Você está na página 1de 15

LITERATURA

Definir literatura é marcar fins, limites, margens em que um objeto perde


sua individualidade e seu nome. Deixa de ser. Dá lugar a algo que
precisamente não é mais aquilo de que até então se tratava. O conhecimento –
sempre hipotético – dessa linha que demarca o momento em que um ser perde
sua identidade e surge um segundo, dele diverso, é o que possibilitaria
definições. No caso da literatura, além de estarmos, como em qualquer outro,
às voltas com esta questão, estamos também diante de agravantes que tornam
ainda mais difícil qualquer aproximação: é que definir literatura se confunde
com a definição do poético e da beleza. Ou seja: coloca, de uma penada, em
toda a plenitude, a questão estética no centro da discussão. E esta, sabemos,
permanece irresolvida, impossível que é desvinculada da questão do gosto, da
regência de usos e costumes e situações contextuais, da ideologia, de
relativizações de toda ordem. Como disse Paul Valéry a propósito do
Romantismo, seria preciso perder toda noção de rigor para tentar esta
definição.
Sendo assim, fica evidente que do ponto de vista teórico jamais será
possível saber em que momento um texto jornalístico, por exemplo, por
definição será não literário ou não artístico passe a apresentar, por méritos de
seu autor e/ou de sua feitura, características tais que façam dele um texto
literário – vale dizer, um texto artístico. Frequentemente, textos que se queriam
artísticos não passam de narrativas perfeitamente reconhecíveis como
jornalísticas, ao mesmo tempo em que outros, jornalísticos ou historiográficos
ou de registros em diários, memórias, etc., decolam de seu estado inicial para
alçar o voo do literário e da produção artística. Há casos-limite em que uma
coisa é a outra, mas sempre podendo deixar dúvidas em nosso espírito
catalogador, de modo que se cria uma “zona neutra”, de impossível definição.
Da mesma forma se coloca a questão do poético. Nota-se (digamos logo), aqui
nestas palavras, que empreguei expressões como “alçar-se” e todo um tom de
valorização do literário e do artístico em relação aos seus “opostos”. Isto já é
um comportamento automático, ideológico, privilegiado de um texto – ou de
postura ante os textos – em detrimento de outros. Tudo o que se disser, no
campo das definições, está, deve estar sujeito a tais reparos. No momento em
que se arbitrar a favor de ir em frente, numa linha de conceitos dada, em
detrimento de outras, é preciso saber o que se está fazendo. Não raramente é
preciso ser arbitrário
– quando se considera um objeto de estudo, mas é preciso saber o que
estamos sendo e fazendo, é preciso ter consciência de que teremos então
abandonado algo de nossa consciência crítica, embora tal atitude vise uma
finalidade que em seu contexto justifique a decisão.
A compreensão do que seja literatura em termos de dicionário é
impossível e o leitor dos nossos dias sabe disso: não há mais ingenuidade
alguma, pelo menos entre aqueles que possam um dia manusear este livro,
capaz de conceber como possível uma definição do tipo dicionário do que seja
literatura, poesia, ou o belo. Somente o recurso ao discurso enciclopédia
poderá facilitar um pouco a questão e creio que as aproximações sucessivas,
os avanços e recuos, as idas e vindas são perfeitamente naturais, aqui. O que
não aborrece a prática de alguma ordem e disciplina.

AFINAL O QUE É LITERATURA?

