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PARECER

TJRJ 202300811115 11/10/2023 17:12:00 IPL6 - PETIÇÃO ELETRÔNICA Assinada por LUANA FRANCINI FERREIRA SAMPAIO
I. O OBJETO DA CONSULTA...................................................................................... 2
II. QUESITOS. ........................................................................................................... 3

III. SITUAÇÃO CONCRETA: O CONTEXTO FÁTICO DA CONTROVÉRSIA JURÍDICA...... 5

IV. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. ...................................... 13

IV.I. AUTONOMIA PATRIMONIAL DA PESSOA JURÍDICA: PREMISSAS FUNDAMENTAIS


QUE REVELAM A SUA IMPORTÂNCIA JURÍDICA, SOCIAL E ECONÔMICA.............. 13

(A) NECESSÁRIA INSTAURAÇÃO DO INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA


PERSONALIDADE JURÍDICA. ......................................................................................... 18
(B) EXAME DOS PRESSUPOSTOS QUE AUTORIZAM A DESCONSIDERAÇÃO DA
PERSONALIDADE JURÍDICA: TEORIA MENOR (ART. 28 DO CDC). ......................... 25
(C) EXAME DOS PRESSUPOSTOS QUE AUTORIZAM A DESCONSIDERAÇÃO DA
PERSONALIDADE JURÍDICA: TEORIA MAIOR (ART. 50 DO CC). ............................. 32
(D) RESPONSABILIDADE DOS ACIONISTAS MINORITÁRIOS, DIRETORES,
CONSELHEIROS E ADMINISTRADORES DE SOCIEDADE ANÔNIMA DE CAPITAL
ABERTO. ............................................................................................................................ 45
IV.2. ÔNUS DA PROVA EM MATÉRIA DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE

JURÍDICA. ........................................................................................................... 54

IV.3. GRUPO ECONÔMICO. ................................................................................. 56

(A) NECESSIDADE DA INSTAURAÇÃO DE INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA


PERSONALIDADE JURÍDICA. .......................................................................................... 56
(B) REQUISITOS CUMULATIVOS PARA SE DESCONSIDERAR UMA PESSOA JURÍDICA
INTEGRANTE DE GRUPO ECONÔMICO......................................................................... 57
IV.4. DESCONSIDERAÇÃO E O CENÁRIO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL: SUSPENSÃO DE

TODOS OS ATOS EXECUTIVOS. ............................................................................ 62

V. CONCLUSÕES E RESPOSTAS AOS QUESITOS. ...................................................... 66

1
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I.
O OBJETO DA CONSULTA

Honram-nos com a consulta a Sra. Renata Rossi Cuppoloni Rodrigues, o Sr.


Fernando Miziara de Mattos Cunha e o Sr. João Paulo Franco Rossi Cuppoloni, por
meio dos ilustres advogados Sergio Sender e Leandro Sender. Indagam-nos sobre os
pressupostos legais da desconsideração da personalidade jurídica da ROSSI
RESIDENCIAL S.A. (“Rossi”), considerando os incidentes instaurados contra
empresas que fazem parte de sua estrutura societária e que resultaram na constrição do
patrimônio de pessoas físicas que têm a condição de sócios, acionistas, administradores,
diretores, integrantes do conselho fiscal, entre outros.

O cenário de (indevida) sujeição patrimonial, seja em razão da inobservância


do procedimento legal, seja em virtude da imprecisão da análise dos pressupostos que
autorizam a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica,
demanda a análise de aspectos relacionados ao direito civil e ao direito processual civil.
Além disso, a adequada compreensão das questões cujo exame nos foi solicitado exige,
primordialmente, que se perceba com clareza a qualificação da natureza jurídica da
Rossi, sua estrutura e composição acionária, assim como seja feita breve exposição do
contexto fático subjacente à controvérsia jurídica.

Para resposta à consulta, tivemos acesso às cópias dos seguintes documentos:

(i) petições e informações relativas ao seu processo de Recuperação Judicial


da Rossi (autos nº 1101129-56.2022.8.26.0100, em trâmite perante o Juízo da 1ª Vara
de Falências e Recuperações Judiciais da Comarca de São Paulo);

(ii) organograma da estrutura societária e composição acionária da Rossi; e

2
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(iii) processos envolvendo a desconsideração da personalidade jurídica da


Rossi, compilados em uma planilha de Excel, dos quais extraímos algumas decisões que
nos chamaram atenção, especialmente: 0017183-80.2020.8.26.0002 [TJSP]; 0006997-
61.2021.8.26.0002 [TJSP]; 0714102-82.2021.8.07.0000 [TJDF]; 5013890-
15.2021.8.08.0024 [TJES]; 2279289-66.2020.8.26.0000 [TJSP]; 0009642-
48.2020.8.26.0114 [TJSP]; 0037519-69.2021.8.19.0001 [TJRJ]; 0745883-
59.2020.8.07.0000 [TJDF]; 0006139-29.2019.8.26.0704 [TJSP]; 2156473-
48.2021.8.26.0000 [TJSP]; 0014791-88.2021.8.26.0114 [TJSP]; 0022630-
50.2018.8.25.0001 [TJSE]; 2247198-20.2020.8.26.0000 [TJSP]; 0080539-
76.2022.8.19.0001 [TJRJ]; 0017248-42.2021.8.19.0000 [TJRJ].

II.
QUESITOS

1-) A relativização do princípio que separa patrimonialmente a sociedade dos


sócios/acionistas, associados, instituidores ou administradores que a integram, de modo
a se permitir que as obrigações contraídas pela empresa atinjam, também, as referidas
pessoas, é a regra do ordenamento jurídico brasileiro?

2-) Qual procedimento deve seguir o credor – seja no âmbito das relações de
consumo ou não – para a extensão de responsabilidade para terceiros (ou bens de
terceiros) por dívidas dos devedores originais?

3-) À luz da chamada teoria menor, prevista no art. 28 do CDC, é possível


desconsiderar a personalidade jurídica apenas com fundamento no inadimplemento da
dívida ou na insuficiência de recursos para quitá-la?

3.1-) Ainda sobre a teoria menor, qual interpretação deve ser dada ao § 5º
do art. 28 do CDC, e à expressão “obstáculo”, nele prevista?

3
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4-) À luz da chamada teoria maior, prevista no art. 50 do CDC, quais são os
requisitos para se desconsiderar a personalidade jurídica de uma empresa e permitir a
extensão de responsabilidade para terceiros?

5-) Os acionistas minoritários respondem pelas dívidas sociais da Rossi?


Quais as consequências jurídicas de serem arrolados como parte no polo passivo em
IDPJ da Rossi?

6-) Os administradores, diretores ou conselheiros respondem pelas dívidas


sociais da Rossi?

7-) Há, no direito brasileiro, conceito semelhante ao business judgment rule,


de origem americana, que tenha aplicabilidade aos processos em que administradores
da Rossi sejam demandados por suas dívidas sociais?

8-) De acordo com as regras de direito processual, a quem compete o ônus


da prova de que, em determinado caso concreto (e excepcional), a personalidade
jurídica de determinada empresa possa ser desconsiderada?

9-) Quais são os requisitos e a forma exigida pela legislação para se


desconsiderar a personalidade jurídica de uma empresa com base na alegação de
existência de grupo econômico?

10-) Quais as implicações da recuperação judicial da Rossi nos sucessivos


pedidos de desconsideração da personalidade jurídica contra ela formulados?

11-) É possível a concessão de tutela de urgência em IDPJ? O ordenamento


jurídico prevê alguma forma de responsabilização da parte pelo prejuízo que a

4
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efetivação da tutela de urgência pleiteada (cautelar ou antecipada) causar à parte


adversa?

12-) Quem pode ser enquadrado como sócio solidário?

13-) É possível a responsabilização direta do sócio solidário pelos passivos


do grupo societário recuperando?

14-) As figuras abaixo podem ser consideradas “sócios-solidários”: acionista;


conselheiro independente; sócio; diretor administrativo; diretor estatutário; ex-
conselheiro; ex-diretor?

15-) Qual o prazo para propositura da demanda indenizatória diretamente


contra os administradores e acionistas controladores?

III.
SITUAÇÃO CONCRETA: O CONTEXTO FÁTICO DA CONTROVÉRSIA JURÍDICA

Extrai-se, da documentação a que tivemos acesso, que a Rossi Residencial


S.A. foi constituída em 13 de novembro de 1980, com o objetivo de concentrar os
investimentos do Grupo Rossi no setor de incorporação e construção de imóveis na
região metropolitana de São Paulo.1

A partir da década de 90, o Grupo Rossi expandiu suas operações para o


interior do Estado de São Paulo, bem como para os Estados do Rio de Janeiro e do Rio

1
Segundo o art. 3º do Estatuto Social da Rossi, “A Companhia tem por objeto social a compra e venda
de imóveis prontos, desmembramento e loteamento de terrenos, incorporação imobiliária e a
participação em outras sociedades na qualidade de sócia ou acionista ou na qualidade de única
acionista de subsidiária integral”. Disponível em: <https://bit.ly/3uWOhak>.

5
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Grande do Sul. Em julho de 1997, a Rossi realizou a abertura de seu capital, por meio
de oferta pública inicial de ações (“IPO” – Initial Public Offering).

Em 2003, aderiu ao nível 1 de Práticas Diferenciais de Governança


Corporativa da B3 (antiga BM&F Bovespa) e, em seguida, no ano de 2006, aderiu ao
chamado Novo Mercado e aos rigorosos requisitos de governança inerentes ao referido
segmento2 sendo que, em 2008, passou a integrar a carteira do índice Bovespa
(Ibovespa)3, chancelando, assim, sua relevância para o mercado brasileiro de
incorporação imobiliária.

Atualmente, a Rossi Residencial S.A., constituída sob a forma de sociedade


anônima de capital aberto (Lei nº. 6.404/1976), é a holding4 do Grupo Rossi, cuja
estrutura é composta por um total de 313 empresas – sendo 309 delas sociedades de
propósito específico (SPEs). O organograma abaixo ilustra e auxilia a compreensão da
estrutura societária da Rossi:

2
“Empresas listadas nesses segmentos oferecem aos seus acionistas investidores melhorias nas práticas
de governança corporativa que ampliam os direitos societários dos acionistas minoritários e aumentam
a transparência das companhias, com divulgacão de maior volume e melhor qualidade de informações,
facilitando o acompanhamento de seu desempenho. A premissa básica é que a adoção de boas práticas
de governança corporativa pelas companhias confere maior credibilidade ao mercado acionário e,
como consequência, aumenta a confiança e a disposiçãao dos investidores em adquirirem as suas ações
e pagarem um preço melhor por elas, reduzindo, como consequência, seu custo de captação”.
(PROCIANOY, Jairo Laser; VERDI, Rodrigo S. Adesão aos Novos Mercados da BOVESPA: Novo
mercado, Nível 1 e Nível 2 – Determinantes e Consequências. Revista Brasileira de Finanças, 2009, v.
7, n. 1, p. 110).
3
A inclusão no Ibovespa analisa a vigência de 3 (três) carteiras anteriores do ativo e exige, entre outros
requisitos, que a empresa tenha presença constante em pregão; possua determinado percentual de
volume financeiro no mercado à vista, e não seja classificada como Penny Stock. Disponível em:
<https://bit.ly/3jcjRyp>.
4
“Permite a lei [art. 2º, § 3º, da Lei 6.404/76] que a companhia possa ter por objeto participar do
capital de outras sociedades. Admitiu, pois, expressamente as companhias de participação e,
consequentemente, as companhias holdings”. (CAMPINHO, Sérgio. Lei das sociedades anônimas
comentada. COELHO, Fábio Ulhoa (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2021). Em complemento,
enunciam Fábio Konder Comparato e Calixto Salomão Filho que “As notórias vantagens empresariais
da sociedade holding costumam ser sintetizadas como segue: 1) controle centralizado, com uma
administração descentralizada; 2) gestão financeira unificada do grupo; 3) controle sobre um grupo
societário com o mínimo investimento necessário”. (O poder de controle na sociedade anônima. 6. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2014).

6
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Por sua vez, a sua composição acionária atual é composta de 4.530 (quatro
mil quinhentos e trinta) acionistas, sendo: (i) 45 (quarenta e cinco) investidores
institucionais; (ii) 74 (setenta e quatro) pessoas jurídicas; e (iii) 4.411 (quatro mil
quatrocentos e onze) pessoas físicas, o que corresponde a 97,37% do total das ações
comercializadas na Bolsa de Valores com o ticker RSID35. Ilustrativamente:

Não se observa na estrutura da Rossi a existência de acionista controlador,6


cuja definição consta do art. 116 da Lei 6.404/1976: (a) titular de direitos de sócio que
lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da
assembleia-geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e

5
Disponível em: <https://statusinvest.com.br/acoes/rsid3> Acesso em: 29.01.2023.
6
Conforme dispõe o art. 116 da Lei nº 6.404/76, “entende-se por acionista controlador a pessoa, natural
ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que a) é
titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas
deliberações da assembleia-geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e
b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos
da companhia”.

7
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(b) aquele que usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar
o funcionamento dos órgãos da companhia.

A administração da Rossi – conforme se extrai dos documentos submetidos


à nossa apreciação – ocorre de forma difusa, por meio do Conselho de Administração
e pela Diretoria (art. 14 do Estatuto Social Consolidado). Há, também, Conselho
Fiscal. As atribuições, bem como a composição de cada um desses órgãos está prevista,
sobretudo, na Lei 6.404/1976 e no Estatuto Social da Rossi, a saber:

1-) Conselho de Administração (arts. 17 a 22 do Estatuto Social):


atualmente, é composto por 05 (cinco) membros, dos quais 03 (três) são membros
independentes, com mandato unificado de 02 (dois) anos, permitida a reeleição. Entre
as atribuições do Conselho – previstas no art. 21 do Estatuto Social – destacam-se:
exercer as funções normativas das atividades da Companhia, fixar a orientação geral dos
negócios, etc.

2-) Diretoria (arts. 23 a 27 do Estatuto Social): atualmente, é composta


por 02 (dois) membros, 01 (um) Diretor Executivo, Financeiro e de RI e 01 (um) Diretor
sem designação específica. A Diretoria possui mandato de 03 (três) anos, renovável por
igual período, sendo atribuições dos diretores: gestão da Companhia, dirigir e distribuir
os serviços e tarefas da administração interna, etc. (art. 24 do Estatuto).

3-) Conselho Fiscal (art. 28 do Estatuto Social): com as atribuições


estabelecidas em lei (especialmente no art. 161 e seguintes da Lei das Sociedades
Anônimas) será composto de, no mínimo, 3 (três) e, no máximo, 5 (cinco) membros e
igual número de suplentes e somente será instalado mediante convocação dos acionistas,
de acordo com as disposições legais (atualmente, é composto de 03 [três] membros).

Essa estrutura organizacional da Rossi – sociedade anônima de capital aberto


– é lícita, encontrando amparo na legislação (Lei nº 6.404/76). Além disso, essa estrutura

8
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é relevantíssima para análise e respostas aos quesitos que nos foram formulados, pois,
como será visto com mais vagar, a desconsideração da personalidade jurídica, medida
excepcional e que exige a comprovação de determinados requisitos, visa atingir o
patrimônio de sócios ou acionistas que fazem – dolosamente – mau uso do instituto da
pessoa jurídica, e não de pessoas (físicas ou jurídicas) que exercem atividades
específicas em prol da consecução do objeto social.

Se assim não o fosse, investidores pessoas físicas (mais de 4 mil) ou


funcionários da Rossi, poderiam ser demandados judicialmente por atos relacionados
ao exercício do seu objeto social. Não por outro motivo, em processos judiciais em que
se buscou a desconsideração da personalidade jurídica da Rossi para atingir o patrimônio
pessoal de integrantes da Diretoria e Conselho de Administração, foi reconhecida a
ilegitimidade passiva dessas pessoas para compor o polo passivo de incidentes de
desconsideração (exemplo: processos de nº 0017183-80.2020.8.26.0002 e nº 0006997-
61.2021.8.26.0002, que tramitam, respectivamente, perante os Juízos da 9ª e 11ª Vara
Cível do Foro Regional II de Santo Amaro da Comarca de São Paulo; acórdão proferido
pelo TJDF nos autos de nº 0714102-82.2021.8.07.0000).

Por outro lado, ainda em caráter introdutório, importante considerar que o


processo de expansão empresarial da Rossi, notadamente com a abertura de capital,
acompanhou o crescimento do próprio setor imobiliário entre os anos de 2006 e 2014,
incentivado por políticas públicas e pelo bom momento vivenciado pela economia nesse
período. Ocorre que, a partir de 2015, o setor imobiliário brasileiro entrou em uma curva

9
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descendente, devido, sobretudo, à mudança do cenário macroeconômico e da


instabilidade política.7 Ilustrativamente8:

A retração do PIB, o aumento da inflação e da taxa de desemprego, com o


consequente endividamento da população, tiveram um impacto relevante na economia
e na atividade de incorporação mobiliária, cuja demanda depende, diretamente, da renda
das famílias brasileiras, dentre outros fatores.

Nesse contexto de crise econômica, houve um crescente aumento do número


de adquirentes de unidades imobiliárias, que buscaram a resilição ou o distrato de seus
compromissos de compra e venda de imóveis. Como consequência, algumas empresas
do segmento imobiliário, entre elas, a Rossi, requereram recuperação judicial,
almejando o soerguimento econômico e a continuidade de sua atividade produtiva, em

7
De acordo com estudo realizado pela ABRAINC: “Com a chegada da crise econômica, em 2014, assim
como outros segmentos, o setor imobiliário foi bastante impactado. Embora os programas sociais
voltados à população não tenham sido afetados, a indústria da construção foi alvo das mais severas
consequências, gerando influência direta e negativa em toda cadeia. Cresceu o desemprego, trazendo
estagnação e interrupção no desenvolvimento socioeconómico”. Disponível em:
<https://bit.ly/3G67OLP>.
8
Disponível em: <http://g1.globo.com/especial-publicitario/zap/imoveis/noticia/2016/04/o-auge-e-
queda-do-mercado-imobiliario-em-uma-decada.html> Acesso em: 20.12.2022.

10
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alinhamento ao princípio da preservação da empresa. O processamento da Recuperação


Judicial da Rossi foi deferido em 29.09.2022, pelo Juízo da 1ª Vara de Falências e
Recuperações Judiciais da Comarca de São Paulo, no processo de nº 1101129-
56.2022.8.26.0100. Houve o deferimento de stay period de 180 dias, tendo sido adotado
como termo a quo o dia 19.09.2022. Assim, todas as execuções contra a Rossi
encontram-se suspensas, a priori9, até março de 2023.

A demanda para a aquisição de imóveis caiu e a receita se tornou insuficiente


para arcar com os custos de incorporação e construção dos empreendimentos em
andamento, o que ocasionou atraso nas obras, e, por consequência, motivou inúmeros
adquirentes de unidades imobiliárias a buscar a resolução dos respectivos contratos de
compra e venda e a pleitear, por meio de ações e execuções judiciais, os valores já pagos,
cumulando, em sua grande maioria, pedidos indenizatórios decorrentes da mora.

Entre os anos de 2016 e 2021, foram ajuizadas 2.286 ações judiciais com esse
objetivo.

E o problema torna-se expressivamente mais grave, sobretudo, por dois


motivos:

1º) nas fases processuais mais avançadas dessas ações judiciais, em


cumprimento de sentença, uma vez não cumprida a obrigação fixada de restituir e pagar
o valor indenizatório fixado, os adquirentes passaram a formular, em face da Rossi,
pedidos de desconsideração da sua personalidade jurídica, visando a atingir o
patrimônio de pessoas físicas e jurídicas que a integram ou, em alguns casos, de
pessoas sem qualquer vínculo jurídico com a Rossi ou poder de comando. Esses pedidos,
em sua grande maioria, têm sido formulados de forma genérica e com fundamento

9
De acordo com o art. 6º, § 4º, da Lei nº 11.101/2005, o stay period de 180 dias pode ser prorrogado
“por igual período, uma única vez, em caráter excepcional, desde que o devedor não haja concorrido
com a superação do lapso temporal”.

