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24/09/2020 Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa

Acórdãos TRL Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa


Processo: 3834/2006-7
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: ABUSO DE DIREITO
COMODATO
REIVINDICAÇÃO
DIREITO PESSOAL DE GOZO
EFEITOS
TERCEIROS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 16-05-2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: Ao invés do que ocorre com os direitos reais, dos direitos pessoais de
gozo apenas irradiam, em regra, efeitos para os respectivos sujeitos.
Assim, no contrato de comodato, o confronto entre o comodatário e o
posterior adquirente do direito de propriedade sobre a fracção
autónoma comodatada deve ser resolvido, em princípio, a favor do
proprietário.
Tal não impede que, por comportamentos expressos ou tácitos, o
adquirente do direito de propriedade assuma a obrigação do comodante,
o que ocorre, por exemplo, se o adquirente, filho da comodante e
conhecedor da existência do contrato de comodato celebrado com
outros familiares (avô do adquirente e respectivo cônjuge), se conforma
com a situação de ocupação.
Por invocação da violação dos princípios da boa fé e do fim social e
económico do direito de propriedade, que nos reconduzem à figura do
abuso de direito, é legitimo invocar a eficácia externa do contrato de
comodato, caso em que o adquirente, apesar de não ter intervindo no
contrato, fica vinculado nos precisos termos do comodante.
(AG)
Decisão Texto Integral:
I – L[…] demanda A.[…] em acção reivindicação,
pretendendo o reconhecimento do seu direito de propriedade
sobre uma fracção autónoma que a R. ocupa e a condenação
desta na sua restituição.

Para o efeito alega que é proprietário da fracção onde


habitou o seu avô, casado com a R. Mas, depois daquele ter
falecido, a R. recusa-se a desocupar a fracção, apesar de
não ter qualquer título que legitime essa ocupação.

A R. contestou alegando que ocupa a fracção ao abrigo de


um acordo que foi celebrado entre a R. e o seu falecido
marido (avô do A.) e a mãe do A. (e seu marido) que era,
então, a proprietária da fracção reivindicada, nos termos
do qual estes renunciavam ao direito de propor qualquer
acção que visasse a desocupação da fracção enquanto, por
seu lado, se mantivessem a ocupar uma outra de que a R. e
seu falecido marido eram arrendatários.

O A. sempre soube do referido acordo e deu o seu


consentimento à sua execução, pelo que a exigência de
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desocupação da fracção representa uma situação de abuso de


direito. Além disso, invocou o direito de retenção por
benfeitorias realizadas na fracção.

O A. apresentou articulado de réplica onde impugna a


existência do acordo a que a R. alude, o qual, a existir,
apenas vincularia os respectivos subscritores e não o A. A
fracção reivindicada foi vendida pela sua mãe a terceira
pessoa a quem o A., por sua vez, a comprou, não estando,
por isso, vinculado a qualquer acordo que tenha sido
estabelecido com a R. Impugnou ainda o direito de retenção
invocado pela R.

Realizado julgamento, foi proferida sentença na qual foi


reconhecido ao A. o direito de propriedade, negando-se,
contudo, procedência ao pedido de restituição, tendo em
conta a existência do comodato acordado entre a R. e a mãe
do A.

Apelou o A. e concluiu que:

a) Houve erro na apreciação da prova no que concerne à


resposta ao quesito 3º, a qual foi decidida com base no
documento constituído pelo acordo reproduzido a fls. 115
dos presentes autos;
b) Daquele acordo não resulta que a R. seja ou alguma vez
tenha sido arrendatária do imóvel sito na Av. […], pois do
contrato de arrendamento junto resulta que o único
arrendatário era o avô do A., sendo que tal qualidade não
se transmite;
c) O acordo foi celebrado entre a mãe e o avô do A., com a
anuência dos respectivos cônjuges e para vigorar apenas em
vida do avô do A. ou enquanto aquele vivesse no imóvel
identificado nos autos;
d) Esse acordo foi respeitado pelo A. até meados de 2001,
altura em informou a R. que teria se desocupar a fracção,
ainda em vida do avô do A., que entretanto deixara de lá
viver;
e) O Tribunal partiu de premissas erradas para retirar
conclusões que não correspondem à verdade, limitando-se a
decidir com base naquele acordo e naquelas conclusões,
devendo ser anulado o julgamento da matéria de facto;
f) Por outro lado, não se trata de um contrato de
comodato, atenta a cláusula 7ª;
g) Foi violado o referido art. 1129° do CC o qual não tem
aqui aplicação; o mesmo se diga do art. 1130° que se
aplica ao contrato de comodato e não a este acordo que não
poderá ser qualificado de contrato gratuito;
h) Ao qualificar o referido acordo como contrato de
comodato encontrando o suporte legal para a decisão
recorrida no art. 1130° do CC, o Tribunal errou na norma
aplicada ao caso concreto, devendo o referido acordo ser
qualificado de comodato (sic), dado estar estipulado o
pagamento de uma renda em contrapartida pela ocupação do
imóvel em causa.
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Houve contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II – Questão prévia:

Com as suas alegações o A. veio apresentar 3 documentos


(certidão de casamento da R. com o avô do A., contrato de
arrendamento relativo à fracção habitada pela sua mãe onde
figura como arrendatário o seu avô e certidão de óbito
deste).

Para além de não se verificar qualquer utilidade na junção


dos documentos, a sua apresentação é subjectiva e
objectivamente extemporânea, pois que, além de já
existirem quando findou a audiência de julgamento (art.
524º do CPC), a sua apresentação nem sequer encontra
justificação no teor da sentença recorrida, pois nenhum
facto essencial ou argumento decisivo nela se surpreende,
nos termos do art. 706º, de modo a justificar a
apresentação de documentos com as alegações de recurso.

Por estes motivos, determina-se o desentranhamento dos


referidos documentos.

Custas incidentais pelo apelante, com taxa de justiça de 1


UC.

III - Matéria de facto:

A) Nas suas alegações o apelante invoca que houve erro de


apreciação da prova na parte em que se qualificou a R.
como locatária da fracção ocupada pela mãe do A. (resp. ao
quesito 3º)

Para além de tal facto não ser decisivo para o resultado


desta acção, constata-se que a referida resposta foi
motivada não apenas no documento de fls. 115 e 116, mas
ainda em prova testemunhal que, não tendo sido registada,
se mostra inacessível a este Tribunal.

