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28/09/2023

BENOIT, H. A Odisseia de Platão: as aventuras e


desventuras da dialética. São Paulo: Annablume, 2017.
pp. 113 – 138.

Prof. Dr. Andre Koutchin de Almeida


(andre.almeida@ufms.br)
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 Nos diálogos anteriores, vimos que Sócrates atingiu um método capaz de alçá-lo às Ideias;

 Trata-se, portanto, agora, de objetivar (nos outros) o caminho já percorrido pelo sujeito (Sócrates);

 O primeiro momento, como vimos, é aquele que parte da constatação de que não se sabe (saber que
não se sabe);

 Deste passa-se a um primeiro saber positivo (o saber de si) e, daí, a uma certa ciência “essencial” de si
(um dever ser moral);

 Finalmente, atinge-se a Ideia pela reminiscência da alma, conclusão do percurso que, ao mesmo
tempo, ilumina todo caminho anterior, permitindo-o compreender como e enquanto método
(dialético);

 Vejamos, com Benoit, como ocorre o mesmo processo, aproximadamente com as mesmas fases, nas
diversas camadas discursivas que vão se sobrepondo e se desenvolvendo no interior do célebre
diálogo A República (ocorrido entre 410 e 407 a.C.);

 Como veremos, parte-se da investigação em torno da noção de justiça, desta articula-se uma teoria
política da cidade que, por sua vez, faz irromper um programa educacional que, finalmente, permite
desenvolver uma teoria do conhecimento.

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 Na República, Sócrates irá se dirigir à casa de Céfalo, pai de


Lísias (que está presente à cena, assim como seus irmãos –
Eutidemo e Polemarco – além de alguns sofistas, como
Trasímaco);

 A conversa se inicia de forma despretensiosa (sobre a


velhice, os prazeres e a riqueza) até que surge, de maneira
ocasional, o problema fundamental do diálogo: a justiça;

 Céfalo, o dono da casa, apresenta uma primeira definição


de justiça que logo é contestada por Sócrates; não disposto
a uma longa jornada discursiva, Céfalo se retira (logo no
início do diálogo), de modo que Polemarco, um de seus
filhos ali presentes, assume a posição de interlocutor de
Sócrates.
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 Polemarco conversa amigavelmente com Sócrates até que Trasímaco abruptamente se


atira contra eles, inconformado com os rumos da discussão;

 Assim como Cálicles (no Górgias), Trasímaco irá defender aqui a tese do “direito do mais
forte”: “declaro que o justo não é outra coisa que o vantajoso ao mais forte” (p. 114);

 Interrogando-o sobre a sua tese, Sócrates facilmente conduzirá Trasímaco a contradições


(como tantas vezes fizera anteriormente com outros sofistas, inclusive Cálicles);

 O resultado ao final do Livro I, contudo, é aporético: apenas se sabe que não sabe o que é
a justiça;

 Após esse resultado meramente negativo, como ocorrera nos diálogos de sua juventude
quando refutara sofistas, aparentemente Sócrates já iria se retirar, mas eis que é detido
por Glauco, “fiel interlocutor e amigo da justiça” (p. 115);

 Glauco não aceita o resultado aporético e quer ser persuadido, de maneira convincente,
de que mais vale ser justo do que injusto.

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 A discussão é retomada, portanto, no Livro II, com os discursos


dos irmãos de Platão – Glauco e Adimanto;

 Fazendo a descrição fenomenológica das opiniões comuns da


época, Glauco afirma que é pior sofrer injustiças do que cometê-
las;

 Ainda que não acreditem em tais discursos, Glauco e Adimanto


apenas pretendem descrever as imagens dominantes sobre a
noção de justiça;

 Sócrates afirma então que fará todo o esforço possível para


defender novamente a justiça da injustiça, mas que o fará a partir
da “essência de cada uma delas”; ou seja, irá além das meras
imagens e em direção às Ideias.
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 A ascensão para além das meras imagens, porém,


começará com uma nova atitude metodológica: passa-
se do indivíduo para a cidade!;

 A justificativa é apresentada por Sócrates de forma


simples: “talvez, perante um quadro maior , a justiça
seja maior e mais fácil de estudar. Por conseguinte, [...]
procuraremos antes a natureza da justiça nas cidades;
em seguida, a examinaremos no indivíduo, de maneira
a perceber a semelhança do grande na forma pequena”
(p. 116).
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 A fim de realizar tal tarefa, resolvem observar o “nascimento” de


uma cidade;

