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Organizadoras

Ana Cláudia de Souza


Cristiane Seimetz-Rodrigues
Claudia Finger-Kratochvil
Luciane Baretta
Angela Cristina Di Palma Back

Diálogos linguísticos
para a leitura
e a escrita
Ana Cláudia de Souza
Cristiane Seimetz-Rodrigues
Claudia Finger-Kratochvil
Luciane Baretta
Angela Cristina Di Palma Back
(Organizadoras)

Diálogos linguísticos
para a leitura
e a escrita

Florianópolis

2019
Comissão Editorial e Científica

Ana Aparecida de Oliveira Machado Barby (Universidade Estadual do Centro-


-Oeste – Unicentro)
Ana Cláudia de Souza (Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC)
Angela Cristina Di Palma Back (Universidade do Extremo Sul Catarinense – Unesc)
Clarícia Otto (Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC)
Claudia Finger-Kratochvil (Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS)
Claudia Rahal (Centro Universitário Metodista – IPA)
Cristiane Seimetz-Rodrigues (Universidade Federal de Santa Catarina –UFSC)
Dalva Godoy (Universidade do Estado de Santa Catarina – Udesc)
Eliane Debus (Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC)
Flávia Ramos (Universidade de Caxias do Sul – UCS)
José Reinaldo Nonnenmacher Hilário (Instituto Federal Catarinense – IFC)
Lêda Maria Braga Tomitch (Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC)
Lílian Cristine Hübner (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul –
PUCRS)
Luciane Baretta (Universidade Estadual do Centro-Oeste – Unicentro)
Maria Aparecida Lapa de Aguiar (Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC)
Otília Lizete de Oliveira Martins Heinig (Universidade Regional de Blumenau
– FURB)
Ronei Guaresi (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB)
Rosangela Abreu do Prado Wolf (Universidade Estadual do Centro-Oeste – Uni-
centro)
Vera Wannmacher Pereira (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul – PUCRS)
Wladimir Antônio da Costa Garcia (Universidade Federal de Santa Catarina –
UFSC)
Editora Insular
Diálogos linguísticos para a leitura e a escrita
Ana Cláudia de Souza
Cristiane Seimetz-Rodrigues
Claudia Finger-Kratochvil
Luciane Baretta
Angela Cristina Di Palma Back
(Organizadoras)

Conselho Editorial Editora Insular


Dilvo Ristoff, Eduardo Meditsch, Jali Meirinho, Jéferson Silveira Dantas,
Nilson Cesar Fraga, Pablo Ornelas Rosa e Salvador Cabral Arrechea (ARG)

Editor Capa
Nelson Rolim de Moura Eduardo Cazon

Projeto gráfico e Editoração Conceito e arte da capa


Silvana Fabris Claudia Finger-Kratochvil

Revisão textual
Cristiane Seimetz-Rodrigues, Fernanda Cizescki

Diálogos linguísticos para a leitura e a escrita. Ana Cláudia de Souza,


Cristiane Seimetz-Rodrigues, Claudia Finger-Kratochvil, Luciane Baretta,
Angela Cristina Di Palma Back (orgs.). Florianópolis: Insular. 2019.

347 p. : Il.

ISBN 978-85-524-0118-6

1. Linguística. 2. Leonor Scliar-Cabral. 3. Leitura. 4. Escrita I. Título.

CDD 410

Apoio

EDITORA INSULAR INSULAR LIVROS


(48) 3232-9591 Rua Antonio Carlos Ferreira, 537
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www.insular.com.br (48) 3334-2729
facebook.com/EditoraInsular insularlivros@gmail.com
Sumário
Prefácio................................................................................................................8
Ana Cláudia de Souza, Cristiane Seimetz-Rodrigues
Claudia Finger-Kratochvil, Luciane Baretta
Angela Cristina Di Palma Back

Parte I
Histórias e diálogos com Leonor Scliar-Cabral

1 Cristal da docência e da pesquisa: as contribuições da Professora


Leonor Scliar-Cabral em favor de uma alfabetização de qualidade..... 17
Otília Lizete de Oliveira Martins Heinig
Ana Cláudia de Souza, Claudia Finger-Kratochvil

Parte II
Letramento e alfabetização para a democracia

2 Educar todos os seres humanos para serem letrados, capazes


de pensamento livre, crítico e criativo..................................................... 45
José Morais, Régine Kolinsky

3 Pela qualidade no alfabetizar, requisito para a inclusão social


na sociedade da informação..................................................................... 66
Leonor Scliar-Cabral

Parte III
Leitura, escrita, professores e ensino

4 Uma breve abordagem à leitura e à escrita


na perspectiva da Psicolinguística........................................................... 85
Maria da Graça Lisboa Castro Pinto
5O papel do professor no processo
da construção de sentido na leitura....................................................... 107
Otília Lizete de Oliveira Martins Heinig

6Ensino, aprendizagem e utilização de estratégias de leitura:


um retrato das pesquisas conduzidas no Brasil................................... 130
Carlos Alberto Ramos Souza, Luciane Baretta

7A compreensão leitora do futuro professor de letras em formação:..... 147


observando as habilidades de reflexão e avaliação............................... 147
Gabriel Augusto Scheffer, Claudia Finger-Kratochvil

8Ensinar a estudar ensinando a ler:


potências dos roteiros de leitura............................................................. 164
Ana Cláudia de Souza, Cristiane Seimetz-Rodrigues
Helena Cristina Weirich

9 As tarefas de leitura, o livro didático e a formação do leitor.............. 201


Luciane Baretta

Parte IV
Ensino de leitura nos anos iniciais e no contexto da surdez

10 A prática sistematizada da leitura de livros


de literatura infantil no processo de alfabetização.......................... 227
Ana Carolina da Conceição
Otília Lizete de Oliveira Martins Heinig

11 Jogos virtuais para desenvolver compreensão leitora


e consciência textual de crianças de 2º ano inicial.......................... 243
Vera Wannmacher Pereira, Leandro Lemes do Prado
12 A estratégia de predição na leitura de fábulas:
uma proposta para o ensino da leitura nos anos iniciais............... 255
Caroline Bernardes Borges

13 O início da alfabetização para uma criança


com desvio fonológico: algumas reflexões....................................... 272
Cristiane Lazzarotto-Volcão

14 Uma reflexão teórica acerca do papel atribuído


à imagem no ensino da leitura a surdos........................................... 282
Cristiane Seimetz-Rodrigues

15 Ato de ler e o leitor: pistas de um processo (não) emancipatório


de leitura em um 5º ano do ensino fundamental............................ 298
Marina Vieira Cardoso, Angela Cristina Di Palma Back

16 “Ursinho Pooh 1, 2, 3”: uma contribuição fílmica para


a alfabetização matemática na infância............................................ 325
Rosangela Silveira da Rosa, Mauro José da Rosa

Sobre os autores............................................................................................. 339


Prefácio

Ana Cláudia de Souza


Cristiane Seimetz-Rodrigues
Claudia Finger-Kratochvil
Luciane Baretta
Angela Cristina Di Palma Back

[...] Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão.


Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí
pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que
segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimin-
do-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em
casa, também pouco importa. Meu peito estava quente,
meu coração pensativo. [...] (Clarice Lispector, Felicidade
Clandestina)

Tal como no conto de Clarice Lispector, o que nos mobiliza à leitura


é a paixão, um sentimento de contemplação e êxtase que, em alguma me-
dida, só o livro nos dá. Tão só e ao mesmo tempo tão completas diante de
um livro, que o desejo se estende para além do corpo e nos leva a querer
que todos e todas tenhamos este direito: o direito de sonhar, de sentir, de
viver plenamente, a partir daquilo que a leitura nos proporciona. Foi esse
movimento que nos levou a aceitar o desafio de produzir este livro, por
meio da rede que se criou, quando da realização, em 2016, na Universidade
Federal de Santa Catarina, de uma das edições da Jornada Internacional
de Alfabetização. Não apenas o evento, mas as parcerias que dele surgiram
ou se consolidaram permitem, considerando as possibilidades de reverbe-
ração do trabalho realizado, discutir leitura e discutir escrita a partir de
seus níveis mais elementares, de modo a criar espaços nos quais, por meio
de pesquisa e ensino, seja possível levar leitura e escrita e o acesso ao livro
ao maior número possível de crianças e adolescentes da Educação Básica

8
no Brasil. A menção ao evento neste prefácio justifica-se, sobretudo, para
reiterar a importância de espaços como este para a integração entre pesqui-
sadores na instalação de redes de colaboração. Evidentemente, do ponto
de vista de sua inserção social, é inegável a aproximação que se estabelece
com a Educação Básica e as relações que se criam entre os pesquisadores. A
produção de um livro denso, como este que ora apresentamos, em função
das inúmeras pesquisas que ele move e envolve, é possibilitada por eventos
nos quais se vislumbram projetos em comum. A partir da Jornada, foi pos-
sível estabelecer uma rede de contatos, com vistas à promoção de parcerias
interinstitucionais e internacionais, que culminou com esta obra que socia-
lizamos com toda a comunidade acadêmica.
Este livro é, portanto, fruto das parcerias que se criaram, sendo tam-
bém mais uma homenagem à Professora Leonor Scliar-Cabral, uma das
mais proeminentes pesquisadoras e professoras da área da alfabetização e
da formação de professores/as alfabetizadores/as no Brasil. É com gratidão
e orgulho que organizamos a obra, tanto pela homenagem que prestamos
quanto pela relevância social, política e educacional do tema e pela quali-
dade dos trabalhos apresentados. Este volume reúne pesquisas acadêmicas
recentes referentes à leitura e à escrita, desde a alfabetização, considerando
aspectos de inclusão social, ensino, aprendizagem e método, até as fases
mais avançadas da Educação Básica. Reúne, ainda, estudos teóricos envol-
vendo os temas da leitura e da escrita, a educação inclusiva de surdos e a
pesquisa sobre alfabetização matemática. Acreditamos que a obra seja de
grande valia para professores, pesquisadores e estudantes de graduação e
pós-graduação, interessados em questões concernentes aos estudos da lei-
tura e da escrita.
O livro se inicia pelo capítulo intitulado “Cristal da docência e da pes-
quisa: as contribuições da Professora Leonor Scliar-Cabral em favor de
uma alfabetização de qualidade”, de autoria de Otília L. O. Martins Heinig
(Universidade Regional de Blumenau), Ana Cláudia de Souza (Universida-
de Federal de Santa Catarina) e Claudia Finger-Kratochvil (Universidade
Federal da Fronteira Sul), que constitui a primeira parte da obra, “Histórias
e diálogos com Leonor Scliar-Cabral”, e visa apresentar a professora ho-
menageada, falando sobre sua carreira, analisando seu extenso e produti-

9
vo currículo e dialogando com ela, por meio de uma agradável entrevista,
concedida às autoras. O texto ilumina faces da história de vida da profes-
sora Leonor que seu currículo não permite enxergar. Os quinze capítulos
seguintes estão agrupados em outras três partes, segundo seus eixos propo-
sicionais. A segunda parte, “Letramento e alfabetização para democracia”,
abriga os textos de autoria de José Morais e Régine Kolinsky, pesquisadores
da Universidade Livre de Bruxelas, “Educar todos os seres humanos para
serem letrados, capazes de pensamento livre, crítico e criativo” (capítulo
2), e de autoria de Leonor Scliar-Cabral, professora da Pós-Graduação em
Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina, “Pela qualidade no
alfabetizar, requisito para a inclusão social na sociedade da informação”
(capítulo 3). Morais e Kolinsky, além de também homenagearem a pro-
fessora Leonor, tratam, assim como ela mesma o faz em seu texto, da al-
fabetização para a inclusão social e a democracia no Brasil, respaldados
por consistentes e recentes conhecimentos científicos. Especificamente, os
pesquisadores da Universidade Livre de Bruxelas enfocam a alfabetização
e a literacia em uma abordagem histórica e sociopolítica, analisando dados
da Unesco e da OCDE, que evidenciam a insuficiência da alfabetização e
da literacia no Brasil como, nas palavras dos autores, “o maior obstáculo
ao desenvolvimento democrático da sociedade brasileira”. Em seu texto,
eles relatam uma bem-sucedida experiência de Curso de Alfabetização de
Adultos, realizada em Portugal, propondo que esse tipo de programa seja
oferecido em ampla escala para jovens e adultos. Por sua vez, o capítulo da
Professora Scliar-Cabral defende a importância de se fundamentarem os
responsáveis pela proposição de políticas públicas em alfabetização com as
importantes descobertas das ciências que se dedicam ao estudo da lingua-
gem verbal, a saber: a Linguística, a Psicolinguística, a Neuropsicologia e a
Neurociência. Com base nas pesquisas dessas ciências no que diz respeito à
arquitetura e ao funcionamento dos sistemas linguísticos e seus correlatos
no sistema nervoso central, a autora critica as categorias da escala elabora-
da pela Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA), argumentando que os
avaliadores ignoram o que há de mais específico nos processos de leitura.
A terceira parte do livro é dedicada à “Leitura, escrita, professor e en-
sino” e engloba seis capítulos. Inaugura essa parte da obra o capítulo de

10
Maria da Graça Lisboa Castro Pinto, professora e pesquisadora da Univer-
sidade do Porto, intitulado “Uma breve abordagem à leitura e à escrita na
perspectiva da Psicolinguística” (capítulo 4). Nesse texto, a autora se dedica
à história da Psicolinguística, desde a sua origem até a contemporaneidade,
caracterizando-a, com base em observação de Slama-Cazacu, como uma
ciência que ultrapassa a interdisciplinaridade, constituindo-se por cone-
xões multidisciplinares e possibilitando importantes investigações acerca
do que se passa nos processos verbais da leitura e da escrita. Objetiva, por
meio desse texto, considerar esses dois processos sob a perspectiva da Psi-
colinguística, como ciência explicativa que relaciona a linguagem verbal
às bases psicológicas nela implicadas. Segue esse capítulo aquele proposto
por Otília L. O. Martins Heinig, professora da Universidade Regional de
Blumenau, “O papel do professor no processo da construção de sentido
na leitura” (capítulo 5), que, por inspiração provocada pela leitura do texto
Reading as a Meaning-Construction Process: the reader, the text, and the te-
acher, de autoria de Ruddell e Unrau (1994), visa ponderar sobre a função
do professor no ambiente de ensino e de aprendizagem, levando em conta,
conforme propõem os autores-base, o leitor, que neste caso é o estudante,
a sala de aula, o contexto, o texto e as atividades propostas. No capítulo 6,
Carlos Alberto Ramos Souza e Luciane Baretta, da Universidade Estadual
do Centro-Oeste, com o objetivo de mais claramente compreender como as
fragilidades da educação brasileira, nas esferas pública e privada, influen-
ciam os (baixos) índices de proficiência leitora nos níveis fundamental,
médio e superior, debruçam-se sobre as pesquisas produzidas em universi-
dades públicas e privadas brasileiras, em nível de mestrado e doutorado, no
período de 2000 a 2016, as quais abordaram o ensino e o uso de estratégias
de leitura em língua materna e estrangeira, inglês. Por meio desse estudo,
os autores produziram o texto “Ensino, aprendizagem e utilização de estra-
tégias de leitura: um retrato das pesquisas conduzidas no Brasil”. A seu tur-
no, Gabriel Augusto Scheffer e Claudia Finger-Kratochvil, da Universidade
Federal da Fronteira Sul, no capítulo 7, intitulado “A compreensão leitora
do futuro professor de letras em formação: observando as habilidades de
reflexão e avaliação”, ao questionarem se os potenciais profissionais da área
de Letras estão chegando à formação superior inicial com suficiente baga-

11
gem leitora que lhes permita enfrentar os desafios do estudo acadêmico,
voltam-se à análise da competência leitora de estudantes ingressantes no
Curso de Letras de uma instituição superior catarinense, visando verificar
seus conhecimentos em leitura, especificamente no que concerne à habili-
dade de reflexão e avaliação. O capítulo 8 traz a pesquisa de Ana Cláudia
de Souza, Cristiane Seimetz-Rodrigues e Helena Cristina Weirich, sendo
as duas primeiras autoras da Universidade Federal de Santa Catarina e a
terceira professora da Educação Básica do Colégio Salesiano de Itajaí-SC.
Sob o título “Ensinar a estudar ensinando a ler: potências dos roteiros de
leitura”, o texto versa sobre ensino e aprendizagem da leitura, descrevendo
e discutindo as possibilidades de emprego dos roteiros de leitura, a fim de
se implementarem atividades específicas que possam promover a aprendi-
zagem. As autoras desenvolvem e explicam dois tipos de roteiro: um para
ensino e outro para avaliação de leitura. Por sua vez, Luciane Baretta, no
texto “As tarefas de leitura, o livro didático e a formação do leitor” (capítu-
lo 9), produz sua pesquisa guiada pela seguinte questão: “de que forma o
livro didático das diversas disciplinas do currículo tem contribuído para a
formação e desenvolvimento das competências e habilidades em leitura?”.
As respostas a essa pergunta passam pela fundamentação baseada nas con-
tribuições de pesquisas sobre leitura que se dedicam a analisar materiais di-
dáticos e a buscar soluções para dirimir os problemas de leitura e também
pela análise de livros didáticos, realizada pela autora.
Por fim, a quarta parte da obra é dedicada ao “Ensino de leitura nos
anos iniciais e no contexto da surdez”. Fazendo parte de uma pesquisa de
dissertação de mestrado que aborda as ações docentes para a sistemati-
zação da linguagem escrita, abre a seção o texto “A prática sistematizada
da leitura de livros de literatura infantil no processo de alfabetização” (ca-
pítulo 10), de autoria de Ana Carolina da Conceição, professora da Rede
Municipal de Brusque-SC, e Otília L. O. Martins Heinig, cujo objetivo é
analisar o recurso de leitura de livros da literatura infantil para os estudan-
tes, mobilizado na sala de aula pela professora, a fim de compreender se e
como os diferentes materiais didáticos atuam no processo discursivo de
sistematização de conhecimentos sobre a linguagem escrita. O capítulo 11,
“Jogos virtuais para desenvolver compreensão leitora e consciência textu-

12
al de crianças de 2.º ano inicial”, de Vera Wannmacher Pereira e Leandro
Lemes do Prado, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul, tem como seu objetivo central verificar em que medida jogos virtuais,
gerados para fins de aprendizagem, contribuem para o desenvolvimento
da compreensão leitora e da consciência textual dos estudantes desse nível
de escolaridade. Com perspectiva integradora, o projeto desenvolveu 16
módulos de jogos virtuais de compreensão leitora e de consciência textual,
utilizando gêneros textuais que circulam na vida pessoal e escolar dos es-
tudantes. Cada um desses jogos se caracteriza pela exploração dos planos
linguísticos (fonológico, morfológico, sintático, semântico, pragmático e
textual). Por sua vez, o texto de Caroline Bernardes Borges (capítulo 12),
“A estratégia de predição na leitura de fábulas: uma proposta para o ensino
da leitura nos anos iniciais”, também da Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul, focaliza a explicitação da importância do desenvol-
vimento do uso das estratégias de leitura, mais especificamente a estratégia
de predição leitora, nas aulas de Língua Portuguesa que envolvem o ensino
da leitura nos anos iniciais. Para desenvolver a pesquisa, a autora escolheu
o gênero fábula para servir de suporte à criação de atividades pedagógicas
que podem contribuir para estimular o desenvolvimento da estratégia em
questão. O capítulo 13, “O início da alfabetização para uma criança com
desvio fonológico: algumas reflexões”, de Cristiane Lazzarotto-Volcão, pro-
fessora da Universidade Federal de Santa Catarina, considerando que, para
aprender a escrever em um sistema alfabético de escrita, a criança precisa,
de algum modo, relacionar o sistema fonológico aos grafemas e que al-
gumas crianças iniciam esse aprendizado sem ter terminado o processo
de aquisição fonológica, por apresentarem um Desvio Fonológico (DF),
pretende contribuir com os estudos sobre a aprendizagem da escrita, por
meio da análise das produções escritas dirigidas de um menino com DF,
em tratamento fonoaudiológico, a fim de verificar como essa criança está
aprendendo o sistema alfabético do português brasileiro. O capítulo 14, de
autoria de Cristiane Seimetz-Rodrigues, a seu turno, a partir da análise teóri-
ca sobre o emprego de imagens aliadas ao texto escrito para a comunicação
em uma sociedade midiatizada e da consideração crítica de recomenda-
ções de práticas pedagógicas voltadas ao ensino da língua portuguesa es-

13
crita a surdos, procede a uma reflexão acerca do lugar atribuído ao uso de
imagens para o ensino da língua portuguesa escrita a surdos. A autora não
nega a existência de um importante e efetivo papel do emprego de recursos
visuais durante o processo de instrução em leitura de estudantes surdos,
bem como de ouvintes. O que ela pretende é combater a assunção de que
a compreensão de imagens pode levar à compreensão do texto escrito. Tal
posicionamento está associado à falta de clareza entre o que seja leitura de
textos escritos e o que seja compreensão de imagens, levando a uma prática
pedagógica que enfatiza o uso de textos ilustrados como recurso didático
para o ensino da língua portuguesa escrita a surdos. O penúltimo capítulo,
de número 15, de autoria de Marina Vieira Cardoso e Angela Cristina Di
Palma Back, da Universidade do Extremo Sul Catarinense, sob o título “Ato
de ler e o leitor: pistas de um processo (não) emancipatório de leitura em
um 5º ano do ensino fundamental”, analisa, a partir do processo de leitura
instalado com estudantes de 5º ano do Ensino Fundamental, os avanços
ou as lacunas do ato de ler pertinentes à formação do sujeito (não) eman-
cipado. Por meio de duas aulas práticas de leitura, as autoras desenvolvem
a pesquisa de campo, de natureza exploratória e qualitativa, cujos resulta-
dos apontam que, por meio do ensino da leitura num viés interacionista,
é possível contribuir com a formação do leitor autônomo, que sabe ir e
vir no texto quando precisa, a fim de compreendê-lo. Fecha esta quarta
parte o capítulo 16, de autoria de Rosangela Silveira da Rosa e Mauro José
da Rosa, ela professora da Rede Municipal de Ensino de Santa Catarina
e ele professor da Universidade do Vale do Itajaí. Em seu texto, intitula-
do ““Ursinho Pooh 1, 2, 3”: uma contribuição fílmica para a alfabetização
matemática na infância”, os autores defendem que a criança, no período de
alfabetização, precisa receber estímulos para que possa enriquecer o seu
universo lúdico e desenvolver a atenção, a memorização, a criatividade e a
imaginação. Propõem um trabalho a partir do filme Ursinho Pooh 1, 2, 3
– Descobrindo os Números e as Contas, que pode contribuir para potenciali-
zar o desenvolvimento das crianças, além de significar conceitos relevantes
para a alfabetização matemática. O filme roteiriza a história de um ursinho
que não sabia contar e é estimulado a participar de diferentes métodos de
contagem. Ilustra, também, a escrita e a leitura dos números, a importância

14
da ordem numérica, bem como sua relevância no mundo em que vivemos.
Nesse contexto, o propósito da pesquisa apresentada, além de discutir a im-
portância do lúdico na alfabetização matemática, é sugerir a apresentação
do filme Ursinho Pooh 1, 2, 3 para a introdução do processo de contagem,
bem como da escrita e leitura dos números.
Encerra este volume uma seção dedicada à apresentação da síntese dos
currículos acadêmicos dos 21 autores cujas pesquisas contribuíram para
que o projeto desta obra pudesse ser realizado. Somos um grupo constituí-
do por pesquisadores, professores do ensino superior e da educação básica,
estudantes de pós-graduação e graduação, que, juntos, optamos por unir
esforços, a fim de contribuir não apenas para o desenvolvimento da ciência,
mas também e sobretudo para a melhoria do ensino e então da aprendi-
zagem da leitura e da escrita. Agradecemos a cada um e a cada uma pela
importante e consistente parceria, desejando que as reflexões aqui desen-
volvidas possam inspirar e motivar o leitor à pesquisa e ao ensino consis-
tentemente fundamentados, e as políticas públicas a garantir o pleno acesso
à leitura e à escrita a todas as pessoas neste país. Agradecemos, também,
o apoio concedido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES), que financiou a publicação do livro.

Primavera de 2018

15
Parte I

Histórias e diálogos
com
Leonor Scliar-Cabral

16
1
Cristal da docência e da pesquisa:
as contribuições da Professora
Leonor Scliar-Cabral em favor
de uma alfabetização de qualidade

Otília Lizete de Oliveira Martins Heinig


Ana Cláudia de Souza
Claudia Finger-Kratochvil

Palavras iniciais sobre brilho, qualidade, nobreza e sensibilidade

Como ex-alunas e colegas de trabalho, propomo-nos relatar um pouco


da história da Professora Emérita Leonor Scliar-Cabral, nossa homenagea-
da nesta obra. Neste texto, que visa demonstrar o que significa para a Lin-
guística, para a Psicolinguística, para a Educação e para cada uma de nós,
em particular, a professora Leonor, assumimos ora tom e estilo pessoais,
revelando nossa proximidade, carinho e admiração a ela e à sua história,
ora tom acadêmico, focalizando suas ações de pesquisa, docência e forma-
ção de professores. Elegemos, para nos referir a ela, uma metáfora: a do
cristal. Além das nossas vozes, que estarão marcadas ao longo do texto, da-
mos voz à própria Professora Leonor, entrevistando-a e buscando conhecer
suas perspectivas em relação à sua caminhada com vistas à erradicação do
analfabetismo pleno e funcional.
Os cristais apareceram na história da humanidade há milhares de anos.
Atribui-se aos fenícios, por volta de 7.000 anos a. C., a obtenção dos vidros.
Esse povo improvisou fogões usando blocos de salitre sobre a areia e obser-
vou que, após algum tempo de fogo vivo, escorria uma substância líquida e
17
brilhante, que se solidificava rapidamente. Estava descoberta, aí e ao acaso,
a existência do cristal. Com o passar do tempo, notou-se que a utilização
de componentes nobres, como o chumbo e o bário, transferia ao vidro um
aprimoramento na qualidade, surgindo, assim, efetivamente, o cristal, que
é um vidro, mas um vidro diferente, especial que, devido a matérias-primas
nobres, tem como resultado um produto com maior brilho, regularidade e
transparência.
A Professora Leonor, tal qual o cristal, é nosso componente nobre,
nossa inspiração, na pesquisa e no fazer docente. Seus conhecimentos lin-
guísticos, trazidos e combinados aos processos de ensino e de aprendiza-
gem da alfabetização, deram-lhe mais brilho, sensibilidade e transparência.
Seus estudos sobre os Princípios do sistema alfabético do português do Brasil
(Contexto, 2003) e sobre as orientações aos alfabetizadores, no Guia prático
de alfabetização (Contexto, 2003), sua investigação no âmbito do projeto
Ler & Ser: combatendo o analfabetismo funcional, sua dedicação ao desen-
volvimento de método de ensino de leitura inicial: o Sistema Scliar de alfa-
betização – Fundamentos (Lili, 2013), a elaboração da cartilha Aventuras de
Vivi (Lili, 2013), Sistema Scliar de alfabetização – Roteiros para o professor:
Módulo 1 (Lili, 2017) e os incessantes, incansáveis e dedicados cursos de
formação inicial, continuada e especializada (em nível de pós-graduação)
de alfabetizadores – a exemplo do longo e intenso Curso Sistema Scliar de
Alfabetização, Módulo 1, ministrado a distância, e da disciplina de pós-gra-
duação “Tópicos especiais em Psicolinguística: processamento da produ-
ção oral e escrita”, o primeiro iniciado em 2016 e finalizado em 2017 e o
segundo, no 2º semestre de 2017 – são formas de acrescentar ao vidro da
educação o brilho, a delicadeza, a regularidade e a vivacidade de que ela
tanto carece. Suas pesquisas ajudaram a transferir ao vidro da alfabetização
um aprimoramento da qualidade e da sensibilidade.
O desenvolvimento de um método para a aprendizagem da leitura foi
uma das suas grandes contribuições recentes, que se somou ao lugar que a
Professora Leonor já ocupava na história da Linguística e da Psicolinguís-
tica no Brasil. Temos, neste material voltado ao ensino da leitura inicial,
um presente precioso, que irá auxiliar muitos professores e crianças, junto
com a Vivi, a viver as aventuras do aprender a ler. Refletir sobre os co-

18
nhecimentos necessários à formação do professor alfabetizador em grupo
de pesquisa e também sozinha a levou à produção dos fundamentos para
o Sistema Scliar de alfabetização. Produzir um método, quando tantos se
sentem receosos e evitam falar sobre métodos e cartilhas, é mais uma das
suas nobres contribuições. Revela o valor que a Professora Leonor atribui à
educação, a forma séria como compreende a alfabetização e, sobremaneira,
a formação dos professores.
No espaço deste capítulo, ratificamos a necessidade de a universidade e
seus professores-pesquisadores se aproximarem da escola, dos professores
da educação básica e dos temas que precisam ser investigados, explorados
e tratados. A Professora Leonor esteve e está disposta a dialogar com os
professores em seu processo de formação, seja inicial ou continuada. Como
pesquisadoras participantes, lembramo-nos de nossos encontros e eventos
dentro do projeto Ler & Ser: combatendo o analfabetismo funcional. Tantos
professores se dirigindo a ela, perguntando, ávidos e ansiosos por conhecer
um pouco das contribuições da Psicolinguística, da Linguística e da Educa-
ção para uma escola acolhedora e de qualidade, para uma alfabetização que
atenda ao desejo e às necessidades dos alunos e professores: um processo
que seja lógico, organizado, fundamentado e produza os tão esperados re-
sultados de formação de leitores.
A Professora Leonor é um cristal que brilha entre nós, que distribui
luz e saber. No Império Romano, os cristais e pedras preciosas foram as-
sociados a palavras de poder para que suas energias fossem aproveitadas.
Os seus cursos e aulas ministrados, os artigos, capítulos e livros produzi-
dos estão repletos de palavras de poder; são cristais que guardamos para
sempre, que nos remetem ao aprendido, ao vivido. Seus escritos têm brilho
como o cristal, têm objetos e fundamentos preciosos; são formas de voltar-
mos a aprender, sempre que queremos renovar ou ampliar nossos conheci-
mentos. Na luta contra o analfabetismo funcional que a Professora Leonor
vem travando, encontramos textos e falas que possibilitam compreender
seu posicionamento e refletir sobre ele de forma ativa e responsável. Entre
alguns dos textos, estão os que revelam seu poder de produzir, intervir, de
fazer circular, de disseminar o conhecimento. Assim como uma joia preci-
sa ser usada e mostrada para que a apreciemos, é igualmente interessante

19
tirar do porta-joias os nossos cristais, as nossas pedras preciosas. Para isso,
vamos, na próxima seção deste texto, relembrar alguns dos títulos de suas
produções acerca da leitura, da escrita e da alfabetização1, a fim de dar vi-
sibilidade ao seu compromisso com as palavras de poder, com a pesquisa e
com a docência acerca deste grande tópico do conhecimento.

Um pouco da história: o que revelam as produções acadêmicas


da Professora Leonor Scliar-Cabral

Na natureza, o cristal aparece de diversas formas, a começar por amos-


tras que encontramos no dia a dia dentro de nossas próprias casas, como,
por exemplo, o grão de sal ou de açúcar. Ou o floco de neve, que é compos-
to por partículas congeladas de água em estado cristalino. A maioria dos
minerais é formada por cristais, que podem variar muito, tanto nas possi-
bilidades de sua utilização, quanto no valor a eles atribuído. A professora
Leonor, como um cristal, também se manifestou e se manifesta de diversas
formas.
Tendo obtido seu grau de doutoramento em Linguística, em 1977,
pela Universidade de São Paulo (USP), e seu pós-doutoramento, em
1981, pela Universidade de Montreal/Canadá, a Professora Leonor de-
senvolveu a maior parte de seu trabalho acadêmico estando vinculada à
UFSC. Já são 36 anos de trabalho nesta instituição, onde se aposentou,
recebeu o título de Professora Emérita e continua atuando como docente
colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Linguística, na quali-
dade de professora voluntária. Foi também docente, entre 1968 e 1981,
da Faculdade Ibero-Americana de Letras e Ciências Humanas (FIA), da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), da Uni-
versidade Federal de São Paulo (UNIFESP), então, Escola Paulista de Me-
dicina (EPM), e da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC/
Campinas), como Coordenadora da Pós-Graduação em Linguística. Cons-
ta de sua trajetória como pesquisadora a presidência da International Society

1 O extenso e consistente currículo completo da Professora Leonor está disponível em: <http://lattes.
cnpq.br/7747923041329769>. Acesso em 14 de abril de 2017 (atualizado em 12 de abril de 2017). Opta-
mos por, neste capítulo, tratar apenas de parte de sua produção, em razão do espaço no qual este texto
se situa e do objeto de interesse particular deste livro.

20
of Applied Psycholinguistics (ISAPL), da qual atualmente é Membro Hono-
rário, a presidência da União Brasileira de Escritores em Santa Catarina,
a presidência da Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN), entre
tantas outras atividades. Implantou a Cátedra UNESCO para o Desenvolvi-
mento da Leitura e da Escrita (MECEAL) no Brasil, por meio do convênio
assinado pelos reitores da Ufsc e da Universidade de Calli. Desde o ano de
1970, é pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científi-
co e Tecnológico (CNPq). Mas sua atuação como escritora não se limita ao
universo da pesquisa. Ela foi indicada como finalista do Prêmio Jabuti, em
2010, na categoria poesia, pela obra Sagração do alfabeto.
Sua produção conta com: 144 artigos; 54 livros; 119 capítulos de li-
vros, 75 trabalhos completos em anais de eventos, 97 textos em jornais ou
revistas, 387 apresentações de trabalho (entre conferências, comunicações,
simpósios e seminários), 37 cursos ministrados (excetuando-se os cursos
regulares em disciplinas de graduação, mestrado e doutorado), 3 supervi-
sões de pós-doutoramento, 22 orientações de teses, 56 de dissertações e 47
de projetos de iniciação científica. Isso sem contar as inúmeras orientações
que não podem ser aqui computadas, porque não foram e não são formais,
mas marcam a história e a constituição de muitos pesquisadores e profes-
sores no Brasil.
Individualmente ou em coautoria com pesquisadores nacionais e es-
trangeiros, a professora Leonor tem vasta produção de pesquisa vinculada
à leitura e à alfabetização e significativo envolvimento com os processos
de formação de pesquisadores e professores, como já mencionado. O que
apresentamos, nesta seção, não são senão recortes extraídos de seu dinâ-
mico currículo, fragmentos que iluminam a amplitude de sua dedicação à
formação de leitores e de formadores de leitores em nosso país.
Dirigindo o olhar aos seus projetos de pesquisa, percebemos que, des-
de 1982, há 36 anos, portanto, a Professora Leonor já estava interessada
em estudos que dizem respeito à aprendizagem dos processos relativos à
leitura. Naquele momento, desenvolveu o projeto Narratividade em crian-
ças e os processos de leitura (INEP, 1982), cujo objetivo central era melhorar
as capacidades da criança para a leitura e a escrita, mediante o desenvol-
vimento da competência narrativa. A partir daí, foram muitos os projetos

21
desenvolvidos na área, entre os quais citamos: Efeito das capacidades me-
talinguísticas de processamento fonológico sobre a decodificação do código
escrito, Efeito recíproco das capacidades metalinguísticas de processamento
fonológico sobre a decodificação do código escrito, Pesquisas sobre as rela-
ções entre a alfabetização e o desenvolvimento das capacidades cognitivas
e linguísticas, Relações entre letramento e capacidades metalinguísticas em
situação experimental, Da oralidade ao letramento: continuidades e descon-
tinuidades, Capacidades metalinguísticas e os princípios do sistema alfabéti-
co do português do Brasil (PB), Princípios do sistema alfabético do português
do Brasil: socialização I e II. Estes dois últimos projetos trouxeram à tona
a formalização realizada em duas obras publicadas em 2003, pela editora
Contexto, que figuram como as principais acerca do sistema de escrita do
português do Brasil, quais sejam: Princípios do sistema alfabético do portu-
guês do Brasil e Guia prático do alfabetizador.
Em 2008, em uma proposta ousada envolvendo várias instituições e
ações, assume a frente do projeto Ler & Ser: combatendo o analfabetismo
funcional, ação que se mantém até hoje, tendo sido geradora do projeto
Sistema Scliar de Alfabetização, que continua sendo desenvolvido em Vali-
dação da Proposta Scliar de Alfabetização e Rede nacional para melhorar a
qualidade da alfabetização e competência em leitura e escrita; este teve início
em 2016 e é bastante vasto e ambicioso, envolvendo pesquisadores de vá-
rias instituições de ensino superior do país. Como visto, são muitas ações
investigativas a fim de contribuir para a compreensão da aprendizagem e
do ensino da leitura e da escrita.
No que diz respeito às publicações na área, a lista de trabalho é bastan-
te ampla e significativa. Há mais de 30 anos, em 1983, a Professora Leonor
produz a obra Narratividade em crianças e os processos de leitura, publicada
pelo INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira), órgão que ainda hoje agrega muitas ações e programas relacio-
nados à educação brasileira e, no que diz respeito à educação básica, inclui
as avaliações em larga escala. Dois anos mais tarde, em 1985, contempla os
leitores com o livro Análise de Cartilhas, em uma edição monográfica da
revista Roteiro da Unoesc/SC. Neste mesmo período, além de capítulos de
livros, publica artigos em torno do mesmo tema, a exemplo de “Psicolin-

22
guística aplicada à alfabetização e leitura”, Revista Roteiro, “Um exemplo de
psicolinguística aplicada para minorar o insucesso escolar”, Revista Pers-
pectiva, “Processos psicolinguísticos de leitura e a criança”, Letras de Hoje.
Passada mais de uma década, que se centrou em pesquisas dedicadas
à análise linguística, aquisição da linguagem e a diversos outros processos
psicolinguísticos e também em desenvolvimentos teóricos, surgem cada
vez mais publicações da Professora Leonor em torno dos temas leitura,
escrita, alfabetização, entre as quais citamos apenas alguns exemplos: “A
leitura e os Parâmetros Curriculares Nacionais”, Perspectiva, “Princípios do
sistema alfabético do português, Estudos Linguísticos, ambos publicados
em 1999, este último antecipando os estudos que culminaram na publi-
cação da mais importante e detalhada obra acerca do sistema alfabético
do português brasileiro que se tem publicada até o momento, conforme já
mencionado anteriormente. Surge, em 2005, o artigo “Revendo a categoria
analfabeto funcional”, pela Crear Mundos/Espanha, texto precursor de um
de seus mais importantes projetos de pesquisa, cujo objetivo é erradicar o
analfabetismo no Brasil. Assim, suas discussões acerca da alfabetização vão
sendo levadas para além do Brasil, o que já acontecia com todas as suas
pesquisas na área da Linguística.
Em 2007, publica, na Atos de Pesquisa em Educação, o artigo “Metas
para a formação de professores”. Atentemos para isto: há mais de 10 anos, a
Professora Leonor já falava em metas, focando sua atenção nos professores
alfabetizadores! O artigo “Aprendizagem neuronal na alfabetização para as
práticas sociais da leitura e escrita”, de 2009, pela Revista Intercâmbio, é
uma produção que traz um novo tema e agrega área a ser contemplada nos
estudos da alfabetização: a neurociência. No mesmo ano, escreve “Desafios
a melhores resultados em alfabetização”, publicado na revista Acolhendo a
Alfabetização nos Países de Língua Portuguesa. Em 2007, focou em metas;
em 2009, falou em desafios: e são muitos efetivamente; por isso, merecem
tão cuidadoso, transparente e polido olhar investigativo. Ainda em 2009,
pela Confraria, oferece ao leitor o artigo “Avanço das neurociências para o
ensino da leitura”. No ano seguinte, dá continuidade às produções sobre as
contribuições da neurociência e publica, na Letras de Hoje, “Evidências a
favor da reciclagem neuronal para a alfabetização”. O mesmo tema é reto-

23
mado em 2013 e, também na Letras de hoje, publica “Avanços das neuroci-
ências para a alfabetização e a leitura”. Em meio a isso, em 2012, é apresen-
tada ao público sua tradução da obra de Stanislas Dehaene, Os neurônios da
leitura: como a ciência explica a nossa capacidade de ler, pela editora Penso,
o que veio possibilitar o acesso a mais pessoas à parte do que há de atual
acerca das pesquisas de ponta em alfabetização e leitura. Essa obra teve
grande influência nas pesquisas da Professora Leonor. Suas mais recentes
publicações na área em periódicos no exterior são “Applied psycholinguistics
to early literacy development” (Scientia Paedagogica Experimentalis, v. 1-2,
2017) e “Neuron Recycling for Learning the Alphabetic Principles” (Folia
Phoniatrica et Logopaedica (online e papel), v. 66, nº 1-2, 2014).
Os estudos sobre métodos e alfabetização desenvolvidos pela Pro-
fessora Leonor se manifestam de maneiras diversas: de aulas e cursos a
orientações formais e informais de professores e estudantes de graduação,
pós-graduação e colegas de trabalho. Mesmo já tendo alcançado significa-
tivo espaço de difusão de suas ideias e pesquisas, faz questão de escrever,
em 2013, o artigo intitulado “A desmistificação do método global”, publi-
cado na Letras de Hoje, a fim de esclarecer, ainda mais, o nefasto papel
que esse(s) método(s) teve(tiveram) – e ainda tem(têm) – no ensino inicial
da leitura. E, em 2015, contempla o leitor com o artigo “Pela melhoria da
qualidade na alfabetização”, pela Estudos Legislativos. O capítulo “Psicolin-
guística e alfabetização”, do livro Psicolinguística, psicolinguísticas: uma in-
trodução, cuja organização esteve sob a responsabilidade de Marcus Maia,
em 2015, ratifica a aproximação que estamos evidenciando desde o início
de sua trajetória, aqui relatada. Em 2017, publica o capítulo “Conversa com
pais e professores sobre leitura”, no livro O que precisamos saber sobre a
aprendizagem da leitura.
Embora existam jazidas de cristais em outros locais do mundo, esse
mineral, encontrado em rochas magmáticas, é localizado com maior fre-
quência no Brasil. Há muitos pesquisadores, muitos cristais, mas a temos
como o nosso cristal mais precioso. Seu diálogo com outros pesquisadores
e associações como ALFAL, ISAPL, Cátedra Unesco para a Leitura e a Es-
critura na América Latina, ABRALIN, ANPOLL, Comitê de Linguagem

24
da Criança da Ialp, e a alimentação do maior banco de dados da lingua-
gem do mundo, o CHILDES, fazem com que suas pesquisas dialoguem
com o Brasil e com o mundo. A Professora Leonor Scliar-Cabral é uma
pessoa que aproxima os conhecimentos da Linguística, da Psicolinguísti-
ca e da Neurociência à escola e à formação dos professores, sendo nosso
cristal com maior brilho. Por isso, merece a nossa homenagem, o nosso
reconhecimento. Todos nós, em sua companhia, aprendemos que é preciso
ser cristal, é preciso se manifestar de diferentes formas, é preciso deixar
nossa contribuição.
A fim de conhecermos um pouco de sua história, envolvimento e me-
mórias, relativos ao universo em que a Linguística, a Psicolinguística, a
Neurociência, a alfabetização e a formação de professores e pesquisadores
se encontram, damos voz à Professora Leonor, entrevistando-a, na tarde do
dia 23 de agosto de 2017, em uma casa de chá de Florianópolis. Optamos
por organizar a entrevista de modo semiestruturado, com o propósito de
permitir dar vazão aos desejos, às perspectivas, à criatividade e aos proces-
sos de memória de nossa entrevistada.

A voz da Professora Leonor

Iremos apresentar a questão que motivou a conversa e, em seguida, a


fala da entrevistada. Dessa forma, poderemos conhecer seu ponto de vista
sobre cada tema. A entrevistadora 2 explica que a entrevista está centrada
em questões diretamente relacionadas aos propósitos deste livro, “focando
mais em leitura, alfabetização e no processo de formação de professores em
que a senhora está envolvida já há bastante tempo”.
Feito isso, apresenta a primeira questão cujo propósito foi incitar o
resgate de memórias, a fim de que a entrevistada contasse parte “da sua
trajetória no que diz respeito à aproximação à leitura e à alfabetização”.

Leonor2: Minha trajetória começa há 50 anos. Eu estive rememorando o


meu currículo Lattes, as minhas publicações, para ver onde eu poderia de-

2 A entrevista que consta deste texto foi submetida à revisão da Professora Leonor.

25
tectar o início da minha trajetória que você acaba de mencionar. Eu encon-
tro ali, no ano de 1967, por isso mencionei exatamente há 50 anos, a minha
participação no Centro de Estudos da Língua Portuguesa da PUCRS, por-
que, nesse ano de 1967, embora eu ainda fosse aluna do curso de Letras,
eu já estava, a convite do irmão Elvo Clemente, atuando nesse Centro. As
nossas atividades consistiam em ministrar cursos para a formação de pro-
fessores [...] e, depois, publicar também um material que fundamentava
esses cursos, o chamado Boletim do Centro de Estudos da Língua Portu-
guesa da PUCRS, quando vou ter uma primeira publicação no volume I
desse Boletim. Mas por que eu estava em condições de fazer isso? Porque
se tratava, na verdade, de um trabalho de Linguística Aplicada ao ensino
do português: como autodidata, eu já tinha começado as minhas leituras
em Linguística antes de entrar no curso de Letras. Em 1967, participei do
1º Instituto Linguístico, patrocinado pela Associação de Linguística e Fi-
lologia da América Latina (ALFAL) e pelo Programa Interamericano de
Ensino de Línguas (PILEI). Esse Instituto oferecia disciplinas em nível de
pós-graduação. Na época, eram pouquíssimos os cursos de pós-gradua-
ção em Linguística na América Latina, inclusive no Brasil. [...] O Institu-
to Linguístico de Montevidéu funcionou no verão de 1966, durante dois
meses, quando cursei quatro disciplinas, inclusive Introdução à Linguísti-
ca, ministrada pelos Professores Luis Jorge Prieto, que havia sido expul-
so da Universidade de Córdoba, e pelo antropolinguista, Prof. Emeritus
Norman A. McQuown. Com o Prof. Aryon Dall’Igna Rodrigues, também
recentemente expulso, então, da Pós-graduação em Linguística da Univer-
sidade de Brasília, cursei Fonética e Fonologia. Lembrem bem: 1965. O
golpe militar foi em 1964 e uma das primeiras medidas foi fechar algumas
pós-graduações, entre as quais, a de Brasília. A disciplina de Fonética e
Fonologia foi ministrada por dois professores, Aryon Dall’Igna Rodrigues
e Luis Jorge Prieto. Tive grandes mestres...! Outra disciplina que realizei
foi a de Lexicologia, proferida pelo Prof. José Pedro Rona. Eu assisti, ain-
da, como ouvinte, ao curso de Estrutura da Língua Portuguesa, ministrado
pelo maior linguista brasileiro até hoje, Professor Mattoso Câmara Jr. Foi
meu primeiro curso com ele. Depois, fiz mais outros. Como ouvinte, no 1º
Instituto Linguístico da ALFAL e PILEI, pela primeira vez, tomei contato

26
com a Gramática Gerativa Transformacional. Quando retornei de Monte-
vidéu, em 1966, comecei a escrever artigos semanais no Diário de Notícias,
de Porto Alegre, para divulgar tais conhecimentos, tornando-me pioneira
na difusão das teorias mais recentes da Linguística. Nessa condição, come-
cei a trabalhar com o irmão Elvo Clemente, titular de Língua Portuguesa na
PUCRS, com quem iniciei, conforme já mencionado, minha trajetória pela
Linguística Aplicada à formação de professores de português. Na ocasião,
eu ainda não tinha formação em Psicolinguística.
Entrevistadoras: E quando foi que a senhora migrou para a Psicolinguís-
tica?
Leonor: Eu me formei na PUCRS, em 1968. Nessa condição, organizei a
delegação gaúcha que foi ao 2º Instituto Linguístico da ALFAL, no México,
realizado no Museu de Antropologia. No retorno desse Instituto, começa-
mos a projetar a Pós-graduação em Linguística da PUCRS; primeiro, com
um seminário de Linguística, cujas aulas eu ministrei e, logo em seguida,
a implantação da pós-graduação em Linguística. Sou organizadora desse
projeto, junto com o irmão Elvo Clemente. A Pós-graduação em Linguís-
tica da PUCRS começou oficialmente, embora ainda não credenciada, no
ano de 1970. Em 1971, transferi-me com minha família para São Paulo. Fiz
uma tentativa de realizar o mestrado, no Museu Nacional de Antropologia
no Rio de Janeiro, chegando a ter aulas com Brian Head, Aryon Dall’Igna
Rodrigues e Miriam Lemle, mas era muito complicado, morando eu, em
São Paulo, deslocar-me todas as semanas para o Rio de Janeiro e ficar dois
dias lá, concentrando as aulas em três disciplinas. Em 1972, matriculei-me
na Pós-graduação em Linguística da USP: a área de concentração escolhida
foi a Psicolinguística. Então, respondendo à sua pergunta, é nesse momen-
to que eu enveredo para a Psicolinguística. A minha orientadora foi a Dra.
Geraldina Porto Witter, que é comportamentalista, seguidora de Skinner,
mas me deu toda a liberdade para eu seguir os referenciais chomskianos.
Provinda da Linguística e da Linguística Aplicada, quando de minha ten-
tativa, no Rio de Janeiro, havia escolhido a Sociolinguística e o Brian Head
seria o meu orientador. Mas, como no Rio não deu certo, conforme expli-
quei, optei pela Psicolinguística, sendo a minha orientadora a Dra. Geraldi-
na Witter: fui para o segmento da Psicolinguística que trata de aquisição da

27
linguagem, inclusive traduzi com a Dra. Witter o livro Aquisição e Desen-
volvimento da Linguagem de Paula Menyuk, cabendo à Dra. Witter o enfo-
que psicológico e a mim a parte referente à Linguística. No doutorado, não
realizei disciplinas sobre leitura, processamento ou alfabetização. Entrei di-
retamente no doutorado e não fiz mestrado, porque, na ocasião, eu já tinha
cursado oito disciplinas de pós-graduação, nos Institutos de Linguística,
com eminentes professores. Além disso, já tinha várias obras publicadas,
inclusive o livro Introdução à Linguística, que foi publicado em 1973. Nesse
período todo, paralelamente ao Doutorado, trabalhei com Psicolinguística
Experimental, com aquisição da linguagem, com distúrbios da comuni-
cação, com tradução: adaptei ao português o teste de afasia, versão Alfa,
de André Roch Lecours, que acabou sendo objeto de uma dissertação de
mestrado de Ana Maria Soares Barbosa, publicada em 1981 (Adaptação ao
português do Teste M1-Alpha de André Roch Lecours e respectivo protocolo).
Na década de 90, delineiam-se mais precisamente minhas preocupações
para com as semelhanças e diferenças entre o processamento da linguagem
verbal oral e o da escrita. No meu curriculum vitae, encontra-se, na data de
1995, a publicação de um artigo na revista Letras de Hoje, “Da oralidade
ao letramento: continuidades e descontinuidades”, produto de um projeto
de pesquisa para o CNPq, onde havia começado, até chegar à posição de
pesquisador A1. Nesse projeto, debato as diferenças entre a aquisição do
sistema oral e a aprendizagem do sistema escrito, distinção esta que eu faço
questão de pontuar, uma vez que ainda hoje, em muitos centros de educa-
ção, o nome da disciplina é aquisição da escrita. Sabemos que, nesse caso,
não se trata de uma aquisição, conforme o conceito que se tem em Psico-
linguística. Trata-se de uma aprendizagem. Em 1992, realizei meu semestre
sabático.
Entrevistadoras: A senhora estava na UFSC já?
Leonor: Sim. Iniciei minhas atividades na UFSC, em agosto de 1981, con-
cursada para titular, com um trabalho que resultou do meu pós-doutora-
do na Universidade de Montreal, sobre o sistema fonológico do português
brasileiro, a partir da análise de sonogramas das consoantes e vogais, num
corpus em que eu fui a própria informante. Trata-se de um trabalho no
campo da fonética acústica. Em 1992, quase dez anos depois, saí para o

28
meu semestre sabático, com estágio no Instituto Arias Montano do Consejo
Superior de Investigaciones Científicas, em Madri, quando desenvolvi pes-
quisas sobre o cancioneiro sefardita, do qual resultaram a primeira pesqui-
sa de campo com as damas sefarditas no Brasil e muitas publicações, dentre
as quais o livro Memórias de Sefarad (1994). Sobre o mesmo tema, durante
meu semestre sabático, realizei outro estágio em Paris, sob a orientação da
maior autoridade na língua judeu-espanhol, o Professor Haim Vidal Sephiha,
recentemente falecido, e outro estágio na Universidade de Birmingham, sob
a orientação de meu grande amigo. Prof. Malcolm Coulthard. Nesse estágio,
na Universidade de Birmingham, realizei consultas bibliográficas exausti-
vas sobre processamento oral e escrito e tive contato com uma obra decisi-
va para a minha formação: Language by ear and by eye – The Relationships
Between Speech and Reading (Mattingly; Kavanagh, 1972). Algumas obras
foram catalisadoras no meu percurso. Essa é uma delas, porque resultou
de um encontro de pesquisadores, exatamente, para focalizar a diferença
entre o processamento dos enunciados orais e o dos escritos. Nesse en-
contro, foram proferidas frases que ficaram famosas, como, por exemplo,
“Por que adquirir a fala é tão fácil e por que aprender a ler é tão difícil?”.
Acontece que um dos autores, promotores, organizadores desse encontro
foi o Prof. Alvin Liberman, que foi diretor do Haskins Labs, casado com
Isabelle Liberman, uma das pioneiras na abordagem científica da alfabeti-
zação, tendo formulado a teoria dos princípios dos sistemas alfabéticos e os
conceitos e pesquisas sobre consciência fonêmica e fonológica. Então, essa
obra, como já referi, foi marcante para despertar em mim o interesse em
desenvolver investigações nessa linha, resultando numa série de artigos em
periódicos, em livros e apresentações em congressos. O projeto “Da orali-
dade ao letramento: continuidades e descontinuidades”, por exemplo, com
início em 1994, ocorre um pouquinho depois da experiência que acabo de
narrar. No 4º Congresso Internacional da ISAPL, realizado em Bologna e
Cesena, em 1994, quando fui reeleita presidente da ISAPL, apresentei a
versão em inglês, numa conferência plenária, From the aural-oral system
to literacy: Continuities and discontinuities, a partir do projeto de pesqui-
sa “Da oralidade ao letramento: continuidades e descontinuidades”. Posso
assinalar aí o início da minha perspectiva de aplicar a Psicolinguística à
alfabetização, o que venho desenvolvendo até o momento.

29
Entrevistadora 2: E em que momento entra essa dedicação à formação de
professores alfabetizadores?
Leonor: Bom, esse momento é até anterior, porque eu sempre acreditei na
necessidade de formar o professor para que se obtenham bons resultados
na aprendizagem. Sempre fui convidada para ministrar cursos principal-
mente para pedagogos, por exemplo, no estado de Santa Catarina, além da-
queles que mencionei no início da minha carreira, em 1967, 50 anos atrás.
Desde lá, eu sempre acreditei na importância de formar o professor em ba-
ses científicas mais sólidas. Sempre achei que à Linguística, aos linguistas,
cabia essa responsabilidade de que os conhecimentos não ficassem confi-
nados à academia, mas servissem para melhorar a qualidade do ensino, e
isso obviamente passa pela formação dos professores. Essa convicção se
reforçou quando ficou bem clara para mim a diferença entre aquisição da
linguagem verbal oral e aprendizagem da linguagem verbal escrita e suas
repercussões na formação do professor alfabetizador, porque aí, não só se
trata de aprendizagem, como tem que ser sistemática. A aprendizagem do
sistema alfabético não só não é uma aquisição espontânea, compulsória e
natural, como também se defronta com dois pontos essenciais que vão de
encontro a como os neurônios processam, por um lado, o sinal luminoso e,
por outro, o sinal acústico da fala. Você quer algo mais difícil do que isso?
Em consequência, o professor, que vai propiciar essa aprendizagem, não só
tem que conhecer, dominar o que é a leitura, como ela se dá, como tem que
conhecer profundamente o processo da aprendizagem para que o aluno se
torne um leitor competente, fluente, que compreenda os textos que lê. Tudo
que eu estou argumentando demonstra a necessidade de você fundamentar
esse alfabetizador. Por quê? Os resultados da Avaliação Nacional de Alfabe-
tização (ANA) de 2016 acusam mais do que qualquer libelo.
Entrevistadora 2: E o que foi compreendido nesse processo de alfabetização?
Leonor: Eu batalhei tanto para entendê-lo, que cheguei a uma formula-
ção, aplicando um dos princípios da ciência, a Occam’s razor, isto é, a sim-
plicidade, para definir a aprendizagem da alfabetização para a leitura: os
neurônios da leitura têm que aprender a automatizar quais são, quantos são
e como se combinam os traços invariantes que formam as letras e chegar
até o reconhecimento e sua identificação. Segundo, têm que automatizar o

30
reconhecimento do grafema (no português brasileiro, formado por uma ou
duas letras invariantes) e dos seus respectivos valores que não são senão os
fonemas. Terceiro, tem que automatizar a atribuição do acento de intensi-
dade e aprender a reconhecer rápida e fluentemente a palavra escrita, enca-
deando-a aos clíticos, para atribuição dos padrões de entoação. O reconhe-
cimento da palavra permite chegar ao seu significado básico e, cruzando os
conhecimentos prévios com as informações extraídas do texto, possibilita a
construção do sentido pelo leitor, armazenado provisoriamente na memó-
ria de trabalho, amalgamando-o com os sentidos subsequentes, até chegar
ao sentido global do texto. Ou seja, expus os passos da alfabetização para
a leitura, cujo objetivo é formar um leitor fluente, que compreenda critica-
mente os textos que circulam na sociedade.
Entrevistadora 2: E de que conhecimentos o alfabetizador precisa dispor
para conseguir ensinar a ler? Refiro-me a esse processo inicial de aprendi-
zagem da leitura.
Entrevistadora 1: E da escrita também, porque a escola ainda insiste em
colocar a escrita primeiro e a leitura depois.
Entrevistadora 2: De que conhecimentos o alfabetizador precisa dispor
para alfabetizar?
Leonor: Essa tem sido a questão mais difícil de satisfazer e de contornar no
Brasil, porque, na verdade, para chegar aos conhecimentos específicos que
o professor alfabetizador necessita para se tornar um bom alfabetizador, ele
teria que ter os conhecimentos e pré-requisitos que, desafortunadamente,
os nossos alfabetizadores não têm. Em primeiro lugar, ele próprio teria que
ser um leitor competente. Desculpem, mas eu devo confessar para vocês a
seguinte realidade: se fossem aplicados testes nos nossos professores, es-
ses testes que o INAF, Instituto Nacional do Alfabetismo Funcional, aplica
nas populações (talvez entre os sujeitos das amostras deles se encontrem
muitos professores alfabetizadores), chegaríamos ao resultado de uma
porcentagem altíssima de analfabetos funcionais. Então, não adianta, já aí
nós estamos sem os pré-requisitos básicos para chegar aos conhecimentos
específicos que os alfabetizadores necessitam. Isso que a Otília acaba de
mencionar: em primeiro lugar, ele tem que saber compreender as leituras.
Se não souber, como é que eu vou formar um alfabetizador em neurociên-

31
cia aplicada à alfabetização, pedindo que ele leia um capítulo do livro Os
Neurônios da Leitura, do Dehaene? Então, como primeira coisa, eu preci-
saria que ele fosse leitor, que ele saísse daqueles níveis mais baixos de alfa-
betismo. Eu precisaria colocá-lo, no mínimo, no nível antes do alfabetismo
pleno, não é? Depois, ele também tem que saber escrever. Certo? Então,
isso é a primeira coisa. Suponhamos que eu tenha, entre os alfabetizadores,
professores que realmente compreendem o que leem e sabem escrever, mas
não tiveram os conhecimentos necessários à formação de um alfabetiza-
dor, simplesmente porque nos cursos de Pedagogia e, mesmo nos cursos de
Letras, não se ministram as disciplinas necessárias, específicas à formação
do alfabetizador. Citemos um fato básico: o sistema escrito do português
brasileiro é alfabético. Isso significa que, para a leitura, ele é baseado em
que os grafemas se traduzem em fonemas, ou seja, o grafema vale um fone-
ma, representa um fonema. O que é que decorre dessa constatação? Que,
primeiro, o alfabetizador conheça o sistema fonológico do português bra-
sileiro. Ele tem que saber que fonema não é som, apesar de os “teóricos”
do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, PNAIC, colocarem
que a criança tem que converter a letra em som quando lê. Não é isso que
eles dizem lá? Eles dizem isso, ipsis litteris, os teóricos do PNAIC. Dizem
textualmente: na leitura a criança converte uma letra em som. Então, o alfa-
betizador tem que conhecer o sistema fonológico do português brasileiro e
saber o que é fonema para poder falar em consciência fonêmica... Está todo
mundo enchendo a boca aí, “Vamos desenvolver a consciência fonológica,
vamos desenvolver a consciência fonêmica!” Não sabem nem a diferen-
ça entre a consciência fonológica e a consciência fonêmica. Não sabem o
que é fonema. Como é que vão desenvolver uma coisa que elas não sabem
nem o que é? E, me diz, nós temos uma letra para cada som? Quer dizer
que, quando tu dizes ‘carta’ [Leonor fala usando a aproximante retroflexa
[ɻ]: [‘kaɻtɐ]], tu vais ter uma letra para aquele [ɻ]? Depois quando tu dizes
‘carta’ [fala empregando a vibrante múltipla uvular [ʀ]: [‘kaʀtɐ]], tu vais
ter outra letra para aquele som? O outro diz ‘carta’ [fala usando a vibrante
múltipla alveolar [r]: [‘kartɐ]], mais uma letra para aquele [r]. É isso? Nós
temos uma letra para cada som? É o exemplo flagrante de que não enten-
dem os princípios essenciais de como funciona um sistema alfabético. Não

32
sabem a diferença entre som e fonema. Não sabem que o que o grafema
representa é o fonema.
Entrevistadora 1: Posso te fazer uma pergunta aqui nesse meio? Tu não
achas que isso se deve ao fato de que, na maioria das vezes, o professor da
graduação, que trabalha com alfabetização, não é uma pessoa formada na
área da Linguística e é uma pessoa formada na área só da Educação? [...]
Leonor: Mas eu coloco o problema da seguinte maneira: se, entre os alfa-
betizadores, o que predomina, é aquele que vem da área da Educação, na
Educação, no curso de alfabetização, tem que haver uma carga horária pe-
sada para isso que eu estou dizendo, mas, como isso não é fácil de ensinar,
qual é a defesa do pessoal que se recusa a isso? “Ah, nós somos contra as
cartilhas matracas. A alfabetização tem que ser para compreender o texto”...
Entrevistadora 1: É... houve uma desmetodização da alfabetização.
Leonor: Acusam: “Isso aqui é cartilha matraca. Não trabalha com a sig-
nificação.” Ora, é porque eles não sabem nem a definição de fonema, não
é? Porque o que é fonema senão um feixe de traços fonéticos distintivos?
Distintivos do quê, gente? Da significação básica das palavras! Em segundo
lugar, o alfabetizador tem que conhecer os princípios do sistema alfabético
do português brasileiro. Tem que saber que o valor de alguns grafemas in-
depende do contexto, que outros valores dependem do contexto grafêmico:
é o que está escrito que vai determinar o valor do grafema. E, pelo nosso
sistema ser muito transparente para a leitura, apenas alguns grafemas são
imprevisíveis, não é? Infelizmente, não se explora essa transparência. En-
tão, isso é a segunda coisa que é preciso conhecer. Em terceiro lugar, o alfa-
betizador tem que conhecer quais os princípios, também, através dos quais,
na escrita, se atribui o acento de intensidade. O grande codificador dos
princípios do sistema alfabético do português foi Gonçalves Viana, no iní-
cio do século XX, aplicando a Occam’s razor, certo? Já há mais de 100 anos,
gente, isso... ele captou [Leonor faz uma brincadeira com a palavra “captar”,
falando “capetô”] que as palavras mais frequentes da língua portuguesa es-
crita (agora nós estamos trabalhando com leitura, não é?) se escrevem [...]
com “a”, “e”, “o”, seguidas ou não de “s”, e que, na oralidade, são paroxítonas,
ou seja, recebem acento de intensidade maior na penúltima sílaba. Esse
é o padrão! Logo, Viana aplicou aquela regra da linguística Otherwise

33
condition. Quer dizer, por ser a forma padrão a mais frequente, é a forma
não marcada e não recebe nenhum acento gráfico; só nos demais contextos
é que se usará o acento gráfico. Então, o que Viana orientou? O princípio
da negativa, também utilizado na Linguística: o de que as palavras que se
escrevem com “a”, “e”, “o”, seguidas ou não de “s”, sem acento gráfico, devem
ser lidas como paroxítonas. Esse princípio é importantíssimo. O professor
tem que conhecer isso para poder ensinar, certo? Como é que a criança, na
leitura, vai atribuir o acento, sem o quê, não reconhece a palavra escrita?
Em quarto lugar, o professor tem que conhecer, ainda, o que são os vocábu-
los átonos, certo? E como é que eles aparecem no sistema de escrita. Aí são
conhecimentos de língua portuguesa que ele tem que ter, certo? E, sobretu-
do, tem que conhecer princípios de metodologia de ensino-aprendizagem
na alfabetização. Primeira regra: não alfabetizar pelo nome das letras, que é
uma calamidade na sala de aula. Ontem, na Pós-Graduação em Linguística,
no curso de Tópicos em Psicolinguística, eu estava dando aquele exercício
que eu gosto muito: “Os vasos preciosos” (modéstia à parte, eu acho genial
aquele exercício). Trabalho com ele para mostrar a significação que têm
os artigos definidos e indefinidos. Os indefinidos introduzem a informa-
ção nova e os definidos, a informação conhecida. Então, eu fui passando
aluno por aluno, para eles me dizerem o que é que estava fazendo aquele
tal artigo. E, no caso da informação já conhecida, qual o processo de subs-
tituição da informação velha usada: se era metonímia, metáfora, paráfrase
etc. Chego a uma das alunas (aliás, todas as alunas são excelentes) – ocorria
um artigo [u] que se escreve com “o”, seguido de um nome. Quando ela foi
ler, eu disse: “Então, agora, você fale sobre o artigo” E ela disse: “O artigo
[ɔ]…” [transcrição da vogal baixa posterior arredondada]. Ela leu o nome
da letra. Mudou o significado, porque [ɔ] é uma interjeição! Não é mais ar-
tigo. Por quê? Porque foi alfabetizada pelo nome das letras. Aconteceu uma
coisa semelhante, com um aluninho, lá de Natal [Leonor se refere a um
estudante do 1º ano do ciclo da alfabetização de escola de Natal/RN onde
estava sendo aplicado o Método Scliar de Alfabetização], que estava lendo
um dos textos do Aventuras de Vivi, cujo título era: “Vovó Eva e Vivi”...
Entrevistadora 2: Leu: “É Vivi… Vovó Eva é Vivi”...

34
Leonor: Gente! Ele leu como se fosse uma proposição! Leu como se “e” ti-
vesse acento agudo porque na Educação Infantil decorou o nome das letras
que estavam afixadas na parede e ainda não sabe a diferença que para ser
lido como [ɛ] [vogal baixa anterior], o monossílabo, que representa esse
fonema, em primeiro lugar, é tônico e, na escrita, vem assinalado por um
acento gráfico agudo. Do contrário, ele tem que ser lido, na maior parte das
variedades sociolinguísticas, como um vocábulo átono [i] [vogal alta ante-
rior]. E nós, pelo Sistema Scliar de Alfabetização, ensinamos desde o início
o valor dos grafemas que representam as vogais, pelo contexto grafêmico
em que eles estão inseridos. Assim, se “e” estiver entre espaços, só pode ser
a conjunção coordenativa, que é um vocábulo átono (clítico) e seu valor
vai ser realizado como [i] (na maioria das variedades sociolinguísticas) ou
como [e]. Vocês que trabalham com leitura, principalmente com compre-
ensão, vejam como, se o aluno for alfabetizado pelo nome das letras, vai
determinar que ele compreenda mal o que está lendo.
Entrevistadora 1: Posso abrir parênteses, Leonor? Eu sou contra. Mas eu
queria saber a tua opinião, de afixar as letras na educação infantil [...]
Leonor: Mas, claro! Aí vai rezar como o Padre Nosso?
Entrevistadora 1: As crianças vêm da educação infantil decorando as le-
tras. Tanto foi que o meu filho escreveu “água” só com “h”, em vez de “g”?!
Entrevistadora 2: O problema, na verdade, não é só porque elas estão afi-
xadas. É por causa daquilo que se faz com o que está pendurado nas pare-
des, não é?!
Entrevistadora 1: Mas porque as crianças não reconhecem aquilo como
letra e, sim, como desenho, não é?!
Leonor: Começa pelo seguinte, gente, o que que aquilo tem a ver com texto?
Entrevistadora 1: Não tem nada. Olha, pode fazer uma visita a todas as
escolas.
Leonor: Errado, sob todos os pontos de vista.
Entrevistadora 2: E, para piorar, eles colocam a letra enfeitada ainda, com
cara, com laço...
Entrevistadora 1: Eu acho muito importante discutir isso…
Entrevistadora 2: As classes de alfabetização têm muito isso, professora.
As classes de alfabetização e até de educação infantil têm sempre alfabeto

35
na parede, e isso é regra, não é? É característica marcada das salas de alfa-
betização, e as letras, normalmente, são enfeitadas, são decoradas…
Leonor: Os traços invariantes é que devem ser o foco para o reconheci-
mento da letra e, com o que você está dizendo, até isso vai para o espaço!
Mas o que é isso, gente? É falta de conhecimento...
Entrevistadora 1: Porque a gente está discutindo os conhecimentos neces-
sários ao professor, não é?! A ordem alfabética tem outra função.
Entrevistadora 2: Ela só entra em cena quando o sujeito já está alfabetiza-
do, nessa outra função.
Leonor: Claro! Para alguma coisa serve! Por exemplo, para consultar o di-
cionário, para consultar uma agenda.
Entrevistadora 2: Para dar sequência, não é?!
Leonor: Mas essa sequência só funciona nessas situações que acabo de
mencionar.
Entrevistadora 2: E só funciona para sujeito já alfabetizado.
Leonor: Lógico. Isso vem depois. Tu vais consultar um dicionário antes de
estar alfabetizado?
Entrevistadora 1: É, eu queria deixar isso bem claro na nossa entrevista.
Leonor: Claro! Então, gente, voltando ao que vocês estavam perguntando,
quais são os conhecimentos que o alfabetizador necessita, já mostrei alguns.
Mas ele também tem que ter conhecimentos sobre processamento da leitu-
ra. Por quê? Tem que saber onde começa a leitura: é uma atividade que exige
volição, vontade, intencionalidade. Começa aí. Você vai ler qualquer coisa,
porque você quer aprender alguma coisa, quer saber se alguém lhe mandou
uma informação lá pelo Whatsapp, não é? São exemplos de como começa
a leitura. Primeiro porque, para a pessoa ler, ela precisa estar motivada. Ela
não vai ler qualquer coisa, se não tiver interesse [...] Então, tem que haver
motivação para a pessoa ler. Primeira coisa sobre processamento, certo?
Entrevistadora 3: Professora! Me permite só colocar... Eu quero fazer uma
pergunta e que a senhora responda no momento em que a senhora desejar
nessa sua fala. Em que medida a senhora vê essa questão da motivação,
permeando ou não tanto a informação do professor quanto o interesse dos
alunos que chegam à escola hoje, sendo que isso é um fator importantíssi-
mo para a aprendizagem?

36
Leonor: Não, a sua pergunta é mais do que oportuna porque é exatamente
onde nós começamos as etapas da leitura. Sem motivação, nada acontece
tanto no ensino, que é a posição do professor, quanto na criança que está
se alfabetizando, que é a questão da aprendizagem. Sem motivação, não
conseguimos nada. É essa a resposta que eu dou. Bem, mas a motivação
está ligada à escolha do que se vai ler, que gera o momento da pré-leitura.
Eu não vou falar sobre isso, porque vocês conhecem e estão trabalhando a
fundo com tudo isso. Eu só quero dizer que, no caso da criança que está se
alfabetizando, é evidente que ela tem que ter algum conhecimento prévio
sobre o texto que vai ser lido. Vocês sabem que na minha proposta, no
início da alfabetização, primeiro, ocorre a leitura interativa do texto entre
professor e alunos e, depois, o professor lê todo o texto com expressividade.
De qualquer maneira, esse texto tem que ter informação conhecida e nova,
ele não pode conter só informação nova. Então, o professor tem que saber
como vai lidar com isso. Aqueles conhecimentos que forem novos em gran-
de quantidade devem ser, então, fornecidos por um trabalho de pré-leitu-
ra antes de começar a leitura interativa. Têm que ser fornecidos, porque a
criança não tem aquele conhecimento. Às vezes, o esquema cognitivo é até
ausente. Ela não tem nenhum conhecimento sobre aquilo. Por exemplo, há
um texto, em Aventuras de Vivi, em que a personagem está fiando numa
roca. Essa proposição, esse esquema, a criança não tem. Então, isso tem
que ser dado, ministrado antes de entrar na leitura interativa. Bom, esse é
o momento da pré-leitura e, depois, vocês sabem o que acontece na leitura
propriamente dita, que é o fatiamento. Eu não vou entrar agora nesses deta-
lhes, mas saliento que o professor tem que compreender o papel da memó-
ria de trabalho no processamento da leitura, porque está aí um dos argu-
mentos decisivos para rejeitar a alfabetização pelo nome das letras, porque
se você fizer a leitura por soletração, o tempo gasto no processamento é tão
grande, que ao chegar ao final da soletração, a informação processada já foi
para o espaço, já não está mais lá na memória de trabalho. Para que haja um
processamento rápido, insistimos, os neurônios da leitura têm que automa-
tizar o reconhecimento de quais, quantos e como se combinam os traços
invariantes das letras, bem como automatizar o reconhecimento delas e dos
grafemas, e de seus valores, para chegar ao reconhecimento rápido da pa-

37
lavra, tendo, também, automatizado a atribuição do acento de intensidade.
Eu insisto muito nisso, pois a criança tem que ler rápida e fluentemente.
Essa é outra coisa que o professor tem que saber: como ensinar ao aluno a
ter fluência, então ele precisa saber o que é juntura externa fechada, que é
para a criança aprender a ter fluência na leitura. As regras são poucas, sa-
bem? O que vou dizer a seguir se refere aos grafemas realizados por letras,
os quais representam fonemas, pois estamos tratando do contexto escrito
para a leitura. Em virtude de que o fenômeno vai incidir quando você tem
palavra terminada por consoante, seguida de palavra que inicia por vo-
gal (como em “olhos azuis”), ou quando você tem um encontro de vogais
átonas idênticas, tanto no final quanto no início dos vocábulos (como em
“casa amarela”), ou quando você tem vocábulo terminado pela vogal a áto-
na e o seguinte começa por vogal átona (como em “casa escura”). Então,
são três situações que o professor precisa conhecer bem para poder ensinar
para criança para que ela tenha a leitura fluente, condição para colocar um
padrão de entoação. E o padrão de entoação não recai sobre palavras se-
paradas por espaços, por silêncios, certo?... A frase tem que fluir para você
colocar um padrão de entoação. Acresço, ainda, que o professor necessita
conhecer quais os instrumentos anafóricos no PB escrito, para poder ensi-
nar os alunos a recuperar as referências. Eu diria que esses seriam, para a
alfabetização para a leitura, os conhecimentos fundamentais.
Entrevistadora 3: Leonor! Acompanhando teu trabalho há mais de 20
anos, a gente percebe que a apropriação dos conhecimentos que as tuas
pesquisas têm trazido, por parte da escola, tem sido muito, muito, muito
lenta. Ou seja, questões importantes que tu tens apontado há décadas, me
parece que agora, devagarinho, mas devagarinho, começam a adentrar a es-
cola por meio, digamos assim, dos teus filhotes. Mas muito devagar. Como
é que a professora percebe a questão, como é que a professora entende que
poderíamos mudar esse quadro? Em partes, você respondeu antes apon-
tando para a formação do professor, mas de que forma a gente poderia ser
mais efetivo nisso? Isso é uma grande preocupação.
Leonor: Bom, há uma diferença entre efetividade e urgência. O problema
passa pela vontade política, e acontece que os detentores do poder das po-
líticas da alfabetização não estão interessados e, mais do que isso, fazem

38
resistência à mudança. O obstáculo maior tem sido este. Os detentores do
poder, na maior parte, seguem o construtivismo, e/ou, o que dá na mesma,
os métodos globais de alfabetização. Então, na verdade, a maneira mais
contundente de a gente provocar a mudança seria uma infiltração nos ór-
gãos de poder que decidem sobre a política de alfabetização, as políticas
públicas de alfabetização.
Entrevistadora 2: Então, a nossa última questão é a respeito de currículo
para os anos iniciais. A senhora tem alguma proposta de currículo?
Leonor: Não. Eu ainda não examinei a nova proposta curricular unificada
para todo o país e eu acho que, para eu me pronunciar sobre isso, eu teria
que, primeiro, examiná-la em profundidade [Leonor se refere à Base Na-
cional Comum Curricular]. Porque eu acho que qualquer comentário deve
ser em cima dessa proposta que vai viger, não é? Mas eu posso antecipar
que, pelo menos para o desenvolvimento da alfabetização para a escrita, o
eixo principal tem que ser trabalhar com planejamento. Ensinar a criança
a planejar o que ela vai escrever, simultaneamente com o desenvolvimento
da capacidade para resolver problemas. Eu não estou me referindo só a
problemas de matemática, mas ao desenvolvimento do raciocínio lógico.
Isso é uma disciplina essencial para aprendizagem da escrita de textos.
Entrevistadora 1: [...] Eu acho que quando a gente pensou essa pergunta,
Leonor, a gente pensou um pouco até no teu método. Não está muito claro
para os professores por onde começar a alfabetizar. Tu entendes?
Leonor: [...] Tem que se começar pela alfabetização para a leitura, é por
onde começar. Na alfabetização para a leitura, a gente adota algumas estra-
tégias, que estão bem claras no livro de roteiros, [Aqui, Leonor faz referên-
cia ao seu livro Sistema Scliar de Alfabetização – Roteiros para o professor:
Módulo 13], que é o desenvolvimento da competência narrativa, a primeira
atividade. Depois, o princípio da ordem na introdução das letras e grafe-
mas. Aí, o princípio é de começar pelos mais fáceis, seguindo a ordem de
complexidade crescente. A questão teórica poderia ser resolvida se, defi-
nido o eixo, se completasse dizendo: “aplicando os conhecimentos mais
avançados das ciências que se ocupam da linguagem”, e aí elencar quais

3 SCLIAR-CABRAL, Leonor. Sistema Scliar de Alfabetização:Roteiros para o professor: Módulo 1. Floria-


nópolis: Lili, 2017.

39
são essas ciências. Pelo menos, nessa parte do referencial teórico, você es-
taria se posicionando em favor de uma fundamentação científica, embora,
em cada uma dessas ciências, haja vários posicionamentos epistemológicos
distintos. Mesmo se você mencionar a Neurociência, você vai ter a postura
conexionista e a postura que é mais da neurociência da cultura. Se você
falar na Linguística, você vai ter as correntes inatistas, vai ter a corrente da
linguística cognitiva e assim por diante. O importante é assinalar que a base
da alfabetização seja científica, com evidências empíricas atuais. Mas uma
coisa é o currículo para formação do professor, outra coisa é o currículo da
criança. [...] O currículo da criança... Ele não deve abranger só a alfabetiza-
ção para a leitura, porque tem que abranger, no mínimo, o conhecimento
matemático. Então, eu acho que o currículo para a criança tem que abran-
ger a alfabetização para a leitura e para a produção textual, o letramento
matemático inicial. [...]. Tem que abranger conhecimentos de ecologia já
no primeiro ano. E as atividades que vão contribuir para os outros aspectos
do desenvolvimento da criança, que envolvem estética e os aspectos emo-
cionais, ou seja, música, teatro, dança, artes plásticas, poesia, literatura oral
e educação física. E atividades de socialização.
Entrevistadora 2: E por que que a senhora elegeu a Ecologia?
Leonor: Por causa do momento atual, em que o futuro do planeta Terra está
em jogo. A educação ecológica tem que começar desde o primeiro ano, em
nível da criança, é claro! Se tu perguntas, assim, do ponto de vista do currí-
culo, o que tem que integrar o currículo básico no primeiro ano, no mínimo,
eu vejo esses itens, porque a gente visa à educação integral da criança. A
alfabetização para a leitura não é um fim em si mesma, certo? Na alfabetiza-
ção para a leitura, alguns daqueles objetivos que estão nas outras disciplinas
já serão atendidos. [...] A alfabetização para a leitura é pré-requisito para o
desenvolvimento da cognição. Vai desenvolver a percepção... E, também, no
caso de ser uma alfabetização para a leitura que envolva textos como poe-
sia, também vai desenvolver aqueles aspectos estéticos que, especificamente,
você vai encontrar nas atividades de música, de dança, de teatro, de artes
plásticas, de literatura. Tudo isso tem que integrar o currículo, certo?
Entrevistadora 2: E os conhecimentos de História e Geografia não inte-
grariam?

40
Leonor: [...] Eu acho que isso tu podes colocar no currículo em Ciências
Sociais. História e Geografia são ciências sociais, mas não só elas, certo?
[...] Algumas dessas disciplinas não envolvem só trabalhar com textos, en-
volvem principalmente atividades. Eu, por exemplo, recomendo, no pri-
meiro ano, na disciplina de Ecologia, cultivar a horta na escola. Eu acho
que deve haver uma disciplina de Ciências, no primeiro ano, que envolva
atividades de como observar e como fazer experiências. Eu tinha indicado
a socialização, porque, é claro que a socialização a criança vai começar a
aprender fora da escola, quando ela vai brincar com seus amiguinhos. Aí
começa a socialização, não é verdade? Vai aprender a conhecer os papéis, a
respeitar o tempo e o espaço dos outros, a partilhar e a conquistar alvos em
conjunto, a se identificar como pessoa e como grupo.
Entrevistadoras: Professora, muito obrigada!

