses254. A magia era muito executada a partir do estabelecimento de alguma
paridade ou conexão entre dois elementos, o que era feito mediante o reconhecimento de
algum elemento comum entre eles como a cor ou a sonoridade do nome255. No exemplo acima
da magia de cura, a conexão entre o paciente e o deus era estabelecida por ambos estarem
com a mesma doença ou mazela.
Em um texto chamado Instruções de Merikara, cujo original data aproximadamente
do século XXI AEC256, a magia aparece junto da monarquia como um presente do demiurgo
criador para a humanidade:

243
Ibidem, p. 11-12.
244
WILKINSON, Richard H. Op. cit., p. 110.
245
PINCH, Geraldine. Op. cit., p. 28.
246
HART, George. Op. cit., pp. 66-67.
247
WILKINSON, Richard H. Op. cit., p. 110.
248
PINCH, Geraldine. Op. cit., p. 11.
249
Ibidem., p. 28.
250
Ibidem, p. 16.
251
Ibidem, p. 21.
252
Ibidem, p. 65.
253
Ibidem, p. 73. Isso era feito como forma de se endossar a magia com a autoridade de algum deus, como Thot ou Ísis.
254
Ibidem, p. 23.
255
Ibidem, p. 16.
256
ARAÚJO, Emanuel. Op. cit., pp. 281-282.
41

“Fez para eles governantes (ainda) no ovo, guias para erguer as costas do
fraco. Fez para eles a magia como arma para desviar o golpe do que acontecia (de
ruim), velando por eles dia e noite.”257

A magia era empregada para situações que poderiam ser resolvidas por outros meios,
como o enfraquecimento de inimigos estrangeiros258 (algo que poderia ser obtido por
manobras políticas ou militares, dependendo do caso). Uma vez que o uso ou apelo aos deuses
era constante, há Encantamentos que os ameaçam para forçá-los a ajudarem. Vimos isto no
capítulo anterior, a quando do esforço dos Textos dos Sarcófagos de reunir o morto com sua
família e amigos. Pinch diz que ameaças eram uma das formas de se recorrer ao divino em
prol de auxílio à humanidade259, fazendo cumprir assim a ideia exposta nas Instruções de
Merikara. O mago poderia lançar mão de outros meios em prol deste fim, muitas vezes em
um mesmo Encantamento. Em suas palavras:

“Ameaças eram apenas uma [característica] de um número de manobras


padrões. Uma doença personificada, ou os seres sobrenaturais invocados para
lidarem com ela, poderia ser implorada, seduzida, enganada, bajulada e ameaçada,
tudo no mesmo encantamento.”260

2.2.1 Escrita e Imagem

Como foi falado, um dos preceitos básicos da magia no Egito Antigo é a crença de que
imagens e textos possuem capacidade criativa e são passíveis de atuarem ativamente no
mundo. A cosmogonia menfita é um exemplo de mito pautado na ideia de poder criador de
palavras261. Já os símbolos e expressões escritas eram uma das principais formas de realização
de magia. Os compêndios que chamamos de Textos das Pirâmides, Textos dos Sarcófagos e
Livro dos Mortos são exatamente conjuntos de materiais deste tipo. A execução da magia
requeria observância quanto ao pronunciamento correto das sentenças e vocábulos proferidos,
mas a magia escrita era poderosa por si só262.
Três sistemas de escrita existiram no Egito Faraônico: o demótico, surgido apenas na
Época Tardia, o hierático e a tão famosa escrita hieroglífica. Apesar de diferirem entre si, o

257
Ibidem, p. 291.
258
PINCH, Geraldine. Op. cit., p. 14.
259
Ibidem, p. 75.
260
Idem nota acima, tradução livre.
261
WILSON, Penelope. Hieroglyphs: a very short introduction. New York: Oxford University Press, 2004, p. 61.
262
PINCH, Geraldine. Op. cit., pp. 68-69.
42

hierático e o demótico eram apenas derivações da hieroglífica, a primeira a surgir263. A escrita


hieroglífica possuía um caráter mais elaborado e detalhado, fato que a levou a ser usada para
âmbitos “monumentais” (ou seja, creditados a terem duração eterna por alguma significação
importante, como templos, tumbas e estelas funerárias), enquanto a hierática era empregada
em usos mais corriqueiros e cotidianos. Contudo, a diferença entre as formas de grafia não
implicava em diferenças no idioma egípcio que estava em uso264.
O termo hieróglifo origina-se do grego e significa “letras sagradas” ou “as letras
esculpidas”265. O nome se deve ao fato da escrita ter sido principalmente usada em contextos
religiosos, como nas inscrições das paredes dos templos e tumbas. Em egípcio, essa forma de
grafia era chamada de mdw-nTr, expressão que podemos traduzir como “palavra divina”,
“palavra do deus”266 ou “escrita das palavras divinas”267. Tratava-se de um sistema de escrita
pictórico, em grande parte derivado dos ambientes natural e humano do Egito Antigo268.
Todavia, suas atribuições religiosas e “monumentais” faziam com que a escrita hieroglífica
fosse restrita a uma parcela ínfima da população269. Ter conhecimentos sobre sua leitura e
escrita, inclusive, era uma espécie de privilégio demarcador de status270.
O hieroglífico era a principal forma de grafia de Encantamentos. É possível
estabelecermos um paralelo entre seu nome em egípcio, “palavra do deus”, e o ato criativo de
Ptah, o que auxilia-nos a compreender a crença na capacidade criativa e interventora da
escrita hieroglífica. Mas, além disso, o caráter pictográfico e simbólico dos hieróglifos fazia
com que essa escrita fosse altamente próxima da arte, partilhando muitos de seus preceitos.
Penelope Wilson chega a afirmar que, ao invés de derivarem da linguagem, os princípios da
escrita hieroglífica residem naquilo que classificamos como arte e ideologia cerimonial
egípcia271.
No Egito, a mesma palavra era utilizada para nomear escribas e artistas: sS272. Sergei
Ignatov nomeia oito sentidos para esse termo: 1 - “o dispositivo para escrita”; 2 - “escrever
(um texto)”; 3 - “pintar (uma imagem com um pincel)”; 4 - “um texto, um livro, uma pintura”;
5 – “escrita”; 6 – “um escritor”; 7 – “um artista”; 8 – “papiro, no sentido de algo (o material)

263
DAVIES, W. V. Os hieróglifos egípcios. In: Lendo o Passado: do cuneiforme ao alfabeto. A história da escrita
antiga. São Paulo: Melhoramentos, 1996, p. 103.
264
WILSON, Penelope. Op. cit., p. 18. Para uma trajetória das escritas e sua relação com as etapas do egípcio antigo, ver a
tabela na página 26 desta mesma obra.
265
DAVIES, W. V. Op. cit., p. 103.
266
IGσχTτV, Sergei. “Word and Image in χncient Egypt”. The Journal of Egyptological Studies, vol. 1, pp. 9-32.
Sofia: Bulgarian Institute of Egyptology, 2004, p. 11.
267
DAVIES, W. V. Op. cit., p. 108.
268
Ibidem, p. 104.
269
WILSON, Penelope. Op. cit., p. 50.
270
Ibidem, p. 52.
271
Ibidem, p. 38.
272
IGNATOV, Sergei. Op. cit., p. 10.
43

para escrever”.273 Este autor afirma ainda que o trabalho artístico era uma espécie de
sequência menor dos atos criadores de Ptah274. Isso fazia com que um artista se preocupasse
em registrar todos os detalhes que fossem mais importantes de algo numa imagem, de forma
que o item ou ser fosse representado como ele de fato é, em todos os seus detalhes e
características. Tal prática foi classificada de arte conceitual ou aspectiva 275. Por exemplo, os
alimentos do interior de um cesto eram pintados empilhados acima de seu recipiente, visto ser
importante que o conteúdo do cesto aparecesse na representação276.
Graças à forte capacidade interventora da arte, havia importantes restrições e usos
mágico-religiosos de seus componentes, como esculturas e pinturas. A proporção de tamanho
dos seres que aparecem representados numa imagem não apenas denotava importância, mas
também influenciava seus “atores reais” que lhe serviram de base (o rei, um deus, um
cortesão, etc.)277. Da mesma forma, evitava-se representar uma divindade em situação de
derrota ou uma força do Caos em estado de ascensão, pois se acreditava que isto de fato
afetaria a realidade, enfraquecendo o deus e fortalecendo a entidade do Caos278. Vemos
preocupações similares sendo aplicadas aos hieróglifos: em exemplos dos Textos das
Pirâmides e Textos dos Sarcófagos, os pictogramas que representavam criaturas vivas
(humanos, aves, cobras, etc.) foram mutilados ou de alguma forma incapacitados (não foram
incluídas as pernas de um símbolo em formato de pessoa, por exemplo) como meio de
garantir que tais seres não causassem danos ao morto que as inscrições auxiliam279.
Portanto, as representações artísticas e a escrita hieroglífica são “irmãs” dotadas de
fortes capacidades mágicas. Eram normalmente creditadas para serem utilizadas em rituais e
cerimônias, mas há ocasiões em que sua simples presença é capaz de interferir na realidade,
de forma benévola ou malévola. Ademais, imagens e escritos eram um dos principais recursos
da religião funerária, área focal deste trabalho, e seu uso era desempenhado tanto por vivos
quanto por mortos.

2.3 A Morte, os Mortos e a Religião Funerária

O Egito entrou para o imaginário popular ocidental não apenas como uma terra de
forte magia, mas também como uma sociedade sumariamente fúnebre. Os itens egípcios mais

273
Idem nota acima, tradução livre.
274
Idem nota acima.
275
DAVID, Rosalie. Op. cit., pp. 173-174.
276
Ibidem, p. 178.
277
PINCH, Geraldine. Op. cit., p. 19.
278
Ibidem, p. 18.
279
Ibidem, p. 69.
44

conhecidos e lembrados possivelmente são as múmias e as grandes pirâmides do Reino


Antigo (em detrimento de outras formas de tumba), o que é endossado por um grande
conjunto de obras cinematográficas, literárias e de demais segmentos (desenhos animados,
jogos eletrônicos, clipes musicais, dentre diversos outros) que exploraram tais elementos à
exaustão.
Tal visão sobre o Egito Antigo se embasa no que podemos chamar de um fato
científico: boa parte das informações e vestígios que possuímos da civilização egípcia são
provenientes do meio funerário. As tumbas, da mesma forma que os templos, eram
construídas com o intuito de que durassem para sempre. Normalmente eram feitas usando-se
pedra, enquanto as demais construções destinadas a vivos, até mesmo os palácios reais, eram
erigidos com materiais mais perecíveis como madeira, junco e tijolos de barro280. Ademais, as
tumbas geralmente eram feitas na margem Oeste do Nilo, porém afastadas do rio, o que
evitava que a inundação periódica afetasse os sepulcros da mesma forma que ocasionalmente
fazia com aldeias e vilarejos281.
As tumbas raramente eram construídas na margem Leste do Nilo, ficando basicamente
a Oeste282. Também eram dificilmente isoladas, sendo mais comum se encontrarem agrupadas
no que chamamos de cemitérios ou necrópoles, os quais se encontravam próximos às
habitações dos vivos (preocupava-se, entretanto, em utilizar áreas desérticas para não
comprometer as terras cultiváveis). Os cemitérios eram chamados de kheret netjer em egípcio,
significando “aquilo que está sobre o deus” ou “aquilo possuído pelo deus”, refletindo a
crença de que se tratavam de locais que recebiam proteção divina, como do deus Anúbis283. Já
a tumba em si era nomeada hut em nehehe ou per-djet, duas expressões que possuem o
mesmo sentido: “casa da eternidade”.284 Este nome expressa não apenas o desejo de que
durassem para sempre, mas também que realmente fossem a residência do morto em sua nova
existência.
Temos acesso a textos que expressam a ideia de que os antigos egípcios concebiam a
vida humana como uma série de mudanças, sendo o morrer mais uma destas. A morte era
entendida como um importante momento de passagem para uma nova vida285. Mas à morte se
reservava um duplo sentimento: enquanto era encarada como inevitável, também era

280
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 12.
281
DAVID, Rosalie. Op. cit., p. 42.
282
Tumbas a Leste eram feitas apenas por motivos especiais, como características especiais de relevo ou alguma alteração
de crenças. TAYLOR, John H. Op. cit., p. 140.
283
Ibidem, pp. 139-140.
284
Ibidem, p. 31.
285
Ibidem, p. 12.
45

temida286. Não se fazia referência direta à morte, optando-se por recorrer a eufemismos:
“Morrer era comparado à chegada de um barco ao seu porto; era o final de uma jornada mas
ao mesmo tempo o início de outra.”287. Ainda nas palavras de Taylor, retiradas da mesma
obra:

“[...] morte é descrita como estando ‘em repouso’, ou se tornando ‘cansado’


ou ‘cansado de coração’. Ela era comparada a dormir (um apropriado prelúdio para
288
um despertar para nova vida), partir em uma jornada, ou chegar a um destino.”

Representações artísticas e imagéticas da morte ou do ato de morrer são raríssimas,


aparecendo apenas no caso de morte de inimigos289. Podemos compreender isto pelo princípio
de que o que fosse representado em uma imagem acabaria sendo fortalecido. Porém, há uma
exceção digna de nota: um papiro funerário datado da XXI Dinastia (Terceiro Período
Intermediário), pertencente a uma mulher chamada Henuttawy, contém uma cena em que
aparece uma criatura ofídica e alada, dotada de quatro pernas, uma cabeça de homem com
barba curvada e uma cabeça
de chacal no que seria sua
calda. Uma inscrição
nomeia este ser de “morte,
a grande deusa, que fez
deuses e homens”. Este
caso não apenas contém
uma representação
imagético-textual da morte
(imagético textual, pois ela

é pintada e identificada na Figura 1 – Criatura identificada como “Morte”, trecho do papiro funerário de
escrita), como também a Henuttawy, XXI Dinastia. Cortesia: © Trustees of the British Museum.
situa como divindade criadora. Malgrado esta questão demiurga, concordamos com Hornung
ao que ele diz que a cena é “uma realização visual da ideia de que a morte é uma característica
necessária do mundo da criação, ou seja, da existência em geral”290.

286
Idem nota acima.
287
Ibidem, p. 13. Tradução livre.
288
Ibidem, p. 39. Tradução livre.
289
Idem nota acima.
290
HORNUNG, Erik. Op. cit., p. 81. Tradução livre.
46

Os mortos também eram alvo de terror e por vezes referidos por meio de adjetivos
como “os inertes” ou “os ocidentais” (em virtude da localização usual nos cemitérios)291.
Mortos eram temidos e acreditava-se que poderiam causar males como doenças e pesadelos e,
graças a isso, existiam práticas mágicas que serviam para proteger os vivos de suas ações292.
Concomitantemente, existia a já dita proximidade entre vivos e mortos. As necrópoles e
tumbas recebiam atenção e visitas graças aos cultos funerários e a festivais periódicos293.
Ademais, certa categoria de mortos especiais, os akhu (serão tratados logo adiante), eram
tidos como possuidores de heka e doravante capazes de interceder e auxiliar os vivos294. Isso é
comprovado por uma série de escritos endereçados aos mortos, que normalmente são
classificados como “cartas”. Tais cartas, presentes desde o Reino χntigo, mostram casos em
que uma pessoa pede a ajuda ou a intercessão de algum parente ou conhecido que já tenha
falecido295. Mas algumas dessas cartas também apontam que tal categoria de “mortos
especiais” poderia causar problemas e agirem de forma hostil contra os vivos296. É o que
podemos observar no exemplo a seguir, proveniente do Reino Novo, em que um homem
indignado escreve para a sua falecida mulher culpando-a por algum infortúnio:

“Que mal eu fiz a você para que eu tenha chegado a essa situação miserável
em que me encontro? O que eu fiz a você? O que você fez foi colocar suas mãos em
297
mim, apesar de eu não ter feito nenhum mal a você [...].”

No restante do texto, o viúvo lista as coisas boas que fez por sua esposa durante a vida
de ambos, o adoecimento da mulher e o funeral desta. Ele também espera conseguir justiça
perante os deuses, e que a carta sirva para pleitear sua causa. Taylor informa que o “mal” feito
pela morta não é informado, mas, ao que parece, o homem que a escreveu estava cogitando
casar novamente “e estava sofrendo emoções complicadas”298.
A dubiedade em relação à morte e aos mortos se refletiu em dúvidas quanto ao que
chamamos de religião funerária. Exemplos de textos desse tipo aparecem no Primeiro Período
Intermediário299, mas também aparecem em épocas bastante posteriores como o século I
EC300. Possuem a tônica de contestarem a validade dos ritos funerários e a obtenção do pós-

291
CARDOSO, Ciro F. S. Op. cit., p. 106.
292
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 44.
293
Ibidem, p. 41-42.
294
PINCH, Geraldine. Op. cit., p. 158.
295
TAYLOR, John H. Op. cit., pp. 42-43.
296
Ibidem, p. 43.
297
Ibidem, p. 44. Tradução livre.
298
Idem nota acima, tradução livre.
299
CARDOSO, Ciro F. S. Op. cit., p. 106.
300
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 45.
47

morte, enquanto defendem um melhor aproveitamento da vida. Podemos atestar isso nos
trechos a seguir, retirados de um escrito intitulado canto do harpista proveniente de uma
cópia do Reino Novo (seu original data de meados do Reino Médio)301:

“Uma geração passa, outra fica em seu lugar,


Desde o tempo dos antepassados.
[...]
Construíram casas,
(mas) seu local desapareceu.
O que foi feito delas?
[...]
Suas paredes esfacelaram-se,
seu local desapareceu
como se nunca tivesse existido!
Ninguém volta do lugar (onde se acham)
para contar como estão,
para dizer o que precisam,
para serenar nosso coração
até irmos para onde eles foram.
[...]
Faze do dia uma festa
e não te canses!
Eis que ninguém pode levar suas coisas consigo,
302
eis que ninguém que parte volta de novo!”

Já outros textos mais numerosos, em contrapartida, enaltecem as práticas funerárias e


o pós-morte. É o caso deste outro canto de harpista, proveniente do Reino Médio:

“Quão firme estás em seu lugar de eternidade,


Teu monumento para todo o sempre!
Ele está repleto de oferendas de alimentos,
Contém todas as coisas boas.
Teu ka está contigo,
Ele não te abandona,
Ó portador do sinete real, grande mordomo, Nebankh!
Teu é o doce alento do vento do norte!”
Isto é o que fiz o cantor que mantém vivo o seu nome,
O honorável cantor Tjeniaa, que ele amava,
303
O qual canta ao seu ka todos os dias.

O objetivo máximo da religião funerária era garantir que o morto renascesse e tivesse
uma vida póstuma, ou, em outras palavras, uma nova forma de existência de duração eterna.
Isso envolvia um conjunto de crenças e práticas que são expressas nesses dois trechos de
canções apresentados, como a posse da tumba, o local de destino dos mortos e a provisão de
alimentos. Mas antes de entendermos a significância de cada e como funcionava a obtenção

301
ARAÚJO, Emanuel. Op. cit., p. 372.
302
Ibidem, pp. 373-374.
303
CARDOSO, Ciro F. S. Op. cit., p. 108.
48

da imortalidade póstuma, precisamos compreender como os egípcios imaginavam ser


composto o ser humano.

