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TROVADORISMO

O primeiro período da história da literatura portuguesa principiou em


1189 ou 1198, data presumível da composição do mais antigo texto literário
português, a chamada “Cantiga da Ribeirinha”. Esse período se estendeu até
1418 ou 1434, anos em que Fernão Lopes foi nomeado respectivamente
guarda-mor da Torre do Tombo e cronista-mor do Reino Português. O
trovadorismo, também chamado de Primeira Época Medieval, é rico em
manifestações poéticas, ao lado das quais surgem algumas em prosa. Para
que compreendamos satisfatoriamente, é necessário investigarmos um
inovador movimento literário que, aproximadamente entre 1100 e 1210,
floresceu no sul da atual França, numa região chamada Occitania, da qual fazia
e faz parte a Provença.
No trovadorismo merecem destaque as manifestações poéticas,
comumente agrupadas sob o nome de lírica trovadoresca ou lírica galego-
portuguesa. Trata-se de poemas produzidos para serem cantados – as
cantigas ou cantares – elaborados em galego-português ou galaico-
português, língua que corresponde a uma fase arcaica do português. As
cantigas galego-portuguesas são divididas em três tipos: as cantigas de amor,
as cantigas de amigo e as cantigas de escárnio e maldizer. Nas cantigas de
amor e de amigo, desenvolve-se a temática amorosa; as cantigas de escárnio
e maldizer têm finalidades satíricas.
Nesse mesmo período ocorreram também algumas manifestações em
prosa. Sem alcançar o mesmo grau de refinamento e elaboração da poesia,
esses textos representam as manifestações iniciais da prosa literária
portuguesa, que se afirmará definitivamente a partir do Humanismo, com
Fernão Lopes. Destacamos as novelas de cavalaria, narrativas de
cometimentos heroicos de cavaleiros medievais, de que são exemplos A
Demanda do Santo Graal e o Amadis de Gaula.

A lírica trovadoresca

Na lírica do trovadorismo há três tipos diferentes de poemas: as


Cantigas de Amor, as Cantigas de Amigo e as Cantigas de Escárnio e
Maldizer. Compostas para serem cantadas, essas cantigas representam uma
época em que poesia e música não se haviam ainda dissociado. Constituem,
além disso, a fixação de uma apurada técnica de composição poética e de uma
concepção de amor que se farão sentir em vários momentos da literatura
posterior como o Romantismo, o Simbolismo e até mesmo a música popular de
nossos dias.
Como já dissemos, a produção lírica do Trovadorismo português
apresenta tipos diferentes de poemas: as Cantigas de Amor, as Cantigas de
Amigo e as Cantigas de Escárnio e Maldizer. Compostas para serem cantadas,
essas cantigas representam uma época em que poesia e música não se
haviam ainda dissociado. Constituem, além disso, a fixação de uma apurada
técnica de composição poética e de uma concepção de amor que se farão
sentir em vários momentos da literatura posterior como o Romantismo, o
Simbolismo e até mesmo a música popular de nossos dias.

As cantigas ou cantares de amor

É provável que, num primeiro contato com a língua galego-portuguesa,


você se assuste um pouco. Para facilitar seu trabalho, vamos por partes:
inicialmente, preocupe-se em ler o texto, procurando captar-lhe a sonoridade,
prestando atenção à regularidade dos versos e ao esquema de rimas (que são
as mesmas nas três estrofes). Uma observação: em galego-português algumas
palavras tinham pronúncia diferente da nossa: é o caso do ditongo eu,
pronunciado de forma aberta (“eu”, “meu”, “Deus” e das terminações –or e –
osa, sempre fechadas “melhor”, “fremôsa”).

Quer’eu en maneira de provençal Fazer agora un cantar d’amor


E querei muit’i loar mia senhor,
A que prez nen fremusura non fal, Nen bondade, e mais vos direi en:
Tanto a fez Deus comprida de ben Que mais que todas lãs do mundo
val.
Ca mia senhor quiso Deus fazer tal Quando a fez, que a fez sabedor De
todo bem e de mui comunal,
Ali u deve; er deu-lhe bom sem
E dês i non quis que lh’outra fosse igual.