Palavras finais

[...]
Ao som inaugural de uma palavra
imprimirás a letra como um selo.
A parte evoca o todo e o elo lavra

as frases e a história com que narras


como D’us te exortou em seu apelo
de fixares eternas as amarras.
(Scliar-Cabral, 2009, p. 154)

Sentimo-nos honradas e agradecidas pela oportunidade de, mais uma


vez, revisitar, analisar e refletir sobre a trajetória profissional da Professora
Leonor, no que diz respeito ao seu precioso e raro trabalho de pesquisa
e de formação de professores, com o firme propósito de aplicar a ciência
Linguística, a Psicolinguística e, mais recentemente, a Neurociência, além
de contribuir com ações concretas e bem fundamentadas, que possibilitam
o movimento de erradicação do analfabetismo funcional no Brasil. É uma

4 Estes tercetos integram o soneto ALEF, o primeiro da obra Sagração do Alfabeto, de autoria de Leonor
Scliar-Cabral, cujos sonetos foram traduzidos para o espanhol, o francês, o inglês e o hebraico, publica-
do em 2009, pela editora Scortecci, de São Paulo, finalista na categoria poesia, do Prêmio Jabuti.

41
grande alegria, também, termos tido mais um belo e agradável momento
de conversa descontraída e sensível, acompanhada de risadas e chás, por
mais de 5 horas, durante a entrevista na qual ela nos apresentou sua pers-
pectiva da própria história, contando detalhes que as lentes e a formalida-
de de um currículo não permitem capturar. Nosso robusto cristal não se
apresenta nobre apenas no fazer ciência e no fazer docência. Apresenta-se
nobre e brilhante também nos momentos em que as falas são despidas das
vestimentas acadêmicas e docentes, nos momentos em que se desvelam
detalhes e elementos ricos e profundos de sua própria existência, de seu
trabalho e de sua relação conosco, suas ex-alunas.
Conforme detalhado nas seções deste texto, é patente, visível e maci-
ça a dedicação que a Professora Leonor vem empreendendo ao longo da
vida para garantir a formação em leitura a todos os cidadãos brasileiros.
E, hoje, aos 89 anos de idade, ela continua batalhando, pesquisando, se ex-
pondo, explorando e buscando respostas para o ensino inicial não apenas
da leitura, mas também da escrita a nossas crianças. Seu último curso de
pós-graduação, há pouco ministrado, revela a dedicação a este problema.
E já está em andamento um novo curso de extensão a distância, de fôlego,
ofertado aos alfabetizadores, em moldes semelhantes ao primeiro, ocorrido
em 2017, desta vez, dedicado à aprendizagem da escrita.
Analisar a trajetória da Professora Leonor exige bastante de quem se
propõe fazê-lo. Afinal, ela não para um só instante. Demos mais uma espia-
dela em seu consistente currículo e – qual não foi a surpresa – lá estavam
novas produções escritas, novas participações em eventos. A dinamicida-
de, o brilho e a vivacidade são tantos, que nos sentimos orgulhosas por
poder compartilhar um pouco de tudo isso entre nós e com os leitores e,
sobremaneira, nos sentimos compelidas a continuar o trabalho diário de
pesquisa, de ensino e de extensão, com o propósito de fomentar e garantir
o acesso à leitura e à escrita a todos/as os/as brasileiros/as.
Vemos a perspectiva da Professora Leonor quanto ao papel da alfabe-
tização muito bem representada na fala do Professor José Morais quando
da introdução do seu livro Alfabetizar para a democracia (2014, p. 105): “A
ação de alfabetizar, de fazer de todos os seres humanos leitores e letrados,
5 MORAIS, José. Alfabetizar para a democracia. Porto Alegre: Penso, 2014.

42
não é concebida apenas como um instrumento para a democracia, mas
como uma afirmação e uma manifestação de democracia real”. E, ainda,
sonhando o sonho de Morais (id. ibid. p. 138-139):
Sonhei!
Que um governo no Brasil - não sei que governo, nem que Brasil -
criou e aplicou o PRIME:
[...]
2. Todas as famílias com filhos receberão, cada uma, 500 livros infan-
tis, juvenis e para adultos, de variados gêneros e domínios, e serão
visitadas periodicamente por um especialista em leitura e literacia.
[...]
9. Todas as autoridades municipais, estaduais e federais no setor da
educação e, em particular, da alfabetização realizarão anualmente
seminários com especialistas nacionais e estrangeiros para atualizar
os seus conhecimentos com base nas evidências científicas mais re-
centes.
10. Todas as crianças saberão ler e escrever com autonomia no fim
do 1º ano, de maneira correta e altamente fluente no 4º ano, e con-
tinuarão a ler com gosto e vontade para aumentar os seus conheci-
mentos, sentir a beleza e o sentido profundo dos textos literários,
sendo capazes de ter espírito crítico e criatividade.
Se formos muitos a sonhar, talvez tudo isso deixe de ser um sonho.
Para o nosso cristal de maior brilho, há muito já deixou de ser só sonho.
Todo o seu esforço e empenho reais na formação de professores não apenas
no sul e sudeste brasileiro, mas também no Nordeste, uma das regiões onde
se situam as piores taxas de alfabetismo do Brasil, vêm surtindo efeitos. E,
quiçá, em um futuro não distante, estejamos diante da realização do sonho
de que todas as crianças, ainda enquanto crianças, leiam e escrevam com
autonomia até o final do primeiro ano do ensino fundamental. E que Vivi,
com suas aventuras, esteja cada vez mais presente nessa empreitada.

43
Parte II

Letramento
e alfabetização
para a democracia

44
2
Educar todos os seres humanos para serem
letrados, capazes de pensamento livre,
crítico e criativo

José Morais
Régine Kolinsky

Apresentação

Redigido em homenagem à Professora Leonor Scliar-Cabral, este ca-


pítulo trata da questão da alfabetização e da literacia, atribuindo a esta um
conteúdo que a insere numa perspectiva histórica e sociopolítica. Analisa-
mos e discutimos dados de instituições internacionais, UNESCO e OCDE,
que documentam o estado lamentável da alfabetização e da literacia no
Brasil relativamente aos adultos e aos adolescentes, e que mostram que essa
situação, produto de sucessivas gerações oligárquicas, tem sido e continua
a ser o maior obstáculo ao desenvolvimento democrático da sociedade
brasileira. Descrevemos sucintamente uma aplicação bem-sucedida de um
Curso de alfabetização de adultos, realizado em Portugal e elaborado com
base no conhecimento científico, a um pequeno grupo de pessoas total-
mente analfabetas. Propomos que este tipo de programa de alfabetização,
na condição de se formar corretamente o necessário contingente de alfa-
betizadores, seja utilizado em larga escala tanto para adultos como jovens.
Enfim, comentamos positivamente a possibilidade de uma inflexão impor-
tante na maneira como as instituições públicas têm tratado os objetivos e os
conteúdos curriculares do ensino fundamental no Brasil e acrescentamos
sugestões para um desenvolvimento mais acelerado e consistente numa
perspectiva democrática.
45
Introdução

Foi em 1986 que pela primeira vez chegamos ao Brasil, com um desti-
no marcado: a casa da Leonor. Para nós, já então, era simplesmente Leonor.
Um de nós (J. M.) tinha-a conhecido quatro anos antes numa soirée de fes-
ta em casa de nosso mestre Paul Bertelson. Tinha ela vindo à Bélgica para
participar num grande evento de Linguística. Estava linda e elegantíssima.
Na realidade, como sempre fomos confirmando há já mais de 30 anos, a
língua portuguesa manda-nos dizer que ela não estava, ela é.
Quando Leonor nos convidou para sua casa, já tínhamos conversado
muito sobre tanta coisa (a ciência, a linguagem, a escrita, o Brasil, a vida, a
amizade...) e até preparado o primeiro artigo fruto da nossa colaboração,
que seria publicado no ano seguinte, no Quarterly Journal of Experimental
Psychology (Morais; Castro; Scliar-Cabral; Kolinsky; Content, 1987). Tam-
bém já tínhamos, das nossas adolescências, e independentemente um do
outro, uma grande atração pelo Brasil, sobretudo transmitida pelos seus
grandes escritores. Mas foi Leonor quem nos pôs no caminho de amá-lo
tão profundamente e de virmos a ser (não foi preciso muito tempo) brasi-
leiros de coração.
Se a nossa história não tivesse sido esta, este artigo não teria existido.
Porque Leonor, com sua lucidez e conhecimento, acabou também por ser
nossa mestra e por fortalecer nossa vontade de pesquisar sobre os proces-
sos mentais da literacia e de considerar tanto esta como aqueles no seu
contexto histórico, social e político. E porque aquilo que hoje pensamos
sobre essas questões, sem ser necessariamente coincidente com o que delas
pensa Leonor, provavelmente não teria tomado esta configuração se não
tivéssemos interagido tanto. E a ambição, que é a nossa atualmente, de con-
tribuirmos para mostrar que é possível alfabetizar adultos iletrados e fazer
com que eles se tornem cidadãos capazes de participar no debate demo-
crático, não teria provavelmente uma base suficientemente sólida se não
tivéssemos tido o exemplo da grande educadora que, além de cientista, tem
sido Leonor, pela voz, pela escrita e, recentemente também, pela via virtual.
Neste artigo, abordaremos sucessivamente os seguintes tópicos: O que
é ou deve ser literacia. O estado da literacia no Brasil. O que é alfabetizar.

46
Como alfabetizar adultos totalmente iletrados. O que se está fazendo e o
que se deveria fazer pela literacia no Brasil.

O que é ou deve ser literacia

A literacia, do inglês literacy, palavra oriunda do latim, já introduzida


nos países de língua francesa e extensivamente utilizada também em Por-
tugal, é basicamente as habilidades de ler e de escrever, qualquer que seja
o sistema de escrita. Mas só basicamente. De fato, para nós, ela é muito
mais do que isso: é a competência cognitiva que resulta direta ou indireta-
mente da aquisição daquelas habilidades. Isso porque o letrado não difere
do iletrado do seu tempo apenas por saber ler e escrever. Difere também
por todo o impacto que o uso da leitura e da escrita teve no seu sistema
cognitivo, no seu conhecimento e, por conseguinte, nas suas capacidades
de interpretação das situações, de decisão apropriada e de planificação das
suas ações (Kolinsky, 2015). Dissemos: comparado com o iletrado do seu
tempo, que já foi e continua a ser influenciado pelo fato de viver, na grande
maioria dos casos, em sociedade letrada. Esse iletrado não é, portanto, um
puro iletrado no seu funcionamento mental, embora não saiba ler e escre-
ver, e nós temos uma melhor estimação dos efeitos diretos e indiretos das
habilidades de leitura e escrita quando contrastamos o letrado de hoje com
o iletrado das sociedades pré-letradas (Morais, 2017).
Além disso, há uma diferença importante entre a literacia que é, e a
literacia que deveria ser. Para entendermos essa diferença, temos de con-
siderar que, enquanto capacidade, a literacia, para além de variar entre os
indivíduos pelo seu grau de eficiência e pelo seu objeto, varia também (1)
pela profundidade e qualidade dos processos mentais utilizados, e (2) pela
originalidade dos seus produtos. Toda a literacia é produtiva, sendo o le-
trado simplesmente produtivo aquele que, através da leitura, adquire in-
formação e conhecimento já disponíveis e, através da escrita, os comunica
a outrem; isto é, o letrado produtivo pode não ser muito mais do que um
reprodutor (sem desmerecimento, porque a reprodução do existente é so-
cialmente importante). Parece-nos desejável, no entanto, que os letrados
não sejam apenas reprodutivos, mas também capazes de analisar a infor-

47
mação recebida (escrita e oral) de maneira crítica, e de fazer conhecer a sua
análise e avaliação crítica de maneira racional e solidamente argumentada.
Esta é a literacia que chamamos de crítica e argumentativa, e que pensamos
deveria estar ao alcance de todos os membros da espécie Sapiens, obvia-
mente excetuando os casos de distúrbio cognitivo. A sociedade ela mesma
só é realmente democrática quando todos os seus membros são capazes de
analisar criticamente os projetos e as propostas relativos à sua governança.
Enfim, há a literacia criativa, que utiliza não só o pensamento racional, mas
também outras capacidades cognitivas tais como a intuição, a imaginação
e processos analógicos, projetivos e integradores, que os autores de língua
inglesa designam habitualmente por blending (Morais, 2016).
Assim, é nossa proposta, aberta naturalmente à crítica dos nossos lei-
tores: distinguir entre a literacia que é simplesmente produtiva e dois ou-
tros tipos de literacia produtiva, a crítica e argumentativa, e a outra criativa.
Esta última distinção referindo-se muito mais ao tipo de atividade letrada
do que ao sujeito de literacia, posto que é possível muitos – e por que não
a grande maioria? – serem sobretudo críticos-argumentativos quando seja
apropriado (por exemplo na discussão de leis), mas também criativos com
outros fins (por exemplo na literacia científica e na literacia literária, cf.
Morais; Kolinsky, 2016).

O estado da literacia no Brasil

Segundo os últimos dados da Organização das Nações Unidas para


a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO, 2016), os analfabetos eram
cerca de 9% da população adulta (a partir de 15 anos), ou seja, mais de 13
milhões. Note-se que, dada a obrigação escolar, a proporção de analfabetos
na faixa etária de 15 a 24 anos era bem menor: cerca de 1%, ou seja, 431
mil. Porém, as perspectivas são inquietantes, visto que as crianças em idade
de frequentar a escola primária mas não escolarizadas eram, em 2014, mais
de 790 mil.
Em 2014, na população de 15 anos ou mais, os índices de escolarização
(obviamente não exatamente coincidentes com os de alfabetização) são de-
soladores: 11,7% eram não escolarizados e 11,4% não tinham completado o

48
ensino primário. Além disso, 13,8% tinham-se ficado pelo ciclo secundário
inferior. No topo da escala, entre os 42,5% que completaram o ensino se-
cundário, 29,4% não foram além dele. Entre os 13,1% que tiveram educa-
ção superior, 8,5% só completaram o ciclo curto. Assim, o ensino superior,
com ou sem doutorado, só foi completado por 4,5% dos brasileiros adultos.
Se considerarmos mais informativo o número médio de anos de esco-
larização, ele mantém-se baixo: 7,4 em 2014 (aumentou desde 2004 – era
de 6,2 – mas apenas três décimos desde 2011). Em todo o caso, se compa-
rarmos com outros países de grande população (10,2 na África do Sul, 11,5
na Federação da Rússia), obviamente está muito longe de alcançar os países
do pódio como a Alemanha (14) e a Suíça (13,9).
Quais as perspectivas relativamente aos adultos analfabetos? Segun-
do o LAMP, Programa de Avaliação e Acompanhamento da Alfabetização,
também da UNESCO, em 2009, só 3,8% da população adulta analfabeta,
no Brasil, participava de programas de alfabetização, um pouco acima
do Paraguai (3,4%) e do Uruguai (2,9%), mas claramente inferior a ou-
tros países da América latina: República Dominicana (6,8%), Equador
(11,5%), Colômbia (14,4%) e El Salvador (16,9%).
Será que a política educacional brasileira tem descurado o adulto anal-
fabeto para poder ocupar-se melhor das crianças e dos jovens? Segundo
a UNESCO, se compararmos a percentagem de obtenção do diploma da
educação primária no Brasil com a dos outros países da América Latina,
não parece ser o caso. Assim, em 2014, ela foi de 80% no Brasil, certamente
melhor do que na Guatemala (71%) e na Nicarágua (72%), mas um pou-
co abaixo da República Dominicana e da Colômbia (92%), assim como
do Peru (93%), mas muito abaixo da Argentina, do Equador, do Uruguai
(97%) e do Chile (98%).
Estes níveis de educação são globais, no sentido de que não distin-
guem as diferentes formas de educação, e portanto de literacia, definidas
segundo o seu domínio ou objeto de estudo. Nos níveis de ensino mais
baixos, dá-se, sobretudo, relevo à compreensão em leitura e à matemática.
Os dados revelados pela UNESCO põem em evidência um desnivelamento
muito grande entre estas duas formas de literacia. Assim, no que respeita
ao período 2009-2014, no segundo e no terceiro ano da escola primária,

49
o nível mínimo de proficiência foi alcançado por 89% das crianças em lei-
tura, mas por apenas 60% em matemática. Do mesmo modo, no fim do ci-
clo secundário inferior, essas percentagens foram respectivamente de 96% e
65%. Sem que possamos afirmá-lo, avançamos uma hipótese plausível, que
combina duas ideias interdependentes: à exigência de compreensão textual
que pode ser relativamente vaga contrapõe-se a maior exigência de rigor na
solução dos problemas aritméticos, algébricos e geométricos; e aos processos
de interpretação de textos abertos ao pensamento indutivo e analógico con-
trapõem-se na matemática os processos de raciocínio lógico e operacional. É
portanto provável que um ensino de medíocre qualidade no plano cognitivo
e conceitual crie mais dificuldades em matemática do que em leitura.
Os dados indicados acima constituem médias nacionais e, por conse-
guinte, não tomam em consideração as grandes diferenças socioeconômi-
cas no seio de cada país. Acontece que a UNESCO faz comparações entre
países desenvolvidos e não desenvolvidos, assim como em função do sexo
dos alunos, mas só raramente entre classes sociais, o que é lamentável. No
entanto, ela diz-nos, ainda que, sem analisar as suas consequências, que
75% da população do Brasil, que em 2015 era de mais de 209 milhões, vive
com menos de 1,9$ US por dia. O impacto deste fato em todo o desenvol-
vimento, físico, de saúde e mental das crianças pobres brasileiras não pode
deixar de ser enorme.
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE), por seu lado, tem examinado, a cada três anos, o nível de com-
petência em leitura, em matemática e em ciência dos adolescentes escola-
rizados de 15 anos, o que para muitos países, e entre eles o Brasil, significa
sobrestimar a competência real da população desta idade. Infelizmente, o
PISA (Program for International Student Assessment) não avalia a escri-
ta, nem a ortografia lexical nem a produção de textos, e no que respeita à
leitura avalia somente a compreensão de textos, ignorando a fluência e o
reconhecimento das palavras escritas. Ora, essas informações seriam muito
importantes porque nos permitiriam ter uma ideia de como será a literacia
adulta no futuro próximo.
O Brasil tem ficado entre os países com os piores resultados tanto glo-
balmente como na compreensão de textos (ver OECD, 2016). Esta é avalia-

50
da segundo 7 níveis, de 1a e 1b (os mínimos) até 6 (o máximo). E nós temos
proposto interpretar estes níveis em função da nossa distinção entre não
letrado, letrado produtivo e letrado crítico e argumentativo (Morais, 2017).
Quem não é hábil na leitura e na escrita, ou seja, quem não reconhe-
ce as palavras escritas (na leitura) nem acede à sua ortografia (na escrita)
de maneira automática, mas só o faz de maneira sequencial, controlada e,
portanto, lenta, pode ser alfabetizado mas não é letrado. Portanto, quem no
teste de leitura do PISA não lê pelo menos ao nível 3 (para o qual é suficien-
te “integrar várias partes de um texto de maneira a identificar a ideia prin-
cipal, compreender uma relação ou construir o significado de uma palavra
ou frase”) não pode ser letrado. Seriam necessários outros testes, de leitura
de palavras, para verificar se a leitura é automática, assim como seriam
necessários testes de escrita. Na falta deles, atribuir o estatuto de letrado
produtivo ao leitor de nível 3 no PISA conduz provavelmente a um grande
número de falsas atribuições, mas neste caso parece-nos mais correto pecar
por falsa atribuição do que por omissão. A média do PISA referente a 2015
para nível 3 ou superior no conjunto dos países da OCDE é de 58%, o que
implica que neles há 42% de não letrados. Para o Brasil, apenas 24% são
letrados (dos quais 16% de leitores, simplesmente produtivos), e 76% não
o são.
A exigência para que o leitor atinja pelo menos o nível 4 é que ele seja
capaz de “localizar e organizar vários pedaços de informação contida no
texto, [...] interpretar o significado de nuances de linguagem numa seção
do texto tendo em conta o texto global [...] compreender e aplicar cate-
gorias num contexto não familiar, (e utilizando) conhecimento formal ou
público fazer hipóteses sobre um texto ou avaliá-lo criticamente” (OECD,
2016, p. 162), tradução dos autores a partir da edição em inglês). Podemos,
portanto (embora lamentando que não haja informação sobre a escrita),
considerar que tal leitor não só é produtivo, é também crítico (e talvez ar-
gumentativo). Os leitores (e por hipótese, letrados) críticos no conjunto
dos países da OCDE são, em média, 30%. No Brasil, são apenas 8%.
Os relatórios PISA também têm examinado a evolução da distribui-
ção segundo os níveis desde 2000. Em muitos países da OCDE tem havido
estabilidade ou um pequeno aumento dos muito bons leitores (níveis 5 e

51
6) mas, em contrapartida, um aumento também dos muito maus leitores
(abaixo do nível 2), cujo futuro escolar e profissional seria, segundo o PISA,
severamente comprometido. No Brasil, entre 2000 e 2012, houve estabili-
dade na proporção de alunos nos níveis muito altos (são apenas cerca de
2%) e uma pequena diminuição na proporção de alunos abaixo do nível
2 (de 53% para 50%). O que deve sobretudo chamar a atenção é o fato de
metade dos adolescentes de 15 anos escolarizados no Brasil não ter futuro
na sociedade para que se caminha. Importa acrescentar que a tendência
mais recente no mundo é para um aumento das desigualdades em literacia,
ou pelo menos em capacidade de leitura. Entre os dois últimos inquéritos,
de 2012 a 2015, o padrão de desigualdade não diminuiu, antes pelo contrá-
rio: a percentagem abaixo do nível 2 voltou a subir (no Brasil, para 52%),
ao passo que a dos leitores críticos (nível 4 e acima), que eram apenas 6%,
subiu para 8%.
Aquelas e aqueles que estão a ler este texto fazem provavelmente parte
dos leitores críticos (poderão, portanto, achar que há falhas na nossa análi-
se e argumentação), mas por viverem sobretudo no meio de seus iguais em
literacia e de tantos outros leitores produtivos, terão tendência a subestimar
a enorme massa de leitores não críticos ou sequer simplesmente produti-
vos. Pensem que, se no Brasil os simplesmente produtivos e os críticos são
16% e 8% (total: 24%), no Canadá são 30% e 40% (70%), na Noruega 28% e
38% (66%), e até em Portugal são 31% e 30% (61%), respectivamente.
Em resumo, a projeção para o futuro próximo do Brasil é que, no qua-
dro das instituições atuais, o debate político e as decisões sobre as questões
importantes do País continuarão a estar nas mãos (ou nas mentes letra-
das) de uma oligoliteracia reduzida a menos de 10% da população adulta.
Só uma revolução educacional poderá, num prazo um pouco mais longo,
fazer o Brasil caminhar no sentido de uma democracia letrada. E entre os
“relativamente’ poucos leitores críticos de que o Brasil dispõe, aqueles que
estão conscientes desta situação e não a aceitam, têm de assumir essa res-
ponsabilidade.
Aumentar e generalizar a literacia depende, em primeiro lugar, de alfa-
betizar. Alfabetizar depende de saber como se deve alfabetizar, o que implica
formar professores que compreendam o que é a alfabetização e que esta não

52
é mais do que o patamar da literacia, e que a literacia serve para reproduzir
e criar conhecimento, cultura e arte. A profissão de professor tem perdido
prestígio assustadoramente, o seu estatuto social é quase nulo, só o professor
universitário ainda é reconhecido, mas pode não ser por muito mais tempo.
O poder político sabe que não há uma educação, mas três, a dos ricos, a dos
pobres, e a dos que gostariam de ser ricos mas têm pânico de vir a ser pobres
(Morais, 2017). Cada uma com suas gradações internas.
Em todos os países, mas com grandes diferenças entre eles, a discrimi-
nação começa antes mesmo do nascimento, porque a pobreza tem influên-
cia nas condições de saúde e de alimentação da futura mãe e, através des-
ta, do feto (ver Morais, 2017). Nos países em que a discriminação precoce
é menor, o poder político pseudodemocrático encontra suas maneiras de
garantir uma seleção mais tardia das elites, de maneira a favorecer as clas-
ses ricas e assegurar a manutenção do seu domínio. Assim, em França, as
Grandes Écoles, que recebem do Estado três vezes mais dinheiro do que as
universidades públicas e formam a elite da nação, só admitem alunos depois
do terceiro ano universitário e selecionam-nos na base de exames orais e es-
critos altamente competitivos. E nos USA é nas mais prestigiadas universi-
dades privadas, essas de caríssima frequentação, como Harvard, que se con-
centram muitos dos futuros membros da classe financeira e dirigente (ver
Morais, 2016, capítulo 2). No Brasil os mecanismos de seleção apresentam
um padrão com tendência oposta aos dos da França e dos USA, posto que
nele é ao nível pré-universitário que o ensino de qualidade é proibitivo para
as classes populares e média-baixa, e, sádica ironia, deixa de sê-lo ao nível
universitário. Por que o seria neste se, entretanto, a grande ceifa já ocorreu?
Para que o ensino pré-universitário e em particular o primário seja de
qualidade, é necessário formar bem grandes contingentes de professores
(bem, quer dizer fornecendo-lhes e levando-os a examinar criticamente e a
integrar o conhecimento científico mais recente nos domínios em que vão
ensinar). Segundo a UNESCO, para se atingirem os objetivos da educação
em 2030 (já falta pouco!), serão necessários no mundo inteiro 24,4 milhões
de novos professores, isto só no ensino primário. Não será exagerado esti-
mar que no Brasil deverão ser formados imediatamente algumas centenas
de milhares de professores, muitos deles alfabetizadores. Nenhum governo

53
o fará! Compete então à parte consciente dos 24% de leitores produtivos do
país tomar a alfabetização nas suas “mãos” letradas. Para isso, entendamo-
-nos primeiro sobre o que é a alfabetização.

O que é alfabetizar

Para saber o que é a alfabetização, é preciso começar por compreender


o que é o alfabeto. Talvez ninguém no Brasil tenha explicado melhor o que
é o alfabeto, e o que é a sua concretização (o chamado código ortográfico)
no Português brasileiro, do que a Professora Leonor Scliar-Cabral (Scliar-
-Cabral, 2003). O alfabeto é o sistema de escrita que representa fonemas.
O que são fonemas? Comecemos por dizer o que não são. Não são sons.
Por exemplo, em “ba” há dois fonemas mas só há um som, como se pode
compreender abrindo e fechando a boca para se dizer “ba”. Quando dize-
mos “dá cá”, não emitimos quatro sons, apenas dois. Portanto, as letras do
alfabeto servem para exprimir pela escrita outra coisa. Serão unidades den-
tro dos sons? Temos essa impressão, mas ela é falsa. Na realidade, só quem
aprendeu uma escrita alfabética tem essa impressão. O alfabeto não foi in-
ventado para representar unidades, pelo contrário, foi porque inventamos
o alfabeto há quase três mil anos que começamos a ter a impressão de que
no som “ba” há duas unidades. O ser humano tem dessas ingenuidades: se
utilizo duas letras, é porque há duas unidades no som. Na realidade – mas
isso só começou a ser entendido já perto do fim do século XIX e comprova-
do experimentalmente na segunda metade do século XX – os fonemas não
são unidades, mas sim propriedades abstratas da dinâmica articulatória da
fala (Morais, 2016). Elas são abstratas porque não são isoláveis fisicamen-
te. Elas manifestam-se nas relações entre os articuladores. O alfabetizador
alfabetiza melhor, se tiver entendido o que o alfabeto representa, porque
assim compreenderá melhor por que razão os alunos têm dificuldade nesse
primeiro obstáculo – como fazer corresponder a escrita alfabética à lingua-
gem oral? – e saberá encontrar a melhor maneira de fazê-los superar tal
dificuldade. Claro que não é explicando o que são “propriedades abstratas
da dinâmica articulatória da fala”, mas adaptando a cada aluno as várias
maneiras possíveis de fazer entender a relação com a fala.

54
O princípio alfabético – expressão sábia para designar outra expressão
sábia, a de relação grafema-fonema – só pode ser entendido (ou melhor,
intuído) já no contexto de uma atividade, a mais elementar possível, de
leitura e escrita. Neste ponto há uma divergência entre a Professora Scliar-
-Cabral (Scliar-Cabral, 2013) e nós (Morais, 2013), porque, contrariamente
a ela, entendemos que a alfabetização deve pôr sempre em relação leitura
e escrita, por razões tanto teóricas como ideológicas e porque há muitos
estudos experimentais que apoiam esta ideia – mas esta divergência não
nos impede de avançar para o que segue, em que a concordância é total ou
quase. Por que só no contexto de leitura (e, melhor, também de escrita)?
Porque o princípio alfabético não tem sentido fora dessas atividades. Os
seres humanos falam e percebem a fala em referência às tais relações arti-
culatórias (fonemas), mas provavelmente nunca teriam formulado o con-
ceito de fonema sem a tecnologia da escrita alfabética. É assim: amiúde, as
necessidades criam problemas, os problemas conduzem a soluções práticas
(tecnologias), e estas depois são conceptualizadas e tornam-se objeto de
estudos científicos.
Voltando às atividades elementares de leitura e escrita, elas destinam-
-se à compreensão (ou intuição) do princípio alfabético, mas fazem-se
desde logo no quadro da utilização do código ortográfico de uma língua
particular. Não tem outra maneira, porque o princípio é abstrato, mas o có-
digo é concreto, e portanto o princípio não existe sem o código. Os códigos
ortográficos podem ser muito transparentes (para o finlandês é pratica-
mente biunívoco, tal fonema corresponde a tal grafema e vice-versa), muito
opacos (é o caso do inglês) ou situarem-se entre estes dois extremos, e o do
português brasileiro (bem menos o do português europeu) é relativamente
transparente, sobretudo na leitura.
No caso do português, a intuição do princípio alfabético pode fazer-se
em algumas horas, mas tem de ser consolidada ao longo do tempo (isto é,
dar lugar à nossa falsa impressão de que há na fala unidades que corres-
pondem aos fonemas), enquanto a aquisição do código ortográfico (em
parte explicitamente ensinado e aprendido, e em parte implicitamente, isto
é, sem consciência precisa) pode levar perto de um ano. Entendemos por
aquisição do código não um saber verbal (só linguistas o conhecem intei-

55
ramente dessa maneira), mas a aprendizagem da decodificação e recodifi-
cação, quer no sentido da leitura, quer da escrita, em função das regras do
código, inicialmente na base das “unidades” elementares (grafema-fone-
ma) e depois de unidades fonográficas complexas (partes de sílaba como
“br-“, sílaba, ou para além da sílaba: “-mente, etc.).
A alfabetização chega a seu termo quando o aluno é capaz de ler e
escrever com autonomia (isto é, tudo e por ele mesmo, sem necessidade
de pedir ajuda a alguém), embora o faça ainda de maneira sequencial e
consciente, ou seja, controlada. O processo de literacização continua atra-
vés da prática acompanhada da leitura e escrita. A leitura e a escrita de
textos devem começar logo que possível, isto é, quando o léxico oral e o
léxico escrito contidos no texto ou a converter em texto já são conhecidos
pelo aluno em pelo menos 90% deles. No entanto, antes disso, quer com
as crianças quer com os adultos, é de todo o interesse ler para os alfabeti-
zandos (textos de conteúdos e formas narrativas diferentes em cada caso,
obviamente) e suscitar reflexões individuais e coletivas quer sobre aspectos
da relação entre as versões escritas e oral, quer sobre aspectos estruturais
de cada uma, quer ainda – o que é muito importante – sobre o conteúdo,
que podem conduzir a debates para exercício do raciocínio lógico, do pen-
samento crítico e de discussões sobre questões axiológicas, em particular
éticas (Morais, 2016; Gabriel; Morais, 2017).

Como alfabetizar adultos totalmente iletrados

Há duas excelentes razões para alfabetizar todos os adultos que, por


discriminação social, não foram alfabetizados na infância. A primeira é que
eles merecem que lhes seja proporcionado aquilo a que têm direito e que
lhes foi recusado, e que eles não estavam em condições de reclamar, afetan-
do assim grandemente as suas vidas. A segunda – que responde à iníqua
proposta de deixá-los morrer e consagrar o dinheiro poupado à educação
das crianças – é que a educação começa na família e que a alfabetização dos
pais é o caminho mais curto e mais propício para a alfabetização dos filhos.
De fato, os estudos científicos mostram que o meio sociocultural e socioe-
conômico pobre em que as crianças se desenvolvem desde o nascimento, e

56
até antes, impede-as de beneficiar-se das características idiossincráticas do
seu patrimônio genético, contrariamente ao que acontece com as crianças
de meio sociocultural elevado (cf. Morais, 2016).
Sabemos que os adultos conservam a plasticidade cerebral necessária
para serem alfabetizados. Nos nossos estudos, temos testado ex-iletrados,
que aprenderam a ler já na idade adulta (Dehaene; Pegado; Braga; Ven-
tura; Nunes; Jobert; Dahaene-Lambertz; Kolinsky; Morais; Cohen, 2010;
Kolinsky; Morais; Cohen; Dahaene-Lambertz; Dehaene, 2014). No entan-
to, não sabemos até que ponto essa plasticidade diminui com a idade, nem
se todos os processos e mecanismos da aprendizagem são idênticos aos das
crianças. Contudo, um de nós (J. M.) conheceu um ativista político que,
trabalhador agrícola na sua juventude e analfabeto, aprendeu a ler com os
seus camaradas na prisão. Mais tarde, tendo fugido e integrado a militância
clandestina, tornou-se um quadro político, tendo entre outras funções a de
redator principal de um jornal político destinado aos camponeses. Embora
não tenha sido testado, os seus textos e as discussões com ele a propósito
de textos mostram claramente que era um letrado produtivo, e crítico pelo
menos até certo ponto.
Uma equipe dirigida por R. K., e incluindo Isabel Leite (da Universida-
de de Évora), Cristina Carvalho (ex-pesquisadora no Max-Planck Institut
de Nijmegen), Ana Franco (da ULB), e J. M., elaborou um Curso de Alfa-
betização de Adultos e aplicou-o a oito participantes portugueses, todos
do sexo feminino, da região de Lisboa, durante 3 meses (3 ou 4 lições de 2
horas por semana). Essas senhoras eram totalmente analfabetas (algumas
conheciam algumas letras, mas nenhuma foi capaz de ler palavras, mesmo
curtas, simples e frequentes). Seis delas nunca tinham frequentado a escola
em criança, as outras duas só por pouco tempo e muito irregularmente. As
suas idades iam de 22 a 64 anos, e a média era de 40 anos. Oficialmente não
tinham emprego, embora três fossem vendedoras ocasionais. Todas esta-
vam em boa saúde e não apresentavam deficiências cognitivas.
O curso, que consiste em 17 módulos, baseia-se nos princípios fônicos
(Kolinsky; Leite; Carvalho; Franco; Morais, 2018). Assim, os dois primei-
ros módulos têm por objetivo fazer compreender o princípio alfabético. A
aprendizagem do código obedece ao princípio geral de progressão do mais

57
simples (ver também exemplos na alfabetização de Zeus, Morais; Kolinsky,
2014) ao mais complexo. Elas foram testadas duas vezes antes de iniciar o
curso e três vezes depois de ter começado o curso. Foram testadas depois
do módulo 2 (em que foram ensinadas as vogais A, I, U, O, E, cada uma só
com um valor fonético, e as consoantes F, V, L, assim como R e S sempre
em posição inicial, portanto com só um valor fonético), mais tarde depois
do módulo 8 (até aí tinham sido vistas todas as realizações vocálicas com
exceção dos ditongos, e as consoantes V, F, L, M, N, R e S, estas simples e
dobradas), e depois do último módulo (portanto tendo sido vistos todos
os outros grafemas, simples e complexos, e todos os ditongos e encontros
consonantais).
A ordem de introdução das correspondências grafema-fonema obede-
ce a cinco princípios: princípio de acessibilidade do fonema (assim, frica-
tivas e líquidas são todas introduzidas antes das explosivas); princípio de
incremento progressivo do grau de inconsistência (por exemplo, a letra “i”
foi introduzida antes da letra “o” porque, no português europeu, “i” se pro-
nuncia sempre /i/ e nenhum outro fonema vocálico se escreve com “i”, ao
passo que a pronúncia de “o” depende da sua posição na palavra; princípio
de incremento progressivo da complexidade do grafema (por exemplo, os
grafemas simples como “f ” antes dos complexos como “ch” e letras com
diacrítico); princípio de introdução progressiva dos pares de letras mais
dificilmente discrimináveis ao nível visual, como “b” e “d”; e princípio de
incremento progressivo da complexidade fonológica da estrutura silábi-
ca (primeiro sílabas CV, depois palavras CVCV, mais tarde sílabas CCV).
Além desses princípios, dois outros foram aplicados ao longo do curso: as
letras foram ensinadas em paralelo nas suas formas maiúscula e minúscula;
e a leitura e a escrita (manual) foram sempre ensinadas e exercidas conjun-
tamente.
Nos dois primeiros módulos (5 lições), só foram apresentadas corres-
pondências grafema-fonema simples e evitaram-se os dígrafos, em estrutu-
ras CV e CVCV. Algumas regras contextuais e posicionais foram introdu-
zidas nos módulos 4, 5 e 6, juntamente com alguns dígrafos (por exemplo,
“ss”). As explosivas começaram a aparecer no módulo 11 (/t/ e /d/), segui-
das no módulo 12 de /b/ e /d/, cujas letras são imagens em espelho uma da

58
outra e, por isso, mais difíceis de discriminar. Depois, foram apresentados
os ditongos nasais e, no módulo 16, os ataques complexos (por exemplo,
“pr-”) que implicam estruturas de tipo CCV. E o último módulo (17) foi
consagrado à letra “x”, altamente inconsistente em português (5 pronúncias
pouco previsíveis).
Não é objetivo deste artigo descrever o curso ou apresentar os seus re-
sultados mais detalhadamente. Isso é feito num artigo em inglês atualmen-
te submetido a uma revista científica. Resumindo os resultados, no final do
curso, uma das senhoras não conseguiu ler nada, outra muito pouco, mas
todas as outras mostraram ter aprendido, embora com grandes diferenças
entre elas. As suas médias de leitura correta das palavras, testadas entre
as centenas que tinham visto durante o curso, atingiram entre 48 e 88%.
Se tivéssemos podido dedicar mais tempo e mais atenção a cada atividade
e a cada participante, se por exemplo o curso tivesse durado 8 ou 9 me-
ses, muito provavelmente todas elas teriam se beneficiado mais e muitas
estariam realmente alfabetizadas, segundo um critério que consiste numa
leitura correta de palavras acima dos 90%. Por que 90%? Porque, como já
dissemos, é o nível aproximativo de reconhecimento de palavras escritas
que permite ler um texto com compreensão.
O nosso teste de leitura de palavras incluiu também palavras que nun-
ca tinham sido apresentadas no curso. Em média, as seis senhoras que re-
velaram ter aprendido, leram melhor as palavras já vistas do que as novas, o
que é habitual; e para as palavras novas, o desempenho foi de 30 a 85%. De-
pois de apenas 3 meses de aulas, consideramos que é um resultado muito
bom! Tanto mais que ler palavras novas implica ter aprendido pelo menos
aquelas partes do nosso código ortográfico que comandam a sua escrita.
Vejamos alguns exemplos de palavras novas. Ilustrando correspondências
estudadas nos módulos 3 a 7: VALE, safa; FORRO, russa, LUSA, fere; FA-
LAS, rifas; NAMORO, marina. E nos módulos 13 a 17: MEDIU, moita;
CEGONHA, caroço; PENSÕES, órfãos; GREGO, plástico; FEIXE, explico.
Note-se que as senhoras que aprenderam a ler chegaram ao fim do curso
tendo adquirido a noção de que a letra é uma categoria independente da
sua realização particular: tanto a forma maiúscula como a minúscula eram
referidas à mesma identidade de letra.

59
O nosso objetivo será agora de aplicar uma nova versão do curso a
uma amostra maior da população adulta analfabeta, quer portuguesa, quer
brasileira, durante o tempo correspondente a um ano escolar. Pensamos
também que, com as necessárias adaptações, esse curso poderá ser muito
útil à alfabetização de crianças na condição de os alfabetizadores serem
formados de maneira a compreenderem de maneira aprofundada os prin-
cípios subjacentes.

O que se está fazendo e o que se deveria fazer pela literacia no Brasil

Morais (2014) dedicou um capítulo à situação do alfabetismo e da lite-


racia no Brasil, em que criticou impiedosamente “uma ideia falsa: a idade
certa” (ver também Gabriel; Kolinsky; Morais, 2016), segundo a qual se-
riam necessários três anos para fazer (e mal, sem garantia de alcançar) o
que pode e deve ser feito em um ano escolar, numa só palavra: alfabetizar;
em que criticou outra ideia falsa: o alfabeto-notação”. Também mostrou
que, no que respeita a ensinar a ler, o Brasil está seguindo “o caminho erra-
do”, antes de propor “o caminho certo”. Não voltaremos a tratar aqui sobre
o profundo atraso e as enormes tragédias individuais para que contribuiu
uma ideologia educacional, pseudo-humanista e pretensamente centrada
na criança, chamada “construtivista” e baseada numa teoria do desenvolvi-
mento mental que já foi ultrapassada, a de Piaget.
Durante todos esses anos de fanatismo e negação da ciência, houve
pesquisadores e acadêmicos que resistiram e que mantiveram viva a voz da
ciência cognitiva, em particular da “ciência da leitura”, e alguns deles pro-
curaram aplicá-la na prática à alfabetização e, mais largamente, à educação
das crianças. Acreditamos que esse trabalho e essa persistência não foram
em vão porque talvez estejamos assistindo hoje, esperando que se confirme
porque isso se faz num contexto político muito difícil, a uma promissora
mudança de orientação. O Movimento pela Base Nacional Comum, grupo
não governamental e maioritariamente de acadêmicos, está na origem da
proposta da Base Nacional Comum Curricular (Brasil. Ministério da Edu-
cação, 2017), oficialmente promovida de início pelo ministro Mercadante e
que, no momento em que escrevemos, foi submetida ao Conselho Nacional

60
da Educação. Esse documento dá um passo em frente na configuração do
ensino infantil e fundamental (este entre 6 e 14 anos) e insere-se na linha
de uma homogeneização dos currículos do ensino público e privado. No
entanto, as suas sucessivas revisões (analisamos aqui a sua segunda versão,
que parece já ter sido ultrapassada) e, sobretudo, o atual momento político
que põe em perigo a laicidade e a prossecução na escola de uma educa-
ção orientada para o pensamento livre e crítico, são muito preocupantes.
Indicamos abaixo de maneira muito sucinta e incompleta o que nesse do-
cumento nos parece positivo, mas também o que é insuficiente ou falta,
primeiro no que respeita à alfabetização e ao desenvolvimento da literacia,
depois na sua concepção geral1.
A alfabetização é agora (antes não o era) considerada como “impor-
tante porta de acesso ao mundo letrado” (p. 64-5) e a leitura e a escrita são
claramente definidas na primeira fase como requerendo “a aprendizagem
da decodificação” e “da codificação de palavras e textos” (p. 64). A referên-
cia à relação das letras com os “sons” da fala (neste contexto, “som” aparece
sistematicamente entre aspas) é logo precisada: “as letras representam fone-
mas” (p. 69), acrescentando que é para a criança que o princípio alfabético
é “uma ‘letra’, um ‘som’”. Citamos estas linhas:
Apropriar-se do sistema de escrita depende, fundamentalmente, de
compreender um princípio básico que o rege, a saber: os fonemas,
unidades de “som”, são representados por grafemas na escrita. Gra-
femas são letras ou grupos de letras, entidades visíveis e isoláveis.
Os fonemas são as entidades elementares da estrutura fonológica da
língua, que se manifestam nas unidades sonoras mínimas da fala.
É preciso que o aluno aprenda as regras de correspondência entre
fonemas e grafemas, por meio do tratamento explícito e sistemático
encaminhado pelo professor na sala de aula. (p. 69)
Dessa passagem não aprovamos o uso, frequente no Brasil, da pala-
vra “apropriação”, porque a escrita alfabética não pode ser propriedade de

1 Nota posterior à redação final do presente artigo: É importante ter em conta que, quando este artigo
foi escrito, ainda não tinha sido publicada a versão definitiva da BNCC. Esta é decepcionante no que
respeita à alfabetização, mantendo ideias e orientações incompatíveis com as evidências científicas. Os
presentes autores fizeram a crítica dessa versão em no seguinte texto: MORAIS; KOLINSKY, 2018.

61
alguém, é um bem comum. A decodificação é, com razão, explicitamente
associada à “construção da autonomia na leitura” (p. 70) no 2° ano, mas
poderia ser desde o 1°; a fluência também é associada à construção da au-
tonomia (p. 75).
No que respeita à aprendizagem da leitura e da escrita, lamentamos
que falte completamente a distinção que indicamos acima entre alfabeti-
zação e literacia (ou leitura e escrita) produtiva. Os autores da BNCC não
conhecem provavelmente, ou desprezam, os numerosos estudos científicos
que mostram que, durante a aprendizagem da leitura e da escrita, à au-
tonomia se vem juntar a automaticidade no reconhecimento das palavras
escritas, como consequência da prática com êxito da decodificação. Esta
mudança qualitativa na habilidade de leitura é extremamente importante
e deve estar consumada para o léxico habitual do leitor no 3° ou no 4° ano
(Morais, 2016).
Ainda no que concerne à literacia, exprimimos a nossa adesão à im-
portância atribuída desde cedo à educação literária e ao reconhecimento
dos laços que unem a literacia à ética, aos “valores e ideologias” (p. 66) e à
“construção humana, histórica e social” (p. 62). Tal como nós valorizamos
a literacia crítica e argumentativa, também a BNCC apresenta como obje-
tivos, desde o 3° ano, “produzir texto com o intuito de opinar e defender
ponto de vista sobre tema polêmico relacionado a situações vivenciadas na
escola” (p. 130; porém, não teríamos limitado à escola). São também objeti-
vos, no 7° ano, escrever “texto argumentativo ou de reivindicação [...] sobre
problemas que afetam a vida escolar ou a vida da comunidade” (p. 130); no
8° ano, “analisar criticamente as relações entre mídia, sociedade e cultura,
e os efeitos das novas tecnologias na cognição e na organização social.” (p.
137); e no 9° ano, “Expor, de modo resumido, resultados de debate em sala
de aula sobre tema polêmico, enumerando os argumentos e contra-argu-
mentos apresentados, orientando-se por anotações feitas durante o debate”
(p. 143).
Consideramos também positivo que, contrariamente aos programas
de outros países, a BNCC dê tanta importância às Artes (que aparecem
em segundo lugar, depois da Leitura e da Escrita, integrada na Área das
Linguagens). Isto deve-se em parte à utilização de um conceito, o de “lin-

62
guagens”, que recobre na realidade os diferentes modos de expressão, com
o objetivo de incluir artes visuais, dança, música e teatro, o que nos parece
comportar o risco de destruir a especificidade da linguagem (tal como, no
caso da leitura, é corrente afetar a sua especificidade quando se utilizam ex-
pressões do tipo “a leitura facial das emoções”). Porém, não é contrário ao
requisito de especificidade estabelecer relações entre as artes e outros do-
mínios. Nesse sentido, a BNCC considera como objetivos “problematizar
questões políticas, sociais, econômicas, científicas, tecnológicas e culturais
por meio de exercícios, intervenções e apresentações artísticas” tal como
“desenvolver a autonomia, a crítica, a autoria e o trabalho coletivo e cola-
borativo nas artes” (p. 156).
No mesmo espírito, no domínio das Ciências da Natureza, são obje-
tivos “Avaliar aplicações e implicações políticas, socioambientais e cultu-
rais da ciência e da tecnologia e propor alternativas aos desafios do mun-
do contemporâneo, incluindo aqueles relativos ao mundo do trabalho” e
“Construir argumentos com base em dados [...] negociar e defender ideais
e pontos de vista que respeitem a promovam a consciência socioambiental
e o respeito a si próprio e ao outro, acolhendo e valorizando a diversidade
de indivíduos e de grupos sociais, sem preconceitos de qualquer natureza.”
(p. 276). Nas Ciências Humanas, é formulado o objetivo de valorizar “os
direitos humanos, o respeito ao meio ambiente e à própria coletividade: o
fortalecimento de valores sociais, tais como a solidariedade, a participação
e o protagonismo voltados para o bem comum; e, sobretudo, a preocupa-
ção com as desigualdades sociais.” (p. 307). Especificamente na Geografia:
debater ideias e pontos de vista que respeitem e promovam a cons-
ciência socioambiental e respeito à biodiversidade e ao outro, sem
preconceitos de origem, etnia, gênero, idade, habilidade/necessida-
de, convicção religiosa ou de qualquer outro tipo”, “agir pessoal e co-
letivamente (...) propondo ações sobre as questões socioambientais,
com base em princípios éticos democráticos, sustentáveis e solidá-
rios. (p. 318)
Ainda é objetivo para essa disciplina “discutir as desigualdades sociais e
econômicas e as pressões sobre a natureza e suas riquezas [...], o que resul-

63
ta na espoliação desses povos (refere-se aos da América e África)” (p. 345).
Quanto à História, “posicionar-se criticamente com base em princípios éticos
democráticos, inclusivos, sustentáveis e solidários” (p. 352) e conhecer, entre
outros assuntos, “a ditadura militar e os processos de resistência”, “a Consti-
tuição de 1988 e a emancipação das cidadanias (analfabetos, indígenas, jo-
vens, etc.)”; e as atuais “pluralidade e diversidade indentitárias” (p. 380).
Se esse programa vier a ser realizado tal como é anunciado – o que não
estaria previsto para antes de 2019 entre outras razões pela necessidade de
formar professores –, ele poderá contribuir para melhorar muito a situação
da literacia no Brasil e, desse modo, iniciar um verdadeiro processo de de-
mocratização. Mas isso não acontecerá se esse trabalho, essencialmente de
cientistas e acadêmicos, não for sustentado pelo povo brasileiro. É difícil
um povo tão pouco letrado estar em condições de entender a importân-
cia dessa iniciativa educacional (e para entendê-la é preciso que venha a
conhecê-la, o que não estará nas prioridades da mídia...), por isso há que
dá-la a conhecer ao povo brasileiro.
Não há combates incertos. O combate pela literacia tem de ser trava-
do em duas frentes: pelos adultos e jovens iletrados e não letrados que da
literacia foram injustamente arredados, e pelas crianças que, todas, sem
discriminação, têm direito à literacia e a tudo o que só ela lhes abre.

Referências

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nar. Segunda versão revista. Brasília: MEC, 2016. Disponível em: <http://basenacio-
nalcomum.mec.gov.br/documentos/bncc-2versao.revista.pdf>. Acesso em: 23 mar.
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imagens imortais. D.E.L.T.A., 32, 919-951, 2016. doi: 0.1590/0102-445082050428939.
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64
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também LAMP – Programme d’évaluation et de suivi de l’alphabétisation. Paris: Institut
de Statistique de l’UNESCO, 2016.

65
3
Pela qualidade no alfabetizar, requisito para a
inclusão social na sociedade da informação

Leonor Scliar-Cabral

Introdução

A maior exclusão, hoje, é aquela que nega ao indivíduo o acesso ao


conhecimento, privando-o de inserir-se na sociedade caracterizada pelas
novas tecnologias da informação e das comunicações (TICs). Afinal, quem
não consegue, sequer, reconhecer rapidamente as palavras escritas, para
agregar a informação nova ao que talvez também não identifique pronta-
mente, não poderá incorporar novos saberes e, muito menos, opinar sobre
o que não entendeu. Não poderá, igualmente, preencher os requisitos exi-
gidos para o preenchimento de vagas para o trabalho qualificado.
Conforme bem acentuaram Costa Santos e Grossi Carvalho (2009, p.
47), “a exclusão está centrada na falta de recursos financeiros dos países do
Terceiro Mundo, na desigualdade social, no analfabetismo e na alfabetiza-
ção precária”.
Com efeito, os dados confirmam o despreparo dos candidatos no mer-
cado de trabalho qualificado. Para se ter uma ideia de como a falta de do-
mínio na língua escrita barra o ingresso no trabalho qualificado, registrei o
seguinte caso extremo:
Nenhum dos 2.600 inscritos conseguiu passar no concurso para juiz
do Trabalho na Bahia. O resultado foi divulgado na segunda-feira
(2). Os candidatos pagaram R$ 217 para participar da seleção e po-
deriam ganhar vencimento base de R$ 14 mil caso passassem no cer-
tame, que teve cinco etapas.
66
Após a primeira prova, em dezembro de 2012, sobraram 300 pessoas
para a segunda etapa. Na terceira etapa, quando apenas 61 pessoas
concorriam, a prova exigia a redação de uma sentença sobre prazos
processuais e incorporação de gratificações. A nota mínima exigida
era seis, mas nenhum candidato conseguiu mais do que cinco, se-
gundo o Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região (TRT-5) (Glo-
bo.com, 2013).
O exemplo mostra a gravidade da situação, mas, até hoje, as políticas
públicas para resolvê-la se caracterizaram pelo imediatismo, pela superfi-
cialidade, pela fragmentação, pela falta de fundamentação científica e, no
mínimo, pela ausência de continuidade.
Tome-se outro exemplo, o Programa “Sociedade da Informação no
Brasil”, lançado no Livro Verde (Takahashi, 2000) pelo Ministério de Ciên-
cia e Tecnologia, cujas metas eram a convergência da base tecnológica, a
dinâmica da indústria e o crescimento da Internet, alteradas em 2002, com
a mudança de governo, para a inclusão digital. Nenhum desses programas,
no entanto, contemplou metas fundamentais como a da alfabetização digi-
tal, a da produção de conteúdo e a da troca de informações (Costa Santos;
Grossi Carvalho, 2009, p. 47).
A alfabetização digital apresenta suas especificidades, particularmente
no que diz respeito à aprendizagem e funcionamento dos gestos motores
responsáveis por executar a digitação: dada a sua simplicidade, não excluem
o concurso da mão esquerda, o que pressupõe o mínimo de especialização
necessária para sua automatização. Mas, atenção! O planejamento para ob-
tenção dos objetivos pragmáticos, o mapeamento dos conceitos nos respec-
tivos léxicos mentais, a linearização das ideias em proposições, a codifica-
ção dos fonemas em grafemas, a execução dos gestos motores e a monitoria
online que se efetua sobre a tela (leitura), ainda dependem de uma apren-
dizagem complexa que se inicia com a alfabetização para que o indivíduo
esteja apto a redigir os textos de que necessitará para atingir seus alvos.
É claro que a Internet, através das redes sociais, possibilitou a cria-
ção de novas variedades linguísticas em que predominam as abreviaturas,
uma sintaxe simplificada e uma ilusão de que os interlocutores estão face a
face, como se fosse possível escrever como se fala. A criação dessas novas
67
variedades praticadas não isenta os indivíduos de uma alfabetização funda-
mentada nos avanços das ciências que possam contribuir para equacionar
as dificuldades inerentes a tal aprendizagem, quais sejam: a linguística, a
neuropsicologia, a psicolinguística e a neurociência.
Essa lição não foi incorporada pelos gestores das políticas públicas em
educação, no Brasil, o que vem atestado pelo quadro geral da baixa quali-
dade do ensino no país, a começar pela Educação Básica, em especial, nos
anos iniciais do Ensino Fundamental (EF), onde se dá a alfabetização. Em-
bora tenha sido implantada a medida salutar da matrícula compulsória nos
anos iniciais, ela não foi precedida pelas medidas que garantissem a inser-
ção dos brasileiros na sociedade da informação e das comunicações, a sa-
ber, a reformulação dos currículos de todos os cursos de formação dos pro-
fessores dos anos iniciais, em especial, dos alfabetizadores, incorporando,
nesses últimos, os conhecimentos das ciências avançadas, acima elencadas;
exigências maiores para o ingresso em tais cursos; remuneração atrativa do
magistério; reformulação fundamentada e coerente do currículo do EF e
controles mais rigorosos na seleção do material didático a ser recomendado
pelo MEC, a fim de evitar o carnaval de asneiras que enriquece muitas edi-
toras, como o exemplo a seguir, num livro distribuído pelo MEC em larga
escala para os alunos do 4º ano do EF: “Os verbos não possuem variação de
gênero, porém mudam de terminação de acordo com o tempo passado,
presente ou futuro” (Carpaneda; Bragança, 2014, p. 26, grifo meu). Até
admito que as autoras tenham esquecido a existência do particípio, neces-
sário, entre outras coisas, à formação da voz passiva, concordando, em gê-
nero e número com o sujeito paciente, mas afirmar que os verbos terminam
com a marca de tempo (esqueceram também do modo, que é cumulativo) é
ignorar que a terminação, nas formas finitas, marca coesiva da concordância
verbal é de pessoa e número (cumulativamente), nem que seja zero!

Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA)

Dos 2,3 milhões de crianças avaliadas pela ANA (Avaliação Nacional


da Alfabetização, INEP) no 3º ano do ensino fundamental, conforme Fora-
que (2015), um quinto não sabe ler.

68
A ANA “é uma avaliação externa que objetiva aferir os níveis de alfa-
betização e letramento em Língua Portuguesa (leitura e escrita) e Matemá-
tica dos estudantes do 3º ano do ensino fundamental das escolas públicas”
(INEP, 2013, p. 1). Os critérios de avaliação em leitura e escrita podem ser
observados nos quadros a seguir.

Quadro 1: Escala de leitura Reprodução

Fonte: Inep (2015)

69
Quadro 2: Escala de escrita
Reprodução

Fonte: Inep (2015)

Examinando-se os quadros 1 e 2 com as categorias contempladas pela


ANA para avaliar as habilidades de leitura e escrita nos alunos do 3º ano
do ciclo de alfabetização do EF e os resultados obtidos, saltam à vista os
seguintes aspectos primordiais, que explicam, em parte, o insucesso das
políticas públicas na área: a desvalorização das habilidades de automatiza-
ção na leitura e na escrita e o desconhecimento sobre a estrutura e funcio-
namento das línguas e a respectiva estrutura e funcionamento do sistema
nervoso central, a seguir expostos.

Desvalorização das habilidades de automatização na leitura

As habilidades de automatização dos processos indispensáveis à leitu-


ra fluente e compreensiva são: reconhecimento dos traços invariantes que
diferenciam as letras entre si (reciclagem neuronal) e das letras; atribuição
dos valores fonêmicos aos grafemas; atribuição do acento de intensidade
no vocábulo tônico e reconhecimento dos clíticos (vocábulos átonos) e, o
que é fundamental à leitura fluente e compreensiva, a atribuição dos pa-
drões de entoação que requer o reconhecimento dos valores dos sinais de
pontuação, bem como a automatização dos processos de juntura externa e
interna (sândi), isto é, das modificações decorrentes do encontro da conso-
ante com vogal ou de vogal com vogal em limite de palavras ou de morfe-
mas internos, como em “mar azul” /´ma-ra-´zU/; “casa azul” /´ka-za-´zU/;
“inimigo”/i-ni-´mi-gU/.
70
Tal menosprezo às habilidades que necessitam ser automatizadas para
o reconhecimento da palavra escrita a ponto de reduzir tais complexidades
à mera distinção entre sílaba CV e sílaba complexa só nos leva à conclu-
são de que os responsáveis pela ANA sejam adeptos do Método Global de
Alfabetização e de que o aluno vai aterrissar direto na leitura dos vários
gêneros (cujo detalhamento a ANA supervaloriza), por obra e graça do
Espírito Santo!
Por que é necessária a automatização dos processos acima elencados
para a compreensão leitora? Por várias razões:
Em primeiro lugar, porque para se atingir o alvo principal da leitu-
ra, que é a compreensão, é necessário o reconhecimento rápido dos traços
invariantes que compõem as letras, pareando-as com o que foi registrado
na memória durante a alfabetização (se foi bem realizada), passando, em
seguida, no caso de textos em PB, ao grafema, formado por uma ou duas
letras, com seu valor fonêmico, para se chegar ao reconhecimento da pa-
lavra escrita, com a respectiva atribuição do acento de intensidade e a sua
respectiva imagem acústica.
Conforme pontua Dehaene (2012, p. 43), “[n]enhum leitor, mesmo
extremamente advertido, não pode se impedir de converter inconsciente-
mente os grafemas em imagens acústicas, em apenas algumas dezenas de
milissegundos”.
A rapidez de processamento é necessária para que os resultados dos
processamentos não se apaguem na memória de trabalho antes de o leitor
chegar ao término da oração, impedindo-lhe, assim, de aplicar o padrão de
entoação.
É o que acontece quando o aluno titubeia por ter sido mal alfabeti-
zado pelo nome das letras, como na soletração, na palavra “pato”, do tipo
pê-a-pá-tê-ó-tó: quando chegar à última sílaba, a informação da primeira
já se apagou e ele estará impedido de reconhecer a palavra escrita e, em
consequência, de capturar o seu significado. Isto é tanto mais grave, quanto
maior for a palavra.
Em segundo lugar, a automatização do reconhecimento dos traços, das
letras, dos valores dos grafemas e da atribuição do acento (princípios do
sistema alfabético do PB para a decodificação) é necessária para liberar a

71
mente para os processos criativos da leitura, como a construção do sentido
das palavras, frases, orações, períodos, parágrafos e texto e como a iden-
tificação das diferentes vozes no discurso (polifonia) e de suas intenções
pragmáticas.

Automatização de processos na produção escrita

No que diz respeito à escrita, é necessária a automatização dos gestos


motores que executem os traços que distinguem cada letra, com as res-
pectivas ligaturas, na manuscrita e daqueles necessários à digitação no te-
clado; das regras de conversão dos fonemas em grafemas; das regras de
derivação morfológica, inclusive das formas verbais primitivas irregulares
de uso mais frequente no PB escrito; da codificação fonética, da palavra
fonológica e da silabização; e, finalmente, das regras sintáticas básicas para
a pontuação.
Aliás, essa dicotomia dialética entre processos automáticos e criativos
é garantida pela própria arquitetura das línguas e de seu funcionamento
que espelha a estrutura e funcionamento para a linguagem verbal do siste-
ma nervoso central.

A arquitetura das línguas e de seu funcionamento

A ANA desconhece a arquitetura das línguas e seu funcionamento que


espelham a estrutura e funcionamento para a linguagem verbal do sistema
nervoso central.
O desprezo da ANA pelas habilidades de automatização dos processos
indispensáveis à leitura fluente e compreensiva e pelas necessárias à produ-
ção de um texto legível, coerente e coeso decorre de seu desconhecimen-
to sobre a arquitetura das línguas e de seu funcionamento, a qual espelha
a estrutura e funcionamento para a linguagem verbal do sistema nervoso
central.
A arquitetura através da qual se erguem tais sistemas (com uma con-
trapartida nas áreas especializadas do sistema nervoso central), que existe
em todas as línguas, na recepção, começa no nível mais baixo, constituído

72
de um número muito pequeno de traços fonéticos distintivos; sua integra-
ção constituirá, por seu turno, um número muito pequeno de fonemas em
cada língua; os fonemas se combinam para constituir as unidades mínimas
dotadas de significado gramatical (também em número fechado e limita-
do), que carregam, sobretudo, informações sintáticas e as unidades que vão
referenciar as significações externas à estrutura gramatical, mas que tam-
bém carregam parte da informação sintática, arroladas no léxico mental
fonológico (substantivos, verbos, adjetivos etc.), por seu turno, vinculado
à memória semântica. Circuitos que integram a componente sintática irão
determinar as combinações entre as classes sintáticas, com as respectivas
funções temáticas, para a formação das frases, das proposições, orações,
sentenças e texto, restando, ainda, outros mecanismos (processados no
hemisfério direito) que permitem reconhecer as modalidades (afirmação,
ordem, interrogação, negação e suas combinatórias).
A arquitetura para a produção percorre o caminho inverso e começa
nos níveis mais altos, na seguinte sequência: intencionalidade pragmática,
preparação conceitual de acordo com conceitos lexicais (mapas mentais),
conceitos lexicais (memória semântica), seleção lexical (léxico mental fo-
nológico), silabização (silabário mental fonológico), palavra fonológica,
codificação fonética, gesto motor (programa motor articulatório), execu-
ção (Levelt; Roelofs; Meyer, 1999, p. 3).

Avanços da neurociência e da neurobiologia molecular

Tal arquitetura das línguas tem sustentação na arquitetura do sistema


nervoso central e seu funcionamento, cujas partições vêm sendo refinadas
através dos resultados empíricos obtidos pelas técnicas mais avançadas,
como, por exemplo, as de ressonância magnética funcional associadas aos
experimentos comportamentais da neuropsicologia; as da neurobiologia
molecular etc.
Os avanços mais importantes que assinalo de forma sintética para o
entendimento da arquitetura e respectivo funcionamento da linguagem
verbal oral são os seguintes:

73
1. Refinamento e ampliação da citoarquitetura do SNC

Cito, como exemplo, as subclassificações da área de Broca, responsabi-


lizada anteriormente pela produção oral generalizada e agora subdividida
em áreas especializadas, associadas à parte anterior do giro temporal supe-
rior (STG) esquerdo, junto com o opérculo frontal esquerdo (vide Figura
1); além do controle para a execução dos gestos fonoarticulatórios, consta-
ta-se o das relações sintáticas locais iniciais e também do léxico mental das
classes de palavras puramente gramaticais (fechadas e em número limitado,
como, por exemplo, as preposições), conforme comprova “o deslocamento
negativo frontal mais vagaroso na fase entre 350 e 500 ms, maior no lado
esquerdo do escalpo” (Brown; Hagoort; Ter Keurs, 1999, p. 261).

Figura 1: Novas partições do SNC para as funções


da linguagem verbal oral, adaptação
Reprodução

córtex motor primário,


Área de Brodmann (AB 4)
córtex pré-motor
(AB 6) sulco central

lobo frontal lobo parietal


sulco temporal
sulco frontal superior (STS)
inferior (SFI)
lobo occipital
área de Broca
(AB 44/45)

lobo temporal
opérculo frontal (OPF)
giro de Heschl (GH)
área de Wernicke córtex auditivo
(AB 42/22) primário (CAP)
superior
(dorsal)
anterior posterior giro frontal inferior (GFI)
(rostral) (caudal)
giro temporal superior (GTS)
inferior giro temporal médio (GTM)
(ventral)

Fonte: Friederici (2011).

74
Um exemplo de ampliação da citoarquitetura do processamento verbal
é a inclusão de algumas das estruturas límbicas, compostas pelo hipocam-
po, o córtex cingulado, o córtex olfativo e a amígdala, conforme demons-
trou Ramon y Cajal (Squire; Wixted, 2011, p. 259-288). Outros avanços são
a abordagem dinâmica com a evidência dos pathways, circuitos formados
por fibras de massa branca que associam os vários centros especializados
para a linguagem verbal (Friederici, 2011).

2. Papel dos receptores neurotransmissores

A análise recepto-arquitetônica dos circuitos especializados para a lin-


guagem verbal tem revelado um parcelamento ainda mais refinado da es-
pecialização cerebral, como o papel dos receptores neurotransmissores em
nível molecular para o processamento da informação (Zilles et al. 2015, p.
79–89). Assim, observam-se subdivisões ainda mais específicas, como da
área 45, subdividida em duas partes, a mais anterior (45a), limitando com
a BA 47 e a mais posterior (45p), limitando com a 44 (Amunts et al., 2010).
Concluindo, o insucesso das políticas públicas na área da alfabetiza-
ção se explica, em parte, pelo desconhecimento sobre a estrutura e funcio-
namento dos sistemas linguísticos e da contraparte no Sistema Nervoso
Central: sem alicerces sólidos, nenhum edifício se sustenta, e o fato de não
serem percebidos à superfície não significa que não existam. Embora quan-
do lemos não possamos inspecionar conscientemente os processos de re-
conhecimento dos traços invariantes das letras – a síntese em uma ou duas
letras que formam uma categoria mais abstrata, os grafemas, associados
aos respectivos fonemas –, dadas a rapidez e automatização de tal proces-
samento, ele é compulsório no leitor fluente, como atestam os resultados
empíricos da neurociência.
Mas há outro aspecto primordial, que também explica, em parte, o in-
sucesso das políticas públicas na área da alfabetização, exemplificado com
as categorias contempladas pela ANA para avaliar as habilidades de leitura
e escrita, sobre o que discorrerei a seguir.

75
Desconhecimento dos três fatores que determinam a aquisição da
linguagem verbal oral e a aprendizagem dos sistemas alfabéticos e suas
diferenças específicas

Os três fatores que determinam a aquisição da linguagem verbal oral e


a aprendizagem dos sistemas alfabéticos e suas diferenças específicas são o
inato, o da maturação neural e o ambiental.
O fator inato depende de como a estrutura e o funcionamento do SNC
humano está biológica e psicologicamente programado para a aquisição da
linguagem verbal oral e já foi explanado, com exceção de uma capacidade,
exclusivamente humana, essencial à nossa argumentação: a capacidade que
os neurônios humanos têm de aprenderem coisas novas e de, compulso-
riamente, ordenarem os dados sensoriais que lhe chegam de modo bruto,
amorfo e redundante, base para o surgimento da cultura, inclusive para a
invenção dos sistemas de escrita.
O fator da maturação se ancora na forma como os neurônios ainda no
feto buscam o seu sítio, desenvolvem seus prolongamentos (axônios e den-
dritos), revestindo-se de mielina, formando redes cada vez mais densas,
entrecruzadas entre áreas cada vez mais distantes e especializadas, graças
ao terceiro fator, o ambiental, isto é, o efeito da experiência cultural, que
possibilita a aprendizagem dos processos, alguns dos quais vão de encontro
à programação inata, conforme explicarei com o que acontece com a apren-
dizagem dos sistemas de escrita, em particular, com os sistemas alfabéticos.
Nenhum dos três fatores prepondera sobre os demais: os três são inter-
dependentes e essenciais à aquisição da linguagem verbal oral e à aprendi-
zagem dos sistemas alfabéticos.

Os sistemas de escrita são uma invenção tardia

Compreender que os sistemas de escrita são uma invenção tardia, par-


ticularmente os sistemas alfabéticos, e não o meio de comunicação com-
pulsoriamente adquirido por ser essencial à sobrevivência do indivíduo e
da espécie, é fundamental “para que se possam evidenciar quais serão os
maiores desafios que o aprendiz deverá enfrentar, quais os métodos e ma-

76
terial pedagógico mais adequados ao ensino-aprendizagem e, finalmente,
quais os conteúdos essenciais à formação de quem ensina, o mediador”
(Scliar-Cabral, 2015, p. 113-128) e, acrescento, quais as categorias que de-
vem ser analisadas quando se avalia se o estudante se alfabetizou ou não, ao
término do 3º ano de alfabetização.
A invenção dos sistemas de escrita (não os confundir com os desenhos
rupestres) se dá tardiamente: o proto-cuneiforme e os hieróglifos egípcios,
os mais antigos sistemas de escrita conhecidos, datam ambos do final do
quarto milênio a.C. A escrita chinesa data da segunda metade do segundo
milênio a.C., e a escrita maia mais antiga foi atestada em Oaxaca, na região
costeira do Golfo do México e na região montanhosa da Guatemala, datan-
do entre 500 a 150 a.C. A própria evolução dos sistemas de escrita demons-
tra não uma mudança nos genes que processam as línguas naturais, mas
uma adaptação crescente aos limites dos circuitos neurais que processam a
palavra escrita (Dehaene, 2012).
Dada a incipiência do sistema sinaítico, os gêneros a serem cultivados
eram limitados: destinava-se, de início, a registrar de forma permanente
textos religiosos, como é o caso das inscrições bilíngues (em proto-sinaítico
e hieróglifos), gravadas na pequena esfinge de arenito em louvor da deusa
Hathor, datadas de 1.400 a.C. Os limites do sistema se deviam ao fato de só
representar as consoantes e de ser acronímico, isto é, só registrava a conso-
ante inicial de cada palavra.
Foram os gregos que aperfeiçoaram a representação das vogais, inicia-
da pelos fenícios, e o registro das palavras por inteiro. O aperfeiçoamen-
to do sistema de escrita possibilitou o surgimento do gênero filosófico, do
científico e do histórico, graças ao fato de que somente um sistema perma-
nente enseja a reflexão mais complexa, a metalinguagem e a metacognição.
A cosmovisão grega dá um salto gigantesco ao ultrapassar a visão mítica
consignada nos textos homéricos orais. A permanência, sobrepondo-se
aos limites de processamento da memória imediata e de trabalho, enseja a
transposição de argumentos encadeados e complexos a períodos com vá-
rios encaixes, precedendo e/ou sucedendo a oração matriz, característicos
do registro da modalidade escrita. Surgem as bibliotecas como a de Alexan-

77
dria (desafortunadamente incendiada), nas quais as obras de Aristóteles,
de Heródoto, de Safo, de Dioscórides estariam disponíveis para as gerações
vindouras. O arquivamento, pois, dos conhecimentos produzidos social-
mente e sua transmissão às novas gerações deixaram, por um lado, de estar
limitados pela capacidade de registro da memória permanente de um só
indivíduo e, por outro, pela capacidade de codificação oral do narrador e
de decodificação do(s) ouvinte(s).
A constatação de que os sistemas de escrita são uma invenção, corrobo-
rada pelas evidências experimentais da neurociência de que os neurônios
da leitura não são geneticamente programados para o reconhecimento da
palavra escrita, tem profundas repercussões sobre a psicolinguística apli-
cada à alfabetização, uma vez que tal processo decorre da aprendizagem,
de modo algum simples, pois não só a alfabetização não é compulsória e
espontânea como ocorre com a aquisição do sistema oral, como ela esbarra
com processos que vão de encontro a como os neurônios da visão proces-
sam o sinal luminoso e a como a fala é percebida.
A invenção da escrita e os incrementos tecnológicos introduzidos, na
sequência, determinaram o surgimento de novos gêneros, cujo ensino não
deve ter como escopo principal o reconhecimento das diferenças estru-
turais entre si, mas, no caso da leitura, fazer com que o aluno aprenda a
identificar, compreender e interpretar os diferentes recursos utilizados por
cada um e, no caso da produção, fazer com que ele domine os recursos dos
gêneros que ele necessita em cada uma das séries de seu percurso acadêmi-
co e, paralelamente, na sua vida social, familiar e pessoal. Insistir para que
o aluno aprenda a produzir um anúncio só teria sentido se todos os alunos
do Ensino Fundamental e Médio se destinassem à carreira de redator pu-
blicitário. Cabe assinalar nesse passo a ignorância de um dos princípios
da psicolinguística, o de que a competência para compreender sempre é
e será superior à competência de produção (esse princípio será retomado,
logo a seguir, quando examino a questão das variedades sociolinguísticas).
Sendo assim, deve-se trabalhar em sala de aula com o desenvolvimento da
competência do aluno para compreender e interpretar criticamente (inclu-
sive para inferenciar) os textos publicitários, em especial, numa sociedade

78
consumista como a em que vivemos: o mesmo não se aplica, como já expli-
cado, à necessidade de ensinar o aluno a produzir um anúncio.
Outro exemplo da psicolinguística aplicada à alfabetização provém da
neurociência.

Conflito entre o reconhecimento espontâneo do sinal luminoso e o


da palavra escrita

À medida que se foram aperfeiçoando os sistemas de escrita, por um


lado, mais se aproximaram da arquitetura organizacional do sistema oral,
mas, por outro, dado o fato de ser uma invenção cultural cuja característi-
ca fundamental é garantir a permanência textual, portanto, o acúmulo e a
universalização dos conhecimentos e, em consequência, o surgimento de
novos gêneros, com complexidades cognitivas e de processamento, houve a
necessidade de criar novos traços invariantes a serem automatizados, para
o reconhecimento das letras, cujo processamento vai de encontro àquilo
para o que os neurônios da visão foram biológica e psicologicamente pro-
gramados. Tais neurônios, situados na região occipitotemporal ventral es-
querda, deverão aprender (ser reciclados) e automatizar o reconhecimento
da direção, da posição (aspectos topológicos) e do número (aspectos mate-
máticos) dos traços que entram na composição das letras.
Os neurônios da visão para reconhecer rostos, artefatos, casas ou de-
mais entidades da natureza foram programados geneticamente para des-
prezar a posição e direção de uma dada entidade no espaço: tanto faz uma
porta estar fechada ou aberta, abrir para a direita ou para a esquerda, será,
sempre, reconhecida como uma porta; um copo pode estar emborcado so-
bre a mesa, ou com a boca para cima, mas será, sempre, reconhecido como
um copo. Este mecanismo de reconhecimento é extremamente útil para
que as respostas do organismo aos estímulos sejam rápidas e eficientes.
Mas com os sistemas de escrita, invenção cultural, isto não ocorreu.
A evolução dos sistemas de escrita, desde os quase icônicos, os ideo-
gráficos, os silábicos, até os alfabéticos, conduz à aproximação gradativa
para representar a comunicação oral, em que os níveis mais baixos devem

79
possuir um elenco com um número pequeno de elementos, a fim de serem
automatizados. Assim, enquanto na escrita hieroglífica e chinesa o leitor e
o redator tinham que memorizar centenas de milhares de símbolos, o que
restringia o acesso aos sistemas a uma minoria de letrados, os sistemas al-
fabéticos possibilitaram, junto com a escolarização e, posteriormente, com
o advento da imprensa, a socialização do saber escrito.
A introdução nos sistemas alfabéticos de um novo nível na arquitetura,
o da segunda articulação, isto é, o nível em que uma ou mais letras se cons-
tituem em grafemas e, tal como os fonemas nos sistemas orais, passam a
distinguir o significado entre as palavras escritas, implica a diminuição do
número de símbolos a serem memorizados: os traços que diferenciam as
letras entre si, os valores condicionados ou não pelos respectivos contextos
e as palavras irregulares.
Tal economia tem, porém, um preço: dominar a direção, a posição
(aspectos topológicos) e o número (aspectos matemáticos) de traços que
entram na composição das letras, como requisito para reconhecer e pro-
duzir as letras, vai de encontro a como os neurônios da visão processam
o sinal luminoso, conforme já mencionado. Esta é uma das razões pelas
quais a alfabetização não ocorre de forma espontânea e compulsória, pois
os neurônios de uma área específica da região occipital (a caixa das letras)
precisam ser reciclados.
A intuição dos inventores dos sistemas alfabéticos sobre a invariân-
cia dos fonemas e sua representação aproximada nos sistemas de escrita
alfabéticos pelos grafemas vieram ao encontro da necessidade pragmática
de registrar de forma permanente as informações e assim difundi-las por
vastos espaços geográficos a uma mesma comunidade linguística. Dada a
maior complexidade dos textos escritos, com seus léxicos especializados,
urgia evitar ambiguidades, como é o caso dos homófonos: passou-se, então,
a utilizar além da correspondência fonema/grafema, o critério etimológico,
mantendo-se a grafia original do radical primitivo. Surgiram, então, os ho-
mófonos não homógrafos, fonte de grandes dificuldades para os redatores
avessos à leitura. Um exemplo, no contexto brasileiro atual, é o de nossos
alunos que não sabem por que ascender (subir) se escreve com “sc” e acen-
der (fazer fogo) se escreve com “c”.

80
No entanto, pelo fato de os sistemas orais se modificarem continua-
mente, cria-se uma distância entre eles e sua representação gráfica, maior
ainda, nos países onde não se realizam reformas ortográficas periódicas,
como é o caso dos países anglo-saxões e da França.
A intuição que os inventores dos sistemas alfabéticos tiveram sobre a
realidade psicológica dos fonemas os levou a um dos maiores feitos cultu-
rais de que se tem notícia, indo de encontro a como a cadeia da fala é perce-
bida pelos ouvintes, ou seja, conseguiram desmembrar a sílaba, recobrindo
a consoante inicial, fossem quais fossem as variantes fonéticas que apresen-
tasse, por um símbolo escrito, revelando outra intuição de um princípio
essencial às teorias de reconhecimento, o de invariância (Dehaene, 2012,
p. 151 e segs.).

Conclusões

Propus-me, neste capítulo, justificar a necessidade de fundamentar os


responsáveis pelo traçado das políticas públicas em alfabetização com os
recentes achados das ciências de ponta que se ocupam da linguagem ver-
bal: a linguística, a psicolinguística, a neuropsicologia e a neurociência.
Tal fundamentação se faz necessária diante da exclusão, a cada dia cons-
tatada, da maioria dos brasileiros do mercado de trabalho qualificado, por
serem analfabetos funcionais. Ilustrei o despreparo dos responsáveis pelo
traçado das políticas públicas em alfabetização, examinando as categorias
de análise da ANA para a avaliação em leitura e escrita, nos alunos do
3º ano do Ensino Fundamental (término do Ciclo da Alfabetização), ao
constatar que ignoram a arquitetura subjacente aos sistemas linguísticos
e sua contraparte no Sistema Nervoso Central, bem como os respectivos
funcionamentos. De não menor importância é ignorar que os sistemas de
escrita são arduamente aprendidos, havendo a necessidade de automatizar
os níveis mais baixos, para liberar a criatividade, sem a qual não se com-
preendem nem se produzem os textos que circulam socialmente.

81
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83
Parte III

Leitura, escrita,
professores e ensino

84
4
Uma breve abordagem à leitura e à escrita na
perspectiva da Psicolinguística

Maria da Graça Lisboa Castro Pinto

Apresentação

Conquanto se possa fazer remontar a origem da Psicolinguística (PL) a


autores como Wilhelm Wundt, um dos responsáveis pelo começo da Psico-
logia Experimental, em 1879, e passível de ser considerado um dos primei-
ros psicolinguistas, neste texto situa-se o aparecimento da PL no início da
década de cinquenta do século pretérito. Empenhados, então, no arranque
da PL, como ciência que vai buscar as suas raízes à Psicologia e à Linguís-
tica, encontravam-se os psicólogos Osgood, Carroll e Miller e os linguistas
Sebeok e Lounsbury (Bronckart; Kail; Noizet, 1983). Como, para todos os
acontecimentos dignos de nota, se revela necessária a existência de docu-
mentos que atestem a sua fundação, no caso da PL é tomada como marco a
obra “Psycholinguistics. A survey of theory and research problems”, datada
de 1954, organizada pelo psicólogo Charles Osgood e pelo linguista Thomas
Sebeok. Esta publicação resultou dos escritos provindos de um seminá-
rio realizado na Universidade de Cornell, em 1951, sob a égide do Social
Science Research Council, com a presença de especialistas de Psicologia e
de Linguística, que procuravam estudar as relações entre as duas ciências
(Slama-Cazacu, 1972). No seu percurso até aos nossos dias, a PL, com a
sua índole explicativa e apoiada numa metodologia experimental, acaba
por se tornar, como bem observa Slama-Cazacu (2007), já não uma área
unicamente interdisciplinar, mas sim uma ciência com conexões multidis-
ciplinares, que, porque assente numa visão mais abrangente da linguagem,

85
permite, entre outros, ver também o que se passa na leitura e na escrita,
enquanto processos verbais. O objetivo deste texto reside precisamente em
observar esses dois processos em matéria de implicações e aplicações à luz
da PL, na qualidade de ciência explicativa que procura relacionar factos da
linguagem com as bases psicológicas dos atores neles envolvidos.