2.3.1 Os Elementos Formadores do Ser Humano

No pensamento ontológico cristão, com suas fortes reminiscências e influências tanto


judaicas quanto gregas e romanas, o ser humano é visto em uma binariedade corpo x alma, ou
ocasionalmente corpo x alma+espírito. Em outras palavras, o cerne dessa linha de pensamento
é a polarização entre um campo corpóreo material e outro espiritual abstrato, estando o ser
humano dividido entre eles: é parte corpo, parte alma/espírito. Essa binariedade embrenhou-se
tão profundamente no pensamento ocidental moderno, altamente influenciado pelo cristão,
que os pesquisadores, independentemente de questões de credo pessoal, tendem a naturalizá-
la e a aplicá-la ao estudo de outros povos, religiões e épocas.
Como já foi afirmado, o Egito Antigo caracteriza-se por uma visão de mundo monista
em que não há a divisão entre corporal e espiritual. Reafirmamos e destacamos isso, pois é um
dos axiomas mais importantes do presente trabalho: não existiu a ideia de alma, espírito ou
qualquer coisa semelhante no Egito Antigo. A concepção sobre o ser humano era mais
complexa. Primeiramente, podemos expressá-la a partir de uma dualidade parte x todo. O
cosmos era uno, porém plural. Uma extensa variedade de seres coexistia e interagia. Todos se
interligavam por uma aglutinadora ideia de vida 304, inclusive os mortos, pois após a morte
existia uma nova forma de vida. Assim, a vida humana não era isolada, mas parte integrante
de um todo maior e relacionada às outras formas de existência 305. Nessa espécie de cadeia de
vida cósmica, portanto, o ser humano era expresso por uma dualidade de parte x todo.
Essa formação dual parte x todo também reverberava no nível microcósmico, isto é,
na própria pessoa. Ao mesmo tempo em que o ser humano era uno, um ser, uma pessoa, ele
era formado por uma série de outros elementos. Não era apenas uno, mas sim uno e múltiplo,
um todo formado por partes. Em egípcio, eram chamados de kheperu, “manifestações”, mas
Taylor afirma que são mais bem compreendidos como “modos” ou “aspectos” da existência
humana306. Já a literatura acadêmica especializada costuma chamá-los de elementos da
personalidade egípcia, nomenclatura que consideramos dúbia por dois motivos: a) a possível
confusão que ela é capaz de suscitar devido ao sentido que personalidade possui atualmente;

304
FINNESTAD, Ragnhild Bjerre. Egyptian Thought About Life as a Problem of Translation. In: ENGLUND, Gertie.
Op. cit., p. 31.
305
Ibidem, pp. 31-32.
306
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 16.
49

e b) torna-se válida apenas se o leitor tiver em mente a palavra latina persona, a qual pode ter
“pessoa” como uma de suas traduções307. Sendo assim, nós os designaremos pelas expressões
partes do ser ou elementos do indivíduo, compreendendo que a alternância dos termos não
acarreta prejuízo ou alteração de sentido.
As partes do ser não eram apanágio de seres humanos. Outros seres e objetos
inanimados poderiam ser apontados como dotados de algumas delas (ou todas). Os deuses
também as possuíam, porém em quantidade maior308. Em geral, os elementos considerados
principais, e que serão tratados a seguir, são sete: corpo, nome, coração, sombra, ka, ba e akh.
Outros itens poderiam ser inclusos na listagem, como heka 309 ou, ao menos durante o Reino
Novo, a tumba do morto310. Vale salientar que, por mais que possamos seguir a linha de
muitos estudiosos e dividir as partes entre físicas e não físicas, precisamos ter em mente que
tal divisão é um mero recurso de estudo, não sendo integrante à cosmologia monista.

2.3.1.1 O Corpo e a Mumificação

Havia um mito para a criação de cada indivíduo segundo o qual Khnum, deus com
cabeça de carneiro associado ao Nilo, elaborava dois moldes idênticos para cada pessoa. Um
desses moldes tratava-se do corpo; o outro era o ka, o qual abordaremos mais adiante. Após
tal modelagem, a pessoa era posta no ventre materno na forma de semente311.
Os egípcios chamavam o molde do corpo a partir de várias nomenclaturas. Em vida,
ele era Dt, mas também poderia ser nomeado por outros termos, como Xt (“ventre”) ou at
(“membro”)312. Após a morte, Santos afirma que o corpo era chamado de XAt, expressão que
podemos traduzir como “cadáver” e que designava o corpo não mumificado313. Taylor, por
outro lado, diz que corpos que receberam mumificação poderiam ser titulados como XAt, mas
que era mais usual usar a palavra tut, “múmia” ou mais geralmente “imagem”314. É
interessante notar que tut também era um dos termos utilizados para designar estátuas315, o
que gera uma similaridade nominal entre corpo e estátua, que se torna importante para a

307
FARIA, Ernesto (org.). Dicionário escolar latino-português. Rio de Janeiro: MEC, 1962, p. 736.
308
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2012, p. 353.
309
PINCH, Geraldine. Op. cit., pp. 11-12.
310
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2012, p. 354.
311
Ibidem, p. 355.
312
Idem nota acima.
313
Ibidem, p. 356.
314
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 17.
315
IGNATOV, Sergei. Op. cit., p. 28.
50

realização de certos ritos. Por fim, sah era o nome do corpo que recebeu a mumificação
apropriadamente316.
O corpo deveria ser mumificado para que a vida póstuma fosse garantida. Acreditava-
se que o corpo tornava-se a base para as demais partes do indivíduo, principalmente ka e ba,
então o processo de mumificação fazia com que fossem preservados317. Contudo, mais do que
simplesmente evitar a decomposição e manter a aparência possuída em vida, a mumificação
objetivava transformar o corpo em uma imagem perfeita do falecido, um sah, dotado de
qualidade e aspectos divinos que o auxiliarão no pós-morte318.
A prática da mumificação perdurou por toda a história do Egito Antigo, mas teve
fortes variações temporais e regionais319. Por exemplo, a retirada do cérebro era um processo
esporádico de início, mas tornou-se fixo no Reino Novo320. Por um longo tempo, os
sacerdotes do deus Anúbis, a quem se creditava a invenção da mumificação, eram quem
realizavam tal prática. Gozavam de alto prestígio social por isso até o I milênio AEC, quando
seu status veio a decair321. A partir desta época, o embalsamamento passou a ser feito por
profissionais que o desempenhavam como uma atividade comercial, um ofício322.
Inexistem escritos egípcios sobre os processos de mumificação. Os conhecimentos que
possuímos baseiam-se em uma série de manuscritos da época Romana que datam da
passagem do século I para o II EC323, além das contribuições dos historiadores gregos
Heródoto (século V AEC) e Diodoro Sículo (século I AEC). Esses recursos escritos são
complementados por estudos modernos efetuados nas próprias múmias324. Mas apesar da
escassez de informações, há consenso de que a mumificação era altamente ritualizada e
envolvia a forte presença da magia325. Não obstante as variações e os problemas quanto a
informações, Ciro Cardoso nos oferece uma descrição das principais etapas do processo de
mumificação:

“1) Remoção de muitos dos órgãos internos (preservados


separadamente; no Reino Novo, postos em jarros cujas tampas
representavam os quatro filhos de Hórus, deuses protetores); 2)
cobertura, com um sal de sódio, o natrão, que ocorre naturalmente nos
oásis egípcios e tem propriedades desidratantes e antissépticas, do
corpo já esvaziado (e às vezes, também, recheio provisório deste com

316
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 17.
317
CARDOSO, Ciro F. S. Op. cit., pp. 104-105.
318
TAYLOR, John H. Op. cit., pp. 16-17.
319
CARDOSO, Ciro F. S. Op. cit., pp. 117-118.
320
Ibidem, p. 117.
321
Ibidem, p. 118.
322
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2002, p. 102.
323
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 187.
324
DAVID, Rosalie. Op. cit., p. 393.
325
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 187.
51

pacotes de natrão), durante cerca de quarenta dias; 3) uma vez


terminado o ressecamento pelo natrão, tratamento da pele para
devolver-lhe mediante certas substâncias alguma elasticidade; 4)
preenchimento das cavidades do corpo, resultantes da remoção de
órgãos, após lavagem com vinho de palmeira (segundo Heródoto), com
recheios que variaram segundo a época (sendo que, em alguns
períodos, as vísceras embrulhadas eram repostas dentro do cadáver); 5)
envolvimento do corpo (começando com cuidadosa moldagem dos
dedos das mãos e dos pés, e dos órgãos genitais) com tiras de linho,
entre as quais se punham amuletos especificados pela literatura
funerária, atividade que consumia cerca de 15 dias; 6) a partir de fins
do III milênio a.C., teve início o hábito de cobrir a cabeça da múmia
com uma máscara que reproduzisse os traços que tivera em vida,
muitas vezes confeccionada de tecido endurecido com gesso e
posteriormente pintada e dourada, mais tarde no caso dos reis, feita de
ouro ou prata com incrustações de lápis-lazúli e outros materiais
326
preciosos.”

Apesar de conhecermos casos em que a mumificação levou mais tempo, o período de


70 dias era duração comum327. Este intervalo de tempo possuía seu simbolismo uma vez que
estava ligado ao ciclo da estrela Sirius (no Egito, representado pela deusa Sothis ou
Sopdet)328: a estrela era eclipsada pelo sol e apenas reaparecia após essa quantidade de tempo,
coincidindo com o início da cheia do Nilo. Assim, Sothis possuía um ciclo de “morte” e
“renascimento” que foi provavelmente transposto para a mumificação329.

2.3.1.2 Ka

Como foi dito no item anterior, acreditava-se que o deus Khnum moldava dois
modelos para cada pessoa: o corpo e o ka, sua “duplicata”. τ ka é por vezes apontado como o
“duplo” da pessoa e protetor do morto sepultado na tumba, apesar de sua significação ser mais
complexa e ter se alterado ao longo da história egípcia330. Porém, durante muito tempo o ka
foi erroneamente traduzido como espírito, o que talvez seja influência do mito de sua
modelagem em conjunto com o corpo.
Ka era representado pelo sinal hieroglífico de dois braços estendidos, algo que
provavelmente possui relação com o ato de receber oferendas 331. Já para Taylor, os braços
erguidos simbolizam o contato entre uma geração e a posterior, o que ele embasa da
constatação de que o ka possuía significações ligadas à questão da fecundidade e

326
CARDOSO, Ciro F. S. Op. cit., p. 118.
327
Idem nota acima.
328
HART, George. Op. cit., p. 151.
329
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2002, pp. 103-104.
330
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2012, p. 358.
331
Ibidem, pp. 357-358.
52

reprodução332. O ka não possuía forma física. Durante a vida acompanhava o corpo, mas com
a morte necessitava de algum suporte, como o corpo mumificado ou a estátua do morto333
(lembrando que ambos poderiam ser nomeados pelo mesmo termo: tut).
Mas além desse elemento de fecundidade, o principal sentido do ka era ligado ao que
chamamos de força vital. Tido como o “princípio de sustento”334, a função primordial do ka
era garantir o sustento e desenvolvimento da pessoa a partir da ingestão de alimentos, tanto
em vida quanto em morte335. Isso expressa a fundamental importância desta parte e explica
um dos pontos-chave da religião funerária egípcia: o ka deveria ser sustentado por meio de
alimentos oferecidos ao morto. Caso isso não ocorresse, o morto deixaria de existir336.
A forma plural de ka, kAw (kau), designava uma série de quatorze atributos externos ao
indivíduo, mas que poderiam ser ligados a ele: “força, poder, honra (ou nobreza),
prosperidade (ou abundância), alimento, vida longa, alegria, brilho (ou glória), magia, vontade
criadora, conhecimento, visão, audição e paladar”337. Tratava-se de características divinas,
possuídas integralmente apenas pelo deus solar Rá ou por alguns reis que as outorgavam e
atribuíam para si338. Podemos afirmar que tais kau, por mais que sejam originalmente
externos, não são exteriores à ideia de partes do indivíduo, uma vez que determinada pessoa
ou ser poderia conter um ou mais deles como uma parte de si.

2.3.1.3 Ba e Sombra

As representações imagéticas do ba começaram a surgir no Reino Novo. Este


elemento aparecia como um pássaro com cabeça humana cuja face era do morto, por vezes
também dotado de braços e mãos. O corpo de ave expressa sua ideia de movimentação,
enquanto a presença do rosto do falecido normalmente é descrita como representando a
personalidade da pessoa339. Taylor discorda dessa abordagem, pois, segundo ele, até mesmo
elementos inanimados como uma cidade ou uma porta poderiam possuir um ou mais ba (no
plural, bAw, bau)340. Podemos, assim, compreender que o ba era uma manifestação (ou
manifestações) externa(s) de “algo”, seja uma pessoa, um local ou uma divindade.

332
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 19.
333
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2012, p. 358.
334
CARDOSO, Ciro F. S. Op. cit., p. 104.
335
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2012, p. 359.
336
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 19.
337
ARAÚJO, Emanuel. Op.cit., p. 401.
338
Idem nota acima.
339
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2012, p. 360.
340
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 20.
53

O ba trata-se de um dos elementos do indivíduo que, juntamente do ka, não possuem


significação próxima ou semelhante a algum outro termo ou conceito de idiomas atuais.
Contudo, assim como acontece com o ka, ele é comumente traduzido de força errada e
forçada para alma. Como vimos no parágrafo acima, o ba era mais ligado às ideias de
“manifestação externa” e, mais importante, de movimentação irrestrita, o que o torna
principalmente fundamental para a religião funerária.
Elisa Castel afirma que o ba possuía mais relação com o indivíduo morto do que com
ele vivo, tratando-se do elemento responsável pelos atos do falecido341. Graças ao ba, o morto
era capaz de movimentar-se por diversos locais e assumir formas de outros seres ou
objetos342. Seu caráter móvel e “livre”, em uma linguagem mais poética, faz com que o ba
seja normalmente chamado de “princípio de movimento”343. Como sua movimentação após a
morte era importante, há Encantamentos que se destinavam a garanti-la, como os de nº 61
(“Encantamento para não permitir que o ba de um homem seja-lhe retirado no reino dos
mortos”)344 e 91 (“Encantamento para que o ba de σ não seja retido no reino dos mortos”)345,
ambos do Livro dos Mortos.
Por serem capazes de se movimentarem e de se transformarem, os bau de
divindades346 e mortos347 eram normalmente temidos como potenciais ameaças, sendo
combatidos ou afugentados por meio de magia. Acreditava-se ainda que o ba poderia se
mover livremente durante o dia, mas que deveria retornar à tumba ao anoitecer e reunir-se
com o corpo (ou algum outro substituto que lhe servisse de “base sólida”. Ba e ka partilham
dessa necessidade de um “ancoradouro”). Caso essa reunião periódica não ocorresse, o morto
pereceria348. Porém, se fosse bem sucedida, auxiliaria na recuperação de forças e regeneração
do falecido349. Para garantir que o reencontro do ba com o corpo ocorresse, costumava-se
recorrer também à magia, a exemplo do Encantamento 89 do Livro dos Mortos, intitulado
“Encantamento para permitir que o ba reúna-se a seu corpo no reino dos mortos”350.
Já a sombra, Swyt em egípcio, é um dos elementos de que menos temos conhecimento.
Parece que possuía sentidos de proteção e contenção/transmissão de poder 351, além de uma

341
CASTEL, Elisa. Op. cit., p. 31.
342
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2012, pp. 360-361.
343
CARDOSO, Ciro F. S. Op. cit., p. 104.
344
FAULKNER, Raymond O. Op. cit., p. 63. Tradução livre.
345
Ibidem, p. 86. Tradução livre. χ letra “σ” no encantamento é referente ao nome do morto. Como o Livro dos Mortos
era feito destinado diretamente a quem o encomendasse, o nome da pessoa deveria ser inserido no lugar de tal “σ”.
346
PINCH, Geraldine. Op. cit., p. 36.
347
Ibidem, p. 148.
348
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 21.
349
Ibidem, p. 23.
350
FAULKNER, Raymond O. Op. cit., p. 84. Tradução livre.
351
CARDOSO, Ciro F. S. Op. cit., p. 104.
54

aparente relação com o ba pela ideia de movimentação. Os movimentos da sombra são


limitados pelo corpo enquanto a pessoa se encontra viva, mas aumentam após a morte. A
capacidade de circulação da sombra é mais restrita que a do ba, porém há textos que indicam
que esses elementos são complementares em movimento352. É o que podemos constatar pelo
título do Encantamento 92 do Livro dos Mortos: “Encantamento para abrir a tumba para o ba
e a sombra de, de forma que ele possa sair ao dia e ter força em suas pernas” 353. Os seguintes
trechos do Encantamento 188 do Livro também apontam para tal ideia:

“Enviando o ba, construindo uma câmara mortuária e saindo ao dia entre os


homens.”
“Em paz, Oh Anúbis! [...] que você glorifique meu ba e minha sombra, que
eles vejam Rá por meio do que ele traz. [...]. Portanto você garantiu que meu ba e
minha sombra andem com seus pés para onde aquela pessoa está, para que ela fique
354
em pé, sente e ande, e entre em sua capela da eternidade, [...].”

No trecho, vemos o desejo de permitir que tanto o ba quanto a sombra possam sair e
presenciar a luz do dia (“que eles vejam Rá por meio do que ele traz”). χ passagem também
expressa sentidos de renovação de forças, um dos atributos da presença de Rá. Mas também
explicita que os elementos retornem à tumba (a “capela da eternidade” foi por nós
compreendida como um nome dado à tumba) e reúna-se com o morto (“aquela pessoa”),
restituindo seus movimentos (“que ele fique em pé, sente e ande”). χssim, fica clara a
complementaridade da movimentação entre o ba e a sombra e a importância de que ambos
possam retornar ao corpo (ou a um substituto deste).

2.3.1.4 Coração

O coração era compreendido como o centro anatômico, emocional e intelectual do


indivíduo. Os egípcios possuíam dois termos para designá-lo: ib, mais antigo e com raízes no
extrato linguístico semita. Tinha significados de “invisível” ou “escondido” e designava o
aspecto intelectual e mental da pessoa. O outro nome, HAtj (hatj) exprimia as ideias de
“visível” ou “à frente” e consistia no centro anatômico do corpo. χs duas palavras poderiam
ser usadas como sinônimos ou alternarem entre si nas variantes de um mesmo texto, mas, à
época do copta355, o uso de HAtj havia substituído ib356.

352
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2012, pp. 368-369.
353
FAULKNER, Raymond O. Op. cit., p. 97. Tradução livre.
354
Ibidem, p. 185. Tradução livre.
355
Copta foi o último sistema de escrita do Egito Antigo, a última versão da língua egípcia antiga, surgida por volta dos
períodos helenístico e romano, tornando-se padrão a quando da consolidação do Cristianismo no Egito (meados do século IV EC).
55

Usando a divisão terminológica, é o coração-HAtj o considerado centro anatômico da


pessoa. Era ele que se interligava e se comunicava ao restante do corpo por meio dos vasos
sanguíneos357. Já o coração-ib era o centro mental e emocional, regulador das ações e
pensamentos. O coração-HAtj se manifestava pela pulsação sanguínea358, por exemplo,
enquanto o coração-ib pelo surgimento de uma ideia.
A Egiptologia fornece uma atenção muito maior ao coração-ib pelas suas implicações
simbólicas e religiosas. Ib possuía funções e atribuições que hoje entendemos ser do cérebro:
era sede da mente, pensamentos, emoções e consciência. Controlava todos os atos físicos e
registrava todas as ações, boas ou más, que a pessoa executou em vida 359. Graças a isto, ib era
analisado no tribunal presidido por Osíris, o qual já afirmamos ter surgido na época do Livro
dos Mortos. Era a partir do coração-ib que as ações executadas pelo falecido durante sua vida
eram levadas em consideração, o que poderia comprometer a obtenção da vida pós-morte.
Ib era por vezes apontado como dotado de uma existência à parte, independente de seu
pretenso dono360. Exemplo disso é uma passagem do conto do náufrago361 em que o
navegador perdido aparentemente conversava com seu coração: “Fui jogado numa ilha por
uma onda do mar, (onde) passei três dias sozinho, com meu coração por companheiro;
[...]”362. Um exemplo ainda mais significativo dessa independência de ib é o Encantamento nº
30a do Livro dos Mortos:

“Encantamento para não permitir que o coração de N crie-lhe oposição no


reino dos mortos”.
“Oh meu coração que eu tive de minha mãe, Oh meu coração que eu tive
sobre a terra, não se erga contra mim como testemunha na presença do Senhor das
Coisas; não fale sobre o que eu fiz contra mim, não traga nada contra mim na
363
presença do Grande Deus, Senhor do Oeste.”

