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Quem disse que não te entendo?

uma história de
João Paulo Hergesel

A primeira versão desta história foi publicada no livro “Quem disse que não te
entendo?” (ed. Patuá & Telucazu, 2018).
SUMÁRIO

01. Simplesmente... aconteceu!


02. Situação chocante
03. Sensatez nota zero
04. Se há música, há poesia
05. Sabe da última?
06. Saindo de cena
07. Seja bem-vindo de volta
08. Sorria, você está sendo filmado!
09. Saltitando em bons ares
10. Su casa es mi casa
11. S. O. S.
12. Sumiço do gato
13. Simplesmente... chegou ao fim!

SOBRE O AUTOR
01. Simplesmente...
aconteceu!
O jornalismo sempre foi a verdadeira paixão de minha mãe:
quando tinha apenas cinco anos, já brincava de apresentar o
telejornal da noite ao lado de seu melhor amigo, o urso de pelúcia.
Não se contentava com o faz de conta; insistia para meus avós
ficarem sentados no velho, mas macio, sofá de courino, assistindo às
reportagens feitas ao vivo e em cores, com uma imagem muito
melhor que a da pobre televisão em preto e branco.
Cansada de entrevistar somente as bonecas e de ter suas
matérias assistidas apenas pelos pais, ela resolveu conversar com
sua professora do pré-escolar, a fim de criarem um zine semanal no
colégio. A ideia causou risos na mulher: “Onde já se viu uma
pequerrucha de cinco anos falar em ser redatora de um boletim
informativo?” Ela mal havia aprendido a ler e a escrever... E não
adiantou pedir, implorar, choramingar, explicar que ela só faria os
desenhos; a tia não levava nada a sério.
Muito chateada e aborrecida, voltou para casa e correu para o
seu quarto, onde passou a tarde toda trancada. Ninguém sabia, ao
certo, o que Amelinha estava fazendo, mas temiam que coisa boa
não pudesse ser. Ao pôr do sol, perceberam que estavam
equivocados; a garota, com uma folha de caderno e um lápis de
ponta grossa, escreveu um pequeno relato, em letras de forma e
praticamente ilegíveis, desabafando o que sentia pelos professores
que não acreditavam na capacidade de seus alunos.
Assim que minha avó decifrou os hieróglifos infantis, não pôde
acreditar que sua menininha era provida de tamanho talento. No dia
seguinte, levou o papel para que a professora lesse e desse a sua
opinião sobre o texto. De queixo caído, a educadora admitiu que
dessa vez foi ela quem aprendeu uma lição e, para reconhecer o
erro, além de criar o Jornalzinho da Criança, fez com que o texto da
minha mãe fosse publicado na primeira página do dominical da
cidade. A partir dessa sua primeira matéria, não se teve mais
dúvidas: a vocação dela era realmente voltada à imprensa.
Esforçando-se como aluna e tirando excelentes notas, entrou
com facilidade numa universidade quando tinha apenas 15 anos.
Apresentando ótimo desempenho durante os semestres, ganhou
placas de mérito por três anos consecutivos, o que provocou um
grande interesse da gazeta da cidade pela jovem.
Foi contratada por seis meses pelo jornal, no entanto, só
trabalhou lá por três; o diretor de uma emissora de televisão leu
várias de suas matérias e lhe fez uma proposta irrecusável. Disposta
a largar a família e os amigos de infância, ela foi à cidade grande
para trabalhar como repórter de rua. Logo a promoveram a
noticiadora sênior.
Começou a viajar o país e o mundo, a fim de levar a informação
para dentro da casa daqueles que desejassem estar ligados nas
notícias. Em uma dessas viagens, esbarrou com Ricardo, esperto e
atraente contador. Conversa vai, conversa vem, e eles já estavam
dividindo o mesmo teto, num município vizinho da grande
metrópole.
O romance entre o casal não fez com que minha mãe
abandonasse a profissão. Ao invés disso, com o sonho de constituir
uma família, ela se empenhou cada vez mais em suas matérias
jornalísticas, o que a fez crescer na mídia e explodir em demasiado
sucesso. Para compensar o prestígio, recebeu um convite para
gravar uma matéria no exterior: uma série especial sobre o Polo Sul
– o qual não hesitou em aceitar.
E lá foi ela, ao lugar mais gelado do planeta Terra. Para ela, era
uma diversão: amava tempo frio. Dentre milhares de focas e
icebergs, ela registrou muitas matérias e, inclusive, descobriu um
suposto arsenal de armas nucleares mantido pelos Estados Unidos
naquela região. A série foi um tremendo sucesso e resultou em
altíssimos índices de audiência.
Muito tempo se passou depois dessa sua aventura. Três anos
atrás, já casada e com um filho pré-adolescente para terminar de
criar, tentava conciliar trabalho e família. Naquele ano, completava
exatamente quinze que a série Expedição Antártica havia ido ao ar;
portanto, mamãe recebeu outro convite da emissora: voltar ao
continente de gelo, relatar as mudanças ocorridas e em que o
aquecimento global havia contribuído para essas alterações.
Titubeou em aceitar, mas ouviu o marido que lhe disse valer a
pena. No dia em que partiu, ela deu um beijo demorado em meu pai
e um forte abraço em mim, sussurrando em meu ouvido que estaria
de volta antes que eu conseguisse pronunciar “eu tagarelaria, tu
tagarelarias” sem tropeçar na língua. Do terraço do prédio da
emissora, meu pai e eu vimos a minha mãe entrar no helicóptero e,
junto do cinegrafista e do piloto, decolar.
Ela, com um sorriso de compaixão, derramava uma lágrima.
Tanto meu pai como eu também deixamos rolar pelo rosto uma
pequena gota salgada. Um aperto no coração me incomodava, mas
naquele momento eu só pensava em conseguir conjugar o verbo
tagarelar, na esperança de que a pessoa que eu mais amava
voltasse.
Após pararmos numa sorveteria para devorar um sundae, meu
pai e eu voltamos para casa. Liguei a televisão rapidamente, pois
estava passando meu desenho animado favorito. De folga, meu pai
o assistia junto comigo e ria feito uma criança — até mais do que eu
— das palhaçadas que o gato e o rato faziam.
De repente, aquela musiqueta chata, anunciando a chegada de
uma notícia fresquinha, começou a tocar, seguido do anúncio:
“Plantão!”. Para mim, plantão era uma planta grande, como um
eucalipto ou uma palmeira. Que ilusão! Uma jornalista, amiga de
minha mãe — eu a conhecia — estava com os olhos mareados,
lacrimejando e segurando um microfone com o enunciado “urgente”
abaixo do logotipo da emissora. Com a voz trêmula, anunciava:
— Um helicóptero com a equipe de reportagem da emissora
sofreu uma pane...
O tão equilibrado senhor Ricardo, conhecido por mim apenas
como pai, deu um forte grito de desespero e, desabando no choro,
começou a bater na parede, como se os tijolos fossem culpados.
Embora eu tivesse 11 anos, idade suficiente para entender o que
acontecia, não conseguia, ou não queria, compreender o que havia
ocorrido. Só fui entender quando meu pai me disse para esquecer o
trava-língua.

***

Uns me tratam por Eduardo; outros preferem encurtar para


Edu. Gosto dos dois, principalmente da forma abreviada, pois era
como minha mãe me chamava. Hoje, aos 14 anos de idade e na
última série do Ensino Fundamental, não tenho muitos amigos. Meu
jeito tímido não me deixou fazer mais do que três amizades
verdadeiras.
Conheci Isabela no primeiríssimo dia de aula, quando eu tinha
quatro, cinco anos. Estava um bocado assustado, grudado em minha
mãe, que fez questão de deixar o trabalho um pouco de lado e me
acompanhar. Fazia a maior birra para não a soltar. Por mais que ela
me dissesse que logo estaria ali para me buscar, nem uma divindade
me faria ficar quieto. Apareceu, então, Isabela.
Esticando a mão em minha direção, a garotinha parecia me
chamar para ser seu mais novo amigo. Enxuguei as lágrimas e olhei
para minha mãe. Sorrindo, ela me disse para ir brincar com minha
nova coleguinha, pois acharia divertido. Soltei a mão agarrada à
calça de minha mãe e saí correndo pelo pátio, atrás de Belinha que
tentava fugir de mim no pega-pega.
O tempo passou rápido e, em menos que eu pudesse imaginar,
já estava indo para o sexto ano. No início, foi bem difícil. Houve uma
baita reviravolta na escola com a chegada de novos alunos e as
classes se misturaram. Por sorte, Belinha continuava na minha sala,
juntamente com vários desconhecidos que eram como
extraterrestres que haviam invadido a Terra.
Em meio a mais de quarenta estranhos, meus olhos notaram
que, sentada à frente da mesa do professor, havia uma etezinha
muito bonita. Com os sedosos cabelos louros e o sorriso angelical,
ela chamava minha atenção e a de todos os outros meninos da sala.
Não pela beleza, mas porque, em sua cabeleira, havia uma enorme
barata pronta para atacar.
Alguns segundos se passaram e outra aluna deu um grito. A
lourinha, assustada, levantou e começou a se debater aos berros.
Aquele escândalo superou o meu do primeiro dia de aula. De tanto
a menina se sacudir, a barata caiu. A professora, que também era
nova, exceto na idade, agachou e pegou a barata... de plástico!
Aquilo se tornou alvo de piada na escola. Todos riam da menina
que se desesperou por causa de um brinquedo. A garota não podia
mais nem passar pelo pátio que começavam a tirar sarro. Acho que
a coitada estava pensando até em se mudar de escola, quando
Isabela e eu entramos em ação.
Sentada no chão, num canto da escada, ela estava de cabeça
baixa na hora do intervalo, prestes a chorar. Nós nos aproximamos e
perguntamos seu nome. Temendo que fôssemos fazer algum
gracejo, ela pediu que a deixássemos em paz. Falei que todos
aqueles que estavam rindo dela com certeza já haviam passado, ou
ainda passariam, por situações piores. Ela devia fazer comédia de
tudo aquilo, entrar no jogo. Não precisava fazer drama de... drama!
Adquirindo confiança em nós, a menina se levantou, deu um
ligeiro sorriso e disse com a voz suave:
— Eu me chamo Letícia, e vocês?
Pronto! Estava formado o trio do momento. Era — e ainda é —
muito bom quando estamos juntos.
Sempre foi maravilhoso ter garotas como melhores amigas. Elas
são carinhosas, meigas, amáveis, sem falar que quando estamos
tristes elas vêm nos consolar — conheci esta teoria na prática
quando minha mãe faleceu. O problema era que, depois de um
tempo, eu já estava com 12 anos e, nessa idade, há coisas que não
podemos falar às meninas, mas que precisamos desabafar com
alguém.
Para meu pai, nunca contei nada, pois acho que ele ainda não
se conformou com a morte da esposa e tem me menosprezado,
como se eu fosse o principal responsável pela desgraça. Percebi,
então, que precisava de um amigo. Com certeza eu não iria atrás de
um, pois não tenho facilidade em fazer amizade; logo, estava
perdido. Todavia, sem mais nem menos, Cláudio, um dos meninos
da sala, veio falar comigo.
Ele era um dos meninos do fundão. Adorava uma bagunça. Por
isso achei que ele fosse me zoar por ser um tanto nerd ou algo
assim, mas não. Impressionantemente, ele me pediu para ser seu
amigo. Segundo ele, estava percebendo que a bagunça não o levaria
a nada, então, queria entrar em contato com pessoas mais
diplomáticas. Nós nos tornamos grandes amigos desde então e lhe
ensinei o significado da palavra diplomático.
Quando havia algum trabalho em grupo para ser realizado,
fazíamos sempre nós quatro. Formamos uma espécie de Quarteto
Fantástico. Se eu desejasse falar de uma boa ação, contaria às duas,
que, com certeza, achariam bem fofo. E se eu desejasse falar sobre
assuntos mais pessoais, podia contar com Claudinho.
Infelizmente, podia — pretérito imperfeito do indicativo.

***

A natação se tornou uma alma gêmea quando minha idade


ainda cabia nos dedos de uma só mão. Mas a piscina, que aos cinco
anos era somente um espaço para diversão, tornou-se a versão
molhada do meu espaço particular.
No começo, eu ficava meio sem jeito. Morria de vergonha de
usar sunga, ainda mais na frente da professora, que era mulher, mas
aos poucos fui me soltando e me interessando cada vez mais pelo
esporte.
Logo na primeira vez que pulei na piscina, senti algo muito
intenso. Parecia que a água queria ser minha amiga. Era
aconchegante ficar ali, naquela água levemente aquecida. Com o
tempo, fui mudando de piscina: passei para a média, para a grande
e hoje já estou na olímpica — e dando adeus ao aquecedor térmico.
Nunca faltei a uma aula de natação. Mesmo estando com algum
resfriado, mergulho e todos os males passam. Todos os males
mesmo. Quando perdi minha mãe, foi nas águas da piscina grande
que me consolei. Elas levaram minha angústia embora e me
deixaram disposto a continuar a vida.
Desde que conheci Claudinho, ele vai comigo ao clube.
Enquanto eu faço minhas aulas de aperfeiçoamento, ele aproveita
para se divertir.
Não sei se foi por causa do calor atípico ou porque todo mundo
acordou com vontade de nadar, mas teve um dia em que as piscinas
estavam completamente lotadas; tinha gente que não conseguia
nem se mexer, devido ao aperto. Mas o espaço não tinha tanta
importância, já que estavam interessados em se refrescar.
Como já comentei de minha timidez, dá para imaginar como
sou para trocar a sunga molhada por uma roupa seca: entro no
vestiário; corro até uma das cabines de chuveiro com quatro
paredes em volta; tranco a portinha; fico espiando para ver se não
aparece ninguém por cima; enrolo a toalha em volta da minha
cintura; tiro a sunga rapidamente; mal me seco; e ponho a roupa.
Porém, nesse dia, como o clube parecia um formigueiro
humano, o vestiário masculino estava cheio. Das seis cabines que
havia, quatro estavam fechadas para manutenção e as outras duas
estavam com a fila imensa — a marmanjada queria tirar o cloro do
corpo. Entrei na fila, com a esperança de que minha vez chegasse o
mais rápido possível.
— Sai daí. Toma banho na sua casa — disse Claudinho, tirando-
me da fila. — Esqueceu que combinamos de fazer o trabalho de
Artes com as meninas daqui a dez minutos? É o tempo de se
aprontar e ir para sua casa.
O coração disparou e comecei a sentir falta de ar. Olhei para
um lado; olhei para o outro. Vi a fila do chuveiro aumentando e,
tentando me acalmar, pensei: “Não há o que temer, ninguém vai
ficar me olhando.” Então, num ato de coragem, desci a sunga.
Durante a adolescência de um menino, e algumas vezes na fase
adulta, é mais do que normal ocorrer uma ereção espontânea,
afinal, o corpo está se adaptando às mudanças hormonais. O
simples movimento de um carro, por exemplo, pode desencadear
uma ereção.
Assim que tirei a sunga, uma dessas ereções me aconteceu.
Todo mundo começou a rir, principalmente quando aquele que se
dizia meu amigo falou em tom de brincadeira, mas em voz alta:
— Ficou assim só por me ver?! Que é isso, cara?!
Não sabia onde enfiar a cabeça. Não sabia se ria junto ou se
chorava. Não tinha ideia de o que fazer. Sem reação, pude perceber
que um gordinho saía de uma das cabines. Inesperadamente, furei a
fila de dezenas de pessoas e entrei na cabine, trancando a porta
automaticamente. Estava tão fora de mim que nem ouvi os
palavrões e xingamentos que recebi.

***

Demorou um pouquinho até que eu me recuperasse do choque


e tivesse coragem de expor minha cara. Sem olhar para trás, peguei
minha mochila e saí correndo daquele vestiário.
Assim que cheguei em casa, Belinha, Letícia e ele me
aguardavam, sentados na varanda, para fazer o trabalho de Artes. O
trabalho consistia em escrever uma biografia sobre Michelangelo,
aquele pintor, escultor, poeta e arquiteto renascentista italiano.
Uma das esculturas mais famosas desse artista renascentista foi
“Davi”, uma estátua de mármore, com pouco mais de cinco metros
que retrata um herói bíblico. Michelangelo usou nessa obra,
considerada uma das mais importantes do Renascimento, o realismo
do corpo nu e o predomínio das linhas curvas. E, como já era de se
esperar, Davi não estava com “aquilo” ereto.
— Ufa! Até que enfim, você chegou! — exclamou Belinha. — O
Claudinho disse que você ia demorar, mas não nos disse o motivo
que, a propósito, não nos interessa. Vamos começar logo esse
trabalho, pois dependo dessa nota.
Achei que seria fácil fazer o trabalho e que Claudinho já tinha
até esquecido tudo, mas não foi bem assim. Enquanto as meninas
liam e comentavam trechos do livro, Claudinho olhava para mim e,
para zombar, me mandava beijinhos. Eu tentava me concentrar na
leitura, mas os gracejos do garoto me abalavam.
Uma hora, já não aguentando mais aquilo, disse que precisava
conversar com ele e o arrastei até o meu quarto. Em voz baixa, para
que as garotas não ouvissem, falei:
— Por que está fazendo isso comigo? Foi só um acidente... Qual
é?! Se você não parar com isso, provará que não é meu amigo de
verdade. Se for assim, pode sair da minha casa.
Acreditei que ele fosse me pedir perdão, mas me equivoquei.
— Bem, agradeça por eu não ter contado a ninguém sobre sua
fobia do escuro.
E, inventando a desculpa de que precisava pegar uma tia na
rodoviária, saiu, deixando a nós três a missão de terminar o trabalho
sem ele.

***

Concentrar-se em Michelangelo não é nada fácil quando você


acaba de romper uma amizade. Todavia fiz o melhor possível. Ainda
faltavam detalhes para acabar a biografia, mas percebi que as duas
já estavam cansadas e que o relógio já marcava quase sete horas.
Então, disse que daria os retoques finais mais tarde e que elas
poderiam ir embora.
Assim que viraram as costas, entrei no banho. Tentei utilizar a
água quente para colocar os pensamentos em ordem, mas não
consegui. Tudo estava um caos dentro da minha cabeça. Fechando
os olhos, tentei imaginar minha vida sem essas crises adolescentes.
Estava dando certo, até o barulho da porta da sala batendo me
trazer de volta para a realidade.
Sabia que era meu pai quem chegava. Desliguei o chuveiro e
fui direto para meu quarto. Escutei, de lá, meu pai religar o chuveiro
e, em menos de cinco minutos, desligá-lo. Saindo, ele foi direto ao
seu quarto, sem me dar ao menos um boa-noite, como já era de
costume.

***

Não passava das oito quando pensei em checar as redes


sociais, mas logo desisti. Temi que Claudinho pudesse me ver on-line
e continuasse as chacotas. Então, resolvi olhar as estrelas no céu.
Decepção! A noite estava repleta de nuvens.
Não fora de hora, um vento repentino bateu em minha janela,
deixando meu braço arrepiado. A mesma brisa também empurrou as
nuvens, lá no alto, fazendo com que a primeira estrela aparecesse
no céu aquela noite.
Admirei por um tempo aquele pontinho dardejante. Sabia que
somente a apreciação não me auxiliaria em nada, por isso, resolvi
conversar com ela. Contei a ela quem eu era, quem eram meus
amigos, o que aconteceu com meus pais e sobre o ocorrido mais
fatal daquele dia. A estrela havia virado minha amiga confidente.
Lembrando que, segundo superstições, se fizermos um pedido
à primeira estrela que surge na noite, o pedido é realizado, fiz um
sincero e de todo coração. No entanto, ao terminar o desejo, ri
comigo mesmo... Que bobagem! Quem vê pensa que estrela tem
vida e é capaz de nos entender.
E, retirando-me da janela para a cama, ouvi:
— Quem disse que não te entendo?
Voltei a olhar para o céu, mas era tarde demais; uma nuvem
traiçoeira havia encoberto a estrela, que só voltaria, talvez, na noite
seguinte.
02. Situação chocante
“E se Claudinho contar para todo mundo? Vão me apontar
como um vilão pior do que o da novela das nove. Não posso
aparecer na escola amanhã! Tenho que esperar no mínimo uma
semana até que se esqueçam de tudo...” — fiquei pensando, antes
de dormir.
Após pegar no sono, embora meu lado consciente estivesse
desligado, o subconsciente entrava em ação. Ele já estava
acostumado a criar historinhas um pouco absurdas e difíceis de
entender, mas naquela noite tive um sonho muito especial: uma
espécie de flashback onde pude reviver, por alguns instantes,
detalhes da minha vida que acabaram passando despercebidos. E foi
com esse sonho que descobri estar apaixonado.
Lembrei do dia que Isabela e Letícia decidiram cabular a aula
de matemática. Isso não é muito o estilo delas; talvez, por isso, o
único esconderijo no qual pensaram foi a biblioteca. Para a
monitora, as duas estavam autorizadas, pelo professor, a realizarem
uma tarefa escolar. Elas, porém, não contavam com a astúcia do
diretor, que apareceu bem no momento em que elas tentavam se
camuflar por trás dos livros.
Generoso como sempre, ele tentou pegar leve, mas, como não
podia deixar um acontecimento daquele passar em branco, foi
obrigado a lhes dar uma advertência. Isso deixou Letícia cabisbaixa
e pensativa pela semana toda — era a primeira vez que o diretor a
repreendia. Belinha, ao contrário, esqueceu rapidamente a parada e,
com seu jeito espontâneo de ser, ainda fez piada de toda aquela
situação.
Recordei, também, o dia em que a professora de ciências
resolveu fazer uma excursão para que pudéssemos entrar em
contato com a natureza, ultrapassando a fronteira dos livros. Fomos
a um terreno próximo à escola que, segundo ela, em breve seria
bosque; mas, para que isso acontecesse, era necessário que
plantássemos sementes e mudinhas de árvores frutíferas pelo local.
A cada buraco que abria, Belinha se preocupava rigorosamente
em tirar todas as minhocas que havia naquela terra para que elas
não se machucassem com as raízes pontudas da plantinha. Letícia,
em vez disso, torceu o nariz, pois poderia, além de sujar sua roupa,
quebrar uma das unhas; por isso, ficou com a difícil missão de regar
o plantio.
E, para encerrar o sonho, uma última cena trouxe à memória o
dia em que as duas andavam distraídas pela calçada da rua de casa
quando Letícia, sem perceber o bueiro aberto no chão, acabou
caindo dentro. Prontamente, Belinha pediu às pessoas que estavam
próximas para chamarem o resgate, enquanto ela própria distraía a
amiga, fazendo-a esquecer que junto a ela poderiam estar ratos,
baratas e outros bichos de esgoto.
Os bombeiros não demoraram, para alívio dela, de Belinha e
dos curiosos que aplaudiam o ato heroico. Toda imunda de lama,
Letícia pegou uma carona com o caminhão-pipa até sua casa, onde
tomou um longo banho e gastou um frasco cheinho de perfume
Jequiti.
O barulho do despertador me acordou e, sem mais neuras,
levantei para ir à escola. O grande motivo pelo qual me senti
disposto a enfrentar todos os maus pensamentos foi uma pessoa.
Para ser mais específico, uma das protagonistas do sonho, a menina
mais meiga, carinhosa e fofa da cidade: Letícia. Seu jeito
dondoquinha e seu carisma são capazes de conquistar até mesmo o
coração dos mais insensíveis — não que eu seja um.