11
136

exclusivo no art. 28 do Código de Defesa do Consumidor. Todavia, a decretação de DPJ


pelo Poder Judiciário tem ocorrido com frequência e sem o devido rigor técnico que o
tema exige;

2º) ainda, nestas fases processuais mais agudas, em várias oportunidades foi
possível observar inobservância reiterada da lícita e organizada estrutura desenvolvida
para o soerguimento de um empreendimento imobiliário, que é a constituição de
empresas de propósito específico (SPE’s), com a instituição de patrimônio de afetação,
que implica na separação de uma parte do patrimônio geral do incorporador, que ficará
vinculada a um empreendimento específico, a partir da averbação de um termo de
afetação no Registro de Imóveis (um dos objetivos dessa separação é, justamente,
proteger os próprios adquirentes10). Ao se desprezar essa estrutura, distorções jurídicas
acerca da responsabilidade civil-patrimonial podem ser constatadas, especialmente no
sentido de se ignorar a consequência jurídica de que o patrimônio de afetação tem um
regime próprio de responsabilidade, só respondendo os bens que o compõem pelas
obrigações que deram origem a afetação, não respondendo esses bens pelas obrigações
gerais do seu titular, às quais incumbirá ao patrimônio geral responder11.

Esse é o contexto fático da controvérsia que nos foi submetida.

10
CHALHUB, Melhim Namem. Alienação fiduciária, incorporação imobiliária e mercado de capitais.
Estudos e Pareceres. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p. 270
11
NEVES, Thiago Ferreira Cardoso. Contratos mercantis. 2. ed. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico,
2018, p. 23-24.

12
137

IV.
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

IV.1.
AUTONOMIA PATRIMONIAL DA PESSOA JURÍDICA: PREMISSAS FUNDAMENTAIS QUE
REVELAM A SUA IMPORTÂNCIA JURÍDICA, SOCIAL E ECONÔMICA

A análise do procedimento legal e dos pressupostos que autorizam a


aplicação da nominada teoria da desconsideração da personalidade jurídica impõe, antes
de tudo, a análise prévia (e breve, nos estreitos limites do objeto deste Parecer) da origem
e conceito de “pessoa jurídica”, bem como do papel ocupado por esta figura no nosso
sistema jurídico.

A complexidade relacionada à exploração adequada de certas atividades –


entre elas a incorporação e construção imobiliária – tornou necessária a conjugação de
esforços, por parte de pessoas singulares, com a finalidade de se atingirem determinados
objetivos comuns. Tal circunstância fez com que surgissem os agrupamentos de
indivíduos e patrimônios, identificados a partir de estruturas abstratas, próprias e
privativas.

A essas pessoas coletivas, que, como se sabe, são distintas das pessoas que
uniram forças para sua criação, o direito atribuiu identidade própria, bem como
capacidade para serem sujeitos de direitos e obrigações. É diante desse contexto que
surgem, assim, as chamadas “pessoas jurídicas”.12

12
A esse respeito, merecem destaque as lições de Caio Mário da Silva Pereira: “(...) a complexidade da
vida civil e a necessidade da conjugação de esforços de vários indivíduos para a consecução de
objetivos comuns ou de interesse social, ao mesmo passo que aconselham e estimulam a sua agregação
e polarização de suas atividades, sugerem ao direito equiparar à própria pessoa natural certos
agrupamentos de indivíduos e certas destinações patrimoniais e lhe aconselham atribuir personalidade
e capacidade de ação aos entes abstratos assim gerados. Surgem, então, as pessoas jurídicas, que se
compõem, ora de um conjunto de pessoas, ora de uma destinação patrimonial, com aptidão para
adquirir e exercer direitos e contrair obrigações”. (Instituições de Direito Civil. 30. ed. Atualização:
Maria Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro: Forense, 2017. v. 1, p. 249-250).

13
138

E justamente pelo fato de haver sido instituída e disciplinada pelo legislador,


que lhe conferiu personalidade jurídica (isto é, aptidão para ser sujeito de direitos e
obrigações), a pessoa jurídica se apresenta como verdadeiro instituto jurídico, revelador
de uma realidade existente não na vida sensível, mas, sim, no âmbito jurídico. Essa
realidade, por sua vez, está relacionada aos já mencionados objetivos comuns a serem
atingidos, em razão de sua criação.

A atribuição, pela lei, de personalidade jurídica própria às sociedades civis e


comerciais, motivou uma investigação mais acurada, pela ciência do direito, do
princípio que trata da incomunicabilidade do patrimônio da sociedade e de seus
acionistas. Falamos, aqui, do princípio da autonomia patrimonial, que é um
desdobramento dos princípios constitucionais da livre iniciativa, previsto no art. 1o, IV,
da CF, e da propriedade privada (arts. 170, II, e 5o, XXII, da CF).

Por força do referido princípio, o patrimônio das pessoas jurídicas não se


confunde com o patrimônio de seus sócios, acionistas, diretores e/ou administradores.
Sobre o assunto, Rubens Requião destaca que considerar a sociedade uma “pessoa”
significa qualificá-la como “...sujeito capaz de direitos e obrigações”. E mais: “Tendo
a sociedade, como pessoa jurídica, individualidade própria, os sócios que a constituem
com ela não se confundem... A sociedade com personalidade adquire ampla autonomia
patrimonial. O patrimônio é seu, e esse patrimônio, seja qual for o tipo de sociedade,
responde ilimitadamente pelo seu passivo”13 (destacamos).

Os efeitos jurídicos do princípio da autonomia patrimonial se irradiam,


também, no âmbito econômico, uma vez que incentivam o surgimento das empresas,
permitindo, assim, o desenvolvimento das relações produtivas e de consumo. Afinal, a
não separação patrimonial entre a pessoa jurídica e seus acionistas poderia implicar

13
REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. V. 1, p. 397.

14
139

desestímulo à assunção de riscos negociais e, com isso, refletir no próprio


desenvolvimento da economia nacional.

Esse cenário revela o porquê da atenção despendida pelo legislador para


com a criação de mecanismos de proteção e preservação das pessoas jurídicas,
notadamente, das sociedades empresárias.

O CC/1916, em seu art. 20, continha norma expressa a respeito do tema, em


que dispunha que “as pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros”.

No CC/2002, inicialmente, não foi repetida – pelo menos de forma expressa


– essa disposição, o que, em certa medida, contribuiu para interpretações equivocadas
acerca deste importante instituto, que é a pessoa jurídica, dotada de autonomia
patrimonial.

Visando a corrigir eventuais disfunções, andou bem, a nosso ver, o legislador


ao incluir, em setembro de 2019, no Código Civil vigente o art. 49-A, que prevê que
“A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou
administradores”. O parágrafo único deste dispositivo, a seu turno, aborda
adequadamente as razões em função das quais se estabelece essa separação: separar os
patrimônios da empresa e dos sócios, associados, instituidores ou administradores é
uma maneira lícita de se alocarem e de se segregarem os riscos, o que acaba tendo como
saudável efeito o de estimular empreendimentos, gerar empregos, tributo, renda e
inovação em benéfico de toda a sociedade.

Reafirmou-se, assim, agora de forma expressa e incontestável, por meio de


Lei, a importância econômica, social e jurídica do princípio da autonomia patrimonial
entre pessoa jurídica e aqueles que a integram, seja na condição de sócios, acionistas,
administradores, conselheiros, etc.

15
140

A par disso, é importante esclarecer que a personalidade jurídica, que atrai a


ideia de incomunicabilidade patrimonial, não pode, todavia, ser utilizada como forma
de “escudo” de proteção de pessoas que a integram e que a utilizam dolosamente na
tentativa de obter proveitos econômicos particulares, decorrentes de prejuízos causados
a terceiros. Isso, porque como instituto jurídico que é, a pessoa jurídica deve servir de
instrumento para a efetivação de direitos, e não para sua violação.

E justamente em razão dos potenciais e indesejados abusos que o mau uso da


personalidade jurídica pode acarretar, passou-se a admitir, em determinadas situações
excepcionalíssimas, a relativização do princípio que separa patrimonialmente a
sociedade dos sócios/acionistas, associados, instituidores ou administradores que a
integram, de modo a se permitir que as obrigações contraídas pela empresa atinjam,
também, as referidas pessoas.

Nasce, então, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, que


contou com a importante colaboração de Rubens Requião, precursor, no Brasil, dos
estudos relacionados ao tema.

Considerando essa possibilidade de a pessoa jurídica, em determinadas


circunstâncias, ser utilizada como anteparo de fraude, sobretudo para burlar o direito de
credores, Rubens Requião, baseado na doutrina desenvolvida na Alemanha e nos
Estados Unidos, propôs a aplicação, para nossa realidade, da chamada “disregard
doctrine”, que permite “...desconsiderar no caso concreto, dentro de seus limites, a
pessoa jurídica, em relação às pessoas ou bens que atrás dela se escondem. É caso de
declaração de ineficácia especial da personalidade jurídica para determinados efeitos,
prosseguindo, todavia, a mesma incólume para seus outros fins legítimos”14.

14
RT 410/12, dez./1969.

16
141

É oportuno que se sublinhe que a “disregard doctrine” não se revela


incompatível com o instituto da pessoa jurídica. Pelo contrário, complementa-o. Isso,
porque se a própria noção de sistema jurídico está relacionada às ideias de unidade e
coerência, não se pode admitir que uma norma, garantidora do reconhecimento da
personalidade jurídica das sociedades, chancele eventual fraude, decorrente do uso
desvirtuado da pessoa jurídica pelo sócio dela integrante.

Do exposto acima, é possível fixar, para os fins pretendidos deste Parecer, as


seguintes premissas relativas à Pessoa Jurídica, com sua respectiva autonomia
patrimonial: (i) é um instituto multidisciplinar lícito, consistindo na regra do
ordenamento jurídico brasileiro; (ii) decorre de lei, inclusive, com amparo
constitucional; (iii) dotado de finalidades fundamentais na estrutura organizacional de
uma sociedade; e (iv) a possibilidade de se afastar a regra da autonomia patrimonial da
pessoa jurídica, intrinsecamente ligada à perspectiva de desenvolvimento do país, tem
que ser entendida como uma exceção, e como acontece com toda exceção, deve ser
objeto de interpretação cuidadosa e seu reconhecimento pelo judiciário deve ser cercado
de todas as cautelas desejáveis. Na verdade, imprescindíveis.

Acerca desse último item iv, é importante esclarecer que, paulatinamente,


devido a interpretações equivocadas e que desconsideram a natureza jurídica do instituto
e a finalidade para a qual foi idealizado, tem-se estruturado – por meio de lei,
jurisprudência e doutrina – mecanismos mais assertivos para se permitir que a regra da
autonomia patrimonial seja relativizada, dentre os quais, destacam: (i) criação de
incidente de desconsideração da pessoa jurídica, no CPC de 2015; (ii) definição de
critérios mais objetivos e restritivos para que ocorra a desconsideração da personalidade
jurídica (para o escopo deste Parecer, interessam-nos, fundamentalmente, o art. 50 do
CC/2002, art. 28 do CDC, e os arts. 133 a 137 do CPC/2015, que dispõem,
respectivamente, sobre os pressupostos para a desconsideração da personalidade jurídica
e o procedimento judicial para o deferimento da medida); (iii) critérios de
responsabilização no âmbito de uma Sociedade Anônima (Lei 6.404/76); e agora, mais

17
142

recentemente, (iv) edição de Lei específica sobre o tema (PL nº 3.401/2008, que
retornará ao Congresso Nacional para análise do veto presidencial, publicado no Diário
Oficial em 14.12.2022).

Vejamos cada um desses pontos:

(a) Necessária instauração do Incidente de Desconsideração da Personalidade


Jurídica

Eram muito frequentes, para não se dizer que eram a regra geral, os casos em
que, anteriormente à vigência do CPC/2015, a desconsideração da pessoa jurídica era
determinada sem contraditório, ou seja, sem que fosse proporcionada a participação
daqueles que teriam seus bens atingidos por essa excepcionalidade criada pela
jurisprudência. Muitas vezes a desconsideração da pessoa jurídica era determinada de
ofício pelo juiz, sem qualquer oitiva das partes, inclusive daquele que seria beneficiado
por esse ato.

Esse procedimento sem contraditório era alvo de serias e acertadas críticas,


em vista de sua flagrante desarmonia com o ordenamento jurídico, já que violava,
nitidamente, princípios processuais fundamentais de origem constitucional, como o da
ampla defesa e do contraditório.

O CPC/2015 - com o propósito de pôr fim às verdadeiras arbitrariedades


relacionadas à forma como a desconsideração da pessoa jurídica vinha sendo tratada –
previu, expressamente, um procedimento com contraditório para que haja a
desconsideração - o Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ),
contido no arts. 133 a 137.

Outra não poderia ter sido a opção adotada pelo legislador – de impor um
prévio incidente a fim de possibilitar a desconsideração da personalidade jurídica –, pois

18
143

a desconsideração, como visto no tópico anterior, é exceção ao princípio da autonomia


entre o patrimônio da sociedade e as pessoas que a integram o que dela fazem parte na
condição de sócios, acionistas, administradores, etc.

Tendo em vista a excepcionalidade15 das hipóteses em que é aplicável a teoria


da desconsideração da personalidade, não se pode admitir – em qualquer relação
jurídica que seja, consumo, cível, ambiental, etc. – que a sua ocorrência se dê sem o
prévio contraditório. Por esse motivo é que o IDPJ constituiu remédio introduzido pelo
CPC/2015, consolidando o posicionamento jurisprudencial firme que se formou, no
âmbito dos Tribunais, no sentido de que é imprescindível a instauração do incidente para
a legalidade da desconsideração da pessoa jurídica.

Conforme apontam Marinoni, Arenhart e Mitidiero16: “Em todos os casos de


desconsideração (...) o terceiro só poderá ser alcançado pela eficácia da decisão
judicial se regularmente desconsiderada a personalidade jurídica mediante incidente
de desconsideração, que demanda contraditório específico e prova igualmente
específica sobre a ocorrência dos pressupostos legais que a autorizam. A única hipótese
em que o terceiro pode ser alcançado sem o incidente específico é aquela em que a
desconsideração já vem desde logo requerida com a petição inicial, hipótese em que o
sócio (desconsideração) ou a pessoa jurídica (desconsideração inversa) será desde logo
citada (art. 134, § 2º). Isso não quer dizer, porém, que o contraditório e a prova dos
pressupostos legais da desconsideração estejam dispensados: de modo nenhum. Num e
noutro caso é imprescindível o respeito ao direito ao contraditório e ao direito à prova
do terceiro”.

15
“A desconsideração da personalidade jurídica, com a consequente invasão no patrimônio de
terceiros, é medida excepcional, sendo admitida apenas quando comprovados os seus requisitos, o que
não ocorreu no caso”. (STJ, AgInt no REsp 1337956/SP. 4ª T., Rel. Min. Raul Araújo, DJe 07.02.2017).
16
Curso de Processo Civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. 6. ed. São Paulo,
Thomson Reuters Brasil, 2020. v. 2, p. 116.

19
144

A instauração do IDPJ, cabível em todas as fases do processo de


conhecimento e execução17 (art. 134, caput, do CPC), visa a possibilitar às pessoas que
integram a pessoa jurídica o exercício do contraditório pleno, inclusive com ampla
produção de provas. Até porque, como a desconsideração da personalidade implica na
expansão da responsabilidade patrimonial decorrente da obrigação discutida em juízo
ao patrimônio de terceiros que, originariamente, não compunham a relação processual,
tal medida não pode ocorrer sem o prévio contraditório, sob pena de violação ao próprio
devido processo legal.

Em verdade, é por intermédio do IDPJ que a parte interessada deverá


“demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos [que serão
trabalhados a seguir e em tópico próprio] para a desconsideração da personalidade
jurídica” (art. 134, § 4º, CPC).

O intuito do IDPJ é assegurar, a terceiros, o devido processo legal e a


segurança jurídica, evitando-se, com isso, os abusos outrora cometidos. Não são poucas
as decisões do STJ no sentido de que a instauração do IDPJ é OBRIGATÓRIA, o que
não poderia ser diferente, tendo em vista a dicção da lei:

“(...). 4. Por outro lado, segundo o entendimento jurisprudencial


adotado por esta Colenda Corte, "é imprescindível a instauração
do incidente de desconsideração da personalidade jurídica de que
tratam os arts. 133 e seguintes do CPC/2015, de modo a permitir
a inclusão do novo sujeito no processo (...)”. (STJ, AgInt no REsp
1962045/RS, Rel. Min. Marco Buzzi, 4ª T., DJe 16.12.2021).

17
“O novo código inova ao prever um incidente específico e obrigatório para permitir a
desconsideração da personalidade jurídica (artigos 133/137). No passado, à falta de regulação própria,
era decretada a desconsideração da personalidade jurídica sem a observância das garantias
processuais ao terceiro requerido, como o contraditório amplo e, ainda, sem fundamentação adequada
e, até mesmo, de ofício pelo juiz, desestimulando a atividade empresarial séria.” (Paulo Cezar Pinheiro
Carneiro. O Novo Processo Civil Brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 178).

20
145

“(...). 6. Na hipótese de indícios de abuso da autonomia


patrimonial, a personalidade jurídica da EIRELI pode ser
desconsiderada, de modo a atingir os bens particulares do
empresário individual para a satisfação de dívidas contraídas
pela pessoa jurídica. Também se admite a desconsideração da
personalidade jurídica de maneira inversa (...). 7. Em uma ou em
outra situação, todavia, é imprescindível a instauração do
incidente de desconsideração da personalidade jurídica de que
tratam os arts. 133 e seguintes do CPC/2015, de modo a permitir
a inclusão do novo sujeito no processo - o empresário individual
ou a EIRELI -, atingido em seu patrimônio em decorrência da
medida”. (STJ, REsp 1874256/SP, 3ª T., Rel. Min. Nancy
Andrighi, DJe 19.08.2021).

“(...) a responsabilização dos recorrentes, na condição de sócios


da empresa JOÃO FORTES ENGENHARIA S.A. ou de qualquer
outra integrante do mesmo grupo econômico, dependeria da
instauração de novo incidente de desconsideração da
personalidade jurídica contra essas empresas, com observância
dos princípios do contraditório, do devido processo legal e da
ampla defesa”. (STJ, REsp 1862557/DF, Rel. Min. Ricardo Villas
Bôas Cueva, 3ª T., DJe 21.06.2021).

“(...). O eg. Tribunal de origem, com fundamento nas provas


documentais trazidas aos autos, reconheceu que a agravada é
pessoa jurídica regularmente constituída como Empresa
Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI - M.E), sendo,
portanto, imprescindível a prévia desconsideração da
personalidade jurídica para constrição de bens registrados em
nome do sócio”. (STJ, AgInt no AREsp 1503932/SP, Rel. Min.
Raul Araújo, 4ª T., DJe 14.10.2019).

Nesse mesmo sentido, observa-se que os Tribunais Estaduais de Justiça


entendem como imprescindível a instauração do IDPJ, sob pena de violação ao
contraditório:

21
146

“(...). PLEITO DE DIRECIONAMENTO DA EXECUÇÃO AOS


SÓCIOS DA PESSOA JURÍDICA EXECUTADA. DECISÃO
AGRAVADA QUE INDEFERIU O PEDIDO, DETERMINANDO
QUE SE INSTAURASSE PREVIAMENTE INCIDENTE DE
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA.
DECISÃO ACERTADA. NECESSIDADE DE PRÉVIA
INSTAURAÇÃO DE INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA
PERSONALIDADE JURÍDICA, NOS TERMOS DOS ARTIGOS
133 E SEGUINTES DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, SOB
PENA DE VULNERAÇÃO AO CONTRADITÓRIO E À AMPLA
DEFESA”. (TJSP, AI 2121788-78.2022.8.26.0000, rel. Des. Vito
Guglielmi, 6ª C.D.P., DJe 25.11.2022).

