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Organizagao do Estado Brasileiro Tonguaro Janome Advogado. Professor de Direito Constitucional SUMARIO 1 — Introdugdo. Hf — Estrutura central do Estado brastletro. 111 — Repiiblica. IV — Federagdo. 1 — Introdugao 1. Este estudo introdut6rio da organizagao do Estado brasileiro € um exercicio de direito positivo. Nao se trata, portanto, de critica histérica, politica ou ética; cuida-se de analisar o que cfetivamente esté posto de forma heterénoma na Constituigio. As escolhas metajuridicas foram da Assembiéia Nacionel Constituin- te: quem estuda o direito positivo explora as possibilidades juridicas do 2. Trata-se, € claro, de um exercicio de Direito Constitucional, daquilo que € proprio do Direito Constitucional. Exclua-se, destarte, 0 que for cir- cunstancialmente incluido no documento “Constituigéo”. Constituicao, enquanto texto de organizagio do Estado é contrato po- Iitico, pacto ou acordo de maiorias e minorias transit6rias com capacida- de de expressao politica efetiva. Contém, portanto, o denominador comum minimo necessério A estruturagéo do Estado e @ organizagéo das forgas politicas. ‘Aula proferida no Instituto de Desenvolvimento de Recursos Humanos do Distrito Federal, em julho de 1991. Re inf, logisl. Brosilia 0. 29 mn, 113 jan./mor, 1992 3t Constituigfio no sentido material (contetido necessério) ¢ nfo no sen- tido formal (expresso supérflua); este o objetivo do estudo. Do formal supérfluo séo exemplos: — 0 art. 57, § 1.°: “As reunides” (do Congresso Nacional) “mar- cadas para essas datas” (15 de fevereito a 30 de junho © 1.° de agosto a 15 de dezembro) “‘sergo transforidas para o primeiro dia stil subsequen- te quando recafrem em s&bados, domingos ou feriados.” — o art, 208, § 3°: “Compete ao Poder Piblico recensear os edu- candos no ensino fundamental, fazerlhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsdveis, pela fregiiéncia @ escola.” A conseqiiéncia, certamente impensada, desta norma € a responsabi- lidade do Estado por ato ilfcito do administrador que, por culpa ou dolo, deixe de proceder & chamada de aluno que, na gazeta fora da escola, s0- fra acidente, porquanto descumprida a obtigagdo constitucional de zelar pela freqiiéncia (art. 37, § 6.). 3. Vale dizer, em sintese, 0 estudo das regras que “dao fundamento ao Estado, sua existéncia ¢ sua estrutura” (Paul Bastide), sem perda da pers- pectiva de “garantia da liberdade de um povo, porquanto tudo que for pertinente & liberdade seré constitucional” (Benjamin Constant). Il. Estrutura central do Estado brasileiro “Att. 1° A Repiblica Federativa do Brasil, formada pela unio indissoltivel dos Estados e Municipios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrético de Direito e tem como fun- damentos (...) Pardgrafo tnico. Todo o poder emana do povo, que 0 exer- ce por meia de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituiggo.” 4. Principios centrais do Estado brasileiro sao, assim, a repiblica, a fe- deragao e a soberania popular. ‘A soberania popular € a fonte tinica de legitimacdo da reptblica da federacao, estas instrumentos de organizagéo do governo e do Estado. 5. Embora conceitos distintos, tanto no Direito, quanto na Histéria na Ciéncia Politica, expressam-se, reptiblica © federagio, juridicamente, quer no sistema constitucional, quer no direito infraconstitucional, mediante ins- titutos ¢ normas freqiientemente comuns, em simbiose de notével harmo- nia. Razovel, contudo, necessétio mesmo, que se destaque o que € mais proprio de cada qual, 2 R. taf. legisl, Brovilia @. 29 m, 13 jon./mar. 1992 6. Tenha-se presente que “um principio juridico nao existe isolado, mas acha-se em fntima conexdo com outros principios, O direito objetivo, de de fato, no é um aglomerado castico de disposigdes, mas um organismo jut dico, um sistema de preceitos coordenados e subordinados, no qual cada um deles tem lugar préprio” (Ferrara, apud Ataliba). Ou, ainda, em outros termos, principio € a expresso de uma cate- goria que submete 4 sua coeréncia interna axiomdtica, ndo 36 sistema juridico, como também a norma que Ihe d4 expresso externa. Em suma, a base do sistema, Este estudo, portanto, posto o essencialmente constitucional, pretende ordenar, sistematicamente, 0 que da soberania popular, da reptblica e da federago impositivamente decorrerd. 7. Esta a ordenago constitucional de 1988: Titulo III. Da Organizagio do Estado Cap. 1. Da Organizaggo Politico-Administrativa Cap. I. Da Unio Cap. III. Dos Estados Federados Cap. IV. Dos Municipios Cap. V. Do Distrito Federal e dos Territérios Segdio I. Do Distrito Federal Segao II. Dos Territérios Cap. VI. Da Intervengio Cap. VII. Da Administragdo Piblica Segdo 1. Das Disposigdes Gerais Segao II. Dos Servidores Pablicos Civis Segéio III. Dos Servidores Publicos Militares Segdo IV. Das Regides MII. Repablica 8. — Repiblica 6 “um governo que aufere todos os seus poderes, direta ow indiretamente, da grande massa do povo, e € exercido por pessoas que conservam suas fungdes de modo precario, por tempo limitado ou enquan- to procedem bem” (Madison, The Federalist). R. inf. legis! Gravitia a. 29m. 113 jan./mor. 1992 33 Contemporaneamente, “é 0 regime politico em que os exercentes de fungées politicas represeatam o povo e decidem em seu nome, fazendo-o com responsabilidade, eletivamente e mediante mandatos renovaveis perio- dicamente” (Geraldo Ataliba). 