***

Assim que cheguei ao colégio, vi a mesma pacatez de sempre:


Letícia e Belinha sentadas no banco de madeira, consultando o
horóscopo pelo celular e fofocando sobre fulano que saiu com
beltrana ou sicrana que gosta do tal fulano.
Eu me juntei a elas justamente para ficar um pouco mais perto
da garota que havia tomado conta do meu coração. No entanto, mal
deu tempo de falar um bom-dia e o sinal, indicando o início da
primeira aula, soou. História: se havia uma coisa que eu gostasse
menos do que essa matéria, com certeza era a professora.
Por sorte, a professora Renata tinha faltado. Um tal de Mário a
substituiria. A classe estava mais agitada do que nunca. Dentre
alunos correndo e bolinhas de papel voando, notei que Claudinho
vinha em minha direção. Puxando uma cadeira, ele se sentou ao
meu lado. Depois da briga, não nos falamos mais, portanto não
entendia o motivo pelo qual ele se aproximou de mim. Mas a razão
era óbvia: ele queria se desculpar.
Pedindo perdão, disse que não sabia por que havia feito tal
brincadeira e ainda tentou me consolar, falando que isso poderia lhe
ocorrer a qualquer momento. Não sou de ficar muito tempo brigado
com alguém e também já estava sentindo falta do humor sagaz
dele, então, não tive escolha senão abrir um sorriso e lhe falar que,
na verdade, nunca havíamos deixado de ser amigos. Mas, o que
mais me intrigava naquele momento era o pedido que eu havia feito
à estrela: uma reconciliação de amizade. Resolvi deixar o
pensamento para lá.
Nesse momento, sabendo que Claudinho não era nada tímido e
se dava muito bem com as garotas — chegava a ficar com duas ou
mais ao mesmo tempo —, pensei em pedir um conselho de como
poderia fazer Letícia entrar na minha. Contudo, não tive tempo de
concluir a ideia, porque ele veio com um novo assunto.
— Cara, sei que sou galinha às vezes e posso até não prestar,
mas tem uma gatinha que acho que vai mudar esse meu jeito de
ser.
Não acreditava que Claudinho mudaria de maneira drástica,
mas fiquei curioso em saber quem era a tal menina que lhe
conquistou o coração.
Levei um choque! As ondas eletromagnéticas das palavras de
Claudinho colidiram com minhas orelhas receptoras, numa voltagem
de 220 volts, sendo que elas foram programadas para não receber
mais do que 110.
— É a Letícia, cara. A mina é muito gata, irmão — foi a
resposta que me causou tal dano.
Imobilizado, ainda ouvi Claudinho me perguntar se eu não tinha
nenhuma “mina” em vista. Não poderia falar que estava apaixonado
pela mesma garota, então abaixei a cabeça, tentando pensar numa
desculpa rápida e convincente, porém nada me vinha à mente. Por
sorte, Belinha, que se senta uma carteira atrás de mim, me cutucou,
perguntando se, por acaso, eu não gostaria de fazer parte de seu
time para a guerra de borrachas contra o outro lado da sala.
Claudinho já começava a picar uma em pedacinhos, enquanto
eu hesitava em aceitar o convite.

***

Após aquela descarga elétrica, precisava me recuperar. Ainda


bem que, depois da escola, como em quase todos os dias, eu tinha
aula de natação. Pode parecer meio contraditório misturar água e
eletricidade, mas a vida é contraditória. Cheguei meia hora antes
para aproveitar a piscina vazia. Claudinho achou melhor não ir
comigo, usando como desculpa a tão conhecida dor de garganta.
Ainda no vestiário, vi meu rosto refletido no metal do velho
mictório. Mesmo não tendo muita certeza de que o mictório era
realmente um bom lugar para se usar como espelho, notei que um
sonho estava prestes a ir por água abaixo. Analisando o cabelo
bagunçado, a cara meio inchada e umas espinhas que se
camuflavam por entre as pintas de meu rosto, calculei minha beleza
exterior. O resultado é que fiquei devendo.
Se Letícia quisesse um namorado, era só estalar os dedos e
todos os que estivessem por perto cairiam a seus pés. Sem falar que
ela é modelo, então, tem contato com muitos caras que cuidam do
cabelo, têm o rosto arredondado e não sofrem de acne, pois vão ao
dermatologista regularmente.
Sendo assim, que chances teria eu com a garota? Se ela
quisesse ficar com um amigo, certamente escolheria Claudinho, que
é descolado e social. Contudo, de uma coisa não posso reclamar:
meu nariz é perfeito!

***

Sentada em uma dessas cadeiras de praia, Cris, à beira da


piscina, aguardava o término de seu horário de almoço. Decerto,
não havia saído para comer. A expressão de tristeza no rosto
indicava que não tinha apetite; o chapéu estampado de flores que
cobria parte dos olhos confirmava. Sem nem forjar um sorriso, deu
um boa-tarde meio soluçado — devia estar chorando, talvez mais
por dentro do que por fora.
Chegaram os outros alunos, Cris limpou os olhos ainda
vermelhos e iniciou a aula com o alongamento. Enquanto esticava o
braço o máximo possível, comentei com um de meus colegas:
— Nossa, a Cris parece estar tão triste...
— Pudera! Ninguém se lembrou do aniversário dela.
Preparados contra cãibras, treinamos o nado borboleta. Não é
minha modalidade preferida, mas fiz tudo sem reclamar. Quando a
aula acabou e ia saindo, ouvi o chamado de Cris, pedindo para eu
esperar um pouquinho, pois precisava falar comigo.
— Edu, acho que você não está sabendo, mas suas
mensalidades já estão atrasadas há dois meses. Como você é meu
melhor aluno, fiz questão de liquidar suas dívidas, mas este mês
iniciarei um tratamento odontológico e meu salário não será
suficiente para lhe ajudar.
Aquilo me deixou ainda mais chocado. Tanto que acabei
esquecendo de desejar um feliz aniversário a ela. Agradecendo pelo
que fez, saí.

***

Só em casa vi que tinha um “oi” de Belinha no meu celular.


Respondi, e ela perguntou se estava tudo bem. Respondi que, na
verdade, não e contei as novidades.
|Tenho uma ideia!|
|Sobre o que fazer com as mensalidades?|
|Não, sobre a festa da Cris.|
Belinha sugeriu preparar uma festa para a professora, pois
assim ela se sentiria menos tristonha e, além disso, seria uma forma
de agradecer o que ela fez por mim. A ideia era boa, mas como
prepararia uma festa da noite para o dia? Ou melhor, da tarde para a
noite.
|Deixa comigo! Apenas convide o pessoal.|
Mandei mensagem a todos que conhecia, avisando que faria
uma comemoração surpresa para a Cris e que a presença deles era
indispensável. Em seguida, liguei ao clube e deixei um recado com a
secretária. Cris deveria comparecer no endereço citado, na hora
mencionada, pois o pai de um aluno precisava conversar com ela. A
desculpa não era das melhores, mas não tinha tempo de pensar em
algo mais persuasivo.
Nem imaginava o que Belinha estaria aprontando. A única coisa
que sabia era que na casa dela, às oito da noite, alguma coisa iria
acontecer.

***

Antes de sair de casa, olhei para o céu. As estrelas começavam


a aparecer. Fixei na mesma estrela que realizou meu desejo — não
tinha como confundir: era a maior e mais brilhante — e agradeci
pelo que havia feito por mim.
Fui sair, mas voltei à janela. Tive uma ideia que poderia ser
muito maluca, mas era a única maneira de me dar bem com a
Letícia. Sabia que a estrela não era cadente e que naquela noite ela
não havia sido a primeira a surgir, mas, como ela já atendera meu
pedido uma vez, quem sabe não atendesse de novo?
— De Letícia quero um beijo cinematográfico.
Não sei se aquilo era pedir demais, mas acho que a estrela
escutou, pois dardejou ainda mais por um segundo. Com tamanha
simpatia, aquela estrela precisava de um nome. Mas que nome? Ela
me ouve como se fosse uma pessoa de verdade, uma menina — ou,
como diria minha tia argentina, uma niña. Não havia nome melhor:
Nina era perfeito. E acho que ela gostou, pois reluziu fortemente
mais uma vez.
Fiquei observando-a por mais alguns segundos, até lembrar que
já estava atrasado para a surpresa que faríamos à Cris. E foi dando
as costas à janela que ouvi num tom de quem está passando cola a
alguém em dia de prova:
— Clarice.
O que aquilo significava eu não sabia. As únicas duas coisas das
quais tinha noção era que “Clarice” me lembrava a Lispector, grande
escritora brasileira responsável por diversas obras intimistas de
muito sucesso, e que eu tinha uma festa para ir.

***

A casa de Belinha estava mais enfeitada que em dia de Natal.


Não sabia como ela tinha conseguido preparar tudo sozinha, até ela
me contar que seu tio trabalhava como produtor de festas e
eventos.
Como o convite fora de última hora, não havia muita gente —
apenas umas 20 pessoas, sendo a maioria alunos. O que mais me
preocupava era se a mulher ia cair ou não no truque. A resposta
veio rápido, com o barulho da campainha.
— Escondam-se todos! — sussurrou Belinha, apagando as
luzes.
Dona Ofrásia, a mãe da garota e dona da casa, foi atender a
porta. Assim que ela abriu, todo mundo saiu de seus lugares e,
numa única voz, gritamos “surpresa”. Ela realmente se surpreendera
— via-se pelos seus olhos arregalados. Demorou um tempinho, mas
ela entrou no clima.
A entrega de presentes finalmente começou. Eu estava perto,
enquanto Cris abria os embrulhos. Os pais de Belinha não queriam
mesmo ficar de fora. Não conheciam a aniversariante, mesmo assim,
além de ceder a casa para uma festança, fizeram questão de
comprar uma lembrancinha, a qual foi a chave de uma grande
descoberta.
— Nossa, que maravilha! Um escafandro... Edu, lembra quando
sua mãe comprou um desses para mim, logo no primeiro ano que
você entrou no curso?
— É claro! E ainda lembro das palavras: “Este traje vai proteger
você da água congelante, caso resolva nadar nestas férias de
inverno.”
Uma ficha caiu. O aniversário de Cris era no inverno e ainda
estávamos no verão. Com certeza, ela não estava ficando um ano
mais velha naquele dia.
Arrastando Belinha para um canto, disse finalmente entender o
porquê do enorme susto da nadadora ao ver as bexigas espalhadas
pela casa e brigadeiros sobre a mesa. Ao passo que falava, via que
Cris se sentava no primeiro degrau da escada, longe dos convidados,
com seu pratinho de bolo. Limpava algumas lágrimas. A infelicidade
havia voltado. Parei de falar e apontei para o que observava. Belinha
seguiu a direção de meu dedo e disse para não me preocupar, pois
colocaria seu lado Isabela, a séria e consoladora, e descobriria o
verdadeiro motivo de tanta melancolia.
Conversaram por alguns instantes. Depois, minha amiga veio
me contar o que estava abatendo a instrutora.
— Um primo dela está preso, seu único irmão não lhe dá
notícias se está vivo ou morto, seu pai descobriu recentemente que
está com câncer, e o namorado terminou com ela porque não queria
que ela fosse vista de biquíni por todos.
— Ah, então essas lágrimas são por isso...
— Na verdade, não. Agora, ela está chorando de alegria.
Mesmo não sabendo o que lhe passava, você programou uma festa
para alegrá-la. Ela está se sentindo como não se sentia há muito
tempo: amada.
Juro que senti vontade de chorar.
03. Sensatez nota zero
No intervalo de vinte minutos que temos entre a terceira e a
quarta aula, costumamos ficar em pequenos grupos. Geralmente os
grupinhos são formados por pessoas com as mesmas características:
os brothers da pelada, as migas do shopping, a galera dos vídeos na
internet... Diferentes dessa norma éramos Belinha, Claudinho, Letícia
e eu. Nós quatro não somos nada parecidos; somos unidos pelo laço
da amizade.
Um desses grupos típicos de séries norte-americanas é o das
“baladeiras”. São quatro garotas que não podem perder uma balada
sequer. Ana, Helena, Penélope e Frida adoram um lugar onde
possam dançar até altas horas. Não podem ouvir as palavras festa
ou balada que já ficam todas animadinhas. Marcam presença desde
em mínimas comemorações de aniversário a grandes bailes de
carnaval. No entanto, o que elas mais gostam é das raves.
A personalidade delas nota-se só na maneira de se vestir e agir.
Tirando Ana, que mantém o cabelo longo e a moda da camiseta e
calça jeans, as outras apresentam, com uma espécie de orgulho,
seus cabelos verdes, rosas, azuis, piercings por todo o corpo,
tatuagem da cabeça aos pés, gírias infames...

***

A professora de português entrou na sala já falando da nossa


formatura.
— Precisamos encontrar uma forma de arrecadar dinheiro, seja
com doces, bingo, rifa, fazendo uma festinha...
Quando ela falou em festinha, os olhos das baladeiras
brilharam. Elas queriam de todo o jeito transformar o pátio da
escola num galpão de festa rave.
A ideia foi aceita por mais da metade da classe, mas foi
recusada pela pessoa principal: a professora. Ela disse que o
máximo que a escola poderia fazer era um karaokê beneficente.
Sugeriu que fosse cobrado um real de entrada mais um a cada
música que cantassem. Todo o dinheiro seria revertido para as
despesas da formatura, no final do ano.
A sugestão foi bem aceita, inclusive pelas quatro agitadoras.
Afinal, como disse uma delas, o importante é ter festa!

***

Saindo da escola, fui ao clube, sabendo que seria a última vez


que colocaria os pés naquele lugar, pelo menos até que eu
arrumasse uma forma de pagar as mensalidades. E, também, a
dívida que tinha com Cris.
— Então, acho que essa será minha última aula — saiu de
minha boca, como uma frase de despedida.
Cris forçou um sorriso, mas pude perceber algumas gotas de
lágrimas brotarem. E não eram do mesmo tipo que vi escorrer no dia
da festa-surpresa. Sem segurar as emoções, me abraçou.
Toda aquela melancolia estava me deixando com um nó na
garganta. Só consegui me conter, pois ela logo me soltou e,
limpando as lágrimas, pulou na piscina.
A aula do dia era voltada ao mergulho: precisaríamos
aperfeiçoá-lo. Cris, saindo por um instante da água, disse que
teríamos que mergulhar e tentar ir submersos até o meio da piscina,
onde colocaríamos nossa cabeça para fora, trocaríamos o ar e,
rapidamente, continuaríamos até chegar ao fim.
Ninguém pôde fazer, ou melhor, não teve tempo de fazer nem
uma pergunta sequer. Ao contar qual seria a brincadeira, ela pulou e
nadou, servindo-nos de exemplo. A cada aluno que tentava imitá-la
sem sucesso, ela tinha a pachorra de voltar e refazer o percurso, de
amostra, e dar, pela milésima vez, a dica de não bater os dois pés ao
mesmo tempo.
A cada mergulho que ela dava, eu ficava observando
atentamente da margem. Notei uma pequena falha: se ela, em vez
de apenas balançar os membros inferiores, movesse o corpo todo,
semelhante a uma onda, a velocidade aumentaria, não
absurdamente, mas o necessário para chegar ao outro lado da
piscina, sem ter que parar no caminho para tomar fôlego.
— Edu, você é o próximo — avisou, com uma voz cansada.
Resolvi pôr minha ideia em prática e aperfeiçoar ainda mais o
estilo de Cris. Realmente, estava indo mais rápido. Sentia a força da
água, levemente gelada, passando velozmente por minha pele. Já
estava ficando sem ar, quando pensei em parar, mas sabia que
estava prestes a concluir minha meta.
Meus pulmões pediam uma troca de ar, e não havia como adiar
esse pedido. Fui obrigado a cessar. Quando pus a cabeça para fora e
abri os olhos, vi que estava exatamente a dois metros da margem.
Pensei que havia conseguido uma proeza com aquela façanha, mas
Cris levou toda minha alegria embora.
— Está vendo, Edu. É por isso que é necessária a parada no
meio do caminho. Ninguém é capaz de atravessar a piscina,
segurando a respiração desde o início.
De cabeça baixa, saí da água e decidi, nas próximas cinco
repetições, lhe obedecer.

***

— Edu! — Cris interrompia minha ida, após a aula. — Estive


pensando... você quer continuar com as aulas, não quer? Fiquei
sabendo que o clube está atrás de um professor de natação para
uma nova turma infantil que vai abrir. Por que você não vai
conversar com a gerente?
Ouvir aquilo foi muito bom. E, se aquilo se tornasse realidade,
então, seria melhor ainda; estaria fazendo o que gosto para pagar
aquilo que quero. Seria perfeito! Sem pensar duas vezes, fui com
Cris falar com a tal gerente.

***
Detrás de uma mesa cheia de recibos e uma enorme máquina
calculadora, levantava-se uma mulher meio estranha: meio loira,
meio morena; meio gorda, meio magra; meio alta, meio baixa; de
óculos fundo de garrafa; paletó com bermuda; meias coloridas, até o
joelho; sandália rasteirinha. É complicado descrevê-la. A propósito,
só soube que era mulher porque, assim que entramos, ela se dirigiu
até mim, me olhou da cabeça aos pés, ajustou os óculos, e se
apresentou.
— Acho que ainda não nos conhecemos. Sou Emília, e tu...?
Meus olhos não acreditavam no que estavam vendo. Aquela
mulher era muito mais exótica do que certas personagens de
novelas mexicanas.
— E tu? — insistia a mulher, braba.
— Sou Eduardo — poderia ter parado por aí, mas quis ser
simpático —, mas, se desejar, pode me chamar de Edu.
Mal consegui pronunciar o u do Edu, pois ela me cortara.
— Eduardo, o que te trazes aqui?
Tu, te, trazes: tudo relacionado à segunda pessoa do singular.
Comum em Portugal, mas o sotaque era de brasileira!
— Sou aluno da Cris... quero dizer, era até hoje. Estou sendo
obrigado a parar com o curso...
— Sinto muito, não podemos te deixar fazer aula de graça.
Não parecia disposta a continuar me escutando, pois voltou
para sua mesa e sentou-se, calculando recibos em sua máquina
jurássica.
— Não é isso que quero — disse, já ficando um pouco sem
graça. — Vim falar com a senhora porque queria saber se há alguma
vaga disponível de professor de natação. Isso me faria poder
continuar tendo aulas.
Ajustou os óculos mais uma vez, me olhou de alto a baixo e
respondeu:
— Estamos organizando uma nova turma infantil e, de fato,
precisamos de um novo instrutor, mas tu não te encaixas ao cargo: é
muito novo.
Naquele momento, senti estar vivendo uma espécie de
preconceito: o preconceito etário. Ela não analisou minhas
qualidades, apenas se fixou na idade. E, como se não bastasse,
concluiu grosseiramente:
— Aliás, se estás tão preparado assim, por que queres
continuar tendo aulas?
Queria responder-lhe como deveria, mas não sabia que
palavras usar, por isso fiquei quieto. Dispensando-me, disse que
tinha muito trabalho e que precisava, ainda naquele dia, encontrar
um instrutor que estivesse à altura.

