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Capitulo 6 HISTORIA EM QUADRINHOS COMO RECURSO DIDATICO PARA 0 ENSINO DE LINGUA PORTUGUESA: COMPREENSAO DOS FENOMENOS MORFOSSINTATICOS E SEMANTICOS ATRAVES DAS TIRAS DE HUMOR Raimundo Nonato Vieira Costa Pablo Rener Ribeiro Rabelo Universidade Federal do Oeste do Pard ~ UFOPA INTRODUGAO Os novos grupos socials de leitores e de falantes aderem A potencialidade dos géneros multimodais por meio da difusdo de textos que subvertem 0 conceito linear de leitura. A digitalizagao das informagdes nos conduz para uma forma de comunicagao cada vez mais dinamica e hiorida, na qual formas, cores, sonoridades e palavras mesclam-se em prol da n. Arapidez do fluxo de informagées nesta realidade tecnolégica estabelece a produgao de géneros textuais que 166 Captulo 6 atingem de maneira mais eflcaz © abrangente um ptiblico de leitores exigente e heterogéneo. Entretanto, quando relacionamos 0 acesso desses géneros textuais populares as aulas de Lingua Portuguesa, percebemos certa resisténcia por parte de um numero grande de professores, ora por considerarem esas produgées de consumo de massa, como por exemplo, as historias em quadrinhos, uma forma de linguagem simpiéria; ora por utiliza -las como meros veiculos de entretenimento, desconsiderando seu potencial textual para promogao da reflexao linguistica. Assim, este trabalho foi pensado com o intuito de fomentar uma reflexéo sobre os fenémenos linguisticos que compéem a linguagem das histérias em quadrinhos, tendo ‘como objeto de estudo as tirinhas de humor. O objetivo principal da proposta de pesquisa foi de levar os alunos a compreenderem os fendmenos morfossintéticos e semén- tioos da Lingua Portuguesa através da percepgdo dos mecanismos de comunicagdo das historias em quadrinhos, auxiliando em um aprendizado analitico do funcionamento da lingua nativa, através da compreenséo dos recursos discur- sivos das tiras de humor. = 167 Captulo 6 ANOGAO DE “HISTORIA EM QUADRINHOS” E mais pratico definir a nogdo de “histéria em quadri- nhos” considerando seus elementos formais. Deste modo, 6 coerente a admisséo de que a histéria em quadrinhos 6 um género textual de cardter narrativo, nao importando a complexidade ou extenséo do enredo, podendo realizar-se nna forma de tiras, de histérias curtas ou das famosas “novelas graficas". Estas ramificagdes do géneto historia em quadri- nhos que, ais, serdo esclarecidas com mais detalhes em um t6pico posterior, ja nos revelam a diversidade de producdo criativa desta arte sequencial. Outras caracteristicas inerentes dos quadrinhos séo as disposiges de quadros sequenciais lineares ou nao lineares para delimitagao © desenvolimento da narrativa. Por isso, 6 ‘comum associar as histérias em quadrinhos com outras formas de artes sequenciais como 0 Cinema e 0 Desenho Animado, apesar de ndo serem a mesma coisa. Por ultimo, temos uma caracteristica fundamental para a definigao desse género: a mescla de dois cédigos, 0 imagético e o verbal, que possibi- litam a elaboragao eo desenvolvimento narrativo. Nos quadri- nhos, a fusdo entre o desenho e a palavra representa um todo coerente, os quais so construidos reciprocamente em prol da historia narrada. Com base nessas observagées dos aspectos formais, Cagnin atesta que a histéria em quadrinhos é = 168 Captulo 6 substéncia de expresso da narrativa formada por dois cédigos, Imagem - signo visual analégi c6igo Ieonogréfico e Texto - representado na pa- lavra oscrita dos babes, lagondas @ titulo pelo nar- rador como dois elementos [...] contides na mo dura (0 quadro) - signo digital, convencional criado para significar, como indice, os limites da imagem @ do texto formando a unidade narrativa iconogré- fica articulével (CAGNIN, 2015, p. 178) Em virtude deste hibridismo entre a representagao pictérica e a verbal, usam-se com frequéncia, em diversos estudos do género, expressées como “narrativas graficas” ou “narrativas quadrinizadas", reforgando, ainda mais, seus elementos formais e estéticos. Entretanto, ha, sim, em diversas histérias em quadrinhos, a prevaléncia do texto verbal no desenvolvimento narrativo em detrimento do desenho, prin- cipalmente em produgées baseadas em obras literdrias em que © texto original no pode sofrer demasiadas alteragdes em razdo de seu valor autoral. Por outro lado, ha histérias em quadrinhos em que a qualidade artistica do desenho parece contribuir de maneira mais impactante para o entendimento da narrativa em analogia ao texto verbal. Sendo um produto para ‘consumo comercial de um puiblico variado de leitores, 6 natural que haja centenas de produgées de baixa qualidade estética. Porém, uma histéria em quadrinhos de grande valor artistico ‘compreende estas duas formas de linguagens, a verbal e a imagética, como inerentes para a definiggo do género em questo. Em outras palavras, Ramos esclarece que enxergar uma histéria em quadrinhos como texto implica trabalhar com uma acengao de texto mals, abrangente, que inclua o didlogo entre diferentes = 169 Captulo 6 cédigos, do visual ao verbal escrito, E algo que vvem sendo chamado de texto multimodal ou mul tissemidtico, O sentida € construido por melo do dominio © da ariculagao de tais cdcigos (RAMOS, 2013, p. 105) Desconsiderar a mescla destes dois cédigos, 0 verbal e © imagético, é negar as histérias em quadrinhos como géneros textuais auténticos. A discriminagao de um desses dois cédigos inviabiiza e tolhe 0 potencial criador deste género narrative, descaracterizando-0 como produto artistico. Esta clara concepgaio de hibridizagéo das HQs nos previne de cometer equivocos como considerar as narrativas graficas como obras literdrias. E comum atualmente o didlogo entre as HQs ¢ a Literatura. Cada vez mais, verificam-se, no mercado. editorial, adaptagdes em formato de quadrinhos de obras lite- rérias, na maioria das vezes, apresentando releituras de perso- nagens classicos ou do préprio enredo. Entretanto, classificar uma HQ como obra literaria pelo fato de o género propor uma releitura de um texto literario