Você está na página 1de 30

__________CAPÍTULO 2_________

DIREITOS D A A N TIG U ID A D E

Os mais antigos documentos escritos de natureza jurídica aparecem nos finais do


4 .° ou começos do 5.° milênio, isto é, cerca do ano 3000 antes da nossa era, por um
lado no Egipto, por outro na Mesopotamia. Pode seguir-se a evolução do direito
nestas duas regiões durante toda a antiguidade. No 2.° milênio, as regiões limítrofes
acordam também para a história do direito: o Elam, o país dos Hititas, a Fenicia,
Israel, Creta, a Grécia. No primeiro milênio, a Grécia e Roma dominam, até que
quase todos estes países sejam reunidos no Império Romano, durante os cinco
primeiros séculos da nossa era. Mais a oriente, a índia e a China conhecem também o
nascimento dos seus sistemas jurídicos nesta época.
Até há uma centena de anos, não se conhecia, dos direitos da antiguidade, senão
o direito romano, o direito grego e o direito hebraico. Desde então, as descobertas
arqueológicas e a publicação e tradução de cada vez mais documentos jurídicos
perm itiram reconstituir o desenvolvimento do direito egípcio e a grande diversidade
dos direitos cuneiformes <!>.
Nem se pode descrever aqui, nas poucas páginas que podemos reservar para este
fim, a evolução geral do direito nas regiões do mundo antigo. Queríamos apenas pôr
em evidência o que cinco sistemas jurídicos trouxeram de mais especial ao progresso do
direito e das ciências jurídicas.
O Egipto não nos transmitiu até à data códigos nem livros jurídicos; mas
pri mei ra^ci vÍTízação na história da humanidade que desenvolveu um sistema jurídico
que pode chamar-se individualista. Rompendo com as solidariedades activas e passivas

^ Tanto antes como depois de 1940-1945, a Universidade Livre de Bruxelas íòi um dos centros de investigação neste
dom ínio, sob a direcção de Jacques Pirenne antes da guerra, actualmente sob a de A. Théodoridès. Aqui se publicaram os Archives
d 'H istaire du Droit oriental, actualmente fundidos com a Révue internationale des droits de 1'Antiquité, criada por iniciativa de F. De Vísscher,
professor da Universidade de Lovaina. Existe na Universidade de Paris II, sob a direcção de J. Gaudemet um «Centre de documentation
des droits antiques» que difunde, duas vezes por ano, desde 1959, uma bibliografìa corrente dos direitos da antiguidade.
B ibliografìa: J . GAUDEM ET, Institutions de t ’A ntiquité, Paris 1967; J. IMBERT, Le droit antique et ses prolongements
modernes, J . a e d ., Paris 1967, colecção «Quesais-je?».
52

dos direitos arcaicos e feudais, o direito egípcio da época da III à V dinastia (cerca de
3000 a 2600) e o da XVIII dinastia (1500-1300) parecem ter sido tão evoluídos e tão
individualistas como o direito romano clássico. Descrevê-los-emos brevemente.
A jkjesopotàmia foi o país que conheceu as primeiras formulações do direito.
Os Sumérios, os Acadianos, os Hititas, os Assírios, redigiram textos jurídicos que se
podem chamar «códigos», os quais chegaram a formular regras de direito mais ou
menos abstractas.
Os Hebreus, situados entre o Egipto e a Mesopotamia, não atingiram um
desenvolvimento do seu direito tão grande como os seus vizinhos; mas registaram na
Bíblia, o seu livro religioso, um conjunto de preceitos morais e jurídicos que foram
perpetuados, não somente no seu próprio sistema jurídico até aos nossos dias, mas
sobretudo no direito canónico, direito dos Cristãos, e mesmo no direito muçulmano.
A Grécia, como o Egipto, não deixou grandes recolhas jurídicas, nem vastas
codificações. Mas com os seus pensadores, sobretudo Platão e Aristóteles, fundou a
ciência política, ou seja a ciência do governo, da polis ou cidade; ela é assim a base do
nosso direito público moderno.
Enfim Roma, na época da República e sobretudo no tempo do Império, fez a
síntese de tudo o que os outros direitos da antiguidade nos tinham trazido. Como os
Egípcios, os Romanos realizaram, nos primeiros séculos da nossa era, um sistema
jurídico que atingiu um nível inigualável até então. Muito mais que os Mesopotâmios,
eles tiveram de formular as regras do seu direito e redigiram vastos livros de direito.
Sobretudo os Romanos criaram a ciência do direito; o que os jurisconsultos romanos
dos II e III séculos da nossa era escreveram, serve ainda hoje de base a uma importante
parte do nosso sistema jurídico.
Antes dos Romanos, os povos da antiguidade não puderam, parece, construir um
sistema jurídico coerente; mas esta constatação é provavelmente a conseqüência da
insuficiência das fontes jurídicas actualmente disponíveis. E possível que um dia a
descoberta de novos documentos permita fazer recuar de vários séculos, ou mesmo
milênios, o aparecimento de uma ciência do direito baseada em princípios jurídicos
gerais e abstractos.

A . — O EG IPT O

1. Evolução geral
A civilização do Nilo tem uma longa história de cerca de quarenta séculos; a
evolução do direito conheceu aí fases ascendentes e fases descendentes, correspondendo
mais ou menos às grandes oscilações do poder dos faraós <2).

^ J. PIRENN E e A. THEODORIDÈS, «Droìt égyptien», em J . G1L1SSEN (ed.)t introduction bibltographique., A /l,


Bruxelas 1966; J. PIRENNE, Histoire des institutions et du droit privé de 1’Anden Empire, 3 vis., 1932-1935; do mesmo, «Les. trois
53

O nosso conhecimento do direito egípcio é baseado quase exclusivamente


actos da prática: contratos, testamentos, decisões judiciárias, actos administrativos,
e tc ,.. Os Egípcios quase nada escreveram de livros de direito, nem deixaram compila­
ções de leis oú de costumes. Mas não deixaram de se referir frequentemente a «leis»;
estas leis deviam ser escritas, pois, em período de confusão, foram lançadas à rua,
«espezinhadas» e «laceradas». Encontram-se, de resto, «Instruções» e «Sabedorias»,
que contêm os elementos da teoria jurídica tendentes a assegurar o respeito das pessoas
e dos bens (v. documento n.° 1, pág. 56). É constantemente referido o «Maât», q u e /
aparece como uma noção supra-sensível, o modelo do direito não escrito, que não se ,
pode consultar, e que também não é o produto de uma revelação divina. «Maât» é o 1
objectivo a prosseguir pelos reis, ao sabor das circunstâncias. Tem por essência ser o
«equilíbrio»; o ideal, a esse respeito, é por exemplo «fazer com que as duas partes
saiam do tribunal satisfeitas». Como é neste preceito que reside «a verdadeira justiça»,
Maât tanto pode ser traduzido por Verdade e Ordem como por Justiça propriamente dita.
A função do rei é a de realizar na terra este ideal complexo; ele levará a cabo este
objectivo «vivendo o Maât nas suas leis», o que significa dizer que se deve inspirar na
visão que ele tem deste princípio, pois se entende que disto resultará o benefício
dos homens.
A história do Egipto faraónico compreende três grandes épocas tradicionalmente
chamadas «Antigo Império» (da III à VI dinastia: XXVIII-XXIII séc. antes de Cristo),
«Médio Império» (cujo centro é a ¿XII dinastia: primeiro quarto do II milênio antes de
Cristo) e «Novo Império» (XVIII-XX dinastias: séculos XVI-XI antes de Cristo). Estas
épocas foram seguidas por «'períõHôs intermédios»; a última suscita a reacção da XXVI
dinastia (séculos VII-VI antes de Cristo) que conduz, através da ocupação persa
(525-404), aos Gregos e aos Romanos.
Jacques Pirenne, na obra citada em nota, pôs em evidência a alternância de
períodos individualistas e de períodos feudais na evolução do direito das instituições
egípcias. Já sob o Antigo Império, a monarquia torna-se unitária e poderosa, enquanto
que o direito privado conhece um certo individualismo, favorecido por um desenvol-

cycies de Miistoire de 1’ancicnnc Egypte», Buli. Atad. Belgique, cl. Utirei, 1959; ainda do mesmo, Hhtoire de ¡a civilhation de
l ’Egypte ancienne, 3 voi., Neuchâtel 1961-1963; E. SEIDL, Einführung in die ägyptische Rechtsgeschichte bis zum Ende des Neuen Reiches,
2 .a e d ., 1951; do mesmo, Aegyptische Rechtsgeschichte der Satten — und Perserzeit., 1956; ai tida do mesmo, *Altägyptisches Recht», em
B. SPULER (ed.), Handbuch der Orientalistik, Äbt. I, Erg. lei (Leiden 1964), pp. 7-48; Ch. CHEHATA, História do direito privado
egípcio (em árabe). Cairo 1951; A. I. HA RARI, Contribution à l'étude de la procedure judiàaire dans l'Ancien Empire égyptien, 1950;
H . GOEDICKE, Königliche Dokumente aus dem Alten Reich, 1967; Die Privaten Rechtsinschriften aus dem Alten Reich, 1970;
A. TH ÉO D O R ID ÈS, «The Concept of Law in Ancient Egypt», em J . R. HARRIS (ed.); The Legacy of Egypt, Oxford 1971,
pp. 291 e ss.; «Les cextes jur¡diques», em Textes et langages de l ’Egypte pharaonique, t. 111, Le Caire 1974, pp. 21 e ss,; «Le
Problem e du droit égyptien ancien», nas Acta du Colloque sur le droit égyptien ancien, Bruxelles 1974, pp. 1 e ss.; Schafìk ALLAM,
Das Verfahrensrecht in der altägyptischen Arbeitersiedlung von Deir el-Medineh, Tübingen, 1973; J. GIL1SSEN, «L’apport de l'histoire
du droit égyptien à letu d e de revolution genérele du droit et à la formation du juriste», nas mesmas Acta, pp. 227-243;
J . M O DRZEJEW SKI, «La regle de droit dans l’Egypte ptolémaique», em Amer..Stud. in Papyr., t. I, 1966, pp. 725 e ss.; «La
regle de droit dans l’Egypte romaine», Í id ., t. VII, 1970, pp. 317 e ss.
54

vim ento de uma economia de trocas. A partir da VI dinastia, assiste-se ao restabele­


cimento de um regime senhorial e em parte feudal, com o parcelamento da autoridade
entre os régulos, enquanto que o direito privado volta à solidariedade de clãs e de
aldeias, no quadro de uma economia fechada. A mesma evolução no Novo Império,
que atinge o seu apogeu na época da XVIII dinastia (séculos XVI e XII), mas um novo
declínio nos séculos XI-X. Depois, um terceiro ciclo ascendente na época da XXVI dinastia.
Jacques Pirenne quis reagir contra uma concepção demasiadamente linear do
direito egípcio, em que os historiadores se serviam de documentos de qualquer época
para reconstituir um sistema jurídico que pouco teria evoluído. Muitos dos especialistas não
alinharam pela interpretação dos textos dada por J. Pirenne; mas o essencial dela foi aceite.