Por tais motivos, nos termos do art. 712º do CPC, não pode
ser modificada a resposta por este Tribunal.

De forma genérica, o apelante pretende ainda que se


determine a anulação do julgamento.

Porém, as críticas que dirige à sentença mais do que as


respostas aos pontos da base instrutória, têm como alvo
ilações que serviram para justificar a decisão de
improcedência do pedido de restituição.

Ora, não é para tais situações que se prevê a anulação do


julgamento no art. 712º, já que as referidas ilações não
vinculam de modo algum este Tribunal da Relação.

B) Todavia, com vista a melhor sustentar a argumentação em


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redor da qualificação jurídica do acordo celebrado e das


suas consequências, mostra-se conveniente tomar em conta a
globalidade do documento de fls. 115, e não apenas o que
resulta da resposta ao quesito 3º.

Com efeito, tratando-se do documento através do qual os


interessados expressaram a sua vontade relativamente ao
regime a que obedeceria a ocupação da fracção
reivindicada, não pode dispensar-se a sua análise
integral. Aliás, o próprio A., para sustentar a
modificação da sentença, serve-se de tal documento (cfr.
§§ 7º, 9º e 15º e nas alíneas D), F) e H) das conclusões).

C) Factos provados:

1. O A. é o titular inscrito (desde 26-8-99) da fracção


autónoma designada pela letra “B” do prédio sito […] em
Lisboa, correspondente ao r/c esq. […] - A);
2. A fracção autónoma foi adquirida pelo A., por compra, a
Manuela […], tendo pertencido anteriormente à mãe do A.,
Maria […] (doc. de fls. 14) - B);
3. Entre a mãe do A. e a Ré, com os respectivos cônjuges à
data, foi celebrado, em 1992 (24-4-92), um acordo escrito
onde aquela renunciava a propor qualquer acção de
reivindicação da propriedade da fracção autónoma contra a
Ré, isto enquanto a mãe do A. não desocupasse a fracção
sita na Av. […] 5° esq., em Lisboa, locada à Ré e seu
falecido marido - 2° e 3;
4. Nos termos do documento de fls. 115 e 116, foi acordado
que “os 1ºs outorgantes [mãe do A. Maria […] e seu marido]
não promoverão qualquer diligência contra os 2ºs
outorgantes [a R. e seu falecido marido, Luís […]], em
conjunto ou separadamente ..., designadamente de
reivindicação de desocupação ou de despejo” do andar dos
autos “enquanto eles, 1ºs outorgantes, não desocuparem o
5º andar da Av. […], por acto exclusivamente alheio à sua
vontade ...”;
5. Nele se refere ainda que “Luís […] é locatário, desde
1951, do 5º andar esqº do prédio sito […] em Lisboa” e que
“no referido andar, com o consentimento do locatário,
habitam a sua filha e 1ª outorgante Maria Teresa, desde
1961, e o seu genro e 1º outorgante, desde 1973”
(cláusulas 1ª e 2ª);
6. Nas cláusulas 3ª e 4ª estabeleceu-se que “a 1ª
outorgante Maria Teresa […], é proprietária do r/c esqº do
imóvel sito em Lisboa […], e que “no referido andar, com o
consentimento da proprietária, habitam seu pai e 2º
outorgante, Luís […] e sua mulher, desde 1973”;
7. Nas cláusulas 5ª e 6º consignou-se que “1ºs e 2ºs
outorgantes pretendem manter a situação descrita nas
cláusulas anteriores”.

“Assim e para tanto, comprometem-se formalmente a nada


fazer para alterar o actual status quo, pelo que:

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Os 1ºs outorgantes não promoverão quaisquer diligências


contra os 2ºs outorgantes, em conjunto ou separadamente
... designadamente de desocupação, de reivindicação ou de
despejo do r/c […], enquanto eles, 1ºs outorgantes, não
desocuparem o 5º andar da Av. […] por acto exclusivamente
alheio à sua vontade ...”;
8.“Os 2ºs outorgantes não promoverão contra os 1ºs
outorgantes, em conjunto ou separadamente ...
qualquer diligência, designadamente de reivindicação, de
desocupação ou de despejo do 5º andar da […], enquanto
eles, 2ºs outorgantes, não desocuparem o r/c […] por acto
exclusivamente alheio à sua vontade”;
9. Finalmente, na cláusula 7ª fixou-se que “a renda do 5º
andar[…] continuará a ser paga pelos 2ºs outorgantes como
compensação pela ocupação do andar sito na R. […]”;

10. A mãe do A. vem habitando o locado [5º esq] pelo menos


desde 1961, bem como o A. até sair de casa, com cerca de
30 anos de idade, provavelmente em 1992 - 4;
11. O A. sabia do acordo e com ele sempre se conformou até
meados de 2001 - 5°;

12. Em meados de 2001 o A. informou a R. de que deveria


desocupar o imóvel - 1°;
13. Foi colocada uma marquise na varanda da casa - C);

14. A R. pintou todas as paredes e colocou louça na casa


de banho - 8º.

III – Decidindo:

1. Apesar de o A. ter sido reconhecido como titular do


direito de propriedade da fracção ocupada pela Ré, foi
considerado improcedente o pedido de condenação da Ré na
sua restituição.

Tal decisão foi baseada no facto de a Ré ser comodatária


da fracção, ao abrigo de um contrato outorgado com a mãe
do A., anterior proprietária. Assim, o A., ao adquirir a
mencionada fracção, teria ficado vinculado ao cumprimento
de tal acordo, sendo legítima a ocupação por parte da Ré.
Complementarmente foi dito ainda que a exigência de
restituição reconduzir-se-ia a uma situação de abuso de
direito.

Tendo em conta as alegações e os poderes oficiosos em


matéria de integração jurídica, cumpre responder
fundamentalmente às seguintes questões:

a) Qualificação jurídica do acordo celebrado em 1992;

b) Apreciação da eventual eficácia das obrigações


assumidas pela comodante relativamente ao A., adquirente
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da fracção;

c) Averiguar se o comportamento do A. traduz ou não uma


vinculação autónoma;

d) Eventualmente, verificar se no contexto em que ocorre,


a exigência de desocupação traduz ou não uma situação de
abuso de direito.

