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Serpentário

Sérgio Santa Rosa


FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA SEÇÃO TÉCNICA DE AQUISIÇÃO
E TRATAMENTO DA INFORMAÇÃO – DIRETORIA TÉCNICA DE BIBLIOTECA
E DOCUMENTAÇÃO - UNESP - FCA - LAGEADO - BOTUCATU (SP)

Santa Rosa, Sérgio, 1973-


S231s Serpentário / Sérgio Santa Rosa. – Botucatu:
Quinta-Ventura Livros, 2018
93 p.

ISBN 978-85-67634-15-9

1. Poesia brasileira. I. Santa Rosa, Sérgio. II. Quintaventura


Livros. III. Título.
CDD 23.ed. (869.1)

Elaborada por Ana Lucia G. Kempinas – CRB-8:7310


Serpentário
Sérgio Santa Rosa

1ª Edição

Botucatu/SP
2019
Serpentário
Primeira Edição
Botucatu, 2019

Poemas
Sérgio Santa Rosa

Editor
Baga Defente

Revisão
Ana Vieira Pereira

Projeto Gráfico + Diagramação + Retrato do Autor


Baga Defente

Ilustrações
Gravuras de M. L. Breton retiradas da sexta edição do livro
Dictionnaire Infernal (1863)
de Jacques Auguste Simon Collin de Plancy

Copyright © NADA∴Estúdio Criativo, 2019


Serpentário © Sergio Santa Rosa, 2018

NADA∴Estúdio Criativo
Rua Dr. José Barbosa de Barros, 792 - Jardim Paraíso
Botucatu/SP CEP 18610-307

@NADAestudiocriativo
nada@nada.art.br
nada.art.br
AGRADECIMENTOS

Aline Grego
Ana Vieira Pereira
Bruno Goularte
Guilherme Rocha Braga Araújo
Pedro Reis Mendes da Silva
País perdendo dia a dia o seu rosto:
A pintura a cair das paredes – cães
Farejando o lixo –
Brutais os gestos – obscenas as palavras
De cada coisa a beleza destroçada

Viagem
Sophia de Mello Breyner Andresen
. SERPENTÁRIO .
9

LUGARES BONITOS EM SP

frase roubada de uma velha revista


nosso calor rotineiro
velhas fotos num envelope pardo
gavetas atulhadas de desconfiança
faca nas costas do amor
o olhar à deriva diante da tua nudez de fim
de expediente
potes de plástico e roupas sujas num curta metragem
armário arrumado, dívidas pagas
o sonho de morrer boquiaberto
a cabeça zumbindo Hemingway
caneta e conflito na mão
retiro tudo o que disse sobre a tua beleza interior
devolvo teus vinte reais
em minhas costas arqueadas
tatuo devagar
mais alguns centímetros de caos
e o luar insólito
dos teus olhos negros
10 Sérgio Santa Rosa

FELICIDADE

Se a felicidade bater à porta


seja seco ao dispensá-la
Sem pudor, a descarada chega acenando com uma
grama mais verde
Mande andar
Tranque também as janelas e o portão da garagem
pois há sempre o risco de ser atropelado pelo carro
importado com seu computador de bordo oferecendo
39 modalidades de nada.
. SERPENTÁRIO .
11

A chácara com piscina quente


O cachorro que bebe champagne
O convite vip
Fique esperto
Escolha o chão
Desfaça a miragem
Esconda seus filhos dessa filha da puta
Não ceda ao seu suculento monte-de-Vênus
Ao sexo recheado com areia monazítica
Resista ao sorvete da moda
À cretinice solar
Ao garçom cosmopolita
Se a felicidade tocar a campainha
Mande dizer que não está
Ou meta-lhe um pontapé nas fuças
Não vá comprar um cavalo com nome de príncipe
Nem mandar fazer o brasão da família
Se agarre ao fiapo furtivo de realidade
Resista à tormenta dos dentes brancos
Combata a catástrofe do hálito puro
Quando a felicidade intimar
Desligue o celular
E levante um muro
12 Sérgio Santa Rosa
. SERPENTÁRIO .
13