2. D ireito do A ntigo Im pério

Os períodos do direito individualista são marcados por um estado jurídico


próxim o daquele que os Romanos conheceram nos séculos II e III da nossa era e
daquele que conhecemos hoje: um indivíduo isolado em face do poder, sem grupos ou
hierarquias intermédias, possui uma liberdade real para dispor da sua pessoa e dos seus bens.
ír Descrevamos, a título de exemplo, o direito da época que vai da III à V dinastia
/ (séculos XXVIII-XXV), que constitui o primeiro sistema jurídico desenvolvido da
( história da humanidade.
Todo o poder pertence ao rei. A nobreza feudal desapareceu. O rei governa com
os seus funcionários. Os chefes dos departamentos da administração formam um
verdadeiro «Conselho de Ministros», presidido pelo vizir, uma espécie de chanceler. Os
funcionários são agrupados em departamentos: finanças, registos, domínios, obras
públicas, irrigação, culto, intendencia militar, etc. Cada departamento possui os seus
ofícios na maior parte das 42 nomes (províncias). Todos os funcionários são nomeados
por um d jet, uma «ordem real»; eles são remunerados; e podem ascender todos eles às
mais altas funções, seguindo uma rigorosa carreira administrativa.
Os tribunais são organizados pelo rei. O processo é escrito, pelo menos parcial­
mente; junto de cada tribunal está instalada uma chancelaria, encarregada da conservação
dos actos judiciários e dos registos de estado civil.
A lei teria sido a principal fonte de direito (ainda que não se tenham encontrado
quaisquer exemplos dela); teria suplantado os costumes. E promulgada pelo rei, depois
do parecer de um «Conselho de legislação».
A este direito público centralizador corresponde um direito privado individualista.
Não há sinais de solidariedade clanica. Todos os habitantes são iguais perante o direito:
nem nobreza privilegiada, nem servos, nem escravos privados; mas os prisioneiros de
guerra são utilizados pelo Estado nas obras públicas e nas minas, em situação
semelhante ä dã escravatura.
A célula social por excelencia é a familia em sentido restrito: pai, mãe, e filhos
menores. Marido e mulher são colocados em pé de igualdade: não há qualquer
autoridade marital, nem tutela da mulher. As mulheres, mesmo casadas, podem dispor
do seu patrimônio próprio, por doação e por testamento. Não há sinais de harém; o
casamento é monogàmico, à excepção do do rei.
Todos os filhos, filha como filho, são iguais: nem direito de primogenitura, nem
privilégio de masculinidade. O filho maior pode possuir um patrimônio próprio, de que
pode dispor livremente. A liberdade de testar é completa, salvo (talvez) a reserva
hereditária a favor dos filhos. O testamento existe pelo menos desde a IV dinastia; difere
profundamente do testamento romano; é um acto de disposição (imytper = «o que existe
na casa»), revogável até à morte do testador (v. documento n.° 2 e 3, pág. 57 e sgs.).
Todos os bens, imóveis como móveis, são alienáveis. A pequena propriedade
domina; os grandes domínios são raros. Não há contratos perpétuos; há grande mobilidade
de bens revelada pela periodicidade dos recenseamentos.
O direito de contratos é muito desenvolvido: conservam-se actos de venda, de
arrendamento, de doação, de fundação.
O direito penal não parece de modo algum severo, em comparação com os
outros períodos da antiguidade; por exemplo, não se encontra praticam ente repre­
sentação da pena de morte.

3. Evolução p ara o regim e senhoria!

A partir do fim da V dinastia, constata-se uma evolução rápida para um regime


senhorial, através da formação de uma oligarquia social baseada numa nobreza sacerdotal,
e do desenvolvimento da hereditariedade dos cargos e das diversas formas de imunidade.
A esta evolução do direito público corresponde uma evolução paralela do direito
privado: reforço do poder paternal e marital, desigualdade no domínio das sucessões
pela introdução do direito de primogenitura e do privilégio de masculinidade. Muitas
das terras tornam-se inalienáveis: os contratos tornam-se raros.
Entra-se neste momento no regime de economia fechada, enquanto que as
províncias se separam do poder central. O declínio é geral. O Egipto instala-se numa
«feudalismo» que durará vários séculos; de facto, parece que algumas cidades do Delta
conservam o seu direito individualista.

4. S egundo e terceiro períodos d a evolução do direito egípcio

O renascimento da centralização do poder e do direito individualista começa com


a X II dinastia (Médio Império); ele será no entanto travado pelas invasões dos Hicsos
durante o II período intermédio.
56

N o século XVI, com a XVIII dinastia, reencontra-se um sistema jurídico que se


assemelha ao do Antigo Império, tanto no domínio do direito público como no
dom ínio do direito privado: preponderancia da lei, igualdade jurídica dos habitantes,
desaparecimento da escravidão, igualdade dos filhos e das filhas, liberdade de testar.
Este sistema jurídico individualista apaga-se, por sua vez, a partir do século XII,
sobretudo sob a influência crescente do clero e em razão de novas invasões: assistesse ao
desenvolvimento de um segundo período senhorial de natureza teòcrática que durará
até cerca de 700.
É neste momento que começa aquilo que Jacques Pirenne designou por terceiro
«ciclo» ascendente da evolução do direito egípcio. Encontra-se uma primeira mani­
festação duma renovação no «código» de Bócoris, rei da cidade marítima de Sais, cerca
de 720: as tenencias desaparecem, a escravidão por dívidas é suprimida, a mulher
adquire a completa capacidade jurídica, a igualdade dos filhos e das filhas é assegurada em
matéria de sucessão. Mas este sistema jurídico é ainda limitado a algumas cidades do Delta.
A partir de 663, Psamético, rei de Sais, vence a tutela dos senhores feudais e do
clero. Com a XXVI dinastia, instala-se no Egipto um novo tipo de direito privado
individualista e de poder real centralizado e forte. A ocupação persa, e mais tarde
romana, deixará subsistir parcialmente este sistema jurídicÕT"^^ uma influência
considerável sobre o desenvolvimento dos direitos helenísticos e romanos.
N a época dos Ptolomeus (séculos IV-I antes de Cristo), o Egipto permanece
entre os países mais prósperos da bacia mediterrânica. O sistema jurídico deste período
é cada vez melhor conhecido, graças à descoberta e análise de numerosos papiros, qüe
tornam possível o conhecimento da organização administrativa e judiciária e, sobretudo,
do direito privado da época G).

DOCUMENTOS

1. Instrução dada ao Vizir Rekmara (XII.a dinastia, século XVIII).

«Quando um queixoso vem do Alto ou do Baixo Egipto, é a ti que cumpre cuidar


que tudo seja feito segundo a lei, que tudo seja feito segundo os regulamentos que lhe dizem
respeito, fazendo com que cada um tenha o seu direito. Um vizir deve (viver) com o rosto
destapado. A água e o vento trazem-me tudo o que ele faz. Nada do que ele faz é desconhecido...
Para o vizir a segurança é agir segundo a regra, dando resposta ao queixoso. Aquele que é
julgado não deve dizer: «Não me foi dado o meu direito».

Sobre a papirologia, v. R. TAUBENSCHLAG, The law of greco-roman Egypt in the ligth of papyri, 2.* ed. Warsaw
1955; E. SEIDL, Ptolomdische Recbtsgescbicbte, 1962; M. Th. LENGER, Corpus des ordonnances da Lagtdest Bruxelas 1964;
J . MODRZEJEW SK1, «La règie de droit dans l'Empire ptolémaíque», American studies in papyro/ogy, t. I, 1966, p. 725 e ss., e
t. V II, 1970, p. 317 e ss.. Ver também a crónica anual de papirologia fetta por J. MODRZEJEWSKI na Revue bistorique de droit
français et éfranger.
«Não afastes nenhum queixoso, sem ter' acolhido a sua palavra. Quando um queixoso vem
queixar-se a ti, não recuses uma única palavra do que ele diz; mas, se o deves mandar embora,
deves fazê-lo de modo que ele entenda por que o mandas embora. Atenta no que se diz:
«O queixoso gosta ainda mais que se preste atenção ao que ele diz do que ver a sua queixa atendida».
«Atenta em que se espera o exercício da Justiça na maneira de ser de um vizir. Atenta
em o que é a lei justa, segundo o deus (Râ). Atenta no que se diz do escriba do vizir: ‘Escriba
de Maât (a Justiça/ é (o seu nome). A sala onde dás audiência, é a sala das Duas Justiças, em
que se julga: e quem distribui a Justiça perante os homens é o vizir».
«Atenta, um homem mantém-se na sua função, quando ele julga as causas conforme as
instruções que lhe são dadas, e é feliz o homem que age conforme ao que lhe é prescrito. Mas
não faças aquilo que desejas nas causas em que as leis a aplicar são conhecidas, pois acontece ao
presunçoso que o Mestre a ele prefira o temente».
«Que tu possas agir conforme estas instruções que te são dadas...

Tradução e comentário: A. MORET, Le Nil et la civilisation


êgyptimne, Paris 1937, pp. 331-332 et A. THEODORIDÈS,
«A propos de la loi dans TEgypte ancienne», Rev. Intern.
Dr. Antiq., t. 14, 1974, p. 148-150.

2. TESTAMENTO OU DOAÇÃO DOS FINS DA XII DINASTIA (cerca de 1850-1800):

No verso:
Acto de «imyt-per» que o «phylarque» Merysaintef realizou a favor de seu
filho Intefsaméry, de sobrenome Iousenbou.
No recto:
No ano XXXIX (de Amenemhat III), no 4.° mês da (estação) «akhet», no 19-° dia.
Acto de «imyt-per» feito pelo «phylarque» Merysaintef, de sobrenome Kebi, a favor do seu
filho Intefsaméry, de sobrenome Iousenbou.
«Eu dou o meu «phylarquat» a meu filho Intefsaméry, de sobrenome Iousenbou, com a
condição de ele ser para mim um «amparo de velhice» pois eu sou enfermo».
«Que ele seja investido instantaneamente».
«Quanto ao acto de «imyt-per» que eu antes tinha feito a favor da sua mãe, que este
seja revogado».
«No que diz respeito à minha casa, situada no domínio de Houtmedet, ela fica para
meus filhos, que nasceram de Satnebethenounesou, filha do guarda de conselheiro de distrito de
Sobekemhat, com tudo o que ela contém».

imyt-per: etimologicamente: «o que existe na casa», «inventário»; por extensão: «toda a manifestação de vontade
pessoal que modifica a devolução legal dos bens».
Chefe de um grupo de sacerdotes, chamado «phylé» na época grega.
58

Lista nominativa das testemunhas que assistiram a confecção do presente acto de


«imyt-per»: (três nomes).

A. THÉODOR1DÈS, «Le testament dans L Egypte


ancienne», Rev. intern. Dr. Antiquité, 3.° s., t.17,
1970, p. 125 à 129: Papyrus Kahoun, VII, 1.

