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e relativamente a ele, não constituem uma cológico chamado Gestalt o que a antiga psicologia
alternativa, que o mundo percebido está reputava à interpretação e ao julgamento” (Merleau-
aquém ou além da antinomia, que o fracasso Ponty, 1990, p. 24). A partir dos trabalhos de Gelb e
da psicologia ‘objetiva’ deve ser compre- Goldstein, neurofisiólogos alemães, Merleau-Ponty
endido juntamente com o fracasso da física adentrava, com o mesmo princípio, nos estudos da
‘objetivista’ – não como uma vitória do fisiologia nervosa e na patologia do comportamento.
‘interior’ sobre o ‘exterior’, do ‘mental’ Também data dessa época a leitura da
sobre o ‘material’, mas como apelo à revisão fenomenologia de Husserl, que deveria contribuir para
de nossa ontologia, ao reexame das noções o esclarecimento do sentido das experiências psico-
de ‘sujeito’ e de ‘objeto’. As mesmas lógicas. Não se tratava de substituir a psicologia e o
razões que impedem de tratar a percepção método indutivo, no sentido amplo do termo, mas de
como um objeto, também impedem de tratá- contribuir para o esclarecimento do campo de suas
la como operação de um ‘sujeito’, seja qual pesquisas, e daí, segundo Merleau-Ponty, a distinção
for o sentido em que possa ser tomada de Husserl entre uma psicologia eidética e uma psi-
(Merleau-Ponty, 2003, p. 32). cologia experimental, a primeira encarregada da ob-
tenção da essência geral dos fenômenos, e a segun-
A aproximação com a psicologia da encarregada dos seus sentidos particulares, o que,
vale lembrar, reproduz a distinção kantiana entre o
Com base em relatórios apresentados por
transcendental e o empírico. Mas o interesse de
Merleau-Ponty (1990) para a obtenção de uma
Merleau-Ponty pelas ciências, em particular por es-
subvenção para pesquisa e sua renovação, no ano
seguinte, pela Caixa Nacional de Ciência, na Fran- sas experiências da psicologia com que inicia suas
ça, notamos que, já entre 1933 e 1934, o então investigações filosóficas, já mostrava a relação profí-
jovem filósofo dedicava-se aos estudos da cua que haveria entre a fenomenologia e a psicologia
“Gestaltpsychologie”, que para ele representavam experimental em seu pensamento, prenúncio da dife-
uma importante contribuição para a questão da per- rença com a fenomenologia de Husserl que se con-
cepção e, assim, para a renovação da concepção do firmaria, depois, na recusa da possibilidade de distin-
espírito, dominada na época pelo criticismo (Kant) ção entre fato e essência, empírico e transcendental.
tanto na filosofia como na psicologia (intelectualismo). Enfim, assistimos Merleau-Ponty adentrar os
Registra-se, nesse período, o estudo da psicologia da meandros da neurologia e da psicologia experimen-
percepção e da psicopatologia, com exemplos1 que tal, particularmente da psicopatologia para “(...) reto-
veremos surgir, posteriormente, em suas duas primei- mar o problema da percepção e particularmente da
ras obras, A Estrutura do Comportamento (Merleau- percepção do corpo próprio (...)” (Merleau-Ponty,
Ponty, 1942/1975) e Fenomenologia da Percepção 1990, p. 11), com os quais esperava não apenas “(...)
(Merleau-Ponty, 1945/1999). A psicologia alemã, re- reformular certas noções psicológicas e filosóficas
presentada pela “Gestaltpsychologie”, mostrava, nos correntes (...)” (Merleau-Ponty, 1990, p. 13), mas
trabalhos de Kofka, Köhler e Wertheimer, entre ou- também a própria concepção do conhecimento.
tros, que a percepção não é a sobreposição de uma De fato, n’A Estrutura do Comportamento
forma (intelecção) sobre um material sensível (sen-
(1942/1975) e na Fenomenologia da Percepção (1945/
sação), mas que a forma está na matéria da percep-
1999), Merleau-Ponty pôs em marcha a sua tentativa
ção e é anterior a qualquer ato de intelecção. “A Es-
de retomada do fenômeno humano em detrimento das
cola de que nos ocupamos explica (...) pelo fator psi-
antinomias da metafísica clássica, que opõem a cons-
ciência e a natureza, o pensamento e a extensão, e
1
“Dentre muitos outros problemas que a psicopatologia coloca, abrem espaço para toda sorte de dicotomias.