Introdução

A alusão, no princípio da apresentação, a Wilhelm Wundt, associado à


ideia de poder ser considerado um dos primeiros psicolinguistas (Bronckart,
1977), serve de pretexto para se relevar o papel que foi outorgado, nos estu-
dos realizados na área da Psicologia já no século XIX, à linguagem, embora,
seguindo Bronckart, Kail e Noizet (1983), esta tenha sido objeto de uma
leitura ainda restrita e não compaginável com a sua especificidade própria.
Interessa lembrar que o mesmo século acompanha também grandes avan-
ços na esfera da linguagem no âmbito da Neurologia, podendo ser assina-
lados, de entre um grupo notável de especialistas interessados nessa área
de pesquisa, Broca, Wernicke, Lichtheim e Freud. Os estudos em ambas as
áreas então realizados não poderão, por isso, ser ignorados sob pena de se
subestimar um legado que não deixa de ser um alicerce do que veio a ser
desenvolvido até à data no plano das relações entre a linguagem e as bases
psicológicas e neurológicas que a sustentam.
Se, à primeira vista, um psicólogo pode estudar a linguagem, na linha
do que podemos designar por Psicologia da Linguagem, como um compor-
tamento, entre vários, suscetível também de contribuir para o desenvolvi-
mento de outros (percepção, memória e resolução de problemas), seguindo
a tradição de Wilhelm Wundt, responsável, já no fim da década de setenta
do século XIX (1879), pelo papel que se passou a conferir à linguagem em
Psicologia Experimental, não será de excluir igualmente que haja linguistas
que, numa perspectiva mais condizente com uma Linguística em Aplica-
ção, a não confundir com Linguística Aplicada (Pinto, 2009a), se interes-
sem por ver como determinada teoria encontra resposta em determinados
desempenhos verbais. Para reforçar o que se deixa expresso, importará ter
presente o pensamento de Lantolf (2006) quando se interroga por que não

86
integrar na aplicação da Linguística, enquanto validação de teoria, a pes-
quisa em aquisição da linguagem na criança, sobretudo a que se insere na
teoria gerativa. Não resultará estranho alargar este entendimento a outros
temas quando se quer investigar o que se passa em situações concretas,
normais ou desviantes, em que a linguagem esteja em discussão.
Nem sempre se verifica, por consequência, que quem estuda a aquisição
da linguagem ou qualquer outra subárea da linguagem que busca explicar
o seu processamento e que se enquadra, em grande parte, na PL, tem for-
mação nas duas áreas (Psicologia e Linguística) ou joga com elas de modo
a olhar o objeto de estudo com duas lentes em simultâneo, numa “fusão
interdisciplinar”, se for usada a expressão de Slama-Cazacu (1979, p. 35).
Por outras palavras, ainda na segunda década do século XXI, não se
depara sempre com psicolinguistas que conjuguem de modo explícito, de-
pendendo da sua formação, as bases que possuem com outras que mere-
cem ser contempladas. Se os que provêm da Psicologia não detêm sempre
a formação esperada em Linguística, também os que têm formação essen-
cialmente linguística nem sempre relacionam devidamente os desempe-
nhos verbais que analisam com os processos cognitivos que os acompa-
nham, mesmo que não se coíbam de utilizar o termo “desenvolvimento” e
de se servirem, nos seus estudos, de participantes que, se forem crianças,
atravessam momentos do maior interesse no plano operatório com as re-
percussões inevitáveis na linguagem, uma vez que esta não se restringe a
ser adquirida com base simplesmente no conhecimento figurativo. No caso
de a população a estudar ser constituída, por exemplo, por pessoas idosas,
os linguistas terão de estar também atentos às diferentes atividades cog-
nitivas, porquanto não seguem todas percursos idênticos no processo de
envelhecimento, já abstraindo o que se passa fisiologicamente, dado que
se repercutem seguramente nos desempenhos verbais, o que torna impres-
cindível a sua caracterização antes da chegada a quaisquer conclusões as-
sociadas à linguagem. Quanto aos psicólogos, cabe-lhes analisar mais de
perto diferentes aspectos verbais que possam estar a ser afetados pelo en-
velhecimento e não fixarem a sua atenção só em palavras soltas ou numa
observação superficial dos discursos produzidos. Usufruir uma capacidade
que concilie um olhar conjunto linguístico e psicológico, sem chamar, de

87
momento, outras áreas para a ribalta, constitui sem dúvida uma mais-valia
a fim de se poder partir, com mais distância e de diferentes ângulos, para a
análise de um objeto de estudo como é a linguagem.
Quem realiza estudos psicolinguísticos deveria, em circunstâncias ti-
das como desejáveis, deter formações de ambas as áreas – Linguística e Psi-
cologia –, para que os trabalhos que compartilham encerrem uma leitura
mais completa e vasta do que se passa nos processos que ligam fatos da lin-
guagem ocorrentes em situações de comunicação concretas às bases psico-
lógicas dos locutores reais neles imiscuídos, independentemente da idade
e dos perfis que possam apresentar. Vem, aliás, nesta senda, uma possibili-
dade de definição da PL, a saber: “A psicolinguística trata diretamente dos
processos de codificação e de descodificação enquanto relacionam estados
da mensagem com estados dos comunicadores” (Slama-Cazacu, 1979, p.
42). Esta formulação não deixa dúvidas, como adianta a autora citada, que
uma formação em PL se reveste inclusive de toda a pertinência quando
estão também em foco estudos na área da Linguística, muito em especial
da aplicada. É que a Linguística Aplicada (LA) não pressuporá em exclu-
sivo a Linguística, posto que o epíteto “aplicada”, que integra a designação
“Linguística Aplicada”, lhe incute um cunho transdisciplinar que não pode
ser escamoteado (ver Pinto, 2009a). Os que realizam estudos que integrem
uma parte empírica, como acontece com grande parte dos que se enqua-
dram na LA, conhecem bem o alcance do termo “transdisciplinar” quando,
na seção metodologia, têm de apresentar de forma pormenorizada, os par-
ticipantes, o material a analisar e as técnicas de procedimento. Não admira,
portanto, que nesses estudos se entre numa esfera de ação verbal que pode
integrar aspectos psicológicos, sociológicos ou mesmo neurológicos.
Basta a referência à alfabetização e à linguagem no idoso, dois temas
com implicações verbais que têm vindo a despertar um interesse especial
na atualidade, para deparar, de imediato e sem rodeios, com conexões a
disciplinas que se identificam com os aspectos apontados. Atentando a que
não se afigura fácil estudar os temas enunciados de um ponto de vista que
não inclua a PL, convém que, nas circunstâncias, esta seja concebida como
uma “true ‘Science’, with ‘Multidisciplinary’ connections” e não como um
“mere ‘Interdisciplinary Field’” (Slama-Cazacu, 2007, p. 80).

88
A leitura interdisciplinar não se revela, portanto, a única quando se
procura realizar um estudo completo da linguagem e da comunicação,
razão pela qual Slama-Cazacu (2007), que sempre atribuiu um papel de
destaque ao ato de comunicação para o qual propôs, em 1961 [1959], um
modelo contextual dinâmico, prefere que se veja na PL uma ciência com
conexões multidisciplinares. Aspectos de ordem neurológica e sociológi-
ca, além necessariamente dos linguísticos e psicológicos, não poderão ser
menosprezados em temáticas como as aludidas: alfabetização e linguagem
no idoso.
Quem partir para estudos da linguagem nesta ótica e quiser gerir de-
vidamente todas as variáveis em jogo terá de possuir seja uma formação
englobante, seja uma capacidade de trabalho em equipe.
A leitura e a escrita serão versadas neste texto com o espírito de aber-
tura patenteado.

O surgimento da Psicolinguística

Importa iniciar por advertir que o termo “psicolinguística” não deixou


de suscitar nos estudiosos interessados na sua origem alguma curiosidade
relativamente ao ano e ao local em que terá surgido, pela primeira vez,
no século XX. Ademais, não se sabe se terá sido usado, aquando das suas
primeiras ocorrências, como adjetivo ou como nome e com ou sem hífen.
Significa o exposto que as pesquisas levadas a cabo em torno do termo
em análise podem mesmo levar a considerar com algumas reticências a
sua criação americano-inglesa e com uma certa prudência a sua formação
lexical (Pinto, 2009b).
Afastados os aspectos terminológicos, é possível adiantar, com gran-
de segurança, que a PL “nasceu”, com certidão de nascimento oficialmente
passada, no começo dos anos cinquenta, nos Estados Unidos. A referida
certidão mais não é do que uma publicação intitulada “Psycholinguistics.
A survey of theory and research problems”, datada de 1954, organizada
pelo psicólogo Charles Egerton Osgood, da corrente bahaviorista, e pelo
linguista Thomas Albert Sebeok, que se viria a tornar num famoso (zoo)
semioticista (Slama-Cazacu, 1972).

89
Já em 1951, contudo, segundo a mesma referência, a discussão em tor-
no da clarificação das relações entre a Psicologia e a Linguística constituiu
o tema de um seminário que se realizou na Universidade de Cornell, sob a
égide do Social Science Research Council, que contou com seis especialistas
das duas ciências.
Há quem aponte, porém, 1952 como o ano da fundação da PL por
psicólogos como Osgood, Carroll e Miller e linguistas como Sebeok e
Lounsbury (Bronckart; Kail; Noizet, 1983).
A preceder a publicação do volume de Osgood e Sebeok, muito pro-
vavelmente destinado à sua preparação, observa Slama-Cazacu (1972) que
se realizou na Universidade de Indiana, em 1953, um seminário que con-
tou com a presença dos organizadores do mencionado volume, de três ou-
tros investigadores e de cinco estudantes. Apesar de se terem verificado
encontros com o mesmo intuito em datas anteriores a 1954, como se torna
sempre imprescindível um documento que certifique os acontecimentos, a
obra organizada por Osgood e Sebeok, datada desse ano, poderá ser tida
como documento para registrar o aparecimento da PL.
Embora o objeto de estudo não fosse totalmente novo e já viesse a des-
pertar o interesse de estudiosos, é possível dizer-se que, a partir da obra
indicada, se passou a sentir que a PL ficou mais bem definida conceptu-
almente e também no plano de métodos e dos seus limites (Titone, 1979).
À época, as ligações ao behaviorismo e à teoria da informação eram
visíveis e isso fez com que a definição de trabalho da PL proposta no men-
cionado volume de 1954, coordenado por Osgood e Sebeok, fizesse refe-
rência, como anuncia Slama-Cazacu (1972, p. 14), ao modo como essa dis-
ciplina trata diretamente dos processos de codificação e de descodificação
que ligam as mensagens aos estados de quem comunica. Estava lançada
a primeira escola psicolinguística, apoiada na teoria da informação, que
conferia à linguagem um estatuto distinto do dos outros comportamen-
tos psicológicos e que permitiria um estudo mais original (Bronckart; Kail;
Noizet, 1983).
Uma outra abordagem à linguagem com outro potencial e que fazia
salientar melhor a sua especificidade não tardaria a emergir com o apare-
cimento da gramática gerativa. Acrescenta ainda Bronckart, Kail e Noizet

90
(1983), que este quadro teórico viria a fornecer conceitos (competência,
criatividade, regras de transformação, estrutura de superfície e profunda,
entre outros) que serviriam de sustentáculo, em especial, à segunda escola
de PL.
Nem tudo o que à linguagem diz respeito se podia limitar ao que, en-
tão, era oferecido pela gramática gerativa, o que motivou a emergência de
análises semânticas ou pragmáticas da língua. Como comentam Bronckart,
Kail e Noizet (1983), a ausência de um modelo global que levasse a um
estudo psicolinguístico mais completo terá levado ao ressurgimento de tra-
balhos em Psicologia da Linguagem que se abstinham de fazer qualquer
referência a modelos linguísticos.
A partir de 1970, seguindo a mesma fonte, com o célebre artigo de
Bever (1970), intitulado “The cognitive basis of linguistic structures”, via-se
a PL liberta de modelos formais particulares a que tivesse de fazer referên-
cia obrigatoriamente. Em foco, passa a estar, sim, com base nos contextos
teóricos achados mais oportunos, o estudo da aquisição da linguagem pela
criança e do seu funcionamento no adulto com toda a sua abrangência. Es-
tava lançada a terceira escola de PL, que abriu o caminho aos estudos que
se realizam ainda presentemente.
O objeto de estudo da PL passa a ser muito amplo ao colocar-se como
desígnio penetrar nos processos psicológicos implicados nas mais variadas
situações que envolvam a linguagem.
Pode avançar-se, na trilha de Slama-Cazacu (2007), que, relativamente
a outros pontos de vista, a PL traz mais vantagens porque é uma ciência
explicativa que procura ir à raiz da linguagem e da comunicação e que liga
os fatos da linguagem às bases psicológicas do indivíduo que se encontra
empenhado nesses processos.
O fato de a PL ser uma ciência explicativa significa que tem em
consideração realidades concretas e sujeitos reais, recorrendo para o efeito
ao método experimental. Além disso, como se apoia em sujeitos reais e
em contextos particulares, acaba por fornecer soluções para a vida prática,
o que a torna também aplicada. Nota, ainda, Slama-Cazacu (1979) que
a PL, vista como uma ciência com ligações multidisciplinares e já não
como um campo unicamente interdisciplinar, vai obrigar a adotar uma

91
posição de complementaridade entre a Psicolinguística e a Psicolinguística
Aplicada. Não surpreende, pois, que, a este respeito, Prucha (1994) adiante
que “[p]rovided we accept the concept which has been developed by some
European psycholinguists (...) as the base of psycholinguitic research, then
the applicability is included as an inherent quality of psycholinguistics” (p.
150).
Revelam-se, assim, várias as tarefas que podem ser atribuídas à PL nes-
te século. A finalizar o texto de 2007, Slama-Cazacu elenca as seguintes:
I. PL and activities on Computer; II. PL confronted with political
actions (Incl. financial-economic-social, etc.); III. PL and some almost
neglected topics, aspects of life that might be of great interest in the
XXIst Century; IV. PL and some psycho-somatic aspects or changes in
the psyche of Humanity. (p. 84-85)
Não foram expressamente listadas as subtarefas de cada uma das tarefas
aduzidas. Abre-se, contudo, uma exceção em relação a uma das subtarefas da
tarefa III, isto é, a que se reporta à leitura/escrita de textos longos e breves em
papel ou no computador, visto que este texto objetiva apreciar esses dois pro-
cessos verbais numa perspectiva psicolinguística, sem deixar de contemplar,
naturalmente, as conexões multidisciplinares da PL como ciência.

A leitura e a escrita como processos verbais

É legítimo começar por estabelecer a distinção feita tradicionalmente


pelos linguistas, como lembra Emig (1977), entre os processos verbais de
primeira ordem – falar e ouvir – e os processos verbais de segunda or-
dem – ler e escrever. Diferem estes dois tipos de processos por serem, os
primeiros, adquiridos sem instrução formal ou sistemática e, os segundos,
por meio de instrução formal e sistemática. Seria até plausível acrescentar-
-se que os primeiros são adquiridos enquanto os segundos são aprendidos,
apesar de aquisição e aprendizagem não se excluírem mutuamente e de ser
difícil precisar, em determinadas circunstâncias, qual está em jogo.
Os quatro processos podem, como é irrefutável, ser tratados psicolin-
guisticamente, por estarem em discussão fatos de linguagem associados a

92
processos psicológicos ativados por quem neles está envolto. Sem embargo,
serão aquilatados neste texto os processos ditos de segunda ordem, a leitu-
ra e a escrita, correspondentes a atividades receptiva e produtiva respecti-
vamente, dado que são os que se encontram mais ligados à alfabetização,
tema que motivou este texto.
Volvendo a Emig (1977), leitura e escrita contrastam em virtude de a
primeira, compreendida para lá da decifração, implicar criar e até recriar
e de a segunda, para além de criar, implicar originar um construto verbal
registrado graficamente. A escrita, entendida como composição, ao fazer
intervir a vista, a mão e o cérebro, é tida pela autora como um processo ver-
bal único e com uma importância particular em matéria de aprendizagem.
A observação de Emig a respeito da escrita encontra eco na abordagem
multissensorial e multicognitiva de Odisho (2007), que insta a que se tire
partido da congregação de sentidos e da conjugação de atividades cogni-
tivas para que se almejem melhores desempenhos em tarefas que lucrem
com um modo de atuação sensorial e cognitivo plural.

A leitura

Vista a leitura como processamento, interessa atender aos modelos de


índole mais psicolinguística que procuraram dar conta de vias diferentes de
leitura de material impresso.
Convém, todavia, atentar ao fato de o desenho destes modelos, que
tomam como metáfora o computador, se servir para a sua elaboração de
palavras isoladas. Paradis (2007) não poupa, porém, críticas a quem traba-
lha unicamente com essas palavras porque acha que os resultados obtidos
por essa via não podem generalizar-se à língua como sistema,tampouco ao
que se entende por ler, se estiver em análise a capacidade de leitura.
Tudo depende evidentemente do que se quer analisar em matéria de
linguagem. De qualquer forma, o fato de esses modelos de leitura contem-
plarem, em exclusivo, esse material verbal só pode contribuir para lhes re-
tirar o poder explicativo que deles se espera, caso se queira que a leitura
ultrapasse esse nível e abranja “uma tridimensionalidade que se traduz em

93
conhecimento linguístico, capacidades de literacia (ou de processamento
de informação) e conhecimento prévio ou capacidades cognitivas” (Lopes;
Martins; Pinto, 2015, p. 74). Capacidades cognitivas essas que podem até
ser sociocognitivas porque muito devem às vivências do sujeito leitor e
consequentemente ao seu contato com o social.
Se se entender que a leitura não é só decifração e reconhecimento de
palavras, mas é essencialmente compreensão tendente também à interpreta-
ção, ou melhor, o criar e o recriar mencionados por Janet Emig (1977), vem a
propósito a seguinte passagem de Bernhardt (2011, p. 72): “[c]omprehension
comes with baggage. The task for advanced language learners is not only to
learn words but to create the baggage that they carry with them”. Quer dizer
que, para Lopes, Martins e Pinto (2015, p. 77),
a compreensão bem-sucedida da mensagem impressa nasce do pro-
cesso de extrair e integrar a informação contida em determinado
texto que, por sua vez, combinada com o conhecimento prévio do
leitor e com a sua destreza na manipulação dos elementos de que
dispõe, [...] [cria] um produto aproximado daquilo que o autor teve
em mente [...] [originar].” É que, ao recriar, o leitor pode, muitas ve-
zes, chegar a um resultado que transcende a mensagem que o autor
originou e quis transmitir.
Os supracitados modelos que distinguem diferentes vias possíveis de
leitura, como muito do que se passa no plano do processamento verbal, co-
nhecem, em grande parte, a sua gênese naquilo com que se depara em pa-
tologia. Tanto a patologia como a aquisição da linguagem originam desem-
penhos que contribuem para penetrar numa “caixa negra” que se reveste de
opacidade quando o processamento verbal é operado, de modo normal e
automático, por um ser humano sem problemas aparentes.
Como diz Susan Curtiss, com base no caso da Genie, a criança selva-
gem por ela estudada psico e neurolinguisticamente nos anos setenta do
século passado, os resultados obtidos levam a pensar que “[l]anguage no
longer looks like a uniform package” (Pines, 1981, p. 34). Esse “uniform
package” mais não será do que uma boa designação do que antes foi intitu-
lado “caixa negra”, uma caixa que se supunha impenetrável.
94
Não obstante os modelos de leitura a que se dedicará algum espaço
neste momento serem, de um modo geral, resultantes da leitura de palavras
soltas, não se pode deixar de lhes atribuir um papel importante, quer no
atinente à novidade que traz uma abordagem psicolinguística nesta área
relativamente a outras anteriores, sobretudo de índole clínica, quer em re-
lação às suas implicações no plano da intervenção terapêutica.
Dependendo do tipo de abordagem, clínico-anatômica ou psicolinguís-
tica, as perturbações de leitura por lesão cerebral apresentam classificações
distintas. Na primeira situação, são conhecidas por alexias (pura, com agra-
fia e afásica); na segunda, em resultado da via de leitura comprometida – o
que deixa em aberto a hipótese de nem todas as vias (semântica, fonológica
e direta) estarem danificadas pela lesão e permitirem que se passe a usar
o termo “dislexia” em vez de “alexia” –, ocorrem as designações: dislexia
visual, dislexia de superfície e dislexia profunda (Montañés; Brigard, 2005).
De entre as alexias enumeradas, convirá dar um destaque especial à
alexia pura, motivada por lesão do lobo occipital esquerdo e do esplênio
do corpo caloso, zonas irrigadas pela artéria cerebral posterior esquerda,
que foi descrita pela primeira vez por Déjerine, nos anos noventa do século
XIX, com base na autópsia realizada que evidenciava lesão na área descri-
ta (Caplan, 1987). Terá interesse avançar que doentes que tenham a parte
posterior do corpo caloso afetada, ou seja, o esplênio, podem não apre-
sentar a leitura perturbada quando não lhes é solicitada a visão. Podem ler
por via tátil, atendendo a que, para tal, a transmissão da informação entre
hemisférios se faz através de um outro fragmento do corpo caloso que não
apresenta ligações às entradas visuais.
Quanto às dislexias, Temple (1985) dá-nos conta de dois modelos de
processamento da leitura: um de via dupla e outro de via tripla. No de via
dupla, são manifestas duas possibilidades para ler uma palavra em voz alta:
uma através do sistema semântico e outra por meio de um conjunto abstra-
to de regras grafema-fonema. O modelo de via tripla, como adianta ainda a
mesma autora, conta com a possibilidade de transitar diretamente dos de-
tectores de palavras à saída fonológica sem recorrer ao sistema semântico.
Os erros que possam ser cometidos pelos pacientes remetem para proble-
mas numa ou em mais do que uma das vias realçadas.

95
Os modelos focados, bem como todos os que pretendem traduzir o
modo como se processa a informação da linguagem no plano da produ-
ção e da compreensão, embora sejam dados pela escola de Neuropsicologia
Cognitiva por meio de diagramas, que recorrem a caixas e setas para fa-
zer corresponder os distúrbios encontrados nos pacientes a determinadas
componentes dos modelos, não se aproximam, exatamente por essa razão,
dos diagramas usados no século XIX por Wernicke, Lichtheim, Broadbent
e Bastian, em que as caixas representavam centros no córtex cerebral e as
setas, por sua vez, as ligações entre esses centros (Howard; Hatfield, 1987).
Nos modelos neuropsicológicos cognitivos em discussão neste enqua-
dramento (ver, entre outros, Morton; Patterson, 1980), como ainda notam
Howard e Hatfield (1987), qualquer localização cerebral do que vier a ser
encontrado nos desempenhos verbais é secundária. Já será basilar, no en-
tanto, a qualidade dos erros cometidos tendo em conta variáveis defini-
das psicolinguisticamente. É justo sublinhar, nesta oportunidade, os con-
tributos originais trazidos para a classificação das paralexias por Marshall
e Newcombe (1966; 1973) que, ao enveredarem por uma terminologia
apoiada na PL, optaram por chamar semânticos, visuais, derivacionais, de
substituição de functores e mistos aos erros encontrados, afastando-se, as-
sim, das anteriores classificações clínicas (ver Pinto, 1994).
Convém ressaltar como as duas abordagens relevadas, clínico-ana-
tômica e psicolinguística, ao revelarem preocupações distintas, originam
também outras terminologias. No plano da leitura e da escrita, as alexias e
as agrafias passam a ser chamadas, na ótica psicolinguística, dislexias e dis-
grafias, em virtude de não se encontrar perturbado todo o processamento
da leitura e da escrita, mas antes parte dele. Esta mudança de enfoque abre
ainda novas pistas no terreno da intervenção terapêutica por facultar en-
tradas à recuperação através das vias não atingidas pela lesão cerebral, que
são identificadas por meio dos erros cometidos. Revela-se, pois, de toda a
justiça realçar, neste cenário, o papel dos neuropsicólogos cognitivos e dos
psicolinguistas.
A terminologia de erros com base psicolinguística teve como ponto de
partida pacientes com lesões adquiridas; todavia, para Johnston (1983) e
Temple (1984), essa terminologia pode perfeitamente ser admitida nas dis-

96
lexias de desenvolvimento quando, nesses quadros clínicos, surgirem erros
similares aos verificados nos diversos tipos de dislexia adquirida.

A escrita

Neste contexto, conta sobretudo tomar a escrita como composição,


pois é esta forma de escrita e não a decifração que abre caminhos mais
propícios a uma análise psicolinguística aprofundada do que representa o
processo verbal em debate.
O que a escrita/composição comporta de processo cognitivo é visível
na sua subdivisão nos três conhecidos processos cognitivos: a planificação,
a tradução e a revisão (Mccutchen; 2006, p. 115), que ainda apresentam,
por sua vez, subprocessos (Hayes; Flower, 1980; Flower; Hayes, 1981).
Quando a escrita é tida como um processo/movimento, deixa de ser
vista como um simples produto assente em estágios rígidos (“pre-writing”,
“writing”, “re-writing”) (Flower; Hayes, 1981, p. 367), cuja ordem teria de ser
respeitada no momento da sua concretização (Hayes; Flower, 1986; Rohman,
1965). Foi a teoria do “produto” ou da “retórica corrente tradicional” que
colocou a ênfase no produto composto em detrimento do processo de com-
posição (Matsuda, 2003).
Na década de setenta do século pretérito, Sommers (1979) questiona-
va já os modelos de processo de escrita que se organizavam por etapas/
estágios/atos independentes. A mesma autora queixava-se, ainda, da pouca
atenção conferida à revisão em virtude de os modelos do processo de es-
crita que vigoravam estarem presos a um movimento linear da escrita. E
chega mesmo a escrever: “What this movement fails to take into account
in its linear structure – “first... then... finally” – is the recursive shaping of
thought by language; what it fails to take into account is revision” (Sommers,
1980, p. 378). Esta autora não via razão para a revisão ser supérflua no pro-
cesso da escrita, na medida em que está em apreço um processo que acentua
a ideia de que o movimento recursivo traduz melhor o processo inerente à
escrita do que um movimento que seja linear.
Na verdade, quando está em discussão a escrita, não é o produto por si
só que deve suscitar interesse, mas o processo que comporta, resultando a

97
revisão, enquanto processo que a integra, somente menorizada se for tida
como um ato isolado, não criativo, uma autópsia, em suma, um ato desti-
nado a limpar a prosa (ver Sommers, 1979).
Será justo convocar, neste momento, o testemunho de Dethier em re-
lação ao papel que Donald Murray teve, já no início da década de setenta
do século passado, na defesa da escrita como processo. No dizer de Dethier
(2013), Donald Murray, ao colocar o foco na escrita como processo e não
como produto, terá marcado, com a sua publicação intitulada Teach writing
as process, not product (Murray, 1972), o “unofficial birth of the writing
process movement” (Dethier, 2013, p. xiv), tornando-o, em conformidade
com a mesma fonte, a voz do movimento.
Nesta mesma linha, Crowley (1977) adverte que o processo da escrita
ideal corresponde a um movimento recursivo que vai da síntese à análise.
Existe uma parte do processo da escrita que se prende a um trabalho de
busca de uma melhor relação entre o escritor e o assunto a tratar e uma
outra parte, mais analítica, que compreende a revisão ou alterações estilís-
ticas. Remata, então, Crowley o seu pensamento com a seguinte passagem:
“The whole process is not linear; it moves forward and backward between
synthesis and analysis” (Crowley, 1977, p. 168). Em resposta a Crowley,
Sommer, por sua vez, acrescenta: “The composing process is neither linear,
nor recursive, but must be by its very nature both linear and recursive”
(1978, p. 210). O grau de experiência de escrita dos que escrevem/com-
põem também se repercute no modo como veem e tiram partido dos três
processos acima assinalados (planificação, tradução/redação e revisão).
Ao encontro do exposto vem o que é relatado no século presente, num
estudo da autoria de Fabretti e Zucchermaglio (2002), acerca do papel con-
signado no processo de escrita à revisão (14%), à planificação (36%) e à
redação (50%) por estudantes universitários italianos. Ressaltam das per-
centagens indicadas a pouca atenção que é dedicada à revisão e sobretudo
a preocupação que despertam nos estudantes, em especial, os aspectos su-
perficiais dos textos.
Em relação à revisão, que é porventura o processo mais exigente da
escrita, Sommers (1980) adianta que os estudantes viam nela uma ativi-
dade destinada a dar outra ordem às palavras, sem se ocuparem com a

98
sua representação conceptual. Quanto aos que detinham mais experiência
de escrita, esses já revelavam uma preocupação com o todo, contrariando
qualquer modelo linear.
Não se suponha, contudo, que esta diferença não se verifica nos reviso-
res profissionais. Também existem diferenças entre os modos de rever dos
revisores mais novos e dos mais experientes. Em períodos de tempo idên-
ticos, seguindo estudos realizados, os revisores com mais de doze anos de
prática fazem quase três vezes mais modificações do que os que possuem
menos de quatro anos de experiência (Laflamme, 2009).
Sommers (1980) dá um relevo particular à revisão porquanto, na sua
opinião, será ela e não a planificação ou a redação que leva quem escre-
ve/compõe a criar/descobrir o significado à medida que vai escrevendo.
Faigley e Witte (1981) sublinham também os efeitos da revisão da escrita
no significado, apelando para as necessidades e os desejos da audiência, e
para a importância de se criar distância em relação ao que se está a redigir
antes de se reler e partir para a revisão.
A referência à importância de se propiciar um distanciamento relati-
vamente ao que se está a redigir, para depois se voltar a ler com o intuito de
rever e até de reescrever, evocada por Faigley e Witte (1981), pode remeter
para a teoria da citação da escrita (“The quotation theory of writing”) de
Olson e Oatley (2014). Respeitando essa teoria, a distância necessária ao
trabalho de releitura e de reescrita que anda associada à revisão, só é pos-
sível quando se aceita a língua como algo de mencionado, de “citado”, de
colocado entre aspas, e não como algo que está a ser usado.
Em consonância com Olson e Oatley (2014), só uma língua tornada
objeto por via da citação é que permite olhar o material do exterior e re-
fletir sobre ele através do uso metalinguístico da língua. Dessa forma, na
senda da fonte aludida, tudo o que se encontra citado distingue o que é
significado no texto daquilo que o autor quis significar, gerando-se, assim,
um desfasamento temporal que propicia qualquer interpretação ou inter-
venção menos comprometida.
Para os autores aduzidos, com base nesta forma de ver a escrita, os es-
critores são livres de agir sobre a expressão citada na qualidade de artefato
sujeito à revisão. Acrescentam ainda que os leitores, por seu lado, passam a

99
estar isolados da intenção original do escritor e a dispor de uma estrutura
linguística que pode ser usada ou não livremente em função dos objetivos.
Interessa, nesta oportunidade, notar como Olson e Oatley (2014), reto-
mando a ideia de revisão de autores como Hayes e Flower (1986) e Bereiter
e Scardamalia (1987), avançam que esta demanda um ajustamento do con-
teúdo à forma retórica, o que significa uma obediência às convenções do
gênero em análise. Adiantam, ainda, que o escritor recorre, então, a um
conhecimento metalinguístico que se coadune com o enquadramento re-
tórico exigido pelo gênero escolhido e usa-o para recuperar e organizar a
informação. Dito diferentemente, como advertem Olson e Oatley (2014), a
revisão traduz-se em “work on paper” (p. 15), no sentido de interagir com
uma forma escrita que já se distanciou das intenções do escritor.
Sobressai, pois, a ideia de que o que se encontra escrito se apresenta
sob forma de objetos isolados que foram “citados”, registrados, e já não em
fase de uso. Trata-se da escrita como uma tecnologia capaz de tornar a
linguagem “off-line” (Olson; Oatley, 2014, p. 4), com tudo o que isso pode
querer dizer em termos de manipulação desse material por parte do autor
e do leitor.
Registra-se aqui, na oportunidade, com recurso a Olson e Oatley
(2014), a forma como Marcel Proust captava a relação entre a forma e o
conteúdo:
Marcel Proust [...] captured the relation between form and content
in his perspicacious statement that good poets are those for whom
“the tyranny of rhyme” forces them “into the discovery of their finest
lines [...] (Olson; Oatley, 2014, p. 15).
A respeito das autobiografias das participantes no “Nun Study”,
Snowdon (2002), depois de ter ouvido a explicação de Susan Kemper
acerca da relação, por um lado, da densidade de ideias com a capacida-
de de processamento da linguagem e, por outro lado, da complexidade
gramatical com a memória operatória, perguntou-lhe como era possível
imaginar um escritor como Ernest Hemingway, conhecido pelas suas
frases curtas, na análise proposta. A resposta de Susan Kemper foi a
seguinte: “I have never claimed that complex sentences or idea-dense
sentences make for good literature” (Snowdon, 2002, p. 109).
100
O trabalho árduo que acompanha a revisão, executada a partir de
sucessivas leituras críticas prévias, comporta uma força recursiva tal que
não deixa, todavia, inalteradas nem a planificação, nem a redação. Nesta
inter-relação em nível dos processos cognitivos da escrita, gera-se, como
é natural, um labor psicolinguístico entre a escrita e o pensamento que
Donald Murray (2013) atesta com toda a clarividência na seguinte passa-
gem: “writing [...] is an effective way of testing what we know and how we
think about what we know. Writing is the most disciplined and revealing
form of thought” (p. 2).
A ideia de olhar a escrita/composição como um processo cognitivo,
individual, expressivo, que abarca as fases atrás listadas, e também como
um pós-processo que traduza um “social turn” (Atkinson, 2003a; 2003b;
Matsuda, 2003) leva a que se examine a escrita como um processo não
somente cognitivo, mas já sociocognitivo, em que a mente, o corpo e o
mundo ecossocial funcionam de modo integrado e não como fenômenos
separados (Nishino; Atkinson, 2015). Acontece que se podem ver já na pré-
-escrita ligações com o Outro, podendo esse Outro corresponder também
às fontes, elevando, assim, qualquer processo cognitivo a sociocognitivo.
Não se deve, por isso, associar a revisão, tal como é tão bem retratada
por Donald Murray (2013), a um mero processo cognitivo sem ligações
com o mundo e com o que este nos transmite, sobretudo quando o au-
tor pensa na sua audiência e na forma de tornar o que escreve ajustado à
mesma. Para tal, o autor tem mesmo de conhecer o Outro e de saber que
informação, depois da pesquisa realizada, o satisfará ou não.

Breves notas conclusivas

Não moveu o autor deste texto equacionar os pressupostos cognitivos


que permitem olhar para os começos da leitura e da escrita como um pro-
cesso com características fortemente psicolinguísticas ou mesmo, seguindo
o pensamento de Slama-Cazacu (1979), sócio-psicolinguísticas, por nele
se poderem já ver “as determinantes sociais que aí operam” (p. 62). Seriam
exemplo dessas determinantes sociais tudo o que se conjuga para preparar
a instalação, no bom momento, da literacia emergente e a eventualidade de

101
estarem por detrás dessa instalação o que Olson (1994, p. 253) designa por
“bookish parents”.
Essa fase não foi, todavia, incorporada neste texto, se bem que fosse dig-
na de o ter sido por razões de ordem também neurológica (ver Fitzakerley,
2015). Julgou-se, contudo, mais pertinente partir para uma abordagem psi-
colinguística centrada na leitura enquanto processamento e na escrita como
composição. Foi selecionada a escrita como composição por esta avivar com
mais intensidade a existência de um diálogo firmemente vigoroso entre a
esfera das ideias e a das palavras usadas para as concretizar.
Teve este texto como principal objetivo, à luz da PL, após uma rápida
passagem pela sua gênese, não só desmontar, com base na patologia, o
que, à primeira vista, se revela opaco no processamento verbal, nomeada-
mente na leitura, mas também fazer ressaltar a leitura e a escrita enquanto
processos verbais que visam criar e recriar, na leitura, e criar e originar,
na escrita, recorrendo à terminologia de Emig (1977), quando está em
questão o que representa o processamento destas habilidades por parte de
quem as pratica.
A linearidade do processamento verbal obrigou a que se tivesse op-
tado por invocar uma das habilidades em primeiro lugar, tendo a escolha
recaído sobre a referência à leitura antes da menção à escrita, não obstante
ambas terem de ser concebidas como um todo feito de cumplicidades e de a
escrita tender a destacar-se, quer em virtude do seu forte envolvimento no
plano neuro-sócio-psico-linguístico, quer porque representa, sem dúvida,
uma mais-valia em várias vertentes (Pinto, 2014).
Também foi dado, no momento achado oportuno, um certo realce à
“teoria da citação da escrita” de Olson e Oatley (2014), porque se acredita
que traz contributos relevantes para que se sinta a importância de distan-
ciar os que leem e os que escrevem do artefato criado pela escrita, visto de
modo isolado, “off-line”, na qualidade de referência mencionada, posição
que faz pensar no efeito de distanciamento (“Verfremdungseffekt”) de
Bertolt Brecht, e que, nesta situação particular, confere uma maior aber-
tura a uma abordagem psicolinguística reflexiva da leitura e da escrita por
parte dos seus atores. Leitores e escritores vivenciam, dessa forma, com
mais lucidez os recursos usados nos processos de (re)criar e de originar

102
(Emig, 1977) em que participam e podem, jogando com as implicações
que se geram entre a leitura e a escrita, tomar consciência do que se passa
entre os fatos da linguagem e os processos psicológicos a eles vinculados,
ou melhor, do que é, afinal, o objeto da PL enquanto ciência explicativa.

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106
5
O papel do professor no processo
da construção de sentido na leitura

Otília Lizete de Oliveira Martins Heinig

Ler é um acontecimento que marca a vida de todos nós, pois mudamos


a forma de olhar e compreender o mundo. Para que isso ocorra, não basta
estarmos expostos a materiais escritos, ainda que sejam eles que nos des-
pertem o desejo de decifrar o que ali se apresenta. Portanto, partimos do
princípio de que ler é um processo de ensino e de aprendizagem aliado aos
eventos e práticas de letramento escolares e não escolares.
O objetivo deste texto é refletir sobre o papel do professor no ambiente
de aprendizagem considerando o leitor, nesse caso o aluno, a sala de aula,
o contexto, o texto e as atividades que são realizadas. Esta reflexão tem
como inspiração o texto Reading as a Meaning-Construction Process: the
reader, the text, and the teacher, de Ruddell e Unrau, escrito em 1994, e
chegado a minhas mãos em 2000, por indicação da professora Dra. Loni
Grimm-Cabral na UFSC. Depois de mais de dez anos, o texto é retomado
para nova leitura e, consequentemente, novas atribuições de sentido, a fim
de mobilizar conhecimentos, saberes e fazeres acerca do ensino da leitura.
Tal movimento reflexivo se deve ao fato de haver ainda, nas escolas, crian-
ças e jovens que não leem ou que leem, mas não compreendem o texto, o
que leva a um questionamento sobre o papel do professor no processo de
ensino da leitura.
Nesse viés, há alguns pontos a considerar. A leitura é um processo de
construção de sentidos, ou seja, há uma ação do leitor sobre o lido, que lhe
permite atuar num movimento de ir e voltar ao texto numa relação com o
dito pelo autor, não ficando apenas na extração do significado, mas inte-

107
ragindo sobre/com o escrito a fim de relacionar o que se apresenta, a sua
composição, a escolha lexical, a ordem dos argumentos ou informações. O
sentido que o leitor constrói exige dele ações sobre o dito e o não dito.
Considerando a perspectiva teórica aqui adotada, são componentes
principais desse processo: texto e contexto da sala de aula, leitor e professor,
os quais serão apresentados e relacionados ao longo do capítulo. Inicial-
mente, situa-se o leitor quanto ao ambiente de aprendizagem e aos concei-
tos de leitura para, a seguir, refletir acerca do que se sabe sobre o leitor para
que haja uma ação educativa no ensino da leitura. Também é apresentado
o uso e o controle do conhecimento pelo leitor e pelo professor para que se
possa perceber as proximidades entre ambos e as especificidades de cada
um. A discussão maior fica para o final, quando se reflete qual o papel do
professor no ensino da leitura e de que maneiras as práticas em sala de aula
auxiliam o aluno a construir sentido.

Palavras de ancoragem

Para a reflexão que aqui se propõe, é preciso destacar o ambiente de


aprendizagem, pois é nele que ocorre o processo de negociação de sentidos,
isto é, os sentidos são criados como resultado da interação entre leitor, tex-
to, professor e a sala de aula. Além disso, o ambiente de aprendizagem tem
forte influência sobre a motivação dos alunos para se engajarem na leitura
a fim de agirem sobre o texto para que ocorra a sua compreensão, o que
pode ocorrer apenas pela ação do leitor ou com a mediação de um leitor
experiente. Nessa perspectiva, destaca-se o papel do professor como o que
seleciona ou indica os textos para leitura, bem como é responsável pelas
tarefas que antecedem ou precedem a leitura do texto; ele assume o papel
crítico na orquestração e negociação dos sentidos do texto no contexto da
sala de aula, sendo este espaço o da interação. Ainda neste ambiente de
aprendizagem, é preciso considerar outros aspectos: a tarefa, a origem da
autoridade e os significados socioculturais, ou seja, é preciso ler mais que
o texto.
Portanto, no ambiente de aprendizagem ocorrem as relações entre
leitor, professor e sala de aula, o que exige conhecimento prévio sobre a

108
comunidade na qual se atua, conhecimento científico no que se refere aos
aspectos linguísticos dos textos a serem analisados, compreensão sobre
como ocorre o processo de leitura e conhecimentos sobre procedimentos
didáticos e pedagógicos para o ensino da leitura. Isso sinaliza que a tarefa
de ensinar a ler não pode ser feita por qualquer profissional e requer uma
metodologia desenvolvida pelo professor para atuar em seu ambiente de
aprendizagem. Diante desse cenário, uma questão se apresenta para a refle-
xão dos professores: como ocorre em sala de aula o processo que envolve
o contexto do leitor, a escolha do texto e a atuação do professor? Como o
professor se percebe nesse processo?
Antes de refletir sobre a leitura em sua perspectiva educacional, é pre-
ciso apresentar pontos de vista sobre a compreensão de leitura adotada
neste texto. Para isso, apresentam-se, inicialmente, perspectivas teóricas de
alguns autores para, posteriormente, travar um diálogo entre eles.
Morais (1996, p. 112), ao responder à pergunta “o que é a leitura?”, títu-
lo de uma das seções de seu livro, sintetiza: “a leitura é um modo particular
de aquisição de informação”. Na compreensão de Goodman (1971, p. 260):
A leitura é um processo seletivo que envolve o uso parcial das mí-
nimas pistas de linguagem disponíveis as quais são selecionadas do
input perceptual com base na expectativa do leitor. Conforme a in-
formação parcial é processada, as decisões provisórias são tomadas
para serem, então, confirmadas, rejeitadas ou refinadas à medida que
a leitura progride. De forma mais simples, pode-se dizer que a leitura
é um jogo de adivinhação psicolinguística que envolve uma intera-
ção entre pensamento e linguagem1.
Leffa, ao aproximar as diferentes definições de leitura, faz um alerta
quanto à incompletude dos modelos adotados inicialmente:
Ao definirmos a leitura quer como um processo de extração de sig-
nificado (ênfase no texto) quer como um processo de atribuição de
significado (ênfase no leitor), encontramos, em ambos os casos, uma
1 Reading is a selective process. It involves partial use of available minimal language cues selected from
perceptual input on the basis of the reader’s expectation. As this partial information is processed, tenta-
tive decisions are made to be confirmed, rejected, or refined as reading progresses. More simply stated,
reading is psycholinguistic guessing game. It involves an interaction between thought and language.

109
série de problemas mais ou menos intransponíveis. A complexidade
do processo da leitura não permite que se fixe em apenas um de seus
polos, com exclusão do outro. Na verdade, não basta nem mesmo so-
mar as contribuições do leitor e do texto. É preciso considerar tam-
bém um terceiro elemento: o que acontece quando leitor e texto se
encontram. Para compreender o ato da leitura temos que considerar
então (a) o papel do leitor, (b) o papel do texto e (c) o processo de
interação entre o leitor e o texto. (1996, p. 17)
Essas compreensões sobre leitura ratificam a discussão que estamos
iniciando neste texto, na qual a leitura é considerada um processo intera-
tivo para a construção de sentidos, conforme já anunciado, que deve levar
em conta o ambiente de aprendizagem e seus elementos constitutivos, es-
pecialmente quando se quer a aplicação desses conhecimentos teóricos no
espaço educativo.
Ao trazer a discussão sobre leitura para a sala de aula, considerando
os seus atores, deseja-se, inicialmente retomar alguns dos pressupostos,
apresentados por Ruddell e Unrau (1994), decorrentes de pesquisas que
observaram a interação professor-aluno em sala de aula. Ressalta-se que os
pressupostos foram revisitados considerando o contexto histórico e social
no qual a leitura é compreendida no presente texto.
O primeiro pressuposto afirma que os leitores, mesmos os iniciantes,
são construtores ativos de teoria e testadores de hipóteses. Por isso, já na
educação infantil é importante um planejamento que inclua a leitura em
sua rotina, levando a criança a compreender as diferentes funções que a
mesma tem. Além disso, o professor dos pequenos ou dos anos iniciais
pode lançar mão de estratégias de leitura, orientando o leitor a adotar ati-
tudes e comportamentos para facilitar a construção de sentidos durante a
leitura do texto, ainda que esta seja feita para ele, pois, quando for feita por
ele, as estratégias já farão parte de sua ação leitora.
O desempenho na linguagem e na leitura está diretamente relacionado
com o ambiente do leitor, por isso é importante conhecer outros ambientes
diferentes do escolar. Nesse aspecto, consideram-se as agências de letra-
mento que são espaços sociais ou instituições situadas em um tempo, em
uma cultura e onde se pode aprender a ler e a escrever. É nesses espaços que
110
os eventos de letramento ocorrem, e, observando-os, é possível depreender
os valores e crenças que circulam para compreender os sentidos que os
participantes atribuem tanto à leitura como à escrita.
A força por trás do desempenho linguístico e do crescimento em leitu-
ra é a necessidade do leitor de obter sentido. Esse é o terceiro pressuposto,
o qual conduz a três aspectos: razões para ler; interlocutores; escolhas sobre
o que ler. Diante deles, uma série de questionamentos podem ser realizados
pelos atores educacionais: ler para quê? Ler para quem? Como esses dois
pontos são considerados na leitura? Quem escolhe o texto? O que se faz
com o texto? E, por fim, qual o papel do professor nesse processo?
O desenvolvimento da linguagem oral e escrita, que afeta o processo
do pensamento, contribui diretamente para o desenvolvimento das capaci-
dades de leitura. Também diante desse pressuposto algumas reflexões po-
dem ser apresentadas. Por exemplo, no planejamento do professor, como
oralidade e escrita são articuladas em relação à leitura? Para além disso,
como se avalia essa relação no processo de aprendizagem considerando a
especificidade de cada eixo (oralidade, leitura e escrita) e seus processos?
Percebe-se, então, que, ao planejar, o professor precisa levar em conta as ca-
pacidades a serem desenvolvidas e as formas de avaliar como isso ocorreu
ao longo do processo.
Os leitores constroem sentido não só a partir do texto impresso, mas
também a partir de eventos, fala e comportamento, à medida que leem
gestos, imagens, símbolos, sinais que estão embutidos no ambiente social
e cultural. Segundo Grotta (2001), a figura do professor como leitor para
seus alunos é uma das experiências escolares mais significativas no pro-
cesso de formação destes como leitores. Portanto, é preciso sensibilidade
docente também em relação à leitura. Para isso, é preciso que o professor
reflita: como se revela leitor a seus alunos; como os livros são indicados;
que atividades de leitura são realizadas e como elas estão relacionadas ao
contexto dos alunos.
O penúltimo pressuposto circula entre leitor, textos e sentidos, pois os
textos são reinventados constantemente, uma vez que os leitores constro-
em sentidos diferentes para eles em um círculo hermenêutico. Os sentidos
para os textos são dinâmicos e são mobilizados à medida que textos e con-

111
textos mudam e interagem. Assim, diante de um texto, o professor pode se
perguntar quantas leituras são possíveis e, partindo dessa reflexão, pode
convidar o leitor a ler e reler o texto, levando a uma experiência que trans-
cende as atividades escolares nas quais, na maioria das vezes, um texto tem
uma leitura e uma interpretação.
Por fim, é preciso considerar que o papel do professor é crítico na ne-
gociação e facilitação da construção de sentido do texto e do contexto so-
cial da sala de aula. Nesse pressuposto, vale destacar dois pontos: as ações
em sala de aula e a formação inicial e continuada, que estão articulados en-
tre si, uma vez que, para ser um negociador de sentidos, o professor precisa
ter formação para tal. Não cabe aqui uma análise dos currículos dos cursos
de licenciatura, mas um olhar atento para esse espaço investigativo a fim de
que as pesquisas possam revelar que professor está sendo formado e como
essa formação teórica e didática se reflete nas ações da sala de aula, o que
inclui a motivação, as propostas a partir da leitura do texto, as estratégias
mobilizadas, a seleção dos textos, a avaliação do processo.
Até aqui, foram apresentados alguns pressupostos para o ensino da leitu-
ra com base na compreensão de que os sentidos são construídos em um pro-
cesso interativo no qual o professor precisa conhecer o ambiente de aprendi-
zagem, considerar os sujeitos que dele participam, ter domínio teórico sobre
leitura, antes de se aventurar a ingressar nesse universo educacional.

O leitor: o que sabemos sobre ele?

Responder a essa questão não é tarefa fácil ou simples e requer de


quem ensina uma pergunta inicial: como leitor é definido? A compreensão
do que é um leitor é fundamental para que se possa pensar em ações didá-
ticas. Além disso, é preciso considerar que o leitor não está sozinho nesse
processo, pois se forma em diferentes ambientes leitores, tem experiências
de vida, crenças, valores e conhecimentos. Portanto, o professor está diante
de um sujeito que traz para a sala de aula seus sentidos sobre o que é ler e
como se faz. Também ele, ao longo de sua vida e atuação docente, encon-
trou diferentes leitores, o que irá lhe permitir conhecer melhor o grupo
com que atua, levando-o a compreender que se lê para construir sentidos.

112
O leitor, em seu ambiente de aprendizagem, mobiliza crenças e conhe-
cimentos prévios, pois a motivação, o contexto, os valores influenciam, por
exemplo, na aquisição de novos conhecimentos e na interpretação de textos.
Mas o que as crenças e conhecimentos prévios incluem? As condições
afetivas e as cognitivas. No que diz respeito às primeiras, nelas estão pre-
sentes a motivação para ler; os valores e as crenças socioculturais sobre
ler e sobre a escola. Já, no que tange às cognitivas, estão incluídos os se-
guintes aspectos: conhecimento linguístico; esquema de análise de palavra;
estratégia de processamento textual; compreensão sobre a sala de aula e a
interação.
As condições afetivas influenciam na decisão de ler considerando o
que ler; como a leitura ocorre e os objetivos. Para compreender melhor esse
componente do modelo aqui em discussão que representa a interação entre
professor e leitor, são destacadas quatro condições afetivas: a) motivação
que inclui as condições que promovem a intenção de ler e está ligada às ex-
periências bem-sucedidas vividas pelo leitor; b) atitude para com a leitura
e com o conteúdo, ou seja, como o indivíduo vê o ato de ler e o tema, o que
influencia o leitor a continuar ou não. É preciso considerar também que há
ações que ocorrem antes, durante e depois de ler, as quais são influenciadas
pela natureza do texto; c) posicionamento do leitor que abrange o foco na
atenção e o propósito da leitura, pois o leitor tem maneiras de ler que são
influenciadas pela natureza do texto e pelo desejo de interação com ele.
Neste ponto, vale questionar como a escola atua; d) valores socioculturais
e crenças que apontam para integração entre família e escola, sendo, nesse
cenário, papel do professor integrar os diferentes conhecimentos, confor-
me já se mencionou anteriormente.
As condições cognitivas interagem com as afetivas e têm um papel vital
no processo da leitura. Para compreender as cognitivas, é preciso abordar o
papel que três tipos de conhecimento exercem: 1) o declarativo inclui o “o
quê” do leitor, ou seja, o que conhece de fatos, objetos, conceitos, eventos,
linguagens, entre outros sobre o mundo; 2) o procedimental consiste no
“como é?”, relacionado a estratégias para uso e aplicação do conhecimen-
to); 3) o condicional está relacionado ao “quando” e “por que”, incluindo
o contexto e as intenções, é usado para compreender o contexto social no

113
qual a leitura tem lugar. Esses diferentes conhecimentos do leitor são es-
senciais para a construção do sentido e estão armazenados em estruturas
denominadas esquemas, os quais incluem: conhecimento da língua e da
linguagem; análise da palavra; estratégias de processamento de texto; es-
tratégias metacognitivas que dizem respeito à monitoria do leitor sobre o
texto lido; conhecimento da sala de aula e dos padrões de interação social
entre alunos-leitores e professor; conhecimento pessoal e de mundo que
afeta os efeitos de interpretação.
Desses aspectos enumerados, optou-se por refletir acerca de três de-
les. Por ser a leitura um processo linguístico, essa requer conhecimento
linguístico no que concerne à construção do sentido. Esse conhecimento
do leitor consiste nas formas como o conhecimento fonológico, o sintático
e o lexical são representados em esquemas. Já a análise da palavra inclui
a alfabetização, na qual há quatro fases a serem consideradas: logográfi-
ca, transição da logográfica para a o início da alfabética, alfabética e orto-
gráfica. Estar plenamente alfabetizado é condição para ser um leitor que
constrói sentidos. Por fim, há as estratégias de processamento de texto que
estão relacionadas ao conhecimento sobre a organização textual, por exem-
plo, como o leitor interpreta uma narrativa e um texto expositivo, o qual
não será abordado nesse momento. No caso das narrativas, deve-se levar
em conta a “gramática de histórias” que, segundo Scliar-Cabral (1991), são
teorias que procuram dar conta de como o conhecimento de mundo é re-
presentado na memória de modo a explicar a forma como as narrativas são
compreendidas. A experiência de leitura de narrativas leva o leitor a desen-
volver um senso de modelo de história que lhe permite fazer predições e ter
expectativas, o que auxilia na construção do sentido e na compreensão das
narrativas, pois o esquema já está internalizado.
Considerando que há um processo que envolve a mobilização e o con-
trole de conhecimentos que envolvem também as crenças e conhecimentos
prévios tanto do leitor como do professor, na seção que segue, apresenta-
mos um esquema que ilustra como esses diferentes aspectos se inter-rela-
cionam.

114
Uso e controle do conhecimento pelo leitor e pelo professor

O esquema abaixo é uma releitura de dois esquemas apresentados se-


paradamente por Ruddell e Unrau (1994; p. 1002; 1024) com destaque para
as ações do leitor e do professor no processo que leva à construção do sen-
tido tanto para a leitura do texto como para a ação docente.

Figura 1: Modelo de uso e controle de conhecimento

USO E CONTROLE DO CONHECIMENTO

Processo de construção do Processo de tomada de


conhecimento decisão instrucional
LEITOR-ALUNO PROFESSOR

ž
motivação/interação ž Estabelecer objetivos intenção instrucional

ž
ž

ž conh. do processo de
estratégias ž Planejar e organizar
construção textual
ž

Construir sentido
ž
Construção de estratégicas
(processo interativo)
ž
ž
ž
ž

ž
ž

Monitor e leitor executivo Monitor e professor executivo


ž

ž
ž
ž

ž
ž

Representação Representação
textual instrucional

Fonte: A autora.

O que se apresenta aqui é um modelo de processamento que conduz


a um modelo de resultados de processos expressos que dizem respeito à
construção de conhecimento para o leitor e de tomada de decisão instru-
cional para o professor. Cada um desses atores é também influenciado por
suas crenças e conhecimentos prévios que apontam para o que está arma-
zenado e que interfere nos seus usos e controles do conhecimento.
115
Como se pode ver na figura 1, tanto o leitor-aluno como o professor
estabelecem, no início do processo, o que irá guiar e controlar suas ações.
O primeiro, que já sabe o que gosta de ler, precisa ser convidado à leitura,
o que demanda ter uma intenção ou motivação para tal. Conforme Solé
(2009), há diferentes objetivos que levam à leitura e delas decorrem as es-
tratégias das quais lança mão o leitor, pode-se ler para: obter uma informa-
ção; seguir instruções; aprender; revisar um texto escrito seu ou de outro
autor; comunicar um texto a um interlocutor; praticar a leitura em voz alta;
verificar o que compreendeu do texto; ler por prazer. Quanto ao professor,
em seus objetivos há intenção instrucional, a qual é moldada e influenciada
pelas condições do ambiente de aprendizagem.
Ao planejar e organizar, durante o processamento, diferentes ações
são realizadas pelo leitor e pelo professor. Enquanto o primeiro opta por
estratégias para construir sentido tendo em vista que a leitura é um pro-
cesso interativo, e lança mão da representação textual que foi construída
em suas experiências anteriores; o outro usa o conhecimento do processo
de construção textual para poder usar as estratégias mais eficientes para o
ensino da leitura, considerando a sua representação instrucional. Ao fa-
zer isso, ambos mobilizam a monitoria que é um processo metacognitivo
que consiste em acompanhar de uma forma reflexiva, nesse caso, a leitura.
Quanto ao leitor, a representação textual inicia na sua mente, reflete a in-
terpretação do sentido do aluno, influenciado pelo texto e por outros fatos
como a discussão entre pares ou com o professor. A representação textual
é monitorada pelo monitor e leitor executivo. Os conhecimentos e crenças
prévios são usados para confirmar, rejeitar ou suspender julgamentos de
novas interpretações, o que leva à construção do sentido pelo leitor de for-
ma interativa, pois é um processo que se constitui de uma série de fatores
como objetivos, conhecimento linguístico, plano de ação. Nesse processo,
o professor é responsável pela representação instrucional e o sentido cons-
truído por ele pode ser diverso do construído pelo leitor-aluno.
Decorrente desse processo, há os resultados da construção de sentido
que indicam a compreensão criada por cada leitor através do texto e da
interação em sala de aula: desenvolvimento do conhecimento léxico-se-
mântico (novas palavras, seu sentidos e usos); interpretação do texto que é

116
o objetivo principal para o leitor; produção de respostas escritas que pos-
sibilitam sintetizar e clarear o lido; discussão decorrente das respostas e do
conhecimento base; aquisição de conhecimentos; mudanças de motivação,
por exemplo, continuar lendo sobre o assunto que interessou; mudanças
de valores e crenças uma vez que experiências pessoais com livros podem
influenciar o leitor quanto a seus sentimentos, atos e formas de perceber o
mundo.

O professor: seu papel e suas ações no ensino da leitura

Se o professor é aquele que engaja o aluno em um processo cooperati-


vo no qual ambos refinam seus esquemas e conhecimentos, não é seu pa-
pel prover as respostas definitivas, mas levar o aluno a construí-las, agindo
como seu mediador.
Assim como o leitor, o professor tem seus conhecimentos e crenças
prévios. No que tange às condições afetivas, baseadas em opiniões, convic-
ções, suposições, estão: a) motivação para engajar os alunos, a qual é fun-
damental para o desenvolvimento da intenção de ler, por isso o professor
deve criar um ambiente de aprendizagem que leve os alunos a participarem
do processo, deve também ajustar o contexto, a dificuldade, os interesses
dos alunos e a habilidade de ler; b) o posicionamento instrucional que in-
clui os objetivos instrucionais e pedagógicos, moldando o propósito leitor
e o foco de atenção; c) valores e crenças socioculturais do professor e do
leitor que precisam ser avaliados pelo professor, o qual deve considerar a
negociação e construção de sentido com a turma.
Além das condições afetivas, existem as cognitivas que consistem no
conhecimento do processo de construção de sentidos do leitor, o que leva
à negociação em sala de aula. Assim como já discutido no caso do leitor,
também o professor mobiliza os conhecimentos declarativo, processual e
condicional. Para a sua ação didática, o trabalho docente envolve outros
aspectos, entre eles: a) conhecimento de leitura e áreas de conteúdo, o qual
é adquirido em experiências acadêmicas aliadas ao conhecimento pessoal
e de mundo, o que pode ser exemplificado pelas formas como se lê um tex-
to narrativo e um expositivo; b) estratégias de ensino que dizem respeito

117
a saber selecionar, observar e analisar as estratégias usadas; c) estratégias
metacognitivas2 das quais o professor lança mão para orientar o aluno na
leitura do texto, chamando atenção, por exemplo, para recursos linguísti-
cos e formas de escrever do autor e os sentidos decorrentes disso; d) co-
nhecimento pessoal e de mundo, os quais são adquiridos fora da escola e
diferem dos conhecimentos acadêmicos. Entre os resultados da tomada de
decisão instrucional, estão a percepção do professor sobre as compreensões
dos leitores e as próprias compreensões do professor e suas novas tomadas
de decisão para a ação pedagógica.
Analisar a interação de professor e leitor, no ambiente de aprendiza-
gem, sob o ponto de vista teórico aqui adotado, permite também reflexões
acerca das práticas que cada professor, leitor deste texto, realiza ou pode
promover em sala de aula e das novas pesquisas que precisam ser desen-
volvidas a fim de que se compreenda o ambiente de aprendizagem, seus
atores, as ações e a mobilização teórica. Há, então, um diálogo entre prática
e pesquisa a ser trazido para o centro das discussões sobre o ensino e a
aprendizagem da leitura. Para auxiliar nessa reflexão, trazemos as implica-
ções que Ruddell e Unrau (1994) apresentaram em seu texto, mas com um
olhar para as experiências vividas pela autora deste capítulo para que se
possa efetivamente ver os pontos que aproximam a prática de sala de aula
e a pesquisa.
Considerando que a ativação dos conhecimentos prévios e crenças do
leitor relativos ao texto é muito importante para a efetiva construção de
sentido, cabe ao professor, ao selecionar o texto e planejar sua aula de leitu-
ra, ter conhecimento do grupo com o qual atua. Diante dessa necessidade,
dois pontos podem ser levados em conta: perfil leitor da turma e material
de leitura utilizado, incluindo o livro didático. Para exemplificar, trazemos
uma experiência de uma professora de ensino médio que, para conhecer os
alunos com quem iria atuar pela primeira vez no primeiro ano do ensino
médio, preparou um instrumento para coleta de informações sobre a lei-
tura dos alunos com base na proposta de Souza, Corti e Mendoça (2012).

2 Brown (1980) define estratégias metacognitivas como o controle deliberado e consciente das ações
cognitivas próprias do indivíduo: predizer, checar, monitorar, testar a realidade, coordenar e controlar
tentativas deliberadas para estudar/aprender/resolver – problemas/desafios.

118
O mesmo lhe foi de grande valia para o planejamento das aulas e pode ser
inspiração para outros instrumentos e professores que querem conhecer o
contexto leitor de seus alunos. Depois de aplicado o questionário aberto, a
professora tabulou os dados, apresentou aos demais professores que atua-
vam na mesma turma para que houvesse uma ação coletiva e interdiscipli-
nar. Além disso, socializou com seu grupo de formação continuada GPLP3
a fim de que outros professores pudessem avaliar o instrumento e discutir
os dados. O que se percebe nessa ação docente é uma aproximação entre
pesquisa e prática, o que faz com que o ambiente de aprendizagem seja
compreendido em suas diferentes formas de ler e entender a leitura. Outra
questão que muitas vezes surge é como trabalhar com o livro didático. Isso
se deve pelo fato de se ter uma obra para todo o grupo, mas este ser forma-
do por leitores com diferentes conhecimentos para dar conta de ler o que se
propõe. Experiências docentes revelaram que textos longos, quando apre-
sentados a leitores que ainda não são proficientes, conduzem ao abandono
da leitura por não conseguirem mobilizar estratégias suficientes. Diante de
um contexto como esse, é melhor, muitas vezes, partir para leitura de textos
que estejam de acordo com o perfil do grupo, auxiliando-os com a mobi-
lização de conhecimento de leitura e áreas de conteúdo, bem como com a
seleção de estratégias de ensino que facilitem a negociação do sentido.
Nesse cenário exemplificado, mas que não é apenas de uma experiên-
cia, pode-se apresentar mais uma implicação: a mobilização de atitudes,
valores e crenças do leitor relacionados com o conteúdo do texto, a qual é
crítica para a focalização da atenção, persistência e processo de compreen-
são. Isso provoca ações docentes como: conhecer o leitor; selecionar o texto;
mobilizar outros textos; planejar as estratégias de apresentação e explora-
ção do texto a ser apresentado aos leitores. Percebe-se, então, que há apro-
ximação entre o conhecimento prévio e as mobilizações que os professores
realizam, mas isso ainda não é suficiente. É preciso ampliar a compreensão
sobre as implicações que decorrem das práticas e pesquisas realizadas.

3 O Grupo de Professores de Língua Portuguesa, fundado em 2000, é constituído por professores de


diferentes segmentos e formação que dedicam a manhã de um sábado, a cada mês, para discutir temas
relacionados à linguagem, ler textos, trocar experiências em sala de aula, planejar coletivamente. É um
espaço de interação e formação contínua cujos relatos estão publicados em “Baú de práticas: socializa-
ção de projetos de letramento”.

119
Na sala de aula, circulam indagações tais quais: por que iremos ler esse
texto? Para que se lê determinado texto? Muitas vezes, o aluno só toma
conhecimento da razão da leitura ao terminar a ação de ler todo o texto.
Por isso, a criação de um objetivo para guiar a construção do sentido pro-
porciona maior interesse no processo de leitura compreensiva, bem como
alterar a seleção de estratégias de leitura e o foco da atenção. Em minha
experiência como professora no ensino superior, percebi o estranhamento
dos alunos ao serem informados do objetivo da leitura e qual a atividade
decorrente dela. Isso sinaliza que, durante a sua vida escolar, a leitura foi
realizada dentro de uma mesma perspectiva, não considerando o tipo tex-
tual a ser lido ou mesmo as ações a serem realizadas pelo leitor conforme
o objetivo para o qual o texto foi apresentado em sala de aula. Se o objetivo
final é a produção escrita de um resumo, o foco de atenção do sujeito será
para os aspectos que aproximam as ideias principais das secundárias, irá
usar estratégias como as de sublinhar, anotar, relacionar. Poderá produzir
esquemas, usar cores distintas para marcar ideia principal e secundária,
realizar releitura do texto. Partindo dessa premissa, pode-se afirmar que a
formação de professores para o ensino da leitura deve incluir conhecimen-
tos como os sobre as estratégias de leitura, as estratégias de ensino, as for-
mas de engajar o aluno na leitura para a produção de sentido. Além disso,
pode-se considerar a produção escrita decorrente da leitura a fim de revelar
o sentido construído pelo aluno-leitor, levando-o a sintetizar as ideias, a
discutir argumentos e pontos de vista, a levantar perguntas e questiona-
mentos tanto sobre o que o texto apresenta como quanto à forma de cons-
truir linguisticamente os enunciados. Tudo exige do professor uma tomada
de decisão instrumental a qual, como já se afirmou neste texto, demanda
formação docente e participação em experiências pedagógicas.
Outra implicação decorrente do que aqui se propõe para a prática pe-
dagógica e para a pesquisa, é o reconhecimento de que a construção de
sentido é um processo objetivo, interativo e estratégico fundamental para a
efetiva compreensão de narrativas e textos expositivos. Por isso, devem ser
consideradas as estratégias de processamento do texto, já mencionadas nas
condições cognitivas, o que permite a compreensão da organização textual.
Quanto a esse aspecto, optou-se por abordar as narrativas considerando sua

120
estrutura organizacional e a necessidade da relação de causa-consequência.
Antes, porém, será apresentado o contexto no qual a prática docente e de-
corrente pesquisa se desenvolveram.
O subprojeto de Letras (2011-13) participante do PIBID (Programa
Institucional De Bolsa de Iniciação à Docência) foi norteado por três gran-
des ações: formação teórica do professor em formação no que concerne ao
sistema de escrita e organização textual; desenvolvimento de diagnóstico
que possibilitasse o levantamento de facilidades e dificuldades de escrita de
alunos do ensino fundamental; análise dos problemas textuais de produ-
ções escritas de alunos matriculados no ensino fundamental a fim de que o
professor em formação identificasse as dificuldades de acordo com o nível
de escrita do grupo e proponha atividades e produzisse materiais para o en-
sino e aprendizagem da escrita. A base teórica foi a da teoria dos esquemas
com atenção para os estudos do modelo de Stein e Glenn (1979) e os acrés-
cimos realizados por Scliar-Cabral e Grimm-Cabral (1984) que definem
os tipos de unidades informativas e os tipos de relação entre elas. Segundo
Stein e Glenn, “a história é constituída por uma categoria de configuração
e por um sistema de episódios. Essas duas categorias são ligadas por uma
relação de permissão4”. Para diagnosticar e acompanhar a produção de nar-
rativas dos 164 alunos dos anos finais de três escolas do Vale do Itajaí (SC),
foram apresentadas três propostas de escrita de histórias ao longo dos três
anos de atuação, as quais foram analisadas conforme as regras da gramáti-
ca de história considerando também outras facilidades e dificuldades dos
participantes. No primeiro grupo de textos, os resultados iniciais revelaram
cinco problemas: o gênero textual (não distinguiam, por exemplo, conto de
fadas e fábula), a estrutura da narrativa (ausência de muitas regras), coesão
textual, relação causa-consequência frágil ou ausente e ortografia. Um dos
textos produzidos a partir da sequência de cinco imagens é o que segue e
que será comparado com as produções do mesmo aluno ao longo do pro-
cesso, sendo o segundo texto (2012) também decorrente de sequenciamen-
to de imagens, mas organizadas pelo próprio produtor do texto e o último
texto narrativo (2013) produzido conforme o trabalho realizado pelos pro-
fessores em formação e pela professora supervisora em cada turma.

4 A story consists of a setting category plus an episode system. These two categories are connected by an
ALLOW relation.

121
Boas Ações5 (2011)
Certo dia um garoto resolveu sair de sua casa para fazer uma boa ação. Ele plantou
em um jardim duas árvores, que, todo dia ia regando e cuidando. Meses depois deste
fato ele viu que as árvores já estavam bem grandes, então alegre com sua boa ação
pendurou lá uma rede, para poder aproveitar um pouco da natureza que restava.

Diante de narrativas que não descreviam com detalhes o cenário e nele


o personagem, que não estabeleciam uma relação ampla de causa e con-
sequência e cuja coesão se fazia basicamente pelo uso da pontuação, os
professores em formação, auxiliados pela supervisão no que tange à prática
e orientados teoricamente pela coordenação do subprojeto, promoveram
ações de leitura de textos narrativos, levando os alunos, ao longo do ano, a
compreenderem o esquema narrativo, bem como a lerem e relerem as nar-
rativas produzidas pelo grupo. Foram ações que mobilizaram estratégias de
processamento de texto e depreensão das relações de permissão entre um
episódio e outro na estrutura narrativa. No final de um ano de trabalho, a
narrativa produzida já apresentava uma significativa diferença, como pode
se observar no texto que segue.

Quinta-feira assustadora (2012)


Estava passeando com meu cachorro, era uma quinta-feira ensolarada, íamos
atravessar a rua para comprar a ração de Bob Jonatan, o meu cachorro. Fomos
então procurar uma faixa de pedestres para atravessar. Eu e Bob estávamos quase
atravessando quando Bob Jonatan arrebentou sua coleira e saiu correndo para
o outro lado da rua, no certo estava apressado para ganhar sua ração, e mesmo
com o semáforo livre, um carro em alta velocidade atropelou meu cachorro. Por
sorte o homem que atropelou Bob Jonatan parou e ligou para uma ambulância.
O homem, João, como descobri mais tarde, disse que sentia muito e que estava
distraído e não tinha visto o cachorro. Eu o desculpei e disse que estava tudo bem,
que ele podia ir embora pois dava pra ver que estava atrasado para um com por
isso que eu esperava pela ambulância.
A ambulância chegou um pouco depois ao homem ter saído. Alguns homens bo-
taram Bob na ambulância e eu pedi para ir junto.
Chegamos no hospital, me surpreendi pois pensei que estávamos indo a um ve-
terinário, um médico pediu pra eu esperar um pouco e depois ele voltou e disse
que eu pude ver meu cachorro. Peguei umas flores que encontrei num canto do
hospital e levei para Bob Jonatan, que aliás está muito bem agora, apesar de ainda
mancar um pouco.
5 Os textos foram digitados respeitando a redação do aluno.

122
Comparando o cenário das duas narrativas (parte inicial), observa-se
que, na primeira, o autor não apresenta muitos elementos a seu leitor, in-
forma a temporalidade (certo dia), apresenta de forma indefinida o perso-
nagem (um garoto) e indica uma atividade (resolveu sair de sua casa para
fazer uma boa ação). Entretanto, todos esses elementos são pouco articu-
lados e desenvolvidos ao longo do texto. O que não ocorre com a segun-
da produção na qual há um detalhamento inicial que permite ao leitor já
levantar algumas hipóteses para o que irá ocorrer ao longo dos episódios.
Há indicação também da temporalidade (era uma quinta-feira ensolara-
da), mas que justifica a ação (íamos atravessar a rua para comprar a ração)
dos personagens (eu e Bob Jonatan, o meu cachorro). Há o uso, no texto
produzido, dos elementos analisados em outros textos narrativos lidos, ou
seja, houve a ação de ler para compreender o modelo e o sistema de episó-
dios, para que, a partir do cenário, a narrativa vá se desenvolvendo. Foram
também observadas e analisadas as marcas linguísticas características da
tipologia e dos gêneros discursivos lidos. Houve, assim, uma mobilização
de conhecimentos acerca do texto, formando o leitor e, por conseguinte, o
produtor de textos narrativos.
O último texto produzido atende bem à primeira regra descrita por
Stein e Glenn (1979), na qual o cenário é condição para o desenvolvimento
dos episódios e nele o personagem é apresentado indicando estado ou ati-
vidade, o que já encaminha para a segunda regra desse esquema. No caso
da terceira narrativa (reproduzida a seguir), o personagem (Henry Miller)
tem uma descrição detalhada a fim de que o leitor possa perceber que há
nele um elemento (era bastante bonitinho, mas um tipo de bonito que não
chamava atenção de ninguém) que irá desencadear a narrativa (se não fosse
por aquele último verão no lago) que também já foi indicativo para o título.
No mais, há um sistema de episódios que se desenvolve ao longo do texto,
há relações de causalidade que motivam respostas, plano de ação, resolu-
ção, consequência direta e reação.

O verão no lago (2013)


Henry Miller era só mais um garoto comum de Illinois, particularmente não tinha
nada de mais, era alto, magro, tinha cabelos pretos e era bastante bonitinho, mas
um tipo de bonito que não chamava atenção de ninguém. Henry Miller na verda-

123
de era o tipo de garoto que nunca chamaria a atenção em nada, e, provavelmente
continuaria assim pelo resto da vida, se não fosse por aquele último verão no lago.
Henry tinha acabado de completar 16 anos quando seus pais decidiram deixá-lo
num acampamento de verão por um tempo, pra quem sabe fazer uns amigos no-
vos. O garoto não viu problema algum nisso, afinal ele não tinha muitos amigos,
mas assim que ele entrou no quarto em que ia ficar, quase deu meia volta e saiu
correndo. Sentado em uma das camas estava Michael Tenner, o valentão mais te-
mido e idiota de Illinois.
— Alô Miller – Michael falou
– Oi Michael – respondeu Henry
– Espero me divertir muito com você nesse verão – disse Michael fechando a porta
atrás de Henry.
E assim se passou uma, duas, três semanas, com Michael aprontando sem parar
com Henry, e Henry sempre tentando escapar do valentão. E o verão teria acabado
assim, se não fosse o que Henry provocou no lago.
Era umas três da tarde da última semana do acampamento e todos os campistas
estavam perto do lago para assistirem à competição de natação. Henry não iria
nadar, mas Michael sim, por isso o rapaz estava livre por um tempo do valentão,
provavelmente Henry teria aproveitado esse tempo para ler ou relaxar, se não fosse
a repentina ideia que teve. Ele chamou Ben, seu e de Michael companheiros de
quarto e pediu para ele o pó de mico emprestado. A parte de Ben era a fácil, já a
parte de Henry complicava.
A parte de Henry era ir sorrateiramente até o quarto deles e despejar o pó de mico
na sunga de Michael. E foi isso que ele fez, porém, não imaginou que seu plano
sairia tão bem. Quando Michael chegou na competição de natação, começou a
se coçar todo, e sem pensar, arrancou sua sunga fora. Todos os que estavam ali
caíram na gargalhada, alguns até tiraram fotos.
O diretor do acampamento descobriu um pouco depois que foi Henry quem cau-
sou tudo aquilo e o suspendeu pelo resto do verão. E mesmo sendo suspenso,
aquele foi o melhor verão de Henry, porque quando todo o pessoal do acampa-
mento soube que foi ele que zoou com o maior valentão, fizeram de Henry o cara
mais conhecido de Illinois.

A experiência docente vivida pelos professores em formação e pelos


alunos do ensino fundamental foi também material de pesquisa sobre o
ensino da leitura e da escrita, permitindo chegar a conclusões que foram
socializadas na mesa-redonda “The portuguese language in daily school:
knowing and understanding the writing system in the early years of ele-
mentary school” no 10th International Congress of ISAPL (Moscou) em
2013. A pesquisa indicou que: a) um diagnóstico completo de narrativas

124
permite compreender quais os principais problemas e tentar resolvê-los; b)
é necessário organizar um plano de trabalho para a sala de aula ao longo
do ano; c) também são necessárias intervenções com cada grupo de alunos,
ajudando-os a refletir sobre o modo como as suas narrativas são e estão
organizadas.
A discussão apresentada até aqui corrobora com a afirmação de que a
utilização de estratégias metacognitivas para auxiliar na monitoria, releitu-
ra e verificação na construção de sentido são essenciais para o processo de
compreensão.
Além dessas, há outras implicações da compreensão do processo de
ensinar e aprender a ler que podem ser aprofundadas em pesquisas e prá-
ticas pedagógicas. Uma delas diz respeito à consciência do posicionamen-
to mais apropriado do leitor e do professor relativo ao texto e ao propósito
da leitura, o que é importante para desenvolver níveis mais altos de mo-
tivação e compreensão. Quando se fala em posicionamento, se considera
a influência dele na perspectiva e na orientação dada para determinado
texto. Vale lembrar que o leitor tem maneiras de ler que são influenciadas
pela natureza do gênero discursivo ou tipologia textual, pelo desejo de
interação com o escrito pelo autor. Por isso, é importante colocar o leitor
no lugar do escritor, é necessário o exercício de seguir as pistas linguísticas
deixadas pelo autor ao longo do texto a fim de que se (re)construa o ca-
minho trilhado por quem escreve (Kleiman, 2002). Afinal, a leitura é um
processo interativo.
Retomando a compreensão de leitura deste texto bem como o ambien-
te de aprendizagem discutido inicialmente, há uma implicação que deve
ser considerada: a compreensão e o uso dos valores socioculturais variados
da comunidade da sala de aula, assim como suas crenças por parte do leitor
e do professor, proporcionará maiores oportunidades para negociação ati-
va de sentido em sala de aula. Portanto, no espaço de interação entre alunos
e professor, os valores e crenças socioculturais têm efeito no sucesso escolar
e no desenvolvimento em leitura. Além disso, as diferenças socioculturais
e as expectativas de aluno e professor podem quebrar a comunicação e im-
pedir a aprendizagem escolar, por isso é papel do professor conhecer seus
alunos e integrar família e escola, adotando uma perspectiva etnográfica

125
no ensino que é peculiar da pesquisa quando se tratam das práticas de le-
tramentos.
Como os sentidos são muitos e a interpretação do texto é um movi-
mento, se faz necessária a interação em sala de aula, partilhando a auto-
ridade (não só o professor, mas todos os integrantes) e considerando os
saberes dos alunos a fim de guiá-los na construção dos sentidos, pois o
encorajamento dos leitores para aceitarem a premissa de que sentidos evo-
luem tanto para o professor como para o leitor facilita a construção ativa
do sentido em sala de aula. Diante desse pressuposto, é necessário também
o engajamento na compreensão e reflexão sobre sentidos divergentes, o que
aumentará a riqueza da interpretação dentro da comunidade da sala de
aula, bem como mobilizará a reflexão acerca das diferentes estratégias de
leitura das quais o aluno se vale para compreender o texto e perseguir as
pistas deixadas pelo autor.
A provisoriedade e a nova interpretação fazem parte do aprendiza-
do da leitura e precisam ser provocadas pelo professor, desestabilizando
a prontidão das respostas que muitas vezes é comum ao espaço escolar.
Atividades como a leitura de diferentes textos sobre o mesmo tema podem
auxiliar o aluno a perceber que os sentidos não dependem apenas do texto,
mas há um autor-leitor que traz suas crenças e valores socioculturais para o
que escreve, deixando ali seu estilo, autoria e certezas que são sempre pro-
visórias, pois dependem do sentido que o leitor constrói. Portanto, o pro-
fessor deve saber lidar com as divergências e conduzir o processo lançando
mão de estratégias de instrução, pois o desenho das atividades instrucio-
nais, que abrigam compreensão, discussão e inclusão, constrói, nos leitores,
a percepção de que eles são parte de uma comunidade de sala de aula.
Por fim, cabe ao professor auxiliar os leitores a compreender que eles
constroem sentido não só de textos impressos, mas também de tarefas, fon-
tes de autoridades. Considerando uma discussão mais atual sobre os múl-
tiplos letramentos e os diferentes textos que exigem distintas formas de ler,
há que se refletir acerca de como esses textos têm chegado à escola, como
têm sido apresentados aos alunos e que ações instrucionais são mobilizadas
pelo professor. Antes de prosseguir na reflexão, se faz necessário compre-
ender o que são os multiletramentos, cujo conceito, segundo Rojo (2012,

126
p. 13): “aponta para dois tipos específicos e importantes de multiplicidade
presentes em nossas sociedades, principalmente urbanas, na contempora-
neidade: a multiplicidade cultural das populações e a multiplicidade se-
miótica de constituição dos textos por meio dos quais ela se informa e se
comunica”. Sendo assim, o professor está diante de um novo leitor e isso
exige dele conhecimento teórico sobre essas novas demandas de leitura e
do próprio grupo de alunos, pois seus ambientes socioculturais promovem
a criação de um contexto para a aprendizagem que envolve ativamente o
leitor e a comunidade de sala de aula.
Atualmente o leitor está diante de enunciados impressos e digitais, que
relacionam texto e imagem, os quais são distribuídos no espaço em branco
para atingir o leitor e produzir sentidos através de muitas linguagens. Isso
exige, conforme Rojo (2012, p. 19), “capacidades e práticas de compreen-
são de cada uma delas (multiletramentos) para fazer significar”, o que leva
também à partilha da autoridade, possibilitando que alunos e professores
aprendam a ler essas semioses e a compreender que há intenções também
na forma de organização do texto que traz o leitor para si já com uma pro-
posta. As novas mídias, as novas ferramentas, os novos gêneros discursivos
estão dentro e fora da sala de aula e exigem que o leitor interaja com eles,
perceba que são heterogêneos e que, diferente do texto em papel, podem
estar em vários suportes e espaços. Devido a esse funcionamento, as pró-
prias estratégias de leitura precisam ser reaprendidas, fazendo com que
novos recursos possibilitem relacionar as partes do texto, imagem e texto,
texto e contexto a fim de que o sentido seja construído. Novos desafios em
novos tempos, mas que guardam em si as mesmas condições afetivas e cog-
nitivas, porque é preciso agir sobre o escrito quando se lê.

