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O Trigal

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ÍNDICE

PREFÁCIO, por Clara Ochove.....7


A ESPERA..................................11
O ANJO DA BELEZA..........................12
A TERRA NÃO FOI FEITA PRO DESCANSO.......13
QUE RESTARÁ, ENFIM, DESTES MEUS DIAS?....14
INTERCESSORA ÍRIS........................15
À CLARA OCHOVE...........................16
SONETO A OLAVO DE CARVALHO...............17
SEGUNDO SONETO A OLAVO DE CARVALHO.......18
DIVISA...................................19
O NORTE ATRÁS DA TELA....................20
SONETO A BRUNO TOLENTINO.................21
SEGUNDO SONETO A TOLENTINO...............22
SONETO A RAUL E LEONI....................23
SONETO A SÓCRATES........................24
SONETO A ARISTÓTELES.....................25
SONETO A VIKTOR FRANKL...................26
VERDADE E BELEZA.........................27
POESIA E FILOSOFIA.......................28
LOUVOR AO PERECÍVEL......................29
PRIMEIRA VEZ.............................30
ETÉREO...................................31
REVOADA..................................32
AOS QUE FLAGELAM CRISTO..................33
SEGUNDO SONETO DE NATAL..................34
SONETO À POBREZA.........................35

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ALVOR LATENTE............................36
IMPENITÊNCIA.............................37
À BELEZA.................................38
OS SOLITÁRIOS............................39
A UM UTILITÁRIO..........................40
QUASE DEUSES, MENOS QUE HOMENS...........41
A DIFERENÇA ENTRE PEDRO E JUDAS..........42
AO MENOS ME OLVIDAR VENDO O TEU ROSTO....43
EPITÁFIO DE UM POETA.....................44
DESTE-ME, DEUS, ESTA HORRENDA NATUREZA...45
METAMORFOSE..............................46
SABES, DEUS, COMO É TRISTE ESTE EXERCÍCIO.......47
CLEMENTE, NUNCA PERDES ALMA ALGUMA.......48
NO ÁTIMO FINAL...........................49
ANTE O DIÁLOGO DAS CARMELITAS............50
NESTE SILÊNCIO TÃO GRAVE.................51
NÃO BUSQUES SEGURANÇAS ENTRE O VENTO.....52
SONETO DA ANTOLOGIA......................53
O SANTO QUE EU NÃO FUI ANDA COMIGO.......54
A VIDA E AS MORTES.......................55
AS ASAS DO SILÊNCIO SE APROXIMAM.........62
NÃO CRUZES ESTE RIO FEITO APRESSADO......63
DESCANSA, ALMA...........................64
PEDINTE PELA LUZ.........................65
LAMENTO MEUS INSTANTES QUE MORRERAM......66
TREVAS DA POSSIBILIDADE............................67
AS COUSAS OUTRA VEZES TÊM HARMONIA.......68
FÁTIMA...................................69
PADRE PIO E GEMMA........................72
IMAGEM...................................74

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O QUE FOSTE EM VIDA ESTARÁ COMIGO........76
QUANDO EU MORRER.........................77
O HOMEM E O TEMPO........................78
NA NOITE ACHEI UM CHORO DE JESUS.........81
MISTÉRIO — O AMOR DIVINO É UM ABSURDO....82
SE VEROS VAMOS...........................83
VERSOS DESTINADOS A QUALQUER INSTANTE....85
EXERCÍCIO DIFÍCIL........................86
CONVITE À INTIMIDADE ESPIRITUAL..........87
EIS QUE TROCASTE O TOM DO MEU SILÊNCIO...88
AO PERFEITO SOLITÁRIO....................89
O SEM-TETO DA RUA TRÊS...................91
OS ROSTOS................................92
O JULGAMENTO DE SÓCRATES.................93
O SANTO..................................94
NÃO É DESTE MUNDO A RECOMPENSA!..........95
PULSAÇÃO.................................96
UM LONGO EPITÁFIO........................97
EM TODO PÔR DO SOL HÁ UM ENSAIO..........99
PENSAMENTOS DE PAULO NA ESCURIDÃO........100
AVANTE, SANGUÍNEA E SANTA PEDRA!........101
SIMÃO PEDRO.............................102
O MENINO FRANCESCO FORGIONE.............104
À MÃE AO PÉ DA CRUZ.....................105
O SORRISO FÁCIL.........................106
A CRISTO NO GETSÊMANI...................107
CRISTO NO DESERTO.......................108

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PREFÁCIO
Por Clara Ochove

Não há, na natureza, cenário mais emblemático que os campos folheados a


ouro. Os trigais. Lembrar de Maximus, o Gladiador, roçando a mão por entre
as hastes douradas, na via da morte para a vida eterna, faz crer que os lumes
da plantação, pouco a pouco tornavam-se um com o clarão vitorioso de sua
alma. Em verdade, está aí o simbolismo: o trigo como ouro da alma e como
o que a sustém. Mas, retifico: não se trata de simbologia. Ao dizer “Eu sou
o pão da vida” e, de fato, tornar o pão sua carne, para ser constituinte maior
de nossa vida interior, Cristo destrói qualquer mera metáfora, qualquer
simples paralelismo. Ele eleva o trigo como elemento próprio da
transubstanciação, ampliando sua presença aos olhos humanos. Aqui se
encontra o primeiro motivo do título dessa obra: o desejo invencível de cada
poema em direcionar, por meio do gingado das palavras, de musicalidade
ordenada, o olhar da alma ao seu centro. Se o trigo doa sua matéria à carne
do salvador na comunhão, as palavras desses poemas também buscam a
oferta máxima de seu significado para o fim de aproximar dEle a alma
amada.
Também não é possível olvidar a relação existente entre “O trigal” e a
parábola da colheita do trigo. Em um primeiro plano, essa antologia é uma
colheita, ou seja, uma filtragem entre os principais poemas de Pedro, embora
venha somada a outros inéditos. Nesse caso, seria joio o que há de mais
supérfluo, e o trigo, o que passou pelo crivo do poeta. Para todos os efeitos,
“O trigal” é a “nata” de toda sua obra até agora. Ademais, na colheita do
trigo, colher é só o primeiro passo, uma vez que, depois, também é necessária
a retirada da casca, a fim de alcançar o endosperma. Tirar a casca, ruminar,
meditar, para chegar ao núcleo, eis o que a leitura desses poemas exigirá do
leitor. Se atento, será possível vislumbrar o núcleo sempre igual, esbanjando
a mesma luz, ao som da mesma voz familiar.
E é familiar, pois canta o ritmo das nascentes do ser humano, remexe-as,
busca, e clama pelo rio das horas o amanhã eterno, como bem diz Miguel de
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Unamuno. Em alguns poemas aqui colhidos, o eu-lírico verá Deus por a
eternidade num suspiro, verá cada instante esconder uma alvorada, bem
como a dignidade da Pobreza reluzir – a única escolhida por Cristo para
acompanhá-lo no deserto. Desejará, ao contrário do Veni, vidi, vici, de Júlio
César, ser vencido pela beleza da fonte de todo Amor.
A voz do poeta invadirá o decurso do tempo para emparedar os que
flagelaram Cristo “Vós, que fazeis furos no infinito...”, enquanto os olhos
verão o salvador no deserto e no Getsêmani, e tentarão transpor o imenso
peso de um mísero átomo de ar daquela cena nos versos “Cada alma humana
pôs um ponto escuro nessa austera treva que Te cerca”.
Sobre o inescrutável sofrimento de Cristo, Pedro ainda nos leva ao chão, faz-
nos mergulhar em nossa poça de lágrimas, suspiros e arrependimentos com
o “Na noite achei um choro de Jesus”: “Ouvi contra os silêncios das estrelas,
suspiros tão pesados quanto a cruz...”. Posto esse verso ao lado do outro:
“Em mim te combati junto da besta, e ainda me fitavas com brandura”, do
poema “Clemente, nunca perdes alma alguma”, temos uma imagem do
eterno jorro da misericórdia divina, do amor infindo por cada alma em
particular, que em nós inspira a compaixão necessária para recomeçar
sempre, incansavelmente.
Ainda, o leitor será situado no âmago do momento único da história em que
o sol dançou, o milagre de Fátima; assim também, no sublime martírio das
carmelitas de Compiègne, durante a revolução francesa, e em milagres do
santo padre Pio. Haverá belas homenagens a grandes personalidades (de
Sócrates a Olavo de Carvalho) e poemas dedicados a outros santos. Entre
estes, destaco “A diferença entre Pedro e Judas”, inspirado em uma palestra
da Madre Angélica sobre o ressentimento, que foi perfeitamente tecida no
poema. Trata-se do fato de que apesar de ambos terem traído Cristo, a
grandiosidade de São Pedro reside em ele saber que sua culpa era muito
menor que o Amor Perfeito. Além desse, outros dois poemas sobre o mesmo
santo, ricos em estados interiores que possivelmente atravessaram-no - a
“sanguínea e santa pedra” -, dos quais cito um verso excelso: “Da desertada
tumba, o silêncio paira prenhe de ecos claros”.
Há também o “Pensamentos de Paulo na escuridão”, donde sorvemos a
beleza da “voz que soçobrou a visão minha...”, de modo que a gloriosíssima
conversão de São Paulo retratada se encaixa como uma daquelas “larvas que
rebentam em asas da chaga de Cristo”, este verso do poema “Metamorfose”.
E, enfim, Paulo encontrou, em vida, o sonho de toda alma, o descanso de
quem se abandona, dos que têm a certeza de não se fiar mais em si, quando

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a alma ouve afinal: “Não espanta-te como graças se alinham aos respiros
teus?” (poema “Descansa, Alma”).
Para findar esse breve prefácio, que não passa de voo rápido sobre um
imenso e luzidio trigal, atestarei algo sobre o poeta. Santo Inácio de
Antioquia, mártir morto nos circos romanos, escreveu, em uma de suas sete
cartas: “Eu sou o trigo de Cristo”. Pois o poeta que se dobra a “afirmar o
princípio eterno de onde veio”, como disse Murilo Mendes, também o é.
Também é trigo de Cristo. É o poeta que traz à tona a “saudade irreprimível”
que todos carregamos, mas que a ele foi dado o dom de expressar e entender.
Em “Epitáfio de um poeta” Pedro termina expressando a admirável
recompensa dessa vocação:
“Mas não narro essas cousas com tristeza
Se provei das mundanas asperezas
O hálito mosaico as compensava...
Fiz da alma elísio diminuto
E após deitar meus ossos no escuro
Fundi-me à perfeição que eu procurava.”
Entremos, então, nesse áureo campo, roçando a mão pelo trigal, tendo
sempre em mente, como Maximus, de que tudo, tudo, ecoa pela eternidade.

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A ESPERA

Virás a mim... não como esquecimento


de que inda há inocentes mutilados;
mas mostrarás, dum panorâma alto,
como nalgum lugar não há tormento.

Virás dar-me triunfos sobre o tempo


expondo meu futuro no passado
quem hei de ser na morte, antecipado
— virás em intuição, não pensamento.