Ca en mia senhor nunca Deus pôs mal, Mais pôs i prez e beldad’e loor
E falar mui bem e riir melhor Que outra molher; dês i é leal
Muit’, e por esto non sei oj’eu quen Possa compridamente no seu hen
Falar, ca non á, tra-lo seu ben, al.
D. DINIS. In. Poesia e prosa medieval. Lisboa: Odisseia, s.d.p.59.

Feita a leitura em voz alta e captada a musicalidade do texto, vamos


agora a sua tradução para nossa língua (preocupamo-nos com o sentido das
palavras do texto).
Quero eu na maneira do provençal Fazer agora um cantar do amor
E quererei muito louvar minha senhora,
A quem boas qualidades e formosura não faltam, Nem bondade, e ainda
vos direi isto:
Tanto a fez Deus perfeita do bem
Que mais que todas as do mundo vale.
Pois minha senhora quis Deus fazer de tal maneira Quando a fez, que a
fez conhecedora.
Do todo bem e de muito grande valor E como tudo isso é muito sociável
Ali onde deves; também lhe deu bom senso. E, além disso, não lhe fez
pouco bem,
Quando não quis que nenhuma outra lhe fosse igual
Pois em minha senhora nunca Deus pôs mal Mas pôs nela qualidade e
beldade e louvor E falar agradável e rir melhor
Que outra mulher; além disso, é muito Leal, e por isso eu não conheço
hoje quem Possa perfeitamente no seu bem
Falar, pois não há, além do seu bem, qualquer outro.

O assunto do poema é um só: louvar as virtudes da mulher amada,


enumerando-as e chegando a repetir algumas delas. Dessa forma, a dama de
que fala o sujeito lírico apresenta qualidades morais e formosura; bondade e
valor não lhe faltam, além de ser sociável e de ter bom-senso, juntamente com
um modo de falar e de rir insuperáveis. Tanto bem possui essa mulher que o
poema termina afirmando que não se conhece quem seja capaz de falar
adequadamente dos atributos físicos e espirituais dessa dama.
Essa disposição de louvar a mulher amada deriva de uma proposta,
fixada nos primeiros versos do texto: a de fazer um cantar de amor de acordo
com a maneira provençal. Tal proposta nos remete ao modelo a partir do qual
as cantigas de amor foram produzidas na lírica galego-portuguesa: a poesia
provençal.
A Provença localiza-se na região da Occitania, que corresponde ao sul
da França atual. Aproximadamente no século XII, essa região conheceu um
movimento poético de grande intensidade, a lírica provençal. Os poetas da
Provença desenvolveram uma refinada arte poética, caracterizada por técnicas
de composição e versificação muito apuradas – a chamada “Gaia Ciência” – e
por uma temática amorosa centralizada no amor cortês.
O amor cortês na poesia provençal surgiu nas cortes provençais; é um
código amoroso que se caracteriza pelo fato de o poeta tornar-se um vassalo
de sua dama, passando a servi-la. É, portanto, uma forma literária de
reproduzir a vassalagem medieval, em que o cavaleiro prestava homenagem e
devia fidelidade a seu suserano. O código do amor cortês era bastante
elaborado e possuía algumas regras estritas: o poeta passava por vários graus
de relacionamento com sua dama, mas era sempre impedido de citar-lhe o
nome em suas composições. O amor era idealizado e se confundia com uma
forma de aprimoramento espiritual, uma vez que a dama, dotada de beleza e
virtudes elevadas, constituía um ser inalcançável no mundo físico. A poesia
brotava justamente dessa tensão: um amor de elevado nível espiritual,
irrealizável, alimentava constantemente os versos do trovador. O conceito de
amor cortês chegou à corte galego-portuguesa nos séculos XII e XIII e ali deu
origem as Cantigas de Amor.
As cantigas de amor galego-portuguesa refletiam um ambiente
palaciano e uma situação que poucas vezes variava: o sujeito lírico, sempre na
voz de um homem, dedicava-se a louvar as virtudes de sua dama (“mia senhor”
nos textos, pois em galego-português as palavras terminadas em–or eram
uniformes; veja-se, no poema de D. Dinis, sabedor”, forma aplicada à dama),
transmitindo-nos uma visão idealizada das qualidades físicas e morais da
mulher amada. Outra constante na temática amorosa das cantigas de amor é a
queixa contra a indiferença da amada: o sujeito lírico expõe então a chamada
coita d’amor, expressão em que coita (de que se formou a palavra coitado)
traduz o sofrimento do amante desprezado. É comum o amante desejar a
morte como única forma de escapar à paixão que o atormenta e o faz perder o
senso.
O texto de D. Dinis que estamos analisando é uma cantiga de mestria,
ou seja, uma cantiga que, por não apresentar refrão, indica a mestria do poeta
que podemos entender como o domínio técnico que lhe permitia dispensar a
repetição de versos. O esquema de rimas é o mesmo nas três estrofes.
Dirigidas do homem para a mulher, as cantigas de amor retratam o
sentimento amoroso masculino. Trata-se de uma cantiga lamentativa, pois,
como vimos, o amor declarado é impossível de ser concretizado: a mulher é
inatingível ou por ser comprometida ou por pertencer a uma classe social
superior. A cantiga é altamente respeitosa e enaltece as qualidades da mulher
amada, que é tratada de “mia dona” ou “mia senhor”.

