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Panton Pia

Narrativa Oral
Indígena
registro na Terra Indígena São Marcos

Devair Antônio Fiorotti

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Copyright © Devair Antônio Fiorotti, 2019.
Panton pia’: Registro na Terra Indígena São Marcos © Devair Antônio
Fiorotti

Coordenação e concepção: Devair Antônio Fiorotti


Capa: Otávio Coelho, Devair Antônio Fiorotti
Diagramação: Otávio Coelho, Abrão Batista
Revisão: Paulino Batista, Sonyellen Fonseca Ferreira

Fiorotti, Devair Antônio.


Panton pia’: Registro na Terra Indígena São Marcos. Vol. I.
Boa Vista: UERR edições; Wei, 2019.

343p.

ISBN 978-85-61924-09-6

1. Narrativas indígenas 2. Circum-Roraima 3. Macuxi. 4. Taure-


pang 5. História de vida. I Título

CDU 398

Boa Vista
UERR Edições
Wei Editora
2019
SUMÁRIO
Créditos, 9
Apresentação, 13
ENTREVISTAS
Clemente Flores e Manoel Bento Flores, 25
Manoel Bento Flores, 71
Armando Magalhães, 115
Valdélio Perez Ribeiro, 157
Letícia Barbosa e Eduardo Alexandre Magalhães, 183
Lucinézio Peres Ribeiro, 223
Sebastiana Peres dos Santos, 239
José Vitor da Silva, 253
Aprígio Ramos, 287
Áurea da Silva Galvão e Seu Genário, 299
Seu Oliveira, 309
Domício Pereira da Silva e Regina Santos da Silva, 319
A todos os entrevistados,
Principalmente a Clemente Flores e
Eduardo Magalhães
(in memoriam).
Agradecimentos
Agradeço primeiramente a todas as comunidades
indíge- nas do Alto São Marcos que permitiram a minha
presença em seu âmbito. Vocês são partes efetivas de
minha vida, de minha memória.
Aos alunos de Iniciação Científica, sem eles esse
trabalho não estaria pronto: Ana Maria Alves de Souza,
Eliana Almeida, Keyty Almeida de Oliveira, Leonor Cravo,
Michele Rubistein, Robson Félix de Souza, meus
agradecimentos.
Agradeço ao apoio do Paulino Batista, Airton Vieira,
Lucimar Sales, Rosiclei Liberal, Carmen Vera Nunes Spotti,
Huarley Mateus do Vale Monteiro, Karlyson Roberto Veras
Rodrigues.
Agradeço à Universidade Estadual de Roraima pelo
apoio e confiança no trabalho a ser desenvolvido, bem
como ao CNPQ pelo seu financiamento.
À Carla Monteiro de Souza, por ter me apresentado a
metodologia da História Oral.
Ao Rivelino Pereira de Souza e Zacarias Fernando de
Sou- za Loiola, meus agradecimentos pelas traduções de
Macuxi e Taurepang, respectivamente.
A todos que direta e indiretamente contribuíram para
realização do projeto.
9

CRÉDITOS
Dentro da primeira fase do projeto Panton pia’:
Narrativa Oral Indígena, registro e análise, seguem-se as
atividades desenvolvidas por cada membro, quanto à
coleta e proces- samento dos dados coletados. As
atividades dividiram-se nas seguintes funções:
entrevistador, assistente de entrevista, transcritor,
conferência de entrevista e copidesque. Algumas
atividades foram exercidas por mais de um componente
do grupo. A seguir estão os responsáveis, a atividade
exercida e as entrevistas trabalhadas. Algumas entrevistas
tiveram participação de mais de um informante.

AIRTON VIEIRA
Conferência de fidelidade: Armando Magalhães; Áurea
da Silva Galvão e seu Genario; José Vitor da Silva; Manoel
Bento Flores; Sebastiana Peres dos Santos; seu Avelino;
Valdélio Perez Ribeiro.
Copidesque: Sebastiana Peres dos Santos.
1
ANA MARIA ALVES DE SOUZA
Transcritora: Aprígio Ramos; Clemente Flores e Manoel
Flores; Domício Pereira da Silva e Regina Santos; José Vitor
da Silva; Manoel Bento Flores; Sebastiana Peres dos
Santos.

CARMEN VERA NUNES SPOTTI


Assistente de entrevista: dona Rosa, Filha Antonina, Filha
Neli; dona Tereza e filha e intérprete dona Luisa; tuxaua
João.
Transcritora: dona Rosa, Filha Antonina, Filha Neli;
dona Tereza e filha e intérprete dona Luisa; tuxaua João.

DEVAIR ANTÔNIO FIOROTTI


Entrevistador: Aprígio Ramos; Armando Magalhães;
Áu- rea da Silva Galvão e seu Genario; Clemente Flores e
Manoel Flores; Domício Pereira da Silva e Regina Santos;
José Vitor da Silva; Letícia Barbosa e Eduardo Alexandre
Magalhães; Manoel Bento Flores; Regina Santos da Silva;
Sebastiana Peres dos Santos; seu Oliveira; Valdélio Perez
Ribeiro.
Copidesque: Aprígio Ramos; Armando Magalhães;
Áurea da Silva Galvão e seu Genario; Clemente Flores e
Manoel Flores; Domício Pereira da Silva e Regina Santos;
dona Rosa, Filha Antonina, Filha Neli; dona Tereza, filha e
intérprete dona Luisa; José Vitor da Silva; Letícia Barbosa e
Eduardo Alexan- dre Magalhães; Manoel Bento Flores;
Sebastiana Peres dos Santos; seu Oliveira; tuxaua João;
Valdélio Perez Ribeiro.
Conferência de Fidelidade: Armando Magalhães; Áurea
da Silva Galvão e seu Genario; Clemente Flores e Manoel
Flores; Domício Pereira da Silva e Regina Santos; Estevan
Alves; José Vitor da Silva; Letícia Barbosa e Eduardo
Alexandre Magalhães; Manoel Bento Flores; Maria Luisa
Magalhães; Narciso Macuxi; Sebastiana Peres dos Santos;
seu Oliveira; Valdélio Perez Ribeiro. 1

HUARLEY M. DO VALE MONTEIRO


1
Copidesque: Letícia Barbosa e Eduardo Alexandre Ma-
galhães.
Conferência de fidelidade: dona Rosa, Filha, Filha Neli;
dona Tereza e filha e intérprete dona Luisa; tuxaua João.

KEYTY ALMEIDA DE OLIVEIRA


Transcritora: Áurea da Silva Galvão e seu Genario;
Estevan Alves; Valdélio Perez Ribeiro.

LUCIMAR SALES
Assistente de entrevista: Clemente Flores e Manoel
Flores; Letícia Barbosa e Eduardo Alexandre Magalhães;
Lucinete Peres Ribeiro; Manoel Bento Flores; Sebastiana
Peres dos Santos; Valdélio Perez Ribeiro.

MICHELE RUBISTEIN
Transcritora: Armando Magalhães; Letícia Barbosa e
Eduardo Alexandre Magalhães.

RIVELINO PEREIRA DE SOUZA.


Transcritor e tradutor de macuxi.

ROSICLEI LIBERAL
Entrevistadora: dona Rosa, Filha Antonina, Filha Neli;
dona Tereza e filha e intérprete dona Luisa; tuxaua João.

ZACARIAS FERNANDO DE SOUZA LOIOLA


Transcritor e tradutor do taurepang
1
1

Apresentação
Panton pia’ é um livro de histórias. “Panton” significa
história em macuxi e “pia’ ”, junto, perto: junto, perto
da história. Isso a princípio já seria muito, principalmente
quando diz respeito a histórias indígenas, a suas narrativas.
Mas tornou-se muito mais para mim, quase uma questão
1 de honra, pois é uma tentativa de contribuir no processo
Minha orientadora de
Mestrado e Doutorado, de valorização dos indígenas do Alto São Marcos,
pela Universidade de Bra-
localizado no município de Pacaraima, em Roraima, de três
sília.
etnias: os indígenas macuxi, taurepang e wapixana.
Cheguei em Boa Vista há doze anos e ainda ressonam
até hoje as palavras de Ana Vicentini de Azevedo: 1 “Já
pensou o que você pode estudar lá?” Estávamos
conversando sobre os estudos dos aspectos mitológicos
indígenas, quando ela pronunciou essas palavras.
Contudo, quando iniciei as entrevistas, veio o primeiro
susto: onde estaria o que bus- cava? Onde estariam as
histórias mitológicas desses povos, as grandes narrativas
que buscava? Simplesmente, da forma como imaginava,
elas não surgiram e nem mais existiam na boca da grande
maioria dos entrevistados. Todavia algo novo surgia nessas
entrevistas: a história de vida desses in-
1
divíduos, tão parecidas a da grande maioria dos brasileiros:
explorados, escravizados algumas vezes, passando por um
processo de angústia diante do contato com a
modernidade e seu mercado cultural.
O presente material é parte do resultado do projeto de
pesquisa intitulado Panton pia’: Narrativa oral indígena,
registro e análise, que até o momento se focou nas terras
indígenas do Alto São Marcos e Raposa Serra do Sol, está
também localizada nos municípios de Normandia, Pacarai-
ma e Uiramutã, em Roraima. Esse projeto é financiado
pelo CNPQ desde 2007.
Até 2014, foram visitadas 23 comunidades e realizadas
39 entrevistas (27 homens e 12 mulheres), distribuídas as-
sim por etnia: 24 macuxis; 6 taurepangues; 6 wapixanas; 1
indeterminada. Entre esses, merece menção uma etnia
cuja tribo enquanto tal não mais existe: uma sapará-
macuxi; e outro que menciona wapixana e sua relação com
o nome karapiwa, sinônimo de wapixana ou mesmo da
mistura de wapixana com macuxi. Vinte dos entrevistados
residem no lavrado roraimense e 19 na região das serras,
ao redor da cidade de Pacaraima, sendo que as
comunidades das serras são em quase totalidade muito
novas. Essas comunidades foram criadas e têm-se
desenvolvido muito na região por causa da proximidade
com o município de Pacaraima. Com exceção das
comunidades taurepangues da serra, principal- mente
Sorocaima I e Boca da Mata, e algumas macuxis, como
Aleluia e Sol Nascente, as outras comunidades apresentam
acentuada presença de indivíduos de etnias mistas, bem
como é muito comum encontrar indivíduos de pais cujas
etnias são diferentes, principalmente com casamentos
entre macuxi, taurepang e wapixana.
Até o momento, há quatro volumes prontos: três de
narrativas e um de cantos (eremukon) tradicionais. Este
volume é o primeiro a ser publicado. Neste material,
alguns relatos chamaram muita atenção. Por exemplo, a
paixão de um fazendeiro por uma jovem indígena. Ao ser
desprezado, ele simplesmente expulsou toda comunidade
1 das terras
1
dos próprios indígenas, que fazendeiro considerava suas.
Noutro momento, encontramos histórias de pessoas que
eram dadas para serem criadas pelos fazendeiros. Esses
indígenas eram simplesmente escravizados, trabalhando
de graça nas fazendas, apanhando muitas vezes, sendo
tratados como animais. Ainda, a resistência dos indígenas
é algo a ser ressaltado. Quando da demarcação, muitos
indígenas foram literalmente guerreiros ao lutar por suas
terras.
Longe de um imaginário nacional que associa o
indígena a uma visão romântica e idealizada, um índio com
belos co- cares, nu ou seminu, grandes e fortes, os
entrevistados do Alto São Marcos são indivíduos marcados
por um processo de desvalorização da própria cultura.
Com a chegada dos brancos, principalmente da igreja, sua
língua foi chamada de “gíria”, com toda carga pejorativa
2
possível. Das comu- nidades, com a chegada dos
Devair Antônio Fiorotti.
“Narrativa oral em ques-
fazendeiros, eles foram para fazenda ser empregados ou
tão: cultura em contato na cozinha ou como boiadeiros. Muitos também foram
e imaterialidade na TI São
Marcos-RR”. In Allison trabalhar no garimpo, principalmente na Venezuela.
Leão (Org.). Amazônia: Li-
teratura e cultura. Em relação à história de seu povo, panton, a igreja foi
Manaus: UEA, 2012.
nefasta. Ela está presente na vida desses povos há pratica-
mente dois séculos. A partir dos relatos, não houve
3
Devair Antônio Fiorotti . nenhum tipo de tentativa de conciliação entre o mundo
“Para pensar a realidade cristão e a realidade indígena. Como algumas entrevistas
indígena atual: diversida-
de cultural e identidade denunciam, simplesmente seria pecado recontar essas
indígena na TI São
narrativas.2 Com isso, em algumas comunidades, há
Marcos. In Carla Monteiro
de Souza [et all]. Boa pessoas que não sabem essas histórias, a não ser alguns
Vista:EDUFRR, 2013.
resquícios. Por outro lado, quando há ainda anciões que
sabem essas narrativas em al- gumas comunidades, faltam
pessoas para ouvi-las. A maioria, pelo contato com o
mundo não índio, não se identifica com essas narrativas.3
Esse trabalho propõe-se a colaborar no entendimento
do que seria o indígena da Região do Alto São Marcos, a
partir do contato direto e contínuo com o mundo do outro,
do nosso mundo não índio. Ainda, buscar contribuir no
processo de valorização identitária desses povos, já que
muitos já não se identificam como indígenas, por causa do
1 preconceito e da
1
falta de informação dos não indígenas e mesmo dos en- trevistas, algumas vezes,
próprios indígenas. Digo dos próprios indígenas, porque também fizeram perguntas.
muitos não entendem o processo de contato com o não Ainda,
índio e simples- mente o vivem sem nenhuma reflexão.

Metodologia de trabalho
As narrativas aqui apresentadas seguiram a
metodologia da História Oral, traduzida nos seguintes
passos: Entrevista; Transcrição; Conferência de
Fidelidade.4
Entrevista
Foi elaborado um roteiro para entrevista, contudo ele
não era rígido, podendo ser modificado no decorrer da
entrevis- ta. Essa flexibilidade objetivava não engessar a
entrevista, já que qualquer entrevista está sujeita ao
desconhecido, que é o outro, o entrevistado. Em
praticamente todas as entrevistas o caminho era guiado
por certas “deixas” do entrevistado, somente depois
retomava-se o roteiro. Por questões técnicas, o roteiro
somente não foi adotado na comunidade Boa Esperança.
O conteúdo do roteiro tratava desde a identificação do
entrevistado, passando pela realidade da comunidade
onde ele mora, até perguntas relacionadas às histórias de
seu povo, como pantonkon.
A maioria das entrevistas foram satisfatórias, em que o
entrevistado conseguia desenvolver o raciocínio, interagir
e até caçoar do entrevistador, como no caso da dona
Letícia, da comunidade Santa Rosa. Em outras, as
respostas eram monossilábicas. Contudo, optou-se em
também incluir todas as entrevistas transcritas aqui, pois é
difícil definir o que é efetivamente irrelevante dentro dos
Estudos Culturais, locus em que esse trabalho propõe a se
inserir.
Com exceção da comunidade Nova Esperança, todas
as outras entrevistas foram realizadas por Devair Antônio
Fiorotti. Além disso, vale destacar que os assistentes de
2

4
O trabalho guiou-se prin- cipalmente pelas orien- tações de Verena
Alberti: Manual de História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 2004.

Agradecimento especial à professora Carla Mon- teiro de Souza,


da UFRR, por ter me apresentado à Metodologia da História Oral e
mesmo me orien- tando no percurso de seu aprendizado.
2
por serem realizadas em comunidades indígenas, em
espaços abertos, algumas vezes pessoas chegavam e
interferiam nas respostas, opinavam, como na entrevista
com Clemente Flo- res. Quando isso ocorreu e não
identificamos quem era e a fala era relevante, optou-se em
identificá-lo como “Alguém”.
A grande maioria das entrevistas foi individual.
Contudo, as realizadas na comunidade Nova Esperança
foram coleti- vas, bem como a realizada com Letícia
Barbosa e Eduardo Ma- galhães, comunidade Santa Rosa, e
com os irmãos Clemente Flores e Manoel Bento Flores, da
comunidade Sorocaima I. Nesse último caso, vale destacar
que há uma entrevista solo de Manoel Bento Flores.
Muitas perguntas eram elaboradas no ato da
entrevista. Ao lê-las depois de transcritas, constatei
problemas de con- cordância, falta de clareza. Muitas
questões foram deixadas como foram elaboradas, apesar
de se apresentarem meio truncadas. Isso ocorreu porque,
se num primeiro momento as entrevistas eram bem
formais, com o seu desenvolver, depois de meia hora, por
exemplo, tanto entrevistador quan- to entrevistado
ficavam mais descontraídos. Houve casos também em que
não houve essa interação. Isso é percebido claramente em
algumas narrativas aqui presentes.
Transcrição
Um dos trabalhos mais árduos de um projeto como
esse é a transcrição das narrativas. Tal processo consiste
em ouvir o áudio e transcrever as falas, passando-as para a
linguagem escrita. Muitas vezes, um minuto de áudio
levava mais de meia hora para ser transcrito. Um dos
principais problemas enfrentados é que vários
entrevistados já eram idosos ou tinham o português como
segunda língua. No primeiro caso, a dicção já estava
prejudicada pela idade; noutro, as palavras em português
não eram pronunciadas como geralmente somos
acostumados a ouvir. As transcrições foram realiza- das
quase na totalidade por alunos de Iniciação Científica
envolvidos com o projeto.
2 Além disso, por as entrevistas serem realizadas nas co-
munidades, as interferências foram várias: animais,
pássaros,
2
carros, motosserras, pessoas que chegavam e linguísticas
interrompiam as entrevistas. Aliados aos aspectos do
parágrafo anterior, o grau de dificuldade na transcrição se
amplia.
Conferência de Fidelidade
Nessa parte do trabalho, todo material foi ouvido no-
vamente e a transcrição foi conferida, para ver se ela havia
sido feita de forma exata ou se possuía problemas, como
inexatidão. Caso fosse encontrado algum problema, a
trans- crição era refeita.
Copidesque
Nesse momento, a narrativa já escrita foi adequada a
uma linguagem mais próxima possível da linguagem
formal da língua portuguesa. As dúvidas maiores surgiram
nesse momento: até que ponto seria possível mexer na
narrativa sem desfigurar as características próprias de
cada entrevis- tado? Os passos seguintes buscam
esclarecer melhor o que foi realizado.
Primeiramente, o texto foi adequado quanto à escrita
padrão na grande maioria das vezes. Tal aspecto implica
em fazer concordância nominal e verbal, quando não há,
por exemplo: “as banana” para “as bananas”; “nós vai”
para “nós vamos”. Ainda adequou-se a escrita de algumas
pala- vras, como “misgalha” para “migalha”. Contudo a
palavra “caboco” e suas variações foram mantidas. Vale
observar, por exemplo, que o uso da palavra “caboco (a)”
foi domi- nante, não aparecendo nenhuma vez a palavra
“caboclo”. Se não bastasse isso, o significado dessa
palavra é distinto do dicionarizado, por exemplo, no
Aurélio. Entre os infor- mantes, “caboco” é na quase
totalidade das vezes o próprio indígena, diz também de
quem vive nas comunidades.5
Foram retiradas muitas repetições, como “de, de” para
“de”, contudo nem todas foram retiradas, pois algumas
repetições eram enfáticas e traduziam parte do estilo do
entrevistado.
Para alguém da Letras, consciente das teorias
2

5
Apesar de um uso cor- rente da palavra “caboco” para se referir
a indígenas: entre brancos e indígenas; entre indígenas e indíge-
nas, índios mais informa- dos têm marcado posição em não usá-la,
exigindo que sejam chamados de índios, reafirmando sua
indianidade em oposição à origem e significado tra- dicional da
palavra “ca- boclo”
2
modernas, como coordenador deste projeto, custou-me
mui- to essas adequações, sabendo da importância de
valorizar a diversidade linguística brasileira. Contudo, com
as adequa- ções, buscou-se que os entrevistados não
sofressem em suas comunidades preconceito linguístico, já
que todo material voltou para as comunidades de origem.
Essa preocupação justifica-se pois, querendo ou não, ao ler
essas narrativas, o leitor está diante da escrita. Ainda, a
maioria dos entrevista- dos são semianalfabetos, já
sofrendo em demasiado pressão social. Assim, buscou-se
não expô-los a mais uma situação de pressão social.
Contudo, na tentativa de preservar alguns aspectos da
oralidade e o estilo dos entrevistados, algumas atitudes
foram tomadas por mim, enquanto responsável direto por
todo copidesque:
1) O verbo “estar”, conjugado na terceira pessoa do
singular, foi adotado como “tá” no lugar de “está”,
assim como “tava” no lugar de “estava”. Ao ouvir as
narrativas, constatei que todos informantes usavam
o verbo nesta forma reduzida. Inclusive eu, a
princípio numa situação linguística privilegiada,
também o usava assim. Quando eu adequava o
verbo para “está”, a narrativa soava artificial. Em
alguns casos, também, optei em deixar a forma
“tão” no lugar de “estão e, mais raramente, “tô” no
lugar de “estou”.
2) A preposição “para” foi adotada como “pra”, nada
mais distante da oralidade brasileira desses
informan- tes do que um “para”. Muitos deles
usavam inclusive uma forma mais reduzida: “pa”,
que foi adequada para “pra”.
3) Ainda, quando a preposição “pra” estava diante de
um artigo, foi aceita a contração, como presente na
orali- dade: pra + a = pra (ex.: para a gente = pra
gente); pra
+ o = pro (ex.: para o homem = pro homem). O
mesmo foi feito com o plural: pra + as = pras e pra +
os = pros. Observem que, se não houvesse a
2 contração, em “pra a gente”, por exemplo, para
“pra gente”, haveria um
2
distanciamento grande da oralidade.
4) A colocação pronominal foi deixada praticamente
em todos os casos como no original: “me fala” e não
“fala-me”, por exemplo. Em alguns casos, também
foi incluído o pronome ou mesmo retirado.
5) A pontuação buscou seguir aspectos sintáticos, a
partir da ideia geradora da frase. Essa foi uma das
grandes dificuldades deste trabalho pois, ao
transcrever, não se ouve a pontuação,
diferentemente da palavra. Ela é colocada a partir da
sintaxe frasal, seguindo os concei- tos de ordem
direta da língua portuguesa, inversões,
deslocamentos sintáticos, ao mesmo tempo em que
se busca preservar a ideia geradora da frase.
6) Ainda foi preservado aquilo que, para alguns, seria
arcaísmo. Por exemplo, a palavra “entonces”, já pra-
ticamente em desuso, vive na boca de vários
falantes de Roraima. Não se sabe ao certo se pela
presença da fronteira ou pela própria história da
Língua Portugue- sa, que registra essa palavra como
pertencente a ela.
7) Outro aspecto que foi preservado é uso da segunda
pessoa do singular com o verbo na terceira do singu-
lar. Frases como “se tu andou no lavrado, tu deve
ter visto.” Foram mantidas. Caso fosse adequada
ficaria assim: “se tu andaste no lavrado, tu deves ter
visto.” Essa mudança seria, no mínimo, uma
agressão às ca- racterísticas da oralidade desses
falantes bem como da quase totalidade dos
brasileiros, que descartaram essa conjugação de
suas falas.
8) A palavra mais complicada de se trabalhar foi o
nosso tão conhecido “né”. O que fazer com ele?
Simplesmen- te retirá-lo, como sugere muitos
manuais? Voltá-lo para sua forma desenvolvida: “não
é?” Outra questão: ele sempre é seguido de uma
interrogação? Essas dúvidas permearam todo o
trabalho de copidesque. Muitos “nes” foram
2 retirados, principalmente quando eram excessivos e
estavam no meio do período, sem uma função clara.
Também muitos foram preservados,
2
principalmente quando o entrevistado testava o
canal de interlocução com o entrevistador. Nesses
casos, foi colocado o sinal de interrogação. Noutros
momentos, foi deixado sem sinal de interrogação,
quando o en- trevistado o utilizava como uma
característica de sua fala. Vale ressaltar que o “né”
não esteve presente somente na fala dos
entrevistados, mas também na fala do entrevistador.
9) Muitas falas do entrevistador foram retiradas para
dar sequência à fala do entrevistado. Isso ocorreu
quando o entrevistado testava o canal com um
“né?”, por exemplo, e o entrevistador respondia
“sei” ou “aham”. Essas confirmações foram
retiradas bem como algumas falas que excediam ao
papel de en- trevistador e eram mais comentários
pessoais sobre aspectos cotidianos.
10) Optou-se em escrever a palavra “viche”, com “ch”,
pois não foi encontrado registro em dicionários de
sua escrita.
11) Em frases como “nós fundamos ela.”, em que “ela”
ocupa a função de objeto, em nenhum momento
foi feita a adequação para “nós a fundamos”, como
propõem gramáticas e manuais de língua
portuguesa. Tal opção buscou preservar o aspecto
da oralidade do informante, tendo em vista que, em
nenhuma en- trevista, apareceram estruturas como
sugeridas pela gramática normativa ou manuais, em
relação a esse uso pronominal.
12) Também foram conservados alguns usos não
diciona- rizados, como “rancar”, para “arrancar”.
13) As falas entre aspas não sofreram todas as
alterações acima, principalmente quando elas
indicavam falas de animais, de matutos, de
personagens da cosmovisão indígenas. Nessas falas
é possível perceber a escrita mais próxima da fala
dos indígenas.
Ainda, os cantos e pajelanças, quando em língua nativa,
foram trazidos no original. Depois de transcritos, foi efetu-
3 ada uma tradução literal desses textos. Em geral, o próprio
3
Projeto: Panton 2

Projeto: Panton pia’


Entrevistados: Clemente Flores (CF) e Manoel Flores (MF)
Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)
Assistente de entrevista: Lucimar Sales
Local: Sorocaima I, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR
Data da Entrevista: 1/10/2008
Transcritora: Ana Maria Alves de Souza
Conferência de Fidelidade: Devair Antônio Fiorotti
Copidesque: Devair Antônio Fiorotti
Duração: 2’16’’36’’’
2 Projeto: Panton
Projeto: Panton 2
A entrevista começa num tom descontraído, pois havia sido feita a entrevista
do irmão de Clemente Flores, Manoel Flores. Seu Manoel falava que o filho do
Clemente era bom desenhista e havia desenhado a história de Macunaima. A
partir desse ponto, a entrevista começa com a narrativa a respeito de
Macunaima.

CF: Porque eu, a história de Macunaima foi assim. Ele


foi uma pessoa, assim como nós. Então, o filho maior sai
menos do que o menor; o menor sai mais valente do que o
maior. Toda vez que nós temos filhos, o menor sai mais
forte do que... mais valente do que o irmão maior. Assim
era então. [...] Porque a história de Macunaima é muito
comprida, é muito longa. Vamos passar uma semana
gravando, tem que trazer mais gravador desse [risos].
DF: Ih! Esse bichinho aí é misterioso [falando do
gravador digital], ele só não tem tamanho. Esse aqui
[Manoel Flores] falou hoje duas horas e pouco, e ele nem
“tchum.” O grava- dorzinho continuou funcionando...
CF: Não gastou nem meia...
DF: Nem meia!

CF: Metade, né? Sim senhor. A história de Macunaima


que eu estou sabendo... (porque também meu pai... agora
1
Nesse caso, optou-se em
meu pai poderia estar presente aqui conosco, mas ele tá
não passar o verbo para a velhinho, não pode conversar, ele nem ouve. Quando tu tá 1
segunda pessoa do plural,
tendo em vista ser uma falando tem que repetir seis, sete vezes pra poder ele
variante praticamente em
enten- der. Agora eu estou seguindo atrás dele, mas
desuso na língua
portugue- sa do Brasil. alguma coisa estou escutando. A voz de vocês que vocês
2
Clemente Flores faz uma estão falando comigo, eu tô escutando). 2 A história de
digressão, pra falar do pai.
Macunaima, meu companheiro, a história de Macunaima é
muito triste. Ele tinha dois filhinhos: um se chamava
3
Todas as transcrições do
taurepang e suas Macunaima e o outro menor se chamava Xicö. 3 Esse foi
traduções para o mais valente do que Ma- cunaima. Ele inventava, ele
português foram
realizadas por Zacarias pensava muito. Ele tinha como aqui diz... aspiração; ele
Fer- nando de Souza
Loiola, da comunidade
tinha aspiração profunda, mais do que irmão dele. Um dia
Bananal. o pai do Macunaima disse pro filho, pra mulher dele, mas
2 Projeto: Panton
veja bem, tá o
inimigo aí no meio,
não
Projeto: Panton 2
somente Macunaima. Aí disse: “Meu filho, mulher, eu vou inimigo, pena de pássaro.
na frente.”, como nosso costume também. Nosso
costume [é] sair de madrugada, matar jacu, matar
qualquer pássaro que a gente vê. Aí disse: “Olha, bicho
tem caminho por aí, caminho que vai por aqui assim, tem
pena de pássaro. Esse aí é o caminho. Agora se vão cair
num caminho...” Você sabe que tem caminho que tem
encruzilhada, né? Encruzilhada pra cá e outra pra cá
[aponta com as mãos pros lados]. No meio do caminho é
pena de pássaro. Agora no caminho, na saída do caminho
do inimigo é cabelo de catitu. O senhor conhece catitu?
DF: Conheço.
CF: Aquela caça, porco do mato, esse aí no meio do ca-
minho. “Agora pena de pássaro é meu caminho, pode [ir]
indo por aí que eu vou na frente.” Saiu de madrugada,
como três horas da madrugada que o homem sai. Os dois
filhos com a mãe ficaram lá, dentro da casa. Tá!,
amanheceram. Mais ou menos cinco, seis, sete, aí
comeram, “Agora, um- bora meu filho, papai já tá longe.
Pode ser que papai matou algum pássaro pra nós
comermos. Vamos lá!” Destar4 que o inimigo tava
escutando o que o pai falava pros filhos, logo quando
ouviu a conversa e voltou, logo o homem passou já.
Ajuntou esse cabelo de porco, ajuntou pena de pássaro,
trocou pra cá. Pena de pássaro no caminho dele, cabelo de
porco no caminho do homem. Aí se enredaram os
meninos. Tá ouvindo bem, né? Então, saíram: “Umbora.” O
senhor sabe zarabatana?
DF: Sei.
CF: Flechar pássaro. Zarabatana. Na minha língua se
chama curá.
DF: Curá.
CF: Então, eles foram. Machado na mão, ele e ele, os
dois, a mãe atrás, “Nós vamos na frente flechando os
pássaros.” Aí foram embora. Chegaram na encruzilhada:
“Cadê o caminho do papai que o papai informou que era
de pena de pássaro?” Olharam, tava no caminho do
2 Projeto: Panton

4
“Destar” de “deixa es- tar”.
Projeto: Panton 2
Coitados! Olharam, “Isso daqui é cabelo de porco, não!
não! não é nosso caminho não! Umbora por aqui!” Aí
pegaram o caminho do inimigo. Andaram um bom pedaço.
No caminho, no lavrado, têm muitas qualidades de
pássaros, que ninguém pode chamar qual é o nome do
pássaro. Aí estavam querendo flechar ele pra comer,
porque nós, nós gostamos de comer pássaro pequeno,
flechado com a zarabatana. Eu gostava. Agora não, agora
eu estou comendo peixe, agora peixe que vem no gelo,
qualificado, mal, comida mal. Aí foram embora, e a mãe na
5
Nesses pontos, há contí-
frente. Quando logo na frente chegou na casa de um
nua mudança de cidadão lá, era dona Sapa, é Sapo5: “Que foi? Que foi se-
entonação de voz,
dependendo do tipo de
nhora? Pra onde a senhora vai?” “Não, eu tô indo pra cá,
personagem. atrás do meu marido que saiu.” “Ah não! Por onde ele
O narrador usa de forma saiu?” “Ele saiu lá pelo pena de pássaro.” “Não, esse aí é
irregular em português as
terminações de gênero.
meu caminho.” Maldito Sapo! Mentiu! O marido tava
Sua língua primeira é o caçando que era onça, inimigo do pai do Macunaima. A
taurepang.
onça tava caçando no mato. Aí ficou lá, ficaram lá. De
repente, este pássaro que estavam perseguindo pra
flechar avisou, ele canta. ([pergunta pro en- trevistador]
Você não viu? Se tu andou no lavrado, tu deve ter visto).
Pássaro que avoa longe e abre a asa, ele canta. E logo
quando sobe de novo ele abre asa, ele canta de novo.
Bonito o passarinho! Aí esse pássaro conta história que
aconteceu com a mãe dele, a mãe desse Macunaima. Aí
disse: [cantan- do] “Meu filho, mãe de vocês tá
envenenada...” Cantou. “Tu viu? Tá cantando! Vamos
espantar de novo!” Aí foram lá. Quando abre o bico:
[cantando] “Meu filho, mãe de vocês foi envenenada...”
“Que foi?” “Mamãe foi envenenada! Umbora lá!” Aí
subiram, deixaram este passarinho, deixaram o pobre do
passarinho. Logo que chegaram, não tinha ninguém, só a
mulher, mulher Sapo. Aí quando olhou: “Coitado, meu
filho, pra onde vocês vão?” “Nós tamo procurando
mamãe, não passou por aqui não?” “Não, não passou
não...” Mas esse esperto, Xicö, tava olhando, assim no
geral, ele olhou pra mãe dele, tava guardada no jamaxim lá
pendurado. Aí deixaram o machado pra cá, e o outro pra
cá [faz movimentos pros lados], zarabatana, cada um
deixou suas coisas. Aí ficaram tristes, sabe que a morte da
2 Projeto: Panton
mãe, do pai é triste,
dá tristeza! Aí eles
diziam: “Agora, o
que nós vamos
fazer? O que é que
nós vamos fazer?”
“Não sei...” Aí
menor, mais
esperto, disse:
Projeto: Panton 2
“Eu vou entrar no ventre da mãe, eu vou entrar no ventre dentro da casa procurando
da mamãe agora!” “Será?” “Sim, umbora entrar!” pra comer coisa crua.6 Aí ela
Deixaram o machado, deixaram tudo que carregavam. Aí falou: “Olha, meu
se tornaram, se converteram [em] besouro. Entraram no
ventre da mãe, ficaram lá dentro. Cinco horas da tarde
chega o inimigo, a onça, não tinha achado nada, [de] caça.
Disse: “Mamãe”, não, mãe não, é o esposa, “Mulher, o
que é que tu achou?” “Não achei nada não!” O que é que a
velha vai achar? “Aqui ninguém achou nada.” Quando
olhou assim viu essa mulher lá dentro do jamaxim. Aí
puxou e derrubou no chão. Tirou bucho. Aí começaram a
cozinhar, coitado. Aí acharam dois ovos dentro, tiraram
eles, tinha se convertido assim como ovo, mas era duro. Aí
disse: “Achei comida pra mim agora.” Quando colocou na
boca não podia mastigar, tava duro. Borracha nunca se
mastiga, né? Assim que tinha convertido ele, aí procurou
comer, não podia: “Vamos deixar então.” Aí querendo
cozinhar, não podia cozinhar porque este ovo, tu sabe que
quando o fogo arde, a água ferve, mas estes, estes
bichinhos, Macunaima tava lá dentro d’água, a dona tava
querendo cozinhar, mas não ferveu. O bichinho cantou
pedindo ajuda pra esfriar essa água, pra não ferver. Isso
era pedindo mar, mar nunca se seca. Esta história é muito
impres- sionante, meu irmão! Sabe por quê? Porque
também isso aí presta pra curar a gente também, é o
remédio, é a oração dos indígenas. Aí dizendo: “Não tá
cozinhando não. Vamos deixar num...”, aí colocaram na
cesta. O senhor conhece essa cesta, né? Cesta de colocar
água, qualquer coisa. Aí colocaram lá. Aí comeram lá na
casa da mãe deles, passaram lá. Aí tava lá dentro da cesta
o que conseguia; o que a onça conseguia, colocavam lá na
cesta; eles comiam de lá mesmo da cesta. Colocavam
banana, comia. Qualquer coisa que essa dona colocava na
cesta não aparecia. Aí ficaram pensando: “Por que é que
desaparece as coisas que eu coloco aqui? Minha [pecinha]
eu coloco aí; o banana eu coloco aí; o batata assada eu
coloco aí. Não aparece por quê?” Aí a velha falou assim.
Enquanto este marido dela tá pro mato, porque a onça
nunca para de caçar, né! Todo dia tá caçando. O que é que
ele vai fazer? Ele não vai brocar roça. E tá sempre só
3 Projeto: Panton

6
No original ele usa a va- riante “cruda”.
Projeto: Panton 3
filho, será que vocês tão comendo o que eu tô colocando
aqui? Se convertam de novo pra, pra vocês me ajudarem a
derrubar roça pra mim, pra mim plantar banana, pra mim
plantar batata.” Falou tudo, e eles escutando dentro dessa
cesta aí [aponta com dedo]. Um dia apareceram, se
tornaram homem de novo. “Olha vovó, eu quero que
vocês nos leve pra roça...” “Eu não vou andando não, de
jeito nenhum!” Aí ela pegou, ela colocou na cesta, levou
pra roça. Aí ela levou dentro do mato. O que é que eles
fazem? Pega o terçado, “Tchan!” “Tchan!” “Tchan!”
“Tchan!”, dez hectares de terra, só até meio-dia. De meio-
dia pra tarde, tudo terminado. Eles tinham machado.
Quando chegavam: “Quem foi que derru- bou roça lá no
caminho?” “Não sei não, fui eu mesma que fez”, dizia a
dona. “Tá bom, tá bom, tá bom, tem problema não!”
Passou uma, duas semanas, três semanas. Chega a hora de
queimar, tocar fogo. Aí convidaram essa dona. Aí vai
começar a vingar. Os Macunaima já vão, já vão começar a
vingar a morte da mãe. “Vovó, você nos leva de novo pra
roça pra nós tocar fogo?” “Nós vamos conseguir um
pedaço de pau aceso [...], pra tu acender fogo no meio?”
“Tá bom!” Coitado do Sapo que não sabia. Aí pegaram um
pedaço de fogo. Aí mandaram ela tocar fogo lá no meio:
“Vamos tocar assim na beira!” Aí ela ficou lá no meio. Os
Macunaima rodea- ram de fogo. Ela (sopra), não acende.
Quando o pau de lenha tá meio cru assim não, não, não
acende, não pega fogo não! Agora quando ele tá bem
seco, qualquer coisa ele acende. Aí quando ela olhou,
quando viu, tudo tava infestado de fuma- ça. Quando ela
levantou a vista não tinha mais o Sapo pra ela. Aí
amaldiçoou, esse Sapo amaldiçoou esses rapazes: “Vocês
não vão ficar dentro d’água. Vocês não vão ficar na barriga
de jacaré não. Vocês não vão ficar na barriga de sucuriju.
Não vão ficar em nenhum lugar, em nenhum desses
animais, vocês não vão ficar. Vocês vão morrer!” Mas essa
dona Sapa nomeou barranco, nomeou barranco. Ainda
mais tem aquele (não sei como se chama a seiva, a seiva
3 Projeto: Panton
aqui na Venezuela, porque eu falo mais espanhol do que
português, porque já
Projeto: Panton 3
aprendi falar espanhol, né!?) E da seiva que ele “Tchan!”, empurraram,
(chamamos, aquele mato, aquele que solta algodão, “Tchan!”, ficou enfiada a
samaúma, sim.) Não chamou também não. Duas coisas Onça. Até aí acaba a história
que ela não chama. Agora que ela chamasse: “Vocês não da Onça que já
vão ficar debaixo de samaú- ma? Vocês não vão ficar nem
embaixo do barranco, já tinha morrido.” Mas não chamou
samaúma no barranco. O que é que eles fazem? Se
esconderam lá debaixo do barranco, samaúma tava lá em
cima. Aí quando olhou, chegou fogo, aí pluft! Explodiu.
Logo quando ela explodiu, dessa Sapa queimando
apareceu esse Jaspe.7 (Você conhece ele, né? Assim Jaspe).
Aí sapa queimada. Assim essa daí é a história que
Macunaima tá começando a fazer. Quando ela explodiu
virou pedra, esse Jaspe. Aqui no Mapauri, na Venezuela,
tem muito lugar. Tu já andou por aí?
DF: Não, mas eu já conheço, já vi a pedra...
CF: Tu viu encarnada assim? Aí foram embora.
Vingaram a morte da mãe e foram embora. Pegaram o
machado e foram embora. Cinco horas da tarde chega o
inimigo, Onça, marido da finada Sapa. “Cadê? Cadê?
Cadê?” Aí, tu sabe que onça sente o rastro da gente. Aí
seguiram o rastro dele. Destar que eles estavam lá
brincando. Quando ele vinha negaceando assim [balança o
corpo, como um felino], aí eles sentiram, aí eles viraram,
falando pra cá e vai pra lá e sentiram de novo virando pra
cá. Tu sabe o que é pulga Xicö, Xicö? Nós cha- mamos Xicö,
pulga. Daqui “tchan” ele pula pra lá, pula pra cá, assim ele
fazia [balança as mão em sinal de movimento]. Esse irmão
dele menor era mais valente e ágil. O que é que ele fazia?
Xicö faz um buraquinho. Coloca uma vara bem
apontadinha, tava pulando por cima. Aí agora, quando ele
chegou lá perto dele, disse: “Agora peguei vocês!” “Não,
vamo umbora brincar com nós?” “Então umbora!” Então,
escuta bem porque ele vai vingar agora, vão vingar a
morte da mãe ainda. Aí porque comeram, comeram então.
Tem que vingar, aí : “Vamo brincar aqui com nós?”
“Como?” Também Onça é besta, né! “Como?” “Vamo pular
assim, como nós tava pulando!” Tava bem apontado, bem
amoladinho e apontado. Aí mandaram pular ele. Aí
3 Projeto: Panton

7
Pedra, da família Calcedô- nias, principalmente em sua variação
vermelha, muito comum na região da Gran Sabana na Venezuela,
aos redores do Monte Roraima. Inclusive há uma cachoeira com
esse nome na região, muito visitada por turistas, Cachoeira de
Jaspe.
Projeto: Panton 3
vingaram. Aí continuaram viajando. Aí apareceu Cutia,
acom- panhando, acompanhante deles. Apareceu Cutia,
quando se completa três: Macunaima, Xicö, Cutia. Viajaram
dentro da mata, viajaram, viajaram, viajaram. Chegaram
numa casa, numa casa velha, uma mulher lá, porque [eles]
não tinham fogo, não tinham fósforo, não tinha nada. A
mulher fazendo beiju com o fogo embaixo do forno. “O
que é que nós vamos construir agora? O que é que nós
vamos fazer?” Eles pega- vam peixe, comiam cru, [assado]
no sol, seco, eles comiam sem fogo. O que é que eles têm?
“Eu vou pegar fogo. Tu fica aqui.” Irmão maior que tá
cuidando do irmão dele, porque ele parece que tava um
pouco assim, ele tava muito atrevido com irmão dele. Aí
irmão dele foi, aí se converteu [em] grilo. Tu sabe aquele
bichinho, grilo?
DF: Conheço.
CF: Sim. Se converteu. Aí essa mulher que tava fazendo
beiju, ele mordeu na coxa dela. Aí a mulher olhou, era grilo.
Pegou porque ele faz um talinho de fogo aceso. Colocou
na bunda dele e saiu. Levou fogo. Aí o outro lá esperando,
pre- parado. Aí acenderam fogo, continuaram viajando.
Chegaram na beira do rio, tava o Senhor Garça pescando.
Coitado, tava pescando. Como ele pegava peixe? Não
pegava peixe, não! só de noite assim. (Não sei como eles
pegavam também? Isso aí não tá bem esclarecido também,
porque o que eu estou contando é o que eles me falaram,
me contaram. Não sei como eles pegavam peixe e comiam
cru.) Agora, depois que pegaram esse fogo não deixaram
apagar. Aí chegaram lá. Senhor Garça tá pescando,
pegando aimara, aimara, trai- rão. Nós chamamos aimara,
na minha língua, aimara, trairão grande. Aí foram lá.
“Agora vamos.” Aí ela torou o anzol dele pra não pescar. O
irmão dele maior: “Vou tirar. Espera aqui!” “Cuidado!”
Quando ele saiu, foi lá. Garça jogando “Tan!”, ele pegou,
tirou, quando ele bateu no pescoço, disseram: “Ei
companheiro, me dê esse peixe, rapaz!, pra mim!” “Que
peixe? Eu peguei um bocado!” “Então me dá!” Ele deu um
pequeno assim, “Não, não, quero esse aqui mais maior.”
Ele colocou no ombro e foi embora. “Quase me mata,
3 Projeto: Panton
rapaz bateu aqui no meu pescoço.” “Olha aí, eu sabia, eu
vou tirar
Projeto: Panton 3
o anzol dele.” Caiu dentro d’água. O que é que ele faz? Se ALGUÉM: Pupu.
mexeu no anzol do Senhor Garça, enrolou no toco de pau
lá dentro d’água. Aí tocou assim como se fosse peixe no
anzol. “Pan”, torou o anzol dele. Agora sim, nós temos
anzol. Aí continuaram viajando, viajando por aí dentro do
mato. Não era no campo, não. Era dentro do mato. Aí
acabou rancho, não tinha mais rancho, não tinha rio, não
tinha nada onde pegar peixe. O senhor Cutia, o que é que
ele faz? Tu sabe que cutia anda por aí na roça, [pra]
conseguir batata, conseguir jerimum, conseguir melancia.
Ele consegue, né. Então, esse aí, esse aí era o pensamento
do Cutia. Quando chegaram no meio da mata, não tinha
nada pra comer. “Vamo passar mais dois, três ou quatro
dia, vamo passar aqui pra vê se nós conseguimo
alimentação.” Aí Cutia, o que é que ele faz? Ele andava por
aqui, andava por aqui [aponta com as mãos pros lados],
até que chegou nessa fruta. (Ai, ai, ai, essa fru- ta não sei
como nome dessa fruta pupu,8 tem aquela fruta
redondinha...)

DF: Qual é o tamanho?


F: Deste tamanho. Tamanho de manga.
MF: Aquela amarela igual à banana madura
CF: Sim, amarela...
MF: Amarela.
CF: Mas ela é...
MF: Redonda!
CF: Redonda.
ALGUÉM: Uma vez eu vi enlatado, né... docinho.
PL: É marmelo!
CF: Pode ser marmelo mesmo. O pé dele cresce, desde
pequenininho vai carregando...
ALGUÉM: É uma fruta bem amarela.
CF: Sim, nós chamamos, na minha língua se chama
pupu.
3 Projeto: Panton

8
Fruta parecida com toma- te, comestível, um pé com espinho.
Praticamente não existe mais na região, ne- nhum informante soube
o nome em português.
Projeto: Panton 3
CF: Pupu na minha língua, taurepang. Aí ele achou essa
fruta. Ele comeu e não trouxe nada. “Shiiiiiiii”, o ar saiu. O
Cutia comeu. Também parece que tava com muito sono.
Ele tava dormindo. Aí abriram boca, tiraram carocinho
dessa pupu que eu estou falando. Tiraram, provaram. “Ai
coisa doce! Vamos descobrir ele!” Mas também era gente,
era mal, era ruim esse Xicö, que é mais ruim. Mais esperto,
mais inteligente ainda. Aí disse, o Macunaima disse pro
irmão dele: “Vamos descobrir devagar.” O que é que eles
fazem? Apareceu aquele Quatipuru. Tu conhece aquele
quatipuru? Aquele que sobe ligeiro no pau?
DF: Ah! O quati?
CF: Quati, quatipuru, pequenininho assim...
DF: An...sei.
CF: Entrou no meio, aí entrou no meio.
DF: Já são quatro.
CF: Já são quatro, já. Aí disse “Olha, tu vai seguir esse
Cutia até ele chegar no pé de pupu. Aí ele voltou. Aí:
“Amanhã tu vai descobrir.” Aí esse Quati foi mais por cima
da vara, do galho. Lá em cima tem outro galho [vai
apontando com o dedo, como se ali estivessem os galhos].
Ele foi, Cutia que- rendo olhar, não tinha ninguém. Chegou
até no pé de pupu. Quando chegou, era pupu no chão,
todo maduro. Pegou, apanhou lá e voltou. O quati foi e
voltou. Chegou lá, “Achei, eu vi onde tá.” “Amanhã vamos
derrubar.” “Olha aí, tão querendo estragar, tão querendo
estragar.” Aí a história de Xicö, mais valente do que o
irmão dele. Aí voltou e “Ai, não tô conseguindo nada
aqui.” Trouxe outra fruta que não era de comer muito, né.
Aí “Não, tu achou pupu, né?” “Não, olha aqui, cê trouxe,
olha aqui. Sim achei, umbora amanhã, umbo- ra comer.” Aí
convidaram. Aí convidaram, se mudaram de um
acampamento pra outro, lá no pé de pupu. Chegaram lá.
Tava no chão, tudo maduro, em vez de comer, em vez de
encher barriga, esse Xicö disse: “Eu vou derrubar!” “Não
senhor, tu vai estragar essa fruta.” Era longe a história, né!
História que nós estamos falando. Aí ele disse: “Não, eu
4 Projeto: Panton
quero comer
Projeto: Panton 4
lá de cima.” “Não irmão, deixa, não derruba, se não tu vai
estragar fruta. Quem é que vai colher tudo?” “Não, nós
vamo comer só um, depois nós guarda.” Rapaz, ele pegou
macha- do e “pan”, derrubou! Estragou tudo. Agora
passaram um monte de dias comendo. E foi, quando
passaram os tempos. Passaram dois, três semanas. Aí
acaba, apodrece também. Aí começaram a viajar de novo.
Andaram, andaram, comendo fruto que não é bom. Aí
chegaram num lugar, “Vamos passar dois dias aqui pra ver
se nós conseguimos comida enquanto Cutia acha outra.”
Já tão sabendo que ele consegue. Aí pa- raram dois dias lá.
Cutia vai pra lá, vem pra cá. Achou pé de banana. (Rapaz,
falando nisso lá no pé do Monte Roraima, já ouvi dizer que
tem a terra boa, fecunda, ela dá banana assim [sinal de
tamanho grande com as mãos], estavam me falando. E pé
de ubim que por aqui, nessa mata, é assim [faz gesto de
tamanho pequeno]. Lá não, lá é assim [de tamanho maior].
Lá no pé do Monte Roraima, segundo me falaram.) Tão
vindo de lá pra cá, saindo de Monte Roraima, eles tão
saindo. Aí Cutia, porque já tava acostumado a conseguir.
Um dia, achou essa fruta de banana, pé de banana, e
comendo não trouxe nada...
DF: De novo...
CF: De novo, porque ele tá sabendo que outro compa-
nheiro é muito valente pra derribar. Em vez de comer o
que tá no chão, ele fez foi derrubar o pé dele. “Agora eu
não vou contá pra ninguém mais não. Chegou”, “Olha
aqui, umbora comer.” AÍ trouxe fruta que não era boa. Aí
[sopro de peido]. “Ah! De novo, ele tá peidando banana...”
“Será que ele achou pé de... Será que ele achou banana? O
que é que ele comeu? Abre a boca dele!” Era migalha,
resto de banana.” É banana! Amanhã que eu vou
descobrir”, o Quati falou. “Tá bom!” Aí sim, tava já
sabendo que ele é muito esperto também, o akuri, nós
chamamos akuri, a cutia.
DF: A cutia.
CF: Akuri. Na minha língua eu falo akuri. Ele tá sabendo
que eu estou falando do animalzinho. Ele foi atrás. Chegou
4 Projeto: Panton
no pé de banana, lá por cima. E Cutia, coitado, querendo
olhar,
Projeto: Panton 4
nada, não via nada. Chegou lá e ajuntou a fruta que não era
bom de comer e apanhou, apanhou. “Ah, não tem nada
não, rapaz, pra comer! Umbora comer essa fruta, fruta que
não é bom pra comer.” “Olha, tu achou banana, né?”
“Não.” “Sim, tu achou! Descobriu.” “Não, não achei não.”
“Olha, ele trou- xe...” “Sim, eu sei. Amanhã nós vamo
comer lá.” Aí foram. Aí foram embora. Chegaram lá no pé
de banana. Banana naja, baié, banana comprida. De tudo
pé de banana. Tudo, tudo, tudo, tudo, de tudo. As bananas
que existem aqui no mundo agora foram espalhadas a
partir daquele momento. Chegaram lá, banana no chão,
tudo apodrecendo, caindo, madurinha. “Umbora comer!”
Aí olhou, Xicö tava olhando por cima: “Lá tem, de novo,
amadurecendo. Vou derrubar.” “Não senhor!” “Sim, vou
derribar!” Aí começaram. Pegou o machado. “Pan.” Rapaz,
esse menino foi muito ruim. Em vez de embaixo, estando
lá embaixo, ele derriba. Aí o que é que ele faz? Aí tava
derrubando já. Nesse momento, Cutia, coitado do Cutia,
era assim, pode ser que ele tinha couro branco ou couro
preto, assim, uma coisa assim, do Cutia, né! Então, cada
vez que dormiam por aí, nas matas, tiravam mel, nós
chamamo wuan.
DF: Wuan.
CF: Mel. Wuan é nome da gente também. Juan é João.
Mas na minha língua é wuan, não é Juan. Sim wuan. É
abelha.