Encontra-se em aspectos variados a palavra literatura. Entretanto, talvez


não se saiba ainda dizer o significado dela. Neste caso, mais importante é você
entender do que se trata, em vez de tentar gravar o sentido do termo.
Agora que é possível perceber o que representa viver numa cultura, já é capaz
de perceber que a arte é uma atividade cultural em meio a outras e já captará a
importância da palavra em nossa sociedade, estará habilitado a entender o que
é literatura.
Literatura é o nome que tem sido dado às produções artísticas que
utilizam o código verbal, isto é, a língua. Embora haja literatura oral (letras de
música e poesia popular, textos teatrais, por exemplo), a maior parte dos
textos literários, hoje, é escrita para se destinar à leitura silenciosa.
Vamos imaginar o conjunto de todos os textos do mundo. Ele se divide
em dois subgrupos: textos literários e textos não literários. Os dois conjuntos
possuem elementos comuns, pontos de interseção, que vão depender da
época e do contexto cultural. Por exemplo, em uma época, certos discursos
políticos são apreciados como literários, em outra, não.
Normalmente, hoje, textos não literários são os científicos, os filosóficos,
os noticiosos, entre outros. Mas há textos que estão na interseção e,
dependendo de suas características e finalidades, podem ser considerados ou
não como literários. É o caso, por exemplo, de muitas biografias, narrativas de
memórias ou mesmo de certos trechos de jornal.
Seria possível tentarmos distinguir o texto literário do não literário com
base no verdadeiro e no inventado. De fato, os textos científicos e jornalísticos
devem estar calcados em fatos reais, e a literatura tem sua origem na
imaginação do escritor, mesmo quando ela se vale de dados reais.
No entanto, às vezes, é impossível separar o verdadeiro do inventado.
Pense nas “fofocas” e ficará de acordo com isso. Na literatura, o leitor fica na
mesma condição de quem ouve uma “fofoca” será? Não será? Mas as
semelhanças acabam por aí, pois no caso da “fofoca” o ouvinte pode resolver
tirar tudo a limpo e, no caso da literatura, o leitor, se quiser mesmo ler, vai ter
que “embarcar” no que lhe dizem e ler tudo como se fosse a verdade, embora
saiba que pode ser pura imaginação. Isso porque o texto literário, como arte
que é, cria sua própria “verdade”, por meio da linguagem. Por exemplo, quando
Manuel Bandeira diz:

Sou bem nascido. Menino Fui como os demais, feliz; Depois veio o mau
destino E fez de mim o que quis.

Pouco importa que tenha ou não sido assim mesmo a infância do poeta.
Para nós, que lemos seus versos, o sentimento e a vivência passam como se
fossem reais. Essa é a magia da arte literária.
O artista da palavra consegue essa magia porque sabe criar contextos
em que a linguagem revela sentidos pouco evidentes no uso cotidiano. Nesses
contextos verbais inesperados, as palavras mostram possuir outros sentidos –
conotativos – ocultos sob seu significado próprio – denotativo. Repare nos
textos a seguir: “O coração é um músculo oco, de fibras estriadas, revestido
externamente pelo pericárdio e dividido por um septo vertical em duas
metades. (...) Em cada contração do coração, o sangue é bombeado, com
certa pressão, para o interior dos vasos sanguíneos (artérias, arteríolas,
capilares, vênulas e veias)” (Demétrio Gowdak)

Ah, um soneto...

Meu coração é um almirante louco Que abandonou a profissão do mar


E que vai relembrando pouco a pouco Em casa a passear, a passear...

No movimento (eu mesmo me desloco Nesta cadeira, só de imaginar)


O mar abandonado fica em foco nos Músculos cansados de parar.

Há saudades nas pernas e nos braços. Há saudades no cérebro por


fora.
Há grandes raivas feitas de cansaço.

Mas esta é boa! – era do coração


Que eu falava... e donde diabo estou eu agora Com almirante em vez de
sensação?... (Álvaro de Campos)

