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Brasil Colônia
Brasil Colônia
BRASIL: COLÔNIA
GRADUAÇÃO
Unicesumar
Reitor
Wilson de Matos Silva
Vice-Reitor
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de Administração
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de EAD
Willian Victor Kendrick de Matos Silva
Presidente da Mantenedora
Cláudio Ferdinandi
SEJA BEM-VINDO(A)!
Caro(a) acadêmico(a)!
É com imensa satisfação que apresentamos a você o livro que integra a disciplina de
História do Brasil: Colônia. Somos as professoras Ana Lúcia e Luciene e preparamos com
muita dedicação e carinho este material. Esperamos que seja um convite para novas
discussões e novos posicionamentos perante as abordagens realizadas neste estudo in-
dispensável à formação docente.
O livro está organizado em cinco unidades que abordam discussões referentes à co-
lonização na América Portuguesa, tanto no que tange as principais temáticas do pe-
ríodo, quanto as discussões historiográficas, que são realizadas na última unidade de
nosso livro.
Na primeira unidade, você terá acesso aos estudos sobre a formação do homem luso,
desde os primórdios da Península Ibérica até a consagração de Portugal como Estado
independente. Após vencerem essa etapa, prosseguimos às análises referentes à expan-
são ultramarítima portuguesa realizada ao longo do século XV e que foi responsável pe-
las novas aquisições territoriais lusitanas, possibilitando que Portugal se transformasse
em um verdadeiro Império.
Em um segundo momento, colocamos em pauta as discussões referentes à “Rota das
Índias” e à chegada da frota Cabralina nos trópicos. Nessa unidade, você conhecerá as
primeiras relações que se estabeleceram entre portugueses e indígenas e as primeiras
medidas administrativas tomadas pela Coroa de Portugal mediante a sua nova desco-
berta territorial. Tais reflexões se prolongam até a implantação do Governo Geral e suas
implicações em solos brasílicos, no âmbito da indústria açucareira.
Dando prosseguimento ao estudo, você conhecerá as reflexões acerca do papel da
Companhia de Jesus na colônia portuguesa. A labuta religiosa dos jesuítas se defron-
tará com a cultura ameríndia e com os interesses econômicos dos colonizadores lusos,
repercutindo em uma série de embates que precisam ser remediados pelos monarcas
portugueses. Tanto a unidade III quanto a anterior são imprescindíveis para a compre-
ensão do projeto colonizador empreendido pela Coroa lusitana nos solos coloniais.
Já na quarta unidade, o recorte temporal se inicia nas expedições bandeirantes, siste-
matizadas no século XVII, até os antecedentes da Independência do Brasil. Essa uni-
dade apresenta um longo processo que precisa ser cuidadosamente analisado, pois
destaca muitas temáticas relevantes para a compreensão das mudanças ocorridas
nesse período e que também criarão condições para o rompimento nas relações de
dependência entre Brasil e Portugal, com o fim efetivamente da conjuntura colônia –
metrópole em 1822.
APRESENTAÇÃO
UNIDADE I
13 Introdução
57 Considerações Finais
UNIDADE II
65 Introdução
89 As Capitanias Hereditárias
UNIDADE III
131 Introdução
UNIDADE IV
187 Introdução
UNIDADE V
257 Introdução
301 Conclusão
303 Referências
317 Gabarito
Professora Me. Ana Lúcia Sales de Lima
BREVE HISTÓRIA DE
I
UNIDADE
PORTUGAL: DAS RAÍZES LUSAS
À EXPANSÃO ULTRAMARÍTIMA
Objetivos de Aprendizagem
■ Analisar o surgimento dos Estados presentes na Península Ibérica,
discutindo suas principais características.
■ Compreender a formação do homem luso e seu caráter aventureiro.
■ Observar o desenvolvimento do Império Português.
■ Verificar o pioneirismo português na expansão ultramarítima.
■ Entender as relações estabelecidas entre Estado e Igreja.
■ Discutir as motivações econômicas que alimentaram a “Era dos
Descobrimentos”.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■ O Nascimento do Império Português
■ Os senhores dos Mares: a expansão marítima lusitana
13
INTRODUÇÃO
Introdução
14 UNIDADE I
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Nesse sentido, compreendemos que as questões que serão tratadas a seguir
são indispensáveis para entendermos a política que a Coroa de Portugal desen-
volveu em suas possessões além-mar, sobretudo na América lusitana, pois nos
revela uma combinação de interesses econômicos e religiosos que nem sempre
serão sentidos com a mesma intensidade, mas que formarão as estruturas polí-
ticas do Império português.
A ocupação da Península
Ibérica, região na qual se
situa, atualmente, Portugal,
remonta ao estudo da pré-his-
tória europeia. Observamos a
presença de diferentes povos
que ocuparam essa região
ao longo do tempo. Desses
povos, podemos mencionar
a presença dos celtas, que
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comércio, as sucessivas
batalhas e doenças resulta-
Figura 1: Império Romano em 117
ram em grandes extensões Fonte: Wikimedia Commons.
de terras abandonadas. Estas,
por sua vez, representavam o pilar da economia romana, pois a agricultura
financiava as obras públicas que ocorriam nos centros urbanos do Império.
Entretanto, um dos fatores mais graves que levaram à ruína do Império em sua
parte Ocidental foi a presença de invasores externos. Com as fronteiras despro-
tegidas, o Império se viu fragilizado perante a invasão dos povos bárbaros que
devastaram e saquearam as cidades romanas, sobretudo entre os séculos IV e VI
e alteraram a estrutura social daquele período. Observa-se uma onda de migra-
ção das cidades para os campos. Em busca de proteção e sobrevivência, famílias
inteiras abandonavam sua vida nas cidades e fugiam para os campos, onde as
tribos bárbaras não ofereciam ameaça.
A região que compreendia o Império Romano do Ocidente sofreu com as
levas de invasores de diferentes tribos germânicas que assolaram as cidades
romanas. Dentre os povos bárbaros que estiveram presentes naquele território,
podemos destacar os hunos, alanos, godos, visigodos, entre outros. Em algumas
circunstâncias, observamos que os romanos fizeram alianças com tribos bárba-
ras para conterem outros invasores que ameaçavam o fragilizado Império. Foi
dessa forma que os visigodos permaneceram aliados aos romanos no início do
século V, contendo a ameaça de alanos e vândalos e, posteriormente, dos suevos
no final do século VI. Nesse contexto, segundo Saraiva (1995, p. 30), “os visigo-
dos não trouxeram consigo novas formas de organização ou novas técnicas de
Figura 2: Migrações na Europa entre os século II e VI, incluindo a região da Península Ibérica
Fonte: Wikimedia Commons.
Além das tribos germânicas, a região que compreende a Península Ibérica tam-
bém abrigou povos pertencentes a outras religiões, como judeus e muçulmanos.
Os judeus estiveram presentes nessa região em diferentes momentos da História,
muitas vezes, devido à diáspora (dispersão de um povo por motivos políticos e
religiosos). Segundo Azevedo (2008), em Roma, cresceu o ódio contra os judeus e,
por volta do ano 14 de nossa era, o judaísmo foi proibido em toda Península Itálica.
Os judeus também ocuparam a Península Ibérica, desde a ocupação romana, e
procuraram refúgio em estados cristãos quando foram perseguidos pelos árabes.
No final do século XV, os reis católicos de Castela e Aragão decretaram a
expulsão de todos os judeus de seu território. Procurados, ameaçados e perse-
guidos, caso os judeus não cumprissem a determinação da Coroa espanhola
em um prazo de no máximo quatro meses, poderiam ser condenados à morte
(AZEVEDO, 2008, p. 113). Com a determinação do reino espanhol, os judeus
se viram obrigados a migrar para Portugal, onde poderiam viver tranquilamente
sem nenhum tipo de perseguição.
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gente com capitais e com ofícios úteis. Contra um imposto per capita,
autorizou a sua presença transitória no Reino. Um provisório que quis
tornar definitivo. Apesar da cruel retirada das crianças às famílias e do
seu envio para São Tomé, os judeus não foram perseguidos nem expul-
sos (MATTOSO, 1997, p. 404).
Você sabia que o judaísmo é a religião monoteísta que possui o menor nú-
mero de adeptos no mundo? Apenas 12 a 15 milhões.
Fonte: Judaísmo (online).
que abriu espaço para que em muitos locais a população judaica oprimida
recebesse os mouros como libertadores”. Os muçulmanos permaneceram
cerca de oito séculos na Península, mas o domínio, de fato, teve uma dura-
ção variável em cada região, pois o poder ficava alternando entre islâmicos
e cristãos. Nesse contexto, observamos que, em 868, Porto e Braga foram
conquistadas, em 1064, Coimbra e, já durante o século XII, Lisboa. Em con-
trapartida, os espanhóis conviveram com a presença dos muçulmanos, entre
avanços e retrocessos, até 1492, quando resolveram negociar sua rendição
aos cristãos em Granada.
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também invasores
A convivência entre os invasores muçulmanos e os cristãos que habita-
vam a Península Ibérica dependia da aceitação ou não da religião islâmica.
Se os cristãos resolvessem abraçar a fé de Alá, eram tranquilamente aceitos
na comunidade muçulmana, com igualdade de direitos e deveres. Caso fos-
sem resistentes à conversão e mantivessem seus dogmas baseados na Igreja
Católica, teriam assegurada sua liberdade de culto, porém eram obrigados a
pagar impostos diferenciados, se possuíssem alguma propriedade. Em contra-
partida, se os cristãos lutassem contra os islâmicos, ficariam a mercê de serem
escravizados (MENEZES, 2010).
Figura 4: O Califado Omíada em seu auge no século VIII, incluindo a Península Ibérica.
Fonte: Wikimedia Commons.
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Com as levas de invasões
muçulmanas e, sobretudo,
bárbaras, que assolaram
tanto a Península Ibérica
como a Itálica, observamos
que a estrutura do mundo
Medieval sofreu grandes
transformações. A vida que
antes era concentrada nos
centros urbanos passou a
ser centralizada nos cam-
pos. Os indivíduos abastados
migravam para as suas pro-
priedades rurais, enquanto
a grande maioria, sem ter aonde ir, procurava sobrevivência e proteção nes-
sas terras. Teríamos, a partir desse momento, um processo em curso que foi se
organizando paulatinamente e ficou conhecido após um longo período como
Feudalismo. Segundo Saraiva (1995, p. 40), “nasciam poderes novos que se iam
moldando ao sabor das circunstâncias, poderes representados por chefes locais
entre os quais se estabelecia uma hierarquia nem sempre bem definida, interca-
lada de episódios de submissão e de rebeldia”.
É nesse contexto que observamos as origens de Portugal enquanto Estado
em curso, com sua organização política e administrativa. De acordo com as refle-
xões realizadas por Mattoso (2000, p. 08):
Segundo Pestana (2006), não existiam relatos que comprovassem a atuação efe-
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Dentre os feitos realizados por D. Afonso Henrique no processo de organização
do novo Reino, podemos destacar a luta travada contra cinco exércitos mouros na
Batalha de Ourique. Mesmo
contando com um número
reduzido de cristãos em seu
exército, D. Afonso Henrique
conseguiu destruir a ameaça
moura e assegurar os limites
de seu território. Nessa bata-
lha, D. Afonso garantiu ter se
defrontado com a presença
de “Cristo Crucificado”
que lhe mostrou a vitória
e, ainda, entregou-lhe as
“Quinas” (número de cha-
gas em seu corpo durante o
Calvário) (AZEVEDO, 2008,
p. 25). Prezado(a) aluno(a),
essa visão de D. Afonso nos
mostra como o sentimento
religioso será um dos ele-
mentos fundamentais de
formação do caráter do
Figura 5: D. Afonso Henrique, o 1º monarca de Portugal
homem luso. Fonte: Wikimedia Commons.
Sob o comando de D.
Afonso Henrique, pau-
latinamente, o Reino foi
expandindo seus limites
territoriais e “desenhando”
o que viria a ser Portugal
efetivamente. Após uma
estratégia bem elaborada,
contando com uma aliança
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cos, bárbaros e os mouros. Pestana (2008, p. 34) destaca que “na Idade Média, os
lusitanos adotaram a guerra como estilo de vida. Sua economia baseava-se, em
grande medida, na pilhagem. Podemos dizer que, por essa época, já era um povo
unificado pela língua e cultura, e organizado em torno do ódio aos inimigos”.
Já segundo as reflexões de Azevedo (2008), três culturas influenciaram de
forma contraditória a formação do reino lusitano: a cristã, a judaica e a islâ-
mica. A cristã foi oficializada ainda nos tempos áureos do Império Romano do
Ocidente, abraçando as camadas superiores e rurais da população. A islâmica,
por meio dos “mudéjares” (mouros que foram submetidos ao domínio cristão)
e “moçárabes” (cristãos que agiam como os árabes). E a judaica, mediante a pre-
sença do povo judeu na Península Ibérica desde o período romano e reforçada
pela postura de D. Afonso Henrique, que atribuiu aos judeus cargos administra-
tivos de suma relevância do Reino (AZEVEDO, 2008. p. 27).
Foi dessa forma que Portugal se organizou e despontou como o primeiro
Estado europeu “independente”, composto por povos de diversas culturas dis-
tintas. Para Azevedo (2008), mencionando Mattoso em suas reflexões, “o Estado
português, recém-fundado, caminha lentamente para a nação, isto é, os habitantes
de seu território só a pouco e pouco vão adquirindo a consciência de pertence-
rem a uma mesma e única comunidade humana, dotada de costumes, língua,
tradição [...]” (AZEVEDO, 2008, p.28).
Outro ponto relevante na formação do Estado lusitano está ligado à pos-
tura da nobreza. De acordo com os estudos realizados por Menezes (2010, p.
17) “um aspecto importante do processo de independência de Portugal relacio-
na-se ao poder efetivo da nobreza nos territórios reconquistados e ao grau de
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sionaram a migração de trabalhadores dos campos para as cidades. Em busca de
melhores condições de vida, o reino assistiu a um significativo êxodo rural que
intensificaria o problema de abastecimento alimentício. Por outro lado, deixa-
ria a nobreza do campo em uma situação delicada pela ausência de braços para
labutar nas pequenas áreas propícias para o cultivo. Em resposta a essa migra-
ção de camponeses, a nobreza tentou negociar com o monarca lusitano algumas
medidas que visavam reprimir a fuga de camponeses.
Segundo Pestana (2008, p.36), o Rei português logo tratou de promulgar
leis que impedissem a fuga dos camponeses. Em contrapartida, fingia não ver a
presença de homens oriundos do campo que vagavam pelas ruas dos vilarejos
e viviam em situação de miséria, muito semelhante àquela encontrada no meio
rural, porém não estavam submetidos às humilhações e aos duros castigos físi-
cos impostos pelos seus senhores. Desse modo, caso não encontrassem trabalho,
podiam se submeter à mendicância ou cometer pequenos delitos.
A falta de alimentos no Reino não era um problema recente, tendo aconte-
cido ao longo da Guerra de Reconquista. Naquele momento, a solução encontrada
foi saquear centros urbanos sob o domínio mouro. Entretanto, com as sucessivas
vitórias cristãs e, consequentemente, com a expansão dos domínios fronteiriços, o
recurso utilizado anteriormente não seria mais suficiente para abastecer as popu-
lações recém-conquistadas, as tropas lusitanas e os cruzados que se juntavam
paulatinamente às tropas portuguesas. Desse modo, tendo um nítido problema
de abastecimento, onde não havia solos suficientes propícios à agricultura e tendo
que suprir as necessidades alimentícias de uma população que estava em um está-
gio de crescimento significativo, a forma encontrada pelos monarcas lusos nesse
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exercida, sobretudo, por judeus.
Quanto às atividades comerciais relacionadas às feiras, segundo aponta Pestana
(2006), os mercadores lusos agiam como intermediários entre as grandes feiras
orientais e as feiras localizadas na Europa, como a feira de Champanhe (uma das
feiras mais conhecidas e importantes do cenário medieval europeu). A atuação dos
mercadores, paulatinamente, fortaleceu a feira de Champanhe durante o século
XIII, mas reforçou as dificuldades de locomoção por terra entre o Oriente e o
Ocidente. Diante dessa difi-
culdade, houve a necessidade
de abertura de novas rotas
marítimas. Nesse sentido,
os portugueses “passaram
da posição de intermediários
para distribuidores, o que
não significa que não tenham
continuado a existir, embora
de forma secundária, atraves-
sadores portugueses lidando
diretamente com produ-
tos importados do Oriente” Figura 6: Feira no período medieval
Fonte: UFRGS (online).
(PESTANA, 2006, p. 24).
O problema com o abastecimento dos gêneros de primeira necessidade foi um
dos aspectos mais difíceis de ser solucionado pelos Reis de Portugal, que busca-
ram sanar essa deficiência nas expedições ultramarítimas. Como já destacamos,
A ORGANIZAÇÃO DO
IMPÉRIO PORTUGUÊS
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Segundo Pestana (2006), o acordo matrimonial dos monarcas estabele-
cia regras de sucessão tanto do trono de Castela como o de Portugal. Perante o
documento, ficava legal que Dona Beatriz assumisse o trono lusitano, porém em
hipótese alguma a Coroa de Castela. Ainda, estabelecia que o filho mais velho
dos monarcas sucederia seu pai, D. João I, rei de Castela, e não o trono dos por-
tugueses. Todo esse impasse repercutiu negativamente em todas as esferas da
sociedade lusa, em que parte da nobreza e o restante da população não aceitavam a
aclamação de Dona Beatriz
por representar uma séria
ameaça à independência de
Portugal, tendo visto o sen-
timento de rivalidade que
nutria os dois Reinos desde
a guerra da Reconquista
(PESTANA, 2006, p. 25).
Com esse dilema de
ordem política, a única
solução encontrada foi
atribuir o trono à viúva de
D. Fernando, D. Leonor
Teles, que seria a regente
do trono em nome de sua
filha, D. Beatriz. Essa deci- Figura7: Dona Beatriz de Portugal
são da Coroa de Portugal Fonte: Wikimedia Commons.
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João teria que buscar apoio na nobreza e, ao
mesmo tempo, reprimir os setores que simpa-
tizaram com o avanço de Castela em Lisboa.
Além da nobreza, outros setores da socie-
dade também receberam maior atenção,
como os camponeses, que, mesmo antes de
D. João assumir o trono, já manifestavam um
apoio significante ao monarca. Para os cam-
poneses, o Rei, inicialmente, criou medidas
de incentivo, mas agiu de forma que limitasse
suas ações. A burguesia foi o estamento que
mais obteve privilégios nesse processo, pois
o incentivo às atividades comerciais seria a
Figura 9: D. João I, fundador da Dinastia de Avis
palavra de ordem do Estado português no Fonte: Wikimedia Commons.
século XV (PESTANA, 2006).
Resolvida definitivamente a questão da independência portuguesa
frente a Castela, renovada a nobreza, diante da tradição marítima acu-
mulada, da geografia favorável e da necessidade de buscar o mar o que
o solo não podia suprir, sob o governo de D. João I a cruzada contra os
infiéis foi retomada como forma de direcionar a belicosidade da velha
nobreza, afastando-a da tentação de remover do poder a dinastia de
Avis. Ao mesmo tempo, foi aberto caminho aos mercadores que com-
punham a nova nobreza em formação. Os lusos voltaram seus olhos
para o norte da África, dando início à expansão ultramarina. O próprio
filho do rei, o infante D. Henrique, foi encarregado de organizar a em-
preitada em nome do Estado. E foi assim que abriu-se passagem para
as especiarias chegarem diretamente à Europa (PESTANA, 2006, p.27).
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A Coroa encontrou nessa disposição a solução para remediar mais de um
empecilho ao mesmo tempo. Nesse sentido, o Reino conseguia resgatar o ide-
ário guerreiro dos nobres, dando sentido à sua existência enquanto estamento
social. Tal característica havia sido perdida com a desestruturação do mundo
medieval e com o fim dos conflitos entre os Reinos de Castela e Portugal. Dar
sentido à sua existência e justificar seu ideário bélico foi a solução encontrada
pelo monarca português, para conseguir apoio da nobreza nas descobertas
marítimas, ou seja, “o Estado transformou o que era oposição intransigente
em apoio incondicional, ao encobrir o caráter puramente comercial da emprei-
tada e vendê-la como uma epopeia dignificante em favor da propagação da fé
cristã” (PESTANA, 2006, p. 29).
Prezado(a) aluno(a), além das questões de cunho econômico, e não menos
importante, precisamos considerar que no imaginário lusitano foi propagado e
perpetuado uma ideia de combate ao inimigo da fé cristã. Os portugueses real-
mente acreditavam que eles foram o povo escolhido por Deus para extinguir a
ameaça dos infiéis e propagar a verdadeira fé, a dos cristãos da Igreja Católica.
Esse ideário que permeará o cotidiano dos lusitanos vai justificar uma série de
ações da Coroa portuguesa, como as descobertas além-mar, as políticas de colo-
nização, a escravização dos negros e a catequização dos indígenas na América
portuguesa, assim como nas possessões lusas na África e na Ásia. Temáticas que
serão tratadas ao longo deste livro.
O IMAGINÁRIO LUSITANO
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Segundo Antonio Sergio, dobrar o cabo se tornou uma preocupação frequente
para o Rei de Portugal. Mais do que vencer um ponto importante para a explo-
ração além da costa da África Ocidental rumo ao sul, também significava vencer
os medos que assolavam a mentalidade do navegador lusitano e os impediam
de realizar grandes feitos. Nesse âmbito, somas significativas foram investidas
pela Coroa, sem previsão de um retorno imediato, para vencer esse obstáculo e
prosseguir nas descobertas além-mar (SÉRGIO, 1983).
Dentre as tentativas que foram empre-
endidas, em 1433, D. Henrique solicitou
que preparassem uma caravela e destinou
seu comando a Gil Eanes, seu escudeiro.
O destino seria ultrapassar o tão tenebroso
cabo, mas a derrota ocorreu como de cos-
tume. No ano seguinte, mais uma vez, D.
Henrique organizou uma expedição rumo
ao cabo Bojador, porém, dessa vez, Gil Eanes
resolveu ser mais audacioso.
“decidiu-se enfim a abandonar
a costa, a rumar a oeste, a se-
guir a margem do lençol de es-
puma. Para lá, recomeçavam as
ondas do oceano Glauco; pela
popa, bem longe, a terra perde-
ra-se no horizonte em bruma;
D.Henrique à frente do “Monumento aos
e o piloto, vitorioso, rumou ao Descobrimentos” , como um navegador,
sul” (SERGIO, 1983, p. 45). segurando uma caravela.
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cor da pele dos africanos - “face queimada”. Essa característica “passou a ser asso-
ciada à negritude do demônio”. Nesse sentido, os lusitanos estabeleceram uma
postura de dominação e inferiorização sobre os povos africanos que justificaria,
posteriormente, escravizá-los, pois, “reduziram sua ‘raça’ à expressão do mal”
e esse mal precisava ser combatido de alguma forma (PESTANA, 2008, p.23).
Nesse aspecto, Holanda (2004) acrescenta, ainda, que o período explorató-
rio lusitano além-mar principalmente na Costa africana foi similar a uma grande
empresa exorcista: “dos demônios e fantasmas que, através de milênios, tinham
povoado aqueles mundos remotos, sua passagem irá deixar, se tanto, alguma vaga
ou fugaz lembrança [...]” (2004, p. 11). Por essas considerações podemos refletir
acerca da mentalidade do homem lusitano. O contato com o outro externalizou
um sentimento de superioridade frente aos outros povos, tanto no âmbito cultural
como no âmbito religioso. A dominação seria uma questão de tempo e de estra-
tégia, que seria muito bem traçada pelos portugueses na era dos descobrimentos.
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políticos e, além destes aspectos, justificava o ideário cruzadiço da Coroa de Portugal.
Nesse sentido, as navegações empreendidas na Costa da África foram o
primeiro passo dos lusitanos na corrida dos “descobrimentos”. Segundo Boxer
(2002), existiu uma harmonia de fatores de cunho econômico, religioso e polí-
tico, os quais nem sempre podem ser percebidos com a mesma intensidade.
Desse modo, em linhas gerais, as viagens portuguesas foram movidas por qua-
tro razões principais: as cruzadas contra o inimigo muçulmano, a corrida pelo
ouro da Guiné, a busca pelo lendário Preste João e, por último, a aquisição de
especiarias orientais (BOXER, 2002, p. 34).
A lenda do Preste João das Índias é muito antiga, pois Marco Polo já se refe-
ria a ela no seu diário de viagens. São vários e muito antigos os testemunhos
de que existiria no Oriente um rei cristão nestoriano chamado João, cujo
império estaria situado na Ásia, segundo uns, ou na África, segundo outros.
Os reis cristãos que combatiam o Islamismo fizeram várias tentativas para
contactar este importante aliado no Oriente, mas sem resultados.
Fonte: Infopedia (online).
O primeiro ponto destacado pelo autor diz respeito à motivação de cunho reli-
gioso e econômico. Combater os infiéis representava legitimar as ações bélicas
da nobreza, propagar a fé católica e assegurar sua soberania, como também
abria uma possibilidade econômica muito importante, por Ceuta ser um ponto
estratégico no comércio com o Oriente. O segundo item assinalado pelo autor
se justifica pela Coroa lusitana não possuir uma moeda de ouro nacional desde
1383 e se colocava como um dos poucos reinos da Europa nessa condição que
desfavorecia suas tramitações comerciais. Além desses fatores, não menos impor-
tante era a procura incansável pelo lendário Preste João. Segundo as lendas que
se propagavam pela Europa, Preste João era um príncipe cristão de um pode-
roso reino “nas Índias”, mais precisamente
na região da atual Etiópia. Os portugueses
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
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ultramarinas, o encaminhamento realizado pelos padres se resumia simplesmente
ao batismo. Não havia uma ação catequética organizada pelos religiosos, pois o
que interessava naquele momento era a “cura pastoral dos cristãos viajantes ou
dos cristãos colonizadores. Bastavam capelães para exercerem os serviços litúr-
gicos e conferirem os sacramentos aos fiéis cristãos” (KUHNEN, 2005, p. 85).
O estreitamento nas relações entre a Igreja Católica e a Coroa de Portugal
se deu por volta de 1450 em um cenário propício a ambas. Não houve desvan-
tagens, mas sim uma soma de interesses comuns. O papado se encontrava em
crise e existia uma necessidade de mudar essa situação e reaver seu prestígio,
principalmente na Europa. Para a Igreja, o despertar do espírito de cruzada sig-
nificava a chance de superar a crise e reafirmar sua soberania. Em contrapartida,
a política empreendida pelos Reis de Lisboa vinham ao encontro da estratégia
do papado. Segundo Kuhnen (2005, p. 68), “os monarcas portugueses souberam
explorar, com sabedoria diplomática, os elementos religiosos e cruzadistas de
sua empresa marítima, para conquistar os pontífices ao seu favor”.
É importante salientar a teoria de que a Coroa de Portugal já possuía moti-
vações no âmbito religioso no início da “era dos descobrimentos”, muito antes
dessa clara aproximação entre as esferas religiosas e laicas, isto é, entre a Igreja
de Roma e o Estado luso. A fé aos preceitos católicos e a guerra contra o infiel
era um motivador para os lusos desde os primórdios da expansão ultramarina.
Vale lembrar que os religiosos ocupavam as embarcações portuguesas desde a
conquista de Ceuta. Sendo assim, o Reino não precisou traçar nenhuma nova
estratégia para atender às solicitações do papado, mas apenas organizar e inten-
sificar sua política de expansão da fé e combate ao infiel.
Padrão dos Descobrimentos em Lisboa. Nesse monumento para homenagear os principais personagens
das Grandes Navegações portuguesas, encontram-se alguns importantes padres missionários como o jesuíta
Francisco Xavier, o dominicano Gonçalo de Carvalho e o franciscano Henrique de Coimbra.
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A aproximação entre as duas esferas pode ser claramente percebida nas bulas
papais que foram expedidas a partir de 1452. Por meio desses documentos, fica-
vam estabelecidos privilégios e deveres concedidos ao Império Português. Esses
breves papais agiam como uma força motivadora aos descobrimentos além-
-mar, porém o mais importante é que asseguravam ao reino a soberania dos
Oceanos, protegendo-os das ameaças de outras Coroas, principalmente da sua
rival, Castela (BOXER, 2002).
De acordo com as reflexões de Boxer (2002), as bulas papais mais impor-
tantes desse período foram: Dum diversas, de 18 de junho de 1452, a Romanus
pontifex, de 08 de janeiro de 1454 e a Inter caetera, de 13 de março de 1456.
A primeira bula papal assegurava à Coroa lusa o direito de conquistar ter-
ritórios e submeter os infiéis e inimigos da Igreja de Roma. Por meio desse
documento, os lusitanos poderiam escravizar os ditos infiéis, ou seja, aqueles
que se manifestassem contra os dogmas da Igreja Católica, como também povos
seguidores de outras religiões. Além de escravizar, poderiam capturar seus bens
e, ainda, as terras a eles pertencentes. Essa bula também garantia o direito vita-
lício a todas as possessões conquistadas na empresa marítima, afastando, dessa
forma, a ameaça de outros reinos (BOXER, 2002, p. 37).
A segunda bula representa a carta do imperialismo luso. O documento
retrata, inicialmente, os feitos do infante Dom Henrique desde 1419, seu zelo e
preocupação com os dogmas da Igreja Católica e seu combate aos inimigos da
verdadeira fé. Em linhas gerais, enfatizava a importância da bula anterior e estabe-
lecia o direito do Rei português de enviar religiosos e construir Igrejas nas terras
recém-descobertas (prática que os monarcas de Lisboa já desenvolviam). Além
dessas questões, esse breve papal estabelece que “todas as demais nações estão
estritamente proibidas de infringir o monopólio português das descobertas, con-
quista e comércio, ou de nele infringir de qualquer modo” (BOXER, 2002, p. 38).
A última bula em questão trazia à tona a confirmação das bulas anteriores e
determinava que “o grão mestre dessa ordem teria plenos poderes para nomear
os titulares de todos os benefícios, quer os do clero secular, quer os do regular,
impor censura e outras penas eclesiásticas, bem como exercer os poderes de bispo
nos limites de sua jurisdição” (BOXER, 2002, p. 39). Diante dessas determina-
ções, podemos afirmar que as bulas papais desse período refletiam a essência da
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“Era dos Descobrimentos” e nos ajudam a compreender o modo como os por-
tugueses iriam se colocar posteriormente na colonização da América.
A monarquia portuguesa sustentava uma aliança cheia de gratidão com
a Santa Sé por tê-la reconhecido como tal. As relações com a Santa Sé
se intensificaram a medida que as conquistas e descobertas iam acon-
tecendo. Com isso, os monarcas iam suplicando e requerendo a inge-
rência dos pontífices em assuntos do reino, especialmente nas viagens
marítimas (KUHNEN, 2005, p.67).
A presença dos religiosos nas colônias portuguesas era marcada por dificuldades.
O clero não era suficiente para desenvolver um trabalho evangelizador adequado.
Além disso, os padres não estavam preparados para conviver em territórios tão
inóspitos. Somado a isso, ainda, havia a árdua tarefa de impor os preceitos cató-
licos em detrimento das religiosidades dos nativos. Assim, a empreitada religiosa
nas possessões além-mar se desenvolveu den-
tro do limite de suas possibilidades.
Com a posse de D. João III (1521-1557),
nota-se uma mudança significativa na política
lusitana referente à evangelização das terras no
além-mar. O monarca se mobilizou e buscou
soluções e alternativas para que as populações
que ocupavam as colônias fossem assistidas
devidamente com os dogmas da verdadeira fé.
Nesse âmbito, por volta de 1538, foi
criada a Companhia de Jesus, que viria para
solucionar as deficiências no que concerne
à catequização dos povos além-mar. Essa
Instituição foi responsável pela evangelização
Figura 12: D. João III
das possessões portuguesas e se espalharam Fonte: Wikimedia Commons.
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Malaca (1558); Macau (1576); Funai (1588); Congo (1596); Angamale (1600);
S. Tomé de Meliapor (1606); Olinda (1676); Rio de Janeiro (1676); Maranhão
(1677); Pequim (1690); Nanquim (1690); Belém do Pará (1719); Mariana
(1745); São Paulo (1745). Para a nomeação dos titulares de cada uma dessas
dioceses, seguia-se um processo complexo que se manteve durante o perí-
odo da união ibérica.
Fonte: Gonçalves (online).
EM BUSCA DE RIQUEZAS
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quanto nas suas possessões além-mar ao longo dos séculos seguintes. Além disso,
a Coroa compreendeu que esse comércio poderia servir como agente financiador
das expedições lusas nas incursões marítimas, pois os lucros resultantes desse
comércio eram significativos e os Reis portugueses precisavam de recursos para
manter sua empresa náutica viva.
Os escravos provinham originariamente de ataques, primeiro aos
acampamentos tuaregues do litoral saariano e depois às aldeias negras
da região do Senegal. Muitas vezes dirigidos contra grupos de famí-
lias desarmadas ou aldeias indefesas [...]. Mas depois de alguns anos de
contato com as populações negras da Senegâmbia e da alta Guiné, os
portugueses compreenderam que podiam obter escravos de maneira
mais fácil e mais conveniente por meio de trocas pacíficas com os che-
fes e mercadores locais. Nunca faltaram, naquele tempo e mais tarde,
africanos dispostos a vender seus semelhantes a traficantes europeus,
quer fossem criminosos, prisioneiros de guerra ou vítimas de feitiçarias
(BOXER, 2002, p. 40-41).