“(...). Independentemente de se estar caracterizado eventual


grupo econômico ou mesmo sucessão empresarial, a
jurisprudência deste Tribunal de Justiça entende que, para a
consequente inclusão de empresa que não atuou como parte no
processo, faz-se necessária a instauração de incidente próprio,
nos moldes do art. 133 do Código de Processo Civil, com o fim de
garantir o contraditório e a ampla defesa”. (TJDF, AI
07187437920228070000, rel. Des. João Egmont, 2ª T., DJe
05.12.2022).

“(...). Pedido de redirecionamento da cobrança fiscal às


empresas do mesmo grupo econômico. Decisão interlocutória
indeferindo o redirecionamento requerido, tendo em vista a
necessidade de prévia instauração de incidente de
desconsideração da personalidade jurídica da empresa
executada, nos moldes do art. 133 do CPC. (...). Necessidade de
submissão dos envolvidos ao incidente de desconsideração da
personalidade jurídica, para fins de garantir o contraditório e a
ampla defesa. (...)”. (TJRJ, AI 0053839-66.2022.8.16.0000, Rel.
Des. Cláudio Luiz Braga Dell’Orto, 18ª C.C., DJe 29.09.2022).

Tem-se, portanto, que em hipótese alguma poderá, o juiz, privar qualquer


pessoa, física ou jurídica, de seus bens, por meio da aplicação da teoria da
desconsideração da personalidade jurídica, sem antes:

22
147

i) instaurar incidente próprio de desconsideração, seja em ação de


conhecimento, execução ou cumprimento de sentença (art. 134 do CPC);

ii) informar à parte demandada (alheia à relação processual) a respeito do


pedido formulado pela parte contrária;

iii) abrir vistas à parte para se manifestar a respeito dos elementos (fáticos e
jurídicos) constantes no processo; e

iv) levar em consideração os argumentos e provas apresentados pela pessoa


que se pretenda atingir os bens, antes de se decidir pela desconsideração, ou
não, da personalidade jurídica18.

Nos processos a que tivemos acesso para análise, especialmente os que


tramitam perante a Justiça do Estado do Espírito Santo, não se verificou, em alguns
deles, a instauração do IDPJ, tampouco a possibilidade de exercício do contraditório.
Muito pelo contrário, tivemos acesso a decisões judiciais determinando a direta e
imediata inclusão de pessoas jurídicas e físicas – distintas da empresa integrante da
relação de direito material firmada com a parte contrária (contrato de compra e venda
de imóvel) –, bem como a constrição de bens, tudo isso sem observância ao
contraditório, ao arrepio flagrante da lei e, consequentemente, implicando grave
violação aos dispositivos do Código de Processo Civil aqui mencionados.

18
A esse respeito, veja-se a lição de HUMBERTO THEODORO JUNIOR e JOSÉ COELHO DIERLE
NUNES: “Daí afirmar-se, correntemente, que a pretensão à tutela jurídica, que corresponde
exatamente à garantia consagrada no art. 5º, LV, da CF, contém os seguintes direitos: 1) direito de
informação ..., que obriga o órgão julgador a informar a parte contrária dos atos praticados no
processo e sobre os elementos dele constantes; 2) direito de manifestação..., que assegura ao defendente
a possibilidade a possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e
jurídicos constantes do processo; 3) direito de ver seus argumentos considerados..., que exige do
julgador capacidade, apreensão e isenção de ânimo... para contemplas as razões apresentadas...”.
(Uma dimensão que urge reconhecer ao contraditório no direito brasileiro: sua aplicação como garantia
de influência, de não surpresa e de aproveitamento da atividade processual. RePro, v. 34, n. 168,
fev./2009, p.135).

23
148

E o que chamou nossa atenção foi o fato de que, em determinados processos


envolvendo a Rossi, o Juízo fez menção à possibilidade de decretação de ofício da
desconsideração, independentemente da instauração de incidente próprio, o que é
totalmente inapropriado, caracterizando uma decisão-surpresa (arts. 9º e 10 do CPC),
vedada em nosso ordenamento jurídico.

A título de exemplo, confira-se decisão proferida no cumprimento de


sentença nº 5013890-15.2021.8.08.0024, em trâmite no 6ª JEC de Vitória/ES: “Logo,
em se tratando de norma de ordem pública, está o juiz autorizado a manejar o incidente
até mesmo de ofício e sem necessidade de instauração do procedimento regulado pelo
art. 133 do CPC, de modo que passo a analisar o pedido”.

Tem-se, portanto, que as constrições efetivadas sobre o patrimônio de


pessoas jurídicas e diretores, administradores e integrantes do conselho fiscal da Rossi,
assim como de terceiros que não compõem qualquer órgão deliberativo da holding ou
das empresas que compõe a sua estrutura societária, são ilegais. Isso porque, as referidas
pessoas – físicas e jurídica – são terceiros em relação ao processo em curso, e, mesmo
assim, foram integradas no polo passivo sem a devida instauração de IDPJ e,
consequentemente, sem que lhes fosse oportunizado o exercício exercer do
contraditório, obrigatório em qualquer procedimento e em qualquer fase processual –
arts. 133 a 137 do CPC.

A ausência da instauração do IDPJ, quando o pedido de desconsideração for


formulado no curso do processo, somada ou não à constrição dos bens de terceiros
(alheios ao processo), consiste em flagrante ilegalidade.

24
149

(b) Exame dos pressupostos que autorizam a desconsideração da personalidade


jurídica: teoria menor (art. 28 do CDC)

Sabe-se que o instituto da desconsideração tem por objetivo remover a


proteção (e as limitações daí decorrentes) fornecida pela personalidade jurídica para,
dessa forma, alcançar o patrimônio de sócios/acionistas, associados, instituidores ou
administradores. Por esse motivo, o quadro acionário e administrativo existente quando
da DPJ interessa para definir quem, pessoalmente, pode ser sujeitado ao pagamento das
dívidas da empresa.

A desconsideração, em verdade, acaba por reforçar a autonomia e divisão


patrimonial entre pessoa jurídica e quadro de acionistas. Afinal, trata-se de medida
excepcional, autorizada somente em hipóteses previstas taxativamente em lei, e para
atingir pessoas determinadas, de modo que, apenas nesses casos, terceiros podem
responder por débitos inadimplidos pela pessoa jurídica.

Com efeito, a teoria não comporta interpretação extensiva, devendo a ratio


de sua aplicação estar presente em todas as hipóteses de incidência, sejam elas regidas
pelo Código Civil ou pelo Código de Defesa do Consumidor.19

Não por outra razão, o C. STJ tem considerado que a desconsideração da


personalidade jurídica não visa a combater a inadimplência ou eventual
insolvência da pessoa jurídica, mas, sim, “o dolo negocial, cujo vulto potencial dos
prejuízos à ordem econômica é infinitamente maior”. Confira-se, nesse sentido,
excerto de recentíssima decisão de relatoria do Min. Moura Ribeiro:

19
“A desconsideração não é remédio para um defeito na criação ou manutenção da sociedade
personificada. (...). O fundamento da desconsideração é o abuso funcional na utilização da pessoa
jurídica, de molde a provocar um resultado incompatível, no caso concreto, com a previsão abstrata
visualizada pelo ordenamento”. (JUSTEN FILHO, Marçal. Desconsideração da personalidade
societária no direito brasileiro. São Paulo: Ed. RT, 1987. p. 135).

25
150

“Em tais condições, depreende-se com clarividência a


imprescindibilidade de se abstrair do material de conhecimento a
presença de elementos bem consolidados da fraude, conluio, má-
fé, porque, em última análise, o que se pretende combater como
elemento deletério das boas práticas comerciais, livre
concorrência e fomento da economia, não é a mera inadimplência
ou insolvência (fruto da falta de expertise), mas o dolo negocial,
cujo vulto potencial dos prejuízos à ordem econômica é
infinitamente maior”. (STJ, AREsp nº 2.116.191/SP, rel. Min.
Moura Ribeiro, DJe 01.09.2022).20

Assim, o “obstáculo” ao ressarcimento de prejuízos não configura, por si só,


causa apta a ensejar a desconsideração. Acerca do tema, é pacífica a jurisprudência do
C. STJ:

“(...). A responsabilização dos administradores e sócios pelas


obrigações imputáveis à pessoa jurídica, em regra, não encontra
amparo tão-somente na mera demonstração de insolvência para
o cumprimento de suas obrigações (Teoria menor da
desconsideração da personalidade jurídica). Faz-se necessário
para tanto, ainda, ou a demonstração do desvio de finalidade
(este compreendido como o ato intencional dos sócios em fraudar
terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica), ou a
demonstração da confusão patrimonial (esta subentendida como
a inexistência, no campo dos fatos, de separação patrimonial do
patrimônio da pessoa jurídica ou de seus sócios, ou, ainda, dos
haveres de diversas pessoas jurídicas)”. (STJ, REsp.
1.200.850/SP, rel. Min. Massami Uyeda, DJe 22.11.2010).

“(...). A insolvência da sociedade, ocorrente quando os seus


recursos são insuficientes para responder pelas obrigações
assumidas, não enseja, por si só, a aplicação da teoria da
desconsideração de sua personalidade, eis que os seus acionistas
e controladores não estão legalmente obrigados a realizar

20
No mesmo sentido, decisão do Min. Raúl Araújo, que assim dispõe: “mera inadimplência da pessoa
jurídica, por si só, não enseja a desconsideração da personalidade jurídica. Precedentes”. (STJ, AgRg
no REsp 588.587/RS, rel. Min. Raul Araújo, DJe 22.06.2015).

26
151

aportes financeiros emergenciais”. (STJ, AgRg no AREsp


28.612/SP, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª Turma, DJe
21.08.2012).

Relevante sublinhar que, ainda que se leve em consideração a aplicação


da teoria menor, prevista no art. 28 do CDC, não há que se falar em
desconsideração fundamentada, apenas e tão somente, no inadimplemento da
dívida e insuficiência de recursos para quitá-la.

O art. 28, caput, do CDC, permitida a desconsideração da personalidade


jurídica quando “houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato
ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social”. Na parte final do caput, também
são enumeradas as hipóteses de “falência, estado de insolvência, encerramento ou
inatividade da pessoa jurídica”, desde que “provocados por má administração”.

Quanto à primeira parte, não há dúvidas de que é imprescindível a existência


de abuso de direito, fraude, dolo, ou de qualquer atitude contrária às disposições legais
e estatutárias. Nesse ponto, o CDC converge com a regra prescrita no art. 50 do CDC,
que será analisa com mais vagar em seguida.

Conforme se depreende da parte final do caput do art. 28, CDC, a


desconsideração fundada na (i) falência, (ii) estado de insolvência, (iii) encerramento ou
(iv) inatividade da pessoa jurídica deve estar, necessariamente, relacionada à “má
administração da empresa”. Como bem observou o Min. Moura Ribeiro, no aludido voto
proferido no AREsp nº 2.116.191/SP, “má administração da empresa” não significa falta
de expertise, mas, sim, a má utilização da pessoa jurídica, com dolo negocial, má-fé, na
tentativa de obter vantagem ilícita.

27
152

Ou seja, imprescindível a comprovação de fraude ou má-fé21. Isso, porque


em uma economia de mercado, regida pela livre iniciativa, “inúmeros são os desafios
enfrentados pelo empresário, sendo que o sucesso ou insucesso de seu negócio não
dependerá, exclusivamente, de sua capacidade de administração”.22

Ao se analisarem as quatro hipóteses previstas na parte final do caput do art.


28, depreende-se que todas elas, sem exceção, devem necessariamente estar
relacionadas com a má administração da empresa, sob essa perspectiva jurídica em que
o dolo e a má-fé são ínsitos.

Essa conclusão decorre, além de uma interpretação jurídica-teleológica, de


interpretação lógico-gramatical. Isso, porque a expressão “provocados por má
administração” emprega a expressão “provocados” no plural, de modo a abranger todas
as situações listadas no período. Por evidente, se a má administração estivesse vinculada
somente à inatividade, o verbo estaria no singular, não restando quaisquer dúvidas. O
texto legal, contudo, expressamente, relaciona a má administração a todas as hipóteses
da parte final do caput do art. 28.

Com efeito, aplicando-se a teoria menor, primeiro há de se analisar a


existência da má administração (sob a perspectiva acima descrita) para, somente após,
examinar eventual estado de insolvência.

Nesse sentido, leciona a doutrina que “A correta interpretação [do art. 28 do


CDC] é no sentido de se exigir a inadequada gestão dos administradores para todas as
hipóteses arroladas nesta segunda parte do dispositivo (...), até porque a

21
SILVA, Joseane Suzart Lopes da. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica no novo
CPC e a efetiva proteção dos consumidores. Revista de Direito do Consumidor, v. 113, set./out. 2017,
RT Online.
22
BARATA, Pedro Paulo Barradas. A desconsideração da personalidade jurídica nas relações de
consumo. (Dissertação de Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2009.

28
153

desconsideração é medida excepcional”.23 Isto é, “a simples insolvência da pessoa


jurídica não é suficiente para caracterizar a má administração”.24

Concluindo esse raciocínio, afirma Bruno Miragem que “as hipóteses de


falência, insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica não importam na
desconsideração de per se. Ao contrário, apenas importam na desconsideração quando
tais circunstâncias decorrem diretamente de má-administração”.25

É de rigor, pois, a coexistência de (i) “má administração”, sob a perspectiva


apontada acima, e de (ii) algum estado de fato previsto na parte final do art. 28, entre
eles, o estado de insolvência. Ocorre que, em parcela considerável das decisões
submetidas à nossa consulta, por exemplo, autos nº 2279289-66.2020.8.26.0000
(TJSP)26, 0009642-48.2020.8.26.0114 (TJSP)27 e 0037519-69.2021.8.19.0001 (TJRJ)28,
esses dois requisitos cumulativos não foram observados, tendo sido deferida a
desconsideração da Rossi apenas com base em suposto “estado de insolvência”, o que
é claramente ilegal.

23
GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Desconsideração da personalidade jurídica no Código de Defesa
do Consumidor e no Código Civil de 2002. Doutrinas Essenciais de Direito do Consumidor, v. 5,
abr./2011, RT Online. No mesmo sentido: SILVA, Joseane Suzart Lopes da. O incidente de
desconsideração da personalidade jurídica no novo CPC e a efetiva proteção dos consumidores. Revista
de Direito do Consumidor, v. 113, set./out. 2017, RT Online.
24
BARATA, Pedro Paulo Barradas. A desconsideração da personalidade jurídica nas relações de
consumo. (Dissertação de Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2009.
25
MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 6. ed. São Paulo: Ed. RT, 2016, p. 687.
26
Conforme consta da ementa, a Teoria Menor “dispensa a demonstração de desvio de finalidade e/ou
confusão patrimonial (...)”, sendo que a “Insolvência da pessoa jurídica que basta para o processamento
do incidente”. (TJSP, AI 2279289-66.2020.8.26.0000, rel. Des. Alexandre Marcondes, 6ª C.D.P., DJe
03.12.2020).
27
De acordo com a decisão que deferiu a desconsideração: “nos casos regidos pelo Código de Defesa
do Consumidor, como é a presente lide, aplica-se a Teoria Menor (...), não se exigindo prova da fraude
ou do abuso de direito. Tampouco é necessária a prova da confusão patrimonial (...). Basta, nesse
sentido, que o consumidor demonstre o estado de insolvência do fornecedor”.
28
Extrai-se o seguinte trecho da decisão: “Da leitura dos autos, percebe-se que já foi exaustivamente
demonstrado o direito e a tentativa dos Exequentes em receber a quantia perseguida nesta execução
que restou frustrada, bem como a falta de lastro financeiro e/ou patrimonial da executada” Ocorre que,
de forma ainda mais grave, nesse processo em específico, houve a expedição de ordem de bloqueio de
bens antes mesmo da cientificação da parte contrária acerca da instauração do IDPJ.

29
154

A par disso, também, é relevante tecer comentários sobre outro aspecto que
se observou inapropriado nas decisões judiciais envolvendo a Rossi e que foram
submetidas a nossa consulta, que é a aplicação da teoria menor sob a ótica do § 5º do
art. 28 do CDC, cuja redação é a seguinte: “Também poderá ser desconsiderada a
pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao
ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”.

Embora tenha sido constatado nas referidas decisões, por exemplo, autos nº
0745883-59.2020.8.07.0000 (TJDF)29 e 0006139-29.2019.8.26.0704 (TJSP)30, que o
mero inadimplemento da Rossi poderia acarretar a desconsideração da sua personalidade
jurídica, não é essa a correta interpretação da norma.

Como já se disse, a pessoa jurídica é um dos mais importantes institutos do


direito privado, e a aplicação indistinta e irrestrita do § 5º do art. 28 implicaria,
inevitavelmente, “a revogação da autonomia patrimonial no âmbito do direito do
consumidor”.31 Não é o simples prejuízo ou a situação de inadimplência que faz incidir
a regra do § 5º - o dispositivo não pode ser interpretado dessa forma literal e rasa, em
completa dissociação ao caput do mesmo art. 28.

29
Segundo consta do acórdão: “Assim, considerando a relação de consumo e a dificuldade de
ressarcimento do consumidor, têm-se como presentes os requisitos estabelecidos para a aplicação da
teoria menor, razão pela qual a manutenção da desconsideração da personalidade jurídica é medida
impositiva”.
30
Da decisão interlocutória que deferiu a desconsideração, extrai-se o seguinte excerto: “No presente
caso, embora não se tenha notícia de inatividade ou encerramento irregular das empresas executadas
originárias (Minulo Empreendimentos S/A e Sândalo Desenvolvimento Imobiliário Ltda e Rossi
Residencial S.A), há evidente obstáculo ao ressarcimento do prejuízo do consumidor, até porque as
executadas nem sequer indicaram a existência de bens livres e suficientes para serem penhorados.
Tampouco foi localizado valores substanciais suficientes para serem penhorados. Logo,
indiscutivelmente configurados os requisitos autorizadores da desconsideração da personalidade
jurídica (...).”
31
TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial: Teoria geral e direito societário. 12. ed. São
Paulo: Saraiva Educação, 2021. v. 1.

30
155

O § 5º deve ser interpretado de forma teleológica e sistemática, em


consonância com as demais disposições do artigo em que se insere, sob pena de tornar
“letra morta o caput do mesmo art. 28 do CDC, que circunscreve algumas hipóteses
autorizadoras do superamento da personalidade jurídica”32, justamente porque a DPJ
é uma exceção à autonomia patrimonial.

Trata-se de regra básica de hermenêutica jurídica, no sentido de “que o


parágrafo deve ser interpretado com base em seu caput, e não ampliar os seus termos
ou contradizê-lo”.33 Só cabe a desconsideração, pois, quando a personalidade jurídica
da empresa for utilizada, como dito linha acima, em fraude e má-fé.

Evidentemente, a mera existência de inadimplemento não significa que a


personalidade jurídica constitui um “obstáculo” ao recebimento do ressarcimento pelo
consumidor. Ao revés, as sociedades empresárias enfrentam crises econômicas,
podendo, sim, chegar a uma situação de desequilíbrio financeiro. Mas isso não quer
dizer que os sócios, acionistas ou membros de órgãos deliberativos criaram,
deliberadamente, “obstáculos” à satisfação do crédito.

Interpretar o § 5º dessa forma equivaleria a eliminar o instituto da pessoa


jurídica no âmbito consumerista, afinal, bastaria ignorar todos os critérios traçados pela
legislação civil e pelo próprio CDC, sob um argumento genérico de que existem
“obstáculos” ao crédito, mesmo que a conduta da empresa tenha sido sempre legítima e
transparente – o que vai de encontro com todas as bases teóricas do instituto da
desconsideração. Em outros termos, a prevalecer referido entendimento, “ter-se-ia que
reconhecer que, no Direito brasileiro, não haveria autonomia patrimonial das pessoas
jurídicas nas relações de consumo”, e a função promocional do ordenamento, “que

32
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. p. 52-53. v. 2.
33
BARATA, Pedro Paulo Barradas. A desconsideração da personalidade jurídica nas relações de
consumo. (Dissertação de Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2009.