3. TESTAMENTO DE PADRE, SÉCULO XI ANTES DE CRISTO (extracto).

Um padre, pai de fámília, institui legatária a sua mulher, exprimindo-se como se segue:
Assim, eu vim perante o Vizir e os Magistrados membros do Conselho (de Médinet
Habou), neste dia, a fim de fazer conhecer a sua parte a cada um dos meus filhos e esta
disposição que eu vou tomar a favor da «cidadã» Anoksounedjem, esta mulher que está na minha
casa actualmente, pois que o Faraó disse: que cada um faça o que deseja dos seus bens,...

A. THÉODORIDÈS, op. d t.; Papyrus Turin, 2021.

B. — OS D IREITO S CUNEIFORMES

Dá-se o nome de «direitos cuneiformes» ao conjunto dos direitos da maior parte


dos povos do Próximo Oriente da antiguidade que se serviram de um processo de
escrita, parcialm ente ideográfico, em forma de cunha ou de prego í6).
Apesar da grande diversidade étnica, estes povos desenvolveram civilizações
aparentadas, cuja comunidade foi reforçada pela difusão da língua acádica como língua
diplom ática e como língua culta.
Não há um direito cuneiforme único, mas um conjunto de sistemas jurídicos, de
períodos e de regiões diferentes, apresentando uma certa unidade: direitos das diversas
regiões da Suméria, da Acádia, da Babilônia, da Assíria, de Mi tanni, de Urartu e
tam bém de centros mais próximos do Mediterrâneo, como Alalakh e Ugarit. Mais ao
N orte, na Turquia actual, formou-se no 2.° milênio o vasto reino dos Hititas.

1. Evolução geral

A história dos povos do Próximo O riente dos milênios IV ao I é muito


complexa; o mesmo se passa com a evolução dos seus sistemas jurídicos. De resto, esta

^ G . CARD ASCIA, «Les droits cunéifbrmes», em MONIER, CARDASCLA e IMBERT, Histoire des institutions...
1956, pp. 17-68; e em J . GHJSSEN (ed.), In trod, bibliogr., A/2, Bruxelas 1966; R. HAASE, Einführung in das Studium
Keilscbriftlicher Rechtsquel¡en, Wiesbaden 1965; V. KOROSEK, «Keihchriftrech», Handbuch der Orientalistik, I A bt., Band 111,
L eiden 1964, p. 49-219; W . EILERS, «Réflexions sur les origines du droit en Mésopotamie», Rev, hist. droit fr . et etranger,
1 973, p . 195-216.
60

evolução é ainda muito mal conhecida; mas numerosas descobertas arqueológicas


recentes permitem reconstituir as suas fases principais.
Limitando-nos à região da Mesopotamia (Tigre e Eufrates), pode-se distinguir
na história política os seguintes grandes períodos í7>
— período sumério (fim do 4.° milênio — 2350);
— período acádio-sumério (séculos XXIV-XX);
— dinastia de Akkad (nomeadamente Sargon);
— 3 .a dinastia de U r (nomeadamente Ur-Nammu);
— período paleobabilónico (1900-1530, aproximadamente);
— dinastias de Esnunna, de Isin, de Larsa;
— reino de Mari;
— dinastia babilónica (nomeadamente Hammurabi, 1728-1686 antes de Cristo);
— período Kassite (séculos XVI a XII antes de Cristo);
— império assírio (séculos XI a VII antes de Cristo);
— dinastianeobabÍlónica(626-539);
Do ponto de vista da evolução do direito, a curva é mais simples do que a da
evolução do direito egípcio; ela não comporta senão um momento alto que se situa na
época de Hammurabi, enquanto que, no mesmo período, o Egipto começa somente a
sair do regime senhorial, depois de ter conhecido, contudo, um período de grande
desenvolvimento cerca de dez séculos mais cedo.
Os primeiros vestígios de uma sociedade estruturada e de uma organização
política situam-se já antes do «dilúvio» <8) nas cidades-templos sumérias: Eridu,
U r, Larsa, Lagas, etc...; trata-se de principados independentes dotados de um regime
de colectivismo teocrático, em que o poder estava nas mãos de assembléias de
sacerdotes.
Depois do «dilúvio» a evolução do direito é relativamente rápida entre os anos
2400 e 2000. Urukagina, rei de Lagas, por volta de 2400, é o primeiro reformador
social da história; nos textos que datam do seu reinado, constata-se uma tendência para
a igualdade jurídica entre os cidadãos. Essa evolução chega à maturidade nas recolhas
jurídicas redigidas entre os séculos XX e XVI.

2. Os grandes «códigos» dos direitos cuneiform es

A maior parte destas recolhas foram descobertas no decorrer das últimas décadas;
a sua publicação e sobretudo a sua tradução e a sua interpretação estão ainda em curso.

A cronologia da história dos povos cuneiformes dos milênios II e III continua a ser incerta; assim, a chegada
de H am m u rab i ao poder foi retardada de cerca de 275 anos e situada por volta de 1940 a.C .; situa-se actualm ente o seu
reinado en tre 1728 e 1686 a .C .. Adoptamos ?. cronologia de G . Cardasela na sua bibliografia.
<8) O dilúvio descrito na Bíblia foi provavelmente uma grande inundação da baixa planície do T igre e do
E ufrates, por volta dos séculos XXVI ou XXV a.C.
61

Chama-se-Ihes geralmente «códigos», erradamente, aliás, pois não contêm senão um


pequeno número de disposições (30 a 60 artigos), relativas a questões de detalhe, e não
uma exposição sistemática e completa do direito ou de uma parte do direito. São antes
recolhas de textos jurídicos agrupados de uma maneira que parece ilógica, mas
seguindo aquilo que parece ser «o mecanismo instintivo da associação de idéias». Estes
textos não parece mesmo terem sido leis, mas antes, como lhes chama o Código de
H am m urabi, dinât misharim, ou seja, julgamentos de direito, ensinamentos indicando
o caminho aos juizes. Cada frase, geralmente breve, diz respeito a um caso concreto e
dá a solução jurídica; a maior pane começa por uma expressão equivalente à expressão
latina si quis (se alguém .. situando a formulação a meio caminho entre o concreto e o
abstracto. Mas as recolhas de direito cuneiformes não conhecem qualquer si scema­
ti zação do direito, qualquer doutrina jurídica.
Ainda que aí não se encontre nenhuma exposição geral do sistema jurídico, estes
«códigos» constituem no entanto os primeiros esforços da humanidade para formular
regras de direito.

a) O mais antigo «código» actualmente conhecido é o de Ur~Nammu, fundador


da 3 .a dinastia de U r (cerca de 2040 antes de Cristo), (documento n.° 1, pág. 64)«
Possuem-se vestígios de textos mais antigos, como o «código» de Urakagina de Lagas,
dos meados do 3.° milênio, ou o de Sulgi, em Ur. Do mesmo período, conservam-se
milhares de actos da prática e actas de julgamento (di-tella) í9).
b) Depois do desmembramento do reino de Ur, vários principados fizeram
esforços no sentido da redacção de recolhas jurídicas, nomeadamente os de Esnunna
(perto do Tigre, na Acádia) e de Isin (perto do Eufrates, na Suméria). O Código de
Esnunna, escrito cerca de 1930 antes de Cristo (atribuído erradamente ao rei de
Bilalama), contém cerca de sessenta artigos (documento n.° 2, pág. 64). Do Código de
L ipit-lstar, rei de Isin, escrito cerca de 1880 antes de Cristo, encontrou-se o prólogo, o
epílogo e 37 artigos; era destinado a «estabelecer o direito nas regiões da Suméria e da
Acádia».
c) O monumento jurídico mais importante da antiguidade antes de Roma é o
Códjgo^de^ammurabiL rei da Babilônia (provavelmente J.7 26-168 6 )<10). O texto provavel­
m ente redigido por volta de 1694, antes de Cristo, está gravado numa esteia descoberta
em Susa em 1901 e actualmente conservada em Paris no Museu do Louvre. Compreende
282 artigos; numerosas disposições foram igualmente encontradas em tabuinhas deE .

E. SZLECHTER, «Le Code d ’U r-N am m u», Revue d*Atsyriologie, t. 49» 1955, pp. 169-177; do mesmo,
Tablettes juridiques et adm inistratives de la 3 .e dynastie d 'U ret de la I.*rt dynastie de Babylone, Paris 1963.
*^ G . R. D R IV ER, e J . MILES, The Babylonian Laws, 2 vols. 1952-1954 (textos c tradução desde o Código de
L íp it- Is h ta r aré à época neobabilóníca); A. FIN ET , Le Cade de Hammurapi. introduction, traduction et annotation, Paris
1973; E. SZLECHTER, Codex Hammurapi, Roma 1977. Deve-se escrever Hammu-rabi ( = Ham mu é grande) ou Hammu-rapi
( — H am m u cura)? Tal como G. Cardasela, conservámos Hammurabi; contra, A. Finer e E. Szlechter.
62

argila, de um manejo mais prático; são aparentemente os «códigos» portáteis de que se


serviam os práticos (ver documento n.° 3, pág. 65).
N a parte superior da esteia, um baixo-relevo representa o deus-sol Sarnas, «o
grande juiz dos céus e da terra», ditando a Hammurabi as regras do direito que aí estão
gravadas. Este declara, aliás, no fim do texto: «Hammurabi, rei do direito, sou eu a
quem Sarnas oferece as leis». As leis são portanto de origem divina; o baixo-relevo faz
pensar em Jeová entregando o Decálogo a Moisés {infra), Mas, enquanto que o direito
de Israel, como Os da índia e do Islão, são direitos religiosos, dados por Deus, o Código
de Hamm urabi não é senão inspirado, por Deus. O direito babilónico é sobretudo,
como o afirma também o prólogo do Código de Ur-Nammu, um «regulamento de
paz»; o rei aparece como um justiceiro e um protector dos fracos: órfãos, viúvas,
pobres; ele deve garantir a liberdade de cada um. O direito babilónico da época de
H am m urabi apresenta assim certas analogias com o direito proveniente do movimento
de paz dos séculos.XI e XII da Europa ocidental {infra),
d) Em Mari (no Eufrates, ao norte da Babilônia) descobriram-se desde 1935
cerca de 20 000 tabuinhas, datando da primeira metade do século XVIII, ou seja
pouco mais ou menos da época do Código de Hammurabi; trata-se em geral de
documentos da prática administrativa, jurídica ou económica. A sua decifraçâo e
tradução ainda não estão terminadas.
e) N a Assíria, a montante da Babilônia, recolhas jurídicas chamadas «códigos
assírios» foram redigidas em diversas épocas: as mais antigas datam de antes de
H am m urabi, cerca de 1950-1870 antes de Cristo; um segundo grupo data de cerca de
1450-1250; o terceiro, cerca de 750-700. Eles revelam todavia um direito muito
menos desenvolvido que o da região da Suméria e da Babilônia (U).
f) Os H hitas estavam instalados no segundo milênio na região de H atti, ao
centro da actual Turquia asiática (região de Ankara). Cerca de 1800 antes de Cristo,
formou-se aí um reino hitita, pela reunião de vários pequenos principados; reino de
tipo feudal, ele vai no decurso dos séculos seguintes aumentar o seu poderio, para se
tornar cerca de 1400 a 1300 num vasto império, pouco mais ou menos igual ao Novo
Im pério egípcio. Desaparece cerca de 1200 após as grandes invasões dos «povos do
m ar». Parece no entanto ter sido um elo de ligação entre os direitos mesopotâmicos e
os direitos gregos.
Em Hattusas (actualmente Bogasköy, a 150 km de Ankara), capital do reino,
foram descobertas a partir de 1906 mais de 2500 tabuinhas contendo actos jurídicos, e

<n> G . CARDASC1A, Les lots assynames, Paris 1969.