9. Dos dois conceitos extraem-se as seguintes caracteristicas do regime republicano: (a) Soberania popular 10. O povo € 0 titular nico do poder originério de organizagao do Esta- do, isto 6, do poder constituinte; cle o delega aos seus representantes, cuja qualificagéo de cidadania prescreve, para fins especificos, em hipdteses previamente estabelecidas, para exercicio mediante processo legal por ele estipulado (due process substantivo e processual). Todo poder ¢, portanto, delegado, e delegado mediante lei: ninguém se autolegitima ou se confere capacidade de representagio, A soberania popular esti no art. 14 da Constituigdo, “‘serd exercida pelo sufrégio universal e pelo voto direto e secreto, com igual valor para todos, e, nos termos da lei, mediante plebiscito, referendo (ou) iniciativa popular”. O exercicio direto de automanifestacao da soberania, contudo, no se esgota na iniciativa popular (art. 61, § 2°), pois pode ser expresso, também, mediante varios mecanismos juridicos inerentes ao regime re- publican, postos na prépria Constituigdo, como se verd adiante. (b) Responsabilidade 11. Politica. B a submissio dos agentes piblicos politicos ¢ administra- tivos, de capacidade delegada, aos principios fundamentais expressos na Carta mesma (art. 85) e¢ aos intrinsecamente inerentes ao sistema, por- quanto, sabidamente, um sistema juridico ndo se esgota nas suas normas positivas, muito menos um sistema constitucional, cuja capacidade juri- dica de responder no tempo as exigéncias novas é essencial a estabilidade do Estado, e por via de conseqiiéncia, mais crucial ainda & certeza de liberdade, niio sé individual, mas também de todo o agregado social. Implica a renovago periddica de mandatos, mediante eleigdes livres, julgamento subjetivo nao motivado que renova a legitimidade ética do agente piblico. A responstbilidade politica traz efeitos legais especificos, como 0 jul- gamento politico, embora observado rito juridico, do Presidente da Repi- blica perante o Senado Federal, se admitida a acusagao por dois tergos da Camara dos Deputados (art. 86). ” R. inf, agial. Brosilia @. 29, 113 jon./mor, 1992 12. Legal. principio da legalidade est4 posto no art, 5., IE (“ninguém ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senéo em virtude de Jei”) e no art. 37, caput, como um dos quatro principios centrais da administragio publica em geral. Dele decorre a imposigSo de que o agente péblico politico ou admi- nistrativo hé de estar legalmente capacitado para praticar 0 ato previsto em lei mediante forma ou instrumento autorizado por lei. se trata, no entanto, de legalidade formal somente, mas também material; nio é a aparéncia, mas o contetdo. 13. Esta a razio para que moralidade e impessoalidade sejam agora nor- mas de direito positivo (art. 37, caput). Por isso mesmo, o controle do ato politico ou administrativo deixa de ser mera fiscalizagio das formalidades legais extrinsecas, mas, também, por imposigo normativa da ordem repu- blicana nova, exame das motivacGes materiais intrinsecas, dado o coman- do normativo positiyo constitucional da moralidade ¢ da impessoalidade. 14. Nao satisfeito em esperar pela andlise das inferéncias necessérias, © constituinte originério criou a responsabilidade solidéria para quem, res- ponsével pelo controle interno do poder piblico, tome conhecimento de qualquer irregularidade ou ilegolidade ¢ delas nfo dé ciéncia ao Tribunal de Contas da Unido (art. 74, § 1.°). 15. Por isso mesmo a relevincia substantiva de duas inovagdes da Cons- tituiggo: — a do art. 5°, XXXV, segundo o qual ‘‘a lei no excluiré da apre- ciagio do Poder Judiciério lesio ou ameaga a direito”, do que decorre, por nio se exigit o fato concreto ou atual, mas a sua mera probabilidade ou expectativa, expansic notivel do poder cautelar do juiz, particular- mente quando combinado com as normas de moralidade e impessoalidade; — a do art. 5°, LIX, onde se dispds que “seri admitida ago pri- yada nos crimes de acdo publica, se esta nao for intentada no prazo le- gal”, substituico processual que enseja & soberania popular expressar-se por si propria, independentemente da omissdo do agente piblico com capa- cidade legal expressa. 16. Resta claro, neste sistema normativo, que, nfo s6 se impe o exame do mérito do ato administrativo, sem o que nfo haveré como z contetido substantivo aos comandos normativos da moralidade ¢ da im- pessoalidade, como a propria Constituigao, dada a relevincia material do princfpio expresso na norma, fixa, ela propria, a pena para a negligéncia para com o prinefpio constitucional republicano, qual seja a responsabi- lizagio solidéria 17. Ainda neste mesmo t6pico da responsabilidade legal sio igualmente relevantes trés outras disposigdes constitucionais, todas no art. 37. R. Inf. legisl, Brasilia a. 29 nm, VIS jon./mor. 1992 33 O § 42 c/c art. 15, V: a suspensio dos direitos politicos, a perda da fungfo ptiblica, a indisponibilidade dos bens ¢ o ressarcimento ao erd- rio, na forma e gradagao previstas em lei, sem prejuizo da acéo penal cabivel, por atos de improbidade administrativa. © § 52: “A lei estabelecerd os prazos de prescrigdo para ilicitos pra- ticados por qualquer agente, servidor ou nio, que causem prejuizo ao etétio, ressalvadas as respectivas agdes de ressarcimento”. O § 6: a responsabilidade por danos a terceiros causades por agentes de pessoas juridicas de direito publico e de direito privado prestadoras de servigos publicos, assegurado 0 direito de regresso contra o responsé- vel nos casos de dolo au culpa, vale dizer, primeiro, que o Estado, en- quanto agente da soberania popular, sé pode agir conforme a lei, e que, nfio o fazendo, 6 responsabilizado; segundo, que o servidor piblico, ou quem a ele assemelhado, que aja em nome do Estado, também & respon- sével quando néo atue conforme o modelo do devido processo legal. 18. Revela-se, ai, a forga do castigo constitucional pelo desrespeito a responsabilidade republican: a ado de ressarcimento é imprescritivel, e, pior, a suspensdo dos direitos politicos, ou seja, a cassagéo da cidadania ativa, o bem juridico historicamente mais precioso da vida em coletividade. (c) Prestagao de contas ¢ fiscalizagao e controle interno e externo do poder piblico 19. Nao se limita a ordem republicana a impor o devido processo legal; ela o quer permanentemente fiscalizado. Firmasse, assim, um sistema de controle que comeca pela competén- cia exclusiva do Congresso Nacional de julgar anualmente as contas pres- tadas pelo presidente da Republica e fiscalizar e controlar, diretamente ou por qualquer de suas Casas, os atos do Poder Executivo (art. 49, 1X eX). Constitucionaliza-se, assim, uma fiscalizagio contébil, financeira, or- samentéria, operacional © patrimonial mediante sistemas de controle exter- no ¢ interno, no tocante a legalidade, legitimidade, economicidade, apli- cago das subvengées © renincia de Teceitas efetuadas por cada umm dos Poderes (arts. 70-75). 