deveria ser retomado o problema da ilusão dos amputados”
Se, na primeira obra, Merleau-Ponty propõe-
(Merleau-Ponty, 1990, p. 13). De fato, a questão do membro
fantasma foi foco de profundas análises do autor na se a compreender os laços entre a consciência e a
Fenomenologia da Percepção (Merleau-Ponty, 1945/1999). natureza, na segunda, o ato perceptivo apresenta-se
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como um ato emblemático por reconciliar, silenciosa psicologias da época: a psicofisiologia dos comporta-
e peremptoriamente, as duas instâncias. O fato é que, mentos elementares e superiores, a psicologia do com-
para denunciar as referidas dicotomias da metafísica portamento animal, a psicologia da forma, a psicolo-
clássica, Merleau-Ponty entra em contato, profunda- gia genética, a psicopatologia e a psicanálise
mente, com o ponto de vista da ciência positiva, cuja (Bimbenet, 2004). Os textos de psicologia reapare-
abordagem da consciência revela-a como uma re- cem na Fenomenologia da Percepção, trabalho em
gião do ser e como um ente de parte a parte natural, que se abre, ainda, uma nova perspectiva, na medida
e com o ponto de vista reflexivo da filosofia, que afir- em que o filósofo reconhece uma psicologia e uma
ma a autonomia da consciência. psiquiatria fenomenológicas, com a citação freqüen-
Deste modo, n’A Estrutura do Comportamen- te de Minkowski e Binswanger, entre outros. Nela,
to, em uma crítica trançada pacientemente e calcada também a psicanálise surge como uma teoria que,
na noção de estrutura, Merleau-Ponty ultrapassa o em alguns aspectos, aproxima-se de uma filosofia
realismo em direção do ponto de vista da consciên- fenomenológica.
cia. E, de maneira análoga, na Fenomenologia da Portanto, as duas primeiras obras de Merleau-
Percepção, agora sob maior influência da feno- Ponty revestem-se de especial interesse para nós.
menologia de Husserl, ele parte da perspectiva da Coelho Júnior e Carmo (1991) tecem a seguinte re-
consciência para, progressivamente, esvaziá-la de ferência a elas: “(...) devemos nos deter em suas duas
suas prerrogativas e sujeitá-la aos poderes naturais e fundamentais obras onde a psicologia, mais do que
do corpo próprio. Assim, estas duas obras partem das um reconhecimento, recebe uma contribuição crítica
dicotomias para melhor desqualificá-las. Desta for- filosófica que mereceria ser melhor estudada pelos
ma, elas alcançam, de modo convergente, o centro psicólogos” (p. 39). Merleau-Ponty considerava in-
comum da consciência e da natureza. Nos dois ca- dispensável a mediação e o desvio de sentido ofere-
sos, prevalece a exigência descritiva2 e, também, uma cido pelas diversas ciências para o desvelamento do
inclinação arqueológica (Bimbenet, 2004). sentido do mundo e de nós mesmos e, conforme suas
observações (Merleau-Ponty, 1942/1975), pelas vias
É importante sublinhar que, a partir d’A Estru- rápidas da reflexão do “cogito”, não se chegaria ao
tura do Comportamento, Merleau-Ponty inicia um saber da encarnação do espírito que as experiências
debate rigoroso, crítico e sistemático com o realismo da psicologia da percepção, da psicologia da criança
presente na psicologia científica. É assim que assisti- e da psicopatologia lhe permitiam descobrir.