9
MF: Mel de abelha.
Há certa incoerência no
uso do feminino ou plural,
CF: Mel de abelha. Aí, ele amontoava cera, cera de mel.
entre “esse Cutia” e “essa
Cutia”. Como não foi pos- Como essa9 Cutia fez? Conseguiu um pau cheio de oco por
sível rever o informante,
pois ele faleceu, optamos
dentro. Tu sabe que ele tampou todos os buracos que
em deixar como está, já apareceram com essa cera viva que ele ajuntou da abelha.
que Cutia, nesse caso, é
uma personificação Fechou, amontoou lenha, amontoou banana que tava
mitológica. recém-
-caída, verde, tudo amontoou dentro do oco de pau. E
ficou lá, enterrado. Ele se preparou, esse Cutia se
preparou. Os outros Macunaima, Xicö não, não se
prepararam não, não se preveniram. O que é que eles
fazem? Aí começou cair pé de banana. Tu sabe que tem
4 Projeto: Panton
muitas árvores,
também grande
igual a ele.
Engatou. O cipó
aguentou na ponta.
Aí obrigam coitado
do Quati: “Vai torar
aquele cipó, senão
não cai.” Ele,
Projeto: Panton 4
tu sabe que ele roi também ligeiro.
D F: Ele é um roedor.
CF: “Tchan.” Torou. Caiu. Saiu muita água do pé de
bana- na. Tu sabe que banana tem muita água. Sim. Aí
tinha muita água. Tinha dois pés de palmeiras, um de najá,
um de... Deixa me lembrar: outra palmeira, tem de várias
qualidades de palmeiras. Aquele tal de pé de bacaba, mas
não é bacaba desse o’ nörö alhö ytesek mörö ko ke? Anek,
mayi.[Como é o nome dessa palmeira? É aquele?] Patauá,
pé de patauá, tinha pé de patauá e pé de inajá bem perto
assim como tá aqui [aponta com o dedo pra um lado], e
outro também aí [aponta com dedo pro outro lado]! Pé de
najá, pé de patauá. O que é que Macunaima faz? Vão subir
lá. Volta a subir no pé de najá. Ficaram lá. Encheu d’água.
Cutia lá dentro d’água. Tudo tampado nesse buraco. Ficou
lá. Passa ano, passa mês. Essa fruta que tava junto com ela
lá desses Macunaima e Xicö tava ainda verde, né! Passaram
meses. Aí ficou de vez. Estavam comendo dessa fruta.
Patauá e inajá. “Irmão!”, tava escuro. Escureceu. Não sei
porque escureceu. (Esse também não tem como entender,
detalhadamente não posso dizer, porque não sei por que
tava escuro assim). Ficaram lá, tem- po. Aí já tava
madurando. “Irmão, joga da tua fruta pra mim provar.”
Xicö fazia o quê? Xicö era ruim, eu não estou dizendo que
ele era ruim. Aí pegava a fruta e descascava, passa no
bicho dele [pênis] e “tchan.” pra ele: “Tá gostoooso?” “Tá
bom, tá gostoso.” E ele achando graça do irmão dele mas
não descobriu o que ele tinha feito pro irmão dele. Não
descobriu o que é que tava fazendo pro irmão provar essa
fruta. É por isso que a partir desse momento essa fruta é
assim, liguenta, não é solta assim como bacaba, ela é
liguenta assim, cheiro de graxa, cheio de graxa assim. Aí,
tempo depois, secou. Aí provaram como este caroço que
estavam comendo, “tibum.” lá em baixo. “Já tá ficando
irmão, umbora descer.” Depois, parece de 150 dias, secou.
Aí desceram. A Cutia abriu esse oco de pau que tava
dentro. Abriu, saiu. Essa aqui traseira [passa a mão nas
nádegas] ficou encarnadinha por fumaça, por causa da
fumaça. Essa é a história de Macunaima. Essa é que é a
4 Projeto: Panton
história de Macunaima. Cutia não era assim não. Era
Projeto: Panton 4
branco... parece que era ou preto, não sei. Agora, quando...
10
com essa fumaça, ficou tudo amarelinho assim. 10
Referência ao motivo
pelo qual a cutia
(mamífero da família
DF: Fumaçado...
Dasyproctidae, com sete
especies no Brasil) pas- CF: Fumaçado, amarelo a partir daquele momento. Aí
sou a ter listras nas costas.
foram embora. Chegaram. Este toco aparece aqui no
Monte Roraima, até agora aparece. Nós chamamos, na
nossa lín- gua, wadakapiapö, wadakapiapö [...]. Esse pé de
banana se chamava wadaka.11 Tu sabe que é enorme, é
11
Árvore mítica, da qual,
com sua queda, teriam-se grande esse pé de banana que chamavam wadaka, piapö é
originado o Monte Rorai- toco. Aqui, por aí, ficou essa história porque pra lá, mais
ma, bem como os
principais rios da região. pra trás, não estou sabendo, não sei como continuar.
Depois passaram por aqui, por outras coisas por aqui;
vieram por aqui, chegaram aqui, por aqui. Olha aqui, aqui
tem a história também, continuando por aqui na beira da
Pedra Pintada, aqui no Parimé, na beira do Parimé, tem
12
uma pedra. Ele escreveu. Isso aí tudo escrito com meu
O filho de Clemente
Flores filho, tudo desenhado.12 Ele não tá vindo lá não. Ele foi
tornou-se artista plástico
indígena reconhecido em
passar a noite aqui, lá caçando pra ver se ele vai voltar
Roraima, seu nome é amanhã. É por isso, é por isso que a lenda disse que pra cá
Mário Flores.
caiu mais fecundo o galho de banana, pra cá mais fecunda.
É por isso que aqui dá banana, dá de tudo, porque caiu pra
cá, porque o galho que é mais fecundo caiu pra esse lado
13
Hoje um dos principais
do Brasil. Aí chegou na Pedra Pintada,13 chegou lá e pintou.
sítios arqueológicos de Tá ali a letra do Macunaima. Até eu mesmo vou lá e estou
Roraima, principalmente
iconográfico, localizado na olhando lá. Assim foi essa história de Macunaima, porque
Terra Indígena São Marcos.
já estou me esquecendo porque não estou; eu não estou
repetindo pra você, estudando na Bíblia, então vai
acabando.

DF: Eu sei, se não repetir vai ficando pra trás


CF: É... Agora, a escrita, o desenho tá tudo completo, o
que não me lembrava bem, tá tudo escrito no...
DF: No desenho.
CF: No desenho, sim senhor. Essa foi a história de
Macu- naima. Essa foi a história de Macunaima. Ainda mais
que... Não, essa aí é outra história... Assim foi seu, como é
o nome do senhor? Que me...
4 Projeto: Panton
DF: Devair. DF: É porque Macunaíma é
o título de um livro.
CF: Devair...
DF: Mas é Antônio também. O senhor não tava errado
naquela hora não, porque é Devair Antônio, entendeu?
CF: Hum...
DF: Eu sou Devair Antônio.
CF: Hum... Devair Antônio.
DF: Não tava errado não, é Devair Antônio.
CF: Hum... Assim foi essa história, meu irmão, porque
eu gosto de falar assim, mas tu sabe que ninguém
sabemos14 falar bem o português, porque somos indígenas
taurepang.
DF: Claro que sabe falar! Eu entendi tudo, como é que
não sabe!...
CF: Eh...
MF: Agora a história de Macunaima...
DF: Algumas coisas eu já tinha ouvido. Eu fui, eu estive
na Venezuela há uns três meses. Aí eu tava lendo a
história. Tem até uma revista lá que se chama Kuawä. O
nome da revista conta um pouco da história da árvore da
vida. O quê?
MF: Do Makunaimö.
DF: Eh, também...

CF: Sim, porque os brancos chamam assim: Macunaima.


Mas na nossa língua indígena, própria, disse Makunaimö.
DF: Makunaimö.
CF: Assim que nós falamos.
DF: Makunaimö.
CF: porque ninguém... Makunaimö... Agora o branco
diz: Macunaima. Agora inventaram um Macunaíma. Não é
Macunaíma. É Makunaimö.
Projeto: Panton 4

14
Observe que “ninguém.” funciona como negativa. Quando
tenho que ade- quar, sou obrigado a co- locar um “não”, pois não
basta colocar um “nós”, não é isso que está na es- trutura da
linguagem do informante. Opto em deixar no original, pra
conservar a beleza do estilo do seu Clemente Flores.
5 Projeto: Panton
CF: Isso aí, puseram pra ser o título do livro, mas podia
ser assim. Mas agora o nome próprio é Makunaimö.
DF: Ele fez de propósito. A pessoa que escreveu esse
livro foi em 1927. Não do século agora, mas faz noventa
anos já. Foi Mário de Andrade, ele já sabia essa história.
CF: Agora, outra coisa que eu estou... que tem outro
tipo de historiadores, ele conta diferente. Aí tu vai falar
com ele, tu vai anunciar, tu vai perguntar dele, ele vai
contar em outra forma. Assim, porque a história que sai
mais correto é dos taurepang. Agora, arecuna errou,
arecuna errou, porque eu vi na escritura de... não sei de
quem foi... quem foi que escre- veu? Foi Parimé, Parimé
Brasil, que ele deu um livrinho pro meu filho, mas não fala
correto como você, ele fala errado.
DF: Eu sei, entendo... Deixa eu anotar aqui. O nome
com- pleto do senhor é...
CF: Clemente Flores.
DF: Clemente Flores. Seu Clemente, o senhor sabe a
idade do senhor?
CF: Sessen... agora assim idade, por cálculo, eu estou
com sessenta e oito. Porque naquela época, também, meu
pai, coitado, não sabia dizer que hora, em que mês, em
que ano, em que dia...
DF: Eu sei, eu entendo.
CF: É por isso que quando o filho do índio tá assim [faz
sinal com a mão, em relação ao tamanho], tá como dois
anos, não, dois anos não, até ano pode ser. Eu tinha sete
anos, me colocaram pouco... Sim, calculando assim, agora
eu estou com sessenta e oito anos.
DF: Ah! Entendi.
CF: Sessenta e oito... Naquela época ninguém sabia,
nin- guém se dava conta, se, por exemplo, tu, se alguém
vier me perguntar: “Que dia nasceu teu filho?” “Meu
senhor, a lua tava bem por aí quando nasceu meu filho.”
DF: Ah é!
CF: Mas qual era, qual era a lua? Janeiro? Fevereiro? Ou
Projeto: Panton 5
Março? Abril? Ou Dezembro?
DF: Eu sei, porque são doze por ano.
CF: É isso aí. Assim foi naquela época, meu pai não
sabia. Depois de velho, depois de me gerar, meu pai
aprendeu a ler, depois de velho, assim como idade dele.
Depois de velho ele aprendeu...
DF: O senhor é casado?
CF: Eu sou casado.
DF: Casado. Quantos filhos?
CF: Tenho sete filhos.
DF: Ah! Sete filhos.
CF: Tenho sete. Quatro homens e três mulheres.
DF: Bem dividido, né?
CF: Hum? Agora, os netos, tenho vinte e seis netos; do
Florentino, do Pedro, do Glorentina, da Fidelina, e hum...
Mário, Aurimelia, vinte e seis netos. Netos e netas.

DF: Uma dúvida só: vocês têm um nome em taurepang


e outro em português? Ou é só em português?
CF: Não. Em português, porque é verdade, porque na-
quela época os nomes...
MF: Taurepang é a nossa linguagem mesmo.

DF: Eu sei. Mas o nome, por exemplo...

CF: O nome não. Nome escrito foi [dado] pelos


brancos. Agora naquela época que ninguém sabia o
número e nin- guém sabia as letras. Então, esse aqui eu
posso decidir, meu filho, digo, eu diria pra ele wakarampö,
esse nome, wakaram- pö, wakarampö é aquele furacão
também. Ninguém sabia as letras assim como ABC, por
isso que eu poderia chamar ele, eu chamo ele pra batismo
dele Kaikarua, Wey Kurata [Sol], eu poderia falar assim, só
pra dizer o nome. Agora nome, agora que nós estamos
recebendo só em português...
DF: Ah sim.
5 Projeto: Panton
CF: Sim senhor. Assim, que indígena, ninguém temos
nome...
DF: Eh, não colocam nome indígena não.
CF: Não, não. É por isso, sempre, muita das vezes eu
penso que o “seu Clemente”, meu apelido podia ser tau-
repang, Clemente Taurepang, mas não é taurepang, Usted
es taurepang. Assim como nós poderíamos ter esse nome,
mas chegou apelido, Flores, Flores. Aí tão querendo cortar
Flores do Manoel.
DF: E ninguém sabe de onde veio Flores...
CF: É isso aí.
MF: Até eu não sei, eu mesmo não sei de onde vem...
DF: Só tem a curiosidade?
MF: Eh.
DF: E o senhor tem mais alguma história assim? Porque
tem o Macunaima, tem o...
CF: Tem! Agora...
DF: Makunaimö.
CF: Makunaimö é minha língua.
MF: É Makunaimö.
DF: Makunaimö. Falei certo ou não?
MF: Na nossa língua é Makunaimö. [...]
MF: Agora Macunaima...

CF: Isso aí já, isso aí na língua dos brancos.


MF: Makunaimö.
DF: Ah, sim, [...] sobre o Canaimé, qual é a visão do se-
15
nhor?
Quando me encontrei
com o filho de Clemente
Flores, Mário Flores, e per-
CF: Ah! Canaimé ainda existe, Canaimé.15
guntei sobre a morte de
seu pai, me disse que ela
DF: Ainda existe?
teria sido ocasionada por
Canaimé. CF: Ainda existe esse rapaz, tão perseguindo nossa vida,
Projeto: Panton 5
rapaz. Canaimé é aquele que, na linguagem, em português
se chama bandido.
DF: Bandido.
CF: Malandro, é ladrão. Isso aí se chama Canaimé. Isso
aí, na linguagem, estamos falando na linguagem de
português. Agora na minha língua [é] Kanaimö.
DF: Kanaimö.
CF: Agora outros dizem Canaima. Na Venezuela dizem
Canaima. Brasil diz: Canaimé. Agora na minha língua
Kanaimö.
DF: Kanaimö. [...]
CF: Isso.
MF: Têm pessoas que aprendem assim, tem gente que
não sabe. Então, pergunta de alguém aí.
CF: Como chama... Canaimé, e macuxi chama diferente,
já muda cada um.
DF: Cada etnia tem a sua variação.
LS: Variação linguística, né?
DF: Justamente.
MF: Agora, o senhor tá conversando com os próprios
taurepang.
DF: Estou vendo.
MF: Não é macuxi...
DF: Eu sei disso. É porque hoje muita gente chama...
LS: Legítimo, né?
MF: Muita das vezes eles, têm cobrado a gente,
quando a gente chega em Boa Vista, eles ficam olhando
pra gente. Aí “Vocês são brasileiros?” “Por quê?” “Porque
são diferen- tes.” Quando a gente vai pra Venezuela:
“Vocês não são venezuelanos?” “Por quê?” “Ah! Vocês são
diferente.” Então, ninguém é brasileiro. Daqui do centro,
ninguém mora lá no centro, em Bolívar, a gente mora aqui
na fronteira. Então, eles consideram a gente como
peruano.
5 Projeto: Panton
DF: Quem considera? Você fala os...
MF: Eh... Aqui, o pessoal de Boa Vista. Eles dizem assim:
“Vocês são peruano?” “Não, somos indígena.” “Mas mo-
ram aonde?” “Na fronteira.” “Ah! Tá certo, tem razão!” É
assim...
DF: Interessante isso.
MF: Quando a minha irmã foi pra Bolívar, levou filho
dela que entrou no fogo, se queimou, então mandamos
pra Bolí- var. Quando ela chegou no hospital, a doutora,
eles ficaram admirados. Disseram assim: “Você é filho do
venezuelano, a sua mãe é brasileira.” Se ela dissesse assim:
“Eh, minha mãe é indígena brasileira, meu pai
venezuelano.” Olha aí. Descobriram lá em Bolívar, hospital
de Bolívar. Então, eles consideram a gente como peruano.
Não é brasileiro, não é venezuelano.
DF: O que é difícil, né? Também, né, porque...
MF: A gente anda, na verdade, a gente tem costume
[de] usar camisa, é cinturão, calçado. Uma vez nós
chegamos lá na Assembleia Legislativa, três irmãos. A
gente tava andando ali, aí veio uma mulher dizer assim:
“Vocês são da onde?” “Somo daqui, de Pacaraima.” Aí
voltamos perguntar: “Por quê?” “Não, porque eu nunca vi
índio andar. Eu conheço yanomami, eu conheço juapiri, eu
conheço maiongong, tão diferentes. Agora eu estou aqui
olhando vocês, vocês não são indígena?” “Nós somos,
sim.” É assim, eles estranham muito com a aparência... eu
acho que são... não sei... eu acho que eles veem a gente
como Kanaimö [risos]
DF: Eh, e isso é complicado, porque já morar na
fronteira é complicado. É brasileiro, é venezuelano, né?
CF: Sim, porque estamos na fronteira, então pra morar
na fronteira tem que ter dois idiomas. Quem chega na
Venezue- la: “Oh cuñal, como tá tu?” Tu chega lá na
Venezuela “¿Tu eres índio? ¿Tu te parece colombiano?]” Tu
parece colombiano. “Yo no soy colombiano, pues
colombiano es malandro.”
Projeto: Panton 5
DF: Mas eu quero dizer o seguinte, em relação à identi-
5 Projeto: Panton
dade, que acaba que você vai ter que falar assim: “Não, eu história, não é do passado,
sou indígena”, mas é um indígena que é brasileiro não é do Macunaima, [que]
também, mas que também, vocês também tem uma não é verídica. Porque eu,
origem muito próxima da Venezuela, porque, inclusive, a quando nasci aqui, passei a
família veio de lá, não é? O patriarca veio de lá, não foi doença, epidemia que
isso? E vocês vieram com 15 anos ou mais velho um
pouquinho, não foi?
MF: Com doze anos, isso.
DF: Com doze então. Isso tudo na cabeça da pessoa
tem que... Bom, pelo menos eu penso assim, eu não sei,
né?
MF: Eh, então, eu tenho um parente lá no Amajari. Ele é
até um professor, é taurepang, mas ele não é falante, 16 ele
estuda lá também no Insikiran.
DF: No Insikiran.
Alguém: Ele falou que ele representa taurepang, mas o
problema é que não é falante... mas ele representa os tau-
repangues lá dentro.
DF: Entendi.
MF: Então, acontece. Tem uns que são taurepang, da
etnia taurepang, só que já perderam a...
DF: A fluência, não é? A fluência na língua. E a língua
aca- ba sendo uma resistência. Uma resistência da
comunidade. Uma identidade da comunidade. Vocês se
tornaram muito mais fortes quanto à identidade, “Nós
somos taurepang. Nós temos a língua taurepang. Meus
filhos sabem taurepang.” Isso é muito importante. Eu acho
que essa é uma questão da identidade. Mas é, seu
Clemente, alguma história assim que o senhor saiba, de
alguma parte da história do povo do senhor?
LS: Do Canaimé...
DF: Eh, do Kanaimö. E outras coisas. É pra gente
registrar mesmo. [...]

CF: Meu irmão, agora nossa história que nós temos,


como fundamos esse Sorocaima I. Eu estou falando a
Projeto: Panton 5

16
Muito forte na comunida- de a relação entre saber a língua
materna indígena e ser índio.
5 Projeto: Panton
chama, morreu muita gente aqui. Nosso costume é assim,
costume indígena dos taurepang: se passa uma doença
por esse lado, então desse lado não passa. Então, meu pai
me levou fugindo pra Venezuela, por isso foi que aprendi
falar mais espanhol do que português. Agora, eu estou
apren- dendo falar português, depois de velho, assim
como meu pai aprendeu a ler depois de velho. É por isso.
Isto aqui foi fundado em 1915; 1915, sim senhor. 1915,
segundo como vos falo, porque meu pai que pode explicar
tudo, mas ele tá sur- do, não ouve, não fala, não tem a
vontade de falar, porque tá todo cansado, desmaiado, tá
velhinho.17 Ele parece, ser capaz de ter noventa, cento e dez
17
Pouco tempo da morte
de Clemente, seu pai, o
patriarca da comunidade, anos, já tá velhinho, meu pai.
também faleceu.
DF: Cento e dez?
CF: Cento e dez. Pode ser que ele tenha cento e dez ano,
porque tá muito velho demais. Tá cambaleando...
DF: Eu vi ele forte esses dias ali, comendo, sentado, to-
mando uma Coca-Cola. Ele gosta, não é?
CF: Sim. Agora. [risos]
LS: Comendo pimenta com a colher, ele pegava com a
co- lher de comida, botava na boca. Aí pegava outra de
pimenta e botava em seguida.
DF: É assim mesmo? Eu tava vendo ele comer faz
poucos dias.
CF: Parece que pimenta é remédio pra ele, porque, se
eu como assim tanto pimenta, não fico alegre não, fico
triste. Se não tem pimenta, fico triste. Mas não é tanto
também, só pra condimentar comida, é bom assim, agora
se tu coloca demais, aí...
DF: Perde o gosto.
CF: Faz mal pra tu. Esta história foi, esta região de Soro-
caima I tava cheio de gente, mas quando passou essa
doença muita gente morreu. Hoje três, quatro pessoas
pegavam febre, amanhã estavam na tumba.
DF: Isso foi quando mais ou menos?
CF: Isso foi antes de 1915. [...] Então, meu pai me levou
Projeto: Panton 5
fugindo pra Venezuela, né? Me criei lá. Aí nós tornamos a
vir pra cá, aí isso aqui ficou tudo abandonado. Morreu
muita gente, e os outros foram embora, fugiram pra outro
país, pra Venezuela, outros pra Guiana. Eu tenho família na
Guiana por- que, como se diz, jamais saí pra lá. Aí vim com
treze anos pra cá, ajudar meu pai. Isso aqui [aponta pro
irmão mais novo] tava pequenininho ainda. Estavam com
sete ano, outro oito, outro dez [faz referência a outros
irmãos]. Eu vim aqui, nós fizemos roça aqui.. aí aqui não
havia nem estrada. Aqui era caça: paca, veado, catitu,
porco do mato, onça, jacu, nambu, mutum. Aqui a gente
vivia tranquilo. A gente vivia tranquilo. A gente fazia
plantações de macaxeira. Conhece macaxeira?
DF: Conheço.

CF: As nossas mulheres faziam beiju. Ninguém conhecia


muita farinha, ninguém conhecia, senão beiju. Na
Venezuela chama casabe.
DF: Eu sei. Eu conheço.

CF: Aí foi que nós pensamos. Depois que eles se


fizeram homem, aí começaram a fazer roça. É por isso que
eu já aprendi mais espanhol do que português.
DF: Ah, entendi.

CF: Agora já estou querendo esquecer do castelhano,


porque já estou no Brasil falando.
DF: Eu também estudei um pouco de castelhano [...],
na escola.
CF: Ah! Tem escola também que ensina espanhol, né?

DF: Tem. Tem espanhol, inglês, tem de tudo, né, tem


até se você quiser aprender grego você aprende. Italiano,
francês.
CF: É por isso que nós estamos por aqui. Agora já esta-
mos quase civilizados, mas não tenho carro, por isso que
eu ainda estou do mesmo jeito que tava. Agora, quando eu
andava assim no volante, eu era branco mesmo. Agora
não, eu estou andando a pé mesmo, chinelazinha no pé,
6 Projeto: Panton
eu vou
Projeto: Panton 6
18
Nesse momento, seu pegar minha18 camisa, eu vou pescar. Eu pego meu timbó,
Clemente havia dito “meu
camisa”, tal difiuldade em
vou botar timbó no rio pra pegar peixe. Tudo isso aí
língua portuguesa é acontece. Gente vivia feliz, meu irmão, a gente vivia feliz.
comum em falantes que
não tem o português Depois que passou estrada por aqui, sem dar nenhum
como primeira língua. Esse tostão pra nós. Sem dar nenhum centavo pra nós, eles
tipo de flutua- ção ocorreu
várias vezes em falantes passaram por aqui ganhando dinheiro. Olha aqui, gente
em que a a primeira língua que passou por aqui. CIR, organização CIR19 roubou muito
era indígena.
19
dinheiro. O pagamento desse negócio que fizeram.20
Conselho Indigenista de
Roraima. Parece que cento e poucos mil reais que eles tiraram. Era
20
Referência ao chama- do pra cá, parece que vinte e cinco mil reais, pra cá, pra
Linhão de Guri, cabos comunidade né, esse dinheiro. Vinte e cinco pra cá, vinte e
elétricos que cortam toda
reserva São Marcos, le- cinco pra ali, vinte e cinco assim. Só eles do CIR comeram
vando energia elétrica da tudo. Agora outra lei que aparece pra nós, é muito
Venezuela para o Brasil.
preocupante, sim senhor, embora que o policiamento,
entra vereador, entra governador, estou passando esta
história que tá acontecendo aqui entre nós. Chega Meio
Ambiente: se eu vou derribar uma roça, uma rocinha por
aqui, tu tem que pagar trezentos; se der uma linha, duas
linhas, tem que pagar quinhentos reais. Pra quê? Se eu
estou derribando na minha área?. Se eu vou botar timbó
no igarapé, tu vai preso, e por que pela estrada vem
maldade? Esse aí que me preocupa. Às vezes, a gente fica
triste, às vezes a gente chora, meu irmão, isso aí que nós
estamos sentindo. O nosso pessoal, tuxaua Geraldo, só
que segundo tuxaua. Daqui da comunidade, tudo
taurepang. Nosso irmão, caçula do nosso pai, Astromarino,
ele é tuxaua. Uma vez nós derribamos duzentos metros
quadrados, ele derribou trezentos metros quadrados, ele
derribou duzentos metros quadrados. Outro derribou du-
zentos metros quadrados. No tempo da queima avoa tudo
essa montanha, porque, quando tá seco, ninguém vai
apagar. Quem vai apagar fogo dele? Ai, ai,ai. Aí veio
helicóptero, veio filmando: “Derrotaram as matas.”
21
Nesse ponto, ele “Vamos cobrar eles.” Aí chegou cobrando. Veio cobrar
pergunta em taurepang
nove mil setecentos e cinquen- ta.21 Primeira cobrança.
qual o valor da multa ao
irmão Manoel Flores. Passou. Ainda mais fizeram. Cajado de dezesseis mil e não
sei quanto. 2ª cobrança. 3ª chegou quase vinte e cinco mil
reais. Da onde o índio vai tirar dinheiro? Tu não pode
derribar muita mata, porque vai estragar madeira. Madeira
6 Projeto: Panton
não estraga, não.
Quando a gente vai
derribar roça, nós
estamos plantando
macaxeira, maniva
de fazer farinha.
Projeto: Panton 6
Essa madeira que caiu no chão, estamos aproveitando pra
torrar farinha. Não estraga, não. Não estraga! Nós
estamos aproveitando. Gente não trabalha com máquina,
senão com a mão, manual. Então, nós temos que trazer
lenha pra poder torrar farinha. Essa madeira não estraga,
não. Nós aproveita- mos. Até agora, essa época que nós
estamos falando com o senhor, nós sempre perseguido,
sem motivo algum. Ele não matou. Ele também não
matou, mas sem motivo tão perse- guindo. É por isso aí, da
minha parte, eu estou pensando de me mudar pra
Venezuela, porque estão me perseguindo, assim como
vento me levou fugindo da doença, eu tenho que fugir pra
Venezuela.
DF: Procurar o que é melhor, né?
CF: Sim, senhor. Abandonar Sorocaima. Ele [o indígena]
vai pra onde quiser. Se ele quer ir pra cá, ele vai pra cá. Isso
aqui fica abandonado. A polícia chegou aqui; bateu,
bateram em muita gente aqui, nove persona. De mal! Até
agora esse meu filho que [eu] tava falando, desenhador, 22
22
O filho de Clemente se
identifica também como
foi batido, muito [de] mais, e tá sentindo a dor onde Mário Taurepang, além de
encontrar referências a
bateram nele. E por que é que vem maldade pela estrada?
Mário Flores e Mário Flores
É por isso que nós não queríamos, nós não queríamos Taurepang na Internet.
estrada, mas vieram pela porta da gente.
DF: Bem no meio, né?
CF: Sim senhor...
DF: Bem no meio da comunidade. É mais, é o que eles
chamavam de progresso, não é?
CF: Hum... Progresso é só pra eles. Progresso pra eles.
Sim senhor, meu amigo, assim que a história ficou por aí...
Estamos falando outra coisa que, que nós fizemos...
DF: Não, mas isso também é importante, né. Inclusive
essas perguntas todas a gente fez pro Manoel. Mas é, tá
tudo dentro, né. É claro, como ele falou assim: “Não, o
senhor pode deixar que o meu irmão vai contar as
histórias lá do...”
MF: Macunaima.
6 Projeto: Panton
CF: Contar Canaimé também.
DF: É porque a gente tá preocupado com as duas ques-
tões: de registrar tanto essa indignação da comunidade em
relação a muita coisa, mas também registrar a questão das
histórias da comunidade. Essas histórias igual do
Makunaimö e outras que tenham. Assim, as duas coisas. Se
o senhor souber de uma outra história que o senhor queira
contar.
CF: Meu querido, a história que eu posso dizer, não pa-
rece, não é muito importante, mas eu vou contar só uma,
curtinha.
DF: Mas é que não importa, não precisa ser grande,
pode ser pequenininha, só que o senhor lembre, pra gente
registrar.
CF: Esse que tava falando, timbó. O senhor conhece
timbó? Que mergulha dentro d’água pra poder matar
peixe.
DF: Eu nunca vi fazendo. Nossa, eu estou muito curioso,
me falaram já que é uma planta que você amarra...
CF: Sim.
DF: Machuca.
CF: Sim.
DF: E joga na água.
CF: Sim, é um cipó, ele é um cipó, mas amarga somente
pra pegar os peixes.
DF: E joga lá. E eles ficam bobeados, não é? Eu já sei da
história, só não sei como fazer.
23
Vale ressaltar a maestria
do senhor Clemente Flores CF: Esse daí, tu sabe como sair? Tu sabe como sair
como contador de história. assim, de raiz, timbó. Meu pai contando essa história, que
Ele faz modulações na voz
de acordo com as perso- teve um rapaz, uma criancinha de mais ou menos três anos
nagens, com o que elas di-
zem. Há nítida diferença
mais ou menos. Ele era chorão, chorava demais, chorava.
de quando ele fala de “Te cala, meu filho [imita som de choro]. Te cala, meu
aspectos da vida cotidiana
da comu- nidade para
filho!”18 Até de noite ele chorava. Aí mãe dele, o que é que
quando ele está narrando ela faz? Aí ela saiu com esse filhinho chorão: “Não quero
uma história mítica de seu
povo. filho chorão, não! Ah, raposa, leva esse menino pra ti!” Aí
Projeto: Panton 6
deixou lá fora.
Fechou a porta,
ficou a criança
chorando. Destar
que a raposa tava
6 Projeto: Panton
andando, dona Raposa. Aí “Umbora, meu filho.” Pegou
essa criança e levou. Aí ficou de noite, “Destar, será que
ele dormiu? Quando voltaram, não tava mais não. Raposa
já tinha carregado. Isso aí é princípio de produzir essa raiz
que eu tô falando.”
DF: Mas como, que eu não entendi?

CF: Ele disse assim, porque menino era chorão.

DF: Isso eu entendo.


CF: Sim, menino chorão. Então, a mãe dele, a mãe dele
jogou lá fora pedindo que raposa levasse...
DF: Raposa levou.
CF: Sim, raposa. Destar, que tu sabe que raposa de
noite anda ao redor da casa, né? Andando pra pegar
galinha. Então, em vez de galinha, pegou a criança e levou
embora.
DF: E aí...
CF: E passa, e passa, e passa tempo.
DF: Ah sim!
CF: E passa, e passa, e passa tempo. Aí ele ficou já
homem. Aí dava aquele ananás igual como, como abacaxi.
Ananás é silvestre, né?
DF: Eu vi um dia lá no Tepequém.

CF: Aí ela dava porque se acostumou como o Raposo,


dona Raposo. Aí um dia ela disse, mais ou menos essa
hora. Eu, na minha opinião, eu calculo assim, essa hora, ela
foi no pé do coisa, no ananás: “Fica aqui, meu filho, eu vou
apanhar ananás pra ti.” Destar que ela deixou ele no
caminho da Anta também. Também deixou no caminho da
Anta. Coitada da Raposa. Esta história não é verdade, mas
eu fico sentido. Coi- tada da Raposa, que [a dona Anta]
tomou o filho da Raposa. Essa Anta, dona Anta, tomou,
roubou o filho da dona Raposa. Ela não tava sabendo,
coitada, tava procurando ananás por aí. Aí, “Meu filho?”,
não respondeu. Passou: “Umbora co- migo, meu filho?” E
Projeto: Panton 6
Anta é grande, né. Colocou no pescoço,
6 Projeto: Panton
levou. Já tava também um homenzinho. Aí chegou lá:
“Cadê meu filho?” Não, não achou. Maldita. Aí viu rastro
de Anta, de dona Anta. “Maldita Anta! Por que tu levou
meu filho? Você vai me pagar...” Ela amaldiçoou, Anta não
tava nem escutando que [a dona Raposa] tava falando. Aí
Anta, essa senhorita, né, pode ser, eu calculo assim, na
minha opinião era senhorita. Não era anta velha, não. Aí
chegou. Passaram meses, passaram meses, passou ano. O
que é que ela faz? “Tu vai ser meu marido.”, a Anta [disse
pro menino]: “Tu vai ser meu marido.” Será? Se acostumou
com ela. Ele [o rapaz] ficou todo cheio de carrapato. Tu
sabe que anta tem muito carrapato, né? Ele ficou cheio de
carrapato. Se acostumou com ela também como se
acostumou com dona Raposa. Aí, aí um dia tava trepando,
né, com Anta. Ela ficou grávida desse rapaz. Já tava
homem, aí: “Eu tô grávida, tô grávida. Não vai contar pra
ninguém que nós tamo aqui, nós tamo no capoeiro do teu
pai.” Esse que soltaram pra Raposa levar. Estavam
próximos da casa do pai dele. “Nós estamo no capoeiro do
teu pai. Nós vamo comer banana que tá por aí caído. Nós
vamo ficar aqui. Se tu quiser sair, saudar teu pai ou falar
com teu pai, a casa de teu pai tá por aí assim, mas não vai
falar de mim, não, viu?” Aí ele foi. “Ai, meu filho.” “Papai
vocês me puxaram da caixa, mas foi com amor que eu vim
aqui falar com vocês.” “Ah, tá bom! Não se preocupe não.”
Aí deram caxiri, caxiri também, né. Nós chamamos caxiri,
caxiri bebida.
DF: Eu conheço.
CF: É bom, rapaz, essa bebida! Eh, caxiri é bom! Feita de
macaxeira com açúcar, quando tá bem assim azedinha.
Isso aí reanima sangue da gente. Fica forte. Mas não
embriagar, né, mas não embriagar. Aí ele ficou bebo assim,
aí: “[papai], eu já moro com uma Anta, aí, essa minha
mulher aí. Essa que é minha mulher agora, tenho um filho
com ela. Anta [está] aí nesse capoeiro.” Porque ela proibiu
ele de falar dela, mas esse rapaz também foi mal assim,
mas tava bêbado. “Umbora matar, umbora matar pra nós
comer!” Aí esse rapaz disse: “Olha, não vão matar na
Projeto: Panton 6
barriga. Matem na cabeça, senão vão matar meu filho.” Aí
foram lá. Levaram cachorro: “Au,
7 Projeto: Panton
au, au” [imita som de latido]. Jogaram dentro d’água, aí
mataram. Aí quando tiraram, saiu uma criança, o filho
desse rapaz chorão. Quando foram lavar dentro d’água, aí
foi que começou a morrer peixe. Esse aí foi que, por aí que
aconte- ceu assunto de timbó. Quando foram lavar dentro
d’água porque tava sujo. Recém-nascido é sujo, né, cheio
de sangue. Lavaram dentro d’água. Morreu muito peixe.
Não pegavam peixe. Aí ficou grandezinho de sete, oito
anos. Tinha um poço fundo. Aí “Meu filho, vamo lá
pescar!” Aí chamavam ele de Timbó. “Umbora lá, meu
filho Timbó, umbora.” Mergulhou. Esse peixe que tava
falando, aimara, trairão, poço fundo. Ali tinha bicho
também. Aí mandaram ele mergulhar por ali assim, pra
matar aimara. Aí quando não morriam, estavam saindo por
aqui, não podiam pegar. Mandou mergulhar mais pra
dentro, pai dele mandou mergulhar. “Tam!”, bi- cho ferrou
ele. Ele morreu. Ele morreu. Quando vieram pra ajudar ele,
pra ajudar esse menino morto: vieram passarão, japó,
ariramba, muitos, todo tipo de passarozinho. Aquele
mergulhão, pato, toda qualidade de pássaro chamaram
pra ajudar ele, pra tirar ele, pra matar esse bicho que
ferrou ele. Todo mundo lutou, não puderam tirar. Tava no
fundo. Agora aquele mergulhão, tem dois tipo de
mergulhão, tu sabe né? Aquele de bico muito apontado e
outro, aquele mergulhão de bico curto, igual pato, mas
não é pato, não, mergulhão mesmo. Na minha língua se
chama kuiawi, kuiawi, kuiawi.
DF: Mergulhão.
CF: Esse mergulhão que é mais valente do que o outro.
Outro se chama pereikö.
DF: Pereikö? [...]
CF: O que é que tem pra perguntar aí, alguma coisa?
DF: Tem pergunta. Mas a história tava tão boa...
CF: Não, porque timbó não foi produzido da terra assim
como a gente planta. Foi uma pessoa, nasceu sendo
timbó, ele morreu sendo timbó.
DF: O senhor já ouviu falar no fura olho, já? Aquele ins-
trumento.
CF: Não senhor.
Projeto: Panton 7
DF: Não ouviu não. É que vi lá no museu. E a minha
dúvida é: pra que é que eles usavam aquilo, né? Tem duas
pontas assim, que dizem que era usado pra furar o olho da
pessoa.
CF: Hum, não senhor.
DF: É assim: tem a ponta bem como esse negócio
assim, e aí fincava assim [em forma de garfo]. É que tem
um cabo todo enfeitado. Aí dizem que isso aqui...
MF: Pra furar os olhos.
DF: Pra castigar pessoas ruins.
CF: Ah, não senhor, não conheço.
DF: Maldoso esse negócio, né! Deixa eu ver aqui. Então,
vamos pra outra parte da entrevista, pode ser? Vocês per-
ceberam alguma parte de preconceito, por exemplo, vocês
percebem isso em relação ao indígena?
MF: Não. A gente tava relatando aquilo, sobre o Órgão
Federal que levou os indígenas, como, assim, é uma dema-
gogia, né. Apresentaram e depois não fizeram. Então, isso
aconteceu, né. Mas nesse ponto...
DF: E quero fazer uma pergunta pros dois, que é o se-
guinte: por exemplo, a Constituição mesmo ela vê o
indígena como alguém que vive no Brasil e pode viver em
outro local, não é. Mas o indivíduo, ele tem os direitos da
pessoa, o direito do senhor. Inclusive os Direitos Humanos
falam que o direito do indivíduo, eles são inalienáveis,
ninguém pode mexer com isso, até certo ponto.
MF: É verdade.
DF: Então, assim, talvez minha pergunta seja um pouco
difícil, essa palavra indivíduo eu não sei se é possível
respon- der, porque é uma coisa muito da nossa cultura.
Então, mas se vocês não quiserem também não tem
problema. Mas o que vocês entendem sobre a questão do
indivíduo, de ser humano, de ser gente. E o que é que
vocês entendem por isso? Se pudesse falar alguma coisa a
respeito.
7 Projeto: Panton
MF: Eh, sobre a Constituição, essa lei que foi, que levan-
Projeto: Panton 7
taram lá em oitenta e oito, isso tá punindo as comunida- não tem terra, tem terra e
des, porque vem a Constituição, art. 231 e 232, ampara os não tem terra.
indígenas, libera os indígenas pra que os indígenas vivam
tranquilos, nas suas terras, fazendo aquilo que eles preten-
dem fazer. Ao mesmo tempo, a própria Constituição
proíbe que o morador, o índio, não faça aquilo. Então, isso
é um preconceito. Coloca e tira. Então, o índio fica assim
perdido nesse ponto. Sempre eu estou lendo essa
Constituição, a lei ampara mais a floresta do que ser
humano.24 Começa do artigo, tem artigo que vai longe. Art.
231e 232, só vai até metade, a lei pra amparar floresta vai
mais longe.
DF: Mas o senhor não acha, por exemplo, desculpe o
corte, mas é pra complementar, que talvez a Constituição
esteja vendo o índio como se fosse um pé de árvore?
MF: Eh.

DF: Eh, por isso que eu estou perguntando sobre indiví-


duo. O indígena, o senhor e eu não temos diferenças como
indivíduos?!

MF: Não!

DF: Nós não somos pé de árvore.

MF: Ninguém é pé de árvore.

DF: É por isso que eu estou falando pro senhor, quando


perguntei sobre indivíduo é justamente por isso,
entendeu.

MF: É por isso... Então, a lei não respeita, nem respeita


e também não respeita. Um grande desrespeito. [...] Isso,
é isso que preocupa. É por isso que naquela hora eu tava
ex- plicando pro senhor: tem liderança que não entende a
lei do país. É por isso que vem representante do Órgão
Federal, da Funai, aplicando essa lei, derrubando direito do
ser humano. A gente fica perdido. Se tivesse alguém pra
esclarecer, eu acredito que todas as lideranças tinham
como se defender.
DF: Então, é justamente isso. Aquela que o indígena
7 Projeto: Panton

24
Destaque do copidesque.
Projeto: Panton 7
MF: Tem terra e não tem terra.
DF: Não é isso?
MF: Eh.
DF: Né. É como se, eu estou pensando essas coisas
agora, como se o indígena, ele fizesse parte da natureza,
como todo mundo, mas como se fosse uma árvore, como
alguém que não pudesse interferir diretamente, pensar e
agir sobre ela com consciência.
MF: Eh. Eu tava conversando com alguém sobre a
destrui- ção do meio ambiente, sobre desrespeito das
comunidades indígenas, porque, assim como nós estamos
falando, cha- maram os indígenas preservadores da
floresta, ao mesmo tempo eles chamam os indígenas
destruidores da floresta. Pra onde que nós vamos
caminhar. Pra esquerda ou pra direita. E depois eles dizem
que os indígenas, eles matam algum animal só pra se
alimentar, depois eles dizem que os indígenas matam além
de usar e deixam estragar. Então, com isso, com essa
mentalidade que vem da parte dos brancos, da
Constituição, os indígenas ficaram cercados por todo lado.
Ficaram ilhados, não sabendo pra onde vão andar, nem pra
direita e nem pra esquerda.
DF: É por isso que eu te perguntei sobre...
MF: Então, essa lei tá pressionando a gente. Tiraram di-
reito nosso, ninguém tem mais direito. O que é que eu
posso fazer? Eles não tratam. Não olham o indígena como
gente.
DF: A palavra talvez seja indivíduo, com direitos e
deveres, obrigações, como qualquer outro.

MF: Como qualquer outro. Aqui fizemos uma reunião


no ano retrasado. Então, representante do órgão federal, a
Funai, ele falou pra nós, ele falou assim: “O índio, ele quer
ter seu carro, não pode.” Ele falou assim. Por que é que ele
não pode ter carro? O índio ele pode comprar bicicleta; pri-
meiro ele tem que comprar bicicleta. Aí vai pedalar, vai
andar por aí durante um ano, três anos, quatro anos,
7 Projeto: Panton
depois de cinco anos, dez anos ele pode comprar um
carro. Se o índio
Projeto: Panton 7
comprar de um dia pro outro, então capaz de vir a punição
indígena, porque [há] desconfiança, “Quem sabe tão plan-
tando maconha, quem sabe tão contrabandeando algo
que, que é contra lei.” Então, deixa o índio andando de
bicicleta.
DF: Mesmo se ele tiver condições de comprar?

MF: Diz a Funai.

DF: Mas tá amparado em quê?

MF: Em que sentido é?

DF: Amparado em que Legislação? Se você tem as condi-


ções financeiras, você compra.

MF: Tá proibido.