20. Observe-se que legitimidade aqui adquire contorno proprio. Nao bas- ta a legalidade; exige-se um atributo a mais, qual seja, o da legitimidade, que ha de ser entendido, no mfnimo, como uma imposigio de legalidade material consentanea com sistema de principios no qual se acha inserido © ato administrativo. 21. Notese, ainda, que “prestard contas qualquer pessoa fisica ou enti- dade péblica que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinhei- 36 R inf. lepisl, Brosifia o. 29m, 133 jan./mor. 1992 ros, bens € valores piblicos ou pelos quais a Unido responda, ou que, em nome desta, assuma obrigacdes de natureza pecuniéria” (pardgrafo tni- co, art. 70). Nao ha, pois, excegao ao controle ¢ prestagao de contas. 22. Compdem ainda o sistema de controle diversas outras normas cons- titucionais, a saber: — os j& mencionados incisos XXXV e LIX do art. 5.°; — 0 art. 5°, LXXII, segundo o qual “qualquer cidadio é parte legi- tima para propor ago popular que vise a anulat ato lesivo a0 patriménio PGblico ou de entidade de que o Estado participe, a moralidade admi- nistrativa, a0 meio ambiente ¢ ao patriménio hist6rico e cultural, isento © autor de custas judiciais e do nus da sucumbéncia, salvo comprovada mé-fé”; — os incisos LXVIII, LXIX ¢ LXX, que tratam do habeas corpus, do mandado de seguranga ¢ do mandado de seguranca coletiva, ao ensejarem ao individuo ou a coletividade 0 exercicio direto da soberania popular para controle da legalidade e do devido exercicio do poder delegado; — o art. 34, VII, d ¢ o art. 35, II, que autorizam a intervengiio, da Unifio nos Estados ou no Distrito Federal, e dos Estados nos Municipios, quando nao prestadas as contas da administragao publica direta e indireta, na forma da lei. 23. Vale @ pena, a esta altura, relembrar que ‘os mecanismos republi- canos hio de resguardar os bens, dinheiros e valores piblicos contra a agdo dos agentes piblicos.” (Cf. Cire Lima apud Geraldo Ataliba.) (d) Publicidade dos atos 24. © att. 37, caput, torna a publicidade norma de direito positivo para toda a administragao piblica. Pelo menos cinco incisos do art, 5.° refletem o comando constitucional da publicidade: — XXXIV: com 0 qual assegura-se a todos, “independentemente do pagamento de taxas, 0 direito de petigao aos Poderes Publicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”, como também “a obtengao de certidées em repartices pablicas, para defesa de direitos € esclarecimento de situagbes de interesse pessoal”; — LX: “a lei s6 poderd restringir a publicidade dos atos quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”; — LXII; “a priséo de qualquer pessoa ¢ local onde se encontre sero comunicados imediatamente ao juiz competente e a familia do preso ou 2 pessoa por ele indicada”; Ro inf. legis. Brasilia. 29m. 113 jon./mor. 1992 7 — LXIV: “o preso tem direito & identificaso dos responsaveis por sua priséo ou por seu interrogatério policial’ — LXXI: as hipéteses de habeas data “para assegurar o conheci- mento de informagées relativas & pessoa do impetrante, constantes de re- gisttos ou banco de dados de entidades governamentais ou de caréter pi- blico”, e “para a retificagdo de dados, quando nio se prefira fatto por rocesso sigiloso, judicial ou administrative”. 25. Ainda pertinentes & publicidade dos atos estas outras quatro normas constitucionais, O § 3. do art, 31, segundo o qual “as contas dos Municipios ficardo, durante sessenta dias, anualmente, a disposigéo de qualquer contribuinte, para exame ¢ apreciagéa, o qual poderé questionar-lhes a legitimidade, nos termos da lei”. Observe-se, uma vez mais, que nfo se trata de controle da legalidade no sentido formal; o atributo de legitimidade implica necessaria- mente um plus, qual soja, a legalidade material, aquela consentinea com a ordem de prineipios que servem de base a todo o sistema. O inciso XXI, art. 37, a0 constitucionalizar 0 principio da publicidade da licitagao, © § 1° do art. 37, que faz importante distingdo entre propaganda politica dirigida a fins de promogiio pessoal de autoridade e publicidade dos atos, programas, obras, servicos e campanhas dos 6rgdos pablicos para o propésito de informacao ¢ prestagao de contas, razio por que veda “nomes, simbolos ou imagens que caracterizem promogio pessoal”, O inciso TX do art. 93, que determina que “todos os julgamentos dos érgios do Poder Judiciério serao pblicos (...) sob pena a de nulidade” : ressalvada a possibilidade, j4 prevista no art. 5.°, LX, de limitar a publi- cidade, em determinados atos, as partes e seus advogados. 26. A publicidade doe atoe de autoridade publica jé {6ra afirmada indis- pensdvel, na ordem civil, por Santo Tomés de Aquino, quem, na dltima das quatro consideragées para definir a lei, pergunta se 2 publicagéo seré ou ndo da esséncia da lel. Derivando a resposta do direito can6nico, afirma que 0 compulsério implica conhecimento geral. Daf a sua clissica defi- nigo de lei como “ordenagio racional, dirigida no sentido do bem comum, e tornada piblica por aquele que estiver encarregado de zelar pela comu- nidade”. A{ a fonte histérica do mandamento constitucional. (©) Motivagdo dos atos 27, Trés cldusulas constitucionais expressam este trago republicano, O art. 5.°, LXI: “ninguém serd preso senfio em flagrante delito ou por ordem escrita ¢ fundamentada de autoridade judicidria competente, 38 R, ink, legisl, Brositig @. 29. 113° jan./mor. 1992 salvo nos casos de transgresséo militar ou crime propriamente militar, defi- nidos em lei”. © art. 93, IX, lembrado acima quanto & publicidade, mas que obriga igualmente a motivagéo: “todos os mntos dos Grgios do Poder Judi- cisrio sero piblicos, e fundamentadas todas as decisbes, sob pena de nulidade. ..”. O art. 93, X: “as decisées administrativas dos tribunais serao mo- tivadas...”. 