Virás como vieste aquela tarde:


um mar sobre os ruídos, um silêncio,
com força pra afogar a ardente carne;

inundarás o entorno co'as paisagens


de além do sol, de além do firmamento
— virás pôr num suspiro a Eternidade.

11
O ANJO DA BELEZA

Apesar de sua força de infinito,


a beleza é um anjo delicado
que ruma para longe, amedrontado,
quando assiste teu rosto, já contrito,

a refletir o bicho vil, faminto,


que vezes tantas tem te dominado.
Tu acumulas anos e cansaços,
e não raro te indagas, a escondido:

"valeu a pena, torpe, ter cá vindo?"


Mas saibas, no entanto, o anjo espera,
longe, apontando flechas pro teu ventre,

que deixes tua alma aberta a elas


e recebas da luz, alheia às eras,
instantes que cintilam para sempre...

12
A TERRA NÃO FOI FEITA PRO DESCANSO

A luz virá pousar no meu espírito,


mais bela que a inspiração das musas,
mais forte que a paixão pelas confusas
coisas perecíveis... sem um ruído

verei-me nas mãos d'anjos, combalido.


Adeus, pensar bandido e carne rubra!
Adeus, desejos vãos e humana luta!
Serei qual pelo Eterno fui tecido...

Mas longe está tal vôo, sumo encanto


— no mundo, o mal ataca o bem infindo
a treva quer matar os germes santos.

Meu sonho é ser aceito à paz do Cristo


na aurora além... mas hoje eu lido:
a terra não foi feita pro descanso.

13
QUE RESTARÁ, ENFIM, DESTES MEUS DIAS?

Que restará, enfim, destes meus dias


depois de tão frequentes desperdícios,
das vezes tantas em que eu fui cativo
de gozos vãos que a morte satiriza?

Ao menos saberei que ouvi as liras


dos anjos entre os ventos mais melífluos;
e vi da Eternidade alguns indícios,
nas formas que velozes pereciam...

Falta-me, porém, curvar meu dorso


à Fonte que há detrás de tais esboços
da beleza do Reino incorrosível.

Que restará, enfim, destes meus dias?


Quem dera ir me deitar co'a dama fria
dizendo "Vim, e vi, e fui vencido..."

14
INTERCESSORA ÍRIS

À Clara Ochove

Teu manso olhar me fura mais que a fúria


das minhas feras sujas, cultivadas
por erros de anos tantos, pelas chagas
de preterir quem sou pela loucura;

mas é dor d'outro tipo, é dor alada,


é como um ferimento que procura
naquele a quem se impõe criar a cura
- tua íris intercede por minh'alma -

pois nasce de me olhar entre a ternura


deste matiz castanho-amarelado
um acusar ardente, mas sagrado,

que diz: "faz da tua alma coisa pura!


Sê digno de estar assim pintado
neste milagre em mel, nesta doçura!".

15
À CLARA OCHOVE

Suave como os versos da Cecília,


excelsa como o estilo do Corção,
és sempre uma eclosão de maravilhas,
a dar dum Éden novo anunciação;

Solar e ascendente em escorpião,


teu corpo é pro meu lobo uma guarida,
contudo também nutres meu cristão
co'a luz da tua alma, alva e tranquila.

Ó Arte entre a Ucrânia e a Bahia,


pensei que só havia em ficção,
beatrizes, e penélopes e eugénias!

Que surjam-me os tufões que me esperam!


Provaste de maneira já perpétua:
viver, se te encontrei, valeu a pena.

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SONETO A OLAVO DE CARVALHO

Julgaram-te alguns um desalmado,


vendo tua postura, teus cigarros,
teus palavrões contra um podre pudor,
mas tanto me ensinaste sobre amor!

Alguns crêem-te herege, excomungado,


mas à igreja deste o teu louvor,
guiaste tantas almas ao Senhor!
Deixaste este Brasil mais alumbrado...

Mentiram, odiariam com furor


— a ti? Não, apenas a espantalhos
(esses mesquinhos seres, de isopor);

Sabemos, caro Olavo de Carvalho,


que foste pra cultura um salvador.
Muito inda há de fulgir o teu trabalho!

17
SEGUNDO SONETO A OLAVO DE CARVALHO

Há um ano não ouvimos cousas novas


da tua voz parteira da bondade,
mas o que antes disseste, em verdade,
expressa já o presente — os fatos provam! —

Profeta da razão, previste os males


que iriam despontar neste Brasil,
mas teu olhar agudo também viu
nalguns o amor fiel à Eternidade

— e, como não, se foste um estandarte


d'alma sincera atrás de claridade,
do combate em coragem contra o mal?

Há um ano retornaste ao Seio Eterno


mas pairam inda aqui sublimes ecos
do teu eu tão aberto ao que é imortal...

18
DIVISA
*Sobre Olavo de Carvalho, lá pelos seus quarenta e alguns anos

O sábio maturou-se em seu silêncio,


escutou paciente os impostores
deste país de "mestres" e "doutores",
deste país que odeia o entendimento;

O sábio maturou-se em seu silêncio,


e viu a cor carmim tomar espaço
— o martelo oprimindo o lume vasto,
a foice içando a pele como centro.

Mas foi subindo à roda dos antigos,


tornando-se afinado ao Infinito,
e o dito do oráculo acatou;

Já finalmente pronto pra batalha,


fitando-se no espelho co'a navalha
adotou a divisa: "Eu sei quem sou".

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O NORTE ATRÁS DA TELA

É manhã. Assombrado co'a desordem,


do mundo, e de mim, uma voz busco
(profunda, rouca, timbrada em fumo),
há muito ela tornou-se como um norte...

Surgem, na tela, olhos graves, agudos,


autênticos, veros, por isto fortes;
escuto sobre Cristo, e que a morte
molda todo intento, do homem maduro.

E a cada ideia, cada frase, clara


se torna a realidade à minha volta:
coruscam outra vez, em minha alma,

potências que eu estive a esconder


— a virtual presença me renova
o voto de entre o caos, sereno ser.

20
SONETO A BRUNO TOLENTINO

Foi dito que a luz n'obra dum poeta


serve pra redimir a sua vida.
Não quero vir bancar o moralista
nem mesmo eu fosse um que nunca erra

(pior sendo este sócio de vis feras);


mas sabe-se que tua biografia
não fora trajetória apenas reta...
mas que falar da tua poesia?

Que fulge entre as mais altas deste mundo?


Que é ascético ler tua Katharina?
Tudo isto inda é tão pouco, Tolentino...

Teus versos vertem almas pro Divino:


se a árvore é medida pelo fruto,
como não crer-te irmão do Absoluto?

21
SEGUNDO SONETO A TOLENTINO

Tua obra: uma matriz de lâmpadas


que acendo nos momentos mais aflitos
— o vôo afogueado dos flamingos,
o canto ensolarado em Frontispício,

libertam-me do breu, de trevas tantas!


decerto, há no poeta o sacrifício
de ser à dor da alma tão sensível
até ter de ir buscar, entre as entranhas

do Espírito, o belo que a abranda;


se hoje abro a janela à luz que sangra
em parte é por teres tu sofrido

— provaste que o Senhor mui compassivo


converte nossas falhas mais mundanas
em fôlego pros cantos mais divinos...

22
SONETO A RAUL DE LEONI

Têm teus versos um tom crepuscular,


um raiar de profunda formosura
sobre nuvens tristonhas, nuvens tuas,
obscuras depois do constatar

como os sonhos mal surgem na semente


e a serpente já tenta os atacar;
como as flores de néctar salutar
nas raízes, porém, têm fel pungente...

Serás sempre, aos meus olhos, feito aquela


árvore mui terna, natalina,
taciturna (mas dando cousas belas).

E que o céu te compense a poesia!


— pela qual todo fel, todo cortante,
convertias em êxtase elegante...

23
SONETO A SÓCRATES

Tua mão se ergue firme rumo à taça,


as faces no entorno se comprimem,
não há em tua volta quem atine
que teu sereno é oposto da desgraça.

Atidos só às sombras do que passa,


pensam que o mal venceu a tua mente,
não sabem que tu vais, imortalmente,
fazer-te um estandarte à humana raça.

Após centenas de anos não há quem tente


honesto ir à cata da verdade,
que do teu vulto alto não se lembre

— Se quem a evita parte, cedo ou tarde,


tu, Sócrates, colosso do Ocidente,
sorveste a morte irmão da Eternidade.

24
SONETO A ARISTÓTELES

Com a frieza d’um cirurgião


vais decompondo o saber em partes,
não és poético, como Platão,
és categórico. E que humildade !

Consultas sábios com sinceridade,


antes de dares tua conclusão
voas por topos da grega razão
e sobre todos, tu vais à verdade...

Embora seja seco o teu estilo


— de expores causas d´onde algo parte —
tua metafísica nos deu um cimo

entre as metáforas da humanidade:


´´Tal como o amado move o amador,
Deus move o cosmo, com Seu esplendor´´.

25
SONETO A VIKTOR FRANKL

Em dúvida se ias para América


achaste a tão arcaica inscrição
— pelo "honrar pai e mãe", impresso à pedra,
tomaste tua austera decisão;

ficaste pra encarar a espessa treva


o frio, a fome, o medo e a visão
dos lábios entoando uma oração
defronte a morte em gás, cena severa...

Provaste que podemos ser louváveis,


sofrendo das ações mais condenáveis
colheste a infinda força do espírito

— e inspiração pra escola que hoje livra,


por todo mundo, milhares de vidas,
das dores de existir sem ter sentido.

26
VERDADE E BELEZA

A Verdade, sempre, sempre é bela,


e quem ouvindo isto inda duvida,
fala duma verdade que é parcela
e não da Face inteira, além da vida.

Já a Beleza é sempre verdadeira


e mesmo se, criando, mente o artista,
exagerando a luz que à tela pinta
faz d’alma mais sincera e altaneira

— assim um William Turner, por exemplo,


exagera os tons que expressa ao cenho
do sereno poente, ou da manhã.

O Belo é a Verdade já sensível,


a Verdade é o Belo no invisível,
Beleza e Verdade são irmãs.

27
POESIA E FILOSOFIA

Uma é o saber atrás da alma,


a outra a alma à cata do saber.
Uma se faz mais forte quando aclara
a outra se aclara ao escurecer

— É que tem o verso a arte rara,


de melhor revelar ao esconder;
já a filosofia tem de ser,
tanto quanto der, a demonstrada
relação do ser e o conhecer.

Mas fulge uma belíssima unidade,


no efeito que essas duas bem suscitam
ambas preparam pra Eternidade,

nas almas elevadas sempre ampliam


do mundo-de-além grandes saudades.

28
LOUVOR AO PERECÍVEL

Ofereço este louvor à flor silvestre


e aos rostos que fenecem, tendo um dia
retido a formosura em suas linhas
— bendito seja tudo que perece!

A árvore onde o verde empalidece,


o corpo em que o vigor se atrofia,
o livro cujas folhas já definham,
o edifício arcaico, que apodrece.

Excelsa á a função do perecível,


de refletir o reino do invisível,
e afinal combalir, sem cor e triste...