No texto, fica explícita a ideia de que ib seria capaz de delatar coisas indesejáveis que
comprometeriam o morto. Como se tratava de um elemento registrador de ações e
pensamentos que possuía sua independência, ib poderia informar algo aos deuses que faria o
morto ser julgado como culpado pelo tribunal, falhando assim em sua tentativa de obter o pós-

Era basicamente formado pelo alfabeto grego, acrescido de alguns elementos exteriores ao idioma helênico. Ver: DAVIES, W. V.
Op. cit., pp. 121-123.
356
LEKτV, Teodor. The Formula of the ‘Giving of the Heart’ in χncient Egyptian Texts. The Journal of Egyptological
Studies, vol. 1, pp. 33-60. Sofia: Bulgarian Institute of Egyptology, 2004, pp. 33-34.
357
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2012, p. 356.
358
LEKOV, Teodor. Op. cit., p. 34.
359
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2012, p. 356.
360
LEKOV, Teodor. Op. cit., p. 51.
361
Trata-se de um relato que chegou a nós a partir de um texto da XII Dinastia. Na história, um navegador naufraga em
uma ilha deserta e lá se depara com uma desconhecida divindade em forma de cobra. Ver: ARAÚJO, Emanuel. Op. cit., pp. 73-79.
362
Ibidem, p. 75.
363
FAULKNER, Raymond O. Op. cit., p. 55. Tradução livre.
56

morte. O Encantamento 30 servia justamente para tentar evitar isso. Por agir contra uma
ameaça grave, esse Encantamento era parte constante da religião funerária, sendo comum
encontrá-lo inscrito em escaravelhos com formato de besouro (como era recomendado por
uma rubrica adjacente ao texto do Encantamento)364.
Devido a tal importância, o coração costumava ser embalsamando e depositado dentro
do corpo mumificado, por vezes acompanhado do amuleto-escaravelho supracitado. Santos
afirma que essa atitude de manter o coração na múmia era possibilitar que se perpetuasse seu
papel de ser o controle das ações, emoções e pensamentos na nova forma de existência365.

2.3.1.5 Nome

O nome, rn em egípcio, era considerado como intimamente ligado à essência e


características formadores de um ser. O nome poderia trazer sorte ou desgraça à pessoa que o
portava, dependendo de seu significado: por exemplo, χmenhotep significa “χmon está
contente”, enquanto Ramesedsu “Rá é aquele que me odeia”. χ troca de um nome benéfico
por um que acarretasse em males era uma forma de punição severa para transgressões
graves366.
Existiam categorias diferentes de nomes que uma pessoa ou ser poderiam possuir. O
nome institucional decorria de alguma função exercida e servia como demarcador de status, o
substituto fazia alusão a alguma característica ou função externa sem abranger toda a essência
do ser. Nomes teológicos ou religiosos eram comuns e aludiam a alguma devoção pessoal ou
a alguma divindade com culto proeminente em certa região. Mas a categoria mais
fundamental era o nome secreto, o verdadeiro nome daquele indivíduo ou ser367. O
conhecimento do nome secreto de alguém era uma ferramenta poderosa para realização de
magia, seja benéfica ou maléfica, e tentava-se evitar isso ocultando o nome escrito com
criptografia, por exemplo368.
Um exemplo mitológico da funcionalidade mágica do nome secreto é a história em
que Ísis descobre o verdadeiro nome de Rá. A deusa utilizou uma porção de saliva do deus
solar para criar uma cobra. O animal se mantém a espreita até que Rá passa, e o ataca,
picando-o. O veneno não é suficiente para matá-lo, mas lhe causa grande agonia. Rá manda
que chamem Ísis para curá-lo (ele não suspeita que a cobra foi uma criação dela; a deusa é
364
Ibidem, p. 56.
365
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2012, p. 356.
366
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 23.
367
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2012, p. 354.
368
Ibidem, p. 366.
57

chamada por ser reconhecida como muito versada em magia). Ela tenta diversos
Encantamentos, mas diz que só terá êxito se Rá lhe disser seu nome secreto. O deus solar
reluta e tenta fornecer uma série de seus epítetos, que podemos chamar de nomes substitutos,
mas são todos em vão para a cura. Por fim, ele finalmente conta seu nome secreto a Ísis, a
qual formula um poderoso encanto que dissipa o veneno. Rá está livre de sua dor, mas se
encontra sob a potencial influência de Ísis369.
O nome tinha importância primordial na religião funerária. O ren (nome) do morto era
inscrito nos mais variados espaços da tumba e demais itens que fossem relacionados ao
defunto. Acreditava-se que enquanto o ren permanecesse inscrito e fosse conhecido pelos
vivos, o morto continuaria a existir370. Em contrapartida, apagar ou destruir um nome escrito
afetava diretamente o indivíduo a ele relacionado, algo que também poderia ser realizado com
o intuito de punição371. Mas, além disso, o ren era fundamental na religião funerária por dois
motivos: a) ele deveria ser pronunciado no ato de realização de oferendas funerárias 372; e b) o
morto deveria conhecer os nomes de diversos seres do reino dos mortos, de forma a
conquistar domínio sobre eles e conseguir uma jornada póstuma segura373.

2.3.1.6 Akh

Segundo acreditavam os egípcios, a morte separava e espalhava os elementos do


indivíduo. O objetivo dos rituais de sepultamento era justamente reuni-los uma nova forma de
existência para que ele aproveitasse a vida póstuma.
Uma etapa primordial era o embalsamamento do corpo, algo que já tratamos. Também
de fundamental importância era possuir uma tumba devidamente equipada. Vimos, no
capítulo anterior, a ideia de que o prestígio material da tumba era um mecanismo para se obter
o pós-morte, principalmente durante o Reino Antigo. A tumba do morto era uma espécie de
guarnição física para sua vida eterna. Ela não apenas garantia um local para depósito e
proteção da múmia, como também fornecia aparatos e recursos para a nova existência do
morto. Ademais, a tumba garantia um local para que os principais ritos funerários fossem
realizados374.

369
Para uma versão completa do mito, ver ARAÚJO, Luís Manuel de. Op.cit, pp. 117-120.
370
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 23.
371
Ibidem, p. 24.
372
Ibidem, p. 23.
373
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2012, p. 367.
374
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 136.
58

O formato, conteúdo e organização interna das tumbas variaram tanto regionalmente


quanto cronologicamente. Também havia diferenças entre as tumbas régias e não régias (basta
que nos lembremos das tumbas em formato de pirâmide que por muito tempo foram apanágio
dos reis). Malgrado isso, as tumbas egípcias basicamente continham:

“[...] uma infra-estrutura, muitas vezes subterrânea, a que se tinha acesso


com frequência por um poço (ou às vezes por escadas), sendo tal acesso bloqueado
após o funeral, e cuja parte mais importante era a câmara do sarcófago ou caixão
[...]; uma superestrutura que podia conter a capela funerária, depósitos e outros
cômodos. A superestrutura era aberta ao público para a realização das cerimônias
375
rituais em benefício do morto; a infra-estrutura, não.”

É importante termos em mente que a múmia ficava em uma seção fechada da tumba.
A câmara funerária e todos os seus componentes eram elaborados, produzidos e instalados
para benefício e utilização de quem ali seria sepultado, não de vivos que viessem a visitá-la.
Isto implica dizer que quaisquer objetos, imagens e textos (principalmente os textos funerários
que vieram a ser chamados de Livros pelos estudiosos), que ali foram encontrados por
arqueólogos, tinham o intuito original de auxiliar o morto.
Ao ser colocado em sua câmara funerária e receber os ritos funerários em seu proveito,
o morto tornava-se um akh. Apesar de ser posto como uma parte do ser, o akh apenas surgia
após a morte com a reunião de todos os elementos, principalmente o ba e o ka 376(o que
podemos entender como a garantia de que poderiam se mover e se alimentar). O akh era
representado pela figura de um passado íbis. τ termo possui significados variados, como “ser
glorioso”, “esplêndido” e “resplandecer”. Santos afirma que isso significa que o akh era tanto
um estado renascido do morto (ou “não morto”, pois agora ele possui uma nova forma de
vida) quanto um estado de perfeição que ele gozará pela eternidade377.
O akh tinha afinidades com a magia, a começar por sua formação: todos os conjuntos
de Encantamentos que apresentamos no capítulo anterior (Textos das Pirâmides, Textos dos
Sarcófagos e Livro dos Mortos) eram chamados coletivamente de sAxw, “sakhu” que podemos
interpretar como “tornar-se akh”378. Os rituais realizados na tumba durante o sepultamento
também recebiam tal nomeação379, o que evidencia o intuito final de todas essas práticas e
elementos mágico-rituais: transformar o morto em um akh, em um morto transfigurado que

375
CARDOSO, Ciro F. S. Op. cit., p. 119.
376
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2012, pp. 371-372.
377
Ibidem, p. 372.
378
Ibidem, p. 371.
379
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 190.
59

fosse dotado do necessário para sua nova existência. A seguinte citação de Taylor, que se
refere especificamente aos textos funerários, expressa bem a ideia da nomenclatura:

“Isto [o termo sakhu] enfatiza o principal objetivo de todos os textos, que


era permitir ao morto uma transição bem sucedida para o estado transfigurado, akh.
A colocação de textos funerários na tumba – nas paredes da capela, em papiros,
estelas e amuletos, ou nas faixas da múmia – solicitavam tornar possível a replicação
por magia dos atos rituais descritos nos textos. O morto era assim equipado com a
380
sabedoria necessária para se conseguir o pós-vida.”

A própria palavra akh guardava suas relações com a magia. Seu plural, akhu, era um
termo que designava força mágica, da mesma forma que heka 381. Akhu era especialmente
referido como a força utilizada pelos deuses na efetuação de magias, principalmente Ísis e
Thot382. Como citamos anteriormente, acreditava-se também que os próprios akhu eram
possuidores de heka e capazes de interferir para com os vivos, seja de maneira boa ou ruim.
Isto é fruto de sua divinização, pois ao tornar-se akh o morto recebia atributos e qualidades
divinas383. Contudo, o akh não se tornava exatamente equivalente aos deuses384.
O estado de akh era assumido pela rejunção dos demais elementos do indivíduo, mas
estes não deixavam de existir385. Pelo contrário, vimos que cada parte do ser tinha uma ou
mais funções e importâncias após a morte, sendo todas necessárias para a manutenção do pós-
morte. Em especial, o sustento do ka era de suma importância e envolvia visitas frequentes à
tumba. As oferendas a este elemento eram realizadas com alimentos386 de verdade ou a partir
de recursos mágicos que lançavam mão de imagens (representação de víveres na câmara
funerária) e/ou textos (fórmulas e escritos que não raro envolviam o rei ou os próprios
deuses).

2.3.2 Destino Póstumo e Reino dos Mortos

Após terem sido feitos os ritos de sepultamento, a múmia posta em sua câmara
funerária e esta se encontrar selada, os egípcios acreditavam que o morto estava pronto para

380
Ibidem, p. 193, tradução livre.
381
PINCH, Geraldine. Op. cit., p. 12.
382
Ibidem, p. 147.
383
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 32.
384
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2012, p. 373.
385
Idem nota acima.
386
Oferendas de alimentos nas tumbas eram comuns e foram realizadas durante praticamente toda a história do Antigo
Egito. Porém, possivelmente possuíam um caráter mais simbólico do que propriamente funcional, isto é, não se esperava que o
morto evidentemente comesse aquele alimento, mas que o “usasse” na nutrição de seu ka. Estudos feitos em oferendas encontradas
mostram que os alimentos possuíam concentrações de substâncias, como palha, que poderiam causar contaminação caso fossem
ingeridas. TAYLOR, John H. Op. cit., p. 23.
60

sua nova forma de vida. Como esta deveria ser desempenhada em algum lugar, os egípcios
também conceberam como e onde essa nova existência decorria. Uma das ideias elaboradas
era a de vida póstuma na própria tumba, por meio da alimentação do ka e da reunião periódica
do corpo com o ba 387.
Mas, além disso, é digno de atenção (e importante para esta pesquisa) analisar as
ideias sobre uma vida póstuma em outra localidade em conjunto com os deuses. Como
acontece em demais segmentos das crenças egípcias, a ideia de um destino póstumo também
foi múltipla, variando onde se realizaria, como seria, com quais divindades, dentre outros
pontos. Sobressaem-se, porém, as concepções de post-mortem referentes a dois deuses: o solar
Rá e o ctônico Osíris.
Contudo, antes de tratarmos dessas duas ideias de destino póstumo, devemos elucidar
uma questão terminológica importante. Como já foi dito, na visão monista há um mundo,
sendo este o mundo da existência e que se confunde com o território do Egito. Devido a isto,
evitamos usar a expressão mundo dos mortos (e variantes), tão corriqueira nos textos sobre
religião funerária egípcia, e optamos por designar o destino póstumo por reino dos mortos.
Dessa forma, acreditamos estar de acordo ao referencial teórico adotado, pois de nada
adiantaria enfatizar uma cosmologia baseada em uma existência una e integrada sobre o
princípio de Maat, enquanto discorremos sobre os mortos como se fossem habitantes de uma
espécie de dimensão paralela.

2.3.2.1 O Destino Póstumo Solar

Para os egípcios, o sol era uma divindade que se movimentava diariamente pelo céu.
Normalmente expresso como Rá, sua travessia pelos céus era imaginada como realizada no
dorso da deusa celeste Nut (em uma forma de vaca) ou, mais comumente, em uma barca com
tripulação divina.
Nesse ciclo diário, o deus metamorfoseava-se. Durante a manhã, ele assumia a forma
de Khepri, representado usualmente como um besouro. Era uma manifestação rejuvenescida e
recém-nascida. Por volta do meio-dia, ele era Rá, tendo o ápice de suas forças. Já ao fim do
dia ele se tornava Atum, uma forma anciã que por vezes era descrita como fraca e decrépita.
Com a noite, ele adentrava em território subterrâneo pelo Oeste e realizava uma jornada
semelhante rumo a Leste para renovar suas forças. Quando a manhã chegava novamente, ele
reaparecia como Khepri, e tudo ocorria mais uma vez.
387
CARDOSO, Ciro F. S. Op. cit., pp. 109-110.
61

No primeiro capítulo falamos que o rei, principalmente durante o Reino Antigo, era
identificado com Rá. Tal assimilação não se mitigou com o tempo e ainda garantia que o faraó
tivesse um destino póstumo solar388, tornando-se um dos membros da assim chamada barca
solar. Durante o Reino Antigo, o destino solar foi uma exclusividade do rei, mas tornou-se
possível aos seus súditos a partir do Reino Médio. Essa possibilidade é expressa, por
exemplo, no Encantamento nº 131 do Livro dos Mortos, “Encantamento para estar na
presença de Rá”389, em que se observa o trecho: “Glória a ti, Grande Deus a leste do céu! Eu
vou a bordo de sua Barca, Oh Rá! [...] Eu vou a bordo de sua Barca, Oh Rá, em paz; Eu
navego em paz para o belo τeste, [...]”390.
Sobre o acesso dos que podemos chamar de mortos comuns à barca solar, Santos
comenta:

“Acreditava-se que pela simples representação da cena [do morto na barca


solar] o indivíduo estaria magicamente na presença do deus. Ao contrário dos textos
do mundo inferior, onde o rei teria acesso irrestrito à cosmologia completa, o
indivíduo comum necessitava do uso da magia. Com palavras de poder e por meio
de uma representação, na qual supostamente era feita uma oferta de víveres ao deus-
391
sol, o morto garantiria seu lugar no séquito de Rá.”

χo dizer “textos do mundo inferior”, Santos faz referência a um conjunto de textos


presentes majoritariamente nas tumbas reais a partir do Reino Novo. Tais textos, que talvez
fossem melhor chamados de “Livros do Subterrâneo”, davam detalhes sobre a viagem noturna
de Rá. Os principais dentre esses escritos foram chamados de Livro de Amduat, Livro dos
Portões e Livro das Cavernas. O Amduat e o Portões são especialmente interessantes por
mostrarem o subterrâneo dividido em doze seções de uma hora cada, correspondendo às horas
noturnas. A presença de tais Livros em tumbas reais enfatizava a assimilação do faraó com Rá
e garantia seu destino póstumo solar392.
Esses “Livros do Subterrâneo” relatam jornada solar por um rio que segue de τeste a
Leste, bem como o contato de Rá com mortos e outras divindades. Mas, acima disso, eles
fornecem informações sobre um ponto culminante: ao chegar a décima segunda hora, Rá
depara-se com o Caos393, representado na forma de uma colossal cobra chamada Apep (ou
como ficou conhecida graças aos gregos, Apóphis). Rá deveria derrotá-la e era nisso auxiliado
pela tripulação de sua barca, tanto deuses quanto mortos que ali estivessem. Apenas

388
Ibidem, p. 110.
389
FAULKNER, Raymond O. Op. cit., p. 120. Tradução livre.
390
Ibidem, p. 121.
391
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2012, p. 382.
392
TAYLOR, John H. Op. cit., pp. 198-199.
393
Ibidem, p. 198.
62

assegurando sua vitória contra Apep, Rá conseguiria renascer como Khepri e retomar seu
ciclo.

2.3.2.2 O Destino Póstumo de Osíris

O ciclo mitológico do deus Osíris é um dos mais antigos e importantes do conjunto de


mitos do Egito Antigo, possuindo implicações tanto para as crenças sobre a morte quanto para
a ideologia régia. Encontramos menções ao mito desde os Textos das Pirâmides, mas o único
relato completo foi o que chegou a nós pela obra De Iside et Osiride, escrita por Plutarco394
no século II EC. Concordamos com Santos ao ele afirmar ser mais seguro trabalhar com
fontes do próprio Egito Faraônico para a reconstrução do mito 395, mas Taylor nos fornece um
resumo da versão de Plutarco, que atende aos nossos objetivos no momento:

“Na versão de Plutarco, Osíris figura como um rei do Egito de um passado


remoto, o qual civilizou seu povo, ensinando-o a agricultura e estabelecendo leis.
Seu invejoso irmão Seth, procurando destruir Osíris, convida-o para um banquete
em que uma bela arca é oferecida ao convidado, o qual poderia caber perfeitamente
nela. Quando Osíris sobe, os confederados de Seth selam a tampa e jogam a arca no
Nilo, onde Osíris se afoga. Após uma longa busca, Ísis, a irmã e esposa de Osíris,
recupera o corpo de seu marido, apenas para que caia nas mãos de Seth, o qual o
corta em quatorze pedaços e os espalha pelo Egito. Ísis e Néftis novamente
procuram e recuperam cada parte do corpo de Osíris, com exceção do falo. Anúbis,
o de cabeça de chacal, mumifica o corpo, e Osíris é ressuscitado por Ísis e Néftis.
Osíris então torna-se o senhor do reino dos mortos, enquanto seu filho Hórus, tendo
derrotado com sucesso o usurpador Seth pela realeza do Egito, vinga o assassinato
396
de seu pai e assume seu lugar no trono.”

Podemos complementar essa transcrição de Taylor com trechos de um texto intitulado


Grande Hino a Osíris, proveniente da XVIII Dinastia397, que mencionam a concepção e a
vitória de Hórus em um tribunal divino:

“Ísis, [...] protetora de seu irmão,


busca-o sem fadiga,
percorre em luto este país
não repouse enquanto não o encontrar
Ela faz sombra (sobre ele) com as (suas) plumas,
produz ar com suas asas,
faz aclamações e junta-se a seu irmão.
Ela ergue da inércia da morte O-fatigado-de-coração,
Recebe sua semente, engendra o herdeiro,
amamenta a criança na solidão de um lugar desconhecido

394
CASTEL, Elisa. Op. cit., p. 171.
395
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2012, p. 339.
396
TAYLOR, John H. Op. cit., pp. 25-27. Tradução livre.
397
ARAÚJO, Emanuel. Op. cit., p. 338.
63

e a conduz (até) seu braço tornar-se forte


[...]
O tribunal de Maat por ele se reúne
(com) a Enéada (e) o próprio Senhor de Tudo
Os juízes de Maat a ele se juntam,
(pois) repudiam a injustiça
[...]
Sentencia-se que a voz de Hórus é justa,
a dignidade (régia) de seu pai lhe é conferida
e ele surge coroado por ordem de Geb,
398
[...].”