28. Motivacao € a face material, substantiva, da formalidade da publi- cidade. No basta & ordem republicana a notfcia de que o agente péblico polftico ou administrative tenha decidido tal ou qual em nome do interesse geral. H4 que se justificar a razdo da iniciativa, 0 processo politico ou o instrumento administrativo mediante os quais serfo concretizadas as inicia- tivas, explicar a universalidade ou a parcialidade dos beneficiados; enfim, indicar clara e publicamente qual a vantagem coletiva do mérito, da opor- tunidade e da conveniéncia do ato polftico ou administrativo. (f) Estabilidade do servidor piblico 29. Nao se pode esperar eficdcia normativa de qualquer das disposigdes do sistema republicano de controle ¢ fiscalizaggo da legalidade, impessoa- lidade, moralidade e publicidade sem a existéncia de um corpo profisional de servidores publicos estdveis, dotados da protegao constitucional minima de seguranga do vinculo de trabalho. Imaginar o contrério é tornar o ser- vidor pGblico — agente da soberania popular nos termos da delegacio legal — presa fécil de interesses que néo taro passam ao largo da Cons- tituigao e das leis infraconstitucionais. A estabilidade €, nesta perspectiva, instrumento constitucional de reforgo da possibilidade de que os agentes politicos cuidem de seus inte- resses dentro do quadro admitido pela ordem juridica constitucional € infraconstitucional. Conseqiiéncia desta perspectiva é dar por inconstitucional a emenda constitucional que pretenda dar cabo da estabilidade no servigo piblico, Pporquanto, tendente a abolir o regime republicano. 30. Laborou em erro a Assembléia Nacional Constituinte ao excluir do elenco do que néo pode ser emendado pelo poder constituinte derivado (§ 42 do art. 60) princfpio republicano, Confundiu o constituinte origi- nério conceitos medievais e do alvorecer do Estado moderno com o signi- ficado juridico contemporaneo (¢ tiem tio novo porque nascido em 1688 e rejuvenescido nas revolugdes americana e francesa do final do século XVIID. Regime republicano, desde 1688, nfo mais se contrasta com @ mo- narquia. R inf, legisl. Brosiia a. 29 mn. 113 jon,/mor. 1992 39 A monarquia constitucional, saida da Revolugo Gloriosa em 1688, submeteu o rei ao parlamento eleito pelos detentores da soberania popular, os quais, antes, depuseram Jaime Il, o tltimo dos Stuarts, e submeteram Maria ¢ Guilherme de Orange (depois Guilherme III) ao juramento de fidelidade a um ato do Parlamento, o Bill of Rights. “Este Bill enumera uma série de atos que o Rei ndo pode cometer por serem ilegais, 0 que ignifica que o Rei esta submetido ao Direito resultante do costume san- cionado pelos tribunais, 0 direito comum (common law) aplicével a todos os ingleses, rei ou stdito, servidor da Coroa ou particular, militar ou civil, de qualquer parte da Gri-Bretanha” (Marcelo Caetano). 31. Em outras palavras, monarquia constitucional nao exclui regime republicano no sentido de administracao ptiblica responsdvel politica ¢ juridicamente perante a soberania popular, até porque no exemplo histérico, adotou-se 0 parlamentarismo e, neste, sabidamente, no hé poder executivo, e, sim, uma comissio parlamentar com delegac&o administrativa, 0 que importa dizer que o regime republicano continua nas mos da soberania popular mediante a representaco parlamentar. 32. Tenha-se presente que a norma juridica positiva néo existe no ‘vacuo, Um fato concreto Ihe € sempre subjacente. Dai a abundancia nor- mativa da Constituigéo de 1988 em buscar assegurar o que vulgarmente € rotulado de transparéncia. Juridicamente, o que se tem é um sistema coerente com o principio magno da soberania popular, o que se reflete em normas positivas hete- rénomas que comandam, obrigam ¢ submetem o agente publico politico € 0 agente ptiblico administrativo. Tais agentes ptiblicos sao o instrumento de expressiio juridica dos processos polfticos e administrativos que tém por fim dar realizagfio concreta ao interesse puiblico geral. Como toda delegagao de capacidade de agir, implica o sistema, logicamente, num ordenamento de responsabilidade, prestagdio de contas, publicidade e motivagiio das esco- thas polfticas, dos metos legais pré-estabelecidos, dos instrumentos admi- nistrativos postos na lei e dos resultados obtidos. Esta € a esséncia mais intima do Estado de direito democratico: que toda decisao politica e toda ago administrativa sigam o modelo legal — © devido processo legal. Este 0 quadro constitucional republicano. 33. Coerente com os mandamentos republicanos de legalidade, impes- soalidade, moralidade e publicidade, a Constituigao, no art. 37, dispoe so- bre as conseqiiéncias necessérias na aplicago prética do diaadia adminis- trativo. Féra outra a histéria constitucional do Brasil; f6ra a histéria consti- tucional de nossa terra uma busca constante de inferéncias necessérias dos 40 R. Inf. legisl, Brosilia o. 29m. 113 jam./mar. 1992 principios fundamentais; ¢ nao haveria a conveniéncia de se detalhar, mi- nudentemente, tudo o que consta de 21 incisos e pelo menos trés pardgrafos. Sio normas formalmente constitucionais, ainda que essenciais a uma percepsao ideal da Repiblica, Tais normas, tipicas de direito infraconstitucional administrativo, cons- tam do Texto Maior por razbes metajuridicas: experiéncia polftica, obser- vvagio dos mores piblicos, desconfianca na capacidade dos agentes piblicos de tomarem, voluntariamente, um caminho de coeréncia republicana, enfim, © que mais for. Volto & ligéo de Cirne Lima: “os mecanismos republicanos hao de resguardar os bens, dinheiros ¢ valores piblicos contra a a¢ao dos agentes piiblicos”. Algumas questées concretas com que jé se depara a admini: 34. nistragdo piiblica ilustra a ordem constitucional republicana posta na Constituico de 1988. (a) Estrangeiros no servigo pilblico 35. O art, 37, L, diz que “os cargos, empregos ¢ fungGes péblicas sio acessfveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei”. Brasileiros, natos e naturalizados, esto definides no art. 12. Dita o § 2° do mesmo art. 12: “A lei néio poderd estabelecer distin- do entre brasileiros natos ¢ naturalizados, salvo nos casos previstos nesta Constituigio”. A lei nao pode igualmente distinguir entre brasileiros, natos ou natu- ralizados, € estrangeiros residentes no Pais no tocante aos direitos e deve- res individuais e coletivos elencados no art. 5.