2. Qualificação do acordo em que interveio a Ré e a mãe do


A.:

2.1. O acordo documentado a fls. 115 e 116 teve como


outorgantes, de um lado, a mãe do A. e seu marido e, do
outro, o avô do A. e a R., que eram casados entre si.

Com vista a responder a uma das objecções que o A.


apelante lança sobre a sentença recorrida, há que
confirmar que, atentas as respostas aos §§ 2º e 3º da base
instrutória e a análise do documento que formalizou o
acordo, também à Ré deve ser reconhecida a qualidade de
outorgante. Quer em termos formais (ao nível da
identificação dos sujeitos e assinaturas), quer materiais
(quanto ao conteúdo das estipulações), é inquestionável
que a R. também foi participante activa no acordo,
mediante o qual procurou acautelar os seus interesses,
prevenindo-se contra eventuais actuações da proprietária
susceptíveis de interferir na ocupação.

Por semelhantes razões não merece acolhimento o argumento


de que tal acordo apenas visava assegurar os interesses do
avô do A. Ao invés, a intervenção directa da Ré e a
garantia de que nem conjunta, nem separadamente seria alvo
de acções de desocupação enquanto se mantivesse o statu
quo é bem elucidativa do interesse subjectivo que também a
Ré procurou acautelar, persistindo mesmo depois do óbito
do seu marido.

2.2. Na sentença, tal acordo foi qualificado como contrato


de comodato, atenta a sua natureza temporária e gratuita.

Nas alegações de recurso o A. questiona tal qualificação,


ainda que sem apresentar uma outra alternativa. Apesar
disso, a alusão feita à onerosidade da prestação acaba por
nos reconduzir ao contrato de arrendamento.

Trata-se, como é evidente, de um erro de perspectiva do A.


e que, se acaso pudesse delimitar o poder de apreciação
deste Tribunal, determinaria, sem mais delongas, a
confirmação da sentença recorrida.

Na verdade, se a posição da Ré relativamente à fracção


reivindicada tivesse de ser qualificada irremediavelmente
como de arrendatária, o resultado negativo para a apelação
era decorrência directa e inequívoca do que, a respeito da
locação, se dispõe no art. 1057º do CC: o A., como
adquirente do direito de propriedade da fracção, seria
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transmissário dos direitos e obrigações da anterior


proprietária, não podendo, por isso, deixar de suportar o
vínculo locatício relativamente à Ré.

É, aliás, este um dos efeitos jurídicos que permite


distanciar o contrato de locação dos restantes contratos
geradores de direitos pessoais de gozo, como o comodato,
aproximando-o da categoria mais robusta dos direitos reais
caracterizados pela sequela e pela eficácia erga omnes.

2.3. Mas, atento o disposto no art. 664º do CPC, uma


errada qualificação jurídica do recorrente não vincula
este Tribunal.

Considerando as respostas aos quesitos 2º e 3º ou o teor


do acordo, não podemos deixar de concordar com a
qualificação proposta na sentença: trata-se de um contrato
de comodato.

Numa ocasião em que a mãe do A. ainda era a proprietária


da fracção, entre aquela e a Ré (e respectivos maridos)
foi acordado que a Ré e seu cônjuge poderiam continuar a
habitar a referida fracção; correspectivamente, também a
mãe do A. (e seu marido) assegurava, pela mesma via, a
possibilidade de continuar a fruir da fracção que ocupava,
sita na Av. […], de que era arrendatário o marido da R.

Traduzindo-se o contrato de comodato na entrega de uma


coisa, a título gratuito, para uso temporário pelo
comodatário (art. 1129º do CC), todos os elementos
essenciais encontram eco no caso concreto. A única
especificidade relativamente à generalidade dos comodatos
decorre da ausência de entrega da coisa (elemento ad
constitutionem), pela singela razão de que a fracção já se
encontrava na disponibilidade dos comodatários, por nela
habitarem.

Além disso, o facto de, nos termos da cláusula 7ª, a renda


da fracção ocupada pela mãe do A. continuar a ser paga
pela Ré e seu marido não modifica aquela conclusão, já
que, para além de a obrigação de pagamento da renda ao
respectivo senhorio ser decorrência natural da qualidade
de arrendatários, o contrato de comodato não é
incompatível com a incidência de certos encargos sobre o
comodatário.(1)

2.4. Especificamente em relação à fracção ora


reivindicada, com a outorga do referido acordo, as partes
visaram alcançar diversos efeitos práticos:

- Formalizar os termos em que a ocupação se faria (“... é


celebrado e reduzido a escrito o presente contrato que se
rege pelas cláusulas seguintes ...”), evitando,
designadamente, os riscos de uma eventual qualificação da
situação da Ré como de mera tolerância da proprietária
(art. 1253º, al. b), do CC) e passando a sua fruição a

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sustentar-se numa relação contratual vinculativa para


ambas as partes;

- Definir os termos da ocupação, prevendo, designadamente,


que a exigência da restituição ficaria subordinada a um
termo incerto, de acordo com o art. 278º do CC, cuja
verificação e cujos efeitos envolviam todos os
interessados, assim se furtando a Ré ao que poderia
decorrer da sujeição ao regime supletivo previsto no art.
1137º, nº 2, do CC; (2)

- Sendo dispensável a previsão da abstenção de acções de


desocupação da fracção, a inserção de tal obrigação de non
facere no contrato tornou claro um dos efeitos principais
que as partes perseguiam: o de não serem mutuamente
importunadas com acções judiciais enquanto se mantivesse a
ocupação de cada uma das fracções.

É apodíctico afirmar que as partes agiram ao abrigo da


liberdade de vinculação, não existindo nas regras
específicas do contrato de comodato ou nos princípios
gerais das obrigações quaisquer impedimentos ao que então
estipularam.