Ambos os textos descrevem o coração. Em ambos há “músculos” e


“movimento/contração”. A primeira oração dos dois textos apresenta pontos
marcantes de semelhança: 1. Sintática – sujeito + predicado nominal; 2.
Métrica e musical – a do 1° texto tem 9 sílabas, a do 2° tem 10; rima quase
perfeita entre “oco e “louco”.
Mas com exceção desses aspectos, predominam as diferenças,
referentes aos contextos, aos modos de usar a linguagem.
É interessante analisar o contexto em que a palavra “coração” aparece.
Em ambos os casos ela é o núcleo do sujeito, mas isto não define seu sentido
como denotativo ou conotativo. Tudo se esclarece, porém, do segundo termo
das orações em diante – predicativo do sujeito: atribuir ao “coração” à
característica de “músculo oco, de fibras estriadas...” conduz o leitor à
compreensão nítida de que “coração” tem como referente o órgão encarregado
de bombear o sangue pelo corpo. Todas as palavras se ajustam umas às
outras, reunindo-se num contexto em que a denotação – o sentido próprio –
evidencia-se de tal modo que impossibilita a interpretação livre de cada termo.
Cabe ao leitor um sentido único, que não lhe exige o senso imaginativo.
Agora observe como o autor do segundo texto trabalha com a mesma
palavra: quando descreve o “coração” do eu-poético como “um almirante
louco”; ele mistura elementos de contexto bem diversos – corpo humano e
mundo da navegação. Sabemos que no universo real é impossível um órgão
tornar-se um navegante – nem importa se “louco” ou não. O que aconteceu
então? O poeta metamorfoseou o mundo “real” num mundo “verbal”. O texto
não é uma cópia da realidade – é uma realidade em si mesmo. Nesta
realidade, “coração” deixa de indicar denotativamente, “parte do corpo” e
carrega-se de conotação – sentido segundo – de “mundo afetivo, sede
abstrata de sentimentos, centro do universo emocional”.
Além disso, “almirante louco” permite múltiplas interpretações individuais
– cada leitor colabora no texto com sua própria visão pessoal desse “coração”
poeticamente maluco.
Assim, podemos afirmar que, de modo geral, um texto se define como
literário quando sua proposta semântica resulta num discurso aberto à
participação do leitor.

TEATRO

Há histórias literárias que são escritas para serem representadas. São


chamadas peças teatrais. Quando assistimos a alguma peça, os atores falam e
agem diante de nossos olhos, há cenário, figurinos, música nos momentos
adequados, luzes, etc. Isso não faz parte da literatura, mas de outra arte: o
teatro. Literário dentro da peça é o texto, isto é, aquilo que os atores devem
falar, constituindo a base verbal da história que está sendo representada.
Ler uma peça pode ser cansativo, pois parece estar faltando algo. De
fato, está faltando algo, falta o espetáculo teatral, complemento indispensável
ao texto literário que se destina ao teatro.

PROSA DE FICÇÃO

Há histórias literárias, narradas em prosa, destinadas a serem lidas por


indivíduos que ora “devoram” livros inteiros, ora leem devagar, um pouquinho
de cada vez. São histórias que normalmente aparecem em livros, mas podem
aparecer em revistas e mesmo em jornais chamados de literários. São histórias
que, às vezes, são contadas em trezentas páginas, outras vezes em três.
Costuma-se, no Brasil, dividi-las em três tipos básicos: romances, novelas e
contos. Depois você aprenderá a distingui-las.
Chamamos qualquer romance, novela ou conto de prosa de ficção.
Prosa porque nenhum deles emprega o verso para narrar às histórias. De
ficção porque se

trata de histórias baseadas na imaginação do escritor e, mesmo quando


calcadas na realidade, não podem ser confundidas com uma notícia ou com
uma verdade científica.

HISTÓRIA EM VERSO

Será que existe jeito de contar uma história em verso? Claro que existe:
são os chamados poemas narrativos, muito cultivados em épocas mais antigas.
Hoje, quem quer contar uma história prefere a prosa de ficção. Entretanto,
ainda encontramos bons poemas narrativos de autores contemporâneos, como
o Caso do vestido, de Carlos Drummond de Andrade.

OS TEXTOS SEM HISTÓRIA

Até agora falamos de histórias destinadas ao teatro e de histórias


narradas para leitura silenciosa. Vimos que essas histórias recebem nomes
especiais, de acordo com suas características. Mas, como só falamos em
textos que contam histórias, fica a dúvida: afinal, há textos, que não contam
histórias?
Existem, sim, tais textos. Desde a Antiguidade, e em grande número.
São textos chamados de líricos, porque antigamente eram recitados com
acompanhamento da lira. Geralmente aparecem em verso, embora existam
também em prosa. São textos que tratam de emoções (desejos, dores,
revoltas, entusiasmos, amores, etc.), sem narrar acontecimentos. Sua força
reside na própria linguagem, que se torna mais densa, mais sugestiva e muito
mais carregada de recursos sonoros que a prosa de ficção. Quando estudar os
gêneros literários entenderá isso melhor.