mos ao autor analisar, com grande perspicácia, as
O comportamento em foco
2
O método descritivo, tal como apresentado por Merleau-
A ciência é construída em meio a uma
Ponty (1945/1999), é uma herança direta da filosofia de Husserl metafísica que o cientista, normalmente, assume como
e visa contrapor-se aos métodos de análise elementar da ciência dada. Contudo, o seu desenvolvimento pode sinalizar
clássica da percepção. Nesta, o real é concebido partes extra outras formas de compreensão do fenômeno, formas
partes, e a percepção concebida como resultado da ação dos não estabelecidas nos quadros da metafísica da qual
estímulos parciais sobre o aparelho perceptivo. Para a
fenomenologia, ao contrário, é preciso descrever e não explicar
o cientista é herdeiro. Assim, o desenvolvimento da
o fenômeno perceptivo, uma vez que, despindo-se de qualquer ciência pode apontar a necessidade de uma revisão
pressuposto sobre a realidade, trata-se de apreender o seu ontológica, e, em certa perspectiva, é isso que
sentido, a maneira como ele se mostra. A percepção não se Merleau-Ponty procura mostrar por meio da análise
realiza sem determinadas condições, mas não são estas que a fenomenológica das experiências realizadas pelas ci-
explicam. Neste sentido, Merleau-Ponty fala em uma descrição
direta do sentido da experiência, o que também não quer dizer ências do comportamento. Num primeiro passo da
imediata, uma vez que a sua apreensão geralmente requer muitas sua trajetória filosófica, o autor francês procurou re-
mediações de sentido. O que se quer evitar é o recurso a alizar uma leitura do sentido do comportamento fora
explicações causais ou psicológicas acerca de sua gênese. Esta do quadro da metafísica clássica.
exigência descritiva sustenta um discurso compreensivo, que
tem por meta a retomada do modo único e estrutural de Para Merleau-Ponty (1942/1975), a noção de
existência que transparece nas coisas. comportamento é neutra face às distinções clássicas
Verissimo, D. S. & Furlan, R. (2007). Merleau-Ponty e a Psicologia 335
do “psíquico” e do “fisiológico”, o que levanta a opor- movimentos “arrastam” o meu olhar. Contudo, estes
tunidade de redefini-las. Tal ponto de vista é profícuo caracteres são repelidos pela ciência como aparênci-
desde que se trate de elucidar diretamente a noção as sob as quais se oculta uma realidade de um gênero
de comportamento, sem traçar os mesmos rumos da diferente. Dir-se-á que a luz encobre um movimento
psicologia norte-americana. Aliás, é importante se- vibratório que não é jamais dado à consciência. À
gui-los, diz o autor, mas com o intuito de conhecer por aparência qualitativa convencionou-se denominar luz
qual desordem ideológica esta noção foi desenvolvi- fenomenal, enquanto o movimento vibratório recebe
da em seu país de origem. o nome de luz real. Como a luz real não é percebida,
Inicialmente, ainda com Watson, havia algo de ela não pode se apresentar como um fim ao qual o
sadio e de profundo na intuição do comportamento. meu comportamento se orienta. “Ela não pode ser
Dizia-se que este não está localizado no sistema ner- pensada senão como uma causa que age sobre o meu
voso central, mas entre o indivíduo e o meio ambien- organismo” (Merleau-Ponty, 1942/1975, p. 33).
te, o que tornava possível o estudo do comportamen- A análise científica decompõe o estímulo, no
to sem menções à fisiologia. Dizia-se, ainda, que ele caso, a mancha luminosa, em diversos processos par-
versa sobre um fluxo de ação, projetado pelo vivente ciais compatíveis com os vários elementos anatômicos
à sua volta, que afeta os estímulos com um sentido que se encontram sob a retina. Entende-se, então,
particular e os incorpora à resposta. Mas, esta visão que a luz, tocando minha retina, desencadeia um me-
do homem como debate perpétuo com um mundo fí- canismo pronto a funcionar. Dessa forma, se, com o
sico e social não resistiu muito. deslocamento da mancha, meus olhos se deslocam,
devemos compreender o fenômeno sem introduzir
Em reação contra as trevas da intimidade nele nada que se assemelhe a uma intenção.