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A política escravista empreendida pelo Reino não foi alvo de discussões do
papado. Nos relatos do período, a escravidão negra não foi em nenhum momento
questionada, pois a exploração dos homens fazia parte das relações humanas.
Notaremos esse tipo de discussão e contestação a partir do século XVIII no Brasil,
que iria desembocar em um processo abolicionista no XIX. Nesse âmbito, a Igreja
de Roma, ao invés de combater e repudiar a política escravista da Coroa lusa,
acabou por criar condições e mecanismos para legitimá-la como um aspecto
natural da vida em sociedade. Tal discussão pode ser observada nas bulas e bre-
ves papais entre 1452 e 1456, que, além de autorizarem essa postura, permitiam
que os monarcas de Lisboa subjugassem os povos que residiam nos territórios
conquistados (BOXER, 2007, p. 45).
Além dos recursos financeiros oriundos do sistema escravista, a Coroa
também teve que contrair empréstimos com banqueiros italianos, com mer-
cadores estrangeiros e dos judeus que residiam em Portugal, por causa da
carência de recursos que o Reino possuía para investir nas expedições ultra-
marítimas. As negociações firmadas com os judeus se intensificaram no final
do século XV, quando sofreram uma série de perseguições e tiveram que aban-
donar a Espanha e procurar refúgio no Reino luso. A partir desse momento,
o monarca D. João II acolheu os judeus, porém sempre que necessário obri-
gava-os a investir na empresa náutica portuguesa. Caso houvesse uma recusa,
poderiam ser perseguidos ou mesmo ter seus bens confiscados. Esses investi-
mentos foram de suma relevância para o descobrimento da rota para as “Índias”
(PESTANA, 2006, p. 39-41).
para outros Reinos. Todavia, toda essa precaução por parte da Coroa lusa não
dispensava a contribuição de estrangeiros na construção dessas embarcações
(CORTESÃO, 1960).
A Coroa portuguesa elaborou nesse período uma série de medidas a
fim de guardar o segredo das caravelas. Dentre essas medidas, buscou man-
ter os homens responsáveis pela construção dessas embarcações proibidos
de servir outros Reinos, pois o segredo poderia ser revelado e a superiori-
dade lusa nos mares ameaçada. Desse modo, capitães, pilotos, cosmógrafos
e cartógrafos estavam terminantemente proibidos de servirem outras Coroas
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e, caso infringissem essa determinação, estavam sujeitos a rígidas penas
(CORTESÃO, 1960).
Por volta de 1476, a política de sigilo náutica portuguesa foi brutalmente
ameaçada com a traição do genovês Antonio da Noli - que feito prisioneiro
pelos espanhóis nas terras africanas pertencentes a Portugal, em troca de sua
liberdade, prestou serviço a outra Coroa. Noli repassou informações à Espanha
sobre os meios náuticos, as estratégias e mecanismos utilizados no comércio
luso (ANDRADE, 1972, p. 31). Mediante esse incidente, o Reino lusitano bus-
cou intensificar a política de sigilo marítimo, visto que prezava pela soberania
das descobertas além-mar. Essa política era de domínio público, pois o próprio
povo português compreendia a importância desse sigilo quanto ao sucesso da
abertura de rotas e, consequentemente, das relações comerciais que poderiam
ser estabelecidas (CORTESÃO, 1960, p. 29).
O incidente causado pela traição de Antonio da Noli nos ajuda a com-
preender a preocupação dos monarcas lusos quanto a sua política de sigilo
náutico e nos mostra outra fragilidade. Mesmo com a emissão de uma série
de bulas papais que asseguravam as descobertas territoriais realizadas pela
Coroa de Portugal, isso não representava que os portugueses estivessem pro-
tegidos contra investidas de outros Reinos, sobretudo dos espanhóis. E é nesse
contexto que também destacamos a importância da criação do “Padroado
Régio”, pois viria para fortalecer e garantir a soberania de Portugal na “Era
dos Descobrimentos”.
RUMO AO ORIENTE
Após o conhecimento da
Costa da África e com os
recursos obtidos por meio
do comércio estabelecido
com as tribos africanas,
sobretudo oriundos do
comércio aurífero e de escra-
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Passados tantos tormentos, a combalida frota de Vasco da Gama, ou o
que sobrou dela, aportou em Lisboa em 18 de setembro de 1499, dois
anos e três meses depois da partida, trazendo muito gengibre, pimenta
e canela. Essa carga possibilitou aos aplicadores um lucro de 4.000%
sobre o valor investido na viagem, acirrando ainda mais a ambição
desmedida dos portugueses. Relevando o alto preço pago em vidas hu-
manas, a Coroa intensificou a política dos descobrimentos de novas
rotas comerciais que garantissem a Portugal lucros superiores aos obti-
dos, nem que para isso fosse necessário dominar as cidades mercantis.
Aberto o caminho marítimo para o Oriente, nascia a famosa e lucrativa
Carreira da Índia, que consistia na viagem anual de Lisboa até a cidade
de Goa, representando a principal fonte de renda da Coroa. Em poucos
anos, a chamada “pimenta do reino” tornou-se o produto mais exporta-
do de Portugal para os demais países europeus, alterando significativa-
mente o panorama do velho continente (PESTANA, 2006, p. 112-113).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerações Finais
58 UNIDADE I
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Observamos, também, nesta primeira unidade, que as viagens lusitanas
foram motivadas, de maneira geral, por quatro razões principais: as cruzadas
contra o inimigo muçulmano, a busca pelo ouro africano, a procura incansável
pelo lendário Preste João e, por último, a aquisição de especiarias no Oriente,
que resultaria em grandes lucros aos cofres da Coroa portuguesa.
Todavia, como um país tão pequeno conseguiu alcançar feitos tão grandio-
sos? Dentre os fatores que favoreciam a supremacia lusa nas incursões marítimas,
podemos destacar: uma posição geográfica favorável, em que poderiam nave-
gar tanto pelo Mediterrâneo como pelo Atlântico; uma centralização precoce do
Estado comparada às outras Coroas que ainda apresentavam resquícios feudais;
ausência de conflitos externos e internos, visto que Portugal já havia delineado
suas fronteiras junto a sua rival Castela; espírito cruzadiço que possibilitou uma
aliança entre o Estado e o papado por meio da criação do “Padroado Régio” que
assegurava as aquisições lusas além-mar e incansáveis investimentos na tecno-
logia náutica.
Após concluirmos esta importante etapa do nosso estudo, passaremos, a
seguir, à análise da chegada da Coroa portuguesa à América, aos primeiros
contatos estabelecidos entre lusos e habitantes da terra, à colonização das terras
brasílicas e, não menos relevante neste processo, à evangelização dos “negros da
terra”. Esse conjunto de fatores nos auxiliará na compreensão da política de colo-
nização empreendida da América portuguesa.
Está preparado(a)? Vamos lá!
Por meio do estudo desta Unidade e com uma análise minuciosa do trecho docu-
mental acima, elabore um texto dissertativo, levando em consideração:
a. As expedições portuguesas além-mar.
b. O contato com outras civilizações.
61
O QUE É MERCANTILISMO?
O mercantilismo não constitui uma dou- no país. Os estados eram tanto mais ricos
trina econômica coerente e fixa, mas antes e tanto mais poderosos, quanto mais ouro
um conjunto de medidas práticas de polí- e prata neles circulavam [...]
tica econômica ou de teorias baseadas no
princípio chamado “crisohedónico”, ou seja, A corrente ibérica do mercantilismo, tam-
no princípio que afirma a proeminência da bém designava metalismo ou bulionismo, é
riqueza monetária. Deste princípio, que se a mais antiga e a mais rudimentar. Segundo
enraizou nos espíritos durante três séculos esta corrente, para se conseguir aumentar
(XVI, XVII e XVIII), derivaram as tendências o máximo as reservas monetárias dever-se-
fundamentais para o estatismo econômico, -ia agir directamente sobre os movimentos
coerente com a teoria política da centraliza- dos metais preciosos, dificultando-lhes
ção dos poderes e do nacionalismo; para as a saída e promovendo a sua entrada no
políticas da balança do comércio favorável país. Os processo práticos para se obter
e da organização industrial e comercial e, esta finalidade consistiam na pura e sim-
finalmente, para a oposição dos interesses ples interdição da exportação de moeda,
nacionais, com o consequente exclusivismo por vezes punida com a pena de morte, ou
marítimo e colonial [...]. na aplicação das duas seguintes regras que
se completavam: 1, os navios que largassem
As origens do mercantilismo, no seu duplo dos portos nacionais com cargas destina-
aspecto de política econômica e de con- das a portos estrangeiros eram obrigados a
cepção doutrinal, acham-se intimamente trazer na torna-viagem uma quantidade de
ligadas à história nacional. Foram os des- numerário equivalente ao valor atribuído
cobrimentos marítimos de portugueses a essa carga; 2. os navios que trouxessem
e espanhóis que provocando uma trans- para os portos nacionais mercadorias de
formação profunda nas condições dos origem estrangeira eram obrigados a levar
países ibéricos, fizeram surgir nos espíritos em mercadorias parte do produto da venda
à ideia da supremacia da riqueza mone- de sua carga. A conjugação destas duas
tária, sobretudo a partir do século XVI. A regras, dificultando a saída de numerário
constituição do vasto império português, e facilitando a sua entrada, levava ao alme-
absorvido em 1580 no ainda mais vasto jado fim de aumentar o “stock” monetário
império espanhol de Felipe II, e o espe- do Estado e, consequentemente, promo-
táculo de grandeza e opulência nunca via o engrandecimento nacional. Foi esta a
vistas que este último ofereceu à Europa política econômica, aliás sem grande repre-
[...]. O ideal desta corrente de ideias era de sentação doutrinal, que o Império espanhol
procurar por diversas formas aumentar a amplamente praticou durante grande parte
quantidade de numerário em circulação dos séculos XVI e XVII.
Fonte: Magalhães (1967, p. 144-146).
MATERIAL COMPLEMENTAR
A COLONIZAÇÃO DOS
II
UNIDADE
TRÓPICOS PORTUGUESES
Objetivos de Aprendizagem
■ Compreender a chegada dos portugueses ao Brasil, analisando os
contatos iniciais entre lusitanos e indígenas.
■ Discutir os motivos pelos quais a colonização do Brasil aconteceu de
forma tardia.
■ Entender a política de povoamento desenvolvida pela Coroa de
Portugal.
■ Observar a organização do Governo Geral pautada tanto nos
aspectos econômicos como nos religiosos.
■ Refletir acerca da importância da indústria açucareira.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■ A chegada à América e o encontro com o desconhecido
■ As Capitanias Hereditárias
■ O Estabelecimento do Governo Geral
65
INTRODUÇÃO
Introdução
66 UNIDADE II
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A CHEGADA À AMÉRICA E O ENCONTRO COM O
DESCONHECIDO
Segundo Bueno (1998), na Nau Capitânia, que seria comandada pelo chefe
da expedição Pedro Álvares Cabral, seguiam sua guarda pessoal, contendo sete
besteiros, “cerca de 80 marinheiros e 70 soldados, aos quais somavam 33 outros
passageiros, entre eles sete serviçais, dois degredados, oito frades francisca-
nos e oito intérpretes”. Também ocupavam a Nau Capitânia, funcionários que
ficariam responsáveis pela feitoria de Calicute, o nobre Aires Correia e o escri-
vão ou mesmo o contador Pero Vaz de Caminha. “Ao todo, havia cerca de 190
homens a bordo do navio” (BUENO, 1998, p. 22-23). Somada a esses homens,
havia uma multidão de artesãos, carpinteiros, calafates e tanoeiros, indispen-
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sáveis para o sucesso das viagens marítimas. Só não observamos a presença de
mulheres, pois poderiam despertar tentações carnais nos marinheiros e por
representarem um “mau agouro”, salvo exceções quando eram destinadas aos
projetos de colonização lusitana.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
portuguesa já conhecia empiricamente. Essa “certeza” lusitana decorria de uma
série de expedições realizadas em décadas anteriores no Oceano Atlântico.
Segundo o autor, outras hipóteses são levantadas e analisadas por estudiosos
do período. Dentre as versões mais recentes, uma está relacionada à confec-
ção de mapas chineses de 1421, que retrata os contornos precisos da América.
Porém o Império chinês não investiu na exploração das possessões americanas
pela ausência de recursos econômicos e mesmo pela deficiência de homens que
essa empresa demandava. Dessa forma, segundo Pestana (2008, p. 162-166), o
Estado chinês priorizou a segurança de suas fronteiras ao invés de se lançar às
explorações marítimas.
Todavia, quem teria sido o primeiro lusitano a chegar ao Brasil? Já é con-
senso entre os estudiosos e até superada a hipótese que Cabral foi o primeiro
português a desembarcar no Brasil (PESTANA, 2008). Segundo Pereira (2010),
outro navegador luso esteve na Costa brasileira antes da “descoberta” oficial em
1500. Seu nome é Duarte Pacheco Pereira e foi responsável pelo primeiro mape-
amento das terras brasílicas desenvolvido em 1498.
Tudo indica que, ao contrário de Cabral, cuja missão era tomar
posse oficial do Brasil antes de ir para a Índia, Duarte Pereira Pa-
checo preservou o segredo envolvido nas atribuições concedidas
pela Coroa. Por outro lado, fez anotações geográficas que pudessem
comprovar a primazia do Descobrimento e divulgou a informação
somente em data oportuna, durante o breve período em que este-
ve repousando em Lisboa, antes de assumir a responsabilidade de
caçar piratas franceses que ameaçavam a rota da Índia (PESTANA,
2008, p. 169).
Figura 16: Planisfério de Cantino (1502), um dos primeiros mapas ainda existentes mostrando o território
do Brasil. A linha do Tratado de Tordesilhas também está representada
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Fonte: Wikimedia Commons.
Nesse sentido, as primeiras impressões que os lusitanos possuíram dos nativos que
ocupavam aquelas terras foi relatada pelos cronistas do período como um encon-
tro de grandes proporções. Segundo Souza (1999, p. 95),
“o grande encontro histórico do mundo europeu com o mundo do ín-
dio foi antes de tudo um ritual de reconhecimento entre duas psicolo-
gias com a capacidade de gerar fortes emoções”. O autor destaca que as
narrativas dos primeiros viajantes traziam a tona essa “perplexidade”
e ofereciam esta cosmogonia: “dramaturgia de novas vidas ou espelho
de novas possibilidades, tal era o espírito de todas elas, enunciando
e formulando o direito de conquistar dos desbravadores portugueses”
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Hans Staden foi um aventureiro alemão que na sua segunda vinda ao Brasil
caiu nas mãos de uma tribo de antropófagos. Aprisionado no litoral de São
Paulo, descreve em prosa vivaz os costumes indígenas bem como as várias
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tentativas de fuga até seu retorno final à Europa. André Thevet promoveu o
primeiro registro da fundação da França Antártica, em 1555, obra de Ville-
gagnon que construiu o Forte Coligny na baia de Guanabara para servir de
base de apoio ao seu projeto de colonização de toda a região. Jean de Léry,
chegou aos trópicos na companhia de pastores hunguenotes que vieram
irmanar-se na colônia fundada por Villegagnon na baia de Guanabara. Sua
aproximação com os tupinambás terminou por render o melhor ensaio et-
nográfico sobe os indígenas do Brasil.
Fonte: Schilling (online).
Para os nativos que ocupavam o Novo Mundo, tudo era novidade. Segundo Pereira
(2010), o universo europeu que havia desembarcado nos trópicos trazia consigo
uma gama de surpresas: “os navios, as roupas, as armaduras dos soldados, as
armas, as barbas, a cor da pele, tudo lhes parecia estranho e absolutamente novo”
(PEREIRA, 2010, p. 52). Seria como se hoje fossemos surpreendidos por civiliza-
ções totalmente diferentes da nossa, tanto em aspectos físicos como tecnológicos.
Além da presença de grupos humanos tão distintos ao olhar europeu, não
podemos nos esquecer de mencionar as características da fauna e flora dos tró-
picos. As primeiras impressões eram de deslumbramento. O clima era muito
agradável, a variedade de plantas e flores era surpreendente, a quantidade de
pássaros e a qualidade das águas chamavam a atenção dos primeiros lusitanos
que desembarcaram nas terras brasílicas. Esse universo era totalmente diferente
daquele que estavam acostumados no velho mundo (PEREIRA, 2010, p. 50).
Essas impressões ficam evidentes no relato de Vespúcio (Vespúcio 1984 p.89
apud PEREIRA, 2010):
Outro dado interessante acerca das terras tropicais está relacionado ao clima pri-
maveril que possibilitava uma vida saudável, livre das principais enfermidades
que abatiam o homem europeu. Nesse aspecto, destaca Gandavo (2008, p. 70-71):
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O país que hoje habitamos nem sempre foi conhecido por seu nome: Brasil.
A partir dos primeiros contatos estabelecidos nas terras tropicais, outros no-
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mes serviram para designar os trópicos portugueses. Pero Vaz de Caminha
e alguns italianos utilizaram o termo “Vera Cruz”. O nome “Terra dos Papa-
gaios” também serviu para se referir à colônia lusitana. Quando o monarca
de Portugal oficializou o achamento destas terras junto a Coroa espanhola
em 1501 o nome escolhido foi “Santa Cruz”. Só por volta de 1512 o termo
“Brasil” começou a designar as terras portuguesas, consagrando-se oficial-
mente a partir de 1516.
Fonte: Souza (2013, p. 21-28).
O ÍNDIO DE CAMINHA
Na sexta-feira, 24 de abril de
1500, o escrivão Pero Vaz de
Caminha a bordo da esqua-
dra de Cabral registrou
minuciosamente as carac-
terísticas físicas dos naturais
da terra. Segue o excerto da Figura 19: A Primeira Missa no Brasil
carta abaixo: Fonte: Wikimedia Commons.
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tos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Não
fazem o menor caso de encobrir ou de mostrar suas vergonhas; e
nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam
os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e ver-
dadeiros [...]. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que
lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrez, ali
encaixado de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no
comer ou no beber. Os cabelos seus são corredios (CAMINHA, 2009,
p. 95, grifos nossos).
Caro(a) acadêmico(a), observe que nos dois trechos acima a nudez merece des-
taque. É importante compreender que a nudez indígena neste primeiro momento
é vista como um elemento natural, que se confunde com a natureza do local.
Ela também é encarada como um aspecto da inocência desses povos. Mesmo
despidos, comportam-se de maneira natural, sem manifestar nenhum tipo de
constrangimento ou vergonha de estarem expondo suas intimidades. A beleza
das índias e a limpeza de seus corpos também chamam a atenção de Caminha
ao longo de seus relatos.
Segundo Del Priore (2010), a nudez não era novidade para os portugueses.
A autora destaca que os lusitanos estavam familiarizados com a nudez de algu-
mas tribos africanas, por exemplo: os etíopes. Os portugueses se deparavam com
essas populações quando faziam suas incursões à África ao longo do século XV
( PRIORE; VENANCIO, 2010, p. 19).
Ainda nesse âmbito de discussão e não menos importante, colocaremos
em destaque as observações realizadas por Pereira (2010). De acordo com sua
análise, Caminha possuía uma preocupação acerca da genitália masculina dos
ameríndios. Em alguns trechos de seu relato, ele expõe que “suas vergonhas, as
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quais não eram fanadas”. Entretanto, seguindo a reflexão do autor em questão, era
necessário desvendar, em primeiro lugar, o significado da palavra “fanado” para
compreendermos o contexto desse relato e sua relevância. Nesse sentido, Pereira
(2010) nos esclarece que fanado está relacionado ao significado de: cortar, aparar.
E que, desse modo, Caminha quer demonstrar ao monarca de Portugal que esses
naturais da terra não tiveram nenhum contato com judeus ou mouros, visto que a
circuncisão era uma característica típica da tradição religiosa dessas populações.
Além das características físicas dos ameríndios, Caminha também se ocu-
pou de relatar os primeiros contatos firmados entre nativos e portugueses. Em
carta de 23 de abril, ele destaca: “Deu-lhes somente um barrete vermelho e uma
carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro preto. Um deles deu-
-lhe um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha pequena
de penas vermelhas e pardas como um papagaio [...] (CAMINHA, 2009, p. 93).
Esses pequenos gestos demonstram a forma pacífica de aproximação, mas, além
disso, revela-nos as primeiras trocas de objetos entre dois mundos tão distin-
tos. Podemos observar, também, que os nativos, de certa forma, estavam dando
boas vindas aos “visitantes” lusitanos.
Outro ponto que podemos destacar para enfatizar o caráter pacífico desse pri-
meiro encontro foi escrito por Caminha em 30 de abril. Nesse relato, observamos
a familiaridade com que os indígenas se comportavam em meio aos portugueses:
Comiam conosco do que lhes dávamos. Bebiam alguns deles vinho; ou-
tros o não podiam beber. Mas parece-me que se lhos avezarem o beberão
de boa vontade. [...] Acarretavam dessa lenha quanta podiam, com mui
boa vontade e, levavam-na aos batéis. Andavam já mais mansos e seguros
entre nós do que nós andávamos entre eles (CAMINHA, 2009, p. 113).
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da terra viviam nos trópi-
cos. Nesse âmbito, descreve:
“eles não lavram, nem criam.
Não há aqui boi, nem vaca,
nem cabra, nem ovelha,
nem galinha, nem qualquer
outra animália, que costuma
seja ao viver dos homens”
(CAMINHA, 2009, p. 114).
E acrescenta dizendo que
se alimentam de um tipo
de inhame que a terra pos-
suía em abundância e de
frutos que as árvores lança-
vam. Isso representa afirmar
que os indígenas possuíam
um modo de vida totalmente
diferente do homem europeu.
Como já mencionamos no início de nossa análise, o respeito que os indíge-
nas demonstraram perante a realização das cerimônias religiosas cristãs fez com
que Caminha destacasse em seus relatos a importância de salvação dos naturais
da terra. Caminha acreditava que os índios não possuíam nenhum tipo de reli-
gião e destacava a importância de serem assistidos com os preceitos da Igreja
Católica de Roma. Em carta ao monarca lusitano, destaca:
Cabral e seus conselheiros foi deixar dois degredados no Brasil. Esses ficaram
encarregados de aprender a língua falada pelos indígenas e averiguar a possi-
bilidade de recursos que poderiam ser explorados pela Coroa, principalmente
na busca de ouro e prata. Enquanto seguiam sua viagem para a Índia, enviaram
navios à metrópole com a carta que relatava o “achamento das novas terras” a
oeste da Costa da África (CAPISTRANO, 1963).
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Os portugueses tiveram contato, inicialmente, com tribos indígenas que
ocupavam o litoral brasileiro. Esses nativos dividiam-se em grupos étnicos:
• Carijós ou Guaranis: fixados nas proximidades e ao sul da Capitania de
São Vicente.
• Tupinambás ou Tupis: ocupavam a região que hoje é o Estado do Rio
de Janeiro, a costa da região nordeste, entre o Rio São Francisco e o Rio
Grande do Norte.
• Tupiniquins: ocupavam o resto do litoral.
• Potiguar: grupos de guerreiros poderosos que ocupavam a região que
hoje compreende o Rio Grande do Norte.
• Caetés e Tabajaras: ocupavam a região que hoje é o Estado de Pernambuco.
Fonte: Pestana (2008, p. 174-175).
Eis aqui uma questão intrigante: por que o Rei de Portugal demorou tanto
tempo para notificar as outras Coroas da Europa sobre o seu novo “descobri-
mento”? Nesse viés, podemos considerar duas hipóteses. Primeiro, o Rei luso
poderia ter aguardado o retorno da esquadra de Cabral para coletar informações
mais precisas sobre o novo território e, a partir disso, organizar uma estratégia
para explorar as novas terras. Segundo, o monarca poderia estar protegendo sua
nova conquista de possíveis invasões empreendidas por outras Coroas, visto a
fragilidade que o Tratado de Tordesilhas representava.
Enquanto se não fixaram, por comum acordo ou direito adquirido,
os limites da esfera de acção dos dois Estados em competência, mui-
tas das explorações ou tentativas de colonização tomavam recípro-
camente um aspecto suspeito e, por conseqüência, secreto (CORTE-
SÃO, 1969, p.40).
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Nessa primeira expedição de reconheci-
mento das terras recém-descobertas, também
temos acesso aos registros realizados por
Pau-brasil
Américo Vespúcio (1501) que, após estabe-
lecer um contato mais próximo com os nativos, narrou uma série de informações
relevantes acerca dos ameríndios. Assim, destaca:
Son gente que vive muchos anos, porque según sus descendências co-
nocimos muchos hombres que tienem hasta la cuarta generación de
nietos. No saben contar los días ni el año ni los meses, salvo que miden
el tiempo por meses lunares, y quando quierem mostrar la edad de
alguna cosa lo muestran com piedras, poniendo por cada luna uma
piedra, y encontré un hombre de los más viejos que me señalo com
piedras haber vivido 1700 lunas, que me parece son 130 años, contando
trece lunas por año (VESPUCCIO, 1963, p. 542).
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sua vez contribuíram para aumentar sua capacidade de resistir aos europeus”
(WEHLING, 2005, p. 45).
Frei Vicente de Salvador destaca que os objetos ofertados pelos portugueses
possibilitaram aos indígenas uma melhoria substancial na realização de tarefas
em seu cotidiano. Isto é, com as facas, machados, foices, anzóis e tesouras, os
índios puderam desenvolver pequenos trabalhos que antes demoravam muito
tempo, pelo método precário que utilizavam. Nesse sentido, Salvador (1982, p.
79) pontua: “fazem suas lavouras e todas as mais coisas com muito descanso,
pelo que os devem de ter em muita estima”.
Caro(a) aluno(a), essas afirmações são de suma relevância para compre-
endermos as primeiras relações de trabalho firmadas entre naturais da terra e
portugueses. Como Salvador (1982) ressaltou, os indígenas viram na posse das
ferramentas uma melhoria na execução de suas tarefas. Diante disso, ofereceram
sua força de trabalho em troca dos objetos que facilitaram seu dia a dia, porém,
quando conseguiam aquilo que almejavam, perdiam o interesse pela labuta.
Além disso, não podemos esquecer de que o escambo também foi realizado por
outras vias. Os portugueses, quando precisavam de alimentos, direcionavam-se
às aldeias dos nativos e, em troca, deixavam seus objetos.
Todavia, as relações estabelecidas entre indígenas e lusitanos não se limitaram
ao convívio pacífico marcado por meio do escambo. Segundo Holanda (1981),
certamente ocorreu algum tráfico de escravos nos primeiros anos de explora-
ção dos trópicos portugueses. O autor menciona que uma embarcação chefiada
por Loronha e alguns sócios, que partiu da metrópole em 1511, retornou do
Brasil com uma carga composta de “pau-brasil, escravos, gatos, tuins, saguis e
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não tinha condições financeiras nem humanas para realizar o comércio de espe-
ciarias no Oriente e a exploração intensa das terras brasílicas ao mesmo tempo.
Diante dessa fragilidade, conferiu a particulares esse papel.
A partir de 1516, a Coroa portuguesa começou a conviver com um problema
que se agravava cada vez mais. Considerou-se a presença de estrangeiros como
uma grande ameaça às possessões portuguesas na América, principalmente os
franceses que estiveram presentes nos trópicos portugueses já em 1504. Assim
como os portugueses, iniciaram a extração da madeira com o apoio dos indígenas
(tupinambás) e se lançaram ao comércio europeu, obtendo somas representativas,
visto que eram isentos da taxação de impostos, permitindo que comercializassem
mais barato nos mercados internacionais. Diante dessa ameaça, D. Manuel, para
assegurar suas terras, sistematizou uma política de proteção da colônia, segundo
a qual, de dois em dois anos, um capitão do mar se dirigia a região litorânea para
rechaçar os invasores (CORTESÃO, 1969, p. 57).
[...] a atividade comercial dos franceses deve ter sido intensa, pois o
governo português fez diversos protestos à corte francesa antes de 1516
e enviou ao Brasil, nesse ano, a expedição “guarda-costas” de Cristóvão
Jaques. Na década de 1520 continuaram incursões francesas, como as
de Parmentier (1520), Roger (1521), Verrazano (1522) e outros. Uma
nova expedição de Cristóvão Jaques circulou pela costa entre 1526 e
1528, conseguindo deter alguns navios franceses. A extensão do litoral
e o bom entendimento que os comerciantes franceses já tinham com os
indígenas deram, porém, caráter meramente paliativo a essa repressão
(WEHlING, 2005, p. 46).
no âmbito colonial. O monarca havia percebido que a única saída para assegu-
rar a posse de suas terras na América seria povoá-las. Para que isso acontecesse,
houve a necessidade de desenvolver um projeto de povoamento nas possessões
coloniais, algo que seria realizado paulatinamente a partir do envio de Martim
Afonso de Souza ao Brasil.
AS CAPITANIAS HEREDITÁRIAS
As Capitanias Hereditárias
90 UNIDADE II
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tomada de Ceuta, em 1415, e intensificaram em níveis representativos a partir
da “Carreira das Índias”, no início do século XVI. Também podemos destacar
que um expressivo número de homens que se aventuravam nas incursões marí-
timas portuguesas morria em naufrágios (algo que era muito comum nesse
período), ou mesmo decidia permanecer nas possessões lusas além-mar e aca-
bava não retornando ao Reino.
A Madeira foi o primeiro Arquipélago colonizado: a meio do século
XV contava a ilha principal mais de 3000 mil habitantes, enquanto Por-
to Santo ainda só era uns 160 a 200 ao cobrir a era quinhentista. A
meio do século XVI a Madeira atinge 20000 habitantes, dos quais 3000
escravos, com densidade de 23 por Km2 (contra 14 a 15 na metrópole)
[...]. Nas cidades marroquinas-portuguesas, há, na primeira metade do
século XVI, uns 5000 homens de armas, e a população portuguesa deve
orçar por 25000 habitantes [...] (GODINHO, 1971, p. 45).
O Rei de Portugal D. João III organizou uma esquadra, em 1530, composta por
cinco navios, ocupados por 400 homens, nos quais se faziam presentes capi-
tães, fidalgos, pilotos, mestres, interpretes, degredados e armamento bélico, caso
precisasse rechaçar alguma embarcação estrangeira (LUÍS, 1976, p. 15-16), e
designou Martim Afonso de Souza como capitão-mor e chefe da missão, incum-
bindo-o de uma série de tarefas. Dentre as quais, três se destacam: promover o
povoamento das terras coloniais, verificar os limites fronteiriços que o Tratado
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As Capitanias Hereditárias
92 UNIDADE II
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da região litorânea que foram estabelecidas por iniciativa de particulares oriun-
dos da metrópole. Além desse problema, também não conseguiu fundar vilas
coloniais, mas apenas pequenos núcleos populacionais não organizados. Tanto
no primeiro ponto que destacamos quanto no segundo, compreendemos que
o capitão-mor de D. João III não possuía condições, sobretudo econômicas, de
superar esses obstáculos presentes na colônia.
O capitão-mor percorreu ao longo de dois anos a Costa brasileira e obteve
dados geográficos importantíssimos. Esteve em Pernambuco e solicitou a explo-
ração do litoral nordestino até o Maranhão. Suas experiências foram registradas
no “Diário de Navegação”, escrito por Pero Lopes de Sousa, relevantes para o
conhecimento do território. Encaminhou uma expedição ao Rio de Janeiro e
outra no litoral sul de São Paulo. Também esteve na região que hoje compre-
ende o Estado do Paraná, onde foi atacado por algumas tribos indígenas. O
capitão-mor também se envolveu em vários conflitos contra os navios france-
ses que, desobedecendo a um acordo Real firmado entre as Coroas da França e
de Portugal, frequentavam livremente a região litorânea, tornando-se cada vez
mais resistentes. Os franceses comumente atacavam e saqueavam as feitorias
portuguesas, estimulavam conflitos intertribais e contrabandeavam o pau-bra-
sil (WEHLING, 2005, p. 66).
Já a ameaça francesa perdurou ainda até o início do século seguinte. Ao
longo desse período, os franceses aliados, em vários pontos da costa, a
certas tribos indígenas, instigavam estas a lutarem contra os portugue-
ses, trocavam produtos europeus, muitas vezes armas, por pau-brasil e
outros gêneros, rompendo o monopólio que a Coroa portuguesa tenta-
va impor, e, ainda, tentaram fixar-se no Rio de Janeiro e no Maranhão.
Um dado interessante levantado por Luís (1976) é que a vinda de Martim Afonso
de Souza não representou uma efetiva política de povoamento das terras brasí-
licas. O autor destaca que a ausência de mulheres na esquadra do capitão-mor,
elemento indispensável para realizar o povoamento, justifica que essa expedição
possuía, na verdade, apenas um caráter militar, isto é, de proteção do territó-
rio contra as investidas realizadas por outros Reinos europeus, principalmente
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
AS CAPITANIAS HEREDITÁRIAS
Em 1534, o monarca D. João III, após ter tomado medidas para “tranquilizar”
a colônia portuguesa e tendo uma noção das delimitações geográficas do vasto
território que possuía, resolveu organizar um meio para povoar as terras de fato
e afastar de vez as ameaças de invasores de outros Reinos europeus. O sistema
adotado pelo Rei para povoar os trópicos era o de capitanias hereditárias. Em
linhas gerais, esse projeto dividia o território em 12 grandes extensões de ter-
ras, as quais seriam governadas independente umas das outras, ou seja, cada
capitania possuía um donatário (“dono” da terra) que ficava responsável pela
organização, jurisdição e justiça de suas terras. Para ocupar os cargos de dona-
tários, o monarca luso nomeou, sobretudo, homens que estiveram envolvidos
com o comércio no Oriente. Esse critério real seria uma espécie de recompensa
aos serviços prestados ao Reino. Além disso, levava-se em consideração que esses
homens também possuíam uma situação financeira considerável para realizar a
ocupação das capitanias (HOLANDA, 1981, p. 97).
