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BENOIT, H.

A Odisseia de Platão: as aventuras e


desventuras da dialética. São Paulo: Annablume, 2017.
pp. 167 – 180.

Prof. Dr. Andre Koutchin de Almeida


(andre.almeida@ufms.br)
1
 O diálogo Crítias continua o diálogo anterior, o Timeu, sem
qualquer interrupção na cena dramática (entre 410 e 407 a.
C., portanto);

 Como vimos, um dia após a cena do diálogo A República ,


Sócrates encontrara Crítias, Hermócrates, Timeu e um 4º
personagem anônimo (e, agora, também ausente), quando
conversaram sobre o projeto político ali esboçado e
combinaram de retomar as discussões no dia seguinte
(expostas nos diálogos Timeu e Crítias, respectivamente);

 Após concluir o seu discurso “mito-dianoético” sobre a


gênese do mundo, conforme o plano inicial estabelecido,
Timeu passa a palavra a Crítias, encarregado de descrever a
história da origem dos homens.
2
 Crítias, como vimos, havia prometido retomar a narração histórica do
passado de Atenas e Atlântida, seguindo a Sólon e aos escritos
imemoráveis dos templos egípcios;

 De início, Crítias pede tolerância aos presentes, pois o seu tema – o


mundo humano – seria bem mais difícil do que o abordado por Timeu;

 Reconhecendo que embora a exposição de Timeu tenha sido muito boa,


adverte que “parecer falar de maneira adequada para os homens a
respeito dos deuses é bem mais fácil do que falar dos mortais para nós
próprios mortais” (p. 167);

 Em certo sentido, assim, Crítias parece colocar ao menos algumas


dúvidas sobre o discurso de Timeu, uma vez que, segundo o próprio
Crítias, “a inexperiência e a ignorância completa dos auditores a
respeito destes temas garantem uma viagem bem sucedida àquele que
intenta falar dos deuses” (p. 167 – 168).
3
 De fato, ao discorrer sobre os seres divinos à maneira dos poetas,
dificilmente alguém cairia em aporias em seu trajeto;

 Ao contrário, como tantas vezes provara Sócrates até aqui,


quando procura-se dar às coisas humanas a permanência e a
inteligibilidade divinas que não possuem, as vias se fecham e os
nós se enredam;

 Era exatamente o que havia acontecido há poucos dias, inclusive,


quando Sócrates procurou dar existência efetiva a uma cidade
que fosse ordenada, em todos os seus domínios, pela ideia
soberana e divina da justiça (ou do Bem);

 Como vimos, a tentativa de Sócrates fora mal sucedida (como,


aliás, Parmênides lhe alertara há mais de 40 anos atrás)...
4
 Mas, de acordo com o plano dialógico inicial estabelecido, o
discurso de Timeu sobre a gênese divina do mundo não
teria apenas de cumprir um papel de mediação inicial para
que Crítias chegasse à forma mais determinada do mundo
humano?

 Timeu, contudo, poderia haver se excedido nesse modesto


papel e se entusiasmado demais, narrando em detalhes
excessivos o seu mito verossímil?

 Nessa direção parece apontar Crítias ampliando ainda mais


as sombras que lançara sobre a verossimilhança do discurso
de Timeu...
5
 Diz Crítias que tudo o que dizemos nada mais é, necessariamente, do
que mera “imitação e representação”;

 Compara o discurso humano às imagens que os pintores traçam dos


entes, ressaltando ser muito mais difícil representar as coisas humanas
do que a natureza em geral (os rios, a terra, as montanhas, as florestas
etc.);

 Para Crítias, quando um pintor representa o nosso próprio corpo (que


conhecemos em detalhes), somos juízes bem mais severos para apontar
as falhas;

 O mesmo fenômeno, portanto, ocorreria no processo do discurso:


quando são representados os entes que conhecemos mal, como no
discurso mítico de Timeu, rapidamente ficamos convencidos; ao
contrário, para as “coisas mortais e humanas”, as submetemos a um
exame muito mais rigoroso.
6
 Sócrates, há muito tempo calado, concorda com a
argumentação de Crítias, considerando, inclusive, estender
tal indulgência também ao discurso de Hermócrates, o
orador seguinte;

 Mas, observa, também, e significativamente, que tal


benevolência seria mesmo necessária, pois “o poeta que o
precedeu falou de maneira maravilhosa” (p. 169, grifo
nosso);

 Após os incentivos de Hermócrates para que celebre “os


méritos dos concidadãos do passado”, Crítias invoca então,
como fundamental para a sua tarefa, os deuses e,
particularmente, a deusa da Memória, pois “dela dependem
todas as partes principais das nossas palavras” (p. 169).
7
 Após as invocações precedentes, Crítias começa sua narrativa
retomando alguns fatos já contados por ele próprio no início do diálogo
Timeu;