psicológica, o behaviorismo não procura
Esta representação científica do organismo
recursos, a maior parte do tempo, senão em
conduziu-nos à teoria clássica do reflexo. Nela, tem-
uma explicação fisiológica ou mesmo física,
se a decomposição da excitação e da reação em uma
sem ver que ela está em contradição com
infinidade de processos parciais, exteriores uns aos
as definições iniciais – ele se declara
outros. O reflexo surge, assim, como a operação de
materialista, sem ver que isto consiste em
um agente físico ou químico definido sobre um re-
recolocar o comportamento no sistema
ceptor definido, que provoca, por um trajeto bem de-
nervoso. Em nossa opinião (...), Watson tinha
marcado, uma resposta também definida.
em vista, quando falava de comportamento,
o que os outros chamaram de existência, e Para compreendermos melhor estes primórdios
a nova noção não podia receber seu estatuto da psicologia, lembremos, com Japiassu (1977), que,
filosófico senão se abandonasse o pen- inicialmente, ela estava ligada à filosofia, constituindo
uma espécie de antropologia filosófica. Ocupava-se
samento causal ou mecânico pelo pen-
em descrever os comportamentos em termos de fa-
samento dialético (Merleau-Ponty, 1942/
culdades inatas transcendentes, como a vontade, o
1975, p. 31, grifo do autor).
conhecimento, o instinto, e a percepção. Com o intui-
A psicologia quis ser uma ciência natural e, assim, to de libertar-se da filosofia, a psicologia, no século
permaneceu fiel ao realismo e ao pensamento causal. XIX, aliou-se a uma perspectiva dita científica cujo
campo epistemológico era fornecido pelas ciências
A análise científica do comportamento se es-
experimentais de ordem psicofísica ou psicofisiológica,
tabeleceu por oposição aos dados da consciência in- estas já possuidoras de um estatuto científico reco-
gênua. O comportamento, assimilado a partir do inte- nhecido. Desde a época moderna clássica, a mate-
rior, parece orientado por uma intenção, por um sen- mática e a física forneciam à inteligência os modelos
tido. Pensemos numa mancha luminosa em uma sala de cientificidade, eram elas que proporcionavam o
escura, conforme o exemplo dado por Merleau-Ponty solo epistemológico sobre o qual se julgava o caráter
(1942/1975). Diremos que ela “atrai” minha atenção, mais ou menos científico das diversas práticas do
que volto meus olhos “na sua direção”, que os seus conhecimento.
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Para Politzer (1929/1975), autor muito citado por das condições internas ou externas tomadas à parte,
Merleau-Ponty, a psicologia clássica é marcada pela pois suas variações aí se traduzem por um efeito glo-
abstração e pelo formalismo. Diz ele que o emprego bal e indivisível”, diz Merleau-Ponty (1942/1975, p. 167).
da matemática pela psicologia configura um uso de Mas, a psicologia da forma também recebeu
“terceira mão”, já que ela o herdara dos físicos e dos análises críticas por parte de Merleau-Ponty. Segun-
fisiólogos. O mesmo é válido em relação ao método do o autor, ela não teria levado longe um trabalho de
experimental. Segundo o autor, o conjunto das opera- análise filosófica, empresa que demandava liberdade
ções explicativas no seio desta nova ciência configura em relação aos postulados realistas da psicologia.