***

As braçadas e pernadas foram tantas na aula de natação que,


quando cheguei em casa, não quis saber de conversa nem com
minha amiga estelar. Tomei um banho, comi um desses macarrões
instantâneos e fui dormir antes mesmo das seis da tarde.
A canseira era tanta que, minutos antes de pegar no sono,
pensei o quão seria difícil acordar no dia seguinte às seis da manhã.
E não acordei! Meu próximo dia já estava começando com o sono
interrompido: por volta das três e meia da manhã, o telefone tocou.
Levantei para atender, sem imaginar quem é que poderia estar
ligando àquele horário. Não sabendo se falava Boa noite ou Bom dia,
fiquei no Alô!
Quem chamava era Graça, a secretária turbinada de meu pai. A
moça tem silicone nos seios, no bumbum, nos lábios, nas
bochechas, nas panturrilhas e onde mais coube a tal prótese.
Enquanto ela pensa em aumentar o resto do corpo, esquece-se de
se concentrar no cérebro, que é do tamanho de uma ervilha.
— Alô! O seu Ricardo está em casa, por favor? É um assunto
urgente — disse a voz de quem deveria ter acabado de colocar
botox.
Não precisei nem acordar meu pai para avisar que o telefonema
era para ele. Ele já estava em pé, querendo saber quem é que nos
despertava em plena madrugada. Quando revelei o nome da figura,
ele pulou e, num ataque marcial, tirou o telefone de minhas mãos.
Conversaram sobre números e logo ele desligou.
— A Graça está na Austrália, atendendo cliente. Para ela, não
passa das quatro da tarde — informou e voltou ao seu quarto.
Como o dia estava quase amanhecendo, preferi não voltar para
a cama. Fui ver as estrelas. Nina estava no lugar de sempre, mais
chamativa do que nunca. Dessa vez, achei melhor apenas me sentar
e dialogar com ela; contar-lhe um pouco de minha vida.
Comecei falando sobre o karaokê, que, embora não estivesse
nem um pouco a fim, seria obrigado a ir, afinal, era minha formatura
que estava em jogo. O bom era que naquela festa poderia acontecer
de tudo, inclusive alguns desejos serem realizados... Mudei de
assunto e comentei sobre a forma como fui tratado pela gerente do
clube, que não passava de uma antipática. Se algo pudesse ser
feito... Para finalizar, desabafei sobre meu pai, sobre o menosprezo
que ele vem tendo comigo há anos. Sinto falta do verdadeiro
Ricardo.
Narrar a vida a uma estrela faz a hora passar muito rápido.
Quando olhei para o relógio ao meu lado, já eram seis e cinco. O sol
estava chegando, e Nina, indo embora.
04. Se há música, há poesia
Antes de agora, lembro de ter me apaixonado uma única vez,
há pouco mais de um ano. Tinha acabado de completar 13 na
época. Conheci a tal garota no único lugar que frequento além da
escola.
No início da aula de natação, tudo estava perfeitamente
normal, até eu notar que, na piscina ao lado, uma nova turma
começaria o curso de principiante, com outro professor, no mesmo
horário.
Numa das diversas espiadinhas que dei, pude perceber que
entre as alunas, havia uma fora de série: usava maquiagem até para
mergulhar. Comprovei, com um brilho no olhar, a tão famosa teoria
do amor à primeira vista.
O problema era que eu não fazia ideia de como me aproximar.
Sequer tinha coragem de ir até ela e perguntar seu nome. Passei
apenas a observá-la. Chegava minutos mais cedo e saía minutos
mais tarde.
Certo dia, outra garota entrou no clube e, ao ver aquela que
estava mexendo com minha cabeça e com o coração, deu um grito,
acenando:
— Ei, Luciana, olha eu aqui!
Luciana era seu nome. Isso era pouco, mas para mim era um
grande passo.
Graças à Internet, descobri que ela tinha um perfil num site de
relacionamentos. Resolvi adicioná-la à minha lista de amigos, mesmo
temendo que ela recusasse meu convite. Como recado, deixei
apenas um “oi”.
Minha desconfiança de que ela clicaria no botão NÃO CONHEÇO
estava começando a vigorar, até que, três dias depois, recebo uma
mensagem comunicando que ela havia me aceitado e um recado
dela, que dizia:
| oie... vc eh o garoto q faz natação no msm horário q eu, né?
bjos!! |
Só o fato de ela ter me respondido já me deixou estupidamente
feliz. Quando vi que ela deixou um “bjos”, meu coração até disparou.
Não podia deixar de respondê-la. E também, pela primeira vez,
depois de digitar tudo o que queria, acrescentei um “beijos” no final.
O tempo foi passando, a gente trocou recadinhos e conversou
por horas. Mesmo nos conhecendo quase que totalmente de forma
virtual, tinha a ilusão de que essa nova amizade pudesse virar um
romance.
Dúvidas começaram a rondar minha cabeça: quando seria o
momento certo de mandar a primeira indireta? Como eu faria isso?
Seis meses depois, tomei uma decisão. Enviaria uma frase
subjetiva, como aquelas muitas metáforas contidas na maioria das
músicas. No entanto, quando entrei em seu perfil para lhe deixar
esse recado, me deparei com a novidade: “Em um relacionamento
sério”.

***

O dia do karaokê havia chegado mais rápido do que eu


imaginava. Meu objetivo era achar alguma desculpa para não
comparecer àquela festa. Belinha, no entanto, insistiu tanto que eu
fiquei sem ter o que fazer.
Para ter a total certeza de que eu não iria “dar o bolo”, Belinha
fez questão de passar em casa, para irmos juntos. Antes de sair,
deixei um bilhetinho, mesmo sabendo que meu pai nem iria notá-lo.
O colégio estava repleto de gente. Dali a alguns minutos,
chegaram Letícia e Claudinho. Juntos. Belinha já quis insinuar algo,
mas Letícia deu uma bela explicação.
— Não sou garota de andar em ônibus e, como moro muito
longe daqui, resolvi pegar carona com o pai do Claudinho.
A conversa foi interrompida por um carro de teto solar, fazendo
o maior barulho e soltando fumaça escura, sem falar do hardcore no
último volume. Chegavam as baladeiras.
Desceu Cristina, com seu cabelo verde, curto e espetado,
usando um top de couro, exibindo o piercing no umbigo e a
borboleta de fogo no braço.
Em seguida, desceu Helena, com sua longa cabeleira cor-de-
rosa e um novo piercing no nariz, trajando um vestido vermelho
megacurto e botas de soldado.
Abriu-se, então, a porta do motorista e desceu Frida. O cabelo
metade azul e metade amarelo combinava com a caveira colorida
tatuada no enorme busto, que estava sendo destacado pelo imenso
decote da blusinha preta de uma banda de rock.
As três subiram as escadas da escola, como se fossem
verdadeiras rockstars.
— E a Ana? — perguntou Belinha, como se estivesse mesmo
preocupada.
— Gripe. Não pôde vir.
Mas ninguém estava gripada, de fato. O motivo da ausência de
Ana é que seus pais, ao conhecerem as “amigas”, não deixaram a
filha sair de casa — especialmente porque a motorista tinha apenas
14 anos.

***
Não demorou muito até que ouvíssemos a voz da professora de
português chamando os alunos pelo microfone para que se
sentassem em frente ao palco e começassem a ouvir... e também a
cantar.
As primeiras a cantar foram as baladeiras. Escolheram uma
música bem “paulera”. Impressionantemente, a voz delas era muito
boa. Foram muito aplaudidas, por uns até de pé. Já eu, não via a
hora de tudo aquilo acabar.
Muitos cantaram, inclusive Belinha e Claudinho, que estava se
apresentando no momento em que eu olhava Letícia, linda, sozinha,
curtindo as apresentações. Comecei a estralar os dedos e a roer as
unhas, torcendo para conseguir coragem para ir até ela e expressar
o que sentia.
Soltei a mão da boca e, com o coração acelerando, respirei
fundo. Com as pernas tremendo mais do que vara verde e vontade
de chorar de tão nervoso, fui vagarosamente até ela. Assim que me
aproximei, sentei ao seu lado. Ela nem percebeu que eu estava ali.
Esfregando e espremendo as mãos, a chamei de Lê. Ela olhou
para mim. Com os olhos quase lacrimejando e com o coração
saltando pela garganta, comecei a falar como me sentia.
Desabafei tudo o que estava em meu peito. Falei que me sentia
nas nuvens quando via os cabelos louros balançando com o vento,
os olhos brilhantes e reluzentes, o sorriso marcante e cativante e,
continuei falando, que esse sentimento ficava ainda mais forte
quando escutava o gracioso som de sua voz.
Não precisei mais enrolar, porque minha boca disse
automaticamente as palavras: “quer namorar comigo?”
Ainda com as mãos e pernas trêmulas, aguardava uma
resposta. Ouvi, então, a voz de Belinha.
— Esse suor todo é porque você será o próximo a cantar?
Então, caí na realidade; estava sonhando acordado, como vivo
fazendo — mesmo sem perceber, meu olhar desvia para o nada e
histórias que eu gostaria que acontecessem brotam na mente. Vi,
porém, que, se nem dentro da minha imaginação conseguia ouvir
um “sim” de Letícia, de que me adiantava pedir no mundo real?
Peraí! Ela disse que eu seria o próximo a cantar?!
Assim que Claudinho terminou a música e desceu do palco,
Belinha me empurrava, dizendo que já até tinha escolhido a música
que eu cantaria. Para ajudar, ela optou por um estilo mais calminho:
o romântico. A letra falava sobre desilusão.
Subi no palco. Congelei. Segurava o microfone com tanta força,
que parecia que eu ia quebrá-lo. Com os olhos arregalados,
observava quase cem pessoas me fitando da cabeça aos pés. Nem
respirar eu conseguia.
A música começou a tocar. Nem um simples sussurro saía de
minha boca. Finalmente, com o apoio dos colegas, consegui
pronunciar o primeiro verso. Fui relaxando, até que resolvi ignorar a
plateia e soltar a voz. A cada estrofe que cantava, olhava para
Letícia.
Na primeira estrofe, ela me assistia, sorrindo. Na segunda
estrofe, uma surpresa: Claudinho se aproximara dela. Na terceira,
ela deixou de me olhar e começou a rir com ele. No refrão, a
punhalada: eles se beijaram.
Ao ver a cena, uma única lágrima amarga rolou pelo meu rosto.
Fui aplaudido de pé por ter posto emoção na música.
Tentei acordar, mas dessa vez não era sonho.

***

Cheguei em casa perto da meia-noite. Para minha surpresa, o


Seu Ricardo estava, de roupão, sentado na poltrona da sala,
aparentemente à minha espera.
— Comecei a ler o jornal e acabei perdendo a hora. Vou me
deitar que já é tarde!
Levantou e foi para o quarto. Também fui para o meu, onde
passei o domingo todo trancado.
Durante as noites desses dois dias, fiquei de cara virada com
Nina. Como ela deixou isso acontecer? Mas, por mais que eu a
chamasse de tudo quanto é nome, ela apenas ficava lá, como se me
observando. Olhava-me como se eu fosse o culpado pelo que
ocorreu. E, de fato, eu era.
Quando fiz o pedido “de Letícia quero um beijo
cinematográfico”, não especifiquei em quem esse beijo deveria ser
dado. Ele realmente aconteceu; não comigo, mas aconteceu.

***

Na segunda-feira, logo que o despertador me acordou, levantei


disposto para mais um dia de aula. Se havia alguma melancolia
dentro de mim, ela foi embora, junto com o final de semana.
Troquei de roupa rapidamente, como de costume. Fiz um xixi
rapidinho, como de costume. Saí sem tomar café, como de costume.
Fui com passos largos até a escola, como de costume. Chegando lá,
esperava ver toda a galera na maior euforia, como de costume, mas
estavam todos num momento deprê.
Fui falar com a Belinha, que também estava cabisbaixa, para
saber o que estava acontecendo.
— Você não ficou sabendo?
Aquela pergunta, muito conhecida, já me preocupou. Foi então
que soube das mortes.
05. Sabe da última?
A morte, embora seja nossa única certeza, é cruel para quem
fica. É ainda mais cruel quando ela leva alguém que tinha a vida
toda pela frente.
— Sábado, após a festa — Belinha começou a contar —, as
baladeiras saíram de carro, praticamente todas bêbadas, dizendo
que iriam a outra festa. Foi no caminho que aconteceu o acidente.
Eu poderia ter até pensado em atropelamento ou em algum
outro tipo de acidente que não envolvesse as garotas, mas, devido à
embriaguez delas e ao automóvel que soltava a fumaça mais escura
que já vi, pude imaginar o fim da história. E o pior: antecipado por
um poste.

***

Durante a aula, o silêncio pairava pela sala. Só com um


acontecimento desses para acalmar os ânimos de toda aquela
galera. Nunca havia percebido que a voz da professora de geografia
era tão irritante.
Mas não sei se naquele momento o que mais me doía eram os
ouvidos, o coração, por ver Letícia no maior love com Claudinho, ou
a alma, por ver Ana solitária num canto da sala.
Desde o ano passado, conheço Ana e nunca a tinha visto tão
triste como naquele dia. Talvez por suas melhores amigas terem
partido, ou talvez porque elas eram suas únicas amigas.
Não sabia se era o momento certo, mas virei para trás e,
ignorando a cena que me dava até ânsia de vômito — Letícia e
Claudinho como dois legítimos apaixonados —, falei com Belinha.
Perguntei se não era certo apresentar novos amigos à Ana. Ela logo
captou a mensagem.
Não demorou para as duas conversarem e um singelo sorriso
brotar na face de Ana, forçado pelas histórias absurdas de Belinha.
O sinal do intervalo não demorou a soar. Saí, pensando em
passar o pouco tempo livre junto com Belinha e Ana, mas não pude,
pois ambas ficaram praticamente os vinte minutos dentro do
banheiro feminino.
Não queria fingir que nada estava acontecendo e ficar de vela
entre Letícia e Claudinho. Sendo assim, sentei num dos degraus da
escadinha que leva até o hall da escola e permaneci ali, sozinho,
esperando o tempo passar.

***

Após a torturante aula, fui para o clube, mas não para fazer
aula de natação. Fui para me despedir — dessa vez, despedida final
— de Cris e dos outros alunos. Cris ainda não havia chegado.
Esperei um pouco e ela logo surgiu de dentro do vestiário.
Dando um último adeus, segui em direção ao portão, mas
parei. Dei meia-volta e regressei às piscinas. Fiquei à beira da
olímpica para que, mesmo sem entrar, eu pudesse assistir à aula,
pois era a coisa que eu mais gostava — e que ainda gosto.
Cris notou minha presença, mas fingiu que não me viu. Uma
hora depois, ela havia terminado a aula. Eu já havia passado muito
tempo lá, ainda mais para quem não tem permissão, por isso resolvi
ir para casa, mas, antes que eu pudesse dar três passos, senti uma
mão molhada sobre meu ombro.
— Edu... Ai, desculpe, molhei você?
— Não seria uma aula de natação se não tivesse água, não é
mesmo? — brinquei com Cris.
Dando uma risadinha, continuou seu pensamento:
— Hoje você realmente me mostrou que é apaixonado pela
natação. O clube vai promover no próximo mês um campeonato de
natação. É só para membros, mas, se você quiser participar, nós
damos um jeitinho. A propósito, se ganhar, o prêmio é o suficiente
para pagar um ano inteiro de curso.
Cris tinha somente ótimas ideias — talvez por isso ela fosse a
única pessoa a quem procuro escutar com atenção. Ela pediu para
que eu aguardasse, enquanto corria até a secretaria para pegar a
ficha de inscrição.
Sentado sob a sombra de um guarda-sol, próximo à piscina,
pude observar um ser de pulôver com saia de renda, salto-agulha
com chapéu de palha e luvas de boxe com um cinturão de ouro. Não
podia ser outra pessoa senão Emília, a gerente.
Tudo estava em plena paz até ela resolver passar do outro lado
da piscina. Olhando para mim, conseguiu me reconhecer:
— Ei, tu! Não és mais sócio! Não podes ficar aqui! Vou te pegar,
miúdo safado!
O que eu fiz? Corri em direção contrária. Ela veio pela
esquerda, eu fui pela direita. Quando dei por mim, estávamos ela e
eu, como gato e rato, correndo pela borda da piscina. Parei quando
escutei o tchibum. O salto-agulha fez com que a criatura torcesse o
pé, o que resultou numa perda de equilíbrio e, consequentemente,
numa queda dentro da água.
Debatendo-se, como se não soubesse nadar — definitivamente
ela não sabia —, começou a gritar:
— ACUUUUUDA!
Essas palavras me levaram ao passado.

***

Dia 23 de maio de sete anos atrás. Piquenique familiar próximo


ao Lago das Pedras, sob a sombra de uma velha macieira.
Estávamos os três sentados ao redor de uma velha toalha de
mesa, na qual havia uma cesta cheia de comida no centro. Sobre
nossas cabeças, uma colmeia, pendurada num velho galho da
árvore, estava prestes a cair.
Paz, tranquilidade, comida... Tudo perfeito! Quer dizer, perfeito
até um forte vento soprar. Ele não levou nem a cesta, nem a toalha,
mas balançou o galho, que cambaleou e desajeitadamente caiu. Mel
voou em nossos rostos, quando a colmeia colidiu com o chão.
Meu pai me pegou no colo e saiu correndo para a direita, em
direção à saída do parque. Minha mãe, ao contrário, correu para a
esquerda, em direção ao lago. Sem pensar duas vezes, ela se atirou
na água.
As abelhas, medrosas de água, resolveram ir embora.
Sinceramente, aquela cena parecia uma de desenho animado.
O único problema era que, além de molhada e da chapinha
estragada, minha mãe não sabia nadar. A profundidade do lago não
era muita. Era, contudo, suficiente para minha mãe quase se afogar.
Debatendo-se, começou a gritar:
— ACUUUUUDA!
Num súbito ataque de heroísmo, meu pai correu, tirou a
camiseta e se jogou no lago, pronto para salvar a vida de sua
amada. Após nos certificarmos de que tudo estava bem, demos boas
risadas.
E como disse meu pai:
— Se um dia estiver precisando de ajuda, todos saberão que é
você. Ninguém mais tem um pedido de socorro tão escandaloso.

***

Voltando ao presente, vi que três homens de branco vinham em


minha direção. Ou melhor, em direção à Emília. Enquanto tiravam a
mulher da piscina, um deles me contava:
— Você a conhece? Ela apareceu há três anos no Instituto
Psiquiátrico, sem saber o nome nem onde morava. Ficou sem falar
por quase um mês. No início, pensávamos que ela pudesse ser
muda, mas do nada ela começou a falar um nome, seguido de “meu
filho”. Decerto, antes de entrar em estado de choque, queria dizer
algo ao filho.
Aquela história estava começando a me deixar pensativo.
— Aos poucos, ela foi retornando ao estado normal. Quer dizer,
não tão normal; você já deve ter percebido pelas atitudes. Então,
num dia, ela disse que fugiria do hospital; no outro, já não estava
mais lá. Recebemos a denúncia de que talvez ela estivesse por essas
redondezas.
A história acabou aí, pois um dos outros dois homens pedia a
ajuda desse um que conversava comigo, para colocarem a camisa de
força na mulher que tentava, de todas as formas, se livrar dos
musculosos braços que a detinham.
Sem saber mais em que pensar — sem saber nem se eu
deveria pensar em alguma coisa — fui a caminho da saída. Esqueci
completamente de Cris que, quando voltou com o papel na mão,
não encontrou nem Edu, nem Emília.

***

Dessa vez, ao chegar em casa e olhar para o céu, não precisei


falar nada à estrela. Ela já sabia o que me responder:
— Elis.
Eu, entretanto, não sabia o que isso significava.
06. Saindo de cena
A coisa que mais gosto, depois de Letícia e da natação, é ficar
em casa. Não há nada melhor do que passar o dia todo deitado na
sala com o controle remoto da televisão de quarenta e duas
polegadas na mão. Ainda mais quando é dia de folga, devido a uma
reunião de professores.
— Correio! — ouvi a perturbadora voz no portão.
Era uma terça-feira normal. Não havia ninguém em casa a não
ser eu mesmo. Meu pai deveria estar em seu escritório, fazendo
coisas que um contador deveria fazer.
— Correio! — gritou novamente, desta vez tocando a
campainha.
Baixando o volume do televisor, como se fosse interferir em
alguma coisa, e pondo os chinelos que estavam ao lado do sofá,
levantei e, em passos lentos fui até a porta, como se estivesse
tomando cuidado para não acordar alguém.
— Boa tarde, — titubeou um pouco para falar, fitando-me da
cabeça aos pés — você conhece Ricardo Fischer? — perguntou,
enquanto lia o envelope.
— Sim, é meu pai — respondi com voz de um garoto que só
tem 14 anos e não quer ser incomodado.
— Por favor, assine aqui — pedia, enquanto me entregava a
prancheta com o recibo.
Pegando a prancheta de volta, ele me entregou o envelope
amarelo e me pediu um copo de água.
Entrei em casa e, deixando a tal carta sobre a mesinha de
canto, caminhei preguiçosamente até a cozinha.
Regressando à sala, com uma das mãos segurando o copo e a
outra na nuca, dei um sorriso amarelo mais falso que nota de três
reais e entreguei-lhe o vaso, como diria minha tia argentina.
Ele estava lá, mostrando os dentes para a televisão, tentando
escutar o que a apresentadora daquele programa de perguntas e
respostas falava aos participantes. No entanto, ao notar minha
presença, desviou o olhar e mirou fixamente para o copo.
Tomando-o de minha mão, o pobre trabalhador levou o copo
até a boca e o virou rapidamente, como se não visse nada líquido há
dias. Podia-se até escutar o barulho da água descendo e molhando a
garganta seca e inflamada.
Agradecendo-me pela paciência (ou seria pela água?), ele se
dirigia até a porta que, assim como está sempre aberta às visitas
para que entrem, está também para que saiam. Deixando o pequeno
portão de ferro aberto, saiu.
Ignorando o portãozinho, voltei ao sofá, apanhando o controle
remoto e aumentando o volume, até deixá-lo num som normal. Ao
virar meu rosto para o lado, vi que, no sofá menor, estava minha
calça. Só então, pude perceber que havia estado o tempo todo de
cueca.