63

além disso duas recolhas de textos jurídicos que foram chamadas (erradamente) o Código
H itita , gravado em caracteres cuneiformes e datando provavelmente do século XIV <12>.
Estas recolhas contêm por um lado um conjunto de regras de origem consuetu­
dinària, por outro lado formulações relativamente abstractas de regras jurídicas
provavelmente proclamadas pelo rei, Elas dizem respeito sobretudo ao direito penal,
sancionando os delitos contra a autoridade pública, contra as pessoas e contra os bens
(sobretudo roubos); encontram-se aí também alguns artigos relativos ao direito privado,
nomeadamente ao casamento.
Foi igualmente encontrada em Hattusas, a cópia de tratados internacionais:
tratado de aliança com o Faraó Ramsés II (1270 antes de Cristo), tratados de
protectorado e de vassalagem com o$ países dominados pelo poder hitita. Trata-se dos
mais antigos actos da história do direito internacional(B).
No conjunto, o direito hitita é o de uma sociedade sobretudo agrícola, embora ainda
fortemente feudaiizada; parece mais arcaico que o da Babilônia na época de Hammurabi.

3. O d ireito da época de H ainm urabi

O código de Hammurabi e os numerosos actos da prática do mesmo período


dâo-nosü conhecer um sistema jurídico muito desenvolvido, sobretudo no domínio do
direito privado, principalmente os contratos. Os Mesopotamia* praticaram a venda
/ (mesmo a venda a crédito), o arrendamento (arrendamentos de instalações agrícolas, de^
casas, arrendamentos de serviços), o depósito, o empréstimo a juros, o título de crédito'^
à ordem (com a cláusula de reembolso ao portador), o contrato social. Eles faziam
operações bancárias e financeiras em grande escala e tinham já comandita de comerciantes.
G raças ao d e s ^ y ql yimen t o da eco nom ia de troca e das relações comerciais, o direito da
época de Hammurabi criou a técnica dos contratos, ainda que os juristas nào tivessem
chegado a construir uma teoria abstracta do direito das obrigações; da Babilônia, esta
técnica de contratos espalhou-se por toda a bacia do Mediterrâneo; os Romanos
herdaram-na finalmente e conseguiram sistematizá-la.
Subsistem no entanto, na época de Hammurabi, sobrevivencias do período
anterior, por exemplo, na medida em que o poder paternal é mais extenso do que no
Egipto (o pai insolvente podia entregar a sua mulher ou os seus filhos ao credor para
que eles trabalhassem ao seu serviço), ou ainda no facto de a poligamia subsistir,
p erm itin d o ao marido cuja esposa é estéril tomar uma outra mulher, e, enfim , na
medida em que o direito penai continua extremamente severo.
Sob o efeito das invasões que se seguiram à morte de Hammurabi (Hititas, Kassites,

(l2) R. HAASE. «Hethicische Recht*, em J . GILISSEN (ed.), Intr, b ib lt A/3, Bruxelas 1967; H. A. HOFFNER, The
Laws o f t h H ittties, W altham Mass. 1963-
n3> G . KESTEMONT, Diplomatique et droit international en Asie occidentale ( 1600-1200 av, J . C. ), Louvain-la-Neuve 1974.
64

Aqueus, Medos e Persas) e das civilizações menos desenvolvidas dos invasores, a sociedade
mesopotâmica desagrega-se, quer seja por absorção ou por feudalização. Só a* Babilônia
continuará durante vários séculos ainda a ser o centro de uma civilização desenvolvida
que transmitirá aos povos do Mediterrâneo: Hititas, Fenicios, Gregos e Romanos.

DOCUMENTOS

1. CÓDIGO DE UR-NAMMU (cerca de 2040 antes de Cristo).

Col. III. Havia pastores que ficavam junto dos bois, que ficavam junto dos carneiros e
que ficavam junto dos burros (...) Nesse dia Ur-Nammu, varão forte, rei de Ur, da Suméria e
da Acádia, com a força de Nanna, rei da cidade; (...) a equidade no país estabeleceu, a
desordem e a iniqüidade (pela força?) cortou; capitães de navios para o comércio «fluvial» (ou
para a navegação mercantil), pastores que ficavam junto dos bois, que ficavam junto dos
carneiros, que ficavam junto dos burros (...).
Col. VI. (...) Se um cidadão acusa um outro cidadão de feitiçaria e o leva perante o deus
rio (e se) o deus rio o declara puro, aquele que o levou...
Col. Vili. Um cidadão fracturou um pé ou uma mão a outro cidadão durante uma rixa
pelo que pagará 10 siclos de prata. Se um cidadão atingiu outro com uma arma e lhe fracturou
um osso, pagará uma «mina» de prata. Se um cidadão cortou o nariz a outro cidadão com um
objecto pesado pagará dois terços de «mina».

E. SZLECHTER, «Le Code de Ur-Nammu» Revue d'assy-


riologie, t. 49, 1955, pp. 169-177.2

2. LEIS DE ESNUNNA (cerca de 1930 antes de Cristo).

5. Se um barqueiro é negligente e deixa afundar o barco, ele responderá por tudo


aquilo que deixou afundar.
17. (Quando) o filho de um cidadão trouxe o dos ex-marito para a casa do seu (futuro)
sogro, e se um dos dois (noivos) morre, o dinheiro deverá voltar ao seu proprietário.
22. Se um cidadão (que) não tem o menor crédito sobre um (outro) cidadão conserva
(no entanto) como penhor o escravo (desse) cidadão, o proprietário do escravo prestará
juramento diante de deus: «tu. não tens o menor crédito sobre mim»; (então) o dinheiro
correspondente ao valor do escravo ele (o detentor do escravo) deve pagar.
27. Se um cidadão toma «por mulher» a filha de um cidadão sem pedir (o consen­
timento) do seu pai e da sua mãe e não conclui um contrato de «comunhão e casamento» com o
seu pai e a sua mãe, eia não é (sua) esposa (legítima), mesmo que èia habite um ano na sua casa.
36. Se um cidadão dá os seus bens em depósito a um estalajadeiro, e se (a parede da)
casa não está furada, o batente da porta não está partido, a «janela» não está arrancada, e se os
bens que ele deu em depósito se perdem, ele (o estalajadeiro) deve indemnizá-lo dos seus bens.
65

56. Se um cão é (conhecido como) perigoso, e se as autoridades da Porta preveniram o


seu proprietário <e este) não vigia o seu cão, e (o cão) morde um cidadão e causa a sua morte, o
proprietário do cão deve pagar dois terços de uma «mina» de prata.

E. S2UECHTER, Les lots d'Esnunna, transcription, traduction


et commentale (Publicações do Institut de Droit Romain
da Universidade de Paris XII), Paris, 1954, pp, 13-33.

3. CÓDIGO DE HAMMURABI (cerca de 1694 antes de Cristo)

1. Se alguém acusou um homem, imputando-lhe um homicídio, mas se ele não pôde


convencê-lo disso, o acusador será morto.
2. Se alguém imputou a um homem actos de feitiçaria, mas se ele não pôde
convencê-lo disso, aquele a quem foram imputadas as actividades de feitiçaria, irá ao Rio;
mergulhará no Rio. Se o Rio o dominar, o acusador ficará com a sua casa. Se este homem for
purificado pelo Rio, e se sair são e salvo, aquele que lhe tinha imputado actos de feitiçaria será
morto; aquele que mergulhou no Rio ficará com a casa do seu acusador.
45. Se alguém entregou o seu terreno contra o produto a um trabalhador e se. ele
recebeu o produto desses terrenos, se em seguida o deus Adad inundou o terreno ou se uma
inundação o destruiu, os danos ficam apenas a cargo do trabalhador.
60. Se alguém entregou um terreno a um arboricultor para aí plantar um pomar, se o
arboricultor plantou o pomar, durante quatro anos, ele cultivará o pomar; no quinto ano, o
proprietário e o arboricultor partilharão em igualdade os frutos, mas é o proprietário do pomar que
escolhe a parte com que quer ficar<a).
64. Se alguém entregou o seu pomar a um arboricultor para o fazer frutificar, o
arboricultor, enquanto tiver o pomar, entregará ao proprietário do pomar dois terços da
produção do pomar; ele mesmo tomará um terço.
133. Se um homem desaparecer e na sua casa há de comer, a sua esposa manterá a sua
casa e tomará conta de si; não entrará na casa de outrem. Se essa mulher não tomou conta de si
e se entrou na casa de outro, essa mulher será condenada e será deitada à água.
134. Se um homem desapareceu e se não há de que comer na sua casa, a sua esposa
poderá entrar na casa de um outro; essa mulher não é culpada.
145. Se um homem casou com uma sacerdotiza naditum e se eia não lhe deu filhos e se
ele se propôs casar com uma sacerdotiza sugétum, este homem poderá casar com uma sugítum; e
poderá fazê-la entrar na sua casa. Esta sugétum não será tida em pé de igualdade com a naditum
195. Se um filho agrediu o seu pai, ser-lhe-á cortada a mão por altura do pulso.

Comparar com o direito hebraico. Leviti™, XIX, 23-25:


«Quando tiverdes entrado na região e tiveides plantado todas as espécies de árvores frutíferas considerareis os seus frutos
«incirconcis» ( = proibidos); durante três*anos, serão, «tncirconsis» para vós; nao serão comidos. No quarto ano, todos os seus
frutos serão consagrados em louvor de Jeová. No quinto ano, comeréis os seus frutos e assim a árvore continuara a produzir para vós».
naditum: sacerdotisa de classe elevada.
sugétum: sacerdotisa de classe subalterna.
66

196. Se alguém vazou um olho de um homem livre, ser-lhe-á vazado o ólho.


197. Se ele partiu um osso de um homem livre, ser-lhe-á partido o osso.
A. FINET, Le Code de Hammurapi, Introduction, traduction
et annotations, Paris 1973.