° da Constituigéo, So, portanto, duas as hipdteses juridicas: @ a lei n&o pode distinguir entre brasilciros natos © brasileiros natu- ralizados; somente a Constituigio pode fazé-lo; Gi) a lei néo pode distinguir entre brasileiros natos, brasileiros na- turalizados ¢ estrangeiros residentes no Pais no tocante aos direitos e deve- res posios no art. 5.° Segue, por forga Kégica, que a lei pode distinguir entre brasileiros ¢ estrangeiros no que for pertinente a direitos outros que nao os elencados no art. 5° da Constituigio. £ este © sistema constitucional de tratamento da nacionalidade; outras distingdes, como aquelas previstas na ordem econdmica, nfo sao pertinentes a0 ponto ora em exame. 36. Dai, a irrecusavel inconstitucionalidade do § 6.° do art, 243 do Re- gime Juridico Unico (Lei n° 8.112/90): “Os empregos dos servidores Rong. legis. Brasilia 0. 29 om, 113 jon./mar. 1992 a estrangeiros com estabilidade no servigo piblico, enquanto nfo adquirirem a nacionalidade brasileira, passario a integrar tabela em extingio, do res- pectivo Srgio ou entidade, sem prejufzo dos direitos inerentes aos planos de carreira aos quais se encontrem vinculados os empregos”, Nao compete ao direito infraconstitucional criar excegio ao comando expresso da Constituigao, Esta norma é cldusula tipica de direito intertem- poral, a qual, para excetuar, ou diferir no tempo, a eficécia da norma constitucional nova, teria que estar inscrita nas disposigdes transitérias da propria Constituigao, jamais no texto infraconstitucional. Quem absorve a velha ordem na nova € a Constituiggo mesma, nunca ato legislativo infra- constitucional. 37. Divers, todavia, totalmente diverso, o tratamento do estrangeiro nos casos da contratagao tempordria de excepcional interesse ptblico, no mesmo RYU, art. 233, incisos IV ¢ V, ¢ parégrafos 1°, 2.° ¢ 32, 0 qual regule- menta o inciso IX, art. 37, da Constituigao (“a lei estabeleceré os casos de contratagio por tempo determinado para atender a necessidade tempo- réria de excepcional interesse piblico”). Admite-se af 0 contrato de locagao de servigos, portanto uma relacio contratual de direito pablico para a prestagéo de servigos, e nfo exercicio de cargo, emprego ou fungéo publica; e mais, para atender necessidade, um, temporéria, dois, limitada até quarenta e oito meses, trés, impro! veis, e, quatro, de excepcional interesse ptiblico, como também definido na lei. Por fim, escotha Iediante processo de recrutamento seletivo, ainda que simplificado, mas “sujeito a ampla divulgagéo em jornal de grande circulagéo” (prinefpio republicano da publicidade).- (b) Temporariedade da comissao de livre nomeagiio e exoneragéo (art. 37, II, in tm ui a necessidade imperiosa de se construir um parame- ie constine pata o tempo da comissao para exercicio, sem concurso ptiblico, de cargo de livre nomeagao e exoneracao, até porque o § 2° do art, 40 assegura aposentadoria “em cargos ou empregos tempordrios”. Deve esta norma ser interpretada como excecio & obrigatoriedade do concurso pbblico, isto é, como uma autorizacao constitucional permanente para que © agente piblico administrative desempenhe fungao publica até a aposen- tadoria sem jamais se submeter a concurso péblico ao qual os menos aqui- nhoados com os favores polfticos devem se submeter? Quais os limites constitucionais que a moralidade, enquanto norma positiva, deve impor A lei que declara quais e quantos cargos pitblicos serdo de livre nomeagio e exoneragio? A ordem constitucional republicana impée aqui um notével esforgo de construgao, insuficiente mera interpretago, para que se estruture coe- rentemente 2 aplicagio infraconstitucional do prinefpio basilar. Séo por a2 R. Inf. Hegisl. Brasilia. 29 mn, 113 jan./mor. 1992 demais evidentes os abusos politicos que ocorrerfo sob a aparéncia de cons- titucionalidade; ou seja, a constitucionalidade formal a obscurecer a ordem material. (©) Reviséo geral da remuneragao dos servidores piiblicos 39. No julgamento do pedido de suspensao liminar dos efeitos da Medida Proviséria n.° 296, 0 Min. Septilveda Pertence, relator da matéria no Su- premo Tribunal Federal, afirmou interpretagdo de vastissima repercussio no direito constitucional, embora ainda nao expressa em acérdio porque, como € notério, aquela medida proviséria foi rejeitada pelo Congresso Na- cional, com 0 que o Tribunal ainda nao prosseguiu no exame da agdo. Antiga jurisprudéncia indica que se procederé ao exame do mérito por- quanto a revogacdio, no caso rejei¢ao, de norma argiiida de inconstitucional nao suspende o julgamento daquela Corte. 40. Afirmou o relator que a norma do inciso X do art. 37 (‘‘a revisiio geral da remuneragdo dos servidores publicos, sem distingdo de {ndices entre servidores péblicos civis e militares, far-se-4 sempre na mesma data”), 6 corolério do principio da isonomia, posto no caput do art. 5.° Daf inferiu ele que a aplicagéo do inciso X do art. 37 pressupde o atendimento dos mesmos requisitos de configuracio da igualdade exigidos pelo caput do art, 5° Em dedugdo Idgica, afirmou o relator que os cargos ou grupos fun- cionais constantes dos arts. 2° a 6° da Medida ProvisGria continham na sua natureza intrinseca — ou naquilo que os administradores denominam de job description, peculiatidades que os afastavam do padrao de igualdade com os demais servidores; etam os artigos que cuidavam dos aumentos dos militares, dos diplomatas, dos cargos de natureza DAS ¢ os de Consultor- Geral da Reptblica, ¢ outros cargos administrativos da Presidéncia da Re- piblica. Donde ter negado a liminar. Admitiu © relator, apenas quanto ao universo categorias funcionais abrangidas pelo art. 1.°, a irrefutavel isonomia; a liminar, todavia, foi denegada por motivago constitucional que escapa ao tema deste trabalho. 