A dona que eu am’ e tenho por Senhor Amostrade-mh-a Deus, se vos


em prazer for, Se non dade-mh-a morte.

Aque tenh’ eu porlume d’estes olhos meus E por que choran sempr(e)
amostrade-nih-a [Deus, non dade-mh-a morte.

Essa que Vós fezestes melhor parecer De quantas sei, ay Deus, fazede-
mh-a Veer, Se non dade-mh-a morte.

Ay Deus, que mh-a fezestes mais ca min amar; mostrade-ma-a hu possa


com ela falar, Se non dade-mh-a morte.
A mulher que eu amo e tenho por Senhora Mostrai-a, a Deus, se for de
vosso agrado Se não, dai-me a morte.

A que tenho eu por lume destes olhos meus E por quem choram
sempre, mostrai-a a mim, [Deus,se não, dai-me a morte.

Essa que vós fizestes ser tão mais bela


De quantas conheço, ai Deus, fazei-me vê-la, Se não, dai-me a morte.

Ai Deus, que me fizestes mais amá-la, Mostrai-me onde posso com ela
falar, Se não, dai-me a morte.

(Bernardo Bonaval)

As Cantigas ou Cantares de Amigo

Ai flores, ai flores do verde pinheiro, Sabeis notícias do meu namorado?


Ai, Deus, onde está?
Ai flores, ai flores do verde ramo, Sabeis notícias do meu amado? Ai,
Deus, onde está?
Sabeis notícias do meu namorado,
Aquele que mentiu sobre o que combinou comigo? Ai, Deus, onde está?
Sabeis notícias do meu amado,
Aquele que mentiu sobre o que jurou? Ai, Deus, onde está?

-Vós perguntais pelo vosso namorado? E eu bem vos digo que está são
e vivo. Ai, Deus, onde está?

Vós perguntais pelo vosso amado?


E eu bem vos digo que está são e vivo. Ai, Deus, onde está?

E eu bem vos digo que está são e vivo


E estará convosco antes do prazo combinado:
Ai, Deus, onde está?
E eu bem vos digo que está são e vivo
E estará convosco antes de terminar o prazo:
E eu bem vos digo que está são e vivo.

O texto nos mostra um sujeito lírico feminino que expõe a “coita”


provocada pela impossibilidade de ver seu “amigo” (homem amado) e de lhe
falar do sofrimento que se vê obrigada a suportar: sem descanso, atormentada
pela paixão, a mulher decide repousar sob as avelaneiras. Essa situação é
comum nas cantigas de amigo. Um sujeito lírico feminino fala de seu amigo
expondo o sofrimento que ele lhe causa. Normalmente, trata-se de uma mulher
do campo, que, num ambiente rural, sofre pela ausência do amado.
Essas cantigas estabelecem vários contrastes com as cantigas de amor:
apresentam um sujeito lírico feminino, que se move num universo rural,
distante do ambiente cortesão das cantigas de amor; denunciam pouca
influência provençal, com uma estrutura poética bastante simples (de origem
nitidamente popular) e uma concepção do amor despojada de idealização. As
cantigas de amigo originaram-se de uma tradição da própria península ibérica,
estando provavelmente ligadas a antigos rituais pagãos de fertilidade e
casamento, pois apresentam sinais evidentes de que eram criadas para serem
cantadas em coro enquanto se dançava.