 Relembra que já haviam decorrido 9 mil anos desde a guerra colossal


envolvendo Atenas e Atlântida – “uma ilha, hoje submersa, mas que
era, na época, maior que a Líbia e a Ásia reunidas” (p. 169);

 Mas, antes de descrever em detalhes como eram aquelas civilizações do


passado, Crítias narra a origem divina de ocupação das terras;

 Curiosamente, após “receber” o mundo do mito verossímil de Timeu,


apesar das ressalvas aparentes a este, Crítias inicia a sua narração
justamente a partir de outro mito, aquele que irá narrar as origens
divinas do surgimento de Atenas e Atlântida...

8
 Prossegue Crítias que os deuses, um dia, dividiram a terra inteira,
sem discórdias e sem disputa, e, através da justiça, se
estabeleceram cada um em sua região;

 Criando e conduzindo os homens como seus rebanhos, não o


faziam, porém, através da violência, mas, sim, suavemente,
através da persuasão;

 Hefaisto e Atena, sendo deuses irmãos e possuindo amor ao


conhecimento e à arte, receberam em comum a região na qual se
desenvolveria a cidade de Atenas;

 Estes foram os deuses que criaram, assim, os primeiros


atenienses e os organizaram da melhor forma possível; contudo,
durante muitas e muitas gerações, tudo passou a ser esquecido...
9
 Aqueles cidadãos passaram a não investigar o passado, pois
tais investigações somente surgem quando as necessidades
básicas da cidade estão garantidas (dispondo estes
cidadãos, assim, de tempo livre para tais preocupações);

 Deste modo, todos os grandes feitos heroicos dos homens e


das mulheres do passado (pois, estas também participavam
das atividades de guerra) foram totalmente esquecidos;

 Existiam, naquela região remota, outras “raças” de cidadãos


que se ocupavam de outras atividades, como artesãos e
lavradores, mas a “raça” principal, como no projeto
socrático, era aquela dos guerreiros...
10
 Os guerreiros eram uma espécie “divina”, isolados desde os
primeiros tempos e que habitavam separadamente, “recebendo
tudo o que fosse necessário para a sua subsistência e sua
educação, nenhum deles possuindo nada como privado, pois
consideravam que todas as coisas eram comum entre todos” (p.
170);

 Crítias acrescenta ainda que os guerreiros nada pediam aos


outros cidadãos, exceto o estritamente necessário à subsistência,
exercendo “todas as tarefas que propusemos ontem [...] aquelas
que enumeramos quando falamos dos guardiões nos quais
embasamos a cidade” (p. 170);

 Ou seja, Crítias sustenta aqui que esta Atenas do passado teria


existido efetivamente no mundo sensível e que fora muito
próxima da cidade em logos construída por Sócrates em A
República. 11
 Tentando apontar provas do que estava dizendo, Crítias faz
observações a respeito de diversos aspectos geográficos
existentes, explicando-os pelos dilúvios e devastações ao
longo daqueles 9 mil anos passados, e comparando àquela
antiguidade gloriosa àquele atual e “mísero amontoado de
ruínas”;

 A devastação geográfica é descrita em detalhes, com Crítias


sempre procurando dar provas do que afirmara;

 Assim, Crítias apresenta, como testemunho, os diversos


santuários existentes em locais secos: como de costume,
tais localidades religiosas eram construídas ao lado de
fontes, desaparecidas devido à devastação; estes fatos, diz
ele, são “sinais de que é verídico o que agora foi dito” (p. 171).
12
 Após descrever, assim, o que existia por natureza na região, passa
Crítias então a estudar a organização propriamente humana, a
cidade;

 A exemplo dos aspectos geográficos, a Acrópole antiga fora


devastada pelas intempéries naturais (tremores, dilúvios);

 Antes, no entanto, o local era cercado como se fosse uma


moradia única, com os guerreiros habitando a parte voltada para
o norte, em casas comuns, onde ocorriam refeições comuns, e
sem acesso a qualquer ouro ou prata;

 Nessas habitações bem ordenadas, não viviam nem na miséria e


nem no luxo, e “eram renomados em toda a Europa e toda a Ásia,
pela beleza de seus corpos e por todas as virtudes de suas almas,
sendo os mais ilustres dos homens daquele tempo” (p. 172).
13
 Após a descrição dessa Atenas protohistórica, muito
semelhante à cidade ideal de Sócrates, Crítias apresenta o
que Sólon descobriu, pelo sacerdote egípcio, a respeito da
civilização inimiga de Atenas: Atlântida;