Palavras de aprendizagem

O objetivo deste texto foi refletir sobre o papel do professor no ambien-


te de aprendizagem considerando o leitor, nesse caso o aluno, a sala de aula,
o contexto, o texto e as atividades que são desenvolvidas. Esta discussão
teve como motivação o texto de Ruddell e Unrau (1994) que levou a outros
caminhos, outras leituras e novos sentidos. Um diálogo com o produzido

127
para outro contexto cultural e temporalidade possibilitou pensar a leitura
na escola como um aspecto a ser ensinado, não apenas como um eixo que
compõe a disciplina de língua portuguesa.
Entretanto, para ensinar, é preciso conhecer tanto o objeto de ensino
como os caminhos instrucionais. Contudo, isso muito raramente é oferta-
do em cursos de graduação que formam professores para o ensino da lei-
tura, seja para anos iniciais como finais; como se o fato de saberem ler (ou
serem leitores) fosse suficiente para ensinar a ler. A reflexão construída ao
longo do texto revelou que o conhecimento para o uso não é suficiente para
formar professores, pois o papel destes, no ambiente de aprendizagem, é
crítico para a negociação do sentido e para facilitar a construção do sentido
do texto, considerando os valores socioculturais dos alunos que participam
do processo interativo. É preciso que o professor desenvolva com os alunos
capacidades e habilidades para compreender tanto os aspectos globais do
texto como para identificar a intencionalidade do autor, a qual é depreen-
dida tanto pelas pistas locais e contextuais quanto por outros elementos se
considerarmos as múltiplas linguagens e os espaços/suportes pelos quais os
textos circulam na atualidade.
O espaço pode não ter sido suficiente, mas o desejo é que cada lei-
tor, ao final do texto, se pergunte: e eu? Como me situo nesse processo de
construção do sentido? Que leitor sou? Que professor desejo ser? Afinal,
a proposta é mesmo de reflexão, pois as práticas são singulares e cultural-
mente situadas, não sendo possível, então, um programa único de ensino
de leitura, mas sim uma formação teórica sólida que permita a promoção
de práticas que façam a diferença em cada ambiente de aprendizagem.

Referências

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reading research. New York: Longman, 1980. p. 353-394.
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nau: Edifurb, 2013.

128
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Editora Pontes, 2002.
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colares. Ilha do Desterro: a bilingual journal of language and literature. Florianópolis,
v.11, p. 56-74, 1984.
SOLÉ, I. Estratégias de leitura. 6. ed. Reimpressão. Porto Alegre: Artmed, 2009.
SOUZA, A. L. S.; CORTI, A. P.; MENDONÇA, M. Letramentos no ensino médio. São
Paulo: Parábola Editorial, 2012.
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School children: a test of schema. In: FREEDLE, R. O. New directions in discourse
processing. Norwood: Albex, 1979, p. 53-119.

129
6
Ensino, aprendizagem e utilização
de estratégias de leitura:
um retrato das pesquisas conduzidas no Brasil1

Carlos Alberto Ramos Souza


Luciane Baretta

Introdução

É possível observar que os países geralmente têm posturas diferentes


quando olham criticamente para a sala de aula nos níveis fundamental e
médio de ensino, fato que reflete diretamente na qualidade da educação.
Existem diversas pesquisas, conduzidas em níveis nacionais e internacio-
nais (National Institute of Child Health and Human Development-NICHD,
2000; Alves; Franco, 2008; Brooke; Soares, 2008; UNESCO, 2008, 2014;
OECD, 2014), que buscam aferir a qualidade de ensino das escolas, com
vistas a melhorar o sistema educacional.
Buscando tecer uma compreensão sobre a qualidade do ensino dos
países do mundo, o TALIS – Teaching and Learning International Survey,
realizou um teste internacional envolvendo 34 países, usando de “pergun-
tas sobre a formação inicial e continuada de professores, suas práticas e
crenças pedagógicas, além de levantar informações sobre o ambiente es-
colar” (MEC; INEP, 2014, p. 3), para melhor compreender a realidade da
educação no mundo, ainda que de forma generalizada. Os dados da pes-
quisa foram disponibilizados no Brasil pelo INEP e revelaram que, dentre
os países pesquisados, o Brasil é o que tem menor tempo médio gasto para
1 Esta pesquisa descreve os resultados da pesquisa de Iniciação Científica Voluntária conduzida pelo
primeiro autor, sob orientação da segunda, entre 2015 e 2016.

130
o ensino de fato. Isto quer dizer que, considerando aulas de 50 minutos, os
professores brasileiros dedicam apenas 33 minutos às suas práticas peda-
gógicas.
Com essa informação, aliada aos resultados de provas nacionais, como
a Provinha Brasil, SAEB e ENEM, aos dados de indicadores nacionais,
como o INAF (Indicador de Alfabetismo Funcional), e aos dados interna-
cionais, como o PISA (Programme International for Student Assessment),
tivemos informações iniciais para refletir sobre o ensino no país. Os da-
dos relativos a essas diferentes avaliações, frequentemente divulgados pela
mídia, infelizmente não são animadores para os estudantes brasileiros. De
acordo com os resultados da Prova Brasil de 2015, por exemplo, em torno
de 60% dos estudantes de 5º ano de escolas públicas não conseguem locali-
zar informações explícitas em contos de fada ou reportagens; 88% dos estu-
dantes de 9º ano não conseguem identificar a ideia central de um poema ou
uma crônica, habilidades mínimas requeridas aos estudantes nesses níveis
de escolaridade (Revista Época, 2015). Os dados do INAF-2015, apesar de
mostrar melhoras quanto ao nível de alfabetismo de brasileiros entre 15 e
64 anos, continuam a desvelar uma triste realidade: além de 4% da popu-
lação que ainda é analfabeta, 23% é capaz de localizar informações explíci-
tas num texto e de realizar operações matemáticas básicas; outros 42% são
capazes de ler uma ou mais unidades de informação em textos diversos e
de extensão média, realizando inferências simples e com condições de re-
solver problemas envolvendo operações básicas; um quarto (23%) dos bra-
sileiros revela um nível intermediário de alfabetismo, ou seja, são aqueles
capazes de ler, escrever e resolver problemas condizentes com a localização
de informações múltiplas, resolver problemas matemáticos complexos e
sintetizar ideias centrais e compreender as entrelinhas dos textos (Instituto
Paulo Montenegro; Ação Educativa, 2016).
Pesquisadoras estadunidenses publicaram, em 1991, uma revisão de
literatura em que avaliam o ensino e o uso de estratégias de leitura no nível
superior de ensino. Segundo as autoras, havia na época um pequeno núme-
ro de estudos que consideravam o uso de tais estratégias. Apropriando-nos
das conclusões e das sugestões de encaminhamentos propostos por Nist e
Mealey (1991), paralelamente ao frágil desempenho obtido pelos estudan-

131
tes brasileiros em exames nacionais e internacionais de leitura, conforme
mencionado anteriormente, interessou-nos investigar se os apontamentos
elencados pelas autoras na conclusão de seu estudo são recorrentes nos es-
tudos conduzidos no Brasil, acerca do ensino e aprendizagem de estratégias
de leitura. Conforme observado por Nist e Mealey, a falta de: (a) pesquisas
longitudinais, que têm como participantes estudantes com baixo desem-
penho em leitura nos diferentes níveis de escolarização; (b) embasamento
teórico sobre estratégias e comprovação empírica – segundo Nist e Mealey
(1991), pouquíssimos estudos comprovam a eficácia do ensino e utilização
de estratégias; (3) estudos que envolvem períodos instrucionais e (4) que
indicam que a instrução direta do professor leva à autonomia do leitor, que
consequentemente melhora suas habilidades leitoras, são (alguns dos) in-
dícios que poderiam contribuir para a fragilidade da situação leitora. Dian-
te desses apontamentos, interessou-nos saber qual é o quadro das pesquisas
conduzidas sobre estratégias de leitura no Brasil (tanto em língua materna,
quanto em língua estrangeira, inglês), para avaliarmos como esse tema tem
sido abordado em pesquisas. Decidimos, então, fazer um levantamento
dos estudos brasileiros que enfocam o ensino, a aprendizagem e o uso de
estratégias de compreensão leitora para avaliar a frequência com que esse
tema tem sido investigado e os tipos de pesquisa desenvolvidos em nível de
pós-graduação.
Pesquisas nas áreas da educação, psicologia cognitiva, psicolinguísti-
ca, linguística, linguística aplicada, entre outras, apontam que é possível
auxiliar os estudantes a exercer mais controle e a refletir sobre sua pró-
pria aprendizagem, por meio da instrução direta de estratégias de apren-
dizagem, mais especificamente, de estratégias de compreensão em leitura
(Carrell; Pharis; Liberto, 1989; O’Malley; Chamot, 1990; Solé, 1998; Nist;
Mealey, 1991; Farrell, 2001; Duke; Pearson, 2008). O ensino de estratégias
de aquisição do conhecimento lexical, contextual e morfológico a estudan-
tes universitários, por exemplo, demonstrou que os leitores tiveram melhor
desempenho nos testes de leitura (perguntas de compreensão e síntese do
texto lido) após um período instrucional (Finger-Kratochvil, 2010).
Mas o que são estratégias? De acordo com Oxford (2001), o termo
tem sua origem no grego antigo, strategia e está relacionado aos “passos ou

132
ações que os generais adotam para ganhar uma guerra” (Oxford, 2001, p.
362). Atualmente, essa relação direta e exclusiva com a guerra já não existe,
mas o controle e o foco no objetivo permanecem no significado moderno
da palavra (Oxford, 1990). Essa definição vai de encontro ao que é discuti-
do por Solé (1998), ao propor que as estratégias são “suspeitas inteligentes,
embora arriscadas” (p. 69) sobre o caminho mais adequado a ser seguido.
Segundo a pesquisadora, as estratégias são independentes de um contexto
em particular e podem se generalizar a diferentes situações; contudo, para
que seu uso seja eficaz, é necessário a contextualização para o problema
concreto.
Tendo-se em vista o foco desta pesquisa, as estratégias de leitura, ou de
compreensão, são, conforme definido por Young e Oxford (1997) planos
ativos que demonstram como os leitores reagem a uma dada tarefa, como
eles transformam o input escrito num código significativo e o que eles fa-
zem para superar (no caso de) um problema de compreensão (Block, 1986;
Solé, 1998; Baretta, 1998; 2003).
Para alcançar os objetivos propostos para esta pesquisa exploratória,
de cunho bibliográfico, isto é, mapear os estudos realizados no Brasil tendo
como enfoque as estratégias de leitura, fizemos um levantamento de inves-
tigações conduzidas em nível de mestrado e doutorado, em 180 universida-
des públicas e privadas de todos os estados brasileiros, que tratam do ensi-
no, da aprendizagem e/ou da utilização de estratégias de leitura, nos níveis
fundamental, médio e superior de educação. É importante mencionarmos
aqui, que optamos por considerar os estudos que enfocam as estratégias
de leitura na língua materna e na língua estrangeira, inglês, por entender-
mos que, independente do contexto de instrução sobre uso de estratégia de
leitura (disciplina de língua materna ou estrangeira), o estudante adquire
maior controle e reflete sobre aquilo que está lendo. Assim, mesmo que
o estudante não tenha recebido instrução sobre estratégias de leitura na
língua materna, mas aprendeu a utilizá-las ao ler textos nas aulas de língua
estrangeira, ele tenderá a incorporar o seu uso em toda leitura que realiza,
melhorando, desta forma, seu desempenho enquanto leitor. A seguir, apre-
sentamos a metodologia utilizada no levantamento de dados, seguida da
análise e discussão dos resultados, e as considerações finais.

133
Encaminhamentos metodológicos

O principal objetivo desta pesquisa foi realizar um estado da arte sobre


os estudos conduzidos no Brasil que têm como enfoque o ensino, aprendi-
zagem e/ou utilização de estratégias de leitura em língua materna e língua
estrangeira, inglês. Para alcançar esse objetivo geral, fizemos um levan-
tamento dos estudos desenvolvidos no Brasil, a partir de 2000, agrupan-
do-os em relação a: tipo de estratégias investigadas; público-alvo (quem e
quantos participantes, no caso de estudos exploratórios); língua (materna
ou estrangeira, inglês); finalidade da pesquisa (exploratória, descritiva, ex-
plicativa, metodológica, intervencionista); método de pesquisa (protocolos
verbais, testes de compreensão, instrução direta, entrevista...).
A coleta dos dados foi realizada por meio do acesso aos sites dos Pro-
gramas de Pós-Graduação em Letras (PPGL – adotaremos esta nomencla-
tura, independente se o programa de pós-graduação adota outra designa-
ção, como Estudos Linguísticos, na UFFS, ou Linguística, na UFSC, por
exemplo). Foram pesquisados os sites de 180 universidades, nos 27 estados
do Brasil2. Para reunir pesquisas em nível de mestrado e doutorado, tanto
qualitativas quanto quantitativas que consideram o ensino, a aprendizagem
e o uso de estratégias de leitura, foram consideradas instituições de ensino
superior (IES) que recebem o título de universidade (para os objetivos deste
estudo, foram desconsideradas as faculdades e centros universitários). Para
ter acesso à lista de universidades em nível nacional, recorreu-se, na Região
Sul, à página do 4º Encontro SulLetras (www.unisul.br/sul.letras), que lista
as universidades que tiveram trabalhos submetidos para a apresentação no
evento. Para as demais regiões do país, recorreu-se a uma lista de univer-
sidades apresentada por uma página wiki3 (https://pt.wikipedia.org/wiki/
Lista_de_universidades_do_Brasil, acesso em 20 de outubro de 2015).
A busca nos bancos de dissertações e teses das IES com PPG em Le-
tras ocorreu por meio da seleção de trabalhos que apresentassem as pa-

2 Muitas dessas universidades não possuíam, no momento da coleta dos dados, PPG e outras várias, não
tinham PPG em Letras ou afins, ou então, trabalhos concluídos em nível de mestrado e/ou doutorado.
3 Uma página wiki é uma coleção de documentos interligados que podem ser visitados e editados cons-
tantemente, por qualquer pessoa. Esse software colaborativo torna bastante rápido o acesso à informa-
ção, fazendo jus à origem do termo: veloz, ligeiro, rápido, em alguns dialetos havaianos.

134
lavras-chave (em seu título ou resumo): estratégias de leitura; ensino de
leitura; uso e/ou instrução de estratégias; estratégias de leitura em língua
materna e/ou estrangeira; professor de leitura. Nos casos em que o título
sugeria a abordagem do tema, mas não fazia remissão a nenhuma dessas
palavras-chave, os resumos foram lidos para incluir ou descartar a pesqui-
sa no nosso corpus. As pesquisas que se enquadraram aos propósitos de
nossa busca foram sistematizadas, considerando-se a seguinte sistematiza-
ção: universidade/data da primeira defesa do PPG; tipo de IES (pública ou
privada); nível do trabalho (mestrado ou doutorado); título do trabalho;
orientador; autor/ano da defesa; enfoque do estudo (objetivos definidos
pelo autor); tipo de estratégia investigada, conforme taxonomia de Català,
Molina e Monclús (2005); idade/número de participantes envolvidos; lín-
gua do texto estudado/investigado; finalidade da pesquisa e metodologia
adotada para a condução da pesquisa, conforme descrito anteriormente.
Passemos para a análise e discussão dos principais resultados.

Apresentação, análise e discussão dos dados

Conforme mencionado anteriormente, 180 IES foram investigadas.


Sua distribuição por região e tipo (pública, privada), pode ser visualiza-
da no Gráfico 01, a seguir. Ao longo do desenvolvimento do trabalho, no-
tamos que embora todas as instituições investigadas tivessem o status de
universidade, a metade (51,1%) não tinha PPG em Letras (ou afins) nas
listagens de cursos de pós-graduação, nos sites de suas IES. Outras univer-
sidades (5,5%) não apresentavam informações claras sobre a (in)existência
de curso de pós-graduação em Letras, uma vez que não era possível ter
acesso a estas informações por meio dos sites institucionais. A saber, outras
universidades ofertavam cursos em nível de especialização e MBA (Mas-
ters of Business Administration), cursos esses que foram desconsiderados,
haja vista os propósitos desta pesquisa. Constatou-se que, assim como há
um pequeno número de cursos de pós-graduação lato sensu nas áreas da
Linguística Aplicada e Psicolinguística, há consequentemente, uma quan-
tidade pouco expressiva de estudos que investigam o tema “estratégias de
leitura”, em nível de pós-graduação.

135
Gráfico 1: Universidades investigadas (por região)

Reprodução
Fonte: Dados da pesquisa.

Feita a delimitação dos trabalhos, uma análise mais apurada foi reali-
zada, reduzindo ainda mais o corpus coletado, pois muitas das pesquisas
que foram selecionadas, não abordavam especificamente as estratégias de
leitura para o ensino, aprendizagem e/ou sua utilização em tarefas de com-
preensão leitora. Desta forma, pudemos constatar que o número de pesqui-
sas sobre estratégias de leitura, em nível de pós-graduação, conduzidas no
Brasil é relativamente baixo, estando de acordo com Nist e Mealey (1991),
que destacaram esta lacuna nas pesquisas em leitura, revisadas por elas há
26 anos. Como podemos observar, no Gráfico 2, a seguir, a concentração
de pesquisas encontradas em nível de mestrado e doutorado que atendem
aos propósitos desta investigação está na Região Sul. Inicialmente, foram
encontradas 84 pesquisas em nível nacional, que à primeira vista tinham
como foco as estratégias leitura. Ao fazermos a leitura dos resumos dessas
pesquisas, e em alguns casos, parte do método de pesquisa e resultados
encontrados, para eliminarmos quaisquer dúvidas, excluímos mais da me-
tade daquele número, sobrando-nos 33 pesquisas que, de fato, investigam
o ensino, a aprendizagem e/ou o uso de estratégias de leitura, como men-
cionado anteriormente. É importante destacar que, apesar de algumas pes-
quisas mencionarem o tema estratégias de compreensão leitora nos seus
resumos, não foi possível detectar uma análise específica a respeito do tema

136
ou identificar um instrumento que investigava a utilização de estratégias de
leitura na metodologia de coleta dos dados. Algumas pesquisas apontaram,
por exemplo, que os alunos leitores apresentaram bom desempenho em de-
terminada tarefa leitora em razão da utilização de estratégias, mas os tipos
e frequência das estratégias não foram delimitadas nem na análise, nem na
discussão dos dados. Por este motivo, essas pesquisas foram excluídas de
nossa análise.

Gráfico 2: Dissertações e teses sobre estratégias de leitura

Reprodução

Fonte: Dados da pesquisa

Ao analisarmos mais detalhadamente as pesquisas delimitadas para o


nosso estudo, observamos a pluralidade dos tipos de estratégias investiga-
das. As estratégias foram agrupadas de acordo com a taxonomia propos-
ta por Català, Molina e Monclús (2005), e observamos o percentual dos
trabalhos que investigam cada uma das categorias relativas aos tipos de
compreensão leitora envolvida, no Gráfico 3, a seguir. Conforme podemos
visualizar, as estratégias de leitura mais estudadas são aquelas relativas à
compreensão inferencial (35%), ou seja, a capacidade que o leitor tem de
compreender o que não está explícito no texto, por meio do estabeleci-
mento da relação entre o seu conhecimento prévio e a informação textual.
De acordo com a categoria proposta por Català et al., as estratégias que se

137
enquadram neste nível de compreensão são: dedução de uma sequência, de
detalhes, de comparações, de relações de causa-efeito, de traços de caráter
de personagens, de características e aplicação a uma situação nova, predi-
ção de resultados, hipóteses de continuidade de uma narrativa e interpreta-
ção de linguagem figurativa. As estratégias relativas à compreensão crítica,
ou seja, aquelas relacionadas à formação de juízos próprios, com respostas
de caráter subjetivo (relativas aos personagens de uma narrativa, à lingua-
gem do autor) e de juízos de atos e opiniões, perfazem um total de 20%
das pesquisas conduzidas. Estratégias de leitura relativas à reorganização
das informações durante a leitura de texto perfazem 19% e as estratégias
relativas à compreensão literal somam 16% das pesquisas. É importante
mencionarmos aqui, que algumas pesquisas investigam mais de um tipo
de compreensão leitora, por exemplo, compreensão literal e compreensão
inferencial, pontuando desta forma, em duas categorias distintas.

Gráfico 3: Classificação das estratégias pesquisadas

Reprodução

Fonte: Dados da pesquisa.

A pluralidade de estratégias investigadas nas pesquisas parece-nos bas-


tante positiva, pois reflete que há preocupação por parte dos pesquisadores
em estudar o processo de compreensão leitora como um todo. Conforme
proposto por Gagné, Yekovich e Yekovich (1993), para que a compreensão

138
se efetive, são necessários dois tipos de conhecimento: o declarativo, que
envolve os processos mais básicos, porém não menos importantes da lei-
tura, que consistem no conhecimento sobre grafemas, fonemas, morfemas,
palavras, ideias, esquemas e tópicos, e o conhecimento procedimental, que
envolve o conhecimento sobre habilidades e estratégias. O conhecimento
procedimental, de acordo com esses pesquisadores, está dividido em dife-
rentes níveis, que podem ser interpretados como relativos ao nível de pro-
fundidade que o leitor alcança ao ler. O primeiro nível envolve o processo
de decodificação (subdividido em associação e recodificação), momento
que o leitor atribui significado ao símbolo escrito; no segundo nível, o da
compreensão literal (acesso ao léxico e análise sintática), o leitor compre-
ende o que está explícito no texto; no terceiro nível, o da compreensão infe-
rencial (subdividido em integração, resumo e elaboração), o leitor relacio-
na as informações oriundas do texto com o seu conhecimento de mundo,
extrapolando o texto; no último nível, o do monitoramento da compreen-
são, requer consciência por parte do leitor, pois ele necessita ter clareza de
seu objetivo de leitura para selecionar a(s) estratégia(s) adequada(s) para
alcançar sua meta, que é a compreensão, seja ela mais básica, como a loca-
lização de uma informação específica, i.e., horário de atendimento a alunos
ingressantes no ensino universitário, ou mais aprofundada, i.e., entender
porque o Brasil atravessa uma crise econômico-política (para visualização
do processo de compreensão em leitura, ler Andrade, Gil e Tomitch, 2012,
que apresentam um diagrama com os tipos de conhecimento e os seus res-
pectivos níveis). Tendo-se em mente esses diferentes níveis, percebe-se que
não há como ser um leitor estratégico, sem ser um leitor hábil no nível
da decodificação (Dehaene, 2012; Finger-Kratochvil, 2010; Morais, 2013;
Scliar-Cabral, 2013; Souza, 2012, entre outros) e da compreensão literal.
Dessa forma, a abordagem dos pesquisadores em investigar diferentes ti-
pos de estratégias revela e corrobora o fato de que leitura estratégica só é
passível de ser alcançada e ensinada quando os níveis basilares da leitura
estiverem solidamente construídos.
Também pudemos detectar grande variedade quanto aos métodos de
pesquisa adotados pelos pesquisadores para investigar as estratégias de

139
leitura, assim como os instrumentos (24) utilizados para conduzir a cole-
ta de dados. Acreditamos que esta variedade está diretamente relacionada
aos objetivos e enfoques específicos de cada pesquisa. A fim de agrupar
tais métodos e instrumentos de forma lógica, recorreu-se à distinção pro-
posta por Riley e Lee (1996): pontual-específico (discrete-point) e global.
De acordo com Baretta (1998), o modo pontual-específico envolve aque-
las tarefas que são relativas a partes isoladas, específicas do texto, como
por exemplo, questões de associação, de verdadeiro-falso, de múltipla
escolha, de resposta fechada. O modo global, por outro lado, envolve ta-
refas de leitura integrativas, elaborativas, como a redação de resumos, de
reconto, de livre recordar, de respostas abertas, que ampliam e combinam
a informação textual num significado que leva à resposta para a tarefa.
Alguns dos instrumentos/métodos adotados nas pesquisas não se enqua-
dram ou vão além da classificação proposta por Riley e Lee, por combinar
os modos de resposta para as tarefas de leitura; estes instrumentos foram
categorizados como complementares, como pode ser observado no Grá-
fico 4 a seguir.
Podemos observar que as pesquisas adotaram, com certa frequência,
instrumentos tradicionais de pesquisa para avaliar a compreensão leito-
ra, como tarefas de múltipla escolha (6 estudos), questões dissertativas (5)
e questionários (4). Por outro lado, salientamos a frequência do uso do
protocolo verbal (7 estudos), que permite o acesso online do que ocorre
na mente do leitor, de período instrucional (6) e de testes para verificar
as estratégias de leitura utilizadas na tarefa proposta ou percebidas pelos
leitores (5). Esta variedade de instrumentos e métodos parecem mostrar a
preocupação dos pesquisadores na busca para entender como a compreen-
são se efetiva e de que forma o uso das estratégias pode contribuir para o
aprimoramento do leitor eficiente e autônomo, haja vista os baixos índices
mantidos pelo Brasil nos diferentes indicadores nacionais (INAF, SAEB,
ENEM) e internacionais (PISA). Cabe mencionar aqui, que das 33 pesqui-
sas analisadas, 28 são exploratórias, o que novamente, revela a preocupação
dos pesquisadores em entender o panorama que ora se apresenta.

140
Gráfico 4: Classificação e frequência dos instrumentos adotados

Reprodução
Fonte: Dados da pesquisa

Finalmente, outro fato que se mostrou bastante positivo foi o público


alvo mais investigado nas pesquisas por nós avaliadas: 13 pesquisas foram
conduzidas com estudantes do Ensino Fundamental, 6 com estudantes do
Ensino Médio, 10 com universitários, conforme demonstrado na tabela 1, a
seguir. Essas informações parecem demonstrar que os pesquisadores estão
mais atentos às dificuldades enfrentadas na educação básica e que é neces-
sário intervir o quanto antes, pois o estudante que está nessa etapa da es-
colarização hoje com lacunas no seu processo de formação de leitor, será o
universitário, o cidadão amanhã, que trará em sua bagagem tais deficiências.

Tabela 1: Nível de escolaridade dos participantes nas pesquisas

Nível Número de estudos conduzidos


Pré-escola 1
Ensino fundamental 13
Ensino médio 6
Educação de Jovens e Adultos 2
Universitários 10
Licenciatura 3

Fonte: Dados da pesquisa.


141
Destacamos a pequena quantidade de pesquisas realizadas no âmbito
das licenciaturas: apenas 3 das pesquisas coletadas foram realizadas com
estudantes de algum curso de licenciatura e apenas 1 foi conduzida com
graduandos em Letras. Esse é um dado bastante preocupante, tendo-se
em vista que os licenciandos, independente de sua área específica, serão
os futuros professores de leitura, e que além de utilizarem estratégias para
uso próprio, precisam saber quando e como ensiná-las aos seus alunos.
Parece-nos que os professores dos cursos de formação de professores ainda
não se conscientizaram da importância da habilidade de ler com fluência e
competência e da sua responsabilidade na formação de seus pares. A gran-
de área dos cursos de formação de professores é deficitária em pesquisas
aplicadas que podem desvelar os (muitos) aspectos que precisam ser apri-
morados nos cursos de licenciatura das diferentes áreas do conhecimento.
A partir do momento que as licenciaturas receberem a atenção, o incentivo
e o respeito que merecem, os professores terão condições de aperfeiçoar o
seu papel na construção do leitor autônomo, crítico e consciente que con-
tribui significativamente para a sociedade.

Considerações finais

O interesse central desta pesquisa foi investigar os estudos que foram


conduzidos no Brasil em nível de mestrado e doutorado a partir do ano de
2000. Tivemos como ponto de inquietação os índices do INAF e do PISA,
que explicitam nacional e internacionalmente a situação da educação bra-
sileira, além de resultados de testes nacionais, como a Provinha Brasil e
o ENEM. Os preocupantes resultados em testes de leitura dos estudantes
brasileiros fizeram-nos questionar quais são os esforços realizados na pós-
-graduação das universidades deste país para compreender o que ocorre
nas escolas brasileiras e quais as possíveis medidas a se adotar para melho-
rar este quadro.
Artigos e revisões de literatura de diversos pesquisadores da área da
Psicolinguística, da Linguística e da Linguística Aplicada indicam que o
uso de estratégias metacognitivas como o monitoramento, por exemplo,
pode contribuir positivamente para que se atinja a proficiência leitora. Da

142
mesma forma, o uso de estratégias de leitura pode ajudar o leitor a tor-
nar-se autônomo em seus estudos. Com esta pesquisa, que investigou 180
universidades em todos os estados do Brasil, tanto na esfera pública como
na privada, percebemos que existem poucos estudos que exploram o papel
das estratégias de leitura para o desenvolvimento da compreensão leitora.
Compreendemos que as estratégias de leitura são mais uma das muitas for-
mas possíveis para melhorar a habilidade leitora, mas por questões de deli-
mitação de estudo, uma apuração rígida foi necessária para determinar as
pesquisas do nível stricto sensu com que esperávamos trabalhar. É impor-
tante destacarmos aqui, que ao delimitar nossa busca pelas palavras-chave
(estratégias de leitura; ensino de leitura; uso e/ou instrução de estratégias;
estratégias de leitura em língua materna e/ou estrangeira; professor de lei-
tura) no título ou resumo das pesquisas, é possível que algumas pesquisas
que abordam o tema estratégias de leitura, mas não empregam esses termos
nos títulos e/ou resumos de seus estudos, tenham sido acidentalmente ex-
cluídas de nosso corpus. No entanto, ainda assim, como explicita o Gráfico
4, acima, a gama de instrumentos utilizados nas pesquisas é bastante gran-
de – considerando que, ao final, trabalhamos com 33 pesquisas que enfo-
caram seus estudos em ensino, aprendizagem e/ou utilização de estratégias
de leitura, nos dando possibilidades de estabelecermos um panorama das
pesquisas realizadas entre 2000 e 2016.
Conforme apontado anteriormente, o retrato das pesquisas sobre es-
tratégias de leitura revela uma concentração de estudos na Região Sul do
país, possivelmente em decorrência das áreas de concentração em Linguís-
tica e Linguística Aplicada e das linhas de pesquisa dos PPGs que se encon-
tram nesta região. Parece-nos que os resultados de avaliações educacionais
nacionais, alcançados pelas diversas escolas inseridas nessa região têm uma
relação direta com os resultados das pesquisas que aos poucos chegam até
às escolas, ou ainda melhor, incluem a realidade escolar como contexto de
investigação (relembramos que das 33 pesquisas analisadas, 13 foram con-
duzidas com estudantes do Ensino Fundamental, 6 com estudantes do En-
sino Médio). Outro ponto que merece ser destacado, é referente aos tipos
de estratégias de leitura mais investigados nos estudos, que estão associa-
dos à compreensão inferencial, isto é, à capacidade do leitor de compreen-

143
der o que está implícito. Pode-se perceber que a academia está interessada
em saber porque o estudante compreende muito pouco além daquilo que
está explícito no texto, utilizando-se de diferentes instrumentos para ve-
rificar o que ocorre na mente do leitor enquanto lê (protocolos verbais) e
quais são as estratégias de leitura utilizadas ou percebidas pelos leitores du-
rante a realização de uma dada tarefa (questionários, entrevistas). Apesar
de incipiente, 6 estudos valeram-se do método de pesquisa-ação, por meio
de período instrucional sobre estratégias de leitura, demonstrando (quem
sabe?) o acordar dos professores pesquisadores para a mudança do quadro
de leitura no Brasil, que deve focar na escola e na formação (continua-
da) de professores. Finalmente, apesar de termos encontrado um número
baixo de pesquisas sobre estratégias de leitura neste período de 16 anos,
parece-nos que encontramos um retrato relativamente animador, haja
vista a variedade de métodos selecionados para compreender porque o
estudante brasileiro ainda não consegue compreender informações mais
complexas inseridas em textos longos e contínuos, por exemplo. Falta
inserir nesse retrato um número maior de pesquisas longitudinais com
estudantes com baixo desempenho em leitura nos diferentes níveis de
escolarização que comprovem a eficácia do ensino direto de estratégias de
leitura, conforme sugerido por Nist e Mealy (1991). Este é apenas um dos
vários aspectos que precisam ser incluídos e atualizados no nosso retrato
brasileiro das pesquisas no âmbito da leitura.

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146
7
A compreensão leitora do futuro professor
de letras em formação:
observando as habilidades de reflexão e avaliação

Gabriel Augusto Scheffer


Claudia Finger-Kratochvil

Introdução

Nas mais diversas esferas e sob diferentes perspectivas, a leitura e a for-


mação de leitores têm sido tema para estudiosos e pesquisadores, gestores
públicos, agências internacionais de desenvolvimento, mídia, entre outros.
Nesse contexto, em especial, a questão da formação de leitores tem sido
pesquisada por aqueles que se dedicam aos estudos da leitura e à formação
de professores, no Brasil, sendo a universidade um espaço privilegiado para
essa tarefa.
Várias instâncias e muitos profissionais reconhecem e valoram a lei-
tura como um dos elementos fundamentais para o êxito na construção de
saberes dos mais variados tipos, como a própria escolarização e as ativi-
dades de leitura no cotidiano em geral. Dessa forma, é possível constatar
que a leitura não se constitui como uma tarefa simples e espontânea, mas
como uma atividade de construção de sentidos1 e significados ao se levar
em consideração as intenções, objetivos e expectativas do leitor no ato de
ler (Kleiman, 1999).

1 Considerando a concepção de leitura adotada para o presente trabalho, concorda-se que a construção
de sentidos em um texto “[...] implica ouvir o que o texto tem a dizer e relacionar aquilo que se puder
escutar, de modo bastante assimétrico, alinear e difuso, aos conhecimentos já elaborados e (in)compa-
tíveis com o que o texto propõe” (SOUZA, 2012, p. 48).

147
Nessa perspectiva, Cain (2009) explica que o processo de compreensão
na leitura se constitui como uma atividade complexa e que vários conheci-
mentos são requeridos, desde aqueles provenientes do texto até os saberes
do próprio leitor. Entretanto, esse (re)conhecimento ainda tem abrangên-
cia restrita e prevalece uma equivocada concepção de que o processo de
ensinar e aprender a ler é uma tarefa simples e que não demanda um con-
junto de conhecimentos, habilidades e estratégias que são desenvolvidos no
percurso de envolvimento do leitor com as diferentes formas de leitura com
que se depara no seu dia a dia, seja na escola, ou fora dela.
Dados que corroboram para essa constatação são os resultados desani-
madores que os estudantes brasileiros têm obtido em avaliações em leitura,
tanto de caráter nacional quanto internacional (Finger-Kratochvil, 2010).
Dentre as avaliações, menciona-se o Programa Internacional de Avaliação
de Estudantes (PISA)2, edições realizadas nos anos 2000, 2003, 2009, 2012
e 2015, que vêm mostrando que o Brasil apresenta baixas pontuações em
relação ao conjunto de habilidades em leitura analisadas. Nesse indicador,
o país inclusive tem figurado entre os dez últimos no ranking de desempe-
nho analisado (OECD, 2016) juntamente com outras nações da América
Latina.
Outras avaliações de caráter nacional têm sido realizadas. Algumas
são voltadas aos estudantes e, dessa forma, realizadas pelo Ministério da
Educação – MEC, por meio do Instituto Nacional de Pesquisas Anísio Tei-
xeira – INEP, como a Prova Brasil e o Exame Nacional do Ensino Médio –
ENEM. Elas têm demonstrado fragilidades na construção do leitor e, dessa
forma, endossam as constatações resultantes de outras mensurações, como
a já mencionada.
O Instituto Paulo Montenegro – doravante, IPMN –, responsável pelos
dados do Indicador de Alfabetismo Funcional – próximas menções, INAF –,
busca entender a leitura na sociedade de forma mais ampla, e revela, por
meio de seus dados, que um percentual muito pequeno da população pode
2 O Programme for International Student Assessment, PISA – sigla em inglês, se constitui como um ava-
liador das habilidades e conhecimentos de jovens na faixa dos 15 anos de idade que estão concluindo
o ensino fundamental. A mensuração deste indicador leva em consideração as capacidades em relação
à leitura, matemática e ciências dos estudantes. No que se refere ao domínio da leitura, o PISA aborda
três habilidades essenciais na compreensão de textos: Interpretação da Informação, Recuperação da
Informação e Reflexão e Avaliação da Informação (OECD, 2007).

148
ser considerado funcionalmente alfabetizado em um nível avançado de
acordo com seus respectivos critérios que estudam os níveis de alfabetismo
no Brasil. De acordo com as avaliações realizadas em diferentes edições,
menos de 30% da população brasileira, entre 15 e 64 anos de idade, pode
ser considerada funcionalmente alfabetizada (Instituto Paulo Montenegro,
2016). Na edição de 2015, 22% do público que estava cursando ou deixou o
ensino superior pode ser categorizado como funcionalmente alfabetizado
em um nível Proficiente3. Esses dados requerem atenção.
Por esses motivos, uma desafiadora questão tem surgido: estariam fu-
turos profissionais da área de Letras chegando no ensino superior com uma
bagagem leitora insuficiente de acordo com os novos desafios – especifica-
mente no que se refere à leitura que o âmbito acadêmico exige? O presente
trabalho procurou analisar a competência leitora de estudantes ingressan-
tes de um curso de Letras em uma Instituição de Ensino Superior (IES),
localizada no estado de Santa Catarina, com o intuito de verificar seus co-
nhecimentos em leitura, especialmente, no que se relacionava à habilidade
de Reflexão e Avaliação no início e nas fases finais do curso. A investigação
procurou analisar como os participantes lidam com tarefas que exigem a
capacidade de relacionar determinadas informações do texto com as expe-
riências e conhecimentos de mundo construídos.

Referencial Teórico

O presente referencial teórico apresenta uma perspectiva de leitura


como uma atividade cognitiva que exige tanto conhecimentos advindos do
texto, como também as contribuições que o próprio leitor ativa para se che-
gar ao estado que aqueles que exploram um determinado texto almejam:
a compreensão do texto lido. Dessa forma, entende-se que a construção
de significados na leitura não ocorre somente a partir da reflexão sobre o
código escrito. Ao invés disso, esse ato pode ser considerado como um pro-
3 De acordo com os critérios estabelecidos no Indicador de Alfabetismo Funcional, se enquadram no
grupo de analfabetos funcionais os Analfabetos e os Alfabetizados Rudimentares. No grupo dos consi-
derados funcionalmente alfabetizados, estão os de nível Elementar, Intermediário e Proficiente, sendo
os inseridos neste último aqueles indivíduos capazes de ler textos de maior complexidade. Para compre-
ender melhor as habilidades e conhecimentos que compreendem cada nível de classificação, sugere-se
acessar: <http://www.ipm.org.br/pt-br/programas/inaf/Paginas/default.aspx>.

149
cesso complexo no qual, ao final, o leitor apreende as informações do texto
a partir do seus conhecimentos, relacionando-os ao conteúdo lido (Gerber;
Tomitch, 2008).
Além disso, a leitura também pode ser considerada como uma das
atividades que propiciam crescimento pessoal e profissional. Alliende e
Condemarín (2005), nessa perspectiva, analisam que quanto mais eleva-
dos são os níveis em leitura dos indivíduos de uma determinada nação,
mais altos são os respectivos índices econômicos do país. Ao assumir esse
ato como uma atividade complexa que exige habilidades múltiplas, o en-
tendimento de algumas concepções de leitura é relevante na compreensão
de diferentes fatores que se relacionam para o êxito da tarefa nas mais
variadas leituras que são realizadas no cotidiano.

Concepções e abordagens de leitura

Admitindo que a leitura se estabelece como um processamento em di-


ferentes níveis (De Sousa; Gabriel, 2009) e que alguns fatores contribuem
para a obtenção de sucesso na tarefa, convém explorar as principais con-
cepções de leitura abordadas na literatura específica da Psicolinguística.
Leffa (1996) propõe quatro acepções que caracterizam a leitura como um
processo que exige diferentes formas de conhecimentos para a construção
de sentidos para o texto: modo de representação do mundo, extração de
significados do texto, atribuição de significados ao texto e a leitura intera-
tiva. Essas concepções determinam atitudes distintas do leitor ao realizar
uma determinada tarefa de leitura (Smith, 1989). Além disso, elas são im-
portantes ao se levar em consideração os objetivos do leitor ao efetuar uma
leitura, além do seu nível de compreensão diante do texto.
A leitura expressa como uma representação de mundo consiste na
compreensão como produto do conhecimento de uma realidade fragmen-
tada, que é reformulada a partir dos saberes prévios do leitor. Ou seja, é
o cérebro que seleciona as informações mais relevantes de acordo com o
conhecimento que já se encontra armazenado na mente (Smith, 1989). A
partir disso, percebe-se que nem sempre o que está exposto em um texto
reflete realmente seu significado real. Nesse contexto, Leffa (1996, p. 10)

150
afirma que, “ler é, na sua essência, olhar para uma coisa e ver outra”. Sendo
este um conceito mais abrangente de leitura.
Na concepção de que ler é extrair significado do texto, o processo é
ascendente e a ênfase está no texto (Leffa, 1996). O leitor assume o papel
de descobridor. As informações relevantes estão prontas e acabadas no
texto. Entende-se a leitura dessa forma, porque o leitor se vê obrigado,
em algumas situações, a ficar “o mais próximo possível do texto, tentando
extrair dele todos os elementos que possam ser úteis para o alcance dos
objetivos” (Souza, 2012, p. 69). Atenta-se para uma leitura ponderada e
cuidadosa na construção do significado, com base no próprio conteúdo
lido, para obtenção de sucesso na passagem de todas as etapas até a com-
preensão, mesmo se for necessário efetuar releituras frequentes. Diante
disso, verifica-se que o processo ascendente é mais comum nas tarefas de
leitura inicial ou emergente, devido ao fato de o aprendiz ainda possuir
um conhecimento de mundo limitado e do funcionamento do sistema
(Alliende, Condemarín, 2005; Souza, 2012). Também a leitura ascendente
é explorada nos momentos em que o leitor se depara com textos de difícil
compreensão, seja por conter palavras desconhecidas, um gênero não fa-
miliar ou, até mesmo, um tema ainda inexplorado por parte do leitor.
Já quando se adota um modelo de leitura em que a atribuição de
significado vai do leitor para o texto, realiza-se uma leitura que ativa os
conhecimentos do próprio leitor (Leffa, 1996). Essa concepção, também
conhecida como modelo descendente, caracteriza-se por considerar a
compreensão não como um produto final, mas como um percurso segui-
do pelo leitor ao ser guiado pelos seus conhecimentos prévios. Ou seja, os
sentidos e significados não estão totalmente incluídos no texto. Somente
com a contribuição das experiências e conhecimento de mundo do leitor
é que será possível construir um sentido global para o que está escrito,
para assim chegar ao entendimento do texto. Nessa acepção, é possível
perceber a leitura como “um registro das ideias principais na memória
de longo prazo por meio do acesso e comparação do que foi previamente
armazenado” (Finger-Kratochvil, 2010, p. 87).
Na leitura descendente, ao contribuir com seus conhecimentos pré-
vios e utilizar inferências relevantes para construção de significados em um

151
texto, o leitor consegue realizar previsões do assunto a ser explorado
(Sternberg, 2010). Neste contexto, Smith (1989, p.35) afirma que a es-
tratégia da previsão se constitui como “a eliminação de alternativas im-
prováveis”. Assim, ao realizar previsões, o leitor é capaz de descartar as
informações que são desnecessárias ou que são empecilhos na leitura.
Souza (2012), nessa perspectiva, argumenta que com o estabelecimen-
to do modelo descendente, a leitura torna-se um ato menos exaustivo,
resultando numa ação eficiente. Leitores competentes frequentemente
adotam essa abordagem em diferentes situações de leitura.
Entretanto, considerar somente o modelo ascendente ou o descen-
dente não é suficiente para que a compreensão no ato de leitura se con-
solide com êxito: precisa haver uma relação mútua entre o leitor e o texto
(Leffa, 1996). É através dessa interação que são construídos os sentidos
e significados em um ato de leitura. Por isso, o processo de interação de
leitor e texto tende a ser um modelo ideal para compreender aquilo que foi
lido, visto que a complexidade do ato de ler não permite focalizar apenas
o modelo descendente ou ascendente, mas sim os dois ao mesmo tempo
(Leffa, 1996). E, para o êxito na interação texto-leitor, o desenvolvimento
de habilidades e estratégias de leitura, além da construção de saberes pré-
vios, tende a auxiliar o leitor no processo de compreensão de textos.

Habilidades, estratégias de leitura e conhecimento prévio

Assim como outros saberes e conhecimentos que são adquiridos no


decorrer da vida, as habilidades de que necessitamos para compreender
um texto também precisam de prática para que contribuam no processo
de construção de significados para um determinado texto. Nesse sentido,
Afflerbach; Pearson e Paris (2008) explicam que uma habilidade de leitura
se caracteriza por seu caráter automático na execução, como, por exemplo,
o processo de reconhecimento de palavras por intermédio da decodifica-
ção. Entretanto, para interpretar as informações do texto com êxito, o leitor
também necessita usufruir de processos conscientes e deliberados que o
façam refletir sobre o seu respectivo desempenho na leitura: Estou enten-
dendo? Preciso voltar alguns parágrafos? O que essa palavra significa? etc.

152
Ou seja, ele precisa fazer uso de estratégias para prosseguir na leitura com
sucesso.
Dessa forma, um leitor competente se caracteriza justamente por sua
capacidade no desencadeamento de estratégias para se desvencilhar das pos-
síveis armadilhas que um texto impõe. Nesse contexto, Souza (2012) explica
que um leitor competente, além de ser estratégico, possui o hábito de pensar
em decisões pertinentes conforme a exigência da leitura, assumindo diferen-
tes processamentos em relação ao texto (ascendente, descendente, interati-
vo). Para Solé (1998), esse leitor estratégico é capaz de identificar e avaliar os
empecilhos impostos pelo texto, enaltecendo sua versatilidade no encontro
de soluções: é capaz de reconhecer se realmente está compreendendo ou so-
mente realizando uma leitura sem monitoramento e esquecendo os objetivos
que tinha em mente. Logo, o leitor estratégico tende a adotar flexibilidade nas
leituras que realiza. Isso torna-se relevante “quando o assunto é letramento
e, de forma mais específica, leitura, pois o desenvolvimento de capacidades e
habilidades é processo contínuo” (Finger-Kratochvil, 2010, p. 86).
De qualquer maneira, verifica-se que, no processo de compreensão de
textos e também no ensino-aprendizagem de conhecimentos exigidos para
a construção de significados para o texto, o leitor se utiliza de recursos tan-
to inconscientes, as habilidades, quanto conscientes, as estratégias. Nesse
sentido, torna-se possível observar que, para se aprender uma habilidade,
recursos estratégicos são requeridos. Após ter automatizado o processo,
como o reconhecimento de palavras, estratégias são requeridas para focar
a atenção consciente em outros recursos cognitivos, por exemplo o moni-
toramento da compreensão (Morais, 2013).
Esse cenário ocorre especialmente na formação de bons leitores, desde
a fase de alfabetização até a leitura autônoma, visto que eles necessitarão
lidar com os desafios que os textos impõem: iniciar aprendendo a reconhe-
cer palavras a partir de metodologias estratégicas e, após automatizar esse
processo, utilizar recursos conscientes para compreender aquilo que leu,
como a elaboração de inferências a partir de conhecimentos já construídos
e armazenados na memória (Gerber; Tomitch, 2008).
Em relação a isso, verifica-se que a capacidade humana de armaze-
nar informações, especialmente aquelas estocadas na memória de longo

153
prazo, se torna fundamental, pois é justamente esse tipo de memória que
permite às pessoas realizarem as suas tarefas do cotidiano. Nela estão con-
tidas as memórias que se adquirem no decorrer da vida, sejam visuais ou
dos demais sentidos (Izquierdo, 2002). Diante disso, percebe-se que, para
a leitura, essas experiências se tornam importantes para que o leitor possa
contribuir na construção de significado e sentidos do texto para compreen-
são, que podem ser a partir dos conhecimentos prévios, sejam linguísticos,
textuais e de mundo (Kleiman, 1999). No que se refere ao último, obser-
va-se que os conhecimentos adquiridos a partir das experiências humanas
não se encontram desorganizados no sistema cognitivo humano, mas sim
organizados por estruturas relacionadas, que Rumelhart (1981) chamou de
esquemas cognitivos.
A teoria de esquemas se estabelece como uma tentativa de explicar
como unidades de sentido são organizadas na mente humana na relação
com outras, a partir das conexões entre variáveis que se diferenciam em
diversas situações (Leffa, 1996). Em parte, isso explica o porquê as pessoas
procedem de maneira diferente em situações variadas. Com o passar do
tempo, a tendência é que esses esquemas possam se expandir e, um dos
principais meios de fortalecimento dessas relações, pode ser a leitura fre-
quente.
Dessa forma, visto que os textos não trazem consigo todas as informa-
ções de que se necessita para a sua compreensão; isto é, são imprescindíveis
os conhecimentos registrados pelo código escrito e, portanto, advindos do
sistema linguístico, mas também os conhecimentos que o leitor já possui,
observa-se que os esquemas são relevantes para que a compreensão ocorra
com sucesso. Assim, quanto mais específicos e quanto maior for o número
de esquemas e subesquemas que o leitor possuir, provavelmente, tanto me-
lhor as lacunas, que o texto possui, serão preenchidas, visando à constru-
ção de sentidos que propiciará ao leitor novos aprendizados e, consequen-
temente, o fortalecimento dos seus esquemas cognitivos (Anderson, 2004).
Isso, por sua vez, propiciará ao leitor uma leitura menos árdua pelo fato de
conseguir construir sentidos que muitas vezes não estão explícitos no texto
e cujo alcance necessita da memória de longo prazo para poder relacionar
as informações presentes no texto.

154
Método

Participantes

Os participantes deste estudo foram estudantes de curso de Letras de


uma IES localizada no estado de Santa Catarina que efetuaram os testes em
duas etapas da graduação. Na primeira etapa, envolveram-se na pesquisa 15
acadêmicos. Transcorridos sete períodos do curso, 9 deles estavam regular-
mente matriculados e participaram do segundo momento da coleta de dados.

Instrumentos

Aplicou-se aos participantes envolvidos na investigação o Teste CF-K


(Mendes, 2016; Finger-Kratochvil, 2010), composto de três Unidades de
Leitura, doravante ULs, compostas por textos de circulação na esfera jorna-
lística e questões abertas e fechadas em diferentes níveis de complexidade.
O instrumento foi construído a partir dos critérios do PISA para estudar a
competência leitora dos estudantes considerando as seguintes habilidades
de leitura: Recuperação da Informação (RI), Interpretação da Informação
(II) e Reflexão e Avaliação (RA). Os níveis de complexidade das questões
variaram de 1 a 5. A UL01 foi composta de seis questões a partir do texto
Sob o império da dúvida. Já a UL02, com o texto Celulares acessam do banco
ao MSN, propomos quatro questões. E, por fim, a partir do texto Muito além
do champignon, os participantes realizaram oito atividades de compreen-
são4. Para o presente trabalho, dedicou-se à análise das questões referentes
ao Domínio Reflexão e Avaliação, com o intuito de verificar como os par-
ticipantes relacionam as informações do texto com os seus conhecimentos,
saberes e experiências prévias na construção de sentidos para os textos lidos.

Critérios de Análise dos dados

Visando ao desempenho geral do grupo, a partir das respostas apre-


sentadas nas tarefas de leitura, calculou-se o escore obtido pelos partici-
4 Para maiores esclarecimentos a respeito do teste, veja Finger-Kratochvil (2010).

155
pantes, sendo total ou parcial, conforme o grau de proficiência requerido
na tarefa. Algumas questões possuíam dois escores possíveis, dependendo
das respostas que se esperavam do participante de acordo com o nível de
complexidade da questão.
Com relação à habilidade de leitura Reflexão e Avaliação, verificou-se o
desempenho nas questões referentes ao domínio em específico, distribuídos
nas questões das ULs para uma posterior interpretação dos resultados de
acordo com o embasamento das avaliações do PISA (OECD, 2007).

Procedimentos

Em um primeiro momento, aplicaram-se os testes aos estudantes na


qualidade de participantes ingressantes. Nessa etapa, eles realizaram ape-
nas dois testes de leitura: a UL01 e UL02. Passadas sete fases da graduação,
os participantes foram convidados a realizar novamente os dois testes e
mais a UL03. Este mais complexo em se tratando do nível de complexidade
das questões.

Análise e Discussão dos resultados

Na verificação dos resultados, decidiu-se analisar separadamente o de-


sempenho dos participantes nas ULs considerando o grupo nos dois mo-
mentos da realização dos testes: ingressantes e graduandos da sétima fase
do curso. Por fim, comparou-se o desempenho dos estudantes nas duas
fases sob olhares atentos de questões referentes à habilidade de leitura que
o trabalho procurou estudar: Reflexão e Avaliação.

Verificação do desempenho dos participantes: grupo ingressante

A principal questão que este estudo procurou investigar diz respeito às


habilidades de leitura que os participantes da pesquisa trouxeram e/ou de-
senvolveram (ou não) no decorrer do ensino superior no que diz respeito à
capacidade de refletir e avaliar informações específicas do texto. Primeira-
mente, dedicou-se a atenção ao desempenho nas tarefas de leitura do grupo
enquanto ingressantes do curso de Letras:
156
Quadro 1: Pontuação geral nas ULs: sujeitos como grupo ingressante
UL Escores esperados Média do grupo
UL01 2812 1930, 2
UL02 2067 819, 5
Fonte: os autores

Analisando o Quadro 1 acima, percebeu-se que os participantes obti-


veram resultados abaixo do desejado, visto que o teste CF-K espera que os
estudantes ingressantes no ensino superior tenham alto escore, pois as ha-
bilidades de compreensão em leitura requeridas, supostamente, deveriam
ter sido desenvolvidas até o final do ensino médio. As duas ULs, ora aplica-
das, abrangem questões com menor demanda em sua complexidade, mas
dada a sua significância estatística (veja Finger-Kratochvil, 2010) indicam
a fragilidade do leitor ingressante em algumas habilidades em específico.
A fim de entender melhor os resultados quantitativos gerais, decidiu-
-se analisar o domínio Reflexão e Avaliação em específico, observando o
desempenho dos estudantes nessas questões. Na sequência, apresenta-se a
questão 5 da UL01 do texto Sob o império da dúvida.

Quadro 2: UL01Q05

UL01 Questão 5 – Por que motivos se afirma que a princesa Isabel não teria papel
representativo na história do Império? Justifique sua resposta com dados do texto,
se possível.
Fonte: Finger-Kratochvil, 2010

Nessa questão, do domínio Reflexão e Avaliação de nível 2 em com-


plexidade, esperava-se que os participantes realizassem uma conexão entre
o texto e seus conhecimentos anteriores. Percebeu-se que 93,3% dos par-
ticipantes não obtive êxito na tarefa de ativar seus conhecimentos prévios
na construção de relações e conexões entre a figura da mulher na época do
Império (seus direitos e deveres) e as regras estabelecidas para a sucessão
governamental em uma determinada monarquia, visto que a princesa Isa-
bel era a segunda filha do imperador Pedro II. A informação está apresen-
tada no próprio texto proposto aos participantes para a leitura. Notou-se
que a maior parte dos acadêmicos não foram capazes de relacionar o con-
157
teúdo do texto, posicionando-se em relação aos critérios de sucessão do
Império: o fato de na época as mulheres não possuírem os mesmos direitos
que os homens, por exemplo.
Observa-se ainda para o fato dessa tarefa, junto com as outras 5 questões
da UL01, estarem distribuídas nas questões mais baixas em complexidade,
i.e., nos níveis 1, 2 e 3, considerando o PISA como balizador do teste CF-K.
Por essas razões, essa UL apresentava-se com um maior grau de facilidade
na resolução comparativamente. Situação semelhante observou-se no de-
sempenho verificado nas tarefas realizadas na UL02. Para fins de ilustração,
apresenta-se a UL02Q02 do texto Celulares acessam do banco ao MSN:

Quadro 3: UL02Q02

UL02Questão 2 – O redator chefe da seção Saiba Como, do jornal O Estado de


São Paulo, após ler o texto de Diego, chamou sua atenção para o último parágrafo
e para as últimas quatro linhas.
Mas, atenção, se for acessar um site com fotos, sons e afins usando o celular como
modem, prepare o seu bolso.
Ele aconselhou Diego a mudar a redação afirmando que ela não esclarece o leitor
adequadamente e sugerindo a troca da expressão “prepare o seu bolso”.
Você concorda que o trecho mencionado não é esclarecedor e a expressão “prepa-
re o seu bolso” deveria ser substituída? Justifique sua resposta.

Fonte: Finger-Kratochvil, 2010

Esperava-se que os participantes fossem capazes de comparar o assun-


to abordado pelo texto, em relação ao avanço das novas tecnologias e suas
respectivas repercussões ao conhecimento que já possuíam sobre essa te-
mática, a fim de avaliar a adequação (ou não) do uso da expressão “prepare
o seu bolso”.
Tem-se, então, mais uma tarefa do domínio Reflexão e Avaliação, po-
rém, dessa vez, de nível três. Os resultados apontam que quase três quar-
tos dos participantes, mais precisamente 71,4%, não se mostraram seguros
para refletir e avaliar a respeito do desafio proposto pelo texto, utilizan-
do-se de conhecimentos e experiências anteriores. Essa habilidade é de
grande importância na construção de sentidos e construção do letramento

158
crítico. Verificou-se a constância de respostas vagas e insuficientes, como:
“que ela ficou boa na frase” e/ou “que é possível entendê-la”, sem ao menos
uma avaliação direta, ou indireta, na apresentação de razões para o posicio-
namento que julgassem adequado.

Análise e comparação dos dados dos testes realizados pelos participantes


na sétima fase do curso

Passados sete períodos do curso de Letras, aplicou-se novamente o teste


CF-K, aos estudantes que continuaram matriculados no curso de graduação,
somando-se a UL03. Os dados revelam que, em comparação com o desem-
penho nas ULs no primeiro semestre, houve desenvolvimento da compre-
ensão em leitura dos participantes. Observando o Quadro 4, verifica-se o
aumento dos escores apresentados pelos estudantes em ambas as ULs que
foram desenvolvidas nos dois momentos da testagem: UL01 e UL02.
A UL02, especialmente, aponta uma significativa melhora nos resulta-
dos. Comparados os níveis de dificuldade entre as ULs, a UL03, composta
por questões nos níveis mais altos dos três domínios - RI, II e RA – também
indica crescimento na qualidade da compreensão em leitura dos partici-
pantes.

Quadro 4: Pontuação geral nas ULs dos sujeitos como grupo da sétima fase

UL Média do grupo Média do grupo Escores esperados


(Sétima fase) (Ingressantes)
UL01 2180, 1 1930, 2 2812
UL02 1875, 3 819, 5 2067
UL03* 3449, 8 - 4962

*UL aplicada somente aos participantes remanescentes do curso


Fonte: os autores

Os escores revelam a evolução nos resultados obtidos pelos participan-


tes ao longo da graduação, constatando, inclusive, que eles se apropriaram
de novas habilidades nos três domínios nos níveis mais altos. Entretan-
159
to, a discussão de algumas questões a respeito desse desempenho torna-se
necessária visto que caberá a esses futuros profissionais da área de Letras
trabalhar com o processo de ensino e aprendizagem da leitura.
No que diz respeito às tarefas de leitura proposta na UL01, percebeu-se
uma grande evolução na resolução das questões por parte dos participan-
tes. Entretanto, verificou-se um alto grau de insucesso na questão UL01Q05
(veja quadro 2). Mais uma vez os participantes demonstraram dificuldade
de relacionar seus conhecimentos prévios, a partir das suas experiências de
mundo, com as informações em conflito no texto para solucionar um pro-
blema, visto que alguns não obtiveram escores nesta questão. Dessa forma,
notou-se que, mesmo passadas sete fases do curso, permaneceram lacunas
no que se refere à habilidade de refletir e avaliar certas passagens do texto.
Esse cenário foi reforçado pelo dado de que quanto mais alto o nível
de complexidade da questão, maior tem sido o grau de insucesso em sua
resolução. Esse fato é evidenciado pelo desempenho dos participantes em
questões referentes ao texto Muito além do champignon, da UL03, especi-
ficamente aquelas que demandaram habilidades de Reflexão e Avaliação:

Quadro 5: UL03Q04

UL03Questão 4 – Por que podemos afirmar que os cogumelos são espécies amea-
çadas de extinção?

Fonte: Finger-Kratochvil, 2010

A partir da questão 4 da UL03, esperava-se que os participantes refletis-


sem a respeito do conteúdo do texto, utilizando-se de conhecimento e expe-
riência armazenados na memória para formular uma hipótese coerente com
as informações lidas. Diante disso, notou-se que 77,7% do grupo falhou na
tarefa de leitura estabelecida. Visto que essa questão se constituía no mais
alto nível de complexidade do domínio Reflexão e Avaliação, observou-se
novamente a dificuldade dos estudantes em trabalhar com conceitos con-
trários às expectativas em textos extensos e com alto grau de complexidade,
reforçando o cenário de que os estudantes chegam à graduação trazendo na

160
sua bagagem de leitor apenas habilidades de nível básico referentes à leitura
(Finger-Kratochvil; Baretta; Klein, 2004; Finger-Kratochvil, 2010).
Nesse contexto, percebeu-se que, na exigência de tarefas com alto teor
de elaboração como avaliar informações competitivas ou mesmo a reali-
zação de inferências para compreender determinadas passagens do texto,
o grau de sucesso diminui consideravelmente (Finger-Kratochvil, 2010).
Além disso, esperava-se um resultado não tão inconstante nessas tarefas
de leitura, visto que o gênero de texto proposto nos instrumentos, da esfe-
ra jornalística, deveria ser bastante familiar aos participantes da pesquisa,
considerando que a maior parte dos ingressantes concluíram o ensino mé-
dio pouco tempo antes de iniciarem seus estudos em uma instituição de
ensino superior.

Considerações finais

Os dados por ora analisados demonstram, mais uma vez, a fragilidade


das habilidades em leitura tanto do ingressante quanto do acadêmico em
fase avançada de um curso superior de Letras. A partir do presente estudo,
percebeu-se que quanto mais alto o grau de complexidade das questões
distribuídas nos diferentes domínios de letramento, menor foi o sucesso na
resolução das tarefas.
Comparando o desempenho dos dois grupos de participantes, a par-
tir do estudo realizado, confirmou-se o ingresso de estudantes no ensino
superior com uma bagagem leitora insuficiente, visto que as exigências em
leitura nesta etapa de formação requerem um alto índice de habilidades em
leitura. Contudo, percorridos sete fases da academia, percebeu-se a ocor-
rência de uma evolução nestas habilidades, porém ainda com a presença de
fragilidades no aperfeiçoamento de algumas delas.
Verificou-se, ainda, inclusive dos participantes enquanto concluintes
do curso, problemas na habilidade de Reflexão e Avaliação da informação.
Constatou-se que, quando se exigia o trabalho com informações competiti-
vas, relacionando-as com seus próprios conhecimentos sobre o assunto, na
maioria das vezes, os participantes não conseguiram apresentar desenvol-
vimento de habilidades a respeito do que fora solicitado em relação a este
domínio nas ULs. Observou-se que, até mesmo em questões com os mais

161
baixos índices de dificuldade no domínio, os participantes não obtiveram
os resultados esperados, o que é especialmente preocupante, considerando
o seu grau de formação.
Pelos dados anteriormente apresentados, entende-se ser urgente a
abordagem dos temas relativos à leitura, considerando-se as ciências que
a têm estudado – psicolinguística, linguística aplicada, neurociências, por
exemplo –, a fim de aprofundar a discussão nos cursos de formação de pro-
fessores. Só uma sólida e científica formação de professores poderá auxiliar
em mudanças nesse quadro lamentável que se apresentou (e se apresenta),
pois ele acaba se tornando um circuito fechado e vicioso: uma formação
precária formará outros com precariedade. Urge se ensinar a respeito dos
processos da leitura aos futuros professores de Letras e Pedagogia princi-
palmente, mas não exclusivamente. Os professores de todas as áreas preci-
sam estudar a compreensão em leitura. Esses profissionais trabalharão com
a leitura em sala de aula, sendo especialmente eles que deverão descons-
truir um cenário, que em grande medida não tem se revelado propício para
a formação de leitores críticos, autônomos e estratégicos.

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163
8
Ensinar a estudar ensinando a ler:
potências dos roteiros de leitura

Ana Cláudia de Souza


Cristiane Seimetz-Rodrigues
Helena Cristina Weirich

5. QUINTA SUGESTÃO. Ensine Chizalum a ler. Ensine-lhe o gosto


pelos livros. A melhor maneira é pelo exemplo informal. Se ela vê
você lendo, vai entender que a leitura tem valor. Se ela não frequen-
tasse a escola e simplesmente lesse livros, provavelmente se instruiria
mais do que uma criança com educação convencional. Os livros vão
ajudá-la a entender e questionar o mundo, vão ajudá-la a se expres-
sar, vão ajudá-la em tudo o que ela quiser ser – chefs, cientistas, artis-
tas, todo mundo se beneficia das habilidades que a leitura traz. Não
falo de livros escolares. Falo de livros que não têm nada que ver com
a escola: autobiografias, romances, histórias. Se nada mais der certo,
pague-a para ler. Dê uma recompensa. Sei dessa nigeriana incrível,
Angela, uma mãe solo, que estava criando a filha nos Estados Uni-
dos. A menina não gostava de ler, então a mãe decidiu pagar cinco
centavos para cada página lida. Mais tarde, ela dizia brincando: “Saiu
caro, mas o investimento valeu a pena” (Adichie, 2017, p. 34-35).

Introdução

Tal como sugere Chimamanda Adichie, no manifesto Para educar


crianças feministas, o maior objetivo que se persegue com o que está pro-
posto neste capítulo é ensinar a ler, ensinar a ler não apenas livros escolares
164
e não apenas para a escola. Ensinar a ler para a democracia real, ensinar a
ler para promover a equidade de gêneros, ensinar a ler para muito além do
que preveem os campos disciplinares. Ensinar a ler, ler e ler, fazendo com
que, tal como propõe Morais (2014), a recompensa acabe por estar no pra-
zer, na alegria e nos benefícios inerentes à leitura e à escrita.
Como professoras e como pesquisadoras envolvidas com o estudo da
leitura, propomos ir além do bom e importante exemplo de leitura e de
leitor que, tanto em casa quanto na escola, se pode almejar que a criança te-
nha. Buscamos abordar, de modo sistemático, um ensino de leitura que par-
ticipe da promoção e da consolidação da democracia. Assim, apresentamos
ao leitor proposta de reflexão e demonstração acerca de papéis potenciais
que os roteiros de leitura podem desempenhar nos espaços e tempos desti-
nados a ensinar a ler nos ambientes de educação formal – institucionalizada
ou não – dos quais a escola faz parte. Esta proposta é fruto de pesquisas, ex-
periências docentes e interação com professoras e professores da educação
básica por meio de projetos, aulas, minicursos e oficinas de leitura e ensino.
Para chegar aos lugares e funções que podem ser ocupados pelos rotei-
ros, esta exposição é iniciada, na segunda seção, tratando de questões teó-
ricas acerca dos conceitos e processos de leitura, de compreensão leitora e
de ensino de leitura com os quais operamos. Se para ter acesso a muitos dos
conhecimentos que circulam nos espaços formais de educação é preciso
estudar textos escritos e, portanto, ler; para ler é preciso estudar e aprender
a lidar com um objeto que não se mostra disponível e acessível ao sujeito, se
este não souber desvendá-lo: o texto escrito. Por isso, neste capítulo, discu-
tem-se aspectos do ensino da leitura, objetivando propor estratégias, ações
e atividades que propiciem o ensinar a ler e o ensinar a estudar ensinando
a ler, por meio de roteiros de leitura.
Com base na exposição e discussão travadas, são apresentados, descritos
e analisados dois exemplos que evidenciam potenciais do roteiro em sala de
aula: um deles com o propósito de ensinar a ler (apresentado na quarta se-
ção deste texto) e outro com o propósito de avaliar a leitura, observando seu
resultado e os caminhos percorridos, com vistas ao desenho de um projeto
instrucional para o ensino da leitura (quinta seção). A terceira seção oferece
ao leitor o texto-base a partir do qual os roteiros foram elaborados.

165
Da leitura ao roteiro de leitura no processo de ensinar a ler e a estudar

O que é leitura? Ou qual perspectiva de leitura é assumida neste tex-


to? Leitura se ensina? Começando de trás para frente, a última questão já
está respondida, uma vez que, se propomos ações, ferramentas e atividades
instrucionais, é sobre ensino que estamos falando e, mais especificamente,
sobre o ensino da leitura, que é por nós concebida como uma competência
desenvolvida a partir da relação que o leitor (que sempre se encontra em
processo de formação e novas aprendizagens) estabelece com o texto escri-
to, com vistas a alcançar determinado objetivo, relativo a alguma compre-
ensão, em situação e contexto específicos.
Dizer que a leitura é uma competência implica, neste caso, considerá-
-la como um conjunto de habilidades não compulsórias e não espontâneas
(ou, pelo menos, não espontâneas enquanto não forem aprendidas) que
precisam ser elaboradas, desenvolvidas e praticadas, a fim de que se saiba o
que fazer e como fazer quando se lê, para que o propósito de alguma sorte
de produção de sentidos (tal sorte depende daquilo que o leitor ou o profes-
sor ou instrutor almejam) tenha chance de ser obtido, ou seja, de que haja
possibilidade de desencadeamento de um processo de representação men-
tal e retextualização do escrito. Isso envolve necessariamente a visão ou o
tato como meio de recepção do estímulo e o conjunto de conhecimentos
prévios disponíveis e relevantes do leitor, de modo a permitir a compreen-
são1 (Souza, 2012).
Considerando o exposto e sintetizando com base no que propõem
Gagné, Yekovich e Yekovich (1993), a leitura requer um conjunto de co-
nhecimentos, fundamentalmente declarativos, que ora se vai chamar de
1 Morais (2014, p. 38) opta pelo termo “extração de sentido” ao tratar do objetivo da compreensão do
texto. Ele refuta o termo “construção” e, provavelmente, refutaria também “produção” ou “retextualiza-
ção” – termos pelos quais optamos –, argumentando acerca da inapropriação deles, já que a existência
do texto independe do leitor e que “seu sentido não é construído como se constrói uma casa”. Tampouco
aceita o autor o termo “reconstrução”, posto que esta “implicaria que a casa tivesse sido derrubada para
ser construída de novo”. Argumentamos pela manutenção dos termos que selecionamos, porque conce-
bemos “produção” e “retextualização” de maneira diversa daquela explicitada pelo autor. Por produção
de sentido no contexto de leitura, entendemos os mecanismos que levam o leitor a confrontar as infor-
mações provenientes – e aí, sim, extraídas – do texto àquelas oriundas dos seus sistemas de memória,
que são incitadas pelo texto, mas não são por ele geradas. É do encontro entre esses dois conjuntos de
informação que o sentido se produz em leitura ou que se retextualiza o dito no texto escrito, por meio
de uma representação mental, o que não gera necessariamente um produto acessível a outros leitores.

166
conceituais, e um conjunto de habilidades, que implica ações estratégicas
e procedimentais2 e que leva à competência3. Juntos, esses dois conjuntos,
que se dosam de modo não necessariamente semelhante, buscam equili-
brar o leitor para otimizar a produção de sentidos coerentes e relevantes
tanto ao texto quanto às intenções da leitura. Trata-se de condição fun-
damental para a relação que o leitor estabelece com o texto, cujas carac-
terísticas podem indicar graus variados de qualidade, de intensidade, de
elaboração e de durabilidade e consolidação. Dos conhecimentos concei-
tuais necessários, salientam-se os linguísticos, os formais, os temáticos e os
socioculturais.
Nos conhecimentos de natureza linguística4, está implicado o que o lei-
tor sabe sobre a língua na qual ele se dispõe ou é convidado a ler, conheci-
mentos de uso e também conhecimentos sobre como essa língua funciona
e como um sistema de escrita alfabético e, a partir dele, o sistema ortográfi-
co a ela se relacionam, os chamados conhecimentos metalinguísticos. Aqui
estão envolvidos os conhecimentos fonéticos, fonológicos, morfológicos,
sintáticos, semânticos, pragmáticos e as suas inter-relações.
Os de natureza formal dizem respeito a como os textos se constituem e
se organizam na escrita, como seus propósitos, temas, áreas, públicos-alvo
(conhecidos e reais ou apenas almejados), espaços de circulação e os pró-
prios autores e autoras participam da composição daquilo que se materiali-

2 Os conhecimentos declarativos ou explícitos se podem constituir a partir do conhecimento sobre o


mundo, sobre como a sociedade funciona, sobre a língua etc. e também a partir da experiência. As
memórias explícitas se referem a situações que pensaríamos como referentes à memória e que pode-
riam ser lembradas, por exemplo. Os conhecimentos não declarativos ou implícitos dizem respeito a
situações nas quais obtemos desempenho, por ter havido aprendizagem, mas tal aprendizagem não está
disponível à lembrança, à evocação. Para saber mais sobre o que são as memórias e como se constituem
e organizam, recomendamos a leitura de Baddeley, Anderson e Eysenck (2011).
3 Para uma síntese do que propõem Gagné, Yekovich e Yekovich (1993), recomendamos a leitura de
Tomitch (2012), principalmente do mapa constante da página 17.
4 Embora este não seja o objetivo deste texto, importa destacar que os conhecimentos linguísticos dizem
respeito ou constituem traços tanto de memórias de natureza declarativa quanto procedimental, uma
vez que há aspectos da língua que estão disponíveis à evocação e há aspectos que não estão, embora te-
nham sido aprendidos e estejam disponíveis ao uso. Aqui, aos interessados em alfabetização, recomen-
damos a leitura de textos, frutos de pesquisa, que tratam da consciência metalinguística, da consciência
fonológica (especialmente a fonêmica) e de outras consciências que precisam ser desenvolvidas para a
aprendizagem da leitura e da escrita, a exemplo da morfológica, da sintática, da semântica e da textual.
Recomendamos as seguintes leituras: Pereira e Scliar-Cabral (2012), Scliar-Cabral (2013); Koch (2014);
Flôres (2014), Soares (2016) e capítulos do livro organizado por Naschold e colegas (2015).

167
za para o leitor como texto, daquilo que se apresenta para ser lido. Alguns,
neste aspecto, falariam em gênero de texto ou em gênero do discurso.
Os de natureza temática, por sua vez, são aqueles conhecimentos que
o leitor já tem sobre aquilo de que o texto trata, sobre seu assunto. E os de
natureza sociocultural são os que orientam a produção de sentidos, posto
abarcarem a maneira como vemos e nos relacionamos com o mundo, os
lugares sociais, os valores, as crenças, as experiências. Quanto mais conhe-
cimentos temáticos e socioculturais o leitor tiver sobre o assunto tratado,
maiores serão as antecipações e as possibilidades de construção de inferên-
cias de natureza integrativa e elaborativa, por exemplo.
Isso vale também para os conhecimentos linguísticos e formais. A expe-
riência contribui para a formação de memórias, e as memórias são acionadas
na execução das atividades que as requerem. Todavia, há que se considerar o
risco que a especialização pode trazer ao processo de leitura (ou aos proces-
sos de compreensão de modo mais geral), uma vez que um especialista em
determinado assunto, se não for um exímio leitor, corre o risco de se impor
ao texto e, ao se impor, ele desrespeita os espaços de produção de sentido
propostos e até autorizados por aquele texto. Não que todos os textos criem
fronteiras claras e relativamente precisas de produção de sentidos (como o
fazem, por vezes, os textos acadêmicos). Mas, de certa forma, a produção
de sentidos, embora fique sob a responsabilidade do leitor na atividade de
leitura, não dá a ele o direito de chegar aonde bem quiser dizendo que leu
o texto. Ir, ele pode até aonde quiser; dizer que foi por meio da leitura é que
não poderia, neste caso. E é aí que ocorrem alguns dos problemas de com-
preensão e interpretação indevida de textos, de distorção de sentidos.
Da competência, ou seja, do conjunto de habilidades, estratégias e
comportamentos implicado no ato de ler ou no como ler, destacam-se, nes-
te trabalho, os processos de descodificação, reconhecimento da palavra es-
crita, de computação sintática e dos mecanismos textuais, e os processos de
inferenciação e de monitoramento. Aqui, talvez você, leitora ou leitor, possa
se perguntar: “Mas tudo isso não é automático? Como leitor ou leitora, não
tenho consciência, tampouco controle de tais processos!”. É exatamente esta
a intenção quando se ensina a ler: que esses processos, por implicarem pro-
cedimentos, sejam automatizados e se tornem implícitos, que eles não mais

168
sejam controlados, a fim de que se possa alocar os recursos atencionais e de
processamento à produção de sentidos e ao alcance dos objetivos. Ocorre
que só se automatiza aquilo que se conhece, aquilo que se sabe fazer, a tal
ponto que não se tem mais consciência de como se está fazendo.
A grande questão aqui, como enfatiza a Professora Leonor Scliar-Cabral,
na entrevista que faz parte do capítulo primeiro deste livro (Heinig; Souza;
Finger-Kratochvil, 2019), é que tais habilidades não se desenvolvem com
base no espontaneísmo ou a partir da inserção e vivência em contextos de
letramento. O ensino é necessário, a sistematização é requerida, já que se
está falando do acesso a uma tecnologia que, em origem, serviu, não ape-
nas mas também, para driblar a efemeridade da fala, que materializa a lín-
gua. Tal tecnologia foi inventada e precisa ser aprendida. O cérebro precisa
aprender a lidar com ela, a processá-la (Dehaene, 2012; Scliar-Cabral, 2013).
E, uma vez que isso acontece, esse conhecimento passa a retroalimentar o
que sabemos sobre e como usamos a língua (Weirich, 2016; Souza; Weirich;
Procailo, 2017). A escrita parece possibilitar que tomemos a língua entre
aspas, tal como propõem Olson e Oatley (2013)5.
Voltando ao conjunto de habilidades, estratégias e comportamentos
que constituem a competência, é relevante compreender o que cada um
dos processos mencionados significa, mas, antes disso, entender o porquê
de se falar em habilidades, estratégias e comportamentos. Conforme sin-
tetiza Seimetz-Rodrigues (2017), as estratégias se referem ao movimento
deliberado, planejado, monitorado, autocontrolado e flexível do leitor com
vistas à obtenção de objetivos e tomada de medidas de ajuste sempre que
necessário. O comportamento é compreendido como o engajamento em
determinada ação. Assim, ao proceder à leitura de um texto, por exemplo,
ao receber a instrução para lê-lo, o leitor estaria adotando o comportamen-
to de leitura, mas, ao decidir interromper a leitura para se autoquestionar
ou para reler determinada porção textual, ele estaria sendo estratégico. As
estratégias, segundo Solé (1998, p. 69, com base em Valls, 1990)6, “não de-
talham nem prescrevem totalmente o curso de uma ação”, sendo “suspeitas
5 No quarto capítulo deste volume, Maria da Graça Lisboa Castro Pinto apresenta brevemente a proposta
de Olson e Oatley. Recomendamos a leitura do texto da autora.
6 A fonte citada por Solé (1998) é: VALLS, E. Ensenyança i aprenentatge de continguts procedimentals.
Una proposta referida a l’Àrea de la Història. Tese de doutorado. Universidade de Barcelona, 1990.