Classificação das Cantigas de Amigo

As cantigas de amigo podem ser classificadas de acordo com o modo


como apresentam o tema. É interessante essa classificação a fim de
percebermos a grande variedade temática dessas cantigas:
• Albas, alvas ou alvoradas: são as cantigas em que surge o tema da
alvorada (nascimento do dia), momento em que os amantes se separam; as
cantigas que focalizam o fim da tarde e o cair da noite são as serenas;
• Bailias ou balaiadas: cantigas ligadas ao tema da dança; sua
estrutura rítmica é paralelística e seu tema é a alegria de viver e de amar;
• Barcarolas ou marinhas: cantigas em que surgem o mar ou um rio,
normalmente transformado em interlocutor da mulher, que a eles se queixa da
ausência do amado;
• Cantigas de romaria: o tema dessas cantigas e a peregrinação a
algum centro religioso, em que a mulher pedirá a proteção divina para seu
amigo ou manterá encontros com ele. As romarias eram ocasião para namoros,
divertimentos e bailados;
• Pastorelas: o ambiente representado nessas cantigas é o campo,
onde a pastora conversa com seu amado, podendo ter também a forma de um
diálogo entre um cavaleiro e uma pastora.

Cantiga de Ribeirinha

A chamada “Cantiga da Ribeirinha” ou “Cantiga da Guarvaia”, do


trovador Paio Soares de Taveirós é considerada a mais antiga composição
poética documentada em língua portuguesa, a data de sua redação foi
provavelmente 1189 ou 1198. Essas datas, no entanto, são motivos de muita
discussão entre os filólogos que se dedicam a esses estudos, e há quem
prefira dizer que o poema não pode ter sido feito antes de 1200. Além disso, o
próprio texto ainda não foi definitivamente fixado, havendo variantes
interpretativas que chegam a permitir ver no poema uma cantiga de amor ou
uma cantiga de escárnio e maldizer. Somam-se a isso mais um motivo de
dúvidas, sendo provável que o texto originalmente apresentasse uma terceira
estrofe, hoje perdida. Há até uma hipótese recente que contesta a autoria de
Paio Soares de Taveirós, atribuindo a cantiga a Martim Soares.

Ribeirinha
No mundo non me sei pareiha, Mentre me for como me vai, Ca já moiro
por vós – e ai!
Mia senhor branca e vermelha, Queredes que vos retraia Quando vos eu
vi em saia!
Mau dia me levantei,
Que vos enton non vi fea!
E, mia senhor, dês aquel di’, ai! Me foi a mim mui mal,
E vós, filha de don Paai Moniz, e bem vos semelha D’haver eu por vós
guarvaia, Pois, eu, mia senhor, d’alfaia Nunca de vós houve nen hei Valia d’ua
Correa.

No mundo não conheço quem se compare A mim enquanto eu viver


como vivo,
Pois eu moro por vós – ai! Pálida senhora de face rosada, Quereis que
eu vos retrate Quando eu vos vi sem manto! Infeliz o dia em que acordei, Que
então eu vos vi linda!
E, minha senhora, desde aquele dia, ai! As coisas ficaram mal para mim,
E vós, filha de Dom Paio Moniz, tendes a impressão de
Que eu possuo roupa luxuosa para vós, Pois, eu, minha senhora, de
presente Nunca tive de vós nem terei
O mimo de uma correia.
(Paio Soares de Taveirós)

A “Ribeirinha” a que se refere um dos nomes da cantiga é Maria Pais


Ribeiro, amante de D. Sancho I, rei de Portugal entre 1185 e 1211. O poema foi
provavelmente dedicado a ela (que seria a “filha de don Paai Moniz”) e tem
todas as características típicas de uma cantiga de amor. Há, no entanto, alguns
detalhes do texto que merecem ser pensados: o trovador identifica sua dama,
fato que fere o código do amor cortês; além disso, o texto fala de um momento
em que a dama foi vista na intimidade (“em saia”, isto é, sem o manto), para,
em seguida, expor uma reclamação: mesmo sendo a dama uma mulher de
condição elevada, não foi capaz de dar a seu poeta um pequeno presente.

Ondas do mar de Vigo, se vistes meu amigo! E ai Deus, se verrá cedo!

Ondas do mar levado, se vistes meu amado! E ai Deus, se verrá i cedo!

Se vistes meu amigo, o por que eu sospiro! E ai Deus, se verrá i cedo!

Se vistes meu amado por que hei gran cuidado! E ai Deus, se verrá
cedo!