***

Os ponteiros do relógio já apontavam duas e quinze da tarde,


quando escutei o ronco do motor. Olhei pela janela, através da fresta
da persiana, e quase caí para trás. Minha tia Cecília e minha prima
Lurdinha, que eu não via, tipo, há sete anos, encostavam em frente
de casa.
Assim que abri a porta, Tia Ciça desceu do carro mais gorda do
que nunca e, rebolando seu corpo graxo, veio em minha direção.
— Oh, Edu, quanto tempo. Vem dar um abraço na titia!
Dito isso, ela praticamente me obrigou a abraçá-la,
espremendo-me entre suas dobrinhas.
Lurdinha, mais maloqueira do que antes, com o boné virado
para trás, camiseta rasgada, jeans capri cheio de correntes e
mascando um chiclete de menta só me cumprimentou com uma
única saudação:
— Qual é, cara, beleza?
— Beleza... er... Lurdinha.
Fui corrigido por minha tia.
— Lurdinha, não! Chame-a de Lu-nar — e começou a imitar um
astronauta pela sala, caminhando vagarosamente, como se sem
gravidade.
O olhar de desentendido que ornamentou minha face a fez falar
com um sotaque de caipira que tenta ser socialite:
— Essa menina vive no mundo da lua. Ora está assim ora está
assada. Falando em assada, tem um franguinho aí?
— É bem provável que não. Não costumamos ir muito ao
supermercado.
— É por isso que você está tão magrinho. Mas não se
preocupe. Com sua tia aqui, você não passará mais fome!
A personalidade dela, com certeza, não havia mudado.
Continuava pensando somente em comida. E foi enquanto ela
revirava a despensa que falei:
— Que milagre ver vocês por aqui.
— Como assim milagre? — disse com um olhar dramático,
encenando uma peça de teatro. — Seu pai impôs que viéssemos
aqui. E eu vim para cuidar desse meu sobrinho fofíssimo...
Ela comprimiu minhas bochechas com seus dedos pesados.
Minha expressão facial, além de demonstrar uma sensação
desagradável devido ao aperto, também expunha um ponto de
interrogação.
— Oh, você ainda não sabe, né, coitadinho — disse Tia Ciça,
ainda dramatizando. — Lurdinha, entregue a carta a ele.
Tirando do bolso da calça um pedaço de papel, Lurdinha me
disse que meu pai havia me deixado um recado. Desdobrei o papel e
li: “Eduardo, Graça precisa de mim. Vou à Austrália! Sua tia Cecília
ficará com você”.
Só o fato de o bilhete ter sido assinado com “Ricardo” e não
com “seu pai” ou coisa assim mostrava que realmente era ele quem
o havia escrito.
Após meus olhos correrem o pedaço de papel, meio que gelei.
Não pelo fato de ele estar distante — já estou, de certa forma,
acostumado com isso —, mas porque me lembrei do que disse à
Nina: que me sentia menosprezado por ele. Agora, ele foi para outro
país, ou seja, não há mais como ele me ignorar. Seria coincidência?
As palavras “inchadas” de minha tia me fizeram voltar à
realidade. Na verdade, foi uma pergunta que ela fez:
— Edu, você já foi ao cemitério hoje?
Aquela seria uma pergunta um pouco estranha se fosse um dia
qualquer, mas foi graças a essa interrogativa que lembrei: fazia,
naquele dia, exatamente três anos que minha mãe havia falecido.

***

Fuc, fuc, fuc, vrum... O carro reclamava das inúmeras lombadas


e buracos pelas ruas da cidade. Se aquele automóvel fosse gente,
certamente já era para ele estar enterrado no lugar aonde
estávamos indo.
Andar de carro, ainda que velho, me faz viajar. A mente, do
nada, começa a imaginar coisas que eu não acharia nada ruim se
acontecessem. No meio do caminho, comecei a lembrar de Letícia.
Ainda não conseguia aceitar que a havia perdido para o Claudinho —
não que a estivéssemos disputando.
— Edu, por que está tão calado? Por acaso está pensando em
alguém especial? — questionou minha tia, olhando-me pelo
retrovisor, como a maioria das pessoas da minha família paterna
costuma fazer.
Pai, Filho, Espírito Santo, Amém! Será que eu tinha uma
parenta bruxa e não sabia? Ela bem que leu meus pensamentos.
Permaneci calado até o final da viagem — não estava muito a
fim de puxar papo. Por consequência, assim que chegamos,
Lurdinha me disse ao pé do ouvido:
— Se você continuar sendo bonzinho assim, ela vai te apelidar
de Edu-cado.

***

Enquanto Tia Ciça e eu fazíamos nossas orações próximo ao


túmulo da minha mãe, Lurdinha resolveu fazer novas amizades em
pleno cemitério.
De olhos abertos, eu encarava a pequena fotografia da minha
mãe, que se encontrava fixada ao jazigo. Automaticamente,
imaginei-a com óculos fundo de garrafa, com um cabelo castanho-
alourado e vestindo um paletó com bermuda. Não queria acreditar
no que ela havia se transformado.
Duas alamedas atrás, estava Lurdinha, que gritou, chamando
não só minha atenção como a de todos que estavam visitando seus
saudosos amigos e familiares.
— Edu, venha conhecer o Dudu!
“Dudu? Que apelido mais infantil...”, pensei comigo. Mesmo
assim, fui ver quem era o tal novo amigo da minha prima.
Sobre um túmulo estava um garoto de mais ou menos a
mesma idade nossa, com roupas e visual góticos e uma foto do
demônio nas mãos. Morri de medo dele. Principalmente porque, ao
me ver, ele me olhou intensamente e com voz macabra, disse:
— O sangue do diabo corre por suas veias...
E o susto foi ainda maior quando Lurdinha suspirou:
— Ai, ele é tão romântico!

***

E, depois de passarmos no supermercado, voltamos para casa,


onde minha tia me fazia comer mais e mais, mesmo me ouvindo
dizer que já estava satisfeito.
Pouco antes de dormir, ouvi o barulho dos trovões. Nuvens se
colidiam sobre nossas cabeças. Aquilo só significava uma coisa:
havia chuva a caminho.
07. Seja bem-vindo de volta
Podia ouvir o barulho das pesadas gotas de água batendo na
calha de metal e sentir o cheiro da terra molhada que o vento fazia
questão de soprar através das frestas da janela. O frio dava
preguiça. Era tão aconchegante ficar sob o edredom quentinho, num
colchão macio, com a cabeça num travesseiro viscoelástico. Ter que
se levantar sabendo que seria um dia ruim era o pior de tudo.
Muito cedo e com sono, fui espreguiçando meu corpo ainda
deitado, preparando-me para sair da cama quente e encarar o ar
gelado. Enrolei mais um pouco para ver se perdia a hora e entrava
na segunda aula, mas não demorou até minha tia aparecer na porta
e, com seu jeito amável, me fazer pular da cama.
— Levante, garoto! Não é porque seu pai não está aqui que
você vai faltar à aula.
Como se meu pai fizesse diferença. Bem, de fato fazia: se ele
estivesse em casa, com certeza nem lembraria de mim e eu poderia,
até mesmo, aparecer uma vez por mês na escola, já que ele não se
incomodaria nem um pouco.
Naquela manhã, a primeira pessoa a sair de sua casa
provavelmente foi Belinha que, maluca como só ela consegue ser,
pegou sua bicicleta e, vestindo uma capa de chuva, saiu pedalando
rapidamente. Ao mesmo tempo em que equilibrava os livros e
cadernos, tomava cautela para não ter seu penteado desmanchado.
Eu queria sair no horário de sempre, mas, graças à minha tia,
que fez questão de me levar até a porta do colégio de carro, tive
que esperar, pois, por motivos óbvios, sua lata-velha não quis ligar.
Enquanto esperava, sabia que o ônibus de Claudinho e o carro
do pai de Letícia provavelmente já estavam chegando à escola. E
não adiantava eu dizer à tia Cecília que eu poderia muito bem ir
andando, ela estava decidida a me dar uma carona.
O motor do “museu”, que queria porque queria pegar mesmo
sem sucesso, roncava, e alto. A vizinha esperava seu ônibus no
ponto perto de casa. Estava ali havia mais de quinze minutos, sob
seu guarda-chuva, aguardando o veículo que a levaria até a empresa
onde trabalhava.
Ficou em pé, mais um pouco, esperando seu único meio para
transporte. No entanto, sua espera foi à toa, visto que o motorista
passou correndo a pé.
— Senhora, infelizmente o ônibus quebrou.
Na garagem de casa, tia Cecília continuava tentando fazer seu
carro funcionar, até que um milagre aconteceu: a geringonça
finalmente deu sinal de vida. Entrei no carro correndo, pois sabia
que já estava em cima da hora. E literalmente estava: debaixo do
banco da frente estava um relógio de pulso que minha tia havia
perdido há mais de um mês.
Assim que minha tia engatou a ré, viu, pelo retrovisor, Marta
com seu guarda-chuva parada bem no meio do caminho. Minha tia
abaixou o vidro para saber o que a vizinha queria, até ouvir dela:
— Por acaso, você me oferece uma carona?

***

Após deixarmos Marta na porta do local de trabalho, seguimos


em direção à escola. Eu, sempre calado, só ouvindo o que minha tia
falava. Às vezes, quando fazia uma pergunta recíproca, respondia
com “sim” ou “não”, mas nada além disso.
Cheguei ao colégio dez minutos atrasado. Consegui convencer
a secretária rabugenta a me deixar entrar.
Para meu azar, a primeira aula era com a professora Renata.
Estava muito nervoso com a reação daquela mulher ao me ver
chegando depois da hora. E se ela me mandasse à diretoria? E se
ela não me deixasse entrar e eu tivesse que ficar esperando a aula
acabar, do lado de fora da sala? Para minha felicidade, ela estava de
bom humor.
— Ora, senhor Eduardo, chegou cedo para a segunda aula —
como eu odiava aquela ironia. — Eu passei uma atividade em dupla
e, como você não estava presente, só lhe sobrou o novo aluno para
parceiro.
Novo aluno? Quem seria o tal alun... Não podia acreditar no
que meus olhos estavam vendo: era Dudu — sim, o mesmo. Porém
uma simples frase me mostrou que a sorte estava ao meu lado
naquele dia.
— Professora, na verdade eu também estou sem ter com quem
fazer o trabalho. Se o Edu quiser, pode fazer comigo.
— Ora, senhor Eduardo (estava começando até a gostar do
“senhor”), o senhor deu sorte. Poderá escolher entre ele e Letícia.
E, que sorte!
— Professora, a Letícia e eu já estamos até acostumados a
fazer trabalhos juntos, então, farei o trabalho com ela.
— Ótimo. Então, esqueci seu nome — ela falava com o outro
Eduardo —, o senhor terá que fazer o trabalho sozinho.
— Tá bom, dona.
— Na verdade, não — interagiu Letícia novamente. — O
Cláudio, que não veio hoje, também está sem parceiro.
— Excelente. O senhor — virando-se outra vez para Dudu —
fará o trabalho com o Cláudio. Ah, e mais uma coisinha: “dona” é a
sua avó.
Aquela forma com a qual só professora Renata sabia e tinha
liberdade de falar começou a me agradar um pouco.
— Então, Letícia — resolvi perguntar, sentando-me ao lado dela
—, por que não quis fazer o trabalho com o Claudinho?
— Você não ficou sabendo? Nós terminamos. Desde o início,
sabia que não ia dar certo, mas tive pena dele e resolvi lhe dar uma
chance até eu descobrir que ele fazia várias postagens no perfil dele
contra modelos. Ai, que garoto mais fingido. Se arrependimento
matasse... O que eu mais quero agora é passar uma borracha e
fingir que nada aconteceu.
O que estava acontecendo? A vida estava tão boa comigo. Só
podia ser sonho. Mas, não era, pois estava bem acordado quando
Renata disse que aquele que não lhe desse ouvidos, além de ficar
sem a nota do trabalho, ficaria com um ponto negativo no histórico
escolar.

***
Os minutos do intervalo foram incríveis: passei junto com
Letícia e mais ninguém. Éramos somente nós dois. A alegria era
tanta que eu não tinha fome, o estômago não se sentia vazio. Ela,
sendo uma modelo em busca do corpo perfeito, também não
costumava comer nada na escola — tanto a merenda como os
alimentos vendidos na cantina eram calóricos demais.
Enquanto ela passava uma espécie de creme nas mãos e no
rosto, comentou que, sábado à noite, teria um importante desfile no
shopping, no qual ela seria manequim da nova coleção de outono-
inverno. Convidou-me para assistir. Não pensei duas vezes e aceitei
na hora. Falei que seria uma honra acompanhar minha melhor
amiga. E obtive como resposta:
— Você é tão carinhoso. É de um namorado assim que eu
preciso: inteligente, bonito, amável... Raro nos dias de hoje.
Será que aquilo foi um tipo de cantada? O que eu deveria
responder? Antes que eu pudesse pensar em alguma coisa, ela
disse:
— Aquele garoto novo... Não acha que deveríamos chamá-lo
para se sentar com a gente? Afinal, ele precisa de novos amigos e,
se for um Eduardo tão legal como você, vale a pena formar um elo
de amizade.
Suspirei e respondi:
— Nem todos os Eduardos são iguais... Já não está bom ser
amiga de um?
Ela abriu um sorriso e, dizendo que eu era um bobo por estar
com ciúmes, me deu um tapinha no ombro. Sem motivo válido,
caímos na risada, que foi interrompida pelo sinal anunciando que já
era hora de voltarmos para a sala de aula e aprender um pouco mais
sobre textos descritivos. Se eu quisesse descrever aquele momento,
com certeza seria como num poema:
Ela, eu e o som da chuva,
Chuva mágica e cristalina
E, nos olhos da linda menina,
Via a alegria brotar:
Não como uma flor,
Mas com um ar de amor,
Amor maior que inundava meu coração.
Com isso, ficou completamente descartada a hipótese de eu
virar poeta. Mas quem pensaria em ser escritor num momento como
aquele?

***

As três últimas aulas foram as melhores da minha vida. Não


porque eu tive que escrever uma redação sobre Marte, nem porque
eu tive que debater sobre Nero, e muito menos porque eu tive que
resolver uma equação do segundo grau. O que deixou as três as
melhores aulas foi o fato de Letícia ter se sentado ao meu lado em
todas elas.
Como combinamos de fazer o trabalho de História naquela
tarde, íamos até minha casa. Pensando que seria constrangedor
fazer minha futura namorada andar no carro velho da minha tia e
apresentá-la à Lurdinha, que com certeza lhe faria mil e uma
perguntas sobre como seria a vida de modelo, insisti para irmos à
casa dela, mas a desculpa da distância me fez ficar com todas as
preocupações. Seria um milagre se Letícia conseguisse gostar
daquela tarde.
Milagre maior foi quando, ao sair da escola, vi de frente para o
portão o carro preto e blindado do meu pai. É claro que dizer que o
carro é blindado é só força de expressão, pois ele, de tão especial,
só tinha a película de proteção solar e privacidade nas janelas.
Aquilo só significava uma coisa: meu pai havia desistido de ir à
Austrália e passou no escritório de contabilidade para pegar seu
automóvel e avisar que não trabalharia no período da tarde.
Assim que meu pai saiu do banco do motorista, comprovando
minha suspeita, pensei ser o momento mais feliz que passei graças a
ele. Estava enganado. Assim que eu o avisei que Letícia iria conosco,
ele fez um gracejo, dizendo que, então, precisava por mais água no
feijão. Abriu a porta de trás e disse que era para eu ir com ela, pois
o banco da frente estava ocupado por... sua maleta. Esse foi o
momento mais feliz!
Ele estava muito mudado. No meio do caminho, ele começou a
falar, enquanto eu olhava seus olhos pelo retrovisor central:
— Filho, você gostava muito das aulas de natação, não é
mesmo?
Balancei a cabeça, confirmando.
— Pois, a partir de amanhã, quer faça chuva quer faça sol, a
Cris estará lhe esperando de volta.
Com um sorriso de orelha a orelha, balbuciei um obrigado.

***

Bastou algumas curvas e estávamos em casa. Tia Cecília e


Lurdinha ainda estavam lá, preparando o almoço. Assim que
entramos, ela nos chamou para almoçar. A mesa estava farta: arroz
à grega, macarrão parafuso, maionese de batata e ovos, virado à
paulista, tutu de feijão, feijoada, carne assada, bife frito, filé
grelhado, salada de alface, de tomate, até de ovos. Pelo jeito, todo
mundo estava inspirado naquele dia, inclusive tia Ciça.
Cada um pegou um pouco de cada coisa, e todos nos
admiramos com o prato de Letícia, que continha apenas meio filé
grelhado e umas folhinhas de alface.
— Isso é o seu almoço? — contestou meu pai.
— É, não posso comer muitos carboidratos e proteínas. É
melhor comer esse tanto que me satisfaz do que ser como uma
dessas garotas com bulimia e comer de tudo para depois expelir.
Não quero, mesmo, ser assim.
Por sorte, Letícia não disse que era modelo, senão Lurdinha
não a deixaria em paz.
Almoçamos. Sobremesa? Para nós uma fatia de bolo; para
Letícia, uma maçã.
Após a refeição, Tia Cecília disse que já estava indo e,
mandando beijos a todos, ligou sua lata-velha e saiu, soltando
fumaça.

***

Em casa ficamos meu pai, Letícia e eu. E meu pai era o único
que não precisava trabalhar. Peguei meu caderno de História para
ver as anotações necessárias para fazer o trabalho que, dessa vez,
era um pouco mais complicado: tínhamos que fazer uma maquete
com sucata, em parceria com a disciplina de Arte.
Peguei algum material que tinha em casa, como jornais, miolo
de papel higiênico, latas de cerveja, bolinhas de isopor, garrafas pet,
etc. Porém, aquilo não fazia sentido. Nada se encaixava e, quando A
se dava bem com B, vinha o C e derrubava tudo, fazendo com que o
D não tivesse nem mesmo a oportunidade de participar.
Sentado na poltrona da sala, meu pai, talvez por ser meu pai,
podia perceber que eu estava perdidamente apaixonado por Letícia.
Também podia perceber que eu não era capaz nem de pegar na mão
da garota. Por isso resolveu interferir, dizendo que ajudaria no
trabalho.
— O objetivo de vocês é fazer uma obra de arte. A Arte não
pode ser aprendida nem feita, ela deve ser sentida. Concentre-se em
seus sentimentos. Pensem naquilo que vocês amam, que deixam
vocês felizes, que lhes agradam, que lhes proporcionam prazer.
Então, vocês conseguirão ver algo além de lixo nessa sucata toda;
vocês verão Arte.
Foi só meu pai concluir o pensamento que o celular de Letícia
tocou. Era sua mãe, falando que precisava dela em sua casa, pois
não sabia o que fazer com o agente de modelos que havia aparecido
por lá sem avisar.
Letícia pediu para que terminássemos, ou melhor,
começássemos o trabalho outro dia, pois precisava ir embora. Não
foi fácil me despedir dela, mas, só pelo fato de saber que eu
passaria mais uma tarde inteira junto a ela, fiquei contente.

***

Sem ela para fazer o trabalho, tinha ficado sem atividade para
fazer naquela tarde chuvosa. Meu pai, então, sugeriu que fosse ler.
Segundo ele, tinha em sua cômoda uma coleção completa de livros
que minha mãe adorava ler e, se eu quisesse, poderia pegar. A tarde
foi em companhia de Clarice Lispector.
***

A hora da estrela havia chegado e fui espiar pela janela. Vi que


a chuva não deixaria que as estrelas aparecessem no céu. Mesmo
assim, fui para a cama feliz. Aquela chuva lavou todos os meus
problemas e me trouxe apenas alegrias.
08. Sorria, você está sendo
filmado!
O sábado anunciava a chegada do sol, depois de uma semana
chuvosa, e também que muitas coisas boas aconteceriam, como
dormir até tarde. Infelizmente, para mim, esta última não servia,
visto que seria meu regresso às aulas de natação e não queria me
atrasar nem um segundo, afinal, não era sempre que se via Cris indo
trabalhar em pleno sábado.
Assim que cheguei ao clube, Cris abria a boca, bocejando de
sono, mas, ao me ver, tratou de fechá-la e sorrir para mim, como
quem dizia seja bem-vindo de volta. Correspondi com outro sorriso,
como quem diz obrigado.
Após nadarmos por aproximadamente uma hora, Cris anunciava
o término da aula. No entanto, antes que eu pudesse ir embora, ela
me fez uma pergunta:
— Edu, ainda está interessado no campeonato regional de
natação? A inscrição é gratuita. Que tal?
Foi apenas uma pergunta... Mas, uma pergunta capaz de
mudar o presente e fazer brotar um sorriso gigante em meus lábios.
Havia me esquecido do campeonato. Muito feliz, fui com ela ao
escritório da nova gerente e preenchi o formulário de inscrição. Em
seguida, eu me despedi dela. Porém, ao virar as costas para Cris,
senti que também deveria fazer algo por ela, pois não seria legal
deixar uma grande amiga passar o resto do sábado sozinha.
— Cris, tem uma amiga minha que vai participar do desfile de
lançamento da nova moda outono-inverno de uma marca aí. Não
gostaria de assistir?
Foi apenas uma pergunta...

