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Quem Disse Que Não Te Entendo
Quem Disse Que Não Te Entendo
uma história de
João Paulo Hergesel
A primeira versão desta história foi publicada no livro “Quem disse que não te
entendo?” (ed. Patuá & Telucazu, 2018).
SUMÁRIO
SOBRE O AUTOR
01. Simplesmente...
aconteceu!
O jornalismo sempre foi a verdadeira paixão de minha mãe:
quando tinha apenas cinco anos, já brincava de apresentar o
telejornal da noite ao lado de seu melhor amigo, o urso de pelúcia.
Não se contentava com o faz de conta; insistia para meus avós
ficarem sentados no velho, mas macio, sofá de courino, assistindo às
reportagens feitas ao vivo e em cores, com uma imagem muito
melhor que a da pobre televisão em preto e branco.
Cansada de entrevistar somente as bonecas e de ter suas
matérias assistidas apenas pelos pais, ela resolveu conversar com
sua professora do pré-escolar, a fim de criarem um zine semanal no
colégio. A ideia causou risos na mulher: “Onde já se viu uma
pequerrucha de cinco anos falar em ser redatora de um boletim
informativo?” Ela mal havia aprendido a ler e a escrever... E não
adiantou pedir, implorar, choramingar, explicar que ela só faria os
desenhos; a tia não levava nada a sério.
Muito chateada e aborrecida, voltou para casa e correu para o
seu quarto, onde passou a tarde toda trancada. Ninguém sabia, ao
certo, o que Amelinha estava fazendo, mas temiam que coisa boa
não pudesse ser. Ao pôr do sol, perceberam que estavam
equivocados; a garota, com uma folha de caderno e um lápis de
ponta grossa, escreveu um pequeno relato, em letras de forma e
praticamente ilegíveis, desabafando o que sentia pelos professores
que não acreditavam na capacidade de seus alunos.
Assim que minha avó decifrou os hieróglifos infantis, não pôde
acreditar que sua menininha era provida de tamanho talento. No dia
seguinte, levou o papel para que a professora lesse e desse a sua
opinião sobre o texto. De queixo caído, a educadora admitiu que
dessa vez foi ela quem aprendeu uma lição e, para reconhecer o
erro, além de criar o Jornalzinho da Criança, fez com que o texto da
minha mãe fosse publicado na primeira página do dominical da
cidade. A partir dessa sua primeira matéria, não se teve mais
dúvidas: a vocação dela era realmente voltada à imprensa.
Esforçando-se como aluna e tirando excelentes notas, entrou
com facilidade numa universidade quando tinha apenas 15 anos.
Apresentando ótimo desempenho durante os semestres, ganhou
placas de mérito por três anos consecutivos, o que provocou um
grande interesse da gazeta da cidade pela jovem.
Foi contratada por seis meses pelo jornal, no entanto, só
trabalhou lá por três; o diretor de uma emissora de televisão leu
várias de suas matérias e lhe fez uma proposta irrecusável. Disposta
a largar a família e os amigos de infância, ela foi à cidade grande
para trabalhar como repórter de rua. Logo a promoveram a
noticiadora sênior.
Começou a viajar o país e o mundo, a fim de levar a informação
para dentro da casa daqueles que desejassem estar ligados nas
notícias. Em uma dessas viagens, esbarrou com Ricardo, esperto e
atraente contador. Conversa vai, conversa vem, e eles já estavam
dividindo o mesmo teto, num município vizinho da grande
metrópole.
O romance entre o casal não fez com que minha mãe
abandonasse a profissão. Ao invés disso, com o sonho de constituir
uma família, ela se empenhou cada vez mais em suas matérias
jornalísticas, o que a fez crescer na mídia e explodir em demasiado
sucesso. Para compensar o prestígio, recebeu um convite para
gravar uma matéria no exterior: uma série especial sobre o Polo Sul
– o qual não hesitou em aceitar.
E lá foi ela, ao lugar mais gelado do planeta Terra. Para ela, era
uma diversão: amava tempo frio. Dentre milhares de focas e
icebergs, ela registrou muitas matérias e, inclusive, descobriu um
suposto arsenal de armas nucleares mantido pelos Estados Unidos
naquela região. A série foi um tremendo sucesso e resultou em
altíssimos índices de audiência.