 Observa que os seus ouvintes não deveriam se espantar por


o verem nomear, frequentemente, bárbaros com nomes
gregos;

 Crítias justifica dizendo que Sólon, em seus manuscritos


(que foram de seu bisavô e que estavam agora em sua
própria casa), havia traduzido para o grego os nomes que
encontrou na versão original dos egípcios, pois pensava
utilizar esses relatos em seus poemas.
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 Como no caso de Atenas, a narração de Atlântida começa precedida pelo mito da
colonização divina do mundo;

 Na partilha dos deuses, o lote de Atlântida coube ao deus do mar, Poseidão, que, por sua
vez, instalara nessa ilha os filhos que tivera com uma mortal local (Clito);

 Neste lugar praticamente impenetrável pelas obras e fortificações de Poseidão, foram


engendrados, por ele e Clito, cinco pares de gêmeos homens;

 Poseidão dividiu esta ilha, assim, em 10 partes: ao primogênito, atribuiu o lote mais vasto
e melhor, fazendo-o rei acima dos demais; todos os irmãos, contudo, foram feitos
príncipes com autoridade, cada um, sobre um grande número de homens e vastos
territórios;

 O primogênito recebeu o nome de Atlas e dele se derivou o nome do mar e da ilha que
passou a ser chamada Atlântida;

 O rei e os nove príncipes, assim como seus descendentes, além de dominarem a ilha,
estenderam o seu poder a um grande número de ilhas próximas e mesmo a regiões
continentais situadas até o Egito e a Tirrênia, país dos Etruscos...
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 Ao contrário dos guardiões austeros que comandavam
Atenas e a Grécia, que viviam sem luxo e jamais
tocavam em metais preciosos, a dinastia de Atlântida
acumulava riquezas em abundância;

 A dinastia dispunha de tudo o que fornecia a ilha e


muitas coisas importadas lhe vinham de regiões do seu
largo império, ainda que a própria ilha produzisse
quase tudo (metais preciosos, madeiras e animais
exóticos, raízes, ervas, perfumes, frutas, alimentos e
bebidas de todos os tipos etc.).
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 Após descrever assim as riquezas naturais de Atlântida, Crítias passa a falar das
construções feitas pelas próprias mãos humanas;

 Sendo a morada maternal de Clito, onde ficava o palácio real, cercada por
braços circulares de mar, os atlantes elevaram diversas pontes sobre estes,
permitindo a circulação para fora da ilha central e para a morada de outros
membros da dinastia (que viviam em anéis externos de terra);

 Detalha Crítias com precisão, em seguida, as características da ilha central (e o


canal em que lhe atravessava as navegações), as dimensões dos diversos
cinturões de água, as pontes construídas sobre os anéis, os revestimentos dos
palácios, suas portas, torres, muros e estátuas, e assim por diante;

 Como se vê, são tantos os detalhes da narração feita por Crítias que parece
realmente impossível que ele não esteja se embasando em algum texto escrito
(no caso, os manuscritos de Sólon a partir de sua experiência no Egito).

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 Logo após, dedica-se Crítias a descrever a grande utilização
que os atlantes faziam da água em suas obras; detalha seus
ginásios, hipódromos, suas tropas etc.;

 Além das tropas, denotando o caráter despótico do regime


e contrastando com os guardiões de Atenas, uma guarda
particular e de extrema confiança habitava o interior da
própria acrópole, em torno da morada real;

 Na ilha central haviam, também, arsenais e embarcações


de guerra; nos portos externos, formigavam edifícios e
navios de comerciantes.
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 Passando a descrever o restante do país, Crítias detalha uma
grande planície e um imenso fosso que, chegando à cidade,
desembocava no mar;

 Canais adjacentes ao fosso serviam para transportar produtos da


montanha (sobretudo, madeira) para a cidade; essa rede de
canais servia, também, para a irrigação da terra, beneficiando o
trabalho dos agricultores nas colheitas;

 Crítias, a seguir, explica como se estruturava o fornecimento de


homens para a guerra: da planície, das montanhas e de todo o
país, a partir da estrutura militar descrita, aglutinava-se um
exército estimado em 1 milhão de homens (número capaz apenas
de caracterizar os exércitos não-gregos, como os egípcios e os
persas).

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 Crítias detalha, também, como se estruturava o poder político
em Atlântida: cada um dos dez reis, possuía poder irrestrito
sobre os homens e a maior parte das leis, punindo e condenando
a quem desejassem em seu território;

 No entanto, o poder dos reis não era absoluto, pois deviam


obediência nas relações mútuas, entre eles próprios, aos decretos
que teriam origem em Poseidão e que teriam sido transmitidos
por leis escritas, gravadas no próprio santuário de Atlântida;

 Nesse local sagrado, a cerimônia ritualística do poder era


realizada, periodicamente, pelos dez reis que, reunidos,
deliberavam sobre as coisas comuns à ilha e, sobretudo,
investigavam “se algum deles havia cometido alguma
transgressão e o julgavam” (p. 177).