***

O clube ficava localizado num lugar estratégico — quase caindo


fora da cidade. Ele fazia divisa com outra cidade que preservava
muito o meio ambiente, por isso tinha até mesmo uma floresta. E
essa tal floresta era o que dividia os dois municípios.
Após a aula de natação, ao sair do clube, ouvi um grito de
desespero. Não era o grito de uma pessoa, parecia mais de um
animal. Era um som meio ardido, como quando se pisa no rabo do
gato ou chuta o cachorro. E aquele som só poderia ter vindo de um
lugar: a floresta.
Cris saía naquele momento e eu a parei.
— Eu estou maluco, ou tem alguma coisa gritando?
— Hum, desde o início da semana é assim. Toda vez que passo
por aqui, ouço uns gritinhos, mas nem imagino do que se trata. Será
que alguma fera, como uma onça, apareceu na floresta e está
devorando os bichos menores?
— Acho pouco provável. Isso está mais para obra do ser
humano.
Ficamos parados por um minuto, de frente para a floresta até o
grito cessar. Então, começamos a caminhar, mas, antes do terceiro
passo, um berro ainda mais agudo foi dado.
— Não posso voltar para casa sem antes saber que barulho é
esse.
— Bem, Edu, lembre-se a curiosidade matou o gato... Mas,
como já disse inúmeras vezes, você é um peixe. Vamos ver o que
está acontecendo!
Aquela mata era protegida por um cerca de arame farpado.
Porém, devido ao clima maluco de chuva e sol, o arame já estava
enferrujado e bastava um toque para que ele arrebentasse. Em
pouco tempo, havíamos conseguido penetrar por entre as árvores
mais exóticas.
Aos poucos, fomos andando, tentando não fazer barulho, para
não sermos percebidos, mas era impossível: ao andar, acabávamos
pisando os galhos, caídos no solo, que quebravam com tamanha
facilidade.
Mal adentramos o matagal e um emaranhado de cipós impedia
nossa passagem. Não tínhamos sequer uma faca para cortar as
trepadeiras, por isso tentamos arrancá-las ou simplesmente afastá-
las com as mãos, mas Cris não gostou muito do que viu.
Ao pegar no primeiro cipó, ela sentiu um negócio gelado passar
pelo seu braço. Ao olhar, percebeu que se tratava de uma serpente.
Afastando o braço rapidamente, começou a gritar. Olhei,
desesperadamente e, ao vê-la gritando por causa da cobra, comecei
a gritar também. A víbora já estava preparando o bote quando
corremos em disparada.
— Nunca mais... — suspirava cansada e assustada. — Jamais
voltarei a esse lugar! Ainda quero viver por um bom tempo.
Concordei. Era melhor, se por acaso resolvêssemos voltar, levar
um frasco de soro antiofídico.
— Mas, sabe — continuou, recuperando o fôlego —, até que foi
maneiro.
Concluindo que os animais gritavam por uma picada de cobra,
fomos embora, cada um para sua casa, após Cris me dizer que
passaria às seis para me pegar.

***

Ao chegar em casa, rindo daquele sábado que já começara


animado, eu me deparei com meu pai na cozinha, preparando o
almoço e cantando junto com o rádio uma música de MPB. Nunca
tinha visto meu pai daquele jeito. Desde quando ele cozinhava e
gostava de Elis Regina?
— Revirando as coisas da sua mãe — explicou —, achei esses
CDs e resolvi pô-los para ouvir.
E eu nem sabia que ela era fã da Pequena Notável.
— Ah, e a Letícia ligou... — informou.
— Letícia?! — exclamei surpreso. — E o que ela queria?
— Confirmar se você iria mesmo vê-la desfilando. E eu disse
que sim, pois você vai! A propósito, comprei um presentinho para
ela e já mandei entregar.
Sem responder nada, fui ao meu quarto. O que meu pai
poderia ter comprado? E se ele tivesse comprado alguma coisa
deselegante, ou pior, e se tivesse comprado um buquê de flores e
escrito um cartão com uma declaração de amor? Estava frito!
— Está frito! — disse meu pai, aparecendo na porta.
— O quê? — perguntei, assustando-me outra vez.
— O peixe. Já está frito. Venha almoçar, antes que a comida
esfrie.
De tanto que Cris falava que eu era como um peixe, era meio
estranho comer cação. Eu me sentia como se estivesse comendo
alguém da família... Deixando a besteira de lado, comentei com meu
pai que eu havia convidado Cris para assistir ao desfile e que ela
passaria em casa às 18h, para ir junto comigo.
— Você gosta de futebol? — perguntou ele, distorcendo
completamente o assunto.
— Pai — respondi —, você me conhece há quatorze anos e
sabe que o único esporte que me agrada é a natação.
— Foi apenas uma pergunta...
O que ele estava querendo dizer com aquilo? Geralmente
quando alguém diz isso, é porque está com segundas intenções. E
foi com essa neura que acabei me distraindo com a comida e me
engasgando com uma espinha.

***

Enquanto passei a tarde não vendo a hora de chegar a noite,


Letícia aproveitou cada segundo no salão de beleza. Babyliss, muito
blush e esmalte groove. Não sei o que tanto ela precisava fazer, pois
já era linda por natureza, mas ela estava disposta a ficar ainda mais
bela, para ganhar o concurso Miss Rosa dos Ventos, que ocorreria
após o desfile.
Rosa dos Ventos é a marca da coleção. O motivo para esse
nome é que Rosa Alcântara é a estilista e o slogan é “leve como uma
brisa”, devido ao tecido de seda.
Já Cris, passou a tarde escolhendo o que vestiria para o desfile,
afinal, não é todo dia que a convidam para sair, mesmo sendo quem
fez o convite um aluno que não tem o mínimo interesse nela.
Quando ela finalmente encontrou o que desejava, já se passava
das cinco e meia. Então, só teve tempo de passar um perfume e foi
até o ponto de táxi. Eu imaginava que ela tivesse um carro, por isso
me assustei quando vi o automóvel amarelo parando em frente à
minha casa.
— Pai, já vou indo... A Cris chegou.
Foi o que consegui dizer antes de meu pai levantar correndo do
sofá, quase derramando a xícara de chocolate quente, e se esconder
no quarto. Afinal, por que ele estaria fugindo da Cris? Ignorando isso
também, entrei no táxi.
Ao chegarmos ao shopping, perguntei quanto devia, pois
dividiria as despesas do táxi com ela, mas a mulher estava tão feliz
que pagou tudo sozinha e ainda deu gorjeta ao motorista.

***

O alvoroço no shopping era grande. Metade mal podia esperar


para ver as belas mulheres em seus passos bem demarcados; a
outra metade esperava o momento certo para comentar sobre fulana
ou beltrana, elogiando ou criticando caso uma calça ou um sapato
não combinassem.
Porém eu só estava lá por uma pessoa: a amiga que, um dia,
(devaneio!) seria minha namorada. Por isso “dobrei” o segurança e
consegui entrar nos bastidores. Quando vi Letícia, os olhos brilharam
intensamente, pois não estavam acreditando no que viam. A garota
estava ainda mais bonita do que já era. Para justificar o queixo
caído, usei a desculpa do casaco.
— Nossa, que casaco impressionante! Essa coleção certamente
vai arrasar.
— Mas este casaco não é da coleção. Foi seu pai que me deu.
Não é lindo?
Agora, entendi qual era o tal presente.
“Tão lindo quanto você” era o que queria responder, mas a
timidez fez com que aquelas palavras ficassem só na mente.
— Cinco minutos! — gritou um dos organizadores, que passava
pelo corredor.
Eu me despedi de Letícia e disse que a assistiria no palco.
Então me retirei. Do lugar onde Cris e eu ficamos, dava para ver
praticamente tudo: a passarela, um bando de histéricas querendo
uma peça da Rosa dos Ventos, e um menino levando um tapa na
cara. Por coincidência, o menino era Claudinho e a garota da mão
pesada era Belinha. Quem diria que Claudinho tivesse a cara de pau
de querer alguma coisa com Belinha? Bem, por sorte, ela sabia se
defender.
O desfile começou. As luzes e o som alto, seguidos do locutor,
que anunciou “Coleção Rosa dos Ventos Infantil Feminina Outono-
Inverno”. Algumas garotinhas de uns cinco ou seis anos entraram,
desfilando e sorrindo para as câmeras, como se tivessem mais
idade, esbanjando alegria e encantando as pessoas.
Em seguida, ouviu-se “Coleção Rosa dos Ventos Infantil
Masculina Outono-Inverno”. E os menininhos, entre quatro e oito
anos, começaram a entrar na passarela, fazendo cara de machões, o
que arrancou boas risadas dos espectadores.
Na sequência, “Coleção Rosa dos Ventos Juvenil Feminina
Outono-Inverno”. Comecei a aplaudir, pois achei que Letícia estaria
entre essas modelos, mas meus aplausos foram entendidos como
uma forma de paquera, por uma sardentinha que mandou um beijo
na minha direção. Sem saber o que fazer, coloquei o braço sobre o
ombro de Cris, abraçando-a.
A seguir, “Coleção Rosa dos Ventos Juvenil Masculina Outono-
Inverno”. Ao ver a entrada daqueles garotos, comecei a perceber
que era praticamente impossível Letícia se interessar por mim,
afinal, havia tantos mais bonitos e descolados do que eu.
Depois, finalmente, “Coleção Rosa dos Ventos Adulta Feminina
Outono-Inverno”. Letícia havia sido escalada para desfilar nessa,
devido a todo o seu glamour. Ao ir até o fim da passarela e fazer
seu pivot, ela piscou os olhos, delicadamente, em minha direção.
“Será que aquele piscar de olhos foi para mim?”, pensei antes de
ouvir um menininho atrás de mim exuberar:
— Vocês viram? Aquela gata tá a fim de mim!
Não demorou até o próximo anúncio: “Coleção Rosa dos Ventos
Adulta Masculina Outono-Inverno”, atiçando a mulherada, inclusive
Cris que começou a gritar feito uma doida. Aquele dia estava sendo
muito feliz para ela.
— E agora — anunciava o locutor — para finalizar... o concurso
Miss Rosa dos Ventos, que elegerá a mais bonita personalidade
feminina deste evento. E, com vocês, as modelos.
A cada mulher, fosse jovem fosse velha, que entrava, todos
aplaudiam, mas foi quando Letícia entrou que a multidão ovacionou
com entusiasmo. Com um sorriso de donzela que foi salva do
dragão, Letícia sabia que aquele troféu já pertencia a ela.
Os jurados se reuniram e houve uma pausa de cinco minutos,
tempo necessário para que as pessoas apostassem em quem seria a
grande vencedora. A maioria arriscava em Letícia. Um careca alto
era exceção. A namorada dele também estava na competição e se
exaltou quando um magrelo de óculos disse que, tirando Letícia,
todas as outras só ganhariam concurso de teatro no qual estivessem
elegendo alguém para o papel de bruxa.
— Nossos jurados já chegaram a um veredicto final. A grande
vencedora é... — o locutor fez um pequeno suspense, sob luz baixa.
Enquanto o povo aguardava, ansiosamente, o resultado, o
careca, irado, resolveu revidar o que o magrelo disse de sua
namorada e o empurrou com toda a força. Isso fez com que ele
empurrasse outro, que acabou empurrando outro, que empurrou
outro e assim por diante. O empurra-empurra foi tão grande que
chegou até onde Cris e eu estávamos — pertíssimos da passarela.
Como não havia mais quem empurrar, para não perder o
equilíbrio, Cris foi obrigada a subir na passarela, meio que
cambaleando. Por falha técnica, as luzes acabaram acendendo antes
da hora, destacando no palco a professora de natação.
“Ai, meu Deus!”, pensou Cris, sem saber o que fazer nem onde
enfiar sua cara, de vergonha. O público ficou estático, as modelos
ficaram com uma expressão de surpresa no rosto e o locutor estava
mais perdido que garfo em dia de sopa. De repente, num só coro,
todas as pessoas começaram a aplaudir e gritar para Cris.
Vendo o contentamento dos que assistiam ao desfile, os
jurados chamaram o locutor e anunciaram em seu ouvido uma nova
vencedora: a desconhecida de jaqueta e calça jeans.
Realmente, aquele dia estava sendo muito feliz para ela.

***
Nos bastidores, encontrei Letícia chorando, sem preocupação
com a maquiagem borrada.
— Muito obrigada, Edu.
— Pelo casaco? Imagina...
— Não. Obrigada por me ter feito perder. Se você não tivesse
tido a genial ideia de trazer sua professorinha para cá, talvez eu
tivesse alguma chance de ganhar o concurso.
Cris, naquele momento, estava atrás da porta.

***

— ... e assim foi o meu dia, Nina, acredite. Se eu ainda tinha


alguma chance com Letícia, com certeza não tenho mais.
— Então, por que não está triste?
​Foi apenas uma pergunta.
09. Saltitando em bons ares
Deu crise de faxina no meu velho. Acordou às sete da manhã e,
com um espanador numa mão e um pano úmido na outra, limpava
todos os móveis da casa. O sofá nunca esteve tão branco, o vidro da
estante nunca esteve tão transparente e a mesinha de canto nunca
esteve tão organizada.
Falando em mesinha...
— Eduardo, o que é esse envelope aqui em cima da mesa?
Esqueci completamente do envelope que o carteiro havia
trazido, muitos dias atrás. Sem saber o que dizer, respondi com a
verdade.
— Ah... o envelope!? Não sei bem o que é. Só sei que é para
você.
Por um instante, pensei que o antigo Ricardo voltaria à ação e
me chamaria de irresponsável e de todos os outros adjetivos ruins.
Ele, no entanto, ignorou minha falta de memória e abriu a misteriosa
correspondência.

É um prazer comunicar a vocês sobre nosso enlace,


e desejamos que compartilhe conosco esse dia.
Dolores e Tomás

Minha cara de “e então...” resultou na empolgação do meu pai:


— Vamos à Argentina!

***

Não deu nem tempo de colocar tudo o que eu queria na mala.


Meu pai ficou tão eufórico com o casamento da maninha que queria
chegar o mais rápido possível em Buenos Aires.
Ao chegarmos ao aeroporto da cidade vizinha, nos deparamos
com muitas pessoas à espera de voos atrasados e cancelados. Na
verdade, por dentro fiquei um pouco feliz, pois teria mais tempo
para me acalmar, visto que aquela seria a primeira vez que eu
viajaria em um avião.
Não sei se meu pai tem algum amigo, colega ou conhecido no
aeroporto, mas enquanto eu estava sentado na sala de espera,
lendo uma dessas revistas institucionais que eles disponibilizam aos
passageiros, meu pai foi falar com os atendentes, na esperança de
conseguir pegar o próximo voo. Levei um baita susto quando meu
pai chegou correndo e pegando a bagagem, falando para eu andar
depressa, pois o avião estava à nossa espera.
Depois de passarmos pelo detector de metais e nos dirigirmos à
pista de voo, entramos no avião. Mal colocamos nossos pés no
gigante de metal e duas das comissárias passavam as informações
básicas.
Ao ficarmos próximos ao céu, tentei olhar, pela janelinha, o
solo, mas o escuro da noite só me deixava ver pontinhos de luzes
artificiais. Então, olhei para o céu. Lá estavam as estrelas, pontinhos
naturais de luz. Procurei por Nina, mas, no meio de tantas, era
praticamente impossível encontrá-la. Mas sabia que ela estava ali.
Foi quando estava admirando as estrelas que a voz do piloto
anunciava:
— Senhores passageiros, por favor, afivelem seus cintos.
Teremos uma pequena turbulência.
Nesse momento, uma das aeromoças, em vez de acalmar os
viajantes, saiu da cabine do piloto em total desespero, gritando:
— Nós vamos morrer! O avião vai cair! Nós vamos morrer!
Logo outro comissário de bordo tentou acalmá-la. Não sei se
eram namorados, mas ele a tratou com tanto carinho que parecia
que já eram casados há anos, embora ambos não aparentassem ter
mais de 25 cada.
Arregalei os olhos com tamanha loucura. E se aquela aeromoça
estivesse certa? E se o avião realmente sofresse uma pane e se
espatifasse no campo muito abaixo de nós? Vendo a mão trêmula,
meu pai tentou me acalmar.
— Não se preocupe, Edu. Já viajei de avião milhares de vezes
e, acredite, uma turbulência não é nada.
O avião, nesse momento, começou a agitar. Agora eu sei como
se sente o achocolatado da caixinha, segundos antes de ser
consumido.
— Esquece o que eu disse — gritou meu pai. — Comece a
rezar!
A gritaria dos passageiros impedia que escutássemos os
conselhos do piloto. Para se ter uma ideia, a única coisa mais alta do
que aquela sinfonia de pedidos de socorro era os berros da
aeromoça que estava abraçada ao comissário, ambos sentados de
frente para nós.
Nessa hora, poderia orar para tudo quanto é tipo de santo, mas
a única que me veio à mente foi santa Amélia, minha mãe. Então, fiz
uma breve oração para ela, dizendo que estaria tudo bem se o
destino quisesse que nos reencontrássemos mais cedo. Pedia para
que ela me confortasse, pois sabia que, em pouquíssimos minutos,
estaria a seu lado.
Misteriosamente, o avião parou de sacudir e voltou a sobrevoar
normalmente.
— Não disse?! Não há por que se preocupar — disse meu pai,
ainda abalado com a situação.
Mas o que mais me enfezava era saber se realmente fora minha
mãe que fizera tal milagre. Se fosse, ela precisava ser beatificada.
Mas, foi olhando para o céu que vi, dentre milhares de estrelas, uma
brilhar intensamente e não tive dúvidas: havia sido a Nina.
Meu agradecimento à estrela ficou para outra hora, pois a
comissária aflita se levantou, se pôs em frente a todos e, com um
sorriso simpático no rosto e muito mais calma, repetiu as palavras
de meu pai:
— Não disse?! Não há por que se preocupar.

***

Após algumas horas, chegávamos à Argentina. Olhei para o


relógio do aeroporto de Buenos Aires, a fim de arrumar o meu com
o fuso horário, mas foi tão sem graça saber que o horário de lá é o
mesmo da minha cidade, no Brasil.
Tia Lola e meu futuro tio Tomás estavam no aeroporto quando
chegamos.
— Lola?! Como sabia que estávamos para chegar? — perguntou
meu pai, surpreso com a presença da irmã.
— Ricardo?! Que surpresa! Na verdade, estamos aqui à espera
da irmã, do cunhado e da sobrinha do Tomás, que também são
brasileiros.
Era engraçado o sotaque da tia Lola. Embora ela tivesse
morado no Brasil até os 19 anos, quando se mudou e se naturalizou
argentina, ela já estava tão habituada a falar espanhol que, quando
queria conversar em português, saía uma mistura de dois idiomas:
um portunhol.
— E esse é o Eduardo? — perguntou colocando a mão na
minha cabeça. — Nossa, não acredito! Na última vez que eu o vi,
você era um bebê de dois meses.
De fato, na última vez que ela me vira eu tinha mesmo dois
meses de vida. Mas a maior bola-fora ainda estava por vir.
— E sua mulher, Ricardo? A Amélia está vindo de ônibus?
Enquanto meu pai explicava que minha mãe havia falecido há
três anos, fiquei pensando em como pode uma pessoa ficar tão
desinformada sobre a própria família.
— E você, Tomás? Vê se toma conta direitinho de minha mana,
hein?
— ¿Cómo? ¡No comprendo!
Agora era minha tia quem dava explicações a meu pai. Tomás
não falava uma palavra sequer em português. Ele nasceu e cresceu
na Argentina. Só tinha parentes no Brasil porque seu irmão mais
velho resolveu se aventurar e constituir uma família em solo verde-
amarelo.
— Bem — começou tia Lola —, então vou levar vocês dois até
em casa, enquanto o Tomás espera os parentes dele, tudo bem?
— Não, imagina. Não queremos incomodar. Podemos esperar
junto com vocês.
— Não, Ricardo, eu insisto. Não aguento mais ficar em pé aqui,
esperando gente que eu nem conheço. Ele que fique um pouco...
Ainda bem que Tomás não entendia uma palavra do português.
Tia Lola balbuciou algumas palavras em espanhol e, tomando a
chave do carro da mão de Tomás, pediu para que nosotros a
acompanhássemos até o carro.

***

Depois de nos instalarmos na casa de tia Lola, ficamos


pensando: “se ela nos trouxe com o carro, como Tomás fará para
trazer a família dele?” A pergunta também passou pela cabeça de tia
Lola, que pensou em voz alta:
— Meu Deus! O que o Tomás vai fazer sem o carro? Tenho que
voltar ao aeroporto! Olha, tem comida no fogão e sobremesa na
geladeira. Fiquem à vontade!
E, pegando sua jaqueta velhinha, saiu, tentando fazer o
possível para não deixar o quase esposo na mão. Mas não foi
necessário nem passar pelo portão. Um táxi trazia Tomás e a família
dele.
Da janela, vimos descer do táxi Tomás, seu irmão, sua cunhada
e, quase caí do sofá, quando vi a sobrinha dele. Descia, enrolada
num lindo e aparentemente caro casaco, para proteger-se do frio,
ninguém mais ninguém menos do que Isabela. Ela mesma: Belinha!
— Edu?! Quer dizer que agora vamos ser da mesma família? —
disse a garota, dando risada.
10. Su casa es mi casa
Faltava um dia para o casamento de tia Lola. Mesmo assim,
meu pai já quis lhe entregar o presente de casamento antes mesmo
do café da manhã. Na verdade, o presente serviria mais para ela do
que para o noivo.
— Nossa, Ricardo! Que casaco de pele lindo!
Um casaco de pele?! Olhei para meu pai como quem diz: “Que
história é essa de dar casacos para todo mundo?”, mas só obtive
como resposta um olhar que dizia: “Qual o problema? É sintético!”
Sentando-se à mesa junto conosco, meu pai fez uma pergunta
a meu futuro tio, a qual foi respondida pela minha tia:
— Então, Tomás, não haverá uma despedida de solteiro?
— Claro! O Tomás já reservou um salão para os amigos. E você,
Ricardo, é presença indispensável.
Estava levando a xícara de chocolate quente à boca, quando
percebi que minha tia e meu pai me olhavam. Sem entender,
perguntei o que havia acontecido.
— Você vai também, Edu? — perguntou meu pai.
Levando em conta que não bebo, não fumo e não gosto de
algazarra, não precisei pensar duas vezes para dar a resposta:
— Não... Prefiro ficar aqui com a tia Lola.
No entanto, Belinha, que estava do outro lado da mesa,
comemorou:
— Ótimo! Então você vai nos ajudar com o chá de cozinha.
Sem vibrar, voltei meu olhar para tia Lola e perguntei:
— Que hora será a despedida?