As Capitanias Hereditárias
94 UNIDADE II
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que possuíam em Portugal. Somado a essa
nova perspectiva de vida, também podemos
mencionar a carestia de terras férteis pre-
sentes no Reino (WEHLING, 2005, p. 79).
Seguindo essa mesma linha de raciocínio, o Figura 21: Capitanias, por Luís Teixeira
autor destaca: Fonte: Wikimedia Commons.
De acordo com as observações realizadas por Luís (1976), os donatários não fica-
vam restritos apenas aos privilégios, mas sim possuíam deveres para com o Reino
luso. Nesse sentido, o capitão deveria reservar ao Rei o quinto de qualquer tipo
de pedras preciosas encontradas em suas terras. O quinto real era uma forma de
taxação de impostos muito empregada pela Coroa portuguesa em suas posses-
sões ultramarítimas. Além disso, os donatários ficavam incumbidos de destinar
ao monarca a comercialização de pau-brasil e direcionar à Ordem de Cristo o
dízimo de todo o pescado extraído. Em contrapartida, os donatários poderiam
solicitar junto à Coroa o envio de qualquer produto para ser comercializado na
colônia, exceto a vinda de escravos negros (LUÍS, 1976, p. 32-33).
Todavia, mesmo tendo um conjunto significativo de direitos que foram
organizados e concedidos pelo monarca português, o sistema de capitanias here-
ditárias mostrava uma série de fragilidades em seu funcionamento. Nesse aspecto,
das doze capitanias que foram repartidas inicialmente, quatro não chegaram a
ser ocupadas por seus donatários. Estas ficavam localizadas entre a Paraíba do
Norte e o Amazonas e, mesmo com a insistência de seus capitães, não consegui-
ram ocupá-las. Dentre as oito restantes, apenas duas floresceram: São Vicente
e Pernambuco. Tais capitanias conseguiram vencer os problemas iniciais de
organização e se tornaram os principais centros de crescimento populacional e
econômico. As outras capitanias ou foram alvo de levantes indígenas ou acaba-
ram sendo abandonadas pelos colonos que não tinham condições financeiras
de se manterem (BOXER, 2002, p. 100).
As Capitanias Hereditárias
96 UNIDADE II
Por essas vias, nota-se que houve um conjunto de itens que comprometeram
o andamento desse sistema. A grande necessidade de investimentos, de recur-
sos econômicos e mesmo a falta de destreza dos capitães podem ser elementos
que contribuíram para a ruína do sistema. Os capitães donatários desconheciam
o território, não possuíam informações relevantes dos recursos que a terra ofe-
recia e nem mesmo das somas de dinheiro necessárias para conduzirem seus
negócios, isto é, não tinham noção dos recursos financeiros que precisavam para
“alimentar” suas capitanias. Por outro lado, mesmo tendo a terra para labutar,
os sesmeiros precisavam de um suporte financeiro que o capitão não tinha con-
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dições de oferecer. Somado a esses itens de cunho econômico e administrativo,
ainda podemos expor os obstáculos enfrentados por donatários e sesmeiros nas
capitanias diante dos levantes indígenas contra os pequenos núcleos populacio-
nais, expulsando-os de suas terras.
A capitania de Pernambuco foi a que mais obteve sucesso no cenário
colonial. Isso pode ser com-
preendido, sobretudo, pela
presença de fatores relevantes
que as outras capitanias não
possuíam. Dentre os quais,
mencionamos: uma posição
geográfica favorável, sendo
a capitania mais próxima
da metrópole, mais susce-
tível às visitas do Reino e,
consequentemente, no rece-
bimento de recursos; possuía
um clima mais ameno, jun-
tamente com um solo fértil
propício à agricultura, e, para
finalizar, a capacidade admi-
nistrativa incontestável de Figura 22: Capitania de Pernambuco
seu capitão, Duarte Coelho. Fonte: Biblioteca Brasiliana (online).
As Capitanias Hereditárias
98 UNIDADE II
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Entretanto, precisamos entender o contexto do período em questão e ob-
servar que muitos objetos facilitaram o cotidiano dos indígenas, trazendo
benefícios mútuos.
Fonte: adaptado de Sua pesquisa.com (online).
A manutenção da ordem era algo que Duarte Coelho realmente prezava em sua
capitania e não apenas com os ameríndios. Ainda em carta escrita em 1546, o
capitão solicitava que a Coroa não enviasse mais degredados à sua capitania.
Os degredados, segundo Coelho, não contribuíam para o crescimento de suas
As Capitanias Hereditárias
100 UNIDADE II
terras. Muito pelo contrário, atrapalhavam ainda mais o convívio com os indí-
genas, pois, comumente, estavam envolvidos em ataques contra as tribos nativas
(ALBUQUERQUE; MELLO, 1967, pp. 89-90). Entretanto, os apelos de Duarte
Coelho não foram atendidos por D. João III. A Coroa portuguesa nada fez para
melhorar as condições da capitania de Pernambuco. Não que não o quisesse
fazer, mas por não possuir condições financeiras de oferecer um suporte neces-
sário, devido à grande empresa que fomentava na África e na Ásia.
Como já mencionamos, nos últimos anos da década de 1530 e nos primeiros anos
de 1540, D. João III tinha que considerar vários empreendimentos distintos, pelos
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quais teria que distribuir seus recursos humanos e financeiros: o norte da África,
sob ameaça eminente; a Índia, com o comércio de especiarias; na rede Atlântica a
Oeste, o Brasil, com suas potencialidades reconhecidas; e a Leste, a Costa africana de
Angola e Congo, que forneciam mão de obra escrava (SUBRAHMANYAM, 1995, p.
119-125). Nesse sentido, o porquê do Estado lusitano não ter tido recursos suficien-
tes para atuar em todas essas frentes pode ser respondido primeiro se pensarmos
no problema dos recursos humanos, já que Portugal não possuía um contingente
humano suficiente para tal. Segundo fator, bem mais fácil de demonstrar, diz res-
peito aos problemas financeiros pelos quais a Coroa atravessava.
As Capitanias Hereditárias
102 UNIDADE II
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ceram em solos brasílicos. O autor ainda destaca que Afonso Ribeiro (um dos
degradados deixados por Cabral em 1500) conseguiu transmitir princípios bási-
cos do catolicismo aos naturais da terra com quem teve contato (KUHNEN,
2005, p. 224-226).
Nesse sentido, mesmo que os indígenas tenham demonstrado uma afinidade
aos preceitos religiosos da Igreja de Roma, praticamente nada foi realizado nesse
âmbito. Esse traço pode ser associado à demora na ocupação das terras colo-
niais. A Coroa portuguesa não poderia enviar religiosos aos trópicos em razão
da inexistência de núcleos populacionais sistematizados. Algo que observaremos
a partir de 1535 com o florescimento de pequenas vilas dispostas em algumas
capitanias, sobretudo em São Vicente e Pernambuco. Com essa nova realidade,
ocorreu a vinda de poucos padres incumbidos de assistir os colonos portugue-
ses e, em menor medida, os naturais da terra.
Assim, em 1549 devido às grandes dificuldades presentes no cenário colo-
nial, tais como: problemas no âmbito econômico e administrativo das capitanias,
ruína do sistema de “resgates” e, consequentemente, redução dos indígenas à
escravidão e os levantes ameríndios aos núcleos populacionais portugueses.
D. João III decidiu pela centralização do poder na colônia, visando subtrair
os problemas existentes. Desse modo, em março do mesmo ano, aportou na
Costa brasileira o primeiro Governador Geral, Tomé de Sousa e membros da
Companhia de Jesus, que foram incumbidos de assegurar a evangelização dos
indígenas e, consequentemente, protegê-los dos abusos dos colonos. Por tais
decisões, o Rei de Portugal iniciava sua obra missionária, catequizando os gen-
tios e colonizando suas terras.
Após realizarmos o estudo acerca dos primeiros passos dados pela Coroa portu-
guesa para o povoamento dos trópicos, nos preparamos para avançar em nossa
análise. Nesse sentido, prezado(a) aluno(a), realizaremos uma abordagem que se
inicia a partir de 1549 com a instituição do Governo Geral que previa a centrali-
zação do poder na figura de um “chefe político” e finalizaremos com a expansão
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tância de assegurar as novas terras portuguesas e colonizá-las, de modo que as rendas
fossem direcionadas ao Reino. Nesse prisma, observamos a criação de novos car-
gos administrativos para desenvolver as novas funções que a colonização implicava
(FAUSTO, 2006, p. 20).
Dentre os homens oriun-
dos do Reino, desembarcaram
juntamente com o primeiro
Governador, em março de
1549, alguns membros da
Companhia de Jesus (a pri-
meira missão jesuítica aos
trópicos foi composta pelos
padres Leonardo Nunes,
Juan de Azpicueta Navarro,
Antonio Pires e pelos irmãos
Vicente Rodrigues e Diogo Figura 23: Chegada de Tomé de Sousa à Bahia
Fonte: Wikimedia Commons.
Jacome), supervisionados pelo
padre Manuel da Nóbrega, que permaneceu até 1559 como superior dos jesuítas
no Brasil. Foram designados pelo monarca D. João III (1521-1557) tanto o corpo
que compunha o Governo Geral como os discípulos de Deus que faziam parte do
projeto de colonização portuguesa. Para o Rei português, a colonização das terras
tropicais se fundamentava na propagação da fé católica e na salvação das almas dos
indígenas. Assim, os jesuítas ficaram responsáveis pela conversão e pelo combate
aos costumes nativos em prol da instauração dos preceitos da Igreja.
Em 1553, D. João III resolve que Tomé de Sousa não seria mais o Governador
das terras brasílicas. Avisados que o Governador deixaria a colônia, os membros
da Companhia de Jesus foram tomados por um sentimento de grande descon-
fiança de como seria a administração de seu sucessor e, principalmente, se este
iria contribuir com a obra catequética realizada pelos jesuítas. Nesse sentido, com
o excerto de uma correspondência jesuítica, observamos a afinidade existente
entre o Governador Tomé de Sousa e os padres da Companhia, assim, Manuel
da Nóbrega descreveu:
O Governador Thomé de Sousa eu o tenho por tão virtuoso e entende
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tão bem o espírito da Companhia, que lhe falta pouco para ser della;
não creio que esta terra fora avante com tantos contrastes, como teve,
si haverá outro Governador; dizem que se vai este anno que vem que
tememos muito vir outro, que destrua tudo; de quantos lá vierem ne-
nhum tem amor a esta terra: só elle, porque todos querem fazer em seu
proveito, ainda que seja á custa da terra, [...] (NÓBREGA, 1988, p. 131).
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Duarte da Costa, eram referentes às punições dos nativos. Isso se dava quando o
Governador se posicionava com rispidez diante da prática dos “maus costumes”
dos indígenas. Esse período foi marcado pela “guerra dos índios” e, consequente-
mente, pela mudança do método de evangelização desenvolvida pelos inacianos.
Além dos problemas existentes nas terras coloniais com a presença de portu-
gueses salteadores e com a incidência de levantes indígenas contra os principais
centros populacionais da colônia, Duarte da Costa ainda precisava combater a
ameaça oriunda dos franceses. A presença francesa na Costa brasileira limitou-
-se até por volta de 1550 à exploração da madeira com o auxílio dos ameríndios,
sobretudo dos tupinambás. Porém, em 1555, o cenário colonial sofreu mudan-
ças drásticas. Os franceses ocuparam a região que compreende, hoje, o Rio de
Janeiro e manifestaram desejo de fundar uma colônia. Todavia, a Coroa por-
tuguesa ficou praticamente inerte perante essa situação, teve conhecimento da
chegada de várias embarcações francesas munidas com homens, mulheres, crian-
ças e religiosos. Certamente, a ameaça às terras brasílicas era preocupante, porém
o Rei de Portugal, por absoluta falta de recursos, nada fez até 1560 para reprimir
a presença desses estrangeiros (WEHLING, 2005, pp. 70-72).
O Governador Mem de Sá foi nomeado por D. João III em 23 de julho de
1556, para suceder o governante Duarte da Costa, e teria a difícil missão de reor-
ganizar o território marcado por ameaças e conflitos, os quais envolviam tanto
os naturais da terra que atacavam as vilas como os lusitanos e suas frequentes
investidas às tribos indígenas, a fim de raptar os nativos e escravizá-los por vias
proibidas: os chamados “saltos”. O Governador precisava buscar um diálogo com
os membros da Companhia de Jesus, pois eles se colocavam como um pêndulo
nas relações entre colonizadores lusos e indígenas. Além dos problemas internos
ressaltados, Mem de Sá ainda teria que rechaçar a ameaça francesa que assolava
a capitania do Rio de Janeiro. Diante disso, “o momento histórico, após o atri-
bulado governo de Dom Duarte, exigia um homem ativo, inteligente, de grande
experiência, e, sobretudo, honesto. Todas essas qualidades e outras mais reu-
niam em si Mem de Sá” (WETZEL, 1972, p. 31). Ainda, segundo a visão de Frei
Vicente do Salvador, Mem de Sá, “com razão pode ser espelho de governadores
do Brasil, porque, concorrendo nele letras e esforços, se sinalou muito na guerra
e justiça” (SALVADOR, 1982, p. 151).
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A mudança de governo gerou uma considerável apreensão por parte dos jesu-
ítas. Isso ocorreu devido às desventuras vivenciadas na administração de Duarte
da Costa que não se manifestou como aliado da Companhia, salvo em situações
específicas, quando declarava guerra aos índios que não aceitavam a conversão
imposta pelos padres. Nesse sentido, logo após a nomeação do novo Governador
Geral, observamos que um clima de expectativa permeava o ambiente colonial. Em
carta escrita por Manuel da Nóbrega da capitania da Bahia (em agosto de 1557,
direcionada ao padre Miguel de Torres) presenciamos esse clima de apreensão.
No fim de Julho chegou aqui uma caravella d’ El Rei que trazia gado;
esta deu nova, como Mem de Sá, governador, partira de Cabo Verde,
véspera da Ascenção, primeiro que este navio tres dias; espantam-se
todos não ser já aqui, e tememos haver arribado, ou permitir Nosso
Senhor algum desastre, para que venha sobre esta terra toda a perdição
e desconsolação possível, porque até a feitura desta, não é chegada; pre-
sumimos virem alli Padres, posto que ninguém nol-nos saiba certificar,
estas trabalhosas e venturosas viagens causam partirem navios de lá
tão tarde e virem tão fora do tempo, que, si da vinda escapam, ás ve-
zes não escapam da tornada, e será muita parte, tanta perda de navios,
para ganhar total aborrecimento á esta terra, o qual creio, que todos lhe
têm ganhado, si não é Sua Alteza, cujo coração christianissimo está nas
mãos de Deus (NÓBREGA, 1988, p. 170).
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resultados parciais, pois, mesmo com a destruição do forte francês, não fora
possível realizar a expulsão total dos invasores. Estes se direcionaram às aldeias
indígenas em busca de refúgio e retornaram para “sua” colônia logo após Mem
de Sá voltar para a Bahia (WEHLING, 2005, p. 72). Todavia, após uma série de
expedições direcionadas contra os franceses, em 1567, o Governador conseguiu
reprimir os invasores e iniciar a colonização daquele território.
[...] já no governo de Mem de Sá, outras inovações foram sendo intro-
duzidas, com o surgimento de novos cargos: como por exemplo, o de
mamposteiro-mor da rendição dos cativos, responsáveis pela arrecada-
ção de uma contribuição, como o próprio nome indica, para o resgate
dos cativos, ou o de tesoureiro dos defuntos, indicando que o desenvol-
vimento das capitanias, então existentes, já exigia uma melhor divisão
de tarefas (RICUPERO, 2009, p. 140).
Outro dado interessante ocorrido durante o governo de Mem de Sá foi sua intensa
aliança com a Companhia de Jesus. Observamos essa estreita ligação entre as duas
esferas, laica e religiosa, na correspondência jesuítica do período em questão. Sem
sombra de dúvida, o Governador procurou conter os abusos cometidos pelos
colonizadores portugueses, que exploravam os nativos por vias ilegais. Segundo
Salvador (1982), o Governador foi enviado às terras brasílicas em favorecimento
da religião cristã, isto é, buscava-se a consolidação dos dogmas católicos em detri-
mento aos “maus costumes” indígenas. Quanto aos cristãos, proibiu a jogatina
nas cidades, pois isso, resultava em uma intensa concentração de desocupados e
vagabundos que prejudicavam a ordem pública e inseriu esses homens ociosos
no trabalho. Além disso, havia a pretensão de reprimir a ação dos colonos sal-
teadores que comprometiam a política de colonização portuguesa nos trópicos.
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um na Bahia e outro no Rio de Janeiro. O objetivo da Coroa lusa era assistir,
de maneira eficaz, os donatários das capitanias, visto a falta de comunicação
entre elas. Além disso, também almejava o fortalecimento e a ocupação do Rio
de Janeiro e de São Vicente, pela constante ameaça estrangeira que essas capi-
tanias sofriam, principalmente dos franceses e espanhóis. Em terceiro plano,
a Coroa pretendia organizar expedições e estimular a exploração do território
brasileiro para o Sul e o interior. Os nomes escolhidos para ocupar os cargos de
Governador eram Luís de Brito, em Salvador, e Antônio Salema no Sul, em São
Vicente. Salema enfrentou uma série de obstáculos, dentre os quais podemos
destacar os conflitos com os indígenas e as limitações na exploração das terras
ao interior, porém sem encontrar o ouro desejado. Por outro lado, Luís de Brito
não alcançou êxito na conquista do litoral de Sergipe e da Paraíba (WEHLING,
2005, p. 74-75). Todavia, segundo Ricupero (2009), essa divisão das terras colo-
niais em duas esferas não repercutiu em mudanças significativas no âmbito
administrativo, apenas se organizou no Rio de Janeiro uma estrutura já exis-
tente na capital da colônia, Salvador.
Em 1578, a Coroa lusitana enfrentou uma série de problemas e mudanças
drásticas que transformariam a médio e longo prazo o cenário do Império portu-
guês ultramarítimo. Por um lado, como já mencionamos, o comércio estabelecido
com o Oriente dava os primeiros sinais de crise e não era tão lucrativo e vantajoso
como no início do século. Em sua possessão colonial mais importante, o Brasil,
o Rei D. Sebastião decidiu novamente centralizar o Governo Geral na Bahia e
enviou para as terras coloniais o Governador Lourenço da Veiga, que ficaria na
administração por apenas dois anos e fracassaria diante da conquista da Paraíba.
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O Sebastianismo foi um movimento místico-secular que aconteceu em Por-
tugal nas três últimas décadas do século XVI. Esse movimento está associado
à batalha de Alcácer Quibir, no Norte da África, devido à ausência do corpo
do monarca português D. Sebastião que morreu em combate em 1578. Mui-
tos relatos foram produzidos nesse período acerca do mistério que rondava
a morte do Rei de Portugal, o “Desejado”. Alguns chegaram a acreditar que
o Rei morreu ao lado de seus soldados, outros diziam que D. Sebastião te-
ria simplesmente desaparecido em meio à batalha, e outros mencionavam
a possibilidade de fuga do monarca, evitando, dessa forma, sua execução.
Nesse sentido, acreditava-se que o “Desejado” retornaria no momento ideal
para “salvar” os portugueses do domínio espanhol que a União Ibérica impli-
cava. Esse sentimento de espera pelo “salvador” fortaleceu o Sebastianismo
que alcançou voz nos poemas escritos pelo poeta português Bandarra.
Fonte: Sebastianismo (online); Araujo (online) e Biblioteca Joanina (online)
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e cal, local reservado para depositar a matéria-prima. Em um espaço mais alto
do engenho, possuía uma casa que se denominava como “a casa das caldeiras
de cozinha” e, ainda, o local onde as formas esfriavam. Após todas essas etapas,
as formas com o produto já frio eram direcionadas para o processo de limpeza
e solidificação que ficavam em um espaço amplo com cerca de 1.000 m2. Em
outro local, estava o “galpão de secagem e peso” que concluíam a transformação
da cana ao produto final, o açúcar (FERLINI, 2003, p. 138).
Como podemos observar, a indústria açucareira era complexa e reque-
ria uma combinação de fatores para o seu funcionamento. O proprietário do
Engenho precisava reunir condições financeiras favoráveis para investir tanto
na manutenção do Engenho quanto em mão de obra especializada e na aquisi-
ção de escravos oriundos da África, já que a escravidão ameríndia enfrentava
impedimentos. Além disso, precisava escolher pontos estratégicos para cons-
truir o Engenho e para iniciar o plantio de cana-de-açúcar de acordo com o solo
adequado. Segundo Del Priore (2010), grande parte dos Engenhos coloniais “ani-
nhava-se na mata”, próximos dos portos devido à fertilidade dos terrenos e pela
quantidade disponível de lenha, indispensáveis para o funcionamento das for-
nalhas. A autora pondera:
E não deviam se afastar muito do litoral, sob pena de, sendo único o
preço dos gêneros de exportação, não poder competir com os engenhos
vizinhos aos portos, cujo produto não se amesquinhava com as despe-
sas de transporte. Em Pernambuco, instalavam-se ao longo dos rios que
se concentram na vertente do Atlântico do planalto da Borborema, na
Zona da Mata, em que predominam arredondados morros e colinas.
O corolário da terra era a água. Se a irrigação era desnecessária graças
XVII e se expandiu ao longo do século XVIII na região das Minas. Nesse con-
texto, a grande produção de
açúcar não se resumia mais
ao litoral nordestino, e sim
a região que hoje se loca-
liza o Estado de São Paulo
(MOURA, 2013, p. 146-
147). Essas informações são
importantes para compre-
endermos que a produção
de açúcar não ficou limitada
à região costeira do Brasil e,
além disso, que a indústria
açucareira não se restringiu
a uma atividade econômica
Figura 26: Engenho de açúcar no Brasil Colônia
tipicamente pertencente ao Fonte: Wikimedia Commons.
século XVI.
Quanto ao tipo de solo ideal para receber as plantações de cana, esse solo
representava um elemento importante na produção. Na Bahia, por exem-
plo, mais especificamente na região que compreendia o Recôncavo Baiano,
o solo ficou conhecido como o “berço do massapé”. Esse tipo de solo era o
preferido dos senhores de Engenho da época. O massapê era resultante de
uma decomposição de “sedimentos cretáceos e formava um solo espesso
e barrento que conservava bem a umidade” (SCHWARTZ, 1988, p. 102).
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um campo, quatro a seis boas colheitas podiam ser obtidas antes que fosse
necessário o replantio”. Observou-se no período que havia casos de massapê
que podiam chegar a produzir “vinte colheitas sem replantio ou uso de fer-
tilizantes” (SCHWARTZ, 1988, p. 102).
Segundo Schwartz (1988), havia ainda outros tipos de solos que também eram
propícios para o cultivo da cana-de-açúcar. Seguindo o exemplo do Recôncavo
Baiano, o autor destaca a existência do “salão”, que era um solo com aspecto aver-
melhado “resultante da decomposição de depósitos cristalinos”. Esse tipo de solo
era mais arenoso e não retinha tanta umidade como em massapê, porém tam-
bém era ideal para o cultivo de cana, sobretudo nos anos em que os regimes de
chuvas eram intensos. Por outro lado, o Recôncavo apresentava o solo denomi-
nado como “areias”, impróprio para o plantio de cana, por ser muito arenoso.
Esse tipo de solo era propício para o cultivo de outros gêneros, como a man-
dioca (SCHWARTZ, 1988, p. 102).
O solo realmente não era uma preocupação dos Senhores de Engenho. De
acordo com a análise desenvolvida por Priore (2010), a fase que compreende o
cultivo da cana-de-açúcar não necessitava de altos investimentos devido à fer-
tilidade do solo brasileiro. A autora destaca que, após ser plantada, a cana do
“tipo crioula” poderia ser colhida depois de 18 meses. A colheita da cana era
uma etapa simples e rudimentar (prática que se estendeu por outros séculos),
apenas com o auxílio de uma foice e facão. Nesse âmbito, podemos observar o
quão sacrificante era a labuta na empresa açucareira, tanto no plantio e colheita
como no próprio Engenho onde os trabalhadores estavam submetidos ao calor
infernal das fornalhas.
reira estavam submetidos eram muito desgastantes. Além do árduo trabalho nas
etapas de produção do açúcar, a jornada de trabalho também era um fator agra-
vante. Segundo Del Priore (2010), os homens trabalhavam dia e noite, “de oito a
nove meses, normalmente de julho/agosto de um ano a abril/maio do seguinte”
( PRIORE; VENANCIO, 2010, p. 47). Item que também é confirmado na análise
realizada por Schwartz (1988) na capitania da Bahia ao longo do século XVII.
O autor nos chama atenção para uma questão que causava conflitos na época,
entre Senhores de Engenho e representantes da Igreja Católica. O conflito que
desgastava as relações estabelecidas entre os dois poderes coloniais estava relacio-
nado com a árdua jornada de trabalho que os “homens da cana” (trabalhadores
livres e escravos) estavam submetidos. Porém o problema principal recaía sob
os escravos (índios legalizados e negros africanos) no que concerne ao calendá-
rio cristão. Observa-se que possuímos um impasse: “o calendário religioso e as
obrigações que ele impunha e o desejo de lucro associado à administração do
engenho representavam uma contradição inerente que se manifestava com cla-
reza” (SCHWARTZ, 1988, p. 100).
Os membros da Igreja queixavam-se que os proprietários de Engenho comu-
mente não liberavam os escravos aos domingos e dias santos para comparecerem
às missas. Esse problema foi comum no ambiente colonial do século XVI ao XVIII
e representou um ponto de conflito entre os interesses religiosos e mercantis. Por
um lado, os Senhores alegavam que conceder a folga aos escravos impulsionava-os
a terem hábitos repudiáveis, como bebedeira e danças lascivas e, consequentemente,
causar conflitos facilmente. Segundo Schwartz (1988), a defesa mais convincente
foi realizada pelo erudito Domingos de Loreto Couto em meados do século XVIII.
De acordo com Couto, o Senhor de Engenho não poderia liberar sua escra-
varia aos domingos por comprometer as etapas de produção do açúcar: “uma vez
cortada, a cana tinha que ser moída dentro de um dia, caso contrário o líquido
azedaria” (SCHWARTZ, 1988, p. 101). Nesse sentido, se não houvesse moagem
aos domingos, a cana cortada aos sábados ficaria comprometida e não haveria
matéria prima para ser moída na segunda-feira (SCHWARTZ, 1988, p. 101). A
defesa de caráter mercantil não agradava os membros da Companhia de Jesus
que estavam na colônia para servir a Deus e propiciar a salvação das almas. Nesse
âmbito, o jesuíta Jorge Benci respondeu a esse argumento, enfatizando que o cui-
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dado com as almas e sua salvação estava acima de tudo, sobretudo dos ganhos.
A indústria açucareira colonial não sobrevivia apenas de Senhores de Engenho
e escravos. Segundo Ferlini (2003), existe a necessidade de separar o complexo
da cana em dois níveis: trabalhadores assalariados e trabalhadores escravos. No
primeiro caso, podemos compreender a existência de técnicos especializados res-
ponsáveis pelo processo do açúcar que possuíam grandes habilidades artesanais
que os negros escravos não tinham acesso. Além de ocuparem esses cargos dis-
tintos, também poderiam realizar tarefas relacionadas à supervisão (FERLINI,
2003, p. 142). Já os trabalhadores escravos, sobretudo os negros, estavam incum-
bidos das tarefas árduas do sistema açucareiro: da colheita ao transporte final
para as embarcações. De acordo com a análise realizada por Priore (2010), a
empresa do açúcar abarcava uma gama de especialidades:
Eram mestres de açúcar, purgadores, caixeiros, calafetes, caldeireiros,
carpinteiros, pedreiros, barqueiros, entre outros. A eles juntavam-se
outros grupos a animar a vida econômica e social das áreas litorâneas:
mercadores, roceiros, artesãos, lavradores de roças de subsistência e até
mesmo desocupados e moradores de favor compunham uma complexa
fragmentação de pequenos ou grandes proprietários. O número de es-
cravos que possuíam (de apenas um a dezenas) permite inferir a diver-
sidade de origens sociais e de situações econômicas. No século XVIII,
com o declínio da atividade e o aumento das alforrias, alguns libertos
tornaram-se, também, proprietários de partidos de cana (PRIORE;
VENANCIO, 2010, p. 49).
Durante o século XVII, a produção açucareira conheceu seu apogeu. Entre 1600
e 1650, houve um aumento na quantidade de Engenhos e nos números produ-
zidos em cada um. Os números cresciam tanto para os Senhores como para os
comerciantes portugueses responsáveis pela exportação do produto. De acordo
com Wehling (2005), “a exportação do açúcar rendeu, em 1600, 2,16 milhões
de libras esterlinas, subindo para 3,8 milhões em 1650 e despencando para 1,8
milhão em 1700” (WEHLING, 2005, p. 212). Observa-se que, após 1650, houve
uma queda considerável no comércio açucareiro no Brasil, isso ocorreu devido
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as organizações de trabalho,
“a cultura e as possibilida-
des de sobrevivência. Deu
ao colono a oportunidade
de enraizamento na terra,
de enriquecer ou pelo menos
reunir recursos [...]”. Assim,
completava-se a primeira
etapa de colonização nos tró-
picos, baseada nas grandes
lavouras de cana, na mão de
obra escrava e na implemen-
tação de um produto voltado
para a exportação, o açúcar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
ras brasílicas.
O estudo desta unidade é importante para compreendermos uma gama
de aspectos econômicos, religiosos, políticos e até culturais que estiveram pre-
sentes na formação de nosso país. Buscamos destacar os contatos iniciais entre
indígenas e portugueses e como essas relações se manifestaram no campo da
admiração, do medo e, até mesmo, do respeito. Outro ponto relevante que ana-
lisamos foi a postura adotada pelo Reino lusitano ao delegar a exploração da
colônia a terceiros devido, sobretudo, à carência de recursos humanos e finan-
ceiros para alimentar as várias frentes que a Coroa possuía, principalmente na
África e no comércio com o Oriente.
Em um segundo momento, voltamos nossos olhos para uma análise acerca
dos problemas enfrentados pela Coroa lusa, diante da frequente ameaça dos
invasores estrangeiros no litoral brasileiro. Nesse sentido, o Rei de Portugal
compreendeu que existia uma necessidade de desenvolver meios para prote-
ger suas terras. Desse modo, instaurou o sistema de capitanias hereditárias, as
quais representavam, em linhas gerais, a divisão do território em grandes fai-
xas de terra, em que cada capitania seria responsabilidade de seu donatário.
Como vocês puderam observar, esse sistema demonstrou suas fragilidades e,
por outro lado, apresentou os primeiros sinais de desgaste na relação entre
indígenas e portugueses.
Por tais motivos e almejando sanar as deficiências apresentadas pelo sistema
de capitanias hereditárias, o Rei D. João III decidiu centralizar o poder colo-
nial na figura de um Governador e iniciar sua obra colonizadora nos trópicos,
Considerações Finais
124 UNIDADE II
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estavam por trás da colonização dos trópicos, pois essa será nossa principal dis-
cussão na unidade III.
Você está pronto(a) para encarar este novo desafio?
O documento acima integra a série de relatos realizados por Pero Magalhães Gan-
davo sobre as terras brasílicas, presentes em sua obra História da Província de Santa
Cruz. Com base na leitura da Unidade II e do extrato documental acima, faça
um texto dissertativo considerando:
a. Expectativa de vida da colônia e no Reino.
b. Atividades econômicas.
c. Relação com a escravaria nativa.
127
PORTUGUÊS OU HOLANDÊS?