C. — O D IR E IT O HEBRAICO
1. In tro d u ç ã o histórica

Os Hebreus são Semitas que viviam em tribos nómadas, conduzidas por chefes.
Eles atravessam a Palestina na época de H am m urabi, penetram no Egipto, retornam
(o Êxodo) à Palestina e instalam-se aí entre os Hititas e os Egípcios, provavelmente nos
inícios do século XII, talvez mais cedo.
A seguir à sedentarÍ2ação, é estabelecido um poder único sobre o conjunto das
tribos; pertence ao rei, cuja autoridade se reforça nos séculos XI e X. O apogeu do
reino de Israel situa-se na época de David ( 1029-960) e de seu filho Salomão (960-935).
Seguidamente, dissensões internas provocam a divisão em dois reinos: o reino de Israel,
no N orte, que foi ocupado pelos Assírios em 721; e o reino de Judá, no Sul, à volta de
Jerusalém , que resistiu até 586. Persas, Macedónios, Romanos ocuparam seguidamente
a Palestina. A revolta dos Judeus contra os Romanos leva, nos séculos I e II depois de
Cristo à sua dispersão (diaspora); mas, apesar da perda da sua unidade política, eles
conservam uma grande unidade espiritual.

2. C aracteres

O direito hebraico é um direito religioso. Religião monoteísta, muito diferente


dos politeísmos que a rodeavam na antiguidade. Religião que, através do cristianismo
que dela deriva, exerceu uma profunda influência no Ocidente.
O direito é «dado» por Deus ao seu povo. Assim se estabelece uma «aliança»
entre Deus e o povo que ele escolheu; o Decálogo ditado a Moisés é a Aliança do Sinai,
o Código da Aliança de Jeová; o Deuteronomio é também uma forma de aliança.
O direito é desde logo imutável; só Deus o pode modificar, ideia que reencontraremos
no direito canônico e no direito muçulmano. Os intérpretes, mais especialmente os
rabinos, podem interpretá-lo para o adaptar à evolução social; no entanto, eles nunca o
podem m odificar <l4>.

S. PAUL, «Biblical Law», em J . GILISSEN (ed.), Introd. bibliogr, op. c it., A/6, Bruxelas 1974; do mesmo,
Bibliographical M aterial for a Study of Biblical Law, Jerusalém 1972; Z. W . FALK, Hebrew Law in Biblical Times, Jerusalém 1964;
do m esm o, «Jewish Law», c m j . D . DERRETT (ed.). A n introduction to legal systems, Londres 1968, p. 28-53; J. PIRENNE, La
société hébraique, d'après la Bible, 1965; I. HERZOG, The M ain Institutions of Jewish Law, 2,® ed., 2 voi., Londres 1967;
B. C O H E N , Law and Tradition in Judaism, Nova Iorque 1959; do mesmo, Jewish and Roman Law, 2 Voi., Nova Iorque 1966;
R. D E V A U X , Les institutions de l*Ancien Testament, 2 voi., Paris 1958-1960; J. M. POWIS, The Origin and History of Hebrew Law,
Chicago I9 6 0 .
Assim, numerosas instituições hebraicas sobreviveram no direito medieval e mesmo
moderno, sobretudo pelo canal do direito canônico; porque o direito canónico tem a
m esm a fonte que o direito hebraico, a Bíblia, pelo menos os livros que os cristãos
designam pelo nome de «Antigo Testam ento».
Entre as sobrevivencias, citam-se nomeadamente a dízima e a sagração. A dízima
praticada em Israel, foi retomada no~ôci3ente desde a alta idade média para dar ao clero o
¿direito de se apropriar de uma parte (então um décimo) dos rendimentos dos fiéis.
_âj- sagração, que subsiste ainda em cerros pãrsés (nÓméãdamente em Inglaterra), é
um rito de entronização do rei, que consiste sobretudo na coroação que opera «o inves­
tim ento do rei pelo Espírito de Jeová» ; o rei torna-se assim o representante de Deus no
Estado; tendo o povo ratificado a escolha divina, um pacto de aliança é estabelecido
entre o rei e o seu povo.
O direito hebraico exerceu também uma grande influência sobre o direito m
mano, nomeadamente no domínio da organização da família, bem como das formas e
das condições do casamento.

3. F ontes do direito
Direito religioso, o direito hebraico está em grande medida confundido com a
religião, cujas fontes estão contidas nas escrituras, isto é, na Bíblia, livro da Aliança de
Deus com o seu povo.

a) A Bíblia <»>.
A Bíblia é um livro sagrado; contém a «Lei» revelada por Deus aos Israelitas.
Compreende (na sua parte pré-cristã, isto é, o Antigo Testamento) três grupos de livros:}
— O Pentateuco, quer dizer, os Cinco Livros: ^
'— '— ;------------------------------- '....... I
— a Gênese (a Criação, a vida dos patriarcas)
— o Êxodo (estadia no Egipto e volta a Canaã)*A,
— o Levítico (livro de prescrições religiosas e culturais)
— os Números (sobretudo a organização da força material) £,
— o Deuteronòmio, complemento dos quatro precedentes ^
M — os Profetas (que diz respeito, sobretudo, à história) ¿y
r\ — os Hagiógrafos (sobretudo, costumes e instituições). «
O Pentateuco tem para os Judeus o nome de T h o ra , quer dizer, a «lei es
revelada por Deus; ela é atribuída, segundo a tradição judia, a Moisés, donde a sua
denominação usual de «Leis de Moisés» ou «os Cinco Livros de Moisés». Na realidade,

H á inúmeras edições e traduções da Bíblia. Edição crítica: R. KITTEL (ed.), Biblia Hebraica, Estugarda 1954;
C. D . G IN SB U R G , Introduction to the Masoretko. Critical Edition o f the Hebrew Bible, Nova Iorque 1966. Tradução francesa: La
Sainte Bible, Paris 1946-1956.
68

o texto data de diferentes períodos; certas partes (nomeadamente as que dizem respeito
aos Patriarcas) remontariam ao início do segundo milênio; a maior parte das outras
teriam sido redigidas em períodos diferentes entre os séculos XII e V; a forma definitiva
não dataria senão,de cerca de 450 antes de Cristo. Este problema da datação continua
no entanto muito controvertido.
N a Bíblia, o direito é concebido como de origem divina; Deus é a última fonte e
sanção de toda a regra de comportamento; todo o crime é um pecado, pelo qual a
comunidade é responsável perante Deus, e não perante um governo humano. Na Bíblia
— como de resto nos Veda, ou no Corão — as prescrições jurídicas, morais e religiosas
estão confundidas.
Existem no entanto algumas partes do Pentateuco cujo conteúdo corresponde
mais especialmente às matérias que hoje se chamam jurídicas. Estes textos, considerados
como as fontes formais do direito hebraico, são nomeadamente:
— o Decálogo que, segundo a tradição, teria sido ditado a Moisés no Monte Sinai
por Jeová; ^conhecido por duas versões, uma no Êxodo (XX, 2-17), outra no Deute­
ronomio (V, 6-18); contém prescrições de carácter moral, religioso e jurídico muito
gerais, redigidas sob forma de máximas imperativas muito curtas; «Tu não matarás»,
«Tu não levantarás falso testemunho contra o teu próximo», etc. (ver documento
n .° 1, pág. 71);
— o Código da Aliança, conservado no Êxodo (XX, 22, a XXIII, 33); pela sua
forma e pelcTseú fundo, o texto assemelha-se às codificações mesopotâmicas e hititas,
nomeadamente ao Código Hammurabi (lé>, o que permite supor que uma primeira
formulação (talvez oral) poderia remontar a época anterior à estadia no Egipto. N a sua
forma final, o texto dataria da época dita «dos Juizes», isto é, do início da fixação em
Canaã, nos séculos XII ou XI antes de Cristo. O Código da Aliança contém prescrições
religiosas, regras relativas ao direito penal, à reparação dos danos, etc. Reflecte costumes
da época da sedentarização (ver documento n.° 2, pág. 71);
— o Deuteronòmio (do grego 8eurepovó|xtov, a segunda lei, á repetição ou a cópia da
lei) constitui úmarnova versão do Código da Aliança; na verdade, é uma codificação de
antigos costumes, tendendo sobretudo à manutenção da pureza do monoteísmo, mas
compreendendo também disposições que interessam ao direito público e ao direito familiar.
O Deuteronòmio dataria do século VII; é atribuído pela tradição ao rei Josias (621),
mas teria sido remodelado no século V (ver documento n.° 3, pág. 72);
— o Código Sacerdotal (ou Lei da Santidade), contido no Levítico (cap. XVII a
XXV I), datando provavelmente do século V (cerca de 445), contém um ritual dos
sacrifícios e da'sagração dos padres, mas encontram-se também aí disposições impor­
tantes sobre o casamento e o direito penal. Do mesmo período datariam os livros dos

(16> S M . PAUL, Stfídm tn toe oook of the Covenant in the Light of Cuneiform and Biblical Law, Leiden 1970.
69

Profetas e os «livros sapienciais» (Salmos, Provérbios, etc.) que completam as grandes


partes do Antigo Testamento.

b) A «lei oral» e a Michna


A Thora conservou uma autoridade considerável, mesmo nos nossos dias; qualquer
interpretação do direito hebraico apoia-se num versículo da Bíblia. Mas foi necessário
adaptá-la à evolução da sociedade hebraica, o que foi feito pelos padres, chamados
rabinos, comentadores da «lei escrita». As suas interpretações e adaptações formaram a
lei oral\ as origens desta são, segundo a tradição judia, quase tão antigas como as da
«lei escrita» de que ela descenderia.
A «lei oral» desenvolveu-se sobretudo na época do Segundo Templo, ou seja
en tre a volta do cativeiro de Babilônia (515 antes de Cristo) e a diàspora (70 depois de
Cristo). Pois na sua volta para a Judeia, os Hebreus tiveram de se adaptar a novos
modos de vida para os quais o velho direito bíblico não eia suficiente. Os Rabi (= mestres)
alargaram e desenvolveram a Thora por meio de um importante trabalho doutrinai, de
carácter exegético, incorporando também tradições e costumes novos. Esta actividade
dos Rabi é comparável à dos jurisconsultos romanos da mesma época {infra) que também
se esforçaram por adaptar um direito arcaico a uma sociedade em rápida evolução.
N o começo do século III da nossa era, um rabino (Rabi Yehouda Hanassi), chefe
espiritual da comunidade judaica na Palestina, procedeu, a uma nova redacção da «lei oral».
A sua obra, chamada Michna (isto é, ensino), eclipsou as outras redacções; longe de ser
um código que apresente as matérias jurídicas de uma forma metódica, a Michna é uma
recolha relativamente confusa de opiniões dos rabinos sobre matérias religiosas e jurídicas; a
opinião das minorias é mencionada ao lado da maioria dos «Sábios». Uma das partes,
chamada «Das Mulheres» (Seder Naschime), trata do casamento, do divórcio e de
outros problemas das relações entre os esposos (17).

c) Guémara e Talmude
A Michna foi, por sua vez, comentada e interpretada por numerosos rabinos dos
séculos III, IV e V d . C , uns trabalhando na Palestina sob a dominação romana, outros
na diàspora em Babilônia. Os comentários chamados Guémara (isto é, ensino tradicional),
cedo se tomaram mais abundantes que o texto da Michna em si mesma.
U m novo esforço de sistematização foi feito agrupando Michna e Guémara no
Talmude (isto é, «estudo»), inicialmente em Jerusalém (cerca de 350-400), depois na
Babilônia (cerca de 500), aproximadamente na mesma época da grande codificação
romana de Justiniano e da primeira redacção da Lei sálica {infra).