CF: Outra coisa, nesse meio, porque os brancos eles têm


paciência...
DF: Não, mas é quando o senhor tiver, e assim a gente eu vim aqui. Aí, daí mesmo a
vai voltar aqui, se tiver alguma coisa, o senhor pode falar... gente começou abrir uma
roça, botar roça, plantar
MF: Ah! Tá bom. Então, ano que vem, mês de março, a
mandioca, quando não
gente vai botar timbó aqui no rio Sorocaima. Aí convidar o
senhor, pro senhor pegar peixe...
DF: Mas eu vou vir pra pescar com vocês. Não, pode
dei- xar, eu acho que por hoje, tá bom, né, seu Clemente? E
eu...
CF: Não, depois eu vou pensar quando...
DF: Justamente.
MF: Mário Roberto Flores25 levou a gente pra lá, pro
Maurak, comunidade indígena Maurak. Quando eu tava
com doze anos, ele trouxe pra nós. É no ano sessenta e
sete, no final de sessenta e seis pra setenta, chegamos
aqui. Abri uma clareira pra gente trabalhar. Veio eu,
Manoel Bento Flores e Lídia, a minha irmã. E minha irmã, a
minha irmã mais velha, Hilária, e o marido dela. Quatro
pessoas pisaram aqui, já pra morar. Foi no mês de
setembro de sessenta e sete. Aí viemos pra morar mesmo.
Depois de passar um tempo na Venezuela, com doze anos,
7 Projeto: Panton

25
Pai de Clemente e Manoel Flores.
Projeto: Panton 7
tinha ninguém aqui no Sorocaima. Só tinha nosso parente
indígena, aqui. Ele morava bem aqui na margem do rio
Soro- caima, por nome Otávio, ele morava lá. Só era ele.
Aqui era mata geral. Então, nós passamos a morar aqui.
Desde aquele tempo, desde de sessenta e sete nós
estamos morando aqui.
DF: E aí não mudaram mais?
MF: Não. É, em noventa e quatro, no ano [de] noventa
e quatro, meu pai Mário Roberto Flores, e uns três pais de
família foram morar lá pro Amajari, aonde nasceu, lá no
meio dos parentes, no Amajari. Mas como, como de
costume teve confusão, eh, sovinaram mata, sovinaram
caça, sovinaram a pescaria, tudo. Então, criaram um
tumulto. Esse pessoal veio de outra comunidade: “Nós
somos daqui.”, mas ele sabia. Mário Roberto flores é
descendente de lá, ele tem família, sobrinhos, netos e
netas, só que não quiseram aceitar ele. Depois de cinco
anos, ele foi daqui, em noventa e quatro. Foi ele, finada
minha mãe, o outro pai de família, mais outros, uns cinco
pais de família foram pra lá. Só passaram cinco anos. Aí o
pessoal, moradores botaram eles pra correr. Aí eu sei que
voltaram pra cá. Hoje, a gente vive aqui. Não assim muito
bem, mas a gente tá vivendo né, levando a vida. E lá nós
perdemos o nosso parente. Não sei o que é que
aconteceu. Ninguém sabe, nem diz de que é que ele
morreu, emagre- ceu. Era um homem gordo, se tornou
dessa grossura assim, emagreceu, emagreceu, que ele
morreu seco. E a mulher dele também morreu. Vieram de
lá, já pegaram doença e vieram morrer aqui. Eles foram
enterrados aqui. Não deu pra gente, não deu pra eles
morar. Papai foi pra lá, Mário Roberto foi pra lá, mas eu
fiquei, ficou outro também. Uns cinco pais de família foram
pra lá, mas não deu certo. Aí voltaram. Tinha igreja,
construímos, ajudamos [a] construir igreja Adventista, mas
com esse problema todo aí, tivemos que abandonar. Aí
voltaram pra cá. Hoje nós estamos aqui.
DF: Eu lembrei de uma coisa. O senhor já concluiu ou não?
8 Projeto: Panton
MF: Não, a gente, eu estou, eu estou só recapitulando
o que nós estamos vivendo aqui no Sorocaima. Assim a
história de Sorocaima. Da Venezuela viemos uns sete
filhos, oito,
Projeto: Panton 8
nove, dez, onze, doze pessoas vieram do Maurak, da mas o homem veio da pedra,
comu- nidade do Maurak. Hoje já têm mais de cento e da caverna, não sei o quê. O
cinquenta pessoas. Vieram doze pessoas, já tem cento e
sessenta e quatro pessoas. Temos a igreja, temos agente
de saúde, temos motorista, temos um mecânico (não
entende bem, mas dá pra resolver os problemas). Então,
acredito que nós estamos quase completos: tem agente
de saúde, tem pastor, tem mecânico, tem motorista.
Então, só esse grupo tá com- pleto. Mas pra nós, pra mim,
como pros demais, tá faltando uma coisa: construção de
uma escola pra que as crianças aprendam mais, pegar a
Constituição Brasileira e pra eles, mais tarde, pra eles
saber se defender, porque assim como nós estamos
falando: a lei tá pressionando a gente. Ninguém foi atrás
da lei, mas a lei tá passando até as comunidades.
DF: Vocês não conseguem viver sem ela também,
porque o indígena tá subordinado a ela.
MF: Sim. Tem a lei que ajuda, tem a lei que protege,
tem a lei que ampara, mas tem a lei que oprime, oprime.
Então, nós estamos vivendo assim. Ninguém deve pro
governo, ninguém deve pra ninguém. Ninguém deve pra
prefeitura, ninguém deve pra ninguém, ninguém, ninguém.
Nós estamos vivendo por nossa conta. As casas Bem
Morar26, o prefeito tentou construir, mas o próprio Órgão
Federal saiu contra esse Bem Morar. Ele veio fazer reunião
aqui por causa des- se Bem Morar. Aí ele fala assim:
“tuxaua, é vocês que tão pedindo casa ou eles tão
obrigando vocês?” Aí respondi pra ele: “Olha, doutor, essa
casa popular, essa casa aqui foi pe- dido das comunidades,
fizemos documento, passamos pro prefeito e agora
prefeito já tá fazendo as casas populares pra comunidade.
Aí ele diz assim: “não é, não é bem assim, tuxaua, não é
bem assim, não, não pode. Isso tira vocês do índio pro
branco. Isso daqui é usado, isso daqui foi feito pro branco,
não é pro índio. O índio, ele tem costume de morar
debaixo de uma palha, de um barraquinho de palha, é
muito bonito. Mas assim, isso daqui é dos brancos.”
DF: Por que o senhor não perguntou pra ele assim: “É,
8 Projeto: Panton

26
Projeto de construção de casas populares do Gover- no de
Roraima.
Projeto: Panton 8
senhor tá morando em uma caverna até hoje? Aí veio de
carro, chegou aqui bonitinho pra conversar conosco, não
é?”
MF: Aí eu disse pra ele, ele falou: “Olha, se fosse por
mim...” ele falou assim, falou bonito, “Eu não vou
embargar, mas quem embarga é o Ministério Público. Eu
passo o rela- tório dizendo que a prefeitura tá obrigando a
comunidade de Sorocaima I pra aceitar casa, eu passo.
Então, não é eu, é Ministério Público.” Aí nós falamos pra
ele: “Olha, não é Ministério Público, você vai querer
embargar”, eu falei pra ele: “É você, porque Ministério
Público não vem atrás da casa Bem Morar, quem vem atrás
27
da casa Bem Morar é você, o senhor tá falando.” Aí outro
Aliança de Integração
e Desenvolvimento das representante, o presidente da ALIDCIR27 que eu tava
Comunidades Indígenas de
Roraima, criada na região
mostrando o...
de Pacaraima, já que
muitos indígenas não se DF: Eu sei...
sentiam representados por
associa- ções como CIR. MF: Ele era presidente. Ele veio na hora da reunião. Aí
começaram a conversar, nós conversamos. Ele disse assim:
“Oh meu chefe, com todo respeito, o senhor tá falando
que o índio, ele não pode morar numa casa de telha... por
28
Telha de amianto, que foi
quê?” Aí ele respondeu assim: “Não, essa telha produz
comprovada causar danos muita doença.” Ele diz assim, “Ela produz muita doença
à saúde. Tem o uso
proibido ultimamente. com a quentura, a telha,28 ela cai o pó aí ataca os
indígenas...” E o presidente da Associação Anísio Pedrosa
Lima respondeu assim: “meu chefe, com todo respeito lhe
pergunto, eu fui lá pra maloca dos índios Yanomami, lá não
tem casa popular, lá não tem nada. Já andei por lá,
conversei com eles, mas, assim, se [o problema] é casa
popular, eles estão morrendo de doença, por quê? Ferida,
a doença. Aí ele respondeu assim: “Não, não me preocupo
com isso.”, ele falou isso: “Não, não me preocupo. A vida
dos indígenas sempre foi assim. Então, não cabe a mim,
não cabe à Funai. Eles brigam, eles se matam, pegam
ferida, pegam doença, morrem. A Funai encontrou eles por
aí, se eles morrer. Hoje é o jeito, é o jeito dos indí- genas.
Se afinal eles viviam assim, morrendo e a Funai vai se
esforçar pra querer ajudar? Não. A Funai tá aí somente pra
olhar se os garimpeiros vão chegar lá e matar eles, aí
8 Projeto: Panton
assim. Mas, esse
negócio de doença,
ah, isso aí a Funai
não se pre- ocupa
com isso, não se
preocupa com
isso.” O senhor viu,
Projeto: Panton 8
coisa boa que é o Órgão Federal, que tá passando isso pra presentes pra ouvir o que é
gente. O presidente da associação conversando com ele, que Eletronorte vai dizer,
ele respondeu dessa palavra, quando terminei de falar porque
com o presidente, olhou pra mim assim: “Tuxaua, o senhor
vai permitir eu passar pro Ministério Público pra parar essa
casa ou não?” Aí a comunidade gritou: “Não! Ministério
Público não tem nada a ver com isso. A casa é das
comunidades.” Aí outro respondeu: “Se o senhor
persegue os índios, nós vamos lhe processar!” “Não rapaz!
Negócio de processo deixa pra lá. Eu tô perguntando,
apenas perguntando.” “Tá bom, tá bom, deixa que o
prefeito faça a casa pra vocês.” A Funai se afastou. Então,
assim a gente tava, eu fiz uma pergunta. Como é, verdade
os índios daqui, os índios tendo estatuto dos índios [lá]
diz: a lei ampara se o índio precisar de se integrar na
comunhão nacional é, não é proibido. A lei ampara, mas
[pra] Funai é proibido. Isso ele falou pra nós, sempre falo
com eles. Essa pressão é grande, essa pressão é grande. É
bom, eu quero complementar a minha palavra dizendo
assim: então, é bom que o senhor traga professor pra dar
um curso sobre direitos e obrigações. Os índios, as
lideranças não sabem o direito deles, até direito deles não
sabem. Ele tem direito, mas ele não sabe. Se tem lei pra
dar direito a eles, ele vai pra cadeia, ele apanha, tendo
direito deles, tendo razão. [...] Então, essa pressão é
grande pra cima da gente. Tudo isso eu esclareci pro
senhor, que pren- deram a nossa caçamba29 que nós íamos
levando, leva, isso, isso, isso tudo. Então, é melhor nós
chegarmos mais perto, pra ver de perto, também pra ver a
lei, pra que alerte as lideranças indígenas como eles
podem buscar a sua defesa. Senão vão cortar nossos
braços, mais tarde vão tirar nossa língua. Pronto. Aí não
fala mais. Ninguém fala mais. Então, a minha preocupação
é essa. Grande preocupação. Eletronorte usou nossa área,
eu não vejo resultado até agora, agora nós vamos sair pra
avaliar linha de transmissão, Linha de Guri. O que é que ele
tá trazendo pra comunidade? Que tipo de benefício tá
trazendo pra [a] área São Marcos? Nós vamos avaliar
nesse ano ou em janeiro. É bom que vocês estejam
8 Projeto: Panton

29
Não é permitido aos in- dígenas comercializar, por exemplo,
cascalho extraído das terras demarcadas.
Projeto: Panton 8
as comunidades dali não são afetadas por esse Linhão de
Guri, eu e ele, os demais que estamos aqui não receberam
nenhum centavo. Problema é grave. Então, a minha
palavra são essas, como fundamos Sorocaima, como
andamos pra lá. Agora tem outras histórias, quando o
senhor voltar, vamos falar sobre a igreja. Meu pai, ele é de
cem anos, de cento e cinco anos, ele foi um grande
pregador aqui na área. Desde 1958 ele trabalhou muito. Se
o senhor se interessar, gravar, a gente vai falar, né, na
próxima. Ele andou muito, andou por aqui. Antigamente a
gente chamava Puxa-faca porque eles brigavam muito,
puxar faca. Andou no Caraparu, andou aqui no Contão, lá
pro Amajari. Em 1958 ele foi pra lá, cons- truiu a igreja.
Depois veio aqui a Igreja Assembleia de Deus, fecharam a
porta da igreja Adventista. Escreveram na porta da Igreja
Adventista: essa é a Igreja Assembleia de Deus. Por último,
veio a Igreja Católica, tirou a placa da Igreja Assem- bleia
de Deus, passou pra Igreja Católica. Tudo isso meu pai
Mário Roberto Flores enfrentou. Então, na próxima,
quando tiver oportunidade o senhor vem aqui com a
gente, estamos aqui de braços abertos pra gente
discutir.Tá certo. Tem outro problema que nós discutimos
com o pessoal da FUNASA, eles disseram assim, porque
aqui a gente não recebe vacina. Aí olharam pra mim assim:
“Mas tu, tuxaua, porque tu não aceita vacina?” Aí eu entrei
assim: “Olha rapaz, vocês bran- cos, vocês usam muita
vacina, aí o filho de vocês fica cego, aí vacina esculhamba o
sangue, sangue é puro. Toma vacina, sobe pra cabeça o
sangue, aí é por isso que o filho de vocês com idade de
dois anos usa óculos. Vê o nosso filho, ninguém usa óculos.
A gente usa óculos quando completa cinquenta anos pra
cima. Agora, filho de vocês não, o meninozinho de oito
anos com óculos na cara, dez anos, vinte anos. Então, é
por isso, a gente pesquisou, então ninguém aceita vacina.”
DF: Me diga uma coisa, inclusive a pergunta tá ali, mas
eu não fiz ainda. O senhor comente isso. Eu tava vendo
uma entrevista nesses dias, até fiquei meio chocado. [...]
os rapazes estavam narrando a história do eclipse. Quando
a lua encontra com o sol, né, aí é como se a comunidade
8 Projeto: Panton
inteira ficasse suja, como se a comunidade inteira ficasse
Projeto: Panton 8
menstruada. Aí a comunidade inteira tem que passar pelo
processo de purificação. Eles tomam inclusive uma bebida,
uma espécie de sopa, um caldo quente. A pessoa toma, ela
é tóxica, e na hora que ele toma joga tudo pra fora pra
limpar. Ele toma e vomita na mesma hora pra poder fazer
a limpeza do corpo [...].Tem todo um ritual, quando vai
virar rapaz. O que é que acontece? As comunidades tinham
isso, né, eles pegam os rapazes. Eles pegam um
instrumento feito com dente da piranha, aí ele vem no
corpo dele assim [sinal de ficar raspando]...
MF: Aí fica raspando, né.
DF: Raspa o corpo todo, aí vem depois com uma água
ou com uma... não é nem sal, é um cipó que vai ajudar no
processo e passa no corpo do menino todinho, e é uma
for- ma deles virarem homem. E assim tem pra menina
também. Por exemplo, hoje tem isso aqui? Teve algum dia?
Não existe mais? Já existiu esse tipo de iniciação?
CF: Isso aí, isso aí é verdade. Isso que tu tá perguntan-
do, isso aí é verdade. Na época passada, os antepassados
faziam isso. Sabe pra quê? Pra se curar, pra ser caçador,
pra ser pescador. Eles tomavam água misturada com
puçanga que chamam vocês puçanga, mas nós chamamos,
na minha língua, muran.
DF: Muran.
CF: Muran. Eles colocavam e tem muran oloroso que
nem canela. O senhor conhece canela?
DF: Claro, conheço.
CF: O senhor conhece canela. Eles colocam pra ser ca-
çador de veado, pra ser caçador de mutum, nambu, jacu,
veado campeiro, veado capoeiro. Ele mistura nessa água,
então rapaz novo tomava até encher barriga.
DF: É isso, é isso mesmo.
CF: É verdade, é pra limpar a sujeira que tem aqui na
barriga da gente, no estômago da gente. Aí vomitava,
pedia pra ser caçador de veado, pra ser caçador de anta,
pra ser
9 Projeto: Panton
caçador de mutum, pra ser... Eles falam com essa puçanga
que eles colocavam dentro d’água pra tomar, pra purificar
a barriga, eles falavam. Duas, três vezes, ou seja, quando a
lua tá bem por aqui assim [aponta pro céu], eles curavam,
né. Esse que eu estou entendendo o que tu queria saber. É
isso aí. Pra esse, pra purificação do estômago, pra ser
caçador.
DF: Forte, resistente, não é?
CF: Sim senhor. Aí, daqui até quando a lua ficar bem por
aqui assim, aí pra... Se for de manhã também. Se for de
manhã também, porque já tava lá no ralo, que nós
chamamos, na minha língua chamo sumari, feito de
madeira, com a ponti- nha, [com] ralo, que chama.
DF: Madeira com?
CF: Madeira com um pedaço de ferro com assim, pra
ralar mandioca. Isso aí. Eles fazem pequeno e fazem gran-
de, eles fazem mais grande assim. Então, ralavam, jogavam
dentro d’água, bebiam pra purificar, pra ser, como assim
disse, caçador. Se tu vai pro mato, em seguida tu consegue
caça. Se tu não faz assim, se tu não purifica barriga com
essa puçanga, não consegue nenhum, nenhuma caça.
Estando com essa [peste(?)] tu não consegue porque não
tá curado. Outra coisa, esse dente de piranha não é. Pra
nós indígena, ele tem filho novo, desde pequeno assim, aí
tira pedaço de gilete tiam, tiam, tiam [imita som de corte].
Aí coloca, ele vai passar esse muran pra ser caçador de
peixe, pra ser pescador.
LS: Ainda faz isso?
CF: Ainda não. Não! Agora não existe mais não. Assim
como nós estamos falando, assim porque nós estamos
falan- do a palavra de Deus. Nós estamos colocando a
palavra de Deus no meio, porque a palavra de Deus é certa.
30
Mais uma vez, optou-se
A palavra de Deus diz: “Não raspe! Não cortem vossa
em não mudar este tipo de carne!”, porque é proibido derramar sangue. Porque Jesus
expressão: “ninguém
somos”. derramou muito sangue e não podemos imitar, porque
ninguém somos30 Jesus, nós somos humanos. Ah sim, sim
senhor, agora outra coisa: se tu quer ser avistador de coisa
Projeto: Panton 9
longe, tu tem que
colocar pimenta na
vista. E tem outra
coisa, tem puçanga
9 Projeto: Panton
que chama, não sei como nome dessa puçanga, nós cha-
mamos paricö, nós chamamos, é um raizinho, ele é ardoso
como pimenta.
MF: Queima muito.
CF: Então, tu rala nesse ralo, pega o sucuzinho, coloca
nos olhos, coloca nos olhos. Aí quando tu vai sair pra caçar
no campo, vê de longe, lá vai veado. Tu tá olhando porque
tua vista tá bem limpa com essa puçanga. Assim usavam
nossos pais. Agora se tu tá doente, com dor de cabeça,
tem que tirar folha de tiririca, aquele que corta tem folha
aqui, é tiririca. Tu sabe o que é tiririca?
DF: Tiririca?
CF: Sim, tem olho dele assim, duro afiada, amoladinha,
amarra três folhas duras, que acaba de sair assim.
DF: Aquele meio mais duro.
CF: Sim, como se diz, é... olho dele que sai, primeiro
olho dele que sai. Então, amarra três assim, são
pequenininhos, né, são pequenos, são vários tipos de
tiririca.
DF: Eu sei, tem as pequenininhas...
CF: Sim, então amarra com a... Se tu tá com dor de
cabeça, então o velho abençoa essa tiririca amarrado pra
ser curado dessa dor que tu tá sentindo na cabeça. Então,
coloca no nariz “tcham”, aí sai muito sangue “tcham”, aí tu
derrama esse sangue. Então, pimenta também abençoada,
ele coloca no nariz, tu não aguenta não, aí amanhã tu não
sente a dor. Sabe por quê? Porque muito sangue na
cabeça. Esse aí que tá dando dor na tua cabeça. Isso é
remédio. Não é remédio pra ser caçador não, esse é
remédio pra dor de cabeça.
DF: Pra dor de cabeça.
CF: Sim senhor. Outra coisa que tu tá perguntando, isso
nós vamos repetir outro. Essa água misturada com
puçanga, ou seja, com a folha cozida, isso aí pra dor de
barriga, não é pra ser caçador não. Isso aí pra cura, isso aí
pra cura. Tá sentindo dor às vezes e tá evacuando [a] cada
Projeto: Panton 9
momento. Então, pra evitar essa, tu tem que tomar água
até encher
9 Projeto: Panton
barriga, sem querer tu tem que tomar pra ser remédio. Aí
tu vai vomitar, jogar toda essa sujeira que tá na tua barriga,
aí tá, não sente mais dor, não solta muito vento, isso aí,
esse remédio. Pimenta colocado no nariz depois de
derramar, tirar sangue, isso aí remédio. Agora puçanga,
muran e orocan, isso é remédio pra ser curado, pra ser
caçador. Sim senhor, assim é. Agora não existe mais. Não é
preciso cortar.
DF: Os meninos então não tem essa iniciação?
CF: Não. Agora não, agora não, agora acabou.
31
Maurak localiza-se na
Venezuela, região do Par- MF: Antes da gente vir daqui do Maurak,31 meu pai falou
que Canaima. Interessante
observar como se
pra mim assim: “Meu filho”, o mais velho, talvez irmão, o
configura a avô dele falou pra ele: “Olha, não usa muran pra ser
territorialidade nessa
região entre os indígenas. caçador, não usa, mas usa água.”, ele falou pra ele, pro
meu pai, aí chamou nós: “Olha, meu filho, vocês têm que
se curar, não vão usar essa puçanga. O meu tio falou pra
mim falar pra vocês, pra vocês não ver essa puçanga, mas
vamos conseguir outro meio aí pra você se curar, pra vocês
ser caçador, pra quando você casar a mulher de você não
passar fome, vocês não se curaram, vocês não têm
dinheiro, então pega flecha, assim, pega arma, vão pra
mata pegar uma caça, é assim.” Ele dizia assim: “Vocês vão
na beira do igarapé, vê aquela, aquela moita, né, quando
enchente, no tempo da enchente não pega aqueles galhos
32
Optou-se em deixar essa muito balseiro, né, folha.”
concordância para
observar como a língua CF: Folha pequeno, comprido, grosso, grosso.32
portuguesa se distingue
da língua deles. Esses MF: “Aí encosta na beira do igarapé.” Aí papai, ele falou
entrevistados, no ge- ral,
tiveram como primeira pro papai, papai passou pra gente: “Olha, meu filho, vão
língua o taurepang, depois curar. Cinco horas da manhã vocês têm que pegar copo,
é que vieram o português
e o espanhol. Eles falam, vocês têm que ir pro igarapé, tomar água, aonde tem
pelo menos, essas três
línguas.
aque- le galho, um monte de galho, é considerado como
caça, aí tem veado, aí tem catitu, aí tem todo bicho, todo
pássaro. Bebe água até vomitar. Encheu a barriga, tem que
vomitar em cima dessa folha, durante noventa dias,
sessenta dias. Depois disso vocês vão sair, matar veado.”
Aí eu, meu irmão que mora ali naquela casa, aí decidimos:
“Rapaz, umbora fazer?” Éramos curumim, né, “Umbora
Projeto: Panton 9
fazer!” Nós fomos
na beira do igarapé.
Aí tomamos água.
Rapaz, pra tomar
água de manhã
cedo: “Quem que
vai tomar?” [risos]
Nós fizemos
9 Projeto: Panton
isso só uma semana, aí eu não aguentei. Depois de beliscando aí.
vomitar...
CF: A garganta da gente fica toda irritada.
MF: É, meter banho cedo lá, é água fria, aí tá gelada
mesmo pra pessoa banhar, hunn! Aí aguentamos. Foi só
uma semana. Aí paramos. E depois eu conversei com outro
velho, não da igreja, aí ele falou pra mim: “Olha, rapaz,
aqui tem puçanga.” Ele me amostrou: “Pra quê?” “Pra
veado mateiro, veado campeiro.” “Como é que a gente
faz?” “A gente bota no olho da gente, passa num ralinho,
aí passa no olho, só um mês.” “E bom pra ser caçador?”
“Eh, eu já experimentei, olha, aqui tem couro de veado,
tem chifre de veado campeiro. Eu mato bem aqui mesmo.”
“Rapaz, o senhor não tá inventan- do não?” Aí eu disse:
“Eu vou experimentar.” Eu fui mais esperto, né. Aí eu fui
usar esse remédio. Só que queima os olhos da gente igual
pimenta, só por uns cinco minutos, aí fica ardendo. Usei
durante sessenta dias, contados, sessenta dias. Doutor,
parece mentira, tu não sente mais o sono, tu fica assim,
animado, querendo caçar, tu fica, tu fica esperto mesmo.
Eu pegava espingarda, eu saía pra experimentar. “Rapaz,
agora eu vou experimentar.” Eu saía, encontrava caça.
Isso existiu, mas parei, tava bom pra conseguir alguma
coisa, pra quem tem família. Quem não usa esse muran,
ele não consegue não. Ele não consegue. Já morei aqui
com um velho, como é que chama um homem que não
caça, que não consegue nada? É como é que chama? É...33
LS: Azarado.

MF: Eh. Mas, doutor, eu andei, já pesquei aqui nesse


igarapé. Ele passou, ele passou dois anos, dois anos aqui
no Sorocaima, quando tinha muita caça. Ele passou, ele
morou aqui dois anos ou três anos. Ele tinha espingarda.
Sabe que nunca atirou com essa espingarda. Quando ele
vai pra pescaria, fui eu com ele, esta hora fomos pescar lá
pra baixo. Rapaz, aí eu vi o velho que não tem sorte. A
gente tava pescando, ele tava pescando aqui, eu tava
pescando assim. Aí nós jogando anzol seis horas, quando
tinha peixe aqui no Sorocaima: traira, aracu. Aí estavam
Projeto: Panton 9

33
A palavra é panema: im- prestável, sem sorte na caça e na pesca.
9 Projeto: Panton
“Rapaz, não pegou.” Aí eu fui pegando. Peguei um, dois,
três, eu peguei até sete. O senhor sabe quanto ele pegou?
Só pegou cinco caranguejos.
DF: Caranguejo, é!
MF: Então, tem isso. Puçanga que o Clemente tá
falando é muran. É usado pra caça. Quando eu tava
usando, eu matava dois, três. Última, última caça que eu
matei, só cutia eu matei duas, aí parei. Então, tem pra
beber água e vomitar sobre a folha pra fazer a tradição.
DF: Tornar o menino forte, não é isso? Resistente.

MF: Pimenta pro menino se tornar resistente. Eh pi-


menta.
DF: E pra menina não tem alguma coisa?

MF: Também, se for preciso tem que usar pra menina,


porque tem menina indígena que não levanta. A mãe
chama: “Umbora, minha filha, vamos trabalhar! Vamos
espremer mato! Vamo...?” “Ah, deixa eu dormir.” Aí uma
menina dessa precisa de pimenta nos olhos dela, aí fica
esperta.

DF: Também,né... [risos]. Vou contar essa pra minha filha.

CF: Senhor, ainda existe, ainda existe, mas ninguém


estamos usando.

MF: Ninguém usa mais.

CF: Sim, ainda existe.

DF: Claro que existe.


CF: Essa cura pras meninas que o senhor tá perguntando,
eu estou entendendo que queria saber, né, porque as
meni- nas, naquela época, faziam caxiri, faziam pajuaru. O
senhor sabe o que é pajuaru?
DF: Sei não.
CF: Pajuaru feito de beiju. Doce, sem açúcar. As
mulheres faziam beiju assim fresca. Molha, mas tem que
saber embru- lhar nas folhas de banana, que mais forte
Projeto: Panton 9
que tem é najá.
1 Projeto: Panton
Najá, aquela redondinha.
DF: Banana, amarela?

CF: Não, não é isso aí não.


MF: Pajuaru não se vende assim.
CF: Um beiju grande assim, eles molham dentro d’água.
Eles colocam no jamaxim. Então, corta uma folha de
banana dessa najá, que eu estou te dizendo, que é mais
forte. Essa banana najá é doce, doce demais. Tem que ser
outra folha e coloca onde tu fizeste beiju com fogo
embaixo de forno, tu tira forno e tu sabe que a terra tá
quente de fogo, de brasa. Então, a mulher limpa e coloca
essa folha, e coloca esse beiju molhado e coloca o
condimento, é... folha de, folha de maniva, bem em pó,
triturada, bem em pó. E depois um pouco de milho bem
moído, também: tcham, tcham, tcham; depois um
pouquinho de goma bem em pó, também: Tcham, tcham,
tcham; e coloca folha em cima sem açúcar. Embrulhou e
fechou e pisei com qualquer pedaço de pau aí. Passa um
ou quatro dias se for feito bem feito. Quando abre tá tudo
floreado. Aí prova, gosto igual como a gente come goiaba-
da, assim como a gente come... Aí quando coloca no balde,
balde de, como chama na Venezuela, camaça, balde de
fruta da [terra(?)]. A gente coloca, joga água, depois de
dois dias uma bebida saudosa, rapaz! Pra isso, se tua filha
não sabe fazer caxiri doce, tem remédio pra isso. Tem
puçanguinha que as velhas colocam no beiço da mulher,
aqui embaixo do beiço, “Tcham.” “Tcham.” “Tcham.”
[corta] com gilete assim. E queima essa puçanga bem
queimadinho em pó preta. Elas colocam assim, fica tudo
pregado assim, enterrado no [sulco], aonde gilete cortou.
Naquela época, faziam caxiri mastigado na boca. Tu pode
tomar?
DF: Se eu posso?
CF: Sim, mastigado na boca?
DF: Depende, tomo.
CF: Sim porque, ninguém tem que ter mal gosto de...
Projeto: Panton 1
DF: É claro.
CF: Então, pra isso que as antigas velhas curavam suas
filhas assim, cortavam aqui assim: “Tcham.” “Tcham.”
DF: Os lábios embaixo né.
CF: Embaixo. Aí coloca esse pó, é puçanga. Aí quando
ela vai mastigar, pra misturar caxiri que tá fervendo. Ela
coloca, mistura e coloca no balde. Amanhã de manhã cedo
doce sem açúcar. Isso aí é outro remédio, companheiro.
DF: Eh... Que beleza!
MF: Pajuaru é bebida mais venenosa. Se ela tiver meio
azeda, se tu botar bem por aqui, tomar um, aí tu não
conse- gue sair por causa de maniva.
CF: Sim porque é forte, muito forte. Igual cachaça.
MF: Igual cachaça. O senhor não consegue tomar.
Agora caxiri não. Caxiri enche a barriga, aí tu vai andando.
Mas pajuaru, tomou numa vasilhazinha, tomando duas
vasilhas desse, rapaz tu fica...
CF: Tombando. Sim muitas coisas, assim vem na
memória, muitos pensamentos. Então, quando tu voltar de
novo, por aqui, a gente conversa mais. Traga dólares pra
nos alegrar...
DF: Ih, tá falando com a pessoa errada.
CF: Traga dólar pra nós conversar mais...[risos]
MF: Primeiro eu assisti a chegada da Funai aqui na área,
eu assisti a chegada da Funai. Tinha a sede deles em
Manaus, mas aqui na área, no Estado de Roraima, nunca
tinha. Mas quando, assim, não é ofendendo vocês, mas o
branco tava querendo massacrar a gente. A gente passou
pra polícia territorial, naquela época, ligou pra Manaus, ele
sabia onde sede da Funai, aí vieram aqui. Primeira pessoa
que recebeu a presença da Funai fui eu. Em 70... 74, é, 74...
34
77, é, 77. Então, eu vi gravador, é, rádio mesmo, aí botava
A partir desse ponto tem
início uma entrevista ex- quando a pessoa tá falando. 34

clusiva com Manoel Flores.


1 Projeto: Panton
Projeto: Panton pia’
Entrevistado: Manoel Bento Flores (MF)
Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)
Assistente de Entrevista: Lucimar Sales (LS)
Local: Comunidade Sorocaima I, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR
Data da Entrevista: 1/10/2008
Transcritora: Ana Maria Alves de Souza
Conferência de Fidelidade: Airton Vieira, Devair Antônio Fiorotti
Copidesque: Devair Antônio Fiorotti
Duração: 2’11’’49’’’
Projeto: Panton 7
[...]
DF: Então, vamos lá. A gente queria primeiro, seu
Manoel, que o senhor falasse o nome e a idade do senhor.
A etnia eu já sei, que é taurepang, não?
MF: Taurepang.
DF: Qual o nome do senhor, então?
MF: Meu nome é Manoel Bento Flores. Nasci em 1955.
Agora, até agora eu tenho 53 anos.
DF: 53. Aqui na comunidade o senhor tem alguma
função específica? Porque as comunidades possuem
alguma função, por exemplo, o primeiro tuxaua, segundo
tuxaua. O senhor tem alguma função específica?
MF: Sim, eu sou representante da comunidade. Até o
presente momento, eu sou o representante. Na
declaração, aí constam umas dezessete comunidades. Até
dezembro sou representante. Depois vão me dar baixa.
Outro vai assumir, então é assim.
DF: O senhor é o representante das dezessete?
MF: Eh.
DF: Ah! Sim.
MF: Não. De outros aldeamentos indígenas.
DF: Uma coisa que eu achei muito interessante aqui na
comunidade do senhor é a questão que vocês têm um po-
sicionamento em relação à escola muito pessoal, não tem?
MF: Tem.
DF: Que vem do patriarca. O senhor poderia falar um
pouquinho como é que se dá o ensino aqui, como é que a
mãe ensina, se é a mãe quem ensina pros filhos ou é o pai?
E qual o motivo do patriarca não permitir a escola? Espero
que a gente não veja isso como algo negativo. É pra eu en-
tender um pouquinho. É uma coisa que eu fiquei muito
feliz. Quando eu chego aqui e observo que, aonde eu
chego, é claro que pode ter um lado negativo, mas onde
chego, vocês conversam na língua de vocês, preservando.
Não é toda co-
7 Projeto: Panton
munidade por aqui que conseguiu preservar isso. Eu
cheguei em vários locais, então isso aí também é algo
positivo, não tem só negativo...
MF: Isso é longo assunto sobre a nossa convivência
aqui na área. Eh, eu queria esclarecer assim, não sei como,
se o nosso patriarca Mário Roberto Flores, criou aquela,
aquela, uma ideia deu na cabeça dele, né? O pensamento
vem da cabeça. Então, ele teve uma ideia de proibir os
filhos se integrarem na sociedade branca. Ele falou assim:
“Meu filhos, vocês têm que viver assim do jeito que nós
estamos morando, de agricultura. Se um dia vocês vão
chegar a ser pai, vocês vão ter filho, então vocês têm que
passar isso pra filho de vocês, eles têm que trabalhar na
agricultura.” Então, ele falava assim, “Deixa que os
brancos vivam assim como eles estão, mas nós temos que
manter a nossa cultura até o fim da nossa vida. Enquanto
eu estou vivo, jamais eu vou abrir a mão pra construir uma
escola.” Essa ordem que ele deixava pra nós, um conselho.
Eu, o filho do patriarca Mário Roberto Flores, meu nome
Manoel Bento Flores, então eu fui mais atentado, eu falava
pra meu pai: “Papai, por que assim? Seu pensamento tá
muito errado. Nós vamos viver até dez anos, quinze anos
pra lá, vai chegar a sociedade branca, então não tem
como, não vai ter como a gente se entender com ele, e nós
falamos taurepang e eles falam português. E aí como é que
vai ficar?” Aí ele falava pra mim assim: “Meu filho, eu sei
falar um pouco de português, então eu mesmo, eu vou
levar alguns produtos, eu mesmo compro, eu mesmo
trago pra cá. Agora vão trabalhando. Não pensa em
estudar.” Então, com essa proposta, os filhos mais velhos
tomaram essa ideia do pai. Então, eles, meus irmãos não
aceitam a escola. Então, a família que vocês estão vendo
aqui, as crianças não sabem falar português, ficam surdo
ou mudo quando a senhora fala: “Eu quero tomar água.”
Então, algumas meninas ficam perdidas, ficam pegando
aquilo que a senhora não tá pe- dindo, água, mas é assim.
Assim nós estamos vivendo aqui. Mas meu pensamento é
diferente. A proposta do patriarca Mário Roberto Flores é
essa, não se integrar com a sociedade branca. Então, pra
gente estudar foi difícil, foi muito difícil, pra mim foi difícil,
Projeto: Panton 7
porque ele comprou o livro como esse,
7 Projeto: Panton
ele me deu: “Meu filho, estuda.” Agora quem é que vai
ensi- nar? Eu andava com o livro na mão só pra dizer que eu
tava estudando, em casa mesmo. Mas eu me interessei
muito pra saber o que o mundo oferece, o que o mundo
traz, então eu me interessei muito. Eu andava com livro e
lápis, e depois, eu estou esclarecendo isso, o que é que
aconteceu comigo. Isso aconteceu comigo. Eu perguntava
de alguém, porque meu pai ele era missionário, ele
pregava a palavra de Deus, não parava em casa. Parava
assim, mas por um pouco de tempo. Ia pra aldeamento
indígena, chegava, passava dois, três meses e depois saía.
A profissão dele foi essa. Então, eu sinto isso, que nós
crescemos assim. Eu pegava o livro, olhava: “Agora quem
é que vai me ensinar?” O irmão mais velho saiu pra outra
vila longe, o irmão mais velho; e outro filho não sabia ler;
outro filho não sabia ler; outra irmã, que é a nossa irmã,
não sabia ler; outra irmã não sabia ler: “Agora quem é que
vai ensinar?” Mas eu acho que com a ajuda de Deus eu
consegui descobrir o que tava escrito. Isso caiu na minha
cabeça, eu fui começar a ler. Aí eu perguntava dele, do
meu pai: “Papai é assim?” “É assim.” Mas ele não ensina-
va. Só mostrava: “Isso aqui fala.” Então, pra não chegar ler
assim, a escrever um pouco, assinar o nome foi muito
difícil, é difícil, é difícil!

DF: Vocês tiveram que aprender sozinhos...


MF: Sozinhos. Eu aprendi sozinho, porque eu passei por
aí. Aprendi sozinho. E depois meu irmão mais velho entrou
na escola. lá ele aprendeu um pouquinho. Quando ele tá
começando a aprender, o professor também se afastou. Aí
pronto. Aí nós ficamos. Aí então, até agora ninguém sabe
se comunicar com o doutor, com os homens da lei,
ninguém tem como a gente se comunicar.
DF: Comunicar comunica, o problema é que tem dificul-
dade em ter acesso...
MF: Eh. Se torna problemático pra nós. Agora, pra ou-
tro aldeamento, é mais fácil, porque tem professor, tem
professora.
Projeto: Panton 7
DF: E eles mesmos conseguem se defender...
MF: É, eles sabem. Mas nós aqui, nós estamos dentro
do aprisco, ninguém pode nem abrir a mão. Então, a gente
anda, a gente se arrasta pra alcançar a estudar, e ler, e
escrever, porque hoje a gente vê a lei do país chegando
até as comuni- dades. A lei do país chega na comunidade
através do IBAMA, através da Funai que representa as
comunidades indígenas. A lei do país chega através da
Polícia Federal, a lei do país vem através da Polícia Militar,
todas as autoridades. Eles trazem a lei que ninguém
conhece. Então, pra gente responder se torna difícil. É por
isso que me interesso muito a estudar. Por isso. Se nós
vivemos assim que nem nós vivemos aqui, sem estrada,
sem transporte, sem avião, assim fora da sociedade
branca, tudo bem, pra mim não me interessa estudar. Eu
mato caça, eu pesco, eu estou comendo, lavrando a terra,
trabalhando, mas assim como nós estamos aqui, no meio
de uma tempestade: prende indígena, intima indígena,
prende o índio pra ali. Então, a gente se encontra muito
pobre. Temos nosso Deus, o poderoso, o senhor sabe
muito bem. Temos Deus, um vivo, que nunca dormita, mas
o próprio Deus entrega alguém pra ajudar os filhos dEle. Aí
pra nós se tornou muito difícil.
DF: Imagino. A primeira língua que a comunidade
aprende é o taurepang, né?
MF: Eh.
DF: A primeira língua. A língua materna é o taurepang.
MF: Língua materna ninguém aprendeu. Nós nascemos...
DF: Sei.
MF: Primeira língua.
DF: Eh.
MF: A linguagem materna é essa, taurepang.
DF: Então, o português já é a segunda língua.
MF: Segunda língua. Pra nós é língua estranha, idioma
estranho.
7 Projeto: Panton
DF: E é estrangeiro mesmo, é isso mesmo a palavra. Es-
tranha quer dizer um pouco isso.
MF: Então, a nossa convivência é assim. Mas através da
igreja ainda nós estamos estudando, nós estamos estudan-
do, porque eu comparo assim, se eu compro um violão ou
um instrumento, sanfona, tem que ter a pessoa pra
ensinar. Sem professor ninguém toca igual os que estão
cantando lá, tocando, então tem que ter a pessoa pra
ensinar.
DF: Vocês falam em taurepang. E vocês escrevem em
taurepang?
MF: Muito pouco.
DF: Muito pouco.
MF: Muito pouco. Então, a nossa convivência é assim.
DF: Então, as pessoas aprendem no dia a dia.
MF: Eh. Dia a dia.
DF: E o senhor é agricultor ainda?
MF: Até o presente momento a gente mexe com agri-
cultura.
[...]

DF: Bem, o nome do seu pai o senhor já disse. E da sua


mãe?
MF: Mário Roberto Flores. Não sei quem foi que deu
esse nome FLORES. Mas quem sabe os antepassados
deram esse nome pra ele, né? Nome da minha mãe é Paula,
Paula Bento.
DF: Ela era taurepang também?
MF: Não. Ela é da tribo macuxi.
DF: Ah! Ela é macuxi.
MF: Passamos a morar aqui em Venezuela há uns 15
anos. Minha mãe, com 15 anos, nunca aprendeu a falar
taurepang, nenhuma palavra. Macuxi é macuxi mesmo.
Falava, porque pra lá, Venezuela, só fala mais taurepang, aí
Projeto: Panton 7
ela respondia em macuxi, aí os taurepangues não
entendiam. Então, eu
8 Projeto: Panton
sou filho do taurepang e a mãe macuxi.
LS: Mas ela conseguia entender o que os taurepangues
falavam?
MF: Ela entendia um pouco. Foi difícil, mas no decorrer
do tempo ela começou a chegar a descobrir o que é que
eles estavam querendo, aí ela foi entendendo. E ela
entendia, só que não respondia. Respondia macuxi.
DF: A religião do senhor é qual? O senhor falou que é
Adventista.
MF: Eu sou da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Meu pai
quando ele veio, ele era da Igreja Católica, mas depois ele
reconheceu que isso tava muito errado, não tava
conforme tá escrito na Bíblia. Os missionários pregavam
diferente. Então, ele tinha que abandonar a Igreja Católica
e passar pra Igreja Adventista.
DF: E o senhor tem mais alguma informação de quando
a Igreja Adventista veio pra cá? Ou mesmo assim, quando
o seu pai se tornou católico, ou sempre foi...
MF: Meu pai, ele recebeu a Igreja Adventista, religião
Adventista, com idade de dez anos, dez anos. Depois de
dez anos, quando eles estavam... Sempre eles faziam o
culto no dia de sábado. Tinha um americano ensinando
eles; ameri- cano que veio dos Estados Unidos, veio até
aqui, quando eles moravam, eram pequenos, aí veio um
americano, casal de americano. Aí tiveram a primeira
religião que meu pai recebeu, a religião Adventista. E foi
passando uns tempos. E depois a Igreja Católica soube que
a religião tava penetrando no meio dos indígenas, aí a
Igreja Católica de Caracas ou de Colombia, ou lá mesmo
dos Estados Unidos, vieram, man- daram prender o pastor
americano, mandaram prender. A prima minha que mora
em Santa Elena, tem histórico muito bom de quando a
Igreja Católica se prontificou pra prender o pastor
americano da Igreja Adventista. Ela fez tudo, mas ela ficou
de passar pra mim, que eu preciso, como assim que vocês
estão procurando, e eu também procuro como nasceu a
Igreja Adventista.
Projeto: Panton 8
DF: É claro, porque é história, não é?
MF: É história. Mas um dia eu vou procurar. Foi assim,
meu pai recebeu a religião Adventista, com dois anos ou
cinco anos veio a Igreja Católica. Então, procuraram um
meio de prender, procuraram um meio de expulsar. Eles
mesmos falavam, dizendo que a Igreja Adventista não era
verdade, era inventado, agora onde eles estão trabalhando
a Igreja Católica é a mais verdadeira. Com isso formaram
um grupo grande, mandaram prender o pastor americano
e expulsaram. Aí a Igreja Católica tomou conta daquele
grupo que tava reunido.
DF: Tá certo. O senhor é casado?
MF: Eu sou casado.
DF: Tem filhos?
MF: Tenho oito filhos. Mas um já morreu. Só restou sete.
[...]
DF: Tem uma pergunta que eu gosto de fazer, porque
isso diz um pouco das pessoas. Qual a coisa mais triste que
o senhor já passou na vida do senhor e qual a mais feliz? Eu
sempre faço essa pergunta, porque faz a gente pensar um
pouquinho sobre o passado e também as coisas boas e
ruins.
MF: Eh. Doutor, a minha vida, a minha vida até agora foi
triste, pra mim foi uma tristeza. Hoje a gente tá vendo que,
com esse movimento, com essa chegada da sociedade
bran- ca, pra mim se tornou mais, pra mim se tornou uma
alegria, porque nesse ponto: uma vez um cunhado meu,
por nome de Laurindo (ele mora bem aqui), ele se adoeceu
quando não tinha estrada, não tinha nada, se adoeceu aqui
quando a gente tava morando aqui. Como é que nós
vamos fazer pra levar pra Boa Vista pra ele se tratar? Nós
tínhamos que tirar, desatar rede, amarrar na vara, botar
ele na rede. No inverno nadamos esse rio Sorocaima, num
atoleiro, fomos levando no meio da chuva até na Boca da
Mata, porque pra levar um daqui do Sorocaima até a Boca
da Mata é quilômetro. A nossa vida foi assim, não tinha
8 Projeto: Panton
doutor, não tinha nada, nada.
Projeto: Panton 8
E outro, naquele tempo a tecnologia não tinha chegado
até aqui, o próprio líder de lá, da Boca da Mata, fez um
recado, né, que falavam: “Passa recado!” Botaram num
papel e eu levei esse papelzinho da Boca da Mata, quando
tinha muita onça por aqui nessa Serra; eu e o Marinho que
tá aí, que atendeu vocês. Só nós dois subimos aqui, não
tinha ninguém, ninguém, ninguém. Só os macacos, os
guaribas, onça, cobra. Saímos da Boca da Mata, dormimos
aqui, levando o papel pra solicitar o avião de Boa Vista pra
vir pegar o paciente. Olha, coisa difícil, pra mim é. Subimos
estas horas e chegamos lá em Pacaraima. Não é
Pacaraima, naquele tempo era Divisor.
DF: Na divisa.
MF: A divisa. Chegamos lá na casa do seu Antônio
Barrei- ro, era comerciante. Antônio Barreiro, era recém-
chegado lá. Outro comerciante que já morreu. Assisti a
morte dele, primeiro comerciante que morou. Chegamos
lá, deixamos o recado, o papel. Na mesma hora nós
voltamos, viemos dormir aqui, eu e o Marinho. No outro dia
saímos pra Boca da Mata, e o paciente gemendo lá.
Tinham os pajés aonde nós usamos muito, mas aqui nessa
região não tinha pajé. Só tinha pajé na comunidade Ireu, lá
pra beira do rio Ireu. Então, se tornou difícil. No terceiro
dia, avião desceu, pegou paciente e levou pra Boa Vista.
Passou um mês se tratando. Isso foi em 60 e... 68, por aí,
67 ou 68. Segunda vez, o líder daí da Boca da Mata, pai do
tuxaua Hilário, que morava aí na Boca da Mata, se
adoeceu, e nesse tempo mesmo não tinha estrada, não
tinha nada. O que é que o pessoal faz? Pegaram dez
pessoas (até o irmão Paulo que vocês conversaram com
ele), ele também foi uma das pessoas que botou paciente
aqui no ombro, da Boca da Mata. Saíram pro
Entroncamento, entrada do Surumu, no sol quente. Ali foi
um sofrimento muito grande. Então, pra mim, estou feliz
porque tem hospital ali no BV-8; tem hospital geral em Boa
Vista; tem estrada; tem ambulância. Nós estamos sofrendo
sim, mas diminuiu mais. Então, pra mim, eu feliz. Bem, pra
mim é assim uma alegria, sofrimento já acabou. Até pra
comprar algumas coisas, a gente fazia farinha; torrava
8 Projeto: Panton
farinha aqui; a gente levava assim uns dez quilos; eu levava
uns dez quilos; outro levava vinte quilos, pra
Projeto: Panton 8
comprar fósforo, açúcar, alguma coisa aqui, lá aonde eu,
falei no Antônio Barreiro, comércio. A gente aí; e por esta
hora a gente tava de volta, com um pouquinho de rancho.
Hoje não, os compradores, peixeiros estão chegando até
na porta pra comprar banana, pra comprar farinha, trazem
carne. Então, pra nós se tornou mais fácil, pra mim é uma
alegria. Agora, é nesse meio, ao mesmo tempo eu sinto um
misto de tristeza, porque a lei pressiona a gente e não tem
como a gente se defender, a gente se defender. Então, é
assim; é assim. A nossa convivência foi assim. [...] Quando,
mais uma vez, quando logo a estrada passou aqui, não era
35
A cidade de Pacaraima asfalto, só piçarra, meu pai se adoeceu. Não tinha
é conhecida também por ambulância no BV-8;35 não tinha hospital; hospital tinha em
BV-8, pois ali se localiza o
marco divisório BV-8, da Boa Vista. Tinha os mo- radores aqui, logo quando a
divisa Brasil-Vezenuela. estrada, o batalhão veio abrindo a estrada. Eles mesmos
afirmam que trabalhavam na estrada e tiravam um lote
aqui, outro aqui. Então eles tinham alguns carros. Então,
apareceu um homem por nome de Siguinês. Ele tinha o
jipe. Não era pra levar paciente; era pra carregar milho, pra
carregar macaxeira. Mas nesse ponto, como a gente tava
aperreado, procuramos o Siguinês. Ele disse: “O que é que
tá acontecendo?” “Não, o meu pai tá doente.” “Tá ruim?”
“Tá!” Então, ele disse: “Diz pra ele se preparar, que eu vou
levar no meu jipe, aí ele não vai morrer.” Então, veio,
levamos ele até na beira da estrada, botou o paciente no
jipe e levou pra Boa Vista. Então, ele foi. Como o meu pai
tava gemendo de dor, de tanta dor, ele acelerava o jipe pra
chegar ou pra morrer. Então, aconteceu isso com a gente.
Mas ele chegou no Coronel Mota. Os médicos trabalharam;
trataram bem; melhorou: Mário Roberto Flores tá aqui. Se
não fosse isso, ele já tinha morrido. Com tudo isso, como
eu estou explicando pro senhor, me preocupa muito essas
coisas. Por quê? Eu me pergunto por quê? Hoje a gente vê
a família falando a sua linguagem taurepang, alguns estão
caminhando, estão se arrastando pra chegar, aprender a
linguagem português.