Você sabia que por pouco nossa língua não uma ocupação organizada da capita-
é o holandês? Sim, isso mesmo prezado nia, e cerca de quinze anos mais tarde
(a) acadêmico (a), além dos indesejáveis já detinham o controle das regiões mais
invasores, espanhóis e franceses, nossa abastadas dos distritos costeiros nordesti-
colônia conviveu e combateu os holande- nos produtores de açúcar. Em resposta, em
ses ao longo do século XVII. Esta ocupação 1645 os moradores do local se revoltaram
ocorreu em linhas gerais devido a União contra a dominação holandesa e organiza-
Ibérica (1580-1640), onde a Coroa espa- ram uma frente de combates. Receberam
nhola detinha totais poderes tanto do de Portugal, uma contribuição de homens
Reino luso quanto de suas possessões além e navios para serem utilizados nos emba-
mar. Neste período, o monarca espanhol tes contra os invasores. Este conflito durou
proibiu investidores estrangeiros no Brasil uma década e paulatinamente os lusos
e os holandeses foram duramente preju- foram retomando suas capitanias. O autor
dicados. Em resposta a Holanda criou em levanta dois questionamentos importan-
1602 a Companhia das Índias Orientais que tes do conflito: uma das causas da guerra
visava atacar as possessões espanholas na é realmente de cunho econômico, visto
Ásia e na África. Seria o pontapé inicial dos que a própria senha dos insurgentes era
holandeses nas expedições ultramarítimas, “açúcar” e em segundo plano e não menos
tão relevante quanto as conquistas realiza- relevante está a disputa religiosa entre
das pelos ibéricos. os holandeses calvinistas e portugueses
católicos de Roma. Tanto os portugueses
Para organizar os sucessivos ataques quanto os holandeses acreditavam ser os
à colônia portuguesa (sob dominação responsáveis pela expansão da verdadeira
espanhola neste período), os holandeses fé e luta contra o infiel.
criaram a Companhia das Índias Ociden-
tais em 1621. As invasões holandesas O governo português não se contentava
ocorreram em duas frentes distintas, de apenas com uma vitória momentânea
1624 a 1625 na capitania da Bahia e em frente aos invasores holandeses, pois a
1630 a 1654 na capitania de Pernambuco. qualquer momento poderiam estar expos-
Estas ocupações também ficaram conhe- tos a novos combates. Neste sentido, os
cidas como “guerra do açúcar” visto que diplomatas lusos buscaram adquirir uma
nestas capitanias estavam grande parte paz definitiva e após uma série de nego-
dos Engenhos de açúcar do Brasil. ciações foi assinado o Tratado de Haia
em 1661. Desse modo, ficava acordado
Segundo Boxer (2002) a ocupação na Bahia que os holandeses desocupariam defi-
não surtiu efeitos significativos, porém nitivamente as capitanias coloniais, se a
quando se direcionaram para Pernambuco Coroa portuguesa pagasse uma indeni-
em 1630 conseguiram de fato estabelecer zação significativa.
Fonte: Boxer (2002, p. 120-140); WEHLING (2005, p. 126-135).
MATERIAL COMPLEMENTAR
Desmundo.
Ano: 2003.
Sinopse: Filme nacional dirigido por Alain Fresnot e baseado no
livro Desmundo, de Ana Miranda. O filme retrata o cotidiano do
Brasil colonial em 1570. A trama se concentra na figura de Oribela
(órfã enviada do Reino para a colônia em razão da colonização
do Novo Mundo), que é forçada a se casar e se mudar para um
Engenho de açúcar. Diante do quadro lamentável, a jovem religiosa
tenta fugir várias vezes. Todavia, acaba sendo flagrada pelo marido
que, para puni-la, deixa-a acorrentada e aos cuidados de uma índia
que cura seus ferimentos.
Professora Me. Ana Lúcia Sales de Lima
III
EM NOME DE DEUS E DO
ESTADO: A LABUTA DA
UNIDADE
COMPANHIA DE JESUS NA
AMÉRICA PORTUGUESA
Objetivos de Aprendizagem
■ Compreender o projeto de colonização da Coroa portuguesa,
pautado na busca de riquezas e na expansão da fé.
■ Analisar as principais dificuldades enfrentadas pelos jesuítas.
■ Observar os costumes gentílicos tidos como pecaminosos.
■ Entender a política dos aldeamentos.
■ Discutir os conflitos existentes entre padres e colonos no que tange à
escravidão ameríndia.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■ A colonização das terras e a salvação das almas.
■ Colonizadores e Soldados de Cristo: embates em torno da escravidão
do gentio brasílico.
131
INTRODUÇÃO
Introdução
132 UNIDADE III
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Lisboa em 02 de fevereiro de 1549 e apor-
tou na Costa brasileira em 29 de março do
mesmo ano, com cerca de mil homens que
foram escalados, sobretudo para realizar a
“construção” da cidade de Salvador, que seria
a sede do Governo Geral. Isso não signifi-
cou o fim das capitanias hereditárias, mas
sim o surgimento de um novo poder cen-
tralizador para auxiliar aquele sistema que Figura 27: A Companhia de Jesus
apresentava fragilidades. Dentre os homens Fonte: Wikimedia Commons.
oriundos do Reino, desembarcaram, junta-
mente com o Governador, os membros da Companhia de Jesus, supervisionados
pelo padre Manuel da Nóbrega, que permaneceu até 1559 como superior dos
jesuítas no Brasil.
Designados pelo monarca D. João III (1521-1557) tanto o corpo que com-
punha o Governo Geral como os discípulos de Deus faziam parte do projeto de
colonização português. Para o Rei português, a colonização das terras tropicais se
fundamentava na propagação da fé católica e na salvação das almas dos indíge-
nas. Algo que já havia sido identificado nos registros deixados por Caminha em
1500. Assim, os jesuítas ficaram responsáveis pela conversão dos ameríndios e
pelo combate aos costumes nativos em prol da instauração dos preceitos da Igreja.
Em Portugal, ao longo do século XVI, havia se propagado uma crença de que
o povo português teria sido escolhido por Deus para a realização da universali-
zação da verdadeira fé. Desse modo, a expansão do cristianismo e a conversão
dos infiéis (África e Ásia) era uma missão que cabia aos lusitanos, pois era o
povo escolhido para proporcionar a salvação daqueles que desconheciam o ver-
dadeiro Deus e, consequentemente, viviam uma vida permeada pelo pecado.
Antes mesmo que houvesse o reconhecimento da Instituição missioná-
ria inaciana, o Rei de Portugal, D. João III, procurou D. Pedro Mascarenhas
(Embaixador de Portugal em Roma) para que ele estabelecesse contato com os
padres da Companhia de Jesus, pois o monarca já tinha conhecimento da noto-
riedade daqueles religiosos. O Rei lusitano acreditava que a presença dos servos
de Deus (jesuítas) em suas colônias iria assegurar a conversão dos infiéis e a
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
protestantes na Europa e os gentios das terras recém conquistadas pelos
Europeus com as Grandes Navegações. Nesse intento, a educação foi seu
principal instrumento, fundando missões, retiros, colégios e universidades.
Sua principal obra é os “Exercícios Espirituais”, sendo canonizado em 1622.
Fonte: Inácio (online).
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Desse modo, o Rei D. João III assumiu o “comando” da fé católica e procurou
oferecer condições para a atuação da Companhia de Jesus, primeiramente, em
Portugal e, em seguida, nas suas possessões ultramarítimas. O monarca dis-
pôs de recursos financeiros e investiu na criação dos colégios jesuíticos, que
ofereciam uma rígida preparação para os padres serem, posteriormente, enca-
minhados para as missões. Durante o tempo que permaneciam nos colégios,
além de estudarem a palavra de Deus, de aprenderem muitas vezes um deter-
minado ofício, eram preparados psicologicamente para encararem os possíveis
desafios em território inóspitos.
Figura 30: Pátio do Colégio São Paulo de Piratininga - Aclamação de Amador Bueno (1909) de Oscar Pereira
da Silva (Obra de Domínio Público)
Fonte: Wikimedia Commons (online).
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OS JESUÍTAS E OS DESAFIOS DA CATEQUIZAÇÃO NOS TRÓPICOS
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captivar, vende-los e servir-se delles, porque estes desta terra sempre
tem guerra com outros e assim andam todos em discórdia, comem-se
uns a outros, digo os contrarios. E gente que nenhum conhecimento
tem de Deus (NÓBREGA, 1988, p. 72).
Rodrigues de Azevedo. Nesse âmbito, pontua: “cá há clerigos, mas é a escoria que
de lá vem. Não se devia consentir embarcar sacerdote sem ser sua vida muito
approvada, porque estes destruem quando se edifica” (NÓBREGA, 1988, p. 77).
A queixa relatada não se restringiu à capitania da Bahia, tampouco se limi-
tou ao ano de 1549. Um exemplo disso pode ser observado nas cartas escritas por
Nóbrega em 1551 da capitania de Pernambuco. Em 13 de setembro (destinada
aos irmãos do colégio de Jesus de Coimbra), o religioso relatou: “havia cá mui
cuidado de salvar almas; os sacerdotes que cá havia estavam todos nos mesmo
peccados dos leigos, os demais irregulares, outros apostatas e excommungados”
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de dar a roupa que trouxemos a estes que querem ser christãos, repartindo-lh’a
até ficarmos todos eguaes com elles” e complementa dizendo que “si souberem
que por falta de algumas ceroulas deixa uma alma de ser christã e conhecer a
seu Creador e Senhor” (NÓBREGA, 1988, p. 74).
Segundo as observações realizadas por Cardim (1980), mesmo quando
a nudez de alguns índios havia sido coberta, após a imposição jesuítica, os
nativos não se vestiam por honestidade ou constrangimento, mas sim por ceri-
mônia e obrigação. Porém, mesmo que possuíssem as vestimentas fornecidas
pela Companhia, deixavam suas ocas usando o mínimo de roupa possível. Os
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homens usavam apenas os “jornes que lhes dão pelo umbigo sem mais nada”
e as mulheres “fazem muito caso de fitas e pentes” além de braceletes e outros
enfeites (CARDIM, 1980, p. 90).
A poligamia foi outro aspecto da cultura nativa duramente combatida
pelos jesuítas. Os inacianos insistiam junto aos indígenas sobre a impor-
tância de possuírem apenas um cônjuge e buscavam legitimar essas uniões
por meio da realização de casamentos. Dessa forma, poderiam ser batiza-
dos e terem suas almas salvas do pecado que viviam mergulhados. Segundo
os apontamentos realizados pelo Padre Cardim, os casamentos cristãos já
estavam ocorrendo entre os integrantes das aldeias, “porém há muita dúvida
se são verdadeiros, assim por terem muitas mulheres, como pelas deixarem
facilmente por qualquer arrufo, ou outra desgraça, que entre elles aconteça”
(CARDIM, 1980, p. 88).
um grande pecado, que é terem os homens quasi todos suas Negras por mance-
bas, e outras livres que pedem aos Negros por mulheres, segundo o costume da
terra, que é terem muitas mulheres” (NÓBREGA, 1988, p.79).
É de suma relevância compreender que as relações entre os colonizadores e
os nativos ocorriam, sobretudo, de três formas distintas. Na primeira condição,
os lusitanos se envolviam com as índias motivados por relações corriqueiras,
sem estabelecerem qualquer tipo de compromisso. No segundo caso, firmavam
uniões estáveis, chegando a constituir uma família com as indígenas (vivendo
a semelhança do matrimônio cristão, porém sem a benção da Igreja). E, na ter-
ceira opção, mais grave aos olhos da Companhia, seriam os amancebamentos
frutos de ataques portugueses às tribos gentílicas. Em tais ataques, os portugue-
ses raptavam as mulheres e as escravizavam. O relato feito pelo padre Antonio
Pires, de Pernambuco, em 02 de agosto de 1551, destinado aos padres e irmãos
de Coimbra, refletiu essas preocupações:
Ay en esta tierra un costumbre que lo más de los hombres no reciben
el Santo Sacramento, porque tienen las negras con que están amance-
bados [...] Lo que todo se haze a nuestras costas, pues aora es nuestro
officio remediarlo. El mayor trabajo que aora tenemos es, que avrá en
esta población algunas cincuenta negras o más, afuera otras que están
por las haziendas, las quales fueron traydas de las aldeãs por los blancos
para las tener por mancebas (LEITE, 1956, p. 262).
servos de Deus solicitaram junto a D. João III o envio de mulheres para a colô-
nia, “ainda que fossem erradas”, mas que não tivessem perdido o temor a Deus.
Assim, casavam e, consequentemente, evitavam que os colonos fossem aman-
cebar-se com as nativas (NÓBREGA, 1988, p. 80).
Além de requisitarem junto à Coroa portuguesa o envio de mulheres para
remediar o mau costume dos lusitanos que estavam amancebados com as negras
da terra, os jesuítas não mediram esforços para legalizar essas uniões. O casar-
-se na colônia foi facilitado e incentivado, pois bastava apenas o cônjuge possuir
uma testemunha que assegurasse sua condição de solteiro e ele já poderia unir-
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-se em matrimônio. Nesse âmbito, observa Vainfas (1997, p. 95):
Amancebaram-se por falta de opção, por viverem, em sua grande
maioria, num mundo instável e precário, onde o estar concubinato era
contingência da desclassificação, resultado de não ter bens ou ofícios,
da fome e da falta de recursos, não para pagar a cerimônia do casa-
mento, mas para almejar uma vida conjugal minimamente alicerçada
segundo os costumes sociais e a ética oficial.
razão disso, o pajé detinha poderes oraculares e curativos. Era responsável tanto
pelo conforto espiritual como pela cura dos enfermos. Portanto, responsáveis
pela perpetuação da cultura nativa. Os pajés se tornaram os grandes inimigos
da imposição da cultura religiosa ocidental entre os indígenas. Em contrapar-
tida, os membros da Companhia consideravam os pajés mentirosos e charlatões.
E assi se podem estes feiticeiros chamar mais matasanos que médicos,
nem eles curam os enfermos senão com enganos, chupando-lhes na par-
te que lhes dói e, tirando da boca um espinho ou prego velho que já nela
levavam, lho mostram, dizendo que aquilo lhes fazia o mal e que já ficam
sãos, ficando eles tão doentes como de antes (SALVADOR, 1982, p. 83).
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Caro(a) acadêmico(a), chamo a atenção de vocês neste momento para uma aná-
lise voltada para os conflitos intertribais que assolavam os trópicos portugueses.
A Costa do Brasil era habitada por uma gama de grupos indígenas distintos, que,
embora pertencessem ao mesmo tronco linguístico e compartilhassem determi-
nadas crenças e costumes, comunicavam-se por dialetos diferentes. Acredita-se
que Nóbrega os distinguiu a partir do território que ocupavam, na medida em
que os padres percorriam as aldeias. Em linhas gerais, destacavam-se: os goia-
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nases e os carijós na capitania de São Vicente, os guaimures ao norte do Espírito
Santo, os tupiniquins em Porto Seguro e os tupinambás na Bahia, cenário do pri-
meiro contato com os naturais da terra (LEITE, 1956, p.13).
Independente do grupo existente na colônia ou mesmo dos costumes que
eles partilhavam, havia um traço na cultura ameríndia que se apresentou como
um grande obstáculo à conversão daqueles indivíduos: a guerra. Por mais que
os indígenas acatassem, a seu modo, os apelos dos padres no que concerne
ao abandono de seus hábitos, a guerra era algo extremamente arraigado. Esse
traço da cultura nativa foi rapidamente percebido pelos europeus. Segundo
os padres, os indígenas estavam dispostos a tudo, menos deixar de guerrear
(NÓBREGA, 1988, p. 72).
Na verdade, os jesuítas não eram contrários à guerra em si, mas sim às
implicações que dela resultavam, pois os índios derrotados eram aprisiona-
dos e levados para as aldeias dos vencedores, onde eram comidos em grandes
cerimônias antropofágicas. Vejamos a descrição de Manuel da Nóbrega em
agosto de 1549:
Fazem guerra, uma tribu a outra, a 10, 15 e 20 leguas, de modo que
estão todos entre si divididos. Si acontece aprisionarem um contrario
na guerra, conservam-no por algum tempo, dão-lhe por mulheres suas
filhas, para que o sirvam e guardem depois do que o matam dom gran-
de festa e ajutamento dos amigos e dos que moram por alli perto, e si
delles ficam filhos, os comem, ainda que sejam seus sobrinhos [...] E’
esta a cousa mais abominável que existe entre elles. Si matam a um na
guerra, o partem em pedaços, de pois de moqueados os comem, com a
mesma solemnidade; e tudo isto fazem com um odio cordial que têm
um ao outro [...] (NÓBREGA, 1988, p. 90).
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no mês de agosto (período de desova de um peixe, conhecido pelos portugueses
como tainha) e em novembro (época da colheita do milho e da mandioca), nor-
malmente, duravam cerca de dez dias ou mais (STADEN, 2010).
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recusa dos índios em colaborar à altura das expectativas portuguesas
(MONTEIRO, 1994, p. 30).
SALTEADORES E JESUÍTAS
Os costumes que integravam a cultura dos indígenas que ocupavam o litoral bra-
sileiro, como ausência de vestimentas, possuírem mais de um cônjuge, ter a vida
condicionada por um líder espiritual (pajé) e, sobretudo, as práticas antropofági-
cas, foram caracterizados como elementos de uma cultura tipicamente bárbara
e criaram condições para justificar a redução do índio à escravidão, segundo os
colonizadores portugueses.
Nesse sentido, é importante compreender que os colonizadores lusos passa-
ram, paulatinamente, a demonizar a figura do indígena. Não que os portugueses
realmente acreditavam que os ameríndios eram partidários de práticas conside-
radas demoníacas. Entretanto, fizeram o possível para justificar a escravização
dos naturais da terra, sobretudo após a chegada da Companhia de Jesus, em
1549 (VAINFAS, 1995).
Os brancos oriundos do Reino almejavam adquirir cada vez mais lucros
nas terras brasílicas e perceberam que a escravidão dos nativos era um negócio
lucrativo, visto que não precisavam gastar somas consideráveis com a aquisi-
ção de escravos africanos. Nesse âmbito, segundo Kuhnen (2005), até 1550 os
colonizadores utilizavam, em linhas gerais, três métodos para elevar os índios à
escravidão. Em primeiro lugar, poderiam ser prisioneiros oriundos de conflitos
intertribais, isso porque, após a chegada dos jesuítas, as práticas antropofágicas
eram extremamente condenadas. Outra maneira de adquirir escravos amerín-
dios era por meio do “resgate” e uma terceira possibilidade levantada pelo autor
era a compra dos nativos juntamente negociados com os líderes das aldeias.
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terra era algo que desagradava tanto os monarcas lusos como os inacianos res-
ponsáveis pela labuta catequética.
A permanência dos membros da Companhia de Jesus na América portu-
guesa decorria do projeto colonizador conduzido por D. João III (1521-1557).
Por um lado, observamos o estabelecimento do Governo Geral, que buscava
conceder assistência às capitanias, a centralização da administração colonial e
os investimentos nas atividades econômicas, sobretudo na empresa açucareira.
Por outro, a expansão da fé, a salvação das almas e a proteção dos índios que
eram explorados pelos portugueses. Sob esse último aspecto é que decorriam as
tensões existentes nos trópicos entre os padres e os colonos.
O projeto do Rei de Portugal pode ser visualizado no Regimento de Tomé
de Sousa. Esse Regimento refletia as principais preocupações da Coroa lusa e
estabelecia as medidas prioritárias a serem adotadas e desenvolvidas no Novo
Mundo. Em primeiro lugar, o Regimento estabelecia que os objetivos da colo-
nização fossem o serviço de Deus e a exaltação da fé. Seguia-se do proveito das
terras tropicais, ou seja, investimentos de cunho econômico. E, em terceiro
lugar, o cuidado com os naturais da terra. Assim, “estão presentes, como se vê,
o serviço de Deus, o serviço e proveito geral, o enobrecimento e serviço parti-
cular do Brasil. A ‘fé’ em primeiro lugar; o ‘império’ em segundo. Mas ambos”
(LEITE, 1956, p. 08).
Quanto à liberdade dos naturais da terra, pode-se observar, ainda, no
Regimento de Tomé de Sousa uma total desaprovação com relação às ações dos
colonos que colocavam em risco a liberdade do nativo, pois, devido à falência
dos “resgates” e ao crescimento econômico, a escravização do gentio passou a ser
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o façais assim [...] (REGIMENTO, 1548 apud KUHNEN, 2005, p. 314).
Por meio da carta inaciana, observa-se que os “saltos” eram uma prática fre-
quente na capitania da Bahia, visto que a grande maioria dos escravos indígenas
era obtida dessa forma. O padre destaca que os colonizadores se aproximavam
das aldeias de forma amistosa para, em seguida, raptar os índios e sujeitá-los
à escravidão. Além disso, o relato jesuítico enfatiza que a presença dos maus
cristãos prejudicava e comprometia a catequese dos nativos e a segurança do
território, pois o gentio se levantava contra os colonos, promovendo uma série
de ataques às capitanias. Outro dado interessante que podemos analisar é a
possibilidade levantada pelo inaciano de direcionar os negros da terra adqui-
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ridos por meios ilegais (saltos) aos seus locais de origem na presença de um
padre para doutriná-los. Tal sugestão foi apresentada ao Governador Tomé
de Sousa, visando assegurar que os indígenas, sob condição escrava, fossem
realmente direcionados à sua aldeia de origem. Todavia, essa recomendação
esbarrava em uma gama de empecilhos, principalmente pela escassez de jesu-
ítas para acompanhá-los.
A Companhia de Jesus colocava-se claramente contrária a esses episódios
e despertava a ira dos portugueses que possuíam escravos por meios ilícitos.
Nesse sentido, Manuel da Nóbrega requisitou à Coroa lusa o envio de inquisi-
dores ou mesmo comissários para realizar a libertação dos escravos indígenas
nessas condições. Expôs ao monarca que os naturais da terra em condição ser-
vil estavam vivendo com seus abomináveis costumes. Além disso, reclamou
ao Rei que os senhores de Engenho permitiam que seus cativos vivessem gen-
tilicamente comprometendo a labuta da Companhia. Diante desse quadro, o
religioso solicitou que houvesse uma licença da Sé Apostólica “para fazer-se
regulamento e outras cousas necessarias sobre a restituição dos ditos escravos
salteados” (NÓBREGA, 1988, p. 110).
Caro(a) acadêmico(a), chamo atenção neste momento para um aspecto
da postura inaciana que é extremamente importante para compreender-
mos nossa análise. Os membros da Companhia de Jesus não lutavam apenas
para sanar a ocorrência de “saltos” na colônia e, consequentemente, a exis-
tência de cativos em situação irregular. Mas também lutavam para assistir
os escravos da terra que estavam em poder dos Senhores de Engenho, per-
mitindo, dessa forma, que recebessem os preceitos da Igreja e obtivessem a
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condição servil. Da Bahia, o padre Navarro efetuava a pregação aos escravos
aos domingos e destacava a quantidade expressiva desses homens. A orientação
dada aos Senhores é que levassem seus cativos às missas, para que presencias-
sem a pregação dos padres como todo bom cristão deveria fazer (NAVARRO,
1988, p.78). Observa-se que a doutrina aos escravos ocorre paralelamente ao
combate aos “saltos”, cujo cuidado com as almas dos cativos iria se intensifi-
car durante a administração do terceiro Governador Mem de Sá, a partir de
dezembro de 1557.
Assim que os padres Manuel da Nóbrega e Antônio Pires chegaram à
Pernambuco pela primeira vez, em 1551, depararam-se com um cenário bem
distinto das outras capitanias. Eles observaram um grande desenvolvimento
pautado na atividade açucareira e um notável número de cristãos que ocu-
pavam aquelas terras. Além dos moradores instalados nas duas vilas e nos
Engenhos, os padres ficaram impressionados com o grande número de nativos
cristãos que serviam seus senhores como escravos (KUHNEN, 2005, p. 349).
Para os jesuítas, o progresso dessa capitania estava ligado à postura de Duarte
Coelho que, antes mesmo da Companhia de Jesus ocupar as terras tropicais,
já lutava contra os “saltos” e os “resgates”, pois compreendia que esses meios
só prejudicavam o desenvolvimento de sua capitania. Para suprir as necessida-
des de mão de obra, Duarte Coelho implorava ao Rei de Portugal que fossem
enviados escravos da Guiné, algo que não parece ter ocorrido antes de 1550
(KUHNEN, 2005, p. 343).
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varia assim de Guiné como da terra” (NAVARRO, 1988, p. 149). Por meio das
cartas podemos perceber a entrada paulatina de escravos de origem africana na
colônia portuguesa a partir da segunda metade do século XVI. Contudo, parece
que os senhores não se sentiam motivados com essa alternativa de mão de obra,
preferindo explorar os escravos da terra, mesmo que isso significasse travar uma
luta contra os discípulos da Companhia de Jesus.
Caro(a) acadêmico(a), o presente tópico apresenta uma análise acerca das mudan-
ças nas estratégias catequéticas empreendidas pelos membros da Companhia de
Jesus na colônia portuguesa. Nesse sentido, observa-se, principalmente, a neces-
sidade de “proteger” os indígenas por meio da implementação dos aldeamentos
e o consequente embate travado com os colonizadores em torno da escraviza-
ção dos naturais da terra.
O fim da administração do Governador Geral Duarte da Costa, em 1557,
inaugurou, de fato, nas terras coloniais, um novo modo de conduzir a catequi-
zação dos indígenas. Os religiosos não iriam medir esforços para conseguir
salvar as almas gentias, mesmo que isso significasse forçá-los a abandonar seus
costumes. Na realidade, esse novo método adotado pelos jesuítas já havia sido
ensaiado durante as chamadas “guerras dos índios”, durante a administração de
Duarte da Costa, “de que as cartas dão como efetivo uma geral submissão das
aldeias mais próximas aos portugueses” (PÉCORA, 1999, p. 399). Em carta de
1554 destinada ao monarca D. João III, Manuel da Nóbrega descreve as guerras
que assolavam a colônia e destaca a necessidade de sujeição do gentio:
Na Bahia não se entende agora com o Gentio por falta de línguas, que
não temos; sómente se sustenta aquella casa e se doutrinam alguns mo-
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ços, e assim tambem por que andam elles agora todos baralhados em
tão crueis guerras que visinhos com visinhos e casa com casa se co-
mem, que é grande juízo de Nosso Senhor, e é agora o mais conveniente
tempo para a todos sujeitarem e os imporem no que quizerem; e já ago-
ra a terra estava honestamente segura (NÓBREGA, 1988, p. 145-146).
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o decorrer dos anos, que os métodos catequizadores que utilizavam para a evan-
gelização dos indígenas não surtiram os efeitos desejados.
Todavia, porque os inacianos não atingiram seus objetivos junto aos amerín-
dios? Nesse contexto, podemos considerar uma gama de dificuldades, dentre as
quais, elencamos: a presença de maus cristãos que reduziam os índios à escravi-
dão, o número insuficiente de padres, a ausência de recursos materiais e, ainda,
a resistência dos nativos que não se rendiam à evangelização. Porém isso não
significa afirmar que os padres não obtiveram avanços na conversão do gen-
tio, mas sim compreender que tais avanços estavam distantes dos pretendidos
pelos discípulos de Deus. Em vista disso, abandonaram a via amorosa utilizada
no período inicial e optaram por uma via catequética mais ríspida, punitiva e de
coerção aos índios. Esse novo modo de agir foi marcado pela ameaça aos gen-
tílicos, em que o amor cedeu lugar ao medo. A esse respeito, Pécora (1999, p.
399) tece as seguintes considerações:
A tendência se acentua com a ação militar sistemática do novo gover-
nador Mem de Sá, que aplica aos indígenas severas punições por prá-
ticas condenadas pela religião, e, ao mesmo tempo, oferece proteção
militar para a ação missionária dos jesuítas. A partir desse ponto sem
retorno, a narratio das cartas de Nóbrega organiza seus relatos de modo
a postular, como condição do êxito da missão no Novo Mundo, a sujei-
ção política do indígena, em oposição à idéia predominante anterior-
mente, de convertê-lo apenas pela pregação dos argumentos da fé [...].
Manuel da Nóbrega manifestou sua posição sobre esses nativos por meio
de um relato escrito da capitania da Bahia, em maio de 1558, para o padre
Miguel de Torres em Lisboa.
Este gentio é de qualidade que não se quer por bem, senão por temor
e sujeição, como se tem experimentado; e por isso se S.A. os quer ver
todos convertidos mande-os sujeitar e deve fazer estender os cristãos
pola terra adentro e repartir-lhes o serviço dos Índios áqueles que os
ajudarem a conquistar e senhorear, como se faz em outras partes de
terras novas, e não sei como se sofre a geração portuguesa, que antre
todas as nações é a mais temida e obedecida, estar por toda esta costa
sofrendo e quase sujeitando-se ao mais vil e triste gentio do mundo. Os
que mataram a gente da nau do Bispo se podem logo castigar e sujeitar,
e todos os que estão apregoados por inimigos dos cristãos [...] (LEITE,
1957, p. 448).
O primeiro bispo do Brasil foi dom Pero Fernandes Sardinha, que chegou a
Salvador em 1551, vindo de Portugal. Sua trajetória ficou marcada na histó-
ria do Brasil por ter sido, segundo alguns relatos controversos, devorado por
índios caetés, em um ritual de antropofagia, no litoral do nordeste brasilei-
ro, em 1556. [...] O bispo Sardinha tentou controlar as ações dos colonos por-
tugueses que vieram para o Brasil durante os primeiros anos de colonização
portuguesa. Ele tentava combater, por exemplo, o hábito de fumar, adqui-
rido com os indígenas, bem como tentava impedir que os portugueses se
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relacionassem sexualmente com as indígenas.
Fonte: Pinto (online).
OS ALDEAMENTOS JESUÍTICOS
capitania de São Vicente. Naquele momento, eles reuniram três tribos que esta-
vam a setenta quilômetros da Costa e levaram para o vilarejo de Piratininga
(localidade que, posteriormente, seria a cidade de São Paulo). Os índios só acei-
taram abandonar suas casas por depositarem muita confiança em Anchieta, que
possuía grandes habilidades médicas que resultavam em uma parcela significava
de curas entre os enfermos indígenas (EISENBERG, 2000).
A junção das três tribos em uma única aldeia se mostrava, para Manuel
da Nóbrega, como um projeto viável e eficaz na conversão do gentio, pois, em
razão, principalmente, do caráter “bestial” que os naturais da terra apresenta-
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vam, deveriam permanecer sempre sob a tutela dos padres para não se lançarem
aos antigos costumes que os servos de Deus lutavam para erradicar. Em 1556,
o padre Manuel da Nóbrega, convencido do progresso realizado com os nati-
vos de Piratininga, manifestou desejo de expandir seu projeto para toda a Costa
brasílica. Porém o religioso não poderia dispor da mesma estratégia que antes
havia utilizado para junção das tribos em 1553, isto é, não teria condições de
argumentar com os nativos que viessem para as aldeias cristãs com o propósito
de remediar suas enfermidades, visto que o conhecimento medicinal ficava res-
trito a José de Anchieta. Diante disso, buscou dialogar com o Governador Duarte
da Costa, apresentando a viabilidade de seu projeto para que ele pudesse forne-
cer os homens que deveriam “convidar” os naturais da terra e direcioná-los às
aldeias inacianas (NÓBREGA, 1988).
Segundo Eisenberg (2000), o plano de Nóbrega tinha como objetivo unir
tribos vizinhas ou mesmo inimigas em um mesmo espaço para viver de acordo
com a conduta cristã dos padres. Caso houvesse resistência por parte do gentio,
as tropas portuguesas poderiam realizar uma “guerra justa”. O padre argumen-
tava que essa guerra seria apenas um método de obrigar os indígenas à catequese.
Colocava-se como uma alternativa de salvação aos índios, pois, se recusassem o
“convite” de integração às aldeias cristãs, ficavam sujeitos a serem escravizados
pelos portugueses (EINSENBERG, 2000, p. 89-91), ou seja, o aldeamento serviria
como um modo de empregar, de forma metódica, a catequese e, acima de tudo, de
proteger os nativos da exploração dos lusitanos. Será que realmente protegeram?
Todavia, o diálogo estabelecido entre o superior da missão e o Governador
não avançou. O jesuíta não conseguiu convencê-lo da viabilidade da criação das
aldeias cristãs, tendo que amargar a espera até a chegada de Mem de Sá, em fins de
1557. Essa recusa do plano de catequização decorria da posição do Governador que
argumentava que o monarca português havia decretado que “nenhum índio fosse
coagido a fazer qualquer coisa contra sua própria vontade. A ideia de forçar os nati-
vos a se mudarem para os novos povoados (aldeias) seria contrária à vontade real”
(EINSENBERG, 2000, p. 93). Dessa maneira, a reforma das missões jesuíticas só pôde
ser executada com a chegada do terceiro Governador Geral da colônia, Mem de Sá.
O plano apresentado ao novo Governador teria como elemento primordial
à intervenção da autoridade secular do Estado e isso se fez necessário devido
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à elaboração de uma justificativa política que legitimasse a reforma das mis-
sões sugeridas por Manuel da Nóbrega. Perante essa condição, o jesuíta buscou
fundamentar sua proposta explicando o caráter emergencial do projeto que se
baseava na junção de tribos nativas sob a direção dos jesuítas. Para isso, o ina-
ciano redigiu uma longa carta, em 08 de maio de 1558, da capitania da Bahia ao
padre Miguel de Torres em Lisboa, nela ele pontuou:
Primeiramente o gentio se deve sujeitar e fazê-lo viver como criaturas
que são racionais, fazendo-lhe guardar a lei natural, como mais larga-
mente já apontei a Dom Leão o ano passado. [...] E são tão crueis e bes-
tiais, que assim matam aos que nunca lhes fizeram mal, clérigos, frades,
mulheres de tal parecer, que os brutos animais se contentariam delas
e lhes não fariam mal. Mas são estes tão carniceiros de corpos huma-
nos, que sem excepção de pessoas, a todos matam e comem, e nenhum
benefício os inclina nem abstém de seus maus costumes, antes parece
e se vê por experiência, que se ensoberbecem e fazem piores com afa-
gos e bom tratamento. Este gentio é de qualidade que não se quer por
bem, senão por temor e sujeição, como se tem experimentado; e por
isso se S.A. os quer ver todos convertidos mande-os sujeitar e deve fa-
zer estender os cristãos pola terra adentro e repartir-lhes o serviço dos
Índios àqueles que os ajudarem a conquistar e senhorear, como se faz
em outras partes de terras novas, e não sei como se sofre a geração por-
tuguesa, que antre todas as nações é a mais temida e obedecida, estar
por toda esta costa sofrendo e quase sujeitando-se ao mais vil e triste
gentio do mundo. [...] Depois desta Baía senhoreada, será fácil cousa
sujeitar as outras Capitanias porque sómente os estrondos que lá fez a
guerra passada os fez muito medrosos e aos cristãos deu grande ânimo
[...] Desta maneira cessará a boca infernal de comer a tantos cristãos
quantos se perdem em barcos e navios por toda a costa; os quais todos
são comidos dos Índios [...] (LEITE, 1957, p. 447-449).