nao a torna também literaria. Caso contrétio, uma produgao cinematogréfica baseada em texto literdrio também a desqualificaria como género artistico genuino. Em relagao a este ponto, Rodrigues conclu: (ogo, como muitos autores irao apontar, histérias fem quadrinhos nao so literatura, ainda que mui- tos busquem uma certa correspondéncia a partir de seu conteéde predominantemente narrativo & fem tetmos como graphic novel, novela grafica ou romance grafico (RODRIGUES, 2014, p. 242). E possivel também encontrar elementos estéticos das histérias em quadtinhos em outros géneros populares como = 170 Captulo 6 memes ou fotonovelas digitais. © uso de baldes de fala e ‘onomatopeias so recursos de comunicagao tipicos das narra- tivas quadtinizadas, mas séo cada vez mais adotados por outros géneros contemporaneos. Este didlogo é possivel e neces: para a dinamicidade comunicativa nas midias virtuais. Em relagao & diagramagao das paginas de uma histéria em quadrinhos, que para alguns aparenta ser apenas um suporte para a insergao do desenho @ do texto narrativo, a organizagdo e a composi¢éo dos quadros podem contri- buir significativamente para o desenvolvimento do enredo. A disposigao dos quadros favorece & construgéo de um peculiar recurso metalinguistico no proceso narrativo valorizando ainda mais a mensagem do texto. Anistoria em quadrinhos e sua tipologia ‘As histérias em quadrinhos (HQs), além da lingua escrita e das representagdes pictéricas, possuem em seu construto comunicativo elementos da oralidade, como simu- lagdes gestuais dos personagens, enquadramento e angulos metalinguisticos, representagdes sonoras _(onomatopeias) © marcagées de tempo do ato conversacional. Exige, deste modo, uma percepgao atenta durante o processo de leitura, por exemplo, do uso de inferéncias e de conhecimento de mundo. HAs é evidenciada nas palavras de Guedes et al. sa dinamicidade comunicativa do cartum e das = im Captulo 6 Antes, marginalizados e censurados por profes- sores, pais de adolescentes e psiquiatras, hoje, por sua linguagem eliptica e dindmica, e através, de sua riqueza de informagées, diversidade em tematicas e novidade em vocabulos, alral tanto o publica infantil quanto 0 jovem/adulto, sendo co" mum sua aparigao em provas, concursos, vesti= bbulares e até mesmo em livros didaticos, cujo ma- nejo dos professores tem necessitado de novos, olhares para essa diditica atual em sala de aula (GUEDES et ai., 2012, p. 11). Estas novas aberturas de compreensao do formato do género comunicativo requerem uma postura diferenciada do leitor diante do texto, pois ativa mecanismos mais complexos na construgo do sentido do discurso. O texto multimodal nos induz a estabelecer a relagao intricada entre as semioses do discurso. Durante 0 proceso de construgéo de sentido, o leitor acessa variadas possbilidades de leitura e de compre- ‘ensdo textual, no qual 0 verbal e © imagético fundem-se em prol da significagao discursiva, que est associada ao contexto comunicativo € a0 conhecimento enciclopédico do leitor © texto constréi-se, assim, no momento do ato interacional autor/texto/leitor © se expande para as relagdes socials e conjuntura atual, tornando-se semanticamente vasto em sua incompletude. Koch (2011, p. 07) acentua 0 papel importar do texto como espago de relagdo social entre os individuos, quando afirma “[..] hé, em todo e qualquer texto, uma gama de implicitos, dos mais variados tipos, somente detectaveis pela mobilizagéo do contexto sociocognitivo no interior do qual se movem os atores sociais". = m Captulo 6 Nessa perspectiva interacionista, 6 estabelecida durante ato de ler uma relagdo mitua entre autor ¢ leitor visando & construgao do sentido do texto. Neste processo de trocas de saberes, 0 leitor assume um papel de protagonista, fazendo uso de inferéncias e dedugdes, em um permanente processo de construgao e reconstrueao do significaclo (SANTOS, 2002, p. 3) Todas essas informagées extralinguisticas presentes no texto so, muitas vezes, ignoradas no ensino de Lingua Portu: ‘guesa durante a leitura em sala de aula, em prol da observancia de elementos arbitrariamente gramaticais que favorecem a mera decodificagao textual e ao processo mecanico de memorizagéo de silabas, palawras e frases. Quando consideramos aspectos como a tipologia textual, a diversidade de géneros, os meca- nismos de textualizagao e a intertextualidade, passamos a ver a leitura como atividade social, na qual 0 sujeito-leitor € capaz de estabelecer hipoteses, inferéncias, relacionar as informa- 96es de forma coerente e ativar seus conhecimentos prévios. Com 0 advento de estudios relacionados a pratica da leitura, a partir da segunda metade da década de 70, como a Lingu’stica Textual, uma abordagem sécio-histérica é construida em torno da relagdo leitor-sujeito e texto, como aponta Kleiman: © texto @ os mecanismos que Ihe conferiam tex tualidade © que podiam ter consequéncias na sua legibiidade passaram a constituir importantes va- riaveis a serem avaliadas na compreensdo a partir da década de 80. Em decorréncia da influéncia dos estudos linguistico-textuais, a pesquisa se ‘ocupou em explicar aspectos da compreensio ou da incompreensdo dos sujeltos em situacdes mais, complexas que relacionavam a compreensdo @ a = 173 Captulo 6 legibilidade textual a presenga ou auséncia de me- canismos de textuaizacao; as tipologias de texto vigentes na época (e mais tarde aos géneros); & intortoxtuaidade (KLEIMAN, 2004, p. 14) Kleiman (ibid,) ainda enfatiza sobre a presenga de abor: dagens sociolinguisticas no ambito da Linguistica Aplicada. Tais estudos avaliam a pratica da leitura como uma construgéo de saberes e de valores no interior de determinados contextos de interagao social Assim, considerar a multissemiose de determinados géneros hibridos permite compreender a prdtica da leitura ‘como um processo de construgdo complexa de significados que vai além da decodificagéo. Envolve fatores extralinguis- ticos e uma combinago dialégica de informagées prévias e de cédigos variados relacionados pelo