DF: Mas como eu falei pro senhor, eu não vejo de tudo


ruim. Eu acho que tem um lado que é muito bom, que é
isso
8 Projeto: Panton
que eu falo pro senhor, que a gente chega aqui e vocês
estão se comunicando na língua tradicional que é a de
vocês. Esse é o lado bom. Vocês preservam isso tudo, mas
ao mesmo tempo não têm como ter acesso ao que tá
acontecendo ali, e de repente não saber uma outra língua
fica muito mais difícil.

MF: Fica mais difícil.

DF: Então, tem um lado bom e um lado que muitas


vezes atrapalha.

MF: Eu tenho pensado, eu tenho pensado assim: “Eu


quero estudar”, eu mesmo pensando, eu quero estudar
pra mim falar bem português, pra mim defender o meu
povo e também não esquecendo da nossa linguagem
taurepang. Eu tenho que falar bem o português com os
brasileiros, com o português, e falar em taurepang bem,
igual, e falar em caste- lhano. Por que é que eu penso isso,
doutor? Eu sou da igreja Adventista. Eu tenho que pregar
em português. Quando eu for pra Venezuela, eu tenho que
pregar castelhano, espanhol. A minha preocupação é essa.
Quando eu estou pregando aqui, eu tenho que pregar em
taurepang. Quando chegar um visitante assim como o
senhor tá aqui, quando eu estou pregando em taurepang
o senhor não entende. Então, tem que passar, traduzir em
português.
DF: E sem contar que não existe a Bíblia em taurepang,
existe?
MF: Não, não.
DF: Não tem.
MF: Não tem. Só macuxi. É só macuxi. Então, essa pro-
posta que tenho, o motivo é esse: eu tenho que falar em
taurepang; eu tenho que falar o espanhol; eu tenho que
falar em português, porque estamos sendo visitados por
diversas etnias, então eu tenho que estudar. Não sei se a
minha idade permite, eu tenho 53 anos, se eu entrar na
escola não sei se eu chego lá. Até quando for com 65 anos
Projeto: Panton 8
quero pregar em português, em castelhano, porque a
ordem do Mestre,
8 Projeto: Panton
criador do céu e da Terra é evangelizar todo mundo. Então,
meu coração pede muito, eu tenho que estudar.
DF: O senhor nasceu onde, aqui mesmo ou na Venezuela?
MF: Eu nasci em Maurak, em Venezuela. Mãe brasileira.
Pai meio venezuelano-taurepang. Eu nasci em Venezuela.
Com doze anos me trouxeram pra cá. Com doze anos.
DF: Uma informação: o pai e a mãe do seu pai, eles
eram taurepangues?
MF: Não.
DF: Não.
MF: Não, deixa eu ver. Eu acho... O pai da minha mãe era
macuxi, agora do meu pai é taurepang.
[...]
DF: O senhor sabe a história da fundação da comunidade?
MF: História do?
DF: De como foi fundada a comunidade. Por exemplo,
era o pai do seu pai que tinha comunidade no começo, ou
depois ele fundou, o senhor sabe?
MF: Bom, a gente sabe. Quando não tinha fronteira, os
indígenas viviam assim: pra eles não existia fronteira. Até
eu cheguei a ver, aqui não tinha nada, era deserto. Depois
que passaram aqui a Venezuela, o Brasil, apareceu esse
limite. Então, nessa época eles andavam pro Brasil, aqui é
Brasil, né?; voltavam pra Venezuela. Começaram a morar
por aqui. Diz meu pai que morou lá no Amajari, a família
dele é de lá. Veio daqui, o senhor sabe né, e eu também
fiquei preocupado assim, querendo saber por que é que os
indígenas foram pro Brasil, por que é que os brasileiros
foram pra Venezuela. Mas a gente sabe muito bem que
isso é normal: americano casa com a brasileira, brasileiro
vai pra um... não tem fronteira.
DF: A fronteira é algo criado pela gente. É claro, a
fronteira do Brasil nem sempre existiu. Ela foi conquistada
e muitas vezes com gente morrendo pra ter ela [...].
MF: Aí o casamento acompanha. Então, foi assim:
mora- vam aqui. Isso foi depois que receberam a Igreja
Projeto: Panton 8
Adventista
9 Projeto: Panton
aqui; foi expulso. O pastor deles foi expulso; o pessoal de
lá pra cá se espalhou; outros foram morar pra cá, lá pro
Amajari. De lá pra cá eles vieram, passaram a morar aqui
no Ireu, na beira do rio Ireu. Vieram, pararam aqui na Santa
Rosa, só os taurepangues. Aí vieram aqui, tem até pé de
buriti bem aqui aonde eles moravam. Até o Bananal,
quando nós chegamos aqui, em 77, daqui do Maurak,
existia Bananal. É deles, eles moravam aqui com meu pai.
Ele era mais novo, de 18 ou 20 anos. Como não tinha esse
movimento, a venda de mercado- ria, não tinha nada,
nada, não sei como eles viviam naquela época, eu não sei
dizer. Aí foram, moraram aqui uns 10 anos. Subiram pra cá,
moraram aí uns 5 anos no pé daquela serra. Foram
subindo, tem um campinho bem aqui em cima dessa
serrota, moraram lá. Aí foram passando pra Venezuela. Aí
foram morando, depois novamente voltaram. Assim eles
viviam aqui. Até que casou com a minha mãe, aí começou a
juntar família; se agrupar; controlar.
DF: E ele sempre foi o líder?
MF: Eh. Sempre foi o líder.
DF: Eu tenho outra dúvida, não é nem uma dúvida, é
uma curiosidade que não sei nem se é verdade. Me
falaram que a palavra “tuxaua” é uma palavra nova, não é?
MF: Eh. Era cacique, né?
DF: Eu não sei se era cacique.
MF: É... É tuxaua mesmo.
DF: A comunidade de vocês sempre chamou tuxaua ou
não?
MF: Eh, tuxaua.
DF: Sempre chamou tuxaua.
MF: Sempre tuxaua. É o líder de uma comunidade.
DF: E o pai do senhor sempre foi o líder.
MF: Foi. Sempre foi. Desde a igreja, o pessoal
reconheceu a proposta dele, opinião. Eu acho que ele
tinha boa opinião, né, boa proposta, então ele foi
Projeto: Panton 9
escolhido pra liderar. De lá
9 Projeto: Panton
pra cá ele vem como líder, passou a liderar a família. Então,
ele foi morar pra lá. Agora depois de andar, depois de
receber a Igreja Adventista, moraram assim, circulando: ia
pra cá e voltava, é assim.
DF: É. Porque às vezes tá num local, né, aí a caça diminui...

MF: Diminui. É assim.

DF: Isso aí é comum mesmo. E em relação à


alimentação, como era e como é hoje? O senhor acha que
mudou muito? Qual o seu ponto de vista em relação a isso?
MF: Doutor, o nosso alimento é, até no ano 2000, 90, a
gente manteve o nosso alimento normal. A gente saía pra
caçar dois dias daqui, ou antes a gente caçava bem aqui
perto. Aqui atrás da serra a gente conseguia algo pra
comer. As caças foram se afastando, e a nossa comida,
damorida (o senhor já viu falar, damorida? Já comeram
damorida?)...
DF: Já comi.
MF: O nosso alimento é esse, até 90, eu entendo assim,
36
Palavra espanhola, para até 90. Alimento puro. As mulheres, elas conhecem uma
planta. mata36 que tem aqui na roça nova. Tem a mata que a gente
usa pra comer, tipo repolho. Tira folha, bota pra cozinhar,
escalda, depois prepara. Quando tiver um peixe ou carne
de veado assado, bota nesse, mistura com essa folha e a
nossa comida...

DF: Era basicamente essa.

MF: Eh.

37
Espécie de sopa, em ge-
DF: E é engraçado. Eu achava que a damorida37 só era
ral temperada com muita com peixe. E aí me explicaram que não, com a caça que
pimenta, podendo ser feita
com caça ou peixe. A base tiver.
da comida indígena tradi-
cional é a damorida com MF: Eh. Damorida é alimento normal da comida dos
beiju seco.
índios.
ALGUÉM: Carne de veado, de paca, vai tudo.

DF: Vai tudo. Até pássaro. Eu já comi com peixe, eu


gostei muito. Só que a que eu comi não tava tão forte. Que
Projeto: Panton 9
eu sei que depende
das comunidades,
que eles colocam...
9 Projeto: Panton
ALGUÉM: Cada aldeia tem seu modo de...

DF: E aí eles colocam mais ou menos [pimenta].

ALGUÉM: Tem uns que colocam pimenta e aí elas se conforto hoje, com a
tor- nam muito quentes. Agora a gente aqui come um comunidade mudando menos
pouco de pimenta, não, lá aquelas coisas, muito fortes. 38 hoje em dia. Antiga- mente
andava mais, ia pra ali, ia pra
MF: Então, a nossa comida é essa, damorida. Até no
lá. Como hoje ela muda
ano 90 a gente comia. Agora, doutor, mudou muito; pra cá
mu- dou muito. Ninguém come mais a caça. O pessoal só
compra carne de gado aí no BV-8, todo dia. E galeto!39
Ninguém sabia o que é galeto, agora os índios daqui já
sabem o que é galeto.
DF: Tem caça ainda?

MF: Aqui mesmo, não. Mas indo um dia e meio, tem


muita caça. Também a gente mata caça escolhida.
Ninguém come porco, ninguém come tatu, ninguém come
anta, ninguém come nada. A gente mata veado mateiro,
campeiro, mutum, jacu, nambu, só. Então, se o senhor
entrar aqui nessa mata, você vê um bando de queixada.
Ninguém mexe com eles.
DF: Ah! Queixada vocês não consomem?

MF: Não. Porque a lei de Deus não permite.

DF: Mas e hoje, vocês estão comendo de tudo? A


comida praticamente do mercado?
MF: Do mercado se tornou mais pra... a daqui da
cidade. Antigamente não, só damorida mesmo. Agora
chegou, todo dia o peixe lá de fora, não sei da onde, de
Manaus. Chega aqui peixe que foi morto há uns dez dias,
vinte dias.
DF: [risos] Isso é complicado.

MF: É complicado. Então, nós estamos levando assim


um pouco daqui da comunidade mesmo e um pouco que
vem da cidade.
DF: Ah! Entendi. Mas também agora a coisa é mais
difícil, como o senhor mesmo falou, tem um certo
Projeto: Panton 9

38
Era comum, durante a entrevista, chegar outros indígenas. Alguns
faziam comentários.

39
Palavra pra frango, muito utilizada na fronteira com a Venezuela
entre brasileiros.
9 Projeto: Panton
menos, não tem pesca; aí fica mais difícil, não?
MF: Fica mais difícil.
DF: Andar um dia, dois dias pra encontrar uma caça.
MF: Agora mesmo a gente tá planejando de sair uns
dois dias daqui, pra 25 de dezembro, pra que os caçadores
che- guem com a caça, pra comemorar dia 25. É assim.
DF: Assim, a gente sabe que o senhor tem a religião
agora, mas quanto aos rituais antigos vocês ainda fazem
ou não?
MF: Não. Isso não existe.
DF: Não existe mais.
MF: Não. Só igreja mesmo. Eu tenho 53 anos. Ainda eu
não vi o que os nossos pais faziam. O meu pai nunca
pensou em fazer isso. Então, eu não sei como era. Até
agora eu não conheço aquele que chamam, falam de
parixara, tukui, mari-
-mari, aquela dança e outra cultura indígena, isso não existe.
DF: Ah! Entendi.
MF: Eh, aqui mesmo não.
DF: Na comunidade do senhor não.

MF: Eu não sei na Boca da Mata ou na Santa Rosa,


nessas outras comunidades. Mas aqui mesmo não. O que
os jovens estão praticando só o futebol, o jogo, gostaram
né? Então, se dedicaram pra isso. Mas a cultura indígena
mesmo não existe.
DF: Conhece porque já ouviu falar. E o senhor pertence
a alguma representação indígena?
MF: Como?

DF: O senhor falou que o senhor representa todas as


comunidades. A gente sabe que aqui no alto, estando aqui
40
Organização dos Profes- em cima têm várias... ALIDICIR, a OPIRR, 40 têm várias repre-
sores Indígenas de
Roraima.
sentações. O senhor pertence a alguma?
MF: Eu sou da ALIDICIR, do Nivaldo. Eu era, eu sou fun-
Projeto: Panton 9
dador da ALIDICIR.
Nivaldo assumiu
agora, dia 12 de
março, como
presidente.
9 Projeto: Panton
[...]

MF: Então, antes de, eu acho que antes de ele chegar


pra cá pra morar nessa região, a gente fundou essa
aliança. Eu tenho carteira aqui. Eu era vice-presidente,
trabalhei 5 anos. Fundamos em 98. O próprio presidente
pediu pra eu me afastar: “Você é vice-presidente, tu se
afasta, porque eu vou chamar outro.” Aí colocou outro. Aí
eu me afastei. Mas eu pertenço, até agora, se Deus
permitir, a gente dá continuidade.
DF: E como o senhor vê o índio hoje? [...]

MF: O índio, aqui no estado de Roraima, eu vejo assim,


eu não quero ofender as etnias ou a aldeia, mas o nível dos
índios tá subindo pouco a pouco, muito devagar. Tá
devagar a situação dos indígenas aqui no estado de
Roraima! Eu vejo assim. A educação tá aí pra educar, mas
eu não vejo advoga- do índio, eu quero ver advogado
indígena, ao menos dez...
DF: Pra poder representar.

MF: Pra representar, pra defender o seu povo. Eu não


vejo nenhum vereador índio. Eu não vejo nem três
indígenas prefeito. Eu não vejo nenhum deputado
indígena. Eu acho que é falta de interesse, porque os
alunos que estudam não querem, não querem, eu acho que
não querem subir. Quando termina o estudo dele, recebe o
seu certificado, vai pra sala de aula. Pronto. Esquece do
seu povo, só tá mexendo com os alunos. Eu vejo isso. Os
indígenas estão estudando sim, mas eu vejo que é muito
pouco, subiu pouco, muito pouco. Agora, se tivesse três
indígenas na prefeitura como prefeito, se tivesse ao
menos dois ou três deputados estaduais indí- genas, um
deputado federal em Brasília, aí combinava do deputado
federal pra estadual, do estadual pra prefeitura. Mas até
agora ninguém vê isso. Então, os indígenas não querem,
não querem aproveitar seus estudos. Estudaram, aí estão
encostados. Eu estive conversando com um rapaz que
trabalhou, serviu à pátria, né, ele disse: “Viche! Rapaz, eu
não quero!” Ele diz assim: “Eu não quero ser funcionário.”
Projeto: Panton 9
Aí eu disse pra ele: “Por quê?” “Porque, pra gente ser
funcionário
1 Projeto: Panton
do governo, a gente fica preso igual pássaro. Quando a
gente prende um pássaro, a gente não coloca na gaiola? A
gente fica assim preso; todo dia tu tem que ir naquele
gabinete ou no escritório. Então, eu não quero, eu não
quero não. Eu fui soldado, aprendi muito negócio de
armamento, eu já aprendi. Mas pra ser funcionário público,
não!”
DF: E os taurepangues têm até um..., é um coronel ou não?

MF: É o general.

DF: É um tenente, não?

MF: Eh. Tenente. Como é o nome dele? Até esqueço.

DF: Me esqueci também. Eu tenho até um recorte de


jornal, Tenente...41
MF: Então, eu estive conversando com o soldado da
41
aero- náutica, é um índio. Até quiseram levar ele pra
Referência ao taurepang
e Tenente Sebastião Belém, pra ele se formar lá, aprender mexer com avião, pra
Paulino que lutou na carregar os indí- genas, mas que: “Rapaz, se eu for pra lá,
Segunda Guer- ra Mundial.
quem sabe eu vou morrer lá. Minha mãe, meu pai...”
Pronto. Ele ficou aí. Nem foi. Então, os indígenas, nesse
ponto, eles estão perdendo, perdendo oportunidade. Só
tem muito, se o senhor quiser falar com os professores,
reúne os professores, dá muito professor. Agora, falar em
deputado indígena, nenhum. Falar em prefeito indígena,
nem cinco.
DF: Essa administração mais direta que é necessária.
MF: Eu acho que os indígenas se interessam só pra ser
professor, professora. Doutor, também eu não vejo o
índio. Eu não sei, quem sabe mais pra lá pra baixo, mas
aqui no estado de Roraima, eu vejo só professor e
professora. Nesse ponto os indígenas ainda estão nessa
jornada de professores. Ele vai pra escola, estuda e pronto:
lá mesmo ele fica. Ele fez segundo grau, já tá começando a
lecionar.
DF: Tá certo. E a relação do índio com a terra? O senhor
acha que mudou muito ou não mudou? A gente vive hoje
uma questão de conflito. Não é nem discussão, agora é
Projeto: Panton 1
conflito mesmo.
1 Projeto: Panton
MF: Questão da terra tá trazendo problema sério. Eh,
doutor, isso é principal, questão da terra. Eu moro aqui na
terra demarcada, área São Marcos, aqui área São Marcos,
aqui não é Raposa Serra do Sol. Eu, eu era segundo tuxaua
na época. Quem era primeiro tuxaua, Messias, que mora
ali naquela casa, eu era segundo dele. A gente
acompanhou a reunião das lideranças da área São Marcos,
a gente acompa- nhou. Não tem um prédio no São Marcos
lá em baixo, na beira do Rio Uraricuera, lá perto de Boa
Vista? A gente ia pra lá. 6 em 6 meses, as lideranças daqui
da área São Marcos faziam assembleia, faziam uma
reunião. Eu ia pra lá. Isso não produ- ziu, não teve o fruto,
não teve resultado dessa reunião. Uma vez o chefe de
posto que trabalhava lá no São Marcos, ele perguntou, já
no encerramento, ele perguntou dos tuxauas, ele disse:
“Tuxaua, eu vou fazer uma pergunta pra você”, ele tem
acompanhado muita reunião, ele perguntou assim: “O que
é que vocês estão fazendo aqui? Essa reunião é pra quê?
Qual é a proposta de vocês?” Aí tuxaua geral respon- deu
assim: “Chefe, essa reunião é nosso encontro, 6 em 6
meses ou ano em ano, a gente faz essa assembleia só pra
gente discutir sobre nosso problema, porque no ano
passado aquela comunidade tinha dez cabeças de rês,
outro tinha quinze, outro tinha vinte... Então, pra saber a
gente fazia uma reunião. No ano passado ou no ano
retrasado ele tinha dez, quem sabe esse ano ele já tem
quarenta. Então, pra avaliar.” Aí o chefe do posto
respondeu assim: “Não, isso não é bom. Porque vocês são
pai de família, os filhos de vocês estão lá passando fome. É
bom vocês pararem. Vamos trabalhar.” Aí ele voltava a
responder assim: “Eh, nós podemos trabalhar sim. Mas
como é que nós vamos trabalhar? Como é que nós vamos
criar? Tem fazendeiro ao nosso lado, tem pra cá, tem pra
ali, então não tem como a gente trabalhar.” Então, chefe
de posto respondeu assim: “Eu estou aqui pra ajudar
vocês. Se vocês fizerem, elaborar um documento pra
presidente da Funai pedindo projeto de gado, algum
projeto, eu estou aqui pra assinar. Mas encontro de vocês
não vale a pena, porque vocês vêm de longe, do Contão,
Projeto: Panton 1
Santa Rosa, e o filho de vocês...” Então, é nesse ponto que
as lideranças indígenas
1 Projeto: Panton
perderam a questão nessa assembleia. E depois foi falado
sobre a linha de transmissão: Eletronorte e o presidente do
Brasil, presidente da Venezuela já fizeram negociação.
Então, ouvindo esse acordo dos dois presidentes, as
lideranças se reuniram novamente: “O que é que nós
vamos fazer?” Então, até que as lideranças não quiseram
aceitar a Eletronorte usar a terra deles; consideravam a
terra indígena não era demarcada; demarcado, mas
fazendeiro permanecia aí. Até eu tava participando da
reclamação dos tuxauas: “Por que é que o presidente da
Funai não se manifesta pra indenizar os fazendeiros?”
Presidente da Funai, ou Funai, administrador de Boa Vista
nunca conseguiu recurso pra indenizar ao menos um
fazendeiro, nenhum. Nunca. Depois quando se falou so-
bre essa linha de transmissão, aí os tuxauas se reuniram.
Eles tiveram uma ideia: “Agora se a Eletronorte já fez
negociação, os presidentes já fizeram negociação, então
vamos entrar de acordo. Se a Eletronorte usar a nossa área
de Pacaraima até o Rio Parimé, aonde pertence aos índios,
nós vamos querer indenização.” Até que chegaram um
consenso de negociar, e disseram pra Eletronorte: “Vamos
negociar!” Aí o presidente da Eletronorte ficou olhando
assim pra ele. Não falaram não, porque eles tinham muito
42
dinheiro, né? Tinha o representante, vocês devem
José Porfírio Carvalho,
consultor indigenista da conhecer aquele, o Zé Carva- lho,42 Carvalho, consultor
Eletronorte. Nem sempre indígena. Carvalho, um homem de idade. Ele disse assim:
foi possível indicar as refe-
rências nominais. Quando “Doutor Carvalho, acho que ninguém vai permitir a linha
possível, serão trazidas.
de transmissão cortar nossa área, porque já nós estamos
tentando expulsar os fazendeiros daqui da nossa área,
receber os brancos novamente, pra completar, Não!” Aí a
Eletronorte respondeu: “Olha, então a gente vai arrodear
por aqui pela outra comunidade, por onde limite da área
indígena. Nós vamos cortar por aí.” Aí: “Tá. Então, nossa
área vai ficar. Aí vai ter paz, não queremos.” E depois o
consultor, o Carvalho diz: “Olha, se vocês, se vocês acei-
tarem, a indenização da terra de vocês vai ser cinco
milhões de reais ou quatro milhões, conforme a gente vai
bater aqui e pra ver o valor. Se vocês usarem esses
recursos pra indeni- zar fazendeiros, se vocês entenderem
Projeto: Panton 1
melhor assim, vocês
têm que aceitar. O
dinheiro dá pra
pagar esses cento e
dois
1 Projeto: Panton
fazendeiros que estão aqui. Aí com isso vocês vão
indenizar. Se entrar quatro milhões, cinco milhões dá pra
indenizar.” Aí pensaram: “Rapaz, será que isso daí vai dar
certo?” “Vai.” Aí ele trouxe o DVD pra mostrar: “Isso aí não
vai prejudicar. Os índios do Pará também, eles aceitaram
pra fazer hidrelétrica. Os índios estão vivendo bem. Isso aí
não é prejudicial.” Então, esse consultor amostrava como
funciona, porque os índios daqui de Roraima, daqui dessa
fronteira, não conhecem o que é a torre, a linha de
transmissão. Ninguém conhecia. Aí chegaram numa
conclusão que aceitaram: “Tá. Então, deixa que a
Eletronorte trabalhe. Agora nós queremos receber.” Os
indígenas, meus parentes ficaram tudo animado, sem
saber o que ia de acontecer. Sem saber, só falaram sobre
indenização; sobre retirada dos brancos; sem saber o que
tinha na Constituição brasileira. Os tuxauas não sabem, até
eu não sei. Por isso que eu tava falando pro senhor que
nós temos que estudar, o índio tem que estudar. Sem
saber o que há de acontecer, vamos tirar os fazendeiros;
vamos tirar tudo. Aí eles ficaram olhando pra eles: “Tá
bom, então o trabalho que vai ser realizado, essa área, vai
parar, vamos cortar por aqui.” “Tudo bem!” Entraram em
negociação. Os índios macuxis tinham maioria, maioria dos
macuxis. De taurepang só tinha daqui do Sorocaima I,
aonde eu estou, aonde nós estamos. De taurepang tinha
do Bananal; de taurepang só tava Hilário, da Boca da Mata.
Só nós três, três comunidades. Então, as lideranças não
souberam cobrar; as lideranças não souberam dar a
quantia de dinheiro: cinco mil, dez mil. Disseram assim:
“Então, se Eletronorte usar essa área, a área indígena, nós
queremos todos, com esse dinheiro nós queremos tirar
todos os fazendeiros”, falaram assim (eu tenho um livro
que passaram pra gente). Tudo bem. Aí o consultor
indigenista falou assim: “Tá, então vamos conversar com
os fazendeiros. Área de vocês, ela vai, área de vocês, ela
vai chegar a oito milhões de reais. O valor da área de vocês
vai dar sete, oito milhões de reais.” “Agora vamos ver.”
Então, ficou aí. Parou aí. Aí fizeram a lista dos fazendeiros
que estão morando aqui. Não atingiu cinco milhões de
reais, só deu dois mil e quinhentos. Aí ficou. Ele disse
Projeto: Panton 1
assim, o Carvalho falou assim: “Se os fazendeiros, se
1 Projeto: Panton
o preço dos fazendeiros for cinco milhões, dez milhões,
não vamos gastar. Se o preço dos fazendeiros for dois
milhões e meio, também vai ficar por aí.” Amarraram
assim. Aí os índios perderam. Não deram o preço fixo.
DF: Ah! Entendi. O preço foi de acordo com...
MF: Eh. Ficou no ar. Então, eu tentei falar como líder de
uma comunidade, mas as lideranças macuxis eram maioria:
“Não. Vamos fazer assim.” Aí eu ficava só observando. Foi
assim negociação com a Eletronorte pra tirar os
fazendeiros. Foi assim. Não deram preço fixo. O Carvalho
falou: “Se o preço dos fazendeiros tiver passando de dez
milhões a Eletro- norte vai gastar. Se os fazendeiros, o
preço dos fazendeiros for até dois milhões, três milhões,
também, vai ficar por aí, o que é que vocês estão pedindo.
Vocês não estão pedindo pra tirar os fazendeiros?” “Nós
estamos pedindo.” “Então vamos em frente.” Então, eu
acho que deu até três milhões e meio. Não tinha preço
fixo...
DF: O nome é Linhão de Guri, não?
MF: Linhão de Guri.
MF: Então, aconteceu isso. Então, os indígenas
pensaram, estavam pensando que essa área ia ser
entregue pra eles. Até eu tava no meio. Pra mim ia ser, pra
mim essa terra do Manoel Bento Flores. Não. Depois mais
tarde, o próprio consultor indigenista, o Carvalho, falou
assim: “Agora os índios vão trabalhar. Agora os índios vão
produzir. Eles eram massacrados pelos fazendeiros. Agora
os índios vão criar gado. Agora os índios vão brocar roça,
derribar. Agora eu quero ver os índios trabalhar.” Foi feito.
Ele mesmo falava. E depois ele mesmo disse pra mim, pra
meu pai, ele disse assim: “Vocês estão pensando que vocês
estão na terra de vocês?”

DF: Eh. Legislação não é assim. Eu conheço.


MF: Aí teve mudança. “Essa terra é da União, não é de
vocês.” Aí veio outra história.
ALGUÉM: Se fosse aquele cacique Juruna que tinha tudo
gravado...
Projeto: Panton 1
MF: Sim! Doutor, se eu tivesse gravador, a gente tinha
1 Projeto: Panton
brigado com Carvalho. Mas ninguém tinha, quem tinha era examinar a Lei, embora que
só ele. Aí teve grande confusão. Disseram no início que a eu não vou resolver, mas a
terra é dos índios e depois quando os fazendeiros saíram gente tem que
da área São Marcos vieram dizer que a terra é da União.43
DF: Eu conheço a legislação.
MF: Aí tiraram o poder das mãos dos índios. O índio
não tem poder pra administrar essa área. Quem administra
é órgão federal.
DF: E pago praticamente, de alguma forma, com a
nego- ciação feita pelos próprios índios.
MF: Então, doutor, então eu tava dizendo pro senhor
que a gente tem que estudar, porque não é só essa, vai ter
outro problema. Então, pra isso a gente tem que se
preparar. Ago- ra, se a gente ficar assim, assim como
patriarca quer: “Não, deixa, vamos ficar...” Não. Isso daí
não existe. Recentemente a gente conversou com
Gonçalo, 44 administrador da Funai. Ele passou pra nós, tá
tendo outra negociação, de Caracas pra Argentina,
gasoduto. O mesmo trabalho que a Eletronorte fez, outra
firma também vai fazer, por baixo da torre, vai pra
Argentina; vai cortar terra indígena; vai cortar terra dos
fazendeiros; vai cortar o Estado de Roraima; vai entrar pra
Manaus; aí vai embora. Gasoduto vem da Venezuela,
porque Venezuela tem muito gás.
DF: Lá tem demais.
MF: Então, tá tendo este estudo, então pra isso as
lideran- ças indígenas. Porque no meu tempo, quando
fizeram essa negociação, os índios perderam muito,
perderam, porque só pensaram em tirar os fazendeiros e
não olharam a quantia de dinheiro. Então, o próprio
consultor indigenista, o Carvalho, disse: “Eu não sei, se os
fazendeiros pedirem dez milhões, Eletronorte vai
indenizar. Se os fazendeiros pedirem quatro milhões,
também vai ficar aí. Pronto. Em segundo lugar dizem que
terra é da União, a Funai não pode dar título definitivo pro
índio, porque não é deles. E aí, companheiro? Eu não es-
tou satisfeito com isso não. É por isso que tem que
Projeto: Panton 1

43
Referência ao fato de os indígenas possuírem usu- fruto da terra, e
por isso restrições no seu uso.

44
O coordenador regional da Funai à época em Roraima, Gonçalo
Teixeira.
1 Projeto: Panton
combater a mentira do Governo Federal.
DF: E isso é complicado, porque tá previsto na Constitui-
ção. Modificar a Constituição é possível, mas é difícil.
MF: É difícil. [risos] Doutor, e as lideranças indígenas
nunca pegaram na Constituição brasileira. Ninguém! É por
isso, sem saber. “Nós queremos tirar os fazendeiros,
tudo.” Tiraram, e depois vem ordem pra ninguém mexer
com a pedra; pra ninguém mexer a areia; pra ninguém
mexer com isso: terra da União. Não pertence aos índios.
DF: Não pode comercializar.
MF: Eh, não pode.
DF: Vamos ver se o senhor tem uma memória boa. E
como é que era feita a construção das casas na
comunidade?
MF: Construção da...
DF: Ela é feita pelo próprio. Antigamente era uma coisa
mais comunitária, não era isso?
MF: Eh.
DF: Continua sendo assim? Como é que é?
MF: Entre as comunidades?
DF: Não, por exemplo, tem que construir uma casa ali
pra alguém que tá precisando ou alguma coisa assim, ou
um rapaz que tá casando novo...
MF: Eh.
DF: Ele mesmo que é responsável? A comunidade se
une? Como é que era antigamente, o senhor lembra? Se
hoje mudou...
MF: Não. Nessa parte não mudou nada. Continua no
mesmo. A nossa tradição nessa parte continua.
DF: E como era?
MF: Quem tem que fazer, o rapaz quando completa sua
idade de 18 anos, 20 anos, ele já vai começar a fazer a
casinha pra ele, ele mesmo.
Projeto: Panton 1
DF: Ah! Ele mesmo.

MF: Eh. Ele mesmo faz. É assim.

DF: Aí quando casar...

MF: Quando casar já tem barraquinho, pra levar a


mulher pra debaixo do barraquinho. É essa.
DF: O casamento é dentro da tradição evangélica?

MF: Eh. Conforme a lei de Deus, tá escrito na Bíblia,


tudo. Então, por aí nós estamos levando. Quando o rapaz
vai casar, tem que apresentar na igreja. Só.
DF: O senhor tem informação de como era antes ou não?

MF: Não.

DF: Tá certo. E os animais domésticos que tem hoje são


os mesmos?
MF: Os mesmos.

DF: Tem uma outra parte agora que é a parte da


história, tá mais ligada à parte de... uns falam que é mito,
mas por exemplo, tem outras comunidades que aceitam
isso como história da comunidade. Por exemplo, existem
essas histórias do Canaimé aqui?
MF: Ah! História de Canaimé? [risos]
DF: Isso. Não tem, tem, já teve? O senhor conhece essa
história?
MF: Doutor, Canaimé, eu acho que existe em todos os
países. Em Boa Vista tem muito Canaimé; no Bananal tem
muito Canaimé; em todo canto tem Canaimé. Canaimé que
a gente fala, a pessoa que mata outro. Na linguagem dos
brancos é bandido. É Canaimé. Os índios, os taurepangues
chamam esses bandidos de Canaimé. O bandido, ele não
vai, quando o senhor vai com a sua carteira, ele toma e
pega faca; esfaqueia e deixa morto aí? O Canaimé, ele faz a
mesma coisa, um pouco diferente. O Canaimé mata por
matar, não é por causa dos cem reais, não por causa dos
quinhentos reais, não. Mata por matar.
1 Projeto: Panton
DF: Sem motivo.

MF: Sem motivo. Quando as crianças estão banhando


nos igarapés, ele se esconde no mato e fica aí. Quando a
criança se separa dos outros assim, pega pela perna,
arrasta no igarapé e enforca. Aí deixa aí ou quebra tudo. A
criança torna a andar. Passa um dia, sente a dor, com dois
dias morre. Canaimé que nós chamamos tem, até agora
existe, existe. Eu nunca vi Canaimé, mas eu sei da história,
porque recentemente mataram um bem aqui.

DF: Foi?

MF: Foi. Eu acho que o senhor indo lá, eles devem


contar, porque aconteceu agora no ano passado, em 2007,
foi mês de agosto, mês de março, por aí, do ano passado.
Mataram um, e foi Canaimé.

DF: E foi aonde?

MF: Aqui no, já ouviu falar no San Inácio?

DF: San Inácio?

MF: Sim, aqui em Venezuela?

DF: Não.

MF: Maupari, uma comunidade, Maupari. Lá que mata-


ram.
DF: Eles mataram um Canaimé?

MF: Mataram um Canaimé. Tava matando parente. O


Canaimé tava matando parente. Aí companheiro do
parente veio, encontrou agarrado com ele e meteu a faca
na barriga do Canaimé.
DF: O Canaimé a princípio é uma pessoa também ou é
um...
MF: É uma pessoa: como o senhor; como ele; como eu.
Esse Canaimé que mataram, eu já vi ele no Maurak,
estudan- te, é formado, é sabido. Eu acho que ele era um
professor, mas ele se tornou — quem sabe ele usou o
remédio que eles
Projeto: Panton 1
têm — então se tornou Canaimé.
DF: Remédio?
MF: Eh. Alguma planta que eles têm.
DF: Ah! Sim.
MF: Eu já andei pra cá, pra Guiana em 88, 80 e... 90 e...
andei por aí em 96, aí andei pra lá na Guiana, fui visitar os
parentes. Quando nós chegamos lá, fomos tirar lenha.
Tinha um barracão como esse daqui, mas era aberto. Aí
nós está- vamos pendurando a rede, aí chegou cidadão de
lá: “Vocês vão dormir aqui?” “É, nós vamos dormir aqui.”
“Não, porque é proibido vocês dormirem aqui na casa
aberta. Vocês não podem não.” Aí eu disse: “Por quê?”
“Não rapaz, aqui tem muito Canaimé. Se vocês forem
dormir aqui fora, vão matar vocês, porque vocês são
recém-chegados e, se o Canaimé matar vocês, aí acabou,
vocês estão mortos. Vão pra ali.” Era uma casa como essa
daqui, bem fechada: “Aí não dá pro Canaimé entrar.”
Então, lá existe, eu vi. É feio.
DF: É!
MF: É feio.
DF: E ele se veste assim normal ou...?
MF: Ele usa é, ele se disfarça como tamanduá, como onça.
Então, ele dá um susto na pessoa e aí pega.
LS: Então, qualquer pessoa pode ver o Canaimé?
MF: Eh. Canaimé existe, Canaimé. Eles usam uma
planta deles mesmo, deles, então eles praticam muito esse
Canai- mé. [...]
DF: É como se de alguma forma eles fossem até possuí-
dos, alguma coisa assim. Porque eu vi a história. Eu
conheci há pouco tempo e fiquei muito curioso.
MF: Sobre a história de Canaimé?
DF: Eh.
MF: Existe, existe.
1 Projeto: Panton
DF: Eu dei um curso no INSIKIRAN, e a menina tava fa-
lando pra mim, contando, me explicando. Eu fiquei muito
curioso. Porque é algo estranho, não é?
MF: É estranho, estranho.
DF: Que age meio involuntário, assim, sem um motivo
aparente, do jeito que ela me contou, e que os indígenas
respeitam muito, tem um respeito. Não sei se é um
respeito, é quase um medo mesmo, pelo que ela falava.

45
MF: Eh. Canaimé existe. Eu fui pro km 88 45 agora no ano
Referência a um local na
Venezuela, que localiza-se passado, no dia 7 de setembro, quando o Exército tava
no km 88, sentido Santa
des- filando. Eu passei pra lá, lá eu vi muita coisa, história
Ele- na de Uairén Puerto
Ordaz. desse Canaimé. É muito perigoso. Ele mata. Até eles
amostravam um Canaimé: um gordo, um homem forte.
Isso daqui, aque- le aí, você não pode nem zombar dele
assim: “Não mata ninguém!” Pode se aprontar que ele te
mata. Acostumado matar. Só que eles não matam:
“Matou? Não, fulano matou.” Quando ele toma uma
cervejinha: “Ah! Eu matei.” Pronto.
DF: Ah! Ela me contou também que era engraçado pra
descobrir se a pessoa foi atacada ou não, porque pode
atacar e não matar, não é isso? E a pessoa passa uma
semana; fica triste; fica não sei o quê; fica amuada. Como é
que faz pra saber se a pessoa foi ou não atacada pelo
Canaimé? Porque às vezes ele nem sabe se foi atacado.
Não é isso?
MF: Eh. A pessoa não conta não. Não conta.
DF: Ela não consegue contar, não é?
MF: Não consegue contar.
ALGUÉM: Aí, na última hora eles contam.
MF: Dizem os mais velhos, (como é que chama?),
negócio de pilão, é mão de pilão, que soca assim: “tá, tá,
tá, tá.” Aí lava, dá um pouco de água pra ele, aí passa a
contar.
DF: Ah! Sim. Pega a água do pilão.
MF: O meu tio, irmão do meu pai ali, morreu de Canaimé.
Projeto: Panton 1
DF: Sim?

MF: Eh. Morreu.


Sempre eles falavam
dos Canaimés. Os
1 Projeto: Panton
outros falam: “Não, fulano, ele viu Canaimé...” Aí ele
andava só, aí ele ficava dizendo: “Rapaz, o pessoal tá
mentindo, porque eu nunca vi Canaimé. Eu sou velho, eu
ando muito, eu ando sozinho.” Até ele puxava faca,
pedaço de faca assim: “Se Canaimé se aproximar eu corto
ele.” Mas chegou o dia, tinha um barracão velho assim
abandonado, na hora da chuva (andavam em grupo, né,
seis pessoas), nessa hora, no campo mesmo, nessa hora
choveu. Aí em vez de ele acompanhar o grupo, não, ele
saiu com medo da chuva. Correu. Aí ele se escondeu num
barracão velho, num goiabal fechado assim. Ali tinha os
Canaimés. Na hora que ele entrou no barracão, pegaram
ele aqui. Pronto, não sentiu mais. Aí ele, depois que passou
a chuva, ele veio embora; veio conversando; conversando.
Com dois dias ele se adoeceu, se adoeceu. Aí levaram ele
pra [Ciudad] Bolívar, e ele morreu lá. Antes dele sair, ele
contou. O irmão dele, o meu pai, perguntou: “O que é que
o senhor viu? O que é que aconteceu, o senhor não viu o
Canaimé?” “Não, na hora que eu ia entrando naquela casa
velha abandonada, eu vi os pombos voar muito, e não
senti mais.” Aí pronto. Morreu de Canaimé.

DF: A palavra Canaimé, ela é taurepang, não é?


MF: Eh. É taurepang. Não é Canaimé.
DF: É como que pronuncia?
MF: Na nossa linguagem, Kanaimö.
DF: Kanaimö?
MF: Kanaimö. Canaimé já passa pra português.
DF: Ah! Sim.
MF: Assim como Sorocaima não é Sorocaima. Na nossa
linguagem, [se] fala Saracanhã.
DF: Saracanhã. [...]
DF: E tem um significado Canaimé, assim a palavra mes-
mo, não né?
MF: Não.
Projeto: Panton 1
DF: Significa isso tudo.
MF: Kanaimö é perseguidor mesmo.
DF: Significa isso tudo.
MF: Kanaimö é o bicho.
DF: E Saracanhã, falei certo?
MF: Não. Saracanhã.
DF: Saracanhã.
ALGUÉM: Saracanhã tem outro significado.
DF: Pode falar ou não?
MF: É...
DF: Se não puder não tem problema.
MF: Nós podemos falar sim. Nós estamos aqui pra...
DF: Significa o quê?
MF: Significa assim, vou explicar bem pro senhor.[...]
MF: Saracanhã antigamente é conhecido lugar, esse
lugar é doentio. Não sei se o motivo da água, eu não sei.
Então, Saracanhã já pra pegar esse nome, o pessoal
chegava aqui nesse lugar de outra comunidade, assim, do
Contão, de outra comunidade; e chegavam; e chegavam;
então entravam aqui já pra descobrir isso. Entravam aqui,
como a gente coloca, a pessoa chegava “sarac”, aí ficava, e
não voltava mais. Só estavam engolindo: “sarac, sarac.”
Chegava outra pessoa de outra comunidade: “sarac”,
morria, aqui morria. Não voltava mais. Então, só tava
recebendo. Então, na nossa linguagem, colocar dentro é
“sarac.” Quando tiver outra pessoa, “sarac”, morria aqui.
Depois de dois anos, três anos, chegava outra pessoa,
“sarac”, morria. Então, pegou esse nome Saracanhã.
DF: Ah! Entendi. Mas então, “sarac.” é chegar, né?

MF: Colocar.

DF: Colocar. E “canhá”?

MF: Já estão colocando “sarac.” Saracanhã.


1 Projeto: Panton
ALGUÉM: Saracaimã: “colocar assim.”

DF: “Colocar sim.”

ALGUÉM: Colocar: “sarac”; “caima”: assim.

DF: “Colocar assim”, “Colocar desse modo.” Caimã.

MF: Saracaimã. Então, tem esse nome Saracanhã.


Quando alguém vem pra cá pra esse lugar ele diz:
“Saracainatak tö soro [vou para o Sorocaima]” “Aonde?”
Vem pra cá.
DF: Ah! Legal.

MF: A história é essa.

DF: História bonita.

MF: Assim como história do Macunaima, né? Na nossa


linguagem o nome não é “Macunaima”, é “Makunaimö”,
na nossa linguagem é um pouco diferente. Makunaimö.
Agora pegou esse nome “Macunaima”, aí ficaram.
DF: Vai adaptando. Já que o senhor falou de
Macunaima ou Makunaimö, Makunaimö... é um pouco
nasalizado, então pode aproveitar e falar um pouco sobre
o Macunaima. O que o senhor sabe?
MF: Macunaima, história do Makunaimö eu não sei.
Quem sabe é segundo tuxaua. Ele pode ter gravado
alguma história do Makunaimö, é com ele.
DF: Ah! Sim.
ALGUÉM: Eu sou mais novo, eu não sei.
MF: Se o senhor estiver amanhã, se a gente estiver aqui
conversando eu posso, porque tuxaua pediu pra mim
convi- dar o mais velho, o Clemente. Agora não dá pra
vocês gravar, porque ele fala tão rápido, igual rádio novo.
DF: Mas, gravado não sai daqui. [...]
ALGUÉM: Me tire um dúvida, eu estive recentemente
na comunidade Caracau, região da Raposa Serra do Sol...
MF: Aonde?
Projeto: Panton 1
ALGUÉM: Caracau, comunidade do Surumu. Uma
profes- sora da Universidade Estadual tava organizando
um passeio com os estudantes da Universidade lá no
Surumu. Quando a gente chegou nessa comunidade pra
visitar os locais de difícil acesso, onde era realmente a
cachoeira, o mais antigo da comunidade falou o seguinte,
que quando nós chegásse- mos, nós nos reuníssemos, pra
quando chegar no lugar ter um certo cuidado, tipo:
admirar uma serra, admirar alguma pedra, admirar alguma
coisa lá, poderia a gente voltar no outro dia, no outro dia
amanhecer doente. Pra evitar isso, teríamos que passar
pimenta na palma da mão e no solado dos pés. Essa
tradição vocês seguem aqui também? E por que é que a
pimenta é tão importante nessa hora? Você poderia dizer
pra mim?
MF: Pimenta é usado pra remédio, até pra colocar nos
olhos da gente quando a pessoa tá com preguiça, não quer
ir pra roça, aí o velho mais idoso vem e faz oração dele, aí
bota nos olhos, aí ele se alerta. É assim. Pimenta é usado
pra isso. Então, quando a pessoa passa pimenta aqui nos
pés, nos ombros, é pra matar força dos bichos que estão
aqui e pros indígenas existe alguns bichos aqui na serra, só
nessa Serra. Então, pra isso tem que passar pimenta, é,
aquele urucum. Eu vim com meu tio daqui do Maurak, eu
era mais novo, ele vinha pra cá visitar a nossa comunidade
aqui. Vinha ele, a es- posa e os filhos; aí ele conhecia esse
lugar como Saracanhatá, que recebe a pessoa e morre,
então ficaram com medo. Aí, antes da gente sair eles
prepararam urucum numa vasilha menor do que isso aqui,
aí prepararam. Já pra gente entrar nessa mata, aí a mulher
dele chamou os filhos de doze anos, de dez anos, de oito
anos, aí pintou eles todinhos por aqui, aqui no braço...
DF: Pintou o rosto...
MF: Eh. Aí entraram tudo pintado pra cá, pra não pegar
doença, pro bicho não enxergar. É assim.
ALGUÉM: Lá pro lado do São Marcos fizeram a mesma
pergunta. E um senhor falou o seguinte, que uma vez ele
amanheceu com preguiça, muita preguiça. O pai queria
que
1 Projeto: Panton
ele fosse trabalhar na roça, ajudar os outros. Tava com
muita preguiça, sentindo dor no corpo todinho. Aí ele
disse: “Ah! Tu tá sentindo dor no corpo, então vamos ali.”
Aí levou ele na beira do rio, chegou lá tirou um cipó e
começou a bater no corpo dele, em tudo que era parte
onde tinha dor, chicoteou ele de tudo que é parte, depois
pegou a pimenta, amassou na mão e botou no corpo. No
outro dia ele tava com vontade e coragem de trabalhar.
DF: [riso] Aí não tem reclamação, tem?
MF: Antigamente eles faziam isso mesmo, eles faziam.
DF: Isso é a tradição.
MF: Pimenta e tudo isso é tradição. Mas como saímos
pra religião, isso parou, parou mesmo. Aqui, a criança não
conhece essa cura que os antigos faziam.
DF: É por isso que às vezes é importante a gente ter um
registro disso. Não é nem pra mudar a cabeça das pessoas,
é porque isso pertence à história da comunidade de algu-
ma forma. Talvez hoje as pessoas não saibam mais, talvez
amanhã não, mas daqui há uns cem anos as pessoas
podem simplesmente ouvir: “Ah! Era assim! Olha como é
que era diferente!...” E conhecer. Se a gente não conhece,
a gente nem pode gostar direito. A gente tem que
respeitar. A gente só consegue respeitar e gostar daquilo
que a gente conhece.