31
156

fomenta a associação de pessoas e recursos para consecução de fins superiores às


forças de cada uma delas”, seria simplesmente desconsiderada.34

Não por outro motivo, leciona Fábio Ulhoa Coelho, ao comentar o § 5º do


art. 28, que “A simples insatisfação do credor não autoriza, por si só, a
desconsideração”. Qualquer interpretação em contrário, destaca o autor, “contraria os
fundamentos técnicos da desconsideração”. Isso, porque o instituto da desconsideração
representa um aperfeiçoamento da pessoa jurídica e não sua negação, razão pela qual
“ela só pode ter a sua autonomia patrimonial desprezada para a coibição de fraudes
ou abuso de direito”.35

Dessa forma, pode-se concluir que, os pressupostos elencados em várias


decisões contra a Rossi, fundamentadas no CDC, nem sempre são resultado da utilização
de boa técnica interpretativa. O verdadeiro sentido da norma expressa no art. 28, em
momento algum, autoriza a desconsideração da personalidade sob o único fundamento
de inadimplência. O CDC, em respeito à autonomia patrimonial e ao próprio instituto
da desconsideração, exige mais: mostra-se imprescindível a existência de atos abusivos
ou fraudulentos, não sendo suficiente a mera alegação de inadimplência. Com efeito,
qualquer decisão que desrespeite os critérios estabelecidos no CDC afigura-se ilegal.

(c) Exame dos pressupostos que autorizam a desconsideração da personalidade


jurídica: teoria maior (art. 50 do CC)

Nas palavras de Marçal Justen Filho, “A desconsideração não é remédio


para um defeito na criação ou manutenção da sociedade personificada. Bem por isso,
seus pressupostos devem-se vincular à desnaturação funcional. O fundamento da
desconsideração é o abuso funcional na utilização da pessoa jurídica, de molde a

34
BARATA, Pedro Paulo Barradas. A desconsideração da personalidade jurídica nas relações de
consumo. (Dissertação de Mestrado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2009.
35
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. p. 52-53. v. 2.

32
157

provocar um resultado incompatível, no caso concreto, com a previsão abstrata


visualizada pelo ordenamento”36.

Não se trata, portanto, de fenômeno relacionado à existência ou validade dos


atos jurídicos, nem mesmo com a eficácia dos atos em si. Mas com a eficácia da
personificação, diante de certas circunstâncias que evidenciam a utilização abusiva da
pessoa jurídica.37

Como visto nos tópicos anteriores, em situações dessa natureza, em que a


personalidade jurídica é utilizada como “escudo” para o comportamento abusivo ou
irregular de seus acionistas, a ordem jurídica admite, para o caso específico, mediante a
devida comprovação, que a personificação seja desconsiderada, alcançando-se o
patrimônio dos seus integrantes por dívida contraída em nome da sociedade.

Para tanto, não é suficiente que o credor invoque a insolvência da pessoa


jurídica e a existência de bens no patrimônio das pessoas físicas ou jurídicas que
integram a devedora. Mostra-se imprescindível, também, que haja a demonstração de
uma situação de anormalidade38, pois, à evidência, o expediente da desconsideração
tem a função de corrigir desvios, que acontecem em casos excepcionais, autorizando
o afastamento da regra geral da separação de patrimônios.

É importante consignar que, nos Embargos de Divergência no Agravo


Regimental no Recurso Especial n. 1.306.553/SC, sob a relatoria da Min. Isabel Gallotti,
chamou-se atenção para a excepcionalidade da medida. Na oportunidade, afirmou-se
que “a criação teórica da pessoa jurídica foi avanço que permitiu o desenvolvimento

36
FILHO, Marçal Justen. Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. São
Paulo: Ed. RT, 1987. p. 135.
37
FILHO, Marçal Justen. Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. São
Paulo: Ed. RT, 1987. p. 155.
38
FILHO, Marçal Justen. Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. São
Paulo: Ed. RT, 1987. p. 129.

33
158

da atividade econômica, ensejando a limitação dos riscos do empreendedor ao


patrimônio destacado para tal fim. Abusos no uso da personalidade jurídica
justificaram, em lenta evolução jurisprudencial, posteriormente incorporada ao direito
positivo brasileiro, a tipificação de hipóteses em que se autoriza o levantamento do véu
da personalidade jurídica para atingir o patrimônio de sócios que dela dolosamente se
prevaleceram para lesar credores. Tratando-se de regra de exceção, de restrição ao
princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, interpretação que melhor se
coaduna com o artigo 50 do Código Civil é a que rege sua aplicação a casos extremos,
em que a pessoa jurídica tenha sido mero instrumento para fins fraudulentos por
aqueles que a idealizaram, valendo-se dela para encobrir os ilícitos que propugnaram
seus sócios ou administradores. Entendimento diverso conduziria, no limite, em termos
práticos, ao fim da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, ou seja, regresso
histórico incompatível com a segurança jurídica e com o vigor da atividade
econômica”.

A desconsideração da personalidade jurídica encontra respaldo no direito


positivo brasileiro, como, por exemplo, (i) no Código de Defesa do Consumidor (art.
28, tal como visto no tópico antecedente), (ii) no Código Tributário Nacional (arts. 134
e 135), (iii) na lei ambiental (Lei n. 9.605/98, art. 4º), (iv) na Lei 12.529/2011, que dispõe
sobre a defesa da concorrência, e que, em seu art. 34, estabelece regra de superação
momentânea da separação patrimonial, e (v) na Lei 12.846/2013 (Lei Anticorrupção),
cujo artigo 1439 contém hipótese em que a desconsideração pode ser decretada
extrajudicialmente.40

39
Art. 14. A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito
para facilitar, encobrir ou dissimular a prática de atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar
confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus
administradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa.
40
Já anteriormente à edição da Lei 12.846/2013, o STJ manifestou-se no sentido de que: “(...). A
constituição de nova sociedade, com o mesmo objeto social, com os mesmos sócios e com o mesmo
endereço, em substituição a outra declarada inidônea para licitar com a Administração Pública Estadual,
com o objetivo de burlar à aplicação da sanção administrativa, constitui abuso de forma e fraude à Lei
de Licitações Lei n.º 8.666/93, de modo a possibilitar a aplicação da teoria da desconsideração da
personalidade jurídica para estenderem-se os efeitos da sanção administrativa à nova sociedade

34
159

Para os limites deste Parecer, interessam-nos, fundamentalmente, (i) o art. 28


do CDC, os arts. 133 a 137 do CPC (todos já trabalhados nos tópicos “a” e “b”
anteriores), e (ii) o art. 50 do CC, que traz a regra geral, aplicável (direta e indiretamente)
a todos os expedientes de desconsideração, bem como preconiza os pressupostos para
a desconsideração da personalidade jurídica nas relações cíveis.

Segundo o art. 50 do CC, “Em caso de abuso da personalidade jurídica,


caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a
requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no
processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de
obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da
pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso”.

Diz-se que o art. 50 adotou, em relação aos pressupostos para a


desconsideração da personalidade jurídica, a chamada teoria maior. E, de acordo com
essa teoria, o juiz é autorizado a desconsiderar a autonomia patrimonial das pessoas
jurídicas como forma de coibir fraudes e abusos praticados através dela.

Para fins de desconsideração, é preciso restar demonstrado o abuso da


personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou confusão
patrimonial entre os bens da empresa e dos sócios ou de empresas coligadas.41

constituída. A Administração Pública pode, em observância ao princípio da moralidade administrativa


e da indisponibilidade dos interesses públicos tutelados, desconsiderar a personalidade jurídica de
sociedade constituída com abuso de forma e fraude à lei, desde que facultado ao administrado o
contraditório e a ampla defesa em processo administrativo regular. Recurso a que se nega provimento”.
(STJ, RMS 15.166/BA, 2ª T., j. 07.08.2003, rel. Min. Castro Meira, DJ 08.09.2003).
41
Para Marçal Justen Filho, a confusão patrimonial é consequência de um abuso na utilização da
sociedade. Segundo ele, “a confusão patrimonial será produto e, não, causa da utilização abusiva. Não
será a confusão patrimonial que causa o resultado indevido ou insatisfatório, mas será corolário do
abuso, cujas raízes se encontrarão em outros fatos”. (FILHO, Marçal Justen. Desconsideração da
personalidade societária no direito brasileiro. São Paulo: Ed. RT, 1987. p. 137).

35
160

Segundo dispõe o § 1º do referido art. 50, “desvio de finalidade é a utilização


da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos
de qualquer natureza”.

O desvio de finalidade se traduz, essencialmente, no desvirtuamento do


objetivo social da pessoa jurídica, para se perseguirem fins não previstos
contratualmente ou proibidos por lei.42 Em outras palavras, ocorre quando a pessoa
jurídica se afasta da sua finalidade e objetivo comum, sendo utilizada pelos seus
membros para satisfazer suas finalidades e interesses individuais.43

Nesse sentido, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery asseveram
que: “Se a pessoa jurídica se põe a praticar atos ilícitos (dolosos), ou praticados
propositadamente de forma incompatível com sua atividade autorizada, bem como se
com sua atividade favorece o enriquecimento de seus sócios e sua derrocada
administrativa e econômica, dá-se ocasião de o sistema de direito desconsiderar a
personalidade da pessoa jurídica e alcançar o patrimônio das pessoas que se ocultam
por detrás de sua existência jurídica”.44

Por outro lado, a confusão patrimonial ocorre, segundo a própria


conceituação dada pelo § 2º do art. 50, quando restar comprovada a inexistência de
“separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: I - cumprimento repetitivo
pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; II -
transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor
proporcionalmente insignificante. Ou seja, a confusão patrimonial ocorre,
fundamentalmente, quando ativos e passivos da sociedade se misturam com os dos

42
GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo Curso de Direito Civil. 17. ed. São
Paulo: Saraiva, 2015. v.1, p. 283.
43
LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Desconsideração Da Personalidade e Sucessão Empresarial.
Doutrinas Essenciais de Direito Empresarial. p. 133-150. v. 2, dez./2010.
44
Código Civil comentado. 4. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. Art. 50.

36
161

sócios e seus gestores, “havendo uma promiscuidade entre as obrigações e os bens da


entidade com os bens e as obrigações dos seus membros”45.

Gustavo Tepedino e Milena Donato Oliva ressaltam que a confusão


patrimonial não se resume a “interferências patrimoniais pontuais, que podem ocorrer
licitamente por meio de relações obrigacionais estabelecidas entre os sócios e a
sociedade, mas de efetiva sobreposição entre as duas esferas patrimoniais em análise.
Desrespeita-se, na confusão patrimonial, a linha divisória que separa o conjunto de
bens da pessoa jurídica da de seus membros, de tal maneira que a desconsideração vem
apenas atribuir efeitos jurídicos a situação que, de fato, já se apresentava”.46

A respeito dos pressupostos para a desconsideração da personalidade


jurídica, é oportuna a citação de acórdão proferido no REsp 1.180.714/RJ, Relator Min.
Luís Felipe Salomão47, em que se lê:

“As causas que justificam descortinar-se o véu da pessoa jurídica,


enraízam-se em uma conduta abusiva de direitos – e não
necessariamente em um ato isoladamente observado -,
qualificada pelo desvio de finalidade ou pela confusão
patrimonial entre os bens da empresa e dos sócios ou de empresas
coligadas. Tal providência é serviente a uma extensão subjetiva
de determinadas obrigações antes contraídas formalmente pela
pessoa moral, cujo adimplemento, porém, deverá ser suportado
pelos sócios”.

Também se destaca o acórdão proferido no AgInt nos EDcl no AREsp


960.926/SP48, da Relatoria do Min. Marco Aurélio Bellizze, em que assim se afirma:

45
LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Desconsideração Da Personalidade e Sucessão Empresarial.
Doutrinas Essenciais de Direito Empresarial. p. 133-150. v. 2, dez./2010.
46
Fundamentos do direito civil: teoria geral do direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.
47
STJ, REsp 1180714/RJ, 4ª T., j. 05.04.2011, rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 06.05.2011.
48
STJ, AgInt nos EDcl no AREsp 960.926/SP, 3ª T., j. 13.12.2016, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze,
DJe 02.02.2017.

37
162

“Interpretando o disposto no art. 50 do Código Civil de 2002, o


Superior Tribunal de Justiça concluiu que, nas relações jurídicas
de natureza civil-empresarial, o legislador pátrio adotou a teoria
maior da desconsideração da personalidade jurídica, segundo a
qual é exigida a demonstração da ocorrência de algum dos
elementos objetivos caracterizadores de abuso da personalidade
jurídica, tais como o desvio de finalidade (caracterizado pelo ato
intencional dos sócios em fraudar terceiros com o uso abusivo da
personalidade jurídica) ou a confusão patrimonial (caracterizada
pela inexistência, no campo dos fatos, de separação patrimonial
entre o patrimônio da pessoa jurídica e dos sócios ou, ainda, dos
haveres de diversas pessoas jurídicas)”.49

A Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019), que alterou o Código


Civil nesse aspecto, deu ênfase a tais parâmetros (desvio de finalidade e confusão
patrimonial), conceituando-os e ajustando o instituto da desconsideração à nova
realidade, além de encampar certas adequações que o STJ, por meio da sua
jurisprudência, vinha promovendo.

Ao analisar a redação conferida pela Lei da Liberdade Econômica,


depreende-se a possibilidade de afastar a personalidade jurídica para atingir empresa do
mesmo grupo econômico, tal como o STJ já vinha admitindo. Entretanto, é bom frisar,
não basta a mera existência do grupo, sendo imprescindível a presença de desvio de
finalidade e de confusão patrimonial (art. 50, § 4º).

49
Há várias outras decisões nesse mesmo sentido: (...) O art. 50 do Código Civil, aplicável às relações
civis-empresariais, adota a Teoria Maior da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica, só
podendo ser aplicado quando comprovado especificamente desvio de finalidade ou confusão
patrimonial. (STJ, AgInt no REsp 1585391/SP, 4ª T., j. 07.11.2017, rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe
14.11.2017). De igual modo: “(...). Salvo em situações excepcionais previstas em leis especiais, somente
é possível a desconsideração da personalidade jurídica quando verificado o desvio de finalidade (Teoria
Maior Subjetiva da Desconsideração), caracterizado pelo ato intencional dos sócios de fraudar terceiros
com o uso abusivo da personalidade jurídica, ou quando evidenciada a confusão patrimonial (Teoria
Maior Objetiva da Desconsideração), demonstrada pela inexistência, no campo dos fatos, de separação
entre o patrimônio da pessoa jurídica e os de seus sócios. (STJ, REsp 1325663/SP, 3ª T., j. 11.06.2013,
rel. Min. Nancy Andrighi, DJe 24.06.2013).

38
163

Com efeito, a inovação legislativa “teve por escopo ressaltar a


excepcionalidade do remédio da desconsideração da personalidade jurídica, haja vista
que a banalização do instituto ameaça indevidamente a livre iniciativa e a segurança
jurídica”.50

Nesse sentido, em julgado recentíssimo sobre o tema, decidiu o STJ que “esta
Corte Superior autoriza a desconsideração da personalidade jurídica diante da
caracterização da confusão patrimonial entre pessoas jurídicas integrantes do
mesmo grupo econômico, cuja gestão é utilizada para, mediante a transferência de
ativos, fraudar a execução em face de uma das integrantes do grupo”. 51

A questão relativa aos grupos econômicos, devido à sua importância para os


fins pretendidos neste Parecer, será trabalhada de forma apartada, e com mais vagar, em
tópico próprio.

Ademais, serão alcançados pelos efeitos da desconsideração, conforme


dispõe o novo diploma legal, apenas os beneficiados, seja direta ou indiretamente, pelo
abuso. Mais uma vez, o legislador adota uma postura restritiva da medida. Não serão
atingidos, pelos efeitos da desconsideração, todos os sócios/acionistas, associados,

50
TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato. Fundamentos do direito civil: teoria geral do direito
civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.
51
“AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AUTOS DE AGRAVO DE
INSTRUMENTO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE
JURÍDICA. GRUPO SOCIETÁRIO. CONFUSÃO PATRIMONIAL. COMPROVAÇÃO. REEXAME DE
PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO. 1. A desconsideração da
personalidade jurídica, embora seja medida de caráter excepcional, é admitida quando ficar
caracterizado desvio de finalidade ou confusão patrimonial (CC/2002, art. 50). 2. No caso, as instâncias
ordinárias, examinando as circunstâncias da causa, consignaram que ficou demonstrada confusão
patrimonial entre as pessoas jurídicas que integram o grupo societário, pois exploram o mesmo ramo
de negócios, atuam no mesmo endereço e detêm idêntico quadro societário. A reforma desse
entendimento demandaria o reexame das provas dos autos, providência inviável em sede de recurso
especial, a teor do que dispõe a Súmula 7 deste Pretório. 3. Agravo interno improvido.” (AgInt no
AREsp 1.973.756/SP, 4ª T., Rel. Min. Raul Araújo, DJe 08.06.2022).

39
164

instituidores ou administradores, mas somente aqueles que tenham auferido benefício


de forma direta ou indireta.

Essa visão mais restritiva do instituto pode ser extraída, também, da redação
do art. 3º, inc. V, da Lei nº 13.874/2019, segundo o qual, para as dúvidas de interpretação
do direito civil, empresarial, econômico e urbanístico, quanto a relações jurídicas
decorrentes do exercício da atividade econômica, deve prevalecer aquela que preserve
a autonomia da vontade.

No mesmo sentido restritivo,52 dispõe a Lei 14.112/2020, que alterou a Lei


de Recuperações e Falência, que “É vedada a extensão da falência ou de seus efeitos,
no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos

52
“O instituto da desconsideração não possuía previsão na Lei Falimentar até a alteração legislativa,
o que motivava uma parte substancial da doutrina a entender que sua aplicação seria impossível. Para
essa corrente, a LREF possui sistemas próprios de responsabilização de seus sócios, como os arts. 81
e 82, cuja disciplina é incompatível com a desconsideração. Foi justamente esse posicionamento
doutrinário que motivou a inserção do art. 82-A, que vedou a extensão da falência ou de seus efeitos,
no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores da sociedade falida.
O art. 82-A foi inserido na Lei n. 11.101/2005 para se tentar impedir a aplicação da extensão de
falência ou de seus efeitos aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos
administradores da sociedade falida. A interpretação da norma deve ser realizada para que haja a
compreensão de seus institutos. Diversas situações devem ser diferenciadas, portanto. [...] Para que
possa ser indenizada, a Massa Falida poderá pleitear a responsabilização apenas dos envolvidos pelo
ressarcimento dos prejuízos sofridos, mas a decretação de sua falência não implicará a extensão dos
efeitos a eles. Como poderá a Massa Falida responsabilizar seus controladores e administrações pelos
prejuízos que sofreu, conferiu o art. 82-A a possibilidade de que os terceiros prejudicados possam
diretamente responsabilizar seus sócios de responsabilidade limitada, os controladores e os
administradores da sociedade falida beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso de
personalidade jurídica. Disciplinado no art. 50 do Código Civil, o instituto da desconsideração da
personalidade jurídica foi criado para coibir abusos da personalidade e reforçar a própria autonomia
do ente coletivo. Apenas se presentes as hipóteses de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial,
poderiam os efeitos de certas obrigações ser estendidos aos bens particulares dos administradores ou
dos sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. A interpretação a ser
feita é de que, de forma técnica, a parte requerente no feito não poderá ser a Massa Falida. Isso
porque, por prejuízo direto a ela causado, a Massa Falida tem a ação de responsabilização dos sócios
e administradores prevista no art. 82. Não haveria qualquer necessidade de se desconsiderar sua
personalidade jurídica para responsabilizar os agentes causadores do prejuízo sofrido. A
desconsideração poderá ocorrer na petição inicial de habilitação de crédito em face da Massa Falida
ou em incidente de desconsideração.” (SACRAMONE, M. Comentários à Lei de Recuperação de
Empresas e Falência. São Paulo: Saraiva, 2021. Disponível em:
https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555595925/.).