41. A se confirmar o precedente, dispord o administrador publico de arma notdvel para uma politica salarial diferenciada néo s6 nos indices, como no tempo. Para tal, basta trazer a colacéio esta ligio reconhecida sobre os requisitos de validade dos discrimens em face do principio da igualdade posto na Constituigao: “Para que um discrimen legal seja convivente com a isono- mia, consoante visio até agora, impende que concorram quatro elementos: 2) que a desequiparagiio néo atinja de modo atual ¢ absoluto um sé individuo; R inf, legis, Brosilia a. 29m. 113 jon./mer, 1992 a 5) que as situagées ou pessoas desequiparadas pela regra de direito sejam efetivamente distintas entre si, vale dizer, possuam caracteristicas, tragos, nela residentes, diferengados; ¢) que exista, em abstrato, uma correlagdo légica entre os fatores diferenciais existentes e a distingéo de regime juridico em fungdo deles estabelecida pela norma juridica; d) que, in concreto, o vinculo de correlagao supra-teferido seja pertinente em fungao dos interesses constitucionalmente pro- tegidos, isto é, resulte em diferenciago de tratamento juridico fundada em raz&o valiosa, ao lume do texto constitucional, para o bem pablico” (C. A. Bandeira de Mello, O Contetido Juridico do Principio da Igualdade). 42. Necessitard, assim, o administrador piblico, apenas, de proceder a uma inteligentc distingéo de responsabilidadcs funcionais © de qualifica- oes profissionais destinadas a propésitos piiblicos diversos para que possa, constitucionalmente, distinguir {ndices ou petiodicidade de aumentos. Criase, af, certamente, uma tarefa notével de controle para o Judi- ciftio. IV. Federagio Constituigio Federal, art. 1°: “A Reptblica Federativa do Brasil, formada pela unido indissoltivel dos Estados e Municipios do Distrito Federal (...)”. do & pétrea, ndo pode sequer set objeto de emenda do poder constituinte derivado (art. 60, § 4°, I). B a expressio permanente da escolha constituinte origindria (6rgao representativo da soberania popu- lat) para dar forma juridica harménica ao processo politico e administra- tivo de solugdo comum das necessidades econdmicas ¢ das demandas sociais das coletividades parciais que deram origem ao todo federativo. Respeite- dos, no que couber dentro da harmonia juridica, os tracos peculiares con- sagrados, hist6rica e sociologicamente, por cada uma das coletividades parciais. 44. A federacdo reveste algumas caracterfsticas essenciais. (a) Constituigéo escrita 45. Representa a Constituigio escrita 0 contrato ou pacto federal, 0 acor- do sobre 0 papel politico, a capacidade juridica e a responsabilidade social dos entes federados. £ a expressio do compromisso de convivencia indis- solivel; €, portanto, rendncia a qualquer outra alternative de vida cole- tiva — na politica, na economia, no social e no juridico. “ R. Inf. logit. Brosilia a, 29 m, 113 jon./mar. 1992 (b) Capacidade constituinte local 46. Ea expresso da autonomia do ente federado, entendida como a capa- cidade constitucionalmente assegurada de autogoverno, auto-organizagio € auto-administragZo, nos termos e limites tragados pela Constituigao nacio- nal. “E 0 poder de uma coletividade para organizar, sem intervengio es- tranha, o seu governo, e fixar as regras juridicas, dentro de vinculo pré- tragado pelo érgdo soberano” (Jodo Mangabeira). 47. A autonomia na federacao brasileira vem tratada nos artigos 25, § 1° (Estados), 29 (Municfpios) ¢ 32 (Distrito Federal): “Os Estados onganizam-se e regem-se pelas Constituigdes e leis que adotarem, observados os principios desta Constituicéo. Sao reservados aos Estados as competéncias que nfo Ihes sejam yeda- das por esta Constituigao” (art. 25, caput e § 1.2). “Q Municipio reger-se-4 por lei orgdnica, votada (...) e aprovada pela...) Camara Municipal, que a promulgaré, atendidos os principios estabelecidos nesta Constituigéo, na Constituigdéo do respectivo Estado e os seguintes preceitos (...)” (art. 29). “O Distrito Federal (,..) reger-se-4 por lei orgénica, votada (...) & aprovada (...pela...) Cémara Legislativa, que a promulgaré, atendidos 0s princfpios estabelecidos nesta Constituicao” (art. 32), 48. Outro limite & autonomia, além dos que ficaram expressos nas nor- ‘mas suptatranscritas, é a possibilidade da Unido, mediante lei complemen- tar, oriar regides, “para efeitos administrativos”, com o fim de “articular sua ago em um mesmo complexo geoecondmico e social” (art. 43). Pode, assim, a Uniao ocupar espago juridico do ente federado “visando a seu desenvolvimento e A redugdo das desigualdades regionais.” H4 a garantia, no entanto, de que os incentivos mediante isengdes, redugdes ou diferi- mento tempordrio de tributos ser apenas de tributos federais (art. 43, § 22, MD. 49. A autonomia, de outro lado, é protegida pelos parégrafos 3° © 4° do art. 18, 0s quais exigem © plebiscito, ou seja, uma expresso repu- blicana de exercicio direto da soberania popular, dentre a populagio dire- tamente interessada, para a criagio, pelos processos neles indicados, de novos Estados e Municfpios. A imposigao do plebiscito também para a criago de novos Estados resolve a aguda crise constitucional surgida quando da fusdo dos Estados da Guanabara e do antigo Rio de Janciro. Sem qualquer pretensio de resguardo constitucional, expresso ou implicito, sob a ordem de entdo, o mero envio do projeto de lei complementar do Presidente da Repdblica Ro Inf. legis. Brosilic @. 29 m. 113 jom/mer, 1992 a5 20 Congresso Nacional ja extinguiu a autonomia estadual de auto-adminis- tragio. Nenhum dos 6rgios entdo constitucionalmente competentes argiiiu © absurdo federativo (vide RE 90.249, in RTJ 92/374). Outra protec ao mesmo principio é a previsio de intervengo da Unio no Estado que néo assegurar a autonomia municipal (art. 34, VIE, c). (©) Repartigio constitucional de competéncias 50. A federagdo brasileira € uma s6rie de quatro circulos concéntricos, onde se estabelecem harmonicamente quatro ordens juridicas, das quais a mais externa é guia-mestre, e as trés outras parciais ¢ aut6nomas, onde aquela mais externa tende a ser mais genérica, e, as demais, mais espe- cificas e peculiares. 