169
inteligentes, embora arriscadas, sobre o caminho mais adequado que de-
vemos seguir”. Para a autora, estratégias são distintas de procedimentos,
embora tenham em comum com eles a regulação da atividade humana,
uma vez que permitem “selecionar, avaliar, persistir ou abandonar determi-
nadas ações para conseguir a meta” almejada. Os procedimentos, por sua
vez, estão bastante próximos aos comportamentos, pois dizem respeito ao
modo como as ações são executadas. As habilidades, por sua vez, envolvem
o conjunto de conhecimentos estratégicos e procedimentos de que o lei-
tor dispõe para executar a atividade, e nisso estão implicados os processos e
subprocessos de leitura, o que inclui aqueles que se automatizam, como ocor-
re, por exemplo, com a descodificação durante o período de alfabetização.
Quanto a ela, a descodificação, trata-se do processo mais específico e
elementar da leitura, que se dedica à atribuição dos valores aos grafemas, a
fim de convertê-los em fonemas para o reconhecimento da palavra escrita.
Se há algo que caracteriza a leitura, está na descodificação, está no que diz
respeito ao mecanismo que permite o estabelecimento das relações grafê-
mico-fonológicas no interior das palavras. Sem isso, o acesso ao sistema de
escrita permanece lacrado, e o leitor permanece do lado de fora dele, con-
templando-o como quem contempla um castelo em uma fotografia, sem
poder tocá-lo ou adentrá-lo ou explorá-lo, posto não estar disponível, tam-
pouco acessível. E, mesmo que possa se transportar para perto do castelo
real, vai, no máximo, poder tocá-lo, de fora, e continuar contemplando-o,
se não dispuser das chaves para abrir suas portas. Há que considerar, en-
tretanto, que, ainda que a descodificação constitua mecanismo essencial
ao processo de leitura, ela não é a leitura em si, tratando-se apenas de um
passo, fundamental, para que se chegue à compreensão e à interpretação do
escrito, a fim de atingir objetivos, que podem envolver a internalização de
conteúdos, a ampliação ou o aprofundamento de conhecimentos, a infor-
matividade, a consulta, a contemplação, o prazer, o deleite.
No que diz respeito ao reconhecimento da palavra escrita, explora-se o
papel que possui a representação fonológica, justificado pela natureza dos
sistemas de escrita alfabéticos (Snowling; Hulme, 2013). De modo bastan-
te amplo e explorando a perspectiva de modelos de dupla rota de proces-
samento lexical (Coltheard, 2013), que buscam descrever como a palavra

170
impressa é processada silenciosamente por adultos considerados leitores,
identificam-se dois caminhos para se chegar à representação mental das
palavras escritas: a rota lexical ou direta e a rota fonológica ou indireta. A
primeira delas opera a partir da representação ortográfica da palavra, bus-
cando na memória a sequência ortográfica ou o item lexical, sem promover
a análise dos seus subcomponentes. A seu turno, a rota fonológica mapeia
os grafemas relacionando-os aos fonemas aos quais correspondem. Daí,
promove o pareamento com o léxico mental, objetivando encontrar um
significado. O papel atribuído às representações fonológicas em uma leitura
experiente e competente é secundário, já que, além de ser mais dispendioso
ao processamento, ele pode intervir negativamente no alcance do objetivo
da tarefa de leitura, posto se interpor à fluência que a leitura requer. A rota
fonológica é acionada, nestes casos, apenas quando o indivíduo não pode
operar pela via de acesso lexical em razão de alguma demanda maior apre-
sentada pela tarefa ou pela situação de leitura. Para que haja eficiência no
processo de reconhecimento da palavra escrita, o ideal é que o leitor possa
operar prioritariamente pela via direta, uma vez que ela possibilita o rápido
e preciso acesso ao léxico mental de que a leitura fluente necessita. Há que
se considerar, todavia, que para operar de modo eficiente pela rota lexical,
deve ter havido aprendizagem das regras de descodificação grafofonológi-
cas, o que garante o protagonismo desse processamento na aprendizagem
inicial da leitura, ou seja, na alfabetização.
A computação sintática e os mecanismos que regem a organização e o
funcionamento dos textos é fundamental à leitura eficiente, já que o enca-
deamento, a continuidade, a progressão e a informatividade de um texto
resultam de uma espécie de equilíbrio entre dois movimentos: o de retroa-
ção e o de progressão, tal como descreve Koch (2006, 2014). Assim, o con-
teúdo semântico do texto se constitui basicamente pelas informações dadas
e pelas informações novas, cuja distribuição e graduação na elaboração do
texto, ação promovida pelo autor, participam da produção de sentido não
apenas na escrita mas também na leitura. O estabelecimento de relação
entre o velho e o novo, ou seja, entre o dito e o que está por vir, ou o que vai
permanecer nas entrelinhas ou para além delas, é requisito cognitivo para
o sucesso em qualquer atividade de leitura.

171
A descodificação, o reconhecimento da palavra escrita, a computação
sintática e o reconhecimento e o acesso aos modos como o texto está tecido
em seus movimentos de idas e vindas entre o dado e novo constituem o que
possibilita, em primeira análise, a compreensão literal do texto. Todavia, a
leitura não se satisfaz com a compreensão literal, que, sendo necessária, não
pode ser suficiente. Há, portanto, que se considerar e operar sobre os pro-
cessos implicados na compreensão inferencial, que não é de natureza una,
podendo requerer preenchimento de lacunas, integração de informações
dadas, novas ou subentendidas, sumarização e elaboração, tanto nos níveis
micro quanto nos macrotextuais, permitindo que se acesse e constitua a
base do texto e, então, se complete com a criação de uma possível repre-
sentação mental dele cuja constituição é iniciada, por vezes, antes mesmo
de ser iniciada a leitura propriamente dita. A inferenciação está fortemen-
te vinculada aos domínios do raciocínio dedutivo. Diferentemente do que
ocorre nos processos de evocação de conhecimentos prévios, que podem
preencher alguma lacuna do texto pela recuperação de conhecimentos
pré-existentes nos sistemas de memória, a inferenciação, mesmo quando
preenche lacunas, opera a partir das informações tramadas no próprio tex-
to, indo para além dele (Kintsch, 1998). Nota-se que tanto as inferências
quanto a recuperação de conhecimento podem ser ou automáticas e não
deliberadas, ou controladas e possivelmente conscientes e estratégicas.
Conforme esclarecem Baker e Brown (1984), o monitoramento da
compreensão é um tipo de monitoramento cognitivo, que, por sua vez, faz
parte da metacognição, não se tratando, portanto, de aspecto específico à
leitura, embora esteja nela implicado quando se trata de leitura competen-
te. Monitorar a compreensão envolve ação estratégica de estabelecimento
de objetivos para a leitura e a checagem dos processos, procedimentos e
comportamentos com vistas ao alcance efetivo e eficiente desses objetivos,
de modo a prosseguir com a leitura ou tomar medidas corretivas ou reme-
diativas quando necessário. Gagné e colaboradores (1993) explicitam os se-
guintes processos relativos ao monitoramento da compreensão: definição
de objetivos, seleção de estratégias, checagem de objetivos e remediação.
Considerando todo o exposto, quando se tem a atribuição, a intenção e
o desejo de ensinar a ler, surgem questões como “O que ensinar?” e “Como

172
ensinar?”. Entre os fatores que precisam ser observados para que se possa
responder a essas questões estão: qual é o público ao qual vão se voltar as
propostas de ensino, o quanto e como este público lê, o que caracteriza a
leitura e o leitor competentes, em que medida e em quais aspectos o pú-
blico-alvo da instrução se distancia da leitura competente, o que se espera
do leitor em termos de leitura considerando sua faixa etária, seu contexto,
seu tempo de escolarização e os objetivos do ensino. Uma vez mapeados os
fatores acima mencionados, têm-se condições de mergulho e proposição
de um programa instrucional de ensino de leitura que possa ser eficiente e
efetivo ao público-alvo e aos propósitos do ensino.
É justamente no aspecto instrucional que propomos que o roteiro de
leitura seja elaborado, explorado e empregado, já que ele serve como ferra-
menta para o desenvolvimento da competência leitora em níveis posterio-
res à alfabetização, quando os aprendizes já dominam o sistema de escrita
e sabem operar a partir dele e com ele. Dos propósitos aos quais os roteiros
podem servir, salientamos o ensinar a ler, a estudar, o ensinar conteúdos,
o avaliar o quanto e como os estudantes leem. Trata-se de objetivos autô-
nomos mas não independentes, pois, ao se ensinar a ler, está-se ensinando
também a estudar e de alguma forma criando contexto para que conteú-
dos possam ser aprendidos, por exemplo, além, é claro, de se poder avaliar
enquanto se ensina a ler. Há que se considerar, entretanto, que, ao propor
programas, projetos ou atividades e ações de ensino, deve-se selecionar o
foco, de acordo com os objetivos do ensino, que possivelmente não coinci-
dem com os objetivos da leitura. Assim, é fundamental que estejam no alvo
da proposta sempre o que se espera com aquilo que se ensina e o que se
intenta com a leitura do texto selecionado especificamente. Afinal, quando
se solicita que o estudante leia determinado texto, o objetivo da leitura não
será reconhecer e compreender relações anafóricas, por exemplo, se este for
o objetivo do ensino.
Quanto ao que é o roteiro de leitura, nós o concebemos não como um
questionário ou um teste, tampouco como um mapa ou esquema do tex-
to. O roteiro é uma forma de leitura orientada e assistida, que tem como
propósito incidir sobre as habilidades de leitura, o que envolve o trabalho
sobre estratégias, procedimentos e comportamentos, bem como o seu pro-

173
duto, enquanto a atividade de leitura ainda está em curso. Seu princípio é a
desautomatização da leitura, focalizando aspectos que são alvo do ensino,
lembrando que se há de ter em conta os objetivos pedagógicos do ensino e
os objetivos da leitura, a experiência leitora do público-alvo (que modula
tanto a definição do que ensinar quanto a seleção do texto e a elaboração
das questões), o conhecimento de mundo, temático e contextual do público
e ainda seu conhecimento e vivência linguística. Quando os roteiros são
propostos pela professora ou pelo professor, conforme se vai demonstrar
nas próximas seções, é ela ou ele quem toma as rédeas no que diz respei-
to ao monitoramento do processo. A ideia é que, progressivamente, a res-
ponsabilidade de controlar e monitorar a leitura passe para as mãos dos
estudantes, tornando-se um autocontrole e um automonitoramento, e que,
junto disso, passe também para o estudante a responsabilidade de elaborar
seus próprios roteiros a depender dos seus objetivos.

“Onde há pum, há vida”: texto-base para a elaboração dos roteiros

Os estudantes aos quais os roteiros de leitura desenvolvidos e apre-


sentados neste texto se destinam são reais e estão ou estiveram, no ano de
2017, sob a responsabilidade da segunda e da terceira autoras deste capítu-
lo, em disciplinas de Língua Portuguesa. Embora os roteiros não tenham
sido, até este momento, implementados em sala de aula7, o conhecimento
de cada um dos estudantes das turmas permitiu que se ponderasse sobre
as dificuldades e facilidades dos estudantes em leitura, a fim de propor ma-
terial que seja efetivo para aquilo a que se destina: ensino de leitura e ava-
liação a fim de desenhar um programa instrucional em leitura. Trata-se de
duas turmas de primeiro ano do ensino médio, uma delas (aquela para a
qual foi desenvolvido o roteiro de ensino) de Instituto Federal de Santa Ca-
tarina, e outra (aquela para a qual foi elaborado o roteiro de avaliação) de
escola particular também catarinense, ambas constituídas por estudantes
que visam acessar a universidade.

7 Os roteiros foram apenas pilotados em turmas semelhantes, com o intuito de serem aprimorados para
então serem discutidos neste capítulo. A implementação nas turmas às quais os roteiros se destinam
será discutida em trabalho posterior das mesmas autoras.

174
Figura 1: Texto “Onde há pum, há vida”

Reprodução

Fonte: Texto extraído e adaptado de: <http://super.abril.com.br/ciencia/onde-ha-


-pum-ha-vida>. Acesso em 20 set. 2017.

175
A seleção do texto-base levou em conta a possibilidade de os estudan-
tes-alvo poderem ter contato com ele em situações não escolares, inde-
pendentemente de acompanhamento, sugestão ou instrução de professor,
o que possibilita uma aproximação a situações reais nas quais a leitura é
requerida. Tal texto, que se encontra disponível nesta seção a fim de que
o leitor possa não apenas conhecê-lo mas também acompanhar e analisar
os roteiros que seguem nas próximas seções, passou por criteriosa esco-
lha na qual foram considerados os seguintes aspectos: qualidade do tecido
textual, tema de possível interesse dos estudantes, organização textual re-
lativamente familiar aos estudantes, emprego de linguagem verbal escrita
que respeita a variedade padrão sem ser excessivamente formal, rebuscada
e complexa.
Quanto à versão textual apresentada, procedeu-se a adaptações do tex-
to original no que diz respeito a: exclusão da quase totalidade das duas
últimas partes do texto, que se localizavam entre as linhas 52 e 53, equiva-
lentes a 38% do conjunto textual, com o objetivo de controlar a extensão e
o tempo dedicado à leitura e às atividades, evitando levar os estudantes à
exaustão, à queda de desempenho e ao abandono das tarefas; adaptação da
introdução do parágrafo final, com o propósito de garantir o encadeamen-
to textual após a exclusão de porções do texto; acréscimo da informação
que consta entre parênteses da linha 52; exclusão de “e”, na linha 47, em
expressão “e ou” empregada pelo autor do original; e substituição de ponto
final por vírgula, no final da linha 57.
As questões dos roteiros que se apresentam e analisam a seguir es-
tão organizadas e apresentadas por vezes de modo linear em relação ao
texto, agrupando-se por tipo de questão, apenas com o intuito de facili-
tar a explanação neste capítulo. Além de respeitarem a organização e o
sequenciamento textual e o agrupamento tipológico, elas seguem, aqui,
da análise micro à análise macrotextual, chegando, ao final, à representa-
ção mental, que se espera que seja tentativa e paulatinamente elaborada
e produzida desde o início dos processos de compreensão, na microes-
trutura, durante a leitura do texto. Isso é o que se espera, normalmente,
da leitura dos textos com vistas à compreensão. Neste capítulo, apenas
algumas das questões dos roteiros foram selecionadas para fins de análise

176
e explicação. Os roteiros completos estão disponíveis nos apêndices 1 e
28. A numeração das questões no corpo do texto não coincide com a nu-
meração das questões nos apêndices. Esse critério foi adotado, a fim de
garantir maior fluência ao texto, utilizando numeração sequencial para as
questões selecionadas.
É relevante registrar que, em parte, os critérios de elaboração e análise
das questões propostas se baseia nos princípios de leitura do Programa In-
ternacional de Avaliação de Estudantes (PISA), consideradas sua robustez
teórica e clareza de especificidades quanto ao que se avalia particularmente
e globalmente em termos de leitura (Brasil, 2001, 2016; INEP, 2012). Basea-
mo-nos somente em parte no PISA não por discordâncias de fundamentos,
mas por diferenças de propósitos e expectativas. Se há divergências, elas
incidem, principalmente (pelo menos no que diz respeito ao que interessa
neste capítulo) à terminologia empregada para a explicação dos aspectos
das questões, fato sobre o qual não nos deteremos neste capítulo, mas que
facilmente será percebido pelas leitoras e pelos leitores que conhecem o
PISA.
Recomenda-se que a aplicação dos roteiros em sala de aula, depen-
dendo do propósito de ensino e do planejamento previamente delineados,
não siga a linearidade textual (a menos que este seja o propósito), pois ela
facilita e até antecipa a elaboração ou a localização das respostas. A razão
para se ter escolhido um único texto para a elaboração dos dois roteiros é
evidenciar a possibilidade de se elaborarem roteiros distintos a partir de
um mesmo texto em função de haver mudança de propósito, de situação,
de público etc.
Em se tratando de uma perspectiva que visa ao ensino (mesmo o ro-
teiro de avaliação almeja o ensino, uma vez que se trata de avaliação diag-
nóstica e com perspectiva formativa), é importante que a resolução das
questões propostas seja discutida oralmente com o grupo de estudantes.
Contudo, é fundamental, para que se garanta a leitura, que os/as estudan-
tes busquem responder, talvez uma a uma, as questões individualmente,

8 Você observará, leitor, que os roteiros 1 e 2 são distintos. Isso se justifica não apenas porque se trata de
roteiros com propósitos gerais diferentes: um visa ao ensino e o outro à avaliação, mas também porque
o que se ensina em termos de leitura em 1 não é coincidente com o que se avalia, também em termos de
leitura, em 2. Lembre-se de que os roteiros foram elaborados para dois grupos reais de estudantes.

177
para então poderem avaliar suas estratégias, procedimentos e desempenho
quando da discussão aberta com o grupo. Se as respostas serão discutidas
uma a uma ou em blocos maiores, depende do desempenho que os/as estu-
dantes e que todo o grupo forem demonstrando à proporção que o trabalho
sobre o texto avança.

Roteiro de leitura com vistas ao ensino (de leitura)

A proposta de roteiro apresentada à frente foi desenhada consideran-


do-se o perfil leitor de turma de primeiro ano de ensino médio ainda em
início de curso, ou seja, recém-ingressados. Para delinear o perfil leitor in-
dividual e coletivo da turma, atividades de leitura de textos diversos foram
realizadas tanto coletivamente quanto individualmente, revelando que,
naquele momento de sua vida escolar, os estudantes eram capazes, na mé-
dia, de localizar informações explícitas, realizar preenchimento de lacuna,
integrar passagens textuais próximas e realizar sumarização de informa-
ções encontradas em nível microestrutural. Entre as dificuldades mais fla-
grantes, figuraram a insuficiência em lidar com integração e sumarização
em nível macroestrutural, principalmente porque os estudantes demons-
traram não se valer de pistas textuais que sinalizam o que é importante no
texto. Uma vez que a produção de sentidos encontrava nesses processos
uma espécie de gargalo, o objetivo pedagógico no que concerne ao ensino
da leitura nessa turma passou a ser ensinar a reconhecer essas pistas do tex-
to que orientam o olhar do leitor. A expressão que encerra o período ante-
rior é aqui utilizada para fazer menção, a um só tempo, aos mecanismos de
tecitura textual que são responsáveis, nas palavras de Koch (2014, p. 100),
“[...] não apenas, em grande parte, pela coesão textual, mas também por
um número bastante significativo de indicações ou sinalizações destinadas
a orientar a construção interacional do sentido [...]”. Trata-se de recursos
linguísticos que viabilizam a progressão textual na medida em que realizam
a progressão referencial, sequencial, temática e tópica (acerca desses con-
ceitos, cf. Koch, 2006 e 2014).
Assim, o roteiro que se discute a seguir foi desenvolvido com a finalida-
de de intervir em processos de compreensão e interpretação que requerem

178
integração e sumarização de informações em nível macroestrutural, para o
qual o reconhecimento de pistas relativas à progressão textual é condição
necessária. Com relação ao objetivo de leitura, este consistiu em construir
uma representação mental acerca do cerne do texto. Dito isso, podemos
passar à organização da exposição e discussão do roteiro.
Em primeiro lugar, as questões foram agrupadas em dois grandes gru-
pos, nível microestrutural e nível macroestrutural, de acordo com a de-
manda de processamento do texto implicada na resolução da questão. Des-
se modo, questões alocadas no grande grupo microestrutural apresentam
demanda que pode ser atendida com a leitura de apenas um período ou,
no máximo, um parágrafo. Já questões alocadas como relativas ao nível
da macroestrutura, apresentam demanda cuja resolução requer a leitura
de todo o texto. Em segundo lugar, uma vez que a meta fundamental do
roteiro planejado é ensinar a ler reconhecendo pistas textuais que favore-
cem os processos de integração e sumarização, questões que compõem o
roteiro de ensino de leitura são apresentadas consoante agrupamentos que
contemplam elementos linguístico-textuais que realizam a progressão/con-
tinuidade do texto. Por último, antes de lançarmo-nos à discussão do ro-
teiro, cabe observar que os agrupamentos propostos refletem uma escolha
metodológica de exposição e discussão, visto que as noções de progressão
referencial, sequencial, temática e tópica são interdependentes, retroali-
mentando-se na tecitura do texto, sendo, por vezes, impraticável tratá-las
de modo individualizado.

Quadro 1: Nível microestrutural

Nível Microestrutural

Progressão referencial:
1. A palavra assim, empregada na linha 23, é usada para resgatar uma expressão
mencionada anteriormente no mesmo parágrafo. Identifique essa expressão que
é resgatada.
2. A palavra assim, empregada na linha 23, também é usada para introduzir, na
sequência do mesmo parágrafo, uma série de características sobre a expressão res-
gatada pelo assim. Identifique essa série de características.

179
Progressão sequencial:
3. Explique a razão da empolgação com a descoberta de metano no planeta ver-
melho.
4. A expressão só que, na linha 16, poderia ser substituída, sem prejuízo para o
significado, pela palavra:
a. por isso
b. então
c. mas
d. e
Fonte: Dados da pesquisa.

Ainda que o objetivo do roteiro aqui apresentado seja permitir a instru-


ção acerca de pistas textuais que possibilitem integrar e sumarizar informa-
ções em nível macrotextual, não se podem descartar perguntas que requeiram
processamento microtextual. Isso porque o estudante não pode ser levado a
refletir sobre as pistas textuais em um nível que apresenta uma demanda que,
já se sabe, ele ainda não é capaz de atender. Desse modo, levar o leitor em
formação a analisar mecanismos de progressão textual no nível do período
ou entre um período e outro é uma estratégia de instrução que favorece a
apreensão dos modos de organização do texto escrito, habilidade necessária
a processos de compreensão e interpretação que implicam integração e su-
marização. A aprendizagem acerca dos mecanismos de progressão e retoma-
da do texto advinda da atividade de análise e reflexão em nível microtextual
figura, então, como espécie de base fundacional em que o aprendiz se apoia
para progredir no processamento em nível macroestrutural.
O recurso da progressão referencial é o foco das questões 1 e 2. É pre-
ciso observar que ambas as questões recaem sobre o mesmo elemento lin-
guístico do texto, a palavra assim (linha 23), que opera a progressão re-
ferencial na medida em que retoma o referente micróbios metanogênicos
(linhas 21-22), com a finalidade de manutenção do foco sobre esse refe-
rente e também com o propósito de progredir na explicação e atualização
desse referente (linhas 23-25), o que culmina em progressão temática. A
primeira pergunta recai sobre o processo de retomada (anáfora) e a segun-
da pergunta, sobre o processo de atualização do referente (sinalizado pela
catáfora operada pelo assim). O propósito de chamar a atenção dos estu-

180
dantes para esse operador de progressão textual tem como pano de fundo
o interesse em trabalhar com a habilidade de integração de informações
que podem ser localizadas explicitamente no texto e que estão adjacentes
umas às outras. Informações estas cuja interdependência é sinalizada pela
palavra assim, tanto quando opera a anáfora – para associar micróbios a
metanogênicos – quanto quando opera a catáfora – para associar micró-
bios metanogênicos a suas características definidoras. O desmembramento
em duas perguntas, uma visando à anáfora e outra visando à catáfora, é
reflexo de escolha didático-pedagógica. Apenas uma pergunta, incidindo
sobre os dois papéis do assim nessa porção textual, poderia ser feita. En-
tretanto, a pergunta resultaria mais complexa, posto que a identificação da
anáfora é requisito para a compreensão da catáfora, neste caso. É preciso
ainda observar que a intervenção do professor em relação a essas perguntas
do roteiro depende das respostas trazidas (ou não) pelos estudantes. Por
exemplo, no que concerne à primeira pergunta, é necessária a intervenção
do professor como aquele que mostra os caminhos percorridos na com-
preensão adequada do texto, se os aprendizes apontarem como resposta
micróbios metanogênicos marcianos.
Frente a tal resposta, o professor deve mostrar por que é inadequado
retomar toda a expressão como foco da anáfora. Essa demonstração requer
análise do excerto que precede o assim, de modo a levar o leitor em forma-
ção a (I) identificar o tópico do parágrafo – a origem do metano encontrado
em Marte –, manifestado por meio de duas perguntas, (II) a perceber que
a resposta às perguntas-tópico do parágrafo é encabeçada pela expressão
uma hipótese e (III) a concluir que a base para o levantamento dessa hipó-
tese é o conhecimento de que micróbios assim (que dispensam oxigênio, se
alimentam de CO2 e produzem metano, isto é, micróbios metanogênicos)
existem na Terra, ou seja, é a existência de micróbios metanogênicos “ter-
ráqueos” que permite hipotetizar a existência de micróbios metanogênicos
marcianos – o que é sinalizado no texto com o período É bem possível, que
incide sobre a hipótese anunciada, seguido do período em que se revela a
origem dessa hipótese: Na Terra, existem micróbios assim, que [...]. Logo,
quando o assim é empregado para realizar a anáfora, o que se coloca em
foco é o referente micróbios metanogênicos, a fim de sustentar a hipóte-

181
se de que eles podem existir em Marte – visto que, conforme explicitado
no texto, as condições do planeta favorecem a existência de uma forma de
vida como essa – e podem, portanto, ser a fonte do metano lá encontrado.
Ainda sobre as questões 1 e 2, cabe observar o cuidado que a professora
e o professor devem ter em fornecer, já no enunciado da pergunta, dicas
que orientem o olhar dos/as estudantes. É por essa razão que, na primeira
pergunta, empregou-se a expressão mencionada anteriormente no mesmo
parágrafo, para indicar o lugar para o qual o leitor deve direcionar o olhar,
a procura. Do mesmo modo, na segunda pergunta, recorre-se à [...] intro-
duzir, na sequência do mesmo parágrafo, uma série de características [...],
para indicar o ponto do texto em que a busca deve começar e para assinalar
que o que se quer não é mais apenas uma expressão, mas um grupo/série
de características, ensejando, dessa forma, a integração e a sumarização das
informações apresentadas no texto acerca desse referente (micróbios meta-
nogênicos). Observe-se que o objetivo é ensinar a lidar com pistas textuais
que operam a progressão do texto – ensinar a ler –, mas, como consequên-
cia da construção de sentidos para o lido, fomenta-se a aprendizagem dos
conteúdos explorados no texto. Por fim, no que diz respeito ao objetivo
de leitura (compreender o centro do texto), as questões 1 e 2 requerem a
leitura de excerto (linhas 21-27) que tem como foco introduzir a discus-
são sobre a fonte/origem do metano encontrado em Marte, priorizando a
hipótese de se tratar de uma fonte orgânica, reforçada com a conclusão do
parágrafo Em suma: há condições básicas para que exista vida em Marte, e o
metano pode ser um sinal de que ela está lá.
A questão número 3 do roteiro, da perspectiva do objetivo da leitura,
volta a direcionar o olhar do estudante para o papel do metano como pos-
sível evidência de vida em Marte. Como esse é o centro do texto, ele é rei-
terado ao longo da matéria produzida e cabe ao professor ou à professora,
durante sua intervenção (tanto no desenho do roteiro quanto na discussão
das respostas a esse roteiro), mostrar essa reiteração e pontuar que ela não
é gratuita; antes cumpre a função de assinalar a ideia principal do texto.
Desse modo, o roteiro e a intervenção a partir dele contemplam o que foi
previsto como objetivo de leitura. Da perspectiva do objetivo colocado ao
ensino da leitura, essa questão possibilita explorar a progressão sequen-

182
cial operada pelo conectivo daí (linha 10) e a relação de sentido que ele
estabelece entre dois períodos do texto (relação de causa e consequência),
implicando processo de integração de informação para responder àquilo
que a pergunta solicita. A reflexão sobre a relação de sentido manifestada
por conectivo também é o alvo da questão 4 do roteiro. A diferença é que,
na 4, o foco da questão recai apenas sobre a compreensão desse elemento
que permite a progressão sequencial do texto; não se requer do estudante a
construção explícita de sentido para os períodos conectados pelo elemento
só que (linha 16). A discussão das respostas a esta pergunta deve assegurar
a compreensão de que esse conectivo é empregado no texto para eviden-
ciar quebra de expectativa e para demarcar a oposição entre o momento da
pesquisa em que a busca por metano na superfície do planeta vermelho re-
sulta em índices insignificantes (linhas 15-16) e o momento em que resulta
em índices significativos (linhas 16-17). Esta pergunta, de maneira diversa
das anteriores, é de múltipla escolha. Decisão tomada para evitar a com-
plexidade de uma pergunta aberta, que poderia inviabilizar o objetivo de
reflexão sobre como esse conectivo integra as informações no interior do
parágrafo, posto que já se conhecia a fragilidade de conhecimento dos/as
estudantes em relação à compreensão de sequenciadores textuais. O forma-
to de múltipla escolha responde, ainda, ao desejo de se trabalhar com os/as
estudantes os sentidos estabelecidos por conectivos altamente frequentes.
Daí que o trabalho do professor ou instrutor de leitura na correção de uma
questão como esta não é apenas indicar a resposta correta e demonstrar por
quê, mas também levar os aprendizes a refletirem sobre por que as demais
alternativas são inadequadas, o que demandaria o contraste com exemplos
em que o uso dessas alternativas fosse adequado. Por fim, esta pergunta
permite refletir sobre o uso de só que tomando como parâmetro para com-
paração uma expressão que, atualmente, é muito empregada na oralidade
ou em textos escritos muito próximos à oralidade (postagens de Facebook,
Instagram, Twitter, conversas de WhatsApp), principalmente por adoles-
centes e jovens: só que não (ou sqn). É possível, inclusive, que os próprios
estudantes tragam a expressão à tona durante a discussão dessa pergunta,
cabendo o esclarecimento acerca de no que se assemelham e no que se dis-
tinguem esses elementos linguísticos.

183
Quanto a questões que requerem processamento em nível macrotex-
tual, trabalhou-se também com progressão referencial e acrescentou-se a
progressão temática e a progressão tópica9.

Quadro 2: Nível macroestrutural

Nível Macroestrutural
Progressão referencial:
5. As expressões peido extraterrestre (linha 6) e gás marciano (linha 50) podem
ser consideradas sinônimas no contexto do artigo Onde há pum, há vida, porque:
a. o autor as utiliza para falar de assuntos diferentes, ou seja, que o metano é re-
sultado de pum de seres vivos na Terra, mas não em Marte.
b. o autor as utiliza para falar do mesmo assunto, ou seja, que o gás metano en-
contrado em Marte pode revelar a existência de vida extraterrestre.
c. o autor as utiliza para falar do mesmo assunto, ou seja, que o metano é um tipo
de gás leve, associado à vida, muito comum na Terra e em Marte.
d. o autor as utiliza para falar do mesmo assunto, ou seja, que um pum marciano
contém o mesmo gás utilizado em fogões, conhecido como metano.
Progressão temática:
6. Sintetize, segundo o texto, as possíveis explicações para a existência de metano
em Marte.
Progressão tópica:
7. Liste as características do metano citadas no texto.

Fonte: Dados da pesquisa.

Na questão 5, o nível de processamento requerido é macrotextual em


virtude do que ela solicita (comparar referenciações em pontos distantes do
texto para concluir se elas dizem respeito ao mesmo tema/tópico), mas a
progressão referencial se dá em nível microtextual. Isso significa que fenô-
menos que ocorrem em nível micro podem ser explorados de uma perspec-
9 Cabe observar que a progressão temática é um mecanismo de tecitura do texto que se observa tanto em
nível micro quanto em macrotextual. O mesmo se dá com o recurso de sequenciamento do texto. Ape-
nas a progressão referencial parece ser um mecanismo mais local, cuja manifestação é mais facilmente
observada em nível microtextual e que leva à progressão temática e à tópica. Logo, a progressão tópica
é um mecanismo mais global, cuja realização depende de progressão referencial, temática e sequencial,
sendo, por isso, observada em nível macrotextual. A opção por enfatizar os mecanismos de referencia-
ção e sequenciamento em perguntas que requerem processamento micro e progressão temática e tópica
em perguntas que demandam processamento macro é, de um lado, escolha metodológica e, de outro,
reflexo da maneira como os textos se organizam.

184
tiva macro. A resolução dessa pergunta requer localização de informações
apresentadas no primeiro e nono parágrafos, comparação das informações
encontradas e interpretação, a fim de concluir se as expressões são, de fato,
empregadas para fazer menção ao mesmo referente. A habilidade de suma-
rização é também explorada, visto que as alternativas de resposta que com-
põem a questão, que é de múltipla escolha, são exemplos de sumarização
de informações encapsuladas pelas expressões nominais descritivas peido
extraterrestre e gás marciano. Dessa forma, o estudante é confrontado com
o desafio de lidar com processo de sumarização, mas recebe, na formulação
da própria questão, apoio para operar com tal demanda. Além de permi-
tir explorar o uso de duas expressões nominais descritivas distintas para
retomada, em pontos distantes do texto, do referente metano encontrado
em Marte que pode revelar a existência de vida extraterrestre, essa pergun-
ta possibilita discutir como a primeira forma de referenciação/retomada
(peido extraterrestre) revela a orientação argumentativa do texto: ênfase na
expectativa de que o metano marciano tenha se originado de um ser vivo.
O foco da sexta pergunta do roteiro de leitura é levar o aprendiz, agora
sem apoio fornecido na formulação da pergunta, a se engajar em processo
de sumarização de informações. Chegar à resposta dessa questão exige do
estudante não só identificar as hipóteses aventadas no texto para explicar
a origem do metano no planeta vermelho (discutidas nos parágrafos 4, 5
e 6), mas também selecionar as informações principais em detrimento das
secundárias e apresentá-las retextualizando o original. Para identificar as
possíveis explicações para a existência de metano em Marte, o leitor deve
seguir as pistas deixadas pelo autor do texto, que sinalizam a progressão do
tema fonte do metano por meio de elementos de sequenciação chamados
por Koch (2014, p. 133) de articuladores que visam à organização textual.
Esses articuladores – tais como uma hipótese (linha 21), mas também pode
ser outra coisa (linha 28) e outra hipótese (linha 33), sinalizam a linha de
exposição ou de argumentação acerca de um tema desenvolvido no texto,
demonstrando as informações relevantes para a construção de sentidos re-
lativos àquele tema. A intervenção do professor ou da professora durante a
correção dessa questão deve contemplar a demonstração de como esses ar-
ticuladores organizam o texto e, ao organizá-lo, indicam o que é importan-

185
te acerca do tema fonte do metano. Novamente no que concerne ao objetivo
de leitura para o qual o roteiro foi pensado, tem-se uma pergunta que toca
na linha expositiva e argumentativa central do texto.
A sétima pergunta do roteiro, por sua vez, requer a integração e suma-
rização de informações apresentadas ao longo de todo o texto sobre o tópi-
co metano, muitas das quais foram focalizadas (pergunta 3) ou apareceram
como informações secundárias (pergunta 6) em questões anteriores do ro-
teiro, recorrência que não é gratuita. Para poder responder adequadamente
a este item, o estudante deve atentar para elementos que operam progres-
são referencial (introdução e retomada de referente, seja por meio de uso
de expressões nominais, seja por meio de dêiticos), temática (atualização
do tema à medida que informações novas são apresentadas) e, consequen-
temente, tópica (uma vez que o tópico é desenvolvido pela apresentação de
temas distintos a ele associados) no decorrer de toda a matéria. Sob essa
perspectiva, cabe ao professor ou à professora demonstrar que o referen-
te metano aparece referenciado de maneiras diversas ao longo do texto, a
exemplo de gás associado a seres vivos (na linha de apoio da matéria), gás
corriqueiro (linha 1-2), pum (linha 7) e que, conforme o texto avança, várias
características desse gás vão sendo apresentadas: ele é comum na Terra (li-
nha 1-2), inodoro (linha 7), sua principal fonte de origem é orgânica (linha
8), também pode se originar de processo químico (linha 28-30), a fórmula
do metano (linha 43), os diferentes tipos de carbono na fórmula química
do metano (linha 45-48), metano associado a seres vivos costuma apresen-
tar carbono-12 (linhas 47 e 48).
As questões aqui apresentadas são apenas um exemplo, das tantas al-
ternativas possíveis, de como trabalhar com processos de integração e su-
marização em nível micro e macrotextual, enfatizando elementos linguís-
ticos que sinalizam para o leitor os sentidos que o autor pretendeu com
seu texto. Trabalhar com o dito e com o como é dito no texto é uma etapa
fundamental à formação de leitores competentes, para que ganhem condi-
ções de compreensão da base textual do que leem e, assim, possam, para-
lelamente, progredir na interpretação do lido, lidando com os implícitos
do texto e com a apreciação crítica não só do texto, mas também de sua
representação mental acerca dele.

186
Roteiro de leitura com vistas à avaliação (de leitura)

A proposta de roteiro de leitura que será apresentada foi, assim como o


roteiro explicado anteriormente, planejada para estudantes ingressantes no
ensino médio. Difere-se do modelo precedente em relação ao seu objetivo
final, tendo como intuito avaliar, em uma perspectiva formativa, a compe-
tência leitora desses sujeitos no que diz respeito ao esperado para esse nível
de escolarização.
Espera-se que estudantes que cumpriram o Ensino Fundamental te-
nham desenvolvido habilidades de leitura relativas a operações sobre a lin-
guagem, sobre a base textual (micro e macroestrutura) e sobre a elaboração
de um modelo mental do texto. Em vista disso, o roteiro foi elaborado em
três grandes grupos de questões: 1) Nível linguístico-textual e microestru-
tural; 2) Nível macroestrutural; 3) Modelo situacional. Esses grandes blo-
cos, conforme explicado anteriormente, dizem respeito à demanda de pro-
cessamento do texto implicada na resolução da questão.
A organização citada permite ao professor/avaliador diagnosticar pro-
blemas nesses três níveis de processamento e, a partir disso, traçar um per-
fil do grupo de trabalho. Essa avaliação permitirá uma intervenção baseada
nos conhecimentos implícitos e explícitos reais dos alunos, evitando-se que
as habilidades dos estudantes sejam sub ou superestimadas, o que poderia
gerar frustração tanto do projeto ou programa de ensino quanto dos estu-
dantes pela facilidade ou dificuldade extrema ao se depararem com textos
e atividades sobre ele. Somente por meio de um diagnóstico preciso é pos-
sível elaborar um programa de leitura eficaz, levando-se em consideração
as especificidades e conhecimentos de cada estudante e do grupo e, sendo
possível, promover e observar avanços. Acredita-se, portanto, que as ativi-
dades de leitura somente podem ser sistematizadas e devidamente orien-
tadas por meio da prévia avaliação das habilidades e processos executados
pelos/as estudantes.

187
Quadro 3: Nível linguístico-textual e nível microestrutural

Nível linguístico-textual e nível microestrutural


Localização:
1. Identifique a descoberta que está dando o que falar.
Localização e vocabulário:
2. Qual o significado de orgânica no texto (linha 8)?
Integração e interpretação:
3. Em que planeta o metano é considerado um gás corriqueiro?
4. Por que a presença de metano em Marte pode significar a existência de vida
naquele planeta?
5. Explique a razão da empolgação com a descoberta de metano no planeta ver-
melho.
Preenchimento de lacuna:
6. Identifique a palavra que preencheria adequadamente a lacuna a seguir: “O
robô encontrou metano numa concentração bem baixa: 7,2 partes por bilhão. Ou
seja, a cada bilhão de moléculas da atmosfera de Marte, que é quase toda formada
por CO2, apenas sete _________________ são metano.”
Resolução de anáfora:
7. A que se refere o pronome ele no 7º parágrafo do texto (linha 36)?

Fonte: Dados da pesquisa.

A pergunta número 1 exemplifica a habilidade de localizar informa-


ções em um texto. Neste caso, o estudante deve ser capaz de buscar a in-
formação solicitada, na superfície textual, isto é, na literalidade do texto.
Espera-se que o/a estudante localize no texto a informação uma quantidade
significativa de metano no planeta vermelho para responder adequadamen-
te a questão, podendo produzir paráfrase no momento do registro. O verbo
que introduz a questão ilustra a habilidade requerida. Identificar se refere
à possibilidade de reconhecimento, por meio de comparação entre a infor-
mação proporcionada pela pergunta e o texto.
A questão número 2 tem como foco o léxico do ponto de vista con-
textual. É possível que o sujeito avaliado conheça o significado da palavra
orgânico em outros contextos, tais como: alimentos orgânicos, feira orgâ-
nica etc., associando, assim, a palavra àquilo que é natural ou livre de agro-
tóxicos. No entanto, na linha 8 do texto (indicada na própria questão), fica

188
evidente que orgânico se refere àquilo que pode ser decomposto por bac-
térias. Para que chegue a essa resposta, é preciso que o/a estudante localize
a informação, levando em consideração o conhecimento da pontuação, já
que o uso dos parênteses depois da expressão em foco evidencia a adição
de uma informação explicativa.
As questões que avaliam a integração e a interpretação de informação
em nível microestrutural permitem avaliar se o/a estudante é capaz de unir,
comparar e contrastar informações próximas – mesmo período ou pará-
grafo – produzindo uma interpretação coerente. A questão número 3, por
exemplo, requer que, depois de identificar o trecho pertinente (Todo dia,
você produz o equivalente a 50 ml de metano – simplesmente soltando pum.
Mas esse gás tão corriqueiro, que também alimenta o fogão da sua cozinha,
está por trás de um dos maiores mistérios do Universo: a existência de vida fora
da Terra.), logo na introdução do texto, o estudante associe as informações
você e fogão da sua cozinha com Terra, descartando a possibilidade de asso-
ciar o adjetivo corriqueiro ao Planeta Marte, introduzido posteriormente no
texto, que produziria uma interpretação incoerente. Há que se considerar
que, na resposta a essa questão, o nível de conhecimento enciclopédico do
estudante pode contribuir, permitindo igualmente uma resposta adequada.
Ao mesmo tempo, questões de integração e interpretação podem re-
querer a integração de informações requeridas pela questão com informa-
ções do texto, que não sejam identificadas literalmente, desenvolvendo ra-
ciocínios lógicos, de causalidade, explicação, temporalidade, semelhança,
condição, etc., como no caso da pergunta de número 4, que requer o esta-
belecimento de uma relação entre o que acontece na Terra e o que pode es-
tar acontecendo em Marte. Ou seja, na Terra a maior parte do metano tem
origem na decomposição de material orgânico (vivo), o que leva a crer que
em Marte esse gás também deve ter origem orgânica. Dessa forma, a ques-
tão atua em nível inferencial ou interpretativo. A questão número 5, por
sua vez, pode gerar indícios do entendimento de uma relação estabelecida
pelo conector daí (linha 10), que tem um papel fundamental na progressão
temática/continuidade tópica.
A questão número 6, além de requerer a localização e recuperação de
informação, solicita que o/a estudante preencha uma lacuna textual, onde

189
há um elemento elíptico, a palavra moléculas (linha 13). Esse tipo de ques-
tão atua em um nível inferencial básico. A questão número 7, igualmen-
te, exige a integração de informações, requerendo a resolução de anáfora,
que também demanda raciocínio inferencial. O estudante deve buscar o
referente do pronome (linha 36), por meio da proximidade e semelhanças
estruturais (gênero, número), gerando uma possibilidade coerente dentro
da microestrutura.

Quadro 4: Nível macroestrutural

Nível macroestrutural
Localização, integração e progressão temática:
8. Liste as características do metano citadas no texto.
Integração, interpretação e sumarização:
9. Sintetize, segundo o texto, as possíveis explicações para a existência de metano
em Marte.
10. Do que tratam os três primeiros parágrafos do texto?

Fonte: Dados da pesquisa.

As questões de nível macroestrutural dizem respeito ao entendimento


global do texto, sendo elaboradas, portanto, a partir de porções inteiras
relacionadas semanticamente. Para respondê-las, é necessário que o/a estu-
dante reconheça os principais tópicos do texto e suas inter-relações, o que
fica evidente por meio das sinalizações do texto.
A questão número 8 avalia se o/a estudante é capaz de arrolar várias
características que aparecem no texto em relação a um mesmo aspecto de
o gás metano. Para isso, é necessário que o sujeito leia o texto por completo
e encontre as seguintes informações: gás corriqueiro, inodoro, gerado nor-
malmente por decomposição de matéria orgânica, pode ser gerado por ser-
pentinização – processo químico –, sua fórmula é CH4. Desse modo, essa
questão pode evidenciar se o aluno é capaz de acompanhar a progressão
temática/ tópica em relação ao referente metano e selecionar as informa-
ções pertinentes à sua caracterização.
A questão 9, por sua vez, exige síntese, ou seja, que o/a estudante con-
sidere as informações principais em relação às explicações para a existência
190
de metano em Marte. Essas explicações devem ser obtidas levando-se em
consideração a integração e a interpretação do que consta dos parágrafos
4, 5 e 6, por meio da omissão de informações secundárias e seleção e ge-
neralização das informações relevantes, levando à resposta: micróbios me-
tanogênicos marcianos vivos, serpentinização acontecendo na atualidade,
metano antigo por serpentinização ou por forma de vida.
A seu turno, a questão 10, de modo semelhante ao solicitado na ques-
tão 9, também requer integração e interpretação, a fim de que seja possível
esclarecer o assunto dos três primeiros parágrafos do texto. A resposta a
essa questão também implica sumarização, já que se pergunta do que trata
o texto, sem que se tenha solicitado detalhes ou explicações. Além do ex-
posto, a fim de chegar às respostas das questões 9 e 10, o leitor precisa ter
compreendido o propósito do texto de modo mais amplo, de sorte a conse-
guir selecionar apenas o que é necessário para responder a questão.

Quadro 5: Modelo situacional

Modelo situacional
Compreensão, interpretação, análise e avaliação:
11. Explique o título do texto e diga se ele é adequado ou não, justificando sua
resposta.
12. Considere o seguinte trecho: “No finzinho do ano passado, um robô enviado
pela Nasa descobriu uma quantidade significativa de metano na superfície do pla-
neta vermelho – com o perdão da expressão, é o mais perto que uma de nossas
sondas robóticas já chegou de cheirar um peido extraterrestre”. Tendo lido todo o
texto, você considera a afirmação em destaque adequada ou inadequada? Justifi-
que sua resposta com base no texto.
Compreensão e elaboração criativa fundamentada (a) ou sumarização do texto
(b):
13. A professora ou o professor pode optar por uma destas questões:
a. Agora, imagine que você é o autor do texto e precisa revelar, de forma breve,
que há possibilidade de existir vida em Marte. Produza seu texto com base nas
informações contidas no texto “Onde há pum, há vida”.
b. Produza um resumo do texto “Onde há pum, há vida”.

Fonte: Dados da pesquisa.

191
As questões que dizem respeito ao modelo situacional requerem que o/a
estudante forme uma representação mental do texto, integrando o seu co-
nhecimento prévio às informações oferecidas pelo próprio texto. Essas ques-
tões vão além da base textual, no sentido de que envolvem a retextualização.
Em atividades cotidianas de leitura, tal processo normalmente é requerido
do leitor apenas no plano mental, ou seja, o leitor representa o texto men-
talmente. Todavia, a fim de poder acessar tal representação e poder incidir
sobre ela em uma perspectiva de ensino e orientação, é preciso ter acesso ao
desempenho. Daí a solicitação para que o/a estudante produza um texto, que
é de natureza complexa. Esse tipo de questão implica que a professora ou o
professor se assegure de que o grupo de estudantes tem condições de, além
de compreender o texto, produzir seu próprio texto. Isso pode significar a
necessidade de trabalhos paralelos e interdependentes de ensino, ao passo
em que se ensina a ler. Há que se considerar, também, que, se a questão pro-
posta tem por objetivo avaliar leitura, é na leitura que a avaliação deve focar.
Isso pode parecer óbvio; todavia, não é incomum que, anunciando leitura,
nas atividades escolares se focalize, equivocadamente, a escrita. Não se está
com isso querendo dizer que leitura e escrita não estejam implicadas uma na
outra. O que se pretende é esclarecer que se trata de processos distintos, que
requerem ações de ensino também distintas, ainda que complementares.
A questão número 11 solicita a avaliação do título em relação ao todo
textual. Nesse sentido, é necessário que o/a estudante conheça o texto de
tal maneira, que seja capaz de observar que, ainda que o autor afirme no
título que “Onde há pum, há vida”, o texto evidencia claramente que a exis-
tência do metano (pum) não é necessariamente indicativa da existência de
vida. O/A estudante pode, portanto, argumentar nesse sentido, apontando
uma contradição entre título e texto. Por outro lado, pode também estabe-
lecer um contra-argumento, já que o objetivo do texto é chamar a atenção
para a hipótese de que, havendo metano (pum) em Marte, há vida naquele
Planeta. Para contra-argumentar é necessário que o/a estudante perceba a
contradição aparente, elemento indicativo da compreensão e interpretação
dos sentidos do texto.
A questão 12, igualmente, requer que o/a estudante avalie e dê o seu
parecer sobre um fragmento do texto, levando em consideração que as hi-

192
póteses apresentadas no texto mostram claramente que o metano não deve
vir de um peido extraterrestre, mas sim de outros processos, que podem ser
orgânicos ou inorgânicos. Nesse sentido, a analogia seria mais apropriada
em um contexto em que já se soubesse que o metano marciano provém de
fonte orgânica.
A questão número 13 foi elaborada de duas formas diferentes e pode
ser aplicada de uma ou outra maneira, dependendo do conhecimento que
os/a estudantes possuem acerca da escrita ou produção de textos. Há que se
considerar que, em termos da produção requerida, as questões são distin-
tas. Entretanto, elas se assemelham no que diz respeito ao que se pretende
avaliar por meio deste roteiro. Nessa questão, tanto na alternativa a quanto
na b, o sujeito avaliado deve, tendo compreendido todo o texto, organizar
suas informações, a fim de selecionar aquilo que é principal, suprimir o
que é acessório e generalizar, de modo a obter bom desempenho na tarefa.
A alternativa a, além disso e por sua vez, requer elaboração criativa, o que
pode, a depender do público-alvo, representar acréscimo de dificuldade à
tarefa. Não se pode negligenciar que, havendo a opção pela alternativa b, a
dificuldade que se adiciona à tarefa é justamente a que requer capacidade
de síntese.
Com as questões selecionadas para análise e explicação, esperamos ter
oferecido a você, leitora e leitor, exemplos de como ensinar e avaliar aspec-
tos específicos de leitura, considerando um público-leitor real, constituído
por estudantes do primeiro ano do Ensino Médio. Os roteiros completos
estão disponíveis nos apêndices 1 e 2 deste texto.

Considerações finais

A potência dos roteiros de leitura ultrapassa o previsto e explorado


neste capítulo. O que se pretendeu foi, além de delinear e fundamentar o
trabalho docente para ensino de leitura em fases posteriores à alfabetização,
a partir da preparação de roteiros, demonstrar possibilidades e caminhos
para a elaboração desta promissora ferramenta, por meio de dois exemplos,
que foram cuidadosamente explicitados e analisados em algumas de suas
partes.

193
Quanto às recomendações que esperamos poderem contribuir para o
planejamento dos professores e das professoras que ensinam a ler, salien-
tamos a centralidade de sempre se ter clareza acerca dos propósitos da ati-
vidade, considerando os objetivos pedagógicos e os objetivos de leitura, do
contexto e da situação de implementação e dos indivíduos ou turmas às
quais o material se destina. Quem são os sujeitos a quem o roteiro específico
se dirige? O quanto e como leem? Quais são seus interesses? Em que medida
eles têm experiência com leitura e com qual leitura? O que se objetiva ensi-
nar e por quê? Como condição ótima para o ensino e para a aprendizagem,
busca-se trabalhar em um espaço que se situa entre o velho e conhecido e
o novo e desconhecido, que precisa ser explorado, apreendido e aprendido.
Ademais, é sempre relevante se assegurar de que o texto-base do rotei-
ro seja integralmente lido, antes de se iniciar a elaboração das respostas, e
que seja retomado sempre que necessário, a fim de se garantir que o texto
escrito e o processo de leitura estejam no foco da execução da atividade. Se
necessário, pode o professor proceder à leitura em voz alta e, então, assistir
as leituras silenciosas. Interessa considerar, também, que, pelo fato de a
leitura ser um processo silencioso, que ocorre de modo complexo e ativo
na mente do leitor, importa ter acesso às produções de sentido, em todos
os níveis e aspectos trabalhados, de cada indivíduo-leitor. Daí a recomen-
dação de que se caminhe na direção da instrução para a leitura silenciosa
e para a elaboração de respostas escritas individuais, anteriores à discussão
em grupos, e que tais respostas possam então ser revisitadas e revistas pelos
seus leitores-autores. Se nas instruções (seção anterior à apresentação dos
roteiros) se recomendou iniciar pela discussão oral foi tão somente porque
é preciso se assegurar de que há condições de leitura e de quais condições
são essas, de modo a não criar uma falsa ilusão de que os estudantes estão
silenciosamente lendo. Dessa forma e com tais cuidados, criam-se condi-
ções para a aprendizagem da leitura e para o seu efetivo desenvolvimento.
Por fim, tomamos as palavras que Gagné, Yekovich e Yokovich (1993,
p. 268, tradução nossa) empregam para introduzir seu texto, pois elas sin-
tetizam o papel que a leitura pode desempenhar para o sujeito e para a
sociedade:

194
A leitura é uma habilidade básica tremendamente valiosa, que abre o
mundo dos animais da selva para uma criança urbana de seis anos de
idade e o mundo da tecnologia sofisticada para uma criança de dez
anos de uma vila de Gana. Ela permite que os adultos mudem suas
carreiras profissionais através de estudos independentes. Ela oferece
às pessoas de todas as idades uma maneira barata de descobrir a va-
riedade de ideias e paisagens sociais e culturais que formam nosso
mundo.10

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Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
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M. J.; HULME, C. A ciência da leitura. Tradução de Ronaldo Cataldo Costa. Porto
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GAGNÉ, E. D.; YEKOVICH, C. W.; YEKOVICH, F. R. The cognitive psychology of
school learning. 2. ed. Nova Iorque: Harper Collins, 1993.

10 Extraído do original: Reading is a tremendously valuable basic skill. The ability to read opens up the world
of jungle animals to an urban six-year-old and the world of sophisticated technology to a ten-year-old
villager in Ghana. It allows adults to change carries through independent study. It provides people of all
ages with an inexpensive way of finding out about the variety of ideas and social and cultural landscapes
that makeup our world (GAGNÉ; YEKOVICH; YEKOVICH, 1993, p. 268).

195
FLÔRES, O. C. Consciência metapragmática: uma abordagem multidisciplinar. Curi-
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mar. 2017.

Apêndice 1 – Roteiro para ensino de leitura


1. Qual o significado da palavra corriqueiro no texto?
2. Explique a razão da empolgação com a descoberta de metano no planeta vermelho.
3. Ao falar sobre a descoberta e a quantidade de metano em Marte (linhas 14 a 23), o
autor emprega as expressões bem baixa, bem pouco, apenas, mísera e nada. Selecio-
ne, de acordo com o texto, a alternativa que explica a relação entre as expressões:
a. Bem baixa, bem pouco e apenas demonstram que há quantidade significativa de
metano em Marte, enquanto mísera e nada demonstram que não há quantidade
significativa do gás naquele planeta.
b. Mísera e nada demonstram que há quantidade significativa de metano em Mar-
te, enquanto bem baixa, bem pouco e apenas demonstram que não há quantidade
significativa do gás naquele planeta.
c. Bem baixa, bem pouco, apenas e mísera demonstram que há quantidade signi-
ficativa de metano em Marte, enquanto nada demonstra que não há quantidade
significativa do gás naquele planeta.
d. Bem baixa e apenas demonstram que há quantidade significativa de metano em
Marte, enquanto bem pouco, mísera e nada demonstram que não há quantidade
significativa do gás naquele planeta.
4. Com que finalidade a palavra sim é empregada na linha 14 do texto?

197
5. A expressão só que, na linha 16, poderia ser substituída, sem prejuízo para o signi-
ficado, pela palavra:
a. por isso
b. então
c. mas
d. e
6. Identifique qual ideia a palavra isso, empregada na linha 18, retoma no interior do
parágrafo (linhas 12-20).
7. A palavra assim, empregada na linha 23, é usada para resgatar uma expressão mencio-
nada anteriormente no mesmo parágrafo. Identifique essa expressão que é resgatada.
8. A palavra assim, empregada na linha 23, também é usada para introduzir, na se-
quência do mesmo parágrafo, uma série de características sobre a expressão res-
gatada pelo assim. Identifique essa série de características.
9. Liste as características do metano citadas no texto.
10. As expressões peido extraterrestre (linha 6) e gás marciano (linha 50) podem ser
consideradas sinônimas no contexto do artigo Onde há pum, há vida, porque:
a. o autor as utiliza para falar de assuntos diferentes, ou seja, que o metano é resul-
tado de pum de seres vivos na Terra, mas não em Marte.
b. o autor as utiliza para falar do mesmo assunto, ou seja, que o gás metano encon-
trado em Marte pode revelar a existência de vida extraterrestre.
c. o autor as utiliza para falar do mesmo assunto, ou seja, que o metano é um tipo
de gás leve, associado à vida, muito comum na Terra e em Marte.
d. o autor as utiliza para falar do mesmo assunto, ou seja, que um pum marciano
contém o mesmo gás utilizado em fogões, conhecido como metano.
11. Com que objetivo, ao falar da quantidade de metano descoberto em Marte, o autor
emprega as expressões bem baixa, bem pouco e apenas, de um lado, e mísera e nada,
de outro lado?
12. Quais são as expressões empregadas pelo autor, no primeiro parágrafo, para iden-
tificar o lugar onde o metano foi encontrado?
13. Sintetize, segundo o texto, as possíveis explicações para a existência de metano em
Marte.
14. Qual a importância de os cientistas conseguirem identificar o tipo de carbono pre-
sente no metano encontrado em Marte?
15. Há relação entre o título “Onde há pum, há vida” e o texto? Por quê?

Apêndice 2 – Roteiro para avaliação de leitura


Nível linguístico-textual e microestrutural:
1. Como produzimos metano no nosso dia a dia?
2. Qual o significado da palavra corriqueiro no texto?
3. Em que planeta o metano é considerado um gás corriqueiro?
4. Identifique a descoberta que está dando o que falar.

198
5. Qual é o nome do planeta vermelho? Você já sabia disso ou aprendeu lendo o texto?
6. Por que a presença de metano em Marte pode significar a existência de vida naque-
le planeta?
7. Explique a razão da empolgação com a descoberta de metano no planeta vermelho.
8. Identifique, no segundo parágrafo, o exemplo de matéria orgânica que se transfor-
ma em metano.
9. Qual o significado de orgânica no texto (linha 8)?
10. O que faz crer que pode existir uma fonte ativa de produção de metano em marte?
11. Por que o texto faz menção a dias marcianos e não apenas a dias (linha 17)?
12. Localize no texto o parágrafo que contém a seguinte frase “Isso quer dizer que deve
haver uma fonte ativa na superfície, gerando ou liberando o gás” e identifique que
acontecimento a palavra isso retoma.
13. Identifique a palavra que preencheria adequadamente a lacuna a seguir: “O robô
encontrou metano numa concentração bem baixa: 7,2 partes por bilhão. Ou seja,
a cada bilhão de moléculas da atmosfera de Marte, que é quase toda formada por
CO2, apenas sete _________________ são metano.”
14. Micróbios metanogênicos são organismos que produzem grandes quantidades de
gás metano. Descreva suas características, conforme citadas no texto.
15. O micróbio metanogênico marciano é uma forma real ou suposta de vida extrater-
restre? Justifique sua resposta.
16. Qual o significado da expressão em suma, encontrada no 4º parágrafo do texto,
linha 26? Como você chegou a essa resposta?
17. O que é o fenômeno chamado de serpentinização?
18. Como foi descoberto que há olivina em Marte?
19. Qual o significado da palavra plausível dentro do texto (linha 33)? Você já conhecia
o significado ou aprendeu lendo o texto?
20. Caso o metano fosse de um passado remoto, como ele teria sido liberado na atua-
lidade?
21. De acordo com o texto, é possível afirmar que o metano encontrado em Marte foi
gerado lá? Justifique sua resposta.
22. A que se refere o pronome ele no 7º parágrafo do texto (linha 36)?
23. Qual a importância de o monitoramento pelo jipe-robô não haver parado?
24. A que se refere o termo isso no 8º parágrafo (linha 42)?
25. O que significa dizer que a fórmula do metano é CH4?
26. Os átomos de carbono são sempre do mesmo tipo? Justifique sua resposta.
27. Identifique a configuração do tipo de carbono mais comum.
28. Por que o astrobiólogo Dirk Schulze-Makuch afirma: “a vida é, essencialmente,
preguiçosa. Obtém o mesmo efeito com menos trabalho.” (linhas 48 e 49)?
29. Com base no texto, explique o que significa dizer que nosso lugar no Universo
depende da descoberta de vida em Marte.
30. Identifique o referente do termo deles na linha 58.

199
31. Localize no texto o parágrafo que contém a seguinte frase “Da resolução dessa
charada depende o nosso lugar no Universo” e explique a “charada” a que o texto se
refere.
Nível macroestrutural:
32. Por que há condições para que exista vida em Marte?
33. Sintetize, segundo o texto, as possíveis explicações para a existência de metano em
Marte.
34. Liste as características do metano citadas no texto.
35. Qual dos processos de formação de metano o autor considera mais empolgante em
relação a Marte? Justifique sua resposta.
36. Do que tratam os três primeiros parágrafos do texto?
37. Qual o objetivo da seção intitulada Quem soltou o gás?
38. Com base em todas as informações contidas no texto, explique o envolvimento do
robô Curiosity nas pesquisas sobre o metano em Marte.
39. No sétimo parágrafo do texto (linhas 37-38), há a informação de que a quantidade
de metano detectada em Marte é grande demais para se pensar no choque de um
asteroide. Com base nessa informação, pode-se afirmar, conforme o texto, que há
muito metano em Marte? Justifique sua resposta.
Modelo situacional:
40. Explique o título do texto e diga se ele é adequado ou não, justificando sua resposta.
41. Considere o seguinte trecho: “No finzinho do ano passado, um robô enviado pela
Nasa descobriu uma quantidade significativa de metano na superfície do planeta
vermelho - com o perdão da expressão, é o mais perto que uma de nossas sondas
robóticas já chegou de cheirar um peido extraterrestre”. Tendo lido todo o texto,
você considera a afirmação em destaque adequada ou inadequada? Justifique sua
resposta com base no texto.
42. A professora ou o professor pode optar por uma destas questões:
a. Agora, imagine que você é o autor do texto e precisa revelar, de forma breve, que
há possibilidade de existir vida em Marte. Produza seu texto com base nas infor-
mações contidas no texto “Onde há pum, há vida”.
b. Produza um resumo do texto.

200
9
As tarefas de leitura, o livro didático
e a formação do leitor

Luciane Baretta

Introdução

Desde o ano 2001, após divulgarem os resultados obtidos pelos países


participantes do PISA – Programa Internacional de Avaliação de Alunos
– entre os quais se encontrava o Brasil, não houve mais como ignorar a rea-
lidade brasileira quanto a sua fragilidade nas competências em leitura. Os
problemas existentes no processo de ensino e aprendizagem do letramento,
desenvolvido ao longo do Ensino Fundamental e Médio, se tornaram evi-
dentes (Suwwan, 2001). Desde então, na última década e meia, diferentes
indicadores nacionais (Saeb, Prova Brasil, Enem, INAF) têm corroborado
os dados preocupantes apontados e relembrados pelo PISA a cada três anos,
quando os dados relativos à Educação Básica do Brasil são comparados aos
resultados do desempenho de outros países partícipes do PISA. A análise
da pesquisa realizada pelo INAF (Indicador de Alfabetismo Funcional) en-
tre 2001 e 2011, divulgada no Estudo Especial sobre Alfabetismo e Mundo
do Trabalho, coordenado pela Ação Educativa e do Instituto Paulo Mon-
tenegro, revela que 42% dos brasileiros entre 15 e 64 anos são classificados
no nível elementar de alfabetismo. Isto significa que quase metade da po-
pulação brasileira é capaz de realizar a leitura de textos diversos, de exten-
são média, realizar inferências simples e resolver problemas que envolvem
operações básicas, apenas. Com relação aos estudantes do Ensino Médio,
48% se enquadram neste mesmo nível; 31% no nível intermediário, i.e.,
são capazes de localizar múltiplas informações em um texto, de sintetizar

201
as ideias centrais, de perceber os efeitos de sentido e de resolver problemas
matemáticos complexos; e apenas 9% estão no último grau de alfabetismo
– proficiente – demonstrando as habilidades necessárias para compreender
e interpretar textos variados e resolver problemas complexos (Ação Educa-
tiva; Instituto Paulo Montenegro, 2016, p. 7).
Diante desse quadro, alarmam-se pais e educadores das diferentes áreas
do conhecimento e instâncias sociais. O que fazer para mudar o fato de que
os jovens em idade escolar, principalmente, não possuem as competências
e habilidades necessárias para compreender satisfatoriamente um texto?
Tradicionalmente, apesar de a habilidade de leitura ser amplamente traba-
lhada e necessária a todas as disciplinas do currículo escolar, a disciplina de
Português bem como seus respectivos professores tendem a ser responsabi-
lizados como os únicos partícipes na formação do leitor proficiente (Braga;
Silvestre, 2002; Kleiman, 2004; Nova Escola, 2011). Assim, se o estudante
em idade escolar, no Ensino Superior ou mesmo o adulto leem mal e não
conseguem elaborar uma resposta satisfatória e consistente a partir das in-
formações de um texto, o ‘culpado’ é o professor de português. É ele, dentre
os profissionais da educação, que não é suficientemente qualificado e não
sabe como promover condições em sala de aula para que o aluno saiba ler
adequadamente. Contudo, apesar do ‘fardo’ carregado pelo professor de
Português, todos experienciamos em nossa vida escolar a aprendizagem
dos conteúdos de Ciências, Geografia, História, dentre outros, através da
alternância de aulas expositivas e da leitura de textos oriundos de livros
didáticos (impressos ou copiados do quadro negro), semelhantemente à
prática adotada nas aulas de português.
Observando-se os textos disponibilizados nos livros didáticos ado-
tados nas diferentes disciplinas, pode-se constatar que nem sempre está
explícito ao estudante o objetivo da leitura proposta pelo livro, ou seja, a
interação entre o leitor e o texto na busca de informações para aprender
com ele (Braga; Silvestre, 2002; Jamet, 2000; Kleiman, 1996; 1999; 2004;
Leffa, 1996; 1999; Miguel; Pérez; Pardo, 2012; Paris; Wasik; Tuner, 1991;
Rumelhart, 1981). Frequentemente, a única razão que se estabelece “para
quê” ler na sala de aula é o cumprimento da tarefa de responder às questões
formuladas após a leitura do texto, a título de verificação da compreensão

202
do aluno pelo professor. Diante deste pano de fundo e dos indicadores do
frágil desempenho em leitura dos estudantes brasileiros inseridos na edu-
cação básica e superior, estabeleceu-se a questão norteadora desta pesquisa
descritiva: de que forma o livro didático das diversas disciplinas do currí-
culo tem contribuído para a formação e desenvolvimento das competências
e habilidades em leitura? Para buscar respostas a essa questão de pesquisa,
apresenta-se, na primeira parte deste texto, uma breve contextualização
sobre as contribuições das pesquisas em leitura que analisam materiais di-
dáticos e buscam por soluções para reverter a fragilidade do quadro leitor.
Na segunda parte, é descrita a metodologia adotada para o desenvolvimen-
to da pesquisa, seguida da análise e discussão dos resultados. Finalmente,
apresentam-se as considerações finais e as referências.

Pesquisas em leitura: o que sabemos sobre as perguntas de compreensão?

A busca por compreender o que ocorre na mente do leitor a partir do


momento em que ele se depara com um texto escrito até que a compreensão
seja alcançada é um tema complexo que tem estimulado muitas pesquisas
e debate na academia. Independentemente da perspectiva teórica adotada,
estudos têm demonstrado que há vários fatores (e.g., características pesso-
ais do leitor, tipos e gêneros textuais, língua-alvo, atividade relacionada à
leitura) que influenciam a maneira que lemos (Baretta, 2003; 2008).
Dentre as diferentes possibilidades de pesquisa que se propõem a in-
vestigar as diversas atividades (antes, durante e após) que influenciam o
processo da leitura, há aquelas que apresentam evidências de que há uma
relação direta entre a aquisição do conhecimento e a formulação de per-
guntas de compreensão (Dubravac; Dale, 2002; Miciano, 2004; Oliveira,
2000; Paris; Lipson; Wixson, 1983; Pearson; Johnson, 1978; Smith, 1991).
As pesquisas nessa área têm muito a oferecer aos professores, pois elas po-
dem auxiliá-los a compreender como os diferentes tipos de perguntas e o
lugar que elas ocupam na tarefa de leitura podem afetar a compreensão de
seus alunos (Nist; Mealey, 1991).
As perguntas tradicionalmente postuladas após a leitura do texto como
uma forma de checagem de compreensão têm sido amplamente aceitas na

203
academia e no contexto escolar como uma medida válida da compreen-
são leitora. Na pesquisa conduzida por Oliveira (2000), a autora analisa
sessenta questões relativas a seis textos, de seis livros didáticos de língua
portuguesa, com o intuito de verificar como as perguntas desenvolvem a
leitura crítica de estudantes de Ensino Médio. De acordo com sua análise,
46,6% das perguntas trazidas pelo livro didático demandam compreensão
literal, de informações explícitas (right there); 35% requerem a compreen-
são de informação implícita ao texto (think and search), e apenas 18,3%
exigem que o estudante acione seu conhecimento anterior (on my own)1
para responder à pergunta. A autora conclui que os resultados encontrados
revelam a pedagogia tradicional, centrada no professor e no material didá-
tico, mas que a porcentagem de perguntas implícitas sinaliza que estamos
avançando para o ensino da leitura crítica, inferencial, que requer interpre-
tação e análise das informações apresentadas no texto.
Numa pesquisa mais recente, Azevedo (2015) faz uma análise das tare-
fas (perguntas de compreensão) de leitura de livros didáticos para o ensino
da Língua Inglesa, aprovadas pelo Programa Nacional do Livro Didático
(PNLD) e adotadas em 2014, em escolas públicas de Ensino Fundamental e
Médio no Núcleo Regional de Educação de Guarapuava, Paraná. A autora
analisou 196 tarefas de leitura, oriundas de duas coleções didáticas, isto é,
84 (28x3) tarefas para a 1ª, 2ª e 3ª séries do Ensino Médio e 112 (28x4) ta-
refas de leitura para o 6º, 7º, 8º e 9º anos do Ensino Fundamental. A análise
das tarefas de leitura foi feita de acordo com a Subescala de Leitura do Pro-
grama Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), de 20002. Os resul-
tados revelados pela pesquisa documental mostram que os livros didáticos
de inglês apresentam uma concentração de tarefas de leitura nos dois pri-
meiros níveis da Subescala, que é composta por cinco (do mais básico ao
mais complexo). Há algumas perguntas de compreensão no nível 3, para o
Ensino Médio, mas a frequência das tarefas é quase que insignificante, pois
a porcentagem é relativamente baixa: 3,57% para o domínio Identificação
e Recuperação da Informação, na 2ª série; 10,71% na 1ª série e 3,57% na 2ª
1 Estes termos podem ser traduzidos como: está ali (no texto); pense e procure (no texto) e por minha
conta. Tradução minha.
2 Para visualização do trabalho completo, acesse: <http://tede.unicentro.br:8080/jspui/bitstream/
tede/72/1/PR%20LUCIANE%20MONTEIRO%20AZEVEDO.pdf>.

204
série para o domínio Reflexão (além dos cinco níveis, a Subescala é divi-
dida em três domínios, supracitados). Os níveis 4 e 5, por sua vez, os mais
complexos da Subescala, não são exemplificados por nenhuma tarefa de
leitura, em nenhum dos três domínios. De acordo com Azevedo (2015), as
porcentagens de perguntas de compreensão leitora relativas a cada nível e
domínio não são suficientes para que o aluno do Ensino Médio, ao concluir
o ciclo da educação básica, seja capaz de desempenhar satisfatoriamente as
tarefas requeridas pela sociedade que o cerca e que demanda um cidadão
ativo e crítico. Para minimizar essa lacuna, a autora sugere que:
os professores de língua inglesa, especialmente os da Rede Estadual
da Educação do Paraná, incentivem seus alunos a refletir sobre o
propósito das TL [tarefas de leitura] encontradas nos LDLI [livros
didáticos de Língua Inglesa], reflexão que pode colaborar para o de-
senvolvimento cognitivo e crítico dos alunos. Além disso, é impor-
tante destacar a necessidade dos professores de língua inglesa avaliar
as TL trazidas nos livros didáticos, tanto no ensino Fundamental
quanto no Médio (p. 98).
Conforme demonstrado nos estudos de Oliveira (2000) e Azevedo
(2015), aparentemente, os livros didáticos produzidos no Brasil, para
o ensino de língua materna e estrangeira inglês, pouco se modificaram
quanto ao tipo (profundidade) de perguntas de compreensão leitora nos
últimos 15 anos. Apesar dessas duas pesquisas analisarem corpora dife-
rentes, com livros didáticos de língua portuguesa publicados entre 1974
e 1996, na pesquisa de Oliveira, e livros didáticos de língua inglesa, pu-
blicados em 2010 e 2012, na pesquisa de Azevedo, podemos perceber que
os resultados não são muito diferentes, infelizmente. Embora o interesse
por pesquisar a leitura seja do interesse de diferentes áreas (neurociência e
neurolinguística, por exemplo), percebe-se que há carência de estudos que
investiguem o amplo contexto de ensino da compreensão leitora. Diante
disso, propõe-se o presente estudo, que busca verificar de que forma o
livro didático das diversas disciplinas do currículo tem contribuído para
a formação e desenvolvimento das competências e habilidades em leitu-
ra. Para buscar alcançar este objetivo geral, são levantados alguns ques-

205
tionamentos: (a) qual o nível de compreensão requerido pelas tarefas de
compreensão em leitura (superficial, profunda, crítico-reflexiva)? (b) qual
a ocorrência (%) de tarefas de leitura que requerem apenas a compreensão
da informação superficial? (c) qual a ocorrência (%) de tarefas de leitura
que demandam a compreensão profunda e crítico-reflexiva? (d) há algum
gênero textual que é recorrente nos livros didáticos? Na tentativa de res-
ponder esses questionamentos, passamos à descrição do método.

Método

Materiais

O corpus desta pesquisa é composto de livros didáticos selecionados


dentre aquelas disciplinas que adotavam o material fornecido pelo Gover-
no Federal, por meio do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD),
nos níveis Fundamental e Médio, nas escolas estaduais do Núcleo Regional
de Educação de Guarapuava (NRE), Paraná, no período de 2011 a 2012.
Conforme a disponibilização dos livros didáticos em forma de doação à
pesquisadora, definiu-se que fariam parte deste estudo as duas coleções
didáticas disponibilizadas aos professores/escolas estaduais do NRE, para
cada disciplina que é contemplada pelo PNLD. As disciplinas de Portu-
guês e Inglês foram automaticamente selecionadas para compor a amostra,
tendo-se em vista a sua tradição no ensino da habilidade da leitura. Dessa
forma, o Ensino Fundamental é retratado por duas coleções de livros didá-
ticos para as disciplinas de: Português, Inglês, História, Geografia, Ciências
e Matemática. Para o Ensino Médio, os livros didáticos das disciplinas de
Matemática e Ciências foram substituídos pelos de Biologia e Química, em
razão da indisponibilidade de material no NRE.

Coleta e análise dos dados

A coleta dos dados foi feita tendo como base o número de 20 tarefas
de leitura para cada disciplina/ano escolar em estudo, ou seja, 20 tarefas
X6 disciplinas X4 anos = 480 tarefas de leitura para o Ensino Fundamen-

206
tal, e 20 tarefas X6 disciplinas X3 anos = 360 tarefas para o Ensino Médio.
Conforme descrito na seção Materiais, duas coleções didáticas foram ana-
lisadas para cada disciplina, ficando estabelecido, dessa forma, o número
de 10 tarefas de leitura para cada uma das coleções. Como a disciplina de
Português apresenta, tradicionalmente, um número elevado de tarefas de
leitura por texto apresentado, decidiu-se por aumentar esse número para
40, ou seja, 20 tarefas para cada livro didático/ano escolar. Essa medida foi
necessária para que a amostra dos livros de Português não ficasse restrita
a apenas um ou dois gêneros textuais por livro didático, tendo-se em vista
que muitos textos traziam muito mais que 10 tarefas de leitura, diferente-
mente das outras disciplinas, que tendem a apresentar um número inferior
de tarefas para cada texto. Assim sendo, o número total de tarefas analisa-
das para o nível fundamental é de 560 e, para o nível médio, 420 tarefas.
A seleção das tarefas de leitura seguiu três critérios básicos. Primeiro:
a tarefa de leitura, para ser definida como tal, precisava estar vinculada a
um ou mais textos do livro didático. Segundo: as tarefas de leitura selecio-
nadas não poderiam estar vinculadas a atividades de revisão, verificação
e/ou checagem de conteúdos abordados no decorrer do capítulo/unidade
estudada. Terceiro: a seleção da primeira metade das tarefas (10) foi feita a
partir do primeiro texto do livro didático e assim sucessivamente; a seleção
da outra metade (10) foi realizada de maneira inversa, iniciando pelo últi-
mo texto do livro e assim retrospectivamente, até que o total, para aquela
coleção, fosse alcançado.
A análise dos dados foi feita tendo como embasamento a taxonomia
de perguntas de compreensão em leitura proposta por Pearson e Johnson
(1978): textualmente explícita (compreensão superficial), textualmente
implícita (compreensão profunda) e implícita no script (compreensão crí-
tico-reflexiva). Esta categorização será contextualizada na próxima seção,
juntamente com a análise e discussão dos dados.

Análise e discussão dos dados

O estudo de Pearson e Johnson (1978) na área de ensino e aprendiza-


gem de leitura inclui uma taxonomia de perguntas de compreensão (ado-

207
tada no estudo de Oliveira (2000), discutido anteriormente, na revisão de
literatura). Essa taxonomia, segundo os autores, é desenhada para capturar
as relações existentes entre as perguntas elaboradas a partir de um texto e as
respostas referentes a esse mesmo material. De acordo com os modelos de
processamento em leitura (ascendente, descendente e interativo)3 e confor-
me explicam Pearson e Johnson, as fontes de informação necessárias para
que o leitor produza uma resposta, isto é, o texto, o conhecimento do leitor
ou ambos, são os elementos norteadores dessa taxonomia.
Uma pergunta (ou tarefa, conforme adotado nesta pesquisa) de com-
preensão textualmente explícita (TE) é aquela que se baseia na informação
que está diante dos olhos do leitor e demanda uma compreensão rasa, su-
perficial. São as típicas perguntas/tarefas literais de leitura, que tendem a
apresentar as seguintes palavras sinalizadoras em sua estruturação: quem, o
que, onde, quando (Oliveira, 2000). As perguntas/tarefas de leitura textual-
mente implícitas (TI) são aquelas em que a resposta está no texto, mas para
obtê-la, é necessária a geração de inferências: “both question and answer are
derivable from the text but there is no logical or grammatical cue tying the
question to the answer and the answer given is plausible in light of the ques-
tion4” (Pearson; Johnson, 1978, p. 163). Em outras palavras, a resposta está
no texto, mas não é óbvia, como nas TEs descritas acima; o leitor precisa
ler nas entrelinhas para alcançar a compreensão profunda. Neste tipo de
pergunta, são frequentes as palavras interrogativas: por que, como, de que
maneira. As perguntas/tarefas de leitura denominadas implícitas no script
(TIS) são aquelas que requerem, basicamente, o conhecimento prévio do
leitor, armazenado em sua memória. Para responder a esse tipo de pergun-
ta, o leitor precisa usar seus esquemas mentais para elaborar a resposta;
neste tipo de questão, o leitor precisa ler além das linhas do texto, para res-
ponder a proposições do tipo: imagine, suponha, prediga, defenda, elabore,

3 Os modelos ascendentes postulam que a leitura é um processo linear de decodificação que parte das
menores unidades textuais até a compreensão; o sentido está no texto. Os modelos descendentes esta-
belecem que o sentido do texto está na mente do leitor que traz seus conhecimentos para o texto. Os
modelos interativos, por sua vez, estabelecem que tanto o texto quanto o leitor precisam interagir para
que a compreensão se efetive (SOUZA, 2012).
4 Tradução minha: pergunta e resposta são oriundas do texto, mas não há sinalização lógica ou gramati-
cal relacionando a pergunta à resposta e a resposta dada é plausível à luz da pergunta.

208
justifique, explique, quais são as possíveis consequências, entre outras. Para
responder satisfatoriamente a esse tipo de questionamentos, o leitor precisa
alcançar a compreensão crítico-reflexiva daquilo que lê.
Conforme podemos visualizar no Gráfico 1 a seguir, 54,38%, um pou-
co mais da metade do total (n=980), das tarefas de leitura são do tipo TE,
que exigem apenas a compreensão literal do texto. 29,48% das tarefas en-
quadram-se naquelas que requerem a elaboração de algum tipo de inferên-
cia (TI) e apenas 16,73% são tarefas que estimulam o leitor a ir além da-
quilo que está no texto, através da ativação de seu conhecimento de mundo
(TIS). Observa-se, portanto, que os textos analisados apresentam mais que
o triplo de TE em relação às tarefas TIS, mostrando similaridade aos resul-
tados discutidos na pesquisa de Azevedo (2015), que trabalhou com livros
didáticos de língua inglesa.

Gráfico 1: Porcentagem da frequência de tarefas explícitas (TE), implícitas (TI) e


implícita no script (TIS) nos livros didáticos: nível Fundamental, Médio e Geral

Reprodução

Fonte: Dados da pesquisa.

Resultados análogos podem ser percebidos ao se analisar os dados se-


parados do Ensino Fundamental (560 tarefas) e do Médio (420 tarefas).
Conforme verifica-se no Gráfico 1, há uma forte tendência pela preferência
de tarefas TE sobre os outros dois tipos, principalmente no ensino Médio

209
que apresenta um índice quase 10% maior de TE do que no nível Funda-
mental. Dados semelhantes podem ser observados com relação à frequên-
cia de tarefas do tipo TI, novamente com uma diferença de 9% entre o nível
Fundamental e Médio. Note-se que para as tarefas TI e TIS, quanto maior a
porcentagem, mais positivo o resultado, pois essas tarefas requerem maior
envolvimento do leitor com o texto. Fato contrário deve ser concluído com
relação às tarefas TE, isto é, quanto maior a porcentagem deste tipo de ta-
refa, mais fragilizado é o resultado, uma vez que demonstra a alta frequên-
cia de tarefas de compreensão que requerem, basicamente, a compreensão
literal e superficial do texto.
Como podemos explicar a distribuição desproporcional entre TE e TIS
nos livros didáticos fornecidos pelo Governo Federal, que, supostamente,
deveriam estar em consonância com as propostas educacionais brasileiras,
pautadas no letramento crítico, no preparo do aluno para ser atuante na
sociedade atual? Conforme argumentado por Oliveira (2000), a despropor-
ção entre os tipos de tarefas explícitas (TE) e implícitas no script (TIS) não
deve ser considerada tão extraordinária, tendo-se em vista o paradigma
tradicional de ensino adotado no Brasil. Apesar dos avanços no campo da
educação (programas sociais de incentivo à educação básica e aos outros
níveis de educação, expansão de escolas e universidades públicas, mecanis-
mos internos de avaliação educacional, queda no índice de analfabetismo,
ênfase na formação, qualificação e carreira do professor, entre outros), é
recente ainda o conceito de democracia, que apenas engatinha em nossa
sociedade e, consequentemente, ainda está distante das salas de aula. A des-
peito de encontrarmos alunos mais questionadores e menos passivos nas
nossas escolas, encontramos também uma presença acentuada da peda-
gogia tradicional de ensino, bastante marcada por uma abordagem instru-
cional centrada no professor, que tem, como uma de suas características, a
utilização de perguntas factuais,
pois a preocupação é com o repasse da informação e não com o
aprendizado; com o ponto de vista do professor, não dos alunos;
com respostas básicas, não com justificativas/explicações; (...)
com as informações NO texto somente e não com aquelas que

210
CIRCUNDAM o texto” (Oliveira, 2000, p. 48, ênfase no original,
minha tradução).5
Contudo, é importante destacar que a mudança para práticas de ensino
mais centradas no aluno, instauradas em círculos educacionais ao redor do
mundo, parece começar a refletir uma mudança qualitativa dos materiais
didáticos e, consequentemente, na prática do professor. Ainda com base no
Gráfico 1, acima, pode-se observar que no cômputo geral, 29,48% das tare-
fas de leitura – categorizadas como TI – demandam a participação do leitor
para, colaborativamente com o texto, (re)construir suas próprias experi-
ências de aprendizado, através da utilização e internalização de operações
de nível mais alto de leitura (inferência: integração, resumo, elaboração;
monitoramento da compreensão: estabelecimento e checagem de objeti-
vos, seleção de estratégias e remediação) (Gagné; Yekovich; Yekovich, 1993;
Tomitch, 2011). Essa porcentagem, apesar de tímida, quando comparada
à frequência das tarefas TEs (54,38%), demonstra uma tendência ambi-
valente (Oliveira, 2000) do contexto educacional brasileiro, no que tange
aos materiais didáticos utilizados para instrução. Esse dado, associado à
frequência de TIS, parece demonstrar que os recursos investidos na área da
educação começam a surtir efeitos, demonstrando que o modelo de ensi-
no brasileiro está passando por um momento de transição entre o ensino
centrado no professor, com tarefas de compreensão de leitura baseadas na
informação explícita, e o ensino mais democrático, centrado no aluno, que
precisa refletir, inferir e analisar informações para responder aos questio-
namentos do material didático e/ou do professor.
Com o intuito de melhor visualizar a distribuição de tarefas de leitura
por disciplina e ano escolar, passemos à análise dos dados tendo como re-
ferência as disciplinas dos níveis Fundamental e Médio que compuseram
o corpus desta pesquisa. De acordo com a visualização dos Gráficos 2 a 8,
organizados por ano escolar/disciplinas, pode-se afirmar que há diferenças
significativas entre as variáveis: disciplina, ano escolar e tipo de tarefa de
leitura.