Por isso, se e enquanto a fracção ocupada pela Ré se


mantivesse na esfera jurídica da mãe do A., proprietária e
comodante, não haveria a menor dúvida quanto à
inviabilidade de uma pretensão de desocupação impulsionada
pela mesma, a não ser depois da verificação do evento
futuro de que as partes fizeram depender essa
exigibilidade.(3)

Todavia, o quadro jurídico modificou-se depois da


celebração do contrato de comodato: a fracção foi vendida
pela mãe do A., comodante, a uma terceira pessoa, surgindo
depois na esfera jurídica do A., que registou a aquisição
do direito de propriedade em 1999.

Cumpre, pois, apreciar os efeitos desta aquisição no


contrato de comodato que tinha por objecto a fracção
ocupada pela R.

3. Determinação dos efeitos geralmente decorrentes da


transmissão da propriedade da fracção para terceira
pessoa.

3.1. Na presente acção apenas se questiona a transmissão


para o adquirente da fracção da obrigação assumida pela
comodante que anteriormente foi proprietária da fracção.
Não temos, assim, de entrar na polémica, de contornos mais
alargados, em redor da limitação ou da extensão da
eficácia externa do contrato relativamente a terceiros,
designadamente no quadro da responsabilidade civil.(4)

Condicionados pelo objecto desta acção, podemos assentar


em que, pese embora alguns pontos em comum que se

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verificam entre os direitos reais e os direitos pessoais


de gozo, nos primeiros dominam as características da
sequela e da eficácia ou oponibilidade erga omnes, ao
passo que dos direitos pessoais de gozo irradiam efeitos
que apenas vinculam, em regra, os respectivos sujeitos.(5)

Em consequência, eventuais situações de confronto entre o


titular do direito de propriedade e outros possuidores ou
detentores da mesma coisa deverão ser resolvidos a favor
do proprietário, nos termos do art. 1311º do CC. Dito de
outro modo, uma vez reconhecido o direito de propriedade,
o detentor ou o possuidor deve ser condenado na
restituição da coisa, a não ser que demonstre a existência
de um título que, sendo eficaz em relação ao proprietário,
legitime a recusa de restituição, ou que, por outra via,
seja legítimo concluir pela inviabilidade da pretensão de
desocupação.(6)

3.2. Tal não ocorre, porém, quando singelamente se invoque


a outorga de um contrato de comodato com o anterior
proprietário.(7)

Diversamente do que ficou expresso na sentença recorrida,


transcrevendo, aliás, parte da fundamentação usada no Ac.
do STJ, de 12-5-05, www.dgsi.pt, não encontra justificação
a afirmação genérica de que “quem adquire direitos também
assume as obrigações que os oneram” ou que o A. teria
deixado de ser terceiro face ao contrato de comodato pelo
facto de “adquirir a propriedade do andar, assumindo as
obrigações dos anteriores proprietários”. Estamos perante
afirmações que contrariam diferenças elementares entre
direitos reais e direitos pessoais de gozo que, por
exemplo, assomam no art. 406º do CC.

Na sentença foi usado ainda, como argumento a contrario


sensu, o disposto no art. 1130º do CC, colocando o direito
de propriedade, por natureza perpétuo, em confronto com
direitos de natureza temporária. Isto é, a pretexto da
regulamentação de uma situação perfeitamente delimitada
que associa a duração do comodato à natureza temporária do
direito ao abrigo do qual foi celebrado, fez-se uma
extrapolação com base na natureza perpétua do direito de
propriedade.

Contra tal argumentação, e sem prejuízo da busca de outra


via mais adequada para atingir o mesmo resultado, é de
entender que, transmitido o direito ao abrigo do qual
foram assumidas as obrigações do comodante (ou de outros
contratos geradores de direitos pessoais de gozo), as
mesmas não transitam para a esfera jurídica do adquirente,
atenta a sua qualidade de terceiro cujo direito de
propriedade prevalece sem as limitações decorrentes de
contratos celebrados por anterior ou anteriores
proprietários.(8)

Daqui decorre que, em regra, sendo o comodatário titular


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de um mero direito pessoal de gozo, com a posição de mero


detentor, a invocação do contrato apenas pode servir de
legítimo motivo de recusa de restituição da coisa se e
enquanto esta se mantiver na esfera patrimonial do
comodante.

3.3. Esta regra comporta algumas excepções. A mais


relevante é suscitada pela invocação do direito de
retenção, nos termos do art. 754º (crédito por
benfeitorias) ou do 755º, nº 1, al. e), do CC (crédito
decorrente do próprio contrato).

Para esse efeito a R. invocou o seu direito de crédito


decorrente de benfeitorias realizadas. Porém, as respostas
à base instrutória revelam-se insuficientes para produzir
o resultado pretendido, já que, apesar de se ter provado
que foram realizadas algumas obras, não se apurou o
montante despendido, nem outros factos imprescindíveis ao
reconhecimento do direito de crédito correspondente.

Assim, o impedimento à pretendida restituição, além de não


poder encontrar eco nas regras do contrato de comodato
realizado com a primitiva proprietária, também não o
encontra no regime do direito de retenção.

Neste contexto, resta apreciar se acaso o comportamento do


A. subsequente à aquisição da fracção, conjugado com os
demais factos provados, possibilita a afirmação da sua
vinculação autónoma ao contrato de comodato.

Adicionalmente, importará ainda apreciar se o pedido de


restituição integra ou não uma manifestação de abuso de
direito por parte do A.

4. Argumento principal - vinculação do A. ao contrato


celebrado:

4.1. Com a autoridade própria de quem teve larga margem de


responsabilidade na arquitectura do nosso Direito Civil,
Vaz Serra declarava que “o direito só raras vezes não dará
solução a situações indesejáveis”.(9) Juízo semelhante levou
Manuel de Andrade a afirmar que a “jurisprudência está ao
serviço da lei, mas num sentido de obediência pensante,
que atende menos à letra que mata do que ao espírito que
vivifica”.(10)

Afinal, perspectivas do Direito e da função dos Tribunais


a que também aderem autores contemporâneos, tais como
Castanheira Neves para quem “a realização do direito
deixou de ser mera aplicação das normas legais e
manifesta-se como o acto judicativamente decisório através
do qual ... se cumprem em concreto as intenções
axiológicas e normativas do direito, enquanto tal”.
(11) Outrossim Menezes Cordeiro que afirma que “a decisão é
legítima quando, por assentar no peso relativo das
proposições que a integrem, compartilhe a justeza do

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sistema em que se inclua”.(12)

Na consecução de tais objectivos, importante é aproveitar


todas as potencialidades que se extraem da matéria de
facto provada e atentar também nas circunstâncias
envolventes, evitando soluções em que a realidade que
reclama uma solução materialmente justa fique escondida
pela peneira dos argumentos de pura lógica formal.