***

Na despedida de solteiro, como já esperava, além de não haver


ninguém da minha idade, todos não passavam de desconhecidos —
exceto meu pai, Tomás e o pai de Belinha.
Sem possibilidades de tentar me enturmar, fiquei sentado num
canto. Por sorte, achei um livro. Estava tudo escrito em espanhol,
mas não era difícil compreender as palavras. Enquanto lia, via o
pessoal enchendo a cara de bebida alcoólica e uns jogando aos
outros na piscina. Ignorava o que ocorria ao redor de mim e tentava
me concentrar na leitura.
De repente, assobios e aplausos, sem falar dos elogios de
guapísima para cima. Olhei para o salão e entendi o porquê de toda
aquela euforia: as modelos portenhas haviam chegado. Antes que
viessem me perturbar, fui ao único esconderijo disponível: o
banheiro.
Sentado num vaso sanitário, já que não havia nenhum
banquinho naquele vestiário, continuei lendo uma versão argentina
de A Odisseia. Não demorou muito e escutei passos. Alguém estava
entrando. Em silêncio, descobri que se tratava de duas pessoas: meu
pai e o pai de Belinha. As garotas os tinham jogado na piscina.
— Estou dizendo, Artur — falava meu pai —, o negócio não tem
erros. Qual é, você tem uma filha da mesma idade que o meu e
sabe como é custoso criar um adolescente. Estão sempre querendo
mais e mais... Acredite, só com o trabalho de contador eu não
conseguiria pagar nem metade das despesas do Eduardo.
— Sei disso... Ainda mais quando se tem uma filha adotada,
que, no caso, pode ser tirada de mim em caso de dificuldades
financeiras para criá-la.
Quase caí dentro da privada de susto. A Belinha era adotada!
Será que ela sabia disso? Constatei que não...
— Ah, a Isabela é adotada? Não sabia...
— Ninguém sabe. Só minha esposa e eu. Então, por favor, não
conte nada a ninguém.
— Sei muito bem guardar segredos. Ou você acha que alguém
sabe desse meu segundo emprego?

***

Já era tarde quando a festa acabou, com praticamente todos


embriagados. Confesso ter sentido muito medo em viajar num carro
sendo dirigido por um motorista bêbado. Mas o que eu poderia
fazer? O único sóbrio era eu, e eu nunca peguei num volante.
Rezando, dividia o banco de trás com meu pai e uma das
modelos, que havia pegado carona. E a mulher não parava de
reclamar. Primeiro o lugar estava apertado demais, depois ela estava
com dor nos pés de tanto dançar, em seguida sentia frio nas
pernas... Quase ofereci minha jaqueta para ver se ela calava a boca,
mas ela parecia uma daquelas pessoas que se você der a mão, quer
logo o braço. Para evitar ter que ser massagista de uma
desconhecida, virei o rosto e fiquei observando pela janela a
paisagem encoberta pela neve.
Não demorou e o carro parou no acostamento. Como temia,
não era uma notícia boa. A polícia estava fazendo uma blitz. Pediu
ao Tomás seus documentos e os do carro. Ele estava tão bêbado
que entregou ao guarda o cartão de crédito da minha tia, que estava
dentro do porta-luvas.
— Desçam do carro! — ordenou o policial, só que em espanhol.
Com o aparelho que mede a quantidade de álcool, fez o teste
do bafômetro com meu quase tio. Como já era de se esperar, o
aparelho apitou mais que canário à beira da morte.
Além de aplicar uma multa e apreender o carro, fomos todos
parar na delegacia.

***

— Tenéis derecho a una llamada — informou o delegado.


Se um dos três — Tomás, meu pai ou Artur — tentasse pegar
no telefone, seria tempo perdido, pois, de tão bêbados, eram
capazes de ligar para uma pizzaria e pedir uma tamanho família, de
calabresa, para comer com o chefe de polícia.
Conchita, a dançarina, disse que ela faria a ligação, pois
precisava urgente ligar a seu agente e informar que ele deveria
cobrar hora adicional, pois aquilo não estava incluso no orçamento.
Antes que um dos quatro estragasse tudo, usei as poucas
palavras que sabia em espanhol para dizer:
— Voy a hacer la llamada.
Não sei nem se disse certo ou se cumpri com as regras
gramaticais do castelhano. Só sei que o telefone foi entregue a mim.
Como não sabia o número de telefone da casa da tia Lola,
liguei para o celular da Belinha. Com voz de sono, ela atendeu. Pedi
para falar com minha tia e ela logo lhe passou o telefone. Após
conversar alguns instantes e contar tudo o que havia acontecido, ela
afirmou que, dentro de un rato, estaria na delegacia.
Enquanto aguardava a chegada da mulher, o delegado decidiu
prender os três “bebuns”, afinal, eles só sabiam rir e fazer piadinhas
infames sobre a aparência física do delegado. Sob protesto do trio, o
carcereiro os levou até uma cela.
Já Conchita e eu, aguardávamos na sala de espera. Ela tentava
livrar sua barra, exibindo as pernocas e o grande decote aos
policiais. Mas não conseguiu sair de lá antes de nós.
Quase uma hora depois, minha tia chegou. O delegado, muito
simpático, pediu para que fossem abrir a cela, enquanto lhe
explicava o motivo da detenção.
Assim que todos estavam prontos para serem liberados, minha
tia pediu mil desculpas ao delegado, que consentiu, e foi abrir o
carro. No banco de trás, ela foi pondo um a um: primeiro Tomás,
quase dormindo, depois Artur, que quase caiu ao descer a calçada,
e, em seguida, meu pai, que começou a se declarar para a própria
irmã.
Após fechar a porta de trás do carro, percebeu que havia mais
uma pessoa em pé, esperando para entrar.
— Quem é essa? — perguntou, fitando Conchita da cabeça aos
pés.
— Guapísima! — respondeu Tomás de dentro do carro.
Para que aquilo não causasse uma separação antes mesmo do
casamento, tomei a palavra e, inventando uma desculpa, disse:
— Estávamos voltando para casa, quando a encontramos
pedindo carona.
Olhei para Conchita e vi que ela havia assumido o papel de
caroneira. Com o polegar direito indicado para uma direção e um
sorriso de orelha a orelha, representava.
— Bueno. ¡Entre en el coche!
— ¡No! - gritou o delegado.
Após o berro, disse que o limite máximo de passageiros num
carro é de 5 pessoas, logo, a moça teria que ficar. Como a moça
sorriu, tia Lola e eu entramos no carro e saímos.
Conchita provavelmente pegou carona na garupa do delegado.

***

Ao chegarmos à casa de tia Lola, a mãe de Belinha estava


aflita, pois não tinha notícias.
— E então, onde eles estão?
— Dormindo. No banco de trás do carro.
— E como faremos para pô-los na cama?
— O dia já está amanhecendo. Daqui alguns minutos já serão
seis da manhã, então, vamos deixá-los lá, que já sei o que farei.
Ela me disse para ir dormir, mas estava curioso demais para
saber o que la señorita Dolores estava tramando.
Não demorou muito e, com a chave do carro na mão
perguntou, próxima à porta:
— Quem me acompanha?
Como só eu estava na sala, levantei a mão.
No maior silêncio para não acordar os outros passageiros, ela
dirigiu devagar até um posto de gasolina. Chegando lá, eu ainda não
entendia o que se passava, mas ela me pediu para descer do carro
e, apertando o botão do vidro elétrico, abriu os dois de trás.
Jogando a chave nas mãos de um frentista, pediu para que o carro
fosse à lavagem completa.
O funcionário obedeceu às ordens e levou o automóvel até a
máquina de lavar a jato. Só ouvi os gritos de três homens acordando
com um jato de água fria no rosto.
— A melhor parte ainda está por vir...
A máquina jogou sabão, tanto fora como dentro do veículo,
deixando-os brancos da cabeça aos pés. Em seguida, mais água.
Mais um pouco e o carro saiu da máquina com a lataria
brilhante. Não se podia dizer o mesmo dos que estavam dentro dele.

***
Voltando para casa, os três batiam queixo, praticamente
congelando de frio, disputando para saber quem seria o primeiro a
entrar debaixo de uma ducha quente. No maior corre-corre, os três
acabaram entrando no banheiro juntos. Sabe-se lá o que aconteceu
lá dentro.
Enquanto isso, dona Ofrásia preparava as torradas para o café
da manhã e tia Lola, tomando sua xícara de café bem quente, ria e
dizia que aquilo era para eles aprenderem a não passar dos limites.
— Bem, pelo menos isso foi bom para mostrar que o chá de
cozinha não foi um verdadeiro desastre — disse Belinha, que
acordara pouco tempo atrás, com as risadas da tia Lola.
Tanto sua mãe como minha tia levaram o dedo à boca, como se
pedissem para ela não contar nada do que acontecera naquela casa
um dia atrás.
— Não tem problema falar para o Edu, não... Ele não vai
espalhar!
E me contou que tudo ia muito bem, até tia Lola começar a
abrir os presentes.
O primeiro... um galheteiro!
“Oh, que maravilha! Era justamente o que eu precisava.”

Em seguida... um guardanapo!
“Oh, muito bom! Serve para limpar o óleo derramado do
galheteiro.”

O próximo... um galheteiro!
“Excelente! Posso colocar vinagre neste.”

E o seguinte... outro galheteiro!


“Bom... neste eu posso colocar o azeite.”

Abriu outro... mais um galheteiro!


“Bem, no caso de um dos outros três quebrar, eu tenho um
reserva.”

Desembrulhou outro... outro galheteiro!


“Qual é? Os galheteiros estavam na promoção?”
Já exaltada, abriu mais um... que beleza!
“Um galheteiro... como estava fazendo falta.”

— No final, Edu, acredite, totalizavam, sobre a mesa, quatorze


galheteiros, um guardanapo, um cartão de felicitações pelo
casamento e uma mulher brava, atirando dois dos galheteiros para
expulsar a mulherada.
— Então, agora ela tem doze galheteiros? — perguntei ingênuo.
— Na verdade, treze. Minha mãe esperou todo mundo sair para
lhe entregar seu presente.

***

— Bem, já vou saindo... Tenho que levar o carro para secar o


interior e, em seguida, ir ao salão de beleza, fazer as unhas, o
cabelo, a maquiagem... Ai, como é duro se casar!
A porta bateu. Tia Lola deixava a casa. Outra porta bateu.
Tomás saía do banheiro.
— ¿Dónde está Lola?
— E-lla sa-li-ó. Fue al sa-lón de be-lle-za — respondeu Ofrásia,
sílaba por sílaba, como uma verdadeira não falante de espanhol.
— Pues, para mí, todo lo se acabó.
Nem ligamos para a última frase. Não que não tenhamos
entendido, mas porque sabíamos que, depois de alguns segundos
em silêncio, ele falaria outra.
— ¡Vale! Voy a perdonarla. Pero sólo porque que insistís tanto.

***

Tomás sentou-se à mesa. Eu me retirei, afinal, o grito do meu


pai me obrigou:
— Eduardo, venha cá!
No quarto, encontrei-o enrolado em uma toalha.
— Você arrumou as malas, não é mesmo? Onde estão minhas
roupas?
O que responder num momento como aquele? Optei pela
verdade.
— Bem, quando você me pediu para arrumar as malas, pensei
que estava falando unicamente da minha mala, por isso nem me
preocupei com suas roupas.
— Não me diga que se eu quiser me vestir, tenho que ir...
— ... ao Brasil! — conclui, mordendo o lábio inferior.

***

Já estava quase na hora do almoço quando nos dirigimos até a


igreja. Quer dizer, quase todos: meu pai havia ficado na casa de tia
Lola, pois, segundo ele, era a única forma de conseguir encontrar
uma maneira de se vestir — não entendi o que ele quis dizer com
isso.
Havia poucas pessoas na igreja — decerto o casamento era
restrito à família e aos amigos mais próximos. A maioria era
convidada de Tomás, visto que para os conhecidos de tia Lola ficaria
um pouco difícil o comparecimento, uma vez que para isso seria
necessário transitar entre um país e outro.
Aguardando próximo à porta estavam os padrinhos, um
verdadeiro cordão de puxa-sacos. Com seus trajes garbosos se
sentiam os maiorais por serem as testemunhas de um enlace
matrimonial.
No primeiro banco, bem de frente para o altar, se concentrava
uma meia dúzia de beatas, com seus tercinhos espremidos entre as
mãos, ajoelhadas, como se orando e pedindo bênçãos para o futuro
casal.
Dentre os convidados, espalhados pelos diversos lugares
disponíveis na igreja, era possível visualizar os penetras, se
debulhando em salgadas lágrimas, como se fossem amigos de
infância dos noivos que nem conheciam.
A cerimônia estava prestes a começar quando o último
convidado chegou. Meu pai, com olhar de galã portenho, entrou
vestindo uma camiseta de couro de cobra, calças de couro de vaca e
sapatos de couro de jacaré. Uma verdadeira Mata Atlântica cobria
seu corpo.
— Pai, onde você encontrou essas roupas? — sussurrei.
— Eu tenho meus contatos.

***

Casamento faz uma pessoa apaixonada viajar pelo mundo da


imaginação. “Como seria o meu casamento?” era a pergunta que me
veio à mente, quando, ao toque de uma melodia romântica, Tomás
passava pelo tapete vermelho, de braços dados à sua mãe. Mas com
o agudo da marcha nupcial, voltei à realidade.
Num espanhol com sotaque argentino, o padre fez a pergunta
de sempre: “Vocês, Tomás e Dolores, aceitam um ao outro, na
alegria e na tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na
pobreza, todos os dias de suas vidas?”. Tomás aceitou no ato. Tia
Lola pensou um pouco e logo soltou um grito simpático e hilariante:
— Ay, sí, sí, sí...
Se ela dissesse não, não teria tanta graça.
Fui enxugando a pequena lágrima no canto do olho esquerdo
até sairmos todos da igrejola e, de carro, fomos seguindo os noivos
até o local da festa.

***

Descrever uma festa de casamento é sempre complicado. Por


mais que tentemos diferenciá-la, há sempre algo que deixa todas
iguais. Em resumo, a comemoração do casamento da tia Lola não foi
diferente: bufê, música ao vivo e vídeo exibindo as cenas mais
marcantes e humilhantes do passado.
Mas não é por isso que a “reunião familiar” poderia ser
considerada sem graça e monótona. Ao contrário, coisas muito
interessantes aconteceram.
Para começar, como não havia espaço suficiente para todos os
convidados, Belinha e eu fomos chutados do recinto. Fomos
colocados numa pequena mesa com duas cadeiras do lado de fora
do restaurante. Não ficamos, porém, o tempo todo sozinhos; mais
hora, menos hora, aparecia alguém... para fumar ou simplesmente
porque errou o caminho do banheiro.
Os garçons também não esqueciam da gente. Sempre passava
algum com uma bandeja de miniempanadas ou de bebidas não
alcoólicas por perto de nós. Foi com uma pequena taça de menta
com chocolate que Belinha e eu iniciamos a noite.
A porta do tal estabelecimento era de vidro. Podíamos,
portanto, assistir a tudo o que acontecia do lado de dentro. E
garanto que não foram coisas insignificantes. Se não fosse a
transparência, perderíamos a tão normal guerra de comida que
houve na hora de cortar o bolo.
Tudo começou com Tomás que queria cortar o bolo na lateral,
de baixo para cima, com a mão direita, pois isso, segundo ele, traz
muita felicidade na nova vida conjugal. Tia Lola foi contra e disse
que tudo não passava de uma bobagem; eles seriam tradicionais,
normais como todos os recém-casados. Quando deram por si, não
havia mais bolo na forma; em compensação, seus rostos estavam
repletos de chantili.
Logo em seguida, mais uma cena que pode ser julgada
humilhante. Do nada, o nariz de Ofrásia começou a sangrar.
Perguntei à Belinha se havia alguma explicação para isso, mas só
obtive como resposta um:
— Isso é normal! Já vem saindo sangue do nariz dela há umas
duas semanas.
Quando questionei se ela havia procurado um médico, o que
ouvi foi:
— Médico?! Já falamos para ela procurar um, mas sabe como
dona de casa é: muito ocupada, sem tempo para consultas, ainda
mais quando é para algo tão bobo quanto sangue no nariz.

***

Ninguém havia me informado. Após a quinta ou sexta taça da


bebida refrescante, descobri que, embora não contivesse álcool, o
mentol pode tirar algumas pessoas do sério. Esse foi meu caso. Já
não sabia mais o que estava vendo ou ouvindo. Pelo visto, Belinha
estava no mesmo barco.
Comprovei isso não quando ela começou a gargalhar só porque
uma pomba havia cansado de voar e resolveu pousar para descansar
as pobres asas. Tive a certeza de que não estava dentro de mim
quando vi uma das garçonetes.
Embora usasse uniforme, seu jeito desengonçado, óculos fundo
de garrafa, cabelo sem lavar e um enorme buço acima da boca
deixavam óbvio que aquela mulher era uma velha conhecida. Para
ser mais exato, era certo que aquela estranha pessoa era Emília, a
misteriosa ex-gerente do clube.
O que eu fiz? Não corri atrás dela, não gritei seu nome, não
contei para ninguém. Apenas olhei para o lado e, ao ver a maçaneta
da porta brilhando, por causa do lustre, comecei a rir sem parar.

***

Desorientados e sem assunto. Assim estávamos Belinha e eu. E


foi assim que começamos a relembrar o passado. Ela começou...
— Lembra de quando eu resolvi jogar futebol com as meninas
e... rá, rá, rá... quando chutei a bola... rá, rá, rá... ela entrou no gol?
Foi muito hilário!
— Ainda mais porque o gol... rá, rá, rá... foi contra!
E essa foi a besteira considerada mais interessante. Depois
disso, comentamos o dia que eu fiquei preso no portão da escola —
na verdade, de alguma forma, minha camiseta ficou grudada a uma
parte pontuda do portão de ferro, não me deixando entrar nem sair
— e o dia que Claudinho resolveu entrar no clube de teatro, porém
desistiu logo na primeira semana — seu primeiro papel foi como
uma mariposa.
Pela primeira vez em dias, havia conseguido parar de pensar
em Letícia por alguns minutos — geralmente ela está presente até
em sonhos. No entanto, em meio à festa de casamento, meu celular,
que assustadoramente tinha área, tocou e vibrou.
Tentando ignorar a música alta, falando ainda mais alto,
conversei rapidamente com a pessoa do outro lado da linha.
Desligando o telefone, permaneci pasmo.
— Credo, Edu! Parece que viu um fantasma... ou melhor, ouviu
um. O que houve? Quem era? O que queria?
Nem as milhares de perguntas de Belinha foram suficientes
para me tirar do abalo. Podia estar desnorteado e tudo mais, mas o
que ouvi naquele telefonema fez os neurônios voltarem ao normal.
Estava 100% certo do que havia escutado.
Com a voz trêmula e meio que gaguejando, informei:
— A Le... a Letícia cortou os pulsos.
E, encostando a cabeça na mesa, comecei a tremer,
supostamente por causa da febre repentina causada pelo
nervosismo. Belinha apenas congelou e emudeceu.
11. S. O. S.
Passaram-se apenas quinze minutos desde o sangramento
nasal. Ofrásia, no entanto, estava pronta para agitar. E foi nessa
alegria toda que ela resolveu ir dançando sozinha ao redor do
restaurante.
— E aí, galera! Tudo bem? — nos cumprimentava jovialmente,
enquanto bailava próximo à nossa abandonada mesa.
— Não!! — respondemos em coro.
A cara de susto que Ofrásia fez poderia ter sido extremamente
engraçada. Não foi, porém, o suficiente para nos animar diante da
situação que estávamos vivendo.
— Mãe, lembra da Letícia? — e Belinha lhe contou tudo.
Outra cara de susto. Dessa vez, com a voz séria e com
expressão de mulher decidida, falou:
— A mãe da Letícia é uma grande amiga minha. Ela deve estar
precisando de amparo. Vou para o Brasil agora mesmo. Quem vem
comigo?
Ficar em outro país num momento como esse não era a melhor
opção. Levantamos e fomos com Ofrásia arrumar as malas para o
que seria uma longa viagem. No meio do caminho em direção à casa
da tia Lola, Belinha resolveu perguntar ingenuamente:
— Mãe, desde quando você é amiga da mãe da Letícia? Nunca
vi vocês se falando.
— Ora, como não? Na reunião de pais da sexta série, ela me
disse um bom-dia quando chegou. Isso não nos torna amicíssimas?

***

— Alguém poderia me dizer por que é que vocês três saíram da


festa sem ao menos se despedir? — perguntou meu pai que chegava
enquanto terminávamos de fechar as bagagens.
— É uma longa história, Ricardo. Conto quando encontrar com
você no Brasil. A propósito, seu filho está vindo comigo.
Assim que abrimos a porta da casa para nos retirarmos e
seguirmos rumo ao aeroporto, um pedaço de lata barulhento
encostou ao portão:
— E então, terá ou não casamento? — perguntou tia Cecília,
que havia decidido fazer a viagem de carro e, em consequência, só
havia chegado ao fim da comemoração.