VELHOS VERÕES
para Sérgio Sampaio

blues nas cordas de nylon


diamantes no céu da Lapa
retalhos de navios fantasmas ancorados na
Baía de Guanabara
entre tragos, poemas e os gols do Fantástico
um gosto de samba com sangue
de Copacabana até as sombras do mangue
e um pouco mais
14 Sérgio Santa Rosa

MINHA 59ª FRATURA

A raiva
Os ossos
A têmpora
Os cacos de vidro na uretra

Na ferida deve esfregar-se sal grosso


e aplicar um larvicida
Esperar dez minutos e
Lentamente
Pingar paranoia nas teclas
. SERPENTÁRIO .
15

1979

Sinto saudades do tempo em que eu ria


com as comédias americanas.
Agora, resta a dor do peixe fisgado,
o brilho das escamas
devastado pela lâmina.

Lembro o calor da pele depois da praia ,


a solidão da mãe,
o tédio do cão emparedado.

Dias de trabalho honesto,


verões enterrados sete palmos abaixo
do chão do sobrado.
O pano molhado apaga um segredo na parede branca.
Em São Vicente.
Em 1979.
No tempo das comédias e dos desenhos animados.
16 Sérgio Santa Rosa

NOTURNO

A hemorragia começa ao por do sol


. SERPENTÁRIO .
17

NOTURNO #2

olhos e dentes
desorientados movidos a chá de pilha
flores mortas pelas avenidas
imundícies em nome do pai
risco, ócio e perfumes
a solidão nas cenas do próximo capítulo
18 Sérgio Santa Rosa

A DOIS

ela quer lavar o visgo dos pobres


ele observa teias de aranha

pela televisão sem som


a vida cambaleia
em seu balé bandido
. SERPENTÁRIO .
19

A ESMO

caminho pelo centro:


é noite de trombar demônios.

a insônia solta fogo pelas ventas


penso no pai celeste

em convulsão

rogo caridade aos replicantes letrados do bar da moda


palmas aos brados retumbantes dos edifícios
faço o pelo sinal e tusso
perdida a noção do perigo
atiro impropérios onde o silêncio faz a curva

até meu tédio excretar um verso

que
antes do último ônibus
perece
como todas as coisas sérias
e as mais belas coroas de flores
20 Sérgio Santa Rosa

A MOÇA DA PARADA DE
SUCESSOS

sonho com ela cantando baladas


pelos desertos multicoloridos dos palcos
em seu português iluminado
despedaçando os nervos da cidade
comemorando aniversário de anjos
distribuindo surpresas e migalhas de tragédias
em falsete
. SERPENTÁRIO .
21

A UMA POETA MORTA

Palavras pescam serpentes


piruetas de fêmea no azul
a morte como um mambo
infinito sorvido com gelo, vento e limão

Se um dia eu te encontrar na minha tábua Ouija


servirei Cointreau,
casas demolidas
e pratos de nobreza perene
Na sobremesa, chocolate
amargo e doce
como o coração do blues
22 Sérgio Santa Rosa
. SERPENTÁRIO .
23

BALADA DAS SETE DA MANHÃ

certas coisas nunca mudam:


o valor da vida
a eficácia da terapia
tuberculose, sífilis, cara de pau
a selvageria dos finais felizes
as regras do jogo da guerra
e essa vontade de interditar os alto-falantes
pegar a estrada para o mar
e colocar dinamite nas palavras
24 Sérgio Santa Rosa

CACO DE TELHA,
CACO DE VIDRO

o jornal de ontem
no banco de trás do carro
teu despovoado interior
a vitrola sibilando
o caco que passeou
por teu pulso

meu verso a policiar tua voz


e acusar tua manhã
de negar o sono
pelo vermelho límpido
indiferente ao zumbido frio
do ar condicionado
. SERPENTÁRIO .
25

CHUVA

que ela chegue forte nessa noite


sobre os automóveis nas avenidas cansadas
lave minuciosa
sombras, telhados e estados febris
e faça florescer qualquer coisa
antes que a resposta do sol
tire a cabeça do diabo da toca
26 Sérgio Santa Rosa

CANÇÃO TRISTE PENSANDO


EM VALERIE KAPRISKY

coração na cama de pregos numa tarde


quente de domingo
restos de perfume na velha camisa
as histórias de amor são os créditos
que sobem pela tela
na sala de cinema vazia
. SERPENTÁRIO .
27