51. A reparticiio constitucional de competéncias se dé, entio, em quatro Greas: nacional, federal, estadual e municipal. Nacional é a competéncia de emitir mocda, administrar as reservas cambiais do Pais, elaborar ¢ executar planos nacionais e regionais de de- senvolvimento, manter 0 servigo postal, editar diretrizes ¢ bases da edu- cago nacional, fixar normas gerais de direito tributério. Federal € a com- peténcia de administrar 0 servigo piblico da Unido, de regulamentar 0 sistema de tributos federais, de administrar territ6rios federais. Estadual 6 a competéncia assinalada na Constituigao como prépria de sua autonomia, seja a privativa, a concorrente ou a comum. Municipal é a competéncia auténoma dos municipios de legislarem sobre os assuntos de seu interesse peculiar focal, suplementando a legislaglo nacional, federal ¢ estadual. 52. A competéncia da Unido Federal consta de dois artigos. O art. 21 trata da competéncia politica e administrativa de cardter eminentemente nacional; © art. 22 versa a competéacia legislativa privativa também de natureza nacional. A sua competéncia de natureza federal, isto €, contida no sistema nacional, em geral é exercida concomitantemente com a nacional, ou concorrentemente ou em comum com os Estados e Municfpios (arts. 23 e 24). 53. Impée distinguir competéncia comum (art. 23) e concorrente (art. 24). A competéncia comum da Unido, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municfpios é de natureza politica, nio propriamente jurfdica; reflete © compromisso comum dos entes federados em promoverem certos valo- res ¢ interesses que a todos afetam; 6 um contrato de objetivos comuns. Da regulamentacao juridica propriamente dita cuidam outras normas da Constituigio mesma. A competéncia concorrente da Unido, dos Estados ¢ do Distrito Fede- ral, nfo dos Munictpios, 6 de natureza legislativa, ¢ tem por escopo dar 46 R. Inf. legisl. Brositic ¢. 29m. 113 jan./mor. 1992 configuracao juridica positiva aos princfpios e compromissos postos no sis- tema constitucional, e particularmente no art. 23. 54. Importante para compreensio do sistema normative de compatibili- zagdo das Grbitas juridicas parciais da federagdo € atentar para os §§ 1° a 4° do art. 24, segundo os quais: — § 1°: “no Ambito da legislgio concorrente, a competéncia da Unido limitar-se-4 a estabelecer normas gerais”; — § 20: “a competéncia da Unido para legislar sobre normas gerais néo exclui a competéncia suplementar dos Estados”; — § 3¥: “inexistindo Jei federal sobre normas gerais, os Estados exerceréo a competéncia legislativa plena, para atender a suas peculiari- dades”; — § 4°: “a superveniéneia de lei federal sobre nosmas gerais suspende a eficécia da Ici estadual, no que lhe for contrério”. 55. A nova Constituigéo deu fim ao debate académico sobre ser 0 Muni- cipio ente federativo ou apenas érgio politico-administrativo do Estado. Nao € s6 0 art. 1° que o afirma categoricamente; a Constituigéo tratou de Ibe desenhar um perfil federativo claro: — o art. 29 trata da capacidade de autogoverno municipal; natural- mente que, sendo o mais central dos circulos concéntricos da federagao, € © que dispde de menor latitude, pois deve obediéncia as disposigdes vinculantes das Constituigdes nacional e estadual; — 0 art. 30 cuida das capacidades de auto-organizagdo e de auto- administragdo, inclusive sistemas préprios de controle externo, exercido pe- Io Poder Legislative Municipal, e de controle interno, do Poder Executivo Municipal (art. 31); uma vez mais, observados os parametros vinculantes das Constituigses nacionel e estadual. 56. © que nao tem o Municipio, e deveria té-lo, é um Poder Judiciério proprio, Sao incontayeis as demandas tipicas de litigios comunitarios e de vizinhanga, quase sempre de reduzido valor econdmico, que melhor seriam solucionados na érbita local do que em cottes estaduais. (d) Corte constitucional nacional 57. A competéncia constitucional federativa de harmonia de interpretagdo do direito nacional e de resolugao de conflitos constitucionais € compar- tilhada pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justica. 58. Harmonia de interpretagio do direito nacional. No Supremo Tribu- nal Federal, a competéncia origindria para julgar e processar a ago direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual © a competéncia recursal extraordindria para julgar as causas decididas em tini- Ro inf. legit. Brosilio @. 29m. 113 jan/mor. 1992 7 ca ou tiltima instincia, quando a decisio recorrida contrariar dispositive da Constituigéo nacional, declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal (materialmente nacional) ou julgar valida lei ou ato de governo ocal contestado em face da mesma Constituigéo nacional (art. 102, I, ae Il). No Superior Tribunal de Justiga, a competéncia recursal especial de julgar as causas decididas, em tnica ou ditima insténcia, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territ6rios, quando a decisio recorrida contrariar ou negar vigéncia a tra- tado ou lei federal (materialmente nacional), julgar vélida lei ou ato de governo local contestado em face de lei federal (materialmente nacional) ou der & lei federal (materialmente nacional) interpretaio divergente da que the haja atribuido outro tribunal (art. 105, If). 59. Conflitos constitucionais. No Supremo Tribunal Federal, a compe- Tencia origindrla para fulgar e procestar livigio entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e a Unido, o Estado, o Distrito Federal ou o Territ6rio; as causas e os conflitos entre a Unido e os Estados, a Unio € 0 Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas enti- dades da administrago indireta; ¢ os conflitos de competéncia entre 0 Superior Tribunal de Justica e quaisquer tribunals, entre Tribunais Supe- riores, ou entre estes e qualquer outro tribunal (art. 102, I, e, f, 0)- No Superior Tribunal de Justica, a competéncia origindria para pro- cessar e julgar os conflitos de jurisdig¢ao entre quaisquer tribunais, ressal- vada a competéncia do STF no art. 102, I, 0, bem como entre tribunal e juizes a ele nao vinculados e entre juizes vinculados a tribunais diver- 80s; € 08 conflitos de atribuigdes entre autoridades administrativas e judi- cidrias da Unifio, ou entre autoridades judiciérias de um Estado ¢ admi- nistrativas de outro ou do Distrito Federal, ou entre as deste e da Unifio (art. 105, I, d, g). (e) Intervengao 60. A intervengéio da Unido nos Estados ou no Distrito Federal, ¢ dos Estados nos Municfpios, é da esséncia do sistema federativo; visa a manter a integridade dos principios basilares da Constituigfo (Michel Temer). E ato excepcional, de crise federativa, que se expressa juridicamente no procedimento posto na Constituigo, exercitével unicamente nas hipé- teses nela previstas, ¢ justificado em face da indissolubilidade do pacto federal. 