Ondas do mar de Vigo, se vires meu namorado! Por Deus, (digam) se


verrá cedo!

Ondas do mar revolto, Se vires meu amado¹


Par Deus, (digam) se verrá cedo!

Se vires meu namorado, Aquele par quem eu suspiro!


Par Deus, (digam) se verrá cedo!

Se vires meu amado


Par quem tenho grande temor! Par Deus, (digam) se verrá cedo! (Martim
Codax)

ELABORAÇÃO E TEMÁTICA DAS CANTIGAS DE ESCÁRNIO E


MALDIZER

As cantigas de escárnio e maldizer apresentam temática satírica e


abundante ironia, sendo ricas em trocadilhos e outros artifícios geradores de
ambiguidade. Sua elaboração é normalmente sofisticada: por permitirem aos
poetas maior liberdade formal que as cantigas de temática amorosa,
demonstram muitas vezes originalidade e inventividade privilegiadas em
relação às outras formas de composição.
É comum diferenciar as cantigas de escárnio das cantigas de maldizer;
as cantigas de escárnio fazem crítica direta e feroz, não só nomeando a vítima
de seus ataques, mas também, frequentemente, envolvendo seu nome com
palavrões e vocabulário obsceno. Na prática, essa diferenciação nem sempre é
possível, ocorrendo constantemente a interpretação de todas essas
características – o que é certo é que nas cantigas de escárnio se utiliza sempre
a ambiguidade e o equívoco
– que não surgem nas de maldizer, nas quais o ataque é virulento e
claro.
Tematicamente, as cantigas de escárnio e maldizer falam de nobres
decadentes, avarentos ou pretensiosos, padres de maus costumes, prostitutas
renomadas. Muitas cantigas tratam de episódios políticos e religiosos. São
frequentes também os poemas em que o alvo da sátira é a vida pessoal ou a
arte poética de um trovador.
As cantigas satíricas medievais são de escárnio ou de maldizer.
Cantigas de escárnio são aquelas em que o trovador critica sem individualizar a
pessoa criticada. As cantigas de maldizer, pelo contrário, individualizam uma
pessoa, valendo-se de linguagem de baixo calão.

Ai dona fea foste-vos queixar


Porque vos nunca louv’[o] meu trobar Mais ora quero fazer um cantar
Em que vos loarei toda via; E vedes como vos quero bar: Dona fea,
velha e sandia!
Ai! Dona feia! Fostes vos queixar Porque nunca vos louvei em meu
trovar Mas, agora quero fazer um cantar
Em que vos louvarei, todavia; E vide como vos queira louvar: Dona feia,
velha e louca!
Ai dona fea! Se Deus mi perdon!
E pois havedes [a] tan gran coraçon

Que vos eu be em esta razon, Vos quero já bar toda via;


E vedes qual será a loaçon: Dona fea, velha e sandia!
Dona fea, nunca vos eu loei
Em meu trobar, pero muito trobei; Mais ora já um bom cantar farei Em
que vos loarei toda via;
E direi-vos como vos loarei:
Dona fea, velha e sandia!

Ai! Dona feia! Que Deus me perdoe Pois vós tendes tão bom coração
Que eu vos louvarei por esta razão, Eu vos louvarei, todavia;
E veja qual será a louvação: Dona feia, velha e louca!
Dona feia, eu nunca vos louvei
Em meu trovar, mas muito já trovei; Entretanto, farei agora um bom
cantar Em que vos louvarei todavia;
E vos direi como louvarei: Dona feia, velha e louca!

(Garcia de Guihade)

CANTIGAS DE AMOR

Caracteriza-se pelo sujeito lírico masculino dedicado a exaltar as


qualidades de sua dama (“mia senhor”, nos textos) ou a dar vazão ao
sofrimento amoroso em que a frieza da dama o coloca (a coita). Revelam um
ambiente palaciano, aristocrático; estruturalmente tendem a ser mais bem
elaborados, evidenciando a influência provençal em sua origem.