É importante compreen-
der que, para justificar a
necessidade da reforma das
missões, com a criação dos
aldeamentos, o jesuíta nesse
relato inicia suas observações
enfatizando as característi-
cas “bestiais” dos nativos
da colônia. Para ele, a única
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A lei, que lhes hão-de dar, é defender-lhes comer carne humana e guer-
rear sem licença do Governador; fazer-lhes ter uma só mulher, vesti-
rem-se pois têm muito algodão, ao menos depois de cristãos, tirar-lhes
os feiticeiros, mantê-los em justiça entre si e para com os cristãos: fazê-
los viver quietos sem se mudarem para outra parte, se não for para
antre cristãos, tendo terras repartidas que lhes bastem, e com estes
Padres da Companhia para os doutrinaram (LEITE, 1957, p. 450).
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caram juntamente à Coroa portuguesa uma jurisdição que tratasse dos assuntos
relacionados aos naturais da terra. Foi nesse contexto que se cogitou uma maneira
de inserir os nativos no corpo de leis da sociedade portuguesa. Na verdade, “ten-
tou dar ao indígena um estatuto jurídico igual ao dos cristãos” (NEVES, 1978
p.121). Porém o máximo que se conseguiu naquele momento foi uma legislação
peculiar diferente da justiça que era aplicada no restante da colônia.
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dedicavam-se à fabricação de suas próprias vestimentas. Estas oriundas de
suas plantações de algodão, ou seja, revelava os pontos positivos da aldeia sob
a direção dos servos de Deus.
Com relação aos aldeamentos, Boxer (2002) observou que as aldeias cris-
tãs se localizavam próximas as cidades e vilas coloniais, visto que os jesuítas
eram obrigados a ceder os gentílicos para realizar tarefas manuais para os
portugueses, sob algumas condições. Entretanto, os servos de Deus lutavam
para restringir esse contato, pois a proximidade entre índios e colonizadores
comprometia toda obra evangelizadora. Em razão disso, buscavam proteger
os negros da terra da má influência dos lusitanos, não ensinando a língua
portuguesa aos gentios, e se empenhavam no aprendizado da língua geral
(BOXER, 2002, p. 108).
Os aldeamentos não surtiram os efeitos almejados pelos servos de Deus
no que se refere ao abastecimento de mão de obra aos colonizadores. Os
padres não conseguiram oferecer a quantidade de trabalhadores nativos que
os portugueses almejavam. Essa limitação do acesso aos indígenas irritou
os colonos que já se viam prejudicados com a extinção das tribos em favo-
recimento da constituição dos aldeamentos. Conforme Monteiro (1994), os
lusitanos desejavam negociar diretamente com os naturais da terra, porém
os jesuítas sempre se manifestaram como interlocutores, prejudicando as
negociações.
A ESCRAVIDÃO INDÍGENA
Nesse sentido, a chegada dos jesuítas não foi bem vista pelos colonizadores
que almejavam efetuar a exploração dos indígenas sem nenhum tipo de contes-
tação. Por meio das cartas jesuíticas, observamos uma postura contrária à prática
dos “saltos” comumente realizada pelos portugueses na Costa brasílica. Tal prá-
tica preocupava tanto os jesuítas quanto a Coroa portuguesa. Contudo, mesmo
com toda reprovação dos inacianos, essas ações se tornaram corriqueiras no lito-
ral brasileiro, tendo diminuído apenas com a criação dos aldeamentos, em que
os indígenas ficavam sob a tutela dos jesuítas.
No período entre 1540 a 1570, visualizamos o auge da exploração dos natu-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
rais da terra nos Engenhos
do litoral do Brasil, sobre-
tudo no recôncavo baiano.
Dados estatísticos apontam
que, em 1545, a capitania
de São Vicente, mais espe-
cificamente no sul dela,
computava seis engenhos,
contabilizando 3 mil escra-
vos, sendo que a maioria era
indígena. Notamos, também,
que, durante as décadas de
Figura 36: Jean baptiste debret - caçador escravos, por Jean-
1550 e 1560, os empreendi- Baptiste Debret
mentos dos produtores de Fonte: Wikimedia Commons.
açúcar conheceram uma rápida expansão e isso, logicamente, careceu de núme-
ros expressivos de cativos. Em 1570, Pernambuco possuía 23 engenhos e tantos
escravos índios que o excedente podia ser exportado para outras capitanias
(SCHWARTZ, 1988, p. 46).
Diante dessa realidade instaurada na colônia portuguesa, os membros da
Companhia de Jesus arquitetavam estratégias para evangelizar os índios que
estavam cativos nas fazendas dos Senhores de Engenho. Em carta, o padre José
de Anchieta reafirmava a devoção dos escravos gentios, pois, com a notícia da
chegada do padre, os escravos movimentavam as fazendas e procuravam ir
ao encontro do religioso para, assim, confessarem seus pecados. Outro ponto
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O autor ainda destaca que “cada negro produzia oitenta arrobas de açúcar por
ano, numa produção total de 750 mil a 800 mil arrobas” (BOXER, 2002, p. 117).
Diante dessa intensa presença dos escravos africanos, que já estavam acostu-
mados com uma dura rotina de trabalho e, consequentemente, podiam oferecer
maiores rendimentos aos Senhores de Engenho, qual seria o motivo que levava
os portugueses a priorizarem a mão de obra dos escravos da terra?
Segundo Raminelli (1996), mesmo diante de todos os obstáculos enfren-
tados pelos colonizadores para conseguirem escravizar os indígenas, que iam
desde a dificuldade de capturar os nativos às proibições levantadas pelos filhos de
Loyola, (algo que se intensificou a partir de 1566 com os questionamentos sobre
a legalidade da escravidão indígena), os Senhores de Engenho não queriam abrir
mão da exploração dos naturais da terra, pois não tencionavam gastar seus ren-
dimentos com a compra de escravos da Guiné (RAMINELLI, 1996, p. 15). Visto
que, para adquirir escravos negros, era necessário possuir bons rendimentos.
Por outro lado, Schwartz (1988) afirma que os senhores de engenho ainda
não possuíam capital disponível “para suprir inteiramente suas necessidades por
meio do dispendioso tráfico atlântico de escravos africanos, e, portanto, depen-
diam de trabalhadores indígenas” (SCHWARTZ, 1988, p. 46). Assim, os colonos
continuavam a sujeitar os índios para suprir a demanda de mão de obra que a pro-
dução açucareira requisitava e em menor medida utilizavam os escravos negros.
Com o crescimento das restrições ao acesso à mão de obra indígena e com a
imprudência, segundo os jesuítas, dos colonizadores que escravizavam os índios
por vias ilícitas, criou-se a necessidade de rediscutir sob quais condições os gen-
tios poderiam ser escravizados sem ofender os princípios cristãos, visto que,
antes de tudo, os motivos para sujeitar os índios deveriam ser cristãos, tendo a
guerra um caráter virtuoso (JOHNSON, 1998).
Nesse embate, a escravidão indígena tornar-se-ia permissível mediante a
declaração de “guerra justa”. Esta poderia ser declarada se os índios convertidos
ao catolicismo fossem flagrados na prática de seus antigos costumes (princi-
palmente em atos antropofágicos), se houvesse interferência negativa de pajés
e caraíbas na catequização ou, ainda, se ocorressem levantes indígenas contra
vilas e cidades portuguesas (HANSEN, 1998, p. 347-373). Nessas condições, a
guerra seria justa e a escravidão dos naturais da terra era legal, ou seja, a “guerra
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
justa” era o método mais ríspido de evangelização utilizado pelos jesuítas, visto
que, se o índio, mesmo evangelizado, fosse flagrado praticando seus repudiá-
veis costumes, ele poderia ser escravizado pelos colonos. Dessa forma, renunciar
a própria cultura significava assegurar, na maioria das vezes, a sua liberdade.
Porém, ao logo da administração de Mem de Sá, os portugueses intensificaram
a exploração ao gentio, desrespeitando comumente os critérios que validavam
a servidão indígena.
Desse modo, os membros da Companhia de Jesus procuraram a ajuda da
Coroa portuguesa para discutirem acerca da escravização dos gentílicos e essa
atitude resultou na convocação de uma Junta antes mesmo do dia 24 de agosto de
1566. Essa Junta foi integrada por Mem de Sá, pelo Bispo D. Pedro Leitão, pelo
Ouvidor Brás Fragoso e pelo Provincial da Companhia de Jesus, Luis da Grã,
que tratou fundamentalmente dos resgates dos nativos. Segundo as resoluções
da primeira Junta, os resgates somente poderiam ocorrer em “extrema necessi-
dade”. Esse termo foi substituído, na segunda junta, por “grande necessidade”,
favorecendo, assim, os colonizadores que interpretavam “grande necessidade”
de acordo com os seus próprios interesses econômicos (WETZEL, 1972, p. 210).
As resoluções da Junta na Bahia ecoaram em Lisboa e, em 20 de março de
1570, o Rei D. Sebastião promulgou a primeira Lei de “liberdade” indígena. Essa
lei “foi feita precisamente para atalhar os abusos contra os índios e proibir os
cativeiros chamados ilícitos. Proibi-se, em princípio, a escravização, contudo o
cativeiro acaba sendo aceito e regulamentado na prática” (BEOZZO, 1983, p. 16).
Na verdade, a lei proibiria a escravidão dos nativos, mas, por outro lado,
criaria brechas para que, na prática, acontecesse por meio das vias legais, assim
como estava implícito nas determinações da Junta em 1566. Para melhor com-
preendermos as implicações dessa lei promulgada em 1570, transcreveremos
um excerto dela:
Defendo e mando que daqui em diante se não use nas ditas partes do
Brasil dos modos que se até ora usou em fazer cativos os ditos gentios,
nem se possam cativar por modo nem maneira alguma, salvo aqueles
que forem tomados em guerra justa que os Portugueses fizerem aos
ditos gentios, com autoridade e licença minha, ou do meu Governador
das ditas partes, ou aqueles que costumam saltear os Portugueses das
ditas partes, e a outros gentios para os comerem [...]. E as pessoas que
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
pelas ditas maneiras lícitas cativarem os ditos gentios serão obrigadas
dentro de dois meses primeiros seguintes, que se começaram do tem-
po em que os cativarem, fazerem escrever os ditos gentios cativos nos
livros das Provedorias das ditas partes para se poder ver e saber quais
são os que licitamente foram cativos. E não o cumprindo assim no dito
tempo de dois meses: Hei por bem que percam a ação dos ditos cativos
e senhorio. E os gentios que por qualquer outro modo e maneira forem
cativos nas ditas partes declaro por livres [...] (MALHEIROS, 1976, p.
173 apud BEOZZO, 1983, p. 16).
Segundo Beozzo (1983), essa lei foi um exemplo evidente de uma lacuna criada
para se legitimar a escravidão dos indígenas. Por outro lado, Wetzel (1972, p. 214)
afirma que foi a primeira lei em favor da liberdade dos índios e que causou gran-
des lamentações por parte dos colonizadores. O fato é que a lei almejava definir
com exatidão sob quais condições o índio poderia ser escravizado, isto é, só por
meio das “guerras justas”. Além disso, procurou contabilizar, por meio das ins-
crições nos livros das Provedorias, a quantidade de escravos que estivessem em
cativeiro, a sua origem e, o mais importante, quem seriam seus proprietários.
Essa lei reconhece a existência de escravos cativos de forma ilícita nos trópicos,
no entanto, o permite, salvo duas exceções.
Reconhecendo a lei que se cativava o gentio por modos ilícitos, proibiu
que de então em diante se pudesse cativar por modo nem maneira al-
guma; exceto: 1.° aqueles que fossem aprisionados em guerra justa, fei-
ta com licença Régia, ou do Governador; 2.°, aqueles que costumavam
saltear os colonos ou outros índios para os devorarem (MALHEIRO,
1867, p. 24).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Assim, só em meados do século XVIII com as resoluções do Marques de Pombal
que a escravidão indígena foi legalmente proibida no Brasil.
Dentre os muitos inimigos que a Companhia de Jesus teve ao longo dos três
primeiros séculos de sua experiência em Portugal, o Marquês de Pombal foi
o mais implacável, chegando a ponto de conseguir sua expulsão, primei-
ro, em 1759, dos territórios portugueses; depois, em 1773, por ordem do
papa Clemente XIV, de toda a cristandade. [...] O fato é que Pombal elegeu a
Companhia de Jesus como sua maior inimiga e iniciou, já no começo de seu
governo, uma vasta propaganda contra seus padres. O auge dessa propa-
ganda foi a publicação da obra Deducção Chonologica e Analytica, de 1767-8,
na qual, em cinco volumes, Pombal procurou desmoralizar completamente
os padres da Companhia de Jesus, denunciando-os como os verdadeiros
culpados pelo atraso econômico e intelectual de Portugal. A obra, escrita
depois da expulsão dos jesuítas de Portugal e que serviu como um dos ins-
trumentos para a sua eliminação de todo o espaço cristão em 1773 teve
ampla distribuição e foi de leitura obrigatória.
Para consultar o documento de expulsão dos jesuítas na íntegra, acesse o
site disponível em: <http://www.historiacolonial.arquivonacional.gov.br/cgi/
cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=279&sid=41>. Acesso em: 23 maio 2015.
Fonte: Costa (2011, p. 74-75).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerações Finais
178 UNIDADE III
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
nizador português nas terras brasílicas.
Desse modo, os jesuítas aceitavam como legítima a escravidão que resul-
tasse da “guerra justa”, isto é, guerra movida contra os índios que recusassem se
converter ao cristianismo ou, então, que atacassem os portugueses. Entretanto,
observamos que, mesmo com a pressão dos jesuítas, a Coroa portuguesa não
conseguiu assegurar de fato a proibição da escravização dos naturais da terra por
vias ilícitas, algo que permaneceu frequente nos trópicos até meados do século
XVIII. Assim, após concluirmos essa importante etapa de nossa análise, prosse-
guiremos com os avanços da colonização portuguesa além da Costa brasileira
e, consequentemente, com uma nova organização econômica, política e social
que será estruturada no âmbito da região mineira.
Encontro você na próxima unidade. Até lá!
Por meio do estudo desta unidade e com uma análise minuciosa do trecho
documental acima, elabore um texto dissertativo levando em consideração:
a. O trabalho catequético dos jesuítas.
b. A localização do relato.
c. O contato entre brancos e índios e suas implicações.
d. A postura do padre José de Anchieta.
181
Brasil, terra de pecados, que muitos cro- Nessas polêmicas cotidianas é possível
nistas e historiadores associaram, em tom flagrar, sem dúvida, a evidência de que
moralista, à libertinagem sexual e à ausên- os portugueses viviam mesmo entre as
cia quase completa de religião. Afinal nosso índias, dando-lhes qualquer coisa em
clero aqui sempre foi escasso, a Igreja desor- troca, um espelhinho, um pano, um mimo.
ganizada e muitos padres mal ligavam para Mas é possível flagrar algum escrúpulo e
seu ofício espiritual. Padres mal prepara- o medo que todos tinham do inferno. Só
dos e poucos, com exceção quase solitária o fato de discutirem muito esse assunto,
dos jesuítas, vale insistir, que Gilberto Freyre como era o caso, já dá mostra de quanto
chamou, com bom humor, de “donzelões Deus e o Diabo impregnavam o cotidiano
intransigentes” – incansáveis no propósito desses homens [...].
de propagar a fé e moralizar os costumes [...].
O mais significativo, porém, é que quase
Mas teria sido assim mesmo? Corria solto o todos que diziam não haver pecado tão
pecado sem o menor vestígio de religião? grave assim na tal fornicação alega-
Outro exagero é o que nos mostram os vam que só fornicavam com índias, pois
documentos da Inquisição que, por volta de eram elas “mulheres públicas”, mulheres
1591, mandou um visitador do Santo Ofício de má vida, prostitutas. Se fossem vir-
ao Brasil para averiguar a quantas andava a gens – diziam - , com mulheres casadas
fé e o comportamento dos colonos. O que ou, principalmente, com mulheres bran-
tais documentos revelam antes de tudo, é cas, aí sim o pecado era grave. Machismo
o sentimento de culpa que atormentava e racismo, com algum verniz de mora-
– ou podia atormentar – os próprios portu- lismo cristão, eis o que se pode extrair,
gueses, sabedores do quanto pecavam na em doses variadas, dessas conversas mas-
terra, sobretudo com as índias. Mas como é culinas no primeiro século do Brasil [...].
possível saber o que se passava na consci- Religião e sexo andaram juntos, pois,
ência daqueles portugueses há quinhentos durante muito tempo no Brasil colonial.
anos? A resposta está num tipo de denúncia Não é só neste caso de fornicários que
que a Inquisição recolheu, naquele tempo, encontramos a prova disso. Os documen-
contra os que dizem que fornicar não era tos da Inquisição nos revelam inúmeras
pecado: muitos colonos acusavam os que outras situações semelhantes, uma vez
diziam, sobretudo em conversas masculi- que o Santo Ofício estava mesmo empe-
nas nas tavernas, engenhos e vilas, regados nhado em policiar os costumes da
a vinho, que fornicar não era pecado. Nar- população colonial. Entre denúncias e
rando suas aventuras sexuais, muitos riam, confissões há casos interessantíssimos
enquanto alguns polemizavam, dizendo de mistura entre as coisas da fé e as pul-
que fornicar era pecado sim, e pecado mor- sões do desejo.
tal que condenava ao inferno.
O certo, porém, é que o pecado no Brasil castigos do céu e da terra. De mais a mais,
colônia não corria livre como muitos pen- era tudo muito exposto naquele tempo,
sam. Os jesuítas estavam sempre a reprovar pois os espaços das casas não eram cla-
os excessos. Os inquisidores a perseguir os ramente definidos e, quando o eram, nas
mais afoitos. E todos, a bem dizer, viviam casas-grandes, por exemplo, mal havia por-
mais ou menos atormentados, temendo os tas separando cômodos.
Fonte: Vainfas (2013, p. 271-275).
MATERIAL COMPLEMENTAR
A Missão
Ano: 1986
Sinopse: Filme britânico dirigido por Rolland Joffé e escrito por Robert
Bolt. O filme retrata a saga de um mercador de escravos indígenas que
se viu arrependido pelo assassinato do irmão. Arrependido de seus
atos, o mercador resolve se converter jesuíta e residir no aldeamento
em Sete Povos das Missões, região que era disputada entre as Coroas
da Espanha e Portugal durante o século XVIII e que será palco das
“guerras guaraníticas”, onde se presenciou um verdadeiro massacre
contra os indígenas e os jesuítas.
Assista “Antes do Brasil, Cabo Frio, 1530”. Nesse breve documentário, é abordado o cotidiano nas
tribos indígenas antes do ritual antropofágico. Vale a pena!
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=lIVU79GTsw4>. Acesso em: 21 maio 2015.
Material Complementar
Professora Me. Ana Lúcia Sales de Lima
IV
A CONSOLIDAÇÃO DA
UNIDADE
COLONIZAÇÃO LUSITANA
NOS TRÓPICOS
Objetivos de Aprendizagem
■ Compreender a importância da economia colonial além da indústria
açucareira.
■ Discutir a relevância dos bandeirantes no processo de interiorização
da colônia lusitana.
■ Analisar os impactos da descoberta do ouro na região das Minas
Gerais, bem como apresentar as principais mudanças ocorridas por
meio dessa atividade aurífera.
■ Entender os motivos que levaram à transferência da Corte lusa para
as terras brasílicas.
■ Observar as principais mudanças ocorridas no Brasil até sua
independência.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■ A Expansão Territorial da Colônia Lusitana
■ A Era de Ouro no Brasil Português
■ O Império Português no Brasil: da chegada das Cortes à
Independência
187
INTRODUÇÃO
Introdução
188 UNIDADE IV
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A EXPANSÃO TERRITORIAL DA COLÔNIA LUSITANA
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
uma produção diversificada” (MENDES, 2011, p. 21). É importante destacar
que a análise desenvolvida por Mendes (2011) segue em contramão das refle-
xões encontradas na obra Formação do Brasil Contemporâneo, do historiador
Caio Prado Júnior, que considerava que a colônia lusitana havia se constitu-
ído exclusivamente para fornecer açúcar, algodão e, posteriormente, ouro para
o mercado europeu.
Um bom exemplo da existência de outras atividades econômicas relevan-
tes no espaço colonial foi o episódio registrado no início do século XVIII que
ficou conhecido como “lei da mandioca”. Por meio dessa determinação, tanto os
Senhores de Engenho quanto os pequenos lavradores de cana ficavam obriga-
dos a cultivar 500 covas de mandioca por escravo. Houve uma forte reação por
parte dos atingidos, sobretudo na capitania da Bahia, onde existia claramente
“três círculos de produção de farinha de mandioca”. Em Pernambuco, observa-
ram-se duas faixas consideráveis de produção, uma nas proximidades de Santo
Antão e a outra presente na região açucareira, nas freguesias de Serinhaem,
Muribeca e Cabo (SAMPAIO, 2014, p. 391). Além dessas localidades, o autor
destaca a relevância ainda maior da produção de mandioca na capitania do Rio
de Janeiro que possuía uma localização privilegiada que tornava o transporte
do produto mais barato.
Outro ponto importantíssimo levantado por Sampaio (2014) se refere à des-
tinação da farinha de mandioca produzida nas capitanias. Segundo o autor, boa
parte da produção era “destinada, na primeira metade do século XVII, ao tráfico de
escravos, fato ao qual a historiografia tem dado pouca atenção” (SAMPAIO, 2014,
p. 393). Essas informações podem ser encontradas nas observações realizadas
por Frei Vicente de Salvador (1982), em 1612, que destacou a exportação da fari-
nha de mandioca para os portos de Angola, na África. Desse modo, constata-se
que a produção de farinha de mandioca teve um papel relevante no que tange
ao “financiamento” do tráfico de escravos negros para o Brasil. Assim, pontua
Sampaio (2014, p. 394):
Em 1620, a Câmara determinou que aqueles que pretendessem le-
var a preciosa farinha para trocar por escravos em Angola deveriam
deixar fiança, comprometendo-se a trazer escravos para o Rio. Bus-
cava-se evitar, assim, que eles fossem vendidos no Nordeste, onde
alcançavam maior preço. Tais fatos apontam para a existência de um
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
XVI e XVII, destacaram-se outros produtos
secundários, porém não desprezíveis.
O autor menciona a produção do tabaco que começou no século XVII,
tendo se consolidado por volta de 1642. Assim como a farinha de mandioca, o
tabaco não se restringiu ao mercado interno colonial e se despontou no cenário
de exportação, sobretudo para a Europa e África, sendo utilizado como moeda
de troca na aquisição de escravos africanos, os quais, em sua maioria, eram dire-
cionados para os negócios do açúcar.
Outro dado interessante está relacionado ao baixo custo na produção do
tabaco, sendo “mais simples e muito menos dispendioso que a do açúcar, empre-
gando cada lavoura, uma extensão de terra menor do que a dos canaviais, em
geral entre cinco e dez escravos” (WEHLING, 2005, p. 213). A produção dos
rolos de fumo estava concentrada, principalmente, na capitania da Bahia e a sua
produção possibilitava a existência de um setor “intermediário de proprietários,
entre os latifúndios de açúcar, de um lado, e os escravos ou agricultores pobres,
de outro”. Além disso, sua importância no cenário econômico colonial pode ser
compreendida também com os dados estatísticos do período em que figurava
como o terceiro principal produto de exportação em 1710 e que “correspondia
a 9,5% das rendas daquele ano” (WEHLING, 2005, p. 213).
Além dos gêneros citados acima, Wehling (2005) aponta que outras culturas
também tiveram um papel significativo na economia dos trópicos lusos durante
o século XVII, principalmente, no Estado do Maranhão, onde se presenciou as
lavouras de algodão e de pimenta. Em contrapartida, em São Paulo, observou-
-se um sistema agrário que possuía feições bem peculiares.
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suíam suas próprias oficinas e as vilas e cidades eram pequenas” (WEHLING,
2005, p. 215). Precisamos compreender que as atividades manufatureiras acompa-
nhavam o crescimento dos centros urbanos e, nesse âmbito, a colônia ainda não
possuía núcleos citadinos significantes. Todavia, mesmo com um cenário des-
favorável, podemos destacar a existência da produção de tecidos nos pequenos
teares localizados nas fazendas e mesmo de teares nos núcleos urbanos, como na
cidade de São Paulo. Além dessas limitações, os produtos manufaturados colo-
niais ainda sofriam com a concorrência estrangeira que abastecia as famílias mais
abastadas dos trópicos. Nesse sentido, em busca de assegurar a própria sobrevi-
vência, era muito comum encontrar um artesão especializado em vários ofícios.
Prezado(a) aluno(a), observamos a relevância do mosaico agrícola para a
economia colonial, como também mencionamos a existência não menos impor-
tante das atividades manufatureiras. Após a conclusão desta etapa, passaremos,
a partir desse momento, à reta final de nossas considerações de cunho econô-
mico ao estudo da pecuária no Brasil português.
No final do século XVI, por meio dos escritos realizados por Gabriel Soares de
Sousa, temos conhecimento da importação ou mesmo da criação de animais na colô-
nia lusitana. Essas informações também estão presentes nos registros de Ambrósio
Brandão, em sua obra Diálogos das grandezas do Brasil, que, no início do século XVII,
destaca “a existência de uma pecuária já bastante diversificada, com a presença de
bovinos, ovinos, equinos e muares, além de aves domesticadas” (SAMPAIO, 2014,
p. 399). Entretanto, dentre toda essa variedade, a criação de bovinos ganhou um
papel de destaque. Isso ocorreu, principalmente, por serem utilizados como força
motriz no complexo açucareiro e, também, como meio de transporte.
E a Carreira da Índia?
Considerando prós e contras, D. João IV, o primeiro rei da dinastia de Bragan-
ça, decidiu-se por Pernambuco, na época a região mais próspera do Brasil,
que, apesar de já estar ocupada por holandeses, oferecia mais atrativos que
todo o Estado da Índia. Nas palavras do novo rei, o Brasil era a “vaca leiteira”
de Portugal, e ele não escondia o interesse de livrar-se de uma vez por to-
das da Índia portuguesa, que trazia muito mais problemas do que soluções.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
[...] Na década de 1650, a decadência da rota tornou-se ainda mais evidente
quando, durante todo o período, apenas 34 naus circulavam pelo trajeto, nú-
mero insignificante se comparado com o auge do comércio ou mesmo em
relação ao movimento de embarcações na rota do Brasil na mesma época.
Fonte: Pestana (2006, p. 188-190).
OS BANDEIRANTES
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de várias localidades da colônia, geralmente motivadas pelos aspectos pontu-
ados por Davidoff (1986).
Nesse sentido, quem teria motivado a saída dessas expedições? De acordo
com os estudos realizados por Monteiro (1994), de certa forma, o projeto
desenvolvido pelo governador geral D. Francisco de Sousa (1591-1601)
intensificou as expedições lusas ao “sertão”, pois o governador dedicou-se a
busca por metais e pedras preciosas, influenciado por lendas indígenas que
davam conta da existência desses minerais. Em 1596, D. Francisco organi-
zou três expedições, saindo da Bahia, Espírito Santo e São Paulo, rumo ao
São Francisco. As bandeiras que saíram de São Paulo possuíam cerca de
25 colonos, cada qual com seus respectivos índios. Uma parte da expedi-
ção foi rumo a Salvador e encontrou amostras de pedras preciosas, outros
foram explorar as proximidades do atual Estado de Tocantins. Contudo,
a maioria das expedições retornou a São Paulo sem reservas de minérios,
mas com muito índios Tupinambás capturados na região do vale do Paraíba
(MONTEIRO, 1994, p. 58-59).
Durante o período de 1599 e 1611, o governador Francisco de Sousa incen-
tivou e financiou inúmeras incursões rumo ao “sertão” em busca de metais
preciosos e índios. Todavia, os bandeirantes regressavam apenas com indíge-
nas aprisionados e sem notícias de reservas auríferas. Esse resultado negativo
no que tange à exploração dos minérios, fez com que o Governador concen-
trasse seu empreendimento apenas na região do planalto de Piratininga, pois
os custos dessas expedições longínquas eram muito altos. Nesse âmbito, pon-
tua Monteiro (1994, p. 61):
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ram estratégias para adquirir indígenas, enganando os próprios inacianos. Nesse
contexto, pontua Monteiro (1994, p. 65):
De acordo com um padre, os funcionários da Coroa designados para
auxiliar os jesuítas no estabelecimento de aldeamentos agiam com ci-
nismo, pois, após colaborarem com os padres no transporte dos Gua-
rani, entregariam os índios para os colonos se servirem deles enquanto
cativos [...] A medida que crescia a demanda de escravos, a violência
tornava-se um instrumento cada vez mais importante na aquisição de
cativos no sertão.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Segundo Wehling (2005), a crise
econômica do Reino português
nas décadas de 1660 e 1670 con-
tribuiu para a intensificação dessas
expedições e, consequentemente,
pela descoberta da região aurí-
fera. Os bandeirantes receberam
cartas do próprio Rei estimulan-
do-os à busca de metais preciosos.
Algo que possibilitou um melhor
conhecimento do território, facili-
tando as incursões. Assim, foi nos
últimos anos do século XVII, mais
precisamente entre 1693 e 1695,
que os bandeirantes encontraram
ouro em quantidades considerá-
veis na região que hoje se localiza o
Estado de Minas Gerais. Essa des-
coberta inaugurou uma gama de
transformações no cenário colo-
nial e deslocou todas as atenções
para a região central do Brasil,
abrindo uma nova etapa na colo- Figura 38: Expedições dos Bandeirantes
nização dos trópicos. Fonte: Campos; Dolhnikoff (1994, p. 19).
nas Gerais tornou-se uma das principais fontes de riqueza do Império Lusitano.
Fonte: Minas Gerais (online).
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antes de sua “descoberta” oficial. Segundo essa vertente, uma gama de situações
demonstraram que existiu uma extração “sigilosa de ouro pelos paulistas a partir
da década de 1670 na região de Minas Gerais” (ALMEIDA; OLIVEIRA, 2014, p.
287). Essa desconfiança era devido aos indícios de uma frequente utilização de
ferramentas para extrair minérios do solo. Além disso, outro dado que reforça
essa constatação está relacionado aos registros de um comerciante paulista da
época: “são os 6 conto de réis amoedados e as 207 oitavas de ouro arrolados
no inventário do comerciante paulista Gonçalo Lopes, datado de 1689”. Anos
depois, esse mesmo comerciante se destacava como um dos principais credores
de Fernão Dias Pais (ALMEIDA; OLIVEIRA, 2014, p. 287).
Dando prosseguimento a essa linha de raciocínio, Adriana Romero pon-
tua que, muito antes das informações oficiais à Coroa lusitana, os bandeirantes
(paulistas – da região de São Paulo de Piratininga) já estavam certos da existên-
cia de suntuosas reservas auríferas. Todavia, os paulistas preferiram manter o
sigilo de tais descobertas devido às insatisfações decorrentes das recompensas
oriundas do Reino e, por outro lado, “pelo receio que significava a implantação
do poder metropolitano em áreas que até então ficavam sob seu controle”, ou
seja, os paulistas tinham medo de perder o privilégio na extração de ouro, visto
que, com a interferência da Coroa de Portugal, outras determinações e, con-
sequentemente, uma série de taxações seriam implementadas naquela região
(ALMDEIDA; OLIVEIRA, 2014, p. 288).
Em vista disso, mesmo com tantas constatações de que os paulistas já explo-
ravam o ouro na região das Minas, o fato é que, em 1695, no rio das Velhas,
“próximo às atuais Sabará e Caeté, no Estado de Minas Gerais, ocorreram as
O excerto documental foi escrito pelo jesuíta André João Antonil (1649-1716) e
é imprescindível para o conhecimento da situação econômica e social do perí-
odo. Nesse relato, temos acesso às principais regiões auríferas do início do século
XVIII. O autor traça, paulatinamente, as localizações mais relevantes e destaca a
distância entre elas. Podemos observar que existe uma faixa territorial sempre a
margem dos ribeiros, devido ao tipo de ouro que foi encontrado (aluvião). Além
dessas questões e não menos relevante é o fato de assegurar aos paulistas a des-
coberta da região mineira e de mencionar o caráter sigiloso de algumas zonas
auríferas, que ainda não haviam sido informadas à Coroa de Portugal, devido
ao receio dos descobridores frente às intervenções fiscais impostas pelo Reino,
caráter que pode reforçar a tese de que a exploração do ouro já acontecia antes
de sua “descoberta” oficial.
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Desse modo, por mais que os paulistas tentaram manter um sigilo de suas des-
cobertas, aos poucos a notícia da existência de ouro espalhou-se pelas capitanias
do Brasil, pelo Reino português e pela Europa como um todo. Segundo Fausto
(2006, p.52), “a corrida do ouro provocou em Portugal a primeira grande corrente
imigratória para o Brasil”. O autor destaca que, até por volta de 1760, vieram de
Portugal e das “ilhas do Atlântico cerca de 600 mil pessoas, em média anual de
8 a 10 mil, gente da mais variada condição” (FAUSTO, 2006, p. 52).