61. Deve-se notar que a intervengao da Unido no Estado ou no Distrito Federal, ¢ a do Estado no Municipio, afasta, temporariamente, a autono- mia constitucional. Sua previsio constitucional, contudo, revela e realga as autonomias constitucionais federativas (Michel Temer). as R. Inf, legisi, Brasilia, 29 n. 113 jon./mor. 1992 As hipéteses de intervengao da Unido mos Estados ou no Distrito Federal estio enumeradas no art. 34; observe-se que a linguagem consti- tucional é restritiva: “nao intervird (...) exceto para...”. A enumeragfio é exaustiva e nio pode ser lida expansivamente. 62. dever constitucional da Unido de intervir 6 inarredével, sob pena de crime de responsabilidade do Presidente da Repiblica (art. 85. 1). Inar redével, mas limitado & excepcionalidade das hipéteses tinicas postas no Texto Maior. ‘A mesma perspectiva de anélise se aplica a intervengéo dos Estados nos Municfpios prevista no art. 35. Importante para a percepgfio sistemé- tica da federagao € notar que o mesmo art. 35 submete a Unio no to- cante & intervengao nos Municipios localizados em Territério Federal, donde inequfvoca, uma vez mais, a afirmagdo de serem os Municfpios unidades federacio. da fe (D) Somente a Unido, enquanto governo nacional, mantém relagdes de direi- to internacional 63. Trata-se aqui do modernamente superadissimo conceito cléssico de soberania no direito internacional piblico, que vem a ser ““o poder exclu- sivo € indivisivel que ndo conhece outro superior ou concotrente, nem admite limites senfio aqueles que voluntariamente se tragou em tratados ‘ow no texto constitucional” (Carlos Maximiliano). 64, Superado embora nas relagdes internacionais reais, tem ainda o velho conceito marcada repercusséo na érbita constitucional interna do Brasil. Nas federagdes modernas, as que se permitem evoluir com os fatos da histéria, os entes federados, por dircito ou de fato, atuam no cenério eco- némico mundial, buscando opgdes de mercado que melhor atendam & de- manda de suas peculiaridades locais. Para se compreender adequadamente esta reserva de soberania, reto- me-se 0 conceito de autonomia, que € o que se permite as unidades da federagaio, no jogo das relagdes do mundo contemporaneo sem fronteiras, a0 qual néo podem ter acesso pleno, na dimensio de suas capacidades locais, para atender as imposiges de suas particularidades. “E a capaci- dade constituinte delegada pelo poder nacional” (Maximiliano); ou “reve- lagdo de capacidade para expedir as normas que organizam, preenchem fi Gesenvolvem © ordenamento juridico dos entes pdblicos” (Machado lorta). Sendo este um exercfeio de direito positivo, de anélise da ordem cons- fitucional como posta, para dela inferir o que for juridicamente posstvel, nada se poderé argiir em favor de uma maior presenga da unidade federada nas relagdes internacionais. Este papel est restrito 20 governo R inf, legiel, Brasilia e. 29 m, 113 jon./mer. 1992 ay 65. Observe-se que a concentragéo maior ou menor de iniciativa das unidades federadas no descaracteriza juridicamente a federacdo: o argu- mento que procura analisar a federagdo brasileira, para tentar descarac- terizé-la, apontando excesso de poderes no nivel nacional, pode ser poli- tio, sociolégico ou histérico, mas nfo juridico. Nesta perspectiva, presen- tes as caracteristicas antes assinaladas, ter-se-4 uma federagdo. Vale dizer, nao se confunda desconcentragao de poder constitucional (tipica do federalism) com descentralizago administrativa (propria do Estado unitério): a capacidade constitucional do ente federado nao pode ser retirada unilateralmente pelo governo nacional, o qual 6, juridicamen- te, igual aos governos dos entes federados, embora diversas as capacidades juridicas, enquanto no Estado unitério o 6rgio administrativo descentra- lizado no tem titulo préprio & sua competéncia. 66. Comento, a titulo ilustrativo, uma questio concreta no trato do sistema federativo, particularmente pertinente & percepgéo do “‘espirito” federativo: o comércio interestadual. competéncia privativa da Unigo legislar sobre o comércio interestadual (art. 22, VIII). Reflite-se, entio, sobre firme precedente do Supremo Tribunal Federal (Representago 1.049, in RT} 98/37), 0 qual bem revela a usual da federagao como modelo rigidamente juridico, infenso & absorgaio do fato econémico mediante argumento juridico inerenie & légica do sis- tema. 67. Lei estadual do Amazonas autorizara o Poder Executivo a regula- mentar as saidas de madeira de certa espessura para fora do Estado, com fim de fomentar a instalagao de inddstrias de base dentro do mesmo Es- tado, Cuidava-se de oferecer vantagem tributdria para as vendas de ma- deira beneficiada ou semimanufaturada. © Tribunal declarou tratar-se a hip6tese de comércio interestadual, donde a inconstitucionalidade, por se invadir competéneia exclusiva da Unio; nada mais 68. Outra visio ¢, no entanto, razoivel. A federagio € resultado jurt- dico de uma harmonizagéo de interesses nacionais, regionais ¢ locais. Os tragos politicos, as demandas econémicas e as questées sociais de cada coletividade parcial continuam a existir apés o pacto federativo. é federagdo toma-se, assim, um instrumento juridico para coordenago da busca de uma solucao coletiva c harmoniosa para aqueles mesmos tracos, demandas e questdes. No exclui, portanto, a federago, a iniciativa autfino- ma criativa de cada uma das coletividades parciais que lhe deram origem. Incompativel com a federago serd, construtivamente, solugo para pro- blema local que afete desvantajosamente valor igualmente relevante ¢ subs- tantivo, quer de outro ente federativo, individualmente considerado, seja da coletividade nacional. 50 ‘R. In. legisl, Brosilia 0. 29 mn. 113 jon./mar. 1992

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