sujeito-leitor. A Historia ‘em Quadrinhos, além da linguagem verbal, faz uso de diversos recursos visuais, como a combinagao de cores, efeito de luz fe sombra, enquadramento e Angulos dindmicos e sonori- zago gréfica (onomatopeias). Sua composigae artistica © sua estrutura narrativa sequencial dialogam com outros géneros artisticos como 0 Cinema, a fotonovela e o desenho animado. ‘As Hs, por serem produtos comerciais de massa, escondem em sua composigao estética © proposta narrativa, aparentemente simplista e objetiva, um campo vasto de ramificagdes genéricas que atendem ao apelo de consumo de publicos distintos, cada qual com um perfil claramente definido. Desta forma, quem consome ou produz HOs é capaz = 14 Captulo 6 de estabelecer uma certa relagao entre géneros similares como cartum, titas de humor, charge, historinhas ¢ novelas gréficas. Cada qual, entretanto, com uma finalidade narrativa @ uma concepgao estética peculiar. Vejamos a seguir os principais géneros provindos da linguagem dos quadrinhos: A. A CHARGE: provavelmente o precursor das histérias em quadrinhos, esta voltada para um pUiblico de leitores que busca uma reflexo mais critica de um determinado tema politico ou social da atualidade. Na maioria das vezes, a charge tende a expandir o debate social de um assunto polémico da conjuntura atual, Costuma acompanhar um texto jomalistico especttico (eportagem ou noticia) divulgado em midia de massa, acrescentando-Ihes uma andlise sarcastica dos fatos. Com tragos caricatos linguagem mordaz, a charge utiliza de recursos semanticos variados, como ironia, polisseria, exagero @ trocadilhos, dando ao publico a possibilidade de dedugdes e ampliago do sentido do texto. Sua mensagem é geralmente compactada em um Unico quadto, possibil tando um discurso objetivo e exigindo do leitor conhecimentos prévios sobre 0 assunto. B. AS NOVELAS GRAFICAS E OS COMICS BOOKS: As novelas gréficas ou graphic novels (assim batizadas nos Estados Unidos) parecem = 175 Captulo 6 representar © apogeu das Histérias em Quadri hos, pois aproxmam as narrativas quadrini- zadlas da linguagem cinematogratica e lteraria, propondo para um pubblico mais maduro e exigente um produto attisticamente mais elaborado ¢ autoral, com uma tendéncia clara- mente politica e floséfica. As novelas gréficas conseguiram retirar as histérias em quadrinhos da posigéo de subproduto artistico € colocé-las a0 lado de grandes obras da Literatura universal. O CARTUM: O cartum nos propée uma leitura critica da realidade social com certo grau de comicidade. Entretanto, diferentemente das novelas gréficas, 0 cartum possui um discurso mais direto © franco, fazendo-nos refletir moralmente sobre as mazelas da sociedade, mesmo que isto nos cause um certo descon- forto cémico. Assemelha-se muito a charge pela sua linguagem satirica © sarcdstica, mas tende a ser atemporal por trazer tona teméticas mais universais. O MANGA: 6 um tipo de HQ de origem janonesa que tem ganhado muitos adeptos no mundo ocidental. Com temdticas variadas, esse género em quadrinhos tem varias peculiar dades estéticas e linguisticas que se diferem dos quadrinhos americanose europeus. 176 Captulo 6 Amaneira de visualizar a sequéncia dos quadros @ dos textos impressos nos baldes e legendas, por exemplo, é da diteita para esquerda, Os desenhos seguem uma certa padronizagé tragos das personagens ¢ nos recursos gestuais @ expressivos, dando maior carga dramatica comicidade a historia. H& uma preocupagao também em detalhar uma cena de agéio em uma seauéncia extensa de quadros. O mercado de manga, no Japao, é muito diversificado, por isso, as editoras procuram langar produgées com estéticas linguagens bem definidas para cada tipo de puiblico leltor. Dessa forma, hé mangas direcionados para o [eitor infanti, adolescente @ adulto; assim, também, como hé mangas voltados para o publica hétero ou homossexual nos AS TIRAS DE HUMOR: Por fim, as tiras de humor (género em estudo) séo sequéncias curtas de quadrinhos (no maximo quatro ou cinco quadros) que contam uma pequena histéria protagonizada por personagens ficticias © estereotipadas. Espera-se deste género_um desfecho ligeiramente cémico. Tende a explorar desde temas corriqueiros a abordagens mais adultas e reflexivas. O uso de metalinguagem, ironia, polifonia, intertex- tualidade € trocadithos é muito comum neste 7 Captulo 6 formato de quadrinhos, possibiltando um final inusitado e garantindo a comicidade. As tirinhas, segundo Ramos e Carmelino (2015), comegaram a ganhar espago nos jomais estadunidenses no final do século XIX em virtude de seu formato padréo econémico. © modelo de tirnhas norte-americanas teve ascensdo em muitos paises do ocidente, cada qual com sua peculiaridade histérica @ social. Ao analisar determinadas tiras de humor de Portugal, Ramos ¢ Carmelino (ibid.) perceberam a prevaléncia da intertextualidade, do conhecimento prévio e da inferéncia como estratégias de produgdo de sentido. E l6gico que existem produgées de tiras de humor voltadas para pliblicos distintos e com tematicas e abordagens comunica- tivas civersificadas, clependendo do piiblico a ser atingido. Sabemos, entretanto, que a finalidade primordial da tirinha ‘em quadinhos é causar humor. Por isso, seu formato objetivo, sem rodelo. Ela se desenvolve de maneira linear e concisa para atingir certa comicidade. Ramos questiona até mesmo uma possivel relagdo entre a tira de humor e 0 género piada: {As tiras em quadrinhos tém espaco garas cadernos de cultura dos grandes jornais brasile'- ros. 0 tema em geral é o humor. A questao que levantamos neste artigo é: as tras seriam uma for ma de piada? Ou, pelo menos, funcionariam co- mo piadas? Responder as perguntas nao ¢ tarefa das mais simples. Envolve mais a impressao que temos do que seja uma piada e uma tira e me- hos uma investigagao cientfica sobre o assunto (RAMOS, 2004, p. 0). = 178 Captulo 6 Entretanto, logo em seguida, Ramos (op.cit., p. 03) percebe um elemento inerente da tirinha de humor que néo es presente no género piada: a mescla entre desenho e