Nesse sentido, podemos compreender que a descoberta do ouro surgiu para
mudar drasticamente o cenário colonial brasileiro no início do século XVIII. Tais
mudanças podem ser claramente observadas no relato produzido por Antonil,
que destaca:
A sede insaciável do ouro estimulou a tantos deixarem suas terras e
a meterem-se por caminhos tão ásperos como são os da minas, que
dificultosamente se poderá dar conta do número das pessoas que atu-
almente estão lá. Contudo, os que assistiram nelas nestes últimos anos
por largo tempo, e as correram todas, dizem que mais de trinta mil
almas se ocupam, umas em catar, e outras em mandar catar nos ribeiros
do ouro, e outras a negociar, vendendo e comprando o que se há mister
não só para a vida, mas para o regalo, mais que nos portos do mar. Cada
ano, vêm nas frotas quantidades de portugueses e de estrangeiros, para
passarem às minas. Das cidades, vilas, recôncavos e sertões do Brasil,
vão brancos, pardos, e pretos, e muitos índios, de que os paulistas se
servem. A mistura é de toda a condição de pessoas: homens e mulheres,
moços e velhos, pobre e ricos, nobres e plebeus, seculares e clérigos, e
religiosos de diversos institutos [...] (ANTONIL, 1982, p. 167).
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em pepitas – não requeria, para se dissolver das rochas, o uso de mercúrio
para formar amálgamas.
Fonte: Carrara (2013, p. 153).
devido à ausência de uma jurisdição real que punisse os delitos cometidos pelos
criminosos.
Sobre esta gente, quanto ao temporal, não houve até o presente coa-
ção ou governo algum bem ordenado, e apenas se guardam algumas
leis, que pertencem às datas e repartições dos ribeiros. No mais, não
há ministros nem justiças que tratem ou possam tratar do castigo dos
crimes, que não são poucos, principalmente dos homicídios e furtos
(ANTONIL, 1982, p. 167-168).
Desse modo, entre 1707 e 1709, a região das Minas Gerais presenciou um con-
flito armado entre paulistas e emboabas. Esses combates foram motivados pelo
desejo de assegurar direitos exclusivos na extração dos minérios do território
das Minas Gerais. Após dois anos de conflito, paulatinamente, os paulistas foram
abandonando a região e se direcionando para novas aventuras. Todavia, recen-
temente a historiografia considerou o fato de muitos paulistas permanecerem
na região e ainda conseguirem reconfigurar as suas forças, estabelecendo novas
alianças. Assim, “mantiveram sempre uma intensa relação de auxílio e negocia-
ção com a Coroa portuguesa, garantindo para si e seus descendentes diversos
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benefícios e privilégios, ao mesmo tempo que atuavam para permitir o exercí-
cio de governabilidade régia na região” (ALMEIDA; OLIVEIRA, 2013, p. 309).
Após 1713, a região das Minas Gerais conseguiu “superar” os principais proble-
mas no que concerne à alimentação de seus habitantes. Paulatinamente, roças
foram plantadas com os produtos alimentícios de primeira urgência. Algumas ati-
vidades agrícolas ou mesmo manufatureiras também foram observadas. Todavia,
mesmo com tais avanços, a região ainda padecia de um sistema de abastecimento,
sobretudo devido à localização geográfica que habitavam.
Segundo Menezes (2011), para chegar na região das Minas, “era necessá-
rio atravessar a Mata Atlântica e a Serra do Mar. Os caminhos tiveram que ser
abertos em meio a escarpas e florestas e, inicialmente, deveriam ser realizados
a pé” (MENEZES, 2011, p. 40). Essas dificuldades agravavam o abastecimento
de uma população em constante crescimento, como também encareciam os
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Durante o século XVIII, o trabalho poderia se manifestar sob duas formas no
complexo mineiro: livre ou escravo. Os trabalhadores livres poderiam ocupar
diferentes setores, dentre os quais podemos destacar: cargos ligados à adminis-
tração e supervisão das minas ou mesmo na catação de ouro e pedras preciosas,
também chamados de “faiscadores” ou garimpeiros.
Um dos cargos administrativos criados no ambiente minerador foi o de
guarda-mor. O indivíduo que viesse a ocupar esse cargo não recebia salários,
mas ganhava “uma data em cada nova descoberta de acordo com o número de
escravos que possuísse”. Dentre suas funções, o guarda-mor ficava responsável
por realizar a divisão das datas aos novos descobertos. Essa divisão obedecia a
um conjunto de critérios desenvolvidos pela Coroa: a primeira data pertencia ao
descobridor, a segunda ficaria com o Reino, a terceira também era destinada ao
descobridor e a quarta caberia ao guarda-mor. Além dessa tarefa, o guarda-mor
das minas também precisava controlar a entrada de pessoas e mercadorias, esta-
belecer a justiça e organizar os mineradores e seus cativos nas datas. Desse modo,
compreende-se que, para ocupar esse cargo, era imprescindível possuir certa influ-
ência na região e grande poder de mando (ALMEIDA; OLIVEIRA, 2014, p. 303).
Os “faiscadores” ou garimpeiros eram outra categoria de trabalhadores livres
que ocupavam a região aurífera. Esses homens sofriam com as taxações impos-
tas pela Coroa portuguesa e ocupavam as datas (porções onde se concentravam
as minas) menos frutíferas, isto é, ficavam à margem da riqueza obtida por meio
da atividade mineradora. Essa divisão desproporcional dos lucros obtidos com
a mineração pode ser observada na leitura dos dados estatísticos do período.
Segundo Carrara (2013), no ano de 1710, “apenas cinco pessoas foram res-
ponsáveis por 47, 65% de todo o ouro produzido na Intendência do Rio das
Mortes”. Esse dado estatístico reforça a premissa de que a riqueza adquirida
na atividade mineradora era restrita a um pequeno grupo de pessoas. O autor
destaca que essa realidade se fez presente durante todo o ciclo do ouro, não se
restringindo aos momentos de grande produção aurífera. Ele menciona que
um século depois, quando a produção já era restrita, a desigualdade ainda era
regra: “os cinco maiores produtores conseguiram quase 82 toneladas de ouro
– uma média de 16 quilos para cada um –, enquanto os 568 menores ficaram
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com menos de 184 quilos – média de 357 gramas para cada um” (CARRARA,
2013, p. 153). Essa diferença entre os grandes proprietários de minas e os “fais-
cadores” pode ser compreendida também no âmbito da atividade escrava, visto
que os mais abastados possuíam uma massa de cativos trabalhando dia e noite.
Os escravos negros integraram a atividade mineradora a partir de 1698. Antes
desse período, a extração era realizada por paulistas ou aventureiros, auxiliados
por escravos da terra – indígenas. A descoberta do ouro e a consequente onda
migratória que assolou a região ocasionou também uma avalanche de escra-
vos de origem africana. A quantidade de cativos negros era tão grande que o
Rei de Portugal, em 1702, limitou a entrada de escravos em 200 peças. Um ano
depois, mais uma vez, o monarca luso precisou intervir na entrada de escra-
vos na região mineira, limitando em um número de 1.200 almas. Além disso,
o Rei português buscou definir os valores pagos pelos escravos negros, visto
que o preço por um escravo africano no território mineiro era bem superior ao
mesmo escravo se fosse comercializado no complexo açucareiro. Todavia, essas
determinações impostas pela Coroa portuguesa permaneceram “letra morta”
nas terras brasílicas (ALMEIDA; OLIVEIRA, 2014, p. 297-298). Nessa pre-
missa, as autoras consideram:
[...] já nas primeiras décadas do século XVIII a região contava com um
grande número de cativos. Russell-Wood calcula que entraram aproxi-
madamente “2.600 escravos por ano em Minas Gerais, entre 1698 e 1717,
aumentando para 3.500-4.000 no período de 1717-23 e para 5.700-6.000
de 1723 a 1735”. Nesse contexto, o papel do Rio de Janeiro como porta de
entrada de africanos para a região ganharia, ao longo do século XVIII,
cada vez maior projeção (ALMEIDA; OLIVEIRA, 2014, p. 298).
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o autor, um alto índice de escravos negros enfermos: “doenças como a disente-
ria, a malária, e as infecções
pulmonares” eram frequen-
tes e, muitas vezes, levavam à
morte (FAUSTO, 2006, p. 55).
A dura realidade na
labuta aurífera resultou em
uma estimativa de vida que
não ultrapassava a faixa de
sete a doze anos, segundo
os registros do período. Essa
Figura 40: Autor desconhecido - Les laveurs de diamants, por
baixa estimativa do traba- Anonymous French
Fonte: Wikimedia Commons.
lhador escravo mineiro era
devido às péssimas condições de trabalho que o escravo estava sujeito. Podemos
considerar que a crescente importação de almas negras também está relacionada
à substituição dessa mão de obra inutilizada, ou seja, escravos enfermos, inváli-
dos ou mesmo que tiveram sua vida ceifada. Essa crescente pode ser visualizada
nos dados estatísticos da região mineira, que, em 1776, “mostram a esmagadora
presença de negros e mulatos. Dos cerca de 320 mil habitantes, os negros represen-
tavam em torno de 52%, os mulatos 26% e os brancos 22%” (FAUSTO, 2006, p. 56).
Todavia, caríssimo(a) acadêmico(a), precisamos compreender que os escravos
africanos não ficavam inertes perante sua situação de exploração. Para remediar os
constantes açoites aos quais eram submetidos e as péssimas condições de trabalho,
buscavam fugir da atividade mineradora, mas principalmente de seus proprietários.
Em 1718, as fugas já eram uma grande preocupação para o Governador das Minas,
Conde de Assumar. O representante do Rei lusitano propôs que se cortassem o
tendão de Aquiles dos escravos para coibir as tentativas de fuga. A ideia foi dis-
cutida ao longo de muitos anos e, em 1755, foi acatada pela Câmara de Mariana.
Contudo, essa postura cruel não se limitou ao Governador das Minas, segundo
os estudos realizados por Schwarcz (2015), as autoridades coloniais produziram
uma gama de cartas, documentos e alvarás reprimindo as fugas de escravos afri-
canos. Nesse contexto, “uma medida do rei, datada de 1741, determinava que,
nas Minas, escravo fugido teria a marca do ferro em brasa na espádua; se reinci-
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Outro ponto relevante que podemos considerar por meio da atividade minera-
dora era a possibilidade que o escravo africano possuía de adquirir sua liberdade.
É importante termos cautela nessas afirmações, visto que as relações escravis-
tas no cenário colonial eram complexas. Nas minas de ouro, mesmo sob intensa
vigilância, os escravos africanos, quando conseguiam, extraíam o ouro, geral-
mente pequenas pepitas e escondiam no local mais seguro do corpo: na boca.
Paulatinamente, todo o ouro adquirido na atividade mineradora era direcionado
para a compra de sua liberdade, por meio das cartas de alforria que, em linhas
gerais, era um documento que atestava a liberdade ao cativo. A negociação era
realizada juntamente com o seu proprietário que ditava as regras de pagamento,
de acordo com seus interesses. Além disso, não podemos deixar de destacar que,
comumente, os africanos que adquiriam sua liberdade permaneciam trabalhando
e servindo seu proprietário, pois não tinham condições econômicas e sociais de
romper esses laços de dependência. Nesse âmbito, Fausto (2006, p. 56) pontua:
Ao longo dos anos, houve uma intensa mestiçagem de raças, cresceu
a proporção de mulheres, que em 1776 era de cerca de 38% do total,
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e ocorreu um fenômeno cuja interpretação é controvertida: o grande
número de alforrias, ou seja, de libertação de escravos. Para se ter uma
idéia da sua extensão, enquanto nos anos 1735-1749 os libertos repre-
sentavam menos de 1,4 da população de descendência africana, em
torno de 1786 eles passaram a constituir cerca de 41% dessa população
e 34% do número total de habitantes da capitania. A hipótese mais pro-
vável para explicar a magnitude dessas proporções, que superam, por
exemplo, as da Bahia, é que, nas minas, a progressiva decadência da mi-
neração tornou secundária, ou economicamente inviável para muitos
proprietários, a posse de escravos.
Desse modo, a Coroa lusa organizou uma série de medidas visando organizar a
vida social das minas, “seja em proveito próprio, seja para evitar que a corrida
ao ouro resultasse em caos” (FAUSTO, 2006, p. 53). Em vista disso, buscava-se
reprimir o contrabando de ouro e pedras preciosas para alcançar maior lucrati-
vidade com a atividade aurífera colonial. Nesse sentido, desenvolveu formas de
arrecadação de impostos que variavam de acordo com as necessidades financei-
ras do Império luso. Segundo as observações realizadas pelo historiador Boris
Fausto, a Coroa implementou dois sistemas básicos de arrecadação:
[...] o do quinto e o da capitação. O primeiro consistia na determinação
de que a quinta parte de todos os metais extraídos devia pertencer ao
rei. O quinto do ouro era deduzido do ouro em pó ou em pepitas leva-
do às casas de fundição. A capitação, lançada pela Coroa em busca de
maiores rendas, em substituição ao quinto, era bem mais abrangente.
Consistia, quanto aos mineradores, em um imposto cobrado por ca-
beça de escravos, produtivo ou não, de sexo masculino ou feminino,
maior de 12 anos. Os faiscadores, ou seja, os mineradores sem escra-
vos, também pagavam o imposto por cabeça, no caso sobre si mesmos.
Além disso, o tributo era cobrado sobre estabelecimentos como ofici-
nas, lojas, hospedarias, matadouros etc (FAUSTO, 2006, p. 53-54).
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minava que 20% sobre o ouro extraído pertencia aos cofres portugueses. Contudo,
“as dificuldades de controle do pagamento desse imposto e a grande sonegação
provocaram sucessivas modificações na forma de sua cobrança”. O autor destaca
que, após 1715, a cobrança do “quinto foi substituída, por uma quota anual de
trinta arrobas, mas o crescimento da produção fez com que o Estado imaginasse
novo procedimento tributário” (WEHLING, 2005, p. 219). Nesse sentido, a Coroa
portuguesa estabeleceu, em 1725, as casas de fundição, onde todo ouro extraído
era fundido, quintado e transformado em barras. Esses mecanismos eram cria-
dos para combater a sonegação de impostos no território mineiro (WEHLING,
2005, p. 219). Nesse âmbito, Antonil (1982, p. 174-176) pontua:
Podendo, pois, El-Rei tirar à sua custa das minas que reserva para si
os metais que são o fruto delas, atendendo aos gastos que para isso são
necessários, e querendo animar aos seus vassalos ao descobrimento das
ditas minas e a participarem do lucro delas [...] E para segurar que se
lhe pagasse o dito quinto, mandou que os ditos metais se marcassem
e que se não pudessem vender antes de serem quintados, nem fora do
Reino, sob pena de perder a fazenda e de degredo de dez anos para o
Brasil [...] Ou se considerem, pois, as minas como parte do patrimônio
real, ou como justo tributo para os gastos em prol da república, é certo
que se deve a El-Rei o que para si reservou, que é a quinta parte do ouro
que delas se tirar, puro e livre de todos os gastos [...].
produção: a entrada nas Minas passou a ser monitorada por postos arrecada-
dores e fiscalizadores, os Registros do Ouro, e por Guardas, postos com funções
exclusivamente repressoras” (SCWARCZ; STARLING, 2015, p. 116). O controle
na região era tão grande que o “Caminho Geral do Sertão” (principal via de con-
trabando do ouro) ficou interditado para a passagem de pessoas e mercadorias
e limitou-se apenas a passagem de gado. Todavia, mesmo com esse conjunto de
ações repressoras, o ouro continuou sendo contrabandeado, devido à audácia
desses indivíduos que, comumente, misturavam-se aos comerciantes ou mesmo
utilizavam os “padres autoindulgentes” para efetuarem a travessia. Tais religiosos
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não eram revistados nos postos de controle da capitania e, desse modo, pode-
riam transitar livremente com o ouro escondido em suas vestes (SCWARCZ;
STARLING, 2015, p. 117).
liderada por Felipe dos Santos ocorreu em resposta às imposições reais sobre
o comércio aurífero. A revolta perdurou por, aproximadamente, 30 dias e foi
marcada pela tomada de Vila Rica pelos revoltosos, que foram duramente repri-
midos pelas tropas do Governador das Minas, Conde de Assumar (1717-1721).
Em resposta, Conde de Assumar determinou o fechamento da entrada de Vila
Rica, delegou a prisão dos principais líderes da revolta e os enviou para o Rio de
Janeiro, onde foram exterminados por populares. Em Vila Rica, o Governador
mandou executar publicamente Felipe dos Santos, celebrando a justiça do Rei
(SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 139).
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A sedição de Vila Rica foi a revolta mais relevante no complexo mineiro,
antes da Inconfidência Mineira. Essa revolta apresentou o descontentamento dos
mineiros frente à taxação dos impostos reais. É importante destacar, caro(a) alu-
no(a), que os mineiros não ficaram inertes às imposições do Reino luso na região
aurífera e comumente se levantavam contra os abusos fiscais. Além disso, preci-
samos mencionar que a Coroa de Portugal não compreendia que o período de
apogeu do ouro situou-se entre 1733 a 1748 e mantinha, após esse período, as
mesmas taxações de impostos, algo que gerou grande endividamento e crise na
região, pois os envolvidos com essa atividade econômica não conseguiam sanar
sua dívida com a Coroa portuguesa.
Diante desse cenário, buscando reaver os impostos atrasados, o monarca luso
decidiu pela implantação da derrama que, em linhas gerais, representava uma
nova modalidade de tributo que obrigava o pagamento dos impostos atrasados
e que, mais uma vez, levaria os habitantes da região à revolta, porém influencia-
dos pelas ideias iluministas que percorriam a Europa.
Segundo os apontamentos realizados por Boris Fausto, a sociedade que flo-
resceu na região das Gerais está associada à ideia de riqueza. Contudo, o autor
enfatiza que essa ideia merece certa restrição e cuidado, visto que o ciclo do
ouro no Brasil português foi marcado pelo auge das extrações, porém também
foi assolado pela fome e carência de alimentos. A riqueza obtida no comércio do
ouro ficou exposta em algumas construções ou mesmo obras de arte das cidades
históricas de minas, porém, sem dúvida, os montantes mais significativos foram
direcionados para o Reino e expostos em suntuosas obras arquitetônicas. Além
disso, precisamos compreender que as riquezas ficaram concentradas nas mãos
nização da vida social, tanto nas minas como nas vilas e cidades.
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intensificação do tráfico de almas negras, a cidade até então humilde e limitada
cederia lugar para um espaço urbano mais dinâmico e em constante crescimento.
Todavia, esse boom urbano também trouxe problemas significantes para a cidade,
destes, podemos mencionar: a sujeira nas vias públicas e a presença de animais
domésticos que eram criados livres, alimentando-se dos rejeitos orgânicos lan-
çados ‘porta afora’. Também se observou o problema com os esgotos que eram
lançados nas principais praias. Além dos problemas que existiam em todas as
cidades coloniais, devido, sobretudo, à ausência de um sistema de esgoto, o Rio
de Janeiro também apresentava outros cenários. Nesse âmbito:
No Rio de Janeiro ou em outras cidades coloniais, a massa de escravos
dominava boa parcela dos ofícios urbanos. Atarefados, oferecendo seus
serviços ou os produtos feitos na casa do senhor, cumprindo obriga-
ções, levando recados, carregando água, os cativos estavam em toda
parte. Sua presença associada ao transporte privado é constante nas
gravuras do período. Eram eles que carregavam o banguê, velha litei-
ra, particular ou de aluguel, cujo telhado de couro em forma de baú
protegia do sol quem ia dentro. Portavam nos ombros as cadeirinhas,
mais refinadas, feitas de couro de vaca e forradas de damasco carme-
sim, cujas cortinas fechavam-se a cada vez que nelas se transportava
uma dama (PRIORE; VENANCIO, 2010, p. 95).
Um bom exemplo desse dinamismo urbano ocorreu na cidade de Vila Rica (loca-
lizada na região mineira, atual Ouro Preto), sobretudo nas últimas décadas do
século XVIII. A cidade já possuía em torno de 80 mil habitantes, porém o total
estimado era de 320 mil, não contabilizando os indígenas. Os habitantes circula-
vam em um espaço urbano marcado por “uma paisagem irregular, entre palácios
de pedra argamassada, sobrados com telhados de cunhais de pedra, edifícios
baixos e de madeira, casas de adobe e de pau a pique, ruas planas, alguns largos
onde se davam os avisos públicos [...]”. Essas características urbanísticas estavam
de acordo com o poder da Coroa lusa e “à sede administrativa da capitania mais
rica e populosa da América portuguesa”. O ouro, sem dúvida, pode ser “visto”
em cada monumento arquitetônico levantado na cidade de Vila Rica, principal-
mente nas igrejas de São Francisco de Assis e Nossa Senhora da Conceição de
Antônio Dias (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 124).
Como seria de esperar, o Século do Ouro trouxe mudanças para a lite-
ratura. A nova riqueza alimentada pelo ouro e pelos diamantes empur-
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No que concerne às letras, a cidade contava com três grandes poetas: Cláudio
Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto. Esses letrados não
desconsideraram o cenário de Vila Rica em suas poesias, podendo ser visualizado,
mesmo como pano de fundo. O poema Vila
Rica, escrito por Cláudio Manuel da Costa em
1773, destaca a arquitetura do espaço físico
citadino: “nos versos surgem as fontes e os
chafarizes que dão conta do abastecimento de
água; as muitas pontes que ampliam o qua-
dro de serviços e o equipamento urbano; a
belíssima Torre do Relógio, caracterizada pela
qualidade do padrão construtivo de Minas”.
Além de grande poeta, Cláudio Manuel da
Costa pode ser considerado a principal refe-
rência intelectual do período que, ao lado de
um grupo de estudiosos, conseguiu desen-
volver uma larga produção acerca da região Costumes-riojaneiro, por Johann Moritz Rugendas
mineira. Nesse prisma, podemos mencionar Fonte: Wikimedia Commons.
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tura com o Antigo Regime como na Independência norte americana em 1776.
Desse modo, precisamos compreender que muitos movimentos, revoltas ou
mesmo levantes que ocorreram no cenário colonial, foram fortemente influen-
ciados por ideias fomentadas em outros Estados e que chegaram ao Brasil, por
meio dos intelectuais que, muitas vezes, tinham sua formação na Europa, prin-
cipalmente em Coimbra.
Prezado(a) aluno(a), o Brasil português do século XVIII foi palco de uma gama
de revoltas, conjurações ou mesmo rebeliões. Esses levantes poderiam tanto pos-
suir um caráter nativista, na maioria das vezes, devido ao descontentamento dos
habitantes da colônia perante alguma determinação imposta pela Coroa lusitana
(por exemplo: Guerra dos Emboabas e Revolta de Felipe dos Santos na região
mineradora e Guerra dos Mascates, em Pernambuco), como poderiam possuir
um sentimento separatista, ou seja, anticolonial, visando sua emancipação, des-
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Alvarenga Peixoto – e diversos “letrados”: o médico e naturalista José
Vieira Couto, o engenheiro militar José Joaquim da Rocha, o filósofo,
cientista natural e minerologista José Álvares Maciel, o jovem médico
recém-formado em Montpellier, Domingos Vidal de Barbosa Lage. En-
tre os participantes regulares desse grupo também se perfilavam mili-
tares de vaiada patente [...] e um número considerável de membros da
elite econômica da capitania: homens de negócio, fazendeiros, comer-
ciantes, emprestadores de dinheiro, contratadores, além dos poderosos
magnatas locais [...] (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 142).
O grupo era diversificado, mas todos, de certa forma, possuíam algum laço com os
grandes proprietários mineiros, seja de amizade, familiar ou mesmo econômico.
Todavia, não visualizamos no excerto acima a figura mais conhecida pela historio-
grafia do período e o “queridinho” de grande parte dos livros didáticos: Tiradentes.
Segundo Fausto (2006), José Joaquim da Silva Xavier, mais conhecido como
Tiradentes, era um nome importante do movimento mineiro, porém ficava a mar-
gem da elite citada acima. Teve uma história de vida complicada, tendo ficado
órfão ainda quando criança, juntamente com seis irmãos. Desse modo, mesmo que
amparado com alguns imóveis deixados pelos pais, não conseguiu assegurar suas
propriedades devido às dívidas existentes. No ano de 1775, ingressou na carreira
militar, ocupando cargo de alferes e “nas horas vagas exercia o ofício de dentista,
de onde lhe veio o apelido algo depreciativo de Tiradentes” (FAUSTO, 2006, p. 64).
Contudo, como um simples personagem foi tão relevante para o processo
que desencadeou a Conjuração Mineira? Nesse sentido, utilizaremos os apon-
tamentos realizados por Tarcísio de Souza Gastar, que desenvolveu um estudo
acerca do poder persuasivo de Tiradentes. Segundo o autor, Tiradentes, além de
possuir boa oratória, também frequentava ambientes que eram favoráveis para a
lharam por todos os ambientes de Vila Rica e como a figura de Tiradentes foi
relevante nesse processo. Além desas questões, precisamos descrever a situação
econômica que se encontrava a região mineira, inserida em uma série de taxa-
ções, tributos e cobranças que a Coroa portuguesa decretou sobre os mineiros
(quinto, casas de fundição e derrama) e de como essas imposições repercutiram
de forma negativa para os habitantes das Gerais.
Os motivos que desencadearam a Conjuração Mineira não podem ser con-
siderados estritamente econômicos. Além dessas questões, a região mineira
também sofreu outros agravantes. Nesse sentido, pontua Fausto (2006, p. 64):
[...] Cunha Meneses marginalizou os membros mais significativos da
elite, favorecendo seu grupo de amigos. Embora não pertencesse à eli-
te, o próprio Tiradentes se viu prejudicado, ao perder o comando do
destacamento militar que patrulhava [...] A situação agravou-se com a
nomeação do visconde de Barbacena para substituir Cunha Meneses.
Barbacena recebeu do ministro português Melo e Castro instruções a
fim de garantir o recebimento do tributo anual de cem arrobas de ouro.
Para completar essa quota, o governador poderia apropriar-se de todo
o ouro existente e, se isso não fosse suficiente, decretar a derrama [...]
Recebeu ainda instruções para investigar os devedores da Coroa e os
contratos realizados entre a administração pública e os particulares. As
instruções faziam pairar uma ameaça geral sobre a capitania e mais
diretamente sobre o grupo de elite, onde se encontravam os maiores
devedores da Coroa.
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cias de que havia um motim contra o Governo das Minas, ou seja, contra o poder
Imperial português. Nas denúncias apresentadas, a mais relevante foi relatada por
um conjurado, Silvério dos Reis (homem abastado que possuía muitas dívidas
com a Coroa lusa), que, em troca de sua denúncia, teve suas dívidas perdoadas.
O Visconde de Barbacena coletou dados importantíssimos acerca de todos os
envolvidos na conjura mineira e, após dois meses, decretou a prisão de todos
os conjurados para averiguação. Entretanto, esse processo se deu de maneira
lenta e se arrastou por longínquos três anos. Alguns suspeitos foram encami-
nhados “à cadeia da Relação e à fortaleza da ilha das Cobras, no Rio de Janeiro”
(SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 145-146). Com o fim das investigações, os
culpados foram enviados em “degredo na África, prisão perpétua em Portugal
para réus eclesiásticos, sequestro dos bens, condenação a forca”. Essa onda de
terror também atingiu o poeta Cláudio Manuel da Costa, que foi encontrado
morto em uma minúscula cela (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 145-146).
E Tiradentes? Precisamos compreender, caríssimo(a) acadêmico(a), que
essa figura tão importante para a propagação das ideias da Conjuração Mineira
não foi o líder do movimento, porém foi o elemento fundamental na organi-
zação de todo esse processo, visto que os conjurados lutavam, pelo menos boa
maioria deles, pela emancipação política da capitania e pela instauração de uma
República, nos moldes da Constituição dos Estados Unidos da América. Foi, sem
dúvida, um dos movimentos mais relevantes do cenário colonial, por apresen-
tar, de maneira clara, o descontentamento que os habitantes da colônia nutriam
quanto às amarras impostas pelo poder Imperial português. Por outro lado, refor-
çou a crueldade dos organismos reais:
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também em outros contextos internacionais. Essa reflexão é de suma relevância
para compreendermos quais foram os motivos pelos quais a Coroa lusa tomou
a decisão de abandonar o Reino, enfrentar uma aventura marítima e se mudar
para a capital de sua principal colônia em 1808: o Rio de Janeiro.
Partiremos da realidade que abatia sobre as terras brasílicas em fins do século
XVIII. Em um primeiro momento, não podemos esquecer-nos de duas ques-
tões principais: a crise na produção aurífera a partir de 1750 e as conjurações
que ocorreram em Minas Gerais e na Bahia na última década do século XVIII.
No que tange aos problemas de origem econômica, podemos entender que
a produção aurífera no Brasil no início do século XVIII agiu como elemento
confortador para os cofres públicos portugueses que atravessavam uma crise
desde o final da União Ibérica em 1640 (independência que só é reconhecida
pela Espanha em 1668). Na verdade, a Coroa lusa encontrou na extração de
ouro e pedras preciosas a alternativa viável para ajustar sua situação financeira,
algo que pode ter ocorrido de forma harmoniosa até 1750, em que presencia-
mos uma queda na produção de minério na região das Gerais. Outro ponto
interessante para mencionarmos se refere aos exorbitantes gastos que a Coroa
portuguesa fazia com a construção de monumentos ou mesmo obras públicas no
Reino, além disso, ainda precisava manter seu imenso corpo administrativo dis-
tribuído em suas possessões territoriais ultramarítimas, algo que Portugal, nesse
momento, fazia a qualquer custo. Todavia, os monarcas lusos desconheciam ou
mesmo não acreditavam que sua mina de ouro poderia começar a “secar”, e foi
isso que aconteceu. A produção aurífera foi caindo paulatinamente e gerando
uma onda de endividamentos e de insatisfação dos habitantes que eram atingidos
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exemplo para os conjurados mineiros e baianos no Brasil colonial.
Enquanto a monarquia inglesa perdia sua colônia na América, os grandes
industriais e os proprietários rurais impulsionavam a industrialização do país.
A Inglaterra foi o primeiro país a se industrializar, colocando-se a frente das
demais Coroas da Europa. Desse modo, o incidente que presenciamos no cenário
inglês “gerou um movimento contínuo, que envolveu largos investimentos eco-
nômicos, novas tecnologias e uso indisciplinado da mão de obra” (SCHWARCZ;
STARLING, 2015, p. 151). Podemos perceber que a Revolução que estava em
curso na Inglaterra requeria uma combinação de fatores: investimentos e aper-
feiçoamento tecnológicos, mão de obra disponível e matéria prima barata. Todos
esses elementos eram imprescindíveis para alimentar a corrida industrial. Além
dessas questões, precisamos destacar que a industrialização inglesa intensificou
a rivalidade que já existia com a Coroa francesa, no que concerne a uma corrida
pelo mercado mundial. Essa rivalidade se tornou visível quando o Imperador fran-
cês Napoleão Bonaparte decretou o Bloqueio Continental aos ingleses em 1806.
Os franceses presenciaram um processo revolucionário que se arrastou
por 10 anos, permeado por uma série de crises políticas, sociais, mas, sobre-
tudo, de origem econômica. A Revolução Francesa eclodiu em 1789, marcada
por perseguições, prisões e muito derramamento de sangue, por meio do uso
da Guilhotina aos indivíduos considerados inimigos da nação e, posterior-
mente, da Revolução – o Rei da França Luís XVI foi guilhotinado em 1793. O
movimento francês foi de suma relevância principalmente por exterminar os
vestígios feudais que sustentavam a sociedade francesa e por colocar em che-
que o Antigo Regime e a monarquia absolutista de caráter divino. Todavia, os
A Coroa de Portugal não possuía muitas alternativas diante do avanço das tro-
pas francesas. Se permanecesse no Reino, corria o risco de ser humilhada pelo
poderio napoleônico e ver sua dinastia esfacelada. Nesse âmbito, D. João (até
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então príncipe Regente da Casa dos Braganças) teve que tomar uma decisão que
mudaria completamente o curso da história de Portugal e de sua principal colô-
nia: o Brasil (que era a possessão mais organizada e mais distante da Europa).
Na verdade, a ideia de transferir a Corte para sua colônia na América foi pen-
sada cuidadosamente pelo monarca e seus auxiliares políticos. Era uma questão
apenas de negociar uma escolta das frotas lusas com os ingleses, para garan-
tir a segurança da transferência e organizar o que seria levado para os trópicos.
Segundo Schwarcz (2013), o plano era mais complicado do que se podia
imaginar. Não era a simples transferência da Família Real para a sua colônia
nos trópicos. Nesse sentido, precisamos compreender que não era a fuga de
um conjunto de pessoas, mas sim a transferência da “sede do Estado português
que mudava temporariamente de endereço, com seu aparelho administrativo e
burocrático, seu tesouro, suas repartições, secretarias, tribunais, seus arquivos e
funcionários” (SCHWARCZ, 2013, p. 211). Desse modo, a pressa impossibilitava
que existisse uma organização nos preparativos da viagem e muitos incidentes
ocorreram até a partida do Porto de Belém. Nesse contexto, a autora descreve:
Agravando ainda mais a situação, famílias de camponeses, assustadas com
as notícias desencontradas, abandonaram tudo. Nas praias e cais do Tejo,
até Belém, espalhavam-se pacotes, caixas e baús largados de última hora.