Muito tempo se passou depois dessa sua aventura. Três anos
atrás, já casada e com um filho pré-adolescente para terminar de
criar, tentava conciliar trabalho e família. Naquele ano, completava
exatamente quinze que a série Expedição Antártica havia ido ao ar;
portanto, mamãe recebeu outro convite da emissora: voltar ao
continente de gelo, relatar as mudanças ocorridas e em que o
aquecimento global havia contribuído para essas alterações.
Titubeou em aceitar, mas ouviu o marido que lhe disse valer a
pena. No dia em que partiu, ela deu um beijo demorado em meu pai
e um forte abraço em mim, sussurrando em meu ouvido que estaria
de volta antes que eu conseguisse pronunciar “eu tagarelaria, tu
tagarelarias” sem tropeçar na língua. Do terraço do prédio da
emissora, meu pai e eu vimos a minha mãe entrar no helicóptero e,
junto do cinegrafista e do piloto, decolar.
Ela, com um sorriso de compaixão, derramava uma lágrima.
Tanto meu pai como eu também deixamos rolar pelo rosto uma
pequena gota salgada. Um aperto no coração me incomodava, mas
naquele momento eu só pensava em conseguir conjugar o verbo
tagarelar, na esperança de que a pessoa que eu mais amava
voltasse.
Após pararmos numa sorveteria para devorar um sundae, meu
pai e eu voltamos para casa. Liguei a televisão rapidamente, pois
estava passando meu desenho animado favorito. De folga, meu pai
o assistia junto comigo e ria feito uma criança — até mais do que eu
— das palhaçadas que o gato e o rato faziam.
De repente, aquela musiqueta chata, anunciando a chegada de
uma notícia fresquinha, começou a tocar, seguido do anúncio:
“Plantão!”. Para mim, plantão era uma planta grande, como um
eucalipto ou uma palmeira. Que ilusão! Uma jornalista, amiga de
minha mãe — eu a conhecia — estava com os olhos mareados,
lacrimejando e segurando um microfone com o enunciado “urgente”
abaixo do logotipo da emissora. Com a voz trêmula, anunciava:
— Um helicóptero com a equipe de reportagem da emissora
sofreu uma pane...
O tão equilibrado senhor Ricardo, conhecido por mim apenas
como pai, deu um forte grito de desespero e, desabando no choro,
começou a bater na parede, como se os tijolos fossem culpados.
Embora eu tivesse 11 anos, idade suficiente para entender o que
acontecia, não conseguia, ou não queria, compreender o que havia
ocorrido. Só fui entender quando meu pai me disse para esquecer o
trava-língua.
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Detrás de uma mesa cheia de recibos e uma enorme máquina
calculadora, levantava-se uma mulher meio estranha: meio loira,
meio morena; meio gorda, meio magra; meio alta, meio baixa; de
óculos fundo de garrafa; paletó com bermuda; meias coloridas, até o
joelho; sandália rasteirinha. É complicado descrevê-la. A propósito,
só soube que era mulher porque, assim que entramos, ela se dirigiu
até mim, me olhou da cabeça aos pés, ajustou os óculos, e se
apresentou.
— Acho que ainda não nos conhecemos. Sou Emília, e tu...?
Meus olhos não acreditavam no que estavam vendo. Aquela
mulher era muito mais exótica do que certas personagens de
novelas mexicanas.
— E tu? — insistia a mulher, braba.
— Sou Eduardo — poderia ter parado por aí, mas quis ser
simpático —, mas, se desejar, pode me chamar de Edu.
Mal consegui pronunciar o u do Edu, pois ela me cortara.
— Eduardo, o que te trazes aqui?
Tu, te, trazes: tudo relacionado à segunda pessoa do singular.
Comum em Portugal, mas o sotaque era de brasileira!
— Sou aluno da Cris... quero dizer, era até hoje. Estou sendo
obrigado a parar com o curso...
— Sinto muito, não podemos te deixar fazer aula de graça.
Não parecia disposta a continuar me escutando, pois voltou
para sua mesa e sentou-se, calculando recibos em sua máquina
jurássica.