40
165

administradores da sociedade falida, admitida, contudo, a desconsideração da


personalidade jurídica” (art. 82-A).

Referida lei tratou, também, da desconsideração da personalidade jurídica da


sociedade falida, ressaltando que, além de a desconsideração alcançar empresas do
mesmo grupo, a competência para decidir essas questões será sempre do juízo universal
e deverá ser instaurado o respectivo incidente, como já se afirmou em tópico anterior:

Art. 82-A. Parágrafo único. A desconsideração da personalidade


jurídica da sociedade falida, para fins de responsabilização de
terceiros, grupo, sócio ou administrador por obrigação desta,
somente pode ser decretada pelo juízo falimentar com a
observância do art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002
(Código Civil) e dos arts. 133, 134, 135, 136 e 137 da Lei nº
13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), não
aplicada a suspensão de que trata o § 3º do art. 134 da Lei nº
13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).

Diante do que se expôs, pode-se concluir que:

i) a desconsideração não está relacionada à existência, validade ou eficácia


do ato praticado por uma sociedade empresárias, mas à disfunção da
personalidade jurídica, o que autoriza, em casos pontuais e específicos
(critério de excepcionalidade), mediante comprovação dos pressupostos para
tanto, o afastamento da autonomia do patrimônio da empresa no caso
concreto, para atingir o patrimônio de seus integrantes.

ii) nos termos do art. 50 do CC, para fins de desconsideração, deve estar
demonstrado o abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de
finalidade da pessoa jurídica ou pela confusão patrimonial (ambos elementos
de índole objetiva). Não basta, portanto, a mera alegação de insolvência
da pessoa jurídica;

41
166

iii) o juízo acerca da configuração dos pressupostos para a desconsideração


não envolve a investigação de qualquer elemento subjetivo;

iv) a Lei da Liberdade Econômica alterou o regramento conferido à


desconsideração, e, consagrando o entendimento já consolidado na
jurisprudência do STJ, especificou os conceitos de abuso da personalidade e
ressaltou a imprescindibilidade de sua comprovação;

v) a mera existência de grupo econômico não justifica a desconsideração


da personalidade jurídica, na forma do art. 50, § 4º, do CC. Para que se
atinja o patrimônio de empresa integrante do grupo, é necessária a
demonstração dos requisitos de confusão patrimonial e desvio de finalidade,
sob pena de violação à livre iniciativa e segurança jurídica;

vi) os efeitos da desconsideração irradiam somente sobre aqueles


sócios/acionistas, associados, instituidores ou administradores que foram
beneficiados, direta ou indiretamente, pelos atos abusivos;

vii) o processo de falência de uma empresa não implica a


responsabilização direta e automática de seus sócios/acionistas,
associados, instituidores ou administradores. Para tanto, é imprescindível a
instauração de incidente de desconsideração, a ser deferido, apenas e tão
somente, pelo juízo universal.

Tem-se, portanto, uma tendência legislativa de restringir a aplicação do


instituto da desconsideração. Apenas em casos específicos, e desde que comprovado o
abuso da personalidade, é que se permite atingir o patrimônio daqueles que forma
indevidamente beneficiados.

42
167

A excepcionalidade é fundamento primeiro do instituto. A autonomia da


personalidade jurídica serve justamente para impulsionar atividades econômicas e
produtivas, proporcionando a abertura de vagas de emprego e recolhimento de tributos.
Assim, na hipótese de se banalizar a desconsideração, independentemente da existência
de abuso, estar-se-á reprimindo não apenas a criação de empresas, mas, também, a força
motriz da economia nacional.

Um ponto que chama muita atenção, repisa-se aqui, é a impossibilidade de


se deferir a desconsideração com fundamento exclusivo na inadimplência da sociedade
empresária. Com o advento da Lei da Liberdade Econômica, isso fica ainda mais
evidente, e não deixa dúvidas de que, seja para atingir acionistas e administradores, ou
até mesmo empresas integrantes de grupo econômico, afigura-se imprescindível a
existência de desvio de finalidade e confusão patrimonial.

As decisões que deferem a desconsideração da personalidade jurídica sem a


devida análise desses requisitos constituem uma afronta ao ordenamento, e exigem
imediata reforma.

Além disso, projetos de lei apresentados perante o Congresso Nacional desde


2003, têm buscado, paulatinamente, conferir maior estabilidade e segurança à
desconsideração da personalidade.

No PL 2.426/2003, pretendia-se a regulamentação do art. 50 do CC, porque


já se notava, à época, que “o instituto da desconsideração da personalidade jurídica
vem sendo utilizado com um certo açodamento e desconhecimento das verdadeiras
razões que autorizam um magistrado a declarar a desconsideração”. Consta da
justificativa do PL, também, a “inconveniência de se atribuir a todo e qualquer sócio
ou administrador, mesmo os que não se utilizaram abusivamente da personalidade
jurídica ou até mesmo daqueles que participam minoritariamente do capital de
sociedade sem praticar qualquer ato de gestão ou se beneficiar de atos fraudulentos, a

43
168

responsabilidade por débitos da empresa, pois isto viria a desestimular a atividade


empresarial de um modo geral e a participação no capital social das empresas
brasileiras”.

Posteriormente, o PL 3.041/2008, aprovado em 23.11.2022, que retornará ao


Congresso Nacional para análise do veto presidencial publicado no Diário Oficial em
14.12.2022, igualmente versou acerca do instituto da desconsideração.

Embora haja críticas a esse último Projeto de Lei, fato é que ele pretende
conferir maior segurança jurídica à atividade empresarial, ao estabelecer que: (i) a parte
que requerer a desconsideração deve especificar, “necessária e objetivamente”, os atos
que ensejam a responsabilização, sob pena de indeferimento liminar do pedido; (ii) o
magistrado deve submeter o pedido ao efetivo contraditório, antes de decidir sobre o
tema; (iii) o juiz não pode decretar a desconsideração de ofício; (iv) a interpretação por
analogia ou por interpretação extensiva dos requisitos da desconsideração está vedada;
(v) a mera inexistência de patrimônio não autoriza a desconsideração; (vi) os efeitos da
desconsideração atingem, apenas, aqueles beneficiados por atos abusivos.

Há, portanto, uma nítida intenção de restringir o instituto da desconsideração,


apenas, aos casos de efetivo abuso, tal qual prescreve a teoria do disregard doctrine. Em
suma, ausentes os requisitos de desvio de finalidade ou confusão patrimonial, não há
que se falar em desconsideração – e qualquer decisão em sentido contrário não encontra
fundamento legal.

44
169

(d) Responsabilidade dos acionistas minoritários, diretores, conselheiros e


administradores de Sociedade Anônima de capital aberto

A Rossi Residencial é uma sociedade anônima de capital aberto, listada no


Novo Mercado da B353 (BVMF: RSID3), sujeitando-se, assim, aos mais altos critérios
de governança corporativa, auditoria, compliance e contabilidade. A maioria
esmagadora de suas ações está disponível no mercado:54

Aplicam-se ao grupo Rossi, portanto, as disposições da Lei nº 6.404/76 (Lei


das Sociedades Anônimas).

(d.1) Acionistas minoritários

Desde já, cumpre mencionar que, em regra, o acionista não responde pelas
dívidas sociais da empresa, mas, tão somente, pela integralização dos valores das ações
subscritas, conforme redação do artigo 1º da Lei nº 6.404/76.

A Lei nº 6.404/76 rege tanto as (i) sociedades anônimas fechadas, muitas


vezes com número reduzido de acionistas, quanto as comumente denominadas (ii)
corporations, sociedade anônimas de capital aberto e com ampla dispersão acionária, a
ponto de sequer existir controlador definido. Reitera-se que, pela documentação

53
Disponível em: <https://bit.ly/3XuSu21>.
54
Disponível em: <https://bit.ly/3AM1hmF>.

45
170

submetida à nossa apreciação, e que também é disponibilizada publicamente ao


mercado, não se observa a existência de acionista controlador na estrutura da Rossi.

No caso específico da Rossi – sociedade anônima de capital aberto –, importa


destacar que a possibilidade de responsabilização direta dos acionistas por eventuais
passivos da pessoa jurídica não tem amparo na legislação, aplicando-se, via de regra, a
previsão do art. 1º da Lei nº 6.404/76.

Além disso, o entendimento jurisprudencial55 que prevalece no tema em


questão é de que sequer seria cabível eventual desconsideração da personalidade jurídica
da sociedade por ações, para buscar a responsabilização de acionistas minoritários ou
sócios não administradores, mesmo porque sequer têm poderes de gestão – requisito
imprescindível para a responsabilização pessoal de acionistas controladores e
administradores, o que, ainda assim, demanda a existência de outros requisitos, como
acima elencado.

Portanto, atendo-se ao tema objeto do parecer, duas são as conclusões: (i)


reconhecimento de que os acionistas minoritários são parte ilegítima para figurar no
polo passivo de incidente de desconsideração da personalidade jurídica da Rossi (ou
eventuais empresas que componham a sua estrutura), haja vista que – por disposição
legal e, também, em razão da sua condição de minoritários – não respondem por
eventuais dívidas da sociedade contraídas na consecução do seu objeto social; ou,
sucessivamente (ii) a total improcedência de pretensões deduzidas contra acionistas
minoritários sem poderes de gestão, e formuladas sob a “rubrica” de desconsideração da
personalidade jurídica da Rossi, porquanto, apenas, tentam redirecionar a execução e
responsabilizá-los por débitos oriundos de controvérsias relativas a contratos de compra

55
“A prática dos atos contrários à lei ou em excesso do mandato só induz à responsabilidade dos sócios-
gerentes, na sociedade por quotas de responsabilidade limitada, não atingindo os sócios quotistas, sem
poderes de gestão”. (STJ, REsp 952259/RS, 2ª T., rel. Min. João Otávio de Noronha, DJe 08.02.2008).

46
171

e venda de unidades imobiliárias autônomas, especialmente após o deferimento do


pedido de recuperação judicial da Rossi.

Essas conclusões encontram amparo na legislação em vigor, como já se


demonstrou e são adotadas pela jurisprudência, inclusive, no âmbito da Justiça do
Trabalho, da qual destacamos os seguintes e elucidativos precedentes:

AGRAVO DE PETIÇÃO. SOCIEDADE ANÔNIMA. ACIONISTA


MINORITÁRIO. TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA
PERSONALIDADE JURÍDICA. INAPLICABILIDADE. A Teoria
da desconsideração da personalidade jurídica não tem aplicação
em face de acionistas minoritários, sem poder de gestão, de
sociedades anônimas, que, muitas vezes, estão jurídica e
completamente alheios ao controle empresarial da Companhia,
sob pena de subverter-se todo o sistema empresarial e financeiro
do País, responsabilizando indiscriminadamente acionistas por
débitos trabalhistas de sociedades anônimas. (TRT-1, Ap.
00103000620155010046, rel. José Antonio Piton, 2ª T., DJe
27.01.2018).

RESPONSABILIDADE DE ACIONISTA MINORITÁRIO DE S.A.


Não há respaldo na legislação para se direcionar a execução
trabalhista contra o patrimônio de acionista minoritário de S.A.
O art. 158 da Lei 6.404/76 prevê responsabilidade de
administrador e em determinadas situações. (TRT-1, Ap.
00775009420095010028, rel. Gustavo Tadeu Alkmim, 1ª T., DJe
19.11.2010).

(d.2) Administradores, conselheiros e diretores

Os administradores da empresa guardam, entre outras responsabilidades, os


deveres de diligência e lealdade perante a pessoa jurídica, sócios ou acionistas e
stakeholders, devendo, por conta disso, exercer uma atuação proba na gerência da

47
172

sociedade. Trata-se de espectros dos deveres fiduciários adquiridos pelo administrador,


os quais estão disciplinados na Lei nº 6.404/1976, nos artigos 153 e seguintes.

Inobstante a esses deveres, seja no caso das sociedades limitadas ou anônimas


(tal como é a Rossi), em situação de normalidade, o administrador não é pessoalmente
responsável pelas obrigações contraídas no exercício de seus atos regulares de gestão,
especialmente por se tratar de um órgão societário que não se confunde com o ente que
presenta e do qual é mero instrumento de manifestação de vontade.

A limitação de responsabilidade por atos regulares de gestão decorre da


própria natureza da atividade empresarial, que tem o risco como elemento inafastável.
Via de regra, o resultado do ato decisório, mesmo que produza prejuízos à sociedade,
não acarreta a responsabilização do administrador se as deliberações se deram de boa-
fé, dentro do contexto específico, e se coadunam com o fim social e os diversos
interesses diretos envolvidos no exercício da atividade empresarial. Logo, a priori, o
administrador não é responsável pelo resultado dos atos de gestão, mas pela forma como
estes foram tomados, tal qual dispõe o art. 159, § 6º, da Lei das S.A.

Nesse sentido, prevê o art. 158 da LSA que o administrador não é


pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em
virtude de ato regular de gestão, devendo responder civilmente apenas pelos (i) prejuízos
que causar dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo; ou (ii) mediante
violação da lei ou do estatuto.

Nota-se que existe uma presunção legal de inocência da conduta do


administrador, que só poderá vir a ser questionada em caso de violação aos deveres
fiduciários de diligência e de lealdade. Na legislação brasileira, para a condenação do
administrador, é necessário que sejam trazidos à tona elementos suficientes que
comprovem, basicamente, a sua intenção de lesar.

48
173

A mesma presunção se aplica aos diretores e conselheiros da sociedade


anônima, haja vista que o fato de ostentarem posição de gerência/tomada de decisão de
empresa constituída sob este tipo societário não os torna responsáveis por atos de gestão
praticadas pela empresa. Afigura-se imprescindível a comprovação de atos de má
gestão, ou de eventual abuso ou excesso de poder, de modo que, apenas então, possa ser
imputado o insucesso do negócio a diretores e conselheiros, não podendo ser presumido
qualquer tipo de culpa ou dolo.

A responsabilização dos administradores – e aqui se encontram


subentendidos os cargos de conselheiros de administração e diretores – passaria
necessariamente pela inobservância dos seus deveres fiduciários, os quais estão
consagrados nos artigos 153 (dever de diligência), 154 (finalidade das atribuições e
desvio de Poder), 155 (dever de lealdade), 156 (vedação à atuação com conflito de
interesses) e 157 (dever de informar) da LSA, além de servirem de baliza para o
exercício da função de administrador.

Assim, é uma imprecisão técnica-jurídica, destituída de fundamento legal ou


jurisprudencial, responsabilizar (ou, pretender responsabilizar) administradores,
diretores ou conselheiros por controvérsias relativas a, por exemplo, contrato de
promessa de compra e venda de unidade imobiliária em regime de incorporação
imobiliária. Caso o empreendimento não tenha sido entregue no prazo acordado, ou
tenha sido entregue de forma distinta da pactuada, isso, por si só, não torna tais pessoas
– que na verdade são órgãos da Rossi – direta e pessoalmente responsáveis pelos débitos
daí advindos.

A desconsideração da personalidade jurídica da Rossi nessas hipóteses, sem


a prova perfeita, completa e inequívoca dos requisitos da Teoria Menor ou Maior, para
atingir tais pessoas é, ainda, mais grave, sob o ponto de vista de violação do ordenamento
jurídico. Pois trata-se, em verdade, de uma clara e indevida tentativa de
redirecionamento de execução, sem amparo legal ou nexo causalidade entre o (atraso na

49
174

entrega da obra, por exemplo) e o fim pretendido (restituição de valores pagos e/ou
indenização por dano moral).

E, mais grave ainda se torna a situação, quando são indicados, para compor
o polo passivo de um incidente de desconsideração, pessoas físicas que sequer possuem
poder deliberativo isolado no Grupo Rossi. Por questão lógica, não há como se cogitar
qualquer responsabilidade dessas pessoas.

Esse, inclusive, é o entendimento pacífico e iterativo do STJ:

“(...) o § 5º do art. 28 do CDC não dá margem para admitir a


responsabilização pessoal de quem jamais atuou como gestor da
empresa. 3. A desconsideração da personalidade jurídica de uma
sociedade cooperativa, ainda que com fundamento no art. 28, §
5º, do CDC (Teoria Menor), não pode atingir o patrimônio
pessoal de membros do Conselho Fiscal sem que que haja a
mínima presença de indícios de que estes contribuíram, ao menos
culposamente, e com desvio de função, para a prática de atos de
administração (...)”. (STJ, REsp 1.766.093/SP, Rel. Min. Nancy
Andrighi, rel. p/ acórdão Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª
Turma, DJe 28.11.2019).

Seja tomando como fundamento as disposições da Lei da S.A., do CC, ou até


mesmo do CDC, fato é que o instituto da desconsideração não admite a
responsabilização civil e pessoal, indiscriminadamente, de quem, além de não agir
com culpa ou dolo em suas atribuições, sequer possui poder de gestão na empresa.
Trata-se de uma premissa basilar do instituto e de obrigatória observância, sob pena de
se subverter a lógica societária, civil e processual civil.

50
175

Desse modo, a decisão judicial que defere, tal como fez a 5ª Câmara de
Direito Privado do TJSP, nos autos de nº 2156473-48.2021.8.26.000056, sem a
observância dos critérios da Lei da S.A., a inclusão no polo passivo de (i) acionistas
(controladores ou não) ou administradores que não tenham praticado atos abusivos, ou
de (ii) pessoas físicas que integram órgãos da sociedade, mas que não possuem poder de
gestão isolado, é flagrantemente ilegal.

Em consonância ao que é defendido neste parecer, o D. Juízo da 3ª Vara Cível


do Foro de Campinas/SP, nos autos de nº 0014791-88.2021.8.26.0114, indeferiu pedido
de IDPJ da Rossi, uma vez que se pretendia “a inclusão no polo passivo da execução
pessoas que, segundo o contrato social, não abrigam a condição de sócio, afigurando
na situação atual de conselheiros administrativos ou diretores”. Em seus fundamentos,
elencou que a responsabilização de administradores “deve se dar nos termos da Lei nº
6.404/76”.

Inclusive, o próprio STJ já deu provimento a recurso interposto por


integrantes da Diretoria e Conselho de Administração da Rossi, reformando,
acertadamente, decisão proferida pelo TJSP, por entender que não haviam sido
observados todos os elementos necessários para se promover a desconsideração da
personalidade jurídica (Agravo em REsp 2191074/SP, DJe 28.10.2022).

(d.3) Pressupostos ensejadores de responsabilização em uma Sociedade Anônima


e a regra do business judgment rule

De acordo com o art. 158 da referida lei, “O administrador não é


pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em
virtude de ato regular de gestão”. Assim, em uma S.A., apenas, administradores efetivos

56
Conforme se depreende do inteiro teor do acórdão, “o fato de as pessoas físicas serem administradoras
ou diretoras das empresas não impede a sua inclusão no polo passivo”. (TJSP, AI 2156473-
48.2021.8.26.0000, rel. Des. Moreira Viegas, 5ª C.D.P., DJe 10.08.2021).

51
176

e o acionista controlador podem ser responsabilizados, e desde que se utilizem dos


respectivos poderes de forma abusiva.