Pra alma não há dor mais alta e pura,


que em êxtase mirar, no que não dura,
vestígios de uma luz que eterna existe.

29
PRIMEIRA VEZ

Quando o sol deslizou rente aos telhados,


tecendo rubras manchas entre as ruas,
quando a brisa espraiou-se, doce e pura,
ele sentiu seu corpo apaziguado;

com o ranger da mente solapado


àquela intuição absoluta,
provou dalguma dor, dalguma cura,
que fê-lo para o sempre transformado.

E cada rosto à frente o comovia,


cada olmo, cada pedra, cada linha
o tornava mais leve e indeciso

se sob aquela tarde, tão etérea,


o mundo da matéria fez-se espírito
ou o espiritual se fez matéria.

30
ETÉREO

Por vezes sinto a alma prisioneira


do que suplica a carne insaciada,
ou do que a vaidade tresloucada
supõe como vitória verdadeira.

Mas há vezes etéreas, altaneiras,


em que colho do entorno tantas dádivas!
E só de olhar o aspecto das casas
absorvo no meu eu vidas inteiras.

Que doces são tais horas de enlevo


em que todo ente traz algum segredo
e o ar vai recitando poesias!

Liberto já de medo e desperdício,


volto à pureza d'antes do início,
co'a alma afogueada e a pele fria.

31
REVOADA

Deixa que as ambições te abandonem,


como loucos corvos em revoada,
olvida teus vis vôos rumo ao nada,
o cimo habita em ti, perdido homem!

É sede pelo Eterno, transviada,


a cata pelo parco, a cega fome,
enquanto o onde te crias se consome,
fazes imensidões desperdiçadas.

Deixa-te singrar entre silêncios,


sem o grasnar das aves de vaidade,
escutarás a luz chamar teu dentro

— Já não viste o presente nos momentos,


e a intuição etérea da verdade,
quando curvaste ao Todo teu intento?

32
AOS QUE FLAGELAM CRISTO

Vós que fazeis furos no Infinito,


não sabeis que é a luz quem agoniza?
Vós, duros soldados em serviço,
pensais que é da tarefa mais um dia?

Conforme Seu sagrado sangue jorra,


silente Ele ora por vossas vidas,
mas ouvis só a turba que ignora
estar defronte a Entrada e a Saída.

Precisareis do céu mui furioso,


umbroso em plena hora vespertina,
pra atestardes que Ele é o Glorioso?

Não basta o choro à face de Maria,


nem o olho que vos fita piedoso,
nem toda a natureza que suplica?

33
SEGUNDO SONETO DE NATAL

Criaste a grandeza a nós terrível,


abismos, mares, selvas e montanhas,
porém Teu Ser, por sobre tais façanhas,
pairava intocável, e impassível...

Mas por bondade estranha, até indizível,


quiseste vir morar na carne humana,
que sente sede, fome e a dor tamanha
que sofrerás qual homem, ó Menino!

Te sentias só, Eterno Espírito,


pra dares vida infinda a uma tacanha
raça tão propensa ao desperdício?

Que ao menos te louvemos nesta data,


que marca nosso acesso à Suma Pátria,
por graça de um amor incompr'ensível.

34
SONETO À POBREZA

Temem mais a ti do que ao diabo


os burgueses escravos do conforto,
e os pobres que só sonham imitá-los
e nesse sonho perdem-se absortos;

Mas não poucos dos santos, ao contrário,


amaram-te, te olharam como graça,
aceitação, em prol do que não passa,
de não ter no que passa seus salários.

Ah... pra fugir de ti a humanidade


criou a mais cruel insanidade
e quis, por mão da cria, o paraíso

— Quando que entenderemos teu relevo


no São Francisco à cata de pão seco,
no deserto escolhida pelo Cristo?

35
ALVOR LATENTE

Respira às profundezas do Ser,


ausculta a intimidade do silêncio,
contempla esta beleza que há no centro
de tudo que te cerca, mas não vês;

A vastidão de dentro é delicada,


inda que possa içar-se além do tempo,
é como um gato arisco na calçada,
sumindo no mais leve movimento

que vem dos teus ruídos, desses sonhos


que sonhas por vagar imerso em sono,
atido no que em breve será nada.

Permita que a luz lave tuas entranhas!


— fora do amor de si há mil façanhas,
e cada instante esconde uma alvorada.

36
IMPENITÊNCIA

Já oscilas ao contar só de cabeça


teus dias suicidas neste tempo
(de tantos os contrastes c'o momento
em que aceitaste o Ser e Sua beleza).

Ante o sopé do sono há um silêncio


em que julgas ti mesmo, e asperezas
constatas amiúde: tens certeza
de sempre te apartares do teu dentro...

E a sombra que te cega é véu tão frágil!


— um raio do Farol já mostraria
a Ilha pra livrar-te do naufrágio...

Mas brincas na tormenta assaz urgente,


fingindo tresloucado, impenitente,
que o barco do Caronte nunca é ágil.

37
À BELEZA

Cria nosso mundo suas quimeras


— mil engrenagens, mil relativismos,
desordens, e mentiras, e cinismos —
mas te manténs maior que todas elas.

Mas por que tanto ódio tu despertas?


Será por converteres como os padres?
Será por preparares pra Verdade,
nos afinando à Luz de além das eras?

Ó suave, subtil sacerdotisa,


quem brada que de ti já não precisa,
matou a intimidade, e ignora

— Na arte, no amor, na natureza,


onde quer que reveles tua grandeza,
a alma ao contemplar-te se consola.

38
OS SOLITÁRIOS

A vida social é um bailado


de máscaras sorrindo, coloridas,
enquanto à vida interna essa alegria
ecoa como um grito sufocado;

E no baile se gabam, tresloucados,


os homens de seus atos que agonias
legam às suas alma que, vazias,
se carpem como anjos depenados.

Do mais alado em si sentem vergonha,


esses seres mui frágeis, mascarados,
matando com cinismo a luz que sonham

— e amam o que odeiam, disfarçados,


e odeiam, disfarçados, o que amam,
e vão sempre sorrindo, solitários...

39
A UM UTILITÁRIO

Que sejas como a turba das hienas


(que enfrenta até leões pelo já morto),
que vivas para a pose, e para o corpo,
não me diz respeito, é teu problema;

Contudo te advirto: não me venhas


com teu olhar de indústria, com teu tolo
ranger porque mantenho-me absorto
entre sons e silêncios de um poema.

Evocas sempre a parte contra o Todo,


disfarças o teu vácuo no conforto,
e estranhas se no verso busco alvor?

No belo venço a carne e o tempo,


encontro de quem sou conhecimento,
mas... que te espera à frente, senão dor?

40
QUASE DEUSES, MENOS QUE HOMENS

De tempo em tempo a sombra se transmuta


e sempre está presente neste mundo,
na posse dos que em vida são defuntos,
mas têm uma vaidade resoluta;

Penetra nessas frontes tão enxutas


dos que querem poder por sobre tudo,
dos que almejam ter perenes vultos,
daqueles cuja sede a sombra avulta.

São césares, são maos e bonapartes,


leões dentro do tempo, cuja fome
os torna vermes, na imortalidade.

Eles servem de vaso para o breu,


se fazem quase deuses entre os homens,
e vão menos que homens, ter com Deus.

41
A DIFERENÇA ENTRE PEDRO E JUDAS

A diferença que há entre Pedro e Judas


(cada um tendo O traído do seu jeito)
é que o primeiro soube que sua culpa
era muito menor que o Amor Perfeito...

Se Judas pôs no inferno o próprio peito,


não foi por ter vendido a Luz mais pura,
mas foi por ter julgado a santa cura
como insuficiente ao seu defeito.

O remorso é irmão da vã vaidade,


um cão a se fechar pra Eternidade
ao ansiar, sedento, a própria cauda

— se os homens mais cruéis da humanidade,


não matam, como Pedro, o breu da alma
é que pensam ser Deus sua iniquidade.

42
AO MENOS ME OLVIDAR VENDO O TEU ROSTO

Talvez eu chegue, Deus, ainda roto,


com sonhos sujos, ao ermo monte
do qual nenhuma cria bem se esconde
quando já não se altera o que era esboço.

Talvez eu sinta em brasas minha fronte


ao fogo que tranquei, vindo em rebento
vindo de uma só vez, sob o lamento
do escuro suprimindo o horizonte...

Chorarei flores e frutos sem colheita


do monte sobre o campo que se estreita
se quem o percorreu tinha olhos loucos?

De coxear há tanto espero exausto


depôr sob Teus pés meu bornal vago
e ao menos me olvidar, vendo o Teu rosto...

43
EPITÁFIO DE UM POETA

Nasci tendo a saudade irreprimível,


e olhei que tudo olhava diferente
(mais cândido, mais demoradamente),
e olharam meu olhar como um delírio;

E transmutei a dor de olhar sozinho,


em pão interior e universal,
puseram-me no oposto ao pedestal,
disseram que era inútil meu destino

— mas não narro essas cousas com tristeza,


se provei das mundanas asperezas,
o hálito mosaico as compensava...

Fiz da minh'alma elísio diminuto,


e após deitar meus ossos no escuro,
fundi-me à perfeição que eu procurava.

44
DESTE-ME, DEUS, ESTA HORRENDA NATUREZA

Deste-me, Deus, esta horrenda natureza


à carne, ao mundano tão propensa,
vaidosa, envenenada e sedenta,
só pra que eu me curasse em Tua beleza;

Faz-me ir do escuro meu à Tua clareza


a vasta profusão dessas ofensas
que eu mesmo me imputo, chagas densas
onde moram serpentes da incerteza.

Enovelado ao mal elevo o olhar


a Ti, Verdade, Astro Salutar,
e vens queimar as cobras que fabrico

— como sou grato a Ti por meus desastres!


pois eu diviso neles o contraste
entre quem sou se só, e c’o Infinito...

45
METAMORFOSE

Já não me é possível, ó Deus meu,


desde que encarnaste nestas sombras,
não odiar o mal que em mim desponta,
tal como não amar, pra além do breu,

minh'alma que julgaste valiosa


— não é possível ver o cenho Teu,
na cruz por sob o céu que escureceu,
e ignorar a luz da vida nossa...

Ó Fonte de tão fulvos paradoxos,


o peso de Te ouvir silente em tudo
é ver-me feito larva — um absurdo

de asas que rebentam por tuas chagas,


com beleza imortal, incendiadas
asas rumo ao Vôo Absoluto...

46
CLEMENTE, NUNCA PERDES ALMA ALGUMA

Clemente, nunca perdes alma alguma


— contanto que perder-Te a alma não queira —
transmutas nossas vestes mais vermelhas
em linhos de tom fulvo sobre a alvura;

A sombra seduziu-me com luxúria,


o mundo me turvou qualquer centelha,
em mim Te combati junto da besta,
e ainda me fitavas com brandura...

Cavei em minha alma mil buracos


com garras dos pecados que eu amava,
vieste paciente fecundá-los

com sementes de luz — já perdoado,


os pomos que ora colho vêm da Pátria,
em que hei de contemplar-Te revelado...