5 “because the preoccupation is with the delivery of instruction, not with learning; with the teacher’s point of
view, not with the student’s; with plain answering, not justifying / explaining; (...) with information IN the
text only, not AROUND it.”

211
Gráfico 2: Tipos de tarefa de leitura: 6º ano

Reprodução
Fonte: Dados da pesquisa.
Gráfico 3: Tipos de tarefa de leitura: 7º ano

Reprodução

Fonte: Dados da pesquisa.


Gráfico 4: Tipos de tarefa de leitura: 8º ano
Reprodução

Fonte: Dados da pesquisa.

212
Gráfico 5: Tipos de tarefa de leitura: 9º ano

Reprodução
Fonte: Dados da pesquisa.

Um dos primeiros resultados que chama a atenção é a baixa porcenta-


gem de tarefas TIS na disciplina de Português. De acordo com a representa-
ção social (Luckesi, 2002) imbuída a essa disciplina, os dados apresentados
são dissonantes da expectativa para a disciplina que, teoricamente, têm es-
pecialistas – linguistas, linguistas aplicados, pedagogos – como autores do
livro didático e que têm conhecimento específico e aprofundado a respeito
do trabalho com a leitura em sala de aula. Além disso, espera-se, principal-
mente da disciplina de Português, não excluídas as outras dessa responsa-
bilidade, um trabalho mais aprofundado na leitura e discussão de textos,
incentivando o aluno a refletir, questionar, criticar aquilo que lê, tendo-se
em vista que o enfoque da disciplina é a utilização da língua(gem) como
prática social. No Ensino Fundamental, observa-se que há uma porcenta-
gem fragilizada das tarefas TIS nos primeiros anos, não ultrapassando os
10% do total de tarefas analisadas. No 9º ano, temos um aumento signifi-
cativo, com quase 30% das tarefas de leitura requerendo do leitor a extra-
polação do texto para responder questionamentos críticos-reflexivos. Esse
avanço, contudo, retrocede no nível Médio, quando a porcentagem mais
alta de tarefas TIS é encontrada no 2º ano (15%).

213
Gráfico 6: Tipos de tarefa de leitura: 1º ano

Reprodução
Fonte: Dados da pesquisa.
Gráfico 7: Tipos de tarefa de leitura: 2º ano

Reprodução

Fonte: Dados da pesquisa.


Gráfico 8: Tipos de tarefa de leitura: 3º ano
Reprodução

Fonte: Dados da pesquisa.

214
As porcentagens referentes à ocorrência de tarefas TE também cha-
mam a atenção, principalmente nos dois primeiros anos do Ensino Funda-
mental (Gráficos 2 a 5), em que a frequência dessas tarefas, em Português, é
superior a todas as outras disciplinas. Poder-se-ia argumentar que, tendo-
-se em vista os dados apresentados pelos indicadores nacionais referentes
ao Ensino Básico (Saeb), aliados às dificuldades de leitura apresentadas por
alunos que iniciam o 6º ano do Ensino Fundamental, o objetivo do livro di-
dático é de fazer uma espécie de retomada dos processos de nível mais bá-
sico da leitura, envolvendo, portanto, tarefas que requerem a decodificação
fluente e a compreensão literal. De acordo com Gagné, Yekovich e Yekovich
(1993), o processo de decodificação é subdividido em associação e recodi-
ficação; é neste nível de processamento que os leitores atribuem significado
às palavras, associando o conceito que já possuem à palavra escrita. Se a
palavra não fizer sentido, eles a recodificam para obter o significado corre-
to. O próximo passo corresponde à compreensão literal, momento em que
os leitores se atêm ao nível superficial do texto. É somente a partir de do-
minados ou compreendidos esses níveis mais básicos, mas fundamentais
da leitura, que o leitor é capaz de prosseguir para os níveis mais altos de
processamento, que envolvem as tarefas do tipo TI e TIS, mais frequentes
a partir do 8º ano, quando, teoricamente, o aluno estaria mais preparado
para atuar ativamente na construção de seu conhecimento e superação dos
obstáculos inerentes à compreensão leitora.
No entanto, não se pode deixar de observar que esse padrão não se es-
tende ao Ensino Médio, que mostra resultados que, de certa forma, anulam
o trabalho desenvolvido nos quatro anos do Ensino Fundamental, tendo-se
em vista que se tem uma retomada à preferência por tarefas de leitura TE.
Esse dado, mais uma vez, está dissonante da representação social referente
ao preparo do aluno para: (a) os concursos de vestibular, que a cada ano
estão mais voltados para tarefas de compreensão do tipo TI e TIS e (b) para
a sua participação crítica e ativa na sociedade, dando-lhe condições de con-
tinuar a aprender de forma autônoma.
Outro resultado que chama a atenção é a superioridade de tarefas TI
nas disciplinas de Matemática (no 7º, 8º e 9º anos), Ciências (8º ano) e
Química (1º e 2º anos) sobre as tarefas TE. Esses dados estão em conso-

215
nância com os números apresentados por Baretta (2013), em que é feita
uma análise preliminar desse mesmo corpus, tendo como embasamento a
categorização das tarefas de leitura em ativas (são contextualizadas e pri-
mam pela compreensão inserida num contexto significativo de interação
social) e passivas (enfocam a compreensão compartimentada e descontex-
tualizada de itens linguísticos), proposta por Davies (1995). Além disso,
há a discussão sobre os comentários dos docentes das áreas de exatas que
percebem com maior clareza as fragilidades apresentadas pelos seus alunos
quanto à habilidade da leitura, uma vez que há uma frequência maior de
tarefas de compreensão que demandam níveis de processamento mais altos
nas disciplinas ministradas por eles. Os resultados da dificuldade do leitor
em compreender o que está implícito fica logo evidente nessas disciplinas
quando o estudante demonstra que não consegue resolver uma tarefa por-
que não compreendeu o não dito do enunciado proposto.
É importante a observação de que algumas disciplinas (Ciências e Ma-
temática no 6º ano; Geografia no 7º; Português e Ciências no 9º; Inglês e
História no 1º e Química no 3º ano), apresentam certo equilíbrio entre os
três tipos de tarefas de leitura, não priorizando um tipo em detrimento de
outro. Parece-nos que este seria o encaminhamento ideal para a formação
(ou desenvolvimento, nas palavras de Menegassi, 2010) do leitor, que esta-
ria mais bem preparado para lidar com os diferentes desafios inerentes ao
uso competente da leitura e escrita em práticas sociais, que perpassam o
ambiente escolar. Tendo-se em vista que o objetivo da escola não se limita
mais à simples transmissão de conhecimentos, mas diz respeito à forma-
ção/desenvolvimento do cidadão competente para que seja capaz de atuar
na sociedade contemporânea, frente às diversas facetas inerentes às práti-
cas letradas, é fundamental que todas as disciplinas do currículo escolar
trabalhem para o desenvolvimento de um leitor autônomo e crítico, através
da elaboração dos diferentes tipos de tarefas de compreensão em leitura.
No entanto, esse não é o panorama que se percebe ao analisarmos os
Gráficos 6 a 8, acima, referentes aos dados do Ensino Médio, nível esse que,
de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996),
é a “etapa final da educação básica” (Art. 36), que deveria oportunizar a
consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no Ensi-

216
no Fundamental. Conforme podemos observar nos gráficos, das seis dis-
ciplinas analisadas em cada ano do Ensino Médio, três delas (Português,
Geografia e Biologia) mostram porcentagem bastante superior de TEs no
1º ano; cinco disciplinas (Inglês, Português, Geografia, Biologia e História)
no 2º ano e quatro disciplinas no 3º ano, último ano da Educação Básica
(Inglês, Português, Geografia e História).
Esses números, juntamente com aqueles referentes ao Ensino Funda-
mental, estão em consonância com os índices apresentados pelos indica-
dores nacionais (Saeb, Prova Brasil, Enem, Inaf) e internacionais (PISA) de
avaliação de desempenho dos estudantes brasileiros nos últimos anos. De
acordo com dados recentes publicados pela 8ª edição do Inaf (Indicador de
Alfabetismo Funcional), já mencionados no início deste texto e repetidos
aqui, “entre 2001 e 2011, o domínio pleno da leitura6 caiu de 22% para 15%
entre os que concluíram o Ensino Fundamental II, e de 49% para 35% entre
os que fizeram o Ensino Médio” (Estadão, 2012). 57% dos concluintes do
Ensino Médio permanecem no nível básico de alfabetização, que envolve
a leitura e compreensão de textos de média extensão e a localização de in-
formações com inferências simples, e 8% classificam-se como analfabetos
funcionais, isto é, são capazes de localizar uma informação explícita em
textos curtos e familiares (anúncio, carta, bilhete). Ao se comparar esses
indicadores com as porcentagens gerais para cada tipo de tarefa de leitura
investigadas nesta pesquisa, percebe-se uma relação de causa e efeito. Ora,
se 532 (54,38%) das 980 tarefas de leitura trabalhadas nos livros didáticos
nos níveis Fundamental e Médio são aquelas que requerem a compreensão
de informações literais do texto; outras 288 (29,48%) envolvem a compre-
ensão a partir de algum tipo de inferência relacionada ao texto, e apenas
163 tarefas (16,73%) demandam a relação entre o texto lido com outras
fontes de informação (extratextuais), não há como se esperar escores de
desempenho muito diferentes desses que têm sido reportados por diferen-
tes exames, nos últimos anos. Conforme amplamente discutido por edu-

6 Para enquadrar-se no nível pleno de leitura, as pessoas devem ser capazes de ler e compreender textos
longos, por exemplo, um artigo de jornal, comparar suas informações com as de outros textos e fazer
uma síntese desse texto. Consideram-se inclusas no nível pleno em Matemática aquelas pessoas capazes
de resolver problemas envolvendo percentuais e proporção, além de fazer a interpretação de tabelas e
gráficos simples.

217
cadores, pesquisadores e aqueles envolvidos, direta ou indiretamente com
o processo educacional brasileiro, o primeiro passo, a inclusão das pessoas
na escola, através de diferentes incentivos, foi dado. Chegou o momento
de investir na segunda e mais importante etapa, que é a qualidade do ensi-
no (Gazeta Online, 2012). De acordo com os dados da presente pesquisa,
um dos aspectos inerentes a essa etapa, é o estudo aprofundado dos mate-
riais didáticos disponibilizados pelo Governo. É importante que se tenha
consciência (autores e editores) que o livro didático, além de apresentar o
conteúdo específico à área do conhecimento, deve estar pautado nos do-
cumentos oficiais e nos propósitos gerais de formação comum indispensá-
vel para o exercício da cidadania, fornecendo os meios (conhecimentos e
habilidades) para que os estudantes progridam no trabalho e em estudos
posteriores (Portal Brasil, 2012).
Um aspecto importante e merecedor de destaque é a preocupação dos
autores/editores dos livros didáticos com a diversidade de gêneros textuais
apresentados no decorrer das unidades. Apesar do enfoque nos gêneros
textuais estar mais associado às disciplinas que trabalham diretamente com
a língua(gem), como Português e Inglês, há que se observar que dentre os
objetivos gerais do Ensino Fundamental, conforme proposto pelos PCNs,
terceiro e quarto ciclos (Brasil, 1998), temos que os alunos devem ser ca-
pazes de:
utilizar as diferentes linguagens – verbal, musical, matemática, gráfi-
ca, plástica e corporal – como meio para produzir, expressar e comu-
nicar suas (sic) ideias, interpretar e usufruir das produções culturais,
em contextos públicos e privados, atendendo a diferentes intenções
e situações de comunicação (p. 6 e 7).
Os PCNs para o Ensino Médio (Brasil, 2000) também enfatizam “a
língua portuguesa como instrumento de comunicação, acesso ao conhe-
cimento e exercício da cidadania” (p. 56, ênfase minha). Dessa forma,
tendo-se em vista o que preconizam os documentos oficiais, engajados
nas contribuições do interacionismo sociodiscursivo, a percepção de que
para se comunicar com competência é necessário o acesso e o estudo de
diferentes gêneros textuais para interagir em diferentes contextos discursi-

218
vos, parece estar sendo incorporada aos livros didáticos, que demonstram,
mesmo que ainda timidamente na maioria das disciplinas, excetuando-se
Português e Inglês, que o trabalho com o texto, enquanto prática social,
não é responsabilidade apenas dos professores que trabalham com o ensino
de línguas. Na Tabela 1, a seguir, pode-se observar a variedade de gêneros
textuais7 trazidos pelos livros didáticos analisados e o número de tarefas de
leitura trabalhadas por gênero textual, nos níveis Fundamental e Médio.

Tabela 1: Distribuição dos Gêneros Textuais e de Tarefas de Leitura (TL) nos níveis
Fundamental e Médio

Gênero Textual TL – Nível Fundamental TL – Nível Médio Total de TL


anúncio 20 7 27
artigo 9 57 66
biografia 4 - 4
blog - 2 2
carta do leitor 38 4 42
carta pessoal 3 1 4
cartão postal 1 - 1
cartaz 9 - 9
cartum - 4 4
chat 4 - 4
citação 3 - 3
classificados 2 - 2
conto 20 2 22
convite 7 - 7
crônica 20 3 23
declaração dos direitos - 1 1
diálogo 4 - 4
discurso didático 58 110 168
entrevista 22 2 24
folder 1 - 1
foto - 2 2
gráfico 31 14 45
história em quadrinhos 14 - 14
homepage 7 - 7
infográfico 13 9 22

7 Os gêneros textuais listados neste trabalho foram categorizados de acordo com os exemplos de gêneros
apresentados nas Diretrizes Curriculares da Educação Básica-Língua Estrangeira Moderna, do Estado
do Paraná (2008).

219
julgamento - 10 10
lista - 5 5
manual - 10 10
mapa 4 6 10
música 4 8 12
narrativa de aventura 20 1 21
narrativa de terror 19 - 19
notícia 42 23 65
pesquisa 5 15 20
piada 7 2 9
pintura - 10 10
placa 4 4 8
poema 6 23 29
prefácio - 12 12
quiz - 5 5
receita 5 - 5
relato experiência científica - 3 3
relato histórico 29 5 34
relato pessoal 9 10 19
reportagem 27 4 31
resenha crítica 17 13 30
romance - 60 60
tabela 3 2 5
texto argumentativo 6 5 11
texto de opinião - 11 11
tirinha 32 4 36
verbete de enciclopédia 9 - 9
website - 8 8
Fonte: Dados da pesquisa.

É possível perceber que os gêneros textuais dos livros didáticos se in-


serem nas diferentes esferas sociais de circulação (Bakhtin, 1988), extrapo-
lando as esferas cotidiana e escolar, tradicionalmente incluídas no discurso
da prática pedagógica. As esferas literária, artística, científica, da imprensa,
publicitária, jurídica, da produção e consumo e a midiática, entre outras,
são automaticamente inseridas na discussão a partir do trabalho com os
gêneros textuais, que precisam ser compreendidos em suas esferas sociais
de circulação, desenvolvendo, dessa forma, as competências e habilidades
necessárias ao estudante para que se integre ao mundo contemporâneo nas
dimensões fundamentais da cidadania e do trabalho (Brasil, 2000).
220
No entanto, apesar da diversidade de gêneros (53), é preciso destacar
que vários deles são apresentados apenas uma vez, em uma disciplina es-
pecífica, como é o caso da maioria dos gêneros que apresentam número
reduzido de tarefas, como: biografia (4), blog (2), carta pessoal (4), cartão
postal (1), cartum (4), chat (4), citação (3), classificados (2), declaração dos
direitos (1), diálogo (4), folder (1), foto (2), homepage (7), lista (9), piada
(9), placa (8), quiz (5), receita (5), relato de experiência científica (3) e tabela
(5). É importante lembrar aqui que os números apresentados são referentes
aos textos nos quais as tarefas de leitura analisadas nesta pesquisa foram ba-
seadas, não revelando, portanto, um retrato completo dos gêneros textuais
abordados nos livros didáticos analisados. Sabe-se que, para que o trabalho
com qualquer conteúdo seja eficaz, é necessário que ele seja retomado à
medida que os anos escolares avançam, respeitando-se o princípio da com-
plexidade crescente. O mesmo ocorre com o trabalho com gêneros textuais.
Na verdade, importa menos a diversidade de gêneros trabalhados do que
a qualidade do trabalho sendo desenvolvido a partir do texto em questão.
Nesse caso, é procedente a conclusão de que, quanto maior o número de
tarefas de leitura para um determinado gênero textual, maior é (ou tende a
ser) a frequência com que esse gênero é trabalhado com os alunos e em dife-
rentes disciplinas do currículo. Se tomarmos como exemplo os gêneros: dis-
curso didático, artigo e notícia, que mostram os maiores índices de tarefas
de leitura (168, 66 e 65, respectivamente), é plausível concluir que esses gê-
neros textuais foram abordados por mais de uma disciplina e em diferentes
momentos (aulas). No entanto, é preciso cuidado para não tecer conclusões
generalizadoras. Um caso específico, referente ao gênero romance, chama a
atenção para a ocorrência de 60 tarefas, todas trabalhadas nos livros didáti-
cos do nível Médio, apenas. Outros gêneros textuais também são abordados
em apenas um dos níveis de ensino. No entanto, o número de tarefas de
leitura é bem menos significativo, como por exemplo, narrativa de terror,
pintura e prefácio, com 19, 10 e 12 tarefas, respectivamente.
Retomando o olhar para o cômputo geral das tarefas de leitura por gê-
nero textual, observa-se que o discurso didático é o gênero mais trabalhado
pelos livros, apresentando quase o triplo de tarefas (168) em comparação
com o segundo gênero, o artigo, com 66 tarefas. Esse resultado, apesar de

221
um pouco alarmante – pois revela que quase um quinto das tarefas de lei-
tura em análise nesta pesquisa são propostas a partir de um único gêne-
ro textual que se enquadra na esfera de circulação escolar –, é também
animador. Conforme mencionado anteriormente, a amostra considerada
revela que os livros didáticos trabalham com 53 gêneros textuais distintos,
fato que demonstra tentativas de descentralização do texto didático, escrito
com propósitos pedagógicos, como fonte única do saber.
Aparentemente, essas tentativas começam a surtir efeito, pois quatro
quintos das tarefas de leitura analisadas nesta pesquisa são elaboradas a
partir de gêneros textuais diversificados, pertencentes a diferentes esferas
de circulação. Tomando como exemplo os próximos gêneros textuais com
maior número de tarefas de leitura, organizados em ordem decrescente,
temos: o artigo (66 tarefas), notícia (65), romance (60), gráfico (45), carta
do leitor (42), tirinha (36), relato histórico (34), reportagem (31) e resenha
crítica (30), que se inserem em outras esferas sociais de circulação, além
da escolar: a científica, da imprensa e a artística/literária. Portanto, é pos-
sível concluir que, mesmo havendo a predominância dos livros didáticos
em utilizar-se de textos escritos com cunho essencialmente pedagógico, há
que se considerar a inserção de textos diversos efetivados nas práticas dis-
cursivas (Bakhtin, 1988), que de uma ou outra forma preparam o estudante
para deparar-se com a sociedade letrada do século XXI. Quase que a to-
talidade das instâncias (sociais, econômicas, culturais, educacionais) com
as quais o cidadão do século XXI precisa interagir estão permeadas pela
língua escrita. Resumir e comentar sobre uma notícia que leu no jornal ou
acompanhou pela televisão, receber e enviar mensagens de texto através do
telefone celular, preencher e enviar a declaração do imposto de renda, são
tarefas que fazem parte do nosso cotidiano e requerem diferentes graus de
letramento, que a escola, se pautada apenas no gênero discurso didático,
não dará conta de prover ao seu estudante.

Considerações finais

Os resultados reportados nesta pesquisa revelam apenas uma fração da


esfera do processo de formação e desenvolvimento do leitor competente.

222
Embora o estudo apresente suas limitações quanto ao número de tarefas
analisadas por cada disciplina/livro didático (10 tarefas para todas as dis-
ciplinas investigadas, excetuando-se a de Português, que teve o dobro de
tarefas analisadas por livro), os dados apresentados sinalizam a necessida-
de de pesquisas mais amplas e detalhadas, envolvendo um número maior
de materiais didáticos e de tarefas de leitura para cada disciplina, para que
possamos ter uma visão mais clara acerca da contribuição do livro didático
na formação do ser letrado.
Contudo, conforme discutido no decorrer deste capítulo, não pode-
mos negar que se desnuda a estreita ligação entre as tarefas de leitura tra-
balhadas pelos livros didáticos e os resultados de desempenho dos nossos
estudantes em diferentes exames, amplamente divulgados pela mídia. In-
felizmente, não há como se esperar êxitos diferentes por parte desses estu-
dantes quando nos defrontamos com porcentagens alarmantes de tarefas
de leitura que demandam apenas a compreensão superficial (TE) para que
sejam respondidas a contento.
Um primeiro passo foi dado: iniciou-se um estudo diagnóstico acerca
do papel do livro didático na formação e desenvolvimento do leitor com-
petente, que deve ser capaz de, além de compreender a informação literal,
“extrair informações de textos, de interpretar essa informação a partir de
conhecimentos e metas pessoais, e de refletir sobre os conhecimentos ela-
borados ou interpretados e sobre o processo seguido para obtê-los e enten-
dê-los” (Miguel et al., 2012, p. 39). A partir do momento que professores,
autores e editores de livros didáticos tiverem clareza quanto aos êxitos a se-
rem alcançados, i.e., tarefas que se esperam que uma pessoa consiga resol-
ver depois de ler um determinado material, teremos condições de propor
o passo seguinte para conceber alguma intervenção eficaz e vislumbrar um
quadro diferente para o sistema educacional.

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225
Parte IV

Ensino de leitura
nos anos iniciais
e no contexto da surdez

226
10
A prática sistematizada da leitura de livros de
literatura infantil no processo de alfabetização

Ana Carolina da Conceição


Otília Lizete de Oliveira Martins Heinig

Malas prontas: vamos iniciar a aventura

Iniciamos nossa viagem submergida na prática da leitura de livros de


literatura infantil em uma turma do segundo ano do Ensino Fundamental.
Nossa aventura, ao escrever, traça análises iniciais sobre esse recurso uti-
lizado pela professora em sala de aula. Cada título de seção é entrelaçado
com o apoio de Marques (2011) nessa caminhada da pesquisa.
Escrever é o começo dos começos. Depois é aventura. Uma mochila
com alguns poucos pertences do ofício artesanal, uma bússola [...]
Uma lâmpada para iluminar os caminhos à medida que se apaga a
luz do dia. É desse jeito que a teoria ilumina a prática, mas só quan-
do a própria prática a deslocou para a situação a que deve servir e
produzir adequada. Por isso, de saída não se pode saber os interlocu-
tores. Surgirão eles durante a caminhada. Isso faz parte da aventura.
(Marques, 2011, p. 31)
O presente trabalho integra uma pesquisa de dissertação de mestrado
que aborda as ações docentes para a sistematização da linguagem escrita
nos anos iniciais. Partindo do pressuposto da mediação como princípio
da organização do trabalho pedagógico (Fontana, 2005), o estudo tem seu
foco nos modos como a linguagem escrita é sistematizada nas aulas de lei-
tura, produção de texto e conhecimentos linguísticos e, por meio da qual,
se transforma em objeto ensinado (Dolz Ronveaux; Schneuwly, 2007).
227
Batista (2011) alerta que há poucas pesquisas que problematizam o
desenvolvimento e consolidação do processo de aprendizagem da língua
materna. Por isso, é necessário abordar discussões sobre a consolidação da
alfabetização que, muitas vezes, ultrapassam a idade estipulada pelos do-
cumentos oficiais, que seria no máximo até o terceiro ano do ensino funda-
mental. Por esse motivo, a geração dos dados aconteceu em uma turma do
segundo ano do Ensino Fundamental de nove anos. Além disso, é preciso
refletir sobre o termo alfabetização o qual, para Soares (2014), é de uso co-
mum e frequente, não só no léxico específico de profissionais do ensino da
educação, mas também no léxico de todos os indivíduos, alfabetizados ou
não, de uma sociedade letrada.
Entre estes últimos, há em geral concordância quanto ao conceito
que a palavra alfabetização nomeia: pergunte-se a qualquer pessoa
o que é a alfabetização, e a resposta dificilmente será outra que não
a de que alfabetização é “o processo de ensinar a ler e a escrever”?
(Soares, 2014, p. 21).
De acordo com Smolka (2014), o conceito de alfabetização foi se trans-
formando e sendo concebido como um processo discursivo, mediante di-
álogos com autores do campo da psicologia, da educação e dos estudos da
linguagem, em sincronia com as investigações realizadas com as crianças
da pré-escola e das classes de alfabetização.
Ancorada prioritariamente nas contribuições de Vigotski e Bakhtin,
essas perspectivas consideram a atividade mental da criança não
apenas em seu aspecto cognitivo, mas em seu aspecto discursivo. Ou
seja, a linguagem, a palavra oral ou escrita – é, ou pode ser, ao mes-
mo tempo, meio/modo de interação, meio/modo de (inter e intra)
regulação das ações, e objeto do conhecimento. A ênfase na rela-
ção social e na prática dialógica caracteriza a dimensão discursiva
(Smolka, 2014, p. 23).
Visto que a apropriação da linguagem escrita é um trabalho contí-
nuo, formado de interações e reflexões sobre a ação, oportunizando a
criança o contato com diferentes gêneros discursivos desde muito cedo,

228
reforçamos a importância da ação docente nesse processo de ensino e
aprendizagem.
Nessa perspectiva, como mirante na ação docente, o trabalho objetiva
analisar a leitura do livro de literatura infantil, sendo esse um recurso mo-
bilizado na sala de aula pela professora, a fim de compreender, se e como
os diferentes materiais didáticos atuam no processo discursivo de sistema-
tização de conhecimentos sobre a linguagem escrita. A leitura de livros no
processo de alfabetização é um evento em que requer interação professor-
-aluno, aluno-aluno e estabelece uma relação entre a leitura e a escrita.
Para capturar os eventos de letramento (Hamilton, 2000) em sala de
aula, os instrumentos de pesquisa utilizados abrangem uma gama ampla
de técnicas para a geração de dados típicos da pesquisa interpretativa de
cunho etnográfico, a saber: (a) realização de entrevistas semiestruturadas
individuais com o professor da turma pesquisada; (b) gravação em áu-
dio de duas semanas de aula; (c) produção de diários e notas de campo;
(d) análise do planejamento e dos recursos utilizados na sala de aula pelo
professor; (e) análise de cadernos de alunos para observar o processo de
sistematização da linguagem escrita.
A geração de dados aconteceu em uma escola municipal situada no
Vale do Itajaí, que atende aproximadamente trezentos alunos do segmento
da educação infantil aos anos finais. Na escola, há dois segundos anos: um
no período matutino e outro no período vespertino. Por opção da profes-
sora regente, foi observada a turma do período vespertino. Os dados para a
pesquisa foram gerados no ano de 2015, com duração de duas semanas, em
uma turma composta por vinte e dois alunos e uma professora efetiva da
rede de ensino, cursando o Programa Nacional pela Alfabetização na Idade
Certa (PNAIC) como professora alfabetizadora por três anos e lecionando
há mais de cinco anos no ciclo de alfabetização.
A seguir, traremos um breve trecho das análises da pesquisa sobre um
dos recursos pedagógicos utilizados pela professora no ambiente escolar: a
literatura infantil.

229
Destino de viagem: a prática sistematizada da leitura de livros
de literatura infantil

A professora, nos dias em que foram gerados os dados da presente


pesquisa, realizou a leitura de livros da literatura infantil para os alunos.
Vale salientar que compreendemos literatura infantil como um conjunto
de obras que são destinadas ao público infantil nas quais há conteúdos para
brincar ou instruir. Entretanto, vale ressaltar que a obra destinada a crian-
ças é escrita por um adulto o qual tem suas intencionalidades. Conforme
salienta Meireles (1984, p. 29):
De modo que, em suma o “o livro infantil”, se bem que dirigido à
criança, é de invenção e intenção do adulto. Transmite os pontos
de vista que este considera mais úteis à formação de seus leitores.
E transmite-os na linguagem e no estilo que adulto igualmente crê
adequados à compreensão e ao gosto do seu público.
Ao observar a sala de aula, percebemos que, no fundo, há um espaço
para que os alunos tenham acesso aos livros e um tapete para que possam
sentar no momento da leitura realizada pela professora. Conforme as figu-
ras 2 e 3, os alunos têm acesso aos livros expostos, cujas capas estão orga-
nizadas viradas para frente, facilitando a visualização na hora da leitura. A
porta da sala é um suporte para os diferentes gêneros discursivos (Bakhtin,
2011), pois possibilita a familiarização com suas diferentes dimensões. Os
estudantes interagem com os diferentes gêneros (poema, mapa, histórias
em quadrinhos, gráfico, bilhete, convite) fixados na porta da sala de aula,
conforme registros na figura 11 e em um trecho do diário de campo que
segue: “Para minha surpresa, os alunos param em frente à porta para lerem
os textos escritos adesivados na porta da sala de aula. Muitos leem baixo e
outros apontam para o texto e leem alto para os colegas” (Diário de Campo,
19/10/2015).

1 A autorização para o uso de imagem consta no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Salienta-
mos que a imagem das crianças foi preservada e que a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética na
Pesquisa em Seres Humanos, vinculado à FURB, conforme número do parecer 1.335.736.

230
Figura 1: Porta da sala de aula

Reprodução
Fonte: Dados das pesquisadoras.

A porta da sala de aula é utilizada como um “suporte de texto”


(Marcuschi, 1996), conceito que será aprofundado na seção seguinte,
possibilitando aos alunos uma interação com esses gêneros discursivos
dispostos de uma maneira acessível e visível no ambiente escolar. A pro-
fessora, ao ter o gesto de escolher esses gêneros que circulam na esco-
la, indica uma intencionalidade pedagógica, promovendo e mediando
possíveis momentos de leitura e reconhecimento de textos.
Durante a leitura do livro, são constituídos elementos visíveis nesse
evento; os participantes que “interagem com materiais escritos”, o ambiente
formado pelas “circunstâncias físicas imediatas”, os artefatos que são com-
postos pelos “materiais utilizados nesse processo” e as atividades que são
“ações praticadas pelos participantes” (Heinig, 2013, p. 27). Sendo assim,
compreendemos a aula como um evento de letramento (Hamilton, 2000).
No momento da leitura do livro, os alunos, em roda, sentam no tapete,
disposto no fundo da sala, para escutar a história do livro, sendo uma prá-
tica diária da professora. Lerner (1996) reitera que as atividades realizadas
semanalmente ou quinzenalmente, de forma sistemática, oferecem a opor-

231
tunidade de interagir com um tipo determinado de texto, apropriado para
comunicar certos aspectos do comportamento leitor.
O ambiente, no qual a professora conta as histórias, também é utili-
zado pelos alunos para leituras individuais ou para momentos de jogos.
Ao término de cada atividade proposta, os alunos escolhem um livro da
estante para realizarem a leitura silenciosa que pode ser na sua carteira
ou no tapete no fundo da sala. Nesses momentos, a professora não pre-
cisa direcionar os alunos para escolherem os livros, pois essa atividade
rotineira propicia a sua participação, registrada em um trecho do diá-
rio de campo: “Ao término da atividade proposta pela docente, o aluno
tem autonomia para escolher um livro e sentar no tapete para aguardar
os outros que ainda não finalizaram as atividades solicitadas” (Diário do
Campo, 19/10/2015).

Figura 2: Cantinho da leitura: apresentação dos livros

Reprodução

Fonte: Dados das pesquisadoras.

232
Figura 3: Cantinho da Leitura: espaço disponível na sala de aula

Reprodução
Fonte: Dados das pesquisadoras.

A situação 12, a seguir, ocorrida no primeiro dia da geração de dados,


indica que a escolha da leitura para esse momento de contação da história,
realizado no tapete com os alunos em roda, foi objetivada pela temática
animais, conteúdo que foi abordado pela professora posteriormente.

Situação 1: Leitura sobre a temática animais


1. P: Essa semana nós vamos voltar a falar sobre os animais. Na semana que vem, nós vamos lá co-
nhecer o zoológico, ver eles de pertinho e a gente tem que relembrar algumas coisas que fica-
ram, tá? ((Nesse momento, a professora está se referindo ao passeio que farão ao zoológico,
localizado em um município vizinho. Os alunos estão sentados em roda no tapete localizado
no fundo da sala)). E é por isso que a gente, nesses quinze, um mês, vamos falar dos animais.
Então, todo dia eu vou ler uma história sobre... Algumas eu já li, outras eu não li, algumas
vocês mesmos leram e quem quiser trazer alguma coisa sobre, algum livro que tem em casa,
pode ser qualquer tipo, qualquer história, qualquer formato, pode trazer tá::? Só que a gente
tem um livro do Rafael pra ler ainda, a gente vai ler mais pra frente e vai aproveitar esses dias,
então, para ler sobre os animais. Eu trouxe hoje, que eu vou ler com vocês, que é bem:: legal!
Eu quero que vocês prestem atenção, que a gente vai falar sobre ele, tá bom? ((O aluno Pedro
estava com a mão levantada e inclinada para frente para que a professora o visse e permitisse
sua fala)) Fala, Pedro...

2 Optamos pelo termo “situações”, por abarcar um conjunto de elementos para compor esse momento
internacional. Salientamos que “o interagir uns com os outros, face a face, é construído continuamente,
é uma aprendizagem, um processo complexo e inacabado” (CAJAL, 2001, p. 128).

233
2. Pedro: Mas e aquele livro que, que...
3. P: Eu parei, porque aquele livro começou a ficar um pouco difícil, daí, depois a gente retoma
ele, eu faço um resuminho, porque ele era numa linguagem um pouco difícil e alguns não
estavam prestando atenção. Era o “Pequeno Príncipe”, só que alguns, sabe, a leitura não es-
tava fluindo, sabe, quando não dá certo a gente tem que parar, sabe? Mas a gente retoma ele
um outro dia, mais para frente um pouquinho. ((Nesse momento, a professora justifica a
interrupção da leitura do livro “O Pequeno Príncipe”, olhando para a pesquisadora)) Então::,
a história que eu trouxe hoje é “Bichos são todos bichos”. Quem já conhece a história?

Entre as condições de produção do enunciado, no contexto escolar,


como é possível verificar no trecho transcrito, está a retomada do projeto
sobre os animais, pois o grupo iria finalizá-lo com um passeio de estudo.
Esse passeio aconteceu na semana seguinte ao episódio, com a participação
das famílias ao visitarem o zoológico em um município vizinho. A profes-
sora, que leciona para essa turma pelo segundo ano, retoma em sua fala nós
vamos voltar a falar sobre os animais (turno 1), conteúdos referentes ao que
iniciou no 1º ano. Para abordar a temática, aproveitou a literatura infantil,
que é uma atividade constante (Lerner, 1996) contemplada pela professo-
ra, já que, diariamente, realiza a leitura de livros para os alunos, conforme
trecho da entrevista, em que a docente afirma a importância da literatura
infantil em sua ação docente.
Assim, a literatura infantil, todos os dias, ela é contemplada, todos
os dias, independente do que aconteça, ela sempre é trabalhada, às
vezes, acontece um dia, por exemplo, que tem Arte, muita coisa num
dia só e eu tô pouco com eles, de repente, aquela literatura já vai ser
o suporte para o trabalho, mas independente disso, todo dia tem lei-
tura deleite, todo dia tem a parada, o momento que é aquela rotina
calendário, que dia é hoje, que dia da semana hoje. Enfim, aquela
rotina e, junto com ela, a literatura (Entrevista, 11/12/2015).3
Nesse enunciado, a professora afirma que de repente aquela literatura
já vai ser um suporte para o trabalho, referindo-se aos livros de literatura
infantil selecionados para ler aos alunos atrelados a uma temática que sub-
sidiará o planejamento da professora. Por isso, na situação 1 (leitura sobre

3 Excerto do enunciado produzido a partir do questionamento: Nas situações interacionais, então, eu


percebi que tu trabalhas com a literatura infantil. E como ela é contemplada no teu planejamento?

234
a temática animais), o dizer da professora: na semana que vem, nós vamos
lá conhecer o zoológico, ver eles de pertinho e a gente tem que relembrar al-
gumas coisas que ficaram, tá? (turno 1), referindo-se ao passeio de estudo,
salienta a utilização do recurso pedagógico, literatura infantil, como um
instrumento material didático para a temática que será abordada em seu
planejamento. Essa escolha pedagógica se distancia da sua fala na entrevis-
ta, mencionando que todo dia tem leitura deleite.
Essa leitura, intitulada deleite, é reforçada nas formações do PNAIC,
Programa do qual a professora participa. Isso sinaliza que a professora se
constitui pelas diversas vozes sociais no seu campo/esfera (Bakhtin, 2011)
de participação na construção de práticas pedagógicas, há um revozea-
mento das vozes de autoridade que produziram os materiais de formação
e dos formadores. Quanto aos materiais, os cadernos de estudo, utilizados
nas formações pelos professores alfabetizadores, apontam a leitura deleite,
como a “[...] leitura de textos literários, com conversa sobre os textos lidos,
incluindo algumas obras de literatura infantil, com o intuito de evidenciar a
importância desse tipo de atividade” (Brasil, 2012, p. 28). Essa prática, que
já era utilizada pela professora, tornou-se rotineira (Lerner, 1996) por meio
das formações, para que os alunos fossem incentivados à prática da leitura.
Ao analisarmos as situações interacionais nas quais a literatura infantil está
presente, depreende-se uma prática que, mesmo sem a intencionalidade de
ser um artefato para abordar um tema ou conteúdo, torna-se escolarizada,
pois, embora implicitamente, há uma intencionalidade na ação da profes-
sora. Para Soares (2003, p. 92), a palavra escolarização é:
[...] substantivo derivado do verbo escolarizar, que é um verbo tran-
sitivo direto, isto é, exige um complemento; este pode ser de duas
naturezas: ou pode designar um ser animado – escolarizar alguém,
escolarizar pessoas, ou pode designar um ser inanimado, uma ‘coisa’,
um conteúdo – escolarizar um conhecimento, uma prática social,
um comportamento.
Nesse sentido, a leitura do livro de literatura infantil passa a ser um co-
nhecimento escolarizado pelo professor com objetivos pré-determinados,
almejando a aprendizagem do aluno. A escola, muitas vezes, pretende es-

235
colarizar um conhecimento, um conteúdo ou uma prática social, pois não
são vivenciadas de uma forma espontânea. A partir do momento em que
os eventos de letramento são planejados com o objetivo de promover uma
aprendizagem, deve-se ter cautela, pois de certa forma, a escola “[...] auto-
matiza as atividades de leitura e de escrita em relação às suas circunstâncias
e usos sociais, criando seus próprios e peculiares eventos e suas próprias e
peculiares práticas de letramento” (Soares, 2003, p. 107). A intencionali-
dade da professora, ao escolher a leitura em consonância com seu objetivo
proposto para a aula, denota uma intenção de propiciar aos alunos um mo-
vimento para sistematização da linguagem escrita. Para tanto, a professora
escolhe um livro registrado na figura 4.

Figura 4: Capa do livro da história contada pela professora

Reprodução

Fonte: Dados das pesquisadoras.

Na situação 1, o diálogo entre professor e aluno é ponto de partida


para o início da leitura do livro. No turno 1, por meio da fala da professora:
então todo dia eu vou ler uma história sobre... Algumas eu já li, outras eu
não li, algumas vocês mesmos leram e quem quiser trazer alguma coisa so-
bre, algum livro que tem em casa, pode ser qualquer tipo, qualquer história,
qualquer formato, pode trazer tá::, os alunos são convidados a participarem
desse momento de leitura. A capa do livro é mostrada para a turma (figura
4), e risos começam a surgir entre os alunos, como mencionado no trecho
do diário de campo: “A cada momento que a professora realiza a leitura das

236
frases, os alunos riem muito, pois percebem que o jogo das palavras utili-
zadas pelo autor faz um livro engraçado. Nesse momento, eles se cutucam”
(Diário de Campo, 19/10/2015).
Durante o período da leitura da história, os alunos manifestam suas
alegrias, participam, brincam com os sentidos atribuídos na leitura, pro-
movendo atitudes responsivas ativas (Bakhtin, 2004). Todas as aprendi-
zagens propiciadas pela leitura de histórias “[...] são de natureza socio-
cultural, portanto, não ocorrem espontaneamente como decorrência do
desenvolvimento biológico, mas resultam da participação de crianças
em práticas socialmente circunscritas, em que ouvem histórias, lidas ou
contadas, com a mediação do adulto” (Brandão; Rosa, 2011, p. 35). Nesse
caso, a mediação foi propiciada por meio da leitura do adulto, na qual o
jogo de palavras ficou perceptível para os alunos, pelo ritmo e entonação
utilizados pela professora, ocasionado uma resposta de risos pelos alunos.
A situação 1 prosseguiu, partindo do questionamento da professora, após
o término da história:

4. P: E aí, gostaram?
5. Va: Sim::.
6. P: Que legal, né::? Sobre o que fala essa história?
7. Va: Bichos::. Animais::.
8. P: De que forma ela foi escrita?
9. Va: Rimas::

A partir do questionamento da professora (turno 6), os alunos elaboram


as suas hipóteses, mediante “estratégias de compreensão leitora” (Solé, 1998)
ensinadas pela professora, a fim de sistematizar a prática da leitura. Essas es-
tratégias “[...] são procedimentos de caráter elevado, que envolvem a presen-
ça dos objetivos a serem realizados, o planejamento das ações que se desen-
cadeiam para atingi-los, assim como sua avaliação e possível mudança” (Solé,
1998, p. 69). Nesse sentido, a ação docente da professora é fundamental para
estabelecer “[...] pontes conceituais entre o que o leitor já conhece e o que se
deseja que aprenda e compreenda” (Solé, 1998, p. 31). Já a outra pergunta
(turno 8) conduz os alunos a analisarem os recursos estilísticos utilizados
pelo autor, o que indica uma concepção de língua em uso. Dessa maneira,

237
a professora aproxima leitura e escrita, favorecendo a não dicotomização
dos eixos do ler e escrever e como também faz a reflexão oralmente. Es-
ses gestos apontam para uma sistematização, pois exigem uma tomada de
consciência sobre a constituição do texto escrito.
No movimento da sala de aula, “[...] como um evento social, a vida ali
construída na interação entre alunos e professores [...]” (Cajal, 2001, p. 126),
presencia-se um momento, registrado no diário de campo e nas figuras 5 e
6, a seguir.
A aluna sentada ao meu lado retira da mochila uma agenda, que não
é a escolar, e começa a listar títulos de livros que estão na estante ao
fundo da sala. Questiono o porquê da lista e ela responde que são
livros que ainda irá ler, porque gosta muito de ler livros e a lista é
para não esquecer os títulos das futuras leituras (Diário de Campo,
20/10/2015).

Figura 5: Agenda com o título dos livros “Achei” e “ Cartum” registrados pelo aluno
Reprodução

Fonte: Dados das pesquisadoras.

238
Figura 6: Capa dos livros listados pelo aluno

Reprodução
Fonte: Dados das pesquisadoras.

A aluna, ao registrar os títulos dos livros que pretende ler e ao res-


ponder à pergunta realizada pela professora na continuidade da situação
1, de que forma ela foi escrita? (turno 8), destaca que leitura e escrita se
relacionam permanentemente. Isso reforça a compreensão de que, para
desenvolver projetos para a produção de textos, é necessário um intenso
trabalho de leitura (Lerner, 1996), indicando a relação entre a leitura e a
escrita. Percebemos, nessa situação, que o objeto de ensino se transformou
em objeto de aprendizagem, transpondo uma prática escolarizada. Para
Geraldi (1997, p. 166), a leitura é integrada à produção em dois momen-
tos, “o que se tem a dizer”, pela responsividade possibilitada pela “contra-
palavra do leitor à palavra do texto que se lê” e as “estratégias do dizer”, no
qual o locutor/autor de constitui com tal.

A viagem não chegou ao seu fim: novos lugares para percorrer

Este trabalho aborda análises sobre a utilização do recurso do livro de


literatura infantil em uma turma do ciclo de alfabetização. Esse recurso uti-
lizado pela professora ocupa um espaço significativo em suas ações peda-
gógicas. No período da geração dos dados, percebemos que o livro, muitas

239
vezes, estava atrelado a alguma temática a ser abordada no planejamento
das aulas.
Compreendemos que, no eixo da leitura, alguns artefatos, como o livro
de literatura infantil, foram contemplados diariamente na dinâmica da sala
de aula e que esse recurso ocupa um espaço significativo nas ações peda-
gógicas da professora. Os alunos demonstraram sua familiarização com a
prática da leitura de livros de literatura infantil, interagindo e participando
desses momentos.
Essas situações de interação foram favorecidas pela leitura da profes-
sora dos livros de literatura infantil, proporcionando condições para sua
sistematização. Nos momentos de leitura, os participantes refletiam, ques-
tionavam, perguntavam sobre o objeto de ensino, apontando para uma
possível sistematização da linguagem escrita.
Para esse processo discursivo de sistematização ser consolidado, os
gestos didáticos são ferramentas fundamentais. Quando nos direcionamos
para a sala de aula, o professor normalmente escolhe um determinado ob-
jeto de ensino o qual será sistematizado. Para essa escolha, alguns questio-
namentos devem emergir, como, por exemplo, para quê e como, além de
estabelecerem-se objetivos didáticos e pedagógicos para transformarem-se
em objeto de aprendizagem. Para que a sistematização se estabeleça, é ne-
cessária uma relação entre o objeto do conhecimento, o professor e o aluno.
Percebemos um movimento de sistematização quando os alunos re-
gistravam espontaneamente títulos de livros para futuras leituras, ou mes-
mo quando interagiam com os gêneros discursivos fixados no suporte
(Marcuschi, 1996) porta, nos momentos que acontecem fora da sala de
aula, como: o recreio e na entrada e saída da escola.
Sinalizamos que, a partir do momento em que esses artefatos e ati-
vidades são mobilizados na dinâmica da sala de aula, tornam-se inevita-
velmente, como afirma Soares (2003), práticas escolarizadas. A professora
tem uma intencionalidade pedagógica com uma finalidade específica de
transformar esse objeto de ensino em objeto de aprendizagem, entretanto,
esse letramento ensinado pode se tornar um letramento adquirido fazendo,
então, parte das práticas letradas dos alunos em outros campos/esferas.
Enfim, a pesquisa aponta para a continuidade dos estudos referentes à
sistematização da linguagem escrita, pois os dados gerados possibilitaram

240
futuras análises e novos horizontes. Ainda temos muito a percorrer nessa
caminhada da pesquisa, pois “[...] escrever é o começo dos começos. De-
pois é aventura” (MARQUES, 2011, p. 31). Que esse começo seja entrelaça-
do por descobertas e novos lugares a conhecer.

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242
11
Jogos virtuais para desenvolver compreensão
leitora e consciência textual de crianças
de 2º ano inicial

Vera Wannmacher Pereira


Leandro Lemes do Prado

Introdução

Este texto está vinculado a um projeto voltado para alunos de 2º ano


inicial, com apoio da FAPERGS e do CNPq, e a estudos e pesquisas que vêm
sendo realizados com destino a docentes de anos iniciais (Pereira, 2009a,
2009b, 2010a, 2010b; Pereira; Scliar-Cabral, 2012). A temática aqui desen-
volvida mantém a consciência textual e compreensão leitora, no contexto
do aprendizado e do ensino da leitura, com foco sobre suas dificuldades e
necessidades, formulando o problema - em que medida jogos virtuais de
consciência textual e compreensão leitora contribuem para o desenvolvi-
mento de alunos de 2º ano inicial em relação a esses aspectos?
O problema assim definido encaminha o objetivo geral do projeto de
contribuir para os estudos psicolinguísticos com suporte na tecnologia vir-
tual sobre consciência textual e compreensão de textos e para a identifica-
ção de caminhos linguístico-pedagógicos que atendam às necessidades de
superação das dificuldades no aprendizado e no ensino da leitura.
Considerando o problema e o objetivo geral, o estudo é delineado em
perspectiva integradora – ensino, pesquisa e extensão; Psicolinguística, Es-
tudos do Texto, Computação e Educação; Universidade e comunidade es-
colar e teoria e prática. Com base nesse delineamento, o projeto prevê, para

243
o ensino, geração e aplicação de materiais virtuais de ensino da leitura; para
a pesquisa, uso de pré e pós-teste de consciência textual e de compreensão
de textos (alunos) e, para a extensão, divulgação dos processos e resultados
por meio de um e-book e de um curso de socialização destinados a profes-
sores de anos iniciais.
Para explicitação do trabalho realizado, são apresentados a seguir, su-
cessivamente, o fundo teórico, a metodologia e alguns dos resultados obti-
dos, no que se refere ao desempenho dos alunos em compreensão e cons-
ciência textual.

Fundo teórico

A consciência humana vem sendo objeto de curiosidade popular e


científica, gerando reflexões, convicções e definições ao longo dos tempos.
No entanto, é de grande complexidade toda tentativa de caracterização de
um estado consciente. As atitudes científicas do homem ou pelo menos
a busca de entendimentos explicáveis têm produzido historicamente con-
cepções possíveis para aquele momento, para aquele lugar.
Constituem-se em importantes referências as concepções sobre cons-
ciência desenvolvidas por Baars (1993), Bachler (2006) e Dehaene (2009).
Desenvolvida por Baars, tem-se a teoria do espaço global da consciência
(global workspace), segundo a qual os conteúdos conscientes estão contidos
num espaço global: uma espécie de processador central usado para me-
diar a comunicação com um conjunto de processadores especializados não
conscientes. Quando esses processadores especializados precisam transmi-
tir informação para o resto do sistema, mandam informação para o espaço
global que atua como uma espécie de quadro comunitário, acessível a todos
os outros processadores (Teixeira, 1997).
Bachler (2006) apresenta as propriedades da consciência com base em
Chafe: tem um foco circundado por informações que proporcionam um
contexto, é dinâmica, tem um ponto de vista, necessita de uma orientação.
Consiste no traço central da mente, o que significa que ela é indispensável
para compreender qualquer processo cognitivo, sendo que sua estrutura
intencional a vincula ao mundo. No caso da consciência sobre a linguagem,
é fundamental a significação das palavras, das frases e dos discursos.

244
Dehaene (2009) relata que em seus experimentos evidencia-se o fato
de que, apenas a partir do tempo de 270-300 milissegundos, é possível ver
diferença entre o processamento consciente e o inconsciente. Isso ocorre
a partir do momento em que diferentes áreas do cérebro entram em sin-
cronia. Desse modo, a consciência não é realizada por uma área isolada do
cérebro, mas pela sincronia entre muitas regiões, a partir de um tempo de
trabalho, conforme indicado acima.
Essas concepções de consciência (Dehaene, 2001, 2007) são importan-
tes para tratar especificamente da consciência linguística (Spinillo; Mota;
Correa, 2010). Pode ser então explicitada como apresentando as seguintes
propriedades: ativa em sincronia com diversas áreas do cérebro; tem um
foco linguístico específico; utiliza informações periféricas a esse foco – o
contexto; é intencional na busca da análise de algum ponto específico.
A consciência linguística, que aqui interessa especialmente por seu vín-
culo com a compreensão do texto, pode estar voltada para o conhecimento
da própria linguagem em todos os modos de constituição e organização,
estando predominantemente associada à memória declarativa e pode estar
direcionada para o manejo desses elementos linguísticos, associando-se es-
pecialmente à memória procedimental.
Nesse entendimento, a consciência linguística (Gombert, 1992) pode
focalizar determinado segmento linguístico, considerando sempre o con-
texto dos demais segmentos. Essa condição faz com que ela seja catego-
rizada de acordo com cada um desses segmentos em foco. A consciência
fonológica tem como foco os fonemas (consciência fonêmica) e as sílabas
(consciência silábica) que constituem a estrutura da língua e as proprieda-
des entonacionais e rítmicas da língua em uso. Pode voltar-se para o seg-
mento inicial, para o segmento medial ou para o segmento final. Pode ain-
da ter em vista processos de supressão, inserção, substituição, comutação,
separação e junção. A consciência morfológica tem como focos: o vocábulo
– limites do seu começo e fim, a estrutura (constituintes lexicais e grama-
ticais), os processos flexionais (gênero, número, pessoa/número, tempo/
modo) e os processos derivacionais. A consciência sintática direciona seu
olhar para a frase internamente: seu limite (início e final da frase), estru-
tura da oração (constituintes e ordem), estrutura do período (constituin-

245
tes e ordem), processos de construção (coordenação/subordinação/misto,
paralelismo, combinações entre as palavras) e pontuação. A consciência
léxico-semântica abrange o léxico mental, o significado e o sentido; o léxico
mental está vinculado à memória lexical. O significado consiste na signifi-
cação básica que os membros de uma mesma comunidade atribuem a uma
palavra, incluindo a polissemia; está arquivado na memória semântica. O
sentido é a parte mais ativa no processo de leitura, consistindo numa cons-
trução ad hoc pelo leitor, dependendo do cruzamento entre texto, conhe-
cimentos prévios e significação básica e estando associado à capacidade
de inferências do leitor. A consciência pragmática volta-se para a situação
de uso da língua – o texto é considerado do ponto de vista do enunciador/
receptor, do objetivo, do suporte comunicativo, do momento e espaço da
comunicação. A consciência textual focaliza o texto em suas relações tex-
tuais internas e suas relações com o contexto. Sendo essa consciência um
dos eixos deste projeto, está mais densamente desenvolvida a seguir.
Conforme Gombert (1992), a consciência textual focaliza a superes-
trutura, a coerência e a coesão do texto. A superestrutura envolve os traços
que definem o texto como um determinado gênero, contribuindo para isso
a situação comunicativa (autor, leitor, tempo, espaço, suporte) e o modo
de organização – moldura, componentes constitutivos (unidades linguísti-
cas), sequências dominantes – narrativa, descritiva, argumentativa, injun-
tiva, expositiva (Adam, 2008), traços linguístico-estruturais (próprios dos
diversos planos linguísticos).
A coerência se refere predominantemente ao conteúdo e suas rela-
ções internas e com o entorno, que podem ser explicitadas com base em
Charolles (1978) – a manutenção do tema, indicando que o texto deve
girar em torno de um eixo temático; a progressão do tema, indicando que
o tema, embora precisando ser mantido, deve, ao mesmo tempo, progre-
dir, avançar, se desenvolver; a ausência de contradição interna, indicando
que não pode haver contradições temáticas ou linguísticas (emprego dos
tempos e das pessoas verbais); a relação com o mundo, indicando que as
afirmações têm que ter vínculo com a realidade – de verdade no caso do
texto não ficcional e de verossimilhança no caso do texto ficcional.
A coesão consiste nos liames linguísticos do texto que contribuem
para sua amarração e, assim, para a construção de seus sentidos. Apresen-

246
ta-se em duas dimensões – a coesão lexical e a coesão gramatical (Halliday;
Hasan, 1976).
A coesão lexical realiza-se por meio de relações entre vocábulos le-
xicais – substantivos, adjetivos e verbos. Essas relações constituem-se em
um conjunto de regras: repetição de palavra – com frequência ocorre com
o substantivo quando se constitui em palavra-chave; sinonímia ou quase-
-sinonímia – consiste na substituição vocabular para o mesmo referente,
evitando a repetição excessiva e favorecendo a evolução do conteúdo; supe-
rordenado – estabelece relação de inclusão entre hiperônimo e hipônimo;
associação por contiguidade – consiste na aproximação de vocábulos de
um mesmo campo semântico.
A coesão gramatical ocorre por meio de relações entre vocábulos gra-
maticais – preposição, conjunção, advérbio, pronome, artigo, numeral.
Essas relações se expressam em um conjunto de regras: referenciação –
retomada de elemento linguístico (referente) por meio de pronomes (refe-
rência); elipse – retomada vazia de um referente, podendo ser de uma pala-
vra, de um segmento, de uma frase, de um parágrafo...; conjunção – relação
de conexão estabelecida por elementos gramaticais: de adição, de tempo, de
causa, de oposição, de continuidade.
Tendo a consciência textual como ponto de atenção o texto, é preciso
ter presente que ele é organizado em planos linguísticos que se inter-relacio-
nam e se amarram – o fônico, o morfológico, o sintático, o léxico-semântico,
o pragmático e o textual. Desse modo, a observação da superestrutura, da
coerência e da coesão implica a observação de todos esses planos e de todas
as unidades linguísticas constitutivas do texto. Isso significa que a consci-
ência textual direciona sua atenção para a superestrutura, a coerência e a
coesão, mas no trânsito por todos os planos linguísticos e as unidades que
os constituem.
Considerando a natureza da consciência textual, acima explicitada, e
da compreensão leitora como processamento cognitivo, como exposto a
seguir, evidenciam-se seus vínculos.
Nessa acepção, ler significa compreender (Colomer; Camps, 2002),
sendo para isso necessário realizar fundamentalmente dois processamen-
tos simultâneos – bottom-up e top-down (Scliar-Cabral, 2008, 2009).

247
O processamento bottom-up caracteriza-se como ascendente, fazendo
o movimento da informação textual em direção à cognição. Constitui-se
numa leitura, minuciosa, vagarosa, em que todas as pistas visuais são utili-
zadas. É um processo de análise e de síntese em que, após o reconhecimen-
to da palavra escrita, vão sendo construídos os sentidos, gradativamente,
de palavras, frases, orações, até a macroestrutura, graças ao cruzamento
com as informações provindas do processamento top-down.
O processo top-down caracteriza-se como um movimento que provém
dos conhecimentos prévios armazenados nas várias memórias, sejam eles
linguísticos, ou extralinguísticos, baseando-se na concepção antecipatória
da leitura, segundo a qual são utilizadas simultaneamente as informações
linguísticas do texto e os conhecimentos prévios do leitor.
O processo cognitivo de leitura se altera (Goodman, 1991) a partir de
algumas variáveis: objetivo da leitura, conhecimento prévio do conteúdo,
condições de produção do texto, tipo de texto e estilo cognitivo do leitor.
Tais variáveis determinam o processo de leitura – ascendente ou descen-
dente. Smith (2003) considera que a informação não visual é de grande im-
portância, uma vez que o significado, que é indispensável para o leitor, está
não só nas marcas deixadas pelo autor no texto, mas nos conhecimentos
prévios sobre o assunto e sobre a linguagem que o leitor traz e que podem
fazê-lo perceber determinados aspectos do texto.
Nesse sentido, os dois movimentos são utilizados pelo leitor, depen-
dendo da situação que se apresenta durante a leitura, envolvendo o próprio
texto, o objetivo da leitura e o leitor (conhecimentos prévios, motivação,
estilo cognitivo). O sucesso do desempenho na compreensão da leitura está
na escolha do processo mais eficiente para dar conta dessa situação, em que
variáveis se inter-relacionam e influenciam as decisões do leitor.
Considerando os fundamentos aqui expostos, desenvolver a compre-
ensão da leitura na sala de aula supõe assumi-la como processo cognitivo, o
que exige dar um lugar especial ao texto, ao seu funcionamento linguístico
e à consciência do leitor sobre ele, isto é, à sua consciência textual, donde a
importância da seleção dos materiais de leitura.
Tem havido historicamente o entendimento de que o trabalho de leitu-
ra escolar deve estar apoiado no texto do livro didático, ficando submersas

248
suas propriedades. Isso começou a sofrer algumas mudanças a partir do
desenvolvimento de estudos sobre gêneros e tipos textuais (Adam, 2008), o
que, dado o longo percurso histórico, pode ser considerado recente.
O desenvolvimento de pesquisas sobre portadores de texto também
trouxe sua contribuição, oportunizando a ampliação da concepção de ma-
terial de leitura para o material escrito que está na sociedade, que está imer-
so numa situação comunicativa, tendo uma função social. Nesse sentido,
o entendimento de leitura também se amplia de modo a cobrir todas as
manifestações escritas.
No caso do aprendizado da leitura, mais especificamente nos anos ini-
ciais, constituem-se em materiais desejáveis para seu ensino os gêneros tex-
tuais como calendário, convite, cartão, mapa, diário, embalagem, agenda
telefônica, agenda de aniversariantes, etiqueta, álbum de figurinhas, instru-
ções, poema, adivinha, curiosidade, trava-língua, cantiga, anedota, fábula,
conto, entre outros. Quanto às estruturas (tipos) textuais, as mais desejáveis
são, nessa etapa de aprendizagem, a narrativa, a descritiva, a injuntiva, ca-
bendo lugar também para a expositiva.
Na concepção aqui exposta, o aprendizado da leitura está vinculado ao
desenvolvimento da consciência linguística do aluno, com ênfase na cons-
ciência textual, o que supõe a reflexão sobre as pistas fônicas, mórficas,
sintáticas, semânticas, pragmáticas e textuais deixadas pelo autor no texto
(Smith, 2003). Isso indica que a exploração linguística do texto e o desen-
volvimento da consciência abrem o caminho para a compreensão da leitura
(Pereira, 2010b). Constituem-se também como referência as relações entre
leitura e escrita. Há uma convicção, que está até no senso comum, de que
a leitura é importante para a escrita. Na escola, isso se traduz usualmente
da seguinte forma: o professor oferece um texto para que os alunos reali-
zem a leitura – uma fábula, por exemplo. Após uma série de atividades de
compreensão, propõe a escrita de um texto – por exemplo, um comentário
sobre o conteúdo da notícia lida. Os estudos psicolinguísticos mostram,
no entanto, que a escrita deve ser realizada no mesmo gênero textual lido,
uma vez que as atividades de desenvolvimento da consciência textual, se
realizadas no texto tipo/gênero A, devem encaminhar também para escrita
de texto tipo/gênero A.

249
Para o trabalho escolar, cabe, então, observar sempre a relação entre
a leitura e a escrita, estando no mesmo tipo/gênero de texto a amarração
entre ambos os processos. Esse entendimento pode ser assim exemplifica-
do: um trabalho de leitura com uma fábula implica, durante o processo de
leitura, o exame das marcas linguísticas desse texto favorecedor do desen-
volvimento da consciência do leitor e, consequentemente, a escrita também
de uma fábula.
Em suma, na concepção aqui exposta, o desenvolvimento da compre-
ensão leitora está vinculado ao desenvolvimento da consciência textual do
aluno (Pereira, 2010; Pereira; Scliar-Cabral, 2012). Isso supõe a reflexão sobre
a linguagem do texto no que se refere à estrutura, à coerência e à coesão, com
apoio em suas pistas fônicas, mórficas, sintáticas, semânticas, pragmáticas
e textuais deixadas pelo autor no texto, confrontando-as com os conheci-
mentos prévios armazenados na memória, o que, por sua vez, supõe a
reflexão sobre o próprio processo de leitura realizado (Gombert, 1992;
Smith, 2003).

Metodologia e resultados

Com apoio no fundo teórico exposto anteriormente, o estudo aqui re-


latado desenvolveu atividades de ensino, pesquisa e extensão.
As atividades de ensino consistiram em jogos virtuais gerados em
HTML, abrangendo 16 módulos, cada um constituído de tarefas para de-
senvolvimento da compreensão e da consciência textual, com foco em um
gênero textual - módulo 1 – trava-língua; módulo 2 – cantiga; módulo 3
– aviso; módulo 4 – convite; módulo 5 – cartão; módulo 6 – bilhete; mó-
dulo 7 – instrução; módulo 8 – científico; módulo 9 – quadrinhos; módulo
10 – quadrinhos; módulo 11 – fábula; módulo 12 – fábula; módulo 13 –
história; módulo 14 – história; módulo 15 – anedota; módulo 16 – para
descobrir.
Esses módulos foram aplicados na sequência elencada acima, em ofi-
cinas na escola selecionada. Os sujeitos, 20 alunos de 2º ano inicial, com
competência para decodificação, mas ainda não plena, foram orientados

250
pelos bolsistas do projeto, com apoio da professora da turma. Cabia aos
aplicadores das oficinas orientarem com precisão o trabalho e estimularem
os processos metacognitivos de reflexão linguística (explicitação do pro-
cesso de pensamento).
As atividades de pesquisa consistiram na aplicação de pré-teste e pós-
-teste de compreensão e consciência textual, antes do início das oficinas e
após seu término, respectivamente. Os itens dos instrumentos utilizados
no pré-teste e pós-teste envolviam conteúdos e procedimentos correspon-
dentes aos dos módulos de ensino e foram elaborados pelos pesquisadores,
mantendo o mesmo formato de atividades, porém com textos diferentes no
pré e no pós-teste.
Os dados coletados por meio desses instrumentos foram organizados
de modo a permitir análises, considerando o problema e o objetivo da pes-
quisa. A tabela 1, apresentada adiante, evidencia os dados referentes à com-
preensão e à consciência, por sujeito e em sua totalidade.
No que se refere à compreensão, percebe-se que os 20 sujeitos apresen-
taram escores mais elevados no pós-teste em relação ao pré-teste, ocorren-
do o crescimento na faixa entre 3 e 16 pontos. Cabe registrar que o cresci-
mento menor nem sempre está relacionado a um desempenho melhor no
pré-teste. O escore total do grupo evidencia um crescimento de 154 pontos,
o que corresponde a um percentual de 23,33%.
No que tange à consciência textual, os 20 sujeitos evidenciaram cresci-
mento na relação pré e pós-teste, ocorrendo o crescimento na faixa entre 48
e 169 pontos. Cabe também registrar aqui que o crescimento menor nem
sempre está ligado a um desempenho melhor no pré-teste. O escore total
do grupo evidencia um crescimento de 1950 pontos, equivalendo a 26,85%.
Avaliando os dados da compreensão e da consciência comparativa-
mente, observa-se que houve apropriação de conhecimentos nos dois tó-
picos em investigação, cabendo destacar uma certa correspondência entre
os dois desempenhos, fortalecendo a ideia de que são tópicos interligados
(consciência 26,85% e compreensão 23,33%).

251
Tabela 1: Compreensão e consciência textual: pré-teste e pós-teste, por sujeito e total

Sujeito COMPREENSÃO CONSCIÊNCIA


PRÉ PÓS CRESCIMENTO PRÉ PÓS CRESCIMENTO
1 17 29 12 137 284 147
2 27 31 4 235 324 89
3 12 27 15 148 228 80
4 25 32 7 253 319 66
5 13 22 9 109 246 137
6 27 33 6 270 341 71
7 12 20 8 127 210 83
8 17 29 12 168 299 131
9 22 32 10 206 361 155
10 26 31 5 230 309 79
11 28 33 5 284 332 48
12 25 28 3 229 309 80
13 26 31 5 244 349 105
14 9 12 3 87 136 49
15 24 32 8 202 309 107
16 8 12 4 83 131 48
17 8 17 9 54 185 101
18 10 26 16 98 267 169
19 10 14 4 74 141 67
20 8 17 9 64 172 108
TOTAL 354 508 154 3302 5252 1950

Fonte: Dados da pesquisa.

Comentários finais

O presente artigo decorre de projeto desenvolvido com apoio da


FAPERGS e do CNPq. Teve como norte a pergunta de pesquisa – “em que
medida jogos virtuais de consciência textual e compreensão leitora con-
tribuem para o desenvolvimento de alunos de 2º ano inicial em relação a
esses aspectos?” e um objetivo a alcançar – “contribuir para os estudos psi-
colinguísticos com suporte na tecnologia virtual sobre consciência textual
e compreensão de textos e para a identificação de caminhos linguístico-
-pedagógicos que atendam às necessidades de superação das dificuldades
no aprendizado e no ensino da leitura”. Nessa configuração, o estudo foi

252
realizado, contando, para isso, com a geração de jogos virtuais para alunos
de 2º ano inicial.
Os dados coletados e apresentados anteriormente permitem o reco-
nhecimento de que as oficinas realizadas com os jogos gerados contribuí-
ram para o desenvolvimento da compreensão leitora e da consciência tex-
tual dos alunos que delas participaram, pois houve crescimento na relação
pré-teste e pós-teste.
Esse reconhecimento, por sua vez, indica o estudo desenvolvido como
uma contribuição para a Psicolinguística, na medida em que evidenciou
com clareza a possibilidade de aplicação de fundamentos teóricos sobre
leitura no ensino de crianças utilizando tecnologia virtual, o que fortalece
sua natureza interdisciplinar.
Tendo o estudo se voltado para a escola, naturalmente aponta a si-
tuação desenvolvida como sinalizadora de contribuição potencial para o
ensino de suas crianças. Desse modo, no quadro em que a educação bra-
sileira se encontra, cabe fazer um encaminhamento aos professores – que
busquem apoio na Psicolinguística e organizem um ensino voltado para o
desenvolvimento da compreensão leitora e da consciência textual de seus
alunos, utilizando tecnologias virtuais. Pode aí estar um caminho produti-
vo para as difíceis circunstâncias do momento.

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TEIXEIRA, J. F. A Teoria da Consciência de David Chalmers. Psicologia. USP. vol.
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254
12
A estratégia de predição na leitura de fábulas:
uma proposta para o ensino da leitura
nos anos iniciais

Caroline Bernardes Borges

Introdução

Este estudo tem por objetivo realizar uma reflexão acerca da impor-
tância do desenvolvimento do uso das estratégias de leitura, mais especifi-
camente da estratégia de predição, nas aulas de leitura e escrita do 3° ano
do Ensino Fundamental. A estratégia de predição é definida por Goodman
(1976) e Smith (2003) como o processo em que o leitor constrói hipóteses
em relação ao conteúdo do texto, fazendo “adivinhações” quanto às infor-
mações e aos conteúdos ainda não lidos, e pode auxiliar consideravelmente
na compreensão dos textos.
Sabe-se que os leitores utilizam estratégias na realização da leitura, e
que tal processo é realizado de forma inconsciente, na maioria das vezes.
Porém, deve ser evidenciada a importância de estimular o aluno a utilizar
essas estratégias de forma eficiente e de dar início a um processo de cons-
cientização sobre esse uso.
Para que o objetivo deste estudo seja atingido, o gênero fábula foi es-
colhido para servir de suporte para a elaboração de atividades pedagógicas
que visam estimular o desenvolvimento da estratégia de predição, a partir
da observação de aspectos de coerência textual dos textos selecionados.
Assim, as reflexões poderão ser construídas a partir de exemplos práticos
da aplicação da teoria, a fim de que os professores e demais profissionais

255
da área possam entender como pode ser realizado esse trabalho de forma
eficiente com os alunos em sala de aula.
Dessa forma, este estudo traz a teoria da predição em sua primeira
parte; logo após, na segunda parte, os aspectos que envolvem a coerência
textual e as metarregras que a subjazem; e, por último, são apresentadas as
atividades elaboradas seguidas da sua análise. Espera-se que, a partir dessa
transposição didática, os professores desenvolvam o uso das estratégias de
leitura em sala de aula e, para isso, elaborem atividades interessantes que
propiciem esse desenvolvimento.

A estratégia de predição leitora

Sabe-se que a leitura é um processo cognitivo a partir do qual o leitor


compreende o que está escrito a partir da decodificação de letras e sons, e
da união desse conteúdo decodificado com os conhecimentos já adquiri-
dos previamente. Esse processo é uma construção de significados a partir
daquilo que está escrito, das características físicas do texto lido – superes-
trutura, aspectos linguísticos e estilísticos – e também das vivências do lei-
tor. A compreensão leitora, então, “é examinada não só como a apropriação
do conteúdo lido, mas como o processamento realizado pelo leitor para
realizar essa apropriação” (Pereira, 2012, p. 82).
Para que a compreensão seja atingida com eficácia é necessário que o
uso das estratégias de leitura seja desenvolvido, já que são procedimentos
que ajudam o leitor a regular sua atividade de leitura e, a partir deles, tor-
nar-se capaz de selecionar, avaliar, persistir ou abandonar determinadas
ações para atingir os objetivos de leitura que possui. O leitor faz uso das es-
tratégias de leitura inconscientemente, na maioria das vezes, mas é impor-
tante que ele entenda como as utiliza e quais são os caminhos que percorre
para chegar à compreensão (Solé, 1998).
Relacionando a estratégia de predição especificamente, salienta-se que
fazemos previsões durante a leitura de qualquer tipo de texto. Assim, po-
demos dizer que a leitura “pode ser considerada um processo constante
de elaboração e verificação de previsões que levam à construção de uma

256
interpretação” (Solé, 1998, p. 27). Smith (2003) postula, ainda, que todos
fazemos previsões a todo o momento, pois não seria possível vivermos se
não tivéssemos ideia do que faríamos alguns instantes após o momento da
antecipação.
Segundo Goodman (1976), a predição é “um jogo psicolinguístico de
adivinhação”, ou seja, o leitor, a partir de seus conhecimentos prévios sobre
o assunto e das pistas linguísticas deixadas pelo autor no texto, faz adivi-
nhações sobre os conteúdos que ainda não foram lidos à medida que vai
realizando a leitura. O processo cognitivo de leitura sofre modificações em
virtude de algumas variáveis – aspectos linguísticos e dicas oferecidas pelo
texto lido –, tais como os objetivos de leitura, o tipo de texto (no caso deste
trabalho, a fábula), as capacidades cognitivas do leitor, os conhecimentos
que o aluno já têm acerca do conteúdo abordado e as condições de produ-
ção do texto. Essas variáveis têm papel fundamental no processo de leitura
e no êxito da compreensão e da interpretação dos textos. Conforme as con-
siderações de Goodman,
a leitura eficiente não resulta da percepção precisa e da identifica-
ção exata de todos os elementos, mas da habilidade em selecionar
o menor número de pistas produtivas necessárias à elaboração de
adivinhações que estarão certas desde o início (1976, p. 3).
Quando se fala em adivinhação, tem-se a falsa ideia de que essa palavra
está relacionada à compreensão apressada, superficial ou inconsistente, que
pode fazer o leitor chegar a conclusões inadequadas, com meras suposições
sem suporte algum, “inventadas”. Porém, todas as predições são feitas a
partir das características e dicas do texto, bem como a partir das condições
cognitivas do leitor.
Para complementar esses pressupostos, Pereira (2002, p. 51) define a
preditibilidade como
um jogo linguístico que ocorre durante o processo de leitura. Esse
jogo situa-se no âmbito da interação do leitor com o texto, realizan-
do-se através de jogadas que implicam apostas com diferentes graus
de risco. O jogo assim estabelecido é um instrumento que o leitor
utiliza para antecipação do conteúdo do texto. Faz o seu lance, isto

257
é, prediz o que seus olhos ainda não leram, tentando adivinhar o
jogo do próprio texto. Nesse momento, corre riscos cuja intensidade
está associada à possibilidade de confirmação da predição realizada.
Por sua vez, a dimensão da possibilidade de êxito depende de uma
correlação entre as condições do leitor (universo de conhecimentos
e crenças) e as pistas oferecidas pelo texto.
No que se refere às pistas linguísticas deixadas pelo autor no texto, po-
demos destacar as mais importantes em relação aos planos de linguagem,
como as que são constituídas a partir do plano grafo-fônico (que corres-
ponde às relações fonemas-letra, aliteração, rima), do plano morfossintá-
tico (que corresponde à estrutura vocabular, às combinações mórficas, à
estrutura frasal, à retomada coesiva gramatical), do plano semântico (que
corresponde aos elementos coesivos lexicais, significado, sentido das pala-
vras), do plano pragmático (que corresponde à relação texto-situação de
uso) e do plano textual (que corresponde à organização, moldura, distri-
buição, coerência, coesão), esse último o escolhido para ser foco das análi-
ses deste trabalho, como já foi salientado anteriormente. Do ponto de vista
de Pereira (2011), a utilidade dessas pistas está intrinsecamente relacionada
às condições do leitor e à natureza do texto.
A autora diz que a estratégia de predição é de grande relevância e am-
plitude, já que é constituída por outras estratégias mais específicas, como
o automonitoramento (o leitor deve estar atento aos seus conhecimentos
prévios, às pistas linguísticas e às próprias predições de leitura), a autoa-
valiação (o leitor observa essas antecipações e constata se estão de acordo
com as pistas e os conhecimentos prévios) e autocorreção (modifica essas
antecipações à medida que julgue-as impróprias ou improváveis).
É importante que o uso das estratégias de leitura seja desenvolvido em
sala de aula, ainda mais em séries iniciais. Segundo estudos realizados por
Pereira (2009), atividades que envolvam o desenvolvimento da estratégia
de predição devem ser criadas e aplicadas desde as séries iniciais, pois é
nesse nível que o leitor está em seu processo inicial do aprendizado da lei-
tura e, portanto, precisa aprender a desenvolver o uso dessas estratégias,
tanto de forma inconsciente como de forma consciente.

258
Aspectos envolvidos na coerência dos textos

Charolles (1978, p. 40) afirma que “tanto ao nível do texto como no


plano das frases, existe, então, critérios eficientes de boa formação que ins-
tituem uma norma mínima de composição textual”, ou seja, não é qual-
quer combinação de palavras que produz uma frase, assim como não é
possível que qualquer combinação de frases produza um texto. Uma certa
ordem combinatória, que siga o sistema culturalmente compartilhado da
língua, deve ser mantida para que o sentido do que queremos comunicar
seja construído e passado aos nossos interlocutores. Dessa forma, é quase
impossível que encontremos frases que contrariem de maneira arbitrária o
sistema que constitui a língua.
A coerência, dessa forma, refere-se, assim, à relação entre o conteúdo
do texto e suas relações internas e com o mundo. Percebe-se que a coe-
rência textual envolve o sentido construído não só no nível microestrutu-
ral – relações estabelecidas entre as frases inseridas nas sentenças –, mas
também no nível macroestrutural – relações estabelecidas entre as sequ-
ências consecutivas do discurso. A coerência do discurso, então, “deve ser
conjuntamente determinada de um ponto de vista local e global, pois um
texto pode muito bem ser microestruturalmente coerente sem o ser ma-
croestruturalmente [...]” (Charolles, 1978, p. 47).
De acordo com o autor, para que um texto seja coerente, numa apre-
ensão geral, quatro metarregras devem ser utilizadas para a sua produção.
São as denominadas metarregra de repetição, metarregra de progressão,
metarregra de não contradição e metarregra de relação, que serão melhor
explicadas a seguir.
• Metarregra de repetição ou manutenção do tema: parte do princípio de
que o autor do texto pensou em um assunto que desejou abordar e que
esse será o assunto desenvolvido em todo o texto, embora outros sejam
relacionados a esse assunto principal. Assim, é somente a partir do uso da
repetição e da recorrência que a manutenção do tema de um texto pode
ser mantida. Em resumo, um texto tem um assunto principal e se vale de
elementos lexicais e gramaticais para que o eixo de sentido (tema) seja
mantido do início ao fim de sua extensão.

259
• Metarregra da progressão temática: para que o texto não repita as mes-
mas ideias em toda a sua extensão, a ponto de se tornar circular, há a
necessidade de que o tema, além de ser mantido, progrida, avançando e
se desenvolvendo a partir das novas ideias que vão sendo acrescentadas
para renovar o assunto principal. Para tanto, itens lexicais de ligação e
retomada são utilizados para estabelecer o sentido do texto, contribuindo
para a progressão do tema.
• Metarregra da não contradição interna: para que um texto seja coeren-
te, não pode haver contradição linguística ou temática em sua estrutura.
Assim, não é possível afirmar algo e escrever algo totalmente contrário
em seguida, pois isso causaria uma contradição interna no texto. A con-
tradição não está apenas entre as ideias e informações, mas pode estar
também no nível formal da linguagem, como quando, por exemplo, na
conjugação verbal expressa ao longo do texto, há a contradição entre os
tempos verbais.
• Metarregra da relação com o mundo: as afirmações constituintes de um
texto devem estar de acordo com a realidade. Assim, em textos não fic-
cionais, há que se ter a relação de verdade e, em textos ficcionais, a rela-
ção de verossimilhança.

Essas quatro metarregras apresentam um determinado número de


condições linguísticas para que textos coerentes possam ser elaborados e
sejam bem formados. Dessa forma, os locutores e interlocutores poderão
entender o sentido das mensagens que devem ser passadas. Portanto, a
consciência acerca dessas estimações de coerência torna-se indispensável
para que os falantes da língua a utilizem de maneira adequada e eficaz de-
pendendo do uso e da situação de comunicação. É importante ressaltar
que, além de constituir uma marca intrínseca ao texto, a coerência também
está no nível das relações do texto com o mundo.

Atividades propostas

Para refletir sobre o desenvolvimento do uso da estratégia de predição,


então, foram elaboradas quatro atividades a partir de quatro fábulas sele-

260
cionadas, todas de Esopo: A cigarra e as formigas, A lebre e a tartaruga, O
ratinho da cidade e o ratinho do campo e Os viajantes e o urso. A primeira
atividade serve para identificação das características do gênero, portanto,
envolve perguntas de compreensão leitora e identificação dessas caracterís-
ticas, e as demais atividades têm o objetivo de desenvolver o uso da estraté-
gia de predição leitora, sob a observação de aspectos da coerência textual:
neste caso, a progressão temática e a manutenção temática.

ATIVIDADE 1

Etapas:
1) Apresentar aos alunos a fábula A cigarra e as formigas e lê-la jun-
tamente com o grupo (o professor lê e os alunos ouvem e acompanham a
leitura na folha entregue a eles com a fábula impressa).