MF: Na verdade tá tendo mudança. Voltando pra


educa- ção, tá tendo mudança. Aqui a gente comia tudo
junto. De manhã, lá pras 7 horas, o homem que mora nessa
casa, mora pra ali, dá um grito: “Umbora titio, sobrinho,
umbora comer damorida!” Aí ele vem com a damorida dele,
bota a damorida; daquela casa vem, bota damorida: a
família se ajunta. É meia hora, uma hora pra comer
damorida contando história: quem vai sair pro trabalho;
quem vai sair caçar; é assim. Hoje, como eu tava passando
pro senhor que os indígenas não chegaram a nível pra
trabalhar em prol da população indígena, mas nessa parte
eles estão se desligando da tradição. Cada qual come na
Projeto: Panton 1
sua casa. Esse rapaz que mora naquela casa, comida
1 Projeto: Panton
que ele consegue é pra ele. O que mora aqui também
prepara sua comida, ele come. Estão aprendendo,
aprenderam mais o que é dos brancos, né?
DF: Nós somos assim.
MF: Eh. A casa bem juntinho, mas não chama outro. A
comida que ele tem é pra aquela casa. Também ele não
conhece outro, conhecendo ele não diz, porque eu já
passei por aí em Boa Vista: “O senhor conhece o fulano?”
“Não.” [...] Nem dá bom dia, passa assim perto, mas não
fala. En- tão, nessa parte os índios já estão participando. O
que ele comprou, o que ele gastou é pra ele, deixa o
vizinho passar fome. Antigamente, quando a gente
começou a morar, não era assim. Antigamente a gente
chamava, agora não. Agora é na base do dinheiro. Aí outra
pessoa diz: “Não, rapaz, às vezes eu falo pra minha esposa
‘vamos convidar o parente
...’ .” “Não, tem pouca comida, não vai dar. Também nós
gastamos dinheiro...” É assim. É nessa parte a gente entra
nessa divisão.
DF: Que é já a cultura do outro.
MF: Eh. A cultura dos brancos.
DF: Eh. Nós somos assim. A não ser em ocasião de
festa, que a gente se reúne...
MF: Eh. No dia da festa é aberto pra todo mundo, pode
vir preto, amarelo, é tudo, mas assim no meio da semana é
difícil.
DF: Não, praticamente não existe.
[...]
MF: Doutor, eu queria terminar o assunto da área de-
marcada, a terra da União, porque sem saber os tuxauas
brigaram. Agora estavam querendo solicitar o título
definitivo da Funai, aí ele disse: “Não. Título definitivo pro
índio não se dá. Por quê?”, ele falou pra nós, “Por quê? Vou
já explicar: se o índio receber o título definitivo, ele vai se
tornar o dono daquela área.” Ele falava, eu sempre
converso com ele: “Ele vai se tornar o dono daquela área,
Projeto: Panton 1
ele vai querer negociar com os brancos. O dinheiro
daquela área vai servir muito pra
1 Projeto: Panton
ele. Como? Pra ele comprar o carro, ele vai andar de carro;
ele vai sair da sua cultura, da sua tradição; ele vai acompa-
nhar os branco, andar de carro. Então, deixa os índios sem
título de terra.”
DF: E aí vai passando de um pra outro, mas...
MF: ... só que acontece, não sei se acontece pra lá pro
Pará, Maranhão, não sei, mas aqui na fronteira acontece
isso. Meu pai, ele procurou dar o nome da fazenda: é
Fazenda Flores. Aqui é só família Flores, então, aí ele
passou: “Eu que- ria que o senhor fizesse uma placa:
Fazenda Flores, porque somos família Flores e nós
queremos a placa.” Aí chefe de posto disse: “Não. Não
pode ser assim. Esse daqui não é de vocês, é da União.
Vocês não podem ser o dono.” E no ano retrasado — eu
acho que aconteceu isso em 2003 — uma vez o nosso
carro que foi doado pelo governo, uma Toyota
Bandeirante, atropelou um carro venezuelano lá dentro,
lá em Venezuela. Aí o dono do carro passa pro advogado,
advogado chama o carro: “Não, deixa o carro brasileiro
aqui. Nós vamos entregar o carro só quando ele pagar
meu carro.” Pronto. O nosso carro foi preso, o carro do
governo. Aí nós ficamos aqui aperreados; nós tirávamos
dez cachos de banana; outros davam um saco de farinha,
ali apuramos pra pagar advogado pra ele liberar o carro.
Não deu pra cobrir aquela dívida. Aí o que é que nós
pensamos? Nós temos a fazenda indenizada, Fazenda Asa
Branca, que foi indenizada pela Eletronorte juntamente
com a Funai e as lideranças. Tá dentro do cercado, dentro
do cercado, lá tem pedra, pedra bruta mesmo. Aí tinha um
homem comprando aí dez carradas de pedra, já que a
comunidade não tinha. Tinha, mas não deu pra cobrir
aquele tanto de dinheiro. Então, estudamos: “Agora
vamos pegar pedra, oito carradas, até aonde der.” Aí
consultamos uma caçamba, levamos, ajuntamos um mon-
te de pedra, aí levamos. Eles estavam olhando pra gente.
Aí levamos mais carradas. Aí alguém correu lá: “Rapaz, a
comunidade Sorocaima I tá vendendo pedra.” Eu fui com o
Nelson da Funai, aquele moreno, ele tava aí no Programa
Projeto: Panton 1
São Marcos. Aí quando a gente vinha subindo com a
carrada de
1 Projeto: Panton
pedra, aí pegaram carro; vieram atrás da gente. Aí
cercaram a caçamba; aí desceram lá: “Pra, pra, pra. Vamos
parar!” Aí nós descemos: “O que foi?” “Caçamba tá
presa!” “Por quê?” “Porque vocês estão vendendo pedra.”
Aí tentamos esclarecer: “Não, negativo! Não pode.”
“Caçamba tá presa e a pedra tá presa. Vamos levar pra
Polícia Federal.” Aí o ca- çambeiro disse: “Não. A pedra tá
presa, tá certo, mas minha caçamba não vou liberar não.”
Aí encostou caçamba velha, aí derramou. Ele também se
esquentou, né, o caçambeiro. Tá lá o monte de pedra. Aí
teve essa confusão. Quando a gente fala de terra, agora
depois de acontecer, depois que aconteceu, que eu quero
dizer, depois que aconteceu, voltei a reconhecer que não
foi entregue à comunidade indígena. [...] Então, aconteceu
isso. Estão lá as pedras, estão lá. Aí eles dizem assim: “Se
vocês levarem de novo, vou mandar prender vocês. Vou
mandar prender vocês porque isso daí não pode, não pode
não.” A dívida ficou: “Como é que eu vou pagar minha
dívida? Advogado tá esperando dinheiro e nosso carro tá
preso.” “Não, vende a farinha!” “Nós já vendemos
farinha.” “Tem banana.” “Vendemos banana. Mas é pouca.
É muito dinheiro pra advogado, advogado come dinheiro.”
“Não, vão dar o jeito de vocês aí.” Aí pronto. Voltaram. Só
vieram prender a caçamba. Então, os índios voltaram a ser
escravos do órgão federal novamente. Eu entendo assim.
Porque não dá título definitivo, não dá...
DF: E na hora de usar é limitado.
MF: Eh. Então, eu comparo assim, se a gente recebeu o
carro da agência, enquanto ele não passar o documento
do carro, é da agência. Não é minha. Ele toma o carro na
hora que ele quiser, porque documento não tá no meu
nome, não tá na minha mão. Então, o Governo Federal tá
levando os indígenas dessa maneira. Aqui tá acontecendo
isso.
DF: Entendo.
MF: Olha aqui, com esse segundo tuxaua, botamos
roça comunitária, vinte e sete linhas pra comunidade daqui
do Sorocaima I, em 2003, no ano de 2003. Plantamos roça.
Projeto: Panton 1
Vin- te e sete linhas, derribamos tudo. No dia 22 de março
tocamos
1 Projeto: Panton
fogo. Queimou. A gente vive é disso; a gente criou nossos
filhos assim. Aí Brigada, equipe de Brigada estavam
andando, teve essa queimada, mas pra ninguém perder a
roça, nós queimamos. Quando o fogo tava se apagando,
umas quatro horas da tarde, lá vem helicóptero do IBAMA,
passando por cima. Quando deu cinco e meia chegaram
aqui. “Tuxaua, essa roça que tá queimando lá?” “É roça da
comunidade.” “Tá bom.” Veja, pra você ter uma ideia,
IBAMA chegou fa- lando bonito pro tuxaua. Ele falou
assim: “Essa roça, o que é que vai ser plantado aí?” “Vai
ser plantado mandioca, café, muda de laranja; se tiver a
gente planta, né?” “Não, nós es- tamos chegando aqui...”,
ele trouxe na sua companhia, trouxe o tuxaua, capitão da
Brigada, tiveram aqui. “Tá, então vamos fazer. Vamos
registrar a roça de vocês.” “Tá bom.” “O que é que o
senhor vai querer? Muda de laranja ou de cupuaçu...?”
“Não, é bom laranja porque lá é terra fria.” “Tá bom.”
IBAMA recebeu dinheiro, Funai recebeu dinheiro, Governo
recebeu dinheiro. “Agora vamos investir nas comu-
nidades.” Até tuxaua, que é capitão da Brigada não sabia o
que é que IBAMA tava fazendo conosco. “É tuxaua, agora
vocês vão ser beneficiados.” Ele fez documento. Eu
assinei. “Tá bom. Agora o senhor leva pra chefe de posto
aí na Boca da Mata, mas não vai demorar não. Pode levar.”
Aí eu peguei, com cinco dias eu levei pro chefe de posto. Aí
apresentei pra ele: “Quem foi que deu esse papel?” “Foi
IBAMA.” “Tuxaua, como é que ele falou?” “Ele falou assim
‘Tem muda de laran- ja, tem muda de cupuaçu, tem de
graviola. Vocês vão plantar mandioca, então tem que
separar uma área pra plantar, porque IBAMA recebeu,
Funai recebeu dinheiro. Agora vocês vão ser beneficiados’
essa palavra que ele passou pra mim.” Aí ele foi abrindo,
foi lendo: “Tuxaua, você já ouviu falar na multa?” “Não.”
“Isso daqui chama-se multa. Te multaram em 9.750,00.
Isso chama-se multa, te multaram. Multaram a
comunidade. Agora tu leva pro advogado Wagner, aquele
velhinho da Funai. Tu leva, mas tu leva amanhã.” Eu levei
pra lá. Advogado recebeu assim: “E pra que é que
multaram os índios, rapaz? Vocês botaram roça na área
Projeto: Panton 1
dos fazendeiros?” “Não. Na comunidade.” “E por que é
que multaram vocês,
1 Projeto: Panton
rapaz? Esse bando de malandros! Eu vou lá!” Advogado
saiu. Mas era mentira. Advogado, outro mentiroso. Essa
multa subiu pra 16.228,00. Todo tempo eu ia pra advocacia:
“Olha, o que é que tá acontecendo aí?” “Não, não se
preocupe não. Não se preocupe. Eu sou advogado da
Funai, eu vou matar essa cobra!” Aí ele diz assim pra mim:
“Tuxaua, você já matou cobra? Alguma vez você já matou
cobra?” “Já.” “Pois é. Quando a gente mata cobra na
cabeça, o rabo fica batendo aqui, então o teu processo, a
tua multa já tá morrendo, já tá batendo no rabo.” Mas
advogado mentiu demais. Intimação: pra Boa Vista.
Intimação: pra Boa Vista. Intimação: pra Boa Vista. “Rapaz,
será que a Funai tá resolvendo esse proble- ma?” Eu fui, aí
o Martins, que foi administrador da Funai, ele era
administrador da Funai na época: “Doutor Martins, o que é
que tá acontecendo, rapaz? Eu estou recebendo intima-
ção.” “Não, isso aí tá acabando.” Foi passando. 2003. 2007
chegou três carros da Polícia Federal aqui pra mim pagar
essa dívida, se não toma freezer, geladeira, motor de luz,
se tives- se carro, moto, é pra levar. Vieram uma polícia
federal, três oficiais da justiça, três policiais militares.
Arrodearam minha casa. Aí oficial da justiça entrou, ele
46
Juiz federal polêmico
disse: “Eu estou cum- prindo papel de oficial. O que é que o
quando atuou em Roraima. senhor tem aqui na sua casa? O Hélder Girão Barreto46
assinou pro senhor pagar.” “Eu não tenho nada, eu não
tenho!” “Mas tá assinado e o senhor tem que pagar.” “Tá
bom. Se ele me levar pra cadeia, eu vou lá, eu vou lá pra
cadeia. Agora, Hélder Girão Barreto tem que sustentar
meus filhos, minha família.” Aí ficou por ali. Não viu nada.
Aí ele disse: “Tuxaua, quando Hélder Girão Barreto mandar
te chamar, aí tu vai lá conversar com ele.” Aí eles foram
embora. Depois de gastar muito dinheiro: pra ir, vinte
reais; do ponto tem que gastar dez reais no táxi; pra
merendar, dez reais; pra vir de lá, vinte reais. Gastei muito
por causa da roça. Olha, área demarcada deu confusão. En-
trega terra pro índio; manda prender o índio; manda
proces- sar o índio, estando na sua terra. Hoje tá mais
complicado. Os indígenas daqui, a fiscalização, sem ter
curso, assim, de pegarem o carro: “Vamos fiscalizar!”
Projeto: Panton 1
Então, isso não
pode
1 Projeto: Panton
acontecer. Se eles continuarem com isso, eu vou passar no
Ministério Público, porque pra punir os índios sem motivo
nenhum, isso daí não existe. [...] Sem motivo. Tá assim.
Então, a terra demarcada, depois de fazer tudo, voltei a
reconhecer. Porque na época eu era segundo tuxaua;
depois o cargo de tuxaua passou pra mim e eu passei 8
anos; como vice-presi- dente passei 5 anos; como suplente
de vereador já estou terminando o mandato agora, só
suplente, mas suplente não ganha nada né, só quando
vereador mandar. É assim. Apren- di muito. 15 anos, 16
anos liderando a igreja, cento e quaren- ta pessoas pra
administrar é difícil, é complicado. Então, aprendi muito.
Programa São Marcos mandou me prender, porque
Programa São Marcos recebe um milhão e duzentos por
ano: cento e vinte, cento e trinta mil por mês. Nunca
trouxeram o projeto, mas mandaram prender a
comunidade do Sorocaima I. Disseram na reunião, único
que participou com eles disse: “Olha, Programa São
Marcos agora vai te prender.” “É, deixa eles prender,
nunca trouxeram dinheiro pra mim, recebe tanto dinheiro
e não passa pra comunidade, não fala de projeto
nenhum.” Me levaram preso, passei oito dias na cadeia. É
assim. A terra indígena não é terra indígena, muitos se
enganam. “É terra indígena.” Eu digo: “Coitado!”, pessoal
que mora na área indígena Raposa Serra do Sol querem
terras pra eles. A lei não é assim. É da União. Querem
expulsar todo mundo. Não, isso é engano. Quem sabe a
lei... [...] Se alguém, Supremo Tribunal Federal, me chamar
pra mim declarar ou denunciar, eu estou aqui pronto pra
con- versar com qualquer autoridade. Porque a gente
assistiu início da briga que tá acontecendo, aonde tuxaua
Marinho tava relatando. No final de 74, 76 pra 77 começou
esse con- flito. No meu tempo acompanhei esse início da
briga, início do conflito. Fui eu; foi Laurindo; foi
Astromarino; outro tu- xaua; meu pai; fomos lá. Tava o
padre Lúcio; tava padre Sérgio; tava padre Vicente; tava
padre Jorge (o índio padre Jorge!), eram uns cinco padres.
Projeto: Panton 1
Naquele tempo reuniram,
1 Projeto: Panton
conseguiram reunir 60 lideranças, com os acompanhantes
deram duzentas pessoas. Naquela época, no final de 76
pra 77, se eu não me engano, dia 5 de janeiro, nós tivemos
lá. Aí começaram onde tuxaua Marinho tava esclarecendo,
disse- ram pros tuxauas, começaram assim, eu vi a
abertura: “Bem, senhores tuxauas, como é que vocês
estão vivendo com os brancos?”, abriram assim: “Como é
que vocês estão vivendo com os brancos?” Aí os tuxauas
nunca praticaram; nunca estudaram sobre isso; eles
estavam vivendo bem com os fazendeiros. Eu não sei. Mas
disseram assim: “O que é que os brancos estão dando pra
vocês?” Aí alguém levantou assim: “Não, nós estamos
vivendo bem com os fazendeiros.” “Bem como?” “Não,
quando a gente precisa de alguma coisa: sal, açúcar,
alguma coisa, a gente trabalha com o fa- zendeiro um mês.
A gente recebe; a gente pede pra ele trazer da cidade; ele
traz e entrega pra gente.” “Quando vocês querem comer
carne, como é que vocês fazem?” “A gente trabalha um
mês com os fazendeiros, eles pagam com uma rês.” Aí o
padre disse: “Não, isso não é bom. Isso não é bom. Os
fazendeiros estão morando na área de vocês, então eles
têm que dar pelo menos cinco cabeças de rês pra tuxaua,
pra ele comer, pra sustentar a família dele. Se eles não
fazem isso, nós vamos já tirar.” Os padres falaram. Início
do confli- to foi assim. Assisti. “Então vocês têm que matar
gado dos fazendeiros. Vocês tem que matar, estão na terra
de vocês. Aonde tiver chiqueiro dos bezerros dos
fazendeiros, toca fogo. Queima. Expulsa os fazendeiros. Se
não, pega alicate, vai cortar o cercado dos brancos, se
cortar não tem proble- ma. Nós estamos aqui pra dar apoio
pra vocês.” Assim que começou a briga. [...]

DF: Me fala uma coisa: como é que é feita a troca dos


tuxauas na comunidade? Tem período, é marcado por ano,
como é?
MF: Conforme o trabalho do tuxaua. Se o tuxaua tá tra-
balhando bem, ele pode trabalhar 5 anos, 8 anos, 10 anos,
Projeto: Panton 1
15 anos.
DF: Ah! Sim. Não tem período marcado?
MF: Não. Não.
DF: Mas na hora que ele começar a não fazer as coisas
do jeito que a comunidade quer, se a comunidade quiser a
comunidade se reúne...
MF: Eh, meu pai era tuxaua. Passou vinte e dois anos
como tuxaua. Ele tem a declaração dele que a Funai deu
pra ele, a declaração. Aí ele foi tuxaua vinte e dois anos.
E ele passou cargo pro filho, Messias, que mora naquela
casa, passou cargo pra ele. Aí o Messias, com a declaração
mesmo, com o nome mesmo, ele passou dois anos. Só dois
anos. Eu era vice dele. Aí ele fez de coisa errada, de errado,
perante a comunidade, a comunidade se reuniu: “Rapaz,
vamos tirar o tuxaua e colocar o Manoel. É que o Messias
não cumpriu com ordem da comunidade, não cumpriu com
o dever de tuxaua.” Aí tiraram. Ele não quis entregar o
cargo: “Não, papai me chamou pra mim assumir, agora eu
estou aqui. Acho que não vou entregar não.” Meu pai
mesmo levantou: “Meu filho, o que tu fez perante a
comunidade, a comunidade não vai aguentar não. Melhor
você se afastar mesmo.” Aí pronto. Aí eles me colocaram
como tuxaua. Aí eu trabalhei; completei como [segundo]
tuxaua 2 anos, como primeiro tuxaua 8 anos. Completei 10
anos. Até dez pessoas levantaram assim: “Por que é que o
senhor vai entregar o cargo? Qual é o problema? O senhor
não tá gostando de trabalhar ou o senhor tá cansado?”
“Não. Eu vou entregar, porque quem sabe tem outra
pessoa que quer aprender, quer conhecer, quer conversar,
quer aconselhar; então eu vou dar a vaga pra outro.”
Depois de 10 anos. Assim mesmo quando eu fui líder de
igreja: quando eu completei 10 anos como líder de uma
igreja, aí a igreja se reuniu: “É bom a gente tirar o Manoel
porque tem isso, tem isso...” Aí a maioria disse: “Não, se
tiver motivo, a gente tira, mas não tendo motivo, tirar pra
quê? Qual é o motivo?” Assim eu passei 16 anos. Assim
mesmo eu entrei na liderança, eu converso com as
1 Projeto: Panton
comunidades. Como líder nós não podemos usar a palavra
ofensiva, destrutiva, crítica. Tem que respeitar pai de
família. Como a gente cuida da nossa família, a casa de
outra pessoa tem que ter cuidado, né? Então, eu levei
assim. Aí me lancei na candidatura.47 Na primeira eu tive
47
Candidato a vereador do quinze votos. O pessoal não reconheceu a minha pessoa.
município de Pacaraima,
RR. Depois, na segunda, eu tirei oitenta e três votos. Faltou só
quinze votos pra eu ser eleito. Assim a gente levou, então,
a troca de tuxaua é conforme o trabalho do tuxaua. Ele tá
trabalhando bem, então deixa que trabalhe. Se ele tá
fazendo errado, então tem que tirar, colocar outra pessoa.
DF: Ah! Entendi. O senhor não quer se candidatar agora?
MF: Não. Eu ia me candidatar, mas eu procurei alguém
pra procurar partido, mas foi em cima da hora. Não deu.
DF: Tá certo. O senhor gosta um pouco da política, não?
MF: Isso aí como eu falei, eu tenho que participar, por-
que o meu problema é assim — o meu pensamento né? O
município de Pacaraima tá na Terra Indígena, tá na Terra
Indígena. Tá aí, todo mundo tá vendo, a terra é demarcada
pros indígenas. Mas, nós mesmos defendemos pra não
sair, porque tem colégio; tem hospital; tem a segurança.
Então, a gente assegura. Ao mesmo tempo, a gente pensa
de ser algum representante lá na câmara, na prefeitura. Eu
penso assim, muitos estão falando agora, né, falando do
prefeito Paulo César: “veio de longe, de outro estado, ele
não pode ser prefeito.” Na verdade ele veio de longe
administrar os filhos daqui, porque os filhos daqui não se
interessam. Então, o pessoal de Boa Vista vem, eles se
candidatam, eles não conhecem a realidade, eles não
conhecem o sofrimen- to das comunidades, eles querem
assumir só pra ganhar o dinheiro, e as comunidades
deixam no sofrimento. Então, meu pensamento, eu
conheço sofrimento da comunidade do Guariba, do
Bananal, de todas as comunidades. Então, tenho que me
lançar candidato pra gente conversar com o Governador
pra conseguir transporte, pra conseguir isso; [pra] não
deixar o pessoal vir de longe administrar os que nasceram,
os que estão crescendo aqui, o que é que eles estão
fazendo? Então, a gente tem que questionar sobre
Projeto: Panton 1
isso pra ter um administrador.
DF: Entendi.
Projeto: Panton pia’
Entrevistado: Armando Magalhães
Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)
Assistene de Entrevista: Lucimar Sales
Local: Comunidade Nova Morada, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR
Data da Entrevista: 2/10/2008
Transcritora: Michele Rubinstein
Conferência de Fidelidade: Airton Vieira e Devair Antônio Fiorotti
Copidesque: Devair Antônio Fiorotti
Duração: 1’34’’16’’’
Projeto: Panton 1
DF: Primeiro, seu Armando, eu queria que o senhor
falasse o nome do senhor completo.
AM: Eh, eu sou o tuxaua da comunidade da Nova Mora-
da, na qual meu nome é Armando Magalhães, filho de José
Magalhães e Cacilda da Silva, que é minha mãe. Eu morei
na comunidade do Taxi. É uma comunidade antiga, aí na
qual hoje eu estou aqui, na região do São Marcos, no alto
São Marcos, perto da cidade. Eu estou com oito anos aqui
na cidade; quer dizer, já estou com dois anos que já
formamos essa comunidade nova e aí eu estou muito
alegre, porque a gente tá aí. É uma área produtiva, é uma
área que não tem assim, vamos dizer assim: “Ah não,
estamos passando fome ou estamos passando
necessidade, há falta de alimento.” Não. Graças a Deus
hoje nós estamos com o pé no chão, trabalhando sempre.
Aí o que que eu sempre tenho dito assim: “Nós estamos
dentro de uma riqueza: madeira; nós temos tudo aqui.”
Com a terra na mão com certeza ninguém nunca vai passar
necessidade, né? Com o professor aí, sei que estamos
falando pro senhor, porque essa comunidade é nova. Aí
temos plantado, mais ou menos, quase quatrocentos pés de
cupuaçu; mais ou menos duzentos e sessenta pés de
banana, porque isso aí é o início dum começo[...], de
qualquer implantação de uma comunidade que tá se
plantando, que tá se formando. Daí pra frente com certeza
nós vamos ter muito mais fartura, que aí temos madeira.
Têm várias coisas que nós estamos plantando pra nós ter
um dia, ver nossos filhos de barriguinha cheia. Tem que às
vezes a doença pega a crian- ça, que às vezes tá com uma
fome, passando necessidade e isso ninguém quer. Eu,
como tuxaua, eu não permito essas coisas assim. Nem
também falamos da Funai agora. Funai é uma pessoa, é
um órgão que podia estar ajudando cada um de nós pra
nós termos mais fortalecimento, mas na qual ninguém tá
tendo. Aí quando eles... tem Funai, agora não, que a Funai
já tá liberando um pouco, dizendo assim: “Olha, tuxaua, é
só a Funai que interdita a convivência, o trabalho de vocês,
mas agora tá liberado, vocês podem fazer o que vocês
quiserem de bem pra comunidade de vocês, podem
1 Projeto: Panton
usufruir do que tem aí na terra, vamos crescer e quem
sabe
Projeto: Panton 1
eu posso trazer algum projeto, um tratorzinho pra vocês
trabalharem, ampliar mais os trabalhos de vocês.” Isso aí é
o que a Funai sempre tem dado esse alerta. Aí com isso,
nós estamos muito alegres com isso, porque eles estão
abrindo nossas portas, assim.
DF: Ajudando...
AM: Eh, ajudando com a palestra. Aí essa palestra o
cara não tem que jogar no mato, tem é que crescer com
esse sonho, pra um dia, esse sonho também ser vitorioso.
Será mais, mais ampliado com as coisas que a gente tá
pensando.
DF: O senhor tem quantos anos?
AM: Tenho 56, vou fazer no dia 13 de janeiro.
DF: 13 de janeiro.
AM: 56 anos, vou fazer, vou fazer.
DF: Qual a etnia do senhor?
AM: É macuxi.[...]
DF: Tá certo. O senhor é tuxaua. E aqui na ALIDICIR, o
senhor tá exercendo qual função agora?
AM: Na ALIDICIR, na qual essa ALIDCIR é nossa. É nos-
sa casa; é a casa dos tuxauas; a casa do povo que somos
associados à ALIDICIR. Somos vinte e três comunidades
que são associadas aqui à ALIDICIR, na qual os tuxauas são
responsáveis por essa casa, na qual hoje nós estamos aqui.
Nós colocamos um presidente pra nos segurar, pra levar
nossa história em frente; pedir alguns projetos; levar
alguns documentos de projeto pra, pro presidente da
República ou pra algumas pessoas que trabalham por nós
também. Então, nós temos nosso presidente aqui da
Associação. Somos vinte e três pessoas que estamos aqui;
tuxauas que são líderes aqui dessa associação e na qual
somos muitos. Só os tuxauas mesmo que são aliados aqui
à ALIDICIR. É nossa casa, casa de todos.
DF: Tá certo. O senhor chegou a estudar?
AM: Professor, só estudei segunda série. Aí só fiz terminar
1 Projeto: Panton
só a segunda série. Eu não sei ler bem, mas aqui, acolá eu
gaguejo, mas não sei ler bem não. Mas a gente desenreda
alguma coisinha.
DF: Isso não é importante, é só mesmo pra gente saber.
Não tem importância nenhuma. E o senhor chegou a
apren- der o macuxi?
AM: Com certeza. [...]
DF: Na comunidade vocês falam em macuxi?
AM: Falamos.
DF: Têm outras pessoas também?
AM: Falamos. Nós falamos macuxi.
DF: Ah, que bom. A primeira língua do senhor foi a macuxi?
AM: Foi.
DF: Ou foi a língua portuguesa?
AM: Não senhor. Foi macuxi. Primeiro a gente falava
macuxi.

DF: O senhor escreve macuxi ou só fala em macuxi?

AM: Nós só falamos macuxi. Nós tínhamos professor,


quer dizer, nosso tuxaua antigo, o seu Terêncio da Silva,
ele foi um professor e até hoje tá sendo professor de
língua macuxi. Ele mora lá no Ubaru, numa
comunidadezinha que foi fundada também por nós e aí tá
lá, na qual ele é o pro- fessor, até hoje. Não sei se ele já saiu
do cargo dele, mas ele tá sendo professor de macuxi, da
tradição. Então, isso aí eu nunca esqueci professor, da
minha tradição. [...]
DF: Como o senhor falou, o senhor é agricultor ainda, não?
AM: Sou agricultor.[...]
DF: Me diga uma coisa, hoje vocês produzem o que na
comunidade?
AM: Lá nos produzimos. No momento, tem plantado:
tem banana, macaxeira, mandioca braba, taioba. [...] É
Projeto: Panton 1
assim [faz gesto com as mão de muita quantidade] de
fruta: temos
Projeto: Panton 1
cupuaçu; temos caju; temos manga; tem açaí; tem até
buriti- zeiros plantados. Então, quer dizer que... acerola,
acerolinha, maracujá daqueles grandões, de quilo. Aqueles
maracujás de quilo, nós temos também lá dentro. Então,
professor, nós temos vários tipos de plantações que nós
estamos plantando aí nessa comunidade. É só o senhor
vendo de perto que aí o senhor vai acreditar o que nós
estamos falando, né?
DF: O senhor já falou o nome dos seus pais. Eles eram
macuxis?
AM: Todos dois eram macuxis.[...]
DF: Eles são vivos?
AM: Já morreram. Já passaram dessa vida pra outra. Na
qual um morreu aqui e outro morreu lá na maloca Cumanã.
[...]
DF: Cumanã fica onde?
AM: Fica aqui nessa direção da comunidade do seu
Terên- cio, primeiro tuxaua nosso, que nós tivemos nessa
região.
DF: E a religião, vocês têm alguma religião hoje?
AM: Bom, a nossa religião é católica. [...] É católica sim
senhor. É católica a nossa religião.
DF: O senhor é casado?
AM: Sou casado, sim senhor; casado em civil; casado em
padre também.
DF: Sei. E a etnia da sua esposa?
AM: É macuxi também. [...]
DF: E os curumins são quantos?
AM: Nós somos seis crianças né, meus filhos.[...] Eram
mais de seis, mas morreram três crianças. Eh, morreu um,
dia desses, com vinte e três anos, que era da escola
Casimiro, da professora Fátima, né?
DF: Sim.
1 Projeto: Panton
AM: Era aluno dela, mas morreu dia desses. Tá com um
Projeto: Panton 1
ano e pouco, faleceu o bichinho. Então, aí, nós estamos por
aqui, professor.
DF: Eu sei.
AM: Eh, com certeza nós procuramos mais a melhoria.
Como o senhor tá levando essa nossa história, isso vai ficar
arquivado pra sempre, com certeza.
DF: E vai voltar pro senhor.
AM: E vai voltar pra gente, pode colocar num vídeo,
num cedezinho. Nós temos televisão, nós podemos assistir
o que eu estou falando. Aí meus filhos vão assistir que nós
estamos, a história nossa, né? Então, isso daí vai ser
divulgado, com certeza, pra muitos tempos; assim como a
história do senhor como professor; a história do senhor
não tá só aqui; isso tá na televisão, tá na internet; tá em
todo canto a história do senhor. Então, essa história ela
nunca vai morrer. Morre o senhor, ficam seus filhos, ficam
os netos, fica a sua família, né?
DF: Justamente.
AM: Então, essa história, quando se passa pra televisão
ela vai pra muitos tempos. Isso aqui que é história, né? O
senhor não vê a história do governador Ottomar? [...] Hoje,
como o cabra ia dizendo, nós não estamos querendo mais
viver como a gente era. Hoje nós estamos querendo viver
também direito, como os brancos têm. Nós queremos ter
a televisão, nós queremos ter um carro na nossa porta, nós
queremos ter uma comida de qualidade. Então, pra isso
quem é que vai trazer? Quem vai trazer essa comida de
qualidade são os pais, são os tuxauas que têm que
incentivar: “Vamos trabalhar pessoal, pra gente ter, pra
ninguém mais passar fome.” Chega de a gente estar sendo
humilhado pelas autori- dades como órgãos, Funai, né?
Vamos parar com isso. Vamos botar o pé na parede pra
eles aprender também a respeitar nossas leis; que uma
autoridade dentro da comunidade, um tuxaua, ele é chefe
sim, é da comunidade. Então, ele tem que passar por aí;
tem que aprender a respeitar, porque ninguém quer mais
viver como a gente tava vivendo. De jeito nenhum
1 Projeto: Panton
professor.[...]
1 Projeto: Panton
DF: Agora vou fazer uma pergunta pessoal. Qual a inteiro. Tem pra vender.
coisa mais triste que o senhor passou na vida e qual a mais Então, ele tá usando
feliz? autossustentação. Ele tem
pra comer e tem pra distribuir
AM: A mais triste que eu já passei na minha vida é
pra
assim, sabe: viver sem ter oportunidade de a gente usar o
que nós temos, principalmente. Porque, às vezes, quando
a gente tá começando usar, quando a gente tá começando
a melhorar, vêm as pessoas por trás impedir que ninguém
faça isso. Isso é uma vida triste. É uma vida que ninguém
pode nem fazer, vamos dizer, quando a gente tá
começando a melhorar; quando uma comunidade tá
levantando a cabeça; tá tendo uma visão melhor; tendo
um passe melhor; aí lá vem o IBA- MA, lá vem a Funai, vai
vir outras pessoas. Então, quer dizer que como é que, é
uma vida triste, é uma vida triste sim. A gente vê que é
uma vida triste. Porque é uma vida que nós temos direito.
Ainda eles dizem que nós temos direito, mas esse direito
eles não respeitam. Nós respeitamos, mas eles não
respeitam, porque esse direito não tá dizendo usar as
madeiras, ouro, diamante, terras, areia, pedras: “É de
vocês tuxauas.” Ainda a Funai tem coragem de dizer isso.
Aí, na hora que a gente tá usando, que a gente tá usando
pro bem da comunidade, aí já vem o IBAMA atrás: “Não, o
senhor não pode tirar essa areia, porque é proibido tirar.”
Mas que coisa! Então, é uma vida triste que a gente vê. É
uma vida triste que ninguém pode ampliar nada, ninguém
pode ter nada nas nossas casas. Vamos viver sempre de
migalha, sempre sofrendo, a barriguinha dos nossos filhos
roncando, né? E dá doenças, com fome. É triste, é uma
vida triste. Eu acho, pra mim, uma coisa muito triste essa
vida assim. Agora uma coisa que todo mundo (como se
diz?), se a nossa lei amparasse, nosso direito é trabalhar.
Nós temos, nós vamos ter, com certeza, nosso alimento
com sobra; nós vamos ter esse tal de autossustentação
que nunca existiu. Essa região daí do CIR sempre fala em
autossustentação, mas nunca conseguiram ter. Agora eu
vou dizer bem aqui assim, quem tem autossustentação é o
Paulo César Quartieiro.48 Ele tem. O senhor sabe por quê?
Ele tem pra comer, tem pra vender quase pro Brasil
Projeto: Panton 1

48
Paulo César Quartieiro foi prefeito da cidade de Paca- raima, além
de fazendeiro produzindo arroz na região da Raposa Serra do Sol,
de onde foi desintrusido. É o principal defensor das fa- zendas em
terras indígenas em Roraima.
1 Projeto: Panton
qualquer país do mundo, ele tem. Porque ele tá
produzindo. Tem arroz aí bastante. É todo dia caminhão tá
dissolvendo arroz aí, tá disparando arroz. Então, a gente
vê que essa au- tossustentação (que sempre eles vêm
trazendo de Brasília, lá dos órgãos lá de fora, que acontece
pela região da Serra, da Raposa Serra do Sol, aí pro Jaci,
esse pessoal que mora aí dentro) eles sempre falaram nas
reuniões: “Olha, tuxaua, vocês têm que ter
autossustentação, porque senão nós vamos morrer de
fome.”, mas nunca apareciam eles como chefe. O que que
eles fazem né? Vão pro exterior, eles só trazem dinheiro
pra eles, pra eles. E toda vez que eles viajam trocam de
mulher. Trocam por uma loura mais bonita e tal, com um
carrão importado, carrão de cento e sessenta mil, são
aqueles carros com cabina dupla. Só andam trocando de
veículo. E os outros, e os outros coitados, dizem assim:
“Você não pode nem trabalhar com branco, cuidado, não
vamos trabalhar com branco.” A roupa dos pobres, tudo
rasgado meu Deus! Mas que coisa, o cara com relojão, com
uma mulher bonita na frente e com um carrão do lado,
com uma casa melhor e quer que a gente vá viver nessas
condições. Não têm condições pra nós.
DF: Entendo.
AM: Não tem condições. A gente sofre muito, porque
o nosso chefe come dinheiro sozinho e não dá um real pra
ninguém, como nós estamos vendo. Nós estamos vendo
isso. Então, quer dizer que agora a gente não pode ficar
mais assim.
DF: Eu sei. E qual a coisa mais feliz que aconteceu com
o senhor que o senhor lembra?
AM: Bom...
DF: Quer dizer alguma, que sempre a gente tem.
AM: Sempre a gente tem. Quer dizer, feliz como eu
acabei de dizer, professor, é quando a gente tá de bucho
cheio, nós temos a vida feliz. Quando se tá com fome,
rapaz, fica agoniado, fica triste: “Rapaz, como é que é?”
Não sei; o cara fica quase doido, né? Mas, se tá de barriga
Projeto: Panton 1
cheia, as crianças
1 Projeto: Panton
estão alegres, a esposa tá satisfeita. A gente como esposo
tá satisfeito, vê toda família com o buchinho cheio, que
coisa, né! É uma coisa boa, quer dizer que é uma vida de
alegria, que eu acho. Dali vem alegria; dali o cara vai pra
um lugar com o buchinho cheio, satisfeito; vai sorrindo das
coisas. Mas, quando tá com fome, coitado, só anda
enrolado. Só anda enrolado, porque não tem jeito de ter
alegria. Ele fica triste cada vez mais: “Puxa vida onde que...
será que alguém vai me dar alguma coisa pra comer hoje?
Puxa vida, colega, eu estou sem dinheiro!” Mas é ruim, já
passei nessa. Quando a gente tá sem dinheiro, rapaz, já
tenho me virado aqui na cidade um pouquinho. Ainda bem
que eu tenho uns créditos por aí nos comércios: “Me dá,
patrão, eu estou devendo, mas eu quero mais aí, rapaz, fim
do mês eu lhe pago.” “Nada, pode pegar aí, não se
preocupe não, pega aí.” Compro alguma coisa, pego como
eu falei. Então, naquele dia nós estamos alegres, com
barriguinha cheia...
DF: Tá certo.
AM: Pra que mais que isso? Com saúde, né?, saúde é
me- lhor alegria das pessoas. Com fome a gente não tem
alegria.
DF: E o senhor nasceu onde?
AM: Nasci na maloca do Taxi. Lá pra dentro.[...] Fica na
Ra- posa Serra do Sol.[...] Sim senhor. Foi lá que a gente
nasceu.
DF: O senhor poderia falar um pouquinho da
comunidade onde o senhor nasceu? Depois o senhor pode
falar daquela que o senhor viveu e aquela que o senhor tá
agora. Se o se- nhor puder falar como era lá onde o senhor
nasceu, alguma lembrança de lá.
AM: Bom, era assim. Antigamente a gente morava na
maloca do Taxi. A gente lembra do primeiro tuxaua, seu
Luís. Chamavam, chamavam não sei se era o apelido dele,
não sei se era apelido dele que a gente era criança, quando
começou a entender. Aí chamavam Luís Cabeçudo,
chamavam pra ele, um tuxaua antigo, dessa comunidade
Projeto: Panton 1
Taxi. Aí depois entrou seu Joaquim Máfora, o tuxaua daqui
que morreu tempo desse também. Morreu com mais de
vinte anos de
1 Projeto: Panton
tuxaua, vinte e cinco anos, parece, de tuxaua. Foi um
tuxaua que durou mais tempo, com liderança, na maloca
do Taxi, na qual depois de lá ele fundou essa maloca
Cumaná aqui pra nós, que era pra gente estar subindo
junto com ele. Nunca, ninguém nunca deixamos ele. 49 Que
era um tuxaua bom, que gritava todo dia de madrugada
pro povo. Então, todo mundo já sabia, quando ele gritava,
49
Apesar de não adequada era algum serviço que a gente ia fazer, era algum recado
à concordância formal,
optou- que ele ia comentar pra comunidade e assim por diante.
-se em preservar a ideia e o Então, nós moramos lá e depois nós partimos já pra essa
estilo do entrevistado.
comunidade que hoje tá ainda sendo fundada por esse
tuxaua Joaquim, o Cumaná. Depois do Cumaná, nós
passamos mais ou menos oito anos mais ou menos. Eh,
mais ou menos isso, oito anos. Aí depois nós deslocamos
de lá, formamos outra comunidade, na qual nós tínhamos
a nossa comunidade. Nesse tempo eu já comecei a
trabalhar como segundo tuxaua. Então, nela morava o
meu compadre Garnete, que hoje, hoje ele tá por aqui
também, junto com a gente. Nunca deixou a gente,
sempre teve um parceiro bom. Ele morava sozinho aí,
encostamos lá com ele, formamos essa comunidade. Aí o
Ubaru, uma comunidade nova também, já tá com quantos
dias, mas já tá com um pouco de dias que já tá fundada
essa comunidade. E de lá nós, minha filha terminou a 5ª
série dela, nessa comunidade do Ubaru. Aí ela procurou
que a gente viesse pra cá, pra cidade, na qual já tava
fundada essa ALIDICIR. Já tava com mais ou menos seis
meses que ela já tava, que essa associação já tava
funcionando. Não tinha caseiro, né? Eu digo: “Não, já que
minha filha tá procurando de ir pra cidade terminar o
estudo dela, o segundo grau dela, nós vamos encostar pra
ALIDICIR.” Aí me deixaram aqui como caseiro. Me
apoiaram. Fiquei aqui um ano e três meses aqui como
caseiro, aí na qual eu invadi esse terreninho aí. Não sabia
de quem era. Isso foi uma confusão grande. Mas aí falando
que nós temos direito também. Aí nós ficamos aí, na qual
50
tem uns terreninhos aí. Aí, depois foi indo, foi indo, foi.
Primeiro prefeito da cida-
de de Pacaraima, Hipérion Comecei a trabalhar como empregado na prefeitura;
de Oliveira Silva.
comecei a trabalhar, tempo do Hipérion. 50 Passei dois anos
Projeto: Panton 1
como funcionário;
passei um ano
como monitor de
ônibus e passei
mais um ano traba-
1 Projeto: Panton
lhando fora assim na, como empregado aí da prefeitura.
Depois entrou esse outro, seu Chico Roberto, fiquei como
funcionário. Depois já entrou outro, na qual seu Paulo tava
na administração, passei pra ele de novo. E aí como te
disse, de noite não tem nada a ver. De noite você faz seus
bicos por aí, né? É um bico que a gente pode dizer. É um
bico que a gente faz. Mas, mas estamos lá dentro, a gente
como representante. A gente lutou e aí fomos na Funai pra
ver se nós tínhamos, ele queria um documento, com o
papel de tuxaua. Foi difícil, eles não queriam dar, a Funai
não queria dar: “Não, é porque a gente tá dando muito
esse papel pro pessoal, pros tuxauas.” Às vezes tem
tuxaua que só diz que é tuxaua, mas não tem documento.
“Então precisa delega- do!” Na qual eu tirei, ele assinou e
hoje eu estou, eu tenho meus documentos de tuxaua. Meu
segundo tuxaua também tem o documentozinho de
tuxaua também, como segundo. Então, aí professor, nós
estamos aí nessa comunidade. Nós fundamos ela, aí
registramos como Nova Morada.
DF: Quando ela foi fundada?
AM: Foi fundada já faz o quê? Dois anos.
DF: Dois anos.
AM: Eh, dois anos tem que tá fundada essa
comunidade. Então, aí professor, tudo é novo, tudo é
novo. Tudo, as plan- tas, tá novo. Nada é antigo, mas tá
crescendo, tá crescendo. Daqui mais três anos cupuaçu
com certeza vai chegar fruta, né? Cupuaçu é três anos. É
um projeto de três anos, né? Agora macaxeira, banana,
cana, essas outras frutas que a gente vê que ela é de ano,
isso aí com um ano já tem fruta. [...]
DF: E como o senhor escolheu o lugar? O senhor
escolheu ou já tinha assim?
AM: Não senhor, nós pesquisamos duas semanas. Foi
uma pesquisa de duas semanas com meu genro; andamos
por lá. Primeiro dia, não achamos; segundo dia; terceiro
dia; aí nós paramos. Deixamos dois dias. Quando foi
sábado, fomos de novo, não conseguimos. Aí deixamos
Projeto: Panton 1
pra segunda-feira, na outra semana. Quando foi na terça-
feira, nós conseguimos
1 Projeto: Panton
encontrar esse igarapezinho por causa da cachoeira. Nós
paramos em cima de um [...], aí escutamos aquela zoada
de água caindo: “Rapaz, aqui tem uma água boa.” Era mês
de março, verão. Aí fomos pra lá devagarzinho, fomos
fazendo uma picadinha. Chegamos lá, disse: “Ah tio, é
aqui.” Eu digo: “Rapaz, é aqui mesmo. Ninguém vai
escolher não, nós vamos empurrar à força.” Tinha uma
área, mais ou menos uma linha e meia, aí nós brocamos.
Deixa pra nós virmos no outro dia. Vamos sair. Já era
quatro horas da tarde. Aí de quatro horas nós tiramos aqui
pra cidade, pra casa. Viemos pra cá, aí nós chegamos por
aqui, aí falei pra mulher: “Olha, mulher, nós encontramos
já um lugar bom pra gente morar. É ali e é ali mesmo.”
“Ah, tá, tá bom. Eu vou com vocês.” “Tá bom, se quiser ir,
vamos.” Aí fomos lá e abrimos já uma estradinha, aí
conseguimos abrir essa clareira lá dentro e encontrei um
rapaz que tinha uma motosserrazinha por aí. Aí digo assim:
“Rapaz, me dê uma mãozinha pra ir mais rápido porque tá
chegando o inverno.” Isso foi no mês de março. Aí passou
só uns quinze dias, o mato secando, arrochei! Não
queimou quase nada não, só fez só brocar. Aí foi verão e
começamos a plantar né? Então, tá aí, professor, minha
história é essa. Eu acho que já disse o que pude dizer, né?
Então, a história é isso daí que nós fundamos essa
comunidade, é nova. É bonita. Ver o lugarzinho lá é bonito,
não é acidentado, não tem aquela buraqueira, dá pra fazer
umas vicinalzinhas até lá dentro, tranquilo. Dá pra gente
trabalhar um bocado de tempo lá dentro.
DF: O senhor pra ir pra lá e voltar, o senhor vai como?
AM: Volto de pés professor.
DF: Dá o que?
AM: Dá uma hora e vinte. É pertinho.
DF: Então, deve ser uns cinco quilômetros.
AM: É mais ou menos isso, cinco ou seis quilômetros,
mais ou menos. Eu calculei seis quilômetros.
DF: Como que era a alimentação antiga e como que é
Projeto: Panton 1
agora, a parte da comida de vocês?
AM: Bom, a nossa, lá na minha comunidade, nós
fazemos damorida. A gente coloca um peixe, coloca uma
pimentinha dentro. A minha esposa é muito fabricadora de
fazer a cer- vejinha, que é o caxiri, né? Ela faz o caxiri
cozido. Ela coa. Aí depois no outro dia a gente tá tomando,
tá doce que é uma maravilha. Aí você toma, enche a
barriga. E ela tá por ali plantando uma coisa, eu estou do
outro lado coivarando. Aí todas crianças que vão lá em
casa, eles estão lá alegres tomando caxirizinho, vão lá
molhar o beijuzinho, comem. Eles são acostumados. Aí
quando a gente vem pra cidade já muda. Aí nós
compramos verdura pra temperar um peixe, pra temperar
um galeto, uma carne. A gente vai lá na rua, compra,
porque os dois lados são bons, nada não é ruim pra nós.
Porque na comunidade é damorida, e aqui na cidade a
gente já é, comida já é diferente. A gente pode até
comprar uma marmitex pras crianças comerem e eles
acham bom. Quer dizer que eles não estranham...
DF: A alimentação.
AM: A alimentação. Eles acham bons os dois lados. Tan-
to como o deles como o da cidade. Da cidade já muda por
causa do tempero. Lá dentro o tempero é a pimenta, mas
só que eles não comem assim a pimenta bem não. Aí tem o
pimentão que eles colocam dentro da pimenta, dentro da
panelinha deles. Aí corta uma carnezinha dentro, aquilo
tipo uma pimenta. Eles acham bom, mas só que pimentão
não arde. Molha o pirãozinho e tal, aí vai lá no bujão de
caxiri, mistura com açúcar. E a banana tá pendurada; eles
vão lá, descascam e comem a hora que eles querem. Suou,
já vão pro igarapé. Bem estão aí gritando: “Ei, ei, ei.”
[risos] A avó deles: “Cuidado, cuidado, cuidado com a
água!” Que lá eu acho que sucuriju não tem, cobra. E lá
eles estão vendo tudinho. É praia, né? É um lugar de pé
[...]. Então, estão lá olhando tudinho. Se tiver algum bicho,
já gritam logo. Aí eles estão lá, graças a Deus!, nunca
adoeceu ninguém. Dessa forma que a gente tá debatendo,
né?
1 Projeto: Panton
DF: Que bom.
Projeto: Panton 1
AM: É um lugar muito bom. Frio. Essa hora tá gelado. Já
o indígena, eles são acostumados. Como não tem coberta,
professor, eles acendem fogo. Quando é de madrugada
estão lá se esquentando lá. O fogo aqui aceso, e eles estão
lá no calor do fogo, né? Tá lá o frio, tá fazendo frio, mas
eles são acostumados. Quando vem pra cá, pro interior,
pra ci- dade, eles têm a camazinha deles, que a cama [...]
esquenta, embaixo não é como uma rede, que esfria
quando o vento bate. Aí a casa com sofá já não tem como
entrar a frieza por baixo. Já lá na rede, corre lá pra beira do
fogo. Aí acende o fogo e eles estão lá se esquentando. Aí,
daqui um pouco eles vão, esquentam a coberta e vão pra
rede, se embrulham. Amanhece dormindo. Então, isso é, é
o costume. É o costume da tradição indígena. Isso aí nunca
eles vão esquecer. Isso aí já é história deles, é das crianças.
Nós como tuxauas, nós apoiamos muito esse lado. Nunca
ninguém vai esquecer. Isso aí é, nós vamos preservar até
onde Deus permitir que a gente viva assim, né? Aí os
senhores têm a parte do senhor como, como professores,
não vão fazer isso. Quando vocês forem dormir lá dentro,
vocês vão estranhar, porque as crianças estão tudo na
beira do fogo. “Oh meu Deus! Isso vai...” “Vai, vai
pegar...”, como é que chama? “Uma doença.”
DF: Uma friagem.
AM: Pegar uma quentura com frio. Dá uma doença aí
que pode matar. Mas são acostumados já àquilo. [...]
DF: E os indígenas antigos, eles tinham muitos rituais. É
claro, a Igreja Católica tem o ritual dela...
AM: Isso.
DF: Esses rituais ainda existem na comunidade do
senhor ou não existem mais? O senhor preserva? [...]
AM: Eu pelo menos como mais idoso, que a gente
sempre canta um parixarazinho. Às vezes, quando eu
quero cantar, minhas crianças zombam de mim: “Ah, vovô
tá cantando sem ninguém nem saber o que é isso!” “Ah,
meus filhos, isso aqui é de vocês mesmo.”
Projeto: Panton 1
DF: Justamente.
AM: Isso aqui veio do meu pai, veio dos meus avôs. Eles
deixaram pra nós hoje. Nós temos esse, esse, esse cântico
de parixara, de (como se diz?), de tempo de Natal, tem o
areruia, tem o parixara. E também nós preservamos muitas
orações que hoje também fazem parte da saúde, das
crianças que estão com diarreia ou que estão assustados, a
gente vai. A gente, como mais velho, a gente reza em cima
duma criança e aí fica bom, né? Então, essa preservação
professor, a gente tem sempre em dia, em forma mesmo
assim de, de estar com ela, né?, E que mais?