 Obviamente, estuda-se o nascimento de uma cidade a partir de


suas necessidades fundamentais; para satisfazê-las, é necessário
que se preencha certas funções;

 Sócrates diz, então, que a justiça é aquela virtude que faz com
que a criança, a mulher, o escravo, o homem livre, o artesão, o
governante e o governado se ocupem de suas tarefas e não
interfiram, de modo algum, nas dos demais;

 “A justiça é, assim, a potência que faz com que cada cidadão


permaneça nos limites de sua tarefa, respeitando as divisões,
visando realizar a virtude geral, o bem do todo” (p. 117).
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 Em sentido contrário, no mesmo movimento, descobre-se o que


é a injustiça em uma cidade;

 “Quando um artífice tenta se elevar a guerreiro e um guerreiro a


chefe, quando ocorre confusão entre as funções da cidade, surge a
desordem e, portanto, estamos diante do próprio ser da injustiça
para uma cidade” (p. 117);

 Como se vê, avançou-se de um não saber o que é a justiça para


uma primeira definição a partir da correta divisão do trabalho;

 Descoberta, assim, a definição de justiça na cidade, retornar-se-á


ao indivíduo (como proposto metodologicamente por Sócrates).
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 Sócrates dividirá a cidade justa em três partes, graças às funções que cada uma das três
castas de cidadãos desempenhava sem interferir nas demais;

 A cidade justa era temperante, corajosa e sábia. De maneira análoga, para Sócrates, o
indivíduo justo receberia na sua alma essas três formas;

 Na verdade, Sócrates observa que é a cidade que recebe as suas características do


indivíduo e não o contrário;

 Assim, a alma do indivíduo possui, portanto, três partes: a racional, a corajosa e a


desejante, as quais, muitas vezes, entram em conflito;

 Nesses casos, a alma racional deve conter a parte desejante, a qual, vencida, é repreendida
pela corajosa;

 A cidade era justa quando cada um cumpria a sua função, sem se imiscuir na dos outros; o
mesmo ocorre na alma do individuo justo: cabe a parte racional comandar, assim como a
corajosa obedecer. Estando ambas as partes em harmonia, governarão sabiamente a parte
desejosa.

 Como se vê, da mesma maneira que do positivo “saber


de si” se chegou ao “dever ser moral”, aqui, também, da
primeira definição de justiça (na cidade) chega-se a
uma dominação (moral) da razão e da coragem sobre
os desejos da alma no indivíduo;

 Se, subjetivamente, do aprofundamento do dever ser


moral chegara-se à Ideia, pela reminiscência, aqui,
também, Sócrates procurará ascender a algo “acima da
própria justiça” (p. 119), algo que, na verdade, é o
fundamento (princípio ou arché) da justiça, tanto na
cidade como no individuo: trata-se da Ideia de Bem.
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 Assim é que, já no livro VI, Glauco pergunta a Sócrates se


existe algo acima da justiça e Sócrates responde que sim:
“há algo superior à justiça e a todas as outras virtudes [...]
trata-se da ideia de bem” (p. 119);

 Deste modo, o percurso de ascensão individual de Sócrates,


realizado em 4 momentos, reaparece na discussão sobre a
noção de justiça e, também, nas instâncias da política, da
educação e do conhecimento;

 Nesse sentido, inclusive, para se levar adiante a procura


sobre a justiça, Sócrates imagina a fundação de uma cidade.
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 Anteriormente, Sócrates havia mencionado sobre a cidade


nascida das necessidades fundamentais dos indivíduos,
quais sejam: alimentação, habitação e vestuário;

 Assim, para satisfazer tais necessidades, serão necessários a


esta cidade um lavrador, um construtor, um tecelão e,
talvez, um ou dois artesãos para produzirem os
instrumentos de trabalho necessários (4 ou 5 pessoas,
portanto);

 Sócrates observa, também, o caráter social do trabalho que,


planejado e dividido, permite o aumento quantitativo e
qualitativo da produção desta cidade.
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 Evidentemente, logo se percebe que serão necessários mais do que 4 ou


5 indivíduos para que essa cidade idílica possa crescer;