linguagem verbal, “uma primeira caracteristica um texto que alia elementos verbais e visuais. Os dois signos ‘se somam no processo de condugao da narrativa”. Ou seja, as tiras em quadrinhos possuem uma finalidade anéloga a piada, porém, sua estratégia de comicidade se difere desta titima em Virtude de sua relagao intrinseca, em menor ou maior grau, do c6digo com 0 verbo. ta aos olhos. Trata-se de Cagnin (1975) refere-se as tiras de humor como quadros narrativos e, segundo o autor, suas estratégias comunicativas para atingir a comicidade seguem trés fungdes narrativas “uma situagao inicial (S); um elemento que desvia o curso natural da ago (0); a disiungao operada por este elemento © que vai provocar, via de regra, 0 riso (F)". Este elemento disjuntor representa a quebra da expectativa, que provoca 0 deseniace engragado. Temos, assim, uma circunstancia inicial, uma disiungéio um final. Na maioria das vezes, a comicidade das tiras voltadas para 0 ptiblico infanto-juvenil 6 ocasionada por uma falha de comunicagéo construida, por exemplo, a partir de um trocadiho, efeito cacéfato, ironia ou polissemia = 179 Captulo 6 Histéria em quadrinhos: a hibridizacao entre imagético e verbal Acharge eas tiras de humor se apresentam como formas ‘comunicativas que interagem com diversos recursos expres sivos em prol da construgao do discurso € de seus possiveis sentidos. © imagético e o verbal mesclam-se visando uma unidade seméntica que dialoga explicitamente com a realidade © 0 grupo social do leitor. Quem produz textos de qualquer género possivel tende a escolher composigées e figuras imagéticas acessiveis a um determinado publico de leitores. Estes recursos pictéricos devem fazer parte do imaginario e do conhecimento coletivo. Logicamente, tais transparéncias de formas, apesar de apre- sentarem em alguns casos concepgées estereotipadas, auxiiam na construgao discursiva a partir de um confito ideolégico, tendo em vista que “a comunicagao determina lugares na estrutura social que so inevitavelmente marcados pelas diferengas de poder, e isso afeta o modo como cada patticipante compreende a nogo de entendimento maximo” (FERRAZ, 2008, p. 102). Acomposigao dos signos verbais ¢ imagéticos resulta em uma fusao expressiva que deve estabelecer uma identificagao de posicionamento social pelo leltor. Ou seja, as posigdes dos grupos sociais devem estar muito bem definidas, por exemplo, na charge € nas tiras humoristicas, faciitando a tomada de = 180 Captulo 6 construgao do sentido e na afirmagao dos discursos poiticos © sociais que 0 texto referencia. Mesmo numa determinada tira em quadrinhos onde parece estar ausente a lingua escrita, o leitor sempre faré uso do verbal para abstrair significados do imagético, Tudo esta interigado numa narrativa sequencial quadrinizada: a composigao dos Angulos, os planos de enquadramento, posigdo dos interlocutores @ até mesmo o formato das letras expressam semnioses. Multas vezes, “a imagem pode antecipar ‘ou complementar informagées e conhecimentos linguisticos e/ ‘ou extralinguisticos”, como afirma Ferraz (op. cit., p. 14). a ‘A forma como as personagens sao representadas nas narratives sequenciais quadtinizadas e nas charges remetem a determinados grupos sociais (dominados e dominantes) © caracterizam um posicionamento ideolégico de quem as produziu. Nestes textos multimodais, o signo linguistico muitas vezes & materiaizado em um elemento imagético que néo est, entretanto vazio de valores ideolégicos. Seu sentido se constr6i durante a atividade de leitura e depende dos eventos histéricos e culturais nos quais 0 leitor esta inserido. As histérias em quadrinhos na sala de aula Rama @ Vergueito (2010, p. 21-24) elencam varios argumentos que possibilitam a viabilizagao do uso das narra tivas quadrinizadas em atividades escolares, pois, de acordo com esses autores, ha varios motivos (jungao de imagens = 181 Captulo 6 © palavras, alto nivel de informagdo, familiaridade com o género, dentre outros) que levam as HQs a apresentarem um bom desempenho como ferramentas didéticas em sala de aula, cujo limite “para seu bom aproveitamento em qualquer sala de aula 6 a criatividade do professor e sua capacidade de utiizé-los para atingir seus objetivos de ensino” (RAMA; VERGUEIRO, op. cit., p. 26). Muitos educadores, em uma didatica equivocada, buscam inserir narrativas quadrinizadas em suas aulas como pretexto para abordar certo assunto da gramatica normativa visando 0 mero entretenimento em detrimento da reflexéo linguistica. Subestimando o potencial destas narrativas imagé- ticas, que buscam uma aproximago com a dinamicidade do discurso oral, por exemplo. E por consequéncia, perdendo a oportunidade de ressaltar estratégias de expressividade, ‘como entonagao © dramatizagao, mecanismos tipicos da oralidade, cuja abrangéncia jé havia sido evidenciada por Urbano (1997, p. 63) ‘ASHQs, em decorréncia de sua linguagem mullfacetada, parecem-nos reproduzir, mesmo que de forma simplificada, (© processo de construgao do ato conversacional. Vergueiro (2010, p. 31) nos faz perceber a mescia de dois cédigos (verbal no verbal) que devem ser lidos integralmente; “esta relagao simultanea e coesa é uma tentativa de representar a oralidade: so auténticas simulagdes das interagdes orais". = 182 Captulo 6 Rama e Vergueiro (op. cit.) apresentam em sua obra algumas estratégias para trabalhar o ensino de Lingua Portu- guesa em uma tentativa de abordagem linguistico-textual das historias em quadrinhos, como a adequagao e inadequagao da fala em contextos comunicativos, variagées linguisticas, aspectos da oralidade/escrita e coesdo/coeréncia. Suas propostas, entretanto, limitam-se & anélise superficial do texto, priorizando a observagao de elementos coesivos e do grau de formalidade da mensagem. © objetivo deste trabalno de pesquisa é, por outro, @ anélise dos mecanismos de funciona- lidade da lingua nativa através de tiras humors um enfoque linguistico do texto, ticas, a partir de E logico que 0s fatores gramaticais e estéticos que carac- terizam os quadrinhos