A cigarra e as formigas

Num belo dia de inverno as formigas estavam tendo o maior trabalho para secar
suas reservas de trigo. Depois de uma chuvarada, os grãos tinham ficado comple-
tamente molhados. De repente aparece uma cigarra:
— Por favor, formiguinhas, me deem um pouco de trigo! Estou com uma fome
danada, acho que vou morrer.
As formigas pararam de trabalhar, coisa que era contra os princípios delas, e per-
guntaram:
– Mas por quê? O que você fez durante o verão? Por acaso não se lembrou de
guardar comida para o inverno?
– Para falar a verdade, não tive tempo – respondeu a cigarra. – Passei o verão
cantando!
– Bom... Se você passou o verão cantando, que tal passar o inverno o inverno dan-
çando? – disseram as formigas, e voltaram para o trabalho dando risada.

Moral: Os preguiçosos colhem o que merecem.

ASH, R.; HIGTON, B. Fábulas de Esopo. Tradução de Heloisa Jahn. São Paulo:
Companhia das Letrinhas, 1994. 95 p.

261
2) Fazer perguntas de compreensão sobre os componentes do texto
para que os alunos mesmos percebam quais são as características da fábula
ao mesmo tempo em que a compreendem:
• Quais são os personagens da história? Quais são suas características?
• O que acontece na história?
• Onde se passa a história?
• Essa história apresenta algo diferente no final. O que é?
• O que aprendemos com essa história?

3) Após a conversa, explicar aos alunos que entre os textos desse tipo
(que contêm essas características), estão aqueles que são chamados de fá-
bulas. Depois, pode-se fazer uma rodada de leitura, em que cada aluno lê
uma parte do texto (aqueles que já souberem ler).

ATIVIDADE 2

Etapas:
1) Apresentar aos alunos cada parte da fábula A lebre e a tartaruga,
na ordem relacionada abaixo. Um excerto será apresentado de cada vez,
nessa ordem. O professor lerá o excerto e os alunos ouvirão. Depois, um
dos alunos poderá reler o excerto para a turma. Após a leitura, o professor
perguntará o que acontecerá em seguida na fábula. À medida que os alunos
dão as respostas, o professor media a conversa, constatando se seria possí-
vel ou não tal previsão, solicitando aos alunos que justifiquem suas apostas
e entendam porque não são viáveis, caso não sejam, e porque poderiam
acontecer, caso sejam coerentes. Após a conversa, o professor apresentará a
parte correspondente à continuação da fábula. Repetirá o mesmo método
até chegarem ao final da fábula, ou seja, à moral.

A lebre e a tartaruga

Um dia uma tartaruga começou a contar vantagem dizendo que corria muito de-
pressa, que a lebre era muito mole, e enquanto falava a tartaruga ria e ria da lebre.
Mas a lebre ficou mesmo impressionada; foi quando a tartaruga resolveu apostar
uma corrida com ela.

262
“Deve ser só de brincadeira!”, pensou a lebre.

A raposa era o juiz e recebia as apostas. A corrida começou, e na mesma hora, cla-
ro, a lebre passou à frente da tartaruga. O dia estava quente, por isso lá pelo meio
do caminho a lebre teve a ideia de brincar um pouco. Depois de brincar, resolveu
tirar uma soneca à sombra fresquinha de uma árvore.
“Se por acaso a tartaruga me passar, é só correr um pouco e fico na frente de novo”,
pensou.

A lebre achava que não ia perder aquela corrida de jeito nenhum. Enquanto isso,
lá vinha a tartaruga com seu jeitão, arrastando os pés, sempre na mesma veloci-
dade, sem descansar nem uma vez, só pensando na chegada. Ora, a lebre dormiu
tanto que esqueceu de prestar atenção na tartaruga. Quando ela acordou, cadê a
tartaruga? Bem que a lebre se levantou e saiu zunindo, mas nem adiantava! De
longe ela viu a tartaruga esperando por ela na linha de chegada.

Moral: Devagar e sempre se chega na frente.

2) Refletir com o grupo sobre as sequências formadas, a fim de que eles


percebam quais marcas linguísticas e textuais fizeram com que a história
se organizasse corretamente dessa forma e não de outra (adequar as falas e
explicações ao nível de escolaridade dos alunos, obviamente).

3) Apresentar a fábula original (completa e ordenada) para que os alu-


nos acompanhem a leitura final do texto. O professor lê o texto e os alunos
ouvem, acompanhando a leitura na folha impressa com a fábula. Depois,
pode-se fazer uma rodada de leitura, em que cada aluno lê uma parte do
texto (aqueles que já souberem ler).

A lebre e a tartaruga

Um dia uma tartaruga começou a contar vantagem dizendo que corria muito de-
pressa, que a lebre era muito mole, e enquanto falava a tartaruga ria e ria da lebre.
Mas a lebre ficou mesmo impressionada; foi quando a tartaruga resolveu apostar
uma corrida com ela.
“Deve ser só de brincadeira!”, pensou a lebre.
A raposa era o juiz e recebia as apostas. A corrida começou, e na mesma hora, cla-
ro, a lebre passou à frente da tartaruga. O dia estava quente, por isso lá pelo meio
do caminho a lebre teve a ideia de brincar um pouco. Depois de brincar, resolveu
tirar uma soneca à sombra fresquinha de uma árvore.

263
“Se por acaso a tartaruga me passar, é só correr um pouco e fico na frente de novo”,
pensou.
A lebre achava que não ia perder aquela corrida de jeito nenhum. Enquanto isso,
lá vinha a tartaruga com seu jeitão, arrastando os pés, sempre na mesma veloci-
dade, sem descansar nem uma vez, só pensando na chegada. Ora, a lebre dormiu
tanto que esqueceu de prestar atenção na tartaruga. Quando ela acordou, cadê a
tartaruga? Bem que a lebre se levantou e saiu zunindo, mas nem adiantava! De
longe ela viu a tartaruga esperando por ela na linha de chegada.

Moral: Devagar e sempre se chega na frente.

ASH, R.; HIGTON, B. Fábulas de Esopo. Tradução de Heloisa Jahn. São Paulo:
Companhia das Letrinhas, 1994. 95 p.

ATIVIDADE 3

Etapas:
1) Apresentar aos alunos cada parte da fábula O ratinho do campo e o
ratinho da cidade, na ordem relacionada abaixo. Um excerto será apresenta-
do de cada vez, nessa ordem. O professor lerá o excerto e os alunos ouvirão.
Depois, um dos alunos poderá reler o excerto para a turma. Após a leitura,
o professor perguntará o que será que acontecerá em seguida na fábula. À
medida que os alunos dão as respostas, o professor media a conversa, cons-
tatando se seria possível ou não tal previsão, solicitando que os alunos jus-
tifiquem suas apostas e entendam porque não são viáveis, caso não sejam, e
porque poderiam acontecer, caso sejam coerentes. Após a conversa, o pro-
fessor apresentará a parte correspondente à continuação da fábula. Repetirá
o mesmo método até chegarem ao final da fábula, ou seja, à moral.

O ratinho da cidade e o ratinho do campo

Certo dia um ratinho do campo convidou seu amigo que morava na cidade para
ir visitá-lo em sua casa no meio da relva. O ratinho da cidade foi, mas ficou muito
chateado quando viu o que havia para jantar: grãos de cevada e umas raízes com
gosto de terra.
– Coitado de você, meu amigo! – exclamou ele. – Leva uma vida de formiga! Ve-
nha morar comigo na cidade que nós dois juntos vamos acabar com todo o tou-
cinho deste país!

264
E lá se foi o ratinho do campo para a cidade. O amigo mostrou para ele uma
despensa com queijo, mel, cereais, figos e tâmaras. O ratinho do campo ficou de
queixo caído. Resolveram começar o banquete na mesma hora. Mas mal deu para
sentir o cheirinho: a porta da despensa se abriu e alguém entrou. Os dois ratos
fugiram apavorados e se esconderam no primeiro buraco apertado que encontra-
ram. Quando a situação se acalmou e os amigos iam saindo com todo o cuidado
do esconderijo, outra pessoa entrou na despensa e foi preciso sumir de novo. A
essas alturas o ratinho do campo já estava caindo pelas tabelas.

– Até logo – disse ele. – Já vou indo. Estou vendo que sua vida é um luxo só, mas
para mim não serve. É muito perigosa. Vou para minha casa, onde posso comer
minha comidinha simples em paz.

Moral: Mais vale uma vida modesta com paz e sossego que todo o luxo do mundo
com perigos e preocupações.

2) Refletir com o grupo sobre as sequências formadas, a fim de que eles


percebam quais marcas linguísticas e textuais fizeram com que a história
de organizasse corretamente dessa forma e não de outra (adequar as falas e
explicações ao nível de escolaridade dos alunos).

3) Apresentar a fábula original (completa e ordenada) para que os alu-


nos acompanhem a leitura final do texto. O professor lê o texto e os alunos
ouvem, acompanhando a leitura na folha impressa com a fábula. Depois,
pode-se fazer uma rodada de leitura, em que cada aluno lê uma parte do
texto (aqueles que já souberem ler).

O ratinho da cidade e o ratinho do campo

Certo dia um ratinho do campo convidou seu amigo que morava na cidade para
ir visitá-lo em sua casa no meio da relva. O ratinho da cidade foi, mas ficou muito
chateado quando viu o que havia para jantar: grãos de cevada e umas raízes com
gosto de terra.
– Coitado de você, meu amigo! – exclamou ele. – Leva uma vida de formiga! Ve-
nha morar comigo na cidade que nós dois juntos vamos acabar com todo o tou-
cinho deste país!
E lá se foi o ratinho do campo para a cidade. O amigo mostrou para ele uma
despensa com queijo, mel, cereais, figos e tâmaras. O ratinho do campo ficou de
queixo caído. Resolveram começar o banquete na mesma hora. Mas mal deu para

265
sentir o cheirinho: a porta da despensa se abriu e alguém entrou. Os dois ratos
fugiram apavorados e se esconderam no primeiro buraco apertado que encontra-
ram. Quando a situação se acalmou e os amigos iam saindo com todo o cuidado
do esconderijo, outra pessoa entrou na despensa e foi preciso sumir de novo. A
essas alturas o ratinho do campo já estava caindo pelas tabelas.
— Até logo – disse ele. – Já vou indo. Estou vendo que sua vida é um luxo só, mas
para mim não serve. É muito perigosa. Vou para minha casa, onde posso comer
minha comidinha simples em paz.

Moral: Mais vale uma vida modesta com paz e sossego que todo o luxo do mundo
com perigos e preocupações.

ASH, R.; HIGTON, B. Fábulas de Esopo. Tradução de Heloisa Jahn. São Paulo:
Companhia das Letrinhas, 1994. 95 p.

ATIVIDADE 4

Etapas:
1) Apresentar aos alunos cada parte da fábula Os viajantes e o urso,
na ordem relacionada abaixo. Um excerto será apresentado de cada vez,
nessa ordem. O professor lerá o excerto e os alunos ouvirão. Depois, um
dos alunos poderá reler o excerto para a turma. Após a leitura, o professor
perguntará o que acontecerá em seguida na fábula. À medida que os alunos
dão as respostas, o professor media a conversa, constatando se seria possí-
vel ou não tal previsão, solicitando que os alunos justifiquem suas apostas
e entendam porque não são viáveis, caso não sejam, e porque poderiam
acontecer, caso sejam coerentes. Após a conversa, o professor apresentará a
parte seguinte, correspondente à continuação da fábula. Repetirá o mesmo
método até chegarem ao final da fábula, ou seja, à moral.

Os viajantes e o urso

Um dia dois viajantes deram de cara com um urso. O primeiro se salvou escalando
uma árvore, mas o outro, sabendo que não ia conseguir vencer sozinho o urso, se
jogou no chão e fingiu-se de morto. O urso se aproximou dele e começou a cheirar
as orelhas do homem, mas, convencido de que estava morto, foi embora. O amigo
começou a descer da árvore e perguntou:

266
— O que o urso estava cochichando em seu ouvido?
— Ora, ele só me disse para pensar duas vezes antes de sair por aí viajando com
gente que abandona os amigos na hora do perigo.

Moral: A desgraça põe à prova a sinceridade da amizade.

2) Refletir com o grupo sobre as sequências formadas, a fim de que eles


percebam quais marcas linguísticas e textuais fizeram com que a história de
organizasse corretamente dessa forma e não de outra (adequar as falas e ex-
plicações ao nível de escolaridade dos alunos). Apresentar a fábula original
(completa e ordenada) para que os alunos acompanhem a leitura final do
texto. O professor lê o texto e os alunos ouvem, acompanhando a leitura na
folha impressa com a fábula. Depois, pode-se fazer uma rodada de leitura,
em que cada aluno lê uma parte do texto (aqueles que já souberem ler).

Os viajantes e o urso

Um dia dois viajantes deram de cara com um urso. O primeiro se salvou escalando
uma árvore, mas o outro, sabendo que não ia conseguir vencer sozinho o urso, se
jogou no chão e fingiu-se de morto. O urso se aproximou dele e começou a cheirar
as orelhas do homem, mas, convencido de que estava morto, foi embora. O amigo
começou a descer da árvore e perguntou:
— O que o urso estava cochichando em seu ouvido?
— Ora, ele só me disse para pensar duas vezes antes de sair por aí viajando com
gente que abandona os amigos na hora do perigo.

Moral: A desgraça põe à prova a sinceridade da amizade.

ASH, R.; HIGTON, B. Fábulas de Esopo. Tradução de Heloisa Jahn. São Paulo:
Companhia das Letrinhas, 1994. 95 p.

Análise teórico-prática das atividades

Todas as atividades elaboradas (exceto a atividade 1) permitem que os


alunos desenvolvam o uso da estratégia de predição através dos elementos
de coerência textual (dos aspectos de progressão e manutenção temática).
As atividades requerem que o aluno realize predições referentes ao conteú-
267
do das histórias para que consiga concluir a atividade. Além disso, para que
as hipóteses sejam testadas e verificadas, os leitores deverão desenvolver
suas habilidades de observação da progressão e da manutenção temática
dos acontecimentos, a fim de que consigam elaborar hipóteses coerentes
para a continuação das fábulas.
Na atividade 1, os alunos deveriam acompanhar a leitura da fábula A
cigarra e as formigas, que seria realizada pelo professor e, em seguida, res-
ponderiam algumas perguntas que seriam feitas oralmente pelo professor,
como: quem eram os personagens da história, quais eram suas característi-
cas, o que aconteceu na história, onde se passava a história, o que a história
apresentou de diferente no final e o que aprendemos com essa história. A
partir da reflexão acerca dessas características, os alunos mesmos as obser-
variam e as explicitariam, para que depois o professor dissesse que, entre
textos desse tipo, estão aqueles que são chamados de fábulas. Com isso, os
próprios alunos chegariam à conclusão de o que seria uma fábula, a partir
da leitura e da observação de uma. Após o reconhecimento das caracte-
rísticas desse tipo de narrativa, os alunos já poderiam observar os demais
aspectos do texto para realizar suas predições.
Na atividade 2, a fábula A lebre e a tartaruga seria apresentada aos
alunos em partes ordenadas. Cada parte seria apresentada de cada vez, ou
seja, o professor leria o trecho (um dos alunos poderia reler para a turma)
e, em seguida, o professor perguntaria aos alunos o que eles acham que
aconteceria em seguida na fábula. À medida que os alunos iriam dando as
respostas, o professor mediaria a conversa, constatando se seria possível ou
não tal previsão, solicitando que os alunos justificassem suas apostas e en-
tendessem porque não eram viáveis, caso não fossem, e porque poderiam
acontecer, caso fossem coerentes. Após a conversa, o professor apresenta-
ria a parte seguinte, correspondente à continuação da fábula. Repetiria o
mesmo método até chegarem ao final de cada fábula, ou seja, à moral da
história. O mesmo ocorreria com as atividades 3 e 4.
Para finalizar cada atividade, a fábula original (completa e ordenada)
seria apresentada aos alunos, para que acompanhassem a leitura final do
texto. O professor leria o texto e os alunos ouviriam, acompanhando a lei-
tura na folha impressa com a fábula. Depois, poderia ser realizada uma

268
rodada de leitura, em que cada aluno leria uma parte do texto (os que já
soubessem ler).
Com exceção da atividade 1, correspondente às perguntas de compre-
ensão e reconhecimento do gênero, todas as demais atividades seguiriam a
mesma metodologia descrita, conforme foi explicitado anteriormente. As
atividades não seriam realizadas todas no mesmo dia, por exigirem bas-
tante atenção e serem extensas. O professor poderia realizá-las conforme
achasse mais adequado, de modo a ficar mais adequado para o andamento
das aulas.
Nas atividades 2, 3 e 4, os alunos desenvolveriam o uso da estratégia
de predição à medida que fossem pensando nas possibilidades de con-
tinuação para o excerto da fábula lido pelo professor e por seus colegas.
Realizando as previsões necessárias, o aluno deveria anunciar o que acon-
teceria em seguida e justificar tal predição, ou seja, explicar quais os fatos
e características do texto o levaram a realizar tal previsão e não outra.
Quando a predição realizada estivesse equivocada, o professor deveria
refletir com os alunos sobre os motivos pelos quais aquela hipótese não
poderia ser confirmada, ou seja, explicar quais fatores linguísticos e con-
textuais – adaptando à fala para uma turma de 3° ano inicial – impediriam
que aquela hipótese pudesse ser confirmada. De acordo com os postulados
de Goodman (1976), a predição é baseada nas pistas linguísticas deixadas
pelo texto e também nos conhecimentos prévios acerca do assunto, como
já foi evidenciado anteriormente. A partir disso é que os alunos consegui-
rão formular hipóteses e testá-las.
Ao pensar em como a sequência do texto se formaria, os alunos preci-
sariam entender os princípios de manutenção e progressão temática, para
que as hipóteses elaboradas por eles tivessem sentido e coerência, confor-
me as ideias de Charolles (1978). Assim, para propor hipóteses coerentes,
eles deveriam observar a manutenção temática do texto, já que não haveria
como apontarem continuações descabidas, que não contemplassem o tema
proposto no excerto em questão e nos anteriores. Deveriam ter em mente,
portanto, que o tema da fábula deveria ser mantido. Além disso, eles deve-
riam observar a progressão temática do texto, apresentando hipóteses que
envolvessem a progressão das ideias apresentadas, não repetindo o que já

269
havia sido dito no excerto em questão ou em excertos anteriores, sabendo
que as ideias precisam progredir dentro de um texto, para que não se torne
algo circular e sem sentido, que não avança.
A partir das análises aqui descritas, pode-se entender como as ativida-
des funcionariam e como devem ser aplicadas em sala de aula. Além disso,
todas as atividades são fundamentadas teoricamente, como evidenciado
tanto nas seções dedicadas a esse fim, como nesta seção de análise das ati-
vidades. Dessa forma, espera-se que tenha sido esclarecida a importância
de desenvolver a compreensão leitora desde as séries iniciais, bem como o
uso das estratégias de leitura.

Considerações finais

A partir do estudo realizado, buscou-se mostrar a importância do tra-


balho com vistas a desenvolver o uso das estratégias de leitura, mais espe-
cificamente o da estratégia de predição, por parte dos leitores iniciantes.
Na fase inicial do aprendizado da leitura, é essencial que o professor fique
atento às dificuldades dos alunos e, por consequência, os ensine a utilizar as
estratégias de leitura, mesmo que de maneira inconsciente, através do de-
senvolvimento do seu uso por meio de atividades direcionadas a esse fim.
Sob essa perspectiva, acredita-se que o objetivo de refletir sobre os pres-
supostos teóricos que subjazem essa prática tenha sido atingido, bem como
o objetivo de exemplificar a transposição didática de tópicos da teoria para
a prática em sala de aula. Os modelos de exercícios apresentados podem
auxiliar consideravelmente no desenvolvimento do processo de compreen-
são leitora dos alunos dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Foi a partir
dessa constatação que foram criados e deseja-se que sejam reproduzidos,
assim como novas atividades sejam elaboradas e sirvam como meio de de-
senvolver a compreensão leitora por parte dos nossos pequenos leitores.

Referências

ASH, R.; HIGTON, B. Fábulas de Esopo. Tradução de Heloisa Jahn. São Paulo: Com-
panhia das Letrinhas, 1994. 95 p.

270
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ArtMed, 1998. 194 p.

271
13
O início da alfabetização para uma criança com
desvio fonológico: algumas reflexões

Cristiane Lazzarotto-Volcão

Introdução

O português apresenta uma escrita alfabética, baseada nas relações


entre sons e letras e mediada pelas relações abstratas entre fonemas e gra-
femas. Dessa forma, para aprender a escrever, a criança necessita apropriar-
-se desse sistema alfabético durante o processo de alfabetização. A desco-
berta das relações grafofonológicas só é possível através da reflexão e da
manipulação dos sons da fala, já que a noção de fonema é fundamental
para o entendimento do princípio alfabético (Vandervelden; Siegel, 1995;
Scliar-Cabral, 2003).
A essa capacidade é dado o nome de consciência fonológica, a qual
faz parte do conhecimento metalinguístico, ou seja, é uma capacidade que
permite refletir sobre as características estruturais da fala e manipulá-las
(Moojen; Santos, 2001; Zorzi, 2003). Essa habilidade é imensamente im-
portante para compreender a mensagem escrita, uma vez que, para ler e
escrever, é preciso realizar as correspondências grafofonológicas, analisar
os signos semiológicos em fonemas e sintetizar os fonemas em signos se-
miológicos (Cielo, 2001).
A consciência fonológica surge gradualmente, ao longo de um continuum
que engloba desde um grau nulo de consciência, passando pela sensibilidade,
pelo “dar-se conta”, até a consciência em si, que pressupõe a capacidade de
explicitação verbal do resultado desse tipo de conhecimento (Poersch, 1990).
As crianças vão desenvolvendo essa habilidade ao longo de sua maturação

272
desenvolvimental e a partir da interação com o meio, incluindo a instrução
formal. Assim, deve haver tarefas de consciência fonológica mais e menos
difíceis de resolver, conforme o estágio de desenvolvimento infantil (Cielo,
op cit.).
Dessa forma, pode-se dizer que, ao mesmo tempo em que a criança
adquire a linguagem oral, ela vai desenvolvendo a capacidade de refletir e
de “brincar” com essa linguagem. Ao ingressar na classe de alfabetização1,
teoricamente, todas as crianças já adquiriram a fonologia de sua língua e
já possuem um bom nível de consciência fonológica, embora não apre-
sentem, ainda, uma consciência fonêmica, ou seja, ainda não são capazes
de isolar os fonemas do fluxo da fala, bem como substituí-los, apagá-los,
invertê-los, de forma intencional. Essa habilidade só será desenvolvida a
partir da exposição e do aprendizado da língua escrita (Cielo, 2001; Lazza-
rotto; Cielo, 2002, Blanco-Dutra; Scherer; Brisolara, 2009).
Em se considerando o padrão da maioria das crianças, é esperado que,
ao iniciarem o processo formal de alfabetização, os alunos já tenham o sis-
tema fonológico da língua plenamente adquirido. Porém, algumas crianças
iniciam o processo de aprendizagem da escrita sem ter terminado o pro-
cesso de aquisição fonológica, por apresentarem um atraso no desenvolvi-
mento fonológico, ou um Desvio Fonológico (DF).
Os DF podem ser caracterizados por uma alteração ou por uma de-
mora na organização do sistema fonológico, durante seu processo de aqui-
sição. Várias pesquisas em aquisição da linguagem2 já comprovaram que
toda criança com DF, apesar do desvio, apresenta um sistema, embora seja
um sistema próprio, cuja organização pode estar bem distante daquela da
língua-alvo (Matzenauer-Hernandorena, 1995; Mota, 2001; Lamprecht,
2004; Lazzarrotto-Volcão, 2009).
Diante de um fato como o mencionado – a entrada de uma criança
com DF no primeiro ano do ensino fundamental – podemos questionar:
o que esperar do seu desempenho no que se refere à aprendizagem da es-
crita? Que tipo de relações grafo-fonológicas serão estabelecidas por esse
sujeito? Que tipo de consciência fonêmica poderá ser desenvolvido, em se

1 Não será feita distinção entre o termo alfabetização e letramento neste trabalho.
2 O primeiro autor a fazer referência à existência de um sistema nos casos de DF foi Ingram (1976).

273
tratando de um caso de DF? O fato de apresentar um sistema fonológico
incompleto implicará em um atraso na aprendizagem da escrita?
A partir desses questionamentos, este trabalho tem como objetivo ana-
lisar as produções escritas de um menino (doravante J) com DF, em fase
de alfabetização inicial, e verificar como esse sujeito está se apropriando
da escrita alfabética do português. A fim de delimitar o objeto de estudo,
pretende-se analisar como J representa, através de grafemas, o segmento
/t/, ausente em seu inventário fonológico.

Metodologia

O sujeito deste estudo, J, tem 7 anos e 1 mês e é do sexo masculino. Esse


menino tem DF e iniciou o tratamento fonoaudiológico no mesmo ano em
que ingressou na escola, na primeira série (equivalente ao primeiro ano).
As avaliações fonológica e da escrita que serão apresentadas neste artigo
foram realizadas no início do tratamento fonoaudiológico de J, o que coin-
cidiu com a metade do primeiro ano de escolarização. É importante referir
que a participação de J foi autorizada por sua mãe, mediante a assinatura
do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Os dados de fala de J foram retirados de Lazzarotto (2005). Sua co-
leta deu-se por meio do instrumento Avaliação Fonológica da Criança
(Yavas, Matzenauer-Hernandorena; Lamprecht, 1991), constituído de
cinco desenhos temáticos (“zoológico”, “sala”, “banheiro”, “cozinha” e “veí-
culos”), acrescido do “circo” elaborado por Matzenauer-Hernandorena e
Lamprecht (1991; 1996). Esse instrumento permite, através da nomeação
espontânea, a eliciação de todos os segmentos consonantais do português
brasileiro (PB), em todas as posições licenciadas pela fonologia dessa lín-
gua – Onset simples Absoluto (OA), Onset simples Medial (OM), Onset
Complexo (OC), Coda Medial (CM) e Coda Final (CF). Em seguida, a
autora (idem ibiden) apresenta uma análise através da Teoria da Otimi-
dade (Prince; Smolensky, 1993)3, por meio de hierarquias de restrições,
para analisar a dificuldade que J tem no emprego da plosiva coronal /t/.

3 Uma análise mais apurada desse sistema pode ser encontrada em Lazzarotto (2005), onde J é o sujeito 1
da pesquisa.

274
Já a produção escrita de J será analisada a partir de informações de seu
prontuário, onde está registrado seu desempenho no Ditado para levanta-
mento ortográfico (Costa, 2000) – Anexo 1 –, instrumento utilizado como
triagem da escrita no serviço de saúde em que J era atendido na época. Esse
ditado consta de 20 palavras, as quais permitem averiguar como o aprendiz
lida com as seguintes questões ortográficas: sonora/surda, encontros con-
sonantais, dígrafos, “r” em final de sílaba, gu/qu, c/qu, “m” em final de síla-
ba, antes de “p” e “b”, nasalização, transcrição da fala, j/g e m/n em início de
sílaba. Para este trabalho, também daremos enfoque nas produções escritas
de J. na tentativa de representar o fonema /t/.

Resultados

a) Sistema fonológico de J

Conforme Lazzarotto (2005), o inventário fonético de J está incomple-


to, pois em sua fala espontânea são produzidos apenas os sons [p, b, k, g, f,
m, j, w], conforme pode ser visto no Quadro 1.

Quadro 1: Inventário fonético de J.

labial dent/alv pal Velar


plosiva pb kg
fricativa fv
africada
nasal m
liq lateral
n-lateral
glide j w

Fonte: Dados da pesquisa.

Já no Quadro 2, temos o sistema de fones contrastivos de J, também


segundo Lazzarotto (op cit.).

275
Quadro 2: Sistema de fones contrastivos de J.

OA Reprodução

OM
Reprodução

CM CF
Reprodução

Fonte: Dados da pesquisa.

A partir desses dados, podemos verificar que J apresenta um sistema


fonológico com poucos contrastes. Em relação à plosiva coronal surda, po-
de-se observar que, tanto na posição de OA, quanto na de OM, J demonstra
uma dificuldade no estabelecimento do contraste do ponto articulatório,
enquanto preserva os traços relativos a modo ([-contínuo]) e à sonoridade
([-sonoro]), como revelam os exemplos em (1).
276
(1) Exemplos de produções de J:
‘bateu’ è [ba’kew]
‘teto’ è [‘keku]

b) Aspectos da escrita

Para avaliação da escrita de J foi utilizado o Ditado para levantamen-


to ortográfico (Costa, 2000), enquanto um procedimento de triagem. Os
dados utilizados neste estudo estavam no prontuário de J; portanto, não
foram coletados para fins de pesquisa. No Quadro 3 podemos verificar as
produções escritas de J, seguidas da palavra-alvo ditada.

Quadro 3: Produção escrita de J

1. parato (prato) 11. fota (voltar)


2. mióga (minhoca) 12. oeia (orelha)
3. penta (perguntar) 13. bito (pintor)
4. caobo (campo) 14. fugão (fogão)
5. seti (seguir) 15. rebia (respirar)
6. fuca (flores) 16. grafato (gravador)
7. difemote (diferente) 17. ateta (atleta)
8. tãobo (tambor) 18. boto (bloco)
9. matia (máquina) 19. vido (vidro)
10. coita (corrida) 20. etãodito (esconderijo)

Fonte: Dados da pesquisa.

Com base nessas produções escritas, observamos que J não apresen-


ta problemas na representação gráfica do fonema /t/ (destacada pela cor
cinza claro). Contudo, chamamos a atenção para a representação gráfica
do fonema /k/ (destacada pela cor cinza escuro), cujo som é realizado na
fala de J em lugar da coronal. Há três produções escritas em que o fonema
é representado adequadamente, mas há três produções em que J emprega o
grafema <t> em seu lugar.

277
Discussão

Podemos observar, a partir das informações descritas na seção ante-


rior, que J não apresenta o fonema /t/ em seu inventário fonológico, por
apresentar problemas com o traço [coronal]. Além disso, em todas as suas
produções, esse fonema é realizado como uma plosiva dorsal [k].
Já em relação à escrita, notamos que J, apesar dessas dificuldades fo-
nológicas, é capaz de representar esse fonema ausente através do grafema
correto em todos os vocábulos do ditado, ou seja, todas as palavras que
apresentam o fonema /t/ e que, portanto, deveriam ser escritas com o grafe-
ma ‘t’, estão representadas de forma correta, em relação a esse fonema. Esse
é o caso dos itens 1, 3, 7, 8, 11, 13 e 17.
Curiosamente, em alguns dos itens lexicais que possuem o fonema
plosivo dorsal /k/, J o representa através do grafema <t>, o que pode ser
observado nos itens 9, 18 e 20. Diante desse aspecto da produção de J, tece-
mos as seguintes considerações:
1) J possui conhecimento linguístico que o permite saber que a língua
oral e a escrita não são espelho uma da outra, ou seja, nem sempre
se escreve da forma como se fala;
2) J emprega uma estratégia muito comum em dados de escrita infan-
til, que é a hipercorreção e que significa a aplicação de uma regra em
contextos não esperados;
3) J apresenta capacidade de manipulação (consciente ou não) dos fo-
nemas de sua língua, uma vez que produziu palavras escritas de uma
forma inusitada, de acordo com seus padrões de fala, por meio dessa
hipercorreção.
Diante disso, é possível formular as seguintes asserções na tentativa de
explicação dos fenômenos:
– J não apresenta um DF, mas sim uma dificuldade articulatória que
o impede de produzir corretamente a plosiva coronal /t/, tendo a
representação mental correta desse segmento;
– J, embora possua um DF, em que a representação mental do /t/ es-
teja alterada, apresenta um bom nível de consciência fonológica e
do seu desvio, o que o leva a representar corretamente o segmento
através da escrita.

278
Se a primeira hipótese for a correta, seria possível pensar que as produ-
ções escritas de uma criança com DF seriam muito úteis num diagnóstico
diferencial entre um desvio fonológico e um desvio fonético ou articulató-
rio. Além disso, esse fato romperia com a ideia que muitos educadores pos-
suem em relação à aprendizagem de crianças que ainda possuem alterações
de linguagem oral: nem todas estão destinadas ao fracasso, muitas delas,
apesar do desvio de fala, apresentam um bom desempenho nas habilidades
de leitura e escrita.
Se for considerada a segunda hipótese como a mais aceitável, pode-
mos concluir que uma intervenção baseada na consciência fonológica de
segmentos adquiridos e ausentes é capaz de garantir uma representação
grafofonológica correta no período inicial de aprendizagem da escrita. Essa
tese seria reforçada pelo fenômeno de supercorreção que J realiza nos vocá-
bulos “máquina”, “bloco” e “esconderijo”, em que as plosivas dorsais foram
representadas pelo grafema <t>. Assim, sua atenção e consciência para o
desvio estariam maiores que a consciência fonêmica de segmentos produ-
zidos corretamente, o que o estaria levando a produzir esse tipo de “erro”.
Obviamente, se tivéssemos mais dados de escrita de J, em especial, da-
dos longitudinais, talvez essas perguntas pudessem ser respondidas. Con-
tudo, o presente estudo parece reforçar a hipótese de que a consciência fo-
nêmica é decorrente do processo de apropriação da escrita, ou seja, é pelo
fato de estar escrevendo que a criança adquire a capacidade de lidar com
unidades menores que a sílaba.

Considerações finais

Por meio deste breve estudo, pudemos verificar que uma criança com
DF é capaz de representar segmentos ausentes de seu inventário fono-
lógico de forma adequada na escrita. Esse fenômeno merece atenção de
futuras pesquisas e precisa ser mais bem investigado. As duas hipóteses
lançadas para explicar os dados encontrados, se corroboradas por estudos
mais aprofundados, podem trazer contribuições importantes tanto para o
diagnóstico e terapia dos DF, quanto para o processo de aprendizagem da
escrita em crianças com alterações da linguagem oral.

279
Esse fato aponta para a necessidade de mais estudos com crianças que
iniciam a alfabetização, ainda apresentando um sistema fonológico incom-
pleto, visto que, na prática fonoaudiológica, temos observado alguns casos
apresentarem boa evolução no processo de aprendizagem da escrita, en-
quanto outros não. É preciso que se investigue se essa diferença está apenas
relacionada a características individuais ou se o ambiente pode contribuir
para o bom desempenho, ou não, dessas crianças.

Referências

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lógico com base na Teoria da Otimidade. Dissertação de Mestrado. Pelotas: UCPel, 2005.
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UCPel, 2009.
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SCLIAR-CABRAL, L. Princípios do Sistema Alfabético do Português do Brasil. São
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ZORZI, J. Aprendizagem e distúrbios da linguagem escrita: questões clínicas e educa-
cionais. Porto Alegre: Artmed, 2003.

281
14
Uma reflexão teórica acerca do papel atribuído
à imagem no ensino da leitura a surdos

Cristiane Seimetz-Rodrigues

Introdução

Embora o direito de acesso à língua portuguesa escrita como segun-


da língua a estudantes surdos tenha sido institucionalizado no Brasil com
a Lei Federal 10.436/2002 e sua respectiva regulamentação tenha ocorrido
pelo Decreto 5.626/2005, é de se considerar que os surdos têm estado em
nossas salas de aula muito antes; por isso, mais do que o aumento do nú-
mero de estudantes surdos nas redes de ensino, a mudança introduzida pela
legislação relativa aos direitos linguísticos das pessoas surdas recai sobre a
concepção de ensino-aprendizagem desses sujeitos. Graças a essa mudança,
a educação brasileira, ao menos nos documentos oficiais, tem demonstrado
a preocupação em trabalhar os conteúdos didáticos de forma a respeitar as
diferenças linguísticas e culturais do aluno surdo, bem como o seu estilo
de aprendizagem, que tem sido identificado como visual (Campello, 2007).
Muito dessa identificação vem do fato de que a língua desses estudantes é de
natureza visuoespacial, o que significa que eles organizam o mundo ao seu
redor em esquemas imagéticos. Perceber e organizar o mundo visualmente
não é, contudo, uma prerrogativa de pessoas cuja língua é de modalidade
visuoespacial.
Resguardadas certas proporções, devemos assumir que pessoas cuja
língua é de modalidade oral-auditiva também concebem e organizam
suas experiências em esquemas imagéticos. Exemplo disso é que, mesmo

282
para a comunicação, não apenas pessoas surdas usam recursos visuais
– excetuando-se os expedientes especificamente verbais. Para além das
possibilidades de comunicação gestuais e corporais não verbais, o mundo
contemporâneo tem buscado dinamicidade nas comunicações por meio
do uso da imagem. Vivemos, surdos e ouvintes, imersos em um mundo
altamente midiatizado e imagético. Lidar com esse contexto comunica-
cional não é uma tarefa simples. E a situação piora quando se concebem
as imagens como signos transparentes ou quando se trabalha com uma
concepção de sujeito para o qual a compreensão de imagens é naturaliza-
da. Esta última é a razão pela qual o uso de imagens e de outros recursos
visuais vem sendo enfatizado na educação de surdos como recurso de
fundamental importância para a aprendizagem desses estudantes. Con-
cepção, inclusive, que atravessa muitas das propostas e práticas pedagó-
gicas de ensino da língua portuguesa escrita a surdos.
É desse último caso que o presente estudo se ocupa: o uso de imagens
para o ensino da língua portuguesa escrita a surdos e as possíveis armadi-
lhas implicadas por ele. Empregar recursos visuais é, sim, muito útil duran-
te o processo de instrução de estudantes surdos, bem como o de ouvintes.
Os problemas aparecem, no entanto, quando há pouca clareza entre o que
seja leitura de textos escritos e o que seja leitura de imagens; quando se
deposita na imagem o poder de esclarecer ou antecipar o que se encontra
codificado verbalmente; quando se incentiva o estudante surdo a priori-
zar a compreensão da imagem sobre a da palavra escrita, negligenciando
a realidade de que os textos contemporâneos, geralmente, empregam re-
cursos verbais e imagéticos de forma assimétrica no que diz respeito à in-
formatividade. Assim, para demonstrar que esses problemas existem, que
atingem as propostas de ensino de português a surdos e para questionar a
naturalização da compreensão de imagens que parece reinar no imaginário
dos professores de surdos, este capítulo procede a uma discussão sobre o
emprego de imagens aliadas ao texto escrito para a comunicação em uma
sociedade midiatizada e a uma discussão sobre por que lidar com textos
dessa natureza é uma tarefa que requer ensino.

283
O uso da imagem na comunicação midiática: implicações no ensino da
leitura1

É impraticável pensar no exercício da comunicação sem pensar nos


veículos que a midiatizam. Vivemos em uma era em que a comunicação
face a face deixou de ser o único meio pelo qual as pessoas interagem. Essa
realidade é fruto de várias conquistas tecnológicas relacionadas à comuni-
cação. A primeira delas, fundamental para o desenvolvimento das demais,
é a escrita, que nasce, entre outros propósitos, com a finalidade de tornar
perene algo tão fugaz como a fala. Com tal objetivo, a escrita se torna um
instrumento de mediação entre pessoas que se encontram em lugares e/ou
tempos diferentes. Convém observar que, como meio de registro, a escrita
depende, desde seu surgimento, de suporte e de instrumentos adequados
para sua notação, preservação e transporte. Essa é uma característica im-
portante porque o suporte e os instrumentos empregados para o registro
do código verbal delimitam o horizonte de expressão e influenciam, além
disso, o uso social da escrita. Para entender tal implicação do suporte e dos
instrumentos sobre a expressão escrita, é conveniente pensar nas diferentes
possibilidades de expressão facultadas, de um lado, por livros e revistas na
era da imprensa e, de outro, na era da computação gráfica.
A invenção da imprensa, no que concerne ao uso social da escrita,
permitiu que a disseminação do conhecimento se desse de forma mais
rápida e com menor custo financeiro, incentivando a alfabetização uni-
versal (Dondis, 2007). Evidentemente, essa é uma tarefa ainda incomple-
ta ou mal-acabada em muitos países. Todavia, não se pode negligenciar
que começa aí a caminhada em direção ao mundo letrado e globalizado de
hoje. Quanto às possibilidades de expressão, verifica-se o reinado do verbal
sobre o não verbal, já que “[e]m textos impressos, a palavra é o elemento
fundamental, enquanto os fatores visuais, como o cenário físico, o formato
e a ilustração, são secundários ou necessários apenas como apoio” (Dondis,
2007, p. 12). Essa marginalidade da imagem nos textos impressos se devia à
falta de tecnologias apropriadas para sua captura e reprodução. Até o surgi-

1 Esta seção é uma versão revisada e ampliada de parte do artigo “O ensino da leitura numa sociedade
midiática e imagética: lições do Design Gráfico”, de Seimetz-Rodrigues (2012).

284
mento da fotografia, o uso de imagens em textos impressos era totalmente
dependente da colaboração de artistas para fazer as ilustrações, cenário que
se modificou diante a criação das máquinas fotográficas. Elas permitiram
não só apreender a realidade visual de forma mais objetiva e fiel do que a
pintura, xilogravura, litografia ou gravura em metal, mas também facilita-
ram ainda mais a reprodução de imagens em massa:
[...] o meio de transmissão mais legítimo para as fotografias não é
o porta-retratos, mas os jornais, revistas, outdoors, etc. Tanto isso é
verdade que não demorou muito para o cinema realizar o potencial
massivo latente nas fotografias, que o processo de difusão da televi-
são levaria às últimas consequências. É o espaço da comunicação.
(Santaella; Nöth, 2005, p. 173)
Esse foi o passo inicial para a imagem sair da marginalidade que ocu-
pava nos textos impressos e na sociedade em geral, tendo, segundo Dondis
(2007), um imenso impacto sobre o estilo de vida contemporâneo. O auge
do processo de ascensão da imagem como signo na composição de comu-
nicações escritas ocorre com a conquista da computação gráfica, pois pro-
jeta possibilidades ilimitadas de sofisticação na elaboração da mensagem
por meio do uso da fotografia digital, programas de ilustração digital, pro-
gramas de manipulação e tratamento do texto e da imagem. Tal mudança
já é anunciada, inclusive, como o início de um novo paradigma na maneira
de se conceber a mídia bidimensional, como se pode observar no relato de
Santaella e Nöth (2005, p. 69):
[...] já nos meios gráficos, impressos, também se assistia ao desabro-
char de uma nova linguagem híbrida, entretecida nas misturas entre
a palavra e a imagem diagramática e fotográfica. Agora, com a nova
geração de designers gráficos que se deliciam na manipulação das
letras, palavras, configurações e desenhos nas telas informatizadas
movidas a luz e cores que se multiplicam ao infinito, esse código hí-
brido já preenche todas as condições para se tornar dominante.
Por código híbrido, Santaella e Nöth (2005) se referem a textos cuja
mensagem é composta pela união de linguagem verbal e não verbal. Na

285
área educacional, textos dessa natureza são chamados, por exemplo, no
relatório do PISA 2000 (Brasil, 2001), de descontínuos e, nos estudos pro-
movidos na área de letramento, de multimodais. Independentemente da
nomenclatura adotada, o que se constata no cotidiano é a onipresença da
mídia bidimensional e, com ela, o bombardeio de imagens a que somos
submetidos. Inicialmente, a importância da imagem nos meios de comu-
nicação impressos se fez sentir de maneira mais inequívoca nas mensagens
elaboradas com fim publicitário. Como o objetivo do texto publicitário não
é informar, mas sim persuadir, a combinação de texto e imagem serve bem
ao propósito de divulgar produtos e serviços (Heskett, 2008). A imagem
prevalece sobre a palavra no que diz respeito à rapidez com que é perce-
bida. Uma vez avistada, uma imagem não pode ser ignorada. Isso não im-
plica, no entanto, que o mero fato de vê-la leve à sua compreensão. Razão
pela qual, em muitos contextos comunicacionais, a imagem não prescinde
da palavra, pois esta, usualmente, determina a leitura daquela. Ciente disso,
o meio publicitário tem explorado ao máximo a capacidade de atração da
imagem. Exemplo disso são os outdoors, cartazes, anúncios publicitários
em revistas e jornais que nos chegam a todo momento. Na verdade, o fluxo
desse tipo de material é tamanho, e nosso contato com ele tão efêmero –
andando pelas ruas da cidade, sentado no metrô, folheando distraidamente
uma revista ou jornal à espera de uma consulta –, que sai na frente quem
consegue comunicar mais com menos.
Nessa corrida pela condensação de informações, chegou-se à conver-
gência entre o verbal e o imagético. Basta pensar na composição das men-
sagens veiculadas pelas mídias citadas acima. Mais do que chamar a aten-
ção do interlocutor, o uso de imagens permite transmitir informações de
maneira rápida e inovadora, servindo não mais como apoio, mera ilustra-
ção representativa do codificado verbalmente, mas antes complementando
a informação escrita, assumindo a posição de signo e, assim, delimitando
os significados passíveis de serem interpretados numa determinada peça
gráfica. Essa mesma corrida pela condensação da informação, além de ex-
plorar o potencial sígnico da imagem, tem buscado aproximar a materiali-
zação do código verbal escrito à simultaneidade da imagem, minimizando
o aspecto linear da escrita, como bem aponta Dondis (2007, p. 12-13) ao

286
observar que “[a] impressão ainda não morreu, e com certeza não morrerá
jamais; não obstante, nossa cultura dominada pela linguagem já se deslo-
cou sensivelmente para o nível icônico”.
Esse deslocamento, sentido primeiramente em textos publicitários, já
migrou para gêneros de outras esferas sociais que buscam coadunar sua
expressão linguística às novas possibilidades de codificação das mídias mo-
dernas. Nesse processo, o uso de imagens como recurso para condensar in-
formações gera textos cujos significados precisam ser construídos a partir
do processamento de figuras de linguagem como a metonímia e a metáfora
no plano visual, o que traz consequências para uma metodologia de ensino
que visa ao letramento pleno do estudante brasileiro – seja ele surdo ou ou-
vinte. Portanto, se a função da escola quanto ao ensino de língua é propiciar
que “os alunos adquiram progressivamente uma competência em relação
à linguagem que lhes possibilite resolver problemas da vida cotidiana, ter
acesso aos bens culturais e alcançar a participação plena no mundo letra-
do” (Brasil, 1997, p. 33), há que se considerar, para o alcance de tal objetivo,
que as formas de interação no mundo letrado do século XXI apresentam
características multifacetadas. Uma dessas características diz respeito ao
fato de que, atualmente, somos comunicados mais do que comunicamos.
Exemplar é o caminho de casa para a escola. Nele, a criança se depara com
inúmeras mensagens verbais escritas, como cartazes; outdoors; adesivos
em veículos, nos pertences do colega; placas de sinalização (de trânsito, de
comércio); faixas comemorativas; entre tantas outras possibilidades. Ou-
tra característica é que os meios pelos quais as informações nos chegam
se diversificaram, se especializaram, mantendo em comum, no entanto, o
desejo de atingir o maior número possível de pessoas no menor tempo
ou espaço possível. Para alcançar esse objetivo, as mídias bidimensionais,
conforme já discutido, têm investido na produção de textos híbridos, que
articulam signos verbais e não verbais na composição de suas mensagens.
Nessa perspectiva, o esperado é que nossos estudantes – ouvintes e
surdos – sejam ensinados a produzir sentido para as comunicações com as
quais travam contato por meio de diferentes mídias. Esse ensino requer que
o aprendiz seja não apenas introduzido no sistema de escrita da comuni-
dade letrada da qual faz parte, mas também seja levado a lapidar sua inter-

287
pretação da linguagem visual não verbal, o que requer aquilo que Dondis
(2007) chama de alfabetização visual. Isso porque as imagens empregadas
em textos híbridos apresentam diferentes níveis de informatividade, po-
dendo ser meramente ilustrativas, complementar ao verbal ou superior ao
verbal, conforme Santaella e Nöth (2005). Na discussão aqui proposta, o
interesse recai sobre textos em que imagem e código verbal se complemen-
tam, relação na qual a imagem é usada de forma não literal, manifestando
figuras de linguagem como a metonímia e a metáfora, sendo, por isso, uma
relação muito explorada em comunicações cujo papel persuasivo é bem
marcado. Como exemplo dessa complementaridade entre verbal e não ver-
bal, podemos considerar o cartaz publicitário abaixo:

Figura 1: Cartaz publicitário

Reprodução

Fonte: Cereja; Magalhães (1999, p. 95).

Aqui, o uso da imagem não é meramente ilustrativo. Ele veicula um


significado específico, o qual não é acessado sem que o leitor dessa peça
gráfica proceda a um trabalho de compreensão integrando as informações
visuais às verbais. Ao leitor proficiente pode não parecer, mas construir a
interpretação para a imagem em destaque nesse anúncio demanda um alto
esforço cognitivo. De um lado, exige-se a mobilização de conhecimento

288
prévio sobre o ditado popular “mais apertado do que uma lata de sar-
dinha”, sobre o qual a metáfora visual no cartaz é construída. De outro,
exige-se que ele reconstrua esse significado a partir das pistas textuais e vi-
suais fornecidas na peça. É necessária também a associação dessa imagem
metafórica àquilo que se pretende conceituar por meio dela: roupas da
marca Hering, conforme indica o símbolo da marca na parte inferior do
cartaz. A associação entre a marca e a imagem já se dá na própria configu-
ração imagética da lata de sardinhas, a qual remete ao símbolo represen-
tativo da marca Hering. De posse de todos esses elementos, o leitor deve
se perguntar qual a relação sígnica entre eles. Confrontando a imagem
com o fato de que se trata de uma peça publicitária sobre uma marca de
roupas e com a palavra “superconfortável”, o esperado é que o significado
de “mais apertado do que uma lata de sardinha” seja realocado, uma vez
que não seria coerente anunciar roupas “mais apertadas do que uma lata
de sardinha”. Tanto é assim que o cartaz dirige a interpretação desejada em
dois planos: o visual, dando destaque ao espaço confortável dividido por
apenas duas sardinhas na lata e o layout básico da peça gráfica, e o verbal,
com a palavra “superconfortável” e o slogan da marca: Hering, o básico
do Brasil. Não obstante, muitos aprendizes – surdos e ouvintes – apresen-
tam dificuldade em integrar essas informações e ficam perplexos sobre o
porquê da lata de sardinhas na imagem, que é tomada apenas no sentido
já conhecido (fato vivenciado pela autora em sua prática como professora
no ensino básico).
Frente a essa dificuldade, “cabe ao professor de leitura desenvolver em
seus alunos a consciência de buscar as pistas linguísticas para os conceitos
que às vezes são mais obscuros, acionando, ou até mesmo criando, os es-
quemas necessários para a compreensão do texto” (Grimm-Cabral, 2000, p.
68). Disso, conclui-se que, tanto quanto ser ensinado a lidar com a leitura
da escrita, o estudante necessita ser ensinado a lidar com a leitura do que
não é verbal, uma vez que se assume que “a própria operação de ler ultra-
passa os limites da decifração linguística, atingindo um campo semiótico
amplo que não se esgota nas práticas escolares nem no ensino disciplinar
da língua” (Brasil, 2001, p. 73).

289
O ensino da leitura a estudantes surdos atrelado à imagem como
ilustração do texto: o exemplo de documentos de orientação a professores

Lidar com o contexto comunicacional descrito na seção anterior não é


uma tarefa simples. Contudo, a situação cresce em complexidade quando
se concebem as imagens como signos transparentes, ou quando se traba-
lha com uma concepção de sujeito para o qual a compreensão de imagens
é naturalizada porque seu modo de apreensão da realidade circundante é
visual. Esta última é a razão pela qual o uso de imagens e de outros recursos
visuais vem sendo enfatizado como de fundamental importância para o su-
cesso educacional de surdos, concepção, inclusive, que atravessa muitas das
propostas e práticas pedagógicas de ensino da língua portuguesa escrita a
esses estudantes.
Exemplo dessa concepção pode ser encontrado nas orientações nacio-
nais para o ensino de língua portuguesa a surdos, elaboradas por Salles et
al. (2004, v.1, p. 115), em que se lê, entre os critérios de adequabilidade
do texto selecionado para o trabalho com leitura em turmas de surdos, o
seguinte: “[...] estar associados a imagens – a boa opção seria artigos de re-
vistas e jornais, que costumam estar ilustrados, bem como propagandas”. É
compreensível que, se o texto apresenta linguagem não verbal, o estudante
seja orientado a refletir sobre que significados essa linguagem apresenta e
como eles se coadunam com a leitura da linguagem verbal. Todavia, em
momento algum da proposta elaborada por Salles et al. (2004), há a preo-
cupação de se esclarecer ao professor que, não raro, linguagem verbal e não
verbal se complementam para comunicar significados específicos, extrapo-
lando o uso meramente ilustrativo de imagens.
Assim, apesar do esforço das pesquisadoras na proposição de estra-
tégias eficazes para o ensino da leitura, a maneira como abordam o papel
da imagem durante o trabalho de compreensão textual dos alunos surdos
pode levar seu público-alvo – os professores desses alunos – a apostar em
um ensino em que a imagem é cultuada como uma espécie de porto se-
guro, a qual, se não substitui a leitura da palavra, se coloca em situação de
superioridade à medida que serve de guia durante a compreensão textual.
Ainda que pareça radical, essa afirmação encontra respaldo no fato de que

290
não é difícil encontrar exemplos de que usos pouco criteriosos da imagem
como base para a leitura de textos escritos encontram-se disseminados en-
tre professores e pesquisadores interessados em discutir o ensino da leitura
e escrita a surdos, conforme demonstram os excertos abaixo relacionados.
Em seu planejamento o professor deverá destacar as pistas visuais que
serão indicadas para conduzir à leitura da palavra. De nada adianta termos
ilustrações coloridas e atrativas se em nada auxiliam na compreensão da
escrita (Fernandes, 2006, p. 21).
Utilizar as ilustrações como recurso para antecipar o conteúdo de
um texto escrito, nesse caso, um poema. [...]. Proponha que alguns
alunos recontem a história em Libras, observando os desenhos. Tra-
ta-se de uma forma interessante de favorecer o uso da imagem para
antecipar a leitura do texto. (SME /DOT, 2007, p. 63)
As citações acima foram retiradas de documentos de orientação a pro-
fessores de alunos surdos elaborados, respectivamente, pelo governo do Pa-
raná e pelo governo de São Paulo. Percebe-se que essas orientações conver-
gem com o que é proposto na obra que estabelece as orientações nacionais
para o ensino de língua portuguesa a surdos: a imagem-ilustração como
elemento capaz de antecipar a leitura do texto, como meio de compreender
o escrito. Mesmo havendo em tais orientações as melhores intenções possí-
veis, como fornecer ao estudante surdo pistas visuais que, em tese, podem
ser mais bem aproveitadas por ele, dada a natureza visual de suas interações
com o mundo, essa crença no poder autoexplicativo da imagem, apresen-
tada como boia de salvação às dificuldades do aluno surdo em lidar com
a escrita, é, na verdade, uma atitude com alto risco de resultar perniciosa
quando o objetivo é a formação de leitores. Ora, a leitura do texto escrito
não prescinde da leitura da palavra. Recorrer a pistas visuais para antecipar
a leitura só pode significar mobilização dos conhecimentos prévios do lei-
tor antes de engajar-se, de fato, na leitura do texto escrito. Compreender as
imagens ilustrativas de um texto é um passo necessário, mas não suficiente
para construir o significado do que se encontra escrito. Ainda é preciso
considerar que, muitas vezes, mesmo as imagens empregadas no texto não
sendo metafóricas, é o conteúdo verbal que orienta como o não verbal deve

291
ser interpretado. Para sustentar esse ponto de vista, propomos uma breve
análise do exemplo de atividade de leitura fornecido por Salles e colegas
(2004, p. 46-47):
1. Para iniciar a compreensão do texto verbal, comecemos a ler os tex-
tos não verbais. Observem-se as figuras abaixo:

Reprodução
Constituído de várias etapas, as quais procuram dar conta dos proce-
dimentos necessários a uma leitura eficaz, a primeira etapa do exemplo se
dedica a mobilizar o conhecimento prévio do leitor por meio da exploração
de aspectos mais gerais do texto, entre eles os imagéticos, e aconselha que
o educador:
1. Estabeleça a relação entre as figuras: Elas têm algo em comum? O
quê? O que sugere a presença do cão sempre junto à(s) pessoa(s)?
Como é demonstrado o comportamento da(s) pessoa(s) em relação
ao cão? (Salles et al., 2004, p. 47)
As questões sugeridas objetivam levar o estudante a criar hipóteses so-
bre o texto a ser lido com base nas imagens. Todavia, é essencial notar que
entre as imagens há a presença de código verbal: “Projeto Cão Guia”. Sem
este, ou sem que o professor diga a seus alunos o título do texto a ser lido,
ou o tema dele, mais do que um trabalho de elaboração de hipóteses sobre
o conteúdo do texto, o que os alunos realizariam sem o suporte do código
verbal seria, possivelmente, uma saga de adivinhação frente às inúmeras
inferências que podem ser acionadas pela associação apenas das imagens
umas com as outras até chegarem ao assunto pretendido: cães guias. Isso é
verificado se tentamos responder às perguntas acima elidindo do conjunto
de imagens apresentadas na página anterior deste estudo a parte verbal:

292
Reprodução
Não podemos assegurar que sem a presença da parte verbal a hipótese
sobre cães guias seria a primeira a ser acionada. Do mesmo modo, não
podemos assegurar o inverso. Ainda assim, é mais do que plausível aceitar
que, sem a presença do verbal, a imagem fica aberta a muitas interpreta-
ções e, nesse caso, como o estudante saberia qual a apropriada, a que an-
tecipa o sentido do texto? Nesse ponto, acreditamos ter demonstrado com
essa breve reflexão que a imagem empregada em textos de natureza des-
contínua nem sempre é suficiente, sozinha, para antecipar os sentidos do
texto escrito. Relação que se torna ainda mais problemática ao tomarmos
consciência de que a dinâmica entre linguagem verbal e não verbal pode,
muitas vezes, extrapolar o eixo da “ilustração” (cf. discussão sobre usos
metafóricos da imagem neste texto). Com isso, não se pretende defender
que a linguagem não verbal seja inócua para o processo de construção de
significados do texto escrito, pretende-se, apenas, levar a uma reflexão que
redimensione as funções atribuídas ao uso da imagem durante o ensino
de leitura a surdos e que desmistifique a naturalização atribuída ao sujeito
surdo no que concerne à interpretação de imagens empregadas na com-
posição de textos reais, que circulam socialmente. Afinal, há um abismo
entre a visualidade natural específica à língua usada por esses sujeitos e a
visualidade programada nos textos que circulam socialmente. Mais uma
vez resguardadas as devidas proporções, esse é o tipo de abismo que há,
por exemplo, entre ser dotado de uma escuta natural e a capacidade de
compreender uma ópera.
De forma a esclarecer o sentido de “real” na passagem anterior, basta
que o leitor considere quão real, no cotidiano da sociedade letrada em que
vivemos e para realizarmos as tarefas que ela nos exige, é o encontro com
poemas (textos) a que cada verso (linha) corresponde uma imagem para
ilustração. Aqui fazemos referência à atividade de leitura proposta pelo do-
cumento de orientação aos professores do estado de São Paulo (SME /DOT,

293
2007, p. 63-64), que sugere que “a sequência de figuras garantirá a corres-
pondência com os respectivos versos, sendo uma atividade indicada para
alunos a partir do 2º ano do Ciclo I, que terão mais condições de refletir
sobre o sistema da escrita”. Ora, a reflexão sobre o sistema de escrita requer
que ele seja o objeto considerado (Britto, 2012; Faraco, 2012; Souza, 2012;
Cagliari, 2009), e não a substituição por figuras. Lidar com textos descontí-
nuos, por sua vez, exige o conhecimento de que a imagem não é um signo
transparente, de que ela demanda esforço de compreensão e consideração
do contexto verbal que a acompanha (Seimetz-Rodrigues, 2012).

Considerações finais

Talvez, até aqui, este texto possa ter soado ao leitor como uma crítica
ferrenha ao uso de imagens no que diz respeito ao processo de leitura de
estudantes surdos, como se a pesquisadora quisesse sustentar que recorrer
a imagens é inútil. Não se trata disso. Trata-se apenas do desejo de alertar
sobre os riscos implicados numa prática que tem se sustentado em lugares-
-comum sobre: a maneira como o surdo aprende; a aparente transparência
da imagem face à escrita; a desconsideração de que, seja para a escrita, seja
para imagens, a competência leitora é uma habilidade que deve ser ensina-
da formalmente aos estudantes – surdos e ouvintes –, mediante metodolo-
gias adequadas e fundadas em conhecimento científico. Nesse tocante, tal
como afirma McGuinness (2006, p. 246), ensinar uma criança a ler “não
precisa ser uma loteria”, visto que já há a uma vasta e consolidada litera-
tura sobre o que é leitura e como se pode efetivamente ensinar a ler (para
uma introdução à questão, cf. Snowling; Hulme, 2013; Dehaene, 2012; Mc-
Guiness, 2006a).
O modo como o surdo aprende é, sim, pelo canal visual, mas isso não
pode ser entendido como uma justificativa para que, durante os anos de es-
cola, esses sujeitos lidem preferencialmente com textos ilustrados, selecio-
nados pelo professor porque “a imagem antecipa a leitura do texto escrito”.
O significado de uma imagem, quando usada como signo, não é autoevi-
dente, tanto é assim que o potencial comunicativo dessa linguagem é enor-
me, podendo ser empregada em diferentes contextos com propósitos muito

294
díspares. Esta é, certamente, uma das razões pelas quais Dondis (2007, p.
01), pesquisadora na área de comunicação visual, traça o paralelo de que
“[s]e a invenção do tipo móvel criou o imperativo de um alfabetismo verbal
universal, sem dúvida a invenção da câmera [fotográfica] e de todas as suas
formas paralelas, que não cessam de se desenvolver, criou, por sua vez, o
imperativo do alfabetismo visual universal (...)”.
Esse ensino requer dos educadores o conhecimento sobre o que seja
ensinar a ler – palavra e imagem. Ademais, verifica-se, nas salas de aula,
de forma geral, a necessidade de se convencer os educadores de que o pro-
cesso de construção dos significados de um texto deve ser ensinado aos
educandos (Britto, 2012; Souza, 2012; Scliar-Cabral; Souza, 2011; Possenti,
2001; Solé, 1998). É imperiosa a consideração desse fato porque, embora ler
seja um processo individual – apenas o leitor pode acionar as capacidades
de que necessita para decodificar, fazer previsões, checar a validade de suas
previsões, confrontar seu conhecimento prévio com o proposto pelo ma-
terial lido, monitorar o desempenho e o nível de atenção etc. –, ele precisa
ser formalmente ensinado, pois é improvável o aprendiz desenvolver a lei-
tura da mesma forma como desenvolveu a fala: apenas em contato informal
com outros leitores (Souza, 2012; Scliar-Cabral; Souza, 2011; McGuinness,
2006a; Solé, 1998). Em relação ao aprendiz surdo, esse desafio ganha pro-
porções hercúleas, posto que educador e educando têm diante de si a tarefa
não apenas de ensinar-aprender a ler, mas mais propriamente a tarefa de
ensinar-aprender uma língua nova, “estrangeira”. Ainda assim, professores
e documentos de orientações a esses profissionais não podem desconside-
rar que a aproximação do aluno surdo à língua portuguesa exige deles a
habilidade de leitura, a qual, para ser ensinada, necessita antes da compre-
ensão de como se chega a tal habilidade. Parece, mais especificamente, que
é essa compreensão que tem faltado aos professores (Britto, 2012; Souza,
2012; Kleiman, 2011; Scliar-Cabral, Souza, 2011; McGuinness, 2006a; Bra-
sil, 2001), por isso a dificuldade enorme de nosso país em formar leitores
eficientes – ouvintes e surdos.

295
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297
15
Ato de ler e o leitor: pistas de um processo
(não) emancipatório de leitura em um 5º ano
do ensino fundamental

Marina Vieira Cardoso


Angela Cristina Di Palma Back

Introdução

O presente tema surgiu das significativas experiências que foram vi-


venciadas no projeto denominado Observatório da Educação – OBEDUC
(Projeto Ler & Educar), programa vinculado à Comissão de Aperfeiçoa-
mento de Pessoal do Nível Superior – CAPES, que visa proporcionar a ar-
ticulação entre pós-graduação, licenciaturas e escolas públicas de educação
básica, com a finalidade de estimular a produção acadêmica.
Tendo em vista todo o conhecimento acumulado por ocasião da parti-
cipação junto ao Projeto Ler & Educar, defende-se que a leitura é uma das
principais atividades relacionadas à educação. Os livros permeiam a vida
de docentes e discentes, e seu ensino-aprendizagem requer o esforço de
correr os olhos sobre as muitas letras, palavras e sentenças de um texto, de
modo a compreendê-las. Ler, às vezes, pode ser enfadonho, e, para aqueles
que não alcançam a compreensão, passa a ser desestimulante na medida
em que demanda um esforço para o qual não se está preparado. Tudo isso
atesta, de certo modo, que ler não é uma tarefa fácil: exige dedicação, aten-
ção e persistência do leitor.
A partir do referencial teórico compartilhado no projeto OBEDUC e
com base no já dito, entende-se que ler demanda um processo complexo,

298
que implica muito mais do que mero gosto e prazer; ler é, sobretudo, apro-
priação de conhecimentos e envolve a elaboração de capacidades superio-
res do sistema cognitivo, uma vez que a leitura que abordaremos aqui se
dá no âmbito escolar, necessária para o desenvolvimento do sujeito. Nesse
contexto, questões atinentes à concepção de leitura e processos cognitivos
no entorno do ato de ler são necessárias para entender os recorrentes (in)
sucessos na compreensão de um texto.
Diante do exposto, supõe-se necessário compreender os efeitos da for-
mação de leitores. Posto isso, este estudo é fundamentado em autores como
Britto (2012); Costa (2009); Gerhardt e Silveira (2009); Gil (1991); Laka-
tos (1989); Kato (1999); Leffa (1996); Scliar-Cabral (2013); Smith (1989);
Kleiman (2013); Souza (2012); Snowling (2013); Viana (2002) e Piper
(2015), que podem contribuir com práticas pedagógicas que ensinem alu-
nos a ler com autonomia, de modo a se desenvolverem enquanto sujeitos
de suas próprias produções, isto é, autores. Logo, o presente artigo tem
por objetivo analisar, a partir do processo de leitura instalado com alunos
de 5º ano, os avanços ou lacunas no ato de ler pertinentes à formação do
sujeito (não) emancipado.
Assim sendo, pensou-se na relevância de estudar quais as dificuldades
que os alunos do 5º ano do Ensino Fundamental encontram ao se deparar
com um texto, entendendo que essa problemática se faz necessária para
compreender a importância da leitura proficiente na formação do sujeito
leitor emancipado.
O presente texto organiza-se em três seções que discorrem sobre o que
vem a ser leitura dentro da perspectiva interacionista, concepção de leitura
adotada para a elaboração deste artigo. Ademais, traz uma breve análise de
dados mediante pesquisa de campo, realizada com alunos do 5º ano do En-
sino Fundamental, em que foram ministradas duas aulas de leitura à luz de
diferentes concepções, uma que denomino ‘aula tradicional’, por entender
que sua prática pedagógica está fundamentada em um “não lugar” teórico
e que, por vezes, parece não ser significativa, e outra, no arcabouço teórico
interacionista, que concebe a leitura como um aspecto processual e com-
plexo. Por conseguinte, há uma triangulação entre as respostas dos alunos,
coletadas numa roda de conversa, correlacionadas a um olhar da autora no

299
desfecho das aulas ministradas e, também, à visão dos teóricos que emba-
sam os estudos do artigo.

Leitura

Saber o que é leitura, para além da mera decifração do código escrito


ou para além do simples prazer que ela nos proporciona, é indispensável
para compreender os processos tão complexos que envolvem essa área do
conhecimento. Além disso, essa conceituação é fundamental, num viés
mais pedagógico, para pensarmos sobre que tipo de leitores somos, e quais
queremos formar, na condição de profissionais da educação.
Em sua obra “Inquietudes e desacordos: a leitura além do óbvio”, Britto
(2012) relata os vários sentidos expressos para o conceito de leitura. Ele
descreve algumas definições provindas do dicionário, que incluem signi-
ficados muito abrangentes, como leitura de texto, de luz, da mão, de um
filme ou de uma obra de arte. Nesses casos, em todas as definições, ler sig-
nificou uma
[...] ação interpretante em função da atividade intelectual organiza-
da; em outras palavras, todo e qualquer gesto interpretante de fatos
do mundo seria um gesto leitor- uma definição, sem dúvida, possí-
vel, mas certamente desinteressante para compreender leitura, uma
vez que se perderia exatamente a especificidade da atividade intelec-
tual mediada pela escrita (Britto, 2012, p. 23).
Ler, nesse contexto, tem relação direta com a leitura do texto mediada
pela presença do código escrito e sua consequente automatização. Na área
pedagógica, apesar de a leitura ter relação direta com a prática social, ela
não se limita apenas a saber fazer, mas sim a capacidades intelectuais do
sujeito que envolvem cognição e metacognição, e isso sugere a leitura de
textos cada vez mais complexos e sofisticados ao longo dos variados gêne-
ros presentes em uma sociedade letrada.
Algumas práticas, sob a análise de Kleiman (2013), parecem insufi-
cientes para atender todas as demandas do que vem a ser leitura e, quando
professores entendem a leitura fora de sua “especificidade mediada pela

300
escrita”, podem potencializar alguns equívocos no processo de ensino-
-aprendizagem. A partir dos comentários da autora, algumas atitudes fren-
te à leitura merecem, no mínimo, muita reflexão. São elas: i) práticas que
concebem a leitura como extração de significados, que dão ao leitor uma
conotação passiva perante o texto; ii) leitura como decodificação, que se
faz mecânica e rapidamente e não exige que o leitor pense muito; iii) leitura
autoritária, que também inibe o leitor a compreender o texto, uma vez que
desconsidera totalmente seus conhecimentos prévios, dando a entender
que a interpretação correta é apenas a autorizada pelo professor.
Portanto, a autora enfatiza que a concepção mais adequada para se ler
de forma proficiente, envolve, necessariamente, o processamento cogniti-
vo, posto que a leitura não se limita a uma aprendizagem desconexa do
processo de ensino-aprendizagem, não se confunde com facilidades ou
mero desejo de cada aluno. Ler é uma atividade intelectual que demanda
esforço, objetivo e determinação e, para definir leitura, é preciso conhecer o
aspecto “psicológico, cognitivo da leitura” (Kleiman, 2013, p. 46); só assim
será possível detectar e propor métodos exitosos.
Diante do exposto, ler está para além da identificação de letras, pala-
vras ou sentenças. Ler é pensar e interagir. Logo, este artigo abordará que,
durante a leitura, a compreensão não se dá apenas ao atribuir ou extrair
sentidos, mas estes se constroem na medida em que ocorre interação entre
texto e leitor, o que será discutido na próxima subseção.

Leitura: interação e pensamento

A respeito da leitura, Leffa (1996) traça uma comparação entre o pro-


cesso de olhar-se, ou olhar algo no espelho, e a própria leitura. Conforme
o autor, ocorre, nessas ocasiões, o que é chamado de “processo de trian-
gulação” (Leffa, 1996, p. 11). Essa triangulação é formada pela interação
entre leitor, código escrito, refletindo ou não na compreensão, e a interpre-
tação do sujeito que lê. Ele analisa, cria estratégias segundo seu objetivo e
compreende o texto, ou ainda, não o compreende, sendo que, quando isso
ocorre, não há processo de triangulação, ocasionado, por vezes, pela falta
de conhecimento prévio sobre o assunto. Entender isso é importante para
que possamos definir o que é leitura.

301
De acordo com o autor supracitado, a leitura pode ser uma questão de
extrair sentido do texto, atribui-lo ou mesmo de interagir com ele, sendo
esses três processos, respectivamente, concepções de leitura numa perspec-
tiva ascendente, descendente e interacionista. A leitura enquanto extração
de significado “está associada à ideia de que o texto tem um significado
preciso, exato e completo” (Leffa, 1996, p. 12), em que o leitor não precisa
ativar seus conhecimentos prévios para obter respostas, muito menos su-
por alguma resposta que não esteja estritamente no texto, tornando o leitor
passivo perante ele. A leitura numa perspectiva descendente parte do posto
de que “o texto não contém a realidade, reflete apenas segmentos da reali-
dade, entremeados de inúmeras lacunas, que o leitor vai preenchendo com
o conhecimento prévio que possui do mundo.” (Leffa, 1996, p. 14). Des-
sa forma, apenas o leitor tem sua relevância no processo, não importando
qualquer objetivo que o autor traçou em sua obra, pois ao leitor cabe dar
sentido ao texto. A concepção abordada neste artigo opta por uma terceira
via, segundo a qual ler é interagir com o texto. Portanto,
[...] leitura implica uma correspondência entre o conhecimento pré-
vio do leitor e os dados fornecidos pelo texto. Leitor e texto são como
duas engrenagens correndo uma dentro da outra; onde faltar encaixe
nas engrenagens leitor e texto se separam e ficam rodando soltos.
Quando isso acontece, o leitor fluente, via de regra, recua no texto,
retomando-o num ponto anterior e fazendo uma nova tentativa. Se
for bem sucedido, há um novo engate e a leitura prossegue (Leffa,
1996, p. 22).
Além disso, a perspectiva interacionista sugere que o ato de ler é um
processo complexo, sendo mobilizadas, na tarefa, estratégias cognitivas e
metacognitivas, as quais Leffa (1996) denomina, respectivamente, conheci-
mento declarativo - que “envolve apenas consciência da tarefa a ser execu-
tada. O indivíduo sabe o que tem que fazer e é capaz de fazê-lo (ex.: resumir
um texto)” (Leffa, 1996, p. 49) – e conhecimento processual, que “envolve
não apenas a consciência da tarefa a ser executada, mas, de certo modo,
consciência da própria consciência” (Leffa, 1996, p. 49).

302
Segundo Kleiman (2013, p. 75), “as estratégias cognitivas da leitura
seriam aquelas operações inconscientes do leitor, no sentido de não ter
chegado ainda ao nível consciente, que ele realiza para atingir algum ob-
jetivo de leitura”, são automatizadas e incluem processos no nível de deco-
dificação como: relação entre grafema e fonema, realização de inferências
textuais, domínio de regras gramaticais, conhecimento de vocabulário etc.
Logo, as estratégias metacognitivas “seriam aquelas operações (não regras),
realizadas com algum objetivo em mente, sobre as quais temos controle
consciente, no sentido de sermos capazes de dizer e explicar a nossa ação.”
(Kleiman, 2013, p. 74). Isto é, são ações desautomatizadas sob o texto, em
que o leitor pode ir e vir quando desejar.
Muitas são as estratégias metacognitivas, e Souza (2012, p. 76) se preo-
cupa em apresentar algumas, tais como:
[...] a marcação, manifestada por meio de sublinhado, colchetes, pa-
rênteses, traçados à margem ou destaca texto, [...] o autoquestiona-
mento, estratégia não muito popular, que implica a formulação de
perguntas durante a atividade de leitura e a tentativa de respondê-las
retextualizando aquilo sobre o que discorre o texto. [...] A constru-
ção textual de uma síntese ou resumo [...]. Ambas, por meio da iden-
tificação do esqueleto textual, permitem que se produzam tópicos
organizados ou desenhos do texto.
Dessa maneira, Kato (1999) afirma que as estratégias leitoras podem
facilitar a compreensão de determinado texto ao leitor, conforme a quan-
tidade de estratégias utilizada para compreender o texto. Kleiman (2013)
também observa isso ratificando que o leitor proficiente possui uma es-
tratégia natural de automonitoração da compreensão, isto é, ele tem um
objetivo quanto a sua leitura, ancorado no autor, no ano, no gênero ou em
algum outro aspecto do texto, e, ainda, compreende o que lê, visto que,
quando não obtém compreensão, ele retoma a leitura do texto.
Todavia, para compreender um texto, muitos são os processos que o
leitor precisa automatizar e desautomatizar concomitantemente, para en-
tão alcançar o que é chamado de proficiência em leitura.

303
Alguns aspectos cognitivos: inferências, memórias
e consciência fonológica

Como já dito, muitos são os processos que envolvem o ato de ler. Nesta
seção, explanar-se-ão alguns desses processos que parecem, inicialmente,
relevantes para a compreensão de que ler é uma atividade cognitiva proces-
sual e intensa.
Primeiramente, faz-se necessário entender como é a estrutura de um
texto, pois o texto escrito é o objeto do leitor. Segundo Kintsch e Rawson
(2013), todo texto possui uma microestrutura e uma macroestrutura. A
microestrutura refere-se ao significado das palavras dentro do texto, en-
quanto a macroestrutura representa a estrutura global do texto. As duas
formam a base textual, que é o sentido do texto.
Nesse caso,
[o] conteúdo textual deve ser usado para construir um modelo situ-
acional; ou seja, um modelo mental da situação descrita pelo texto.
Geralmente, isso exige a integração de informações fornecidas pelo
texto com o conhecimento prévio relevante e os objetivos do indiví-
duo que compreende (Kintsch; Rawson, 2013, p. 229).
Diante dessa informação, pode-se analisar alguns processos relaciona-
dos à construção de significado do texto, isto é, à formação da base textual,
inerentes aos processamentos da leitura.
Segundo os autores supracitados, para a formação da base textual, é
necessário que o leitor faça inferências textuais, que nada mais são que o
preenchimento das lacunas no texto, em que o leitor terá que fazer uma
conclusão lógica de uma ideia que não foi deixada explícita pelo autor.
As inferências podem ser automáticas ou controladas. As automáticas
“são feitas de forma rápida e fácil [...]”, enquanto os processos controlados
“podem demandar muitos recursos, como será o caso de um texto que exija
raciocínio silogístico” (Kintsch; Rawson, 2013, p. 237).
De acordo com Kleiman (2013), a adivinhação, como também é cha-
mada a habilidade de fazer inferências, pauta-se no ato de buscar pistas
dentro do contexto linguístico do texto para descobrir ou chegar perto do

304
significado da palavra ou sentença desconhecida. Quando o leitor iniciante
faz isso, ele evita o maior problema com que se depara “quando a propor-
ção de palavras desconhecidas interfere e impossibilita a leitura fluente,
que deve ir de ideia em ideia com base nos conhecimentos que a palavra
mobiliza” (Kleiman, 2013, p. 110).
Outro elemento importante para a formação da base textual e, con-
sequentemente, para a compreensão de um texto é o papel das memórias,
desde a memória sensorial, aquela que capta a materialidade textual, pas-
sando pela memória de curto prazo, também conhecida como memória de
trabalho, segundo Baddeley (2011), até a memória de longo prazo.
O componente de longa duração
[...] contém todos os itens da memória de longa duração do leitor
que estão relacionados com os conteúdos atuais da memória de cur-
ta duração [...] por meio das estruturas de recuperação. Deste modo,
as estruturas de recuperação disponibilizam informações armazena-
das na memória de longa duração que sejam diretamente relevantes
para a tarefa em questão, sem necessidade de processo de recupera-
ção que demandem muito tempo e recursos (Kintsch; Rawson, 2013,
p. 242).
Dessa forma, a memória de longa duração é fundamental para com-
preendermos um texto a respeito do qual temos demasiado conhecimen-
to prévio, visto que as estruturas de recuperação, para Kintsch e Rawson
(2013), são ativadas quando possuímos domínio e conhecimento sobre o
tema que lemos.
Smith (2011) abrange em sua obra, ‘Compreendendo a leitura’, um as-
pecto da memória denominado armazenamento sensorial. Ele representa
esse processo como o primeiro aspecto considerável no momento da lei-
tura, em que o indivíduo recebe a informação visual por meio de fixações
(movimentos de sacada), “processo em que os olhos se fixam num lugar do
texto, para depois pular num trecho (a sacada), e fixar-se num ponto mais
adiante” (Kleiman, 2013, p. 48). Então, essa informação é levada ao cérebro
para ser processada e produzir algum sentido, visto que tudo isso ocorre
muito rapidamente. Sendo assim,

305
[...] o que faz diferença na leitura é a efetividade do cérebro para uti-
lizar o que já sabe (a informação não visual) para extrair sentido da
informação recebida (informação visual) mantida por curto espaço
de tempo no armazenamento sensorial (Smith, 2011, p. 114).
Posto isto, os leitores proficientes lidam mais facilmente com a memó-
ria sensorial, recuperando, sempre que necessário, informações importan-
tes para a compreensão do texto. Já os leitores iniciantes não possuem essa
habilidade tão acentuada, pela falta de experiência em decodificação e pelo
defasado conhecimento sobre os significados das palavras e do assunto.
Decorrente, portanto, do exposto, o papel das inferências e do modo
como elas operam a partir das memórias têm impactos substanciais na
aquisição da leitura, em especial quanto ao domínio dos conhecimentos
básicos adquiridos durante o processo da alfabetização. Vamos discorrer
aqui sobre a consciência fonológica, uma das habilidades desenvolvidas
quando se aprende a ler e escrever.
Conforme Scliar-Cabral (2013, p. 101),
[...] a consciência metalinguística e a consciência fonológica na qual
ela se insere decorrem de o ser humano poder se debruçar sobre um
objeto, no caso, a linguagem, de forma consciente, utilizando a lin-
guagem [...]. No caso particular da consciência fonológica, o objeto
sobre o qual você se debruça conscientemente são os fonemas, e a
linguagem utilizada é o alfabeto.
A autora coloca que, sem esse domínio, não é possível obter fluência
em leitura a fim de compreender um texto.
Conforme Bowey (2013, p.179), “a memória fonológica pode permitir
que as crianças aprendam a associar letras aos seus nomes e sons”. Portanto,
a habilidade bem desenvolvida da percepção auditiva das palavras, tam-
bém influencia na compreensão de textos.
Viana (2002) aborda sobre a massificação do termo consciência fono-
lógica, pautando que, quando se fala sobre esse conceito, estudam-se di-
ferentes “níveis de conhecimento” (Viana, 2002, p. 44). A consciência fo-
nológica “seria reservada para designar a capacidade de prestar atenção
consciente aos sons das palavras, como entidades abstratas e manipuláveis”

306
(Viana, 2002 apud Adans, 1994, p. 45). O termo adequado para designar
os “comportamentos que revelam a discriminação precoce de sons, evi-
denciada desde muito cedo na produção linguística das crianças, mas que
ocorrem de forma intuitiva, não consciente” (Viana, 2002, p. 44), seria o
conceito de epifonologia, que poderá ser discutido em outra pesquisa.
Segundo Piper (2015, p. 27),
[c]ompreender que a fala possui uma estrutura fonêmica subjacen-
te é de extrema importância para a aprendizagem da leitura porque
possibilita a conversão da ortografia em fonemas, permitindo que a
criança leia palavras novas, embora a leitura das palavras irregulares
ainda seja realizada com muitos erros. Isto permite a autoaprendiza-
gem pelo leitor, pois ao se deparar com uma palavra nova, ele a lerá
por decodificação fonológica.
Portanto, o desenvolvimento da consciência fonológica está estrita-
mente relacionado ao desenvolvimento da habilidade leitora, de modo
que quanto mais a criança consegue diferenciar e operar os sons da língua,
maior facilidade terá em compreender um texto.