47
SABES, DEUS, COMO É TRISTE ESTE EXERCÍCIO

Sabes, Deus, como é triste este exercício


de perseguir as sombras, a poeira,
de ansiar pela aurora verdadeira
mas tanto dar o intento ao desperdício...

E quantos de nós, como mortos vivos


atidos, fixos, numa falsa estrela,
de assalto vão à noite derradeira
sem ter no cosmo próprio um feixe límpido

pra apontar triunfal a Tua porta!


Se o breu é risco insone, Pai, esgota,
a sede pelo tíbio que carrego

Aceito ir ao deserto, à secura


à dor e à solidão, pra estar co'a Tua
luz que, confortável, tanto eu nego...

48
NO ÁTIMO FINAL

Nada serão: ofensas recebidas,


horas de atraso, afagos do vulgo,
prazeres tristonhos, medos absurdos;
enfim, à legítima hierarquia,

a alma se ajustará. Terás conquista


somente dos átimos de absoluto
em que ao leito da luz, sereno e mudo,
repousaste a mente, já vencida.

Ah... como há de arder-te todo amor,


todo o insuspeitado esplendor
da vida! Da ablepsia já curado

Verás os dias qual numa película,


acenando adeus às tuas pupilas
— fragílimos, doces, transfigurados...

49
ANTE O DIÁLOGO DAS CARMELITAS

Sei que este mundo jaz na mentira


— malgrado as maravilhas que aqui vemos —
mas como me chocar c’o fato extremo
das avezinhas rumo à guilhotina

e não chorar? Eu, que sorvi o veneno


da escola formal, e ouvi das conquistas
altas da Revolução? Mas de ira
não são estas lágrimas, este cenho

retorcido... das castas carmelitas


pousando suas gargantas ao martírio
— enquanto cantam "Vinde, ó Espírito" —

escuto da impotência do aço agudo


ante o sereno áureo, absoluto,
das almas transbordantes de infinito.

50
NESTE SILÊNCIO TÃO GRAVE...

Neste silêncio tão grave


por sob um corpo tão leve
em que o pecado não cabe
a Luz do mundo concebes...

Nesta tristeza que impele


a te calares, ó Ave,
gota mais pura do vale
nesta tristeza recebes

Anúncios daquela tarde


que a criatura se atreve
a prolongar, fazer parte;

Neste silêncio a Verdade


pelo teu ventre se mexe...
a Luz do Mundo não arde?

51
NÃO BUSQUES SEGURANÇAS ENTRE O VENTO

Não busques seguranças entre o vento,


que ele sem cessar alterna o lado
é um poder caótico, um tornado,
basto de insuspeitados movimentos;

Instala o teu agir num alto centro


que pode em toda alma ser achado,
um forte invulnerável, sempre claro
repleto de celestes alimentos.

Que importa do que há fora a violência


pra quem vê suas límpidas potências
e fá-las ser elã dum eu real?

Quem não é negligente à intimidade


da Providência entende a sutil arte
e torna em interno bem o externo mal.

52
SONETO DA ANTOLOGIA

Nas vagas do silêncio absoluto


de súbito inspirou-Se o Sumo Artista
e augusto concebeu a trama rica
do livro de poesias mais profundo;

Em posse de metáforas precisas,


de Seu logos imóvel e fecundo,
metrificou o claro e o escuro,
simbolizou a paz e a agonia;

Em rima versejou mares e ares,


por árvores cantou serenos salmos,
apenas pra encantar Sua obra-prima

— mas vendo que em vil uso do arbítrio,


essa prima-obra nada compr'endia,
Ele encarnou nas páginas do livro...

53
O SANTO QUE EU NÃO FUI ANDA COMIGO

O santo que eu não fui anda comigo,


e andando luta contra alguns chacais,
serpentes e felinos, animais
que em meus fundos recônditos fabrico;

e limpa-me com luzes ancestrais


da lama em que chafurda-me o instinto,
e tem amor tão dócil pelo Cristo
que se o escuto alcanço extrema paz...

o santo que eu não fui inda convive,


c’o homem que meu torto intento faz
e vou da sua altura ao meu declive

porém na morte hei de já não mais


ser um que, ora o quer, ora o reprime:
serei só ele ou feras infernais?

54
A VIDA E AS MORTES
(Uma autobiografia)

A vida mais que passa à vista


se à morte vamos:
a vida dança, dança,
densa em dores doces
— com suas cenas surgindo,
bailando, burlando,
os trilhos do tempo...

E se muito morremos
até a eterna graça
ou o eterno sufoco
— Em ódio e fogo —
há chances de ver e rever
no ponto privilegiado
antecedendo cada morte
desvelada a face ignorada
d’alma que vamos esculpindo
no painel do tempo;

A vida dança, dança


densa em dores doces...

Sou criança, mostram-me o mar


ondas rosnam pelo ar
narrando mistérios tão antigos
tão estranhos, que temo, tremo
choro. Meu pai chama
colhe-me ao colo,
de novo a vida é clara, calma

Crescido, já sou íntimo


dos mistérios marítimos
deito sobre o manto azul, boio
olho um céu sem nuvens
e as brancas aves que aureolam
naus distantes e as silhuetas

55
das ilhas insinuam mitos à mente
dócil à imaginação
— vivi anos inteiros
e talvez seja o primeiro dia livre, puro

Ou talvez eu mesmo me prendi


nos dias outros (pois vovó é velha
e diz que só a morte espera
e sua alma já pesada, prende-se,
com alguma súplica, mesmo aos rastros
das tardes mais cheias de tédio
da juventude, e o insosso some
dos sorrisos que eram rotineiros
— Agora que vovó os reinvoca —
e, no entanto, o medo que ela sente
a oprime. Terá também saudade
do seu coração assim assombrado
quando também isso for passado,
dando vez a um assombro maior?
O tempo arde nas mãos de muitos
dos muito velhos,
mas que a ele se agarram, se agarram).

Com minhas mãos planto nos prados


meu amigo e sócio se diz prático
tem suas virtudes, mas praticamente não vê
que no verso do seu sorriso,
louco e incessante, há
vestígios do desespero
(a alma, mesmo dos “práticos”, quer ar)
“Quanto de dinheiro
Nós faremos em janeiro? ”
Já especulou mil vezes
e fala pra tampar com a língua
a superfície de algum vazio.
Sento, aponto um tucano que desponta
e o poente está com mechas amarelas
entre seus fios carmim.
Digo: “Deus é assim, supremo artista”
O sócio sorri, diz que vivo em devaneios;
voltemos à realidade:
“Quanto de dinheiro
Nós faremos em janeiro? ”

56
E penso nas pérolas que desperdiço.
O homem jovem não carrega uma sombra.

Meu pai convida-me a um almoço


pouco ouço, muito falo coisas poucas
(mil teorias sobre os dias que vivemos)
mas ele é paciente, já tem muitos cadáveres
sobre os ombros; e seus eus mortos
já não fedem, ele os expurgou
está renascido, limpo, lúcido
como um monge e diz
que os homens mais velhos
carregam uma sombra...

Eis mamãe: está triste,


traz no rosto o peso do apocalipse
de seus mil mundos inventados
— peso demasiado para um corpo
frágil qual folha seca
caminha, cabisbaixa, de pés lentos
e o perfume da praia nem anestesia
Seus tormentos.

Futebol no velho continente


“Que surpresa para um menino
Tão despido de ambição
- mas tão contente –
E que andava de pés sujos!”
Há quem diga ser minha grande chance
mas estou distante,
por sobre a grama há uma bruma
vista por ninguém mais,
e as vozes graves, sobrenaturais
vibram mais forte no frio
(E tanto me entregam, e tanto tomam!)
“Terá teu brio se extinguido? ”
Como caviar num navio
mas prefiro simples pães, e café.

Não sei se fé é o termo certo


adentro meu deserto, estou aberto
Iahweh me pousa sobre as pálpebras
e contemplo o cosmo escancarado

57
Estou no cimo, mas piso ao solo
flutuo pela rua com o corpo dormente
e a alma nua, de tão viva, está candente!
Estou no amor – pela primeira vez.

Como foi que fez esta bagunça?


Meu irmão pergunta e me entrega um croque
Sinto raiva, raiva dele que é vil
— Mas não serei vil eu? Sim, sim, e bem mais;
pois enquanto ele me ama sempre e sente raiva
em casos específicos, curtas explosões,
eu sinto raiva sempre, e o amo em casos específicos,
como quando um presente
se desprende de seus dedos, um brinquedo
um boneco com que conta histórias.
Ele tem um grande coração
e sua raiva é como chuva de verão
e minha raiva é como o inverno.
Mas raiva será real numa criança?
Talvez o adulto orgulhoso já se antecipava
na andança do tempo;
mas nem tudo é ruim nas antecipações
(Pois aquele dia, no rio,
algo de muito antigo respirava
na criança que eu ainda era).

Surgem formas de mulheres


são como aves exóticas
seus cantos me soam com algum encanto,
mas alguma dissonância.
E por que se cortam quando eu calo?
Umas me rondam, risonhas, tristonhas
esticam sua plumagem multicor
exibem-se; outras alçam voo violento
e não as posso reter.
Nenhuma delas é Ela:
Musa, mística, mista
Entre a Virgem e a fêmea louca
entre a menina e a anciã;
divina, guardiã da flor mais rubra
— o puro perfume —
Ela, impactante como um raio
em seu rito de ser discreta;

58
Ela, sagrada, secreta, ainda virá
ouvir-me calar e ser um sonho real
na simetria de dois silêncios
que se somam.

Foi-se, definitivamente, o meu mestre


(o homem mais tolo que conheci,
o homem mais sábio que conheci),
Quem será o santo a sanar a falta
do saber que o tempo ainda não deu?
Sim, tinha algo de santo,
apesar do Gênio mau.
Ouvi árvores cantando
Quando soube da notícia, o sentido
Parecia ter sumido, mas assumi,
ao canto das árvores, à noite escura,
que era herdeiro da luz
de um homem bom
(Do homem mais tolo que conheci,
do homem mais sábio que conheci)
Quem saberia da candência que ele criava
por sob os nervos escuros
Se era tão silente, tão simples entre os simples?
Foi-se, definitivamente,
meu mestre.

Mamãe reaparece, mais jovem


bela e expansiva, é como o sol do meio dia
e pensa com o coração, e seu coração
é vermelho, e é dourado.
Mamãe envelhece, e depois de frágil,
retoma a força — quem não vê uma coroa
fixa sobra sua face de íris azulada?
Tem vida humilde, mas é rainha
e penso que seus mundos inventados
pouco a pouco, vão renascendo
e florescendo sob um sol manso
bastos de rios adormecidos.

Ela, enfim Ela... Nunca o ato carnal


havia me purificado. Ainda será pecado
se me eleva a altura tal?
E não são anjos que dos cantos do quarto

59
vibram num sutil âmbar,
castos, cândidos em sua inveja?
Completar os vazios de uma mulher
unir-se a Ela e ser completo
— Vejo uma nova aurora, um novo Éden
na pele desta Eva orvalhada
em suas Pétalas —
Sou uno, sou completo:
este amor está repleto
de vinho... e de Deus...