(I7) A Michna, «texto hebrea traduzido pelos membros do Rabí nado francês sob a direcção do rabino Guggenheim;
H , D A N B Y , The M isbnah, Oxford 1933; J . NEUSNER, A History Of the Misbnak Law of attinteti times (translation and explanation),
3 vols. editados, Leiden 198M982.
70

O Talmude da Babilònia, mais completo e mais claro que o da Palestina, preva­


leceu finalmente no judaísmo. Compreende não somente uma massa imensa de textos
jurídicos e religiosos, ou seja, explicações da lei (tialakha) que se impõem pela autoridade
da maior parte dos Rabi (comparar com a Idjma em direito muçulmano), mas também
numerosos textos que dizem respeito à história, à medicina, à astronomia, às ciências
em geral (l8).

d) Codificações medievais e modernas


O Talmude, por sua vez comentado, carecia de uma síntese e de uma sistema-
tizaçâo; assemelhava-se mais a uma enciclopédia que a um código. Esforços de codifi­
cação foram feitos em diversas regiões da Europa em que se desenvolveu a ciência
talmúdica. A primeira importante codificação foi realizada em Espanha por Maimonide
(segunda metade do século XII) que chegou a expor metodicamente as matérias relativas
à teologia, à ética, ao direito e à ciência política. A codificação definitiva é a de Joseph
Caro (século XVI), que foi impressa pela primeira vez em 1567; o Código de Caro
permaneceu como Código rabínico civil e religioso da diaspora; ele continua a reger
numerosos Israelitas que vivem fora de Israel (19).

QUADRO COMPARATIVO DAS FONTES

do Direito Hebraico do Direito Canónico

Tronco Comum
THORA = U i Escrita ANTIGO TESTAMENTO Jus Divinum

Pentateuco:
— Gênese
— Êxodo:
Decálogo (séculos XVI-XII?)
Código da Aliança (séculos XII-XI)
— Levítico:
Código sacerdotal (século V)
— Números
— Deuteronòmio (séculos VII a V)
etc.

(18) The Babylonian Talmud. Trad. I. EPSTEIN, Londres 193V — . (em publicação).
09) Moses MAIMONIDES, Mtshneh Torah, New Haven, Yale Judaica Series (tradução inglesa em curso); Joseph
Q A R O , Shulban Arukh, trad, inglesa de J. L. KADUSHIN, 4 vols., Nova Jorque 1915-1928; A. NEUMN, The Jews in Spain.
Their Social, Political and Cultural Life during the Middle Ages, 2 vols,, Filadélfia 1942.
LEI ORAL (see. V antes de Cristo — NOVO TESTAMENTO
séc. I depois de Cristo)
Michna (séc. IH aproximadamente) Evangelhos (séc. MI)
(Yehouda Hanasst) Actos dos Apóstolos
Epístolas
Guemara (séc. Ill-V) Patrística (escritos dos Padres da Igreja)
— da Palestina (séc. IIMV)
— da Babilonia iSlöayji Kuptov (séc. III)
Talmude Colecções canónicas:
— da Palestina (séc. IV) Denis le Petit (séc. VI)
— da Babilonia (cerca do séc. V) Decreto de Graciano (cerca de 1140)
Código de Maimonide (séc. XII) Decretais de Gregorio IX ( 1234)
Código de Caro (séc. XVI) Corpus juris canonici (séc. XVI)

DOCUMENTOS

1. O DECÁLOGO (séculos XVI a XIII?)


«E Deus pronunciou todas estas palavras dizendo:
Eu sou Jeová, teu Deus, que te fez sair do Egipto, da casa da servidão.
Tu não terás outros deuses diante da minha face.
Tu não farás imagem talhada, nem qualquer figura daquilo que está no alto do céu, ou
do que está em baixo na terra, ou do que está nas águas por baixo da terra.

Honra teu pai e tua mãe, a fim de que os teus dias sejam prolongados no país que Jeová,
teu Deus, te dá.
Não matarás.
Não cometerás adultério.
Não roubarás.
Não prestarás falso testemunho contra o teu próximo.
Não desejarás a casa do teu próximo; não desejarás a mulher do teu próximo, nem o seu
servidor, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu burro, nem nada que pertença ao teu próximo».

Êxodo, XX, 1-5 e 12-17.

2. CÓDIGO DA ALIANÇA (século XII)

Eis as leis que tu lhes darás (aos Israelitas):


(2) Quando tu comprares um servo hebreu, ele servirá seis anos; no sétimo ele sairá
livre sem nada pagar.
(3) Se ele entrou só, ele sairá só; se tinha uma mulher, a sua mulher partirá com ele.
72

(4) Mas se foi o seu patrão que ihe deu a sua mulher e ele lhe tinha gerado filhos e
filhas, a mulher e os seus filhos continuarão propriedade do patrão, e ele sairá só.
(5) Mas se o servo diz; eu amo o meu panão, a minha mulher e os meus filhos, eu não quero
ser libertado; então o patrão conduzi-lo-á diante de Deus, fà-lo-á aproximar do batente da porta e
fiirar-lhe-á a orelha com uma punção de tal sorte que o escravo esteja para sempre ao seu serviço.

( 12) Aquele que agride um homem mortalmente será condenado à morte.


(13) Mas se ele nada premeditou e se foi Deus que o fez cair sob a sua mão, fixar-te-ei
um lugar onde ele se possa refugiar.
( 14) Mas se alguém emprega artifícios para matar o seu próximo, poderás arrancá-lo do
meu altar para o conduzires à morte.
(13) Aquele que bate no seu pai ou na sua mãe será condenado à morte.
(18) Quando numa querela entre dois homens, um deles agride o outro com uma
pedra ou com o punho, sem causar a morte, mas obrigando-o a ficar de cama.
(19) Aquele que o tenha agredido não será punido se o outro recuperar e puder passear-se
fora de casa com a sua bengala. Todavia ele indemnizá-lo-á pelo tempo que não pôde trabalhar e
pelos seus remédios.
(28) Se um boi dá uma cornada a um homem ou a uma mulher e se a morte se seguir,
o boi será lapidado e não se comerá a sua carne. Mas o dono do boi não será punido.
(29) Mas se o boi era uscirò em dar cornadas, e se o seu dono sabia disso e não o tinha
vigiado, o boi, se ele mata um homem ou uma mulher, será lapidado, e o seu dono será
também condenado à morte.
Êxodo, XXI, 1-29.

3. DEUTERONOMIO

XVI 18-20: OsJuizes.


Estabelecerás juizes e magistrados em todas as cidades que Jeová, teu Deus, te der, de
acordo com as tribos, e eles julgarão o povo com justiça. Não farás flectir o direito, não terás
consideração pelas pessoas e não receberás quaisquer presentes, pois os presentes cegam os olhos
perspicazes e corrompem as palavras dos justos. Seguirás estritamente a justiça, a fim de que
vivas e possuas a terra que te dá Jeová, teu Deus.
XIX, 14: As Estrema*.
Não deslocarás a estrema do teu próximo, estabelecida pelos antepassados, na herança
que terás no país que Jeová, teu Deus, te dá para possuir.
XIX, 15: Os Testemunhos.
Um só testemunho não será admitido contra um homem para provar um crime ou um
pecado, qualquer que seja o pecado cometido. É de acordo com a palavra de duas testemunhas
ou com a palavra de três testemunhas que o caso será julgado.
XXV, 5: Levirato
Quando dois irmãos moram juntos, e um deles morra sem deixar filhos, a mulher do
defunto não se casará fora de casa com um estrangeiro; mas o seu cunhado irá ter com ela,
tomá-la-á por mulher, e desempenhará em relação a ela o dever de cunhado.
73

4. MICHNA e GUEMARA: Responsabilidade (séculos III a IV)

62b: MICHN A. Sc uma fagulha salta da bigorna e causa prejuízo, haverá responsa­
bilidade. Se enquanto um camelo carregado com linho passa num mercado público, o linho
penetra'numa tenda e se incendéia em contacto com a candeia do tendeiro e com isto incendeia
toda a construção, o proprietário do camelo será responsável. Se, contudo, o tendeiro deixou a
sua candeia do lado de fora da sua tenda, ele será responsável. O Rabino Judas diz: Se se tratar
de uma candeia chanukah, o tendeiro não será responsável.

D , — O D IR E IT O GREGO
O sistema jurídico da Grécia antiga é uma das principais fontes históricas
direitos da Europa Ocidental. Os Gregos não foram no entanto grandes juristas; não
souberam construir uma ciência do direito, nem sequer descrever de uma maneira
sistemática as suas instituições de direito privado; neste domínio, continuaram sobretudo
as tradições dos direitos cuneiformes e transmitiram-nas aos Romanos. Os Gregos
foram, porém, os grandes pensadores políticos e filosóficos da antiguidade. Foram os
primeiros a elaborar uma ciência política; e na prática, instauraram, em algumas das
suas cidades, regimes políticos que serviram de modelo às civilizações ocidentais <20).

1. Evolução dos sistem as políticos gregos

Não há propriamente que falar de direito grego, mas de uma multidão de direitos
gregos, porque, com excepçâo do curto período de Alexandre o Grande, não houve
nunca unidade política e jurídica na Grécia Antiga. Cada cidade tinha o seu próprio
direito, tanto público como privado, tendo caracteres específicos e evolução própria.
N unca houve leis aplicáveis a todos os Gregos; no máximo, alguns costumes comuns.
N a realidade, conhece-se mal a evolução do direito da maior parte das cidades; apenas
Atenas deixou traços suficientes para perm itir conhecer os estádios sucessivos da
evolução do seu direito.
N a evolução jurídica da Grécia pode-se, duma maneira esquemática, distinguir
os períodos seguintes:
a) A civilização cretense (do século XX ao XV a.C.), depois micènica (séculos

<20) G. SAUTEL, «Grèce», e t j . MODRZEJEWSK1, «Monde hellénistique», i n j . GIL1SSEN (ed.), Introd. bibliogr.,
A/7 e A/8, Bruxelas 1963 e 1965; J . GAUDEMET, Institutions de 1'Anttquité, op. cit., p. 125-250; A ,R .W . HARRISON, The Law
of Athens, fa m ily and Property, Oxford 1968; Procedure, Oxford 1971; G. GLOTZ, La cité grecqut, editado por CLOCHE, 1953;
L. G E R N E T, Droit et société dam da Grice ancienne, 1955; J. W . JONES, The law and legal theory of the Greeks, 1956; CL MOSSE,
Histo/re des Sociétés politiques en Grice, Paris 1969; V. EHRENBERG, Der Staat der Griechen, 2 * ed-, Zurique-Esmgarda 1965; trad,
franc.: L E ta t grec. Paris 1976; E. WOLF, Griechisches Rechtsdenken, 4 voi., Francforte 1950-1956; R. TAUBENSCHLAG, T heL aw of
Grego-Roman Egypt in the Light of the Papyri (332 B .C -640 A .D .) 2 * e d ., Warsaw 1955; R. DEKKERS, «Droit grec et histoire du
droit*», Rev. intern. dr. antiquité, 3.a s., t. 3, 1956, p. 107-118; CL PRÉAUX, Le monde hellmistique, 2 vol., Paris 1978.
74