uma abstração, um método da terceira pessoa, pois A “Gestalt” teve início na Alemanha, con-
elimina o sujeito na medida em que considera seus fe- comitantemente ao comportamentalismo de Watson
nômenos como sendo produzidos por causas impesso- nos Estados Unidos. Nasceu da contraposição ao
ais, atitude essa adotada para explicar os fatos objeti- atomismo da psicologia clássica wundtiana. A
vos em geral. Politzer (1929/1975) comenta, ainda, que “Gestalt” também sofreu uma significativa influência
a análise formal do comportamento não dá atenção à da física, mas da física que, a partir das últimas déca-
sua individualidade, fornecida pelo seu sentido. das do século XIX, passou a reconsiderar a noção de
Merleau-Ponty (1942/1975) destacou, então, a atomismo, ou elementarismo, e que começava a pen-
noção de forma por permitir novas soluções nas in- sar em termos de campos. Buscando a superação do
vestigações sobre o comportamento. Com base nas método de análise elementar, a Gestalt, como o pró-
formulações da “Gestaltpsychologie”, ou psicologia prio nome sugere, considerou a forma ou estrutura
da forma, e nas acepções estruturais da biologia como expressão originária da realidade. Na sua con-
organicista de autores como Goldstein, Merleau-Ponty cepção, os dados perceptivos e mesmo os fatos psí-
apresentou-nos um pensamento estrutural calcado na quicos compõem uma unidade com articulação inter-
relação ativa do comportamento com o seu entorno. na que depende tanto de condições objetivas quanto
Segundo o autor, entre a situação e a resposta vemos de condições subjetivas, sendo que alterações nessas
se estabelecer uma ligação dialética de sentido entre condições repercutem na forma ou estrutura de que
o organismo e o meio, relação de reciprocidade e participam (Guillaume, 1937/1966). De qualquer ma-
interatividade. Assim, o que Merleau-Ponty nos faz neira, novamente, os psicólogos esforçavam-se para
ver é que todo comportamento deixa reconhecer uma acompanhar as ciências naturais. Köhler (conforme
forma, ou uma ligação interior e significante entre a citado por Schultz e Schultz, 1995), um dos mais sig-
situação e a reação. Nesta perspectiva, o filósofo pôde nificativos representantes da “Gestalt”, assim refe-
abordá-lo estruturado na ordem vital, que se refere riu-se a tal relação: “a psicologia da Gestalt se tornou
aos organismos de modo geral, e na ordem humana, uma espécie de aplicação da física dos campos a
que diz respeito ao comportamento do homem, e não partes essenciais da psicologia” (p. 77).
a partir de noções que somente encontram sentido no Entrementes, a noção de forma, aplicada à
campo físico, a primeira forma na hierarquia das or- percepção, levantou uma idéia importante e que foi
dens. Já na análise do comportamento animal, perce- desenvolvida por Merleau-Ponty. Trata-se de afirmar
be-se que “(...) as reações de um organismo não são que a experiência perceptiva carrega consigo uma
conjuntos de movimentos elementares, mas gestos integralidade e uma completude que não pode ser
dotados de uma unidade interior” (Merleau-Ponty, encontrada em nenhuma das suas partes, e que cada
1942/1975, p. 166). A experiência de um organismo um dos seus termos é determinado pelas leis totais da
não comporta a fixação de movimentos realizados e, experiência (Schultz & Schultz, 1995).
sim, a elaboração de aptidões, ou seja, o poder geral Mas, retornemos às críticas de Merleau-Ponty
de responder a situações por reações diversas, que à psicologia da forma. Conforme as suas análises,
têm em comum o seu sentido. A situação e a reação esta psicologia permaneceu exigindo modelos físicos
não admitem a análise em termos de causa e efeito. para suportar no ser as formas fisiológicas ou psíqui-
“Não se pode mesmo, se o comportamento é uma ‘for- cas. Nela, o comportamento permanece como uma
ma’, assinalar nele aquilo que depende de cada uma província do universo físico.
Verissimo, D. S. & Furlan, R. (2007). Merleau-Ponty e a Psicologia 337
dos signos. Mas, para Merleau-Ponty (1945/1999), De acordo com a noção de estrutura, é preciso
um sentido é imanente ao sensível antes de qualquer reconhecer que os dados táteis e os dados visuais co-
juízo. O fenômeno perceptivo oferece uma significa- existem no normal e isso os modifica mutuamente, por
ção inerente aos signos perceptivos, processo em que isso os dados táteis do doente, apartados da contribui-
o juízo figura apenas como a expressão facultativa e ção visual, não poderão ser relacionados aos daquele.
segunda dessa significação. Dessa forma, não se pode nem mesmo concordar com
Merleau-Ponty (1945/1999) defende a tese de Goldstein, em quem se apóiam essas análises de
que a sintaxe perceptiva articula-se segundo regras Merleau-Ponty, quando afirma a impossibilidade do
próprias, aquém das relações objetivas. A percepção estudo do tátil puro no normal, mas vê, no doente, “(...)
é um ato que, de um só golpe, cria, com a constela- um quadro do que seria a experiência tátil reduzida a si
ção de dados, o sentido que os une. Portanto, não se mesma” (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 169), a não ser
trata apenas de descobrir um sentido neles, mas, tam- que se sublinhe o fato de que o pretenso “tátil puro” é
bém, de fazer com que tenham um sentido. A per- um fenômeno patológico que não entra na experiência
cepção é antes de tudo uma potência. do normal como um componente.