NATUREZA DO FENÔMENO LITERÁRIO

Quando procuramos entender a natureza do fenômeno literário devemos


nos perguntar o que queremos dizer com “natureza” e “fenômeno”. Só assim
entenderemos melhor como eles se aplicam ao literário. Tanto natureza como
fenômeno são conceitos filosóficos que comportam um amplo número de
significados. Como não se trata de discutir tais conteúdos filosóficos, é
importante que o leitor esteja, ao menos, atento ao problema.
Natureza aqui significa a preocupação de compreender a especificidade
do literário. Natureza é aí tomada na acepção da essência, substância, aquilo
que faz com que uma coisa seja aquilo e não outra. Uma definição ou
conceituação tende a levar a um entendimento fechado e muitas vezes
estático.

Texto

Objeto que está lançado diante de alguém, no caso da literatura, o


objeto imediatamente diante de nós é o texto. O que é um texto?

1. Texto vem do verbo tecer: é o entrelaçamento de linhas, no


caso, as orações e os períodos.
2. A disposição das linhas e seu entrelaçamento, a ocupação e
disposição espacial são itens que podem contribuir para a caracterização do
literário. Chamamos a esse aspecto o “formato” para diferenciá-lo da forma. O
formato está relacionado com a diagramação e tem uma grande importância
na chamada literatura infantil. No texto-formato, a ilustração e a diagramação
devem ser de tal maneira consonantes, que a sua união faça surgir a
harmonia: é a obra enquanto apresentação. A apresentação surge como um
esforço de integração entre as facetas do formato e da forma. Antes de
entrarmos na tematização do texto enquanto forma especificamente literária,
vejamos outras concepções de texto.
3. O texto enquanto tecido de signos repetidos numa cadência
regular não é algo em si, mas expressa e manifesta a relação do homem com
as realidades e dos homens entre si. Então o texto tem de ser visto e
relacionado a três referentes: o homem, a realidade e a expressão.
Explicitamente, podemos fazer um corte e determo-nos num dos referentes,
mas implicitamente os outros dois sempre estarão obrigatoriamente
presentes. Isto é importante para penetrar no entendimento de um texto
literário, embora qualquer texto implique sempre os três referentes. Começa a
ficar claro que a relação do leitor com o texto ultrapassa uma simples relação
objetiva. Em outras palavras, todo texto é resultado de uma leitura. Uma
leitura, enquanto modalidade de relação radical do homem, com a realidade,
resulta em produtividade, conforme um texto. Um texto é, pois, em última
instância uma elaboração humana, um trabalho. O trabalho é a ação humana
pela qual o homem textualizando, significando o real se significa. Por outro
lado esta elaboração só encontra sua plenitude na medida em que ao
elaborar ele colabora, isto é, pressupõe o outro (socializar) como polo
necessário de sua ação significativa. Toda leitura supõe a colaboração,
porque o texto não se lê, o instrumento não se lê. Logo, toda elaboração
pressupõe o outro, a colaboração. Por outro lado, tal noção evidencia que o
texto não se limita ao escrito, implicando, sobretudo o oral. E vai mais longe:
uma fotografia, uma estátua, um instrumento, etc., é um texto, na medida em
que expressa uma relação do homem com o real. Entre tantas modalidades
de texto, quando um texto é especificamente literário? Este é o grande
problema. Não há uma fórmula pronta e acabada que dê a resposta. O que há
são muitos encaminhamentos, tentativas de compreensão. O caminho mais
correto é o leitor apreender essas focalizações, pensá-las criteriosamente,
sobretudo na leitura das grandes obras literárias (o mais importante), e assim
ir configurando, dinamicamente, a compreensão do fenômeno literário.
Portanto, em um processo radicalmente dialético. É a constatação do óbvio: o
mestre pode ensinar as mais excelentes técnicas de nadar, mas o aluno
aprende a nadar... nadando...então é inútil a presença da teoria literária? Não.
Podemos usar outra metáfora. Digamos que a literatura é uma floresta.
Penetrar e movimentar-se nela, é difícil. Numa primeira etapa, percorremos as
trilhas já abertas e conhecidas. De posse destes caminhos, querendo
conhecer melhor a floresta empreendemos a abertura de novas trilhas. É uma
procura que entusiasma, por isso gratificante.