Para o efeito é importante a perspectiva histórica do


diferendo.

4.2. O historial do caso concreto revela o seguinte:

a) Quando foi celebrado o contrato de comodato com a Ré,


em 1992, a proprietária da fracção era a sua enteada, mãe
do A.; na fracção estava instalada a casa de morada de
família da Ré e se marido, avô do A.;

b) A mãe do A., por seu lado, vivia numa outra fracção de


que era arrendatário o seu pai (avô do A.); também o A. aí
viveu até sair de casa, com 30 anos, por volta de 1992;

c) Apesar de a mãe do A. se ter vinculado ao contrato de


comodato, sujeita, por isso, a agir de acordo com as
regras da boa fé, nos termos do art. 272º do CC, alienou a
fracção de que era proprietária a uma terceira pessoa,
que, por seu lado, a transferiu para a esfera jurídica do
A.;

d) O A. sabia da existência do contrato de comodato


(apesar de negar tal facto no art. 11º da réplica) e com
ele sempre se conformou até meados de 2001, ainda em vida
do seu avô;

e) O próprio A. admite na contestação que nunca pôs em


causa que o seu avô continuasse a residir na fracção sem o
pagamento de qualquer renda ou compensação, como o vinha
fezendo (art. 15º); só em meados de 2001 (o avô do A.
viria a falecer em Outubro de 2001) o A. informou a R. de
que deveria desocupar o imóvel; refere no art. 8º da
petição que, para conseguir a desocupação, procedeu à
denúncia dos contratos de fornecimento de electricidade e
de água.

Acrescem ainda as seguintes considerações adicionais:

- Em termos objectivos, a aquisição da fracção pelo A.


insere-se no circuito necessário a contornar os efeitos
prático-jurídicos do comodato que culminou com a
instauração da presente acção;

- O contrato de comodato, na medida em que gera direito


pessoal de gozo, proporciona o fácil conhecimento social
da situação obrigacional por parte de terceiros, à
semelhança do que ocorre com os direitos reais;

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- A acção foi instaurada depois do óbito do avô do A.;

- Enquanto no registo de aquisição da propriedade da


fracção (26-8-99) é indicada como residência do A. um
prédio sito no Monte Estoril, no registo de hipoteca que
incide sobre a fracção, datado de 17-1-05, é indicada como
residência a fracção ocupada pela sua mãe e que
corresponde ainda à referida no contrato de comodato (cfr.
doc. de fls. 213).

4.3. A síntese dos factos relacionados com o caso,


apreciados à luz das cláusulas gerais que enformam o nosso
Direito das Obrigações,(13) de onde sobressai o princípio da
boa fé que aflora em diversos preceitos, como os arts.
334º e 762º do CC e, especialmente, o art. 272º do CC
(comportamento exigido ao interessado na pendência da
condição), leva-nos a um resultado diverso daquele que
decorreria de uma opção marcada por um conceptualismo
jurídico-formal.

Para o efeito, importa considerar que o A., por detrás das


aparências, não pode ser considerado um terceiro
totalmente “indiferente” ao que se passou antes de se ter
tornado proprietário da fracção. Pelo contrário, tanto por
razões de ordem familiar (filho da comodante e neto de um
dos comodatários), como pela circunstância de se ter
tornado proprietário da fracção (ao menos por via da
presunção registral), o A. surge-nos como terceiro
“comprometido” com os antecedentes que levaram ao
despoletar do litígio e com a solução a dar-lhe, sendo a
essa luz que devem ser apreciados os factos provados e
formulados os respectivos juízos de valor.(14)

Sob pena de excessiva sobreposição de aspectos formais a


razões de ordem substancial, transparece da matéria de
facto com suficiente nitidez que a posição jurídica do A.,
a partir do momento em que se tornou proprietário da
fracção e, depois, quando empreendeu a instauração da
presente acção, não equivale à de um qualquer sujeito
estranho e desconhecedor do passado que viesse invocar a
sua qualidade proprietário sobre um bem cujo direito de
fruição lhe está vedado.

O contrário de tudo isso é-nos revelado pela sequência de


factos em que se acentua, com efeitos na resolução do
litígio, a sua relação umbilical com a comodante, Maria
Teresa Saldanha de Matos (mãe), a sua relação familiar com
Luís Saldanha de Matos (avô) e, bem assim, a relação para-
familiar com a Ré que com o seu avô foi casada, madrasta
da sua mãe.

Ainda que não tenham sido alegados os motivos que levaram


a mãe do A. a alienar a fracção ou que, mais tarde,
determinaram a aquisição da mesma fracção pelo A.,
perspectivados pelos seus efeitos, tais actos surgem
objectivamente como passos que vieram afectar a posição
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jurídica da R. que, deste modo, se vê confrontada com uma


pretensão de ser despejada da sua casa de morada de
família.

Em suma, os mesmos factos que, isolados das circunstâncias


envolventes, seriam insuficientes para conceber a
existência de um vínculo jurídico autónomo do A. em
relação à R., com incidência na fracção reivindicada,
quando inseridos no contexto de uma relação mais complexa,
em que estão presentes vínculos específicos entre os
sujeitos, ganham uma nova forma e um novo significado,
permitindo perceber a presença de uma fonte geradora de
obrigações.

4.4. Longe de uma actuação de cariz puramente positivista,


moldada a partir de meros raciocínios silogísticos
integrando a premissa maior (norma aplicável), a premissa
menor (factos provados) e a conclusão (decisão), a tarefa
de dirimir litígios exige uma atenção pendular em que os
aspectos de ordem jurídica sejam modelados a partir da
matéria de facto, ao mesmo tempo que a matéria de facto é
qualitativamente apreciada à luz dos normativos
relevantes.(15)

Importante se torna para o efeito a interpretação da


própria factualidade, evitando o facilitismo das respostas
imediatas e valorando, na justa medida (sem olvidar os
ónus que impendem sobre as partes, mas também sem
sobrevalorizar aspectos formais), os efeitos erosivos da
verdade histórica que sempre ocorrem quando se estabelece
a transposição dos termos do litígio para a linguagem
judiciária.