devem ser considerados numa etapa inicial das agdes didaticas em sala de aula, porém, o objetivo maior desta proposta de atividade de leitura 6 a compreensao do funcionamento da lingua nativa através dos discursos atri- buidos no contexte comunicativo. A utlizagao de tiras humo: risticas para a andlise da estrutura narrativa pelos alunos é indicada por Faria (2012), que aponta nas tirinhas em quadri- nhos trés momentos da maxima sintese estrutural narrativa: O Problema, situagdo inicial da histéria onde nos é apresentado © enredo e as personagens; 0 Desenvolvimento, a busca da solugo do problema, e a Conclusdo, onde nos é apresentado um final inusitaco, causado geralmente por um entendimento precipitado do leitor induzido pelo senso comum. = 183 Captulo 6 Faria (2012) enfatiza também a importancia dos cédigos gréficos para a construgéo do sentido do texto, no que se refere & sua estrutura natrativa, destacando o caréter visual das onomatopeias e a mudanga de tipos e tamanhos de letras. Outro aspecto pertinente nos quadrinnos 6 o visual estético da organizagao dos quadros @ das formas geomé tricas utilizadas para expor o contetido imagético. Conside- radas um tipo de arte sequencial, as histérias em quadrinhos nem sempre seguem a estrutura sequencial linear das tiras de humor tradicionais. E possivel, dependendo da intencionali- dade comunicativa do artista, o uso de formatos sequenciais criativos que esto diretamente relacionados com o discurso narrative do texto e que, muitas vezes, sdo dotados de uma expressividade metalinguistica. O uso de enquadramentos sequenciais ofclicos ou em forma de mosaicos, por exemplo, propiciam ao pliblico uma nova leitura da narratividade induzin- do-nos a miiltiplas interpretagdes do texto. Rodrigues (op. cit) evidencia esta "desordem” da sequencialidade da construgéo estética dos quadrinhos: A leltura da imagem revela uma postica particular que muitas vezes se torna complexa, principal- mente a partir das muitas subversdes as quais 0s quadrinnos se permitem ao desconstruir a propria estrutura narrativa [...| 0 aspect seméntico se constitui num sensorialsmo essencialmente visu- al, muitas vezes ligado ao seu cécigo estrutural basico, como 0 enquadramento ~ muitas vezes, afinal, no se esté a considerar que o mesmo sé dé sempre, uma vez que a prépria nogiio de se. quencialidade tradicional e outros aspectos sao frequentemente subvertidos, principalmente em. Captulo 6 narratives mais contempordneas (RODRIGUES, op. cit. p. 242-243). Assim, ler historias em quadrinhos exige uma atengao apurada e uma capacidade aprimorada de perceber detalhes visuais diretamente relacionados a estrutura narrativa. Est quebra da linearidade sequencial, comum nas produgées quadrinizadas _modernas, deve ser percebida pelo aluno durante 0 ato de ler. Considerar os quadrinhos como um produto artistico simplério nos impede de notar a potenciali- dade estética de sua narratividade hibrida. ‘Acharge @ 0 cartum, assim como as tiras de humor @ as novelas gréficas, séo meios de produgao de massa, dotados de uma vasta intencionalidade comunicativa. Sua construgao diretamente imagética ¢ referencial, coerente com o discurso verbal, torna possivel uma compreensdo da funcionalidade da lingua além dos aspectos gramaticalmente superficiais e previ- siveis. Segundo Higuchi ‘A escola, ao promover atividades que envolvam ‘08 meios de comunicagao de massa, pode levar © aluno a conhecé-los melhor, analisé-los, des: mmistifcando-os na medida em que os processos do produgao sejam conhecidos e estabelecendo com eles’ uma relagdo mais critica @ dindmica As atividades de criagao @ producao sao funda- mentais para o aluno vivenciar a complexidade do proceso, nem sempre percebida na sua fruigao (HIGUCHI, 2002, p. 16) Na maioria das vezes, 0 professor faz uso desses meios de comunicagéo em sala de aula explorando apenas os aspectos comicidade. Isto geralmente ocorre devido ao fato = 185 Captulo 6 de muitos educadores compreenderem esses géneros como meros passatempos ou historietas infantiizadas. Evidenciar meros aspectos do desfecho humoristico das histérias em quadrinhos & menosprezar a potencialidade comunic: deste género, descartando seus elementos visuais, metalin guisticos, extralinguisticos e intertextuais, com base nas estru- turas morfossint iva icas e semanticas do texto, AMOSTRAGEM DA PROPOSTA DE INTERVENGAO DIDATICA ‘A proposta didética foi pensada para ser desenvolvida ‘em uma escola piblica do municipio de Alenquer-PA em turma do 9° Ano do Ensino Fundamental. Sendo executada durante todo 0 ano letivo, com inicio em margo e término em outubro. A.cada més, foram utlizados dois tempos das aulas de Lingua Portuguesa para a realizago da proposta didética, compu tando-se 16 horas de atividades praticas, Foram selecionadas previamente cito tires de humor para serem utlizadas como recursos didéticos durante as atividades. Basicamente, a proposta foi dividida em trés momentos: 1. LEITURA: Compreensao ¢ Interpretagao do texto; 2, ANALISE DOS FENOMENOS MORFOSSINTATICOS E SEMANTICOS: Linguagem verbal e imagética do texto; = 186 Captulo 6 3. PRODUGAO ESCRITA DO ALUNO: exercicios aplicados com base nos elementos linguisticos observados. O trabalho visou, também, dialogar intrinsecamente com ‘08 Componentes curriculares apontados na Base Nacional Comum Curricular ~ BNC -, considerando aspectos impor- tantes no proceso de desenvolvimento cognitivo e social do estudante. Esta etapa esté diretamente ligada aos anos iniciais do Ensino Fundamental e representa um perfodo de continu: dade e reaprendizagem do que foi abordado nos primeiros anos, como é esclarecido na BNCC: E importante, nos varios componentes curricula~ res, retomar @ ressignficar as aprendizagens do Ensino Fundamental - Anos Iniciais no contexto das ciforentes areas, visando ao aprofundamento 4 ampliago de repertérios dos estudantes, Nosse sentido, também 6 importante fortalecer a autonomia desses adolescentes, oferecendo-Ihes, condigdes @ ferramentas para acessar ¢ interagir crticamente