No meio da bagunça e por descuido, toda a prataria da igreja Patriarcal, tra-
zida por catorze carros, ficou na beira do rio, e só alguns dias depois voltou
para a igreja. Também caixotes contendo livros da rica Real Biblioteca foram
deixados para trás, no chão, para indignação dos livreiros [...] Esqueceram-
-se carros de luxo, muitos sem terem sido descarregados. Houve até quem
embarcasse sem mala, apenas com a roupa do corpo [...] O tom geral era
de nervosismo e destempero (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 164-165).
Durante sua breve estadia na Bahia, o Príncipe Regente D. João tomara uma
medida de suma relevância e que, paulatinamente, traria consequências indesejá-
veis: a abertura dos portos do Brasil às nações amigas em 28 de janeiro de 1808.
Segundo Fausto (2006), a expressão “nações amigas” era destinada ao comércio
estabelecido com os ingleses, que seriam os grandes beneficiados da abertura de
portos no Brasil. O autor considera que essa medida empreendida pela Coroa
portuguesa representou o fim dos trezentos anos de sistema colonial (FAUSTO,
2006, p. 67). De acordo com os estudos realizados por Faoro (1976), “fechados
os portos da metrópole, a maioria não podia exportar sua produção e adquirir
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os bens necessários à sua subsistência”. Nesse sentido, essa medida rompe com
o pacto colonial (comércio: colônia – metrópole) e concede grandes vantagens
comerciais ao Reino britânico, com tarifas diferenciadas acordadas posterior-
mente, em 1810 (FAORO, 1976, p. 249).
Após sua breve estadia em Salvador, finalmente o Rio de Janeiro recebeu D.
João em 8 de Março de 1808, “trazendo em sua bagagem a prataria de uso privado
e uma formosa biblioteca para encher horas mortas”. A chegada foi marcada por
uma grandiosa festa popular que se arrastou por mais de uma semana (PRIORE;
VENANCIO, 2010, p.154). A capital do Brasil parou literalmente:
Residências, lojas e repartições públicas fecharam. Tão logo foi avistada
no horizonte a esquadra real, deu-se o sinal para o início das homena-
gens: nas igrejas os sinos repicavam, enquanto nas ruas explodiram os
foguetes. Embarcações no porto e fortalezas em terra estavam engala-
nadas com bandeiras, flâmulas e galhardetes coloridos. E era de ensur-
decer o barulho das inúmeras salvas de canhões seguidas por tiros de
fuzis [...] o barulho anunciava festa. E, nem bem a frota aportou, come-
çaram as homenagens a d. João e a d. Carlota Joaquina (SCHWARCZ;
STARLING, 2015, p. 178).
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Reino quanto de outros Estados europeus.
A estreita aliança portuguesa estabelecida com a Inglaterra não se restrin-
giu ao Tratado de Navegação e Comércio. Juntamente com esse acordo, a Casa
dos Bragança, também fora “obrigada” a assinar outro documento: o Tratado
de Aliança e Amizade. Por meio desse, ficou acordado que a Coroa portuguesa
teria que limitar o tráfico de escravos negros, não só no Brasil, como em suas
possessões territoriais em outras localidades. Além disso, se comprometia a
desenvolver métodos para combater esse comércio transatlântico. Entretanto,
tais imposições inglesas não foram colocadas em prática e o comércio de escra-
vos africanos permaneceu ativo até 1850.
Todavia, a presença da Corte em solos brasílicos também apresentou um
novo problema para a população. Por mais que a Família Real e seus funcio-
nários tenham trazido em sua bagagem reservas de diamantes, ouro e cerca
de 80 milhões de cruzados, esse montante não sustentou a permanência da
Corte nem no começo. Nesse âmbito, os habitantes da colônia precisavam
arcar com os custos da Realeza. Desse modo, “os encargos eram pesados e a
insatisfação popular crescia. Para piorar, não dava para esconder o desper-
dício praticado pela casa Real. A despesa da ucharia tornou-se símbolo de
esbanjamento” (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 184). Os gastos eram
tão exorbitantes, durante o ano de 1818, foram consumidos apenas no Paço
Real, por dia, 620 aves.
Enquanto no Brasil as medidas reais estavam em curso, do outro lado do
Atlântico era complicado fazer qualquer tipo de análise até 1811, ano em que os
soldados franceses deixaram efetivamente o território português. Aos poucos,
os lisboetas começavam a organizar suas vidas e era possível perceber que esses
homens nutriam um misto de esperança, aguardando o retorno de seu monarca,
D. João. Desse modo, com a derrota de Napoleão e, consequentemente, com o
retorno da paz no continente europeu, houve a necessidade de reunir os che-
fes de governo dos principais países da Santa Aliança para redefinir o mapa da
Europa (NEVES, 2013, p. 222). Nesse sentido, entre 1814 e 1815 foi organizada
uma “coligação formada pela Rússia, Áustria e Prússia”, em que se estabeleceu o
retorno das monarquias absolutistas (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 185).
Mesmo diante dessas mudanças, D. João não se sentia seguro para ocupar nova-
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em Pernambuco, em março de 1817. O movimento que abrangia amplos seto-
res sociais: “militares, proprietários rurais, juízes, artesãos, comerciantes e um
grande número de padres”. Era uma resposta aos problemas econômicos e aos
privilégios concedidos aos lusitanos que residiam no Brasil. Segundo o autor, o
movimento passou de Recife ao sertão, e posteriormente, para Alagoas, Paraíba
e Rio Grande do Norte (FAUSTO, 2006, p. 70).
Podemos observar a amplitude do movimento separatista de 1817. Entretanto,
com a existência de setores sociais tão distintos, os revolucionários não conse-
guiam estabelecer um conjunto de metas que atendesse aos anseios de todos.
Mesmo assim, conseguiram se organizar e tomaram Recife, estabelecendo um
governo provisório de caráter republicano. Os revolucionários foram surpreen-
didos pelas forças portuguesas em maio de 1817 e, aos poucos, o movimento
foi sendo desestruturado, com uma série de prisões e execuções dos principais
líderes da Revolução (FAUSTO, 2006, p. 70). Mesmo com a repressão do movi-
mento pernambucano, era evidente que a onda de insatisfação se alastrava pelo
território brasileiro.
Enquanto a insatisfação popular crescia nas terras brasílicas, um cenário
semelhante foi se construindo em Portugal em agosto de 1820. O movimento fica-
ria conhecido como Revolução do Porto e propunha: “o fim do Antigo Regime,
a convocação das Cortes para a elaboração de uma nova Constituição e os res-
tabelecimento do lugar que Portugal julgava merecer no interior do império”
(NEVES, 2013, p. 223). Em linhas gerais, os portugueses buscavam alternati-
vas para acabar com a crise que estavam atravessando. Nessa premissa, Fausto
(2006, p. 71) destaca:
Mesmo diante de todo esse cenário, D. João VI (coroado Rei em 1818, até então
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fizeram um requerimento e conseguiram reunir 8 mil assinaturas que solicitavam
a permanência do governante. Diante dos apelos do povo e do apoio de homens
importantes do Governo, como José Bonifácio, em 9 de janeiro de 1822, D. Pedro
decidiu ficar no Brasil. Esse dia ficou conhecido como “Dia do Fico” e represen-
tou, em linhas gerais, o rompimento do Príncipe com as Cortes portuguesas.
O período que segue de janeiro a setembro de 1822 foi marcado por muita
tensão, pressão e ameaças ao Príncipe Regente. As Cortes portuguesas não viram
com bons olhos a petulância de D. Pedro. Em contrapartida, as tropas lusitanas
que se recusavam a jurar fidelidade ao Príncipe eram expulsas do Rio de Janeiro.
Em agosto do mesmo ano, decretou-se que todas as tropas oriundas de Portugal
eram consideradas inimigas e, dessa maneira, deveriam ser reprimidas. A situa-
ção estava cada vez mais insustentável e, a qualquer momento, o Brasil poderia
sofrer uma retaliação da Corte de Portugal. Nesse contexto, as autoras enfatizam:
Faltava, entretanto, não só o estopim como um evento que conferisse
ao príncipe o lugar principal na cena. O motivo veio fácil: em 28 de
agosto chegava ao Rio de Janeiro o brigue Três Corações, trazendo as
rotineiras más notícias de Lisboa: as Cortes ordenavam a volta ime-
diata do príncipe, o fim de uma série de medidas que consideravam
privilégios brasileiros, e acusavam de traição os ministros que cerca-
vam o regente. Sob a presidência de Bonifácio o conselho de ministros
reunira-se no Rio de Janeiro, e a conclusão viera rápida: chegada a hora
[...] As massivas, porém, não encontraram d. Pedro em local nobre. [...]
Para piorar o cenário, lá pelo dia 7 de setembro ele contava um estado
de saúde que, embora não apresentasse maior gravidade, era por certo
desconfortável (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 217-218).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerações Finais
246 UNIDADE IV
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tico e social no cenário colonial. O eixo econômico que até então se mantinha
na região Nordeste foi deslocado para a região mineradora e uma série de trans-
formações puderam ser percebidas. Presenciamos uma intensa onda migratória
para as minas, tanto de colonos de diversas localidades dos trópicos, como de
portugueses e estrangeiros que almejavam enriquecer facilmente.
Por outro lado, a falta de estrutura da região das Gerais apresentou uma
gama de problemas, dentre os quais podemos elencar a carência de alimentos e
a intensificação da violência. A corrida pelo ouro também aumentou o tráfico de
escravos africanos, em contrapartida, trouxe uma possibilidade ainda que res-
trita de adquirirem sua própria liberdade. Além dessas questões, presenciamos
uma maior intervenção da Coroa lusitana na administração das terras brasílicas,
visto que existia uma necessidade de organizar o espaço minerador e de impor
uma série de taxações sobre a exploração do ouro – quinto, casas de fundição e
derrama. Em resposta à postura da Coroa, observamos uma onda de desconten-
tamento dos habitantes que estavam ligados direta ou indiretamente à atividade
mineradora, e, em consequência disso: a Conjuração Mineira de 1789, que foi o
movimento anticolonial mais importante do período.
Nesse sentido, presenciamos que no final do século XVIII o cenário colo-
nial era de crise nos âmbitos político, administrativo, econômico e social. Esses
problemas se agravaram com os acontecimentos que ocorrem no prisma inter-
nacional – Independência das 13 colônias da América, Revolução Industrial e
Revolução Francesa -, pois atingiram diretamente o Império Português que já
estava desgastado. Desse modo, compreendemos que a política expansionista de
Napoleão Bonaparte e sua rivalidade com o Reino britânico foram os principais
Considerações Finais
1. Após a leitura cuidadosa do tópico “Os Bandeirantes”, elabore um texto disser-
tativo destacando as principais ações empreendidas pelos bandeirantes e
sua importância na expansão dos limites territoriais da colônia lusitana.
2. Conforme a discussão realizada no tópico “A Era do Ouro no Brasil Português”,
destaque:
a) Conflitos sociais e problemas demográficos que atingiram a região mineira.
b) Trabalho realizado pelos escravos negros.
c) A vida no espaço urbano.
França e Espanha, caía por terra a política (com o discreto apoio de agentes diplomá-
de boa vizinhança. Três anos mais tarde, a ticos franceses, entre eles Jean-Andoche
possibilidade de uma aliança entre Carlos Junot). O objetivo dos golpistas era con-
IV e Napoleão Bonaparte levou a princesa a fiar a regência à princesa.
intervir no processo. Em carta, Carlota ques-
tionou o pai: “Vendo isto, sinto vivamente as O projeto ganhou vulto e o clímax do
ameaças de V. A. contra seus próprios des- plano ocorreria em 25 de abril, aniver-
cendentes, e não posso acreditar que não sário de D. Carlota Joaquina. A provável
haja meio de compor tudo de forma que o ausência de D. João na festa de 31 anos da
mundo não seja testemunha de um proce- esposa seria compreendida como aban-
der por parte de V. M. contrário à natureza... dono do poder, servindo de pretexto para
E para quê? Para contentar um governo que o governo passasse às mãos da prin-
coberto de sangue da nossa família?”. O cesa, que já contava com aliados de peso.
abalo, no entanto, seria inevitável. Mas para decepção de D. Carlota e seu
grupo, a conspiração chegou aos ouvidos
Entre os anos de 1801 e 1803, Portugal e do marido. A delatora foi uma das cama-
Espanha travaram a “Guerra das Laranjas” – reiras da princesa, D. Mariana, casada com
um conflito mais diplomático do que bélico, Francisco Rufino de Sousa Lobato, mem-
que punha em xeque a relação de forças na bro do séquito real e bastante próximo de
Península. Nesse período, a tensão entre D. João. Um possível motivo para a delação
os esposos aumentava dia a dia. A crise seria uma desfeita da princesa: Carlota teria
conjugal trouxe a público a infidelidade posto D. Mariana para fora do quarto sem
de D. João: do romance do príncipe com D. que a camareira soubesse a razão. O fato é
Eugênia de Meneses, neta do Marquês de que D. João compareceu à comemoração
Marialva, teria nascido uma filha bastarda. da esposa. Beijou-lhe a mão e desarticu-
Com medo de assumir a criança, D. João lou todo o projeto. Daí em diante a relação
simulou o rapto de D. Eugênia e da menina. entre os cônjuges se tornaria insuportável.
A situação ganhou contornos ainda mais D. Carlota ainda remoía, meses depois
dramáticos em 1806. Refugiado em Mafra da derrota, a possibilidade de assumir a
por conta de uma forte melancolia,o prín- regência. Em agosto de 1806 escreve ao
cipe regente estava apático e sem forças pai pedindo providências: “como V. M. verá
para resolver as intrincadas questões pela carta anexa do Marquês de Ponte de
políticas do reino. Uma cantiga satírica Lima, porque a pressa e o segredo não me
circulava entre os súditos da monarquia: dão lugar para mandar um papel assinado
“Nós temos um rei/ chamado João/ Faz o por toda, ou quase toda a Corte, eles me
que lhe mandam/ Come o que lhe dão/ E ofereceram para que se V. M. ordene, isto
vai para Mafra/ Cantar cantochão”. A longa remediaria, mandando V. M. uma intima-
estadia do regente em Mafra e a suposição ção de que quer que eu entre no governo”.
de que sofria da mesma insanidade da mãe Linhas à frente, justifica assim tal medida:
levaram a oposição a conspirar pela sua “É este o modo de evitar que corra muito
destituição, que foi liderada pelo Conde de sangue neste reino, porque a Corte quer
Sabugal e pelo Marquês de Ponte de Lima sacar a espada em meu favor, e também o
povo, porque se vê por fatos imensos que cada vez mais acuado entre as pressões
[o príncipe] está com a cabeça perdida”. D. inglesa e francesa. Ao longo dos meses,
Carlota possivelmente tinha uma interpre- o plano da transferência da Corte para a
tação muito convincente para o estado do América com o apoio da Inglaterra já se
príncipe: a sua doença, que o enlouque- tornara assunto vulgar entre os ministros
cia, e não permitia que ele se mantivesse reais. Para D. Carlota, a possibilidade de
como cabeça do Império. O tom quase atravessar o Atlântico parecia insuportá-
romanesco desta carta teve como res- vel. Ser uma rainha colonial era o último
posta a abstenção de Carlos IV do conflito dos sonhos da princesa. Desesperada, ela
político instaurado no Palácio de Queluz. escrevia aos pais, relatando os planos do
Sem o apoio do monarca espanhol e com marido e implorando aos monarcas espa-
seus aliados extraditados para partes afas- nhóis que tivessem misericórdia dela e de
tadas do centro de poder, como Almeida, seus filhos. Ao final de novembro, os navios
Algarves e Índias, D. Carlota ficou comple- portugueses zarparam do cais de Belém
tamente isolada. rumo ao Brasil, sob a proteção da esqua-
dra inglesa. Os desejos de D. Carlota eram,
O ano de 1807 continuou dramático de novo, frustrados.
para a Coroa portuguesa. D. João estava
Fonte: Meirelles (2013, online).
MATERIAL COMPLEMENTAR
Carlota Joaquina
Ano: 1995
Sinopse: filme nacional que retrata a história de Carlota Joaquina,
princesa espanhola que casou com o Príncipe D. João, tendo que vir
contrariada para o Brasil em 1808, fugindo das tropas francesas. Sua
história é marcada por romances, aventuras e estratégias políticas.
Carlota foi uma figura muito à frente de seu tempo.
Material Complementar
Professora Me. Luciene Maria Pires Pereira
Professora Me. Ana Lúcia Sales de Lima
V
DEBATES DA
HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA
UNIDADE
ACERCA DA COLONIZAÇÃO
DA AMÉRICA PORTUGUESA
Objetivos de Aprendizagem
■ Compreender nosso passado histórico e suas implicações.
■ Analisar as discussões realizadas por Gilberto Freyre, Sérgio Buarque
de Holanda, Caio Prado Júnior e Ciro Flamarion Cardoso.
■ Destacar as principais críticas realizadas ao discurso de Caio Prado
Júnior.
■ Observar as discussões referentes à colonização lusitana nos aspectos
ligados ao feudalismo e ao capitalismo.
Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■ As várias histórias do Brasil.
■ A política colonial portuguesa: dos aspectos feudais aos indícios do
capitalismo.
257
INTRODUÇÃO
Introdução
258 UNIDADE V
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
AS VÁRIAS HISTÓRIAS DO BRASIL
sobre a realidade do país naquele momento e abriu espaço para debater acerca
de questões políticas, econômicas e socioculturais. Essas análises divergiam em
vários pontos, porém, todas buscavam em nosso passado a chave para a compre-
ensão do momento atual (século XX) e, em alguns casos, atribuíam à maneira
pela qual se desenvolveu a nossa formação a responsabilidade pelos problemas
que o Brasil enfrentava naquele momento.
Hoje, temos a oportunidade de fazer uma revisão dessa bibliografia e olhar
com outros olhos as questões por ela levantadas, abordando as situações por
diferentes enfoques, na medida em que não temos mais a pressão que os auto-
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res daquele período carregavam em seus ombros. Nossa realidade é outra, assim
como nossos valores e anseios também o são. Não é nosso objetivo voltar nosso
olhar para um passado longínquo com a certeza ou mesmo intenção de encon-
trarmos soluções para os problemas que assolam o país atualmente, mas, sim,
trata-se de uma tentativa de entendermos o caminho percorrido pela sociedade
brasileira na busca de sua consolidação enquanto nação.
Analisando a história colonial do Brasil em busca de nossas raízes sob um
novo aspecto, obras de grande expressão surgiram a partir da década de 1930,
com os trabalhos de Gilberto Freyre, Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque de Holanda.
Ainda hoje esses três autores são considerados fundamentais para aqueles que se
propõem a conhecer a história da formação da sociedade brasileira.
A primeira obra importante de Gilberto Freyre foi Casa Grande e Senzala,
publicada em 1933 e que representava o momento de efervescência cultural pelo
qual o Brasil passava naquele momento, sobretudo no que diz respeito à questão
racial no país, uma discussão que ganhou espaço com o aparecimento mais inci-
sivo da influência europeia em nossa sociedade entre o final do século XIX e início
do século XX. O Brasil se aproximou da cultura europeia e viveu um momento
de europeização com o “branqueamento” da população, motivado pelo crescente
número de indivíduos europeus que vieram para o país (HOFBAUER, 2006).
Freyre apontou como essa postura favorável ao branqueamento da socie-
dade ganhou adeptos até mesmo entre os negros africanos, que passaram a ter
atitudes comportamentais semelhantes às dos homens brancos, desenvolvendo
estratégias – como uso da sensualidade, o uso de linguagem adocicada e, por
vezes, o uso da força – para ser aceito entre o homem branco.
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o autor, “em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca
da influência negra” (FREYRE, 1998, p. 283).
Por posições como essa e por não analisar a história do Brasil sob um
olhar negativo, a leitura de Casa Grande e Senzala pode nos induzir ao erro
de enxergar o autor como alguém que não conseguia, ou não queria, enxer-
gar os conflitos inerentes à sociedade brasileira. No entanto, Gilberto Freyre
não acreditava em uma sociedade sem contradições. Ao contrário, acreditava
que a contradição estava presente no seu processo de formação, sendo incor-
porada a sua análise, sendo possível observar essa compreensão da existência
de conflitos até mesmo nos títulos de suas obras. Em uma frase de signifi-
cado marcante, o autor ressaltou que “a força, ou antes, a potencialidade da
cultura brasileira parece-nos residir toda na riqueza dos antagonismos equi-
librados” (FREYRE, 1998, p. 335). Isso nos mostra a maneira positiva como
Gilberto Freyre encarava o fato de termos nos constituído como um país for-
mado por mais de um grupo étnico e avaliava o peso dos conflitos existentes
para o sucesso de nosso desenvolvimento.
É possível observar em toda obra do autor um esforço constante em apre-
sentar ao leitor o negro como um elemento fundamental para a construção de
nossa identidade, de nossa personalidade, na medida em que, em vários momen-
tos da leitura, somos chamados a olhar para as influências e contribuições que o
negro, sobretudo o que convivia com a família na casa grande, exerceu na vida do
homem branco. Influências que insidiam em nossos hábitos alimentares, nosso
vocabulário – com a inclusão de novas palavras –, na criação dos nossos filhos,
nas cantigas de ninar e, até mesmo, em nossa vida sexual.
Gilberto Freyre tinha como propósito em suas obras mostrar que a socie-
dade brasileira não podia ser considerada inferior às demais sociedades por causa
de sua característica mestiça. Ao contrário, o contato entre culturas tão diferen-
tes entre si fazia do país uma nação mais avançada e culturalmente superior às
demais. Além disso, ressaltava o fato de que se conseguiu organizar uma estru-
tura produtiva em um país com condições geográficas que em nada lembravam
a Europa, sendo, portanto, um equívoco tentar comparar a sociedade brasileira
com qualquer outra sociedade europeia.
Ao procurar ressaltar e valorizar a presença do negro em nosso processo
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Podemos tentar imaginar como seria a vida do negro caso viesse para o Bra-
sil em outras circunstâncias, desempenhando outro papel? Tarefa demasia-
da difícil, na medida em que estamos já tão acostumados com a condição de
escravo do negro africano do Brasil colonial.
Fonte: a autora.
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Sendo assim, afirmamos que os trabalhos do autor propuseram uma quebra
de estereótipo, na medida em que inseriam o estudo da cultura negra e suas
características no contexto da escravidão, desmistificando algumas das caracte-
rísticas atribuídas a essa instituição e enfatizando que tais características, assim
como certas atitudes do negro, somente foram desenvolvidas por ele se encon-
trar inserido em um regime escravocrata, no qual era o agente principal. As
circunstâncias fizeram do negro o indivíduo que ainda hoje não é raro descre-
vermos com preconceitos.
Casa Grande e Senzala evidenciou uma característica de seu autor, que era o
ato deste primar por uma análise social do Brasil, voltando seu olhar para os aspec-
tos do cotidiano da sociedade brasileira, que iam desde os hábitos alimentares das
famílias até suas aventuras sexuais. Trata-se de uma obra que se assenta na “dife-
rença entre raça e cultura”, na discriminação dos “efeitos de relações puramente
genéticas e influências sociais, de herança cultural e de meio” (FREYRE, 1998).
O legado deixado por Gilberto Freyre é amplo e aborda uma série de ques-
tões e aspectos de nosso processo formador que nos permitem refletir sobre
nosso papel na sociedade. No entanto, por ser um autor que inovou historio-
graficamente, na medida em que representou uma ruptura com a abordagem
cronológica clássica e com as concepções imobilistas da vida social do passado
(MOTA, 1980), esse legado sofreu críticas nem sempre favoráveis a sua postura
ou metodologia, críticas essas que visavam atribuir um caráter limitado e até
mesmo literário as suas obras.
Dante Moreira Leite (1976) é um dos críticos de Gilberto Freyre e chegou a
classificar Casa Grande e Senzala como uma obra literária, ambígua, polivalente
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exaltando toda a sua riqueza, mais do que a economia e até mesmo a política, o
que pode ser considerado como algo inovador para o período em que tais obras
foram escritas. Diante disso, pode-se observar que a intenção do autor era de se
posicionar contra uma postura racial existente no Brasil de sua época e mostrar
que não se podia acusar um passado marcado por relações interculturais pelas
mazelas da sociedade em que vivia.
Assim como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda também deu um
novo sentido à interpretação da história do Brasil quando, em 1936, lançou Raízes
do Brasil, livro no qual pretendeu traçar os elementos que marcaram a trajetó-
ria da sociedade brasileira desde seus primeiros momentos.
Sérgio Buarque, que possui formação jurídica, tornou-se historiador em um
momento em que o Brasil estava sendo repensado, em meio ao clima eferves-
cente pelo qual o país passava na década de 1930. Como boa parte da elite letrada
do Brasil do século XX, Sérgio Buarque sofreu influências de formas de pensa-
mento europeias, dentre as quais destacamos a História Social (MOTA, 1980),
sendo possível observar em Raízes do Brasil a busca pelo modo de pensar do bra-
sileiro. Desse modo, ao analisar o “homem brasileiro”, o autor estava pensando
em “tipos ideais” de homens e mentalidades, seguindo um modelo que, nesse
caso, tinha origem nas nações da Europa Ocidental, conforme destaca Antônio
Cândido no prefácio da terceira edição dessa mesma obra.
Nesse prefácio, Cândido destacou a fórmula inovadora de análise proposta
por Sérgio Buarque e demonstrou, de maneira clara e livre de pudores, os motivos
que tornavam Raízes do Brasil uma obra importante e relevante para a constru-
ção do saber sobre o Brasil. Por essa razão, sem aparentar qualquer tipo de receio
Sérgio Buarque não chegou sequer a mencionar tal evento. Desse modo, Antônio
Cândido “compromete Raízes do Brasil com um acontecimento que lhe é estranho”
(DECCA, s.d., p. 15). Para Edgar de Decca, Raízes do Brasil era resultado mais da
efervescência da Semana de Arte Moderna de 1922 do que da Revolução de 1930.
A nosso ver, parece arriscado compartilhar das afirmações de Decca, na
medida em que entendemos que Sérgio Buarque não poderia ter deixado de ser
contaminado pelos acontecimentos e discussões que assolavam o país decorrentes
dos fatos de 1930. Acreditamos que, se não é feita nenhuma menção explícita em
Raízes do Brasil a tais acontecimentos, não parece acertado afirmar que essa volta
às nossas origens proposta pelo seu autor em nada tenha a ver com o momento
histórico em que vivia.
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pretendia formar.
Ao longo do livro, as oposições apontadas pelo autor são peças-chave para
entendermos a estrutura implantada aqui pelos portugueses, oposições que se
evidenciam logo nos títulos dos capítulos, o que representa talvez uma tentativa
de Sérgio Buarque de levar o leitor ao pensamento crítico, fundamental para a
compreensão do debate em torno da “construção” do Brasil pelos portugueses.
Dentre as consequências da existência dessas contradições na nova socie-
dade que se formava, a que mais incomodava o autor era o fato de o Brasil não
ter conseguido se transformar em uma sociedade urbano-industrial, isto é, em
uma sociedade moderna, caracterizada por relações impessoais e institucio-
nais, típicas das sociedades europeias. Isso, para o autor, apresentava-se como
um aspecto negativo em nossa história, um aspecto nascido das circunstâncias
em que o Brasil foi colonizado e que impedira nosso progresso.
Raízes do Brasil foi uma tentativa do autor de chamar a atenção para o quanto
de Portugal se enraizou no território brasileiro e o quão desfavorável foi esse enrai-
zamento. O autor preocupou-se em apresentar a história de um Brasil que não
deu certo, e não deu certo devido, sobretudo, às características que em Gilberto
Freyre eram vistas como algo positivo para nossa formação, dentre essas, o con-
tato entre brancos e negros, a miscigenação.
A impressão que temos ao entrarmos no universo de Raízes do Brasil é de que,
embora denominados “brasileiros”, na verdade somos uma extensão de Portugal,
haja vista que importamos “nossas formas de convívio, nossas instituições, nos-
sas ideias (...)” (HOLANDA, 1995, p. 31). Dessa maneira, a obra é uma crítica
à permanência ou influência de costumes, valores e instituições portuguesas
no Brasil. Seria uma crítica indireta (ou direta) àqueles que vieram para nosso
território na tentativa de construir uma nova nação, em busca de novas oportu-
nidades, mas, que, na verdade, não conseguiram implantar aqui algo que, de fato,
fosse novo. Estabeleceram apenas um prolongamento da sociedade portuguesa.
Difícil é dizer até que ponto tal crítica é válida, na medida em que, embora
talvez tenha se tentado constituir no Brasil uma sociedade nos moldes portu-
gueses, o que se observou foi o surgimento de uma nação diferente de tudo o
que se conhecia até então, devido, sobretudo, às particularidades aqui encontra-
das que criaram situações inéditas e adversas, com as quais os novos habitantes
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Nesse sentido, o que parece ter prejudicado, se assim podemos dizer, a socie-
dade portuguesa foi o fato desta não ter passado pela fase clássica do feudalismo
que em outras sociedades europeias antecedeu e até mesmo possibilitou o nasci-
mento do capitalismo. Como não viveu o feudalismo em toda sua plenitude, os
novos setores que entravam em cena não buscaram por mudanças. Ao contrá-
rio, procuraram se adaptar a uma forma de organização da vida pré-existente,
freando o processo de evolução das forças econômico-sociais portugueses.
Por isso, porque não teve excessivas dificuldades a vencer, por lhe faltar
apoio econômico onde se assentasse de modo exclusivo, a burguesia
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mercantil não precisou adotar um modo de agir e pensar absolutamen-
te novo, ou instituir uma nova escala de valores, sobre os quais firmasse
permanentemente seu predomínio. Procurou, antes de associar-se às
antigas classes dirigentes, assimilar muitos dos seus princípios, guiar-se
pela tradição, mais do que pela razão fria e calculista. Os elementos
aristocráticos não foram completamente alijados e as formas de vida
herdadas da Idade Média conservaram, em parte, seu prestígio antigo
(HOLANDA, 1995, p. 36).
Como se vê, para o autor, a mentalidade moderna portuguesa parece ter se for-
mado rápido demais e a burguesia não conseguiu se fortalecer, acabando por
adquirir características aristocráticas. Seria essa, segundo Sérgio Buarque, a raiz
da nossa não modernização: Portugal trouxe pra suas possessões do além-mar
indícios de modernidade, mas carregados de elementos feudais.
Para se compreender a maneira de pensar de Sérgio Buarque, é preciso
termos em mente o fato de que ele é filho da modernidade, tendo nascido
junto com o processo da modernização da Europa e com o avanço do capita-
lismo. Sendo assim, podemos entender a influência sofrida por esse da ética
protestante de Max Weber, valorizando o trabalho e o que se pode alcançar
com a organização.
Por essa razão, engana-se aquele que pensa que, ao caracterizar o coloniza-
dor português como “aventureiro”, o autor estava enaltecendo o fato deste não
ter medo do novo e dos obstáculos que encontrava em seu caminho. Na verdade,
para Sérgio Buarque, o adjetivo “aventureiro” apresentava-se mais como uma
característica negativa no português, pois trazia em si a falta de planejamento e
organização, essenciais para a execução de um projeto extenso e complexo como
foi o da obra colonizadora.
Raízes do Brasil deve ser entendido dentro do contexto da busca de seu autor
pela modernização do Brasil no século XX, de onde advinha a necessidade de
apresentar o Brasil como uma nação que precisava superar seu passado aris-
tocrático para progredir em busca da modernidade. Trata-se de uma obra que
apresentava o pioneirismo do autor no que diz respeito ao “modo de desvendar
o passado dentro de um prisma engajado, que visava uma redefinição do polí-
tico, a preeminência do social e as possibilidades de transformação da sociedade
brasileira” (DIAS, 1998, p. 18).
Embora seja possível encontrar questões referentes aos diversos setores da
sociedade brasileira em suas obras, autores como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque
de Holanda tornaram-se nomes importantes na historiografia brasileira ao ino-
varem em seus trabalhos, apresentando aspectos da sociedade colonial que eram
pouco explorados até aquele momento, aspectos inerentes à formação social e
cultural daquela sociedade.
Mota (1980, p. 63) conseguiu apreender e definir o significado dessas obras
e do momento histórico em que foram elaboradas, afirmando que:
Não se trata apenas da reconstrução do passado, ou do possível avanço
positivo da ciência histórica; está-se, mais do que isso, em presença de
textos de crise, de documentos que registram a trepidação da ordem
social em que as oligarquias pontificavam nas diferentes regiões.
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ganhou adeptos e manteve-se durante anos como referência no estudo de nossa
história, dentro e fora do meio acadêmico.
Nascido em uma família burguesa e aristocrática que gozava de riqueza e
influência na sociedade paulista, Caio Prado destacou-se na historiografia com
trabalhos que questionavam a situação vigente no país na primeira metade do
século XX e que apresentavam novas metodologias de análises, nas quais os seto-
res mais populares da sociedade ganhavam espaço, como é o exemplo de seu
livro Evolução Política do Brasil, de 1933.