CANTIGAS DE AMIGO

O sujeito lírico dessas cantigas é feminino e fala do amor pelo seu


amigo, podendo manifestar diversos sentimentos: alegria, tristeza, saudade e
ciúme. Estruturalmente tendem a ser mais simples, denunciando sua origem
local; ligavam- se originalmente a festas e bailados populares. Retratam um
ambiente modesto, geralmente rural. Sofreram transformações temáticas e
aprimoramentos formais ao longo do tempo

CANTIGAS DE ESCÁRNIO E MALDIZER

De provável origem local, essas cantigas sofreram influências das


formas correspondentes provençais. Apresentam intenções satíricas, sendo
ricas em jogos de palavras, ironias, ambiguidades. Abordam os mais variados
temas, escândalos políticos, aventuras eróticas, falsa religiosidade, práticas e
poéticas estereotipadas.

OS CANCIONEIROS
São cerca de 1080 as cantigas da lírica galego-portuguesa de assunto
profano que chegaram até nós em coleções manuscritas, os chamados
Cancioneiros. A maioria delas se encontra em três coletâneas:

• Cancioneiro da Ajuda: é assim chamado por ter sido encontrado


na Biblioteca do Palácio da Ajuda, em Lisboa. É o mais antigo dos
cancioneiros conhecidos, sendo contemporâneo dos trovadores. Contém 310
cantigas de amor.
• Cancioneiro da Vaticana: seu nome deve-se ao fato de ter sido
encontrado na Biblioteca do Vaticano. É cópia de um manuscrito anterior e
contém 1205 cantigas.
• Cancioneiro da Biblioteca Nacional: atualmente se encontra na
Biblioteca Nacional de Lisboa. É uma cópia italiana de manuscritos anteriores
e pertenceu a um humanista italiano, Ângelo Colocci, integrando mais tarde a
biblioteca do conde Brancuti – por isso foi por muito tempo conhecido como
Cancioneiro de Colocci Brancuti. Contém 1567 cantigas.

Esses cancioneiros, infelizmente, só conservaram o texto das cantigas.


A melodia da quase totalidade delas se perdeu; restou apenas a notação
musical de seis cantigas de amigo de Martim Codax – num pergaminho
encontrado em 1913 por um livreiro madrilenho – e a música de sete cantigas
de amor de D. Dinis – num pergaminho localizado em 1990.
Existem ainda dois outros cancioneiros que devem ser mencionados, o
primeiro é uma coletânea de 420 poemas sacros, as Cantigas de Santa Maria,
de D. Afonso X, rei que governou Castela entre 1253 e 1284. Nesses poemas
de devoção a Virgem Maria, escritas em galego-português, são utilizados a
técnica e os procedimentos que encontramos nas cantigas de amor; outro
mérito desse cancioneiro é o tato de apresentar as cantigas acompanhadas da
notação musical. O outro é O Cancioneiro de Baena, compilação feita na
metade do século XV por Juan Alfonso de Baena que reúne poemas em
castelhano ao lado das últimas manifestações da lírica.
Os poetas cujas cantigas foram recolhidas nos cancioneiros são muitos
(cerca de 150), e seria inútil fazer uma lista de seus nomes. Alguns deles
apareceram em nossas leituras, como D. Dinis (considerado por muitos o mais
importante poeta do Trovadorismo), Martim Codax, Julião Bolseiro, Rui
Queimado, Gil Peres Conde. É interessante lembrar que a denominação que
recebiam variava de acordo com sua categoria social: assim, eram chamados
trovadores os nobres que, sem qualquer necessidade financeira, compunham;
jograis e segréis eram os poetas, músicos e cantores que se deslocavam pelas
cortes da Península Ibérica e pelos locais de concentração popular,
executando cantigas compostas por trovadores ou de autoria própria, vivendo a
custa desse desempenho artístico.
As atividades dos trovadores, jograis e segréis desenvolveram-se
principalmente em Portugal, na Galiza, em Castela; Leão e Aragão, num
período que se estende do final do século XII a meados do século XIV. Alguns
reis tiveram papel importante no desenvolvimento da poesia trovadoresca, pois
favoreceram seu cultivo nas cortes: em Portugal, D. Afonso (1210-1279) e D.
Dinis (1261-1325); em Castela, D. Afonso X (1221-1284), o Sábio, também
poeta e escritor. Após a morte de D. Dinis, a poesia trovadoresca entrou em
declínio em Portugal, principalmente porque as preocupações do país
passaram a se concentrar na expansão ultramarina, que demandava esforços
na aquisição de tecnologia náutica. Em Castela, essa poesia sobreviveu ainda
por aproximadamente mais um século, como atesta o já mencionado
Cancioneiro de Baena.

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