Esses trechos mostram episódios constantes do ciclo de mitos envolvendo Osíris: Ísis,
assumindo forma de falcão, usa sua magia para trazer Osíris à vida e neste momento ambos
engendram Hórus. Este é criado por Ísis em segredo até tornar-se adulto e reivindicar o trono
perante um tribunal divino, o qual contém a Enéade de Heliópolis e o deus Solar (Senhor de
Tudo era um epíteto aplicável a Rá e a Atum399). A presença de Geb, em separado, é melhor
compreendida ao termos em mente um papiro da XIX Dinastia (chamado de Cânone Real de
Turim), que o situa como um governante do Egito anterior a Osíris400.
O relato mitológico era usado na legitimação régia. O faraó era Rá, mas também era
Hórus enquanto vivo e Osíris após a morte. Assim, da mesma forma que Hórus realizou fitos
funerários em seu pai, o novo faraó sepultava o regente anterior como se fosse Hórus
sepultando Osíris, o que lhe conferia embasamento simbólico para a legitimação de seu
reinado401.
Já no âmbito da religião funerária, o mito de Osíris possuía outro tipo de implicação.
Osíris foi o primeiro a ser mumificado e a ressuscitar por meio da magia. Ele, enquanto
regente falecido torna-se senhor do reino dos mortos, recebendo epítetos como os de Senhor
do Oeste (região das necrópoles) e Primeiro dos Ocidentais. Seu retorno à vida em um novo
local do cosmos torna-se um paradigma mitológico a ser seguido. Dito de outra forma, a
ressurreição de Osíris possibilita que as pessoas também possam adquirir uma vida após a
morte402.
Osíris é a principal possibilidade de vida póstuma fora da esfera da realeza403, mas
também se encontrava disponível ao rei, visto que este era Osíris ao morrer. A designação do
morto como um Osíris existia nos Textos das Pirâmides, mas se difundiu por volta do

398
Ibidem, pp. 342-343.
399
Ibidem, p. 420.
400
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2012, p. 339.
401
Ibidem, pp. 345-346.
402
Ibidem, p. 383.
403
Ibidem, p. 385.
64

Primeiro Período Intermediário404 pelo processo de alargamento do pós-morte. Ao ser assim


identificado, o morto, pelas mesmas regras de assimilação ao divino que vimos ao tratar da
magia, conseguia adquirir sua vida após a morte.
Acreditava-se que o reino dos mortos de Osíris deveria ser alcançado com uma
jornada que se iniciava na própria tumba405. Nessa marcha, o morto se defrontaria com uma
série de perigos, desafios e obstáculos, e para isso era auxiliado pelas iconografias e textos
sakhu existentes em sua tumba. Exemplo desse auxílio era a preocupação em fazer o morto
conhecer os caminhos a percorrer e os nomes secretos dos seres que encontrasse pelo trajeto,
de forma que pudesse dominá-los e prosseguir em sua ida. O local exato, a forma de acesso e
a própria nomenclatura do reino de Osíris variaram com o tempo (os nomes mais corriqueiros
utilizados pelos estudiosos para designá-lo são Campo dos Juncos e Campos das
Oferendas)406, mas parece imperar a ideia de que se trata de um local subterrâneo e localizado
a Oeste. Ademais, é certo que se imaginava ser um local de abundância, fartura e isento de
dificuldades, como fome e doenças.

2.3.2.3 Osíris e Rá

As concepções solar e osiriana não eram excludentes, mas sim compatíveis e


complementares. Também não são restritas aos seus “públicos alvo”: o destino solar era
garantido ao rei, mas ele também possuía acesso ao osiriano, uma vez que, reiteramos, ele
tornava-se um Osíris ao falecer. Já os mortos não reais, como vimos, conseguiam acesso à
barca solar por meio do recurso da magia. Lembremos que o título original daquilo a que
chamamos Livro dos Mortos pode ser traduzido como “Livro para sair à luz do dia”, o que
expressa a ideia de um acesso aos benefícios do contato com Rá.
O trajeto tratado pelo Livro de Amduat, assim como o de seus Livros “irmãos”, parece
corresponder ao reino de Osíris. À medida que o deus solar passa por cada uma das doze
divisões, ele ilumina os mortos que ali estão em repouso, despertando-os e possibilitando que
eles aproveitassem um tempo de vida de 110 anos enquanto o deus ali permanecesse (ou seja,
110 anos em uma hora)407. Ao invés de ser entendida como estranha, a divergência temporal
era vista por uma lógica correspondente: cada hora que o sol passava no reino subterrâneo
equivalia a um tempo de vida de 110 anos. Findada essa hora, Rá partia e os mortos

404
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 27.
405
Ibidem, p. 32.
406
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2012, pp. 392-393.
407
Ibidem, p. 396.
65

retornavam ao seu estado anterior de inércia408. Enquanto o deus-sol estivesse ali, entretanto,
os mortos eram capazes de realizar as mesmas atividades que realizavam em suas vidas409.
O Livro de Amduat também informa sobre uma reunião de Osíris com Rá ocorrida na
5ª hora da noite410. Essa junção dos deuses renovava as forças de ambos e criava uma
divindade híbrida temporária, a qual desaparece com o avançar da hora e a partida do sol.
Osíris e Rá se reuniam, respectivamente, como uma múmia inerte e seu ba 411. Essa união
regeneradora momentânea é apontada como tendo embasado a ideia de reunião do ba com o
corpo mumificado na tumba, produzindo o mesmo efeito de regeneração412. Taylor afirma que
o corpo era transformado em algo divino, um sah, em virtude de possibilitar que tal reunião
ocorresse da mesma forma que acontecia com os deuses413.
Osíris e Rá expressavam duas formas de destino póstumo ao morto. Ambas eram
creditadas com duração eterna, e cada qual expressava uma forma de eternidade diferente.
Uma formulação dual muito comum dos antigos egípcios era a elaborada entre os conceitos Dt
e nHH. Apesar de serem normalmente apontados como dotados de sentido temporal, Englund
mostra que esses termos possuem significados mais abrangentes414: Dt era um princípio
estável, imutável, inerte e feminino, enquanto nHH era seu antagônico instável, cíclico, móvel
e masculino. χmbos são geralmente traduzidos como “eternidade”, e disso resulta a tradução
de casa da eternidade para as expressões que designam a tumba. Assim como outras
formulações duais, nHH e Dt não são excludentes, mas sim complementares. A relação entre os
destinos de Osíris e Rá, com seus respectivos destinos póstumos, pode ser expressa nesses
termos: Osíris é o aspecto linear e inerte, Dt, enquanto Rá é o cíclico e móvel, nHH 415.
Portanto, a existência póstuma poderia ser obtida por meio de Osíris, Rá ou com vistas
a ambos, uma vez que versões diferentes sobre uma mesma questão não se excluem no
pensamento egípcio, mas muitas vezes se concluem. A existência póstuma de Osíris se
caracterizava pela inércia constante do deus, uma eternidade-Dt, enquanto que a de Rá
consistia em uma eternidade-nHH, um infinito ciclo de viagem na barca solar e confronto com
as forças do Caos.

408
Ibidem, p. 399.
409
Ibidem, pp. 396-397.
410
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 29.
411
Idem nota acima.
412
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2012, p. 380.
413
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 23.
414
ENGLUND, Gertie. Gods as a Frame of Reference. In: ENGLUND, Gertie. Op. cit., p. 12.
415
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2012, p. 394.
66

Capítulo 3: O Tribunal Egípcio dos Mortos

A jornada para chegar ao reino dos mortos e aproveitar uma nova forma de existência
era repleta de ameaças e desafios. O morto revivido deveria atravessar obstáculos, evitar seres
potencialmente perigosos ou enfrentá-los usando magia. A partir do Reino Novo foi inserido
um episódio fulcral nessa marcha póstuma: o falecido deveria ser julgado pelos deuses em
virtude dos atos que cometera ao longo de sua vida.
A ideia de um tribunal divino já existia no Egito Antigo. Há algumas menções nos
Textos das Pirâmides416 e um número mais significativo nos Textos dos Sarcófagos, quando o
objetivo parece ser garantir benefícios ao morto e punições a seus inimigos (sejam animais,
pessoas ou até divindades)417. Com o surgimento do Livro dos Mortos, porém, esse tribunal
póstumo torna-se central para a obtenção do pós-morte, o que aumentou grandemente o
número de suas menções e representações. Ser absolvido garantia que o morto continuaria em
seu caminho para a nova vida, mas, caso fosse considerado culpado, o falecido seria
destruído.

3.1 O Salão das Duas Maats

τ julgamento do morto ocorria em um local chamado “Sala das Duas Maats”, por
vezes também nomeado “Sala das Duas Verdades” pelos estudiosos. Seu cerne era a pesagem
do coração-ib junto a Maat, a deusa que personificava princípios como verdade, justiça e
ordem cósmica. Como discutimos antes, ib não apenas comandava os pensamentos e as ações
como também os recordava, agindo dessa forma como uma espécie de “super banco de
dados”, que não estava sob total controle do indivíduo.
É consenso que o tribunal se relacionava ao Encantamento nº 125 do Livro dos
Mortos, apesar de seu texto não fazer menção alguma à pesagem de ib418. Em tal
Encantamento, o morto expressava duas saudações, uma destinada a Osíris, que presidia o
julgamento, e outra dirigida aos quarenta e dois deuses que auxiliavam esse deus. É
importante constatar que, além de negar ter cometido atos ruins (tais como matar ou causar
dor e sofrimento), o morto afirma conhecer as divindades ali presentes e saber seus nomes:

416
GRAVES-BROWN, Carolyn. W1982: Weighing of the Heart. Museum of Egyptian Antiquities, Cairo, 2012.
Disponível em: http://www.egypt.swan.ac.uk/index.php/educational-visits/139-w1982-weighing Acessado em 12 de Janeiro de
2014, p. 1.
417
JOÃO, Maria Thereza David. Op. cit., p. 127.
418
FAULKNER, Raymond O. Op. cit., p. 28.
67

“Glória a ti, grande deus, Senhor da Justiça! Eu vim a você, meu senhor,
que você me traga para que eu possa ver sua beleza, por que eu conheço você e sei
seu nome, e sei os nomes dos quarenta e dois deuses que estão contigo nesta Sala de
Justiça [...], e nenhum mal deva vir a ser contra mim nesta terra, nesta Sala de
419
Justiça, pois eu sei o nome desses deuses que nela estão.”

Após a passagem de onde retiramos o trecho acima, o morto dirige-se a cada um dos
quarenta e dois deuses-juízes presentes na Sala, proferindo seus nomes e negando haver
cometido determinado ato. A listagem completa era bastante variada e parecia representar
todas as formas imaginadas de mal420. Contudo, apenas ocasionalmente aparecem os quarenta
e dois deuses em um exemplar do Livro dos Mortos; era mais comum que a pessoa fizesse
uma seleção daqueles que ela desejasse ou que mais lhe conviessem421.
Uma listagem dos quarenta e dois deuses-juízes e as atitudes que lhes são negadas
pode ser vista nos apêndices ao final da Monografia. Convém afirmar que, por vezes, alguma
característica além do nome do juiz é mencionada, como a localidade de onde ele veio. Como
não são itens relevantes para este estudo, não foram inseridos na relação.
Com a evocação dos nomes, o morto efetua um procedimento mágico que lhe garante
poder sobre os juízes422. A subsequente afirmação de não ter cometido tal ato ou ter agido de
tal forma tornava-se, então, válida perante seus julgadores. Dessa forma, o finado garantia (ou
tentava, ao menos) seu êxito no julgamento.
Por essa descrição de faltas que são negadas pelo falecido, o Encantamento 125 é
intitulado pelos estudiosos como Declaração de Inocência ou, expressão que se tornou mais
corriqueira, Declaração Negativa de Culpa. Quanto à pesagem do ib do morto, que pode ser
considerada como o momento que leva à adjetivação de julgamento do episódio ocorrido na
Sala, não aparece no texto do Encantamento, mas sim na vinheta que o acompanha.
A cena imagética da pesagem de ib surge ainda na XVIII Dinastia, logo nos inícios do
Livro dos Mortos. No começo era pouco elaborada e sem muito detalhamento, sem muita
distinção do espaço em que ocorria423, mas com o tempo tornou-se mais aprimorada424. Por
volta da XIX Dinastia, o julgamento figura em uma grande sala dotada de colunas e portas nas
laterais, algo que Santos afirma caracterizar o ambiente como um local de passagem 425. O teto

419
Ibidem, pp. 29-31. Tradução livre.
420
WILKINSON, Richard H. Op. cit., p. 84.
421
Idem nota acima.
422
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2012, p. 389.
423
Um bom exemplo disso que estamos afirmando é o encontrado no papiro de Nebseny, atualmente guardado no Museu
Britânico. Na representação apontada como se tratando da pesagem de ib, os únicos elementos iconográficos que levam a essa
afirmação são a balança da pesagem e a criatura mitológica que devorava os corações dos culpados.
424
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2012, p 387.
425
Idem nota acima.
68

poderia conter representações de cobras intercaladas por penas de avestruz, símbolo típico da
deusa Maat, o que novamente para Santos representa uma proteção contra o Caos 426. Por
vezes, os deuses-juízes (ou alguns deles) também são representados na imagem, sentados ou
em posição erguida, “podendo segurar facas ou penas de Maat como símbolos de seus poderes
judiciais”427.
A cena do julgamento possui elementos em geral regulares. O morto é introduzido na
Sala das Duas Maats por alguma divindade que possuía participação importante no tribunal,
em geral Maat ou Anúbis428. Em seguida há a balança de dois pratos429 utilizada para a
pesagem: em um deles era depositado o ib do morto (normalmente dentro de um recipiente),
enquanto no oposto se encontra Maat ou apenas sua pena simbólica. A balança é geralmente
regulada por Anúbis e em seu topo poderia haver representações de Maat (seu busto com pena
ou meramente sua pena) ou Thot430 na forma de babuíno, um de seus animais simbólicos (o
babuíno poderia ter uma lua crescente sobre sua cabeça, uma vez que Thot era uma divindade
com aspectos lunares, ou segurar o equipamento característico dos escribas, profissão que
tinha esse deus como patrono). No teto, pode haver representações de alguns ou de todos os
deuses-juízes.
O deus-escriba Thot aparece logo após, em sua forma mista de homem com cabeça de
pássaro íbis. Seu papel principal era registrar o decorrer da pesagem e anunciar o resultado
final. Se ib se mostrasse com peso equivalente à Maat, o morto era declarado mAa-xrw (maa-
kheru), expressão que significa “justificado” ou “justo de voz”. Tal designação431 indicava
que a pessoa havia levado sua vida de acordo com as regras e preceitos de Maat, e que, graças
a isso, o morto poderia gozar da nova vida após a morte. O agora justo de voz era apresentado
por Thot ou Hórus a Osíris, que presidia o tribunal432, e lhe era permitido seguir em sua
viagem póstuma para ingressar no reino dos mortos. Normalmente, Ísis e Néftis apareciam
atrás de Osíris, uma vez que essas deusas prantearam a morte do deus.
Todavia, se o coração se mostrasse mais pesado que Maat, o morto era condenado e
tinha seu ib devorado por Ammit, uma criatura433 híbrida com cabeça de crocodilo, parte

426
Idem nota acima.
427
WILKINSON, Richard H. Op. cit., p. 84. Tradução livre.
428
Anúbis, dentre suas várias funções no meio funerário, era um dos principais guias para o reino dos mortos.
429
Santos levanta a hipótese de que a presença desta balança tenha influenciado o nome de Sala das Duas Maats.
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2012, p. 336.
430
Thot, além de escriba e patrono da escrita, era também uma divindade ligada a medições. WILKINSON, Richard H.
Reading Egyptian Art: a hieroglyph guide to Ancient Egyptian painting and sculpture. London: Thames & Hudson, 1994, p. 73.
431
A expressão mAa-xrw surge a partir da XI Dinastia como uma titulação dada ao morto. τ morto “justificado” no Texto
dos Sarcófagos recebia poderes e vantagens contra seus inimigos. JOÃO, Maria Thereza David. Op. cit., p. 126.
432
Taylor afirma que, em cenas posteriores ao Reino Novo, Rá poderia aparecer assumindo esse papel no julgamento.
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 37.
433
Apesar de seu nome ser escrito com o hieróglifo característico que designava deuses, concordamos com Wilkinson ao
este afirmar que se tratava de um ser temido e evitado. WILKINSON, Richard H. Op. cit., 2003, p. 218.
69

dianteira do corpo de leão ou leopardo e parte traseira de hipopótamo, todas criaturas


consideradas perigosas pelos egípcios e que, juntas, enfatizavam a eficácia condenatória de
Ammit434. Com isso, acreditava-se que o morto havia falhado na jornada póstuma e deixava
de existir. Ele tornou-se um dos mtyw (mut), “mortos” de fato. O Livro dos Mortos não
informa sobre o destino dos mut, mas eles aparecem sendo castigados nos Livros dos Portões
e Amduat435. Esses castigos são diários e afetam os mut em todas as suas partes do ser, o que
implica em uma constante negação de sua existência436. Contudo, pelo que possuímos de
conhecimento das práticas mágico-religiosas cotidianas, a categoria de mut englobava
também os que sofreram morte violenta ou não obtiveram funeral adequado, por exemplo;
eram vistos como extremamente perigosos e recorria-se à magia como proteção contra sua
influência437.
O tema desse julgamento póstumo foi recorrente no Livro dos Mortos e bastante
reproduzido em iconografias na tumba, mas há pouca reverberação em outros textos
funerários. O tribunal presidido por Osíris surge apenas em uma cena referente à 5ª hora do
Livro dos Portões438, mas há diferenças significativas. De acordo com a descrição que nos é
fornecida por Santos:

“Osíris é mostrado sentado em um trono no alto de uma escadaria tendo à


sua frente uma escada personificada, com a forma de uma múmia, de cujo ombro
pendem dois retângulos que representam os pratos da balança. Nestes não há
nenhuma pluma de Maat ou o coração. Já os degraus são ocupados por imagens dos
mortos justificados e, abaixo, sem nenhuma imagem, estão aqueles que são
439
aniquilados.”

Christine Seeber, em estudo efetuado na década de 1970440, afirma que a cena do


tribunal no Livro dos Mortos infere à imortalidade póstuma de um indivíduo, enquanto no
Livro dos Portões o evento possui uma abrangência cósmica, abarcando a humanidade como
um todo441. Já a análise feita por Colleen Manassa diz ter a cena implicações para um
fortalecimento de Rá com Ordem e símbolos apotropaicos, com vistas a seu subsequente
confronto com as forças do Caos442.

434
HART, George. Op. cit., p. 13.
435
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2012, p. 390.
436
Ibidem, pp. 391-392.
437
PINCH, Geraldine. Op. cit., p. 148.
438
SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2012, p. 386.
439
Idem nota acima.
440
Untersuchungen zur Darstellung des Totengerichts im Alten Ägypten, publicado em 1976.
441
MANASSA, Colleen. The Judgment Hall of Osiris in the Book of Gates. In: Revue d’Égyptologie, vol. 57, pp. 109-
150. Paris: Societé Française d’Égyptologie, 2006, pp. 111; 138.
442
Ibidem, pp. 140-141.
70

O Livro dos Portões, lembremos, é parte de uma literatura funerária voltada para o rei
e seu destino póstumo solar. No Livro dos Mortos, a cena do julgamento deixava mais
evidente suas relações osirianas. A possibilidade de maior acesso ao Livro dos Mortos fez
com que a cena do tribunal individual viesse a ser mais reproduzida e, futuramente, mais
conhecida. Atualmente ela costuma ser nomeada como psicostasia, expressão oriunda do
grego que, obviamente, surge apenas com o contato entre egípcios e gregos no I milênio AEC.
O sentido imediato do termo, todavia, é errôneo, e isto somado a sua cunhagem tardia faz com
que prefiramos não utilizar essa denominação.
Psicostasia é a junção de duas palavras do grego clássico: υ ή (transliterado por
psych ) e ά ις (transliterado por stásis). De acordo com o dicionário Lidell & Scott, ά ις
pode ser compreendido como o “estado” ou “condição” (de algo)443. Já υ ή, apesar de
significar “alma” em uma tradução mais literal, também possui “coração” ou “consciência”
como significados possíveis444, aspectos referidos ao elemento ib. Apesar de ser em geral
traduzido como “pesagem da alma”, julgamos ser mais adequado traduzir e entender o termo
como “estado da consciência” ou, adaptando-se mais precisamente ao contexto do Antigo
Egito, “estado de ib”.