Metodologia, apresentação e análise de dados

Nas próximas subseções, serão apresentadas a análise de dados, e con-


seguinte metodologia utilizada, relacionada à observação das aulas minis-
tradas e roda de conversa. A investigação mostra a interação estabelecida
entre os alunos e o objeto de estudo, a saber, o texto escrito, sendo analisa-
dos, nesse processo de ensino-aprendizagem, os avanços e/ou lacunas no
ato de ler que contribuem ou não para a formação do sujeito leitor eman-
cipado.

Metodologia: percurso desta pesquisa

Para fazer uma pesquisa, é necessário, em primeiro lugar, que o pes-


quisador tenha algum conhecimento sobre o tema que irá investigar.
Além disso, qualidades como curiosidade, criatividade, confiança e ati-

307
tude são fundamentais na obtenção de êxito na exploração. Dessa forma,
para Gil (1991, p. 19), a pesquisa é “um procedimento racional e sistemá-
tico que tem como objetivo proporcionar respostas aos problemas que
são propostos”.
O presente estudo buscou analisar, a partir do processo de leitura ins-
talado com 25 alunos do 5º ano do ensino fundamental de uma escola mu-
nicipal de Criciúma, os avanços e/ou lacunas pertinentes à formação do
sujeito emancipado. Para atender aos objetivos deste trabalho, foi realizada
uma pesquisa de natureza exploratória, que, segundo Gil (1991), baseia-se
no contato direto com o campo, fazendo uso de levantamento bibliográfi-
co, entrevistas com sujeitos e proporcionando maior compreensão sobre o
assunto a partir da análise dos dados coletados.
A abordagem metodológica do problema é de cunho qualitativo, isto
é, “não se preocupa com representatividade numérica, mas, sim, com o
aprofundamento da compreensão de um grupo social, de uma organiza-
ção” (Gerhardt; Silveira, 2009, p. 31) e com as dinâmicas e relações sociais
de determinado meio.
A pesquisa aplicada, conforme Gerhardt e Silveira (2009, p.35), “ob-
jetiva gerar conhecimentos para aplicação prática, dirigidos à solução de
problemas específicos. Envolve verdades e interesses locais”. Nesse caso,
para atender aos objetivos aqui propostos, optou-se por uma espécie da
investigação de característica aplicada.
O procedimento desta pesquisa é a pesquisa campo, sendo que esta,
segundo Lakatos (2003, p. 187), tem seu objetivo “voltado para o estudo de
indivíduos, grupos, comunidades, instituições e outros campos, visando à
compreensão de vários aspectos da sociedade”. Logo, a população de estu-
do compreendeu alunos do 5º ano de uma instituição municipal localizada
em Criciúma/SC. A escolha da turma se deu em virtude de se esperar que
os alunos que se encontram nessa fase escolar já tenham passado pelo pro-
cesso inicial de alfabetização, dominando estratégias cognitivas essenciais
para prosseguir com uma leitura fluente.
A pesquisa se deu em quatro momentos. No primeiro, foi realizada a
observação da turma do 5º ano, com o intuito de criar vínculo com os alu-
nos. No segundo e terceiro momentos, foram ministradas aulas de leitura

308
com a turma, pautadas na concepção tradicional e interativa, respectiva-
mente. Por último, no quarto momento, todos os alunos participaram de
uma roda de conversa, inspirada na metodologia do Grupo Focal, que pro-
piciou ao pesquisador uma interação mais direta com o grupo, ajudando a
coletar dados sobre a aprendizagem dos participantes em ambas as aulas.
A essência do grupo focal consiste justamente na interação entre os
participantes e o pesquisador, que objetiva colher dados a partir da
discussão focada em tópicos específicos e diretivos (por isso é cha-
mado grupo focal) (Lervolino; Pelicioni, 2001, p. 116).
Os planejamentos das aulas serão explicitados à medida que formos
articulando acerca dos dados coletados na pesquisa de campo.

Formação de leitor: o que a análise dos dados aponta

Em face dos apontamentos sobre o ato de ler e o leitor, contemplados


neste trabalho, apresentar-se-ão, agora, a descrição dos dados coletados na
pesquisa de campo e a discussão dos resultados.
Quanto à preparação das aulas, o texto da primeira aula de leitura, que
chamaremos de aula tradicional, foi selecionado de acordo com uma expe-
riência vivenciada pela pesquisadora, enquanto professora em formação, no
Estágio Obrigatório de Jovens e Adultos, no qual teve a oportunidade de
assistir a uma aula em que a professora da turma trabalhava compreensão
textual. Na ocasião, a ação da professora foi a de transcrever o texto no qua-
dro e solicitar aos alunos que respondessem a algumas perguntas de inter-
pretação, não ocorrendo em nenhum momento uma mediação no processo
de leitura e compreensão dos alunos, que apresentavam dificuldades em
responder perguntas simples e que estavam explícitas no texto. No final da
atividade, a professora fez a correção das perguntas, porém, como os alunos
não as respondiam conforme sua expectativa, ela simplesmente transcreveu
as respostas no quadro, não oportunizando a interação e a reflexão.
Postos os termos do que se considera aula tradicional, elaborou-se o
tratamento didático a partir do texto utilizado – “O Sonho de Ícaro”, adap-
tação de Paulo Netho – com base no qual se solicitou aos alunos para lerem

309
silenciosamente e responderem algumas questões de interpretação. As per-
guntas restringiam o ato de pensar. Por exemplo, a questão “a” questionava
por que Dédalo construiu dois pares de asas, sendo que a resposta estava
explícita no segundo parágrafo do texto.

Figura 1: Atividade de leitura referente ao texto “O sonho de Ícaro”

Reprodução

Fonte: Disponível em http://atividadesparaprofessores.com.br/o-sonho-de-icaro-pa-


ra-5o-ano

Assim também acontecia nas demais perguntas: em b), “Que conselho


ele deu a seu filho?”, como a resposta era encontrada no 4º parágrafo do
texto, os alunos realmente apenas copiaram o trecho; o que também ocor-
re de modo explícito em (c) que, sem exigir esforço cognitivo consistente,
possuía o comando: “Copie o trecho do texto que comprova se Ícaro obe-
deceu ou não seu pai”; e em (d) “Qual o título da história?”

Figura 2: Atividade de leitura referente ao texto “O sonho de Ícaro”

Reprodução
Fonte: Disponível em http://atividadesparaprofessores.com.br/o-sonho-de-icaro-pa-
ra-5o-ano

Figura 3: Atividade de leitura referente ao texto “O sonho de Ícaro”

Reprodução

Fonte: Disponível em http://atividadesparaprofessores.com.br/o-sonho-de-icaro-pa-


ra-5o-ano

310
Figura 4: Atividade de leitura referente ao texto “O sonho de Ícaro”
Reprodução

Fonte: Fonte: Disponível em http://atividadesparaprofessores.com.br/o-sonho-de-i-


caro-para-5o-ano

Além disso, solicitou-se a leitura de trechos do texto em voz alta, com


a finalidade de enfatizar que ler bem e sem erros é uma das características
principais do bom leitor, aspecto esse acentuado na aula tradicional. Logo, as
perguntas foram corrigidas no quadro e, caso a resposta do aluno estivesse
diferente da professora, era considerado um erro que deveria ser corrigido.
Então, como sobrou algum tempo da aula, os alunos que iam terminando
podiam desenhar algo sobre o texto, sem objetivo específico, apenas para
passar o tempo e evitar as conversas paralelas, aspecto também específico da
aula tradicional. O processo de ensino-aprendizagem descrito anteriormen-
te, segundo Kleiman (2013), norteou-se em práticas insuficientes e que não
atendem às exigências do processo de compreensão textual.
Já o segundo texto, utilizado para aplicar o modelo de aula de leitura
com enfoque interacionista, foi selecionado conforme o livro Programa de
Intervenção “O ensino da Compreensão leitora. Da teoria à prática pedagó-
gica”, da autora Fernanda Viana. Nesse livro, há sugestões para se trabalhar
a compreensão textual e, inclusive, a autora já propõe algumas questões de
interpretação mediante cada texto exposto. Essa concepção do ensino da
leitura refere-se ao texto escrito propriamente dito e não a outros tipos de
leitura, conforme expõe Britto (2012), não se confundindo com leitura de
filmes e imagens. Sendo assim, o professor ensina o aluno a ler e interpre-
tar, dando a eles objetivos significativos para que compreendam o texto.
Além disso, estratégias de leitura são ensinadas, conhecimentos prévios são
explorados. Enfim, o conhecimento é mediado por uma série de ações que
visam a contribuir com a formação de um sujeito leitor emancipado.
Para o tratamento didático, foram selecionados quatro textos, entre os
quais, “Firmino, o amigo dos pássaros”1, do autor José Jorge Letria, foi o
1 Ver anexo, texto na íntegra.

311
escolhido para a prática de leitura em questão. A escolha se deu por se tratar
de um texto com linguagem mais acessível, com apenas algumas palavras no
idioma português de Portugal, mas que podiam ser entendidas pelo contex-
to. Os demais apresentavam vocabulários também no idioma de Portugal;
podendo apresentar dificuldades demasiadas à faixa etária, em função de o
vernáculo lusitano ser distinto do vernáculo brasileiro sob vários aspectos.
Tendo isto em vista, questionou-se aos alunos que assunto o título do texto
sugeria e forneceram-se pistas sobre ele com o intuito de ativar esquemas
mentais e conhecimentos prévios sobre o assunto, uma vez que a memória
de longa duração é fundamental para compreendermos um texto a respeito
do qual temos demasiado conhecimento prévio (Kintsch; Rawson, 2013).
O comando seguinte foi o de que lessem silenciosamente o texto, fa-
zendo uma leitura global, para ter uma ideia sobre o assunto, e uma leitura
pausada, sublinhando e escrevendo o que entenderam de cada parágrafo.
Nesse momento, foi mencionado que o objetivo da leitura era a compre-
ensão do texto na íntegra, pois seriam respondidas algumas questões pos-
teriormente. Segundo Viana (2002), quando queremos estudar um texto,
são recomendadas, no mínimo, duas leituras; daí estarem adotando essa
estratégia, que se difere bastante de leitura para informação, ou da leitura
para prazer (ler um romance, uma piada, uma receita). Feito isso, leu-se o
texto no grande grupo, refletindo e fazendo comentários, por vezes infe-
renciais, sobre cada parágrafo. Conforme Souza (2012), a ação de mediar a
leitura do texto, ou seja, de ensinar os alunos a ler, tem relação direta com
a concepção de leitura que o professor adota e é fundamental no processo
de compreensão.
Após o processo descrito acima, disponibilizaram-se algumas questões
para que os alunos respondessem. A primeira atividade tratava da compre-
ensão inferencial, que, segundo Kleiman (2013), é uma estratégia pautada
no ato de buscar pistas dentro do texto para descobrir ou chegar perto do
significado da palavra ou sentença desconhecida, o que colabora no pro-
cesso de compreensão, pois as afirmações da atividade não se tratavam de
questões explícitas: o aluno precisava procurar informações dentro do tex-
to que o ajudassem a confirmar suas decisões, bem como utilizar seus co-
nhecimentos prévios sobre espantalhos a fim de obter êxito.

312
Figura 5: Atividade de leitura referente ao texto “Firmino, o amigo dos pássaros”

Reprodução
Fonte: Viana (2010, p. 111)

A segunda atividade se refere à habilidade de metacompreensão. Foi


pedido ao aluno que descrevesse como tinha certeza de ter respondido cor-
retamente à questão anterior, pois fazer essa reflexão evoca o pensamento
e requer habilidades metacognitivas, que, de acordo com Kleiman (2013),
relacionam-se ao ato do sujeito ser capaz de explicar sua decisão, mas lem-
brando que as correções aconteciam no coletivo, além do que a professora
(pesquisadora em questão) circulava mediando e interagindo com os alunos.

Figura 6: Atividade de leitura referente ao texto “Firmino, o amigo dos pássaros”

Reprodução

Fonte: Viana (2010, p. 112)

O exercício de número três reportava-se à reorganização das sentenças,


habilidade também de nível inferencial. De acordo com Kintsch e Rawson
(2013), o texto possui uma macroestrutura que se refere ao seu sentido glo-
bal. Para que o leitor consiga formar a base textual e obter compreensão,
é necessário entender a organização do texto, o que a atividade que se se-
gue possibilitou, uma vez que facilitou a identificação da mensagem central,
permitindo ao aluno sintetizar as informações e dar sentido à leitura.

313
Figura 7: Atividade de leitura referente ao texto “Firmino, o amigo dos pássaros”

Reprodução
Fonte: Viana (2010, p. 112)

Posteriormente, requisitou-se que fizessem um resumo de um trecho


do texto, mediante explicação prévia do que este gênero vem a ser e de
como elaborá-lo. Dessa forma foi possível proporcionar aos alunos a expe-
riência de produção escrita, evidenciando que se torna fácil escrever sobre
algo, quando há a compreensão do texto a partir de uma leitura estratégica.
O ato de ler, segundo Leffa (1996), é um processo complexo que implica a
análise e elaboração de estratégias que auxiliam na compreensão, e, quanto
mais o leitor adota uma leitura estratégica segundo seus objetivos, melho-
res serão os resultados obtidos.

Figura 8: Atividade de leitura referente ao texto “Firmino, o amigo dos pássaros”

Reprodução

Fonte: VIANA (2010, p. 112)

Os alunos desempenharam essa atividade com dificuldade, conforme


relatado mais adiante nas respostas coletadas na roda de conversa. Porém,

314
possibilitou-se a mobilização de estratégias de leitura, fazendo-os utilizar
habilidades cognitivas e metacognitivas com o propósito de pensar sobre
o texto e explicar suas deduções, realizando a ação de extrair o sentido de
cada parágrafo, registrando o que entendeu e sublinhando o que não obte-
ve compreensão, para então, elaborar o resumo.
No final, apresentou-se uma pergunta de compreensão crítica, em que
o aluno precisava expor sua opinião sobre se o espantalho deveria ou não
ter partido com os pássaros. Fazer essa reflexão permitiu a interação com
o texto, pois o leitor poderia, por meio da avaliação que fez durante todo
o processo de leitura, discordar ou não do autor e de como este deu fecha-
mento a sua história. Desse modo, foi propiciado aos sujeitos, mais uma
vez, tornarem-se leitores emancipados, que conseguem ir e vir no texto,
fazendo cumprir seu objetivo e se tornando mais críticos e pensantes.

Figura 9: Atividade de leitura referente ao texto “Firmino, o amigo dos pássaros”

Reprodução
Fonte: Viana (2010, p. 113)

Essa tarefa atingiu seu objetivo, pois os 25 alunos conseguiram emitir


juízo de valor sobre o desfecho da história, explicando o porquê de sua
opinião. A título de exemplo, registrou-se a atividade acima quando tive-
ram a oportunidade de emitir sua opinião sobre Firmino, o personagem
principal da história, ter partido com os pássaros. Formularam respostas
como: “Sim, porque ele estava triste na seara e era o sonho dele”, “Sim,
porque é o sonho dele” e “Sim, porque ele queria que os pássaros fossem
amigos dele”.
Em concordância com o exposto, a análise de dados foi realizada com
base no andamento e na observação das aulas ministradas e na roda de
conversa instituída, dado que esta última consistiu numa avaliação que os
alunos fizeram referente às duas aulas que vivenciaram, sendo que no per-

315
curso da conversa, foram feitas a eles algumas perguntas semiestruturadas.
Mediante esses instrumentos de pesquisa, obteve-se um olhar criterioso
para os avanços ou lacunas no ato de ler pertinentes à formação do sujeito
emancipado, sobretudo leitor.
Conforme referencial teórico, pôde-se compreender como a aborda-
gem interacionista propõe o trabalho da leitura, que consiste na
[...] ação interpretante em função da atividade intelectual organizada;
em outras palavras, todo e qualquer gesto interpretante de fatos do
mundo seria um gesto leitor – uma definição, sem dúvida, possível,
mas certamente desinteressante para compreender leitura, uma vez
que se perderia exatamente a especificidade da atividade intelectual
mediada pela escrita (Britto, 2012, p. 23).
Partindo desse pressuposto, na realização da roda de conversa, os alu-
nos foram questionados sobre como descreveriam um bom leitor, dado que
alguns mencionaram que seria uma pessoa que “usa a cabeça, é inteligente,
tem ideias”, indo ao encontro do que Leffa (1996) destaca, a saber, que o
ato de ler é processual e requer esforço intelectual. Já outros responderam
que seria uma pessoa que “não fica gaguejando na hora que lê, lê alto e lê
bem”, o que conota uma visão, mesmo que não intencional, reducionista da
leitura, ancorada numa perspectiva tradicional de ensino, que coloca em
evidência a visão nacional da “Arte do bem falar”.
Similarmente, questionou-se sobre o que faz com que uma pessoa gos-
te de ler e que tipo de pessoa lê mais. Algumas respostas como: “gostar de
estudar e aprender e gostar de ler” definiram o que indica Britto (2012),
quando cita que a leitura escolar tem relação direta com a leitura do texto,
não se limitando apenas ao saber fazer ou ler por mero gosto, mas sim com
capacidades intelectuais do sujeito, uma vez que as afirmativas expostas
acima estão diretamente relacionadas à leitura realizada na escola e com
objetivos escolares.
Questionados sobre por que as pessoas leem ou por que as pessoas
leem na escola, de 25 alunos, 14 responderam que as pessoas leem para
passar na prova, sustentando a reflexão de Kleiman (2013), segundo a qual
o ensino de leitura tem pouca significação e contextualização dentro das

316
escolas, suscitando essa atitude: ler apenas para passar de ano. Quanto ao
restante da turma, 9 responderam que as pessoas leem para entender um
assunto, e 1 respondeu que as pessoas leem para poder aprender, o que
são respostas mais plausíveis, mostrando que esses alunos possivelmente
entendem a necessidade da leitura.
Tendo em vista a aula de leitura ministrada com enfoque tradicional,
que chamaremos de aula I e a interacionista, que chamaremos de aula II,
constatou-se que na aula I os alunos leram o texto rapidamente, não tive-
ram muitas dúvidas, realizaram a atividade em silêncio e com facilidade,
correspondendo ao que se pressupôs em relação a uma aula tradicional,
tendo em vista que nas respostas coletadas na roda de conversa, os 25 alu-
nos responderam achar fácil a atividade solicitada na aula I.
Logo, no momento da correção das perguntas de interpretação, eles
acertaram a maioria das repostas. Ressalta-se que, dentro do contexto da
aula tradicional, conforme aponta Kleiman (2013), a aula foi dirigida con-
cebendo a leitura como extração de significados, isto é, os alunos ficaram
passivos perante o texto, fazendo uma leitura mecânica e rápida, uma vez
que não foram orientados a pensar e refletir sobre o texto, em função de
que as respostas às perguntas estavam na superfície, não oferecendo ne-
nhum desafio ao leitor. Além disso, o momento da correção das atividades
aconteceu de forma autoritária, já que apenas as respostas mencionadas
pela pesquisadora é que estavam corretas e isto, segundo a mesma autora,
inibe o leitor a compreender o texto. Portanto, a aplicação da aula de leitu-
ra I reduziu-se, a partir do que ponderamos com Kleiman (2013), a uma
aprendizagem desconexa do processo de ensino-aprendizagem, uma vez
que não se levou em consideração os conhecimentos prévios dos alunos e
sua participação no processo de compreensão textual.
Por intermédio da aplicação da aula II e da roda de conversa efetuada,
verificou-se o papel das estratégias cognitivas e metacognitivas durante a
compreensão da leitura. Nesse ínterim, os alunos foram orientados a ler
duas vezes o texto, uma leitura geral e outra detalhada, utilizando algumas
estratégias como sublinhar e escrever o que entenderam ou não, sobre cada
parágrafo do texto. Essa ação, segundo Kleiman (2013), refere-se à utili-
zação de estratégias metacognitivas, que tratam, como já grafado, de ter

317
consciência da própria consciência. Congruente, foi possível constatar por
meio da observação da pesquisadora e andamento das aulas, algumas difi-
culdades encontradas pelos alunos do 5º ano durante a leitura de um texto.
Por conseguinte, apesar da explicação prévia e mediação constante,
observou-se que os alunos possuíam dificuldades em entender como se
dá a elaboração de um resumo, como se executa o registro do que é sig-
nificativo no texto e o que não se compreendeu a partir da leitura, porque
quando não entendiam alguma frase ou palavra, muitos deles não tinham
consciência disso, prosseguindo a leitura mesmo sem obter a compreensão.
Sobre isso, Kleiman (2013) observa que o leitor proficiente possui uma es-
tratégia natural de automonitoração da compreensão e, quando não obtém
compreensão, ele retoma a leitura do texto, o que não aconteceu com esses
alunos, constatando a falta de proficiência em leitura.
Concernente à pergunta relativa a já terem feito um resumo e gostarem
de fazê-lo, todos os alunos responderam que já o haviam feito, mas que
gostavam mais ou menos ou não gostavam da elaborá-los, talvez, justa-
mente por essa prática ainda não ter sido efetivada no cotidiano das aulas,
requerendo dos sujeitos mais envolvimento e autonomia na produção. Em-
bora os alunos atestassem já terem executado essa estratégia de compreen-
são textual, percebeu-se por meio da observação da pesquisadora duran-
te a aplicação da aula II, que o exercício não é frequente, pois que, como
mencionado anteriormente, houve muita dificuldade em sua realização.
Essas respostas corroboram com a indicação de Kleiman (2013), ao dizer
que as estratégias cognitivas e metacognitivas precisam ser automatizadas
e desautomatizadas ao mesmo tempo, apesar de que, neste caso, há a ne-
cessidade da automatização da elaboração de resumos por meio da prática
progressiva.
Alguns alunos comentaram que era difícil realizar o que era pedido,
pois tinham que pensar muito, outros perguntaram se eu não poderia ape-
nas mandar sublinhar as palavras que não entenderam ou que os ajudas-
sem, dizendo a eles exatamente o que era para anotar em cada parágrafo do
texto. Como vimos anteriormente, Kleiman (2013) pontua que ler é uma
atividade intelectual que demanda esforço, objetivo e determinação; desse
jeito, mediante a experiência da aula II, observou-se a pouca habilidade e

318
frequência desse tipo de tarefa. Faz-se necessário ressaltar aqui que, de vin-
te e cinco alunos, aproximadamente, seis alunos, entenderam a atividade e
fizeram resumos apropriados.
Em relação à pergunta voltada para a estratégia de sublinhar o texto,
ou seja, se esta havia facilitado na sua compreensão, as respostas confirma-
ram a premissa de Kato (1999), de que as estratégias leitoras podem sim
facilitar a compreensão de determinado texto ao leitor, já que quase todos
os alunos, com exceção de um que mencionou não ter feito diferença, res-
ponderam que sim, que a estratégia de sublinhar o texto havia facilitado
para responder as perguntas.
Outra questão da roda de conversa se referia sobre qual fora a aula
mais significativa, a I ou II, e em qual delas achavam que haviam aprendido
mais. A resposta prevalente foi que aprenderam mais na aula II, eviden-
ciando a produção de sentido por parte dos alunos. Dessa maneira, por
meio da ministração da aula II, foi proporcionado aos alunos que interagis-
sem com o texto, contribuindo para o início de um processo emancipatório
do sujeito, concordando sobre o aspecto interacionista da leitura sobre o
qual observa Leffa (1996), quando afirma que ler é pensar, é uma questão
de construir sentidos, que se dá na medida em que o leitor ativa suas me-
mórias, respectivos esquemas mentais e conhecimentos prévios, e interage
com o texto. Logo, não existe leitor sem texto e texto sem leitor.
Questionou-se, também, se sentiram dificuldade em entender o tex-
to e responder as perguntas de interpretação da aula II. De vinte e cinco
alunos, dez responderam que o grau de dificuldade foi mais ou menos e
apenas quatro responderam sentir realmente dificuldade. Todavia, no per-
curso dessa aula, apesar dos alunos atestarem que acharam a aula II mais
ou menos difícil, percebeu-se por meio da realização das atividades, a falta
da prática em leitura por parte da grande maioria do grupo, o que gerou a
dificuldade em compreender o texto, uma vez que se prolongaram três dias
para a conclusão da execução dessa aula. Dessa forma, atesta-se o que sa-
lienta Smith (2011) acerca de que o ato de ler é processual. O sujeito não se
torna proficiente em leitura de um dia para o outro, pois despende esforço
cognitivo, portanto, verifica-se que é possível que a leitura, quando mediada
e ensinada, contribua positivamente para a formação do leitor emancipado.

319
Conclusão

Fundamentando-se nas análises apresentadas na seção precedente e


refletindo sobre o que os autores mencionados apontam sobre a comple-
xidade do ato de ler e estabelecer sentido ao texto, entendeu-se que o co-
nhecimento sobre os processos cognitivos, quando se lê, é uma questão im-
portante para a compreensão textual. Por isso, é necessário pesquisar sobre
esse aspecto da leitura nas escolas, pois saber como é o desenvolvimento
cognitivo no que tange ao processamento da leitura se faz relevante para
poder analisar quais as lacunas e os avanços existentes ou não na compre-
ensão leitora de alunos de 5º ano.
A partir das aulas, tradicional e interativa, respectivamente, que foram
ministradas com os alunos do 5º ano de uma escola Municipal e da roda de
conversa estabelecida, foi possível detectar que a aula de leitura tradicional,
ministrada de forma descontextualizada, fragmentada, concebendo o leitor
como mero receptor de informações e, portanto, sem significação para o
aluno, não contribuiu para a formação do sujeito pensante, ou melhor, do
leitor autônomo, que controla suas ações e sabe explicá-las. Além disso, evi-
denciou-se que sem a mediação e intervenção do professor, como ocorreu
nessa aula, não houve o ensino da leitura propriamente dito e, consequen-
temente, não se efetivou o processo de construção do leitor proficiente.
Já na aula interativa, foi possível verificar que a mediação e intervenção
da pesquisadora, por meio do estabelecimento de objetivos, ensino da uti-
lização de estratégias de leitura como sublinhar o texto, fazer um resumo,
fazer anotações sobre o texto, realizar atividades inferenciais, iniciou um
processo de emancipação do sujeito enquanto leitor, tendo em vista que
essa aula foi ministrada entendendo a leitura como um processo complexo
e concebendo o leitor como sujeito ativo e participativo na construção do
significado do texto, isto é, priorizando a interação entre leitor e texto e
contribuindo para a formação do processo de triangulação, tendo como
produto final a compreensão.
Igualmente, foi possível constatar que os alunos do 5º ano possuem di-
ficuldades em compreender um texto mais extenso e com vocabulário com
maior grau de dificuldade, em razão de não saberem utilizar estratégias

320
de leitura, como retomar a leitura quando necessário e por apresentarem
dificuldades em explicar o que compreenderam por meio da escrita. Con-
tudo, verificou-se, por meio das falas dos alunos, que as estratégias leitoras,
como sublinhar e anotar o que entendeu do texto, facilitam esse processo
de compreensão.
Portanto, constata-se que se o professor ensinar o aluno a ler, dentro de
uma perspectiva interacionista, estará contribuindo gradativamente com a
formação do leitor emancipado, que sabe ir e vir no texto quando precisa,
a fim de compreendê-lo. De forma que, cada vez mais, esse aluno conse-
guirá fazer leitura de textos mais complexos. Congruente às informações
explanadas, espera-se alcançar as intenções propostas neste trabalho, con-
tribuindo para uma Educação mais qualitativa no que tange à formação
de sujeitos para que possam usufruir da leitura para sua emancipação e
autonomia.
Espera-se que este texto possa promover mais estudos, em particular,
no curso de Pedagogia, que fomentam os processos cognitivos e psicoló-
gicos da leitura, sendo uma referência de pesquisa e um ascendente para a
prática interacionista da leitura nas salas de aula, colaborando, assim, para
o cumprimento da função social da escola de formar cidadãos emancipa-
dos, em especial, que façam uso da leitura para atuar na sociedade de forma
crítica e reflexiva.

Referências

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321
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Programa de Intervenção para o 1º Ciclo do Ensino Básico. Coimbra: Almedina S.A.,
2010.

322
Anexo A- Texto aula tradicional

O sonho de Ícaro

Contam os que sabem que Dédalo foi um homem muito sábio na Grécia. Ele era
o pai de Ícaro.
Quando eles estavam presos no labirinto do Minotauro, teve a ideia de construir
dois pares de asas para ele e o filho fugirem dali.
Dédalo construiu-as com as penas dos pássaros, depois as colou com cera. Antes
de levantar voo, disse ao filho:
— Não voe muito alto, perto do sol a cera derrete. Nem voe muito baixo, perto do
mar a umidade deixa as penas pesadas e você pode cair.
Mas a sensação de voar foi tão estonteante para Ícaro que ele esqueceu a reco-
mendação e elevou-se tanto nos ares a ponto do pior acontecer.
A cera derreteu. Ícaro perdeu as asas, caiu ao redor do mar de Creta e morreu
afogado.
(Adaptação de Paulo Netho)

Anexo B – Texto aula interativa

Firmino, o amigo dos pássaros

— Porque não gostam os pássaros de mim, se os pássaros são a coisa de que


mais gosto na vida? – lamentava-se, choroso, o espantalho Firmino, vendo bandos de
pardais, tentilhões e pintassilgos a voar muito distantes, a caminho de terras quentes.
Tinham-no colocado no meio de uma grande seara para afugentar a passarada.
Estava ali de pé firme, com um ar muito triste, roupas esfarrapadas e lágrimas secas ao
canto dos olhos pequeninos.
Quando chegava a Primavera e os pássaros chegavam de muito longe, com as
suas penas coloridas e chilreios alegres, tentava acenar-lhe com as mãos de pano, mas
não conseguia fazer sequer um movimento porque estava preso a grossas estacas de
madeira.
Por mais que tentasse, por maiores que fossem os seus esforços, não conseguia
deixar de assustar os pássaros. Gostava de ser amigo deles, de ajudá-los, de abrigá-los,
cansados da longa viagem, debaixo dos seus grandes braços de pano, madeira e arame.
O dono das terras queria-o ali, carrancudo e ameaçador, para evitar que os pás-
saros estragassem as plantações e as culturas. Mas Firmino, embora compreendesse o
que se esperava dele, não conseguia estar de acordo. Não podiam fazer dele um espan-
talho mau à força. Ele gostava de flores, de rios de água azul, do riso das crianças, de
estrelas, de fios de luar e palavras doces.
Ano após ano chegavam bandos de pássaros de muito longe, mas com nenhum
conseguiu fazer amizade. Mal o viam lá de cima mudavam de rota.

323
Firmino ainda tentou se embelezar. Encheu de lindas papoilas vermelhas o gran-
de chapéu preto, sujo e esburacado. Mas nem assim conseguiu melhores resultados.
Que podia ele fazer numa situação daquelas? Fugir? Deixar de ser espantalho?
Explicar aos pássaros que não queria e nem podia fazer-lhes mal? Foram ideias que
teve, mas nenhuma podia tornar-se realidade, porque cada vez se sentia mais enterra-
do no chão mole da seara, incapaz de se mexer, de fazer um gesto sequer.
Ia já adiantada a Primavera, quando viu desenhar-se no grande céu azul um ban-
do de pássaros coloridos. Foi então que tudo se tornou cinzento e frio e Abril, de
súbito, outubro se transformou num Dezembro de tempestade. Era a primeira vez que
via uma coisa assim.
Empurrados pela forte ventania, os pássaros afastaram-se da rota e foram cada
um para seu lado, muitos aflitos. Alguns caíram exaustos no meio da seara.
Só lhes restava um caminho e foi esse precisamente que escolheram: num esforço
final, juntaram-se todos e pousaram no chapéu e nos braços de Firmino que, feliz, os
protegeu para evitar que fossem arrastados pela tempestade. Enfiou uns debaixo do
casaco, outros embaixo do chapéu, outros ainda dentro das mangas largas e cheias de
palha macia.
Quando o temporal amainou, os pássaros agradeceram-lhe e prepararam-se para
seguir de novo a sua rota. A rota tranquila da Primavera.
— Levem-me convosco. Porque gosto muito de pássaros e estou farto de ser es-
pantalho. Pediu Firmino, cheio de timidez. Ainda não tinha acabado de falar e já os
pássaros o elevavam no ar, a grande altura. Tão alto que nunca mais ninguém o viu.
E agora, sempre que chega o mês de abril e as árvores se cobrem de folhas muito
verdes e os campos de erva fresca e macia. Firmino voa alegre sobre as searas, suspen-
so nos bicos dos seus maiores amigos.

324
16
“Ursinho Pooh 1, 2, 3”:
uma contribuição fílmica para
a alfabetização matemática na infância

Rosangela Silveira da Rosa


Mauro José da Rosa

Introdução

A fase de alfabetização infantil se desenvolve tanto dentro quanto fora


da escola, tendo em vista que a criança convive diariamente com situações
que exigem conhecimento da leitura e da escrita para entender significa-
dos. Pode-se citar aqui o uso de jogos e mídias eletrônicas, a observação
de rótulos de produtos alimentícios, o manuseio de gibis, a visualização
de imagens e outdoors, documentos, filmes cinematográficos, entre outros.
Aproveitar o conhecimento que a criança já possui para fazer associa-
ções com a base curricular é extremamente necessário para que a criança
possa entender o sentido do tema a ser aprendido na escola.
Nessa perspectiva, os filmes cinematográficos fazem parte do cotidia-
no das crianças; encantam o público infantil, auxiliam no desenvolvimen-
to das habilidades e dos sentidos e fazem com que a criança potencialize
seu senso crítico. Por meio de cenas fílmicas, a criança passa a vivenciar
a história do personagem, incitando alegria, tristeza, orgulho, raiva, entre
outros sentimentos e tirando suas próprias conclusões acerca dos aconte-
cimentos fílmicos.
Ademais, a criança, na fase de alfabetização, necessita de estímulos
para ampliar o seu universo lúdico e, quanto mais diversificadas, coloridas
e inovadoras forem as práticas educativas, melhor será o desempenho dos
325
aprendizes que precisam desenvolver habilidades como atenção, memori-
zação, criatividade, imaginação, entre outras (Pena; Neves, 2014).
O uso de filmes nas práticas educativas foi recomendado por vários
educadores, dentre os quais podemos citar: Napolitano (2004), Gomes et
al. (2012), Fresquet (2013), Souto (2013), Viana (2013), Teixeira e Lopes
(2014), entre outros.
Além disso, o cinema foi considerado um recurso de grande potencial
didático desde as décadas de 1920 e 1930, período em que o cinema já era
explorado para fins educativos.
De acordo com Morettin (1995),
[o] cinema educativo, entendido como um importante auxiliar do pro-
fessor no ensino e um poderoso instrumento de atuação sobre o social,
foi debatido e defendido por muitos pedagogos e intelectuais paulistas
e cariocas nos anos 20 e 30, como Manuel Bergstron Lourenço Filho,
Fernando de Azevedo, Edgar Roquete Pinto e Jhonatas Serrano, en-
tre outros, que também estavam preocupados com a introdução dos
princípios da chamada Escola Nova nos currículos (Morettin, 1995,
p. 13).
Nesse contexto, este trabalho objetiva ressaltar a importância do lúdico
na alfabetização matemática tal como uso de filmes e, a partir da análise
desse recurso, discutir cenas do filme “Ursinho Pooh 1, 2, 3” que possam
contribuir com a aquisição de saberes matemáticos, necessários para a al-
fabetização infantil.

Alfabetização Matemática

Aprender Matemática é um processo essencial, tanto para a aquisição e


desenvolvimento de capacidades cognitivas, quanto para as múltiplas apli-
cações no cotidiano das interações sociais. Tal prática requer sua introdu-
ção já nos primeiros ciclos da alfabetização, juntamente com a alfabetiza-
ção da língua materna.
Nesse sentido, os Parâmetros Curriculares Nacionais estabelecem que
é necessário que a criança aprenda Matemática e compreenda os seus sig-

326
nificados desde a fase inicial de alfabetização, pois assim será capaz de in-
terpretar
[...] as informações veiculadas, especialmente pelos meios de comu-
nicação, para tomar decisões e fazer previsões que terão influência
não apenas na vida pessoal, como na de toda a comunidade. Estar
alfabetizado, neste final de século, supõe saber ler e interpretar da-
dos apresentados de maneira organizada e construir representações,
para formular e resolver problemas que impliquem o recolhimento
de dados e a análise de informações (Brasil, 2000, p. 84).
De acordo com Santos (2005), a linguagem matemática é uma estrutu-
ra simbólica formal construída de maneira intrínseca ao processo de cons-
trução do conhecimento matemático. Por meio dela, é possível converter
ideias matemáticas em objetos mais materializáveis e calculáveis, viabili-
zando generalizações, estimativas e a realização de novos cálculos.
Realizar a decodificação dos signos e símbolos expressos pela lingua-
gem matemática implica atribuir e construir significados a esses símbolos.
Na “alfabetização matemática” a decodificação da linguagem expressa pelas
noções iniciais de lógica, aritmética e geometria pode ser considerado o
alfabeto matemático.
De acordo com Danyluk (1991),
[c]onsiderando que a palavra ‘alfabeto’ refere-se às primeiras noções
de qualquer ciência e que a Matemática é uma ciência que possui
primeiras noções, tais como as noções iniciais de lógica, as de arit-
mética e as de geometria, é possível afirmar que a escrita e a leitura
dessas primeiras ideias podem ser aprendidas e, desse modo, fazer
parte do contexto alfabetização (Danyluk, 1991, p. 44, Sic).
Sobre a alfabetização Matemática, Souza (2010), conceitua:
Define-se alfabetização matemática, como a ação inicial de ler e es-
crever matemática, ou seja, de compreender e interpretar seus con-
teúdos básicos, bem como, saber expressar-se através de sua lingua-
gem específica (Souza, 2010, p. 2).

327
A autora argumenta, também, que a criança alfabetizada matematica-
mente deve ser capaz de fazer a leitura, compreender o que leu e decifrar
os signos e símbolos explícitos pela linguagem Matemática. Esse conheci-
mento matemático inicia com a alfabetização da língua materna, pois se
sabe que toda criança é, por natureza, curiosa e questionadora; e é por meio
desse comportamento que ela constrói o seu conhecimento.
Nesse pensamento, é impossível separar completamente a Matemáti-
ca da língua materna, haja vista que “[...] se reconhecemos que alfabetizar
em Matemática implica em trabalhar com a compreensão, interpretação
de suas ideias básicas, bem como, com a expressão e comunicação dessas
ideias [...]” (Souza, 2010, p. 2, sic), entender Matemática implica entender
a língua materna.
Machado (1990) chama a atenção para o fato de que
[...] a Matemática faz parte dos currículos desde os primeiros anos
da escolaridade, ao lado da Língua Materna. Há um razoável con-
senso com relação ao fato de que ninguém pode prescindir comple-
tamente de Matemática e, sem ela, é como se a alfabetização não se
tivesse completado (Machado, 1990, p. 15).
Diante do exposto, aprender Matemática de forma lúdica, utilizando-
-se do filme “Ursinho Pooh 1, 2, 3” como recurso didático na alfabetização
infantil, além de contribuir no sentido de construir e compreender o uso
dos signos, favorece a criatividade, a concentração, o espírito crítico e pro-
picia uma maior motivação para o processo de iniciação matemática.

O Lúdico na Matemática

O vocábulo da palavra “lúdico” tem sua definição bastante impreci-


sa, uma vez que, devido às múltiplas atividades que denota, apresenta na
língua portuguesa um grande número de sinônimos. Como exemplo des-
sa inconsistência semântica, podemos citar: divertido, recreativo, alegre,
brincante, entretenido, jocoso, brincalhão, entre outros.
O Dicionário Michaelis da Língua Portuguesa fornece o seguinte sig-
nificado para esse termo: “Que se refere a jogos e brinquedos e aos jogos

328
públicos dos antigos” (Michaelis, 2009, p. 542). No minidicionário contem-
porâneo de Aulete, novamente encontramos: “Referente a jogo ou brinque-
do” (Aulete, 2011, p. 550).
Contudo, uma postura lúdica na educação não significa, impreterivel-
mente, ensinar com o uso de jogos, mas sim com ações que utilizem os
atributos do lúdico. Nesse ínterim, Pinto e Tavares (2010) esclarecem:
Uma postura lúdica não é necessariamente aquela que ensina con-
teúdos com jogos, mas na qual estejam presentes as características
do lúdico, ou seja, no modo de ensinar do professor, na seleção de
conteúdos e no papel do aluno. O professor reconhece a importân-
cia da ludicidade e tem uma postura ativa nas situações de ensino.
O aluno, nessa situação, aparece como sujeito da aprendizagem, em
que a espontaneidade e a criatividade são constantemente estimula-
das (Pinto; Tavares, 2010, p. 232).
Conforme os autores, por meio do lúdico, é possível dar condições à
criança para externar suas energias, liberar suas fantasias e aprender a su-
perar dificuldades por meio de uma fonte de prazer que pode vir tanto do
ato de brincar ou jogar como também de outras atividades que possam
contribuir para o desenvolvimento da linguagem, da concentração e do ra-
ciocínio.
Num esforço para conceituar o termo, Santin (2001) o define assim:
[...] a ludicidade é fantasia, imaginação e sonhos que se constroem
como um labirinto de teias urdidas com materiais simbólicos. A lu-
dicidade é uma tessitura simbólica fecundada, gestada e gerada pela
criatividade simbolizadora da imaginação de cada um (Santin, 2001,
p. 54).
Para a alfabetização Matemática, a exploração do lúdico como estraté-
gia de ensino é extremamente relevante, como nos informa Araújo (2000):
Ao usar o lúdico como estratégia de ensino contribui-se efetivamente
para o desenvolvimento do pensamento analítico-sintético do aluno,
bem como, sua participação ativa na aprendizagem, possibilitando
avançar na construção do conhecimento matemático e na consoli-

329
dação das habilidades assim que facilitem esta construção através do
respeito à liberdade de pensar, do incentivo à descoberta e do enco-
rajamento à criatividade (Araújo, 2000, p. 23).
As pesquisas de Pinto e Lima (2003) explicitam que, por meio de ati-
vidades lúdicas, a criança tem a possibilidade de vivenciar sentimentos que
compõem sua realidade interior, o que facilita o autoconhecimento e o pro-
cesso de aceitação dos outros nas relações sociais.
Ainda, Ferreira (2012) ressalta que “[...] quando o educador utiliza o
lúdico como ferramenta pedagógica educa-se para além da instrução por-
que proporciona-se nessa dimensão o questionamento, a crítica, a opinião
e a construção de associações” (Ferreira, 2012, p. 40).
Nesse sentido, a leitura do filme “Ursinho Pooh 1, 2, 3”, enriquece o
universo lúdico da criança, uma vez que, ao assistir ao filme, a criança pas-
sa a viver a história do personagem, desenvolvendo a imaginação, a criati-
vidade, a percepção, entre outras habilidades. Além disso, o filme traz em
seu roteiro considerações importantes para a alfabetização matemática, tais
como a leitura e escrita dos números, a importância da sequência numéri-
ca, bem como o processo de contagem.
Alguns educadores defendem a utilização de filmes cinematográficos
nas práticas de ensino de matemática. Como exemplo de filmes dessa natu-
reza, pode-se citar: “A corrente do bem”, conforme sugere Viana (2013), que
possibilita o aprendizado do conteúdo de “Progressões Geométricas”. De
acordo com a autora, o roteiro do filme apresenta de forma clara a ideia do
tema proposto, além de auxiliar na formação de valores morais como o de
praticar o “bem”. De forma semelhante, Napolitano (2004) também sugere
filmes para o ensino da matemática: “Uma mente brilhante”, um filme que
explicita o conteúdo de Análise Combinatória e “O céu de outubro”, que se
desenvolve em torno da análise e aplicação de uma fórmula, sendo possível
sua utilização com foco nas técnicas para aplicação de fórmulas. Além disso,
Souto (2013) ressalta que, ao assistir um filme cinematográfico, percebem-
-se outras maneiras de ver o mundo, introduz-se pessoas a mundos imagi-
nários que jamais frequentariam ou vivenciariam. Para fins educativos, é
possível, por meio dos filmes, realizar um ensino rico, e os significados nele
inerentes de forma sábia podem ser transportados para a vida cotidiana.
330
De acordo com Teixeira e Lopes (2014),
[...] o cinema é uma forma de criação artística, de circulação de afe-
tos e de fruição estética. É também uma certa maneira de olhar. É
uma expressão do olhar que organiza o mundo a partir de uma ideia
sobre esse mundo. Uma ideia histórico-social, filosófico, estética, éti-
ca, poética, existencial, enfim. Olhares e ideias postos em imagens
em movimento, por meio dos quais compreendemos e damos senti-
do às coisas, assim como as ressignificamos e expressamos (Teixeira;
Lopes, 2014, p. 10).
Ainda, Gomes et al. (2012) apresentam uma sequência de aspectos que
podem ser explorados na prática pedagógica com o uso de filmes:
Defendemos que pensar o cinema em articulação com as Ciências
envolve uma pluralidade de aspectos a serem explorados, tais como:
narrativa, ficção, imaginação, futuro, estética, reflexões históricas
sobre a realidade e sua transformação, concepções sobre a nature-
za, técnicas, métodos científicos, relações entre Ciência e sociedade,
culturas científicas, relações de poder, imaginário social, educação,
ética etc. (Gomes et al., 2012, p. 7).
É nesse contexto que se insere o filme “Ursinho Pooh 1, 2, 3 - Apren-
dendo os números e as contas” para ser utilizado no processo de alfabeti-
zação matemática.

O filme da proposta didática: “Ursinho Pooh 1, 2, 3”

O filme da proposta, com duração de 35 minutos, foi produzido pela


Walt Disney, nos Estados Unidos, em 2004, e traz em seu roteiro, o perso-
nagem de um Canguru que passa por diversas experiências na busca por
aprender o processo de contagem.
Inicia-se o filme, exibindo um rapaz (Christopher Robin) organizando
uma mesa onde serão acomodados os convidados de uma festa, “A Festa
do Pote da Sorte”. Contudo, cada convidado deveria trazer um presente
para os outros convidados que, de acordo com o personagem Christopher,

331
seriam 10. Os presentes poderiam ser um brinquedo, uma decoração ou até
mesmo algo para comer.
Nessa perspectiva, o enredo do filme gira em torno de um pequeno can-
guru (Guru), que gostaria de ir à festa, mas não sabe contar para organizar
seus presentes. Assim, o Ursinho Pooh é designado pelo jovem Christopher,
que se encontra nas proximidades, para ensinar o Guru a contar, haja vista
que o rapaz ensinara o ursinho a contar na semana anterior.
Ao chegar em casa, o ursinho percebe que não sabe mais contar, pois
não praticou a contagem, deixando Guru bastante apreensivo, pois, se não
conseguissem contar seus presentes, não poderiam ir à festa.
Aflito, o pequeno canguru se dirige à casa do respeitado e sábio Sr.
Corujão, que o convida a adentrar o mundo que chamou de “Destreza Nu-
merológica”. O personagem do corujão explica para Guru o que são os nú-
meros e para que servem. Demonstra como estão presentes em toda a parte
e em todos os lugares (páginas de livros, contagem de dias, meses e anos do
calendário, números de enciclopédias, horas do relógio etc.).
O Sr. Corujão alerta o pequeno canguru para a importância de perse-
verar para aprender o que se deseja, bem como de praticar a contagem e
o aconselha a procurar o amigo coelho, ganhador 3 vezes do concurso de
contagem no Bosque.
No Bosque, o amigo Coelho ensina Guru a contar as batatas, bem
como outros produtos ali encontrados e ressalta a importância de memo-
rizar a ordem dos números. Já o amigo Tigrão, apresenta-lhe um método
exclusivo de contagem: “O método de contagem pulante”, que consiste em
contar cada coisa com um pulo. Por exemplo: ao contar as pedras gran-
des, dever-se-ia pular em cima delas, uma de cada vez; o mesmo deveria
acontecer nas poças de lama, ou em outras coisas do bosque em que fosse
possível pular.
Assim, Guru passou o dia praticando e conseguiu aprender a contar.
Após, retornou à casa de Pooh para realizar a contagem dos potes de mel,
que seriam os presentes de Pooh, e dos balões, que seriam os seus presentes.
O filme finaliza mostrando os dois personagens chegando à festa com
seus presentes e os amigos que o auxiliaram nessa jornada satisfeitos por
terem atingido o objetivo de ensinar o pequeno canguru a contar.

332
Contribuições do Filme “Ursinho Pooh 1, 2, 3” para
a Alfabetização Matemática

O filme “Ursinho Pooh 1, 2, 3” explicita a importância dos números no


convívio das interações sociais, exibe e reforça a importância da sequên-
cia numérica, ressalta a importância de utilizar diferentes estratégias para
aprender o que se deseja e demonstra algumas técnicas de memorização.
Além disso, serve de apoio para leitura e escrita dos números, visto que é
possível visualizar a escrita e a leitura deles em diversas cenas do filme.
Dessa forma, com o objetivo de contribuir com o ensino da Matemá-
tica nas séries inicias do Ensino Básico, realizou-se uma análise do filme
“Ursinho Pooh 1, 2, 3”, enfocando o processo de alfabetização matemá-
tica e elaborou-se uma sequência de cenas do filme, buscando facilitar o
ensino para os educadores que optarem por utilizar esse material em sua
prática pedagógica. Ressalta-se que esse material pode ser utilizado em ou-
tra perspectiva, como para esclarecer os alunos acerca da importância dos
números no mundo em que vivemos e a importância de praticar o que se
aprende para não cair no esquecimento. Nesse contexto, o material pode
ser apresentado no segundo, terceiro ou quarto anos, de acordo com o pla-
nejamento do professor.
Abaixo, explicitam-se as cenas consideradas relevantes para dar supor-
te à alfabetização Matemática.
Entre os primeiros 2’10” e 3’03” do filme é possível discutir com os
alunos a importância de conhecer o processo de contagem, bem como
mostrar um exemplo de ocasiões em que foi necessário se utilizar desse co-
nhecimento. Essa cena retrata a situação na qual os personagens Canguru
(Guru) e Ursinho Pooh foram convidados para ir a uma festa em que pre-
cisavam contar os presentes que, ao todo, seriam 10. Apresenta-se, pela pri-
meira vez no filme, a escrita e a leitura dos números por meio da contagem
das cadeiras dos convidados que estão numeradas de 1 a 10. Nessa cena é
também possível abordar a ideia de que os números podem ser divididos
ou contados de dez em dez. Dessa forma, vão se criando subsunçores1 para
a abordagem do Sistema de Numeração Decimal.

1 Conhecimento presente na estrutura cognitiva do indivíduo que aprende e que propicia, por interação,
dar significado a novos conhecimentos (MOREIRA, 2011, p. 18).

333
A cena que se passa entre os 3’10” e 4’04” explicita o personagem
Christopher Robin solicitando ao Ursinho Pooh que ensine seu amigo a
contar, o que posteriormente observaremos que não aconteceu, pois, o
mesmo esqueceu o processo de contagem.
Aos 5’28” e aos 6’32”, aproximadamente, é possível perceber que o Ur-
sinho Pooh não praticou a contagem e, por isso, esqueceu. Nessa cena é
necessário explicitar aos alunos que para aprender algo que realmente se
quer, é preciso praticar para não corrermos o risco de o conhecimento ser
obliterado pelo tempo.
A cena que se inicia aos 6’51” e vai até aproximadamente os 09’02”,
apresenta a reflexão que o personagem do Senhor Corujão realiza com
o pequeno Canguru, levando-o para uma viagem ao que ele chamou de
“Destreza Numerológica”. Essa cena explicita a importância dos números
no cotidiano para mensurar quantidades, medidas, códigos e ordens. Isso
pode ser percebido quando o personagem do Senhor Corujão mostra os
números nas páginas de um livro, no relógio, na ordem das enciclopédias,
no calendário etc.
Aos 9’30”, o personagem do Senhor Corujão demonstra a escrita e a
contagem dos números de 1 a 10 e realiza a contagem com o Guru, para
que este possa, assim, praticar o que acabou de aprender. Essa cena vai até
aproximadamente 12’15”.
Na cena que se passa entre os 12’15” e os 15’46” é possível perceber a
persistência do pequeno canguru para aprender a contar, quando busca o
auxílio do amigo coelho, considerado campeão de contagem no Bosque.
Essa cena propicia a exploração de outros ambientes possíveis de se prati-
car a contagem. Como exemplo, o coelho realiza a contagem dos tubércu-
los no bosque. Essa cena também exibe a escrita e a pronúncia dos números
diversas vezes, bem como a importância da ordem numérica.
Entre os 23’00’’ e os 26’20”, apresenta-se a cena em que o amigo ti-
gre ensina a Guru um método que ele chama de “Método de contagem
pulante”. Nesse método, o personagem Guru deve pular em cima de cada
coisa que conta, ampliando assim a sua capacidade de aprender a contar. O
método de contagem pulante consiste em outra estratégia para facilitar o
processo de memorização de cômputo de números.

334
Aos 28’35” é possível perceber que o esforço do pequeno canguru trou-
xe resultados benéficos, visto que ele aprendeu a contar. Além disso, quan-
do conta seus 10 balões para dar de presente na festa e os 10 potes de mel
do amigo Ursinho Pooh, o personagem insere a cada presente um número
em sua devida ordem. Essa cena apresenta, também, a escrita e a leitura dos
números, bem como a importância de memorizar a ordem deles.
Nesse contexto, o personagem de Guru pôde ir à festa que tanto alme-
java com os seus 10 presentes e também pôde auxiliar seu amigo Pooh a
contar os seus. Essa cena finaliza aproximadamente aos 30’57”.

Quadro organizador de cenas relevantes para a abordagem do conteúdo

Para abordar aspectos inerentes à alfabetização matemática, o quadro


organizador abaixo busca auxiliar os educadores que optarem por utilizar
esse recurso em suas práticas educativas. O material foi elaborado com o
propósito de servir de apoio pedagógico para crianças em fase de alfabeti-
zação infantil, visto que as cenas apontadas no quadro ilustram o processo
de contagem, possibilitando, também, a visualização da escrita e da leitura
dos números.
Abaixo, seguem o tempo inicial e final das cenas consideradas relevan-
tes para a alfabetização matemática:

Quadro 1: Organizador de cenas relevantes para abordagem


da Alfabetização Matemática na infância

Tempo inicial da Cena considerada relevante para a alfabetização Tempo final da cena
cena matemática
2’10” Ilustra a utilização do processo de contagem numa 3’03”
situação cotidiana, em que os personagens precisam saber
contar 10 coisas para presentear. Explicita também a
escrita e a leitura dos Números.
3’10” Apresenta o personagem do menino solicitando ao 4’04”
Ursinho Pooh que ensine o canguru a contar.
5’28” Explicita a importância de se praticar algo que aprendemos 6’32”
para que não corramos o risco de o conhecimento
ser obliterado pelo tempo.

335
6’51” Apresenta a reflexão do Senhor Corujão sobre a 9’02”
importância dos números em nosso cotidiano para
mensurar quantidades, medidas, códigos e ordens.
9’30” Exibe o personagem Corujão ensinando o canguru a contar 12’15”
anexando em cada objeto a sua quantidade. Também se
visualiza nessa cena a escrita e a leitura dos números.
23’00’’ Evidencia a importância de utilizar diferentes métodos de 26’20”
ensino na busca por significar o conteúdo. Isso pode ser
observado através do “Método de contagem pulante”
do Tigrão.
28’35” Ilustra o bom resultado do esforço do Canguru para 30’57”
aprender a contar, visto que ele consegue contar seus 10
presentes (balões) e os presentes do Ursinho Pooh
(potes de mel) para ir à festa. Nessa cena a escrita e a
leitura dos números também podem ser observadas.
Fonte: A autora.

Considerações finais

Ao realizar a pesquisa, foi possível perceber que inovar práticas de en-


sino para atingir melhores resultados no processo de alfabetização infantil
é necessário e urgente, uma vez que, para o bom resultado do processo de
ensino e aprendizagem, os educandos precisam ser continuamente estimu-
lados para assimilar e se apropriar do conteúdo, objeto de estudo da aula.
Introduzir recursos audiovisuais, tal como filmes, nas aulas das séries
iniciais pode tornar o ensino mais significativo e prazeroso para o estu-
dante. Além disso, ao utilizar a linguagem cinematográfica no processo de
alfabetização matemática, o educador possibilita o desenvolvimento das
múltiplas linguagens dos seus educandos, enriquece o universo lúdico da
criança e potencializa o desenvolvimento de habilidades necessárias para
sua formação.
Uma criança que consegue fazer a leitura de uma imagem, compreen-
der um filme, está desenvolvendo sentidos, atividade tão relevante quanto
a leitura convencional. No caso do filme aqui sugerido é possível observar
a escrita e a leitura dos números de uma forma mais divertida, “com perso-
nagens em movimento”.

336
Dessa forma, o uso do filme “Ursinho Pooh 1, 2, 3 – aprendendo os
números e as contas” para a alfabetização matemática, harmoniza-se a um
trabalho pedagógico que se preocupa com a interação e aperfeiçoamento
da criança na leitura de novos códigos.

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2013, p. 1-13.

338
Sobre os autores
Ana Carolina da Conceição – Com Pedagogia pelo Centro Universitário de
Brusque (2005), é pós-graduada em Educação Infantil, Séries Iniciais e Gestão Es-
colar. Professora efetiva da Rede Municipal de Brusque em Séries Iniciais, exer-
cendo a maior parte dos anos nas classes de alfabetização. Nos últimos anos atuou
como coordenadora pedagógica da Rede Municipal de Brusque no Ensino Fun-
damental na Educação Infantil. Tem experiência na área de Educação, com ênfase
em Alfabetização e letramento. Integrante do Grupo de Pesquisa em Língua Por-
tuguesa (GPLP). Orientadora de estudos do Pacto Nacional pela Alfabetização na
Idade Certa – PNAIC, em 2013 e 2014, e coordenadora municipal do mesmo da
mesma formação de professores (PNAIC), no ano de 2016. Mestre em Educação
pela Universidade Regional de Blumenau – FURB, na linha de pesquisa Lingua-
gem e Educação. E-mail: ana_karol_conceicao@hotmail.com

Ana Cláudia de Souza – Professora associada do Departamento de Metodologia


de Ensino e do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Fe-
deral de Santa Catarina (UFSC). Doutora em Linguística, na área de concentração
Psicolinguística, com pós-doutoramento pela mesma IES. Licenciada em Letras
– Português e Inglês, pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC).
Foi professora da UNESC entre 1998 e 2006. Como docente, desde 2007 na UFSC,
atua, na graduação em Letras, em disciplinas de Metodologia de Ensino e Estágio
de Língua Portuguesa, e, na pós-graduação, em disciplinas de Psicolinguística e
Metodologia da Pesquisa em Aquisição e Processamento da Linguagem. É pesqui-
sadora do Grupo de Pesquisa NEL – Núcleo de Estudos em Leitura – e do Grupo
de Pesquisa PAMEDUC – Patrimônio, Memória e Educação –, ambos da UFSC.
Desenvolve pesquisas sobre leitura, cognição e ensino, abarcando também o pro-
cesso de alfabetização e formação de professores. Foi subcoordenadora do Curso
de Pedagogia da UFSC entre 2014 e 2015. Foi coordenadora do núcleo UFSC do
projeto em rede – UNESC, UFSC, UFFS – intitulado “Ler & Educar: formação
continuada de professores da rede pública de Santa Catarina”, entre 2013 e 2015,
por meio do Programa Observatório da Educação (OBEDUC/CAPES). E-mail:
ana.claudia.souza@ufsc.br

Angela Cristina Di Palma Back – Doutora e Mestre em Linguística pela Univer-


sidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com graduação em Letras (Licenciatura)
pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Desde 1999, exerce a
docência na UNESC, e, em 2010, passa a integrar o quadro docente no Programa
de Pós-Graduação stricto sensu em Educação (PPGE). Um projeto de relevância
a ser destacado foi o aceite do nosso projeto em rede “Ler & Educar: formação
continuada de professores da rede pública de SC”, em 2013-2015, pelo Programa

339
Observatório da Educação (OBEDUC) da CAPES, junto ao qual fui a coordenadora
da Sede na UNESC, em Criciúma, tendo como parceiros os núcleos UFSC (Floria-
nópolis) e UFFS (Chapecó). Pesquisadora associada e líder do Grupo de Pesquisa
CNPq-LITTERA. No PPGE, insere-se na linha Educação, Linguagem e Memória,
a partir da qual desenvolve pesquisas sobre leitura, cognição e ensino, abarcando
também o processo de alfabetização e formação de professores; educação e lingua-
gem; variação linguística e ensino. Foi Diretora da Unidade Acadêmica de Huma-
nidades, Ciências e Educação da UNESC, de 2013 a 2017. E-mail: acb@unesc.net

Carlos Alberto Ramos Souza – Cursa o último semestre de graduação em Letras


Inglês e Literaturas de Língua Inglesa na Universidade Estadual do Centro-Oeste,
em Guarapuava, Paraná. Durante os anos de sua graduação, participou do Progra-
ma Institucional de Iniciação Científica, desenvolvendo pesquisas na área da Psi-
colinguística, buscando melhor compreender as questões relacionadas ao ensino e
ao uso de estratégias de leitura. Também foi bolsista do Programa Institucional de
Iniciação à Docência (PIBID), onde trabalhou com o ensino de língua inglesa por
meio de gêneros textuais na linha do Interacionismo Sociodiscursivo. Atualmente
é bolsista do Programa Paraná Fala Inglês, financiado pela Secretaria da Ciência,
Tecnologia e Ensino Superior do Paraná, que tem como objetivo contribuir com
os processos de internacionalização da comunidade acadêmica das universidades
deste estado. E-mail: carlos_albertoramos@msn.com

Caroline Bernardes Borges – Doutoranda em Linguística pelo Programa de


Pós-Graduação em Letras da Escola de Humanidades da PUCRS (Bolsista inte-
gral CNPq), sob orientação da Profa. Dra. Vera Wannmacher Pereira. Mestre em
Linguística pelo PPGL/PUCRS (2018) (Bolsista integral CAPES/PROEX). Gradua-
da em Letras (Licenciatura em Língua Portuguesa e respectivas Literaturas) pela
Faculdade de Letras da PUCRS (2015). Membro dos grupos de pesquisa “Estu-
dos Cognitivos e Culturais das Linguagens” (CNPq) e “Aquisição, aprendizado e
processamento cognitivo da linguagem: instrumentos, procedimentos e tecnolo-
gias” (CNPq), que estão inseridos no Núcleo de Pesquisa em Cognição, Cultura,
Linguagens e Interfaces: Ciência, Arte e Tecnologia, da PUCRS. E-mail: caroline.
bernardes@acad.pucrs.br /carolineh_borges@hotmail.com

Claudia Finger-Kratochvil – Doutora em Linguística/Psicolinguística pela Uni-


versidade Federal de Santa Catarina (UFSC), graduada em Letra pela mesma insti-
tuição, atua na docência desde 1987. Na década de 1990, tem início sua trajetória na
Graduação e na Pós-graduação. Docente em Letras desde 1994. Surpervisora e Co-
ordenadora de Estágio na Educação Básica do curso de Letras. Diretora da Editora
Unoesc e Coordenadora da Pós-Graduação em Metodologia do Ensino de Língua
Portuguesa na mesma instituição. Atualmente, é docente da Universidade Federal

340
da Fronteira Sul na graduação e no programa de mestrado em Estudos Linguísticos,
orientando trabalhos na área de Língua e Cognição. Foi Diretora de Registro Aca-
dêmico e Pró-Reitora de Graduação. Esteve presente na Coordenação do ForGRAD
Nacional e ForGRAD Sul entre 2011 e 2013. Coordenadora do Inglês sem Frontei-
ras. Coordenadora do OBEDUC – UNESC, UFSC, UFFS, projeto Ler & Educar,
Núcleo Chapecó de 2013-2015. Tem experiência na área de Linguística, com ênfase
em Linguística e Psicolinguística Aplicada, atuando principalmente nos seguintes
temas: letramento, leitura, ensino e habilidades de leitura, formação de professores,
metodologia de ensino, competência lexical e linguagem da propaganda, áreas em
que possui pesquisa e trabalhos publicados. Participa em grupos de assessoria na
SESu e Capes por ocasião de trabalhos específicos. E-mail: cf-k@uffs.edu.br

Cristiane Lazzarotto-Volcão – Mestre e Doutora em Letras (Linguística Apli-


cada) pela Universidade Católica de Pelotas. Realizou pesquisa Pós-Doutoral (com
auxílio da CAPES) no Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, em cola-
boração com a Prof. Dr. Maria João Freitas. É professora associada do Departa-
mento de Língua e Literatura Vernáculas da Universidade Federal de Santa Ca-
tarina, onde ministra aulas nos Cursos de Graduação em Letras (presencial e na
modalidade a distância) e integra o corpo docente do Programa de Pós-Graduação
em Linguística. No momento, coordena projeto de pesquisa, cujo tema é o pro-
cesso de aquisição fonológica em crianças brasileiras e portuguesas com aquisição
típica e atípica. Coordena também o Curso de licenciatura a distância Letras Por-
tuguês (Universidade Aberta do Brasil / Universidade Federal de Santa Catarina).
E-mail: cristiane.volcao@gmail.com

Cristiane Seimetz-Rodrigues – Doutora em Linguística pela Universidade Fede-


ral de Santa Catarina (2017) e graduada em Letras Português/Inglês pela Universi-
dade do Extremo Sul Catarinense (2006). Em sua tese de doutoramento, realizou,
com bolsa Capes, a pesquisa Competência leitora no contexto da surdez: relações
entre consciência fonológica, reconhecimento de palavras e compreensão do escrito.
Atua como professora de Língua Portuguesa no Colégio de Aplicação da Universi-
dade Federal de Santa Catarina, onde participa como colaboradora do Projeto de
Extensão Libras +, que tem como propósito disseminar a língua de sinais entre a
comunidade ouvinte da universidade. Possui experiência de pesquisa nas áreas de
Psicolinguística e Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: alfabeti-
zação, ensino e aprendizagem da leitura e português escrito como segunda língua
para surdos. E-mail: cris.seimetz@gmail.com

Gabriel Augusto Scheffer – Mestre em Estudos Linguísticos no Programa de


Pós-Graduação em Estudos Linguísticos – PPGEL – na Universidade Federal da
Fronteira Sul-Campus Chapecó. Graduado no curso de Licenciatura em Letras-

341
-Português e Espanhol – pela mesma instituição. Esteve envolvido em projetos de
fortalecimento dos três eixos norteadores da instituição: ensino, pesquisa e exten-
são. Como membro de grupos de pesquisas relacionados à Psicolinguística, foi
atuante em projetos, eventos e desenvolveu seu trabalho de conclusão de curso
com base nesta corrente teórica, abordando, sob o viés de um estudo compara-
tivo, a competência leitora de acadêmicos ingressantes de Letras na UFFS. Com
a dissertação abrangida na linha de pesquisa Língua e Cognição: representação e
processamento da linguagem, estudou como os atuais livros didáticos de língua
portuguesa destinados para professores e alunos dos anos finais do ensino funda-
mental abordam a atividade cognitiva de construir inferências em atividades de
leitura e compreensão textual. E-mail: scheffer_gabriel@hotmail.com

Helena Cristina Weirich – Mestre (2016) em Linguística pela Universidade


Federal de Santa Catarina (UFSC), com graduação em Letras pela Universidade
Federal de Pelotas (UFPEL). Na condição de bolsista do CNPq, concluiu sua Dis-
sertação, intitulada “Domínio da leitura e compreensão oral do ‘mas’ argumentati-
vo. Atua como professora de Língua Portuguesa e Língua Espanhola na Educação
Básica. Sua história acadêmica conta com sua atuação como bolsista no Programa
Institucional de Iniciação à Docência (PIBID), com o trabalho “Humanidades in-
centivando à Docência”. Vale destacar alguns desdobramentos de sua Dissertação
em termos de sua socialização, com os artigos “A compreensão da argumentação
linguística: hipótese de interação entre leitura e oralidade”, na Revista de Estudos
da Linguagem (2017), e “Instrumentos de avaliação de leitura em fase inicial: ha-
bilidades e processos envolvidos”, publicado na revista SIGNUM (2017). E-mail:
helenaweirich@gmail.com

José Morais – Português, nascido em Lisboa, refugiado político da ONU entre 1968
e 1974, é doutor em Ciências Psicológicas da Universidade Livre de Bruxelas – ULB
(1978), e doutor honoris causa da Universidade de Lisboa (2000). Foi presidente do
Comité Nacional das Ciências Psicológicas da Academia Real da Bélgica e membro
do Observatório nacional da leitura em França (1995-2007). Na ULB foi diretor
do Laboratório de Psicologia Experimental e decano da Faculdade de Psicologia e
de Ciências da Educação. Aposentado desde 2008, é professor emérito e professor
convidado da Unidade de Pesquisa em Neurociências Cognitivas, que faz parte do
Centro de Pesquisa em Cognição e Neurociências. Sua tese de doutorado tinha por
objeto o exame dos fatores cognitivos, em particular da atenção espacial, nos efei-
tos de lateralidade durante a percepção da fala. Depois, seus trabalhos incidiram
nomeadamente sobre o reconhecimento da fala e das palavras orais, incluindo a
influência da representação escrita nesse reconhecimento, e sobre a aprendizagem
da leitura e as consequências do analfabetismo na cognição. Atualmente, participa
em pesquisas experimentais e teóricas sobre a literacia no contexto biocultural e
sociopolítico. Desde meados dos anos 1980, tem mantido relações de colaboração

342
fiéis e frutuosas com pesquisadores brasileiros, concretizadas em publicações co-
muns. Dentre seus interesses de pesquisa estão a literacia (aprendizagem da leitura,
consciência fonêmica, efeitos cognitivos e neurais) e sua relação com a democracia.
E-mail: Jose.Junca.De.Morais@ulb.ac.be

Leandro Lemes do Prado – Doutor em Letras (estudos Linguísticos) pela PUCRS,


e mestre em Letras Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Santa Maria
(2002), com graduação em Letras Português e Inglês e respectivas Literaturas tam-
bém pela Universidade Federal de Santa Maria (2000). Tem experiência na área de
Educação, com ênfase em ensino, atuando principalmente nos seguintes temas: en-
sino, língua portuguesa, língua inglesa, tecnologia, revisão de texto, tradução, pro-
dução textual, leitura, técnicas de contação de histórias e gêneros textuais. E-mail:
professorleoprado@gmail.com

Leonor Scliar-Cabral – Professora Emérita da Universidade Federal de Santa Ca-


tarina (UFSC), e doutora em Linguística pela USP e pós-doutorada pela Universi-
dade de Montréal. Eleita, em julho de 1991 na Universidade de Toronto, Presidente
da International Society of Applied Psycholinguistics, e reeleita na Universidade
de Bolonha; atualmente é Sócia Honorária. Foi presidente da União Brasileira de
Escritores em Santa Catarina (1995-1997) e presidiu a ABRALIN, no biênio 1997-
1999. Pertence ao Conselho Editorial de: International Journal of Psycholinguistics,
Cadernos de Estudos Linguísticos, Letras de Hoje (fundadora), Revista da ABRA-
LIN, entre outros. Coordenou os projetos ler & Ser: Combatendo o Analfabetismo
Funcional. Cátedra UNESCO MECEAL na UFSC e criou e coordena o Sistema
Scliar de Alfabetização (SSA). Com dezenas de trabalhos publicados no Brasil e no
exterior, citam-se Introdução à Linguística (Globo, 7ª edição); Introdução à Psico-
linguística (Ática, 1990); Romances e Canções Sefarditas – Século XV ao XX (Massao
Ohno, 1990); Memórias de Sefarad (Athanor, 1994); De senectute erotica (Massao
Ohno, 1998); Poesia espanhola do século de ouro (Letras Contemporâneas, 1998);
?O outro, o mesmo? (In J. L. Borges, Obra completa, Globo, 1999); Cruz e Sousa,
o poeta do desterro (versão poética para o francês com M.-H. Torres das legen-
das do filme de Sylvio Back, Sete Letras, 2000); Princípios do sistema alfabético do
português do Brasil e Guia Prático de alfabetização (Contexto, 2003), O sol caía no
Guaíba (Prym, 2006); com C. R. Caldas-Coulthard (Orgs.), Desvendando discur-
sos: conceitos básicos (EDUFSC, 2008); Psycholinguistics Scientific and technological
challenges (Org., Porto alegre: EDIPUCRS, 2010). Foi pesquisadora do CNPq (1A)
desde a década de 1970. Atualmente é coordenadora do Grupo de Pesquisa Produ-
tividade Linguística Emergente, alimentando o banco mundial de dados CHILDES
com dados do PB em transcrição fonética e áudio. Ultimamente vem se dedicando
à prevenção ao analfabetismo funcional, com a proposta do Sistema Scliar de Alfa-
betização. Seus últimos livros são: Sagração do Alfabeto (São Paulo: Scortecci, 2009,
finalista na categoria Poesia, Prêmio Jabuti), Sistema Scliar de Alfabetização – Fun-

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damentos (Florianópolis: Editora Lili, 2013, Aventuras de Vivi (Florianópolis: Edi-
tora Lili, 2014), José (Florianópolis: Editora Lili, 2016, Prêmio Elisabete Anderle, na
categoria literatura, da Fundação Catarinense de Cultura, 2015), Sistema Scliar de
Alfabetização – Roteiros para o professor: Módulo 1, v. 1 e 2 (Florianópolis: Editora
Lili, 2018). Entre suas inúmeras traduções científicas e poéticas, cabe registro a da
obra de Stanislas Dehaene, Os Neurônios da Leitura (Penso, 2012). Com mais de uma
centena de artigos publicados em periódicos, destaca-se o artigo “Neurons recycling
for learning the alphabetic principles”; em Folia Phoniatrica et Logopaedica, v. 66, n.
1-2, p. 58-66, 2014. E-mail: leonorsc20@gmail.com

Luciane Baretta – Doutora e Mestre em Linguística Aplicada pela Universidade Fe-


deral de Santa Catarina (UFSC), com graduação em Letras Português-Inglês pela
mesma instituição. Fez doutorado sanduíche no Center of Cognitive Neuoscience,
na University of Auckland. Iniciou suas atividades como docente no curso superior
em 1998, atuando, principalmente, no curso de Letras, com o ensino de língua in-
glesa. Foi coordenadora e supervisora de estágio em Língua Inglesa, tendo também
coordenado o Curso de Metodologia do Ensino de Língua Inglesa. Atualmente, atua
como professora adjunta do curso de Letras-Inglês na UNICENTRO – Universi-
dade Estadual do Centro-Oeste, em Guarapuava, PR. Desde 2013, é professora do
Programa de Pós-Graduação em Letras. Coordenadora Pedagógica do Programa
Paraná Fala Inglês, na Unicentro. Suas principais áreas de interesse são: ensi-
no-aprendizagem de inglês como língua estrangeira, habilidades de leitura em
língua materna e estrangeira, estratégias de aprendizagem e processamento em
leitura. E-mail: barettaluciane@gmail.com

Maria da Graça Lisboa Castro Pinto – Doutora em Linguística Aplicada


(Psicolinguística e Neurolinguística) pela Faculdade de Letras da Universidade
do Porto. Sua tese de doutoramento intitulada “Abordagem a alguns aspectos da
compreensão verbal na criança: Estudo Psicolinguístico genético do Token Test e
de materiais de metodologia complementar” (496p), publicada em 1988, na Série
linguística-8, pelo INIC (Lisboa), com o Depósito-Legal nº 21761/88, s/ISBN, foi
prêmio Gulbenkian de Ciência em 1986. Atualmente é professora catedrática da
Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Tem experiência na área da Lin-
guística, com ênfase em Psicolinguística Aplicada. De 1977 até 1995, colaborou no
Laboratório de Estudos da Linguagem do Serviço de Neurologia e de Neurocirur-
gia do Hospital de São João/Faculdade de Medicina (Porto), dirigido pelo Profes-
sor Doutor Celso Cruz. De 1977 até 1998, investigou e publicou trabalhos sobre a
linguagem oral e escrita (produção e compreensão) em crianças europeias falantes
de línguas diferentes, conjuntamente com Andrée Girolami-Boulinier, Professo-
ra de Ortofonia na Faculté de Médecine Pitié-Salpêtrière (Paris) e ortofonista no
Hôpital de St. Vincent de Paul (Paris). De 1998 a 2001, exerceu as funções de Vice-
-Reitora da Universidade do Porto. Fundou o Programa de Estudos Universitários

344
para Seniores da Universidade do Porto em 2006, sendo a docente responsável
pelo referido programa. É membro honorário da International Society of Applied
Psycholinguistics desde 2014. É Diretora da revista Linguarum Arena. Revista em
Didática de Línguas da Universidade do Porto. E-mail: mgraca@letras.up.pt

Marina Vieira Cardoso – Graduada em Pedagogia pela Universidade do Extremo


Sul Catarinense (UNESC). No percurso acadêmico, participou do projeto em rede
“Ler & Educar: formação continuada de professores de SC”, na sede de Criciúma,
aprovado junto ao Observatório da Educação (OBEDUC) da CAPES, em que um
dos objetivos principais foi o de aproximar a Pós-Graduação e a Educação Básica,
e, em no caso específico do projeto, fomentar e socializar pesquisas na área da lei-
tura. Como desdobramento da iniciação à pesquisa junto ao OBEDUC, o trabalho
de conclusão de Curso (TCC) versou sobre o “Ato de ler e o leitor: pistas de um
processo (não) emancipatório de leitura em um 5° ano do Ensino Fundamental”,
em que foi realizada uma pesquisa de campo com o objetivo de analisar os avan-
ços e lacunas no ato de ler, pertinentes à formação do sujeito (não) emancipado.
Também foi bolsista do Programa Institucional de Iniciação à Docência (PIBID),
discutindo, pesquisando e aplicando em escolas campo, teorias e metodologias de
ensino na área da Educação Infantil e Alfabetização e Letramento. E-mail: marina.
vieiracardoso@hotmail.com

Mauro José da Rosa – Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica


do Rio Grande do Sul (PUCRS), com graduação em Educação Física pela Univer-
sidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e graduação em Psicologia pela Uni-
versidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Atua nos Cursos de Educação Física – Li-
cenciatura e Bacharel – na UNIVALI na disciplina Educação Física para pessoas
com necessidades Especiais e Desenvolvimento Humano e Aprendizagem Motora.
Possui experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicomotricidade, Psi-
cologia do Esporte, atuando principalmente nos seguintes temas: saúde mental,
desenvolvimento psicomotor, avaliação psicomotora. Atua na Área da Psicologia
Educacional, ministrando disciplinas no Curso de Pedagogia: Linguagens e For-
mas de Expressão Corporal e Psicologia do Desenvolvimento. Atua também no
curso de graduação em Enfermagem na disciplina de Psicologia Aplicada à Saúde.
E-mail: maurojr@univali.br

Otília Lizete de Oliveira Martins Heinig – Doutora em Linguística pela


Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e mestre em Educação pela
Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB), com graduação em Le-
tras Português-Inglês pela mesma instituição. Atualmente é professora titular da
FURB, atuando no Mestrado em Educação, do qual foi coordenadora. Coordenou
também o subprojeto de Letras no PIBID e é integrante do Núcleo de Estudos
Linguísticos. Criou, há 18 anos, o grupo de educação continuada para professores

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de língua materna, que está atualmente sob sua coordenação. Tem experiência
na área de Letras, com ênfase em Letras, atuando principalmente nos seguintes
temas: professores, letramentos, ensino-aprendizagem, ensino fundamental e lei-
tura. E-mail: otilia.heinig@gmail.com

Régine Kolinsky – Doutora em Psicologia. Diretora de Pesquisa do National Fund


for Scientific Research, Bélgica. É também Diretora da Unidade de Pesquisa em
Neurociências Cognitivas, do Centro de Pesquisa em Cognição e Neurociências
da Universidade Livre de Bruxelas (ULB), Bélgica. Seus principais temas de pes-
quisa são as consequências cognitivas e cerebrais da literacia e da escolarização, e
as interações entre linguagem e música. Publicou 5 livros e em torno de 200 arti-
gos e capítulos de livros, alguns em reconhecidos e proeminentes periódicos, tais
como: Science, Nature Reviews Neuroscience, Proceedings of the National Academy of
Sciences of the United States of America, Brain, Journal of Experimental Psychology,
Cognition. E-mail: Kolinsky.Regine@ulb.ac.be

Rosangela Silveira da Rosa – Mestre pela Universidade Regional de Blumenau


(FURB), linha de pesquisa Ensino de Ciências e Matemática. Está em doutoramen-
to pela Universidade de Tuiuti do Paraná (UTP), na área de Educação. Possui
graduação em Ciências Econômicas pela Universidade do Planalto Catarinense e
Curso de Formação Pedagógica para Docência na Educação Básica e na Educação
profissional em nível Médio com habilitação em Matemática pela UDESC. Atu-
almente é professora efetiva da Escola Básica Municipal Maria Conceição Nunes.
Tem experiência na área de Matemática para ensino fundamental e de nível médio.
Cursou pós-graduação (especialização) em Prática Pedagógicas e Interdisciplinares:
Educação Infantil, Séries do Ensino Fundamental e Médio pela Facvest (Faculdades
Integradas FACVEST), Lages-SC. E-mail: rosangelasilveira_31@hotmail.com

Vera Wannmacher Pereira – Doutora e Mestre em Letras (concentração em


Linguística Aplicada), com pós-doutorado em Psicolinguística. É pesquisadora
Bolsista de Produtividade DT do CNPq. Na Escola de Humanidades: Letras da
PUCRS, é docente titular e permanente do PPGL. Desenvolve atividades como
professora, pesquisadora e orientadora e coordena o Núcleo de Pesquisa em Cog-
nição, Cultura, Linguagens e Interfaces: ciência, arte e tecnologia – NUCCLIN, que
se caracteriza por trabalho integrado de ensino, pesquisa e extensão. Seus estudos
e experiências, com ênfase na compreensão e no processamento da leitura, estão
situados na Psicolinguística e interfaces, utilizando tecnologias, como processos e
produtos. E-mail: vpereira@pucrs.br

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Este livro foi publicado
pela Editora Insular
em janeiro de 2019.

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