DF: Em relação a esses rituais mesmo, essas coisas da


tradição mais antiga.
AM: Isso.

DF: Se um dia o senhor quiser que a gente vá lá pra ver


o senhor cantar é só falar que a gente vai.
AM: Tá bom. Pode ir lá que a gente vai imitar por lá.

DF: Isso.

AM: E que mais em outros tempos?

DF: Se o senhor lembrar, depois o senhor pode falar


alguma coisa. Outra coisa: como o senhor vê o índio hoje?
AM: Professor, falar a verdade é preciso. Hoje o índio,
só o nome dele que é índio. Mas ele tá ficando sabido hoje.
Ah, já tem índio já na faculdade também, [...] estudando.
Estu- dando aí, já tá estudando Turismo; já tá estudando, é
uma vida melhor. Não é como estamos dizendo, já tem
gente na faculdade aqui, aqui mesmo na [...] Então, hoje, eu
acho que... é como dissemos assim, a tradição, nunca
ninguém vai deixar. Mas hoje também o povo indígena, eles
estão desenvolvendo muito na tecnologia da civilização.
Nós já temos um filho que é, acabou de dizer, já temos
professora já, da universidade, da UERR, desse pessoal aí,
já ensinando os brancos já, né?Que coisa bonita né? É uma
coisa bonita a gente preservar isso. Mas o dia que ela for lá
dentro, ela como diretora, ela vai lá
1 Projeto: Panton
na comunidade, ela vai comer damorida. Com certeza. Ela
vai lá comer damorida, tomar o caxiri, o aluá de milho. Ela
nunca vai deixar. Então, hoje o povo já tá com a visão mais
longe. Já estão pensando de viver bem. Hoje eles não
querem mais viver como os antepassados passaram.
Querem viver numa sociedade melhor. Bem estar, como
acabamos de dizer. Tá chegando muita coisa, professor.
Então, quer dizer que ela fortalece muito. Hoje nós
estamos conversando, os senhores que são educadores de
todo movimento, mas aí a gente tá conversando hoje, isso
aí nunca vai se acabar. Isso aqui vai continuar mais pra
frente, continuar. Com o pouco, a comunidade vai, vai
olhando que nós temos direito de viver assim também.
Nós temos direito de viver. Acabou. Ninguém quer mais
viver sofrendo. Ninguém quer mais viver sofren- do.
Queremos hoje ter uma estrada na nossa casa. Hoje nós
queremos ter uma ambulância, uma saúde de qualidade na
nossa comunidade. Que lá, quem mora distante, é preciso
ter uma saúde de qualidade, que a saúde, a doença, ela
não espera que dia vai pegar a gente, mas tendo uma
pessoa que já é formado, que já é técnico de laboratório, de
alguma coisa, eles têm, vão levar uma história boa pra
comunidade. [...] Aí pega, olha, hoje a coisa tá tão mudada
que as crianças hoje não estão estudando a história dos
pais delas não, de jeito nenhum. Sabe o que elas estão
estudando? Estão dizendo assim, professores, estão
dizendo: “Olha, quem foi que descobriu o Brasil?” Aí a
criança... [risos] Já estão lá em cima procurando um meio
de fortalecer mais. Aí diz assim: “Quem foi que descobriu o
Brasil?” A professora dizendo pra nós, na escola aqui. Já
estudei também um pouquinho aí; nessa escola daí, na
escolinha. A Professora vira dizendo: “Quem foi que
descobriu o Brasil, seu Armando, o senhor sabe?” Eu digo:
“Professora, eu acho que isso aí nunca foi descoberto não,
de jeito nenhum. Pedro Álvares Cabral, que chegou, ele
não descobriu, professora, ele invadiu, já tinha morador. Já
tinha o povo nativo dessa terra. Quando ele chegou, estão
dizendo que ele descobriu. Como que ele descobriu? Não
descobriu. Morava indígena lá dentro. Já moravam os indí-
Projeto: Panton 1
genas lá dentro. Agora, podia na história dizer assim:
‘Pedro
1 Projeto: Panton
Álvares Cabral invadiu o Brasil!’, aí eu acredito, professora,
porque ele invadiu mesmo. Já existia índio dentro.”
DF: E ela falava o quê?
AM: Já existiam moradores. Aí ela dizia: “É verdade seu
Armando. O senhor tá certo. É verdade.” [risos] Mas, esta-
mos dizendo, nós, no livro, professores, estamos já
contando a história que foi ele quem descobriu. Na
verdade nem é. Na verdade já moravam moradores, não é?
Ela sorriu com isso, a professora.
DF: Sei. E nesse mesmo caminho, como é que o senhor
vê a questão indígena hoje? Essa luta toda?
AM: Bom, a luta nossa, como liderança, é de, é de en-
contrar uma solução de viver melhor; viver melhor; todo
mundo ter o seu direito. Assim como branco tem, nós
temos também direito de viver como a gente pensa. Aí,
como é que se diz, a gente pensa nesse lado do direito. Às
vezes, muitas vezes, nossas autoridades não estão dando
direito pras pessoas. Eles estão querendo nos oprimir;
viver; que a gente viva assim na escravidão. Hoje ninguém
quer mais viver assim não. Eu não quero mais viver. A Funai
primeiramente tá um pouquinho acordando, porque nós
estamos dando em cima deles: “Não queremos que seja
assim, delegado. Não queremos. E outra, que o senhor diz
que é nosso assessor, mas é nosso assessor de jeito
nenhum. Quem é assessor do senhor somos nós tuxauas,
nós pagamos mensalidade pro senhor. O senhor pega o
nome de todas as crianças da nossa comunidade. Pra onde
que o senhor leva? O senhor leva só em Brasília? Não. O
senhor daqui engaveta e leva lá pro ex- terior, lá pra Roma,
lá não sei pra onde, pra outro canto. Aí, com isso, o senhor
arrecada dinheiro.” “Eu quero três bilhões ou seis bilhões
ou dez bilhões de reais ou de dólares.” Aquilo vem pra
nós, quer dizer: “Isso aqui é pra ajudar comunidade pobre,
vocês sabem, nós vamos levar.” Por isso ele diz a nossa
história. “Mas, na verdade, nunca chegou nenhum real pra
comunidade, nenhum real, delegado. Então, quer dizer
que o senhor mente muito. O senhor mente muito esse
lado. Não pode ser assim não. O senhor tem que aprender.
Projeto: Panton 1
Quando o senhor vai outra vez levar nossa história pra
outros cantos e trazer dinheiro, contribui pra nós, dá ao
menos cem mil reais; não pode, ao menos cinquenta mil ou
vinte mil reais. Tudo serve pra comunidade!” Aí nós
dissemos: “Não, agora o delegado tá preservando a
comunidade. Ele foi pro exterior; trouxe dinheiro; agora
ele tá contribuindo. Agora mesmo dizendo essa história
bonita pro senhor: “O senhor como delegado não, o
senhor pega, todo dia tá trocando de carro, carro dos
melhores carros né, e nós ficamos na pior.” Dizendo: “Não
pode tuxaua derrubar madeira.” Que isso? Nós vamos
acabar com isso, vamos acabar com isso sincera- mente,
nós estamos enjoados. “Vai chegar o dia delegado, de nós
eliminar vocês. Acabar com isso. Lá dentro ninguém vai
mais aceitar vocês lá dentro, de jeito nenhum. Se aceitar
vai pro cacete lá dentro, vai pra borduna, não tem jeito
né?” Aí como é que a gente vai aceitar as pessoas que só
vem nos enganando. Só levando nossa história e não
trazendo nada pra ninguém. Não traz projeto, não planta
projeto. E aí coitados, a gente de machado, terçado, nós
estamos cansa- dos de cortar. Hoje nós queremos uma
motosserra pra tirar madeira bem na linha. Bater a linha,
tirar umas madeiras fazer suas casas bem arrumadas. É
isso que nós estamos queren- do. “Acabou, a gente tá
cortando de machado, o braço da gente tá cansado
delegado. Mostra um projeto pra nós, pra nós ficarmos
animados com o senhor. Que o senhor não é nosso patrão
de jeito nenhum. Patrão somos nós, tuxauas e lá dentro
quem manda é a comunidade, é o tuxaua. Não é o senhor
que vai mandar lá dentro, botar opiniões lá dentro. Opinião
tem que sair de dentro da nossa comunidade pro senhor.
Se no caso, se o senhor aceitar, tudo bem, senão fica lá
dentro mesmo. Opinião fica com as lideranças lá dentro. É
isso nosso objetivo.” Nossa história é essa. É a melhor
coisa.
DF: E o Governo Federal?
AM: Governo Federal, ele tá aí né? Ele diz que apoia um
lado, apoia um lado, apoia outro lado. Mas na verdade nós
temos que saber onde que nós estamos mesmo. Porque
1 Projeto: Panton
senão nunca, ninguém vai conseguir nosso objetivo, de às
vezes até de viver bem. O Governo Federal, ele tá abrindo
Projeto: Panton 1
uns projetos, tá abrindo as portas pra uns projetos, pras AM: Como assim,
comunidades, pra associação. Às vezes, muita das vezes, professor?
nosso presidente, nós mesmos lideranças, muita das vezes DF: Eu falo: cria galinha,
não tá se manifestando a procurar. Aí onde caem os cria...
outros mais espertos, pegam o projeto. Aqui na associação
era pra vir nove mil reais. E as outras comunidades
comeram. E aí nós temos outros projetos, de um caminhão
e uma toyo- ta cabina dupla pra vir pra cá, pra associação e
até agora nunca ninguém conseguiu. Mas já fomos lá,
formamos sete tuxauas e fomos lá na secretaria lá do
índio, procurar do seu Adriano.51 Ele disse, se negou pra
nós: “Eh, rapaz, cê sabe que Uiramutã mora muito
distante de vocês, precisa ter um caminhão e tal.” Então,
quer dizer que o negócio tá por aí. “Olha, administrador,
seu Adriano, nós vamos procurar esse negócio. Esse
negócio tá é com papo furado. O senhor vai aprender é
cuidar das coisas, senão nós vamos colocar é outro
administrador, porque assim não vai correr nada em
frente. O senhor só comendo nosso dinheiro, comendo
nosso dinheiro. Nós temos a sede lá em cima, podendo
comunicar pra gente vir resolver esse problema, aí o
senhor nunca fez isso. A gente vem dia quinze, depois da
eleição a gente vem aqui. A gente vem de dez tuxauas,
vem aqui nessa mesa. Nós vamos bater na sua porta. O
senhor vai ficar muito chateado com a gente, mas nós
vamos procurar os nossos direitos.” Aí ele disse: “Eh,
tuxauas, tá bom. Depois daí pra lá a gente vai ajeitar,
porque parece que foi alugado por dois meses o
caminhão.” Quer dizer que ele já disse, já ia dizendo de
novo, voltando a palavra dizendo que o caminhão. “Eu
acho que tá por aí.” É caminhão dele, tá por aí. Tá
chegando. Então, tudo isso a gente tá vendo professor, a
gente tá citando essa história, porque é preciso a gente
conversar mesmo, né?

DF: Tá certo. Agora me diga uma coisa: hoje, que


animais têm hoje na comunidade, porque os indígenas
sempre gosta- ram de ter animal ao redor deles, né? Hoje
como é que tá lá?
1 Projeto: Panton

51
Secretário Estadual da Secretaria do Índio de Ro- raima, Adriano
Nascimento, à época.
Projeto: Panton 1
AM: Ah sim, tá certo. Vamos criar, professor, com
certeza. Isso aí ninguém vai deixar de ter uma
criaçãozinha. Na verda- de, o que estamos falando é de
melhoria. A melhoria não é só pra gente ficar dentro de um
lugar, às vezes ter bastante sítio e não ter criação ao lado.
Hoje estamos pensando de ter criação de galinha; estamos
pensando de ter um viveiro de peixe, porque eu vou ficar
velho, não vou poder pegar meu canicinho pra pescar lá no
Parimé. Então, lá no Uraricoera, é longe. Pode jacaré-açu
vai lá, pegar uma pessoa né? [...] Então, estando lá
pertinho, uma lagoazinha, próximo, aí já posso ir lá. De
manhãzinha, já estou com um peixinho; as crianças estão
fritando. Quanto mais próximo, é melhor. Aí a gente se
sente que tá seguro, porque ninguém pode facilitar hoje,
nós estamos pensando de ir viver numa, de melhor, de
melhor vida. Então, a gente tem que procurar criando,
crian- do galinha. Criando, já os outros criam confusão.
Ninguém quer confusão.

DF: Justamente.

AM: Estamos querendo criar criatório de peixe, de gali-


nha, de alguma coisa. [...]
DF: Agora vamos mudar um pouco. O senhor já falou da
comunidade...
AM: Sim.
DF: Em relação à história do povo, por exemplo, as
histó- rias, os mitos, a tradição. Por exemplo, a história do
timbó, o senhor sabe?
AM: Bom, a história do timbó, eu sei; nós somos vetera-
nos nisso, na qual nós morávamos no Cumaná, no Ubaru,
aí porque é uma história assim: você pega duas, três
raizinhas de timbó, aí tem o igarapezinho, corrente. Aí
você vai lá, olha um bocado de piabinha, aqueles peixinhos
ali por dentro. Duas raízes de timbó, você bate elas bem
batido e solta elas. Aquela golda dela desce. Na hora que
bate nos bichinhos, já vão ficando doidos, vão subindo e
vão morrendo. Aí vai, vai, ela vai descendo. Aonde ela vai
tendo aquela fortidão do timbó, ela vai matando: tam, tam,
1 Projeto: Panton
tam, tam, tam, tam. Mata
Projeto: Panton 1
até cem metros, duzentos metros, ela vai descendo, né? Aí
chegou naquele limite, você já pegou, às vezes, um saco,
dois sacos de peixinho. Às vezes nem é isso também que já
escasseia com o timbó, que ela mata tudo. Desde
filhozinho assim que tá enterrado por ali na lama, aquele
bichinho, passa lá por dentro os bichinhos cheiram e já vão
subindo, subindo. Então, essa história do timbó, ela mata
rápido. Mata rápido. E joga num igarapé rico aí, que tenha
peixe, meu Deus, isso aí vai peixe pra todo lado, pulando
aí. Surubim, pirarara, tudo que vai batendo e vai subindo.
São dois.
DF: O senhor pode contar a história de como surgiu o
timbó?
AM: A história do timbó.
DF: Como ela surgiu?
AM: Eu não sei, rapaz, como que ela surgiu. Mas diz
que foi duma pessoa, uma pessoa, que é a história dela.
Diz que a história do timbó ela veio de uma pessoa que
tinha, ela tava tão suja, aí a mãe dele não acreditava nele.
“Vou já banhar meu filho!” Aí ela pegou, era a história, é a
história. É uma história, é uma lenda.
DF: É assim mesmo que a gente quer ouvir.
AM: Aí quando ele, ela lavou o nenenzinho assim na
água, aí peixe começou a boiar, sabe, a pular só com o
cheiro do menino. Aí, “Óxente, que diacho é isso?” Aí foi
piando e os peixes foram morrendo. Lá pra baixo foi
enfraquecendo, porque o sujo da criança, que ele tava
sujozinho, foi enfraque- cendo, a água foi tomando de
conta, né? Aí ampliou, cresceu grande. Aí os peixes ficaram
vivos pelo meio, circulando. Essa é a história do timbó.
Tem timbó que até, é que ela é como uma pessoa que foi
lenda mesmo, mas que tá sendo verdade porque se você
tá nesse timbó, se você verteu água dentro dela, aí ela
zanga. Zanga, pode estar branco, branco de timbó, mas
não morre mais nada. Ela zanga, porque ela não gosta de
estar vendo esse negócio assim.
1 Projeto: Panton
DF: Quem?
Projeto: Panton 1
AM: Fazer xixi dentro da água assim, depois que você
bate ela, que vai descendo, na hora que o xixi desce,
acabou.
DF: Ah, Eh? [risos]
AM: Já zangou. Isso já é história, é uma pessoa esse
timbó. Aí na hora que bate eu digo: “Não rapaz, então tu
não quer comer peixe?” Aí ela esfria timbó tudinho. Pode
estar branco que seja, não morre mais não. Acaba.
DF: Entendi.
AM: Ficam por dentro assim. Vão saindo da água,
limpan- do, varando por baixo.
LS: Aí não morre mais.
AM: Aí não morre mais. Zanga, ela zanga. Por isso,
quando vão essas pessoas bater timbó, eles não levam
criança assim, como essa daí assim [aponta pra uma
criança pequena]. Só vão os velhos, que já sabem.
“Cuidado! Vocês vão bater timbó, cuidado pro timbó não
zangar. Não vão fumar, nem fazer nada assim. Nós não
vamos mostrar cobra, caranguejo, assim, com os dedos.
Deixa ele assim, vai ficar só olhando.” Só vão os velhos que
vão bater timbó. Essa história do tim- bó. Criança assim
não tem esse negócio não. Pega aí, corta o negócio assim
com faca, aí o bichinho zanga, ele zanga, pronto, aí não dá
mais, não tem, não vai mais comer o peixe. Aí pronto.
Esfria, não morre nada não. Morre alguns que beberam
logo na hora.
DF: E, por exemplo, do Macunaima, sabe alguma coisa?
O que o povo do senhor já contou? Já ouviu contar?
AM: Bom, sobre Macunaima, eu não tenho muito bem
52
Terêncio Luiz Silva foi en- a história, mas o senhor vai encontrar a história dele é na
trevistado na segunda fase comunidade do Ubaru, lá com o seu Terêncio.52 Eu acho
do Projeto Panton pia’.
Suas narrativas sairão no que o seu Terêncio tem a estoriazinha dele, do Macunaima.
terceiro volume, além de
um volume especial com 79 DF: O seu Terêncio?
cantos, a ser lançado pelo
Museu do Índio do RJ, AM: O seu Terêncio Luíz. Ele tem essa história do Macu-
cantados por ele e sua
esposa Zenita Lima. naima. Ele vai contar essa história, que ele tem essa
1 Projeto: Panton
história porque eu
nunca escutei, quer
dizer, já escutei
assim, mas
Projeto: Panton 1
não tenho lembrança. Mas seu Terêncio tem essa lembrança
de Macunaima.
DF: Como se fala Macunaima em macuxi?
AM: Makunaimî. […]
DF: Me fale, então, do Canaimé. [...]
AM: Kanaimî, ele diz que é um índio que sai daí de
dentro das matas, dos lugares, fora, só pra fazer o mal das
pessoas. Eles não pegam assim pessoas novas, só pegam
gente velha, idosos que... Aqui na cidade, têm duas
histórias que o Canai- mé é aquele que mata o índio. Já o
Canaimé da cidade é o bandido. Agride, caceta peão.
“Não, o cara morreu. Bandido que matou!” Pessoas
drogadas que andam por aí, doido. Vê a gente, bota na
gente, caceta, mata e deixa por aí na rua né? Esse é o
Canaimé do branco; é o bandido. Já do índio é o Canaimé
que fica por aí escondido, aí, por aí; olhando aquelas
velhinhas por ali trabalhando; aí vai com jeito pra agarrar
ela e aí machuca ela. Machuca pelo coração, pela barriga,
pula em cima, mata. Faz o que ele quiser. Aí lá que a
velhinha, coitada, já não aguenta mais nem levar a
mandioca, já vai dando febre. Quando chega lá, a bichinha
morre. Aí quando vão ver, tem até vara enfiada aqui na
tripa da pobrezinha, folha, esses negócios. Tudo eles
maltratam a gente. Inclusive a história desse finado meu
filho que morreu, esse que morreu aqui, desse alunozinho,
de vinte e três anos. Ele, foi o Canaimé que matou. Lá na
minha comunidade, pegaram ele lá. Dizem, ele viu que era
um homem barbado (isso quando tava bem, né?): “Pai, um
homem barbado me segurou, aí tampou minha boca.” Aí
vinha uns colegas dele e: “Ei, ei.” Gritando pra ele, ele tava
com boca tampada. Aí o cara se afastou, ele tava pra se
engasgar. E ele tinha forçazinha no braço, tinha vinte e
dois anos ele. Teve força lá, aí escapuliu e gritou: “Ei!”
Quan- do os caras chegaram lá, dizem que ele já tinha se
escondido no mato. Aí, daí pra cá, ele já adoeceu, adoeceu,
adoeceu; febre, febre, febre: “O que é isso, meu filho?”
Compramos medicamento. O professor, não, o diretor,
não, o coisa da saúde, agente da saúde tratou dele.
1 Projeto: Panton
Melhorou, né? Com isso, nós viemos pra cá. Aqui ele disse
que tinha, já tinha visto ele
Projeto: Panton 1
mesmo aqui. Ele veio aqui e: “Ah, tu tá aqui, né? Nós
vamos te matar.” Quando ele ficava aí com as crianças
meio-dia, aí ele ficava aí, e diz que esse homem veio. Esse
mesmo, barbudo, veio aí. “Ah, tu tá aqui, né? Mas tu não
vai escapar não, cara. Tu não vai escapar não...” “Ei, pô, eu
vou dizer pro papai o que tu disse.” Ele contou, mas, eu
andei atrás desse cara um bocado de dias por aqui, doido
pra conversar. Eu digo: “Vou pegar esse cara hoje.” Mas
nunca encontrei com ele. Quando encontrava era
correndo. Ia embora pra Boa Vista. Aí eu andei muito
tempo caçando ele. Mas isso é história do Canaimé, né?
Matou pessoas, enforcou, bagunçou, matou. Então, é a
história...
DF: E ele faz isso por nada?
AM: Por nada. Por inveja, às vezes. Que às vezes você é
trabalhador; às vezes você é tuxaua bom, acolhedor. Aí ele
vai e: “Não, esse tuxaua aqui nós vamos matar logo ele,
pra ele não levar segredo muito pra frente. Esse daqui já
dá pra eliminar ele.” Então, vai, às vezes tá por aí, às vezes
forma um grupo de cinco peões, Canaimé deles. Aí chega
lá, ataca a gente sem a gente ver, derruba, mata, ou então
machuca o cara lá, só chega gritando na casa. Nem doutor
dá jeito, porque já tá todo arrebentado. Colocam vara no
bumbum da pessoa, lá pra dentro tudo. Cortam a língua,
tudo bagunçado. É assim a história do Canaimé.
DF: O senhor já ouviu falar como a pessoa faz pra virar
um Canaimé? Por que ela vira?
AM: Não, professor, é o seguinte: esse Canaimé é uma
qualquer pessoa que vem de fora, lá de outros cantos. Aí,
eles ficam com inveja. Às vezes, outra pessoa manda:
“Rapaz, tu garante matar?” “Garanto!” “Então vai lá, faz o
Canaimé pro cara lá.” Ele vai, ele corta uns couros de
mambira, de taman- duá, se tiver; fura um buraco, faz
aquela máscara, ele faz a máscara pra poder ver e a pessoa
se assustar. Eles colocam aquelas vestes, aquelas roupas
de tamanduá. Tira o couro e se veste, e o cara vê aquele
negócio feio, viche Maria, já cai desmaiado. É onde eles
pegam e matam a pessoa. É qualquer pessoa que venha
1 Projeto: Panton
de fora. Parentes mesmo, parentes que
1 Projeto: Panton
moram assim distante, eles fazem isso com povos
indígenas. Qualquer um né? Então, isso aí que é chamado
Canaimé. É o Canaimé do índio. E do branco é bandido.
DF: Bandido.
AM: Eh.
DF: O senhor sabe de alguma outra história parecida
com essa, da comunidade, que o senhor ouviu alguma vez
alguém contando? O senhor sabe de alguma?
AM: Professor, sei não, professor.
DF: Sabe não?
AM: Sei não. Se eu sei, mas tem que lembrar.
DF: Aquela história da mulher que foi pega pelo macaco.
Já ouviu falar ou não?
AM: Não, senhor.
DF: Não?
AM: Não, senhor.
DF: Que ela morou com o macaco, não?
AM: A história que eu sei é de um homem, justamente
esse Canaimé. Ele tinha matado uma pessoa, aí ele dormiu
numa maloca longe, em cima da serra. Aí, em cima, anda-
va uns caçadores, caçadores de veado. “Bora caçar por
aí? Bora pegar...” Aí, pegaram suas flechas por aí. Aí lá de
baixo encontraram o cara dormindo lá, assim escornado,
só soninho. A noite toda tinha andado por aí, nas comuni-
dades matando gente. Aí tava dormindo lá, pelado ainda.
Aí o cara diz: “Rapaz, o que nós vamos fazer? Nós vamos
amarrar o grão do cara aí com a corda. Aí tiraram a corda,
o arco novo, aquela corda que é de, de curauara, aquela
que é dura que só. Amarraram o coisa do cara lá pra trás.
Ele tava com a perna encolhida, bem encolhidinha e
amarraram aqui no mocotó dele. Bacana. Deram um nó,
acocharam ele devagar aí amarraram aqui no mocotó dele.
Aí “Agora nós vamos correr, nós vamos gritando.” Aí lá
vem: “Ia! Ia! Ia!” gritando, aquele pessoal, né? E aí o cara
acordou assim, que
Projeto: Panton 1
ele foi correr assim...
DF: Que espichou a perna.[risos]
AM: Que ele foi espichar a perna assim, ah, o bicho en-
dureceu. Aí quando endureceu, aí os cabras já vinham
perto. Gritou, aí deu soco mesmo nas pernas! Curauara é
corda grossa. E se escapou. Sacou e saiu gritando,
correndo aí: “Pega, pega o cara.” Inda pega. Entrou no
igapó aí e sumiu, sangueira atrás. Se capou o homem, com
curauara amarrada, com a perna assim encolhida, que
esticou, sacou tudo. [...] Como que diz assim: “Pode ficar o
coisa lá, mas eu corro.” [risos]. Isso é história do homem,
do Canaimé que encontra- ram. Isso é história não, isso é
verdade que aconteceu. Meu pai e esses nossos tios
antigos, eles contam essa história. “É verdade meu filho,
isso aí não é mentira não.” Isso é verdade. Tá como lenda,
uma historinha. Pois é, professor.
DF: Quando morre alguém na comunidade é igual a
anti- gamente ou é como o branco? Como se faz?
AM: Bom, quando a gente, quando morre na comunida-
de, a gente fica de luto mais ou menos um ano, pra poder
esquecer da pessoa. A gente fica, a família fica sempre,
entra na casa, sente falta. Olha pra um canto aí vê, não vê
ninguém. Então, aquela (como diz?), aquela tristeza pra
sair da comunidade ou da família, o que seja, custa a sair.
Assim mesmo (como se diz?) é uma comunidade. A tristeza
de uma comunidade, ela custa a sair. Passa um ano, dois
anos, pra esquecer.
DF: É enterrado na cidade mesmo ou não?
AM: Não senhor. Nós pedimos pra enterrar na nossa
comunidade. Porque lá dentro, todo mundo tá vendo: a
população, as crianças, a família. Pra ver pela última vez,
o cara abre o caixão, vê, quando vem de Boa Vista. Aí vê,
choram muito. Aí depois eles vão ver mais outra vez, aí faz
oração: pedir a Deus que leve o corpo dessa pessoa. É,
então é assim, professor, a história da tristeza quando
morre uma pessoa da comunidade.
DF: E a parte da educação da comunidade? [...] Tem que ir
1 Projeto: Panton
pra cidade, tem educação lá na comunidade? Como é que somos brasileiros, não tem
é? preconceito de, vamos dizer
AM: Eh, na minha, ela tá recém, ela ainda não tem assim, de (de como se diz?
escolas. Não tem escola não, não foram preparadas ainda.
Eu estive conversando antes de ontem com a professora
Fátima.53 Eu falei pra ela que queria fazer uma escola ali
perto: “Não, tuxaua, pode fazer. Faz que nós vamos
mandar professor pra lá. Pode fazer. Faz um posto de
saúde que fica perto, pra não estar correndo.” Fica perto.
Tem o telefonezinho, de lá liga pro hospital, mas de
qualquer forma fica longe. Tem que ter uma casa de saúde
e uma escolinha perto, que essas crianças quando vão
começando a fazer a 5ª série ou qualquer grau maior, nós
já temos as nossas casas ali, que é pra acomodar eles. Daí
eles vão pra escola, daí eles vem pra cá, dorme aí. Nós
estamos na mata com outras crianças menores que estão
crescendo. [...]
DF: Hoje, qual é a principal dificuldade encontrada pela
comunidade?
AM: A principal, como é que se diz?
DF: Dificuldade. A coisa mais difícil.
AM: Bom, a dificuldade que nós estamos tendo é
porque ninguém tem uma estradinha lá dentro. Só umas
vicinais, mas uma estrada no momento não, é no trilho.
Essa é a nossa dificuldade, mas de resto não tem
dificuldade nenhuma. Só a estrada mesmo que nós
estamos precisando e nós vamos trabalhar com isso.
DF: E o senhor percebe algum tipo de preconceito em
relação aos indígenas ou não? Já tá tudo igual ou as
pessoas ainda têm algum tipo de receio?
AM: Bom, os preconceitos que a gente vê, que hoje tá
na, estamos quase, quase não, estamos iguais. O povo
brasileiro, ele não, acho que nós como indígenas eu não,
não estou sentindo que nós estamos tendo preconceito
ainda nesse momento. Até porque nós estamos, quer
dizer, nós usamos só uma parte de brasilidade. Todos nós
Projeto: Panton 1

53
Fátima Gouveia, profes- sora do ex-território, muito respeitada na
cidade de Pacaraima.
1 Projeto: Panton
[...]), de dizer que o senhor não tem direito, né? Vamos
dizer assim. Todos nós temos direito. Assim como o senhor
tem direito, o indígena também tem sua parte de direito
também. Só, vamos dizer assim, nós usamos a igualdade
igual. Cada um de nós, indígenas, temos direito como os
outros têm também, o próprio branco. Preconceito não
tem assim de dizer que a gente é...
DF: Diferente.
AM: Diferente. Desclassificar ninguém: “Ah, porque fu-
lano é preto, fulano é branco.” Não. Preconceito então,
pra mim, eu acho dentro de mim que somos, todo mundo
somos iguais. [...] O que pode existir, porque um pensa
dum jeito, como o branco, e nós também pensamos
diferente deles também. Mas quase o mesmo caminho que
o outro vem pen- sando, a gente vem pensando junto,
porque até, porque nós estamos tendo, e vendo, nós
estamos dentro da sociedade, civilização. Hoje não tem
mais quase índio que anda naqueles tempos como andava
tempos passados. Hoje nós estamos cada vez mais se
desenvolvendo, vendo a parceria dos outros brancos. E pra
mim, ninguém tem preconceito de...
DF: Outra coisa, como é que o senhor vê a questão: se,
por um lado, o índio é dono da terra; por outro ele não é.
Porque a terra pertence, na realidade, à União.
AM: À União.
DF: O índio só é um beneficiário.
AM: Sim.
DF: Como é que o senhor vê isso, esse negócio de, de
repente a gente luta por uma coisa, pra estar na terra, mas
ao mesmo tempo você não pode usufruir a terra direito,
porque ela é da União?
AM: Isso.
DF: Como é que o senhor vê essa questão?
AM: Bom, essa questão a gente tá vendo, que... Eu
estive conversando, eu lancei uma pergunta pro delegado
Projeto: Panton 1
da Polícia
1 Projeto: Panton
Federal, eu disse assim: “Delegado, o senhor, uma
pergunta pro senhor, que dizem que a terra é da União.
Mas essa União é do povo brasileiro ou do povo
estrangeiro? Porque, do que eu estou entendendo um
pouquinho que tá dizendo, a terra é da União. Então, a
terra é do povo brasileiro. É isso delegado?” Eu falei pra
ele. “É rapaz, é da União, de todos, né?”, e não quis me
explicar direito, mas disse que a terra é da União. Tornei
perguntar dele de novo o que era União, que ninguém
tava sabendo o que é essa União. A União que nós
sabemos dentro da comunidade é que estamos unidos,
todo mundo trabalhando de união, só em um objetivo só.
É o que eu entendo de união. Aí ele diz União é, não sei
como, não sei nem como dizer, professor, pro senhor que
até agora eu estou confuso.
DF: Não tá entendendo né?
AM: Não estou entendendo que é essa União. Eu acho
que...
DF: União é do governo, é do Brasil?
AM: Do Brasil sim, do Governo Federal.
DF: Eh, mas é assim, uma terra que pertence a todos os
brasileiros.
AM: Todos brasileiros. Tá certo. Eh.
DF: A palavra significa isso, entendeu?
AM: Tá certo. Agora eu entendi como é que é.
DF: Não pertence só ao Devair, pertence a todos.
AM: Todo mundo, né?
DF: Isso. E é gerenciado pelo governo. É o governo que
gerencia. Como se fosse um parque, né?
AM: Isso.
DF: O que é muito complicado pro indígena.
AM: Não, pra mim, quer dizer, não é complicado. Isso
que eles estão fazendo, não acho que é complicado,
porque tem que ser assim, né? A gente tem que trabalhar
Projeto: Panton 1
conforme
1 Projeto: Panton
eles estão pensando.

DF: A legislação.

AM: A legislação. Aí pra mim não acho que é difícil.


Quanto mais a gente tem uns assessores que administram.
Agora, o que eu posso dizer, professor, é que ninguém
pode dar essa nossa terra de mão beijada pro povo de
fora, de jeito nenhum. [...] Aí que nós temos que botar o pé
na parede. Qual essa União que eles estão pensando? Qual
essa União? Será que é só pro povo estrangeiro, pros
americanos né? Ameri- canos estão aí ao nosso lado. Eles
estão nos ameaçando. Eles estão aí de prontidão mesmo
só pra acabar o Brasil, mas a gente tá vendo que, eu não
acredito que no meio de tanto povo, autoridades, a gente
vai dar uma coisa de mão beijada pra esse povo. Aí fica
ruim. Aí, quer dizer que não existem autoridades então,
dentro do Brasil. Se onde existir autorida- de, cadê que a
Venezuela tá aceitando essas propostas desse povo de
fora? Não estão. Aí é venezuelano, só eles mesmos ali
dentro. Tá aí presidente Hugo Chaves, que ele é
historiador, disse. A gente vê comentário dele na rádio, em
todo canto a gente vê a história dele. Ali quem manda é
venezuelano, o povo venezuelano ali. Então, quer dizer
que assim podia ser também o nosso Brasil, mas aí a gente
vê que, dentro do nosso Brasil, tem muitas pessoas da
ONG que moram por aí. Os padres que trazem suas
notícias más pra comunidade. A gente vê que a gente tá
aceitando ainda, né, estamos acei- tando as propostas
deles, eu não sei. O Brasil também tem condições de se
manter sem depender de outros países. [...] Eh, só com o
trabalho do Brasil. A riqueza tem muito. Tem muita
madeira, tem muita mineração que tá parada dentro das
áreas. Então, aí o Brasil também tem como se mexer. Ele
próprio não precisa estar precisando do povo de fora não,
de jeito nenhum. A gente vê esses lados, professor?
DF: E quando eles defendem essa questão da terra, ge-
ralmente eles fazem o seguinte, porque o indígena não
tem um local fixo...
Projeto: Panton 1
AM: Eh, exatamente.
1 Projeto: Panton
DF: Ele pode estar no Brasil hoje, amanhã ele pode
esco- lher ir pra Venezuela, né?
AM: Ham ham.
DF: Ele não tem uma nacionalidade muito fixa nesse
sen- tido. Como é que o senhor vê isso? O senhor se
considera um brasileiro mesmo ou o senhor se considera
um indígena (porque indígena não é brasileiro, porque ele
pode estar lá)? O senhor já ouviu sobre isso, não ouviu?
AM: Já, sim senhor. Já ouvi falar isso.
DF: E o que o senhor pensa a respeito disso?
AM: Bom, a respeito disso a gente, quer dizer, não são
todos que têm esses pensamentos de dizer: “Não, eu
vou...” É como se diz assim, não tem aquele (como é que
se diz?) Doutor sem fronteira. Não tem um médico sem
fronteira que diz né, que hoje ele tá aqui na guerra do
Brasil, amanhã ele tá na guerra da Venezuela, da Guiana. É
(como é que chama?), sei que é um médico sem fronteira,
parece que diz que ele não tem fronteira.
LS: Da Cruz Vermelha.[...]
AM: Isso. Ele não tem lugar certo. Tá por aqui, tá ali, tá
em todo canto, né? Então, eu acho que deve ser assim
também. O índio, ele não tem lugar certo, porque, às
vezes, quando ele tá com uma moradia, às vezes, há vinte
anos, há trinta anos, ele sente que ele tá, às vezes, só.
Falta uma estrada, falta um negócio assim e ele vai
procurar uma melhoria onde tem mais acesso de alguma
coisa. Principalmente de saúde, acesso de estrada pra
escoar alguma produçãozinha dele, que hoje estamos
pensando em agricultura, de viver melhor. Então, essa
melhoria sai que o povo tá se espalhando, procurando
uma melhoria melhor aí pra cidade. Pertinho da cidade, na
qual a gente tá por aqui também. E aqui a gente tem de
fazer o máximo possível de a gente estar numa melhoria
melhor.
DF: Entendi.
AM: Sim senhor. É assim a situação.
Projeto: Panton 1
DF: Só mais uma questão: vocês continuam caçando e
pescando normal?
AM: Eh, essa é nossa tradição. Tradição de caçar,
pescar. Isso aí nunca ninguém deixa também, porque isso
aí onde a gente vai procurar um mantimento; caçar um
jabutizinho por aí, a gente consegue, traz pra casa. Pega
um peixe, pega um catituzinho, uma anta, um veado, um
negócio assim e a gente vai, mas eu, eu penso assim: já eu
quero estar vendo, como diz, uma, a natureza mais
próxima. Parece que quando eu era mais novo, eu não
pensava assim não. Eu já matei muita caça. Mas agora já
estou pensando de preservar. Olhar e di- zer assim, que eu
quero ver algum bicho mais perto. Porque com a
continuação, eu tenho dito pro meu genro lá dentro:
“Olha, essa área aqui de preservação de mata, ninguém vai
tirar uma madeira aqui dentro.” Sabe por quê? A gente vai
ficando velho, a gente vai precisar de tirar madeira aqui,
tem que viajar um quilômetro, dois quilômetros. Então,
pra isso nós temos madeira bem perto da casa e é bom
pra gente fazer isso. Que aí: os outros dizem assim: “Não,
índio não sabe preservar. Índio vai derrubar”, mas a gente
também sabe, como estamos dizendo, não são todos que
têm essa ideia. Tem outros também, tem ideia boa. Eu não
penso isso de acabar a minha natureza que eu tenho
dentro, minha preservação ali dentro, que eu quero ver um
tucano, macaco pulando pra cima, pra baixo, ali onde nós
estamos. Aí eu vou até fazer esses dias uma varrida, um
barracozinho de palhinha mesmo, aí colocar uns pés de
banana, um jirau assim, meio, mais ou menos uns
cinquenta metros assim, ao redor, que é pra eu colocar
mais tarde um pesquisador ou turista. “Vai lá olhar!” Eles
se sentam naquele barraco, ele vai lá ver passarinho
comendo, aqueles pássaros que ele nunca viu. Aí já viu, ele
vai e acha bonito ali dentro. Eu quero fazer assim, tipo
assim um centro assim de pesquisa, de criação de pássaro.
Assim, pra ficar assim.
DF: Que eles venham...
AM: E é bonito.
1 Projeto: Panton
DF: Claro que é bonito.
Projeto: Panton 1
AM: É bonito, todo mundo elogia, ver a natureza tudo
próximo da gente. Às vezes tem gente que desmata. Às
vezes queima. Faz aquele... os bichinhos vão se acabando.
É como próprio a gente mesmo. A gente vai se acabando,
nossos avôs vão morrendo, às vezes por causa de não ter
um acesso de estrada; não ter um hospital; não ter uma
saúde melhor. Vão acabando nossos velhinhos. Então,
mesmo assim é a natureza, a criação de pássaro, de outros
bichos. A gente quer ver um pássaro bem assim perto, sem
ter que andar longe, às vezes nem longe ninguém vai ter
mais, que eles vão pegando doença e vão morrendo. E vai
acabando a natureza. Então, a preservação nunca ninguém
vai conseguir ter ela perto, porque nós mesmos vamos
acabando. Então, eu acho que dentro de mim, eu tenho
ainda esse sonho de preservar ainda uma área, que é pra
mim ver os pássaros perto. É tão bonito ver um sabiá, um
achizinho, um pássa- ro cantar perto. As curiquinhas,
comendo por cima né? É bonito isso. Isso aí, a gente tem
esse sonho de preservar também. Aí a gente tá
conversando com nossa, com nosso povo, com dois
homens que estão aí, meus genros, então estamos
conversando com eles: “Cuidado pra não ofender o
bichinho, ele sofre, adoece. Os bichinhos morrem, assim
como a gente também.” Eles querem ter vida. Querem ter
mais um tempo de vida, porque quem tira a vida é só Deus
mesmo, de cada um bichinho. Às vezes nós mesmos
acaba- mos com a natureza, com os bichinhos da mata. E lá
perto da nossa mata ainda tem muito pássaro assim perto.
A gente vê aqueles iapuruzinho cantando, aqueles
pássaros tudo próximo. Aí, até meus netos ficam
brincando: “Ah! macaco, vem comer banana!” mostra a
banana assim pra ele, mas ele não desce, é bicho
selvagem, é brabo, ele não vem aqui. Agora, se fosse no
mato, ele descia, pegava a banana da mão e levava. Mas
são brabos. Mas eles passam bem assim, a gente tá vendo
eles passando assim, malinando. Eles gostam de
brincadeira também, o macaco, mas só que o bichinho é
brabo. Eles não são acostumados. Então, é isso professor.
A gente tem ainda esse sonho de preservação ainda
1 Projeto: Panton
dentro da nossa comunidade.
Projeto: Panton 1
DF: Quando o senhor vai caçar, em algumas
comunidades eles pintam o rosto pra se proteger. Tem
alguma coisa assim?
AM: Não, senhor.
DF: Tem não.
AM: Isso aí acho que não. Eu pelo menos já cacei muito,
mas nunca pintei rosto não. Mas já usei a, o remédio que é
pra atrair eles, o remédio pra atrair.
DF: Tem remédio pra atrair?
AM: Tem sim senhor. Tem remédio pra atrair catitu; tem
remédio pra atrair o pássaro, o jacu. Esse remédio ele vem
bem assim perto de você, ele chega pulando parece que é
o remédio que atrai ele, né?
DF: Ah, entendi.
AM: Eh, você tem que matar ele, atirar nele sem errar.
Se errou, se ela foi embora, nunca mais se vê. Na hora que
você chama ele, em vez de vir ele faz é voar muito longe.
Some, desaparece. É um tipo de um remédio que a gente
usa pra, chama-se puçanga.
DF: Ah, puçanga!
AM: Eh, puçanga de passarinho, da anta, da cutia, do
ve- ado; é puçanga da paca, do catitu, do nambu, do jacu.
Tudo eles têm puçanga.
DF: O senhor faz isso até hoje?
AM: Eh, não, nós temos só assim uma. Não sei se o
senhor conhece aquela mangarataiazinha que arde. O
senhor já viu aquela ervazinha que passa assim?
DF: Acho que não.
AM: Nós temos aí no quintal. Sempre a gente anda por
aí. A gente coloca nos olhos pra ninguém ficar cego. Ela
limpa algumas coisas que têm na vista da gente, só que
dói. A gente coloca na vista. É bom pra gripe também, pra
manter no nariz assim, ela tira um pouco da, do micróbio
do nariz que dá na gripe, que fica. Então, aí tem esse
1 Projeto: Panton
remédio, a medicina, que
1 Projeto: Panton
a gente usa pra visão, pros olhos. Já era pra eu estar cego,
a idade que a gente já tá, 56 anos que a gente vai fazer dia
13 de janeiro. Mas até agora eu não senti aquela escuridão,
ainda não chegou na minha vista ainda. [...] É porque a
gente usa, né, de vez em quando tá usando esse remédio,
a medicina. Vem gente de longe comprar medicina aí,
desse de jogar no olho. Já veio gente da Venezuela atrás e
já vendi um pouco pra eles. “Rapaz, isso aqui é bom! Se
você não usar vai ficar cego ligeiro.”
LS: Mas arde?
AM: Arde sim senhora. Ela arde.
LS: Igual à pimenta?
AM: Igual pimenta, mas é mais ou menos...
LS: É menos que pimenta?
AM: É mais do que pimenta, mas ela queima assim na
hora. Depois ela vai esfriando. Aí você abre os olhos,
chega, você vê aquela clareira assim na vista da gente.
Parece que o que cerca é algum remelinho que fica aqui na
(como é que é?), eu chamo de remela que fica aqui na vista
e ela fica em- baraçando. A gente vê muita coisa na frente
né? Mas depois que coloca dentro, ela afasta tudinho pro
lado. Aí você tira com paninho e pronto, já sai curado.
Fazer que nem o outro, já sai vendo coisa boa!
DF: Em algumas comunidades, ainda eles fazem
iniciação dos meninos e das meninas. Por exemplo,
quando tá virando rapazinho, tem uns que pegam o dente
da piranha e unham o corpo todo. Aí passa depois um
negócio pra ele ir ficando forte e se tornar rapaz assim.
AM: Bom professor, esse lado aí eu nunca usei e
também nunca vi isso assim na vida.
DF: Nunca viu.
AM: Mas tem um medicamento que é de tradição
mesmo, pra gente ficar corredor, ligeiro, forçudo ou
esperto no tra- balho. É um remédio quase como esse. É
um remediozinho que a gente passa na perna, corta com
alguma giletezinha, e
Projeto: Panton 1
passa na perna, e o cara não fica preguiçoso. Ele não senta.
Se senta, daqui a pouco ele levanta, vai puxar por ali, vai
tomar um banho; senta de novo, daqui um tempo ele vai
pra ali. Fica tipo uma cutia, uma cutiazinha, ela não come
comida certa. Pá, pá, pá, mexe aqui, ela pula pra um canto.
[...]. Por isso, professor, esses velhos mais, mais antigos,
eles têm esses medicamentos na perna, você vê que ele
não para. Só para quando morre. Só quando morre, aí
pronto, aí parou, parou mesmo. Aí eu conheço uma, a mãe
do seu Terêncio, é uma velhinha, ela usava isso daí. Ela fica,
você tá parado e ela fica pisando tam, tam, tam. Doido pra
você andar um pouco que é pra poder acompanhar. Fica ali
pisando. Tam, tam, tam, tam, tam. Aí, eu malino dela: “Tia,
a senhora não vai parar não?” [risos] Fica ali pisando,
machucando. Então, esse pessoal dos antigos, eles usavam
muito isso, porque quem usa isso aí é esperto. Tá ali
lavando prato, tá por ali lavando panela e se for homem tá
por ali quebrando uma lenha. Pula ali vai tomar um banho;
vai capinar uma coisa; vai plantar uma coisa; plantar
banana. Fica ali, puxa, não tem nada. Pega o caniço e vai
pra longe, longe, pescaria é longe, mas vai lá. Com uma
hora, meia hora ele tá de volta de novo. Tam, tam, tam.
“Compadre, faz um negócio aí!” É assim, só se for pra
dormir. Às vezes nem pra dormir não dorme. Aí ele pensa
assim: “Vou dar uma pescada de noite!” Aí ele pega a
lanterna e vai por aí. Chega lá pela madrugada e é assim. É
um medicamento que ele faz, é a pessoa caminhar mesmo:
andar, andar, andar e não para não. Rapaz, não pode não.
Ele fica, o cara fica esperto.
DF: Entendi.
AM: Fazer que nem a história da cutia. O cara caçando
diz que viu a cutia roendo uma fruta, um carocinho não sei
de quê lá. Longe, diz que ele escutava fazendo tchiii,
fazendo aquela zoada. “Que diacho é isso?” e foi chegando
perto. Destar que a cutia comia aquele carocinho duro que
esquentava o dente. Aí bem logo assim do lado tinha uma
pocinha d’água na laje. Aí encostava a cara e enfiava o
rostinho dela dentro d’água e o dente esfriava, tchiiii. Que
esquentava, era isso
1 Projeto: Panton
aí que chiava, e o caçador: “Ih, rapaz, era o dente do bicho
que esquentava.” [risos] Ele comia, comia, comia; chegava
a estalar mesmo. Quando esquentava, ele tacava a cabeça
dentro d’água e subia aquele vapor. Quando coloca o ferro
quente assim dentro d’água.
DF: Sei.
AM: Assim mesmo que era cutia. Ele diz: “Rapaz, era
cutia.” Aí era assim, a zoada do caçador. [risos]
DF: Essas histórias de cutia, de coisa assim que a gente
queria ouvir. Se o senhor tivesse alguma.[...] E do macaco,
não tem nenhuma não?
AM: Do Macaco, Macaco ele fez um, encontrou. A Onça
era doida pra comer o Macaco, até que encontrou o
Macaco lá de jeito. Aí disse: “Ah, compadre, hoje eu lhe
como.” Aí o Macaco: “Não compadre. Não me faça isso
não. Não me come não!” “Não, hoje eu lhe como.” “Por
que compadre?” “Não, porque eu estou com fome e vou
lhe comer.” “Ah, não compadre. Hoje vai ter um temporal
tão grande e só tem esse pau aqui, compadre, e eu tô
cortando um cipó aqui pra mim me amarrar, porque esse
pau aqui vai ficar e vai aguentar todo peso do vento.” “Ah
não compadre. Tu tem que me amarrar, porque, senão, tu
já sabe se amarrar e eu não sei.” “Então tá bom, tu me
ajuda a cortar cipó.” Aí o cabra subiu em cima; arrebentava
cipó; cortava com o dente; jogou pra baixo e amarrou ele
desde o pé. Aí o Macaco: “Fica em pé, compadre, com os
braços pra cima.” Aí o cara no pau assim e amarrou no
meio até chegar nas mãos aqui. Deixe estar que ficou em
pé, aprumadinho. Aí ele disse: “Ah compadre, tu sabe o
que que é?” A Onça: “Não compadre.” “Eu vou cortar uma
vara e vou te dar uma pisa agora.” [risos] Se mexer, ele
não podia se mexer, em pé, todo amarrado: “Mas,
compadre, não faça isso!” “Pois é, vai apanhar compadre.
Tu tá doido pra me comer, agora vou te dar uma pisa.” Aí
cortou uma vara e empurrou o sarrafo na onça: pei, pei,
pei. Cansado, largou ele, deixou ele amarrado, aí os outros
passaram lá: “Que que é, compadre?” “Rapaz, o danado
Projeto: Panton 1
do
1 Projeto: Panton
Macaco passou por aqui e disse que vinha um temporal.”
“É nada, ele queria é te surrar mesmo!” “Mas um dia eu
como ele, eu como ele.” [risos] Tá lá tomando conta de um
igarapezinho, de um olho d’água, só tinha aquela água. Aí,
o que que o macaco pensou: “Rapaz, sabe de uma coisa:
eu vou me melar, na coisa, (como é que é?) na abelha, no
mel de abelha bem meladinho!” Aí se melou; rebolou por
cima do mel e pelos braços, pelas pernas. Aí chegou
naquelas folhas secas; começou a se enrolar: tá, tá, tá, tá!
por aqui [passa a mão pelo corpo]; tipo, só folha mesmo o
bicho. Aí Onça tá lá tomando conta da água: “Quem é?” Aí
já vinha: “É fulano de tal.” “Bebe água; toma banho e vai
embora.” “Quem é?” “É fulano!” Ele só lá espiando,
compadre Macaco vem beber água. Aí lá vem aquele
senhor lá todo cheio de folha, que era ele né: Tá, tá, tá, tá!
“E aí, compadre!” “Oh, quem é você?” “Compadre,
Folharal.” “Bebe água compadre, Folharal, toma um
banho.” Aí [risos], era só o que ele queria. Bebeu água à
vontade mesmo. Aí tomou um banho. Aqui tem umas
árvores tudo pertinho. Tomou um banho. Aí ele nem olhou
pra ele, dizendo que ele era Folharal. Tomou banho; as
folhas ficaram tudo em cima d’água; aí se enxugou um
pouquinho. Ele tava de costas quando ele olhou: “É o
compadre Macaco!” “Sou eu mesmo compadre, já bebi
água e tchau!” E aí, oh! “Esse compadre de todo jeito me
engana, né?” [risos] Essa é a história dele, do compadre
Macaco.
DF: Tem alguma história que o seu pai contava pro se-
nhor, dessas assim? Sua mãe? Tem mais alguma que o
senhor lembra?
AM: É não, é a história do, mas essa aí é real. A
Capivara, ele tinha um caçador. Sempre nas reuniões, têm
os anima- dores da reunião, que é pra acordar as pessoas
que estão dormindo. “Tuxaua, quem vai ser os animadores
da reunião?” Eu digo: “Vai ser um desses quatro, vão ser
animadores.” “Tá bom!” Aí um senhor disse: “Olha, eu
vou, eu vou contar só uma historinha, isso é real. O meu
avô, o meu sogro. An- tigamente tinha muita piranha nessa
região daí do Surumu, no Igarapé do Pacu. Aí, bom, aqui
Projeto: Panton 1
tinha muita piranha, aí o que que ele fez: ia atravessando
com a água na barriga do
1 Projeto: Panton
cavalo por aqui né, e o cavalo se agoniou, atravessando o
igarapé: pou, pou, pou, pou. Destar que eram as piranhas
que estavam se pendurando aqui no bucho do cavalo.” O
bucho do cavalo, o couro dele é duro né? Aí, quando saía
sangue é que a piranha encostava mesmo. Aí, de repente
brecou o cavalo com a espora. O cavalo saiu fora e aí
foram caindo as piranhas atrás: pou, pou, pou, pou.” Ele já
tinha dado o fora. Aí ele olhou as piranhas tudo descendo
da barriga do cavalo. Aí correu pra lá e matou umas seis
piranhas. Isso não é mentira meu filho. Eu estou aqui de
vivo. Isso é o velhinho já contando. “Eu estou aqui. Isso
não é mentira que o meu genro tá contando pra vocês
sorrir não. Isso aqui é verdade. Tinha muita piranha, meu
filho. Olha, isso aqui aconteceu mesmo. Tá aqui. Eu tô de
história, né? Eu matei seis piranhas que tavam mordendo o
bucho do meu cavalo, caíram do bucho do meu cavalo.”
Que tava agarrado aqui, no bucho do cavalo. Essa é a
história aí, mas é, é porque esses velhos eles têm muita
história
DF: Justamente. Por isso que eu estou falando.
AM: Eu vou só aqui encerrar um pouquinho com a his-
tória dum, dum tuxaua lá do Perdiz, não, ali da maloca do
Limão. Ele foi, nesse tempo, a denúncia, que os indígenas
denunciavam dos brancos, era lá no São Marcos. Lá pra
baixo. Eles saíam do Contão e iam lá pro São Marcos. Aí ele
foi, arrumou o anzolzinho dele pra ir pescar por aí, mas ele
esqueceu; deixou em cima da mesa. Aí foi embora.
Quando chegou no meio da viagem, meio-dia de viagem,
ele chegou na beira duma lagoa. Lá tinha é, é, tinha uma
(como é?), tinha um tucunaré chocando. É assim, peixe
chocando. Aí quando o cara chegou lá, o cavalo vai com
uma sede, encostou a boca pra beber água e tava
bebendo. E o cavalo ele tem, ele corta o capim com o
dente e a vaca com a língua. Vai cortando, que a língua
dela é a foice. Vai puxando com a boca. Aí ele ficou
olhando aí, o cavalo tem aquela coisa em cima dele
amolado, e o tucunaré não tem dente: é só aquela serrinha
também, beirando, amolada. Aí quando o cavalo foi beber
água, tucunaré chocando, pam, pegou aqui no beiço do
Projeto: Panton 1
cavalo, que jogou lá no seco o tucunaré, vapu!, longe. Aí
1 Projeto: Panton
pulou do cavalo, aí correu e matou. Aí o cavalo tornou a
bai- xar a cabeça. Que eram dois, quando tá chocando são
dois. Tucunarezinho chocando. Aí tucunaré tá agarrando, o
bicho jogou de novo lá do outro lado. “Oh, que bênção de
Deus, é muito bom acontecer isso.” Aí foi procurar os ovos
dele e não achou. “Olha aí como Deus é tão bom comigo.”
Ele quebrou uns garranchos de pau, assou e tal. Isso aí
ficou como uma história real mesmo, que aconteceu. Que
ele conta, né? O velhinho já morreu, mas os sobrinhos, os
tios desse rapaz que contam a história. Eles contam lá no
Limão, na maloca do Limão. Isso é real, aconteceu mesmo,
a história do tucunaré.
Projeto: Panton pia’
Entrevistado: Valdélio Perez Ribeiro (VR)
Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)
Assistente de Entrevista: Lucimar Sales
Local: Comunidade Santa Rosa, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR
Data da Entrevista: 8/10/2008
Transcritora: Keyty Almeida de Oliveira
Conferência de Fidelidade: Airton Vieira e Devair Antônio Fiorotti.
Copidesque: Devair Antônio Fiorotti
Duração: 56’’06’’’
Projeto: Panton 1
DF: Qual é o nome do senhor?
VR: Valdélio Perez Ribeiro.
DF: Qual a idade?
VR: 32 anos.
DF: A etnia do senhor é qual?
VR: Macuxi.
DF: O senhor tem uma função definida na comunidade,
o senhor é tuxaua?
DF: Tuxaua da comunidade de Santa Rosa.
DF: O senhor tem mais alguma função? Essa já é muita,
não?
VR: Eh, por enquanto eu sou só de uma Associação [...]
DF: O senhor chegou a estudar?
VR: Eu passei vários tempos parado. Quando concluí a
quarta série, passei quase quinze anos parado.
DF: O senhor estudou na comunidade mesmo, tinha
escola lá?
VR: Tem. Aí então, por falta de professor, não conclui o
terceiro ano. Ainda estou com três matérias de dívida pra
concluir[...]
DF: A primeira língua que o senhor aprendeu foi o
macuxi ou a língua portuguesa?
VR: Eh, apesar de que meus pais, eles não são falantes.
DF: Não são falantes nativos não.
VR: Então, eu nasci só com o português.
DF: O senhor sabe macuxi?
VR: Algumas coisas que eu sei falar. Não entendo, mas
falo algumas coisas, sim.
DF: Tá certo. Agora eu vou fazer algumas perguntas em
re- lação ao senhor mesmo. Por exemplo: O senhor é
agricultor, trabalha com agricultura ou não trabalha, na
comunidade?
1 Projeto: Panton
VR: Eh, a gente, as comunidades indígenas trabalham
mais com a agricultura, todas as comunidades indígenas.
Então, lá pra nós, apesar de que a gente é de comunidade
pequena, mas só que hoje estamos com um projeto de
pecuária. Então, a gente não tem muito se envolvido com
a agricultura, mas tem a agricultura familiar, de cada um,
de cada casa, de cada família. Então, a gente também tá
tocando um projetinho bem pequeno que é da parte da 54
Associacao Dos Povos In-
associação APITSM.49 Que nós conseguimos pela APITSM, digenas da Terra de São
fazer um projetinho de agricultura lá, então, cinco Mar- cos. Sua sede é o
Malocão Macunaimî,
hectares pra gente estar iniciando um projeto de localizado na BR-174,
agricultura, né? E quem sabe daqui, a gente já tá dando sentido Pacaraima.