***

Viajar de madrugada já estava se tornando rotina para mim. Se


bem que não pude aproveitar nada dessa volta, pois meu
pensamento não estava dentro daquele avião, mas ao lado de
Letícia. Não conseguia parar de pensar em como ela estaria.
Com a mente em desordem, você nem vê o tempo passar. Ele
voa! Tudo foi tão rápido que só tive tempo de ficar enjoado quando
o piloto anunciou a aterrissagem.
Do aeroporto, pegamos um táxi diretamente até o hospital. A
primeira coisa que Ofrásia fez ao entrar foi correr em direção à sala
de espera, onde estava a mãe de Letícia, de braços abertos e
gritando:
— Marleninha... Vem dar um abraço. Pode desabafar tudo o
que estiver entalado em sua garganta.
Enquanto era esmagada pelos fortes braços da mãe de Belinha,
dona Marlene fazia a cara de: “Quem é essa doida?”. Belinha
movimentava os lábios, como se respondesse: “Minha mãe”.
Após conseguir se safar da “amiga”, Marlene contou o que
aconteceu, desde o início:
“Depois de não ter conseguido ganhar o concurso de beleza no
dia do desfile, Letícia começou a agir de maneira estranha: vivia
cabisbaixa, não falava com ninguém e, se lhe fizessem alguma
pergunta, respondia de forma grosseira. Não era a Letícia que criei.
Com o passar dos dias, notei que ela se olhava com maior
frequência ao espelho, como se procurasse alguma imperfeição no
rosto, ou no corpo, ou estivesse preocupada com alguma. Jamais
pensei que isso pudesse significar alguma coisa.
Os cremes de beleza e demais cosméticos começaram a ser
usados a todo vapor por ela, como se estivesse tentando corrigir
algo que estava errado.
Certo dia, ela chegou em casa e, sem dizer uma única palavra,
fechou-se no quarto. Algo me dizia que eu deveria fiscalizá-la. E,
como coração de mãe nunca se engana, ao abrir a porta, eu me
deparei com ela deitada em sua cama com o estilete em uma das
mãos e na outra...
Corremos para cá e, por sorte, encontramos um médico de
plantão. Ele atou seu pulso, a internou e, minutos depois, deu seu
diagnóstico: dismorfofobia.”
— Dismorfo... quem? — perguntou Ofrásia, não fazendo ideia
de o que seria aquilo.
— Também desconhecia, mas o doutor disse que a
dismorfofobia é um transtorno mental no qual a pessoa tem uma
preocupação excessiva por alguma imperfeição corporal ou defeito
imaginário. E, devido a isso, a pessoa se isola, fica esquisita e, em
alguns casos, pode levar ao suicídio.
Não precisou que ela dissesse. Concluí que, quando Cris
ganhou de Letícia no infeliz concurso, ela pôs na cabeça que havia
alguma coisa errada com seu exterior. E isso a levou a cometer essa
loucura.
— Minha mãe e eu — dizia Marlene — estamos aflitas. Acho
que não conseguiremos dormir essa noite sem saber notícia da
minha filhinha.
Enquanto isso, a avó de Letícia praticamente babava e roncava,
cochilando na cadeira de espera, como se nada estivesse
acontecendo.
— Não conheço muito bem os amigos da Letícia, mas, como
pensei que talvez se interessassem em saber, resolvi ligar para
qualquer número de sua agenda telefônica. E então, você atendeu
— me disse. — Desculpe pelo incômodo.
— Não incomodou...
Queria esticar a frase, mas um “fiquei feliz por ter ligado” não
soaria bem naquele momento.

***
Hospitais têm regras rígidas: nada de visitas fora de hora ou
acompanhantes em dormitórios. Mesmo conhecendo todas essas
normas, eu não podia ficar sem ver Letícia pessoalmente e saber se
ela estava bem ou não. Fui lamentar ao guarda.
Não, não e não! O homem de uniforme e cara de brabo não
estava disposto a deixar ninguém subir. Voltei à sala de espera.
Parecia incrível: todos aparentavam estar tranquilos. Dona
Marlene folheava uma revista, Ofrásia lixava as unhas, Isabela
assistia ao filme que passava na televisão e a avó de Letícia dormia.
Eu era o único ansioso naquela sala. Olhava para o relógio,
balançava a perna, olhava para o relógio mais uma vez... Não
aguentando tanta tortura, voltei a falar com o guarda.
— Qual é, moleque? Você por acaso veio de outro país só para
vê-la?
Disse a verdade e consegui fazê-lo abrir uma exceção.

***

Assim que abri a porta do quarto de Letícia, eu a encontrei


deitada, dormindo, com o braço esquerdo enfaixado. Um sentimento
parecido com tristeza invadiu meu coração.
Sem nada para fazer até amanhecer o dia, eu me sentei à
beirada da cama e permaneci lá, fazendo-lhe companhia. Sem
querer, adormeci.

***

— Edu... Edu... — ouvia a voz de Letícia — Você passou a noite


toda aqui?
— Que horas são? Não acredito que peguei no sono...
Não passavam das sete e meia, mas antes que Letícia pudesse
responder alguma coisa, seu médico entrou no quarto, carregando
consigo uma caixa de plástico.
— Bom dia, Letícia! Bom dia... Quem é você? Um novo
paciente?
— Er... — antes que eu inventasse alguma desculpa de por que
estava ali e acabasse me complicando ainda mais, o médico apenas
disse que estava tudo bem e pediu para que eu chamasse dona
Marlene.
Logo apareceu a mulher, trotando, querendo de uma vez por
todas saber mais detalhadamente o que acontecia com sua filha. O
médico foi dizendo:
— Letícia, a dismorfofobia não é brincadeira. Ela tem que ser
tratada. Você nos deu um susto muito grande. Sei que é difícil e um
pouco chato falar com alguém sobre o que você está passando. É
por isso que eu adotei um método diferente para sua recuperação...
E abrindo a caixa, tirou um gato de dentro.
— Esse é o Tobby, seu novo bichinho de estimação. A partir de
agora, tudo o que você estiver sentindo e quiser desabafar, poderá
contar a ele. O melhor é que nada do que você disser será revelado,
afinal, ainda não surgiu algum especialista que fale a língua dos
gatos.
Dito isso, entregou o gato a ela, concluindo:
— Talvez isso lhe pareça um pouco infantil, mas, acredite, as
estatísticas revelam que mais da metade da população adulta
mundial conversa com seu animal de estimação. E quase 100%
dessas pessoas vivem extremamente felizes. Sendo assim, espero
que você tenha uma boa experiência com o Tobby.
Assim que terminou, ouviu-se o espirro de Marlene.
— A senhora está gripada?
Um balanço de cabeça para os lados indicou sua forte alergia a
pelo de gatos.

***

Agora, com gente no pé de Letícia o dia todo, não havia


motivos para eu ficar plantado lá feito um estorvo.
Sendo assim, fui para casa com Tobby nos braços. Letícia me
pediu para cuidar dele, enquanto encontrava alguma forma de
mantê-lo com sua mãe na mesma casa.
Usei a cópia da chave de casa que tenho para entrar. Soltei o
felino e, ao ver o telefone sobre a mesinha, tive uma ideia.
— Alô, Cris!
— Edu? Que surpresa... Aconteceu alguma coisa?
— Bem, na verdade, sim. Lembra quando você, por engano,
ganhou o concurso de Miss Rosa dos Ventos?
— Se eu lembro? Aquele foi o dia mais feliz da minha vida. O
troféu é como um filho para mim. Limpo, faço polimento e dou brilho
nele quase todos os dias. Sei que parece bobo, mas ele está meio
que sendo a razão do sorriso nos meus lábios ultimamente. Eu me
sinto tão mais poderosa com ele!
Depois disso, qualquer coisa que tinha em mente foi por água
abaixo.
— A propósito, e aquela sua amiga, está bem?
— Vai ficar!
Dando adeus e até amanhã, desliguei o telefone. Peguei o
dinheiro em cima da geladeira e saí.

***

Mercado de cidade pequena está longe de ser super. Quem dirá


hiper. Não entendo, portanto, por que é que o mercadinho mais
fuleiro do meu bairro recebe o nome de Megamercado do Chicão.
Minha intenção era a de não pegar muitas coisas. Na verdade,
meu objetivo era levar para Letícia algumas coisas que ela gostasse,
tais como frutas cítricas que, além de conterem muitas vitaminas,
também são alguns dos tipos de alimentos aceitos no hospital.
Laranja, tangerina, maçã... Que outra fruta ela poderia gostar?
É claro: uva!
Quando olhei na bancada de uvas, eu me deparei apenas com
um único cacho. E era um cacho perfeito. Assim que levei minha
mão para pegá-lo, uma mão menor e mais macia tocou nele antes.
Quando vi quem era a dona daquela mão, eu me surpreendi.
— Oi, Edu. Quanto tempo...
Mercado de cidade pequena está longe de ser super, mas numa
coisa tenho que concordar: é um ótimo ponto de ressurreição de
pessoas já julgadas mortas.
— Luciana... Tudo bem?
— Se “à procura de um namorado” significar bem, sim, estou
bem... Não sei nem por que estou contando isso para você, mas
estou meio que carente... Parece bobo, mas se nesse exato instante
um velho amigo, ou até mesmo um simples conhecido, me
convidasse para sair, aceitaria de imediato.
Ouvindo aquelas palavras e mirando seu apaixonante rosto, eu
me perdi em seu olhar. Aí ela me perguntou:
— E então, quem fica com a uva?
— Pode levar: eu já tenho quem adoce minha vida.

***

Mal cruzei a porta do hospital com minha sacolinha de frutas e


dona Marlene veio em minha direção. Séria e convicta, ela me disse
que Letícia estava querendo falar algo muito importante para mim e,
com um olhar típico de sogra, informou que sua filha havia
percebido algo que estava bem diante de seus olhos há bastante
tempo, mas que só agora ficou estritamente claro; em consequência
disso, queria me ver urgentemente. A propósito, eu iria gostar muito
da surpresa.
Piscando o olho direito, Marlene voltou para a sala de espera,
sentando-se na cadeira que a acomodava desde a noite anterior. E
eu, mais uma vez por não ser horário de visita, despistei os
seguranças e fui rumo ao quarto onde Letícia estava internada.
Antes que eu pudesse chegar até o dormitório, resolvi entrar no
banheiro localizado bem no meio do corredor.
Roía as unhas, jogava água no rosto, estralava os dedos. Frente
ao espelho, analisava alguma imperfeição que tivesse possível
reparo, ajeitava o cabelo e verificava o hálito. Estava mais do que
óbvio o que Letícia queria comigo: finalmente ela havia notado meu
verdadeiro sentimento por ela.
Desde algumas semanas atrás, estou tentando conquistar a
garota, logo, já deveria estar preparado para esta situação. Mas o
coração comunicou que não estava — o danado pulava mais que
peão em dia de rodeio. Talvez isso fosse até bom, pois aceleração
cardíaca é sinal de um sonho que está prestes a ser realizado.
Tomando consciência de que aquela noite pudesse ser a melhor
de minha vida, tirei o braço de perto da minha boca, respirei fundo
e, adquirindo coragem para não pensar no suor das mãos, saí do
lavabo, disposto a beijar de verdade.
Como uma barata tonta, comecei a dar voltas no corredor,
próximo ao quarto. Não sabia se ria, se chorava, se ficava sério...
Toda a tensão e ansiedade mostravam quão inexperiente eu era no
assunto.
Inspirando e expirando pela última vez, entrei no cômodo que
cheirava a éter — se bem que o único cheiro que sentia era o de
paixão pairando no ar.
Assim que meus olhos viram o delicado rosto de Letícia,
milagrosamente consegui me acalmar. Percebendo minha presença,
falou pacificamente:
— Oi, Edu.
Não sei se era coisa da minha cabeça, mas aquele oi foi
diferente do que qualquer outro oi que eu já tinha recebido em
minha vida. Havia algo parecido com uma mistura homogênea de
ternura com alegria.
— Sua mãe disse que você estava querendo falar comigo.
— Quero...
A partir dessa fala, o verbo querer passou a ser o meu
preferido. Também foram se tornando favoritos os vocábulos e
classes gramaticais que vieram em seguida, com o pedido:
— Chegue mais perto...
O romantismo realmente estava em alta em Letícia.
Aparentemente, ela queria resumir tudo num único beijo.
Aproximei dela. Ela pôs uma de suas mãos sobre as minhas,
suavemente. Senti a aconchegante maciez de sua pele.
Vagarosamente, ela fez sinal com o dedo para que meu rosto ficasse
mais perto do dela.
Um quarto de hospital não era bem o cenário que eu imaginava
para o primeiro beijo, mas aquela seria uma forma de eu
transformar um lugar não muito agradável no mais especial.
Só eu e ela. Mais ninguém. Tudo estava perfeito.
Devagarzinho, ia conduzindo minha cabeça, inclinando-a
levemente para a direita, para junto da garota. Os olhos foram se
fechando, enquanto os lábios se aproximavam. Parecia que eu
estava numa viagem à Lua.
— Edu, o médico disse que vai me dar alta amanhã de manhã.
Não é o máximo? — falava próximo ao meu ouvido.
O foguete em que estava se explodiu em mil pedacinhos,
quebrando-se junto com o clima que estava rolando e me deixando
completamente sem graça.
— Era isso que você queria me dizer?
— Sim... Eu percebi que estava sendo uma idiota me
preocupando tanto com a beleza exterior, contei isso ao médico e ele
disse que, por conta desse pensamento, me dará alta. Por quê?
Pensou que poderia ser alguma outra coisa?
— Não... Eu só não sabia que ia ser tão... especial.

***

Antes de eu sair do hospital, Letícia me fez um último pedido:


para que eu cuidasse bem de seu novo gatinho, pois em algumas
horas queria segurá-lo nos braços e lhe dar muito carinho.
Isso não seria problema se não fosse o fato de eu chegar em
casa e revirar todos os cômodos de cabeça para baixo à procura do
bichano. Não conseguia encontrar o danado em lugar algum.
Meu pai já havia voltado da Argentina. Ao mostrar meu
desespero, ele, calmo como se nada tivesse acontecido, apenas me
falou:
— Gatos são assim... somem de repente.
12. Sumiço do gato
Precisava de um tempo para pensar, pôr todas as ideias no
lugar. E nada melhor do que Nina para me ajudar com essa tarefa.
Ainda não tinha anoitecido totalmente; podia-se, porém, ver as
estrelas brotando vagarosamente no céu. Nina, como sempre, fora
uma das primeiras a aparecer e iluminar o que seria uma noite
melancólica.
Debruçado sobre o parapeito, olhava para ela, quase
implorando que me dissesse algo, que me orientasse naquela tão
embaraçada situação. Acho que de tanto ouvir meus lamentos, ela
finalmente resolveu abrir sua boca de estrela.
— Titanic.
Titanic? Um turbilhão de dúvidas assombra minha mente e tudo
o que a infeliz da estrela me diz é Titanic? Que raios Titanic quer
dizer? Será que é uma forma de enfatizar que minha vida está indo
por água abaixo? Provavelmente...
Não posso, porém, destacar que “Titanic” não fez nenhum
sentido, afinal, estaria mentindo. Esse substantivo (próprio)
lembrou-me água; água lembrou-me natação; e natação me
lembrou que no dia seguinte eu estaria num campeonato.
Caramba! Realmente o tempo passa muito rápido.

***

Café da manhã. O que comer? É complicado adivinhar o que o


estômago gostaria de degustar em plena seis da matina; ele não
está acostumado a deglutir nada a esse horário — geralmente vou
em jejum para a escola.
Nesse dia, porém, não poderia sair de casa de estômago vazio.
Deveria consumir ao menos uma quantia mínima de carboidratos,
suficientes para manter minha energia durante o tempo dentro da
água.
Tomei um suco de laranja como acompanhamento de um pão
com margarina e dei umas três voltas pelo meu quarto, na mais
estranha sensação de estar esquecendo algo. Meu pai me apressava,
pois, se enrolasse mais um pouco, me atrasaria para a competição.
Quando entrei no carro e pus o cinto, finalmente o cérebro
acordou: não poderia participar de uma prova aquática sem minha
sunga. Desci do automóvel e fui buscar a tão importante peça de
roupa.

***

O carro ficou estacionado próximo à entrada do clube, que


naquele dia poderia ser considerado sede de uma competição
regional. Antes de entrarmos, meu pai disse que precisava ficar uns
minutinhos a mais do lado de fora, pois tinha assuntos importantes a
serem resolvidos, pelo celular.
Visto que eu já estava em cima da hora, deixei-o e fui em
direção às piscinas. A correria era grande, muita gente zanzando
para lá e para cá. Competidores e torcida nervosos, aflitos para o
início da prova.
— Edu, onde é que você estava? — perguntava Cris
superpreocupada — Já deveria estar pronto há dez minutos. Ande,
garoto!
Fui rumo ao vestiário. Notei, no entanto, uma pessoa vindo em
minha direção: Claudinho. Confesso que já nem me considerava
mais o melhor amigo dele, uma vez que a gente nem estava mais se
falando direito. Ele, no entanto, mostrou o contrário.
— Edu, que bom que você chegou, cara. Tem uma coisa que eu
descobri e preciso contar.
Usando uma famosa frase do saudoso Cazuza, respondi:
— Conte no vestiário. “O tempo não para!”
Enquanto me trocava a toda velocidade, ouvi atentamente cada
palavra que saiu da boca de Claudinho.
— Primeiro quero que você saiba que não há mais nada entre
Letícia e eu, a não ser amizade...
— A-hã...
— E também que quando você não foi à escola, devido à
viagem para a Argentina (que eu já fiquei sabendo), escutei uma
conversa de Letícia ao celular com Belinha (que provavelmente
também estivesse rumo a Buenos Aires) ...
— A-hã...
— O fato é que eu ouvi Letícia falar sobre roupas fashion, sobre
cantores pop... Essas coisas de menina...
— E?
— E entre essas coisas, Letícia disse que podia perceber a
chama da paixão se acendendo novamente em seu coração. Ela
disse estar apaixonada.
— Tá bom, Claudinho. Isso não me interessa agora... — fui
interrompido por uma bomba.
— Ela tá gostando de você!
Fiquei estatelado. Será que eu realmente tinha ouvido o que
pensei que tinha? Ou melhor, será que Claudinho havia escutado
corretamente a conversa? As perguntas ficaram sem resolução, pois
Cris, inesperadamente, entrou no vestiário e, me empurrando para
fora, falou:
— Sei que não devia estar aqui, mas pelo visto, se eu não
entrasse, você não sairia. Agora, vamos!

***

Enquanto o árbitro aguardava autorização para indicar o início


da disputa, dei uma breve olhada em meus desafiantes. Não
conseguia acreditar que entre eles estava um não muito querido
conhecido.
Finalmente consegui entender por qual motivo o traste do Dudu
havia surgido na cidade: ele estava inscrito no campeonato de
natação.
Esbanjando autoconfiança, Dudu se sentia meio que um
maioral, exibindo as axilas já lotadas de pelos — talvez essa fosse a
única coisa madura que ele tivesse.
Antes que eu me irritasse ainda mais com o playboyzinho, o
“tiro de largada” foi dado, fazendo com que todos nós, ali reunidos,
nos jogássemos dentro da água e déssemos o melhor de nós para
chegarmos primeiro de volta à margem.
Aos poucos, os competidores foram se cansando e diminuindo
velocidade. A rixa maior era entre a raia cinco e a raia oito — Dudu
versus Edu.
Mesmo estando submerso, era possível ouvir os gritos do
“técnico” de Dudu se misturando com os de Cris, que só faltava
pular na piscina e me ajudar a ficar mais veloz.
Não estava sendo nada fácil manter o ritmo do início, mas sabia
que faltava pouco para acabar. Dei o máximo de mim, disposto a
ficar esgotado, assim que chegasse à borda. O que eu não percebi
era que estava a poucos metros da margem. Bati com a cabeça.
De uma forma meio estranha, cheguei à frente. Notei isso
quando levantei a cabeça para tomar fôlego e Cris veio me ajudar a
sair da piscina, comemorando. Na raia cinco, o velho rabugento era
rígido com Dudu, que perdeu por alguns milésimos de segundo.
A folia dos que torciam por mim — havia pessoas que eu nem
conhecia na minha torcida — não foi o suficiente para eu não notar
a ausência do meu pai. Se bem que já era de se esperar que ele não
estivesse presente.
— Nossa, duas notícias maravilhosas e o dia nem começou —
falava Cris, feliz da vida.
— Duas? — perguntei curioso.
— Sim! A primeira foi você ter ganhado e a segunda foi terem
prendido um delinquente em frente ao clube. Na verdade, ouvi um
boato de que ele saía da mata fechada, aquela em que entramos
outro dia, no momento que a viatura de polícia chegava. O mais
engraçado era que o cara, ainda estando no mato, usava terno.
Só havia uma pessoa capaz de usar paletó e gravata em
qualquer que fosse a situação.
— Cris, não tenho certeza, mas acho que esse homem... é meu
pai.

***

Sem cabeça para pensar em qualquer tipo de comemoração por


minha vitória, eu me despedi do pessoal, dizendo que nos
encontraríamos outra hora, pois eu precisava, naquele momento, ir à
delegacia e confirmar se minha suspeita era real.
— Espere, Edu! Eu te levo no meu carro novo! — gritou Cris,
como se estivesse ansiosa para que todos vissem o veículo que
comprara.
Realmente o carro era lindo: embora compacto, zero
quilômetro, vermelho cintilante, “trocentos” cavalos e completo, com
todos os apetrechos necessários e desnecessários para uma
máquina perfeita.
A caminho da delegacia de polícia, pude ouvir no rádio (com
entrada USB e Bluetooth) a notícia do dia:
— Após três anos da suposta morte de Amélia Fischer,
conhecida primeiramente como Amélia Cavalcante, repórter e
jornalista da mais poderosa emissora de tevê brasileira, foram
encontrados vestígios de que ela poderia estar viva e habitando as
redondezas da metrópole paulista. Vale lembrar que nada foi
confirmado.
Por sorte, estava sentado. Minha mãe viva! Ao mesmo tempo
que seria ótimo, seria absurdamente absurdo.