Vovó é austera como uma leoa,


imensamente amável, mas severa
doce em sua dureza, realeza
serena em sua solidão
mas ainda que brava, é mais hilária
que um conto de Tcheckhov,
sendo simplesmente natural
naturalmente simples.
Ó matriarca, ó leoa sertaneja,
ainda que dura, deixa
um de seus sonhos entre meus dedos,
e o deixo cair
(Casta como uma criança
quer aprender com outra como ler)
E na segunda ocasião
em que me esquivo ao compromisso
está acabado, sonho lançado ao chão
sinto dores, um reboliço
mas me consola que verá no céu
o clarão das cores mais belas,
e lerá na luz do próprio Deus
o jorrar de todas as palavras
e da Verdade a que se referem.

Estou ferido, levo porradas


no pátio da escola.
Não poderia ser mais forte?
Não poderia ser como quando
fiz outros fazerem a pergunta
que agora eu faço?
(Não poderia ser mais forte?)
Lágrimas escorrem

60
— não, tudo bem, tudo bem,
tudo é bênção, tudo é sorte;
tudo está em seu lugar
nestas velhas cenas
que me surgem.

Levá-las-ei ao altar do esquecimento


mas algo delas subsistirá
síntese informe, indefinível
tranquila, de cada quadro
repousando ao seio,
ao centro de minha alma
— Esperará um novo surgimento
com outras nuances,
aos olhos do novo eu
transfigura-se toda lembrança
re-expulsando o breu;
E como clarões vindos da Fonte
mais velha que o cosmos
novas cenas nascerão,
após o meu renascimento
até meu adormecimento
definitivo.

Sim, estou ainda vivo


E sei

Que em breve,
Muito em breve

Eu morrerei...

61
AS ASAS DO SILÊNCIO SE APROXIMAM

As asas do silêncio se aproximam,


não mais tantos ruídos, finalmente
o corpo está mais leve, a alma pressente
seu vôo entre ventos que cintilam.

Não mais por artifício a boca mente,


não mais por ambição a mente arde,
virá já manifesta, a antes latente,
completamente calma, a claridade.

As asas do silêncio se aproximam


— irão me dar vislumbres da Verdade —
meus bichos de vaidade se esvaíram,
sou como concebeu-me a Eternidade.

62
NÃO CRUZES ESTE RIO FEITO APRESSADO

Não cruzes este rio feito apressado,


o rio vai já depressa o suficiente,
contempla o tom sagrado, iridescente,
que brota destas águas, se, parado
esfrias o teu corpo na corrente.

Não passes pelos peixes providentes


a debater teus braços, qual ingrato,
ansioso por lograres outro lado,
que eles hão de fugir-te indiferentes.

O fluxo em que estás é já excelente,


malgrado as vezes em que, inesperada,
a água se enfurece e tudo arrasta
às pedras onde há dores mui pungentes.

Não cruzes este rio feito apressado,


que só quem nele bóia, extasiado,
há de ir morar no mar de ondas silentes
banhadas pelo Sol ilimitado.

63
DESCANSA, ALMA

Descansa, por ora, alma pobre


teu frêmito de sonhos e anseios.
Haverá o tempo pro não nobre
a busca ao pouco, mil receios
(inda não estás transfigurada).

Mas não hoje, sob este poente,


sob esta obra-prima alaranjada.
Pelo mundo, hoje, amor sentes
ao clima duma paz-estupefata.
Não espanta-te como graças

se aninham aos respiros teus?


Como o cosmo inteiro te abraça
e o ar alude ao manso Deus?
Que vitória vinda da tua caça
ultrapassaria uma eternidade

que amável veio aos teus limites,


ser compressa à tua fugacidade,
aplainar o vil dos teus declives?
Mui além às caças da vontade
é seres presa da voraz beleza

- um sagrado tigre a te espreitar -


repousa teu anseio, tua aspereza
sê alma que humilde a si semeia
quieta, mui quieta, a se impregnar
do esplendor imóvel que a rodeia.

64
PEDINTE PELA LUZ

Eu sou o que se fere por vaidade,


o que amiúde oscila frente o medo,
em mim percebo o escândalo da carne,
enterrando a presença do Perfeito.

Sou pássaro que ascende e já se evade;


muito mais do que Pedro a Cristo nego
— porém ponta-cabeça, em hombridade,
inda não expurguei os meus tormentos.

De Deus sou este filho que não sabe


pra Sua luz ser límpido instrumento.
Mas se no auge da noite me invade
o esplendor dum celestial silêncio

Procuro a porta Dele em humildade,


se nem sempre consigo, sempre tento,
pedir com profunda sinceridade:
"Meu Deus, faz-me vencido da Verdade!

Eu amo-Te, apesar da iniquidade


em que tanto chafurdo meu intento"
- conforme peço mais, sinto o milagre
me infundindo amor que não entendo

e ao dia vou mais pasmo à claridade


com que Ele vem morando em meus momentos,
abrindo-me a um sagrado alumbramento,
por níveis mais subtis de realidade.

65
LAMENTO MEUS INSTANTES QUE MORRERAM

Lamento meus instantes que morreram


sem que eu desse-lhes um foco luminoso,
se foram vendo em mim o horroroso
que vícios mil aos poucos perverteram;

eles cerraram os seus cílios invisíveis,


me vendo recusar os seus incríveis
resquícios dos primórdios oriundos...

Lamento meus instantes que morreram


sob meu ser olvidado e infecundo
negando tudo aquilo que ofertaram
- alheio, mas também morrendo junto.

E fui tão duro


com esses tantos moribundos,
esses órfãos, esses rápidos rascunhos
(que em turvos punhos
ensaiei minha história inteira),

que aceitar dos seus filhos o fulgor


me parece ser a única maneira
de prestar aos falecidos um louvor.

66
TREVAS DA POSSIBILIDADE

Um extenso prado de dentes-de-leão


ele tinha n'alma - sem força de assoprar.
Sonhos impregnados de preguiça.
Um anseio inerte, dum gesto do alto.

Supunha um repentino movimento


germinado nas entranhas do universo
que cairia como benção aos seus pés
justificando tudo, justificando o mundo.

A providência é insone, é verdade


(Mas suas pálpebras d'ouro
não se abrem sobre os negligentes).

Quando o fim surgiu como um raio,


contudo escuro, cruel e melancólico,
o prado pereceu - queimado e preto.

E sua derradeira imagem na terra


foi um céu espesso, de nuvens cinzas
— cobrindo um sol que quase apareceu.

67
AS COUSAS OUTRA VEZ TÊM HARMONIA

Ainda ontem se turvavam, maus,


meus olhos, alheios às Tuas dádivas
— sequer as graves e avermelhadas
flamas do poente, sequer as naus

silentes, entre as ondas deleitadas,


falavam-me de Ti, Luz Ancestral!
Sem diferir o belo do banal
flanei co'a carne acesa, a alma apagada;

e supliquei-Te, nu, desesperado.


Espantado, constato, Deus, é absurdo:
basta um apelo deste peito sujo
Pra que Tu, que chamas sem ser notado,

que feneceu sozinho à tarde escura,


venhas, como clemente companhia,
suspenderes Tua impura cria
ao colo dos silêncios que fulguram.

A Ti curvei a minha torta espinha


— num só átimo de sinceridade —
e as cousas outra vez têm harmonia,
e o cosmos pressagia a Eternidade.

68
FÁTIMA

1917, Portugal.
Dezenas de milhares viram
o assombroso vendaval;
depois o sol, com sua dança
de raios prateados,
num esplendor tamanho
que aleijados começam a andar
— anseiam dançar junto –
e os cegos querem contemplar
— eis que o Eterno os faz ver.

As lágrimas jorram;
os ventres tremem;
as interjeições ressoam;
as almas se dilatam;
três crianças veem, falam,
com a bela Senhora, que anunciaram.

Inda nos restam testemunhas,


Dona Romana, por exemplo,
dum lar de idosos
(tinha nove anos, na época).
E pouco importa que seus ossos doam
69
e que a morte já a espreite
bem de perto.
A ela foi dada a dádiva
de ver a amostra incandescente,
prata, do Infinito, e sentir
a presença perfumada
— anulando os pesos –
da Rosa Mística, da mãe
do Nosso Cristo.

Ah... é dum belo até indizível!


Quem dera, tivesse eu visto!
Mas vejo refletido o céu
nos olhos da velha, cuja voz já oscila,
mas denota, precisamente,
o tom da infância – encantado,
límpido, entregue, sem artifícios –
como recomendou-nos
o próprio Cristo.

E eu cá imagino:
olhando o poente,
ela recorda sempre,
daquele trêmulo sol de prata
que pareceu despencar,
beijar a terra?
No coração da noite

70
seus sonhos
têm cegos pasmos com a luz,
aleijados ardendo, docemente,
haurindo o vento fresco enquanto correm?
Ela re-ouve, em sonhos,
os soluços ante o quadro
do Absoluto?

Ah, Dona Romana...

Ah, Deus absurdo...

que entre séculos sangrentos


e impérios de mentiras perniciosas
não cessas Tuas amostras, de que nos ama
sutilmente, a cada aurora
a nos alumiar;

mas somos cegos, e doentes


— o subtil não basta –
então Tu fazes,
até mesmo

o sol dançar...

*A entrevista de Dona Romana sobre o milagre de Fátima encontra-se no youtube.

71
PADRE PIO E GEMMA – A menina que passou a ver, sem ter pupilas

I
A ESPERANÇA DE GEMMA

Gemma já ouviu que o mar azul descansa


as nossa vista em sua vastidão,
e que o poente tem vermelhidão
que enternece enquanto se desmancha...

mas desconhece (não por ser criança)


não tem pupilas, logo, nem visão.
Contudo, no íntimo do coração,
agora nutre uma forte esperança.

Desde a Sicília junta a vó avança


alegremente, coruscando o sonho
de encontrar, na igreja de Rotondo,

um velho santo, fonte de milagres.


Vai cega Gemma, coração risonho,
Imaginando o benedito padre..

II

GEMMA VÊ

Já no caminho tantos tons se abrem!


Cintila o azul, tingindo céu e mar!
Eis que dourados feixes mil invadem
a alma de Gemma a se maravilhar!

Que bom do mundo olhar a imensidade,


as aves livres picotando o ar;

72
naus no horizonte, velas a rumar;
sua vó chorando de felicidade!

Bem disse a freira de sua família


que por um sonho vira o brando padre
a perguntar da cega pequenina

e logo após, repleto de bondade,


com mãos marcadas, esboçar a cruz
disto recorda, Gemma, vendo a luz.

III

GEMMA ENCONTRA O PADRE PIO

Ela o vê de perto: os cabelos brancos


as mãos com luvas, escondendo chagas
(a exalar o perfume dos campos),
o olhar agudo qual ponta de faca.

Então a chama, ouve sua confissão,


depois lhe diz algo que muito a marca:
“sê boa e santa”. Quanta comoção
invade a alma da doce menina...