— Não é isso que quero — disse, já ficando um pouco sem
graça. — Vim falar com a senhora porque queria saber se há alguma
vaga disponível de professor de natação. Isso me faria poder
continuar tendo aulas.
Ajustou os óculos mais uma vez, me olhou de alto a baixo e
respondeu:
— Estamos organizando uma nova turma infantil e, de fato,
precisamos de um novo instrutor, mas tu não te encaixas ao cargo: é
muito novo.
Naquele momento, senti estar vivendo uma espécie de
preconceito: o preconceito etário. Ela não analisou minhas
qualidades, apenas se fixou na idade. E, como se não bastasse,
concluiu grosseiramente:
— Aliás, se estás tão preparado assim, por que queres
continuar tendo aulas?
Queria responder-lhe como deveria, mas não sabia que
palavras usar, por isso fiquei quieto. Dispensando-me, disse que
tinha muito trabalho e que precisava, ainda naquele dia, encontrar
um instrutor que estivesse à altura.
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Não demorou muito até que ouvíssemos a voz da professora de
português chamando os alunos pelo microfone para que se
sentassem em frente ao palco e começassem a ouvir... e também a
cantar.
As primeiras a cantar foram as baladeiras. Escolheram uma
música bem “paulera”. Impressionantemente, a voz delas era muito
boa. Foram muito aplaudidas, por uns até de pé. Já eu, não via a
hora de tudo aquilo acabar.
Muitos cantaram, inclusive Belinha e Claudinho, que estava se
apresentando no momento em que eu olhava Letícia, linda, sozinha,
curtindo as apresentações. Comecei a estralar os dedos e a roer as
unhas, torcendo para conseguir coragem para ir até ela e expressar
o que sentia.
Soltei a mão da boca e, com o coração acelerando, respirei
fundo. Com as pernas tremendo mais do que vara verde e vontade
de chorar de tão nervoso, fui vagarosamente até ela. Assim que me
aproximei, sentei ao seu lado. Ela nem percebeu que eu estava ali.
Esfregando e espremendo as mãos, a chamei de Lê. Ela olhou
para mim. Com os olhos quase lacrimejando e com o coração
saltando pela garganta, comecei a falar como me sentia.
Desabafei tudo o que estava em meu peito. Falei que me sentia
nas nuvens quando via os cabelos louros balançando com o vento,
os olhos brilhantes e reluzentes, o sorriso marcante e cativante e,
continuei falando, que esse sentimento ficava ainda mais forte
quando escutava o gracioso som de sua voz.
Não precisei mais enrolar, porque minha boca disse
automaticamente as palavras: “quer namorar comigo?”
Ainda com as mãos e pernas trêmulas, aguardava uma
resposta. Ouvi, então, a voz de Belinha.
— Esse suor todo é porque você será o próximo a cantar?
Então, caí na realidade; estava sonhando acordado, como vivo
fazendo — mesmo sem perceber, meu olhar desvia para o nada e
histórias que eu gostaria que acontecessem brotam na mente. Vi,
porém, que, se nem dentro da minha imaginação conseguia ouvir
um “sim” de Letícia, de que me adiantava pedir no mundo real?
Peraí! Ela disse que eu seria o próximo a cantar?!
Assim que Claudinho terminou a música e desceu do palco,
Belinha me empurrava, dizendo que já até tinha escolhido a música
que eu cantaria. Para ajudar, ela optou por um estilo mais calminho:
o romântico. A letra falava sobre desilusão.
Subi no palco. Congelei. Segurava o microfone com tanta força,
que parecia que eu ia quebrá-lo. Com os olhos arregalados,
observava quase cem pessoas me fitando da cabeça aos pés. Nem
respirar eu conseguia.
A música começou a tocar. Nem um simples sussurro saía de
minha boca. Finalmente, com o apoio dos colegas, consegui
pronunciar o primeiro verso. Fui relaxando, até que resolvi ignorar a
plateia e soltar a voz. A cada estrofe que cantava, olhava para
Letícia.
Na primeira estrofe, ela me assistia, sorrindo. Na segunda
estrofe, uma surpresa: Claudinho se aproximara dela. Na terceira,
ela deixou de me olhar e começou a rir com ele. No refrão, a
punhalada: eles se beijaram.