com diferentes conhecimentos e fon- tes de informagao (BRASIL, 2018, p. 60), © texto da BNC cita 0 fortalecimento da autonomia do estudante através do uso de ferramentas didaticas e de condigdes em sala de aula que garantam o acesso a diver- sidade de conhecimentos de forma critica e interativa. Um dos objetivos especificos do projeto é, justamente, através do género Tiras de Humor, proporcionar um aprendizado analtico dos fenémenos morfossintéticos e seménticos da Lingua Portuguesa levando em consideragao a autonoria do estudante em acessar seu repertério linguistico = 187 Captulo 6 Outro aspecto relevante desta etapa final do Ensino Fundamental 6 0 acesso frequente dos adolescentes a um Universo digital, que Ihe proporciona o contato com uma diversi- dade de novas formas de comunicagao de carater multimodal, prevalecendo, muitas vezes, o imediatismo de informagées ‘© uso exacerbado do imagético como uma forma de sinteti- zago do texto verbal, Um exemplo espectfico desse género &0 Meme, género digital que traz algumas semelhangas com as historias em quacrinhos, através da utilizagao de balées de falas e de quadrinhos sequenciais. Segundo trecho da BNCC: s jovens tém se engajado cada vez mais como protagonistas da cultura digital, nvolvendo-se di relamente em novas formas de interag&o muttimi- didtica e multimodal e de atuagao social em rede, que se realizam de modo cada vez mais agi. Por sua vez, essa cultura também apresenta forte ape- lo emocional e induz ao imediatismo de respostas, e 8 elemeridade das inforragées, privlegiando analises superficiais e o uso de imagens @ formas de expressao mais sintéticas, diferentes dos mo- dos de dizer @ argumentar caracteristicos da vida escolar (BRASIL, 2018, p. 61) No capitulo da BNC, que trata das competéncias espe- cfficas da Iinguagem, especificamente no tépico 03, faz-se referéncia a necessidade de incorporar as aulas de Lingua Portuguesa outras formas de linguagem, além da verbal Ultlizar diferentes linguagens ~ verbal (oral ou visu: al-motora, como Libras, e escrital, corporal, visual, sonora @ digital -, para se expressar ¢ partihar in formacées, experiéncias, ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir sentidos que lever 0 diélogo, a resclugao de confltos e & cooperagao (BRASIL, 2018, p. 65) = 188 Captulo 6 A Histéria em Quadrinhos, de acordo com esta compe: téncia, atende ao apelo visual com maestria ¢ esta incorporado ‘as midias digitais, pois com a crise inflacionéria que tem atetado drasticamente as publicagdes impressas no pals, 0 género tem migrado, consequentemente, para suportes digitais em formatos PDF € video, por exemplo, Outro ponto destacado pela BNCC, referente ao compo- nente de Lingua Portuguesa, 6 0 Texto como elemento central no processo de ensino-aprendizagem. Segundo Koch (1984, P. 21], “o texto é qualquer manifestagao através de um estoque de sinais de um oddigo. Pode designar toda e qualquer mani- festagao da capacidade textual do ser humano”. Entendamos aqui, deste modo, @ Historia em Quadrinhos como uma unidade textual formada basicamente da combinacdo de dois ‘c6digos: 0 imagético (desenho) ¢ o verbal. Sua semiose se d& pela hibridizagao de dois cédigos capazes de produzir signifi- cagdes muitas vezes complexas. No capitulo voltado a Lingua Portuguesa, a BNCC esclarece que Tal pronosta assume a centralidade do texto como unidade de trabalho e as perspectivas enunciati- vo-discursivas na abordagem, de forma a sempre rolacionar os textos a seus contextos de produ (do e 0 desenvolvimento de habllidades ao uso Significativo da linguagem om atividades do leitura, escuta @ produgdo de textos em varias midias © semioses (BRASIL, 2018, p. 67) Enfim, 0 texto da BNCC busca nortear 0 ensino de Lingua Portuguesa para uma adequagao progressiva a cultura midia: ticamente digital aderindo a leitura e & construgao de géneros = 189 Captulo 6 novos e a digitalizacao de textos © produgdes artisticas. A Historia em Quadrinhos, por exemplo, tem se adaptado de forma propicia &s midias virtuais pelo acesso pratico @ pelo baixo custo financeiro. Muitas produgées quadrinizadas, em Virtude do dificil acesso de seu formato impresso pelo novo puiblico de leitores, estao tendo seus contetidos digitalizados © postados nas midias viruais, facilitando 0 seu didlogo com ‘outros géneros textuais recentes como as fanfics e os memes. Segundo a BNC: ‘As préticas de linguagem contemporaneas nao $6 envolvem novos géneros @ textos cada vez mais, multissoristicos © muttimidiaticos, como tam- hém novas formas de produzit, de configurar, de disponibilzar, de replicar © de interagit. As novas fetramentas de edigao de textos, Audios, fotos, vi deos tornam acessiveis a qualquer um a produgao, € disponibilzagao de textos multissemidticos nas redes socials ¢ outros amibientes da Web. No $6 6 possivel acessar conteidos variados em dife- rentes midias, como também produzir e publicar fotos, videos diversos, podcasts, infograficos, en- ciclopédias colaborativas, revistas e livos digitais, etc. Depois de ler um livto de Iteratura ou assistir um filme, pode-se postar comentarios em redes socias especticas, seguir ditetores, autores, es- critores, acompannar de perio seu trabalho; po demos produzir playlists, vlogs, videos-minuto, ‘escrever fanfics, produzir o-7inos, nos tornar um booktuber, dentre outras muitas possibilidades (BRASIL, 2018, p. 68), Tais prticas de linguagem e a utiizagao de ferramentas digitais jA so de conhecimento de boa parte do pubblico infantil e adolescente, porém, cabe a escola a produgio de metodolo- gias de ensino que orientem os alunos a um uso consciente & = 190 Captulo 6 coritico deste emaranhado de informagées propagadas por esta diversidade de linguagens cigitais que os expdem ao contato excessivo 5 redes sociais. © objetivo primordial é que eles no sejam meros receptores de informagdes, mas que sejam capazes de produzir novos textos com 0 uso adequado das ferramentas digitais disponiveis, de construir opiniées com base em preceitos éticos e de compreendero sistema