Para o efeito, encontramos na dogmática apelos


significativos, como aqueles que decorrem dos escritos de
Menezes Cordeiro, segundo o qual a interpretação do
negócio jurídico é algo de essencialmente objectivo,
devendo a autonomia privada ser temperada com a tutela da
confiança, para depois acrescentar que a interpretação
“deve ser assumida como uma operação concreta, integrada
em diversas coordenadas. Embora virada para as declarações
concretas, ela deve ter em conta o conjunto do negócio, a
ambiência em que ele foi celebrado e vai ser executado, as
regras supletivas que ele veio afastar e o regime que dele
decorra”.(16)

4.5. Neste contexto, apesar de o contrato de comodato, por


si só, não produzir efeitos externos em relação ao A., a
actuação deste, depois de adquirir o direito de
propriedade, em 1999, numa altura em que o seu avô ainda
era vivo, pode e deve ser interpretada como declaração
tácita da vontade de assumir obrigações idênticas às que a
sua mãe assumira através do contrato de comodato.

O encaixe desta situação no ordenamento jurídico, que a


experiência da vida facilmente permite entender e que a
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justiça do caso reclama, podia fazer-se na figura da


assunção de dívida, no seu sentido mais genérico de
assunção externa de “obrigações”, nos termos do art. 595º,
nº 1, al. b), do CC.

Porém, tendo em conta os antecedentes que eram do


conhecimento do A. e de que este também extraiu proveitos,
enquanto habitou com os seus pais na outra fracção, o
facto de se ter “conformado” com a situação que se
verificava aquando da aquisição da fracção (e que também
beneficiava directamente o seu avô), traduzida na sua
significante jurídica, revela, de forma suficiente a
vontade de continuar a respeitar as obrigações a que sua
mãe se vinculara em 1992, consentindo que a fracção
persistisse como casa de morada da família da Ré e seu
falecido marido, avô do A.

Insista-se: no caso concreto, a qualificação jurídica do


comportamento global do A. não dispensa a sua integração
no contexto histórico em que ocorreu.

Se não existem elementos bastantes para afirmar,


relativamente ao A., o efeito externo da obrigação
assumida pela sua mãe, e se não é legítimo asseverar-se
também, com a necessária segurança, que a sua entrada em
acção correspondeu a um mero artifício jurídico
arquitectado em conjunto com a sua mãe, a fim de tornearem
os efeitos decorrentes do contrato de comodato, os factos
cronologicamente alinhados e sintetizados, apreciados à
luz dos critérios de experiência comum e integrados pelos
princípios da boa fé e da tutela da confiança, servem
para, em concreto, dar suficiente nitidez àquilo que
apenas genérica e subtilmente neles assoma, ou seja, a
vinculação do próprio A. à obrigação de respeitar a
ocupação da fracção que a Ré e o seu avô vinham fazendo.

4.6. Para o efeito, importa notar que o contrato de


comodato não está sujeito a qualquer forma, inexistindo,
por isso, obstáculo formal a que a assunção da obrigação
do comodante decorra de comportamentos tácitos, nos termos
dos arts. 217º, nº 1, e 219º do CC.

Ora, se quanto à R. (e seu falecido marido) a permanência


na fracção nos moldes em que se verificava corresponde à
aceitação daquela vinculação, relativamente ao A. a
vinculação é tacitamente revelada pelo conhecimento que
tinha do acordo e pela sua atitude de não interferir na
situação que rodeava a ocupação da fracção, atitude esta
especialmente qualificada pela proximidade familiar
relativamente aos principais sujeitos do primitivo
contrato: sua mãe, seu avô e a R., madrasta da sua mãe.

Sem ceder perante as regras que distinguem os direitos


reais e os direitos pessoais de gozo, assim se obtém o
mesmo resultado decretado na sentença, seguindo um diverso
percurso que encontra no ordenamento jurídico o necessário
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apoio e prosseguindo simultaneamente os objectivos da


justiça substancial que devem servir de farol orientador
na busca das soluções judiciárias.

Tudo isto para concluir que, apesar de a fracção ter sido


adquirida pelo A. posteriormente à conclusão do contrato
de comodato, a pretendida desocupação apenas pode ser
exigida à Ré quando ocorrer o evento de que, no acordo
inicial, ficou dependente, ou seja, a desocupação
involuntária da fracção que a mãe do A. ocupa e de que
fora arrendatário o falecido avô do A.

5. Argumento suplementar – actuação em abuso de direito:

5.1. Refere a Ré nas contra-alegações que a mãe do A.


teria arquitectado o plano para se desvincular dos efeitos
decorrentes do comodato, vendendo a fracção a uma terceira
pessoa que, por sua vez, a transferiu para o A., tudo
feito de forma simulada.

Não é possível afirmar, com a segurança que deve rodear


juízos judiciários, os motivos que presidiram às reais
motivações dos sujeitos que se sucederam na titularidade
do direito de propriedade sobre a fracção reivindicada.
Mais concretamente, não existem factos que permitam
qualificar como simulada a actuação da mãe do A.,
traduzida na venda da fracção a uma terceira pessoa (como
verdadeira “manobra de diversão”), para depois surgir,
através de acto de retransmissão, na esfera jurídica do A.

Por outro lado, ainda que a interposição fictícia de


pessoas, com vista a obstar aos efeitos de um determinado
contrato, possa reconduzir-se, em tese, à figura da
simulação, geradora da nulidade contratual, a questão
suscitada não encontra na matéria de facto a necessária
substanciação, não sendo possível concluir, com a dita
segurança, que a verdadeira interessada no êxito total
desta acção seja a mãe do A., sendo este, na prática, o
seu “testa de ferro”.

5.2. Já, porém, no contexto da relação complexa que emerge


da matéria de facto, se revela importante a consideração
de que, nos termos do art. 272º do CC, ex vi, art. 278º do
CC, a comodante, mãe do A., estava obrigada a orientar as
suas opções pelos ditames da boa fé, por forma a não
comprometer a integridade do direito da Ré. Ditames esses
que, em termos meramente objectivos, foram manifestamente
postergados, com prejuízo para a situação jurídica da Ré.