Ao ver a cena, uma única lágrima amarga rolou pelo meu rosto.
Fui aplaudido de pé por ter posto emoção na música.
Tentei acordar, mas dessa vez não era sonho.
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Após a torturante aula, fui para o clube, mas não para fazer
aula de natação. Fui para me despedir — dessa vez, despedida final
— de Cris e dos outros alunos. Cris ainda não havia chegado.
Esperei um pouco e ela logo surgiu de dentro do vestiário.
Dando um último adeus, segui em direção ao portão, mas
parei. Dei meia-volta e regressei às piscinas. Fiquei à beira da
olímpica para que, mesmo sem entrar, eu pudesse assistir à aula,
pois era a coisa que eu mais gostava — e que ainda gosto.
Cris notou minha presença, mas fingiu que não me viu. Uma
hora depois, ela havia terminado a aula. Eu já havia passado muito
tempo lá, ainda mais para quem não tem permissão, por isso resolvi
ir para casa, mas, antes que eu pudesse dar três passos, senti uma
mão molhada sobre meu ombro.
— Edu... Ai, desculpe, molhei você?
— Não seria uma aula de natação se não tivesse água, não é
mesmo? — brinquei com Cris.
Dando uma risadinha, continuou seu pensamento:
— Hoje você realmente me mostrou que é apaixonado pela
natação. O clube vai promover no próximo mês um campeonato de
natação. É só para membros, mas, se você quiser participar, nós
damos um jeitinho. A propósito, se ganhar, o prêmio é o suficiente
para pagar um ano inteiro de curso.
Cris tinha somente ótimas ideias — talvez por isso ela fosse a
única pessoa a quem procuro escutar com atenção. Ela pediu para
que eu aguardasse, enquanto corria até a secretaria para pegar a
ficha de inscrição.
Sentado sob a sombra de um guarda-sol, próximo à piscina,
pude observar um ser de pulôver com saia de renda, salto-agulha
com chapéu de palha e luvas de boxe com um cinturão de ouro. Não
podia ser outra pessoa senão Emília, a gerente.
Tudo estava em plena paz até ela resolver passar do outro lado
da piscina. Olhando para mim, conseguiu me reconhecer:
— Ei, tu! Não és mais sócio! Não podes ficar aqui! Vou te pegar,
miúdo safado!
O que eu fiz? Corri em direção contrária. Ela veio pela
esquerda, eu fui pela direita. Quando dei por mim, estávamos ela e
eu, como gato e rato, correndo pela borda da piscina. Parei quando
escutei o tchibum. O salto-agulha fez com que a criatura torcesse o
pé, o que resultou numa perda de equilíbrio e, consequentemente,
numa queda dentro da água.
Debatendo-se, como se não soubesse nadar — definitivamente
ela não sabia —, começou a gritar:
— ACUUUUUDA!
Essas palavras me levaram ao passado.
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Os minutos do intervalo foram incríveis: passei junto com
Letícia e mais ninguém. Éramos somente nós dois. A alegria era
tanta que eu não tinha fome, o estômago não se sentia vazio. Ela,
sendo uma modelo em busca do corpo perfeito, também não
costumava comer nada na escola — tanto a merenda como os
alimentos vendidos na cantina eram calóricos demais.
Enquanto ela passava uma espécie de creme nas mãos e no
rosto, comentou que, sábado à noite, teria um importante desfile no
shopping, no qual ela seria manequim da nova coleção de outono-
inverno. Convidou-me para assistir. Não pensei duas vezes e aceitei
na hora. Falei que seria uma honra acompanhar minha melhor
amiga. E obtive como resposta:
— Você é tão carinhoso. É de um namorado assim que eu
preciso: inteligente, bonito, amável... Raro nos dias de hoje.
Será que aquilo foi um tipo de cantada? O que eu deveria
responder? Antes que eu pudesse pensar em alguma coisa, ela
disse:
— Aquele garoto novo... Não acha que deveríamos chamá-lo
para se sentar com a gente? Afinal, ele precisa de novos amigos e,
se for um Eduardo tão legal como você, vale a pena formar um elo
de amizade.
Suspirei e respondi:
— Nem todos os Eduardos são iguais... Já não está bom ser
amiga de um?