funcional linguistico que sustentam estes textos multissemisticos, Exemplo de plano de aula TEMA: Ambiguidade ocasionada pelo uso de pronome anatorico, OBJETIVO: Identificar construgdes sintaticas ambiguas causadas pelo uso de pronome pessoal anaférico, METODOLOGIA: * PUBLICO-ALVO: Turma de 9° Ano do Ensino Basico; + CARGA HORARIA: 02 horas; * RECURSO DIDATICO: fotocdpias, datashow, pincel, quadro-branco, dicionério; * PROPOSTA DIDATICA: * MOMENTO 01 (LEITURA): inicia-se com a leitura ¢ interpretagéo da seguinte tirinha: = 191 Captulo 6 Fonte: htps:/flos.cursacnemgratuite.com.br/uploads/2020/08/Tiinha- -com-ambiquidade.pa, Inicia-se a aula com a leitura do texto juntamente a.com a turma. E provavel que muitos alunos nao percebam o fenémeno de ambiguidade questionado pelo personage. Vamos sempre compreender no contexto da letra da cangao que 0 pronome obliquo étono “a” se refere ao inseto @ néo & parede? Os pronomes de terceira pessoa, por possibilitarem uma, condigao de indefinigao anaférica dependendo da organizagéo da sentenga, podem gerar dupla interpretagao. Nesse caso, 6 importante levar em conta 0 conhecimento de mundo do aluno. Este pode deduzir que uma chuva forte pode demolir também uma parede, e mesmo causar danos maiores a outros tipos de construgo. Além disso, a incluso do adjetivo ‘forte’ como determinante de ‘chuva’ faz com que o aluno admita a possi- bilidade de a chuva ter derrubado a parede (e nao a aranha), considerando que uma simples chuva poderia derrubar uma aranha, nao necessitando ser forte. © pronome obliquo ‘a’ retoma anaforicamente um referente feminino, singular. E ha dois, nesse caso, justamente = 192 Captulo 6 ‘aranha’ e ‘parede’. Além disso, existe a cronologia dos fatos que 0 conhecimento de mundo permite detectar: 0 fato de a aranha ter subido pela parede nao implica que ela ainda esteja naquela mesma parece quando a chuva forte velo, Pode-se fazer 0 raciocinio de que a aranha subiu pela parede e foi para ‘outro local. Veio a chuva forte e derrubou a parede. E interessante o professor apresentar a letra completa da. cango para que os alunos possam visualizar a cena da narrativa. ‘A dona aranha Subiu pela parede Veio a chuva forte Ea derrubou Ja passou a chuva Eo soljé vai surgindo Eadona aranha Continua a subir Ela ¢ teimosa E dosobodiento: Sobe, sobe, sobe E nunca esta contente tJ ‘A dona aranha Desceu pela parede Veio a chuva forte Ea derrubou Ja passou a chuva Eo sola val surgindo Eadona aranha Continua a descer Ela 6 toimosa E desobediente Desce, desce, desce E nunca est4 contente Fonte: hitps:/fwiveletras.mus.br/eliana/298090/, = 193 Captulo 6 As informagées posteriores evidenciam que foi o inseto que sofrera a queda ocasionada pela chuva. Entretanto, o professor deve esclarecer aos alunos que uma frase retirada de seu contexto original pode gerar interpretagdes erréneas. * MOMENTO 02 (ANALISE MORFOSSINTATICA E SEMANTICA) Neste segundo momento, 0 professor expe 0 trecho da letra que gerou a duplicidade de sentido. E estabelece uma andlise por partes do periodo composto. 1. ADONA ARANHA SUBIU PELA PAREDE, 2. VEIO.A CHUVA FORTE. 3. EADERRUBOU O professor indaga em relagdo a primeira oragdo “QUEM OU 0 QUE SUBIU PELA PAREDE”. Espera-se que os alunos percebam o agente oracional “A DONA ARANHA”. Nao ha duwida de que o elemento nominal que cometeu o ato de subir a parede foi “a dona aranha’, A oragéo também marca uma ago introdutéria narrativa. Em seguida, pergunta-se aos alunos: "POR ONDE A DONA ARANHA SUBIU?” E inevitavel que os alunos respondam *PELA PAREDE”. Este exercicio retérico serve apenas para evidenciar os dois vocabulos nominais ARANHA e PAREDE. Com 0 uso do dicionério, solicita-se aos alunos que pesquisem o significado primério cos dois vocabules, orientan- do-os a perceber como géneros femininos ambos os léxicos. = 194 Captulo 6 ‘A segunda oragao surge como um elemento compli cador da narrativa “VEIO A CHUVA FORTE". Temos a presenga de um sujeito agente, no caso “a chuva’, que comete duas ages VIR e DERRUBAR. E relevante que os alunos natem os ‘elementos agentes de cada oragao. ‘A terceira orago é onde reside a causa da duplicidade semantica induzida pela imprecisdo anaférica do pronome obliquo atono “a”, O professor faz 0 seguinte questionamento &turma: © QUE A CHUVA FORTE DERRUBOU? Provavelmente a maioria responderé que foi a "aranha”’ Entretanto, o professor indagard se é possivel que tenha sido a “parede” que sofrera a ago de ser derrubada. Como 0 pronome “a” possivelmente nao faz parte do uso convencional de muitas comunidades linguisticas, hd a preferéncia pela substituigéio do pronome oblique atono por um pronome pessoal do caso reto. Exemplo: O Raimundo segurou Carla pelo brago e beijou ela com forga. (ao invés de bejou-a). Cabe ao professor esclarecer sobre 0 uso popular do pronome pessoal “ela” contrariando a regra tradicional referente A colocagao do pronome obliquo atono “a”. Sugere-se a troca do proname “a” na frase em questéio por um morfema lexical ‘como, por exemplo, “bicho", com intuito de evidenciar a relagao anaférica com 0 morfema gramatical “a” A ARANHA SUBIU PELA PAREDE. VEIO A CHUVA FORTE DERRUBOU O BICHO, = 195 Captulo 6 ARAER, PAREDE MOMENTO 03 (PRODUGAO TEXTUAL) BA Proponha ao aluno a reescritura da frase estudada, elimi- nando a duplicidade de sentido. Desconsidere logicamente 0 restante da letra da musica que j4 acentua que 0 elemento que softe a ago é a “aranha’. A dica é substituir 0 vocabulo gramatical por um vocabulo lexical. Exempios: inseto, criatura, animal. Ou seja, um termo que qualifique ou defina o substan- tivo “aranha’ Cite outros exemplos com pronomes imprecisos para que 0s alunos possam discutir as possibilidades de interpre: tagao © sugerir alternativas de reescritura dos textos para desfazer as ambiguidades: ‘A professora pedi a Caria que guardasse sua bolsa até ahora do intervalo. Bolsa de quem? Da professora? Ou da Carla? Pedro avisou ao Carlos que sua casa estava pegando fogo. Casa de quem? De Pedto? Ou de Carlos? = 196 Captulo 6 CONSIDERAGOES