4. Numa distinção simples, podemos apontar duas espécies de


texto: o texto-objeto e o texto-obra. O texto-objeto é constituído, sobretudo
pelo discurso referencial cotidiano e técnico. Nele predomina uma oposição
entre sujeito e objeto, em que o sistema expressivo, como tal, é colocado em
plano secundário. Se alguém quer transmitir uma ordem ou então enunciar
uma instrução técnica, não vai escolher palavras bonitas nem elaborar frases
harmoniosas. O importante é ser compreendido o mais claramente possível,
daí ser objetivo e prático. Noutras palavras, tal texto será tanto melhor quanto
for objetivo, impessoal, útil e funcional. Um texto é literário quando começa a
ultrapassar essa utilidade e funcionalidade. Não que deixe de ser útil e
funcional. Quando se usam os textos literários na escola para instruir, eles
são úteis e funcionais. Mas além dessa, apresentam outras dimensões. O
texto literário é um texto-obra que lança mão do discurso metafórico. O poder
metafórico, por sua plurissignificação, põe em tensão o emissor e o receptor,
o leitor e a realidade (lida), de tal maneira que entre esses dois polos se
estabelece uma relação produtiva, dinâmica, daí texto-obra – ou texto que
opera transformações e manifestações. Dom Casmurro, de Machado de
Assis, é um texto- obra – por ser ambígua, geração de leitores e críticos vêm
debatendo o “caso” Capitu: do julgamento moral (adultério) à interpretação
psicanalítica. O importante não é decidir quem está certo, mas atender para a
produtividade de interpretações.
Linguagem literária e não literária

Na literatura, as palavras podem não ter o mesmo valor das palavras


que utilizamos na vida diária. Em nosso cotidiano, as palavras têm um valor
utilitário, ao passo que, se usadas no texto literário, adquirem valor artístico,
podendo criar um mundo poético ou ficcional, por meio da maneira como são
usadas.
O artista da palavra pode nos retratar uma realidade ao seu modo. A
realidade literária (a criação literária) pode estar em desacordo com a realidade
sensível, objetiva.
A linguagem literária é conotativa, utiliza figuras (palavras de
sentido
figurado), em que as palavras adquirem sentidos mais amplos do que
geralmente possuem.
Na linguagem literária há preocupação com a escolha e a disposição
das palavras, que acabam dando vida e beleza a um texto.
A linguagem não literária é objetiva, denotativa, preocupa-se em
transmitir o conteúdo, utiliza a palavra em seu sentido próprio, utilitário, sem
preocupação artística.
Portanto, a literatura é de grande importância, porque é a expressão do
ser humano e da vida, e porque retrata épocas, costumes e ideias.

O lugar da teoria literária

A teoria literária, desde o início do século XX, debruçou-se sobre os


problemas que o termo literatura assumiu, em consonância com as
transformações históricas e sociais focalizando a literatura em diferentes
posições. Considerando a literatura como floresta, rica de espécies, flores e
frutos, verão que tais encaminhamentos abriram muitas trilhas e clareiras, mas
devemos caminhar atentos, pois tais caminhos devem revelar a floresta e é a
ela que devemos ficar atentos. Quem quiser eleger um caminho como único
convirá que é limitar o conhecimento da floresta. Por outro lado só se conhece
a floresta penetrando nela. O método (palavra grega que significa “caminho
para”) de compreensão da natureza do literário não pode concebê-la como um
objeto distante de um sujeito que, munido de uma teoria ou conceito, vai
alcançá-la. Só se compreende a literatura lendo-a, como só se conhece a
floresta percorrendo-a.