Ela abriu um sorriso e, dizendo que eu era um bobo por estar
com ciúmes, me deu um tapinha no ombro. Sem motivo válido,
caímos na risada, que foi interrompida pelo sinal anunciando que já
era hora de voltarmos para a sala de aula e aprender um pouco mais
sobre textos descritivos. Se eu quisesse descrever aquele momento,
com certeza seria como num poema:
Ela, eu e o som da chuva,
Chuva mágica e cristalina
E, nos olhos da linda menina,
Via a alegria brotar:
Não como uma flor,
Mas com um ar de amor,
Amor maior que inundava meu coração.
Com isso, ficou completamente descartada a hipótese de eu
virar poeta. Mas quem pensaria em ser escritor num momento como
aquele?
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Em casa ficamos meu pai, Letícia e eu. E meu pai era o único
que não precisava trabalhar. Peguei meu caderno de História para
ver as anotações necessárias para fazer o trabalho que, dessa vez,
era um pouco mais complicado: tínhamos que fazer uma maquete
com sucata, em parceria com a disciplina de Arte.
Peguei algum material que tinha em casa, como jornais, miolo
de papel higiênico, latas de cerveja, bolinhas de isopor, garrafas pet,
etc. Porém, aquilo não fazia sentido. Nada se encaixava e, quando A
se dava bem com B, vinha o C e derrubava tudo, fazendo com que o
D não tivesse nem mesmo a oportunidade de participar.
Sentado na poltrona da sala, meu pai, talvez por ser meu pai,
podia perceber que eu estava perdidamente apaixonado por Letícia.
Também podia perceber que eu não era capaz nem de pegar na mão
da garota. Por isso resolveu interferir, dizendo que ajudaria no
trabalho.
— O objetivo de vocês é fazer uma obra de arte. A Arte não
pode ser aprendida nem feita, ela deve ser sentida. Concentre-se em
seus sentimentos. Pensem naquilo que vocês amam, que deixam
vocês felizes, que lhes agradam, que lhes proporcionam prazer.
Então, vocês conseguirão ver algo além de lixo nessa sucata toda;
vocês verão Arte.
Foi só meu pai concluir o pensamento que o celular de Letícia
tocou. Era sua mãe, falando que precisava dela em sua casa, pois
não sabia o que fazer com o agente de modelos que havia aparecido
por lá sem avisar.
Letícia pediu para que terminássemos, ou melhor,
começássemos o trabalho outro dia, pois precisava ir embora. Não
foi fácil me despedir dela, mas, só pelo fato de saber que eu
passaria mais uma tarde inteira junto a ela, fiquei contente.
***
Sem ela para fazer o trabalho, tinha ficado sem atividade para
fazer naquela tarde chuvosa. Meu pai, então, sugeriu que fosse ler.
Segundo ele, tinha em sua cômoda uma coleção completa de livros
que minha mãe adorava ler e, se eu quisesse, poderia pegar. A tarde
foi em companhia de Clarice Lispector.
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Nos bastidores, encontrei Letícia chorando, sem preocupação
com a maquiagem borrada.
— Muito obrigada, Edu.
— Pelo casaco? Imagina...
— Não. Obrigada por me ter feito perder. Se você não tivesse
tido a genial ideia de trazer sua professorinha para cá, talvez eu
tivesse alguma chance de ganhar o concurso.
Cris, naquele momento, estava atrás da porta.
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Voltando para casa, os três batiam queixo, praticamente
congelando de frio, disputando para saber quem seria o primeiro a
entrar debaixo de uma ducha quente. No maior corre-corre, os três
acabaram entrando no banheiro juntos. Sabe-se lá o que aconteceu
lá dentro.
Enquanto isso, dona Ofrásia preparava as torradas para o café
da manhã e tia Lola, tomando sua xícara de café bem quente, ria e
dizia que aquilo era para eles aprenderem a não passar dos limites.
— Bem, pelo menos isso foi bom para mostrar que o chá de
cozinha não foi um verdadeiro desastre — disse Belinha, que
acordara pouco tempo atrás, com as risadas da tia Lola.
Tanto sua mãe como minha tia levaram o dedo à boca, como se
pedissem para ela não contar nada do que acontecera naquela casa
um dia atrás.