 Assim, serão necessários carpinteiros, ferreiros e muitos outros


operários, de modo que a população dessa pequena cidade será muito
maior do que o inicialmente previsto;

 Por outro lado, dificilmente se fundará uma cidade em um local onde


não falte a produção de nenhuma coisa; sendo assim, haverá
necessidade de se importar algo;

 Mas, para se importar algo (comprar do exterior), é necessário produzir


um excedente, que permita a realização das trocas com as outras
cidades (será necessário, assim também, comerciantes etc.);

 Por conseguinte, haverá a necessidade de um mercado e de moeda para


a realização das trocas (internas e externas) entre os cidadãos.
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 Mas, onde então estaria a justiça? Adimanto sugere que talvez se encontraria
nas relações de reciprocidade entre estes cidadãos;

 Sócrates diz que é provável, mas que prefere aprofundar mais a sua
investigação;

 Para tanto, imagina como viveriam as pessoas nessa primeira cidade


imaginária: produzirão, diz ele, trigo, vinho, vestimentas e construirão casas;

 Continuando a imaginar, diz Sócrates: “vão dispor magníficos bolos e pães


sobre ramos ou folhas frescas e, deitados sobre leitos de folhagem, feitos de teixo
e mirta, vão regalar-se na companhia dos filhos, bebendo vinho, com a cabeça
coroada de flores e cantando louvores aos deuses; passarão, assim, a vida em
comum, controlando o número de filhos segundo os recursos, pelo medo da
pobreza ou da guerra” (p. 121);

 Insatisfeito com tal descrição, Glauco então interroga: “se você fundasse uma
cidade de porcos, Sócrates, você os engordaria de outro modo?” (p. 121).
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 Como se vê, embora descrita por Sócrates como possuindo


uma vida relativamente boa, a cidade produtora de valores
de uso não satisfaz os seus interlocutores;

 Vista como excessivamente pobre, esta comunidade atinge


tal “vida boa” somente à custa da suspensão e da limitação
das necessidades: ou seja, suas qualidades surgem apenas
de uma limitação negativa;

 Assim, essa primeira cidade, tal como a primeira figura do


saber socrático (o saber que não se sabe) possui
características apenas negativas.
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 Glauco então sugere que os homens vivam de maneira menos austera: “é preciso que se
deitem sobre camas [...], que se alimentem em mesas e que lhes sejam servidos manjares e
sobremesas atualmente conhecidos” (p. 122);

 Sócrates reafirma que aprecia muito esta primeira cidade, mas não ousa defendê-la como
paradigma das polis;

 Volta-se, portanto, a contemplar uma outra cidade com mais necessidades: leitos, móveis
de toda a espécie, pratos requintados, óleos aromáticos, perfumes e assim por diante;
evidentemente, para a produção de tais “necessidades” seria necessário contar,
adicionalmente, com diversas funções de todos os tipos;

 Ora, uma cidade repleta de maravilhas precisaria também crescer, afinal, como satisfazer
tantos desejos, agora transformados em necessidades permanentes?

 Seu território inicial mostraria-se, portanto, como insuficiente. Viria, então, as guerras
(para invadir e evitar também a invasão), cuja origem estaria exatamente nesse processo
de expansão que acabara de ser descrito.

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 Agora, com a guerra, não somente produtores,


comerciantes e todas as outras profissões previstas serão
necessárias, mas, também e principalmente, soldados;

 Esta polis “inflamada de desejos” corresponde justamente


ao segundo momento da teoria das cidades (ou teoria
política);

 Mas, como ocorrera com Sócrates em sua trajetória,


também esta cidade voraz que persegue as coisas sensíveis
encontrará o seu processo de purificação: esse virá
exatamente do exército, ou de seus guardiões.
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 Neste momento, criado o exército, coloca-se que é necessário educar os


guardiões, para que estes não se transformem em “lobos” para os seus
cidadãos;

 É neste ponto do diálogo que nasce um plano educacional para os


guardiões. Continuemos, contudo, junto com Benoit, com o
desenvolvimento expositivo da teoria política socrática;

 Através do plano educacional, e de outras regras estabelecidas, pouco a


pouco a segunda cidade vai se “purificando”;

 Não somente os poetas e artistas serão vigiados em suas produções, na


verdade todos os produtores (o tecelão, o bordador, o arquiteto, enfim,
todos os que fabricam algo) deverão ser vigiados para que não
introduzam “formas imperfeitas”, obras incorretas para a formação das
crianças e, sobretudo, para a educação dos guardiões.