Deste modo, ainda que porventura não fosse possível


submeter o A. à vinculação contratual correspondente ao
comodato, efeitos semelhantes, limitadores da sua
intervenção como proprietário, decorrem da consideração de
normas e princípios mais difusos que ainda encontram na
matéria de facto apurada e nas mencionadas circunstâncias
envolventes a necessária substanciação.
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Apesar de mãe do A. se ter vinculado a um contrato de


comodato, cuja extinção ficaria dependente de um evento
que também a si interessaria, acabou por vender a fracção
ocupada pela Ré a uma terceira pessoa, para depois surgir,
como por milagre, na esfera jurídica do seu próprio filho
...

5.3. Constituindo a excepção de abuso de direito um meio


de defesa que visa obstar a resultados manifestamente
injustos, nos termos do art. 334º do CC, a sua apreciação
basta-se com a delimitação de um acervo de factos cuja
análise revele um manifesto desajustamento da solução
decorrente do direito formal e imponha uma solução diversa
substancialmente mais justa.

Como tem sido acentuado múltiplas vezes pela


jurisprudência e pela doutrina, o direito cessa onde
começa o abuso,(17) de modo que o uso, quando convertido em
abuso, não pode colher da ordem jurídica a tutela que, em
princípio, deveria merecer.

Ainda que Menezes Cordeiro advirta para os perigos da sua


banalização, não deixa de acrescentar que “o abuso de
direito é um excelente remédio para garantir a supremacia
do sistema jurídico e da Ciência do Direito sobre os
infortúnios do legislador e sobre as habilidades das
partes”.(18)

Por certo a figura não pode ser encarada como “panaceia”


para todas as situações em que ao juiz pareça “injusta” a
solução decorrente da aplicação dos preceitos de direito
positivo, sob pena de se pôr em perigo a segurança
jurídica que o ordenamento jurídico deve garantir. Por
isso, demos preferência ao outro fundamento.

Mas, com a ponderação devida e assentando a construção em


alicerces integrados por elementos de facto ou juízos de
valor sobre os factos relevantes, não deve recear-se a
interferência desse elemento moderador do exercício de
direitos, ainda que a título de reforço da decisão final.

5.4. Já por diversas vezes aludimos ao princípio da boa fé


que envolve todo o ordenamento jurídico e pelo qual se
devem orientar todos quantos dele se pretendem servir para
obter o reconhecimento de direitos.

Por isso, quando, em termos meramente objectivos, o


titular do direito faça deste um uso manifestamente
reprovável, manifestamente antagónico com o que seria
expectável, devem impedir-se ou limitar-se os efeitos
pretendidos, sobrepondo ao interesse meramente individual
os valores mais importantes e perenes que enformam o
ordenamento jurídico.

Numa outra perspectiva mais próxima ainda do caso

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concreto, o instituto da propriedade visa permitir que,


salvo as excepções legalmente previstas, seja garantido ao
proprietário o pleno gozo e fruição da coisa, com exclusão
de terceiros.

Mas, tal como ocorre relativamente a outros direitos, deve


evitar-se a invocação do direito de propriedade para
servir interesses que manifestamente estejam longe dos
objectivos que justificam a atribuição da natureza
absoluta e da eficácia erga omnes que o rodeia.

Ora, a tutela atribuída ao A., adquirente do direito de


propriedade sobre a fracção, não pode justificar que, a
pretexto das características do direito de propriedade, em
contraposição com a ausência de eficácia externa das
obrigações que marca os contratos em geral, intente e
obtenha do Tribunal a confirmação do seu objectivo,
condenando a R. na desocupação da fracção cuja ocupação
foi consentida por acto voluntário da mãe do A.

Para o efeito, há que relevar especialmente a relação


familiar do A. com os demais interessados e o conhecimento
que detinha da situação geradora da ocupação da fracção,
elementos que implicam uma especial submissão às regras da
boa fé, entendidas no seu sentido objectivo, limitadoras
de actos de que possam resultar prejuízos para terceiros.
(19)

Só por farisaica atitude de sobrevalorização de aspectos


meramente formais e por omissão da qualificação
substantiva dos comportamentos reais se poderia passar ao
largo daquilo que a experiência comum permite qualificar
como acto objectivamente destinado “anular” os efeitos do
comodato, em prejuízo da R. que, assim, seria desalojada
da caca de morada de família.

Assim, ainda que não fosse possível vincular o A. ao


comodato, sempre seria de impedir a pretendida restituição
da fracção por tal se configurar um objectivo
manifestamente contrário aos princípios da boa fé e
antagónico com o fim social ou económico do direito de
propriedade, assim instrumentalizado em prejuízo da Ré

5.5. Porventura, a matéria de facto poderia ter sido


enriquecida com outros pormenores que, com mais nitidez,
permitissem visualizar o afirmado desajustamente entre uma
solução assente no direito formal e uma outra em que
surjam aplainadas as arestas do positivismo.

Em termos ideais assim seria. Mas nem sempre a situação


ideal se consegue, sendo precipitadas generalizações
relacionadas com o incumprimento defeituoso do ónus de
alegação ou do ónus da prova, recusando resultados que
podem ser alcançados a partir de elementos suficientes, a
pretexto de que a base factual poderia, em abstracto, ser
mais elucidativa.
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Descendo do patamar dos meros juízos teóricos para os


terrenos onde os Tribunais funcionam quotidianamente, sem
deixar de reconhecer que o maior esforço probatório
recaía, no caso, sobre a Ré, na medida em que invocou a
excepção impeditiva da restituição, não pode olvidar-se
também que o A., como parte na causa, na qual formulou um
pedido de restituição de fracção, não deixa de ser co-
interessado na completa clarificação dos aspectos que ao
litígio respeitam, ao menos através do ónus de contra-
alegação ou de contraprova (art. 346º do CC).