FINAIS Assim como os games atualmente servem de "bode expiat6rio" para comportamentos antissociais ¢ indisciplinados de muitas criangas ¢ adolescentes dentro do espago escolar, as histérias em quadrinhos também carregaram este estigma negative desde a segunda metade do século 20. Vistas por muitos educadores nas décadas de 50, 60 e 70 como um produto de qualidade artistica duvidosa e atraente apenas a um public desinteressado de leituras mais “complexas", as HOs sofreram uma forte oposigao por parte de professores e pais, sendo relegadas a fungao de entretenimentos fiteis e simplérios. Hoje, apesar de ndo sofrerem a perseguigéo ferrenha de outrora @ serem até mesmo consideradas, por muitos, como um género narrativo antiquado para as atuais geragdes, as HQs tém cada vez mais ganhado status de produto da cultura pop, por ainda influenciarem outras midias como o cinema e a internet. Seu potencial comunicativo ja se faz presente no texto da BNCC, reconhecendo-as como recurso didético de dife- rentes areas de conhecimento. Segundo Santos Neto e Silva: Tal reconhecimento se faz presente nos docu- mentos nacionais curriculares , a partir de 2006, através do Programa Nacional de Biblioteca na scola (PNBE), que passou a incluir os quad nhos entre as obras distribuidas as instituices, educacionals piblicas do pals (SANTOS NETO; SILVA, 2015, p. 11) Entretanto, como apontam esses mesmos autores, muitos educadores aparentam inseguranga em utlizar as = 197 Captulo 6 HQs como recursos didaticos em sala de aula. Demonstram interesse em fazer uso deste género, mas se deparam com muitos questionamentos, tais como: ‘Seré que posso ou devo trabalhar com as HAs? ue 0s pais rao dizer? E a diregao e coordenagao da escola? E meus colegas professores e profes: soras? Por onde eu comego? Seria possivel pro Por trabalho interdisciplinar com histérias em qua- drinnos? (SANTOS NETO; SILVA, op. ct. p. 11). Essas indagag6es sdo motivadas por varios fatores, como certo preconceito a géneros narrativos populares considerados infantiizados e uma desinformagéo em relagao ao potencial estético e antistico destes produtos. A proposta metodolégica desta dissertagao surgiu como uma possibilidade de insergao do género histéria em quadrinhos, em especial, as tirinhas de humor, nas aulas de Lingua Portuguesa, com enfoque & anélise morfossintética e seméntica do texto. A tiinha de humor, por ser uma vertente das histérias ‘em quadrinhos - que tem como caracterist de uma narrativa curta desenvolvida numa sequéncia de quatro a cinco quadrinhos, tendo como objetivo um desfecho cémico -, utliza-se de diversos recursos expressivos para atingir sua intencionalidade. Com tematicas voltadas para 0 cotidiano social, hé uma preferéncia por personagens que representam o arquétipo do individuo comum, carregado de habitos ¢ padrées predefinides. Como as tiras costumam fazer uma critica sutil de valores e preceitos humanos, ela se = 198 Captulo 6 mostra atemporal por fazer referéncia a costumes e padrées morais da sociedade contemporénea, A linguagem das tiras cémicas, em particular, faz uso de diversos mecanismos comunicativos para atingir seu objetivo, a comicidade. A ironia 6 a figura mais constante em diversos destechos das tirinhas por optar por um humor sutil e sarcéstico. Nas tiras de humor, nada 0 que aparenta ser a principio. © final inesperado, devido também a uma falha de comunicagao entre os personages, é um recurso releva’ para direcionar o leitor para a intencionalidade do texto. Outro mecanismo seméntico é a polissemia por causar no leitor uma interpretagao previamente errénea no inicio da narrativa para, ‘em seguida, Ihe proporcionar um estranhamento e surpresa ao final da histérla, O quadtinista costuma “brincar” com os significados literais ¢ figurativos des vocabulos, pois possibilita dispor 0 olhar de compreensao do leitor para um devido ponto da narrativa, antecipando-Ihe um entendimento equivocado e preparando 0 deseniace inusitado. Tais trocadilhos s4o possiveis gragas & habilidade do artista de manusear os significados das palavras dentro do contexto narrative e A construgao morfossintatica de sentengas e palavras ambiguas. O desvio de entendimento no decorrer da historieta é primordial para o éxito da comicidade. Aceitamos, entretanto, como leitores, esta posi¢ao antecipada de passivi- dade. Deixamo-nos ser iludidos pelo autor, para que sejamos premiados ao final com uma releitura da informagao. = 199 Captulo 6 Enfim, as possibilidades sao numerosas quando se fala de insergo do género quadrinho em sala de aula. Como as tirinhas, em particular, tam um enfoque voltado as relagdes se él de conhecimento podem usufruir de sua potencialidade, como as disciplinas de Filosofia, Socio- logia e Historia. Entretanto, 6 na area da linguagem suas tecnologias que 0 género em questo ganha status de produto artistico, onde se pode explorar seu conceit estético, sua forma de construgéio da mensagem e das personagens, suas temticas abordadas e, principalmente, seus recursos expres- sivos. O professor, para isso, precisa estar ciente dos diversos caminhos que pretende explorar em relagdo a linguagem quadrinizada, explorando nao apenas a relagao verbal com 0 imagético, mas os caminhos moldados pelo artista para atingir seu objetivo comunicativo. sot . varias Area REFERENCIAS BRASIL. Ministéro da Educagéo. Base Nacional Comum. Curricular. Brastia, 2018, CAGNIN, A. L. Os quadrinhos. Sao Paulo: Atica, 1975. CAGNIN, A. L. Os quadrinhos: um estudo abrangente da arte ‘sequencial, linguagem e semistica. Sao Paulo: Criativo, 2015. FARIA. M. A. Como usar a literatura infantil na sala de aula. 5. ed., 1" reimpresséo. S40 Paulo: Contexto, 2012. = 200 Captulo 6 FERRAZ, J. de A. Géneros muttimodais: novos caminhos discursivos. Anais do VIII Encontro Nacional de Interagao em Linguagem Verbal e Nao Verbal. Sao Paulo: FFLCH-USP, 2008. GUEDES, K. C. of al. Histéria em Quadrinhos em Sala de Aula de Lingua Portuguesa: Despertando Novas Leituras. 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