Nesse livro, Caio Prado analisou nosso passado a partir de uma nova
perspectiva, qual seja, a ação política das classes populares. Utilizando-se da
interpretação materialista, o autor se propôs a fazer uma história que não fosse
a da classe dirigente, pois “na nossa história os heróis e os grandes feitos não são
heróis e grandes feitos senão na medida em que acordam com os interesses das
classes dirigentes, em cujo benefício se faz a história oficial (...)” (PRADO JR.,
2006, p. 08). Nesse sentido, Evolução Política do Brasil representou uma reno-
vação na historiografia brasileira, na medida em que trouxe para o centro das
análises a ação política das camadas populares.
Nessa obra, Caio Prado Jr. apresentou um esboço de sua tese acerca do
processo de colonização do Brasil, tese essa que seria tratada em toda sua com-
plexidade com a publicação em 1942 de Formação do Brasil Contemporâneo,
que marcou a historiografia do período, tornando-se a principal referência nos
estudos acerca de nossa história durante várias décadas, sendo que parte signifi-
cativa dos escritos sobre o Brasil posteriores a sua publicação buscou nessa obra
os fundamentos de suas análises (MENDES, 1996).
Não se pode esquecer de que os ideais contidos nas obras de Caio Prado Jr. estão
relacionados com a ideia de progresso e desenvolvimento, ideia crescente com
o fim da Segunda Guerra Mundial. De acordo com esse pensamento, o Brasil
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arcaico, periférico, supersticioso deveria ser superado para dar lugar a um Brasil
industrializado, urbanizado e com alto nível tecnológico (MOTA, 1980).
A partir dessa retomada do início da formação do Brasil, Caio Prado afir-
mava que, em 1942, a economia brasileira encontrava-se ainda articulada como
uma economia colonial, sendo que, quando falava em “economia colonial”, Caio
Prado referia-se ao caráter exportador da produção brasileira. Para o autor, seria
esse o “sentido da colonização” do Brasil, uma característica que ainda não havia
sido superada e que impedia o avanço do processo de formação do Brasil.
Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos
constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais
tarde ouro e diamantes; depois, algodão, e em seguida café, para o co-
mércio europeu. Nada mais que isso. É com tal objetivo, objetivo exte-
rior, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não
fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e
a economia brasileiras. Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura,
bem como as atividades do país (PRADO JR. 2004, p. 31-32).
A teoria sobre a formação do Brasil formulada por Caio Prado dispensava aten-
ção especial ao caráter exportador da produção organizada nesse território no
início da colonização, a fim de mostrar que esse tipo de organização da socie-
dade brasileira já não fazia mais sentido naquele momento, sendo necessário que
o país transformasse sua economia em uma “economia nacional”, ou seja, que o
país se organizasse a fim de atender suas necessidades, emergindo como nação
forte e preocupada com seus próprios interesses (MENDES, 1996).
Em suas análises, Caio Prado apontou a permanência no Brasil contempo-
râneo de características nascidas no período colonial e que resistiram ao tempo,
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que a ela se seguiram. Nomes importantes de nossa historiografia foram bus-
car na escola do “sentido da colonização” os fundamentos para novas análises
acerca de nossa formação.
No decorrer desse período de predomínio da interpretação caiopradiana, des-
tacaram-se nomes como os de Celso Furtado, Nelson Werneck Sodré, Fernando
Novais e Vera Ferlini de 1980 (destacamos aqui os trabalhos Formação da
Sociedade Brasileira, de 1944, e Formação Histórica do Brasil, de 1962), dentre
outros, que, apesar de trazerem novas questões para as análises, permaneceram
ligados à noção de colonização para o mercado externo difundido por Caio Prado.
No caso de Fernando Novais (1981), em seus trabalhos, o autor procurou
analisar a história do Brasil em um contexto mais amplo, aprofundando a dis-
cussão sobre as relações entre metrópoles e colônias, e inserir a questão sobre a
maneira como foi desenvolvida a colonização desse território no debate acerca
da acumulação primitiva e da formação do capitalismo industrial. Nesse sen-
tido, Novais entendeu o processo colonizador como uma etapa necessária para
a formação do capitalismo industrial.
Em seus trabalhos, o autor procurou explicar a lógica das relações comer-
ciais na era moderna, enquadrando as colonizações europeias no contexto da
política mercantilista em voga no período em questão. Sendo assim, denominou
o processo de colonização europeia como “sistema colonial do mercanti-
lismo”, um indicativo de que sua análise do processo colonizador vai além
da apreensão da revolução comercial e pretendeu inserir-se no processo de
transição do feudalismo para o capitalismo, buscando o significado das colô-
nias nesse processo.
Sem fugir do conceito de colônia adotado por Caio Prado Jr. e tendo em
mente a política mercantilista adotada pelos países europeus no período moderno,
Novais (1977, p. 19-20) afirmou que as colônias
(...) devem se constituir em retaguarda econômica da metrópole. Pois
que a política mercantilista ia sendo praticada pelos vários estados mo-
dernos em desenfreada competição, necessário se fazia a reserva de
certas áreas onde se pudesse por definição aplicar as normas de política
econômica; as colônias garantiriam a auto-suficiência metropolitana,
meta fundamental da política mercantilista permitindo assim ao Esta-
do colonizador vantajosamente competir com os demais concorrentes.
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Desse modo, a colônia era vista pelo autor como uma espécie de retaguarda eco-
nômica, promovendo a acumulação primitiva de capital na metrópole por meio
do exclusivo metropolitano, fortalecendo seu poderio diante do mercado mun-
dial. O exclusivo metropolitano consistia em um “acordo” comercial, pelo qual o
Brasil forneceria artigos que a metrópole necessitava, além de oferecer mercado
para os seus manufaturados. De acordo com Novais (1977, p. 26), esse “pacto
colonial” marcava um novo momento, um momento de transição de relações
apenas comerciais para a colonização, quer dizer, para a criação de uma nova
estrutura que foi “um desdobramento da expansão puramente comercial” e que
se fazia necessário para dar continuidade ao crescimento da economia europeia.
Esse novo momento das relações comerciais foi tido por Novais como uma
fase de transição entre o fim do feudalismo e o surgimento do capitalismo indus-
trial, com o advento da Revolução Industrial. Nesse cenário de transformações
comandadas pelo capitalismo comercial, as colônias apareciam como peças
fundamentais para a manutenção desse processo, na medida em que os países
encontravam dificuldades para manter o ritmo da expansão das atividades e da
ascensão social e necessitavam, assim, de “apoios externos – as economias colo-
niais – para fomentar a acumulação” (NOVAIS, 1977, p. 27).
Dentro desse cenário proposto por Fernando Novais (1981) para a com-
preensão do processo colonizador, que se organizara visando à constituição de
uma forma “especial” de comércio colonial, que levaria à acumulação primitiva
de capitais, os mecanismos criados para garantir a manutenção desse sistema
aparecem como elementos que iam ao encontro ao que acontecia na Europa,
uma vez que foram adotada nas colônias atividades que já se encontravam em
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corria fundamentalmente da necessária adequação da empresa coloni-
zadora aos mecanismos do Antigo Sistema Colonial, tendente promover
a primitiva acumulação capitalista européia; do contrário, dada a abun-
dância de um fator de produção (terra), o resultado seria a constituição
no Ultramar de núcleos europeus de povoamento, desenvolvendo uma
economia de subsistência voltada para seu próprio consumo, sem vin-
culação efetiva com os centros dinâmicos metropolitanos (NOVAIS,
1981, p. 102).
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destaque nos estudos relacionados ao desenvolvimento da sociedade do além-mar.
Ciro Flamarion Cardoso, em seus trabalhos, dedicou-se a analisar a estru-
tura interna das sociedades coloniais, transformando-se no maior crítico do
pensamento de Caio Prado Jr. Pautando seus estudos sobre o escravismo colo-
nial, Cardoso desprezou a teoria da dependência e a ideia de que as colônias
somente possuíam algum sentido se entendidas em função de suas metrópoles.
Para o autor, as sociedades coloniais deveriam ser entendidas “como elemen-
tos integrantes (e até mesmo complementares e dependentes) da economia
européia” (FRAGOSO; FLORENTINO, 2001), mas que possuíam estruturas
internas que não podiam ser ignoradas ao se analisar nosso passado colonial.
Podemos observar as críticas feitas por Cardoso em seu trabalho Escravo ou
Camponês?, de 1987, no qual o autor fez um balanço do debate historiográfico
sobre a escravidão colonial, incluindo, nesse balanço, uma revisão de trabalhos
de sua própria autoria publicados em anos anteriores, em que procurou discu-
tir a escravidão colonial.
Nesse trabalho, é possível observar que a crítica de Cardoso incide sobre a ideia
da existência de um capitalismo perene desde o século XVI e que transformava
as regiões coloniais em simples extensões de suas metrópoles, sem autonomia e
que, em última instância, não formavam uma sociedade de fato. Nesse sentido,
a crítica do autor vai ao encontro com a
concepção de capitalismo que, fazendo das estruturas internas da Amé-
rica Latina e do Caribe, em especial, simples projeções ou corolários do
impacto de elementos ou influxos cuja racionalidade básica se situaria
fora daquelas regiões, levava à afirmação clara ou implícita de que suas
sociedades não eram formações econômico-sociais diferenciadas e au-
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Por essa razão, Cardoso baseou suas análises em estudos de autores estrangeiros,
haja vista que esses autores fugiam da ideia do “sentido da colonização” que, a
seu ver, não tratava as sociedades coloniais escravistas como verdadeiras socie-
dades, mas sim como campos de concentração, sem considerar suas estruturas e
contradições internas. Sendo assim, o autor apontou o que considerava “falhas”
nos estudos acerca das sociedades coloniais até então, por exemplo, a falta de
um estudo orgânico das forças produtivas em todos os seus aspectos, relações
e consequências e a posição de o fato colonial aparecer mais superposto do que
integrado ao resto da análise.
Questionando, assim, uma perspectiva baseada na ideia de um “capita-
lismo perene” instalado no continente americano a partir do século XVI e cuja
fundamentação teórica era a definição de esfera da circulação e de apreciações
sobre a busca do lucro aliadas a uma certa concepção da racionalidade capita-
lista – e não da esfera de produção –, o autor propôs que as análises partissem
de um outro ponto de vista e levassem em consideração as estruturas internas
das sociedades coloniais, as quais acreditava possuírem consistência interna e
relativa autonomia estrutural.
Prezado(a) acadêmico(a), na tentativa de fugir da matriz do pensamento de
Caio Prado Jr., Cardoso primou por uma análise que mostrasse que as colônias
possuíam um conjunto de atividades que, escapando das injunções externas,
davam à sociedade colonial uma estrutura que não era explicada somente por
sua ligação com o mercado mundial. Nessa tentativa de levar um outro olhar para
os estudos das sociedades coloniais, o autor chamou a atenção para as atividades
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Dentre as modalidades de campesinato existentes dentro do sistema escravista,
Cardoso se concentrou no estudo do protocampesinato escravo, modalidade que
representa as atividades agrícolas realizadas por escravos nas parcelas e no tempo
para trabalhá-las, concedidas no interior das fazendas, e na eventual comerciali-
zação dos excedentes obtidos. Nesse sentido, a “brecha camponesa” representa a
ideia de que, ao mesmo tempo em que atuava como agente fundamental para a
manutenção das atividades comerciais exportadoras, o escravo também desem-
penhava um papel relevante na construção de uma dinâmica interna necessária
para a formação e desenvolvimento de uma sociedade.
Mesmo chamando a atenção para a existência de uma atividade desenvol-
vida pelos escravos que não fosse diretamente voltada para a manutenção das
atividades exportadoras, Cardoso não pretendia negar ou questionar a existên-
cia do escravismo colonial e tudo o que ele representou para as sociedades. Ao
contrário, seu objetivo era mostrar que
o estudo da “brecha camponesa” serve, entre outras coisas, para nu-
ançar a visão habitualmente monolítica em excesso que se possa ter
do sistema escravista Afro - América, ao mostrar as colônias afro-a-
mericanas como sede de verdadeiras sociedades, ativas, dinâmicas e
contraditórias – e não como campos de concentração generalizados,
habitados mais por figuras esteorotipadas do que por pessoas vivas.
Serve para nuançar, dissemos, mas não para pôr em dúvida o sistema
escravista, indubitavelmente dominante (CARDOSO, 1987, p. 90).
A preocupação de Cardoso em seus trabalhos era de elaborar uma análise que des-
tacasse os aspectos internos das sociedades coloniais, uma análise que representaria
um avanço nos estudos acerca da temática colonial, apresentando aspectos ausentes
nos estudos conhecidos até então. A ausência desses aspectos tornava os estudos
incompletos e levava a generalizações que comprometiam a apreensão do quadro
colonial como um todo. Desse modo, Ciro Flamarion e outros que a ele se segui-
ram primavam por uma análise de nossa história que fosse além da interpretação
que ganhou força a partir dos estudos de Caio Prado Jr., trazendo para o cenário das
análises características da estrutura interna da organização das colônias, ressaltando
sua importância para o desenvolvimento e manutenção da sociedade que nascia.
Com uma crítica que se direcionava, sobretudo, para os trabalhos de Fernando
Novais, a quem responsabiliza por fazer com que as colônias americanas pareçam
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A crítica de Ciro Flamarion Cardoso era com relação à ideia que Fernando
Novais tinha do Antigo Regime, que, para ele, definia-se como “sistema colo-
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nial do mercantilismo”, o conjunto das relações entre metrópoles e colônias
na época do “capitalismo comercial”, objetivando a acumulação primitiva.
Para Cardoso, o embasamento teórico de Novais é superficial, o que com-
promete suas análises e o leva a generalizações perigosas.
Fonte: a autora.
Pode-se dizer que foi a partir dos estudos de Ciro Flamarion Cardoso que os estu-
diosos de nossa história adotaram uma nova forma de olhar para nosso passado.
Antônio Barros de Castro foi um desses estudiosos que, assim como Cardoso,
procurou em seus estudos apontar as características dos agentes internos que
contribuíam para a organização e funcionamento das atividades coloniais.
Em seus trabalhos, o autor procurou enfatizar a ideia de que alguns setores
de atividades da colônia não dependiam exclusivamente dos desígnios externos
para funcionarem, como no caso dos engenhos, por exemplo. Desse modo, o
autor defendia a ideia de que o desenvolvimento da colônia não seguia apenas
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
o fluxo das ações externas, mas que dependia, também, em alguns casos, de cir-
cunstâncias que eram próprias da atmosfera interna.
Embora não perdesse de vista o contexto mercantil no qual a descoberta e
colonização das terras brasileiras estavam inseridas, e tendo como foco a escravi-
dão colonial, o autor trouxe para o centro das discussões as relações intercoloniais,
a partir das quais seria possível entender questões relevantes para a plena apre-
ensão da relação metrópole-colônia.
Não se entenda, pelo que aqui foi dito, que julgamos de somenos im-
portância os estudos das relações metrópole-colônia. Afirmamos, isto
sim, que, no marco unidimensional das relações metróple-colônia,
tudo parece resolver-se em pressões do pólo dominante sobre o pólo
dominado. Neste estreito marco, não tem lugar nem a renda diferen-
cial – que se define nas relações intercoloniais – nem a própria renda
da escravidão – a qual só é percebida mediante a análise do processo
do trabalho escravo. Admitidos estes conceitos, a moderna escravidão
revela-se a um só tempo mais internacional e mais localmente deter-
minada do que sugere a tradicional visão metrópole-colônia. O que
nos leva a crer que, sem tê-los em conta, não entenderemos sequer as
próprias relações metrópole-colônia (...) (CASTRO, 1984, p. 47).
a uma peça importante no jogo das relações comerciais, na medida em que ela
se tornava um importante mercado consumidor para as manufaturas europeias.
Mesmo defendendo a posição de que as relações intercoloniais merecem des-
taque nos estudos referentes à história do Brasil, visto que essas relações permitem
questionamentos capazes de auxiliar na apreensão da dinâmica econômico-social da
colônia, Castro não chega a discordar totalmente do cerne da interpretação da his-
tória colonial brasileira fortemente divulgada a partir dos trabalhos de Caio Prado.
Na verdade, o autor ressalta que o capital mercantil criou oportunidades
comerciais e foi o responsável pelo surgimento de um novo e poderoso núcleo
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escravista. Nesse sentido, não descarta o papel das relações mercantis externas
na formação da sociedade colonial nem o caráter exportador da colônia. Assim
como Cardoso, Castro apenas analisa a história colonial por um outro ângulo,
mas sem negar o “sentido da colonização” amplamente divulgado até então.
Tendo em vista o que procede, não deve surpreender o fato de que o
estudo da história colonial tenha sido tradicionalmente realizado a par-
tir das relações mercantis entre as metrópoles e as respectivas colônias.
Afinal, o comércio está nas origens e a ele coube definir o próprio “sen-
tido” da colonização (CASTRO, 1984, p. 46).
rizada por uma existência setorial muito restrita e por uma exploração do escravo
voltada para a produção de uma renda natural, definida pela parte do excedente
da produção não comercializado e destinado ao consumo direto da família do
senhor e seus dependentes pessoais. Desse modo, Gorender definiu a escravi-
dão colonial como um modo de produção historicamente novo, na medida em
que, diferentemente do que ocorria na Antiguidade, a escravidão colonial apre-
sentava-se na forma de um escravismo mercantil desenvolvido.
O interessante ao observar as posições existentes nos trabalhos de Gorender,
suas ideias e, sobretudo, os conceitos que ele aplica na análise de nosso passado é
que, embora sua intenção fosse, dentre outras, a de inovar no sentido de interpreta-
ção histórica, o que acontece é o surgimento de ideias que aparecem mais como uma
forma de ampliar o conhecimento da história do que uma crítica ou rompimento
propriamente dito com qualquer outra corrente interpretativa em voga até então.
Prova disso são as características que atribuiu à plantagem escravista , a qual
aparece definida como
uma organização econômica voltada para o mercado. Sua função pri-
mordial não consiste em prover o consumo imediato dos produtores,
mas abastecer o mercado mundial. Este é que a traz à vida e lhe dá
razão de existência. Baseado no trabalho escravo, o modo de produção,
que com ela se organiza, não oferece à plantagem um mercado interno
de dimensões compatíveis com sua produção especializada em grande
escala (GORENDER, 1978, p. 89).
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Caro(a) aluno(a), na verdade, o que podemos observar nos trabalhos des-
ses autores e suas críticas sobre a teoria do “sentido da colonização” é que eles
não conseguiram ou, pelo menos, demonstraram não ter conseguido entender a
essência do pensamento caiopradiano. Talvez, tenha faltado a eles estabelecerem
uma ligação entre a interpretação da história do Brasil feita por Caio Prado e o
momento histórico em que essa interpretação foi elaborada. Possivelmente, se
essa ligação existisse no pensamento de Cardoso e os demais autores aqui apre-
sentados, eles tivessem entendido que, se Caio Prado Jr. não tomou o mercado
interno como centro de sua análise nem considerou os sistemas produtivos, foi
porque seu objetivo era demonstrar que o desenvolvimento desse mercado estava
sendo impedido ou, ao menos, dificultado pelos aspectos exportadores da eco-
nomia colonial. Por essa razão, fazia-se necessária a apresentação e análise desses
aspectos, a fim de se demonstrar a necessidade de sua superação.
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para uma economia nos moldes do sistema capitalista, bases essas que seriam,
mais tarde, transferidas para suas terras no continente americano.
D. Manuel, com sua política de navegação, com seu regime de mono-
pólios internacionais, com suas manobras econômicas de desbanca-
mento do comércio de especiaria de Veneza, é um autêntico capitalista.
Os seus “vassalos” não ficam atrás. Não fazem a conquista como os
cavaleiros da Idade Média. Procuram engrandecer e enriquecer o país.
Querem que Portugal seja uma potência (SIMONSEN, 1969, p. 82).
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pra de escravos para trabalhar nelas, visto que os nobres não estavam preparados
e muito menos dispostos a lidar com o trato da terra.
Embora não esqueça o papel desempenhado pelo capital mercantil no
processo de desenvolvimento da colonização, Alberto Guimarães considera
um equívoco historiográfico apontar a existência de um capitalismo ou uma
economia capitalista no período que nos ocupa. Em uma crítica direta ao
trabalho de Roberto Simonsen, o autor afirma que a existência de tal capi-
talismo nas possessões portuguesas na América seria improvável na medida
em que esse sistema não havia se constituído nem mesmo na metrópole, não
sendo possível, portanto, que se estendesse a essas terras. De acordo com o
autor, embora existissem avanços na economia portuguesa, não se pode falar
na substituição do feudalismo pelo capitalismo naquele momento. Ao con-
trário, Portugal continuava a ser caracterizado por uma economia com fortes
elementos feudais.
Portanto, como acredita que o que determina o regime econômico de uma
sociedade é o seu modo de produção, embora as navegações e o comércio como
o Oriente tenham elevado as riquezas de Portugal, não foram suficientes para
acabar com o feudalismo, na medida em que a produção do país continuou a se
caracterizar por uma produção essencialmente agrícola no decorrer do século
XVI (GUIMARÃES, 1977).
Dessa maneira, alicerçada sobre resquícios de um feudalismo decadente, o
processo inicial de colonização do Brasil, de acordo com o autor, fracassou, e as
consequências desse fracasso se arrastaram ao longo dos séculos e, ainda, hoje,
podem ser sentidas, sobretudo no que diz respeito a nossa estrutura fundiária
Outros autores também dispensaram atenção a essa questão que, como dito ante-
riormente, parece não mais merecer destaque nos trabalhos acerca da formação
e evolução da sociedade brasileira.
A historiadora Vera Ferlini, em seu livro Terra, Trabalho e Poder: o mundo
dos engenhos no Nordeste colonial, de 1988, refere-se ao regime econômico
instalado no início do processo de colonização do Brasil como uma fase inter-
mediária entre o final do feudalismo e a ascensão e consolidação do capitalismo.
Em outras palavras, representa um período de transição, situado entre o final
do século XV e o século XVI, um período caracterizado pela “acumulação
primitiva de capitais, quando a economia mercantil ganhava espaço e dissemi-
nava-se, porém, a produção não se regia pelo capital enquanto relação social,
mas apenas como riqueza acumulada no circuito mercantil” (FERLINI, 2003,
p. 43). Nesse sentido, apesar da existência da acumulação primitiva, não se
pode falar em economia capitalista ou modo de produção capitalista no perí-
odo em questão.
Para Ferlini, só é possível falar na substituição de um regime quando há uma
dominação do aparato estatal por novas classes sociais, a partir de revoluções
políticas, promovendo uma mudança na estrutura econômica. Nesse sentido,
não se pode afirmar que essa mudança ocorreu no século XVI, período no qual,
de acordo com a autora, apesar dos avanços do mercantilismo,
Para nós, não parece possível definir o período que marca o início da colonização
das terras brasileiras de maneira extremada, denominando o regime econômico
aqui estabelecido de feudalismo ou capitalismo, pois isso implicaria em ignorar
as transformações pelas quais as nações estavam passando naquele momento.
Acreditamos ser o período moderno um período de incertezas que marca o nas-
cimento de uma nova configuração mundial.
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Nesse sentido, nesta análise, compartilhamos a ideia de que o regime eco-
nômico estabelecido no momento da ocupação e colonização do Brasil herdou,
por um lado, aspectos feudais, embora não podemos deixar de ressaltar que se
tratava de heranças do tipo de feudalismo que se desenvolveu em Portugal que,
diferenciava-se do feudalismo clássico europeu, entre outras razões, por possuir
características mais tênues que esse último (FONSECA, 1949).
Mas, por outro lado, alguns elementos do mercantilismo florescente em
Portugal também se faziam presentes nessas terras, mesmo porque, a documenta-
ção referente à colonização do Brasil nos mostra que já era inerente à mentalidade
dos homens que vieram para essas terras com a missão de iniciar a colonização
a ideia de busca por melhorias em seus rendimentos, um tipo de pensamento
característico do período mercantil (MENDES, 1996). Além disso, como bem
apontou Alberto Passos Guimarães, frente às transformações oriundas da cres-
cente influência do capital mercantil, seria difícil ignorar tais transformações e
dar continuidade ao desenvolvimento dessas terras.
Dessa maneira, acreditamos que as conjunturas que envolveram o processo
de formação e desenvolvimento da sociedade brasileira em seus primeiros anos
refletiam o momento de mudanças e incertezas da época moderna e que a pró-
pria sociedade que aqui se formaria foi resultado de um período marcado por
conflitos e contradições, tanto externos quanto internos.
Para uma melhor compreensão desses conflitos e contradições que marcaram
a colonização e desenvolvimento do território brasileiro, faz-se necessária uma
análise do processo de formação e evolução da sociedade portuguesa, visto que
somos resultado da ambição dos homens do século XVI, sobretudo, os portugueses.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerações Finais
294 UNIDADE V
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inseridos em outro contexto histórico. Assim, a partir da apreensão desse debate
somos capazes de desenhar nossa posição frente ao tema e às interpretações exis-
tentes, além de formular novas hipóteses de análise.
1. Após a leitura cuidadosa do tópico “As várias histórias do Brasil”, elabore um tex-
to dissertativo destacando as principais contribuições realizadas por Gil-
berto Freyre na obra Casa Grande & Senzala para a historiografia do Brasil
colonial.
2. De acordo com a leitura minuciosa desta unidade, assinale a alternativa CORRETA:
a. A obra Raízes do Brasil se preocupou em apresentar a história de um Brasil que
não deu certo, devido, principalmente, às características que em Freyre eram
vistas como algo positivo para a nossa formação.
c. Gilberto Freyre, ao lado de Ciro Flamarion Cardoso, foi um dos grandes críti-
cos da miscigenação do povo brasileiro, elemento que nos trouxe um atraso
significativo comparado a outras nações.
3. A obra Raízes do Brasil é considerada uma das grandes referências para os estu-
dos do Brasil Colônia, nesse sentido, aponte:
a. Os objetivos de Sergio Buarque de Holanda.
riscos, pois poderia ter ou não sucesso na tada por Caio Prado Júnior, mas não tinha
tarefa. Se a arrecadação fosse menor do que controle absoluto sobre sua eficácia.
o que havia desembolsado, tinha que arcar
com o prejuízo. Mas seus lucros deviam ser O duradouro e amplo comércio de nego-
significativos, pois um mesmo arrematante ciantes residentes no Brasil com variados
concorria repetidas vezes nos leilões. Pode- agentes estrangeiros e diversos portos, além
-se dizer, em linguagem atual, que Portugal da cobrança de impostos por parte de arre-
“terceirizou” a cobrança dos impostos. matantes particulares, põem em xeque as
teorias do “pacto colonial” e do “exclusivo
Outro ponto ajuda a ampliar a interpreta- metropolitano”. O sistema que vigorou no
ção sobre a sociedade colonial. Documentos Brasil se revelou bastante maleável. As novas
trouxeram à luz uma vasta camada popula- perspectivas sobre a dinâmica dos impérios
cional, situada entre os grandes senhores e coloniais mostram que o pacto parece ter
os escravos, que se inseria de forma deci- sido mais um projeto, um ideal a ser perse-
siva na dinâmica do setor exportador. guido, do que uma realidade de fato.
Eram homens e mulheres de variadas ori-
gens, exercendo atividades que iam desde O que restou desse ideal, segundo visões
a produção de alimentos, com mão de obra históricas mais recentes, foi uma herança
escrava ou familiar, até o trabalho em diver- portuguesa de cunho conservador,
sos setores das principais cidades portuárias. segundo a qual o comércio era cultural-
A grande lavoura, portanto, não era autos- mente desprestigiado, pois equivalia ao
suficiente. Havia um importante mercado trabalho braçal, considerado um “defeito
interno que relacionava os mais diversos mecânico”. Isso explica por que os pode-
setores de produção e de serviços aos nego- rosos comerciantes, em vez de investirem
ciantes que faziam a vez de patrocinadores cada vez mais em negócios mercantis e, atra-
da empresa colonial agroexportadora. vés da acumulação de capital, alcançarem
alguma atividade industrial, abandonavam
A esses setores, alia-se o contrabando, feito o comércio e adquiriam terras e escravos, na
sob as vistas benevolentes dos agentes da tentativa de obter prestígio social. Em um
metrópole, numa política permissiva e cor- mundo cada vez mais burguês e capitalista,
rupta. Por outro lado, mesmo que diversas a opção redundou em fracasso econômico.
leis ou alvarás tenham sido criados de modo a Hoje sujeitas a críticas que as tornam mais
preservar o comércio aos próprios portugue- ricas e complexas, as ideias de Caio Prado
ses, necessidades políticas da Coroa — como Júnior continuam uma referência funda-
a aliança com a Inglaterra desde o século XVII mental para quem quer compreender as
— fizeram com que se permitissem conces- causas de nosso atraso socioeconômico.
sões a alguns estrangeiros. A presença de Seja para concordar ou criticar, ele é o ponto
navios estrangeiros no Brasil, fossem eles de partida para as análises atuais. A verdade
flamengos, franceses ou italianos, sempre é que poucos conseguiram, como ele, insti-
foi corriqueira. A metrópole podia até tentar gar tantas e tão variadas investigações por
implantar uma política como aquela apresen- período tão longo de tempo.
Fonte: Faria (online).
MATERIAL COMPLEMENTAR
Raízes do Brasil
Sérgio Buarque de Holanda
Editora: Companhia das Letras
Sinopse: Leitura indispensável para a compreensão do
processo de colonização portuguesa. Teve sua primeira edição
em 1936 e até hoje se configura como uma das obras mais
importantes do cenário de colonização dos trópicos. O livro
destaca, com certa sensibilidade, uma das mazelas da nossa
vida social e política.
Raízes do Brasil I
Primeira parte do documentário referente à vida e obra de Sérgio Buarque de Holanda, um dos
principais intelectuais do Brasil do século XX.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=etUEsguoUx4>. Acesso em: 29 jun. 2015.
o Império Português no início do século XIX. Esses abalos foram sentidos tanto no
ambiente colonial como em suas relações internacionais e resultaram na transfe-
rência da Família Real para o Brasil em 1808. A partir desse momento, presenciamos
fatores que foram fundamentais para a construção do processo que culminou na
Independência do Brasil em 1822.
Finalmente, em nossa última unidade, compreendemos a necessidade de apresen-
tar as principais discussões teóricas referentes ao processo de colonização da Amé-
rica portuguesa. Para isso, apresentamos as interpretações elaboradoras por nomes
como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Ciro Flamarion
Cardoso, Jacob Gorender, dentre outros que, mesmo escrevendo no século passa-
do, ainda são estudos de referência sobre esse período e nos instigam a realizar um
debate acerca das principais questões que permearam nosso passado colonial.
Desse modo, esperamos que tenha compreendido a importância das temáticas aqui
apresentadas não só para a carreira docente, mas para a compreensão da formação
de nossa sociedade. Nesse sentido, prezado(a) aluno (a), esperamos que as questões
apresentadas nesta obra sirvam, também, para despertar inquietações teóricas e o
interesse pela pesquisa acerca do universo da colonização da América portuguesa.
303
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REFERÊNCIAS
UNIDADE I
UNIDADE II
1. Alternativa correta: E
2. O capitão donatário ficava incumbido pelo cumprimento da jurisdição e justiça
de suas terras. Poderia estabelecer penas leves como mais rígidas e até degredo
e pena de morte. Ficavam responsáveis pelo arrecadamento de impostos e pela
nomeação de pessoas para ocuparem distintas funções. Além disso, precisavam
proteger o território contra ameaças externas e zelar por suas terras. Quanto à
distribuição de terras, caberia ao capitão repartir em sesmarias isentas de impos-
tos, salvo o dízimo de Deus a Ordem de Cristo. Dentre os motivos do insucesso
GABARITO
UNIDADE III
1. Espera-se que haja uma discussão acerca dos principais problemas que perme-
avam aquele universo. Desses, podemos destacar: uma quantia limitada de je-
suítas para realizarem a catequização dos indígenas, a presença de padres de
outras ordens que compactuavam com a vida pecaminosa dos índios e colonos,
a existência de levantes indígenas contra as vilas e propriedades dos senhores
de engenho, a influência negativa dos pajés e a resistência do próprio nativo,
visto que resistiam ao máximo ao extermínio de sua cultura.
2. Na verdade, os membros da Companhia de Jesus não condenavam a guerra em
si, mas sim os atos que eram consequentes dos conflitos intertribais. Após os
conflitos, os nativos vencedores levavam para a aldeia o prisioneiro e, após um
determinado tempo, o inimigo era comido pelos membros da tribo em um gran-
dioso ritual antropofágico. Os jesuítas lutavam para sanar com esse traço típico
da cultura tupi.
3. Alternativa Correta: C.
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GABARITO
4. Por meio da leitura documental, espera-se que o aluno faça uma análise ten-
do em vista os pontos de direcionamento presentes na questão. Nesse sentido,
não podemos esquecer que os jesuítas possuíam uma série de dificuldades em
sua labuta catequética. Um número reduzido de religiosos para um território tão
vasto e hostil, as dificuldades referentes à resistência dos nativos aos preceitos
católicos e, ainda, os problemas que possuíam com a má influência dos coloni-
zadores que exploravam os nativos por todas as vias possíveis. Procurar destacar
a localização da relação, se neste espaço a catequização avançava ou se existia
maior resistência, e o diferencial na obra de José de Anchieta, que além de evan-
gelizador, era “mestre” nas letras e grande conhecedor de técnicas medicinais,
proporcionando a cura de muitos índios enfermos.
UNIDADE IV
UNIDADE V