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 Finalmente, nesta terceira cidade purificada pelo


processo que prima pela educação dos guardiões,
Sócrates determina a abolição da propriedade privada
entre os próprios guardiões, bem como de qualquer
acesso por estes a ouro e prata, e que não possam
possuir sequer família (“pois entre eles, mulheres e
crianças serão comuns”, p. 125);

 Esta terceira cidade “moralizada” corresponde, assim,


ao terceiro momento do percurso socrático (ou seja,
aquele do dever ser moral).
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 Percorridos, portanto, estes três degraus no âmbito da teoria política, restaria


avançar para o último nível de ascensão, aquele que conduziria à instância
totalmente purificada do sensível, aquele que nos faria atingir, enfim, a ideia
em si da cidade justa;

 Provavelmente, após essa “divina contemplação” seria possível a realização


efetiva, no âmbito do sensível, desta quarta e última cidade, a cidade ideal;

 Mas, como se estivesse temeroso diante da “mais alta das vagas”, Sócrates se
desvia do assunto e se dispersa discutindo a educação guerreira das crianças;

 Várias páginas depois, Glauco o interrompe, impaciente, reafirmando a


importância daquele projeto, e exige que Sócrates fale da realização prática da
cidade e deixe de evasivas: “não fala mais da constituição mesma, mas tentemos
provar, a nós mesmos, que ela é possível e como é possível, e deixemos de lado o
restante” (p. 126).

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 Após algumas vacilações, finalmente, anuncia Sócrates as condições de


possibilidade para a realização da essência do que é aquela polis ideal: a
identidade entre o filósofo e o rei (ou a unificação da filosofia e da política);

 “Enquanto os filósofos não reinarem nas cidades, ou os que hoje chamamos reis
e dinastas não se tornarem verdadeira e seriamente filósofos; enquanto a
potência política e a filosofia não recaírem no mesmo ente; [...] não haverá
termo, meu caro Glauco, para os males das cidades, nem me parece, para os do
gênero humano, e jamais a constituição que agora descrevemos em teoria será
possível, tanto quanto possa sê-lo, e jamais verá a luz do Sol” (p. 126);

 E ainda acrescenta Sócrates o seu temor anterior: “eis o que eu vacilei muito
tempo em dizer, prevendo o quanto estas palavras chocariam a opinião comum”
(p. 126);

 Como podemos perceber, esta quarta cidade – a cidade ideal ou filosófica –


coincide, também, com o percurso subjetivo de Sócrates: nela o poder recairá
sobre aquele que contemplou as Ideias e, particularmente, aquela Ideia que
funda a justiça, a ideia do Bem.
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 Como se vê, Sócrates parece conduzir seus interlocutores pelo caminho


que ele próprio já percorreu em sua procura pelo Belo em si;

 Isso será confirmado na República, mais uma vez, na exposição sobre o


projeto educacional e sobre uma teoria do conhecimento;

 O programa educacional dos guardiões começa com o estudo dos mitos


produzidos pelos poetas (embora esse saber de imagens seja fixado por
regras precisas que reduzam o seu caráter mimético, sobretudo, em
relação a ações indecorosas ou de ofensa aos deuses);

 O segundo ponto do programa é aquele da ginástica (que visa,


evidentemente, os exercícios dos corpos dos guardiões); o terceiro, é o
estudo das matemáticas (de um saber que se eleva acima do sensível,
que o abstraí para os seus raciocínios); finalmente, o quarto ponto do
programa educacional é o estudo da “ciência suprema”, a ciência que dá
conta das ideias em si, a dialética.
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 A teoria educacional é bastante próxima, analogicamente, da


teoria do conhecimento;

 No entanto, se a teoria educacional arrancava da passagem da


segunda para a terceira cidade (visando a purificação da cidade
“inflamada de desejos” pelo comunismo dos guardiões), a teoria
do conhecimento arranca da passagem da terceira para a quarta
cidade, da cidade moralizada para a polis filosófica;

 Se os filósofos devem governar é porque somente eles conhecem


a teoria das Ideias, pois somente eles conseguiram ascender pelas
diversas fases do sensível e atingiram o fundamento de tudo, o
Bem em si;