XVI a XII a .C ), destruída pelos invasores dorios; na falta de documentos escritos, as


instituições e o direito desta época são m uito mal conhecidos.
b) A época dos clãs ( y ¿vq <;, genos = clã), comunidades ciánicas, depois aldeas,
assentando num parentesco real ou fictício; o rei (ßaatXeuc; — basileus), chefe do clã, é
aí ao mesmo tempo juiz e sacerdote, presidindo ao culto familiar. O sistema assenta
num a forte solidariedade activa e passiva dos membros do clã. Encontra-se descrito na
Odisséia de Homero.
c) A formação das cidades (noktç,, polis = cidade), pelo agrupamento de clãs,
prim eiro sob a autoridade do chefe de um deles. As cidades conheceram formas
políticas variadas; umas permaneceram monocráticas (ex. Macedonia); noutras, a
aristocracia exerceu o poder; noutras ainda, sobretudo nas cidades comerciais, um
tirano conseguiu impor-se, quer pela escolha dos seus concidadãos, quer por um golpe
de força. A cidade é geralmente um grupo social bastante limitado, instalado num
território pouco extenso, compreendendo a maior parte das vezes uma cidade, um
porto e um certo número de aldeias. Houve assim dezenas de cidades na Grécia e
tam bém nas regiões do Mediterrâneo que os Gregos colonizaram, designadamente na
Sicilia e no sul da Itália.
d) Nalgumas cidades estabeleceu-se, entre os séculos V ili e VI, um regime
democrático; o mais conhecido é o de Atenas, graças aos escritos dos oradores e dos
filósofos. As leis de Drácon, de 621, põem fim à solidariedade familiar e tornam
obrigatório o recurso aos tribunais para os conflitos entre os clãs. As de Sólon, de
59 4 -593, talvez elaboradas sob influência egípcia, instauram a igualdade civil,
suprim em a propriedade colectiva dos clãs e a servidão por dívidas, limitam o poder
paternal, estabelecem o testamento e a adopção. Sólon instaura uma democracia
moderada que fará a grandeza de Atenas. Esta democracia, apesar de numerosas
vicissitudes, levará o direito ateniense ao auge do seu individualismo com Clístenes e
Péricles. N a época clássica da democracia ateniense ( ± 580 a ± 338), os cidadãos
governam directamente, no seio da sua assembléia (exxXypía, ecclesia); exprimem aí a
sua vontade votando a lei (vópiot;, nomos), em princípio igual para todos (íaovojjtúx,
isonomia). A Assembléia toma todas as decisões importantes, mesmo no domínio
judiciário. A administração da cidade é assegurada pelo Conselho (Bulé), composto de
500 cidadãos tirados à sorte em cada ano, e pelos magistrados, quer eleitos, quer
tirados à sorte. Comparada às democracias modernas, a constituição de Atenas é no
e n tan to pouco democrática; os escravos não têm nenhum direito, nem político, nem
civil; os metecos (estrangeiros instalados na cidade) têm muito menos direitos que os
cidadãos. N a cidade de Atenas haveria cerca de 40 000 cidadãos — outros dizem
6000 — porém, centenas de milhares de metecos e escravos.
e) No fim do século IV a.C ., Alexandre unificou a Grécia, A Ásia Anterior e o
Egipto sob a sua autoridade. O império que fundou não conseguiu todavia manter-se;
75

substituem-se nele múltiplas monarquias, nas quais, a partir do século III, o poder é
exercido por reis absolutos. A sua vontade é «a lei viva», fórmula que será retomada
pelos imperadores romanos e depois, mais tarde, pelos monarcas da Europa Ocidental.

2. F ontes históricas dos direitos gregos

Não se conhecem relativamente bem senão as instituições de três cidades: Atenas,


pelos numerosos escritos literários, Esparta, graças à curiosidade dos Antigos, e
Gortina, graças à epigrafía. O direito das cidades gregas não parece ter sido formulado
nem sob a forma de textos legislativos, nem sob a de comentários de juristas; o direito
derivaria nxais -duma..^iiQç|gjnn^ ou menos vaga de justiça que estaria d i^ a ^ n a ^
consciencia colectiva.
As fontes escritas são raras. Os poucos textos que permitem o estudo do direito
grego, são — além das grandes epopeias de Homero, para o período arcaico — :
— alguns discursos do fim da época clássica do direito ateniense, designa­
dam ente os de Demóstenes e de ¡sen;
— numerosos documentos literários e filosóficos, designadamente os escritos de
Platão, Aristóteles, Plutarco;
— numerosas inscrições jurídicas;
— finalmente, dois documentos descobertos muito recentemente: a «lei de
Gortina» (longa inscrição descoberta em Creta em 1884, difícil de datar, porque
contém disposições que parecem dever remontar a épocas diferentes; século VI-V?) e a*
«Lei de Dura» (descoberta em 1922 no Eufrates, que seria uma cópia tat dia (século I)
dum a lei do século IV a.C. relativa às sucessões ab intestato) (V. documento n.° 4, p. 79).

3. C o n trib u to da G récia p ara a ciência política

O principal contributo dos Gregos para a cultura jurídica deve-se aos seus
trabalhos sobre o governo ideal da cidade. Foram os inventores da ciência política, a
ciência do governo da polis. Os seus melhores escritores e filósofos, Hesíodo,
H eródoto, Platão, Aristóteles, analisaram as instituições das cidades gregas para
fazerem a sua crítica e contraporem-lhe formas ideais de governo.
a) Para os pensadares gregos, a fonte do direito é o vopoç (nomos), que
traduz geralmente por «lei». A noção, desconhecida ainda nos poemas homéricos,
aparece em Hesíodo (século VII a.C.). Pindaro (século V a.C.) dirá que «a lei- é a
rain h a de todas as coisas». Um autor posterior, o Pseudo-demóstenes, dá uma
definição: «Os nómoi são uma coisa comum, regulada, idêntica para todos, querendo o
justo, o belo, o útil; chama-se nomos o que é erigido em disposição geral, uniforme e
igual para todos». O nómos é sobretudo o meio de limitar o poder da autoridade,
76

porque a liberdade política consiste em não ter que obedecer senão à lei. Mas a lei é
hum ana e laica; já não tem nada de religioso, de divino. Nó seu «Discurso contra
Timócrates», Demóstenes recorda como pode ser proposta e aprovada uma lei em
Atenas (v. documento n.° 1, p. 78).
N a prática, os Gregos fizeram poucas leis, no sentido romano e moderno do,
term o; porque o nómos designa tanto o costume como a lei. Serão os Romanos osi
primeiros que virão a distinguir, duma maneira precisa, o sentido de cada uma dessas
duas fontes de direito.
b) A doutrina de Platão (428-347) exerceu uma influência considerá
sobretudo por intermédio do seu discípulo Aristóteles, sobre o pensamento político
medieval e moderno (21>.
Ateniense de origem aristocrática, Platão participou nas actividades políticas do seu
tem po, sem grande sucesso aliás; daí resulta uma evolução constante do seu pensamento
e também uma crítica muitas vezes severa das instituições democráticas da sua cidade.
As suas principais obras são A República, A política e As Leis.
A República é sobretudo a descrição duma cidade ideal, dividida em três classes:
os governantes, os guaidiães-guerreitos, o povo. Deve ser governada por profissionais,
os Filósofos isto é, os que têm a sabedoria e a inteligência necessária. Para os formar é
necessário criar uma classe de guardiães que se consagram ao ofício das armas; estes
devem ser recrutados por exame, viver em comum na tenda para serem instruídos;
devem ser alimentados pelos outros (isto é, o povo) que devem pagar uma contribuição;
não podem possuir nada: nem terra, nem casa, nem ouro, nem prata; tudo deve estar
em comum, mesmo as mulheres. £ nesta descrição da classe dos guardiães que se
procurou a fonte do que se tem chamado o «comunismo» de Platão; de facto, trata-se
dum grupo privilegiado, destinado ao Governo da cidade (V. documento n.° 2, p. 78).
O s guardiães estão submetidos a provas sucessivas de selecção. Os melhores são, aos 30
anos de idade, instruídos na dialéctica. Dos 35 aos 50 anos exercerão cargos públicos,
sendo os Filósofos. Depois dedicar-se-ão à filosofia e ao ensino.
Esta cidade ideal é assim um regime aristocrático, sendo governada pelos
melhores, os ápurrei (aristoi). Mas Platão constata que de facto os regimes políticos
tendem a maior parte das vezes para a injustiça. Se os guardiães e os Filósofos se
baixam a procurar as honras, o regime avilta-se numa timocracia (Ttpr) timé = honra);
se acum ulam riquezas, conservarão o poder nas mãos dum pequeno número de
possuintes, formando uma oligarquia (okíyoc,: oligos = pequeno).
N o mais baixo da escala, Platão situa a democracia, o governo pelo povo (St](jloç:

(21) Sobre Platão e Aristóteles, v. a maior parte dos manuais de história das idéias políticas, designadamente os de
J . T O U C H A RD , d eM . PRELOT, etc. E, BARKER, The politicai thought o f Plato and Aristotle, Nova Iorque 1959; M. PIÉRARD,
Platon et la citégrecque. Theorie et rialitê dam lá Constitution des »Lots», Bruxelas 1974; E. KLINGENBERG, Platons »Nomoi geörgikoi
und das positive griechische Recht, Berlim 1976.
77

dêmos = povo); é um regime de desordem e de abuso, conduzindo à tirania, ao


governo por um único homem, à monocracia ([ióvoç: monos = só).
N a Política, Platão insiste sobre o fim moral da organização da cidade; a política
é assim uma subdivisão da ética, tendendo a instaurar o regime que tornará os homens
melhores. Ele classifica os governos em três tipos: monarquia, oligarquia e democracia,
m ostrando a sua preferência pelo prim eiro tipo. Insiste sobre a necessidade de
submissão às leis, sobretudo por parte dos governantes.
As Leis são uma obra menos utópica, mais próxima da realidade ateniense. Platão
aí reduz as formas de governo a duas: a monarquia, na qual o poder vem de cima, e a
democracia, em que ele vem de baixo. O regime ideal é uma mistura dos dois; uma
cidade governada por um colégio de sábios, guardiães das leis.
c) Aristóteles (385-322), discípulo de Platão e Isocrates, preceptor de Alexan
o Grande, escreveu numerosas obras, 47 das quais estão conservadas no todo ou em parte.
A sua influência sobre a Filosofia e as teorias políticas da Idade Média foi considerável.
Menos utópico que Platão, começou por analisar, nas suas Constituições, a forma
de governo em mais de cem cidades gregas e bárbaras; a sua descrição da constituição
de Atenas (’AOrjvattuv üoXiTeía) foi recentemente reencontrada.
Expõe na Política as suas concepções teóricas da forma de governo. Classifica as
formas existentes em monarquia, aristocracia e democracia; se degeneram, apresentam-se
sob uma forma corrompida: tirania, oligarquia, demagogia. Aristóteles é um dos
primeiros a adm itir a relatividade humana: uma forma de governo^ pode ser Eoa du má
conforme o grupo sodai ao qual se destina. As suas preferências vão para um regime
m isto, conciliando os princípios monárquicos, aristocráticos e democráticos. O povo
não deve intervir senão para eleger os magistrados e tratar os grandes problemas; o
poder deve ser exercido pela classe média, por ser a que tem mais méritos (V. documento
n .° 3, p. 79).
N a estrutura do Governo, Aristóteles distingue três actividades: o poder
deliberativo, o poder executivo (para recrutar e organizar as funções públicas) e o poder
judiciário. A sua análise é mais matizada e mais subtil do que a que fará Montesquieu
no século XVIII; mas terá pouco sucesso porque tanto Roma como os regimes políticos
da Idade Média e dos tempos modernos admitirão a confusão dos três poderes entre as
mesmas mãos.