O “motivo” da literatura

Uma literatura faz-se com obras. Porém, como distinguir uma obra
literária de uma não literária? As especializações dos saberes tornaram mais
agudas e pertinentes este problema. A química, a física, a matemática, a
política, etc., sabem bem qual é o seu objeto de conhecimento. E a literatura?
Teria ela afinal um objeto ou será que isso não é um problema de determinado
momento histórico que legitima certas formas em detrimento de outras? Vidas
Secas, de Graciliano Ramos, é literatura, sem dúvida nenhuma, assim como
tantos outros romances dramas e poemas. Nessa ótica de objeto específico do
literário, poderia se dizer o mesmo dos Sermões do Padre Antônio Vieira, da
História do Brasil, de Frei Vicente do Salvador? Mais recentemente temos de
Fernando Veríssimo, O analista de Bagé e As memórias de Pedro Nava já no
sexto volume. São literaturas? É difícil negar que não sejam.
O termo literatura, além da simples designação da bibliografia ou texto
escrito, denomina também certo tipo de obras que teriam algo em comum com
as plenamente aceitas como literárias, de caráter estritamente estético e
ficcional. Por outro lado, a indústria cultural pública tem uma enorme
quantidade de obras em que o “ficcional” predomina e que, no entanto, não são
consideradas literárias.
As agências de propaganda, onde trabalham muitos escritores,
produzem textos comerciais utilizando muitos dos recursos retóricos e poéticos:
É literatura? Diante de tantas formas de literatura o que considerar como uma
obra literária?
Para definir a natureza do literário devemos atender ao momento
histórico e seu contexto, que pela classe dominante institui os parâmetros de
legitimação do literário, à “criatividade” do escritor, aos recursos estilísticos e
retóricos do texto, ao “gosto” dos leitores segundo a indústria cultural?
Parece mais fácil para os teóricos da literatura apontar dificuldades do
que propor soluções. Isso mostra a complexidade do problema, sendo uma
forma de ir expondo a natureza do literário.

Existem assuntos “poéticos”?

Qualquer assunto pode inspirar uma obra de arte, desde que o autor
trabalhe bem, transmita a emoção estética. As palavras estão aí, à disposição
de qualquer pessoa. Se houvesse palavras literárias em si mesmas, para
escrever um poema bastaria comprar um dicionário de palavras poéticas na
livraria da esquina e pronto! Mais um novo poeta na praça!
Porém, não há uma hierarquia de palavras: as comuns, para os míseros
mortais; as difíceis, para os professores, políticos e intelectuais; e as poéticas.
Isso não ocorre, pois todas as palavras podem se tornar literárias; o que as
transforma é o arranjo, a relação nova dada entre elas.

“Chega mais perto e contempla as palavras.


Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra.”
(Carlos Drummond de Andrade)

A língua já foi comparada a um dicionário, de modo que os exemplares


idênticos são distribuídos entre os indivíduos, e cada indivíduo pode fazer uso
desse “dicionário” de forma particular, desde que obedeça a algumas regras
gerais da língua. Desta forma, ao realizar um ato de comunicação verbal, o
indivíduo escolhe, seleciona as palavras, para depois organizá-las, combiná-
las, conforme a sua vontade. E todo esse trabalho de seleção e combinação
não é aleatório, não é realizado por acaso (afinal, seleção significa “escolha
fundamentada”), mas está intimamente ligado à intenção de quem fala ou
escreve.
Quando esta intenção está voltada para o próprio texto, quer na sua
estrutura, quer na seleção e combinação das palavras, ocorre a função poética
da linguagem.
Ao selecionar e combinar de maneira particular e especial as palavras, o
poeta procura obter alguns elementos fundamentais da linguagem poética:

• O ritmo;
• A sonoridade;
• O belo e o inusitado das imagens.