 A teoria do conhecimento transforma-se, assim, na sua


conclusão, em uma fundação ontológica de toda a realidade.
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 A teoria do conhecimento começa a ser precisamente desenvolvida no


livro V, a partir de uma primeira (e “pobre”) forma de conhecer: a
eikasia, ou imaginação (um conhecer pelas imagens);

 O segundo momento é aquele da pistis, fé ou crença, e consiste em


interpretar a partir da multiplicidade dos corpos e objetos (dos quais os
ícones anteriores eram sombras);

 O terceiro momento é a diánoia, atividade raciocinante, primeiro


degrau do inteligível, onde se conhecem os seres matemáticos, os
números e as figuras dos geômetras, assim como as regras abstratas em
geral;

 Finalmente, o quarto nível da teoria do conhecimento é aquele da


nóesis, domínio do puro inteligível, domínio da ciência suprema (“das
puras determinações do puro pensar”), da dialética.

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 Uma vez atingido tal nível – que é o fim e a conclusão do percurso, mas,
na verdade, também, o começo, o princípio e o pressuposto de tudo – o
que resta agora?

 Ao final do livro VI, quando se conclui a teoria do conhecimento como


método dialético, ilumina-se de maneira esplendorosa todos os
momentos anteriores, não somente aquele percurso da teoria do
conhecimento, como também aqueles do programa educacional, do
projeto político, da noção de justiça e mesmo aquele percurso anterior
de Sócrates durante os últimos trinta anos: o método mostra-se como a
rigorosa compreensão e execução de todos os momentos anteriores
(“imperfeitos, porém necessários”);

 Para Benoit, a narração da caverna e de seus emblemáticos prisioneiros


não é nada mais do que isso: a síntese de todas as partes (ou momentos
analíticos) da totalidade do percurso realizado até aqui...

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“Não podemos dizer que o próprio Sócrates, em certo


sentido, seria aquele prisioneiro que, certa vez, desviou
o seu olhar das imagens projetadas no fundo da
caverna? Aquele que, posteriormente, contemplou os
homens que passavam pelo muro carregando objetos e
projetando as suas sombras no fundo da caverna
através da luz da fogueira que os iluminava? Não seria
o próprio Sócrates aquele que, certa vez, conseguindo
sair da caverna, começou a contemplar as coisas nas
sombras e nas águas, aquele que depois começou a
olhá-las em sua realidade sensível, aquele que elevando
os olhos até os astros, finalmente, contemplou o sol?”
(BENOIT, 2017, p. 130).
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 Após a bela alegoria da caverna, após contemplar do alto todo o percurso,


somente resta a Sócrates e a seus companheiros da República descerem
novamente, retornarem à caverna e libertarem os outros prisioneiros das
sombras;

 Realmente a descida será realizada nos livros VIII e IX, onde Sócrates e seus
interlocutores descreverão o processo de degeneração e decadência das cidades
humanas: timocracia – oligarquia – democracia – tirania;

 Junto aos diversos tipos sensíveis de cidade, discute-se, também, os diversos


correspondentes de indivíduo, cada um deles desenvolvendo os vícios próprios
a cada cidade imperfeita;

 Sendo o homem tirânico o pior de todos os tipos de indivíduo, o mais infeliz e o


mais injusto dos homens, chega-se por fim à questão que, ainda no começo,
desencadeou todo o processo de investigação: tendo definido o paradigma da
injustiça na figura do tirano, o homem justo, para Sócrates, seria aquele que
não procuraria riquezas, nem honras fúteis da vida privada ou pública.

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 Neste momento, diante das conclusões, e, talvez, ainda preocupado


com a questão da realização efetiva da cidade, Glauco pergunta se o
homem justo “recusará participar das coisas políticas” (p. 131);

 Sócrates lhe responde de maneira enigmática: o homem justo deverá


participar da política, “mas na sua própria cidade e ativamente, no
entanto, não em sua pátria” (p. 131);

 Compreendendo que esta cidade apontada por Sócrates permanecia


indeterminada, Glauco refere-se assim a ela: “que eu saiba, não existe
em nenhum lugar da terra” (p. 131);