3.2 Nosso Corpus Iconográfico e Metodologia de Análise

Feita essa apresentação inicial da pesagem de ib, partamos agora para as análises de
nossas fontes imagéticas.
Selecionamos nove exemplares de iconografias que retratam o tema: três datadas do
Reino Novo, duas do Terceiro Período Intermediário e quatro da Época Tardia. As imagens
foram obtidas no Museu Britânico - Londres, no Museu Egípcio de Turim - Itália e no Museu
Metropolitano de Nova Iorque. Todas são provenientes de papiros, mas ressaltamos que a
cena poderia ser inserida em outras superfícies como os sarcófagos 445. A análise metodológica
de cada fonte foi realizada em duas etapas: primeiramente, uma descrição detalhada de cada
cena com identificação e explicação de seus elementos. Nisso fomos sumariamente auxiliados
por descrições fornecidas pelos museus (infelizmente existentes em apenas poucos casos) e
por embasamentos bibliográficos. Também fizemos referência a outros textos e imagens
quando julgamos necessário.
443
LIDDELL, Henry George; SCOTT, Robert. An Intermediate Greek-English Lexicon. Oxford: Oxford University
Press, 2004, p. 742.
444
Ibidem, p. 903.
445
A exemplo disso, ver as cenas de Hori e Hor-a-Aset em SANTOS, Moacir Elias. Op. cit., 2002, pp. 245; 247. Ambas
as imagens são fotografias feitas pelo próprio autor de material constante no Museu Nacional da UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil.
71

Após essa etapa, foi seguida uma metodologia apresentada e ensinada por Ciro
Cardoso intitulada Análise de Conteúdo446. Esse procedimento metodológico consiste no
estabelecimento de uma grade ou tabela analítica cujo nome é “Grade de Leitura e Análise”.
Esta divide-se, em princípio, em três grandes colunas.
A primeira dessas colunas, que pode ser subdividida, é chamada de “Categorias e
Subcategorias Temáticas”, as quais são estabelecidas mediante quatro critérios: a)
pertinência: os temas obviamente devem estar presentes na(s) fonte(s) a ser(em) estudada(s)
e, naturalmente, têm que auxiliar o trabalho analítico do pesquisador; b) exaustividade: as
categorias e subcategorias temáticas devem ser abrangentes a ponto de agregar o todo, ou
quase a totalidade do conteúdo das fontes; c) exclusividade: elementos idênticos presentes nas
fontes não devem se dirigir para mais de uma categoria ou subcategoria temática; d)
objetividade: assumindo que este critério é tendencial, ele varia de acordo com o pesquisador
que estiver aplicando tal metodologia a determinada fonte.
Após definidas as categorias e subcategorias temáticas a serem utilizadas, além de
efetuada uma prévia observação do conteúdo da(s) fonte(s), determina-se e distribuem-se as
“Unidades de Registro” a serem inseridas (ou aplicadas) a cada categoria e/ou subcategoria
temática. As “Unidades de Registro”, componentes da segunda grande coluna desta “grade”,
são o menor registro que apresente um significado consistente acerca do conteúdo da(s)
fonte(s) então analisada(s), podendo ser uma única palavra, a descrição de um simples gesto,
uma frase ou até um parágrafo na íntegra. Sua função é exemplificar um tema ou, mais
especificamente, um subtema.
Por fim, há a contabilização da ocorrência das unidades de registro referentes a cada
tema/subtema. Para tal, utiliza-se a terceira coluna componente da “grade”, chamada de
“Unidades de Numeração”; estas se tratam, efetivamente, de números vinculados a cada
unidade de registro a fim de enumerá-las. É a partir dessa última coluna que se inicia a leitura
da “grade”, em sentido progressivo para a esquerda.
Com base nesses preceitos, foi construída a seguinte tabela, utilizada, a priori, como
modelo:

446
Para a descrição de tal metodologia, embaso-me em notas de aula, texto este redigido por Ciro Cardoso e por ele usado
na disciplina Métodos e Técnicas I, no PPGH-UFF (Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense),
por ele ministrada no 1º semestre de 2000.
72

Categorias e Subcategorias Temáticas Unidades de Registro Unidades de


Numeração

Parcial Total

Diretamente
Divindades relacionadas à
Ou pesagem na balança
Figuras
R Mitológicas
e
l
i
g
i
ã Símbolos
o

Ressaltamos que a grade acima sofrerá as necessárias adaptações de acordo com as


necessidades de cada fonte analisada. Vê-se isso pelos espaços vazios após a categoria de
símbolos; estes, por exemplo, só poderão ser no ato da análise de cada iconografia. Outro
ponto importante é que tentaremos especificar, quando possível, quais divindades ou figuras
mitológicas (terminologia adotada para poder abarcar Ammit) estão diretamente relacionadas
à pesagem na balança.
Preenchida a tabela, segue-se a etapa final de análise e interpretação dos resultados da
mesma. Podemos afirmar que as análises descritivas prévias seguiram um viés qualitativo,
enquanto as grades adotadas foram de tipo quantitativo. Contudo, ambos os momentos da
análise convergiram e se influenciaram, chegando até a se alterarem durante o processo de
pesquisa. São, portanto, momentos interdependentes da metodologia, e não apartados.
Devemos fazer o adendo de que consideramos que todas as representações imagéticas
do morto mostram-no já em sua forma de akh. A razão disso é que compreendemos que, ao
chegar à Sala das Duas Maats, a pessoa já havia recedido os rituais sakhu e encontrava-se
dotada dos textos e Encantamentos de mesmo nome, dentre eles a própria iconografia do
tribunal. Ademais, o risco de ser condenado pelo julgamento implicava em uma segunda
morte, uma possibilidade passível de ocorrer por diversas outras razões (como a não nutrição
do ka ou a ação de alguma entidade do reino dos mortos) e que, portanto, era um medo
73

corriqueiro na religião funerária447. A consideração prévia sobre esse ponto foi importante,
visto que necessitamos apontar quais elementos do indivíduo aparecem na cena, tais como o
ib (presença unânime) ou o ba (presença ocasional). Portanto, consideraremos como akh cada
representação do finado nas iconografias a seguir.
As imagens são apresentadas em ordem cronológica, começando pelo Reino Novo e
culminando na Época Tardia. Ressaltamos que, na medida em que avançamos nas análises,
fazemos referências às iconografias já trabalhadas quando for necessário. A razão disso é que
muitos elementos se repetem nas cenas e seria um trabalho prolixo repetir as explicações a
fundo sempre que isso ocorresse.

3.2.1 Reino Novo

Cena do Livro dos Mortos de Hunefer, XIX Dinastia.


Proveniência: não informada.
Datação adicional: não informada.
Informação adicional: há descrição fornecida pela página do Museu Britânico.

Figura 2 - Cortesia: © Trustees of the British Museum.

À esquerda, vemos Hunefer sendo levado à Sala das Duas Maats pelo deus Anúbis, o
qual segura um amuleto ankh448 com a mão esquerda. Acima, vemos Hunefer ajoelhado
perante uma mesa com oferendas e os deuses Rá, Atum, Shu, Tefnut, Geb, Nut, Hórus, Ísis,

447
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 38.
448
Ankh era o hieróglifo que simbolizava a vida, portanto tendo significados benéficos. Era um amuleto comum no Egito
Antigo e suas representações imagéticas são frequentes.
74

Néftis, Hu (palavra divina, ordem proferida) 449


, Sia (percepção)450, e os “caminhos” Sul,
Norte e Oeste451. Trata-se, portanto, de uma representação primeiro do deus-sol em sua
principal figuração no meio póstumo, a Enéade Heliopolitana (com exclusão de Seth), os
deuses que personificam a mente e as palavras de Rá (ou, como também são apontados, os
auxiliares da criação de Ptah)452 e os caminhos existentes para o reino de Osíris. As mãos de
Hunefer se encontram em posição de adoração ou demonstração de respeito 453 para tais
divindades, as quais podemos dizer que estão atuando como os juízes auxiliares na pesagem.
A balança é mostrada ao lado da chegada de Hunefer. No prato esquerdo há uma
espécie de jarro que contém seu ib, enquanto no direito vemos a pena de Maat. A deusa
também aparece no topo da balança, sendo representada como um dorso aparentemente
mumiforme e sua pena acima da cabeça. Sua pena também aparece como parte do utensílio
utilizado por Anúbis para regulagem da balança. Entre os pratos desta há também Ammit, a
Devoradora de Corações454. Ao seu lado, há uma inscrição hieroglífica que corresponde a um
fragmento do Encantamento 30455, destinado a evitar que ib delate o morto.
Após a balança vemos Thot registrando em escrito o decorrer da pesagem. Ao lado,
Hunefer, novamente, dessa vez acompanhado por Hórus, o qual segura um símbolo ankh da
mesma forma que Anúbis. A posição do braço esquerdo456 de Hórus expressa que ele está
convidando Hunefer a seguir enquanto apresenta-o a Osíris. Este momento é suficiente para
deduzirmos que a pesagem do ib de Hunefer foi bem sucedida e que ele se tornou “justo de
voz”.
Osíris está sentado em um trono dentro de um dossel. O teto deste é ornado por uma
série de cobras erguidas dotadas de círculos solares. Tratam-se da representação da deusa
Wadjet457 em sua forma de iaret (ou uraeus, como ficou conhecida em latim), um símbolo
comum a reis e certos deuses (como Rá e Osíris) e que lhes fornece proteção 458. Abaixo, há
um wdjat (Olho de Hórus) alado segurando uma pena que não se assemelha a de Maat. O
wdjat foi um ícone forte de proteção no Egito Antigo e sua forma dotada de asas, surgida no
Reino Novo, era especialmente utilizada para designar proteção a deuses e reis 459. A estranha

449
CASTEL, Elisa. Op. cit., p. 92.
450
Ibidem, p. 212.
451
Informação disponível na descrição do Museu Britânico:
http://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details.aspx?objectId=114851&partId=1.
452
WILKINSON, Richard H. Op. cit., 2003, p. 130.
453
WILKINSON, Richard H. Op. cit., 1994, p. 79.
454
Um de seus epítetos. WILKINSON, Richard H. Op. cit., 2003, p. 218.
455
PARKINSON, Richard. Hunefer and his Book of the Dead. London: The British Musem Press, 2010, p. 23.
456
WILKINSON, Richard H. Op. cit., 1994, p. 25.
457
Deusa serpente do Baixo Egito.
458
HART, George. Op. cit., p. 161; WILKINSON, Richard H. Op. cit., 2003, pp. 206-207.
459
WILKINSON, Richard H. WILKINSON, Richard H. Op. cit., 1994, p. 93.
75

pena, possivelmente, representa um item utilizado para cobrir Osíris, endossando o caráter
protetor do wdjat alado.
Osíris aparece sentado em um trono no meio do dossel. Ele sua coroa-atef, elemento
que lhe era característico. Suas roupas são brancas, o que tanto simboliza pureza quanto
remete às bandagens de sua mumificação, e sua pele é verde em alusão às suas relações com
vegetação. Como verde também era uma cor que simbolizava regeneração, a pele de Osíris
era comumente pintada com essa coloração460. Ele segura o cetro-heqa, símbolo de poder real,
e a chibata-nekhakha, força ou dominação do rei. Ambas eram insígnias faraônicas e
elementos comuns nas representações deste deus461. Atrás de Osíris se encontram suas irmãs
Ísis e Néftis, ambas com um dos braços em sinal de adoração e o outro segurando Osíris, o
que denota o papel protetor dessas deusas.
Abaixo do trono de Osíris uma superfície de água de onde nasce uma flor de lótus de
cujas pétalas saem os quatro vasos canópicos. O lótus era uma flor que simbolizava criação e
renascimento462, enquanto os vasos, na forma dos Filhos de Hórus, além de depositários das
principais vísceras do falecido, simbolizavam também seres guardiões do caixão de Osíris463.
Quanto à superfície aquática, poderia tanto ser um rio subterrâneo (como o que fornecia
navegação à barca de Rá) quanto o próprio Nilo, fornecedor de vida e sustento ao Egito. É
possível que também seja uma alusão à forma da morte de Osíris (afogamento), porém
representando um meio pelo qual o deus adquiriu sua nova forma.

460
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 28.
461
WILKINSON, Richard H. Op. cit., 2013, p. 120.
462
WILKINSON, Richard H. Op. cit., 1994, p. 121.
463
HART, George. Op. cit., p. 151.
76

Grade de Leitura e Análise

Categorias e Subcategorias Temáticas Unidades de Registro Unidades de


Numeração

Parcial Total

Diretamente Anúbis (2), Maat (3),


relacionadas à Thot, Ammit. 7
pesagem na
balança
Divindades 25
R Ou Figuras Hórus (2), Osíris, Ísis (2),
e Mitológicas Néftis (2), Rá, Atum, Shu, 18
l Tefnut, Geb, Nut, Hu, Sia,
i “caminhos” do σorte, Sul
g e Oeste.
i
ã Amuletos e Vasos canópicos (4), Olho
o proteção de Hórus alado, uraeus 37
(28), gesto protetor das
deusas-irmãs (2), ankh (2).

Símbolos Cetros e Coroas Heqa, nekhakha, atef. 3 46

Partes do ser Ib, akh (3). 4

Regeneração / Lótus, água. 2


Renascimento

Com base na grade, vemos que há uma ocorrência grande de divindades ou figuras
mitológicas (25 ao todo), sendo 7 direcionadas à subsubcategoria de diretamente relacionadas
à pesagem na balança. Porém, a subcategoria de símbolos foi mais presente e obteve 46
unidades de registro, espalhadas por suas subsubcategorias. Destas, a mais numerosa foi a de
amuletos e proteção, contabilizando 37 unidades de registro. Note-se que resolvemos
computar também, além dos elementos apontados como diretamente apotropaicos, o gestual
dos braços das figuras de Ísis e Néftis.
Pela descrição que fizemos, afirmamos que essa subsubcategoria está voltada
sumariamente para Osíris. Podemos entender isso pelos seus papéis de governante do reino
dos mortos e presidente do então julgamento na Sala das Duas Verdades, mas, ao lembrarmos
que o morto também recebia a designação de Osíris, podemos deduzir que esses símbolos
apotropaicos vertem também para Hunefer.
77

Em seguida, temos 4 unidades de numeração para partes do ser, quais sejam uma
aparição de ib e três aparições de Hunefer como akh. Não inserimos o nome na tabela pois
apesar de não termos dúvida de sua presença na escrita, apenas deduzimos sua presença a
partir dos próprios itens da cena. Por último, há 2 elementos de regeneração e vida póstuma,
assim como 2 amuletos ankh. Somados, constatamos que, apesar de se tratar de um ambiente
póstumo, é dada mais ênfase e destaque à vida. Assim, os algarismos das unidades de
numeração de tais subcategorias, juntos, apontam para a importância da ressurreição para a
nova vida.

Cena do Livro dos Mortos de Ani, XIX Dinastia.


Proveniência: Tebas, Alto Egito.
Datação especificada: cerca de 1250 AEC.
Informação adicional: há descrição fornecida pela página do Museu Britânico.
Figura 3 - Cortesia: © Trustees of the British Museum.

Figura 4 - Cortesia: © Trustees of the British Museum.


78

A cena começa com Ani e sua esposa, Tutu, chegando à Sala das Duas Maats. Eles
não são levados por nenhuma divindade, mas a postura semicurvadas de ambos implica em
humildade e respeito. Tutu leva um sistro em sua mão direita, símbolo tanto de proteção
quanto de renascimento464, enquanto Ani murmura palavras do Encantamento 30465. No
centro vê-se a representação da balança, com o ib de Ani no prato esquerdo e a pena de Maat
no direito. A balança é ajustada por Anúbis, o qual utiliza um aparato que se liga a ela por
uma pena de Maat. No topo da balança há um Thot em forma de babuíno.
O teto da cena é dominado por uma representação de uma oferenda feita a uma série
de divindades. Tais são, da direita para a esquerda: Rá-Horakhty466, Atum, Shu, Tefnut, Geb,
Nut, Ísis ao lado de Néftis, Hórus, Hathor467 e Hu ao lado de Sai. Tratam-se, portanto, de
algumas das divindades mais importantes do Egito, principalmente do Reino Novo, e
podemos afirmar que novamente atuam como juízes no tribunal. Todas estão segurando um
cetro was, símbolo de poder e dominação468.
À esquerda da balança temos a representação do ba de Ani, em pé sobre uma espécie
de altar que remete às representações de um pavilhão-templário do Alto Egito469. Sua
presença aqui denota a capacidade de movimentação de Ani e dele prosseguir depois, caso seu
ib vá bem na pesagem. Logo abaixo do ba há duas deusas: Meskhenet, de verde e
ligeiramente à esquerda, e Renenutet, à direita. Meskhenet era uma deusa que personificava o
“tijolo de nascimento” utilizado durante os partos no Egito (as mulheres usavam esses tijolos
para apoiar-se no momento de dar à luz)470. Sua presença na Sala das Duas Verdades implica
tanto a ideia de nascimento para uma nova vida quanto um mapeamento da vida de Ani desde
o seu início471. Renenutet era outra deusa ligada ao nascimento de crianças, desempenhando
principalmente os papéis de amamentá-las e garantir que não lhe faltem leite materno. A
divindade assumia um papel semelhante na religião funerária ao garantir que o morto
recebesse amamentação (ou seja, sustento para se manter)472.
À frente das deusas e do ba há mais duas figuras. A de cima trata-se de Meskhenet em
sua forma de “tijolo de nascimento”. Sua figuração em ambas as formas talvez seja um

464
WILKINSON, Richard H. Op. cit., 1994, p. 213.
465
Informação obtida na descrição do Museu Britânico. Disponível em:
http://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details.aspx?objectId=113335&partId=1.
466
Uma assimilação entre Rá e Hórus (em geral) que simbolizava o sol no horizonte Leste, ou seja, nascendo.
467
Uma das deusas mais antigas e importantes do Egito, simbolizava elementos como amor, alegria e proteção. Foi cedo
relacionada ao culto solar. σo âmbito funerário, poderia ser a “Senhora do Ocidente” que acolhe o morto. CASTEL, Elisa. Op. cit.,
p. 71.
468
WILKINSON, Richard H. Op. cit., 1994, p. 181.
469
Ibidem, p. 141.
470
GRAVES-BROWN, Carolyn. Op. cit., p. 3.
471
CASTEL, Elisa. Op. cit., p. 138.
472
Ibidem, p. 185.
79

endossamento do renascimento de Ani. Abaixo do tijolo há uma figura zoomórfica que


podemos identificar como Shay por estar acompanhado dos hieróglifos de seu nome 473. Shay
simbolizava a “sorte” e o “destino” da pessoa desde o seu nascimento, apesar de estes serem
alteráveis de acordo com as ações humanas e vontades divinas474. Como costumava aparecer
junto a Meskhenet e Renenutet, com quem partilhava afinidades 475, a presença de Shay no
julgamento de Ani implica em um zelo pelo destino do morto que está correndo risco na
balança.
Ao lado direito desta vemos as tradicionais representações de Thot registrando o
julgamento e Ammit preparada para devorar o ib do morto. A continuação da cena mostra
Ani, novamente curvado em posição de respeito, sendo levado a Osíris por Hórus. Este deus
está usando a coroa-pshent, símbolo da união entre Alto e Baixo Egito, e seu tamanho na
imagem em relação aos demais denota sua importância exacerbada. Claramente, ele está
atuando como o governante dos vivos que leva e apresenta o novo “justo de voz” ao
governante dos mortos, Osíris. A seguir, vemos Ani ajoelhado com a mão direita em gesto de
adoração e a mão esquerda segurando oferendas. Uma série bastante numerosa destas pode
também ser vista acima do morto. Sobre a cabeça de Ani há um cone comumente referido
como “cone de perfume”, contudo Joan Padgham, em trabalho recentemente lançado476,
sugere que o cone na verdade representa o ba recebendo oferendas divinas477. Uma
corriqueira fórmula mágica para a realização de oferendas envolvia o rei e os deuses, estes
repassando os sustentos ao morto478. Assim, Ani está tanto ofertando quanto recebendo as
mesmas oferendas, o que podemos afirmar tendo como base o seguinte trecho do
Encantamento 30 do Livro dos Mortos, referentes a uma gala da Grande Enéade: “Que lhes
sejam dadas [ao morto] as oferendas que são emitidas na presença de τsíris [...].”479
Osíris encontra-se sob um dossel com Ísis e Néftis situadas atrás. A ação de segurá-lo
feita por ambas as deusas evidencia o papel de proteção que afirmamos em Hunefer. Nas
mãos de Osíris vemos novamente o cetro heqa e a chibata nekhakha, desta vez acompanhados
pelo cetro was. À frente do deus temos a flor de lótus com os quatro vasos canópicos,

473
O nome de Shay na inscrição hieroglífica pode ser encontrado em Ibidem, p. 205. Utilizamos aqui um simples método
de comparação para identificação. O mesmo foi realizado para Meskhenet (Ibidem, p. 137) e Renenutet (Ibidem, p. 185). Tais
identificações foram-nos corroboradas pela descrição dada pelo Museu Britânico:
http://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details.aspx?objectId=113335&partId=1.
474
Ibidem, p. 205.
475
HART, George. Op. cit., p. 146.
476
A New Interpretation of the Cone on the Head in New Kingdom Tomb Scenes, publicado em 2012.
477
SIMMχσCE, Eleanor ψ. “Review of J. Padgham. A New Interpretation of the Cone on the Head in New Kingdom
Tomb Scenes. ψχR International Series χrchaeopress: τxford, 2012”. Birmingham Egyptology Journal, vol. 1, pp. 19-21.
Birmingham: University of Birmingham, 2013, p. 21.
478
O fato de envolver o ba ao invés do ka explica-se tanto pelo ba ser móvel e capaz de levar as oferendas ao ka quanto
pelo morto, já um akh, estar em posse de ambos os elementos.
479
FAULKNER, Raymond O. Op. cit., p. 28. Tradução Livre.
80

respectivamente simbolizando renascimento e proteção, e logo em seguida há uma figura que


se parece com a parte superior do corpo junto a uma porção do pescoço de um bovino. Esta se
em tamanho reduzido e apoia-se em uma espécie de morteiro. Trata-se de uma representação
de Nemty480, deus apontado como o barqueiro da barca solar481. Vários uraei podem ser vistos
ao longo do trono de Osíris e nas colunas e teto do dossel, mas chama-nos a atenção a
representação de uma cabeça de falcão acima da estrutura. A parte inferior da ave se
assemelha à roupa usada por Osíris, relacionando-os. Provavelmente, é uma representação de
Hor-Duat, “Hórus de Duat482”, uma forma de Hórus que havia o reino dos mortos e atua como
representante de Rá483. Sua presença junto somada à de Nemty apontam para um caráter solar
próximo a Osíris. A posição do lótus caído para o lado com o próprio peso implica em se
tratar de uma oferenda.