Nesse exato sentido, enuncia Sergio Campinho que “Como órgãos da


companhia, a responsabilidade civil dos administradores não é de índole contratual.
Não decorre do inadimplemento de uma obrigação contratual ou da infração a um
contrato. A responsabilidade deriva da prática de um ato ilícito extracontratual,
caracterizado pela violação de um dever legal”.57

Acerca desse tema, já decidiu o STJ, em voto do Min. Luis Felipe Salomão,
que:

“É de curial importância reiterar que, principalmente nas


sociedades anônimas, impera a regra de que apenas os
administradores da companhia e seu acionista controlador
podem ser responsabilizados pelos atos de gestão e pela
utilização abusiva do poder; sendo certo, ainda, que a
responsabilização deste último exige prova robusta de que esse
acionista use efetivamente o seu poder para dirigir as atividades
sociais e orientar os órgãos da companhia”. (STJ, REsp
1.412.997/SP, rel. Min. Luis Felipe Salomão,4ª Turma, DJe
26.10.2015).

No mesmo sentido, pronunciou a Min. Isabel Gallotti, quando do julgamento


do AgInt no AREsp 46.835/SP (4ª T., DJe 19.11.2019), que, em se tratando de
desconsideração da personalidade jurídica de sociedade anônima, “apenas os
administradores (...) e seus acionistas controladores podem ser responsabilizados pelos
atos de gestão e pela utilização abusiva da empresa”.

57
CAMPINHO, Sergio. Lei das sociedades anônimas comentada. Ana Frazão et. al. COELHO, Fábio
Ulhoa (coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2021.

52
177

Com efeito, apenas os administradores efetivos e acionistas controladores


poderiam ser responsabilizados no âmbito de um incidente de desconsideração de
personalidade jurídica, desde que tiverem praticado atos abusivos.

Acerca do tema, importante ressaltar, também, que o art. 159, § 6º58, da Lei
6.404/1976, traz conceito semelhante ao business judgment rule, de origem americana
e que consiste, em síntese, na proteção à autonomia decisória de administradores de
sociedades que exerçam seu mister dentro dos parâmetros de lealdade e boa-fé,
objetivando, assim, protegê-los de eventuais responsabilidades decorrentes de prejuízos
apurados ou gerados para a companhia a partir de suas decisões.

Como é cediço, incumbe ao administrador da sociedade praticar todos os atos


de gestão pertinentes à busca do objeto social da sociedade. Assim, os atos praticados
no regular exercício da função, visando ao interesse da companhia e acima de tudo,
praticados de boa-fé (observados os deveres dos administradores acima citados), não
podem ensejar a responsabilização pessoal do administrador59.

Extrai-se da doutrina que o regime de responsabilidade dos administradores


deve ser cauteloso para não criar um contrassenso na atividade, vez que “se o ambiente

58
"Art. 159. Compete à companhia, mediante prévia deliberação da assembléia-geral, a ação de
responsabilidade civil contra o administrador, pelos prejuízos causados ao seu patrimônio. (...) § 6° O
juiz poderá reconhecer a exclusão da responsabilidade do administrador, se convencido de que este agiu
de boa-fé e visando ao interesse da companhia. (...)"
59
“O administrador não é pessoalmente responsável por obrigações assumidas pela companhia em
virtude de ato regular de gestão, caso em que apenas a companhia responde; como o administrador
atua como órgão da sociedade, é ela quem pratica o ato e contrai a obrigação. A expressão “ ato
regular de gestão” não foi definida na Lei das S.A, devendo, como tal, ser entendido aquele praticado
nos limites das atribuições dos administradores e sem violação da lei ou do estatuto social. Assim, serão
irregulares os atos em violação da lei ou do estatuto, como, por exemplo se o administrador, visando a
obtenção de vantagem, deixar de aproveitar oportunidade de negócio de interesse da companhia,
infringindo o artigo 155, hipótese em que responderá pessoalmente pelos danos causados à companhia,
por ter praticado ato irregular de gestão. Ainda que o ato do administrador cause danos a companhia,
ele somente poderá ser pessoalmente responsabilizado se ficar demonstrado que as decisões que adotou
foram tomadas com má-fé, ou mediante ilícito. Assim, ele não responde pelo eventual insucesso do
empreendimento, exceto se for ele resultante da falta de diligência ou atos legais”. (EIZIRIK, Nelson.
A Lei das S/A Comentada. Volume II - Arts. 121 a 188. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 400-401).

53
178

econômico em que atuam os administradores exige deles que tomem decisões ousadas,
não seria coerente o ordenamento jurídico responsabilizá- los por erros cometidos de
forma honesta”60.

Uma correta compreensão do business judgment rule e sua aplicabilidade no


direito brasileiro passa pela avaliação de aspectos como a boa-fé e pela comprovação de
infração, pelo administrador, dos deveres que devem nortear sua atuação, sem criar um
cenário em que seja possível, de maneira quase imediata, a responsabilização por todo
e qualquer prejuízo que a companhia venha a experimentar.

IV.2.
ÔNUS DA PROVA EM MATÉRIA DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE
JURÍDICA

Em matéria de desconsideração da personalidade jurídica, a questão da prova


é de fundamental importância, não se admitindo, em hipótese alguma, a desconsideração
da personalidade jurídica com base em meros indícios ou suspeitas de abuso.

O reconhecimento e garantia da personalidade jurídica é regra. Desconsiderá-


la é exceção, como já se disse. Portanto, a prova da existência dos requisitos deve ser
perfeita, completa e inequívoca, além de produzida com fiel observância ao princípio do
devido processo legal.

E, uma vez que o interesse relacionado à comprovação dos requisitos é, em


tese, do credor, pois este é o beneficiário do reconhecimento desse fato constitutivo de
seu direito, competirá a ele a prova de que, em determinado caso concreto (e
excepcional), a personalidade jurídica pode ser desconsiderada. É o que se extrai, aliás,
do art. 373, I, do CPC, que dispõe a respeito da distribuição do ônus da prova.

60
BRIGAGÃO, Pedro Henrique Castello. A Administração de Companhias e a Business Judgment Rule.
São Paulo: Quartier Latin, 2017, p. 38.

54
179

Especificamente no que se refere à desconsideração, o art. 134, § 4º, do CPC,


é muito claro ao dispor que “O requerimento deve demonstrar o preenchimento dos
pressupostos legais e específicos para desconsideração da personalidade jurídica”.
Para que não restem dúvidas, lecionam Marinoni, Arenhart e Mitidiero que “a prova de
que os motivos que levam à desconsideração de fato existem é de quem requer o
incidente”.61

Importante ressaltar que este entendimento relativo à matéria de prova, no


âmbito da desconsideração, se aplica tanto às relações cíveis e empresariais, como às
relações de consumo. Aliás, ainda que reste caracterizada a incidência do CDC e tenha
ocorrido a inversão do ônus da prova, o consumidor-credor tem que provar, ainda que
minimamente, o fato constitutivo do seu direito.62

Acerca do tema, afirmam Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery
que “O requerimento de desconsideração deverá demonstrar que os pressupostos
materiais para tanto estão devidamente preenchidos, esclarecendo a presença do abuso
da personalidade jurídica por desvio de finalidade ou confusão material. Em se
tratando de questão ligada ao direito do consumidor, a análise se volta para a
ocorrência de abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito,

61
Curso de Processo Civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. 6. ed. São Paulo,
Thomson Reuters Brasil, 2020. v. 2, p. 116.
62
“(...) incide, in casu, a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, prevista no art.
28 do diploma consumerista (...). Nesse passo, tanto as normas consumeristas atinentes à inversão do
ônus probatório, quanto a teoria da carga dinâmica do ônus da prova (art. 373, § 1º, do CPC) não
eximem os autores da prova mínima do fato alegado”. (TJRJ, AI 0062033-26.2020.8.19.0000, rel. Des.
Fernando Fernandy Fernandes, 13ª C.C., DJe 02.12.2020). No mesmo sentido: “Insurge-se o Exequente
contra decisão que indeferiu a instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica
(...), devendo ser observada a Teoria Menor, prevista no artigo 28, § 5º, do Código de Defesa do
Consumidor, porquanto se trata de relação de consumo (...) Trata-se, portanto, de medida excepcional
(...). Para a instauração do incidente de desconsideração, é necessário haver prova mínima da presença
dos requisitos legais da desconsideração da personalidade jurídica”. (TJRJ, AI 0050396-
15.2019.8.19.0000, rel. Des. Arthur Narciso, 26ª C.C., DJe 17.10.2019).

55
180

violação dos estatutos ou contrato social, falência, estado de insolvência, encerramento


ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”.63

Com fundamentos nessas premissas, tem-se que o ônus de provar os


requisitos ensejadores da desconsideração é da parte autora/credora. E, não havendo a
devida indicação de mínimos indícios para tanto, mas, tão somente, alegações genéricas,
é de rigor a rejeição do pedido, por inépcia.

IV.3.
GRUPO ECONÔMICO

(a) Necessidade da instauração de incidente de desconsideração da personalidade


jurídica

É importante destacar, também, que a necessidade de instauração de


incidente existe tanto para processar a pretensão da desconsideração da
personalidade jurídica no seu viés mais tradicional (desconsiderar a empresa e
alcançar o patrimônio dos seus sócios), quanto, também, quando o que se pretende é
o reconhecimento de “grupo econômico” (e, com isso, atingir o patrimônio de
empresa diversa, mas coligada àquela constante no título executivo).

Aliás, pode-se dizer que essas duas situações foram equiparadas, pela lei,
como sendo de desconsideração de personalidade jurídica. Basta lembrarmos que
para o art. 50, § 4º, do CC, a mera existência de grupo econômico não autoriza qualquer
redirecionamento da ação/execução para outra empresa. Por se tratar de medida de
caráter excepcional, para a desconsideração da personalidade jurídica, ainda que se
alegue a existência de grupo econômico, é indispensável a demonstração e aferição da
presença dos requisitos do art. 50, caput.64

63
Código de processo civil comentado. 6. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.
64
STJ, AgInt nos EDcl no REsp n. 1.699.542/MG, 4ª T., rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 04.03.2022.

56
181

E isso só tem como se apurado por meio do procedimento específico


destinado a tanto (o IDPJ). Qualquer decisão (tal como ocorre nos autos nº 0022630-
50.2018.8.25.0001 [TJSE]65, submetido a nossa consulta) que proceda com a
desconsideração sob o argumento de grupo econômico, sem a devida instauração de
IDPJ, é ilegal e viola o princípio do devido processo legal, do qual decorre o princípio
contraditório pleno, ampla defesa e o direito à prova.

(b) Requisitos cumulativos para se desconsiderar uma pessoa jurídica integrante


de grupo econômico

Como visto no item IV.I, itens “c” e “d”, deste Parecer, nos termos do art. 50
do Código Civil, a decisão acerca da desconsideração da personalidade jurídica pode
atingir o patrimônio dos sócios/acionistas, associados, instituidores ou
administradores, que dela se utilizaram indevidamente e tenham se beneficiado (direita
ou indiretamente), por meio de desvio de finalidade ou confusão patrimonial.66

Os mesmos requisitos se aplicam à hipótese de grupo econômico. De acordo


com o §4º do art. 50, será possível a desconsideração da personalidade para
atingimento de empresas do mesmo grupo, desde que preenchidos os pressupostos
do caput:

§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos


requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a
desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.

65
Nesse processo, o Juízo de 1º grau deferiu a desconsideração da personalidade jurídica com o
fundamento exclusivo de que a empresa executada integrava o mesmo grupo econômico da Rossi,
“sendo clara a confusão patrimonial entre elas”. O TJSE, contudo, reformou a decisão, uma vez que
“seria necessário a instauração de incidente de desconsideração da personalidade jurídica na demanda
em questão, o que não ocorreu”.
66
STJ, REsp 1412997/SP, 4ª T., rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 08.09.2015, DJe 26.10.2015.

57
182

Acontece que há uma peculiaridade no referido dispositivo que tem passado


despercebida em algumas decisões submetida a nossa consulta: para a hipótese de
grupo econômico, exige-se, necessariamente, o preenchimento simultâneo de
ambos os requisitos: abuso do direito e confusão patrimonial.

Isso, porque a desconsideração da personalidade do grupo econômico tem


características próprias, alinhadas com a característica do ente despersonalizado. Em
muitos casos, a própria existência do grupo pressupõe certa dose de confusão
patrimonial.

Além disso, quando se desconsidera a personalidade jurídica de empresa do


grupo, não se avança diretamente sobre o patrimônio de um ou de outro sócio.
Descortina-se o véu não apenas da personalidade jurídica da empresa, mas da própria
estrutura formal do grupo, permitindo-se que várias outras empresas, que possivelmente
nem tenham qualquer relação formal com a desconsiderada, sejam atingidas.

Uma coisa é descortinar um contrato social para alcançar uma pessoa física
ou jurídica, nele especificamente relacionada – a desconsideração clássica. Outra, é abrir
um leque de oportunidades (que, a rigor, não existe), permitindo-se alcançar sujeitos
totalmente alheios, do ponto de vista formal (e, muitas vezes, até mesmo quanto aos
objetivos específicos), à devedora, que é o que ocorre quando de grupo de empresas se
trata.

O STJ consolidou sua jurisprudência no sentido de que “As sociedades


empresárias, ainda que integrantes de um mesmo grupo econômico, quando não
figurem como parte no título executivo extrajudicial, não estão legitimadas a integrar
o polo passivo da execução”.

Afinal, a existência de uma comunidade de interesses não desconstitui a


autonomia existente entre as pessoas jurídicas, que continuam tendo razões sociais

58
183

distintas e patrimônios próprios. Da mesma forma que “o simples fato de pertencerem


ao mesmo grupo de empresas não as torna solidárias nas respectivas obrigações, sendo
descabida a aplicação da teoria da aparência para, com isso, ampliar-se a legitimação
no polo passivo de ação executiva”.67

Em outras palavras, somente é possível se atingir, por meio da


desconsideração da personalidade jurídica, empresa pertencente ao mesmo grupo,
quando se constata que a estrutura deste é meramente formal, servindo de escudo para
prática de atos abusivos. A mera confusão patrimonial, sem o abuso, não é suficiente
para a quebra da personalidade jurídica, nas hipóteses de grupo econômico:

“O entendimento do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de


que a desconsideração da personalidade jurídica (art. 50 do
Código Civil) exige a comprovação de abuso, caracterizado pelo
desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial”.68

“A Primeira Turma deste Tribunal Superior tem pacífico


entendimento jurisprudencial pela necessidade de instauração do
Incidente de Desconsideração da Personalidade da Pessoa
Jurídica, na hipótese em que a parte exequente pretenda alcançar
pessoa distinta daquela apontada na Certidão de Dívida Ativa e
não haja qualquer prova da ocorrência das hipóteses previstas
nos artigos 134 e 135 do Código Tributário Nacional. E o só fato
de estar caracterizado o grupo econômico não enseja a
responsabilização tributária das empresas que o compõem.
Precedentes. 3. No caso dos autos, o acórdão recorrido decidiu
que o incidente de desconsideração da personalidade é
incompatível com o rito das execuções fiscais e manteve decisão
do juízo da execução, pelo redirecionamento da execução; no
contexto, o recurso dos particulares é provido para que o TRF da
1ª Região, atento à prova dos autos e às regras de

67
REsp n. 1.404.366/RS, 4ª T., rel. Min. Raul Araújo, DJe de 09.02.2015.
68
AgInt no AREsp n. 1.893.355/SC, 3ª T., rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 13.12.2021, DJe de
16.12.2021.

59
184

responsabilização do Código Tributário Nacional, julgue


novamente o agravo de instrumento interposto. 4. Agravo interno
não provido”.69

“Consoante a jurisprudência desta Corte, é necessária a


demonstração dos elementos caracterizadores do abuso da
personalidade jurídica para a decretação desconsideração da
personalidade jurídica da empresa, os quais não se presumem
pela existência de grupo econômico”.70

Nesse sentido, José Roberto Castro Neves sustenta que o § 4º do art. 50, ao
exigir, simultaneamente, a presença de ambos requisitos para desconsideração, “reforça
a ideia da separação patrimonial entre as pessoas, ainda que integrantes de um mesmo
grupo. Para que se opere a desconsideração, mister demonstrar a ilegalidade”.71

E, repita-se, assim tem se posicionado o STJ. Para a Corte, apenas será


autorizada a desconsideração da personalidade jurídica “diante da caracterização da
confusão patrimonial entre pessoas jurídicas integrantes do mesmo grupo
econômico, cuja gestão é utilizada para, mediante a transferência de ativos, fraudar a
execução em face de uma das integrantes do grupo”. 72

69
AgInt no REsp n. 1.963.597/DF, 1ª T., rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 11.04.2022, DJe de
19.04.2022.
70
STJ, AgInt nos EDcl no REsp n. 1.875.130/RS, 3ª T., rel. Min. Nancy Andrighi, j. 11.5.2021, DJe
14.05.2021.
71
NEVES, José Roberto Castro. A desconsideração da personalidade jurídica – o avesso do avesso. In:
SALOMÃO, Luis Felipe; CUEVA, Ricardo Villas Bôas; FRAZÃO, Ana (coords.). Lei de Liberdade
Econômica e seus impactos no direito brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, cap. 6,
versão digital.
72
“AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AUTOS DE AGRAVO DE
INSTRUMENTO. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE
JURÍDICA. GRUPO SOCIETÁRIO. CONFUSÃO PATRIMONIAL. COMPROVAÇÃO. REEXAME DE
PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO. 1. A desconsideração da
personalidade jurídica, embora seja medida de caráter excepcional, é admitida quando ficar
caracterizado desvio de finalidade ou confusão patrimonial (CC/2002, art. 50). 2. No caso, as instâncias
ordinárias, examinando as circunstâncias da causa, consignaram que ficou demonstrada confusão
patrimonial entre as pessoas jurídicas que integram o grupo societário, pois exploram o mesmo ramo
de negócios, atuam no mesmo endereço e detêm idêntico quadro societário. A reforma desse
entendimento demandaria o reexame das provas dos autos, providência inviável em sede de recurso

60
185

A formação de um grupo econômico, portanto, não implica a existência de


abuso de personalidade jurídica ou de ocultação patrimonial. A pessoa jurídica,
integrante do grupo, só pode ter a sua personalidade desconsiderada, com vistas a atingir
o patrimônio de outras empresas do grupo, se ficar demonstrado que se servem do grupo
como “escudo” para fraudar a lei ou prejudicar os credores.73

Tais conclusões apenas revelam ainda mais o equívoco cometido por


algumas decisões submetidas a nossa consulta, por exemplo, acórdão proferido pela 9ª
Câmara de Direito Privado do TJSP, segundo o qual “inegável a caracterização de
grupo societário, cuja responsabilidade é expressamente prevista no diploma
consumerista, sem qualquer previsão de limitação da responsabilidade pelas
respectivas quotas, até porque incompatível com o instituto da desconsideração da
personalidade jurídica”.74

A simples afirmação da existência de grupo econômico, diferentemente do


que tem sido alegado, não autoriza o redirecionamento da execução. Pelo contrário,
torna a desconsideração ainda mais excepcional, afinal, nesses casos, a confusão
patrimonial deve ser qualificada pelo abuso do direito.

Ademais, acerca de grupo econômico e consecução do objeto social, é


importante esclarecer que a estrutura desenvolvida pela Rossi para o soerguimento de
empreendimento imobiliário por meio da constituição de empresas de propósito

especial, a teor do que dispõe a Súmula 7 deste Pretório. 3. Agravo interno improvido”. (AgInt no
AREsp n. 1.973.756/SP, 4ª T., rel. Min. Raul Araújo, j. 02.05.2022, DJe de 08.06.2022).
73
Tratando da desconsideração em sua concepção tradicional, isto é, entre sócio e empresa, ensina
Lamartine Corrêa de Oliveira: “Se é em verdade uma outra pessoa que está a agir, utilizando a pessoa
jurídica como escudo, e se é essa utilização da pessoa jurídica, fora de sua função, que está tornando
possível o resultado contrário à lei, ao contrato, ou às coordenadas axiológicas fundamentais da ordem
jurídica (bons costumes, ordem pública), é necessário fazer com que a imputação se faça com
predomínio da realidade sobre a aparência” (OLIVEIRA, Lamartine Corrêa de. A dupla crise da
pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 613).
74
TJSP, AI 2247198-20.2020.8.26.0000, rel. Des. Piva Rodrigues, 9ª C.D.P., DJe 18.11.2020.