— Não tem problema falar para o Edu, não... Ele não vai
espalhar!
E me contou que tudo ia muito bem, até tia Lola começar a
abrir os presentes.
O primeiro... um galheteiro!
“Oh, que maravilha! Era justamente o que eu precisava.”
Em seguida... um guardanapo!
“Oh, muito bom! Serve para limpar o óleo derramado do
galheteiro.”
O próximo... um galheteiro!
“Excelente! Posso colocar vinagre neste.”
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Hospitais têm regras rígidas: nada de visitas fora de hora ou
acompanhantes em dormitórios. Mesmo conhecendo todas essas
normas, eu não podia ficar sem ver Letícia pessoalmente e saber se
ela estava bem ou não. Fui lamentar ao guarda.
Não, não e não! O homem de uniforme e cara de brabo não
estava disposto a deixar ninguém subir. Voltei à sala de espera.
Parecia incrível: todos aparentavam estar tranquilos. Dona
Marlene folheava uma revista, Ofrásia lixava as unhas, Isabela
assistia ao filme que passava na televisão e a avó de Letícia dormia.
Eu era o único ansioso naquela sala. Olhava para o relógio,
balançava a perna, olhava para o relógio mais uma vez... Não
aguentando tanta tortura, voltei a falar com o guarda.
— Qual é, moleque? Você por acaso veio de outro país só para
vê-la?
Disse a verdade e consegui fazê-lo abrir uma exceção.
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Após a aula, fui fazer uma visita a meu pai. Quando entrei no
gélido corredor da penitenciária, até senti um arrepio, uma sensação
ruim. Ao notar quem era a faxineira, a ruindade duplicou. A tal da
Emília estava em todo lugar. Não sei como ela consegue... É
impossível!
— Pai, você, por acaso, conhece essa faxineira? — perguntei.
Abaixando a voz, meu pai me contou aos sussurros:
— Essa mulher é uma doida. Há uns dezesseis anos, mais ou
menos, ela era apaixonada por mim. Quando eu a ignorei e tomei a
decisão de ficar com sua mãe, ela começou a imitá-la em tudo.
Inclusive trocou de nome. Depois de um tempo, ela simplesmente
sumiu da minha vida. Fiquei sabendo que estava num hospital
psiquiátrico. De uns dias para cá, no entanto, notei que ela está de
volta. A única coisa que posso fazer é fingir que não a conheço.
Aquilo me deixou aliviado, pois acabou de vez com a dúvida de
que ela talvez pudesse ser minha mãe, que sobrevivera ao acidente.
— Ontem, enquanto estava vindo para cá, ouvi no rádio uma
notícia de que talvez a mamãe estivesse viva.
— Eles querem especular a vida de todo mundo... É correto
afirmar que o túmulo no cemitério é apenas simbólico e que até hoje
não encontraram o helicóptero em que ela estava. Ele deve estar lá
pelo fundo do mar, como o Titanic, mas não teria forma de...
Impossível. Sinto muito.
Não sei por que, mas “Titanic” me lembrou uma coisa...
— Peraí, Edu! Você disse que veio ouvindo rádio? Como isso?
— Ah, a Cris me ofereceu uma carona para cá, em seu carro
novo.
— Que mulher mais hipócrita!
Um ponto de interrogação havia se formado em minha cabeça.
Não havia motivos aparentes para ele chamar Cris de falsa. Foi aí
que ele revelou.
— Aposto que ela fez cara de santinha, de quem não sabia de
nada, não é verdade? Ela era minha maior cliente! Sempre
comprando casacos novos e sempre adiando o pagamento. Semana
passada, finalmente ela me deu um cheque para liquidar a dívida
caríssima. Após um tempo, a polícia estava à minha espera. Com
certeza, foi ela quem acionou as viaturas.
— Quer dizer que ela sabia o tempo todo...
— Na verdade, ela não sabia que eu era seu pai. Por isso, eu
tentava não estar por perto, quando ela estava próxima de você.
Talvez quando ela descobriu, possa ter se arrependido ou...
— Acho pouco provável — interrompi, vendo que havia posto a
mão no fogo pela pessoa errada.
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