480
Sua forma originalmente era de um deus falcão, mas sua representação como bovino decepado se deve a um castigo
recebido como punição por um crime que ele cometeu. CASTEL, Elisa. Op. cit., pp. 158-159.
481
WILKINSON, Richard H. Op. cit., 2003, p. 204.
482
Duat é um dos nomes do reino dos mortos e por onde navega Rá.
483
CASTEL, Elisa. Op. cit., p. 88.
81

Grade de Leitura e Análise

Categorias e Subcategorias Temáticas Unidades de Registro Unidades de


Numeração

Parcial Total

Diretamente Anúbis, Maat (2) Thot (2),


relacionadas à Ammit, Shay, Renenutet, 10
pesagem na Meskhenet (2).
balança

Divindades 28
Ou Hórus (2), Hathor, Osíris,
Figuras Ísis (2), Néftis (2), Rá- 18
R Mitológicas Horakhty, Atum, Shu,
e Tefnut, Geb, Nut, Hu, Sia,
l Nemty, Hor-Duat.
i
g Cetros e coroas Heqa, nekhakha, was (13), 18
i atef, pshent (2).
ã
o
Oferendas Oferenda feita aos deuses-
juízes, oferenda feita a 3
Osíris, chapéu-cônico.
Símbolos 102
Amuletos e Vasos canópicos (4), uraeus
proteção (67), gesto protetor das 74
deusas-irmãs (2), sistro.

Partes do ser Ba, ib, akh (4). 6

Regeneração / Lótus. 1
Renascimento

À primeira vista, sobressai-se o contingente de 102 unidades de numeração para a


subcategoria símbolos. O número alto é uma decorrência da subsubcategoria amuletos e
proteção, com 74 unidades de registro no total. A contabilização dos uraei, bastante presentes
apesar do tamanho reduzido, teve papel fundamental para tal número exacerbado. O sistro de
Hathor foi aqui incluído por julgarmos que tal é sua função fundamental. A proteção é
novamente voltada para Osíris, mas, assim como na cena de Hunefer, podemos afirmar que
essa alta proteção verte também para Ani.
82

A subcategoria de divindades ou figuras mitológicas teve 28 unidades de registro ao


todo, sendo 10 destas ligadas à subsubcategoria de diretamente relacionadas à pesagem na
balança. Em comparação a Hunefer, o número total de divindades ou figuras mitológicas teve
um crescimento parco, resultante principalmente do acréscimo da tríade Shay – Meskhenet –
Renenutet, auxiliares tanto no nascimento quanto no renascimento.
Cetros e coroas teve uma forte presença dentre a subcategoria de símbolos, obtendo 18
unidades de numeração. Todos os itens dessa subcategoria denotam aspectos divinos e/ou
faraônicos como dominação, poder e controle sobre o Egito. Em seguida, temos partes do ser
com 6 unidades de numeração. Resolvemos considerar a esposa de Ani para a contabilização
de akh. Desta vez, tivemos a presença de oferendas, somando 3 unidades de numeração. As
oferendas foram consideradas em conjunto e contabilizadas a partir de seus destinatários.
Incluímos aqui o chapéu-cônico utilizado por Ani, em virtude da adoção da argumentação de
Padgham. Regeneração foi a subsubcategoria menos contingente na imagem, com apenas 1
unidade de numeração, apesar de sua presença ter importância.

Cena do Livro dos Mortos de Anhai, XX Dinastia484.


Proveniência: não informada.
Datação especificada: não informada.
Informação adicional: a imagem perdeu parte da pigmentação original.

Figura 5 - Cortesia: © Trustees of the British Museum.

484
Preferimos seguir a datação fornecida pelo Museu Britânico e apontar Anhai para a XX Dinastia. Porém, há quem a
considere como proveniente da XIX Dinastia. Ver pequena menção em WILKINSON, Richard H. Op. cit., 1994, p.167.
83

No começo da imagem, vemos Anhai Figura 6 - Cortesia: © Trustees of the British


Museum.
ornada com seis penas de Maat. Wilkinson
sugere que isso simboliza a eficácia do
julgamento e o caráter correto da morta, em
concordância com os preceitos de Maat485. A
seu lado encontra-se uma mulher de tamanho
reduzido em relação à morta, que a envolve em
um gesto de proteção e acolhimento. Pelo
hieróglifo em sua cabeça, podemos identificá-la
como Imentet, deusa que simbolizava as
necrópoles do Oeste486. Anhai encontra-se com
os braços erguidos em posição de
comemoração, portanto, por ter sido aceita pelo
Ocidente dos mortos487. Tal gesto, igualmente,
pode ser também uma alusão à sua “Declaração de Inocência” feita às divindades do
Tribunal.
A seguir, Anhai é levada à balança por Hórus. O deus usa a coroa do Alto e Baixo
Egito com um pequeno uraeus à frente. Sua mão direita está na posição de convite, enquanto
pela esquerda ele guia a morta. Ambos possuem a mesma proporção de tamanho, mas Anhai
está curvada em demonstração de humildade. Imediatamente após, vemos Anúbis ajustando a
balança enquanto é assistido por Ammit. Vemos um recipiente com o ib no prato direito
enquanto no prato esquerdo há uma representação de Maat em forma humana, sentada com
um ankh sobre seus joelhos. Há uma pena da deusa como parte do dispositivo de regulagem e
ao topo temos Thot em forma de babuíno. Em ambos os lados deste estão tijolos com cabeça
humana, representações de Meskhenet, e acima destes há dois nomes em hieróglifos: o da
esquerda, Shay, e o da direita, Renenutet. Trata-se, portanto, da tríade envolta com
nascimento que novamente retorna para auxiliar Anhai.
No registro imediatamente acima, vemos duas mesas com oferendas e deuses sentados
à esquerda e à direita. Neste caso, não contamos com uma descrição prévia que nos auxilie a
identificá-los, mas tratam-se sem dúvida de alguns dos deuses-juízes do tribunal. À esquerda
temos Maat, em forma de mulher ereta, segurando um ankh e um cetro de papiro nas mãos.
485
Ibidem, p. 103.
486
WILKINSON, Richard H. Op. cit., 2013, p. 145.
487
WILKINSON, Richard H. Op. cit., 1994, p. 27.
84

Este cetro era um símbolo de fecundidade e de vida488. A deusa, portanto, segura símbolos de
vida em ambas as mãos, o que tanto pode significar que a nova existência de Anhai depende
de Maat em última instância, quanto a interdependência entre vida e Ordem.
Abaixo de Maat temos Thot em seu papel de registrar a pesagem. De seu braço
dobrado pende o hieróglifo representativo do material dos escribas489, o que apenas enfatiza a
atividade de Thot. Na continuação da cena, vemos logo à direita duas mulheres sobre duas
plataformas, cada qual contendo o hieróglifo referente a ouro inscrito. As mulheres são uma
representação dupla de Meret, a qual poderia aparecer duplicada como no caso analisado.
Sobre suas cabeças há os símbolos heráldicos do Alto e Baixo Egito 490, metades que a
divindade costuma representar ao aparecer em sua forma dupla491. Meret era uma deusa da
música, canto e dança, capaz de auxiliar o renascimento do morto ao realizar suas
coreografias492. Um de seus epítetos era “Senhora da Casa de τuro”, local que continha
estátuas de mortos para a realização da cerimônia de Abertura da Boca 493, e podemos
constatá-lo pela sua posição sobre o compartimento com ouro (ou, melhor dizendo, a casa de
ouro).
Osíris, mais uma vez, está sentado em um pavilhão com uraei no teto e suas irmãs
realizando gestos de adoração e proteção. Em suas mãos há os símbolos heqa e nekhakha,
mas a coroa sobre sua cabeça é a tipicamente portada por Khnum. Junto ao deus no trono há
um pequeno falcão com disco solar, representando Rá-Horakhty, e à frente de Osíris há uma
representação de Nemty, o barqueiro de Rá. Isso nos dá uma pista para a coroa de Khnum:
segundo Wilkinson, a palavra egípcia para carneiro tinha o som de ba. Isto, somado à
atribuição de Khnum como criador de vida (era ele quem moldava o corpo e o ka,
lembremos), fez com que fosse por vezes designado como o ba de Rá. A relação também se
invertia e Rá poderia ser representado como carneiro enquanto estivesse no reino dos
mortos494. Dessa forma, o fato de Osíris estar utilizando a coroa de Khnum confere um caráter
solar ao deus redivivo e à cena, fomentado pelas presenças de Rá-Horakhty, Nemty e,

488
Ibidem, p. 123.
489
Ibidem, p. 209.
490
CASTEL, Elisa. Op. cit., p. 133.
491
WILKINSON, Richard H. Op. cit., 2003, p. 152.
492
CASTEL, Elisa. Op. cit., p. 134.
493
Idem nota acima. Essa cerimônia era primeiramente feita em estátuas de deuses antes de ser transposta para a religião
funerária. Por meio dela, garantia-se que o morto pudesse retomar atividades como ver e se alimentar. Realizava-se a abertura da
boca na múmia principalmente, mas também em estátuas do morto a fim de que pudessem receber seu ka no caso de perda do corpo
principal. Ver: TAYLOR, John H. Op. cit., pp. 190-192.
494
WILKINSON, Richard H. Op. cit., 2003, p. 194.
85

também, do hieróglifo de ouro na representação da dupla Meret, uma vez que tal metal
possuía simbolismo solar495.
A iconografia continua além da cena de Osíris, contendo Anhai frente a colunas com
inscrições hieroglíficas e uma representação do reino dos mortos equivalente ao
Encantamento 110 do Livro dos Mortos496. Optamos por não inserir essa parte, pois não seria
integrada em nossa análise da pesagem de ib, mas julgamos importante mencioná-la por dois
motivos: primeiro, sermos precisos com o leitor e afirmarmos que há continuação da fonte; e
segundo, apesar de Anhai não aparecer sendo conduzida e/ou apresentada a Osíris, sua
representação no reino dos mortos evidencia que seu julgamento foi bem sucedido e que ela
se tornou “justa de voz”.

Grade de Leitura e Análise

Categorias e Subcategorias Temáticas Unidades de Registro Unidades de


Numeração

Parcial Total

Osíris, Anúbis, Thot (2),


Maat (9), Ísis, Néftis,
Divindades Hórus, Rá-Horakthi, 37 37
Ou Nemty, Imentet, Meret (2),
R Figuras Mitológicas Shay, Renenutet,
e Meskhenet (2), Ammit,
l deuses-juízes (11).
i
g Oferendas Oferendas aos deuses- 2
i juízes (2).
ã Cetros Heqa, nekhakha, cetro de 3
o papiro.
Símbolos Partes do ser Ib, akh (2). 3 43

Coroas Coroa de Khnum, pshent. 2

Amuletos e Ankh (2), uraeus (28),


proteção gesto das irmãs (2), 33
gesto de Imentet.

495
WILKINSON, Richard H. Op. cit., 1994, p. 171.
496
FAULKNER, Raymond O. Op. cit., pp. 10-11.
86

A subcategoria de símbolos foi novamente a mais numerosa, com 43 unidades de


numeração no total. Sua subsubcategoria mais numerosa foi amuletos e proteção, com 33 em
unidades de numeração. Notemos que os uraei (28 registros) aparecem com ambos os
atributos: são tanto elementos apotropaicos do pavilhão em que está Osíris quanto ornamentos
usados por ele e por seu filho Hórus.
A subcategoria de divindades ou figuras mitológicas, dessa vez, não pôde ser dividida
para abarcar especialmente os seres relacionados à balança por causa de Maat. Esta deusa
desempenha papéis na “psicostasia” de χnhai que vão além da simples pesagem, como parte
da indumentária da morta e observar a pesagem ao longe, como se fosse uma supervisora.
Malgrado isso, essa subcategoria teve o segundo maior contingente numérico: 37 unidades de
registro.
Após, temos as subcategorias de cetros e partes do ser, ambas com 3 unidades de
registro cada, seguidas logo após por coroas, com 2 em unidades de numeração. A
significação específica de cada unidade de registro dessas subcategorias já foi apresentada na
descrição da imagem (ou em anteriores), dispensando portanto um novo tratamento.

3.2.2 Terceiro Período Intermediário

Cena do Livro dos Mortos de Nany, XXI Dinastia.


Proveniência: Deir el-Bahri, Tebas, Alto Egito.
Datação especificada: cerca de 1050 AEC.
Informação adicional: há descrição na página do Museu Metropolitano.

Figura 7 – Cortesia: Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque.


87

A cena se desenrola da esquerda para a direita, como em Hunefer e Ani. A primeira


figura que vemos é uma mulher que reconhecemos ser Ísis graças ao seu símbolo
característico acima da cabeça (um trono com assento elevado). Ela porta um uraeus na testa
e leva uma flor de lótus nos braços. A posição do lótus caído para o lado com o próprio peso
implica em se tratar de uma oferenda497.
À frente de Ísis temos Nany, a morta, com o chapéu-cônico que entendemos aludir ao
ato de oferendas junto a uma pequena flor de lótus. A presença desta aponta tanto para o
renascimento de Nany quanto endossa a oferenda representada pelo cone. A mão direita de
Nany está levantada e sobre ela pairam seus olhos e boca. Antes de tratarmos da significação
destes, precisamos terminar de descrever a iconografia.
Defronte a Nany está a balança. Anúbis, mais uma vez, a regula com um utensílio
acoplado à pena de Maat. O babuíno de Thot está em seu topo, desta vez com sua paleta. É
este Thot-babuíno que exerce a função de registrar a pesagem. No prato esquerdo vemos um
pequeno jarro com o ib de Nany, e no direito vemos Maat sentada com um ankh sobre seus
joelhos. Um fator que chama a atenção na balança são as suas cordas formadas pela junção de
dois símbolos, o pilar djed e o nó tyet. Djed é um hieróglifo que se tornou majoritariamente
associado a Osíris principalmente de inícios do Reino Novo em diante498. Ligado à espinha
dorsal deste deus, indicava estabilidade e possuía poder regenerativo. Já tyet é o “nó de Ísis”
ou o “sangue de Ísis”, possuindo significações de vida e bem-estar499. Ambos os símbolos
costumavam aparecer juntos, fazendo uma alusão aos próprios Ísis e Osíris 500. Assim, as
cordas da balança possuem uma assimilação com o casal divino, também presente na cena do
tribunal, e fornecem quatro atributos tanto para Maat, principal divindade da sala, quanto para
a morta que está sendo julgada: vida, estabilidade, bem-estar e regeneração.
Entre Anúbis e o prato com ib vemos uma representação de uma pequena figura negra.
Cardoso, ao efetuar uma breve análise dessa cena, afirmou tratar-se do ba da morta501. Já a
coloração preta faz com que ela seja facilmente apontada como sendo sua sombra. Contudo, o
preto era visto como símbolo de fertilidade e vida pelos egípcios, o que reverbera no nome de
kemet, “terra negra”, que davam ao território em que habitavam. χ cor também foi
relacionada ao pensamento funerário e se tornou um símbolo de renascimento, sendo

497
WILKINSON, Richard H. Op. cit., 1994, p. 121.
498
Ibidem, p. 165.
499
Ibidem, p. 201.
500
Idem nota acima.
501
CARDOSO, Ciro F. S. Op. cit., p. 116. Ele ademais chama a morta de Henet-Tauí, enquanto preferimos utilizar o
nome Nany por indicação do Museu Metropolitano.
88

usualmente utilizada para as representações de Osíris502 e Anúbis503. Graves-Brown sugere


que essa pequena figura que aparece na balança possui relações com Osíris. Ao analisar uma
cena semelhante, existente em um caixão guardado no Museu de Antiguidades Egípcias do
Cairo, essa pesquisadora alega que a figura costuma aparecer dotada de emblemas osirianos,
como portar o cetro heqa e o mangual nekhakha, ou como no caso por ela analisado, pelos
braços cruzados ao estilo das múmias e pelo tecido de malha que, assim como a posição dos
braços, pode aparecer nas representações do deus504 (semelhante ao que vimos na iconografia
de Anhai, por exemplo). Na cena aqui em questão, a figura possui os braços cruzados e sua
coloração negra pode ser lida como uma alusão à vida, regeneração e ao próprio deus do reino
dos mortos. Assim, concordamos com Graves-Brown quanto à sua afirmação de que essa
figura, que ela diz ser típica da XXI Dinastia, “representa de fato o morto aguardando por ser
renascido”505.
Após a balança, há uma cena simples de Osíris sentado em seu trono sobre uma
plataforma dessa vez desacompanhado. À sua frente vemos uma mesa contendo o que se
parece com a perna de um animal, simbolizando uma oferenda. O deus usa a coroa nekhbet,
do Alto Egito, com um pequeno uraeus à frente; segura o cetro heqa e possui a barbicha
característica dos deuses. Segundo a descrição fornecida pelo site do Museu Metropolitano de
Nova Iorque, Anúbis dirige-se a τsíris dizendo “o coração dela é um testemunho preciso”, ao
que τsíris responde “dê a ela seus olhos e sua boca, uma vez que seu coração é um
testemunho preciso.” 506
Esse diálogo aponta que a pesagem do ib de Nany foi bem-sucedida e que ela se
tornou maa-kheru, “justa de voz”. χdemais, nos fornece uma explicação sobre os olhos e a
boca que a morta carrega: eles indicam o sucesso do julgamento logo no início, expressando
igualmente o desejo de possuí-los e mantê-los desde então. A importância de se reter esses
atributos é expressa pelos Encantamentos 21 e 22 do Livro dos Mortos, ambos intitulados
“Encantamento para fornecer uma boca a σ no reino dos mortos”507. A abertura da boca
objetivava justamente que o morto retivesse tais elementos, junto das orelhas e nariz,
“possibilitando que ele veja, ouça, respire e receba nutrição para sustentar o ka” 508
. Dessa
forma, há uma relação entre a representação da boca e dos olhos com o intuito de ressurreição
e recebimento de sustento.

502
CASTEL, Elisa. Op. cit., p. 170.
503
WILKINSON, Richard H. Op. cit., 2003, p. 189.
504
GRAVES-BROWN, Carolyn. Op. cit., pp. 2-3.
505
Ibidem, p. 3. Tradução livre.
506
Disponível em: http://www.metmuseum.org/collection/the-collection-online/search/548344?img=0. Tradução livre.
507
FAULKNER, Raymond. Op. cit., p. 51. Tradução livre.
508
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 190.
89

Convém acrescentar que o papiro continha mais três pequenas cenas adicionais acima
da balança. σa primeira, σany aparece cultuando a palheta “em que tudo é escrito” 509,
provavelmente se tratando da palheta de Hórus, visto ser este deus responsável por registrar os
nomes de todos os que ingressavam no reino dos mortos510. Depois, Nany aparece prestando
reverência a uma estátua de Hórus em forma de falcão. Por último, ela é mostrada em frente a
sua própria tumba, reverenciando-a. Essas cenas foram consideradas distintas e desnecessárias
ao presente estudo, mas julgamos justo aludir a elas por constarem originalmente na fonte.