Nesta direção, é necessário enfatizar que o Mas o fato é que vemos o pensamento indutivo
método científico clássico não favorece o conheci- ou causal enclausurar na visão, no tato ou em qualquer
mento do homem em uma perspectiva humana. As- outro dado a potência de projeção que habita neles
sim, no tocante à investigação da percepção, faz-se todos e, com isso, “(...) dissimula-a para nós e torna-
necessária uma revisão geral das categorias propos- nos cegos para a dimensão do comportamento que é
tas pela ciência. Na opinião de Merleau-Ponty, em justamente aquela da psicologia” (Merleau-Ponty, 1945/
psicologia deve-se recusar o empirismo, o pensamento 1999, p. 170). Dessa maneira, no contexto das ques-
causal e o método indutivo, considerado como um sim- tões ora utilizadas como exemplos, para que uma
ples método das diferenças. indução permaneça possível, “representação visual” e
“percepção tátil” devem agir como causas do movi-
Expliquemos esta posição utilizando o exemplo
de pacientes com distúrbios motores acompanhados mento, ou como efeitos de alguma outra causa. “Mas
de deficiência visual, mais especificamente do que se se eles não forem isoláveis, se cada um deles pressu-
convencionou chamar de cegueira psíquica. Nestes puser os outros, o fracasso não caberá ao empirismo
casos, acaba-se por considerar a cegueira psíquica ou às tentativas de experiência crucial, mas ao método
como um caso diferencial do comportamento tátil puro indutivo ou ao pensamento causal em psicologia” (p.
e, assim, somos tentados a concluir que o tocar, por si 169). Em outro trecho, o autor diz: “O objeto da psico-
mesmo, não fornece ao movimento o fundo que lhe é logia é de tal natureza que não poderia ser determina-
necessário para um funcionamento harmônico. No do por relações de função a variável” (Merleau-Ponty,
entanto, para se afirmar que, na cegueira psíquica, os 1945/1999, p. 165). Os fatos do comportamento são
distúrbios motores estão ligados ao distúrbio visual e ambíguos, portanto nenhuma experiência é crucial e
que, no normal, são os dados visuais os responsáveis nenhuma explicação definitiva. O comportamento é
pela função de projeção dos movimentos, seria neces- uma unidade que configura a potência que é o homem
sário possuir segurança para afirmar que a doença afe- para projetar-se no mundo. Esta é a dimensão do com-
tou apenas os dados visuais e que as demais condições portamento que cabe à psicologia.
do comportamento, especialmente a experiência tátil, Se o comportamento é uma forma em que
permaneceram como antes. Isso pode ser afirmado?, os ‘conteúdos visuais’ e os ‘conteúdos
pergunta Merleau-Ponty (1945/1999). A deficiência táteis’, a sensibilidade e a motricidade só
está ligada a uma função mais profunda do que a visão figuram a título de momentos inseparáveis,
e o tato enquanto soma de qualidades dadas. Ela pos- ele permanece inacessível ao pensamento
sui relação com a área vital do sujeito, à sua abertura causal, ele só é apreensível por um outro
ao mundo, que faz com que o objeto, mesmo fora de tipo de pensamento – aquele que surpre-
alcance, conte para o normal, exista para ele e faça ende seu objeto no estado nascente, tal como
parte do seu universo motor. ele aparece àquele que o vive, com a
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atmosfera de sentido na qual ele está então momento mesmo em que ele queria perceber-
envolvido, e que busca introduzir-se nessa se como objeto entre os objetos (Merleau-
atmosfera para reencontrar, atrás dos fatos Ponty, 1945/1999, p. 142, grifo do autor).