Verá, enfim, os prados da Sicília


e respirando alguma oração
há de lembrar que um dia já não viu...

há de escutar a recomendação
do velho santo, do sagrado Pio,
ao se alumbrar co’a bela criação.

73
IMAGEM

Saio só na noite
o silvo frio não me assusta
mas dos rostos no caminho
disfarço meu rosto, contrito.

Ninguém a me fitar, enfim,


Mas também o choro, se foi;

A alma a flutuar
entre prisão e soltura:
tudo é possível, porém,
nada passível, de senso.

Espere! Talvez algo:


talvez ser um receptáculo do céu
como aquele que partiu há pouco

Mudar-me, talvez, pra um campo


longe, bem longe...
talvez mudar-me perto, por dentro;

entrar, enfim, às purezas


que escondo ao peito
(sem nunca transpor o cerco
de pedras ásperas,
que as antecedem);

Afagar os cabelos de um pequeno


— criá-lo em sociedade com Deus
e a calma mulher.

Trabalhar feliz, em cousa qualquer,


pagar assim o pecado.

Haverá tempo, pra trazer à vida


velhos sonhos?

74
São mesmo meus, esses lampejos
de senso?

Pergunto aos céus


mas só as árvores rompem o silêncio

o chiado dos galhos lembra o mar


e murmura uma palavra
intraduzível;
embora bela e mística, em seu som.

Como cantam as árvores!


Como eu nunca ouvira?
Às vezes nos encanta,
este mundo sensível
vianda, para o tempo...

A noite me encara...
mil impressões surgem
sob a penumbra dum poste

É que a morte se mostra qual pintura,


entre romance e barroco
sim, é a imagem da morte
que se esparrama densa

e deixa dores,
de louco;

e lumes,
de santo.

75
O QUE FOSTE EM VIDA ESTARÁ COMIGO

O que foste em vida estará comigo


de agora à morte, como um norte,
como no horizonte um fulgor forte,
dentro da memória um belo abrigo.

As reverberações do que é bendito


envolveram tanto tuas ações
que foste, mas deixaste em corações
a força pra enfrentar dias aflitos.

O que foste em vida estará comigo;


e o que fomos juntos sob as luzes
entre alegria e pranto, nossas cruzes
que às vezes dividíamos, amigo.

Bem lembro sob o sol o teu sorriso


e o jeito de ajudar o teu redor
e o tanto que tornaste-me melhor...
então te busco ao céu e digo, digo:

o que foste em vida estará comigo.

76
QUANDO EU MORRER

Solares feixes, suaves,


dardejarão num quarto ermo

onde objetos sem dono


penderão graves, acesos.

E os segredos da minh'alma
— cada interna luz e treva —

estarão enfim visíveis


— mas num sítio mui longínquo.

Praias e porões que eu levo...


mundos que só há comigo...

Perto a um corpo já vazio


dir-se-á a meu respeito

um caso leve, bonito,


abrindo em poucos que choram

o vacilar dum sorriso...

77
O HOMEM E O TEMPO

Fui colocado num ponto da tua história.


Não sei o quando do teu fim, ou do teu começo
sei quem te fez, contudo — e quem virá findar-te
no dia em que os demônios despencarem nos abismos
como frutos podres; no dia em que as pupilas
espantar-se-ão, em ver que a verdade era mui distinta
do que supunham; e os mentirosos nos altos postos
hão de ser desmascarados. Ah, os perfeitos de branco...
e os pecadores purificados, surpresos, também de branco...
um incêndio de amor e glória ardendo aos corações...
o secar das lágrimas... o Cordeiro.

Mas não sou profeta, e pouco influirei no todo


da tua história (bem, "pouco", neste caso, é eufemismo).
Embora há instantes em que teus grãos mínimos
(segundos, minutos, horas, dias) pareçam-me alongados
olho o calendário: há dois mil e vinte e dois anos
o Salvador nasceu — esteve só no Getsêmani; só na cruz
(viu só aquele céu de trevas tão espessas, enquanto açoitado por erros
humanos) e ressuscitou
depois; caminhou como um relâmpago infindo,
e se disfarçou — nas flores, nos ventos, nas íris, nos corações.
Cá o esperamos, com tanto ardor — mas tanto oblívio —
que esquecemos que Ele jaz bem vivo (não "nalgum lugar",
mas em todo lugar), nos espiando, irrepreensível, sereno, paciente.

Perdoe-me, tempo: estou de novo divagando... mas é possível


falar de ti — e de mim — sem falar de quem nos fez? Pois bem,
retomo: o calendário conta já dois mil e vinte e dois anos
e isto, às vezes, me assusta... ontem, deitado com minha esposa,
ela pareceu-me um anjo a evanescer entre tuas presas apressadas,
tempo, me assusta que não retardes teu passo pra que eu possa
olhá-la... e há o trabalho ao qual preciso dar o pouco que tu me dás
(talvez, com sorte, setenta entre anos milhares). Tudo é tão veloz...
nem sempre posso contemplar os sóis se pondo, o ronronar dos rios,

78
as etapas tão suaves da etérea flor; a valsa das folhas secas; o frescor da
minha amada
que pouco a pouco lhe escapa... e já vi, austero tempo, o rosto
dos meus mortos, gélidos no ataúde, despidos já de ti. Tudo isto
me assusta tanto, que não há um dia em que eu não busque a Eternidade,
e vou me equilibrando entre silêncios.

A Eternidade... tão maior que tu! Leva com tua mão avara, as mães, os avós
(até das crianças tu às vezes te apartas, num conluio com a morte!)
que importa? Leva. O que aconteceu, por um instante, não desacontece:
perante a Eternidade tu és tão compresso, tão lépido, quanto
o efêmero feixe de sol que penetrou minha janela e deixou em brasas
as íris do meu anjo. Passarás, como passa o corpo dela, e o meu,
como passou-me a presença de vovó. Mas nossas almas são perenes.
E é verdade, que talvez eu arda perenemente num fogo escuro;
sim, poucas coisas são tão terríveis, mas não é tão terrível quanto
se todos ardessem... haverá, sim, uma cidade sem sol nem lua,
uma pátria pura adornada pelas pedras mais raras; pátria alumiada
pelo Relâmpago sereno e sem limites.
Cristo abraçará seus filhos... isto é suficiente
pra um pecador chorar e ir se dissipando em tranquilidade.

Mas... sim, o óbvio me assalta: tu não és meu inimigo.


Através de ti que tive notícias dessas coisas. És a condição
pra que, por meu arbítrio, possa eu participar do amor celeste;
és outra concessão dum Deus cujo perdão é absurdo. E é verdade:
por vezes, teu véu se faz tão tênue, que posso divisar o Absoluto
numa intuição esplêndida, além de quaisquer recursos expressivos,
posso sentir tudo, desde o jardim perdido até este instante em que te falo.

Deus... quantas condições foram necessárias... quantas combinações...


algo do primeiro homem respira em mim,
algo do primeiro astro vibra em mim.
Benditos sejam! Até os trabalhos toscos, as horas que pareciam lentas,
mortas
e patéticas. Agora vejo o elo entre as coisas todas. Irei me descobrindo
entre constelações e grãos de poeira. Bendito meu cotidiano de homem
comum!
Bendito o chão sob meus pés e tudo que te invade, tempo veloz
e milagroso, pra ser um quadro móvel da Eternidade — isto é que se
chama de presente! Como eu era cego há um dia atrás!
Agora sei, generoso tempo.

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E posso viver, como um ínfimo capítulo de ti, e depois partir
em completa paz.

80
NA NOITE ACHEI UM CHORO DE JESUS

Na noite achei um choro de Jesus,


as lágrimas de luz sobre os planetas,
ouvi contra o silêncio das estrelas,
suspiros tão pesados quanto a cruz.

Na noite achei um choro de Jesus...


e vi-me assaltado por surpresa:
"Se És Senhor do tempo, das belezas,
se És o Sol Perfeito que reluz

na Pátria, Uno ao Pai (à Sua direita),


Por que de Ti emana tal tristeza?"
Mas nada Ele verteu como resposta..

Então, por minha mente — parca, torta —


Imaginei que era em decorrência,
das almas que enterraram suas essências

e foram se queimar, pra sempre mortas.

81
MISTÉRIO — O AMOR DIVINO É UM ABSURDO

Permanece o mesmo, este mundo


a sua farsa inda nos arrefece
— a causa da apatia é um medo imundo
de ver a proporção do que o mal tece.

E se aquele Fulgor, sacro e profundo,


voltasse sem usar Sua vastidão,
de novo pregaríamos Suas mãos,
após lhe pôr no flanco ardentes furos.

Nós somos os escravos do conforto,


desesperados pela segurança;
as fáceis presas de infernal suborno,
o sono que terror nenhum espanta...

Senhor, por qual mistério tanto amas,


tal volumoso mar de homens mornos?
Por que virás doar-lhe vestes brancas,
e secares o pranto de seus olhos?

82
SE VEROS VAMOS

Há pouco percebi que há muito


não te escuto — não te culpo:
bem sei que só eu corto
a corda que tu estendes
(Entre trair-te e se trair
nada há de diferente).

Tive já o instante ardente


de afinar-me à tua voz
e ver em brasas as asas
que cresciam por meu dorso
e cada brisa eriçava
a flama infinda, e o voo
que alçava era mais alto
que a intensa noite

Mas tantas vezes o açoite


de ser avesso
ao que quiseste em mim
(que nada foi senão meu eu)
me acerta, que o breu
me assusta, e o céu
parece um sonho, do qual
caio antes do ponto crucial

O final sem finalidade


bate à minha porta...
Em toda parte o peso
de recusar me espreme
vou opresso, caminho
à noite escura
e nunca volta
- o que perdi

Eis que tua voz pura,


porém se insinua,
somada ao som
dos grilos, dos galhos,

83
dos chiados que saem
do imenso mar

Sempre, sempre...
sempre estás disposto
a nos provar
que poeira nenhuma
vem conosco
se veros vamos

ao teu lar.

84
VERSOS DESTINADOS A QUALQUER INSTANTE

Instante que penetra-me as pupilas


trazes na espinha contingências
que piedosamente a Providência
uniu pra que eu te visse... pouco havia
eu vagava louco, com alma fria

dos teus ancestrais perdi a essência


graciosa; do cosmos, da aparência
das cousas, só colhi a agonia
de achar tudo opaco e evanescente...

Mas, enfim, vejo: como não amar-te


se carregas em ti remanescentes
do fiat lux? Se nunca conhecer-te
era muito mais lógico, mais fácil?

Temos esta sacra identificação:


nenhum de nós dois era necessário,
mas aquele atemporal clarão
— ao dourar no escuro o primeiro astro —
sabia e quis este nosso encontro

e através de ti posso encontrá-Lo,


e ser como eu já fora, no Seu sonho.

85
EXERCÍCIO DIFÍCIL
À Clara Ochove

Nunca houve outro como este domingo...


da ventana vejo saudáveis árvores;
no quarto tu praticas violino
e junto a ti ressoam ternas aves...