Grade de Leitura e Análise

Categorias e Subcategorias Temáticas Unidades de Registro Unidades de


Numeração
Parcial Total
Thot, Anúbis, Maat (2). 4
Diretamente
Divindades relacionadas à pesagem
Ou na balança
Figuras 6
R Mitológicas Ísis, Osíris. 2
e
l
i Renascimento Figura negra. 1
g
i Oferendas Chapéu-cônico, lótus
ã (2), oferenda de Osíris, 7
o olhos (2), boca.
Símbolos Partes do ser Ib, akh. 2 53

Cetros e coroas Heqa, nekhbet. 2

Amuletos Tyet (20), djed (18), 41


uraeus (2), ankh.

A tabela mais uma vez mostra que a subcategoria símbolos foi a mais numerosa, sendo
assim imensamente mais significativa do que a subcategoria divindades ou figuras
mitológicos. Símbolos contabilizou 53 em unidades de numeração total. Amuletos foi sua
subsubcategoria mais proeminente, com 41 unidades de registro, e convém notar que, com
exceção dos uraei, todos os demais amuletos estão vinculadas à balança. Isso converge com a
509
Informação fornecida na descrição do Museu Metropolitano de Nova Iorque:
http://www.metmuseum.org/collection/the-collection-online/search/548344?img=0.
510
HART, George. Op. cit., p. 158.
90

subsubcategoria de divindades ou seres diretamente relacionados à pesagem na balança, a


qual conteve 4 das 6 unidades de numeração totais de sua subcategoria. Assim, a balança
concentra a maior quantidade de elementos em seu entorno.
O terceiro subsubtema mais presente foi oferendas, possuindo 7 em unidades de
numeração. Optamos por acrescentar aqui os olhos e boca de Nany por serem elementos que a
possibilitam receber oferendas e sustentar seu ka. Ademais, foram devolvidos a ela ao final do
julgamento em conjunto com as oferendas a Osíris, que, com base na comparação do caso de
Ani, são vertidas ao morto justificado.
A já explicada figura negra foi a única unidade de registro da subsubcategoria de
renascimento, pelos motivos apontados na descrição. Um último comentário deve ser feito em
relação à subsubcategoria de cetros e coroas. As duas unidades de registro ali inseridas estão
centradas na figura de Osíris. Como se tratam de símbolos distintivos de poder régio, Osíris é
a única divindade na cena a quem se credita algum poder político.

Cena do Livro dos Mortos de Nestanebtasheru, XXI ou XXII Dinastia.


Proveniência: Deir el-Bahri, Tebas, Alto Egito.
Datação especificada: cerca de 940 AEC.
Informação adicional: há descrição fornecida pela página do Museu Britânico.

Figura 8 - Cortesia: © Trustees of the British Museum.


91

Na simples cena, a morta encontra-se sobre uma plataforma em uma posição ajoelhada
que nos remete ao henu, hieróglifo que simboliza gestos de oração ou glorificação511.
Podemos entender que ela está realizando uma prece aos deuses ali presentes para que seu ib
seja inocentado; provavelmente, a prece também destina-se aos deuses-juízes que não
aparecem representados na imagem. Sobre a cabeça de Nestanebtasheru há o chapéu-cônico
junto de um contorno sem cor do que parece ser uma flor de lótus, ambos simbolizando
oferendas.
Ammit se encontra atrás da morta, aguardando a possibilidade de devorar seu ib. À
frente da morta vemos a já conhecida balança. Ib está no prato esquerdo e uma Maat
antropomórfica acompanhada de ankh se encontra no prato direito. Anúbis regula a balança,
mas desta vez o utensílio utilizado não parece conter uma pena de Maat. No topo, o babuíno
de Thot, aludindo ao seu papel de registrador do julgamento.
Após a balança há duas mulheres sobrepostas, o que pela lógica da arte do Egito
Antigo implica em estarem lado a lado. Elas parecem segurar apenas um ankh e um cetro de
papiro, mas cada uma possui uma pena sobre a cabeça. São, portanto, duas Maats. É por meio
dessa dupla Maat que temos a indicação do local em que se passa a cena, qual seja, a Sala das
Duas Maats.
Um item adicional chama a atenção na cena. Pairando acima de Ammit e de
Nestanebtasheru há um retângulo com quatro babuínos nas pontas. O retângulo está
preenchido com o emblema de superfície aquática512 e rodeado pelo símbolo de fogo513. Isso
implica em dizer que se trata de um “lago de fogo”, uma das formas de punição aos
condenados pelo tribunal514. Sua presença na imagem se explica, portanto, por ser um castigo
possível para a morta, caso ela fosse considerada culpada pelo julgamento515.
Seguir essa abordagem, porém, implica em dizer que Nestanebtasheru fez uma
representação imagética de um perigo possível, algo que, pelo viés do pensamento da magia
egípcia, fortaleceria esse destino e aumentaria suas possibilidades de se concretizar. Apesar
do mesmo poder ser dito sobre Ammit, esta é um ser já participante do tribunal e alude ao
castigo recebido caso ib seja mais pesado que Maat; integra-se, portanto, à chance de
condenação na balança, mas sua presença serve apenas de referência a esse destino. Com o

511
WILKINSON, Richard H. Op. cit., 1994, p. 17.
512
Ibidem, p. 137.
513
Ibidem, p. 161.
514
Ibidem, pp. 136-137.
515
Assim como é proposto pela descrição fornecida pelo Museu Britânico:
http://www.britishmuseum.org/research/collection_online/collection_object_details.aspx?assetId=20207&objectId=112592&partId=
1.
92

pretenso “lago de fogo”, σestanebtasheru estaria, no mínimo, reforçando magicamente suas


chances de ser condenada, porém seu desejo deveria obviamente ser o contrário.
Propomos, então, uma alternativa analítica. χ imagem do pretenso “lago de fogo”
serve de vinheta para o Encantamento 126 do Livro dos Mortos, como podemos ver pela
ilustração fornecida por Faulkner516. Neste, o morto clama para que os quatro babuínos da
Barca de Rá retirem seu mal, sua falsidade e lhe garantam acesso ao Oeste, ao que os
babuínos acatam517. Tais babuínos podem ser uma manifestação de Babi, um deus-macaco
temido porém com atribuições benéficas, capaz de auxiliar o morto e que integrava a barca
solar518. No Encantamento 63 do Livro dos Mortos, ademais, o falecido assume a forma de
Babi para que não venha a sofrer com fogo519. Os quatro babuínos, assim, possuem um
aspecto de auxílio para a nova existência.
O fogo, por sua vez, apesar de comumente temido, possuía também ligação com o
sol520, o que pode fornecer um indício de que o “lago de fogo” seja, na verdade, uma alusão à
barca solar com seus quatro babuínos nas bordas. Por meio dessa explicação podemos
entender a lógica que liga o Encantamento 126 com sua vinheta. Portanto, a representação
presente na cena ora analisada não é de um possível destino indesejado, mas sim a referência
a um Encantamento que auxilie Nestanebtasheru:

“Os babuínos replicam: Venha, para que nós expulsemos seu mal e
contenhamos sua falsidade para que o pavor de você fique na terra, e dissipemos o
mal que estava em você na terra. Entre em Rosetau [um dos nomes para o destino
521
póstumo osiriano], passe pelos portais secretos do τeste [...]”.

Assim sendo, trata-se de um Encantamento com o intuito de auxiliar Nestanebtasheru


em sua obtenção da vida póstuma. Não possuía relação direta com a pesagem de ib, mas sua
presença poderia influenciar no processo.

516
FAULKNER, Raymond. Op. cit., pp. 118-119.
517
Ibidem, p. 115.
518
CASTEL, Elisa. Op. cit., p. 39.
519
FAULKNER, Raymond. Op. cit., p. 68.
520
WILKINSON, Richard H. Op. cit., 1994, p. 161.
521
FAULKNER, Raymond. Op. cit., p. 115.
93

Grade de Leitura e Análise

Categorias e Subcategorias Temáticas Unidades de Registro Unidades de


Numeração

Parcial Total

Ammit, Maat (3), Anúbis,


Divindades Thot.
Ou 6 6
Figuras Mitológicas
R
e
l Partes do ser Ib, akh. 2
i
g Oferendas Chapéu-cônico, lótus. 2
i Símbolos 8
ã Cetros e amuletos Ankh (2), cetro de papiro. 3
o
Regeneração Vinheta do Encantamento
126. 1

A partir da grade, vemos que, apesar das poucas representações, a subcategoria de


símbolos novamente foi a mais presente, com 8 unidades de numeração ao total. Sua
subsubcategoria mais quantitativa foi a de cetros e amuletos, com 3 unidades de numeração.
Todas estas unidades de registro, acrescentamos, estão relacionadas à deusa Maat. Partindo-se
das significações de cada (ambos implicando em símbolos de vida), podemos dizer que há
uma inter-relação forte entre Ordem e vida na cena.
Julgamos por bem categorizar a vinheta como um símbolo que auxilia na ressurreição
da morta pelos motivos já explicitados na descrição da imagem. Quanto à subcategoria
referente a divindades ou figuras mitológicas, o único ponto destacável é a maior presença de
Maat (três vezes). Não pudemos especificar quais são os elementos diretamente relacionados
à balança, uma vez que a deusa tanto atua na balança quanto é o indicativo do espaço em que
se passa a pesagem de ib.

3.2.3 Época Tardia

Cena do Livro dos Mortos de Hor, XXVI Dinastia.


Proveniência: Tebas.
94

Datação específica: não informada.


Informação adicional: há descrição fornecida pela página do Museu Egípcio de Turim.

Figura 9 - Cortesia: © Fondazione Museo delle Antichità Egizeo di Torino.

A cena se passa em uma grande sala. Próximo ao teto, vemos duas fileiras nas quais o
morto aparece ajoelhado prestando reverência e adoração a uma série de deuses. Tratam-se,
obviamente, dos deuses-juízes, assessores de Osíris no tribunal. As penas de Maat acima de
suas cabeças são indicativas de seus compromissos com a Ordem. É interessante destacar que,
dessa vez, todos os quarenta e dois deuses aparecem na imagem. A este nível da cena,
podemos notar dois uraei em cada uma das colunas nas extremidades, totalizando quatro
uraei.
Acima do teto há uma série de representações enfileiradas. Comecemos pelas várias
cobras intercaladas pela pena de Maat e pelo símbolo do fogo. Como este também tinha
ligações com o sol, podemos reconhecer que se ligam às cobras e, juntos, são representações
de uraei. As penas referem-se a atributos das uraei, os quais protegem a sala em prol de Maat,
e somam-se às suas representações. Assim, os uraei atuam repelindo o Caos. Em ambas as
extremidades vemos uma balança acompanhada de um babuíno. As duas balanças identificam
o local dos acontecimentos como a Sala das Duas Maats. Os babuínos, símbolos de Thot,
figuram a seus lados como indicativos da ação de pesagem que ali ocorre.
95

No meio da fileira há a representação de um homem com os braços levantados,


embaixo de cada qual se encontra um cartucho com um olho wdjat. O cartucho possuía a
função de resguardar aquilo que estava escrito em seu interior. Quanto aos olhos, podemos
notar que são diferentes: temos o olho esquerdo e o olho direito. Os braços levantados da
figura servem para auxiliar nessa identificação de lados. O olho da esquerda é uma
representação do Olho de Hórus, símbolo de proteção, enquanto o direito alude ao Olho de
Rá522. Este poderia ser referido como se tratando de várias deusas, a exemplo de Hathor, e há
mitos que o apontam como colérico e perigoso523. Todavia, o Olho de Rá também possuía
atributos protetores, sendo possível englobá-lo na classificação de wdjat.
No registro mais inferior da imagem, vê-se o desenrolar da pesagem de ib. Hor, o
morto, aparece primeiramente à direita saudando Maat. A posição de suas mãos é a mesma
que vimos em Nestanebtasheru, portanto Hor está realizando uma adoração à deusa. Esta leva
um cetro was e um ankh às mãos. Após Maat vemos a representação da balança, a qual
contém o babuíno de Thot no topo, ib no prato direito e Maat em forma humana no esquerdo.
Desta vez é Hórus quem manuseia o utensílio regulador enquanto Anúbis, segurando um
ankh, parece auxiliá-lo mais à frente.
Após a balança vemos Thot desempenhando sua função de registrar o resultado da
pesagem. À frente de Thot há uma representação do cetro heqa com uma pequena figura
humana sentada acima, a qual se assemelha a uma criança, apesar de não ter o dedo à boca
como as representações características dessa fase da vida humana524. O fato dela estar sentada
sobre um símbolo usualmente acompanhado de características régias e, como nos foi sugerido
por Luís Eduardo Lobianco, ocupar o mesmo lugar em que Hórus costuma aparecer nas
sequências do julgamento525 indicam que provavelmente se trate de uma representação de
Hórus criança, que os gregos vieram futuramente chamar de Harpókrates, embora já
representado na Época Tardia. Um exemplo que pode nos auxiliar a reconhecer essa figura
como se tratando de Hórus infante é reproduzido logo abaixo, retirado da cena da pesagem de
Patunu, também proveniente da Época Tardia. A figura ocupa a mesma posição que na cena
de Hor (à frente de Thot e antes de Ammit), mas não apenas está sentado sobre heqa como
tem em suas mãos a chibata nekhakha e o cetro sekhem, símbolo de poder e potência com
fortes atribuições régias e osirianas526. Desta forma, ela representa uma criança possuidora de

522
WILKINSON, Richard H. Op. cit., 1994, p. 43.
523
Ver, por exemplo, o capítulo A Destruição da Humanidade em ARAÚJO, Luís Manuel de. Op. cit., pp. 111-115.
524
WILKINSON, Richard H. Op. cit., 1994, p. 21.
525
LOBIANCO, Luís Eduardo. Publicação Eletrônica [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <Thiago Henrique
Pereira Ribeiro> em 24 jun. 2014.
526
WILKINSON, Richard H. Op. cit, 1994, p. 183.
96

emblemas régios, logo se trata de um herdeiro do trono dos


vivos que se encontra frente ao rei dos mortos: portanto, um
Hórus em forma de criança. Ademais, o sekhem poderia ser
utilizado durante a realização de oferendas, ato que aparece
representado iconograficamente com o cetro sendo
segurado à frente do corpo, a mesma posição que vemos ao
lado. Assim, o Hórus criança do exemplo está realizando
serviços funerários (doação de oferendas) a Osíris, da
mesma forma que o rei vivo fazia pelo antecessor morto527.
Voltando à cena de Hor, Ammit aparece sobre uma
plataforma após a figura que agora sabemos se tratar de
Hórus infante. Acima dela aparecem um tijolo com cabeça

Figura 10 - Cortesia: © Fondazione humana e dois deuses, um homem (identificável pela barba
Museo delle Antichità Egizeo di Torino.
comprida) e uma mulher. Tratam-se do trio Meskhenet,
Shay e Renenutet. Em seguida, vemos uma mesa com oferendas defronte a Osíris, o qual está
novamente em seu trono dentro de um dossel. O deus se encontra sozinho e possui seus usuais
heqa, nekhakha e atef.

527
TAYLOR, John H. Op. cit., p. 175.
97

Grade de Leitura e Análise

Categorias e Subcategorias Temáticas Unidades de Registro Unidades de


Numeração

Parcial Total

Maat (2), Thot (4), Anúbis,


Divindades Hórus, Hórus criança,
ou Ammit, Meskhenet, Shay, 56 56
Figuras Mitológicas Renenutet, Osíris, deuses-
R juízes (42).
e
l Partes do ser Ib, akh (3). 4
i
g Oferendas Oferendas feitas a Osíris. 1
i
ã Amuletos e proteção Wdjat (2), uraei (13), ankh
o Símbolos (2). 17 29

Cetros e coroas Heqa (2), nekhakha, atef,


was. 5

Indicador da Sala Balança do teto (2). 2

Pela tabela, vemos que a subcategoria de divindades ou figuras mitológicas obteve 56


unidades de numeração totais, estando à frente de símbolos pela primeira vez em nossas
análises. O alto contingente é resultado da presença de todos os deuses-juízes na imagem. O
motivo de não termos conseguido, desta vez, especificar os deuses relacionados diretamente à
pesagem foi o fato de Maat desempenhar dois papeis na cena: servir de peso na balança e
receber Hor.
Dentre os símbolos, os mais numerosos foram os de amuletos e de proteção,
totalizando 17 unidades de numeração. Todos os símbolos que executaram ações de proteção
encontram-se no teto ou próximos a ele, implicando dizer que sua ação apotropaica influencia
toda a Sala. Em seguida, temos cetros e coroas com 5 unidades de numeração e partes do ser
com 4. Digna de nota é apenas a subsubcategoria de Indicador da Sala. Foi inserida apenas
em virtude das balanças no teto, as quais atuam da mesma forma que Maat o fez na
iconografia de Nestanebtasheru. Apesar de serem acompanhadas pelos babuínos, enfatizamos
que eles não indicam o ambiente, mas sim reforçam a sua atribuição de escriba na balança.
98

Cena do Livro dos Mortos de Ankhep.


Proveniência: não informada.
Datação específica: não informada, nem tampouco a provável Dinastia.
Informação adicional: cena se encontra ao longo de três fotografias.

Figura 13 - Cortesia: © Trustees of the British Figura 11 - Cortesia: © Trustees of the


Museum. British Museum.

Figura 12 - Cortesia: © Trustees of the British Museum.

A cena contém uma série de representações incolores acima do desenrolar da pesagem


de ib. No registro superior, há uma fileira com 43 uraei ao todo, acompanhados por penas de
99

Maat que lhes servem de atributo. Ao meio existe uma pequena representação de um homem
ajoelhado com um ramo de palmeira sobre a cabeça. Como esse ramo simbolizava contagem
de anos ou duração temporal528, a figura trata-se de uma pequena representação de Heh,
divindade que correspondia às ideias de “milhões de anos” ou “infinitude”529. Sua presença
denota que a Sala das Duas Verdades existe e perdura por toda a eternidade (no caso, a
eternidade linear, Dt).
Abaixo, temos duas fileiras cujos conteúdos são quase imperceptíveis. A linha de cima
contém inscrições hieroglíficas, enquanto na debaixo vemos a representação de vários deuses
sentados com a pena de Maat acima de suas cabeças e sobre seus joelhos. Na extrema direita
dessa fileira há o morto ajoelhando e ofertando alimentos a esses deuses. Tratam-se, portanto,
dos deuses-juízes do tribunal.
No registro inferior e maior, vemos que Maat leva Ankhep, o falecido, apara a Sala
das Duas Verdades. A deusa tem nas mãos um símbolo ankh e um cetro was, respectivamente
vida e poder. O morto está com os braços levantados em pose de comemoração e júbilo por
ter chegado a esse recinto. A posição talvez indique também que sua pesagem será bem-
sucedida. Como em Anhai, afirmamos que pode ser também um gesto indicativo de sua
“Declaração de Inocência”. À sua frente há Maat novamente, assumindo a posição de
divindade que recebe e guia o morto até a balança. Em sua mão direita vemos o cetro de
papiro, mais um símbolo de vida.
A balança aparece logo em seguida, encimada por uma pena de Maat. Hórus a regula
enquanto Anúbis deposita o ib de Ankhep no prato esquerdo. No direito, vemos mais uma
pena de Maat. Ao lado do prato com ib, Thot novamente realiza sua função de registro da
pesagem, anotando a sentença do Tribunal. À sua frente temos um cetro heqa fincado ao
chão. Em nossa análise anterior, de Hor, heqa aparecia como parte da representação de Hórus
criança. Desta vez, contudo, não há nada sobre o cetro.
Ammit aparece em seguida, sentada sobre um altar. À sua frente vemos uma flor de
lótus encimada pelos vasos canópicos, respectivamente símbolos de
renascimento/regeneração e proteção. Pairando acima, há um tijolo com cabeça humana.
Notemos que a cor dessa cabeça é uma espécie de marrom escuro, o mesmo utilizado para o
tingimento de Ankhep e do corpo de Hórus nessa iconografia. Já Maat, o exemplar de
divindade feminina, possui coloração de um amarelo pálido. Por meio dessas comparações,
podemos afirmar que a cabeça no tijolo é de um homem, não de uma mulher. Assim, não se

528
WILKINSON, Richard H. Op. cit., 1994, p. 119.
529
WILKINSON, Richard H. Op. cit., 2003, p. 109.
100

trata de uma representação de Meskhenet, mas sim de Shay, o qual também poderia aparecer
nessa forma530.
Osíris aparece à esquerda em seu trono de dossel e de posse de seus usuais heqa,
nekhakha e atef. Atrás do deus vemos uma representação de Maat, a qual ocupa o lugar
normalmente assumido por Ísis e Néftis. As mãos da deusa indicam tanto reverência quanto
proteção ao deus. É interessante notar que Maat não está na plataforma junto a Osíris; seus
pés tocam diretamente o chão. Portanto, a deusa não está diretamente alinhada com o trono no
qual Osíris está sentado presidindo o julgamento. À frente do deus redivido vê-se uma mesa
com oferendas e, acima, uma sequência de linhas que nos remete ao hieróglifo utilizado para
superfície aquática531. Entendendo-o dessa forma, usamos o mesmo argumento que
sustentamos na análise da cena de Hunefer: pode tratar-se de uma alusão pictórica ao Nilo,
fornecedor de vida, ou à morte por afogamento de Osíris. Esta se combina com o lótus ereto
para simbolizar o ciclo de morte e renascimento.
O teto do dossel contém, em cada lado, cinco representações de uraei e uma
representação de wdjat. Podemos novamente afirmar que enquanto o wdjat da esquerda é o
Olho de Hórus, o da direita é o Olho de Rá. Contudo, ambos são classificáveis por meio do
mesmo termo egípcio e implicam em um simbolismo de proteção.