continuidade ao projeto.
DF: Sim. Então, a base hoje lá é a pecuária?
VR: É a pecuária. E também a agricultura...
DF: Mas é mais de família, não?
VR: Isso!
DF: Individual, não é?
VR: Individual.
VR: O forte mesmo é a pecuária. [...]
DF: Qual o nome dos pais do senhor?
VR: É Liberalino e Neuza.
DF: Os dois eram macuxis?
VR: Os dois são macuxis. Só que não são falantes.
DF: Eu estou perguntando isso porque têm muitos que
o pai é macuxi, outros é taurepang, pra saber mais ou
menos.
VR: Eh.
DF: Hoje na comunidade tem alguma religião predomi-
nante?
VR: É a católica. E têm alguns que são evangélicos tam-
bém, da parte, eu não sei a religião, é Batista; Batista mais
ou menos, Batista missionário, mas são poucas pessoas,
quatro pessoas mais ou menos?
Projeto: Panton 1
DF: Mas a maioria, então, é católica?
VR: É católica.
DF: O senhor também é católico?
VR: Também.
DF: O senhor é casado?
VR: Não, sou junto, não sou casado no papel. [...]
DF: Casado. Inclusive essa é uma questão interessante:
esses conflitos que os indígenas vivem: ao mesmo tempo
em que têm as comunidades que têm suas regras antigas,
por exemplo, antigamente ninguém casava no papel, não
é?
VR: Não.
DF: O casamento é um ritual dentro da comunidade,
mas hoje em dia tem que ter esse ritual e ainda tem que ter
o outro.
VR: Pois é. Isso aí que muitas pessoas perguntam,
assim: “Mas você é casado?”; “Não. Eu sou não sei o quê,
junto não sei o quê...”; essa coisa que também tá entrando
nas comunidades indígenas, que tem que ter o casamento
no papel, não é?
DF: Isso já tá forte, também?
VR: Já. Não lá dentro, mas assim, eu acho que pelos
pro- fessores que têm assim, por exemplo: é que ele é
funcionário, o marido não é ou a mulher é, eles querem
casar pra garantir
o sustento de seus filhos, é mais ou menos assim.
DF: E o que o senhor pensa a respeito dessa questão,
assim, dessa legislação dos não índios que acaba entrando
tão forte na comunidade? Você acha que o índio tem que
se- guir essa lei, não tem, o que é que o senhor pensa a
respeito disso? Ou o senhor nunca pensou a respeito? [...]
VR: Pois é, eu acho que hoje a gente tá num país demo-
crático, um país hoje que vive o capitalismo realmente, já é
um país capitalista. Então, hoje a gente não tem pra onde
1 Projeto: Panton
fugir, não é? A gente tem mais que abraçar essa causa, mas
Projeto: Panton 1
respeitando, tanto faz, a parte do não índio e respeitando
a nossa parte, dos nossos rituais, nossas histórias, todas
essas coisas assim.
DF: A tradição...
VR: A tradição. Mais ou menos assim, né? Mas eu acho
que a nossa parte, vamos dizer assim, dos brancos se
envolver dentro da comunidade, acho que hoje todo
mundo precisa disso. Por exemplo, hoje ninguém pode
viver só naquilo. Mas só que, hoje, o país hoje é um país
globalizado, onde os alunos precisam estudar, se formar,
ser médico, pra voltar pras comunidades, ser advogado
pra ajudar as comunidades. Essas coisas assim. Então, pra
isso, como é que pode dizer, es- sas coisas dos brancos,
acho que tem tudo a ver com a gente, hoje em dia. Por
exemplo [apontando pra um computador], um
computador desse aqui, então, a gente tem que estar por
dentro das coisas, tem que estar acessando a internet pra
ver como é que tá o país lá fora, aqui dentro mesmo.
DF: Não tem como fugir.
VR: Não tem como fugir, tem que estar nisso, tem que
aproveitar disso, se aprofundar, dizer assim, né?
DF: A sua esposa também é macuxi ou não?
VR: Macuxi mesmo.
DF: Quantos filhos o senhor tem?
VR: Três.
DF: E qual foi a coisa mais triste que o senhor viu até
hoje e qual a mais feliz?
VR: Mais triste: durante agora esses tempos, foi a
perda de uma aluna da comunidade. Ela se suicidou,
ninguém sabe por quê? E ela, assim, é parenta nossa,
então é uma coisa triste, né?
DF: Não se consegue explicar direito.
VR: Ninguém sabe por quê, então, ninguém sabe. Nin-
guém sabe por que ela se matou, então...
1 Projeto: Panton
DF: Ela não disse nada a ninguém? Não deixou uma carta?
VR: Deixou uma carta pra mãe dela, dizendo que se a
mãe dela não chegasse aquele dia, ela ia se, ela ia, como é
que pode dizer, assim, se arrepender, né? Se a mãe dela
não chegasse aquele dia, ela ia se arrepender. Então, foi,
meteu a corda no pescoço e pulou da casa. Se suicidou e
morreu. [...] Pois é, e o próprio irmão dela que morava
junto com ela, chegou na casa de noite, porque ela dormia
assim no sofá e numa rede. Aí ele chegou na rede dele e
dormiu a noite todinha, pensando que a irmã tava bem. A
irmã dele tava lá no quarto pendurada, ele não via ela
mexer, só quando ela dormia. Aí, de manhã, ele foi ver ela
no sofá, ela não tava. Aí entrou no quarto e ela tava
pendurada desde as oito da noite.
DF: Aí é triste mesmo.
VR: Eh.
DF: E feliz?
VR: Eh, feliz, hoje, porque tenho uma família, têm meus
pais que moram perto da gente. Acho que a maior
felicidade é ter a família unida. Acho que é uma das
felicidades [...] e saúde principalmente.
DF: O senhor nasceu onde, aqui no Alto mesmo?
VR: Aqui no Alto mesmo. No Alto São Marcos.
DF: Certo. E agora vou fazer algumas perguntas mais
sobre a comunidade. Qual a história da fundação da comu-
nidade, o senhor sabe?
VR: Eh, como eu tava contando naquela hora, dentro
da comunidade hoje, são as histórias que a gente já sabe,
que a comunidade veio desse processo de 1900 pra cá, foi
um livro que, que o meu professor também lá da
55
Theodor Koch-Grünberg, comunidade tem achado por internet e achou, foi de um
etnólogo alemão, visitou
Roraima entre 1911-13, fi- alemão, parece, Koch-Grünberg. 55
cando também na região
do Surumu. DF: Ah, sei.
VR: Não sei se você já teve acesso a esse livro…
DF: Eu já vi um vídeo dele.
Projeto: Panton 1
VR: É, né? Já ouvi falar que na Serra do Mel, você sabe
onde é no Surumu ali.
DF: Sim.
VR: Lá é uma comunidade muito grande, aí tivemos
que passar, que eles passam não sei quantos dias de festa
na comunidade, aí dizia que chegava gente e alugava, por
exemplo, lá, o Mairari, que é hoje a Serra do Mairari, que
é uma comunidade, que chamam de Mairari. Então, vinha
também do Amajari e a gente falava também do Orocaima,
que é Santa Rosa hoje, porque na verdade o nome de lá é
Orocaima.
DF: Orocaima?
VR: Orocaima. Então, ele falava assim, que chegava
muita gente, como é que se fala? Oracaima. Então, por isso
que talvez seja Sorocaima, né?
DF: Sei.
VR: Até porque era escrito, em quê? Em espanhol. [...]
Eh, então foi, então, esse é o processo que vem vindo, a
gente diz que, segundo as histórias, lá era uma
comunidade muito grande mesmo, a gente sabe onde tem
um, várias é… assim, onde já morou gente, a gente sabe.
Tem aquelas, como nós indígenas sempre [usávamos],
hoje quase ninguém usa mais aquelas pedrinhas de botar
as panelas assim. A gente encon- tra por aí, monte de
pedra, panela, panela velha, assim, então é sinal que ali foi
um território indígena desde antigamente.
DF: Sim.
VR: Então, de lá pra cá diz que o pessoal, morava muita
gente lá mesmo, e segundo o pessoal me conta que eu sou
o, vamos dizer assim, descendente dessa família de lá,
ainda. Porque diz que o primeiro tuxaua, quando o antigo
meu avó, que hoje tá vivo, ele tá bem velhinho hoje, não
dá nem mais pra conversar com ele, porque tá assim bem
velhinho mes- mo. E fé em Deus, que o homem que
morava com ele, um tal de João Sales. Então, esse João
Sales era pai do Lobato, esse Lobato foi um tuxaua
1 Projeto: Panton
também, esse João Sales foi o
Projeto: Panton 1
primeiro tuxaua, depois esse Lobato, que era o filho dele.
E, segundo o pessoal, esse Lobato, que é o avó do meu pai,
assim, é assim que conheço a história. Então, de lá pra cá, a
comunidade, ela tem se chocado muito atrás desse tipo de
doença, morreu muito, era catapora, sarampo, essas
coisas assim que, essas coisas que, segundo o pessoal, que
são os brancos que trazem, não é? [...]
DF: E quando eles vieram, as pessoas que tinham aqui
não tinham resistência.
VR: Então, essa doença chegou e pegou e foi extermi-
nando um bocado, então o pessoal que não morreu, saiu,
foram-se embora. [...] Pois é, então, de lá pra cá, diz que o
pessoal foi-se embora, né? Aí passaram uns tempos fora da
comunidade lá do Orocaima. E nisso chegou o pessoal
bran- co, os maranhenses, o pessoal daí de fora. Então,
chegaram lá, passaram um bocado de tempo por lá, tal. Aí
esse, esse velhinho que eu disse pro senhor, que tá pra
Boa Vista, esse velhinho que foi tuxaua vinte anos? Então,
ele chegou lá e viu, viu que os brancos estavam tomando
conta mesmo da comunidade. Então, ele chegou lá e
conversou com eles e tal, aí, que não podia ficar só os
brancos e tal. Aí sei que empossaram ele como tuxaua de
lá. Não tinha ninguém na época, não tinha mais tuxaua lá,
já tinha morrido o Lobato, tinha morrido o João Sales, já
tinha morrido já. Empossaram ele como tuxaua lá, então,
de lá pra cá os brancos foram-se embora, casaram, acho
que cansaram de ficar por lá também e foram-se embora.
Então, de lá começou de novo a comuni- dade, daí ele
brigou muito pelas fazendas hoje, pelas, vamos dizer
assim, é por causa dos invasores lá, dos fazendeiros. É
56
A entrevista foi realizada porque lá na comunidade (daqui a pouquinho eu vou
na sede da Universidade
Estadual de Roraima, em
mostrar pro senhor qual era nossa área de comunidade), 56
Pacaraima. porque a comunidade era só naquele campo ali mesmo,
ninguém entrava no mato porque era do branco.
DF: Entendi.
VR: E quem entrasse naquela mata ali, a gente era ame-
açado de morte pelos brancos. Sim, ele falava [que] era
dele, então a gente não tinha toda essa liberdade pra estar
1 Projeto: Panton
caçando e pescando não. Então, ele teve essa briga com
ele e foi muito perseguido lá, foi esse processo todo. E
conse- guiu também a demarcação junto com o pessoal
daqui da reserva São Marcos, hoje. Então, ele lutou
também. E tem que conseguiu também um projeto de
gado que hoje nós temos lá também. Então, ele passou,
segundo assim, passou vinte anos, quem sabe foi até mais,
ninguém sabe, né, porque muitos deles eram analfabetos,
não sabiam nem contar. Aí ele calculou que eram vinte
anos, assim.
DF: Tá certo, o meio de transporte ali é aquele que a
gente viu mesmo?
VR: Eh.
DF: Quando precisa vem de bicicleta.
VR: Eh, vem de bicicleta, uns dois tratorzinhos lá, cavalo,
é assim mesmo.

DF: Sei, e é bem longe, dá quinze quilômetros quase,


não é?
VR: Dezoito!

DF: Dezoito quilômetros da comunidade até lá na


estrada. Bem, o senhor acabou de falar, mas eu esqueci:
qual foi o primeiro líder tuxaua?
VR: Foi o João Sales. [...] Então, segundo o meu avô,
que era Sari, o nome dele macuxi.
DF: Sari.

VR: Então. Aí como os brancos estavam por lá, botaram


o nome dele de João Sales.
DF: E por que o nome de Santa Rosa, o senhor sabe?

VR: Santa Rosa é porque o seguinte, então, é como era


Orocaima, a comunidade. Aí, segundo, chegou um padre
por lá, um padre não sei se era italiano, parece que foi o
padre Zé Maria, não lembro muito assim. Ele chegou com
um tuxaua Vitalino de lá e disse: “Tuxaua, vamos tratar
aqui o nome da comunidade, esse nome é muito feio.” Aí
Projeto: Panton 1
botou outro nome:
1 Projeto: Panton
“Vamos botar aqui o nome de Santa Rosa de Lima, em ho-
menagem a uma santa aí.” “Tá bom, então vamos
colocar!” Aí trocaram de Orocaima pra Santa Rosa, né?
DF: E a comunidade nunca quis mudar de volta não?
VR: Até agora não, mas os antigos ainda chamam de Oro-
caima. O meu avô não chama de Santa Rosa, só de Orocaima.
DF: Então, até hoje Santa Rosa é também conhecida como
Orocaima pelos antigos?
VR: Isso. Também, também.
DF: Entendi.
VR: Então, aquela serra que vocês viram lá, é o nome de
Orocaima.
DF: Que significa o quê, o senhor sabe?
VR: Eh, segundo o que o pessoal também fala, que diz
que é porque o Orocaima é que dá origem assim aos
papagaios, que o nome do papagaio, em macuxi, é
woro’ke.
DF: Woro’ke?
VR: Então, e as festas, não sei se era um lugar, se era a
casa de papagaio, se era comida de papagaio, era assim
uma mata onde os papagaios gostavam de ficar o dia todo.
Era mais ou menos assim, então.[...]
DF: A alimentação da comunidade mudou muito, você
lembra como era antigamente, você acha que tá a mesma
coisa?
VR: Eh, na parte da carne sempre mudou, não é? Depois
que a gente tem, tá criando os nossos animais como gado,
porco, galinha, essas coisas assim, não sei no passado, que
eu não me lembro, mas acho que mudou, com certeza. Eh,
porque segundo as histórias dos antigos, dos mais velhos,
uma parte da alimentação da carne era só através da caça
mesmo, ali era uma região que tinha um monte de jabuti
também. Segundo o pessoal, tinha tanto jabuti que eles
faziam parede de casa só de casco de jabuti, só.
Projeto: Panton 1
DF: Tem história assim?
VR: Tem essa história lá.
DF: Mas não acharam mais os cascos?
VR: Não, não, porque ali o povo chega, né, queima
tudo. Então, os peixes, também, ali é uma região muito de
pei- xe, porque o rio era muito longe, chamava os
fazendeiros mesmo, tinha um igarapezinho. Só o peixe
mais as caças de antigamente. Hoje ainda tem, graças a
Deus, preservou hoje e ainda tem muitas caças. E tem
também a damorida, que hoje quase que não é consumida
hoje, muito, lá.
DF: Não é muito mais, não?
VR: Mas os Pajuarus, de vez em quando o pessoal faz,
mas não é assim diretamente como o pessoal fazia.
DF: Pajuaru é o quê?
VR: Feito de mandioca, de beiju. [...]
DF: E aí, hoje a base da alimentação é mais a do gado
mesmo, não?
VR: Eh. Leite.
DF: E em relação aos rituais antigos, vocês preservam
alguma coisa?
VR: Hoje a gente tá botando pra ver se a gente reforça,
como se pode dizer…
DF: Retoma.
VR: Eh, retoma. Que, pelo menos, a língua, hoje, a
gente tem um professor que tá dentro da escola
ensinando as criancinhas pra ver se dá uma continuidade a
isso, mas só que é meio difícil. A pessoa quando nasce
falando uma coisa, pra aprender outra coisa só se tiver
interesse mesmo. Mas é muito difícil na parte do ritual,
assim, como as danças, hoje a gente sempre vem
praticando.
DF: Sim, estão retomando.
1 Projeto: Panton
VR: Isso, isso. [...] Mas só que, pra escrever, eles escre-
vem, os alunos. Escrevem. Se colocar um texto pra eles, eles
Projeto: Panton 1
sabem fazer, agora, pra falar que é o negócio! Pode ver que
aqui no Sorocaima I, hoje...
DF: Sei.
VR: Segundo o pessoal comenta, os alunos só vão pra
escola depois de sete anos, só depois que já sabem falar o
idioma deles.
DF: Ali nem escola tem. Ele não deixou colocar escola
até hoje, o patriarca.
VR: Pois é, então, é a escola do Sorocaima I. Então, só
vão pra escola depois de sete anos, quando já sabem falar
o...
DF: Taurepang.
VR: O taurepang deles lá. Então, é interessante, né?[...]
DF: Eles falam taurepang mesmo. Me diga uma coisa,
como é que o senhor vê hoje a questão do indígena, o
senhor como tuxaua?
VR: A questão, mas como assim?
DF: Do índio hoje, por exemplo, a relação dele com o
não índio, como é que o senhor vê isso aí?
VR: É como eu disse, eu não vou repetir mais, mas hoje
a sociedade indígena, apesar de que não são bem, vamos
dizer assim, são considerados quase como mentores,
como gente. Mas hoje, o índio, ele é como qualquer um ser
humano, né? Hoje o pensamento de nós indígenas é estar
ocupando os espaços também, onde hoje os não índios
estão ocupando hoje, né, pode ser no município, na parte
de vereador, na parte de prefeito, nas escolas já estão com
certeza, se não falha a memória, mas acho que são quase
mil professores indígenas, hoje.
DF: Sim, na parte do Insikiran, não é isso?
VR: Não, nas comunidades indígenas mesmo.
DF: Ah, nas comunidades.
VR: Isso. Na parte do Insikiran, parece que são seiscentos,
Projeto: Panton 1
parece que é mais ou menos assim. [...] Pois é, então é
isso, que eu vejo assim, que a parte de nós indígenas hoje
tem que avançar, acho que a palavra hoje é avançar.
DF: Sim, o senhor falou uma coisa que é interessante:
os indígenas pensam que o branco pensa que o índio não
era…
VR: Não, escuta aqui, não todos os não índios. Imagina
assim, que hoje os brancos, o indígena não é considerado
quase como gente hoje, que o índio, por exemplo, pra
eles, assim, é uma coisa quase descartável, um animal,
vamos dizer assim, mas, na realidade o indígena hoje é um
ser humano igual a qualquer um hoje.
DF: Sei.
VR: Pensa, tem inteligência como qualquer um, né?
DF: É por isso que eu tava falando daquela questão do
direito e dever.
VR: Pois, é.
DF: Eu acho importante ter essa consciência do, até
que ponto é, isso é uma coisa que eu acho muito estranha.
Na hora em que você nasce índio, você nasce índio, mas
também nasce brasileiro.
VR: Pois, é.
DF: Não é isso? Mas na hora de seguir a legislação
parece que é uma legislação própria só pro índio e a outra
legislação não serve. Vocês tem direito à terra, não tem?
Tem. Mas a terra não é de vocês, é da União. Isso cria uma
confusão danada, não cria não?
VR: Cria sim.[...] Igual quando eu tava participando de
um concurso lá no Sebrae, aí a professora colocava o
seguinte: “Não, porque vocês não são mais indígenas,
porque vocês já usam relógio, não sei o quê mais...” Aí eu
perguntei pra ela: “Professora, a gente não é mais
indígena porque a gente já tá na cidade com todas essas
coisas. E se a senhora nascesse aqui na cidade e passasse
dez anos lá na aldeia, a senhora ia ser maranhense ou ia
1 Projeto: Panton
ser indígena?” “Não, eu
Projeto: Panton 1
sou maranhense!” Então, do mesmo jeito somos nós, né?
Nós nascemos e temos sangue de indígena então em
canto nenhum a gente vai dizer que nós não somos
indígenas, né? A nossa cor, o nosso jeito. [...] Então, têm
pessoas que falam as coisas assim sem perceber…
DF: É, sem perceber mesmo. Por isso que eu estou
falan- do, isso causa uma certa confusão, né? E da mesma
forma que causa confusão nas pessoas que não são
indígenas, porque, por exemplo, eu ouço vários casos na
cidade de gente que nega parentesco com indígena. Há
até um motorista da UERR, só depois de muito tempo que
ele foi falar pra mim que a mãe dele era indígena, que era
macuxi, que ela nasceu aqui perto da Raposa. Mas ele não
fala, ele não fala que ele é indígena. Ele não aceita isso
muito bem, então se ele não aceita é porque tem
preconceito por trás, tem pressão social.
VR: É igual a parte dos políticos, né? Os políticos quan-
do chegam na época de campanha eles falam assim, eles
querem ganhar os votos dos parentes, dos indígenas, aí
chegam com aquelas conversinhas: “Não rapaz, acho que
você é meu parente, minha mãe é não sei o quê, minha avó
é indígena, minha mãe foi pegada a laço não sei aonde.”
É os brancos querendo ser índio e os índios querendo ser
branco, agora. [...]
DF: Justamente. E nesse sentido, você já passou algum
preconceito por ser indígena? Por exemplo, a gente sabe
que tem gente que tem, como você falou no começo, que
acha que índio não é gente, que acha que tem gente que
ainda pensa assim, não tem?
VR: Eh.
DF: Como você falou antes, você já passou assim por
alguma situação antes, que você não gostou, de constran-
gimento, de...
VR: É assim, a gente sempre sofre isso, né? Porque a
questão da terra hoje, da terra que a gente tem hoje, que é
extensa, a gente sabe que é extensa, mas nós temos
1 Projeto: Panton
muitos
1 Projeto: Panton
índios dentro dessa terra. Por quê? Então, muita das vezes,
os não índios, hoje, os políticos, e outras pessoas, que
dizem assim: “Pra que o índio tem tanta terra se não tem
condições de produzir?” Então, dali a gente já sabe que tá
de preconcei- to com a gente, dizendo que a gente não
tem condição, por exemplo, de compartilhar com o
estado, com o município. Então, daí, já começa o
preconceito: eles pensam que a gente não tem condições
de competir com eles também. [...]
DF: E como é a distribuição das casas na comunidade,
assim, por exemplo, lá tem a terra, não?
VR: Isso.
DF: A pessoa chega, ela vai lá, constrói a casa onde ela
quer, ela tem que ter o consenso da comunidade, como é
que funciona?
VR: Eh, a parte que eu acho que é em todas as comuni-
dades indígenas, pelo menos nas comunidades pequenas,
elas são boas assim, né, principalmente lá na nossa. Ele vai
construir, ele quer, por exemplo, só não vai construir no
ter- reno do camarada, né, mas sendo afastado ele vai
construir, porque tem que criar, né?
DF: Então, tem uma divisão?
VR: Tem uma divisão. Cada pai de família tem sua casa.
DF: Sim. E uma divisão na terra também?
VR: Isso não, só na casa mesmo.
DF: Só na casa?
VR: Só na casa. Ali, da casa tem o cercado dele ali.
Aquele cercado é o terreno dele, mas então outro vizinho
do lado, querendo, pode fazer também. Então, não vai
dizer que, por exemplo, se tiver minha casa bem aqui,
assim, em um extenso terreno aqui, eu vou dominar. Não
tem isso, não.
DF: Não tem. É da comunidade, não?
VR: É da comunidade.
DF: Então, qualquer modificação que tem que haver ali é
Projeto: Panton 1
a comunidade que tem que decidir?
1 Projeto: Panton
VR: Isso.
DF: Entendi. Então, em relação àquelas histórias
antigas, o senhor ouviu contar muito, não ouviu? Por
exemplo, a história de Macunaima, todo mundo fala né,
mas o senhor ouviu, sabe essa história, sabe contar?
VR: Não, não. Essa história de Macunaima eu não sei,
eu não sei muitas coisas, não.
DF: Sei.
VR: Também, eu não vou dizer que eu sei, né?
DF: Mas na comunidade tem algumas pessoas que sabem?
VR: Ah, eu acho que com certeza tem, porque quem
podia contar a história de Macunaima era meu avô. Só que
aí não vai dizer, porque ele tá bem velhinho e se a gente
for conversar com ele não vai, e é bom ouvir, mas só que
ele tá, ele não tá raciocinando direito mais não. [...]
DF: Mas se algum dia ele quiser falar, o senhor pode,
inclusive, ir junto, ficar fazendo as perguntas, pra registrar
mesmo. [...]
DF: E a história do timbó, vocês ainda fazem pesca com
o timbó?
VR: Não, não.
DF: Não fazem?
VR: Sempre o pessoal fazia lá uma pesca com o timbó,
mas só que era um timbó bem fraquinho mesmo, porque
quem utiliza o timbó é o pessoal aqui da Boca da Mata
mesmo, mas lá mesmo, não.
DF: Nunca ouviu falar a história dele, não?
VR: Não, não.[...]
DF: Sim. E essa questão do fogo-fátuo, já ouviu?
VR: Eu já ouvi falar em fogo-fátuo, mas da história eu
nunca ouvi, não.
Projeto: Panton 1
DF: Não sabe.
VR: Não, não.
DF: E do Canaimé?
VR: Iche. Tem vários casos do Canaimé, aí.
DF: O que o senhor sabe dele, o que entende, o que
pensa a respeito?
VR: Não, segundo o que o pessoal comenta, que o Ca-
naimé é a pessoa assim, que faz mal às outras pessoas, é
só pra fazer o mal mesmo, né? Caso de inveja, essas coisas,
assim. Então, vai fazer o mal à pessoa. Graças a Deus que
quase não tem muito isso, tem assim, se o Canaimé
assoviou, assoviou por lá, mas se diz que não é o Canaimé,
mas diz que é assim: o Canaimé é uma pessoa normal, só
que tem um, ele usa um não sei, um tipo de não sei de quê
lá, uma matéria que ele usa, que os parentes dizem que é
uma puçanga que ele tem. Então, por exemplo, porque é,
vamos dizer assim, existe essa puçanga pra várias coisas,
pra caça, pra pesca, pra todas coisas, né? E pra matar
gente também serve, então é isso que acontece com ele,
ele usa essas batatas, não sei se é batata o que ele usa lá,
sei que é uma puçanga que ele usa pra fazer mal aos
outros. E eu ouvi dizer que, acho que na Boca da Mata, um
velhinho que mora na Boca da Mata, não sei se é vivo
ainda, ele morava não sei onde, acho que no Arai. Aí, lá os
parentes deram uma batata pra ele, uma batata de matar
veado, né, diz que aí ele páá, rapaz, vou matar um veado
hoje, ele passou não sei se foi a mão, na perna dele, e foi
caçar. Aí diz que a mulher dele tava na roça e passou a
batata e esqueceu de tudo. Daí a um pedaço, chegou lá na
roça com a mulher dele e tava matando a mulher dele, aí a
mulher dele gritando: “Não, não faz não, não faz não.”
Não tava conhecendo ela, né? “Não faz, não faz, não faz.”
Não sei o quê, e ele querendo matar ela. Até que ele
correu. Aí quando ele chegou de tarde lá, a mulher dele
perguntou: “Rapaz, tu queria me matar lá na roça?” “Eu?
Eu não, rapaz, eu fui caçar!” “Não, foi tu mesmo que
queria, tava me en- gasgando lá.” “Não, eu não fui pra lá
1 Projeto: Panton
não, eu fui caçar.” Aí,
Projeto: Panton 1
segundo, é um tipo de material que eles usam pra
acontecer isso aí, esse negócio do Canaimé, aí.
DF: Sim. E houve casos na comunidade, lá em Santa Rosa?
VR: Rapaz, teve um caso, eu não sei se foi disso mesmo,
porque segundo o Canaimé, eles, o Canaimé, o camarada
diz que não fala, que dá febre, dá diarreia, várias outras
coisas, e que morre rápido. E aconteceu um caso quase
idêntico a esse aí. É de um velhinho que tinha lá. Então, ele
foi tirar um, ele gostava de trançar peneira, né? Aí, foi tirar
as varinhas pra fazer as peneiras dele. Quando ele voltou,
foi com febre, quando foi de noite ele morreu.
DF: Aí, nesse caso, falaram que poderia ter sido o Canai-
mé?
VR: Assim, é mais ou menos assim, né. Não sei se foi
mesmo, porque foi uma morte rápida, né?
DF: Sabe da história da mulher que foi pega pelo
macaco, já ouviu falar?
VR: Não, não.
DF: Não? Que ela morou com ele?
VR: Não.
DF: Tá certo, essa é uma história que a gente ouviu tam-
bém.
VR: Eu sei uma história da Guariba.
DF: Guariba?
VR: É quase idêntico a essa daí.
DF: Como é?
VR: Diz que é um, é uma mulher que, a mulher era
casada com um, que era casada com um homem, não, a
mulher que era casada com o Guariba. Aí não sei se era o,
era o macaco, parece, não, era outro camarada, então esse
camarada era doido pra roubar a mulher do Guariba. Aí diz
que “Vamos fazer, então...” Aí, diz que eles foram pra casa
do Guariba lá, aí lá faltou água pra coar o caxiri lá, aí o
Guariba mandou a
1 Projeto: Panton
mulher dele buscar água no igarapé. Aí diz que o cara foi
por lá, pegou a mulher do Guariba e levou. Aí o Guariba
ficou lá esperando, esperou, esperou. Aí começou a gritar:
“Mulher, mulher, mulhéééérrr...” O senhor já ouviu o
Guariba gritar?
DF: Sim.
VR: Não grita assim?
DF: É parecido com isso.
VR: Roubaram a mulher dele, ele foi e gritou com a
mulher dele: “mulher, mulher, mulhééérrr”!
DF: É daí que vem a história. Tem mais alguma que o
senhor lembra?
VR: Rapaz, no momento assim, a gente não dá pra se
lembrar muito essas histórias não. Quem sabe eu lembro
amanhã. Tem a do Canaimé. E só como eu disse, ele tá uns
tempos que a situação dele hoje tá.
DF: Sei. E a educação na comunidade, como é que é
feita hoje? A escola, a educação?
VR: É, hoje a gente vem enfrentando um problema na
educação. Vários anos aí, já, né? Desde a fundação dela, a
gente vem, não da fundação, mas depois que a gente pas-
sou pra, que a gente começou a construir o ensino médio,
de 5ª a 8ª, a gente sentiu muitas dificuldades. Em questão
de professor, aí tem a questão da parte da estrutura física,
essas coisas assim. Então, é muito difícil.
DF: E qual é a principal dificuldade da comunidade hoje,
é a educação mesmo ou não?
VR: É a educação, saúde.
DF: A saúde também?
VR: Eh, a saúde também tá bem precária, hoje.
DF: O que mais incomoda na saúde?
VR: É o que hoje as outras comunidades sofrem. Várias,
um pouquinho de doença, né, mas dá pra resolver, mas é
medicamento pra garantir a saúde do pessoal aí, que não
Projeto: Panton 1
tem em grande quantidade hoje. [...] E médico também,
que não oferecem também. [...]
DF: A comunidade recebe algum benefício do governo,
alguma coisa? O senhor, a comunidade?
VR: Não, não.
DF: Porque, às vezes têm, não?
VR: Huhum.
DF: Não recebe não né?
VR: Não.
DF: Ela se autossustenta mesmo?
VR: Isso, isso.
DF: E o que o senhor pensa sobre isso, sobre essa ajuda
do governo ao indígena, como benefícios e essas coisas.
Qual a sua opinião?
VR: Como assim? Diretamente?
DF: É assim, como os benefícios, inclusive o governo
aju- da muitas vezes até, o não índio recebe muitos
benefícios às vezes do governo, né? Ajuda financeira
mesmo, quando sabe que tá com dificuldades...
VR: Huhum. É, hoje a gente não recebe, né, mas, é assim...
DF: O Bolsa Família, o Bolsa, essas coisas todas.
VR: É, tem esses programas também, mas são poucas
pessoas que recebem hoje, esse benefício dessas famílias
aí, acho que são contados, são bem umas quatro, parece, e
tem também o do outro, o Vale Alimentação, são bem uns
três que recebem. [...]
DF: Sei. E como o senhor vê a presença da religião
dentro da comunidade?
VR: Religião? Da católica ou da...
DF: Não, a religião, pode ser católica ou outra, como o
senhor vê essa presença? O senhor concorda totalmente
ou
1 Projeto: Panton
não concorda? O senhor vive ela, e qual o seu pensamento
a respeito disso?
VR: Eh, a gente sabe também essa história da religião,
hoje, da religião católica que foi uma das coisas que contri-
buiu também, hoje, pro desaparecimento da língua. Então,
mas hoje a gente sabe também e ninguém vai dizer assim
que a religião católica, ela é uma das melhores, nem
também a… qualquer outras religiões, mas hoje a gente
tá, a gente é da religião católica e a gente não é só dizer
que é católico e sair e falar o nome de Deus hoje. Então, o
importante hoje é crer em Deus e saber que ele é vivo
hoje, então isso que é importante pra nós. Pode ser
qualquer uma religião hoje, mas o importante é que tá
pregando a verdade, né?

DF: Sim. O senhor ouviu o seu avô falar alguma vez,


alguém falar, como era antigamente antes da presença da
religião?
VR: Deixa eu ver aqui...
DF: Ouviu eles falarem alguma vez?
VR: Rapaz, deixa eu ver aqui. Não, não me lembro, eu
não sei nem se fazia esse tipo de oração também. Que
muitas ve- zes esse pessoal de antigamente, eles tinham
outros deuses, vamos dizer assim, né? Era um pajé. Por
exemplo, o pajé que era o forte da comunidade, era o,
bem dizer, que dominava mesmo o povo ali, que era o
chefão mesmo ali. Então, isso aí que antigamente, acho
que existia isso. De lá pra cá que começou a entrar essa
religião católica, como já disse, que como entrou na
comunidade lá, que trocaram até o nome da comunidade.
Então, uma coisa os padres que entraram e que foram
também exterminando, essas coisas que já tinham
contribuído com isso também pra acabar com isso. Se, por
exemplo, ninguém tivesse entrado lá, até hoje era
registrado como Orocaima o nome da comunidade.