CELEBRAÇÃO
Para Roberto Piva

a decadência rasga as avenidas e


dilacera o nervo do luar
a cidade sangra pelo norte enquanto
o carro patrulha cruza o furacão
como uma agulha num peito morto

há bile, espinhos e aço


no incesto das horas
as filigranas se dissolvem
28 Sérgio Santa Rosa

TEUS OLHOS SECOS

tua boca sem dó, tua casa sem fé


tua cama e teus suspeitos hábitos
teus olhos secos esperavam
a manhã rasgar o silêncio

a dor, invisível aos meus olhos, morava em algum lugar


dos teus olhos e falava
por parábolas

hoje
diante da incidência de atitudes extremas
e versos de adeus
me desculpei
teus olhos secos de águas passadas nem notaram

do lado direito dos espinhos do jardim


vi teu sorriso
pisoteado
ouvi teus olhos pedirem
asilo nos baixios das causas perdidas
pelos poros
pelos vazios da casa
restaram um arrastar de sandálias
e o rumor das tuas mãos no tecido
. SERPENTÁRIO .
29
30 Sérgio Santa Rosa

PARA TORQUATO

e se fizesse frio em Paupéria?


e se fosse fácil ser anjo e torto
e amar sem descanso?
e se abrir o gás dessa miséria
vestisse a madrugada de azul?
e se o céu e a cama e a mesa e as juras
e as roupas
se apagassem
sem deixar rastros?
e se fosse estreita a relação
entre a febre, o violão e o tal porvir?

por aqui
um beijo
longo
moreno
ligeiro
exagerado
no escuro
. SERPENTÁRIO .
31

BLUES DOS SORRISOS


TORTOS

pediu caviar com cicuta


ofereci café com pão

partiu

deixou seu cheiro de festa acabada


nas ruínas do apartamento
32 Sérgio Santa Rosa

CANÇÃO DO OCEANO

mergulho na fotografia
da tua lágrima impressa
no livro de sal
e irrompe um maremoto
sob a luz do quarto
crescente

é melhor sucumbir no limite


do horizonte
a me afogar
uma vez mais
nas tuas águas rasas
. SERPENTÁRIO .
33

ERIC DOLPHY

nota azul magenta devasta


e desemboca
em gemido de cão
madeira
ardósia
outono na garganta

a dor suspensa na pausa


como um enforcado
gorjeia um estranhamento
zumbe invenções ternas
contrastes

e a lua foge antes


de minguar
34 Sérgio Santa Rosa

ROSAS ROUBADAS

chegam rosas pelo mar


feito lava verbal
velhos segredos
noites trituradas
e viradas no avesso
seus espinhos dançantes
moldados para existir
nos meus olhos
cegos
pelo caleidoscópio de nuvens
de pura renda negra
. SERPENTÁRIO .
35

FOTOGRAFIA

lamento informar:
amores nascidos em julho
doem como todos os outros

o motorista de taxi profetiza estultices

murmuro palavras reconfortantes


na língua dos aniquilados
36 Sérgio Santa Rosa
. SERPENTÁRIO .
37

ESTRONDO FAST FOOD

passo pelas calçadas do bairro


pela última vez
fazendo a meditação dos condenados:
os motivos ocultos do malogro
a psicologia do meu estômago vazio

dou buenas tardes


para as senhoras e seus poodles
as mãos sujas de sangue
e um pernicioso sorriso
em descompasso com a revolução
os latidos dos poodles
e o apelo dos pães franceses

há vida inteligente na lavanderia


namorados pecam diariamente
cai rápido o pano
sua estampa destrói o disfarce
vestido na escola do bairro
e morto pornograficamente
a tiros
na porta fechada do McDonald´s
38 Sérgio Santa Rosa
. SERPENTÁRIO .
39

SERPENTÁRIO

no minuto certeiro
em que abres a porta
teu colar de pérolas
se derrama
em cristalinas serpentes
que marcam as calçadas
empoeiradas
ferem meus pés
e me cospem veneno
e aguardente
nos olhos
que eu acreditava curados
40 Sérgio Santa Rosa