530
CASTEL, Elisa. Op. cit., p. 205.
531
WILKINSON, Richard H. Op. Cit. 1994, p. 137.
101

Grade de Leitura e Análise

Categorias e Subcategorias Temáticas Unidades de Registro Unidades de


Numeração

Parcial Total

Osíris, Maat (5), Thot,


Divindades Hórus, Anúbis, Shay,
ou deuses-juízes (28), Heh, 40 40
Figuras Mitológicas Ammit.

Amuletos e proteção Vasos canópicos (4), gesto


R de Maat, wdjat (2), uraei 61
e (53), ankh.
l
i Cetros e coroas Heqa (2), nekhakha, atef,
g was, cetro de papiro. 6
i 74
ã Símbolos Partes do ser Akh (2), ib. 3
o
Regeneração Lótus, água. 2

Oferendas Oferendas feitas a Osíris,


oferendas feitas aos deuses- 2
juízes.

A grade mostra que a subcategoria de símbolos obteve 74 unidades de numeração


totais, sendo 61 apenas de sua subsubcategoria amuletos e proteção. Esta se encontra
concentrada em Osíris, mas sua forte presença acima do teto da Sala das Duas Verdades faz
com que toda o recinto receba influências apotropaicas. Seguindo a ordem numérica,
divindades ou figuras mitológicas foi o segundo item mais numeroso, com 40 unidades de
registro. Pouco temos a dizer sobre, apenas que foram ilustrados 28 deuses-juízes do tribunal.
É um número considerável em comparação às cenas analisadas de períodos anteriores, porém
menor em comparação à iconografia de Hor.

Cena do Livro dos Mortos de Irthorru, Época Tardia.


Proveniência: não informada.
Datação específica: não informada, nem tampouco a provável Dinastia.
102

Informação adicional: inscrições se encontram em hierático, não em hieróglifos.

Figura 14 - Cortesia: © Trustees of the British Museum.

A cena começa com Irthorru sendo levado ao tribunal por Maat. A deusa apresenta sua
pena de avestruz no lugar de sua cabeça. – uma representação possível de ser vista, mas com a
qual nos deparamos apenas agora. O morto aparece com os braços levantados em júbilo,
novamente indício de que terá uma pesagem bem-sucedida ou, novamente, simbolizando sua
“Declaração de Inocência”.
A balança se encontra em seguida. Hórus a regula enquanto recebe auxílio de Anúbis
com a pena de Maat encimada no topo da balança. O prato esquerdo contém um jarro com o
ib de Irthorru, e a figura pequena no prato direito, apesar do difícil discernimento, certamente
Maat. Entre Anúbis e ib vemos a figura que acreditamos tratar-se de Hórus criança. Abaixo do
prato com Maat há uma pequena representação humanoide que, novamente por comparação
com o restante da cena, afirmamos ser de um homem pela coloração da pele. Visto se
encontrar na área da balança, compreendemos se tratar de Shay, o “destino”. Sua posição
abaixo de Maat pressupõe tanto que ele está submetido à deusa quanto que a influencia para
que Irthorru seja considerado inocente. Possivelmente as inscrições em torno da balança
podem indicar a presença de Meskhenet e/ou Renenutet, deusas que costumam acompanhar
Shay. Porém, o fato de tais escritos se encontrarem em hierático impossibilitam que façamos
um reconhecimento como antes.
103

Passada a balança, temos a sequência de Thot registrando a sentença, Ammit sobre um


altar e uma mesa de oferendas para Osíris. Este deus está sentado em seu trono dentro do
dossel, ornando seus símbolos atef, heqa e nekhakha. Há também à frente a flor de lótus, de
onde emergem os vasos canópicos. O teto do dossel serve de suporte para uma fileira de
uraei, enquanto em suas colunas há pequenas inscrições dos símbolos ankh e djed. Aos lados
de cada um destes há dois was, símbolo que até agora vimos na forma de cetro. Como o was
tinha significações de poder e domínio532, entendemos que esse jogo pictórico alude à posse,
ao domínio por parte de Osíris sobre cada ankh, símbolo de vida, e cada djed, símbolo de
estabilidade.

Grade de Leitura e Análise

Categorias e Subcategorias Temáticas Unidades de Registro Unidades de


Numeração

Parcial Total

Osíris, deuses-juízes (42),


Divindades Maat (3), Shay, Hórus,
ou Hórus criança, Anúbis, 52 52
Figuras Mitológicas Thot, Ammit.

R
e Amuletos e proteção Vasos canópicos (4), uraei
l (12), djed (9), ankh (10), 73
i was (38).
g Símbolos 80
i Cetros e coroas Atef, nekhakha, heqa (2). 4
ã
o Partes do ser Ib, akh. 2

Oferendas Oferendas feitas a Osíris. 1

A grade mostra que a proeminência na imagem foi de, mais uma vez, símbolos, os
quais totalizaram 80 unidades de numeração totais. Sua subsubcategoria mais presente foi a
de amuletos e proteção, sobretudo graças ao contingente de was nas colunas do dossel de
Osíris. Convém notarmos que todas as unidades de registro desta subsubcategoria encontram-
se em volta de Osíris e atuando sobre ele. Mas pela lógica de assimilação simbólica, Irthorru

532
WILKINSON, Richard H. Op. cit., 1994, p. 181.
104

tornou-se Osíris ao ser considerado justificado, o que faz com que tais unidades de registro
também o influenciem simbolicamente.
Após, a subcategoria de divindades ou figuras mitológicas teve a segunda presença
mais forte, totalizando 52 unidades de registro totais. Novamente não pudemos especificar as
divindades que se atrelam à balança em virtude de Maat servir também como a guia do morto
para a Sala.
Encerrando, coroas e cetros novamente contiveram elementos sumariamente régios,
divididos entre Osíris e Hórus criança, seu herdeiro. Was normalmente figura nesta
subsubcategoria, porém desta vez ele não teve uso como cetro. As demais subsubcategorias,
partes do ser e oferendas, obtiveram respectivamente 2 e 1 unidades de registro, mas não
acrescentam informações relevantes para a presente análise.

Cena do Livro dos Mortos de Rattauí, XXVI Dinastia.


Proveniência: Tebas.
Datação específica: não informada.
Informação adicional: há descrição fornecida pela página do Museu de Turim.

Figura 15 - Cortesia: © Fondazione Museo delle Antichità Egizeo di Torino.


105

A imagem de Rattauí contém semelhanças fortes com a de Hor, por nós anteriormente
analisada. Acima do teto há novamente a sequência de uraei com penas de Maat, duas
balanças indicando se tratar da Sala das Duas Verdades, o babuíno de Thot aludindo ao seu
papel de escriba e o homem com os dois “olhos sagrados”, o de Hórus e o de Rá. Para além
das balanças e dos babuínos, os demais itens implicam em uma influência protetora e
apotropaica sobre toda a Sala. Logo abaixo, vemos duas fileiras de deuses-juízes sendo
cultuados e reverenciados por duas representações ajoelhadas da morta.
Focando a cena da pesagem, nos deparamos com Rattauí, quase apagada por
danificações ao papiro, entre duas mulheres de vestido vermelho. Seus braços estão na mesma
posição que em Nestanebtasheru e Hor, portanto afirmamos ser um gesto de adoração. A
mulher da frente leva um cetro was e possui uma pena sobre sua cabeça, possibilitando que a
reconheçamos como Maat. Já nos deparamos anteriormente com a deusa portando was e ankh,
mas se esta leva o símbolo da vida em sua outra mão os danos do papiro nos impedem de
dizer. Quanto à mulher que se localiza atrás da morta, há aparentemente metade do contorno
do que poderia ser seu símbolo característico acima de sua cabeça. A pequena pena abaixo de
seu cotovelo e certa semelhança com a outra mulher de vestido vermelho leva-nos a supor que
também se trate de Maat. A deusa, portanto, mais uma vez agiu como a guia da morta à Sala.
É interessante notar também que, neste trecho, Rattauí está entre duas representações de Maat,
possivelmente aludindo à Sala das Duas Maats em que se encontra.
Rumando à esquerda, vê-se Hórus regulando a balança e Anúbis o auxiliando
enquanto segura um amuleto ankh. O topo da balança se encontra danificado, mas os
contornos remanescentes aludem ao babuíno de Thot. No prato esquerdo temos Maat sentada,
enquanto no direito há uma coloração avermelhada aludindo a ib. Em seguida, Thot em sua
forma de humano com cabeça de íbis registra o resultado da pesagem. Mais uma vez à frente
dele há a tríade formada por Meskhenet, Shay e Renenutet, enquanto Ammit senta-se sobre
um altar.
É interessante notar que os vasos canópicos estão “flutuando” acima da mesa com
oferendas destinadas a Osíris. O lótus existente entre os víveres é por eles utilizado como se
fosse o lótus com pétalas abertas no qual comumente se apoiam. O deus redivivo novamente
está em seu trono sob um dossel, segurando heqa e nekhakha e portando atef à cabeça. Ele
não se encontra sozinho graças apenas a uma representação de Nemty logo à sua frente. O
dossel possui representações de símbolos ankh com cetros was em sua base, da mesma forma
como vimos nas colunas da cena de Irthorru. Isso simboliza, portanto, um poder ou um
domínio sobre a vida, atribuindo essa característica a Osíris.
106

Grade de Leitura e Análise

Categorias e Subcategorias Temáticas Unidades de Registro Unidades de


Numeração

Parcial Total

Osíris, Maat (3), Hórus,


Divindades Anúbis, Thot (2),
ou Meskhenet, Shay, 56 56
Figuras Mitológicas Renenutet, Hórus criança,
R Ammit, Nemty, deuses-
e juízes (42).
l
i Cetros, amuletos e Wdjat (2),uraei (10), heqa
g proteção (2), nekhakha, ankh (8), was 43
i (16), vasos canópicos (4).
ã
o Símbolos Partes do ser Akh (3), ib 4 40

Coroas Atef. 1

Oferendas Oferendas feitas a Osíris. 1

A tabela mostra que o maior contingente de representações foi o subtema de


divindades ou figuras mitológicas graças, sobretudo, à presença de todos os quarenta e dois
deuses-juízes do tribunal. Símbolos, desta vez, teve uma subsubcategoria aglutinadora de
cetros, amuletos e proteção, com 43 unidades de registro parciais. Isso se deveu
principalmente pelo was, diferentemente da iconografia de Irthorru, ter sido utilizado tanto
como cetro quanto como um amuleto ao lado de ankh.

3.3 Considerações sobre o Capítulo

As cenas iconográficas do julgamento na Sala das Duas Maats eram, acima de tudo,
recursos mágicos. O morto na representação sempre obtinha sucesso na pesagem de seu ib e
prosseguia na jornada póstuma, – o que implicava garantir magicamente que o mesmo
ocorresse na realidade: o finado fosse considerado mAa-xrw, “justo de voz” e continuasse o
caminho até o reino dos mortos. O simples fato de possuir tais imagens, seja em forma de
papiro, pintura em caixão ou em algum outro tipo de superfície era suficiente para garantir tal
107

resultado. Assim, concordamos com Cardoso ao este afirmar que, mesmo os elementos éticos
tendo obtido projeção, o destaque mantinha-se na magia533.
Ao longo das análises, vimos como a eficácia mágica da iconografia era reforçada pela
presença de outros elementos pictóricos: uma divindade auxiliadora, símbolos apotropaicos,
algum Encantamento adicional, dentre outros. Pudemos observar também que, apesar de se
tratar de um tema majoritariamente do viés osiriano, elementos solares ocasionalmente
faziam-se presentes e também exerciam suas influências para o êxito da jornada póstuma.
Exemplos disso foram a iconografia de Ani e, principalmente, a de Anhai.
Não ignoramos o fato de que trabalhamos com um corpus reduzido, embora
significativo, considerando-se todos os exemplares desse tipo de cena espalhados por museus
em todo o planeta (ou ainda existentes no Egito, seja em tumbas encontradas ou não).
Portanto, não nos atrevemos a estabelecer generalizações como as propriedades mais
marcantes de cada período ou região - o número de fontes foi deveras reduzido para que
façamos algo do tipo. Contudo, não pudemos deixar de observar certas “tendências” em cada
período.
As fontes provenientes do Reino Novo tinham uma grande variabilidade de elementos.
Foram iconografias bem trabalhadas e esteticamente belas. Os deuses-juízes, por exemplo,
receberam designações bastante precisas em Hunefer e Ani, enquanto as oferendas a Osíris,
tal qual mostrado em Ani, foi surpreendente. As referências solares de Ani e Anhai também
são dignas de nota.
Já as iconografias do Terceiro Período Intermediário foram de simplicidade maior,
porém tiveram variações interessantes. A inserção do Encantamento 126 em Nestanebtasheru
e da figura negra de ressurreição em Nany são, sem sombra de dúvidas, mecanismos de se
reforçar a eficácia da magia frente à diminuição dos detalhes elaborados.
Por fim, as imagens da Época Tardia mostraram uma tendência interessante pela
repetição entre si: as Salas eram fortemente semelhantes e o posicionamento dos elementos da
pesagem, sejam deuses ou símbolos de outra espécie, variaram pouquíssimo. Exemplo maior
disso foi a alta semelhança entre as iconografias de Hor e Rattauí; uma vez terminada a
análise da cena de Hor, o exemplar de Rattauí praticamente não nos ofereceu desafios.
Para encerrar, reiteramos: não nos atrevemos a fazer generalizações por havermos
trabalhado apenas com um número pequeno de fontes, inclusive por uma parte considerável
ter sido encontrada em Tebas (cinco das nove analisadas, até onde pudemos apurar). Os
comentários traçados acima são meras observações provenientes das análises, e não
533
CARDOSO, Ciro F. S. Op. cit., pp. 114-115.
108

proposições de “tendências” de cada período do Egito. Porém, acreditamos que nossas


análises podem sim apontar para disposições de caráter abrangente, seja em âmbito temporal
ou espacial, algo que apenas se comprovaria com a realização de um estudo mais aprofundado
com posse de um contingente maior de material.
109

Conclusão

O uso de Encantamentos foi um ponto fulcral da religião funerária do Egito Antigo


durante um longo período de sua história, assim como a magia como um todo tinha
centralidade em suas práticas religiosas. O primeiro capítulo mostrou como o Livro dos
Mortos é parte de uma tradição longa de textos funerários mágicos, a qual engloba os Textos
das Pirâmides e os Textos dos Sarcófagos. Em conjunto, os Textos e os Livros são chamados
de sakhu, o que implica em dizer que objetivam transformar o morto em akh, uma nova forma
de existência obtida após a morte. O fato de haverem perdurado no Egito desde o Reino
Antigo evidencia a importância desse tipo de material mortuário.
A visão de mundo egípcia elaborava formulações duais, sendo a mais importante a
estabelecida entre Ordem e Caos. Contudo, as dualidades não eram dotadas de uma ideia de
oposição, mas sim pressupunha, a reunião que acabava por retomar a unidade da existência.
Exemplo maior disto é a coexistência entre Alto e Baixo Egito, regiões que continuaram a ser
referidas e singularizadas mas que remontavam à união de todo o território egípcio. Mas,
apesar de tais formulações binárias, o ser humano não era visto como uma fusão de corpo e
alma, mas como um complexo formado por partes dentre as quais o corpo era uma entre as
demais, coexistente com seu coração, nome e sombra, por exemplo. A morte separava as
partes umas das outras e, a fim de reuni-las, usava-se a magia funerária. Apenas assim o
morto renascia como um akh e poderia aproveitar sua nova vida, seja com Osíris ou com Rá
(além de outros deuses).
Devemos perceber esses pontos e compreender, também, que os textos e imagens
usados como recursos mágicos funcionavam a partir de sua simples presença na tumba. Desta
forma, uma cena pintada na qual o morto, transformado em akh, efetua sua jornada póstuma e
é considerado “justo de voz” por um tribunal, atua para que o mesmo ocorra na realidade.
Doravante, devemos entender que a vinheta do Encantamento 125, o famoso episódio da
“psicostasia”, é um recurso mágico de suma importância para a obtenção da vida post
mortem. O terceiro capítulo mostrou como ele ocasionalmente poderia agregar recursos
imagéticos e textuais para fomentar as beneficies cedidas ao morto, principalmente em termos
de proteção e influência na absolvição pela balança. Portanto, a cena do Tribunal de Osíris,
após surgida no Reino Novo, foi central na religião funerária do Egito Antigo.
110

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Anexo 1: Tabela Cronológica

Cronologia

Período ou Época Datação Aproximada Dinastias

Arcaico 3100-2649 AEC I e II

Reino Antigo 2649-2134 AEC III a VIII

Primeiro Período Intermediário 2134-2040 AEC IX, X e parte da XI


Dinastia

Reino Médio 2040-1640 AEC Final da XI,


Dinastias XII a XIV

Segundo Período Intermediário 1640-1550 AEC XV a XVII

Reino Novo 1550-1070 AEC XVIII a XX

Terceiro Período Intermediário 1070-668 AEC XXI a XXV

Época Tardia 664-332 AEC XXVI a XXXI

Tabela confeccionada com bases nas obras CARDOSO, Ciro F. S. Sociedades do Antigo Oriente Próximo. São
Paulo: Ática, 2007, p. 57 e DAVID, Rosalie. Religião e Magia no Antigo Egito. São Paulo: Difel, 2011, pp. 19-20.
116

Anexo 2: Relação dos Deuses Juízes

Nome do deus juiz Ação ou falta negada


O que anda a passos largos Falsidade
Abraçador de fogo Roubo
Bicudo Ambição
Engolidor de sombras Roubo
Perigoso Assassinato
Leão Duplo Destruição de comida
Olhos Ardentes Desonestidade
Chama Roubo de Oferendas
Quebrador de ossos Mentira
Verde da chama Roubo de comida
O da caverna Rabugice
O de dentes brancos Transgressão
O que se alimenta de sangue Matar um touro sagrado
Comedor de Entranhas Perjúrio
Senhor da verdade Roubo de pão
Andarilho Espreita
Pálido Balbuciar
Duplamente mal Disputar sobre coisas fora de sua propriedade
Serpente Wementy Homossexualidade
O que olha quem você traz Mau comportamento
Além do Mais Antigo Aterrorizar
Demolidor Transgressão
Perturbador Ser de temperamento quente
Jovem Ser surdo à Verdade
Prognosticador Causar perturbação
O do altar Ludibriar
O que cuja face está atrás da cabeça Se comportar mal e copular com um rapaz
Pé-Quente Negligência
O das trevas Querelar
O que traz sua oferenda Ser indevidamente ativo
Possuidor de faces Impaciência
Acusador Danificar a imagem de um deus
Possuidor de chifres Volubilidade de discurso
Nefertem Cometer erros e contemplar o mal
Temsep Conjuração contra o rei
O que age intencionalmente Vadear na água
Punidor-de-água Ser de voz alta
Comandante da humanidade Injuriar o deus
Outorgante de benefícios Cometeu...?
Outorgante de poderes Fazer distinções para si
Serpente de cabeça erguida Riqueza desonesta
Serpente que traz e concede Blasfêmia

Tabela fornecida por WILKINSON, Richard H. The Complete Gods and Goddesses of Ancient
Egypt. New York: Thames & Hudson, 2003, p. 84, Tradução livre. Como auxílio, também utilizamos
FAULKNER, Raymond O. The Ancient Egyptian Book of the Dead. London: The British Museum Press,
2010, p. 31-32, Tradução livre.

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