Você está na página 1de 2

A banda toca e o Titanic afunda

Alexandre Ramos da Silva


(escrito em 2000)

Há um autor francês, ateu, com o qual simpatizo bastante. Não pelo ateísmo, claro, mas pela
maneira elegante como ele escreve. Trata-se de André Comte-Sponville, autor do ótimo Pequeno
tratado das grandes virtudes, e do sombrio Tratado do desespero e da beatitude.
Estou muito longe de ser um conhecedor de filosofia, mas um sujeito que parte do princípio de que
Deus não existe, e daí vai tentar encontrar sentido, beleza e dignidade para a vida humana apoiando-
se em gente como Marx, Freud, Spinoza e Epicuro —, bem, é para não dar muito certo mesmo.
Sponville pretende distinguir entre um materialismo grosseiro e um materialismo filosófico. Não
vou nem tentar reproduzir aqui essa distinção, até porque na minha cabeça materialismo grosseiro é
assim: “Deus não existe!!”, enquanto materialismo filosófico é: “Bem, sem querer ofender, Deus
não existe. Mas a gente deve se comportar como se ele existisse!”.
Dito de outra forma, é possível ir ao encontro da morte e do nada caindo de boca na gandaia ou
atribuindo ao Estado ou à História o papel de Deus (materialismo “grosseiro”); ou, como quer nosso
autor, com graça, estilo e elegância (materialismo “filosófico”). Sabem aqueles músicos que
continuavam tocando enquanto o Titanic afundava? Então, é isso aí.
Sponville defende como atitude existencial adequada o que ele chama de desespero, que significa
não ficar arrancando os cabelos, mas exatamente o contrário: é aquela calma profunda 1 que,
segundo ele, toma conta de quem se desfaz das ilusões e das angústias e percebe que não há nada a
esperar (des-espero), que tudo o que existe é o que temos diante dos olhos.
Diz ele: “Começar pela angústia, começar pelo desespero; ir de uma ao outro. Descer. No fim de
tudo, o silêncio. A tranqüilidade do silêncio. A noite que cai aplaca os temores do crepúsculo. Não
mais fantasmas: o vazio. Não mais angústia: o silêncio. Não mais perturbação: o repouso. Nada a
temer; nada a esperar. Desespero”.
Tudo bobagem, sem dúvida, mas, convenhamos, um bocado elegante. Essa conversa assim, meio
blasé, deve fazer um sucesso danado naqueles chiquíssimos cafés franceses, onde se toma vinho e
se discute filosofia.
Há também uma religião, atéia, com a qual simpatizo bastante. Não pelo ateísmo, claro, mas pela
maneira elegante como ele é pregado. Trata-se do budismo. O budismo é ateu não porque diga que
Deus não existe, mas simplesmente porque prescinde completamente de Deus.
Imaginem um sujeito afundando num atoleiro, e conseguindo sair através do interessante expediente
de puxar as próprias orelhas. Deus não entra nesse esquema. Cada um tem o seu karma; todos
vivemos nesse mundo louco cheio de ilusão e dor que é o samsara; todos, um dia, vamos nos
extinguir no nirvana. Tudo o que nos espera, e tudo o que podemos esperar, é o nada.
O velho Dostoiévski dizia que se Deus não existe, tudo é permitido. Já aqui por estas bandas, todos
nós conhecemos as várias versões de um provérbio popular que ensina: “diante do inevitável, relaxe
e aproveite”. E São Paulo, com sua contundência característica, numa passagem que, creio, nós
cristãos somos os primeiros a não querer entender até às suas últimas conseqüências, diz que “se
não há ressurreição, comamos e bebamos porque amanhã morreremos”.
O que São Paulo está dizendo, em minha pobre hermenêutica, é o seguinte: “Olha, meu chapa, se
não houver ressurreição a vida acaba no cemitério. Se você quer liderar a revolução do proletariado

1
Que deve ser, creio eu, como aquela que antecede o momento em que um sujeito mete uma bala na cabeça ou
pula do vigésimo andar.
ou ser a Madre Teresa de Calcutá, o problema é seu. Eu quero sexo, drogas e rock’n roll2. A gente
se encontra no cemitério”.
Cada um é aquilo que deseja, as pessoas se definem pelos valores que assumem ou os objetivos que
se propõem. Nas palavras de Jesus, “onde está o teu tesouro, aí está o teu coração”. Aquilo que
buscamos, e mais ainda aquilo que esperamos, também diz muito do que somos.
Esperar, na acepção cristã, é algo que está muito distante de encontrar o que fazer para matar o
tempo que nos separa da extinção. É um dinamismo de vida, um lançar-se ao encontro de algo 
melhor, de Alguém  que desde a eternidade veio ao nosso encontro, armou sua tenda entre nós,
na maravilhosa expressão joanina, e nos desafia nem tanto a encontrar um sentido mas
principalmente a superar o absurdo do cotidiano e caminhar com decisão para onde não haverá mais
sofrimento, nem lágrimas, nem morte, “porque tudo isso já passou”.
Hermann Hesse, um autor que li muito na juventude (e ao qual tenho hoje algumas reservas), num
livro que tem lá sua parcela de culpa por eu ter sido monge, põe na boca do protagonista a seguinte
frase: “O amor, Govinda, é o mais importante de tudo. Compreender o mundo, explicá-lo, desprezá-
lo, pode ser a obra dos grandes filósofos. Mas a mim importa somente poder amar o mundo, poder
considerar o mundo, a mim e a todos os seres com amor, admiração e respeito”.
Não creio que os grandes filósofos desprezem o mundo, mas sem dúvida muitos que são tidos como
tais o fazem. Sponville mesmo gostaria de ser um deles, Sartre é outro, e Nietzche, com aquela de
que “Deus morreu!”, não passa de um pobre-coitado. Ignorando solenemente a todo esse bando,
bilhões de seres humanos a cada dia, no meio de suas dores e de suas alegrias, de seus pecados e de
seus pequenos e grandes atos de virtude, erguem os olhos para o céu, esperando contra toda
esperança, e dizem “Pai!” — o que me leva à conclusão de que nada mais é preciso falar sobre a
esperança.

2
“Comamos e bebamos” em versão anos 60, porque eu sou herdeiro direto dessa época. Cada um atualize como
quiser, mas a radicalidade e a materialidade são exatamente essas.

Você também pode gostar