e dos sintomas dispersos, o ser total do
sujeito, se se trata de um normal, o distúrbio Nosso corpo nos dá um mundo, conforme si-
fundamental, se se trata de um doente naliza a sua espacialidade, que é diferente da
(Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 170). espacialidade objetiva. Ela se dá em situação e nos
faz ver que a experiência do corpo nos consagra ao
Até aqui, Merleau-Ponty enviou-nos à experi- sentido. Movemos nosso corpo fenomenal e não um
ência do ato perceptivo enquanto fundamento do corpo objetivo. Este corpo fenomenal é dado na rela-
movimento existencial de se situar e de projetar sen- ção vivida com o sistema natural do corpo próprio. É
tidos em nossa circunvizinhança. Nessa investigação assim que um sujeito posto diante de uma tarefa fa-
do ato perceptivo, o corpo foi revelado como a sede miliar não precisa procurar suas mãos ou seus dedos,
privilegiada da nossa apropriação do mundo. O corpo pois estes não são objetos a se encontrar no espaço
não é um objeto do mundo, mas o meio de nossa co- objetivo. Ossos, músculos e nervos são potências já
municação com ele, diz o autor, e o mundo não é a mobilizadas na percepção dos objetos a serem utili-
soma de objetos determinados, mas o horizonte la- zados no trabalho. Vemos que os objetos definem uma
tente de nossa experiência, presente sem cessar, an- certa situação, que exige um certo modo de resolu-
tes de qualquer julgamento. ção. Ser no mundo implica em “(...) manter em torno
de si um sistema de significações cujas correspon-
A psicologia clássica possuía elementos sufici-
dências, relações e participações não precisam ser
entes para distinguir o corpo próprio dos objetos. Por
explicitadas para ser utilizadas” (Merleau-Ponty,
que, então, os psicólogos não efetivaram esta distinção
1945/1999, p. 181). Diz o filósofo que a “(...) consci-
nem extraíram dela nenhuma conseqüência, pergunta
ência é o ser para a coisa por intermédio do corpo”
Merleau-Ponty (1945/1999). Os psicólogos situavam-
(p. 193), é consciência encarnada, o que retira o nos-
se no lugar de um pensamento impessoal ao qual a
so corpo da região do em si. O filósofo conclui que o
ciência faz referência quando acredita poder separar
intelectualismo encobre a relação orgânica entre o
o que diz respeito à situação do observador e o que diz
sujeito e o mundo, a transcendência ativa da consci-
respeito ao objeto absoluto. Para este pensamento não ência, o seu movimento de lançar-se em uma coisa e
situado do psicólogo, a experiência do corpo degrada- no mundo por meio dos seus órgãos e instrumentos.
va-se em “representações” do corpo, deixando de ser O sujeito da sensação não é nem um pensador que
um fenômeno para se transformar em um fato psíqui- nota uma qualidade nem um meio inerte afetado por
co. Neste sentido, a representação do corpo era uma ela; é uma potência que nasce em um certo meio de
representação como as outras e, correlativamente, o existência e se sincroniza com ele.
corpo seria um objeto como os outros.
Neste caminho entre os automatismos e as
Ser uma consciência, ou, antes, ser uma representações, Merleau-Ponty forjou uma noção de
experiência, é comunicar interiormente existência pela aproximação com a experiência do
com o mundo, com o corpo e com os outros, corpo próprio. Em meio à alternativa entre a causali-
ser com eles em lugar de estar ao lado deles. dade objetiva e o pensamento, o filósofo vislumbrou
Ocupar-se de psicologia é necessariamente uma zona vital em que são elaboradas e integradas
encontrar, abaixo do pensamento objetivo as possibilidades do indivíduo, sejam as suas possibi-
que se move entre as coisas inteiramente lidades motoras, perceptivas, sexuais, intelectuais, etc.
prontas, uma primeira abertura às coisas Trata-se de reconhecer uma estrutura da experiên-
sem a qual não haveria conhecimento cia que reúne esses diversos campos e reclama do
objetivo. O psicólogo não podia deixar de corpo os gestos que, integrados à totalidade de uma
redescobrir-se enquanto experiência, quer situação, respondem à sua fisionomia.