Ah... é um exercício tão difícil


este de muito amar cousas mutáveis,
sabendo que há a fome irreversível
do tempo sobre as dádivas fugazes!

Algum de nós irá partir primeiro


o outro há de calar, retendo os mares
(as ondas a quebrar nos olhos cheios),
tentando c’o destino fazer pazes.

Mas não se trata só de ver cabelos


caírem, o tão certo envelhecer:
mas antes é uma via pra aprender
a não só se espantar se um derradeiro
"adeus" o que amamos entoar

— mas também se o "olá" um dia veio.

86
CONVITE À INTIMIDADE ESPIRITUAL

Vem comigo, pra onde só alcança


quem possui o dom de estar parado;
quem se deita à luz, já despojado
e além de tempo e carne logo avança.

Ao ver-te sentirei a tua infância


quando ressoavas sonhos num quintal,
na terra eras pra anjos um portal,
vibrava em ti pureza, cintilância.

Eu hei de conhecer os que tu amas,


como ardem num instante de beleza...
em cada corpo o enlevo, a subtileza
de ir ser cinza mas hoje ter flama.

Paisagens que há em ti... as praias brancas,


as serras e os bosques outonais,
adentrarei também, sem discrepâncias,
sem invejar o infindo que tu levas.

Sob este feixe não lutamos mais:


teu júbilo é a minha esperança
de olhar matar em si a espessa treva
(fazer das íris góticos vitrais)
mais uma entre artes sacras que Deus faz

— e que Ele pra inundar, co'a luz espera.

87
EIS QUE TROCASTE O TOM DO MEU SILÊNCIO

"Se num repente se partisse o véu


entre meu consciente e o que eu exponho
quem que defronte ao meu secreto fel
amar-me-ia com meu mal medonho?
Ninguém além de Ti que estás no céu"
— Isto eu pensei, numa dorida tarde.

Mas vindo-me, em verdade, como um sonho,


talvez porque me ouviste com piedade,
teu Ser tem me infundido claridade
matando do que eu calo o tom escuro
morando num silêncio que me invade...

e quando no que guardo um bicho impuro


tentando seduzir-me, assoma, arde,
não mais eu me agonizo por ser sujo
apenas Te procuro em humildade
apenas lembro à cruz Teu terno punho

e dentro do que escondo Teu Ser se abre.

88
AO PERFEITO SOLITÁRIO

"𝘗𝘰𝘥𝘦-𝘴𝘦 𝘱𝘦𝘯𝘴𝘢𝘳, 𝘱𝘰𝘳é𝘮, 𝘲𝘶𝘦 𝘰 𝘱𝘢𝘱𝘦𝘭 𝘥𝘰 𝘢𝘮𝘰𝘳 é 𝘱𝘳𝘪𝘮𝘦𝘪𝘳𝘰 𝘮𝘶𝘥𝘢𝘳 𝘢 𝘯𝘢𝘵𝘶𝘳𝘦𝘻𝘢 𝘥𝘦


𝘵𝘶𝘥𝘰 𝘰 𝘲𝘶𝘦 𝘥𝘪𝘻𝘦𝘮𝘰𝘴 𝘦𝘮 𝘷𝘰𝘻 𝘣𝘢𝘪𝘹𝘢.
𝘚𝘦𝘮 𝘥ú𝘷𝘪𝘥𝘢 é 𝘦𝘴𝘴𝘦 𝘰 𝘴𝘦𝘯𝘵𝘪𝘥𝘰 𝘥𝘰 𝘢𝘮𝘰𝘳 𝘮𝘢𝘪𝘴 𝘱𝘦𝘳𝘧𝘦𝘪𝘵𝘰, 𝘲𝘶𝘦 é 𝘰 𝘢𝘮𝘰𝘳 𝘥𝘦 𝘋𝘦𝘶𝘴."
- 𝘓𝘰𝘶𝘪𝘴 𝘓𝘢𝘷𝘦𝘭𝘭𝘦, 𝘈 𝘤𝘰𝘯𝘴𝘤𝘪ê𝘯𝘤𝘪𝘢 𝘥𝘦 𝘴𝘪.

Mude, do que calo, o polo


(Mova-me do escuro ao claro)
De alma nua, a Ti, imploro
Acordo neste instante raro

E que não mais maus ruídos


sejam, ó Perfeito Solitário,
o que frente aos indivíduos
queira no meu santuário

Esconder. E o silêncio fundo,


que é meu santuário interior,
tornar-se-á puro e fecundo
se ressoado com o Senhor

Que cavou no árduo deserto


o espaço de luz, profundo
e sem tempo; para aberto
Toda treva deste mundo

Transformar à cruz. Quem


Dera-me encontrar no cimo
desta prece algo que além
(Como um resquício, um hino)

Seguisse-me ainda às quedas


ante a carne, o ego, o medo
E como quem em si carrega
Sinais sutis do Teu segredo

Não mais, das almas, apartar


meu peito. Mas é evanescente

89
este estado pleno a embalar—
me a prece. Porém, entende,

Alma minha, entende e sê


essa busca ao que se vai e vê
que só assim és condizente
com o que tu foste já presente
à luz do Ser superior.

Ó Ermo, limpe meu santuário


Colha-me, vencido, no esplendor:
Tua quietude de Áureo Solitário.

90
O SEM-TETO DA RUA TRÊS

Na rua três dormita um sem-teto,


quem o vê delirante e cinzento,
bradando devaneios contra o vento,
se esquece que ele é filho do Eterno.

Quem o vê saciando os horrendos


sedentos emissários do inferno,
não lembra que ele fora, algum momento,
amor maior dum coração materno.

Ele vaga entre vícios e tormentos


desenha a cada ato um risco impuro
no seu quadro vital, e faz mais sujo
o ser que veio construir no tempo.

De raro um dos sinais do Absoluto


(talvez o olhar fulgente dum passante)
penetra sua alma que, num instante
de estranha lucidez O reconhece;

mas logo após o espanto das pupilas


a luz dentro ao seu peito se esmorece
qual flama que sem lenha se dissipa.

91
OS ROSTOS

Já se aproxima o fim da minha história,


de modo que já vi de tudo um pouco,
e o que mais me impressiona são os rostos
— levo um punhado deles, na memória.

Recordo um feminino em frente à escola


descobrindo o fogo ao ser beijado;
Lembro outro à meia luz, mui magoado,
pedindo que ficasse — fui embora.

Vi uns no ataúde, maquiados


me perguntando com autoridade:
"enquanto vivo estive do teu lado
fizeste por minh'alma tua parte?"

Há rostos que do além deixam saudade,


cintilam como raios, revigoram
— como se usando da fugacidade,
o Eterno desse indícios da Sua glória.

Já se aproxima o fim da minha história,


de modo que já vi de tudo um pouco,
e o que mais me impressiona são os rostos,
retenho-os qual pinturas, na memória.

92
O JULGAMENTO DE SÓCRATES

Só Sócrates sabe que há em curso


dois julgamentos: o seu, por Atenas,
e o de Atenas, pelo Absoluto.

Decerto dele sentiriam pena,


se acaso implorasse por sua vida,
mas o filósofo é avesso às cenas;

Então defende-se com ironia,


sugere honrarias e o sustento
no Pritaneu, tal como merecia.

Perfurando o vulgo c'o olhar sereno,


seus gestos já inundados de infinito
(mesmo antevendo o trago no veneno)

afina o ouvido pro daemon divino


— tendo a certeza que seu ser é um palco
que o eterno usa pra enfrentar o ínfimo

e seduzir as almas, rumo ao alto.

93
O SANTO

No ardor dum fogo branco e infinito


ele supera medo, corpo e tempo;
além do amor de si e seus conflitos
salvar o semelhante é seu intento.

Nem sempre se distingue exteriormente


do homem cuja pele é o mandamento
mas dentro ele procura veemente
Àquele que é pra alma o alimento.

Se não mata suas falhas totalmente,


converte-as em palhas pro incêndio
que vai fundindo-o gradativamente
ao Cristo que ele escuta no silêncio.


*Inspirado nos textos de Louis Lavelle

94
NÃO É DESTE MUNDO A RECOMPENSA!

Não é deste mundo a recompensa!


É preciso repetires alma adentro
é preciso moldurares a sentença:
"o Divino a ti nada está devendo!";

o crânio do melhor foi à bandeja,


a São Paulo os vilões decapitaram,
São Pedro foi à cruz ponta-cabeça,
e julgas que pra ti os bens faltaram?

Amar a Luz não é só paz na terra


mas é dentro da guerra estar sereno
pois inda que te oprima a dura treva
Insufla-te o Espírito que É pleno!

Lembra que apesar de todo espinho


existindo, as maravilhas desfrutaste:
da mãe que te nutriu veio o carinho
do céu muitas belezas a inundar-te;

ademais, viver já é um dom gratuito


(ou para vir ao mundo algo pagaste?)
É bom nascer na terra que adentraste!
Só é menos que partir pro Absoluto.

95
PULSAÇÃO

Deus, quando refulgiu a tua aurora,


eu estava um tanto estranho e sombrio
sentindo a lucidez já por um fio
ao meditar nos bens que joguei fora;

Mas o coral dos pássaros surgiu


bem como um gavião cheio de glória
— ele pairava ao ar como quem boia
à correnteza do alto, azul anil.

E ao sair de casa , indo ao trabalho,


topei em uma criança que sorriu
vi folhas a valsar no vento frio
e a expressão feliz dum aleijado...

a alma basta abrir-se atentamente


pra ver entre o real os teus chamados
nos vindo sem cessar, por todos lados:
são flamas a pulsar dentro dos entes.

96
UM LONGO EPITÁFIO

Tu que lês esta imensa lápide:


agradeço-te o zelo, a caridade,
porque dás olhos às palavras
de quem viveu sendo ninguém
de quem, inotório às massas,
foi alojar-se longe, no além.

Desculpa-me, sei que o epitáfio


deve ser curto, perdoa este confuso
homem que sou. Talvez que um:
"Aqui jaz um obtuso" já bastasse.
quiçá te faça bem, quem sabe?
Se, às vezes, até o tolo tem razão,
vá lá que uma luz posta à lápide
venha penetrar-te o coração.
Todavia, aqui repousa confissão
vera. E experiências fraturadas
de vida entre céu e treva disputada.

O fato é que tão torpe eu fui...


e já deixei tão rudes os sentidos!
a ponto de aprazer-me meu pus
e não notar à brisa do amanhecer
os angélicos hálitos oferecidos.
E contra mim mesmo ressentido,
Deixando minh’alma enegrecer,
Icei a estranha aurora artificial
enquanto enterrava os gemidos
disfarçando-os no rosto marcial.

Vejas: até este morto que te fala


(que amiúde amigo do abissal)
deitou-se à mão que tudo ampara
sendo aceito ao sobrenatural
(mesmo que em feixes fugazes).

Quero que abençoes tua vida,


e perdoes a tempo tuas recaídas;
só venho atestar o que tu sabes
97
dantes desses furiosos mares
que agora inundam-te pela lida!