 Sócrates então afirma: “talvez haja um modelo no céu para quem queira
contemplar e regular sobre [...] seu próprio governo” e concluí
parecendo não se importar com tal questão: “em nada difere seja onde
existe esta cidade seja onde existirá [...] o homem justo realizará sua
práxis somente nas coisas desta cidade e de nenhuma outra” (p. 131).
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 De fato, como no diálogo anterior (o Fedro), a construção perfeita da República


constitui um logos que possui rigorosamente começo, meio e fim;

 Estaríamos, assim, diante de uma obra dialética perfeita, de um logos


constituído plenamente como um ser vivo, como os deuses haviam exigido de
Sócrates em seu segundo discurso no Fedro (ou mesmo como lhe exigira
Parmênides logo no início de sua odisseia)?

 Ora, nos aponta Benoit, lendo com atenção redobrada a República fica claro
que o quarto (e decisivo) momento deste logos fica sempre vislumbrado,
apontado, mas mergulhado na indeterminação;

 Nesse sentido, o próprio Glauco, a respeito da ideia de Bem, fundamento de


todas as coisas justas, insiste para que Sócrates o determine mais claramente;

 Sócrates, por sua vez, afirma que gostaria muito de realmente descrevê-lo, “mas
temo que ultrapasse as minhas forças e, caso tenha coragem de tentá-lo, seja
coberto de risos por minha inépcia” (p. 133).
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 É verdade que mais adiante, após insistir em fazer seus interlocutores


concordarem com a determinação apenas do “filho sensível” da ideia de Bem, o
sol, que Sócrates tenta descrever o Bem como “alguma coisa que ultrapassa de
longe a essência, em majestade e potência” (p. 133);

 Tal iniciativa, no entanto, é prontamente ridicularizada por Glauco que


exclamara em tom cômico: “por Apolo! Divina transcendência!” (p. 133);

 Assim, essa divina transcendência socrática apenas reafirma a indeterminação


do Bem; como o Ser-Um de Parmênides, o Bem socrático é inominável,
inefável, incognoscível;

 Será necessário esperar, sobretudo, o neoplatonismo para que essa


transcendência seja considerada positiva e coincidente com a natureza de
Deus...

 Se esse Bem permanece tão indeterminado a ponto de Sócrates concluir que


nada se pode falar a respeito dele (culpando Glauco por tê-lo obrigado a falar
desse assunto), haveria Sócrates superado realmente as aporias de Parmênides? 30

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 Portanto, ao não se chegar e não se determinar o Bem, como


descrever o quarto, e último, momento de todas as outras noções
discutidas (justiça, política, educação, conhecimento)?

 Deste modo, e de fato, todos os percursos estancam os seus


movimentos ascendentes no terceiro momento, onde prevalece
uma racionalidade analítica: ora, essa racionalidade jamais
“possuirá asas” para se elevar à região propriamente sintética das
ideias em si, da cidade filosófica e da dialética...;

 Na verdade, aqui, como sempre nos outros momentos do


percurso socrático, diante das aporias na instância do logos,
sempre se espera por um acaso divino, pela revelação de uma
sacerdotisa , por uma sabedoria inspirada (ou mesmo, como já
veremos, um mito), para que se continue o avanço em direção às
ideias.
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 Deste modo, como (emblematicamente) na alegoria da


caverna o “segundo ascenso” dos prisioneiros
permanece irrealizado, também aqui, a noção de
justiça, o projeto político, o programa educacional e a
teoria do conhecimento permanecem inconclusos (ou
concluídos apenas “além da physis”);

 Nesse sentido, não deve causar espanto que, ao final da


República, Sócrates narre o mito de Er (o filho de
Armênio, o qual, no 12º dia depois de sua morte, voltou
à vida e contou o que vira no outro mundo além do
sensível)... 32

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 Assim, o talvez mais célebre dos Diálogos,


paradoxalmente, apesar de conter muitas teorias sobre
a cidade justa, mostra-se, finalmente, como o diálogo
no qual Sócrates parece recair, de maneira
possivelmente definitiva, no processo aporético que o
persegue há mais de 40 anos, desde a sua juventude,
particularmente, desde aquele fatídico encontro com
Parmênides de Eléia...

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BENOIT, H. As tentativas de Timeu e Crítias. In: A Odisseia de


Platão: as aventuras e desventuras da dialética. São Paulo:
Annablume, 2017. pp. 139 – 166.

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