dizer, enquanto presença sem distância ao Pensemos na percepção de uma situação eró-
passado, ao mundo, ao corpo e ao outro, no tica. Um contexto não adquire uma significação se-
Verissimo, D. S. & Furlan, R. (2007). Merleau-Ponty e a Psicologia 341
plicações sobre o mundo físico, que atribui à percep- Lefort, C. (2003). Posfácio. In M. Merleau-Ponty, O
ção aquilo que supomos nos objetos. No caso, que visível e o invisível (4a ed. pp. 247-267). São
relações objetivas também determinariam nossa vi- Paulo: Perspectiva.
são. Mas, como disse Descartes, seria preciso, en-
Merleau-Ponty, M. (1975). A estrutura do com-
tão, supor uma alma ao fim desse processo, pois, afi-
portamento. Belo Horizonte: Interlivros. (Original
nal, alguém tem que ver.
publicado em 1942).
Como não se trata, para Merleau-Ponty, de
substituir o objetivismo pelo espiritualismo, devemos Merleau-Ponty, M. (1990). O primado da per-
refazer nossa noção de percepção, e foi essa a tare- cepção e suas conseqüências filosóficas.
fa que Merleau-Ponty assumiu por toda a vida. Por Campinas, SP: Papirus.
ora, assinalemos, em primeiro lugar, que se trata de Merleau-Ponty, M. (1999). Fenomenologia da
descrever, e não de explicar. Esse “leitmotiv” percepção (2a ed.). São Paulo: Martins Fontes.
fenomenológico não é assumido por Merleau-Ponty (Original publicado em 1945).
como princípio de uma filosofia transcendental que
Merleau-Ponty, M. (2003). O visível e o invisível
descobre no “cogito” a possibilidade de todo fenôme-
(4a ed.). São Paulo: Perspectiva.
no. Merleau-Ponty não se furtou, nesse sentido, ao
debate do sentido dos fenômenos físico, vital e huma- Politzer, G. (1975). Crítica dos fundamentos da
no para revelar seus encadeamentos e rupturas, com psicologia (2a ed.). Lisboa: Presença. (Original
o que procurou mostrar tanto a inscrição quanto a publicado em 1929).
especificidade e irredutibilidade do sentido percebido Schultz, D., & Schultz, S. (1995). História da
às outras duas ordens. Com isso, fundou a descrição psicologia moderna (7a ed.). São Paulo: Cultrix.
como atividade apropriada e conquistadora do senti-
do percebido – linguagem que aproximou a filosofia
de Merleau-Ponty da literatura –, e reconheceu que Artigo recebido em 06/06/2006.
as indeterminações, ambigüidades e imprecisões de
Aceito para publicação em 23/11/2006.
sentido fazem parte da lógica do mundo percebido.
Como vimos, todo este percurso do filósofo foi fun-
dado nos resultados de trabalhos que vinham sendo Endereço para correspondência:
realizados no campo da psicologia e no de outras ci- Danilo Saretta Verissimo. Rua General Rondon,
ências. Por sua vez, tais áreas do conhecimento re- 26 apto 53, Aparecida. CEP: 11030-570, Santos-SP,
ceberam, com a obra de Merleau-Ponty, significati- Brasil. E-mail: dsverissimo@pg.ffclrp.usp.br
vas contribuições cujo alcance permanece sendo ex-
plorado.
Danilo Saretta Verissimo é doutorando em
Referências Psicologia pelo Departamento de Psicologia e Edu-
cação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
Bimbenet, E. (2004). Nature e humanité: Le probléme de Ribeirão Preto/USP e doutorando pela Faculdade
anthropologique dans l’ouvre de Merleau- de Filosofia da Universidade Jean Moulin - Lyon III,
Ponty. Paris: Livrairie Philosophique J. Vrin. França, bolsista CAPES.
Coelho Júnior, N., & Carmo, P. (1991). Merleau- Reinaldo Furlan é docente dos cursos de Gra-
Ponty: Filosofia como corpo e existência. São duação e de Pós-Graduação em Psicologia do Depar-
Paulo: Escuta. tamento de Psicologia e Educação da Faculdade de
Guillaume, P. (1966). Psicologia da forma (2a ed.). Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto/USP.
São Paulo: Nacional. (Original publicado em 1937).
Japiassu, H. (1977). Introdução à epistemologia da
psicologia (2a ed.). Rio de Janeiro: Imago.