Importante é perceber que a função poética não é exclusiva da poesia;


você poderá encontrá-la em textos escritos em prosa, em anúncios publicitários
e mesmo na linguagem cotidiana.
A seguir, alguns exemplos da função poética da linguagem:

“Diante dele, as pessoas, as coisas, perdiam o peso de ser. Os lugares,


o Mutum – se esvaziavam, numa ligeireza, vagarosos. E Miquilim mesmo se
achava diferente de todos. Ao vago, dava a mesma ideia de uma vez, em que,
muito pequeno, tinha dormido de dia, fora de seu costume – quando acordou,
sentiu o existir do mundo em hora estranha, e perguntou assustado: - Uai, Mãe,
hoje já é amanhã?!”
(Guimarães Rosa)

A palavra
Já não quero dicionários Consultados em vão.
Quero só a palavra Que nunca estará neles Nem se pode inventar Que
resumiria o mundo E o substituiria.
Mais sol do que o sol, Dentro da qual vivêssemos Todos em comunhão,
Mudos, Saboreando-a.
(Carlos Drummond de Andrade)

O texto de Guimarães Rosa, escrito em prosa, é um brilhante exemplo


da função poética da linguagem. Nele predomina a linguagem figurada,
resultante da seleção e da combinação especial de palavras. Dessa forma,
mesmo isoladas do contexto, as frases têm um valor, porque o foco está na
própria arrumação da mensagem. É o que ocorre em “os lugares se esvaziam,
numa ligeireza, vagarosos” ou “sentiu o existir do mundo em hora estranha” ou
ainda “hoje já é amanhã?”.
O poema de Drummond apresenta dois aspectos interessantes. Por um
lado, trata-se de um poema cujo tema é a palavra: Drummond se utiliza da
palavra (do poema) como meio para fazer reflexões sobre a própria palavra –
temos, aqui, uma função da linguagem chamada metalinguística. Por outro
lado, o poema é também o fim: sua materialização se dá por intermédio da
palavra – temos, aqui, a função poética da linguagem.

Denotação e conotação

A linguagem humana difere da comunicação animal por envolver um


trabalho mental, pois o homem, ao contrário do animal, retém o significado de
uma palavra. E mais: o homem tem imaginação criadora e a usa
frequentemente. Dessa forma, na linguagem humana, uma palavra pode ter
seu significado ampliado, remetendo-nos a novos conceitos por meio de
associações, dependendo de sua colocação numa determinada frase. Como
exemplo, compare os dois casos que seguem:

1. Ele está com a cara manchada.


2. “Deus me fez um cara fraco, desdentado e feio”.
(Chico Buarque de Holanda)

No primeiro exemplo, a palavra cara significa “rosto”, a parte anterior da


cabeça, conforme consta nos dicionários. Já no segundo exemplo, a mesma
palavra teve seu significado ampliado e, por uma série de associações,
entendemos que significa “indivíduo”, “sujeito”, “pessoa”.
Às vezes, numa mesma frase pode apresentar duas (ou mais)
possibilidades de interpretação.

João quebrou a cara.


Em seu sentido literal, frio, impessoal, a frase significa que João, por um
acidente qualquer, fraturou o rosto. Entretanto, podemos entendê-la num
sentido figurado, como “João se saiu mal”, isto é, foi malsucedido em algo que
tentou fazer.
Pelos exemplos, nota-se que uma mesma palavra pode apresentar
variações em seu significado, ocorrendo, basicamente, duas possibilidades:
• Na primeira, a palavra apresenta seu sentido original,
impessoal, independente do contexto, tal como aparece no
dicionário; nesse caso, prevalece o sentido denotativo – ou
denotação – do signo linguístico;
• Na segunda, a palavra aparece com significado alterado,
passível de interpretações diferentes, dependendo do contexto em
que é empregada; nesse caso, prevalece o sentido conotativo – ou
conotação – do signo linguístico.

A linguagem poética explora o sentido conotativo das palavras, num


contínuo trabalho de criar ou alterar o significado, já cristalizado, dessas
mesmas palavras. Dessa forma, ao interpretar o sentido conotativo das
palavras, o leitor transforma-se em leitor-ativo, em tradutor, em coautor do
texto. Para tanto, é preciso sempre estar atento ao contexto, que nos fornecerá
indicações concretas para decifrar o jogo denotação/conotação.

Você também pode gostar