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 Como podemos ver, a organização social, militar, política e religiosa daquele
império era meticulosamente disposta;

 No entanto, apesar de toda a potência de Atlântida, apesar de suas qualidades


naturais e de suas grandiosas obras de engenharia, apesar da união dos reis
seguidores das leis de Poseidão, conta-nos Crítias que, em certa época, o
princípio divino que a dominava fora suprimido pelo caráter humano;

 Pouco a pouco, os atos dos reis atlantes foram sendo dominados por interesses
mesquinhos;

 O deus dos deuses pagãos, Zeus, vendo a decadência na qual mergulhava


gradativamente esta raça, quis aplicar-lhes um castigo para que retornassem ao
estado de moderação;

 Para isso, afirma Crítias, Zeus “reuniu todos os deuses na sua mais nobre
morada, que se encontra no centro do universo, e na qual se avistam todas as
coisas que participam do devir e os tendo reunido, diz: [...]” (p. 178).
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 Neste ponto, quando Zeus iria anunciar os seus desígnios para
castigar os atlantes, abruptamente, a narração de Crítias e o
próprio manuscrito deste diálogo são interrompidos;

 Seria meramente acidental este silenciar na instância da lexis?,


nos pergunta o professor Benoit;

 Como em várias outras passagens dos Diálogos, infelizmente,


jamais saberemos com absoluta certeza...;

 No entanto, esta interrupção leva à ausência, também, de outra


narração, aquela apresentada no plano proposto no Timeu e
reafirmada no início do Crítias: a narração de Hermócrates.
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 Assim, acidental ou não, talvez resultado do acaso e
das vicissitudes que se abateram sobre a vida do autor
ou do tempo milenar dos seus manuscritos, a ausência
do discurso de Zeus, a interrupção da narração de
Crítias, a inexistência do discurso de Hermócrates e o
silêncio abrupto da própria escritura do diálogo, esta
série de “espaços em branco” que se abrem nesta
sequência da léxis, interrompe, também, nesta
odisseia filosófica , a própria expectativa socrática de
avistar, de maneira mais concreta, a sua cidade
sonhada...
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 Uma coisa, de qualquer maneira, parece certa, seja pelo acaso, seja pela intencionalidade
não concluída do discurso: essas novas tentativas de determinar a dialética socrática e de
dar vida à cidade, desta vez na instância da gênesis, permanecem, também, inconclusas;

 Timeu, Crítias e Hermócrates, homens afeitos à práxis, não conseguiram, portanto,


concluir o projeto capaz de resolver as aporias que há tantos anos atormentam Sócrates?

 Timeu, narrando “mitos verossímeis” (que permitem um discurso “prazeroso e sem


remorso”), descrevera a gênese do corpo e da alma do mundo a partir de uma composição
de elementos. Com isso não retrocedia a teorias similares aquelas dos physiologói,
abandonadas por Sócrates justamente a partir da teoria das ideias?

 Quanto à tentativa do próprio Crítias para descrever a gênese das cidades, apesar de
inacabada, suscita-nos algumas questões intrigantes: como a narração “pré-socrática” de
Timeu, a narração de Crítias se direciona muito mais para o passado do que para o futuro;
a cidade sonhada por Sócrates na República (ou alguma muito similar), teria, assim,
existido no passado remoto? Realizar a pólis sonhada por Sócrates seria, assim, retornar,
de alguma forma, a um passado perdido, recordado somente pelos sacerdotes egípcios?

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 Ora, uma Atenas “pré-ateniense”, “pré-pólis”, “pré-democrática”,
“pré-filosófica”, idealizada por olhos egípcios, dificilmente
poderia efetivar, em algum sentido, a pólis onde o poder político
e a filosofia coincidiriam;

 Assim, os mitos de Timeu e também de Crítias,


independentemente de sua verossimilhança, parecem não
resolver os problemas filosóficos e políticos da dialética socrática;

 Talvez, o silêncio quase total de Sócrates durante os discursos de


Timeu e Crítias, assim como a interrupção abrupta do próprio
discurso de Zeus, manifestam, nessa acidentalidade da ação de
dizer (léxis), o trágico declínio, talvez definitivo, do belo e divino
elã filosófico que, um dia, fascinara até o grande sábio
Parmênides...

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BENOIT, H. A Odisseia de Platão: as aventuras e desventuras
da dialética. São Paulo: Annablume, 2017. pp. 181 – 216.

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