61
186

específico (SPE’s), com a instituição de patrimônio de afetação, é lícita e deve ser


observada, não sendo possível um mero redirecionamento automático e
indiscriminado da execução às pessoas – físicas ou jurídicas – que dela façam parte
por meio da utilização indevida do instituto da desconsideração da personalidade
jurídica. Isso se diz, ao menos, por dois motivos: (i) a afetação implica na separação de
uma parte do patrimônio geral do incorporador, que fica vinculada a um
empreendimento específico - objetivo dessa separação é, reitera-se, proteger os próprios
adquirentes75; e (ii) o patrimônio de afetação tem um regime próprio de
responsabilidade, só respondendo os bens que o compõem pelas obrigações que deram
origem a afetação, não respondendo esses bens pelas obrigações gerais do seu titular, às
quais incumbirá ao patrimônio geral responder76.

IV.4.
DESCONSIDERAÇÃO E O CENÁRIO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL: SUSPENSÃO DE
TODOS OS ATOS EXECUTIVOS

Conforme se depreende dos autos de nº 1101129-56.2022.8.26.0100, em


trâmite perante a 1ª Vara de Falências e Recuperação Judiciais de São Paulo, todas as
313 empresas integrantes do Grupo Rossi estão abrangidas no plano de recuperação
judicial apresentado.

Em decisão proferida pelo Juízo Universal (fls. 24.093/24.118), foi deferido


o processamento da recuperação judicial da Rossi, bem como determinada a suspensão
de todas as ações ou execuções, na forma do art. 6º da Lei nº 11.101/05.

75
CHALHUB, Melhim Namem. Alienação fiduciária, incorporação imobiliária e mercado de capitais.
Estudos e Pareceres. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p. 270
76
NEVES, Thiago Ferreira Cardoso. Contratos mercantis. 2. ed. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico,
2018, p. 23-24.

62
187

Com efeito, todas as execuções movidas contra essas empresas sujeitam-se


ao stay period, previsto no art. 6º, § 4º, da Lei nº 11.101/05.77 E, por questões lógicas,
não há que se falar, nesse ínterim78, em desconsideração da personalidade jurídica das
empresas integrantes Grupo Rossi – justamente porque implicaria constrição
patrimonial de pessoas envolvidas na recuperação.

Trata-se de entendimento consentâneo com o princípio da isonomia entre


credores, afinal, impedindo-se a desconsideração de empresas recuperandas, evita-se
que credores individuais “busquem, a todo custo, o afastamento da autonomia
patrimonial da empresa para receber mais do que receberiam na forma do plano de
recuperação”.79

Aliás, de acordo com a 3ª Câmara de Direito Privado do TJSP, é inaplicável


o instituto da desconsideração às empresas em recuperação judicial. Isso, porque a
pretensão formulada contra sócios dessas empresas representa benefício indevido a um
credor individual, “em detrimento dos outros credores que participam do plano de
recuperação da empresa executada”.80

No mesmo sentido, já decidiu o TJRJ que “a desconsideração da


personalidade jurídica da devedora, em recuperação judicial, importa em desrespeito
às disposições contidas no PJR [plano de recuperação judicial], fazendo com que a

77
De acordo com o art. 49 da Lei nº 11.101/05, “Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos
existentes na data do pedido, ainda que não vencidos”. Nesse sentido, posiciona-se a jurisprudência do
STJ: “Os créditos submetidos aos efeitos da recuperação judicial são aqueles decorrentes da atividade
do empresário antes do pedido de soerguimento, isto é, de fatos praticados ou de negócios celebrados
pelo devedor em momento anterior ao pedido de recuperação judicial (...)” (STJ, AgInt no AREsp
1.863.699/PR, 3ª T., rel. Min. Moura Ribeiro, DJe 24.08.2022).
78
Na decisão, consignou o magistrado que a suspensão perdurará por 180 (cento e oitenta) dias, a contar
do deferimento da tutela de urgência – que ocorreu em setembro/2022. O stay period, portanto, tem
vigência até março/2023, salvo se prorrogado (conforme autoriza o art. 6º, § 4º, da Lei 1.101/05).
79
CORBO, Wallace. A desconsideração da personalidade jurídica da empresa em recuperação judicial.
Revista de Direito Empresarial, v. 16, jul.-ago. 2016.
80
TJSP, AI 2126402-10.2014.8.26.0000, rel. Des. Egidio Giacoia, 3ª C.D.P., DJe 03.03.2015.

63
188

credora receba seu crédito, por via transversa, fora das regras do concurso universal
instaurado”.81

Permitir a desconsideração nessas hipóteses representaria, pois, flagrante


violação ao tratamento igualitário entre credores.

Sobre o tema, consta expressamente do art. 6º-C da Lei nº 11.101/05 que “É


vedada atribuição de responsabilidade a terceiros em decorrência do mero
inadimplemento de obrigações do devedor falido ou em recuperação judicial (...)”. Ao
comentar o dispositivo, leciona Fábio Ulhoa Coelho que “Nunca se poderá imputar
qualquer tipo de responsabilidade aos sócios de uma sociedade empresária tão somente
fundamentada no deferimento do processamento da recuperação judicial ou na
decretação da falência da pessoa jurídica. A proibição legal alcança as obrigações de
todas as ordens: trabalhistas, tributárias, comerciais, ambientais, consumeristas etc
(...) O art. 6-C, introduzido na LF pela Reforma de 2020, diz o óbvio, mas é necessário
e plenamente justificável, em vista do momento em que se encontram a doutrina e
jurisprudência nacionais, que o legislador diga o óbvio (...)”.82

De outro vértice, enuncia o art. 59 da Lei nº 11.101/05 que o “plano de


recuperação judicial implica novação dos créditos anteriores ao pedido”. Dessa forma,
é extinta a relação jurídica anterior, que é substituída por uma nova, tendo por base o
plano aprovado.

Fundado nesses preceitos, já decidiu o TJSP pela impossibilidade de


desconsideração da personalidade jurídica de empresa que teve o plano aprovado, uma
vez que ocorreu a novação do crédito.83

81
TJRJ, AI 0078066-28.2019.8.19.0000, rel. Des. Mônica Maria Costa Di Piero, 8ª C.C., DJe
13.03.2020.
82
COELHO, Fábio Ulhôa. Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 14. ed. São
Paulo: Ed. RT, 2021, pp.75-76.
83
TJSP, AI 2149912-52.2014.8.26.0000, rel. Des. Andrade Neto, 30ª C.D.P., DJe 17.06.2015.

64
189

Ademais, é de se destacar a imprescindibilidade de que todo e qualquer ato


constritivo, voltado contra as empresas integrantes do Grupo Rossi (todas em
recuperação), seja proveniente do Juízo Universal.

Primeiro, porque a orientação jurisprudencial do STJ foi consolidada, no


sentido de que “o Juízo universal é o competente para o exame acerca da execução dos
créditos apurados nas ações individuais propostas em face de empresa submetida ao
processo de recuperação judicial”.84

Por evidente, como todas as 313 empresas do Grupo Rossi estão em


recuperação, todo e qualquer ato expropriatório deve advir, necessariamente, da 1ª Vara
de Falências e Recuperação Judicial da Comarca de São Paulo.

Segundo, porque o art. 82-A da Lei nº 11.101/05 aplica-se, também, à


recuperação judicial. O dispositivo em questão dispõe que “A desconsideração da
personalidade jurídica da sociedade falida, para fins de responsabilização de terceiros,
grupo, sócio ou administrador por obrigação desta, somente pode ser decretada pelo
juízo falimentar”. Embora haja menção somente ao procedimento falimentar, a norma
aplica-se, por analogia, à recuperação judicial, em vista, sobretudo, dos objetivos
traçados pelo art. 47 da Lei nº 11.101/05 – que prevê a finalidade de soerguimento da
sociedade recuperanda, “promovendo a preservação da empresa”.85

84
STJ, AgInt no CC 183.165/RJ, rel. Min. Marco Buzzi, 2ª Seção, DJe 28.10.2022.
85
“Pondere-se, ademais, que, em vista do disposto no artigo 82-A, parágrafo único, da Lei nº
11.101/2005, a desconsideração da personalidade jurídica de empresa falida somente pode ser
decretada pelo juízo universal de credores. Tal disposição legal também deve ser aplicada, por
analogia, às empresas em recuperação judicial, em vista dos objetivos traçados pelo artigo 47, do
mesmo diploma legal”. (TRT-15, AP 0001295-21.2011.5.15.0042, rel. Des. Olga Ainda Joaquim
Gomieri, 1º Câmara, DJe 09.08.2021).

65
190

Não por outro motivo, já decidiu o TRT-24 que, pelo fato de a recuperação
judicial poder ser convolada em falência, “qualquer pedido de desconsideração da
personalidade jurídica deve ser dirigido ao juízo universal da recuperação”.86

V.
CONCLUSÕES E RESPOSTAS AOS QUESITOS

1-) A relativização do princípio que separa patrimonialmente a


sociedade dos sócios/acionistas, associados, instituidores ou administradores que a
integram, de modo a se permitir que as obrigações contraídas pela empresa
atinjam, também, as referidas pessoas, é a regra do ordenamento jurídico
brasileiro?

Não. Devido a interpretações equivocadas, foram fixadas já no início deste


Parecer as seguintes premissas relativas à Pessoa Jurídica, com sua respectiva autonomia
patrimonial: (i) é um instituto multidisciplinar lícito, sendo a regra no ordenamento
jurídico brasileiro; (ii) decorre de lei, inclusive, com amparo constitucional; (iii) tem
relação com as finalidades fundamentais da estrutura organizacional de uma sociedade;
e (iv) a possibilidade de se afastar a regra da autonomia patrimonial da pessoa jurídica,
que está intrinsecamente relacionada à perspectiva de desenvolvimento econômico do
país, tem que ser entendida como uma exceção, e como acontece com toda exceção,
deve ser objeto de interpretação cuidadosa e seu reconhecimento pelo Judiciário deve
ser cercado de todas as cautelas desejáveis. Na verdade, imprescindíveis.

86
TRT-24, AP 0026019-27.2015.5.24.0001, 2ª T., rel. Des. Joao de Deus Gomes de Souza, DJe
30.04.2021.

66
191

2-) Qual procedimento deve seguir o credor – seja no âmbito das


relações de consumo ou não – para a extensão de responsabilidade para terceiros
(ou bens de terceiros) por dívidas dos devedores originais?

Não temos dúvidas em afirmar que, em hipótese alguma poderá, o Poder


Judiciário privar qualquer pessoa, física ou jurídica, de seus bens, por meio da aplicação
da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, sem antes: (i) instaurar incidente
próprio de desconsideração, seja em ação de conhecimento, execução ou cumprimento
de sentença (art. 134 do CPC); (ii) informar à parte demandada (alheia à relação
processual) a respeito do pedido formulado pela parte contrária; (iii) abrir vistas à parte
para se manifestar a respeito dos elementos (fáticos e jurídicos) constantes no processo;
e (iv) levar em consideração os argumentos e provas apresentados pela pessoa que se
pretenda atingir os bens, antes de se decidir pela desconsideração, ou não, da
personalidade jurídica.

Tem-se, portanto, que as constrições efetivadas sobre o patrimônio de


pessoas jurídicas e diretores, administradores e integrantes do conselho fiscal da Rossi
Residencial S.A., assim como de terceiros que não compõem qualquer órgão
deliberativo do Grupo Rossi, são ilegais. Isso, porque as referidas pessoas – físicas e
jurídica – são terceiros em relação ao processo em curso, e, mesmo assim, estão sendo
integradas no polo passivo sem a devida instauração de IDPJ (a exemplo do que ocorreu
no processo de nº 5013890-15.2021.8.08.0024, em trâmite no 6ª JEC de Vitória/ES) e,
consequentemente, sem que lhes fosse oportunizado o exercício do contraditório,
obrigatório em qualquer procedimento, em qualquer fase processual, tratando-se ou não
de relação de consumo.

A ausência da instauração do IDPJ (arts. 133 a 137 do CPC), quando o pedido


de desconsideração for formulado no curso do processo, somada ou não à constrição dos
bens de terceiros (alheios ao processo), consiste em flagrante ilegalidade.

67
192

3-) À luz da chamada teoria menor, prevista no art. 28 do CDC, é possível


desconsiderar a personalidade jurídica apenas com fundamento no
inadimplemento da dívida ou na insuficiência de recursos para quitá-la?

Não. O verdadeiro sentido da norma expressa no art. 28 do CDC, em


momento algum, autoriza a desconsideração da personalidade sob o único fundamento
de inadimplência ou insuficiência de recursos. O CDC, em respeito à autonomia
patrimonial e ao próprio instituto da desconsideração, exige mais: além do
inadimplemento da dívida ou insuficiência de recursos, cumulativamente, mostra-se
imprescindível a comprovação de atos abusivos ou fraudulentos, notadamente fraude
ou má-fé. Com efeito, qualquer decisão que desrespeite os critérios estabelecidos no
CDC, determinando a desconsideração da personalidade da Rossi apenas com base no
inadimplemento ou insuficiência de recursos, afigura-se ilegal.

3.1-) Ainda sobre a teoria menor, qual interpretação deve ser dada ao §
5º do art. 28 do CDC, e à expressão “obstáculo”, nele prevista?

Não é o simples prejuízo ou a situação de inadimplência que faz incidir a


regra do § 5º - o referido dispositivo não pode ser interpretado dessa forma literal e rasa,
em completa dissociação ao caput do mesmo art. 28. O § 5º deve ser interpretado de
forma teleológica e sistemática, em consonância com as demais disposições do artigo
em que se insere.

Trata-se de regra básica de hermenêutica jurídica: o parágrafo deve ser


interpretado com base em seu caput, sem ampliar os seus termos, muito menos
contradizê-los. Só cabe a desconsideração, pois, quando a personalidade jurídica da
empresa for utilizada, como respondido no quesito anterior, em fraude e má-fé.

68
193

Em vista disso, a mera existência de inadimplemento não significa que a


personalidade jurídica constitui um “obstáculo” ao ressarcimento do consumidor. As
sociedades empresárias enfrentam crises econômicas, podendo, sim, chegar a uma
situação de desequilíbrio financeiro. Mas isso não quer dizer que os sócios, acionistas
ou membros de órgãos deliberativos criaram, deliberadamente, “obstáculos” à satisfação
do crédito.

Interpretar o § 5º dessa forma equivaleria a eliminar o instituto da pessoa


jurídica no âmbito consumerista, afinal, bastaria ignorar todos os critérios traçados pela
legislação civil e pelo próprio CDC, sob um argumento genérico de que existem
“obstáculos” ao crédito, mesmo que a conduta da empresa tenha sido sempre legítima
e transparente – o que vai de encontro com todas as bases teóricas do instituto da
desconsideração. Na realidade, estar-se-ia abolindo a autonomia patrimonial nas
relações de consumo, o que, em nosso entendimento, é absolutamente equivocado.

4-) À luz da chamada teoria maior, prevista no art. 50 do CDC, quais são
os requisitos para se desconsiderar a personalidade jurídica de uma empresa e
permitir a extensão de responsabilidade para terceiros?

A desconsideração não está relacionada à existência, validade ou eficácia do


ato praticado por uma sociedade empresária, mas à disfunção da personalidade jurídica,
o que autoriza, em casos pontuais e específicos (critério de excepcionalidade), mediante
comprovação dos pressupostos para tanto, o afastamento da autonomia do patrimonial
da empresa no caso concreto, para atingir o patrimônio de seus integrantes.
Resumidamente:

i) nos termos do art. 50 do CC, para fins de desconsideração, deve estar


demonstrado o abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de
finalidade da pessoa jurídica ou pela confusão patrimonial (ambos elementos

69
194

de índole objetiva). Não basta, portanto, a mera alegação de insolvência da


pessoa jurídica;

ii) o juízo acerca da configuração dos pressupostos para a desconsideração


não envolve a investigação de qualquer elemento subjetivo;

iii) a Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019) alterou o regramento


conferido à desconsideração, e, consagrando o entendimento já consolidado
na jurisprudência do STJ, especificou os conceitos de abuso da personalidade
e ressaltou a imprescindibilidade de sua comprovação (art. 50 do CC);

iv) a mera existência de grupo econômico não justifica a desconsideração da


personalidade jurídica, na forma do art. 50, § 4º, do CC. Para que se atinja o
patrimônio de empresa integrante do grupo, é necessária a demonstração dos
requisitos de confusão patrimonial e desvio de finalidade (art. 50, §§ 1º e 2º,
do CC), sob pena de violação à livre iniciativa e segurança jurídica;

v) os efeitos da desconsideração irradiam somente sobre aqueles


sócios/acionistas, associados, instituidores ou administradores que foram
beneficiados, direta ou indiretamente, pelos atos abusivos (este racional
jurídico se aplica tanto para teoria maior, quanto para menor);

vi) mesmo que uma empresa esteja em processo de falência, isso não implica
a responsabilização direta e automática de seus sócios/acionistas,
associados, instituidores ou administradores. Para tanto, é imprescindível a
instauração de incidente de desconsideração, a ser deferido, apenas e tão
somente, pelo Juízo Universal (essa conclusão também se aplica para teoria
maior e menor).

70
195

Portanto, as decisões que deferem a desconsideração da personalidade


jurídica sem a devida análise desses pressupostos constituem uma afronta ao
ordenamento.

5-) Os acionistas minoritários respondem pelas dívidas sociais da Rossi?


Quais as consequências jurídicas de serem arrolados como parte no polo passivo
em IDPJ da Rossi?

Objetivamente, não. Os acionistas – especialmente os minoritários – não


respondem pelas dívidas sociais da empresa, mas, tão somente, pela integralização dos
valores das ações subscritas, conforme redação do artigo 1º da Lei nº 6.404/76. E,
atendo-se ao quesito formulado, duas são as consequências jurídicas para a hipótese de
se arrolar acionistas minoritários como parte no polo passivo de IDPJ da Rossi, a saber:
(i) reconhecimento de que são parte ilegítima para figurarem no polo passivo de
incidente de desconsideração da personalidade jurídica da Rossi (ou eventuais empresas
que componham a sua estrutura), haja vista que – por disposição legal e, também, em
razão da sua condição de minoritários – não respondem por eventuais dívidas da
sociedade contraídas na consecução do seu objeto social; e, sucessivamente (ii) a total
improcedência de pretensões deduzidas contra acionistas minoritários sem poderes de
gestão, e formuladas sob a “rubrica” de desconsideração da personalidade jurídica da
Rossi, porquanto apenas tentam redirecionar a execução e responsabilizá-los por débitos
oriundos de controvérsias relativas a contratos de compra e venda de unidades
imobiliárias autônomas, especialmente após o deferimento do pedido de recuperação
judicial da Rossi.

71
196

6-) Os administradores, diretores ou conselheiros respondem pelas


dívidas sociais da Rossi?

Novamente, a resposta é negativa. O art. 158 da 6.404/1976 dispõe que o


administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome
da sociedade e em virtude de ato regular de gestão, devendo responder civilmente apenas
pelos (i) prejuízos que causar dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo;
ou (ii) mediante violação da lei ou do estatuto. Existe uma presunção legal de inocência
da conduta do administrador, que só poderá vir a ser questionada em caso de violação
aos deveres fiduciários de diligência e de lealdade. Na legislação brasileira, para a
condenação do administrador, é necessário que sejam trazidos à tona elementos
suficientes que comprovem, basicamente, a sua intenção de lesar.

A mesma presunção se aplica aos diretores e conselheiros da sociedade


anônima, haja vista que o fato de ostentarem posição de gerência/tomada de decisão de
empresa constituída sob este tipo societário não os torna responsáveis por atos de gestão
praticadas pela empresa. Afigura-se imprescindível a comprovação de atos de má
gestão, ou de eventual abuso ou excesso de poder, de modo que, apenas então, possa ser
imputado o insucesso do negócio a diretores e conselheiros, não podendo ser presumido
qualquer tipo de culpa ou dolo.