Por isso, tal como anteriormente já dissemos a respeito da


vinculação à obrigação de comodante, a secura dos factos
provados para efeitos de integração subsidiária nas regras
do abuso de direito é apenas aparente, robustecendo-se
qualitativamente se integrados no circunstancialismo
envolvente, prestando a devida atenção ao historial do
contrato de comodato e às relações jurídico-familiares
existentes entre os diversos sujeitos, em conjugação com o
laconismo revelado pelo A. quando foi confrontado com as
objecções ao seu pedido de restituição da fracção pelo A.
ou mesmo com a negação da existência e conhecimento do
acordo de comodato.

Tudo, afinal, para concluir, ainda que em termos


complementares, que também pela via da invocação abusiva
do direito de propriedade, na sua vertente do jus utendi,
ficaria impedida satisfação da pretensão de entrega da
fracção ocupada pela R., considerando-se extensiva ao A.,
através da eficácia externa projectada pela figura do
abuso de direito, a obrigação assumida pela sua mãe.(20)

III – Face ao exposto, ainda que com fundamentação não


totalmente coincidente, acorda-se em julgar improcedente a
apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas a cargo do A.

Notifique.

Lisboa, 16-5-06

_______________________
(António Santos Abrantes Geraldes)
________________________
(Maria do Rosário Morgado)
_______________________
(Rosa Maria Ribeiro Coelho)

_____________________________________________
1.-Como refere Antunes Varela, C.C. anot., vol. II, “a gratuitidade do comodato não nega a
possibilidade de o comodante impor ao comodatário certos encargos como o de pagar a
contribuição autárquica ou outros impostos relativos ao prédio cedido”.

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2.-Segundo Antunes Varela, não existe qualquer impedimento temporal à cedência do uso
decorrente de comodato (C.C. anot., vol. II).

3.-J. Andrade Mesquita, referindo-se ao estabelecimento de um prazo, como impeditivo da


reivindicação da coisa, diz precisamente que “se o comodante entrega a coisa ao comodatário para
que este a use durante determinado prazo, forçosamente tem de entender-se que ele fica obrigado a
não a repetir enquanto esse prazo não decorrer, pois não se vê que outro enquadramento possa
explicar tal vinculação” (Direitos Pessoais de Gozo, pág. 47).

4.-Tema que, gerando uma clara divisão na doutrina nacional e estrangeira, é abordado, por
exemplo, por Menezes Cordeiro, em Direito das Obrigações, vol. I, págs. 258 e segs. e em Da
Boa Fé no Direito Civil, págs. 647 e 648.

5.-Neste sentido o Ac. do STJ, de 19-3-02, CJSTJ, tomo I, pág. 139, e Sinde Monteiro, na R.L.J.
132º/60.
Sobre a matéria cfr. Almeida e Costa, R.L.J., 135º/131 e segs., em recentíssimo trabalho intitulado
precisamente “A eficácia externa das obrigações. Entendimento da doutrina clássica”, onde
identifica vasta doutrina nacional e internacional. E ainda, em defesa da eficácia externa, Menezes
Cordeiro, Direito das Obrigações, vol. I, págs. 258 e segs.

6.-A eficácia externa do direito de crédito também pode ser encontrada através da figura do abuso
de direito, em casos em que tal seja o resultado aferido pelo sentimento colectivo (Almeida e
Costa, R.L.J., 135º/134).

7.-Neste sentido J. Andrade Mesquita quando conclui taxativamente que os terceiros não estão
vinculados a realizar o direito e que o contrato cessa caso o direito com base no qual foi constituído
seja transferido para terceiro (ob. cit., págs. 163 e 165).

8.-Sobre a matéria cfr. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, págs. 93 a 96,
designadamente quando aponta como características dos direitos de crédito a sua relatividade, de
modo que a “sua oponibilidade a terceiros é limitada, só podendo ocorrer em certas circunstâncias”
(pág. 94). Mais adiante exemplifica, dizendo que “se alguém tem direito a uma prestação e o
devedor aliena o objecto da mesma, o credor já a não pode exigir” (pág. 95).

9.-Na R.L.J., 103º/564.

10.-No B.F.D.U.C., vol. XLVIII, pág. 29, em artigo intitulado “Sentido e valor da Jurisprudência”.

11.-O Actual Problema Metodológico da Interpretação Jurídica, vol. I, pág. 12.

12.-Revista Jurídica, nºs 9 e 10, pág. 13, em artigo intitulado “Tendências actuais da interpretação
da lei. Do juiz-autómato aos modelos de decisão jurídica”.

13.-Releva-se o esforço argumentativo de Menezes Cordeiro para, através da valorização do


recurso a cláusulas gerais, chegar a soluções jurídicas mais aceitáveis (Direito das Obrigações, vol.
I, pág. 282).

14.-Por falta de elementos seguros sobre o elemento subjectivo, não vamos ao ponto de considerar
o A. como “terceiro cúmplice”. Se assim fosse, mais fácil se tornaria a vinculação contratual do A.,
seguindo, para o efeito, a argumentação exposta por Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações,
vol. I, págs. 262 e segs.

(15).-Sobre a matéria cfr. Menezes Cordeiro, Revista Jurídica, cit.. Cfr. ainda Francesco Ferrara,
Interpretação e Aplicação das Leis, acoplada à obra de Manuel de Andrade, Ensaio Sobre a
Teoria da Interpretação das Leis, 2ª ed., pág. 112, negando o silogismo simplista e a transformação
do juiz “num autómato de decisões”.

16.-Tratado de Direito Civil, vol. I, tomo I, págs. 478 e 479.


Sobre a matéria cfr. também P. Mota Pinto, Declaração Tácita e Comportamento Concludente no
Negócio Jurídico, e Théodore Ivainer, L’Interprétation des Faits en Droit.

17.-Planiol, citado por Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 192.

18.-Tratado de Direito Civil, vol. I, tomo I, pág. 197. Cfr. ainda o capítulo “O exercício
inadmissível de posições jurídicas”, na sua obra Da Boa Fé no Direito Civil, págs. 661 e segs., e
Direito das Obrigações, vol. I, pág. 282.
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19.-Neste sentido, cfr., por exemplo, Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, pág. 648, e
Direito das Obrigações, vol. I, pág. 258.

20.-Seguindo, assim, o rumo traçado por Almeida e Costa, no já citado trabalho intitulado “A
eficácia externa das obrigações. Entendimento da doutrina clássica”, na R.L.J., 135º/131 e segs.

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