DEPOIS
DAQUELE
TANGO

depois daquele tango


morri aprendiz
ao teu lado
. SERPENTÁRIO .
41

VELHA HISTÓRIA

todos os dias há garotos selvagens


cruzando fronteiras
usando a alma para descobrir
o que se aprende nos cantos escuros das praças
ou nos bancos traseiros

Avisos importantes:
1 - O cinema é uma armadilha
2- Os heróis perecem sozinhos
3 - A morte nem sempre aguarda o nascer do sol
42 Sérgio Santa Rosa

DESCRENTE

te escuto ainda as palavras


tocavas o firmamento
com a língua
em orações confusas
o som das almas pousava
vidro quebrado sobre a cama

na manhã dos argumentos mortos


percebo ainda
o ritmo
em que teus cabelos dançavam
mas a música do teu quadril
é pedra
soterrada
num pensamento perdido
na selva
da madrugada
. SERPENTÁRIO .
43

A HISTÓRIA DO FOGO

caiu de cara nos espinhos


lambeu as portas do inferno
foi cruel com os tímidos
tragou fumaça preta
pulou janelas no extremo oriente
domou pulgas de um velho cobertor
roeu unhas ao som do blues
e riu com todas as forças
hoje se diz regenerada
e proíbe substâncias ilícitas
na trincheira do apartamento
44 Sérgio Santa Rosa

JARDIM

cultivar um jardim
é perder a guerra para as pragas
tão certo quanto o desejo cansa
e a lua brilha
nos filmes de terror
. SERPENTÁRIO .
45
46 Sérgio Santa Rosa

LOVE AFFAIR

nosso love affair é o caralho


louça suja na pia
desculpe, foi engano
café no copo de requeijão
segundo a cigana virtual, dear love affair
é melhor você voltar pra casa da sua mãe
. SERPENTÁRIO .
47

TRANSPORTE COLETIVO

passa o ônibus
como todos os dias
lotado pelos que não desistem
de dar o pescoço à realidade
que aborta o essencial
mastiga asas
converte a doçura do pecado original
em resultados
parâmetros
sonhos de casa própria
e torna tudo em velho

passa o ônibus
um desenho abstrato em sua lataria
propõe descartar o ódio
celebra o vácuo de consciência
sem frio, vírgulas, planos de viagem
surdos às cores da cidade
aguardamos
em máxima letargia
como quem espera o próximo sucesso
nas ondas rebentadas do rádio
48 Sérgio Santa Rosa
. SERPENTÁRIO .
49

RETRATO DO POETA
QUANDO POBRE

poeta eu sou
desses sem estirpe
sem tipo
fora de esquadro
e menor que as teorias

minha lavra é inocente


como os loucos de cidade do interior
catando bitucas
pisoteando canteiros
correndo atrás do vento

exibindo aquele ar solene


pelo qual se reconhecem
todos os tolos do mundo
poeta de facilidades
mansamente feroz
andante
igual
vagabundo
50 Sérgio Santa Rosa

O RIO DO CORPO

já que não me perco da tristeza


organizo o embuste da maldade
finjo monólogos

pelas noites desertas


retrocedo ao cão covarde
recuso a essência do teu nome
atiro teu livro na lixeira
metido a besta, cardíaco, problemático
esfolo estilhaços de outras musas
e fragrâncias difusas de fracassos

troco lorotas, anéis e ruídos de amor pelo direito de


sugar a tua aorta
e te torturar pelas avenidas
até que a percussão dos teus murros
liberte a faca
que numa brusca surpresa pós-jantar
cravaste em meu suor
. SERPENTÁRIO .
51

BELA

asa nua
num travesseiro
indiferente
52 Sérgio Santa Rosa

PESADELO 49

a China nas manchetes


uma santa chora Coca-Cola
estandartes anunciam infartos
fantasmas bebem gasolina
crimes passionais nos imãs de geladeira
estou em paz
. SERPENTÁRIO .
53

NO ESTÔMAGO

aflição depois das três


o malandro tenta um golpe
o louco suspira congelado

na mesa dos fundos


a cachaça batizada
queima
puros sonhos de morte
cheiro de fritura
fidelidades varridas
pela calçada
gordura de porco
sangue de boi

ela mostra a cicatriz da cirurgia


à meia-luz
54 Sérgio Santa Rosa

TERÇA-FEIRA

é terça-feira e eu cortei o café


o making of enverniza de originalidade o fazer
que nos governa e marca
a cada semana de espera
. SERPENTÁRIO .
55