4. O d ireito privado

O direito privado grego deixou pouco traços no nosso direito moderno, e estes
por interm édio dos Romanos. Os Gregos mal souberam exprimir as regras jurídicas em
fórm ulas abstractas; há poucas leis, poucas obras jurídicas.
A terminologia jurídica moderna, no entanto, provém em parte da língua grega.
Assim, sinalagmático, no sentido de recíproco (Código Civil, art. 1102) vem de
78

tfuv + áXXá'T'Tíu (trocar + com); quirográfico vem de + Ypáçcu (escrever à


mão), na Idade Média acto manuscrito, actualmente crédito não privilegiado. Citemos
ainda an ticrese, enfiteuse, hipoteca, parafernais.
O direito privado grego melhor conhecido é o de Atenas; na época clássica
(século V e IV a.C.), esse direito era muito individualista, permitindo ao cidadão
dispor livremente da sua pessoa e dos seus bens. Encontram-se mesmo regras jurídicas
mais favoráveis à liberdade individual que no direito romano clássico; eis três exemplos:
— o poder paternal, no seio da família (oíxoç), é limitado enquanto que em
Roma permanece muito extenso. Pela maioridade, o filho escapa à autoridade do pai, o
que nunca foi introduzido no direito romano; o poder paternal permanece todavia
m uito forte em Atenas em relação às filhas que não saem nunca da tutela, quer se trate
da do seu pai quer da do seu marido. A comparação aqui é favorável ao direito romano
que se mostra mais favorável à mulher;
— a transferência da propriedade realiza-se em direito grego apenas por efeito do
contrato; mas este efeito é limitado às partes; em relação a terceiros, é organizado um
sistem a de publicidade parecido com o nosso sistema de transcrição dos actos.
A protecção de terceiros é assim melhor assegurada na Grécia do que em Roma, onde
esta publicidade não existia;
— em matéria de contratos, o direito romano mantém um certo formalismo sem
o qual o contrato não é válido; contrato consensual é a excepção; na Grécia, as
convenções parecem formar-se apenas pela vontade das partes, sem formalismos.

DOCUMENTOS

1. DEMÓSTENES: Discurso contra Timócrates (353 a.C)


«Nas leis que nos regem. Atenienses, contêm-se prescrições tão precisas como claras
sobre todo o processo a seguir na propositura das leis. Antes de mais, fixam a época em que a
acção legislativa é admitida. Em segundo lugar, mesmo então, não permitem a todo o cidadão
exercê-lo à sua fantasia. É necessário por um lado, que o texto seja transcrito e afixado à vista de
todos perante os Epónimos; por outro lado, que a lei proposta se aplique igualmente a todos os
cidadãos; enfim que as leis contrárias sejam derrogadas; sem falar doutras prescrições, cuja
exposição, parece-me, não teria interesse para nós neste momento. Em caso de infracção a uma
só destas regras, qualquer cidadão pode denunciá-la».
Demóstenes, disc. XXVI, Contre Timocrate, 17 e ss. (extr.); trad. O. Navarre' e P. Orsini
(Démostbène, Plaidoyers politiques, t. II), Paris, Les Belles-Lettres, 1954, p. 135 ess.

2. PLATÃO: A República, III, 22 (416 e ss).


«Vejamos pois, digo eu, se para os tornar tais (os guardiões da cidade) não é necessário
impor-lhes o regime e o alojamento que vou referir. Desde logo, nenhum deles possuirá
79

quaisquer bens próprios, salvo os objectos de primeira necessidade; em seguida, nenhum terá
habitação ou depósito algum, em que não possa entrar quem quiser. Quanto a víveres, de que
necessitarem atletas guerreiros sóbrios e corajosos, ser-ihes-ão fixados pelos outros cidadãos,
como salário da sua vigilância, em quantidade tal que não lhes sobre nem lhes falte para um ano.
As suas refeições serão em comum, e em comunidade viverão, como soldados em campanha.
Quanto ao ouro e à prata, dir-se-lhes-á que os têm sempre na sua alma, divinos e de
procedência divina, e para nada carecem do ouro e da prata dos homens, e que seria impiedade
poluir aquele que já possuem, misturando-o com a pertença dos mortais, porquanto já muitos
crimes ímpios se produziram por causa da moeda do vulgo, ao passo que a deles é pura.
Unicamente a eles, dentre os habitantes da cidade, não é lícito manusear e tocar em ouro
e prata, nem ir para debaixo do mesmo tecto onde os haja, nem trazê-los consigo, nem beber por
taças de prata ou de ouro, que é o único meio de assegurar a sua salvação e a do Estado».

Trad. E. CHAMBRY
(Platon, Oeuvres..., t. VI) Paris, Les Belles-Lettres,
1947, p. 139-140.

3. ARISTÓTELES: Politela, III, I, § 2 (1274b), 48 (1275b)

Uma cidade é, com efeito, um corpo composto, como qualquer outro corpo formado de
partes justapostas; é portanto evidente que é necessário desde logo indagar sobre o cidadão.
A cidade consiste num conjunto de cidadãos, de modo que é necessário considerar quem deve
ser qualificado como cidadão e qual é a natureza do cidadão. Por isso mesmo, há muitas vezes
controvérsia à roda desta questão do cidadão: nem todos concordam em afirmar que um
determinado indivíduo é cidadão. Assim aquele que é cidadão numa democracia, não o é muitas
vezes numa oligarquia.
Aquele que tem o direito de aceder à comunhão do poder de deliberar e de julgar,
esse, dizemos, é cidadão da cidade considerada; e a cidade é um conjunto de pessoas desta
qualidade, (em quantidade) conveniente a fim de realizar uma autarquia vital, para dizer tudo
numa palavra. Na prática, reserva-se a qualidade de cidadão àquele que descende de dois
(progenitores) tendo ambos a qualidade de cidadãos e não apenas um deles, quer seja o pai ou a
mãe; alguns vão mesmo mais longe nas suas exigências, requerendo (a qualidade de cidadão) em
duas ou três gerações de ascendentes), ou mais ainda.

Trad, feita segundo a ed. H. RACKMAN, Londres —


Cambridge (Mass.), 1950.jp. 172 ess.

4. GORTINA (Creta), Leis da Cidade (cerca de 480-460 a.C.)

Se alguém comete violência contra um homem livre ou contra uma mulher livre, pagará
100 estateros; se um escravo (comete violência) contra um homem livre ou umá mulher livre,
pagará o dobro.
80

Se o pai, em vida, quer dar alguma coisa à sua filha quando do seu casamento, que lhe
dê conforme o que foi escrito, mas não mais.
Se um homem ou uma mulher morrerem, deixando filhos, netos ou bisnetos, que estes
herdem os bens.
Se aquele que comprou um escravo no mercado não resolveu a compra nos sessenta dias
(seguintes), e se (o escravo) causou algum prejuízo antes ou (o causa) posteriormente, a acção
em tribunal será dirigida contra o detentor (do escravo).

Trad, segundo a ed. M. Guarducci, Inscripttones ereticai..,,


t. IV, Roma, 1950, n. 72, p. 128 e ss.

E. — O D IR E IT O ROMANO

A evolução ascendente do direito romano é mais tardia que a do direito egípcio e a do


direito grego; Roma estava ainda no estádio ciánico na época em que, no Egipto e na
Grécia, o direito já tinha atingido uma forma individualista (séculos VI e V a.C.); não
atingirá esta senão no decurso dos séculos II e I antes da nossa era <22).
A história do direito romano é uma história de 22 séculos, do século VII a.C. até ao
século VI d .C ., no tempo de Justiniano, depois prolongada até ao século XV no império
bizantino. N o Ocidente, a ciência jurídica romana conheceu um renascimento a partir do
século XII; a sua influência permanece considerável sobre todos os sistemas romanistas de
direito, mesmo nos nossos dias.
Foi sobretudo o direito privado romano que atingiu um nível muito elevado e que
exerceu uma influência duradoura sobre o direito da Europa medieval e moderna. Pouco
será referido no breve resumo que se segue, ficando a terceira parte deste livro consagrada à
história dum certo número de instituições de direito privado; quase cada capítulo começa
por uma breve exposição da evolução da instituição na história do direito romano. Nas
páginas que se seguem, outros dois aspectos do direito romano serão esboçados: o direito
público, através duma análise das formas sucessivas de governo, e as fontes do direito.

1. I n tro d u ção histórica

Roma, cuja fundação teria tido lugar, segundo a lenda, em 753 a.C ., não era senão
um pequeno centro rural no século VIII a.C .. Dez séculos mais tarde, nos séculos II e III da
nossa era, Roma é o centro dum vasto império que se estende da Inglaterra, da Gália e da
Ibéria à África e ao Próximo Oriente até aos confins do império persa.2

(22) Bibliografia enorme; basca remeter para três excelentes obras recentes e para as referencias publicadas na nossa
Introdução bibliográfica: R. VILLERS, Rome et U droit privé, Paris 1977, col. L 'Evolution de í'humanité;}. GAUDEMET, Institutions de
VA ntiquité, op. d t., Paris 1967, e Le droit privi romain, Paris 1974, col. U 2; P. STEIN, «Roman Law: Sources»; TH. LJEBMAN-
-FR A N C FO R T, «Droit romain: droit public»; J. H. MICHEL, «Droit romain: droit privé»; J. A. C. THOMAS «Roman Law:
Crim inal Law», i n j . GILISSEN (ed.), lntrod. Bibiiogr., A/9, A/10, A / l l e A/12, Bruxelas 1965-1972; A. D'ORS, Derecho romano,
Pamplona 1973 ; SEBASTIÃO CRUZ, Direito romano, l. Fontes, Coimbra 1984.

Você também pode gostar