***

Na delegacia, tomei nota da verdade: realmente o bandido era


meu pai. Pude ler um fragmento do boletim de ocorrência que
informava: “Ricardo Fischer, 36 anos, viúvo, detido por tráfico e
comércio ilegal de pele de animais [...]”. Logo mais abaixo, citava o
nome de Graça como cúmplice.
Resumindo, passei a tarde na delegacia, entrando em contato
com o tal advogado que meu pai pediu.

***

Assim que coloquei os pés em casa, vi que havia um recado na


secretária eletrônica.
— Oi, Edu. É Letícia. Como vai o Tobby? Já estou com
saudades... Amanhã mesmo peço para minha mãe me levar aí, para
eu dar uma olhadinha nele. Até mais!
Antes que eu pudesse apagar o recado, alguém batia à porta. A
última coisa que esperava era uma visita, depois de um dia tão
agitado como esse. Assim que abri, Belinha me abraçou e começou
a chorar em meu ombro.
De fato, sou um péssimo consolador. Não sei o que falar ou o
que fazer para confortar alguém que está precisando. Sendo assim,
eu a deixei chorar por mais algum tempo, até ela enxugar os olhos
e, ameaçando uma risada, falar:
— Minha mãe, Edu, finalmente foi ao médico... Está com
leucemia!
Já sem derramar mais nenhuma lágrima, sorriu e, confiante,
disse:
— Por sorte eu, como filha, tenho grandes chances de ser uma
doadora de medula óssea. Então, vai dar tudo certo. Pensamento
positivo!
Só conseguia me lembrar do que havia ouvido na despedida de
solteiro.
13. Simplesmente... chegou
ao fim!
Realmente sou péssimo em consolar as pessoas. Pior ainda
para dar más notícias.
— Belinha, não sei nem como dizer, mas acho que você não vai
poder ajudar sua mãe dessa vez...
— Do que está falando, Edu?
— Você é adotada!
Disse de uma vez. Não adiantaria ficar esticando conversa. A
expressão de surpresa, susto ou algo do gênero, no rosto de
Belinha, era considerada assustadora.
— Desculpe...
Não podia prever o que ela faria. Talvez chorasse, talvez
entrasse em depressão, talvez desse as costas e fosse embora.
— Mesmo? Uau... Bem, então acho que terei que aprender a
viver com essa verdade.
E como uma excelente atriz de Hollywood, agiu de uma forma
nada esperada: não fez cena. Incorporou um personagem alegre e
de bem com a vida. Sorrindo, agradeceu pela informação. Em
seguida, foi embora tranquila.
Eu, no entanto, fiquei preocupado.

***

O julgamento do meu pai foi bastante agitado. De um lado, um


escrivão, anotando tudo o que era anunciado naquele tribunal; do
outro, o júri, disposto a ouvir atentamente cada palavra que fosse
dita, tanto por parte da defesa como da acusação; do outro, meu pai
com seu advogado, sem muitos argumentos para sua proteção.
Nada de juiz ou juíza. A mesa estava vazia. Todos ao aguardo
da autoridade. Enfim, cruzou a porta. Dirigindo-se à sua mesa, a
criatura malvestida e esquisita, fazia uma grande revelação:
— Muitos podem me conhecer atualmente como Emília, mas
meu verdadeiro nome é Amélia Cavalcante Fischer. É, Ricardo,
parece que sua esposa está realmente viva.
A plateia fez-se de estátua; o júri estava desorientado; meu pai
estava confuso; o escrivão, contudo, apenas anotava.
Sonhar com algo assim não é bem um sonho. Está mais para
pesadelo. Dos mais assustadores. E foi acordando que verifiquei a
hora no celular: 23h30. Vi que aquela seria uma noite longa.

***

Diante do espelho, lavava o rosto. Diante do espelho, escovava


os dentes. Diante do espelho, fazia o que era possível para tirar a
rebeldia do cabelo. Diante do espelho, percebi que aquele dia que
mal começara seria um dia difícil.
E já começou com a campainha tocando. Ainda com a cara
inchada de sono, abri a porta: era Letícia. Era seu último dia com
atestado médico e queria iniciá-lo bem cedo. Eu, entretanto, não
estava preparado para isso.
— Então, Edu, onde está o Tobby?
Como dizer à pessoa pela qual se está apaixonado que perdeu
seu gato? Tentei desviar o assunto:
— Você ficou sabendo da mãe de Belinha?
Os assuntos foram chegando ao fim e eu ainda não tinha
pensado numa maneira de dizer que seu querido animalzinho de
estimação havia fugido. Vendo que não teria escapatória resolvi
encarar os fatos.
— Letícia... O Tobby...
“Miau”, ouviu-se da cozinha. Olhei para o lado e vi o danado
passeando pela casa.
— ... está bem aqui!

***

A justiça geralmente não é tão rápida. Por algum motivo que


desconheço, nesse caso do meu pai ela se tornou superagilizada.
Logo um dia após sua detenção, meu pai já receberia o veredicto,
que poderia acusá-lo ou livrá-lo da prisão.
No julgamento real, havia poucas pessoas assistindo — na
verdade, eu estava entre a meia dúzia —, o escrivão era canhoto, o
júri reclamava demais e o juiz não era uma versão louca da minha
mãe. Isso sim parecia coisa séria.
O advogado que meu pai contratara para defendê-lo poderia
ser considerado o melhor da região, porquanto não houvesse
perdido um só caso. Era excelente para apresentar argumentos e
deixar a promotora sem graça. Era óbvio que com um defensor tão
bom quanto aquele jovem doutorzinho, meu pai seria inocentado.
Após um recesso de quinze minutos...
— O júri chegou a uma decisão.
E após uma pausa, soltaram a língua:
— Ricardo Fischer é culpado por tráfico de animais.
E o juiz concluiu:
— Sentencio este senhor a seis meses em regime fechado e
multa de dois mil em moeda corrente.
Graça teve a mesma pena.

***

O único lugar que me faz sentir bem em momentos difíceis é o


clube. Foi pensando nisso que marquei presença em mais uma aula
de natação. Uma aula que seria bastante diferente — e era
impossível presumir isso.
— Bom dia, pessoal, vocês já devem me conhecer: sou o
presidente do clube e quero comunicar que, por alguns dias, uma
semana talvez, teremos que suspender as aulas de natação, até que
encontremos um novo instrutor.
E se virando, o elegante homem saiu, sem uma clara explicação
sobre o que estava acontecendo. Como assim, novo instrutor? O que
havia acontecido com Cris? E foi nessa indignação que resolvi segui-
lo até sua sala.
— Desculpe, senhor, mas e a Cris? O que houve com ela?
— Qual é o seu nome, rapaz?
— Eduardo.
— Ah, então você é o tão famoso Edu? Você é bem popular
aqui, sabia? Bem, mas você perguntou da Cris, não é mesmo? Seja
sincero, você confia nela?
Era uma pergunta muito doida, sem sentido, pelo menos para
mim.
— Confio. Por que não confiaria?
— Há uma semana, houve um arrombamento no cofre, onde
fica guardado todo o dinheiro das vendas de títulos. Então, do nada,
a Cris aparece por aqui de carro novo, como se estivesse divulgando
sua nova fortuna.
— Ela não poderia ter comprado o carro com o próprio
dinheiro? Muitas vezes, pessoas trabalhadoras fazem isso.
— Pagar à vista um carro zero com todos aqueles acessórios
modernos, recebendo o salário que ela recebia? Acho pouco
provável. Então, o conselho do clube entrou em comum acordo e
encerramos sua conta.
Cris extorquindo dinheiro? Era realmente uma ideia absurda.
Ela jamais seria capaz de cometer tal crime. E, também, como eles
puderam demiti-la sem provas? E por que ela não levou o caso à
justiça? Infelizmente, para essa última questão, só havia uma única
resposta: decerto ela tinha alguma coisa a ver com o ocorrido.
— A propósito, Edu... Posso te chamar assim, certo?
Balancei a cabeça para cima e para baixo.
— Fiquei sabendo que algum tempo atrás estava interessado
em dar aulas aqui. Aí está uma ótima oportunidade. Não temos
ninguém em vista. Se desejar, entre em contato comigo em até
quarenta e oito horas e você fica sendo o instrutor das turmas
novas.

***

Assim que cheguei em casa, não pude acreditar: tia Cecília e


Lurdinha haviam voltado.
— Ah, esse meu sobrinho predileto deve estar precisando de
tanto carinho. Vem chorar suas lágrimas com sua titia querida,
vem...
Não sabia o que tinha feito para merecer aquilo.

***

A quarta-feira chegava. Depois de tanto tempo faltando às


aulas — cada dia por um motivo diferente —, pensei que tudo
pudesse estar de pernas para o ar na minha volta. Isso meio que foi
um pensamento bobo, afinal, com ou sem minha presença, aquele
colégio vive de pernas para o ar.
Assim que cruzei o portão, pude ver Letícia conversando com
Tobby — sim, ela havia levado o gato à escola, já que não poderia
deixá-lo com sua mãe.
Sorrateiramente, fui sentar-me ao lado deles. Conforme fui
chegando perto, pude ouvir, ligeiramente, o que ela falava. Quando
notou minha presença, ela silenciou e, em seguida, me
cumprimentou. Todavia, eu já havia escutado o mais importante:
— Tobby, sei que parece estranho, mas, de uma forma que eu
não sei como explicar, acho que estou gostando do Eduardo. Ele é
demais!

***

História sempre foi um martírio para mim. Acho que nem


mesmo os destemidos imperadores, se tivessem que aprender sobre
suas vidas e a forma como governavam, iriam gostar.
Talvez fosse por achar que seus alunos pensassem assim que a
endiabrada professora Renata inventou de passar um trabalho de
casa um pouco diferente: pesquisar sobre os gostos e interesses da
mãe, do pai ou de algum outro conhecido.
De início, todo mundo estranhou. O que o prato de comida
predileto do meu tio, por exemplo, tem a ver com História? Logo
veio a explicação de que História não é só um emaranhado de datas
e fatos, mas também o que se vive no cotidiano. Pela primeira vez, a
matéria se tornou interessante para mim.
Ao meu lado, Letícia segurava Tobby no colo — ainda não
entendi como deixaram o gato entrar na sala de aula —, mas foi
Belinha que chamou minha atenção. Ela estava completamente
sorridente.
Quem a visse naquele momento, com certeza diria que ela era
a garota mais feliz do mundo. Eu, como amigo há muito tempo,
pude perceber que não era bem assim. Embora seu exterior
mostrasse felicidade, seu olhar demonstrava uma profunda tristeza,
uma melancolia que estava sendo reprimida.
— Belinha, você está um pouco diferente hoje...
— Diferente? Eu? Não, Edu... Sou a mesma! Inclusive, aprendi
ótimas piadas novas...
A professora, exigindo silêncio, não deixou que Isabela
compartilhasse seu humor, que, não entendo como, era bom.

***

Após a aula, fui fazer uma visita a meu pai. Quando entrei no
gélido corredor da penitenciária, até senti um arrepio, uma sensação
ruim. Ao notar quem era a faxineira, a ruindade duplicou. A tal da
Emília estava em todo lugar. Não sei como ela consegue... É
impossível!
— Pai, você, por acaso, conhece essa faxineira? — perguntei.
Abaixando a voz, meu pai me contou aos sussurros:
— Essa mulher é uma doida. Há uns dezesseis anos, mais ou
menos, ela era apaixonada por mim. Quando eu a ignorei e tomei a
decisão de ficar com sua mãe, ela começou a imitá-la em tudo.
Inclusive trocou de nome. Depois de um tempo, ela simplesmente
sumiu da minha vida. Fiquei sabendo que estava num hospital
psiquiátrico. De uns dias para cá, no entanto, notei que ela está de
volta. A única coisa que posso fazer é fingir que não a conheço.
Aquilo me deixou aliviado, pois acabou de vez com a dúvida de
que ela talvez pudesse ser minha mãe, que sobrevivera ao acidente.
— Ontem, enquanto estava vindo para cá, ouvi no rádio uma
notícia de que talvez a mamãe estivesse viva.
— Eles querem especular a vida de todo mundo... É correto
afirmar que o túmulo no cemitério é apenas simbólico e que até hoje
não encontraram o helicóptero em que ela estava. Ele deve estar lá
pelo fundo do mar, como o Titanic, mas não teria forma de...
Impossível. Sinto muito.
Não sei por que, mas “Titanic” me lembrou uma coisa...
— Peraí, Edu! Você disse que veio ouvindo rádio? Como isso?
— Ah, a Cris me ofereceu uma carona para cá, em seu carro
novo.
— Que mulher mais hipócrita!
Um ponto de interrogação havia se formado em minha cabeça.
Não havia motivos aparentes para ele chamar Cris de falsa. Foi aí
que ele revelou.
— Aposto que ela fez cara de santinha, de quem não sabia de
nada, não é verdade? Ela era minha maior cliente! Sempre
comprando casacos novos e sempre adiando o pagamento. Semana
passada, finalmente ela me deu um cheque para liquidar a dívida
caríssima. Após um tempo, a polícia estava à minha espera. Com
certeza, foi ela quem acionou as viaturas.
— Quer dizer que ela sabia o tempo todo...
— Na verdade, ela não sabia que eu era seu pai. Por isso, eu
tentava não estar por perto, quando ela estava próxima de você.
Talvez quando ela descobriu, possa ter se arrependido ou...
— Acho pouco provável — interrompi, vendo que havia posto a
mão no fogo pela pessoa errada.

***

O advogado de meu pai chegou bem naquela hora. Com muito


entusiasmo disse que tiraria meu pai dali num passe de mágica. Era
só o juiz autorizar um habeas corpus e ele cumpriria a pena em
domicílio.

***

Mudando de assunto, comentei o verdadeiro motivo pelo qual


estava lá: o trabalho de História. Eu o havia escolhido para minha
“entrevista”.
— Cantor preferido?
— Hum... essa é difícil...
— Escritor?
— Não sou muito de ler...
— Filme?
— Quer saber, por que você não faz um trabalho baseado na
sua mãe? Ela, sim, tinha personalidade, sabia do que gostava. E
todos também sabiam, afinal, ela só sabia falar de seus ídolos.
— Tudo bem... Qual era o cantor preferido dela, por exemplo?
— Cantora! Ela considerava demais as mulheres. Elis Regina era
sua favorita. Ouvia suas músicas desde quando acordava até a hora
de dormir.
— Escritor? Ou melhor... Escritora?
— Com certeza, Clarice Lispector. Você sabe que ela tinha uma
coleção completa dos romances e coletâneas de contos. Fica lá na
estante da sala!
Foi aí que percebi que não tinha apenas as respostas para meu
trabalho. Tinha a resposta para tudo o que Nina estava querendo me
dizer. Só para encerrar, perguntei:
— Filme?
— Cidade dos Anjos.
É... Titanic era mesmo uma comparação ao acidente de
helicóptero.

***

Juntar pistas e encontrar uma solução não é tão fácil quanto


resolver um problema de matemática. Precisava descobrir o que
Nina queria dizer em relação à minha mãe. E foi não encontrando
resposta alguma e decidindo desistir, que a nuvem negra realmente
se desmantelou.
— Mãe? — perguntei, olhando para o céu.
— Demorou, mas, enfim descobriu...
— Você é a Nina? A Nina é você?
— Não é bem assim... As estrelas são como lares para os
espíritos. Eu habito nesta!
— Então, por que não me disse antes?
— Não tinha autorização para contar. Você tinha que descobrir
por si próprio.
— Isso quer dizer que todo esse tempo era você que realizava
meus desejos e ouvia minhas histórias?
— Quanto às histórias, sim, era eu. Já os desejos, isso é coisa
da estrela.
Estava encantado. Aquela era uma revelação e tanto. Eu teria
que contar a alguém. Lurdinha, então, entrou no quarto, informando
que a janta estava pronta.
— Lurdinha, sei que pode parecer muito estranho, mas...
E contei tudo, desde o início: como havia conhecido Nina, dos
desejos que ela realizou, das frases que ouvia... Como resposta,
obtive:
— Ah, Edu. Não somos mais crianças. Chega de inventar
histórias...
— Lurdinha? Como você está bonita!
— Ah, obrigado, estrela... Estrela?
— E agora — disse me gabando um pouco —, você acredita em
mim?
— Que maluco! Temos que chamar os repórteres, os jornalistas,
a imprensa em geral. Ficaremos ricos com essa descoberta!
— Lurdinha, não! Não vê que isso é uma coisa mágica, que não
pode ser revelada? Que tal se isso ficasse em segredo, se só nós
dois soubéssemos?
— Edu, por que não aproveita e conta seus outros segredos?
Juro que senti vontade de “matar” minha mãe... Mas não tinha
como!
— E, então, Edu, o que mais quer me contar? O jantar pode
esperar. Odeio comida quente...

***

Falei toda a verdade sobre Letícia — agora além de Nina e


minha mãe, Lurdinha também sabia. E ouvi de minha prima:
— Você não está apaixonado por ela.
— Como?
— Você deixou de se divertir na Argentina por ela; você sonha
com ela todas as noites; você passou a madrugada toda ao lado
dela no hospital e sei que passaria ainda mais tempo se precisasse;
você ignorou uma garota que lhe deu a maior bola; você não ficou
triste quando ela se irritou com você, pois você jamais ficará com
raiva dela por pior que seja o que ela faça. O que você está sentindo
por ela é mais do que paixão...
É claro que nesse momento, a voz de tia Cecília — que, da
cozinha, gritava com a boca cheia “A comida está uma delícia!” —
interrompeu nossa conversa. Mas, Lurdinha logo prosseguiu:
— Parabéns, Eduardo, você descobriu o amor!
— E o que você supõe que eu faça?
— Conte a ela. Pelo visto, ela também deve estar gostando de
você. Ou melhor... — disse pegando um caderno e uma caneta —
escreva! Uma carta sempre foi e sempre vai ser a demonstração de
amor mais romântica.
E levantando-se, foi à janela.
— E só para reforçar... Nina, eu desejo que Letícia e Eduardo
fiquem juntos por um bom tempo...

***

Desabafar tudo o que se sente numa simples carta não é tão


fácil quanto parece. A gente muitas vezes não encontra a palavra
certa, por mais que tente. Muitos rascunhos são jogados fora,
muitas frases são riscadas depois de escritas.
Demorei cerca de cinco horas para escrever a tal carta. Pode
parecer absurdo, mas de uma coisa eu tenho certeza: aquela era a
carta mais perfeita que eu já havia escrito, e talvez a que eu
escreveria, em toda minha vida.
Então a guardei na mochila, antes que eu acabasse
esquecendo-a sobre a mesinha do computador.

***

Contei os segundos para o final da aula no dia seguinte. Não


precisaria me declarar oralmente, mesmo assim, estava muito
nervoso. As mãos suavam intensamente, o coração parecia que ia
saltar pela boca. E tudo porque era uma simples carta.
Assim que o sinal soou, indicando o término de mais uma
semana letiva e pedindo para que nos divertíssemos no feriado
prolongado que começava na sexta-feira, corri em direção a Letícia.
— Letícia, espere um pouco. Preciso falar uma coisa...
Com a mão esquerda, abri vagarosamente o zíper da mochila e
coloquei a mão na carta, segurando-a, enquanto a doida da Ana,
que agora estava mais enturmada do que nunca, chegou com o
celular de Letícia na mão.
— Lê, amiga, é o Dudu...
Tomando o telefone das mãos da amiga, falou com o aparelho
colado ao ouvido:
— Oi, amor... Ai, que fofo... Não, eu que te amo... Um beijo
para você também.
E desligando o celular, virou-se para mim:
— E então, Edu, o que você queria me dizer?
Com a voz trêmula e taciturna, respondi:
— Que é ótimo ter você como amiga.
E, abrindo as mãos para soltar a carta, segui sem rumo. Não
sabia se visitaria meu pai na penitenciária; se faria uma visita à dona
Ofrásia no hospital; se ofereceria meu ombro para Belinha desafogar
seus sentimentos reprimidos; se aceitaria ocupar o lugar daquela
que foi uma falsa amiga; ou se voltaria à minha casa, onde com
certeza passaria o resto do dia abraçado ao travesseiro. Optei pela
última.
SOBRE O AUTOR

Nascido em 25 de julho de 1992, João Paulo Hergesel é um escritor


brasileiro que transita entre Alumínio e Campinas, no interior do
Estado de São Paulo. É professor do Programa de Pós-Graduação em
Linguagens, Mídia e Arte da Pontifícia Universidade Católica de
Campinas (PUC-Campinas). É doutor em Comunicação (UAM), com
pós-doutorado em Comunicação e Cultura (Uniso). Dedica-se à
produção literária, especialmente na literatura infantojuvenil, e à
pesquisa sobre narrativas, com foco no estudo do estilo. Autor de
livros com temáticas diversas e com participações em várias
antologias, obteve dezenas de prêmios literários – entre eles:
Histórico de Realização em Literatura (Secretaria de Cultura e
Economia Criativa de São Paulo), Barco a Vapor (Fundação SM),
Monteiro Lobato (SESC-DF) e Ganymédes José (UBE-RJ). Contato:
jp_hergesel@hotmail.com.
Versão e-book Kindle confeccionada em julho de 2023, pela
Ferramenta KDP, exclusivamente para venda e distribuição na
Amazon.

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