RECLAMAÇÃO

cai a alça do teu vestido


corações colidem na sala vazia
cheiro de chuva no asfalto

é muito desassossego
para uma pequena tarde de verão
56 Sérgio Santa Rosa

VINHO DA CASA

sempre haverá os que apreciam festas de casamento


os que brincam com fogo e sangue
e os que se apartam num quarto
tentando planar sobre a insanidade

sempre haverá os que pigarreiam e retesam os ombros


os que dormem em quartos assombrados
os que meditam, os que se masturbam
e debitam o desperdício na conta do frio

sempre haverá os que carregam dinheiro e rancores


e sempre haverá memórias assoladas
por promessas frustradas de nudez
e línguas trancadas a sete chaves

sempre haverá os que tentam afrouxar o garrote vil


pedindo o vinho da casa
e encontram breves verdades
em algum pote de decepções
esquecido num fundo de armário
no silêncio de quase inverno
. SERPENTÁRIO .
57

UM SONHO AMERICANO

Cruzo o deserto da Califórnia com os vidros


do Chevrolet abertos. A noite cai gelada como
uma parada cardíaca. Em meu desconforto,
sopro desejos para além do norte. Sem ceder
aos olhos cansados, aos solavancos da pista, às
lembranças da tua cama e aos arrependimentos.
O motor em alta rotação voa para reconquistar
o reino perdido da paz. No rádio, notícias
amistosas. E a primeira dor fica para trás como
um sussurro ao pé da orelha. Pneus queimam
rumo às planícies. Células em transtorno.
Mojave nos pulmões. Sem postes de luz,
letreiros de neon, sinais. Há borrões vermelhos
no horizonte. Te vejo, linda, num vestido que
imita o horizonte. Como um alívio. Dançando
no frio do deserto. O rádio toca em sequencia
Otis Redding, Aretha, Sam Cooke. Sinto falta
de cigarros. Tenho fé na engenharia mecânica.
Meu coração se tranquiliza. Há desejo em seu
sorriso de menina. Um banho num motel de
beira de estrada. Descansar nos lençóis. Encher
as vias respiratórias com teu cheiro. E continuar
a busca pelos limites da fronteira. Pela cidade
iluminada. Encravada na geografia do teu colo.
58 Sérgio Santa Rosa

LABIRINTO

não me peça para abaixar o volume


não me cobre lembrar datas ou conselhos
me perdi seguindo a luz sonora
de uma lua moreno-ópio
. SERPENTÁRIO .
59

O MELHOR DE NÓS

nos envolvemos demais em estatísticas


desvios de funções, áreas restritas,
sentidos obrigatórios
mentiras a parir projetos
urgência nas chamadas a cobrar

Deus sopra segredos e sofismas pelas


propagandas de TV
o astrólogo perfuma a vala comum com
otimismo
o escritor mendiga simpatia para a causa
dos angustiados
alguém casa com o silêncio
um embaraço custa uma promoção
cientistas querem mais e mais
só nos consola o que não nos convém

o melhor de nós passa rápido


o pior também
60 Sérgio Santa Rosa

ESCANINHOS

acordar e varrer a sujeira para cima do tapete


jogar tarô e sovar a massa com uma pluma
percorrer o pátio de joelhos
descamar o peixe com uma moeda
beber vodka com chá de camomila
chorar a morte de Deus pelas quebradas
agarrar a bailarina pelas tranças
derrubar árvores a pontapés
dançar pela cozinha com pregos nos sapatos
costurar a boca do Cristo
solar na sanfona bêbada
com as falanges amputadas
uma marcha rancho psicodélica

tudo por dinheiro


tudo com calma e clareza
porque o certo é certo
e eu já conferi de perto
que a poesia mente e confunde
mendiga atenção e
embaralha as regras
do gosto que não se discute
. SERPENTÁRIO .
61
62 Sérgio Santa Rosa

PARA ROSA, NO ANO QUE VEM

disse o poeta que as coisas talvez sejam melhores assim:


reais como os elefantes de Nanquim
vulgares como as revisões de literatura
medíocres como os déspotas de prontuários
e profundamente estúpidas
como certas vontades escapadiças
dessas difíceis de explicar enquanto pensamos no frango
frio na geladeira
em cianureto
ou na chuva no jardim do museu
até o final da programação
da vida
ou da televisão
. SERPENTÁRIO .
63

QUANDO?

quando estaremos a salvo das fotografias


e dos conselhos para tatuar no antebraço?
e do exercício cruel da paciência?
e do auxílio luxuoso dos cigarros?