A responsabilização dos administradores – e aqui se encontram


subentendidos os cargos de conselheiros de administração e diretores – passaria
necessariamente pela inobservância dos seus deveres fiduciários, os quais estão
consagrados nos artigos 153 (dever de diligência), 154 (finalidade das atribuições e
desvio de Poder), 155 (dever de lealdade), 156 (vedação à atuação com conflito de
interesses) e 157 (dever de informar) da LSA, além de servirem de baliza para o
exercício da função de administrador.

72
197

Assim, é uma imprecisão técnica-jurídica, destituída de qualquer


fundamento jurídico responsabilizar (ou, pretender responsabilizar) administradores,
diretores ou conselheiros por controvérsias relativas a, por exemplo, contrato de
promessa de compra e venda de unidade imobiliária em regime de incorporação
imobiliária. Caso o empreendimento não tenha sido entregue no prazo acordado, ou
tenha sido entregue de forma distinta da pactuada, isso, por si só, não torna tais pessoas
– que na verdade são órgãos da Rossi – direta e pessoalmente responsáveis pelos débitos
daí advindos.

Desse modo, qualquer a decisão judicial que defere a inclusão no polo


passivo de (i) administradores que não tenham praticado atos abusivos, ou de (ii) pessoas
físicas que integram órgãos da sociedade (Conselho de Administração, Diretoria e
Conselho Fiscal), mas que não possuem poder de gestão isolado, é flagrantemente ilegal.

7-) Há, no direito brasileiro, conceito semelhante ao business judgment


rule, de origem americana, que tenha aplicabilidade aos processos em que
administradores da Rossi sejam demandados por suas dívidas sociais?

Sim. O art. 159, § 6º, da Lei 6.404/1976, traz conceito semelhante ao business
judgment rule, de origem americana e que consiste, em síntese, na proteção à autonomia
decisória de administradores de sociedades que exerçam seu mister dentro dos
parâmetros de lealdade e boa-fé, objetivando, assim, protegê-los de eventuais
responsabilidades decorrentes de prejuízos apurados ou gerados para a companhia a
partir de suas decisões.

Incumbe ao administrador da sociedade praticar todos os atos de gestão


pertinentes à busca do objeto social da sociedade. Assim, os atos praticados no regular
exercício da função, visando ao interesse da companhia e acima de tudo, praticados de

73
198

boa-fé (observados os deveres dos administradores), não podem ensejar a


responsabilização pessoal do administrador.

Uma correta compreensão do business judgment rule e sua aplicabilidade no


direito brasileiro passa pela avaliação de aspectos como a boa-fé e pela comprovação de
infração, pelo administrador, dos deveres que devem nortear sua posição, sem criar um
cenário em que seja possível, de maneira quase imediata, a responsabilização por todo
e qualquer prejuízo que a companhia venha a experimentar.

Em nosso sentir, pelos documentos a que tivemos acesso, esse raciocínio é


perfeitamente aplicável aos administradores da Rossi, que, não raras as vezes, são
equivocadamente demandados em IDPJ por dívidas sociais da pessoa jurídica.
Consequência jurídica da incidência desse conceito, será a improcedência de qualquer
pedido – sobretudo os genéricos – de tentativa de responsabilizar os administradores por
dívidas sociais da Rossi sem prova concreta da quebra dos seus deveres fiduciários
elencados nos arts. 153 e seguintes da Lei das Sociedades Anônimas.

8-) De acordo com as regras de direito processual, a quem compete o


ônus da prova de que, em determinado caso concreto (e excepcional), a
personalidade jurídica de determinada empresa possa ser desconsiderada?

Como reiteradamente se afirmou ao longo deste Parecer (e a reiteração se dá


de forma proposital, devido à relevância para o tema objeto de nossa análise), o
reconhecimento e garantia da personalidade jurídica é regra. Desconsiderá-la é
exceção! Portanto, deve haver prova da presença dos requisitos ensejadores da
desconsideração da personalidade jurídica, além de ser produzida com fiel observância
ao princípio do devido processo legal.

74
199

E, uma vez que o interesse relacionado à comprovação dos requisitos é, em


tese, do credor, pois este é o beneficiário do reconhecimento desse fato constitutivo de
seu direito, competirá a ele a prova de que, em determinado caso concreto (e
excepcional), a personalidade jurídica pode ser desconsiderada. É o que se extrai, aliás,
do art. 134, § 4º, do CPC c/c 373, I, do CPC, que dispõem a respeito da distribuição do
ônus da prova.

Este entendimento se aplica tanto para as relações cíveis e empresariais,


como para as relações de consumo. Aliás, ainda que reste caracterizada a incidência do
CDC e tenha ocorrido a inversão do ônus da prova, o consumidor-credor tem de provar
o fato constitutivo do seu direito.

9-) Quais são os requisitos e a forma exigida pela legislação para se


desconsiderar a personalidade jurídica de uma empresa com base na alegação de
existência de grupo econômico?

Para a desconsideração da personalidade jurídica de empresas do mesmo


grupo econômico, é necessário o preenchimento, cumulativamente, dos pressupostos
previstos no art. 50 do CC.

De acordo com a jurisprudência do STJ – que influenciou a edição da Lei da


Liberdade Econômica –, na hipótese de grupo econômico, não basta a mera confusão
patrimonial, sendo necessário que se identifique (e prove) a existência de fraude ou
abuso. A mera confusão patrimonial, sem o abuso ou fraude, não é suficiente para a
quebra da personalidade jurídica, nas hipóteses de grupo econômico.

Como se nota, os requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica,


para o fim de atingir outras empresas do grupo econômico, é medida ainda mais

75
200

excepcional. E, para tanto, é necessária a instauração de procedimento específico, o


IDPJ.

Qualquer decisão que faça a desconsideração sob o argumento de grupo


econômico, sem a devida instauração de IDPJ, é ilegal e viola o princípio do devido
processo legal, do qual decorre o princípio contraditório pleno, ampla defesa e o direito
à prova.

10-) Quais as implicações da recuperação judicial da Rossi nos sucessivos


pedidos de desconsideração da personalidade jurídica contra ela formulados?

No curso do stay period, já deferido pelo Juízo Universal, todas as ações e


execuções movidas contra as empresas recuperandas (integrantes do Grupo Rossi)
devem ser suspensas. Aliás, considerando o deferimento do pleito recuperacional, não
há que se falar em novos pedidos de desconsideração da personalidade jurídica, sob pena
de flagrante violação ao tratamento igualitário entre credores.

A norma do art. 6º-C da Lei nº 11.101/05 veda, expressamente, a


responsabilização de terceiros (aí incluídos sócios, acionistas, administradores, etc.) em
decorrência da recuperação judicial. Ademais, convém ressaltar que a aprovação do
plano de recuperação implica novação de todos os créditos da Rossi (art. 59 da Lei nº
11.101/05).

Finalmente, todo e qualquer ato constritivo, em face de integrantes do Grupo


Rossi, deve advir do Juízo Universal – único competente para tratar dessas questões.
Segundo o STJ, cabe apenas a esse Juízo a aplicação de medidas constritivas. Para além
disso, a leitura conjunta dos arts. 47 e 82-A, ambos da Lei nº 11.101/05, permite concluir
que todo e qualquer pleito de DPJ deve ser direcionado, exclusivamente, à 1ª Vara de
Falências e Recuperação Judicial da Comarca de São Paulo.

76
201

11-) É possível a concessão de tutela de urgência em IDPJ? O


ordenamento jurídico prevê alguma forma de responsabilização da parte pelo
prejuízo que a efetivação da tutela de urgência pleiteada (cautelar ou antecipada)
causar à parte adversa?

Para responder a esses dois quesitos, tomamos, a título de ilustração, o IDPJ


de nº. 0080539-76.2022.8.19.0001, atualmente em trâmite perante a 6ª Vara Cível do
Rio de Janeiro/RJ.

Por meio deste incidente, o D. Juízo, de forma inaudita altera pars e sem
verificar se os requisitos autorizadores da utilização do instituto da
desconsideração estavam presentes no caso, afastou liminarmente a personalidade
jurídica de empresas do Grupo Rossi e deferiu pedido de arresto cautelar de ativos
financeiros de terceiros87, que não participaram do processo de execução que motivou a
instauração do incidente, em importe superior a trinta e sete milhões de reais (fls. 276).

Após ter sido formulado pedido de reconsideração, o D. Juízo manteve a


referida decisão liminar ressaltando que ela “seguiu os mesmos parâmetros das
recentes jurisprudências [sic] colacionadas que autorizaram o arresto em casos
semelhantes”, e que “não há demonstração de que os valores bloqueados seriam
referentes as ações da empresa e, mesmo se assim fosse não há qualquer impedimento
para tal determinação” (fl. 352).

O processo então prosseguiu em seus ulteriores atos, culminando com


bloqueio de valores e de 2.452.680 (dois milhões, quatrocentos e cinquenta e dois mil,
seiscentos e oitenta) ações ordinárias de titularidade das acionistas Aperoama
Participações Ltda. e Lagro do Brasil Participações Ltda. Em seguida, como o D. Juízo

87
(i) Lagro do Brasil Participações LTDA, (ii) Aperoama Participações LTDA, (iii) João Paulo Franco
Rossi Cuppoloni, (iv) Renata Rossi Cuppoloni Rodrigues e (v) Fernando Miziara De Mattos Cunha.

77
202

havia determinado a transferência dos ativos financeiros bloqueados para conta


vinculada à Vara, o Banco custodiante deu início a liquidação das referidas ações
ordinárias.

Desse breve panorama processual, três questões chamaram nossa atenção: (i)
o deferimento de tutela de urgência cautelar inaudita altera parte em incidente de
desconsideração sem a análise dos requisitos previstos na legislação aplicável ao caso
(art. 50 do Código Civil); (ii) o fato de o Juízo ter presumido a existência dos requisitos
autorizadores da DPJ, ao apontar que “em casos semelhantes” a medida havia sido
deferida; (iii) o debate de expedientes executórios – arresto, penhora e liquidação de
ações – sem antes ter oportunizado o exercício do contraditório aos terceiros e partes
envolvidas.

Não se desconsidera a possibilidade de ser pleiteada tutela de urgência


(cautelar ou antecipada) em IDPJ. Contudo, devido a possibilidade de se atingir por
meio dela bens e patrimônio de terceiros sem o prévio exercício do contraditório, o seu
deferimento exige extrema cautela, devendo-se aferir, além da existência da
probabilidade do direito e do periculum in mora (art. 300 do CPC), se os requisitos
autorizadores da desconsideração da personalidade jurídica (teoria maior ou menor)
estão presentes.

A mera presunção da presença desses elementos jurídicos, tal como fez o D.


Juízo da 6ª Vara Cível do Rio de Janeiro no IDPJ em questão, ao simplesmente
afirmar que “em casos semelhantes” a medida havia sido deferida em desfavor do
Grupo Rossi, não é suficiente, tornando a decisão ilegal por ausência de
fundamentação (art. 489, §1º, II e III do CPC).

A par disso, é de fundamental importância considerar que o CPC de 2015,


seguindo a mesma linha de seu antecessor, adotou a teoria do risco-proveito, e
estabeleceu que o beneficiado com a tutela provisória deverá arcar com os prejuízos

78
203

causados à parte adversa, sempre que: (i) a sentença lhe for desfavorável; (ii) a parte
requerente não fornecer meios para a citação do requerido no prazo de 5 (cinco) dias,
caso a tutela em caráter antecedente seja deferida liminarmente; (iii) ocorrer a cessação
da eficácia da medida em qualquer hipótese legal; ou (iv) o juiz acolher a decadência ou
prescrição da pretensão.

Ou seja, o CPC prestigia a autorresponsabilidade processual, pois, de um


lado possibilita que o interessado obtenha liminarmente em IDPJ a efetivação de uma
tutela de urgência (cautelar ou antecipada) altamente proveitosa aos seus interesses, mas,
de outro, prevê a sua responsabilização civil e objetiva por eventuais danos suportados
pela parte adversa, caso se verifique a ocorrência de uma das hipóteses previstas no art.
302 do CPC.

Portanto, na hipótese de a Rossi comprovar a ocorrência de algum dano


suportado com o deferimento de tutela de urgência em seu desfavor em IDPJ (v.g.,
desvalorização de suas ações), e se concretizando alguma das hipóteses previstas no art.
302 do CPC, terá o direito de ser integralmente indenizada/ressarcida/compensada
– seja em ação autônoma ou no mesmo incidente por meio de liquidação. Trata-se de
hipótese de responsabilidade objetiva. Este mesmo raciocínio se aplica para os
terceiros – acionistas da Rossi ou que dela façam parte na qualidade de administradores,
conselheiros ou diretores – eventualmente atingidos com o deferimento de tutela de
urgência em IDPJ.

Nesse sentido, o TJRJ já consignou que, em relação à penhora de títulos e


ações, “a transferência para depósito judicial implicaria na necessidade de liquidação,
capaz efetivamente de trazer perdas” (autos nº 0017248-42.2021.8.19.0000).

Ainda quanto ao tema, importante esclarecer que a responsabilidade pelos


prejuízos advindos com o deferimento tutela de urgência não impede a
responsabilização da parte interessada por dano processual (art. 302 do CPC). Exemplo

79
204

dessa responsabilização pode ser extraída da própria decisão que deferiu a recuperação
judicial da Rossi, em que o Juízo Universal, além de determinar a suspensão de todas as
execuções e atos constritivos propostos contra a Rossi, consignou que: “Na hipótese de
credor sujeito à recuperação judicial insistir injustificadamente, na perseguição de
seu crédito em via diversa (...), poderá haver sua condenação por ato atentatório à
dignidade da justiça, nos termos do art. 77, IV e parágrafo 1º, todos do CPC”.

Aliás, pode-se cogitar que a responsabilização não se limita a quem formula


o pedido de tutela de urgência ou o prosseguimento de execução em violação ao Juízo
Universal da Recuperação Judicial, alcançando, também, magistrados, membros do
Ministério Público e demais integrantes do processo, que defendem medidas em
desrespeito aos critérios legalmente estabelecidos (art. 5º, LXXV; art. 37, § 6º da CF/88
e arts. 143 e 182 do CPC). Essa responsabilização, por constituir medida excepcional e
severa, demandará prova concreta dos requisitos ensejadores da responsabilidade civil
do Estado.

12-) Quem pode ser enquadrado como sócio solidário?

Em síntese, o sócio solidário é aquele que tem a obrigação solidária com a


sociedade pelas dívidas. Trata-se de figura bastante excepcional e que, pelo teor do
Código Civil, subsiste nas sociedades empresárias apenas na Sociedade em Comum
(arts. 986-990) e na Sociedade em Nome Coletivo (arts. 1.039-1.044). Também se pode
sustentar haver a figura do “sócio solidário” parcialmente na Sociedade em Conta de
Participação (arts. 991-996 – especificamente na figura do sócio ostensivo) e na
Sociedade em Comandita (arts. 1.045-1.051 – especificamente na figura do sócio
comanditado). Também pode ser enquadrado como sócio solidário aquele que firmou
obrigação de aval ou responsabilidade solidária em favor da sociedade devedora, o que
vale para qualquer sócio ou acionista de qualquer sociedade.

80
205

13-) É possível a responsabilização direta do sócio solidário pelos


passivos do grupo societário recuperando?

O art. 49, § 1º, da Lei n. 11.101/2005 prevê que os credores do devedor em


recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados. O
avalista ou terceiro garantidor é um coobrigado.

Nesse sentido, o Colendo Superior Tribunal de Justiça possui entendimento


consolidado de que "A recuperação judicial do devedor principal não impede o
prosseguimento das execuções nem induz suspensão ou extinção de ações ajuizadas
contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial,
real ou fidejussória, pois não se lhes aplicam a suspensão prevista nos arts. 6º, caput,
e 52, III, ou a novação a que se refere o art. 59, caput, por força do que dispõe o art.
49, § 1º, todos da Lei 11.101/2005.88"

A responsabilidade solidária não pode ser presumida, resulta da lei ou da


vontade das partes (art. 265 do CC). Assim, na hipótese de recuperação judicial da
empresa devedora, somente seriam devedores solidários aqueles que prestaram aval ou
garantia ao título executado.

88
REsp 1.326.888-RS, 4ª T., DJe 5/5/2014; REsp 1.269.703-MG, 4ª T., DJe 30/11/2012; AgRg no REsp
1.334.284-MT, 3ª T., DJe 15/9/2014; AgRg nos EDcl no REsp 1.280.036-SP, 3ª T., DJe 5/9/2013; e
EAg 1.179.654-SP, 2ª Seção, DJe 13/4/2012; REsp 1.333.349-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 2ª
Seção, julgado em 26/11/2014, DJe 2/2/2015.

81
206

14-) As figuras abaixo podem ser consideradas “sócios-solidários”:


acionista; conselheiro independente; sócio; diretor administrativo; diretor
estatutário; ex-conselheiro ; ex-diretor?

Inexiste previsão legal de responsabilização direta das figuras dos acionistas;


conselheiros independentes; diretores administrativos; diretores estatutários; ex-
conselheiros e ex-diretores pelas obrigações da sociedade recuperanda. Assim, só
poderiam ser considerados sócios solidários se prestassem garantia de aval ou
responsabilidade solidária aos créditos exequendos.

A responsabilização direta de diretores, conselheiros, administradores e


acionistas minoritários pelo pagamento dos créditos concursais dependeria do
preenchimento dos requisitos da lei societária e civil para reparação de danos causados.
Portanto, seria restrito à excepcionalíssima via (e restrita aos estritos pressupostos
legais), a qual não pode servir como um desvirtuamento ao concurso creditório. Caso
fosse aceito que por qualquer tipo de dívida (mesmo trabalhista ou consumerista) fosse
possível atingir o patrimônio de sócios, ex-sócios, conselheiros e/ou administradores, a
própria lógica do sistema concursal estaria comprometida, afinal, todos buscariam esse
atalho para burlar a ordem de recebimento (tanto na recuperação quanto na falência).

Não se pode esquecer que tanto o procedimento recuperacional quanto


falimentar se preocupam com o coletivo, assim, qualquer tipo de medida individualizada
que fosse capaz de burlar a ordem prevista na própria Lei n.º 11.101/2005 seria um
desvirtuamento completo do sistema.

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207

15-) Qual o prazo para propositura da demanda indenizatória


diretamente contra os administradores e acionistas controladores?

A ação de responsabilidade societária ajuizada diretamente em face de ex-


acionistas, ex-administradores, ex-conselheiros e ex-diretores possui como pressuposto
de cabimento a existência de abuso de direito, má-gestão, dolo, culpa ou inobservância
dos deveres fiduciários previstos na LSA, razão pela qual aplicável o prazo prescricional
da pretensão indenizatória prevista no artigo 206, §3º, CC, ou seja, de 3 anos (também
previsto no art. 287, II, b da LSA).

Aliás, acerca dos prazos de responsabilização, importante considerar que as


pessoas que ocuparam os aludidos cargos não podem assumir um vínculo eterno e
indefinido para com as obrigações da empresa. Não por outra razão, o Código Civil (arts.
1.003 e 1.032), para algumas hipóteses, estabelece um limite temporal de 2 (dois) anos,
a contar da retirada da sociedade, para que ex-sócios respondam por obrigações da
empresa. Ainda que se tratem de sociedades empresárias com natureza jurídica distinta,
por questões de congruência normativa e segurança jurídica, é possível sustentar
juridicamente que o referido limite temporal de 2 (dois) anos se aplica, também, aos
casos envolvendo ex-administradores, ex-conselheiros e ex-diretores de sociedades
anônimas.

Este é o nosso parecer, s.m.j.

Curitiba, 15 de março de 2022.

Teresa Arruda Alvim

83

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