Há epitáfios que não estão escritos


mas que lidos na entranha noturna
ressoam nos silêncios, nos abismos,
claro-escuros ecos das taciturnas
existências. Se não crês em mim
crê nas essências, puras, furtivas
(não exclusas) no que à vista passa
e assim te cresçam soluços de graça
de agora até todo o caminho ao "fim".

Se mesmo a mim a eternidade deu


(eu que contra a mais íntima aurora
erigira os dédalos do denso breu)
um amor com que adentrar o Éden,
e fez-me, inda que torto, um instrumento
das coisas sacras, além-firmamento,
(eu que já fora do vil um elemento!);
o que o Eterno tece-te em segredo?

Tive, entretanto, grande sorte


de entreouvir bastante cedo
silvando a foice fria da morte
mas sem inflar-me de vão medo,
nem da falsa coragem dos loucos,
e sim sendo pintor que aos poucos,
se prepara para o fim da obra.

Talvez, no fogo negro do inferno,


eu me queime agora que tu lês;
mas inda não enquanto escrevo?
Quem sabe... em vida nos é mistério
o etéreo que dissolve o tempo
o eterno tendo tudo de uma vez.

Mas talvez, mudo, de imprevisto,


banhe-me àquela luz doutro lado
e acompanhado ao próprio Cristo
caminhe já sem peso, nem passado.

98
EM TODO PÔR DO SOL HÁ UM ENSAIO

Em todo pôr do sol há um ensaio


da forma que teremos no Juízo;
por isto que são dúbios estes raios
que ao alvorejar eram melífluos;

ressoa com o tom dos nossos atos


o incêndio ateado no horizonte
(por dedos do Artista mais sagrado)
e força nossa alma estar defronte
do peso dos seus passos pelo dia

— não é que isto a si o homem conte


inconscientemente é que advinha
que o incêndio pelo céu é uma ponte
pra sentir que já se finda o onde se cria
o seu ser que habitará a Eternidade.

Eis porque, embora sempre belo


(dum belo cuja cena sempre arde),
essa beleza bem pode ser um elo
à dor pungente ou à serenidade.

O fato é que a alma sempre sente,


olhando pro poente que a invade
que ele é uma síntese eloquente
entre evanescência e Eternidade.

99
PENSAMENTOS DE PAULO NA ESCURIDÃO

Eu trocaria, alegre e resoluto,


a multidão dos dias em que "olhava",
em prol dum só suspiro, um só segundo,
no seio desta treva que me aclara

— Direi que eu vira o céu, o sol, os frutos,


a relva, os animais, a humana raça
se eu vendo, imerso em sono, isso tudo
quem isso tudo ampara eu não notava?

É salutar que agora eu nada veja,


que sem me distrair por tons e linhas,
despenque sob os ecos da beleza
da voz que soçobrou a visão minha...

Jamais eu soube assim que o mal mereço,


eu fora todo engano, erva-daninha;
Jamais fui tão feliz, pois não me esqueço
do Ser que em perseguir eu me entretinha...

100
AVANTE, SANGUÍNEA E SANTA PEDRA!
Avante, sanguínea e santa Pedra!
Espera-te, nesta aurora rosada, o espanto
em ver que não mentia o Deus humano;

Sabes que Seu perdão te abraçará


(aquele olhar de lança, de relâmpago
logo após o galo visceral,
amor sem mágoa não te anunciara?);

Da desertada tumba, o silêncio


paira prenhe de ecos claros
— lateja inda à pedra a temperatura
do corpo que comporta o infinito —

malgrado o rebentar das lágrimas tuas,


de uma alegria irreprimível,
nem mesmo imerso nelas saberás
quão frutuoso é o fogo do teu erro ...

E algures anda o Incêndio Inapagável...

101
SIMÃO PEDRO

Os peixes coruscavam como estrelas


na rede que lançar Ele ordenou
de súbito, em meu peito, despontou
uma emoção de alvor e estranheza

— Toda luz que vira antes, só centelha


perante o incêndio pleno, íris Dele,
e o céu se espraiou por minha pele,
no mar, no ar, no eu... quanta beleza!

E contemplei inúmeros milagres,


no monte vi Sua forma sem disfarces,
mas inda assim dormi quando vermelho
escorreu Seu suor na escuridão...

Mas bradei logo após: "Não o conheço!


Eu nada tenho junto desse homem!"
e na memória de tal negação
minh'alma se carpiu, em dor insone.

II

Olhei na cruz a flama se apagar,


a abóboda bradar em plena tarde,
já negra e nervosa ante a Verdade,
mui gélida, da cruz a despencar

nos braços d'uma Mãe silenciosa,


chorando mais que o cosmos... pelo ar
vi cristalinas gotas a singrar
deixando a Conceição, Mística Rosa

Que treva interminável! Os abismos


os cuspes, as ofensas, os espinhos,

102
tudo isto não passava na memória,
tal como o galo após os meus três nãos...

Até chegar a luz da suma aurora,


da tumba sem ninguém, ressurreição!
— Do Raio Inapagável na Sua glória
surgindo em Emaús, partindo o pão.

III

Eu soube então que em prol da Santa igreja


aceitaria as grades e a fome
diria: "Tudo tenho c'o este homem!"
e morreria à cruz, ponta-cabeça.

103
O MENINO FRANCESCO FORGIONE

A terra é sempre palco para a luta


entre a treva, fome do não-ser,
e a graça com sua luz absoluta

— no siglo vinte, o mundo iria ver


os homens se matando como a moscas,
as expressões mais podres do poder...

Mas Deus é o amor que não repousa


e fez nascer na Itália um presente
do qual se esquiva o cético, não ousa

investigar sincero, ver de frente


esse rebento ardente de bondade
(real que ele só finge inexistente).

Já imitando a vinda da Verdade


Francesco veio ao tempo numa casa
sob aparência da simplicidade

E cedo já evocava o anjo da guarda


pra suportar as garras dos demônios
e sofrer feito o Sol na tarde amarga...

No prelúdio dos tempos mais medonhos


nos deu Deus um menino, um remédio
que iria milagrar como num sonho

e fabricar contente seus presépios...

104
À MÃE AO PÉ DA CRUZ

Viera o Infinito até teu ventre,


fulgindo mais que o anjo anunciador,
depois nascera frágil, dependente
de leite e de amparo protetor.

Levaste Deus nos braços, ternamente


olhaste-O suportar a perfeição
compressa numa pele qual de gente,
e agora O vês clamar na escuridão...

Quem mais que ti, ó Sacra Conceição,


amara este que morre atado à cruz?
Quem mais sentira pela humilhação,
que a turba impusera ao bom Jesus?

Mas nunca te negaste à tua missão


inda que já sabendo da tortura
(desde que a anunciara Simeão)
ficaste obediente, ó alma pura!

Contempla, Rosa, assim silente


o corpo já sem vida à tarde escura;
à gênese da aurora mais candente
verás já desertada a sepultura!

105
O SORRISO FÁCIL

Já abre-se o crepúsculo matutino


tudo tingindo em tom de despedida;
há mil sinais, presságios doutra vida
— outrora eu os perdia, em desatino.

Mas calma como som do vento ao trigo,


serena como cenho d'águas limpas,
minh'alma sonha o Sol, paira vencida
neste final que é prévia pro Infinito.

E Tu, Santo, Perfeito, Insone Espia,


Íris em fogo ardendo em todo íntimo,
bem sabes que imagino-Te sorrindo
ao ver-nos deleitados na verdade...

Nossa exceção é a luz, a treva é a regra


— a memória do mundo não o nega —
mas a total entrega a Tua vontade,
um átimo de amor ao mais louvável,
não lava uma história inteira cega?

Penso que é por isto, e só por isto,


que a multidão do fim será incontável:

tens ira exigente, e sorriso fácil.

106
A CRISTO NO GETSÊMANI

Cada alma humana pôs um ponto escuro


nessa austera treva que Te cerca;
e nem os Teus discípulos despertam
agora que pressentes cuspes, furos,

o acumulado peso, todo o imundo


que quiseste mudar, pra além das eras
sentar-Te entre o que foi daninha erva,
e graças à Tua dor virou bom fruto.

Sabemos que não negarás o cálice...


Tua forma era o clarão absoluto
e escolheste vires preso à carne
que rasga, sangra, cansa e tanto arde!

Que podemos voltar-Te, Amor tão puro?


Queria dalgum modo aliviar-Te
mas todo dia ponho um ato sujo
à cruz que levarás na longa tarde

onde Tu irás sofrer por todo o mundo


que em troca só Te dá fragilidade.

107
CRISTO NO DESERTO

Imagino-Te no deserto, sob sibilos do vento,


colhendo lâminas de luz, espadas da Palavra
— que desembainhas do abismo, dentro —, n'alma
cavas fundo, pra guardares o breu que no tempo
fomos nós fomentando, em nossa fome infinda.

Contudo, estou um pouco lúcido, um pouco ainda,


e me retenho: não ouso escrever o que concebes
sob o logos candente — mais antigo que o mundo.
Mas me pergunto: como é pressentires que à pele
sofrerás todo o ardente e imundo da cria humana?

Um dia, súbito, adentrei meus covis sem ar


e assustado corri, clamando a luz que Tu emanas,
pois lá dentro vi doentias figuras, n'um espalhar
de pus e de idéias impuras. Tu sabias ser o centro
onde atacariam todas feras de covas abomináveis.

Mas indago também das belezas vastas, no intento


de saciar meu anseio insone de aos Teus amáveis
céus voar (mesmo sendo uma ave de tíbias asas):
não mais que brasa eu sou, e espero o Teu sopro
pra alçar o fogo e aclarar meus confins. Escolho

na opaca imaginação, interrogações talvez vagas,


mas que me confortam: como será ser luz alada
que alimenta estrelas? E ser o pão dos santos?
E o diapasão dos cantos? E ditar todas fronteiras
dos mares arcanos? E saber-se senhor dos arcanjos?

Aliás, em breve, aquele Querubim caído te sondará


sedento. Compreendo, Deus, compreendo, que o homem
em Ti inda teme. E face a face, no breu, encararás
o herdeiro da Treva, a Besta, a agonia que consome
almas perdidas. Pupila a pupila o Eterno triunfará!

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Ah, Leão Manso! Lampião Inapagável da Pátria! Subida
é sinônimo de a Ti curvar-me; da Perfeição à Cruz
transitar, e do deserto meditar como se equilibra
meu coração vil se resvala na Tua solidão de Luz,
na vastidão do Teu silêncio, sob sibilos do vento;

Penso em como tudo pressentes, no deserto, no denso


rumor do Eterno em Ti: desde o Teu corpo ressurrecto
até o mar rubro de sangue, à custa dos mártires;
desde a Cidade Celeste ao Teu sacro sofrimento:
“Pai, Pai, por que me abandonaste?” — Por caridade

Enrijeces pra terríveis flagelos Teus ternos flancos...


Que mistério: Te fazeres humano, dar-Te à pior lástima
pra arrebatares um oceano, tingires gotas de branco,
e enxugares das faces imperfeitas
a derradeira lágrima.

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