(e pensar que eu só queria mesmo te ver nua


antes de morrer sozinho
num quarto barato de pensão
seguindo com os olhos
os rios de rachaduras
a confirmar
a expansão do universo)
64 Sérgio Santa Rosa

ABERDEEN

é inútil tentar envolver a névoa num abraço morto


. SERPENTÁRIO .
65

EU ESTAREI PERDIDO SEM VOCÊ

por sua causa não me perco no excesso de clareza


refaço a verdade à minha imagem
brincando de humano e humilde e real
só informando a quem insiste em liderar
que nem sempre os últimos querem ser os primeiros
e o especial é apenas o fogo nas ventas
da cabeça decepada da lucidez
66 Sérgio Santa Rosa

UTENSÍLIO

e se a poesia tivesse serventia


e fosse imprescindível pensar sobre ela
como se pensa nos cabelos do rei
ou no próximo capítulo da novela?

e se os experts no tema fossem guias, apóstolos


de alto custo?
ainda que disponíveis aos fãs
ou às corporações interessadas (e elas existiriam)

e se a previsão da safra anual de versos do Brasil


ocupasse linhas do noticiário?
e se amizades girassem em torno da métrica
e a poesia fosse o fim de um processo rentável?

seria o fim?
seria moleza?
haveria ação?
mudaria algum elemento na paisagem?
. SERPENTÁRIO .
67

algo me diz que não haveria engano


só poesia
de marca japonesa ou alemã
chinesa
diferenciada
pra vender pela internet
tamanho personalizado
transportada com cuidado
frágil como ela só
68 Sérgio Santa Rosa
. SERPENTÁRIO .
69

NÃO CORRIJO

não corrijo métrica e evito visitas à saudade


mesmo que por delicadeza
passo longe das margens de rios de pranto
pelo risco do afogamento em versos antigos

meço meus feitos pela insônia


que confronta o destino nas sombras
e me faz evitar
o mau gosto de sentir carinho pelo texto

não nego horrores e desconfortos


sou desafeto da minha poesia
que me chega amarga aos lábios
com seus tentáculos de excessos simples
devidamente amputados
70 Sérgio Santa Rosa

FAIXA 4

na faixa 4
do lado A
da trilha sonora
de Round Midnight: Chet Baker canta “Fair Weather”

eu te imagino molhada de chuva


apertando o passo e protegendo com o casaco velho
a antologia da Adélia Prado
as vitrines como tumbas iluminadas
o fim da tarde que chega doendo

o trompete destila afirmações como um chicote doce


o som apodrece e eu peço a conta
e adormeço antes do fim da faixa 4
para sonhar com outro tema bandido
apaixonado ou não
morto ou não
a conduzir pela mão o dia que vai nascer
no meu coração cansado de certezas
. SERPENTÁRIO .
71

OLD FRIENDS

a sobra daquelas horas


imprevisíveis desajustes
autorizados
ingênuos
maliciosos
e muito pelo contrário
a habilidade de lembrar uma canção,
um conto tonto, um bumba-meu-boi na poeira
que, lentamente, submergem em meu sono
SERPENTÁRIO
1ª Edição [2019]
100 Exemplares

Obra composta com Libre Baskerville


em julho de 2019 em Botucatu/SP.
BALADA DAS SETE DA MANHÃ

certas coisas nunca mudam:


o valor da vida
a eficácia da terapia
tuberculose, sífilis, cara de pau
a selvageria dos finais felizes
as regras do jogo da guerra
e essa vontade de interditar os alto-falantes
pegar a estrada para o mar
e colocar dinamite nas palavras

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