DF: Sei. Assim mesmo aconteceu com aquele cara antigo,


né?
Projeto: Panton 1
VR: Isso, o nome dele né?
1 Projeto: Panton
DF: É, também dos outros deuses...
VR: Isso.
DF: Dos rituais, né?
VR: Isso, isso mesmo.
DF: Têm a presença do pajé ainda hoje na comunidade
ou não?
VR: Tem não. Existiu, tá com uns quinze anos, ou vinte
anos, que acho que já morreu.
DF: [...] Têm uma preocupação na comunidade hoje do
repasse das tradições, de contar as histórias do povo,
estão tentando recuperar isso?
VR: Pois é.
DF: A comunidade pode achar também que isso não é
importante. É um direito da comunidade, não?
VR: Eh. Não, hoje a gente tá tentando fazer um
projetinho lá pra gente e ver se a gente consegue
revitalizar isso, essas coisas também assim, até de, até
mesmo de começar a es- crever. Até mesmo o professor,
ele, ele também foi formado agora no Insikiran, também.
Não sei se você conhece ele, é o professor Francisco. [...]
DF: Acho que não.
VR: Não, né? Então, ele fez o trabalho dele, porque
todo o aluno hoje lá tem que mostrar um trabalho pra ele,
mais ou menos assim né, quando termina, no final, né?
DF: É o trabalho de conclusão.
VR: Isso, isso. Então, o projeto dele era contar a história
da comunidade Santa Rosa ali. Contar a história. E criou
várias histórias ali, desde o início, que eu contei também
aqui. Eu mais ele, a gente começou a conversar e ele
descobriu que tinha assim esse guia dessa história da
comunidade. Mas, hoje é interessante essa história mesmo
da comunidade, a gente começar a escrever pra registrar.
1 Projeto: Panton
DF: E construir, e de repente organizar melhor pra que
os alunos tenham consciência disso.
VR: Então.
DF: Que às vezes ela só existe, mas tá na cabeça de um,
na cabeça de outro e de outro, mas nunca tem uma ideia
geral de como ela é. Assim, aceita normal ou não aceita
quando índio quer casar com não índio essas coisas, tem
alguma restrição, não têm? Ou não acontece isso?
VR: Não, não, hoje acho que tá, isso é normal já. [...]
Isso, isso, qualquer branco pode casar com a índia, mas só
que pra morar tem essas coisinhas, né, dentro da
comunidade hoje, porque a gente já passou por várias
experiências de lá, de índio morar em comunidade e
muitas vezes não dá certo. Então, a gente quase que já
não aceita tanto os índios morando lá dentro da
comunidade.
DF: Os não índios, né?
VR: Os não índios. Então, tem que saber, de repente,
quem é ele? Como é o passado dele? Porque, muitas vezes,
a gente tá trazendo uma coisa, é uma cobra pra estar co-
mendo a gente, né?
DF: É verdade.
VR: Então, a gente não quer mais isso pra gente. Então,
a gente tem que conversar com ele bastante pra ver como
é que fica, mas na verdade hoje o branco, a índia que
quiser casar com os outros parceiros tá sendo normal, já.
DF: E por exemplo, em algumas comunidades antigas,
os meninos, pra se tornarem rapazes, tem algum ritual,
alguma coisa pra eles virarem rapazes. E também as
moças. Isso existe na comunidade, não existe?
VR: Existe não.
DF: Eu vejo uns especiais que eles pegam um dente de
piranha, aí colocam numa madeira e vem, pra eles ficarem
fortes. Então, eles vêm e arranham o corpo todinho e
passam um negócio pra arder, os rapazinhos. Essas coisas
assim não existem?
Projeto: Panton 1
VR: Não existe mais não. [...]
DF: E pra caçar, pra ser bom caçador, por exemplo,
passa alguma coisa ou não tem isso também?
VR: Tem também, não. [...]
DF: Que era muito comum, né?
VR: Eh, lá na comunidade, não existe mais isso, não.
Quem sabe no passado existisse, quem sabe, mas hoje os
caras não querem mais nem caçar lá.
DF: Só caçam quando tem algumas festas, algumas
coisas assim, aí caçam?
VR: O pessoal caça, assim, quase diretamente, mas só
que é individual. Quando vai caçar não é aquele grupo,
porque antigamente era assim. A festa de Natal que era
mais, vamos dizer assim, festejada, né? Então, o pessoal se
juntava, e ía caçar, os homens. As mulheres ficavam
fazendo pajuaru. Aí, tal dia diz que eles iam chegar, aí, diz
que saía pra caçar, dava uma semana, duas semanas, aí as
mulheres ficavam esperando, fazendo o caxiri e ficavam ali
esperando. Quan- do dava fé, tocava o fogo em cima da
serra lá, aí diz que já sabiam que eles já vinham já. Aí elas
saíam com seus baldes com caxiri pra encontrar eles lá.
Levavam caxiri pra encontrar eles no meio da viagem.
Davam o caxiri pros homens e elas pegavam as carnes, as
mulheres, e vinham embora, mas não sei se acontecia isso
aqui na comunidade. Isso é uma história que eu já sei.
DF: É que não acontece mais...
VR: Isso. Obrigado
DF: Obrigado.
Projeto: Panton pia’
Entrevistados: Letícia Barbosa (LB) e Eduardo Alexandre Magalhães (EM)
Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF) e Lucimar Sales
Assistente de Entrevista: Lucimar Sales (LS)
Local: Santa Rosa, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR
Data da Entrevista: 10/10/2008
Transcritora: Michele Rubinstein
Conferência de Fidelidade: Devair Antônio Fiorotti
Copidesque: Devair Antônio Fiorotti e Huarley Mateus
Duração: 3’11’’54’’’’
Projeto: Panton 1
DF: Primeiro, qual é o nome da senhora?
LB: Letícia.
DF: Letícia de quê? Só Letícia?
LB: Letícia Barbosa.
DF: É, e do senhor?
EM: Eduardo Alexandre Magalhães.
DF: Qual é a idade da senhora?
LB: Setenta e três anos.
DF: Eita! E tá forte assim. E o senhor?
EM: Sessenta e oito, vou fazer agora dia treze de outubro.
DF: Ham ham.Vocês dois são da mesma etnia? Os dois
são macuxis?
LB: Somos.
EM: Somos. [...]
EM: Ela é macuxi, só. Eu sou macuxi porque eu sou
daqui de Roraima. Diz que quem é de Roraima é macuxi,
mas eu acho que macuxi mesmo é aquele que fala a língua.
Como eu não falo, mas eu entendo um pouquinho, aí.
DF: Então, eu vou fazer assim, eu faço pra ela depois eu
faço pro senhor. O nome do pai da senhora e da mãe da
senhora?
LB: Cristão Barbosa.
DF: Cristão Barbosa, e da mãe da senhora?
LB: Vitorina dos Santos
DF: Eles eram macuxis os dois?
LB: Todos dois eram macuxis.
DF: Eh, e o senhor?
EM: Meu pai é Camilo Magalhães.
DF: Camilo Magalhães. E a mãe?
1 Projeto: Panton
EM: Rosa Alexandre, macuxi também.
DF: [...] Quando vocês nasceram, vocês falavam, os pais
[...] falavam ainda macuxi?
LB: Falavam. No meu tempo todo mundo falava macuxi.
Ninguém falava português, só macuxi.
DF: A primeira língua da senhora foi macuxi ou foi por-
tuguês?
LB: Macuxi. Eu vim aprender a falar português, a língua
dos brancos, como falam, quando eu tinha assim, eu tinha
uns 10 anos. Eu não sabia falar português. Eu não entendia.
Algumas coisas, naquelas velhinhas que falavam, pra mim
elas conversavam bem, mas não era não. Depois que eu
entendi, eu aprendi, que fui relembrar o que que elas
diziam, falavam errado. É. Aprendi falar português com
dez anos. Eu falava macuxi, com onze anos pra frente que
eu aprendi.
DF: E o senhor foi a mesma coisa. Falavam [macuxi] ou
falavam português?
EM: É a mamãe, ela falava, que aí ela é que falava
macuxi com ela, mas só que a mamãe não falava com nós.
DF: Ah, entendi.
EM: Por isso que a gente não aprendeu, né? E papai
tam- bém não falava, por isso que a gente não aprendeu.
Eu vim, eu vim aprender algumas coisas quando ela [dona
Letícia] já conheceu a mamãe. Porque ela se dava muito
com minha mamãe, a gente é, por isso que eu não aprendi.
Mas eu gosto, eu adoro macuxi.
DF: Mas o senhor entende alguma coisa, né?
EM: Bem pouquinho.
DF: Tá certo. Vocês são casados há quanto tempo?
LB: Nós, bem de, cinquenta e, cinquenta e oito, nós
convivemos juntos.[...] Nós não somos casados, somos
companheiros.[...]
LS: A senhora escreve e lê em macuxi ou a senhora só fala?
Projeto: Panton 1
LB: Eu, algumas coisas escrevo em português, eu falo
macuxi. A senhora pode escrever macuxi, eu leio e não sei
escrever macuxi.
EM: Ela, ela lê o macuxi, mas ela não escreve, ela tá di-
zendo assim.
LB: Eu acho que porque nunca... É. Eu leio mas não
posso mais escrever devido a vista. [...] Eu canto parixara,
eu canto hino da igreja em macuxi.
DF: Qual é a religião de vocês?
LB: Católica.[...]
DF: [...] A senhora sempre foi católica ou modificou? Que
hoje tem, nas comunidades, têm várias religiões, né?
LB: Tem. Pra mim não modificou não. Eu sou católica
desde quando eu fui batizada. Meus pais me ensinaram a ir
à igreja e, até hoje, eu nunca deixei de ir à igreja. Eu adoro.
[...] E é assim. Agora, do tempo, nessa geração de hoje,
entra professor, macuxi mas não aprende. Ensina parixara,
mas não aprende; ensina canto da igreja, não aprende. Eu
não sei por quê. Eu me alembro que quando chegou,
chegaram os brancos, como nós falamos, indígena só fala
branco né, dizia assim: “Comadre, não vai mais ensinar seu
filho e sua filha a falar macuxi, que isso é feio.”
DF: Eles falavam isso.
LB: Falavam. Falavam mesmo. E eu me alembro de duas
mulheres que chegavam e diziam pra minha mãe: “Não
ensina macuxi, que macuxi é feio.” Só que minha mãe não
sabia nem falar bem o português, aí começaram adonde
largar o seu idioma. Os brancos foram chegando, a gente
foi se entrosando com os brancos, ensinando. Foi tempo
que chegou o ensino, que é a escola. Aí as crianças
começaram a ir pra escola, aí pronto, só foi assim.
Começaram a pedir as filhas pra ler, meninas de onze anos,
doze anos. “Comadre, deixa eu levar seu, sua filha. Eu vou
fazer ela ficar bonita lá em Boa Vista.” Levava. Quando as
meninas vinham de lá, vinham com o cabelinho toda
enrolado...[ risos] Já, já virou
1 Projeto: Panton
branco, né? Porque não muda, só fizeram modificar o
cabe- linho em algum bonito de Boa Vista. Tudo isso
acontecia na, na geração que se vinha chegando, na minha
geração. Eu nunca esqueci que idioma eu falo.
DF: E o que a senhora pensa dessa influência toda?
LB: Eu?
DF: Eh.
LB: Eu penso que eu nunca hei de largar o idioma.
Quem chega assim, como o senhor chegou, pedindo a
história dos antigos, eu conto a história quando eu sei.
Algumas histórias eu passo pras pessoas que me procuram
pra contar história
DF: [...]Vocês sempre moraram aqui, não? Vocês
estavam falando que moravam primeiro lá na Curicaca, né?
LB: Olha. Eu fui nascido lá na maloca do Barro. De lá eu...
LS: É Surumu, né?
LB: Isso. Vila Surumu. Surumu foi o branco que
chamou. [...] Mas pra nós é maloca do Barro. Maloca do
Marári cha- mam de, é, Marári já é o branco que chama
Marári, pra nós, na nossa língua é Máirari. [...] Marári, o
que quer dizer, é Serra do Lagarto. Máirari, agora o branco
chegou e chamou Marári. [...] Aí de lá, foi tempo em que a
gente nos juntou, nós fomos conviver juntos. Nós viemos
pra Curicaca. Em sessenta, nós chegamos aí. Passamos um
bocado de anos aí, quando no dia que meu padrasto, pai
da Acevilda, a gente morou. Aí de lá pra cá a gente veio
morar pra cá, tempo em que meu afilhado, meu sobrinho
Valci, era tuxaua. Eu criava minha filha, a mãe foi embora
pra Boa Vista, aquelas coisas que tem na vida das pessoas,
né? Aí não tinha, meu marido disse: “Vamos vender tudo
que temos e vamos pra Boa Vis- ta.” “Vamos sentar e
vamos conversar. Eu não vou pra Boa Vista. Que que a
gente vai fazer em Boa Vista sem ter nada? Tem criança pra
estudar. Como é que nós vamos manter essas criança?”[...]
Se fosse só nós dois, a gente dormia em qualquer canto,
mas nós temos nossas crianças. Então, va- mos embora
Projeto: Panton 1
pra Santa Rosa. E viemos pra cá. Passamos um
1 Projeto: Panton
ano ali no centro. De lá que nós fizemos esse barraquinho
aqui, ele fez. Estamos aqui. Mas que daqui não sei. [risos].
Daqui é aqui mesmo.
DF: Mais aqui é lindo, né? [...]
LB: Aí minhas filhas saíram pra estudar, ver se
conseguem, conseguem emprego que até hoje nunca
conseguiram. O senhor sabe como é situação de pessoas
que não têm con- dições, né?
DF: Eu sei. É muito difícil.
LB: É muito difícil. Aí tá, vai embora uma; vem outra.
Essa daqui tá comendo, porque preciso mesmo pra fazer
as coisas pra mim. Ela que faz meu alimento, tudo. Apenas
estamos passando. Estudaram aqui, daqui foram pra
Pacaraima. Nós estamos aqui; nós somos dois velhinhos,
que somos mora- dores daqui. Faz mais de dez anos que
nós estamos aqui.
DF: E a influência assim do, a influência do branco, como
é que a senhora vê?
LB: Bom, a gente tem entrosamento com os brancos,
tanto faz com parente ou com os brancos. Como o senhor
chegou, eu acho que, eu não sei, eu acho que o senhor in-
centiva a nós a receber aqui, como o senhor, a senhora. A
gente, a gente se dá bem com as pessoas que chegam,
com os brancos. Tem branco que chega com a gente, a
gente recebe, se tem alguma coisa a gente oferece. Se a
gente não tem, nessas coisas de dizer do branco, né?
DF: Eu sei.
LB: Agora, tem branco que não gosta de índio, mas eu
tenho visto muitos brancos que não gostam de índio,
índio, índia. Tem aquele sobrosso de não falar com a gente;
tem sobrosso de beber a água, a comida da gente, a água
da gente: “Esses caboco59 são imundo.” É isso, existe isso.
59
As variantes “caboco”,
“caboca”, “cabocos”, “ca- DF: A senhora já passou algum tipo de preconceito?
bocas” foram preservadas.
Nas entrevistas, em LB: Já, já, sim senhor.
nenhum momento,
apareceu a estru- tura com DF: O senhor também ou não?
“cl”.
1 Projeto: Panton
EM: Também.
DF: Tem que se identificar não, eu sou índio. Já passaram,
já? A senhora lembra?
LB: Me lembro. Eh, então, é o que nós estamos falando.
Índia, tu é índia.
EM: Posso falar.
DF: Pode.
LS: Claro.
EM: É. Não me lembro bem o ano que, que passou né.
Tinha um fazendeiro ali, que morava ali na beira da
estrada. Lá chama-se Diamante Verde. Ele não deixava nós
caçar.
LB: É o Bantim
EM: O Bantim... Bantim. É, ele sovinava assim os pes-
queiros. Dizia que caboco não era pra pescar na área dele,
e discutia com, com o pessoal, com umas pessoas daqui. É
por isso que ela tá dizendo que não são todos os brancos
que, que se dão com os índios. Porque tem branco que
maltrata o índio mesmo. Eh. Aqui tinha um branco, ele
morreu, o Santos Figueira. Santos Figueira era muito
perverso com o índio. Os índios e todos aqueles que
trabalhavam com ele botavam no cavalo, se caísse, o que
ele fazia, ele metia-lhe a peia. Maltratava muito o índio. É
por isso que ela tá dizendo, que nós já passamos coisas
difíceis com o branco.
DF: Eh. E como o senhor vê, por exemplo, o índio: [...]
o senhor se sente, por exemplo, brasileiro, indígena, como
que o senhor se sente assim?
EM: Eh, eu me sinto assim, que é, a gente é índio né, a
gente não pode também chegar muito pro lado do branco,
né, porque ele não vai receber nós. Branco assim como
eles né? Eles ficam sempre tirando quase a gente fora, não
é? É isso que a gente sente.
DF: Eu penso assim às vezes né, porque o indígena ele,
hoje em dia, ele não vive isolado do mundo. Ele sabe de
Projeto: Panton 1
tudo que acontece lá fora, tem contato, pega aqui e vai
ali em
1 Projeto: Panton
Pacaraima, tem contato, liga o rádio ali, sabe de tudo que
tá acontecendo, né?
LB: Sabe.
EM: Sabe. Mas isso aí já faz poucos tempos que a gente
vem entendendo o que o senhor tá dizendo. Tem o rádio, a
televisão, muitas coisas a gente já vai, mas de primeiro
tinha gente aí, índio que não sabia.
DF: Mas eu quero chegar assim. Hoje tá assim não tá?
EM: Tá.
DF: Mas ao mesmo tempo o indígena ele tem a
custódia da União, não é isso? Do governo.
LB: Tem.
EM: Tem.
DF: E o governo, às vezes, pensa que o indígena tá
isolado do mundo, que não sabe de nada, que tem nada,
que não tem o direito dele, que ele pode fazer as coisas
que ele quer na terra que é dele.
LB: Isso.
DF: A gente fica assim a terra é dele ou é da União?
LB: Da União
EM: Da União
DF: Né? Então, como vocês percebem essa
complicação, ou vocês acham que é normal isso?
LB: Olha, a gente pensa assim: como é da União, a
gente sabe assim, pelos brancos, entendido pelos brancos.
A gente que, às vezes, procura saber como é, como não é.
É como o senhor tá dizendo, hoje a gente tem
entrosamento com os brancos. Fulana como é isso assim, a
nossa vida, essa terra é nossa? Como é? Ou não? Bom, a
terra é da União. A terra vocês não pagam direito. A terra
vocês, como é que diz, protege, vocês são dono da terra
até quando a gente qui- ser. A gente mora o tempo que a
gente quiser, até quando a gente se apagar. É isso que a
gente entende. Mas a gente
1 Projeto: Panton
tá sabendo que essa terra não é mesmo da gente.
DF: Porque é complicado, não é?
LB: É.
DF: Porque historicamente a terra sempre foi do
indígena não é isso?
LB: É. Mas que é da União, a gente mora o tempo que a
gente tem que morar. O tempo que quiser. E aí a gente, a
gente vive assim né. Nós temos nossa roça, nós temos
nosso plantio aqui.
DF: Vocês plantam o quê?
LB: Olha aí: limão, coco, abacate, mangueira.
DF: Vocês ainda fazem a farinha aí, que eu vi ali.
LB: A gente faz.
DF: Planta...
EM: A mandioca, a maniva,[...], banana.[...].
DF: E outra coisa assim, mudando um pouquinho,
aquelas histórias mais mitológicas, assim, a senhora sabe
de alguma? O que vocês sabem sobre o Canaimé, por
exemplo?
LB: O Canaimé, o Canaimé é parente da gente mesmo.
Que existe há muitos anos, tá o Canaimé. Quando eu era
criança, ouvia falar no Canaimé. Branco chama Canaimé,
índio chama Kanaimî.
DF: Kanaimî.
LB: Kanaimî. Aí na Boca da Mata moravam os antigos. E
tinha o parente que comprava, trazia o ralo pra trocar. Lá
no Barro eu me lembro; trazia o ralo pra trocar com o que,
com rede de fio de algodão; trazia o ralo pra trocar com
chumbo, espoleta é... como é, Eduardo?
EM: Pólvora.
LB: Porva... pólvora sei lá. Aí o homem levava, marre-
teiro levava, era chamado marreteiro. Levava pra lá, vinha
pra cá. Aí tem aquela, aquela coisa, ter inveja dos outro. O
Projeto: Panton 1
Canaimé traz isso aí. O Canaimé, rapaz, já traz o mal da in-
veja. Aí começou perseguir os outros. Mataram o homem,
aí começou, surgiu o Canaimé na Boca da Mata. De lá eles
desciam. Tuxauas eram perseguidos por Canaimé, porque
eles eram chefes do povo. Aí eles procuravam matar
tuxaua, que tuxaua...; matavam assim; matavam qualquer
um. Era assim, por exemplo, por aqui falam Santa Rosa é
lugar bom, é lugar bonito. O pessoal lá sabe tratar a gente,
já tem, vai lá na outra comunidade, que ele já sabe né. Aí
eu já fico com aquele, aquela inveja. Eu vou lá perseguir
aquela pessoa. Aí eu vou lá, viro Canaimé: boto couro de
onça; boto couro de tamanduá; boto máscara pra ninguém
me conhecer. Aí eu vou fazer medo, seu Eduardo que tá lá
na roça trabalhando sozinho eu dou um grito: Eei! Ei! Ei! Ei!
Aí ele toma aquele susto e ele vem, faz sinal pra ele, aí ele
vai embora onde tá o Canaimé. Eles usam puçanga pra
gente não contar o que eles fizeram com a gente.
DF: O que é puçanga?
LB: Eu não sei o modo não. Puçanga eu não sei nem
explicar. [Risos]
EM: Eu acho que é assim alguma.
LB: Alguma... um tajá que eles usam, né.
EM: Um tajá.
LB: Que eles têm, eles usam tajá.
EM: Eu não sei não. Eu ouvi dizer uma coisa, pra mim é
assim como esse pessoal que usa hoje droga. Sei lá, nunca
nem vi, nem conheço droga. Tem gente que toma droga,
fuma não sei o que, pra ir matar os outros. Eu acho que é
assim o Canaimé, não sei não.
DF: E eles fazem o que com as pessoas, o Canaimé?
LB: Matava.
EM: Bate.
LB: Bate.
EM: Acocha a garganta e faz a pessoa passar mal, enforca.
1 Projeto: Panton
Aí a pessoa adoece e morre. Fica todo batido por dentro.
Aí a história do Canaimé. “Ah, Canaimé matou fulano!” É
assim, né. Eles pegam dois, três.
DF: E como é que sabe que a pessoa foi atingida,
porque quando a pessoa é atacada pelo Canaimé, eles não,
eles não falam, me falaram, não é? Assim, ele não fala?
LB: Ele não fala.
EM: Ele não conta.
LB: Justamente. O tajá que eles usam pra pessoa não
contar. Passa na boca pra pessoa não contar. Agora
quando ele chega, por exemplo, quando ele chega, ele
chega hoje meio-dia. Ele tá triste, tá com febre, dor de
cabeça. Passa a noite toda com febre. Aí a pessoa
desconfia. Sabe que foi o Canaimé que agarrou ele. “O
Canaimé te agarrou?” “Não.” Lava o pilão, lava o pilão; tira
água do pilão; côa; dá pra pes- soa beber. Diz que
descobre, aí ele conta tudinho.
DF: Aí ele conta...?

LB: Conta. Se ele viu gente, agarraram ele lá, bateram


nele. Aí é donde se tiver batido, ele morre mesmo. Morre,
não tem jeito não. É assim.
DF: Teve caso aqui na comunidade, já?

LB: Já. Eu me alembro, o irmão desse que o senhor gra-


vou lá, adoeceu. Ele não ouvia, ele era surdo. Ele trançou a
peneirinha, foi tirando os cabinhos, uns pauzinhos que
ficam tecendo na peneira, que ele foi sozinho não escutava.
Eu digo que foi Canaimé, porque ele... Olha fulano tá
passando mal. Seu Leopoldo tá passando mal. Aí nos fomo
lá, lá na casa do, da sobrinha dele. Chegamos lá, (se dava
muito com a gente), aí ele, quando ele viu o Eduardo, ele
falou bem baixinho: “Eduardo.” “Quatro pessoas.”
EM: Ele já tava passando mal, já.
LB: Ele já não tava mais falando. Ele apontou, apontou
os dedos: “Eduardo.” Quer dizer, foi Canaimé que matou o
pobre. Ele morreu, aí trouxemos ele pra cá, pro posto.
Projeto: Panton 1
Avião
1 Projeto: Panton
veio pegar ele. Só foi morrer em Boa Vista.
DF: Não teve jeito.
LB: Não teve jeito não. Se é assim, não tem jeito não.
DF: [...] História mesmo de bicho, que os antigos conta-
vam, a senhora lembra de alguma?
LB: Lembro.
DF: É isso que a gente, que é coisa que a senhora
gostaria que ficasse assim guardado pra sempre. História
de bicho mesmo, de Macunaima se a senhora souber se a
senhora quiser falar ou de qualquer coisa assim de um
animal, que os antigos contavam.
LB: Antigos contavam, os antigos contavam a história
de, bom Canaimé já passou, né?
DF: Já. Já passou Canaimé.

LB: Já passou Canaimé. Agora tem a história do que


chamam Curupira.
DF: Do Curupira é?

LB: Eh. Ele assobia na serra, na mata. Ele tem os cachor-


rinhos dele. O Curupira tem cachorro. Né, Eduardo?
EM: Hum hum.

LB: Ele assobia, cachorrinho corre do lado, corre em


qualquer caça ele na mata. Ele chama, mas nós nunca
vimos.
DF: Nunca viram?

LB: Não.

DF: Ouviu falar de como que ele era?


LB: Ele era modo uma pessoa, mas não sei como é que
ele é, né. Antigamente, a gente não podia andar perto
daquela serra. O senhor viu aquela serra lá?
DF: Eu vi.
LB: Não tem aquela pedrona assim...
Projeto: Panton 1
DF: Redonda?
EM: Eh, aquela redonda.
LB: É redonda. Ali, não podia passar, que meu pai que
contava né, que conta, que não podia passar uma menina
menstruada, não podia passar uma pessoa de luto que
encan- tava antigamente. Tinha que benzer urucum..., que
a gente bota na comida..., que nós chamamos de chipî.
DF: Chipî.
LB: Chipî, o velho benzia, passava por aqui no rosto
todo, nos pés, pra poder passar lá. Isso quando tava de
luto e quan- do a menina ou a mulher tá menstruada. Se
não fizer isso...
DF: Acontecia o quê?
LB: Passa lá e o bicho ficava assobiando lá de cima: Fiu,
fiuuuu. Mas diz que é bem longe assim e aí a pessoa não
podia olhar pra lá. Se olha pra lá, já adoecia. [...] Com a
con- tinuação, como os brancos começaram a entrar em
tudo, aí o bicho, eu acho que se afugenta também. [...]Eh.
Aí passa é, é lugar de história.
DF: E do timbó, a senhora sabe a história?
LB: A do timbó é, timbó tem um pé dele bem grande,
cor- ta, pra matar o peixe. Antigamente só matavam peixe
assim, com timbó, aqueles pedaços assim. Bater, bater
dentro da água e... Como é que podavam, assim né, aquela
golda de timbó. Os peixes morriam tudo, assim que viviam
os índios.
DF: A senhora nunca ouviu falar da história de como
nasceu o Timbó não?
LB: Não senhor, não sei não. Eu acho que o timbó veio
da mata, não é, Eduardo?
EM: Tem duas qualidades de timbó, tem timbó que
cipó, cipó mesmo, mas só que ele é muito forte. Quando
tá batendo ele, faz aquela roxidão. Aí pega, aquilo tudo
batido, faz aqueles feixinhos e leva pra água. Também se
tiver mulher gestante não pode ir no meio do pessoal que
vai botar o timbó.
1 Projeto: Panton
DF: Ah, é?

LB: E a pessoa de luto também.

EM: Pessoa de luto também. O senhor sabe que os


peixes desaparecem?
DF: Ah, é?

EM: Desaparece. Na... na... na... na... como é que chama


quando os peixe estão subindo? Como é? Piracema,
piracema
? [...] Se na piracema a gente vai pegar peixe, se tiver
alguma, ou algum homem mesmo que a mulher estiver
buchuda, desaparece. [Risos]. O senhor acredita nisso? É
verdade isso. Se estiver uma pessoa de luto, a gente vai
espanta caça na mata, veado. Esses veados capoeira,
porque são duas, três veados. Como é? São três
qualidades: tem veado capoeira; o campeiro; e tem o
veadinho da mata, pequeno assim. Aí a gente vai, distância
assim, aquele veado vem, o capoeira, eu não sei que
mistério ele tem, mas ele adivinha. Eu acho que ele
adivinha. Se ele chegar onde tá aquele senhor que tem a
mulher dele que tá buchuda, ele volta em cima da hora.
[Risos] Volta mesmo. Eh, história do pessoal, aqui do
caçador.
DF: E pra ser bom caçador tem que fazer o quê?

EM: Pra caçador, a pessoa tem que... esse meu sogro


que ela tá falando que é o padrasto dela, quando a gente
sai pra pescaria e pra caçar, não têm aqueles lacraião
grande, chama lacraião não sei como é que chama, é
escorpião, né?
LB: Escorpião.

EM: Isso.Tinha que ferrar. Pegar ele assim, e tinha que


ferrar o braço do pessoal que ia sair pra caçada. Caçar, eles
vão caçar. Matar veado e mata mesmo. Tudo eles faziam
os antigos. Hoje não fazem mais não. Se a gente levar uma
ferrada de uma lacraia hoje, vai morrer. [Risos] Então, isso
a gente já fez também. Corta o braço. Aí tem uma, tem
Projeto: Panton 1
uma, tem uma...
DF: Cortar com o quê?
2 Projeto: Panton
EM: Com uma garrafinha, um vidrinho pequeno, gilete.
Eles fazem uma misturada com a massa. Não sei que
massa é. Põe assim, aí passa no braço do pessoal que vão
pra caçada. Tudo isso existia. Hoje, como a gente tá
falando, já tá mais... o pessoal não tá mais ligando. Tá
ligando mais é pra televisão mesmo, jornal. Ninguém quer
mais saber de flechar, fazer... De primeiro, curumim desse
tamanho vai querer saber de ficar fazendo flecha pra,
fazendo caniço pra ir pescar... Hoje é difícil, é difícil fazer
isso.
DF: Já nem faz mais, né?
EM: Nem faz mais.
DF: [...] E pimenta? Vocês usavam pra quê? Passavam no
corpo, no olho, alguma coisa assim pra alguma coisa?
EM: A pimenta, quando colocava a pimenta no olho, é
pra bicho não olhar a gente.
DF: Ah, pro bicho não olhar.
EM: É, né?
LB: É.
EM: É ela vai contar, porque ela sabe mais do que eu.
[Risos]
DF: Então, vai lá.
LB: Bom, da pimenta, por exemplo, a gente vai pra
mata, né. “Bora pra mata, lá pra roça, lá no Orocaima.
Umbora. Já comeram pimenta? Já. Coloca, come
damorida, bem ardosa.” Depois passa um pouquinho de
pimenta no olho que pro bicho não vê a gente, não pegar a
sombra da gente ou não pegar no rastro da gente. A gente
vai embora não acontece nada.
DF: Ah é?
LB: A história dos índios, né? Aí a gente não acontece
nada, tu vai na roça trabalha. Quando é hora de almoço, a
gente não pode passar a hora de comer que tem bicho que
dá, oferece comida pra gente, adoece, dá dor de cabeça,
são aquelas coisas. Já hoje, como seu Eduardo tava
Projeto: Panton 2
falando, que
2 Projeto: Panton
não, ninguém faz mais isso. Acabou.
DF: E se a pessoa fosse preguiçosa?
LB: A pessoa fosse...
DF: Não quisesse fazer. Tinha que fazer o que com essa
pessoa?
LB: A pessoa fosse pregui... É o menino ou a menina,
tem que botar pimenta.
DF: Botar aonde? [Risos em geral]
EM: Pode dizer.
LB: Eu posso dizer?
EM: Pode.

LB: Mistura, rala a pimenta. Tem pimenta canaimé


própria pra isso. Mistura com um pouquinho de massa,
aquela pimen- ta fica bem vermelhinha. “Curumim, você tá
com preguiça, passa pra cá! Abre a bunda aí e mete a
pimenta.” Curumim vai pra dentro d’água.
EM: Fica esperto e começa a correr.
LB: Fica esperto. Num instante procura água. Sai
pulando. Pois é. [Risos] Tanto faz, um menino como uma
menina. É era assim.
DF: Que acontecia. Hoje em dia não faz mais, né?
EM: Não faz não.
LB: Não faz não.
DF: É claro que a pessoa depois de uma dessa nunca
mais ia ter preguiça. [Risos]
LB: Pois é. É assim, né.
DF: Na outra comunidade eles contaram que eles
passa- vam no olho, quando a pessoa tá com preguiça.
LB: Eh. Do tempo que eu conheci foi assim. Botavam pi-
menta braba.[...] Tira a calça aí e abra a bundona aí e passa
pimenta. Queima toda. [Risos]
Projeto: Panton 2
EM: Também serve pra outra coisa né. Quando a pessoa
tá passando mal, o curumim. Aí a mãe via, assim como o
médico, o médico não examina a gente? Eu digo porque
em Manaus
o médico me examinou. Ele viu o meu corpo todo. Então, a
gente fazia o mesmo. Cuidava do filhinho né. Então, o
bicho tá comendo a criança pela bunda. Faz aquela
massinha, e era isso que os índios faziam.[...]
DF: Eu sei. A de Macunaima, a senhora sabe a história?

LB: Macunaima?

DF: Eh.

LB: Olha eu não sei bem de Macunaima não. Mas só


ouvi a história de Macunaima. Macunaima, meu pai fala
que Ma- cunaima, chama-se Macui. Uma hora ele fala que
Macunaima que chama aquele tiquiri que anda nas
paredes.
DF: Ah é?

LB: Eh. Tu sabe qual é o Macunaima, seu Eduardo?

EM: Não.

DF: História do Xikî, também não?

LB: Não. Mas tem gente que sabe.

DF: Mas não tem problema isso.

LB: Tem gente que sabe. Já ouvi contar, mas não aprendi.

DF: E alguma história de bicho, por exemplo, a senhora


sabe assim de bicho que vira gente ou de bicho que fala, já
ouviu alguma história antiga?
LB: Sei não.[...]

DF: Da mulher que casou com o guariba? Nunca ouviu?

LB: Não, mas eu sei do relâmpago.

DF: Do relâmpago é? Como é que é?

LB: O relâmpago tinha uma filha muito bonita. É uma


história que eu sei.
2 Projeto: Panton
DF: Ah é? Então, é história assim que a gente quer ouvir
mesmo.
LB: Eh, do relâmpago. Por exemplo, seu Eduardo tem
uma filha bonita que ele é brabo né, ele é brabo. Faz de
conta que ele é o relâmpago, ele tem uma filha bonita.
Chega, chega outro animal. Ela era filha do relâmpago. Aí
chega o Macaco: “Fulana você quer casar com ele? Quer
casar comigo?” “Não sei. Você aguenta o desaforo do meu
pai?” “Eu aguento.” “Então a gente casa.” Aí ele ficava
junto daquela menina. Lá vinha o Trovão. Quando troveja
assim.
DF: Eu sei.
LB: Peeei, pei... Que pega o relâmpago. Lá vem meu pai,
ela dizia. “Isso não é nada não.” Quando ele chegava assim
no terreiro que dava aqueles tiros, trovoada doida, o
Macaco por aqui. [Risos] Vem embora. Aí, chegou a Onça.
“Menina quer casar comigo?” “Caso sim, você aguenta o
desaforo do meu pai?” “Aguento.” “Ele é brabo, né,
também eu sou braba.” Aí lá vem o Trovão, dando, ia
dando aqueles tiros. Aí quando chegava pertinho a Onça ia
embora. Aí chega o quê? Poraquê. “Quer casar comigo,
menina?” “Não sei. Caso. Você aguenta o desaforo do meu
pai? Meu pai é brabo.” Aí ele disse assim: “É nada. Teu pai
não é brabo não.” Aí diz que lá vem o Trovão: Peeei, peei...
Dando tiro. Aí, ela diz: “Lá vem meu pai, lá vem meu pai.
Chegou bem perto aí o, como é que chama ele agora?”

EM: Poraquê.
LB: Poraquê levantou e se agarrou com o pai dela. Se
agarrou com o Trovão, botou o Trovão no chão, porque ele
dá choque. Aí o Poraquê ganhou a filha do Trovão.
DF: Foi é? [Risos]
LB: Eh, assim é a história.[...]
DF: É o peixe elétrico, né?
LB: Ele que casou com a filha do Trovão. É a história.
DF: O que significa Orocaima, a senhora sabe?
Projeto: Panton 2
LB: Orocaima é donde existe muito papagaio.[...]

DF: O nome aqui...

LB: É Orocaima.

DF: É Orocaima, né? Depois que passou a ser Santa


Rosa, não é isso?
EM: Depois.[...]

DF: Aqui então tem história que era muita, que tinha
muito papagaio aqui?
LB: Tinha. [...]

DF: Ah é? A senhora lembra quando ainda tinha a


presença do pajé na comunidade?
LB: Lembro.

DF: E como é que era?

LB: O pajé ele era o médico, pajé era médico dos


antigos. É, aquela conversa que a gente puxou de
Canaimé. A pessoa que adoecia. Às vezes criança se
assustava, passando mal ali. Vai chamar o pajé lá da
Curicaca ou da Santa Rosa. Aí o pajé vinha, batia folha,
cantava. Tem Maruwai que traz a sombra da gente. Não sei
se vocês, os senhores conhecem.
DF: Não, o que que é?

LB: Maruwai é...

EM: É uma resina de pau.

LB: É uma resina que ele é bem cheiroso.

EM: Bem cheirosinho. Pode fumar.

LB: Pra defumar as crianças. Às vezes derrete aqueles


pinguinhos dentro d’água pra criança beber.
DF: E faz o quê? Faz...

LB: Faz trazer a saúde das crianças. Essa é do pajé, né?


Tem a cantiga do pajé, do Maruwai.

DF: Como que é, a senhora sabe?


2 Projeto: Panton
LB: Eh, sei. Espera aí que eu vou contar. O pajé ele bate
folha, bate folha, bate folha. Ele fica cantando, a gente
fica acompanhando, que aí ele vai: “Criança tá assustado,
vam’bora buscar o espírito dessa criança ou daquela
mulher ou daquele senhor.” Aí começa a cantar.
Amîrî wîtî tane, amîrî wîtî tane, ashikî manon
Ayete’ tá’ ashikî manon
60 Manon yawon pa wamî pia ashikî manon. 60
Todas as transcrições e
traduções em macuxi fo- Suwooo! Suwooo!
ram realizadas por Rivelino
Pereira de Souza. [Enquanto você vai, enquanto você vai, venha filha
Na sua rede, venha filha
Filha, venha no meio de sua gente, filha]

LB: A gente chama o espírito. Vem cá; vem com teu pes-
soal, com teus irmãos; vem comer sua comida junto com
a sua família. É assim que a gente cantava, né. Hoje já não
existe mais.
DF: É tão bonita a música, não é?

EM: É bonita sim. É bonita e triste [Risos]

LS: É bonita.

DF: Mas é. É bonita e triste. E essa quer dizer o quê?

EM: Ela tá chamando...

LB: Tá chamando o espírito daquela pessoa.

DF: Traduz pra gente. Traduz tenta cantar em


português agora. A senhora sabe?
LB:
Yekaton anepî tane Maruwa, Maruwa manon
yekaton ene’kî
Maruwa, Maruwa, Maruwa wîkîrî wîtî manon
61
Dona Letícia não repetiu yekaton ene’kî
a música, mas
aparentemente a Maruwa, Maruwa, suwooo! Suwooo! Asîkî Manon.61
completou

LB: Maruwai, traz o espírito dessa criança. Ou da pessoa


que tá doente né?
EM: Vem com a tua mãezinha.
LB: Vem com a tua mãezinha enquanto nós estamos
Projeto: Panton 2
chamando. Maruwai tá chamando teu espírito. Vem pra
sua rede, vem comer com sua família deixa a comida dos
bichos pra lá. Aí quando é noutro dia, a criança
amanhece...
EM: Melhorzinha.
LB: Melhor.
LS: Elas que curavam... [...] Era assim mesmo que faziam,
elas assim.
EM: Canta de novo pra eles ouvi mais uma vez.
DF: Isso. [Risos] [repete a canção anterior]
EM: É assim como ela tá chamando assim: “Oh, vem cá,
vem comer com nós, deixa a comida dos bichos.”
DF: E outra? A senhora sabe mais alguma assim dessa, do
pajé,[...] alguma coisa mais? Algum canto mais?
LB: Eh, já esqueci, me esqueci.
DF: Esqueceu é?
LB: Esqueci.[...] Eh, eu me esqueci muita coisa que...
EM: É como a gente tá dizendo. A gente já tá usando
coisa dos brancos.
LB: Já estou esquecendo até parixara que a dona Fátima
diz que admirava em Boa Vista.
LS: Antigamente era o pajé que era o médico. Hoje,
quan- do as pessoas adoecem aqui...
DF: Antigamente era o pajé e hoje?
LB: Era o pajé.
DF: E hoje?
LB: Conheci Luís, pajé lá do banco. Pajé Geraldo
Barbosa que é meu tio e mataram ele em Boa Vista,
envenenado. Ali era pajé!
EM: Ele era pajé. Médico mesmo.
LB: É quase. Tem pajé quase médico. Ele era um dos
que existia ali, lá no São Jorge.
2 Projeto: Panton
DF: Qual era o nome dele?
LB: Geraldo Barbosa.

DF: Ele morreu como?

LB: Ele morreu assim olha, ele curava muita gente.


Tinha um branco, por nome Djalma, Djalma não sei de que
lá, ele morava no Surumu. Ele tinha ferida na perna. “Será
que esse pajé sabe mesmo?” “Geraldo vem ver aqui o que
que ele tem na perna.” Ele foi lá. “Ah seu Djalma, tá com
pereba na perna assim.” “Tu, tu reza pra mim?” “Rezo.”
Ele rezou nas feridas do seu Djalma. “Será que esse pajé, é
verdade que ele conhece mesmo? Esse pajé tá é mentindo.
Peraí.” “Seu Djalma, o senhor não vai comer galinha, não
come ovos, não come porco, carne de porco. Daqui uns
dias mais, mais tardar um mês, o senhor vai ficar sem
comer dessas coisas. Não come carne de gado, essas
coisas, peixe, que porco faz mal.” Geraldo foi embora pra
casa dele dia. Passam uns dias... aí vinha ele. “Eu quero ver
se Geraldo adivinha mesmo.” E ele comeu carne de porco,
comeu galinha ele. A ferida tornou a espocar de novo.
Mandou chamar finado Geraldo aí ele: “Seu Djalma, o
senhor comeu porco, seu Djalma.” “Eu não comi.” “O
senhor comeu.” Aí eles começaram a teimar. E ele tinha
comido mesmo. Aí é donde ele acreditou. O branco, né?
Acreditou nele. Foi assim. Pra ele morrer, ele morreu em
Boa Vista, foi em cinquenta, cinquenta e seis. [...] Em
cinquenta e seis ele morreu. Então, ele tinha um
conhecido, que tinha uma comadre por nome Andrelina. O
marido dela morreu e ela se juntou com, com homem
novo. Ele bebia muito, e ela também bebia. Briga de casal
né?[...] Ele vai coloca veneno no, na bebida, na bebida. Ele
sabia que ela gostava de beber. Era pra matar ela. Aí o pajé
chegou, [mas não adivinhou]. Ele gostava muito de beber
também, ele bebia muito. “Geraldo tu não quer tomar café
ou quer tomar café, café branco?” “Eu aceito café
branco.” Ela foi, ela deu um trago pra ele, demorou o
homem caiu. Quando ele sentiu, ele disse: “Olha comadre,
você me matou.” Quando ele tragou a cachaça, ele disse:
“A comadre me matou.” Aí ele morreu né, morreu
Projeto: Panton 2
envenenado.[...]
DF: E qual é a história do parixara?
LB: A história do parixara, parixara já é dança. [...] A
dança, dança antiga. Tem tucui, tem areruia, tem parixara.
Dança parixara. São danças.
DF: Mas vocês dançam quando? Dançavam. Hoje em
dia dançam mais...
LB: Dançavam, né. Dançavam em tempo de Natal, dan-
çavam mais no tempo de Natal. Por exemplo, aqui é uma
comunidade indígena. Hoje não tá mais acontecendo
como o seu Eduardo fala, não tá mais acontecendo, por
exemplo, vai ter festejo de Natal lá na Curicaca. Aí o
tuxaua de lá manda convite pra cá, aí todo mundo se
prepara pra ir pra festa. Vai o senhor; vai ele; vai ela; mas
tudo é homem, cinco, seis homens. Lá estão seis homens
preparados pra chegar, pra chegada do, do como é que
chama?
EM: Receber o pessoal de outra comunidade, né.
LB: Eh.
DF: Os visitantes.
EM: Isso.
LB: Tem um nome pra eles, como guerreiro tem [um
nome], esqueci o nome. Aí vão pra lá. Chega lá tem
tabatinga. Eles começam a se pintar de tabatinga, né?
Barro branco. Se pinta. Aí corre. Lá vem o pessoal. E as
mulheres ficam aqui preparadas. Não deixa o homem
entrar, se entrar pra dentro de casa, se o homem entra e
escapulir da mão de outro homem, ele vai lá dentro beber
caxiri lá dentro. Pra não deixar ele entrar lá dentro, aí lá
vem o homem, aí lá vem, pega o homem, pega homem.
Como é que chama quase como queda de corpo. Como é
que chama, eu já esqueci o nome. Aí deita aqui no ombro
do outro, aí o outro agarra. Aí o outro agarra, e o que tá
esperando tem que agarrar o que vem chegando; aí
suspende; aí pronto. Mas tem vez que quando escapole
daqui, ele procura entrar dentro de casa. Aí para todo
2 Projeto: Panton
mundo, aí já vem o pessoal, já vem cantando de
Projeto: Panton 2
lá o parixara. Aí as pessoas levam pra ir encontrar os
outros, com cuia de caxiri, beiju; e andam cantando
também. Aí se encontram, entram dentro de casa e fazem
a roda e vão dançar parixara.
DF: E como que é a música do parixara?
LB: Parixara? Parixara tem, é cantado né.
DF: E como é que é? A senhora poderia cantar pra gente?
LB: Canto. [...] Vou cantar assim né, meu pai me
ensinou assim. Eu aprendi a cantar há pouco tempo e eu
me esqueci que o vovô me ensinou. Eu cantava, que eu
aprendi, que eu fui ensaiar os meninos em Boa Vista e
cantava.
Shosi tá î’ku pîu ya tane (bis)
Arerui ya, ikukî u’pasî arerui ya i’kukî upa’sî
Shosi tá î’ku pîu ya tane (bis)
Arerui ya, ikukî piipi arerui ya i’kukî piipi

[Enquanto eu canto na igreja, (bis)


Aleluia, cante minha irmã, Aleluia.
[Enquanto eu canto na igreja, (bis)
Aleluia, cante meu irmão, Aleluia.]

LB: É assim[...]
DF: Aí fica cantando e dançando?
LB: É todo mundo fica dançando pra lá e pra cá.
LS: Já tem outra. Tem outra música?
LB: Tem.
LS: A senhora lembrou agora?
LB: Estou lembrando devagar.
DF: É. A gente não tem pressa não.
LB:
Shiso, Shiso ya purîu ya sîrîrî pe penane (3 vezes)
Shiso, Shiso morî antî kî sîrîrî pe penane
Shiso, Shiso u’pî katî kî sîrîrî pe penane (bis)
Oi, oi, oi…
(Tawon senî’ kraiwa, eserenka’to)

[Cristo, Cristo eu te lebarei hoje e amanhã (3 vezes)


Cristo, Cristo me abençoe hoje e amanhã
2 Projeto: Panton
Cristo, Cristo me ajude hoje e amanhã. (bis)
Oi, oi, oi...

(É assim que eu canto, branco)62] 62


Essa frase não pertence à
música e foi dita em tom de
[Risos] ironia com o entrevistador.

DF: E quer dizer o quê? Eu não sei macuxi.


EM: Não.
LB: “Você é branco. É assim que eu canto pros
brancos.”
DF: Como?
LB: “É assim que eu canto, branco.” Eu estou dizendo
pros senhores.
EM: Ela tá dizendo pro senhor.
DF: Eh. Tá vendo? Se eu não perguntasse? [Risos]
LB: Pois é.
EM: E aquela do vovô? Eu acho bonita.
LB: Eu esqueci homem. Eu estou esquecendo.
EM: Eu acho bonita aquela música dele.
LB: Tem outra aí.
Iwareka piipî uri tumai (bis)
Arau’tá piipî urî usan purari,
Iwareka piipî usan purari
Iwareka piipî urî tumai (bis)

[O couro do macaco é minha damorida (bis)


O couro do guariba é o meu tambor
O couro do macaco é o meu tambor
O couro do macaco é minha damorida (bis)]

[...]

EM: Explica pra ele o que quer dizer.

DF: Que quer dizer?

LB: É, é...

LS: Em português.

LB: Em português: “Macaco é comida dele. Tá cantando


Projeto: Panton 2
que “Macaco é comida dele. Como é? “Couro de macaco é
tamborzinho que o índio faz.” né? “Couro de macaco é
meu tambor.” Já “Couro de macaco é minha damorida”,
que diz.

DF: Ham ham.

Música.

LB: Iwareka piipî uri tumai, Iwareka piipî uri tumai é da-
morida. Usan purari é tambor. Uri tumai é damorida. “Coro
de guariba é meu tambor”, né? “Coro de guariba é minha
damorida.” São só essas duas palavra, são quatro aliás, né.

[...]

LB: A música do vovô eu esqueci mesmo.

EM: É. Ela canta a música do vovô e agora no momento


ela não lembra.

LB: Num lembro. Agora eu lembrei que canta muito em,


em Natal né? É... Natal chama-se krishi moshi.
Krishi moshi pokon inîpî man (bis)
Are, are, ru ya; are, are, rui ya (bis)

[Os que são de Natal estão chegando (bis)


Ale, aleluia; ale, aleluia (bis)]

LB: É assim que é o canto.


DF: Ham ham.

LB: De Natal.

DF: Areruya é Aleluia, né?

LB: Areruya é Aleluia né.

DF: É Aleluia né? Não, tá certo assim. É a nossa aleluia,


não é? E fala de que essa música?
LB: Fala de Natal. Krishi moshi é Natal. [...] Areruya é
aleluia, é da música
LS: E aqui na comunidade ainda faz muito isso no Natal,
pelo menos assim uma vez ao ano?
2 Projeto: Panton
LB: Porque não fazem mais. Aquilo que eu tava contando
Projeto: Panton 2
agora, a gente tempo do tuxaua Valci, que fez esses
ensaios de parixara. Aí foi tempo que eu perdi a vista, né?
Que eu não posso mais dançar mesmo. Já estou toda
aleijada, sei lá. Bom, aí de hoje por diante eu não vou mais
ensaiar. Quem dirige parixara agora é professor Ário. Ele
que tá ensaiando, não sei se ele ensaia. Quem deve saber é
o tuxaua, quem manda aí é o tuxaua, né? [Risos]
LB: É, é o nosso capitão daqui. Ele deve falar alguma
coisa sobre parixara aí pra comunidade. Mas foi bonito o
tempo em que eu trabalhei. Eu tenho foto aí. Quando eu...
tenho foto do Neudo Campos, quando ele era governador.
Foi do tempo do Neudo. A gente trabalhou...
DF: E a senhora lembra mais alguma música? Qualquer
uma que a senhora lembra relacionada a alguma história?
Por exemplo, o caxiri. Tem um história pro caxiri ou não
tem? Uma história assim de como ele surgiu?
LB: Caxiri é, ele é feito assim da mandioca. Caxiri, a
gente arranca; pega; tira a goma; deixa pra espremer no
outro dia. Aí no outro dia, espreme, faz o beiju. Tem o
tempero do caxiri. Moi aquela folhinha de maniva, moi
bem moidinho. Mistura com a massa; torra bem a massa
pra misturar o pó da maniva. Aí, pega a folha de bananeira;
coloca no chão assim; bota carvão ou a cinza quente por
de baixo. Aí abre a folha em cima. Pega o tempero, aí bota
por cima da folha. Molha o beiju, bem molhadinho, aí vai
colocando, vai conversando.
DF: Conversando o quê?

LB: Conversando com beiju, com o caxiri. “Amadurece


bem. Se você não amadurecer eu vou te jogar pra
cachorro comer, pra galinha comer. Você não vai se
zangar. Olha o pessoal vem aí pra tomar caxiri, pra chegar
em casa: Oh, caxiri gostoso.” [Risos] É, a gente conversa
assim. Eram os antigos que conversavam. Aí coloca de
novo o pó, vai colocando. Cada camada, vai colocando o
pó. Aí terminou, tem que colocar folha de novo de maniva
em cima, que é pra abafar. Passa o quê? Deita hoje; passa
amanhã; depois de amanhã
2 Projeto: Panton
que vai levantar. Enquanto o caxiri não levantar, não tirar
do chão assim, quer dizer, das folhas, aí aquela pessoa que
deitou o caxiri não pode tomar banho.
DF: Ah é?

LB: Eh. Tem que passar um dia. Hoje deitou pajuaru, o


nome é pajuaru, né...do caxiri. Não pode mais tomar
banho, passa o dia e a manhã sem tomar banho. No dia
que tira o pajuaru, aí que vai tomar banho. É a história do
caxiri.
DF: E se a mulher fazer o caxiri e não dá certo assim?
Tem alguma, alguma coisa que faz pra ela começar a
acertar?
LB: Tem, porque se não tiver bem assado o beiju, não
amadurece, fica azedo.
DF: É porque assim, contou uma senhora lá que, por
exemplo, a mulher pega uma [navalha]; a senhora mais
velha pega a mulher, corta aqui [parte interna dos lábios]
assim nela, passa alguma coisa, aí depois que fizer essa...

LB: Não, corta aqui.

DF: É aí.

LB: Eh.

DF: É isso que eu quero saber.

LB: Eh, antigamente cortavam o braço assim, a


mãozinha, botava aquele sangue. Aí passava mel de
abelha, pro caxiri amadurecer bem madurinho. Às vezes,
uma pimenta bem leve com o mel. Pra quando deitar
caxiri, caxiri amadurece.
DF: Então, é isso que fazia?

LB: É, isso que fazia. Aí depois que deitar o pajuaru, tem


algodão pra fiar, tem aquela coisa, né? Porque quando o
caxiri amadurece, cria aqueles pêlos brancos. Quando esta
bem madurinho, ele cria aqueles pêlos bem branquinhos,
algodão assim. Pode contar que o caxiri tá maduro. Bem
docinho. Parece assim que a gente colocou açúcar. É só
Projeto: Panton 2
isso a história do pajuaru.
2 Projeto: Panton
DF: E a, os meninos, vamos ouvir do senhor. Por
exemplo, na época do senhor ou a senhora mesmo,
quando o menino tava começando a virar rapaz, tinha
algum ritual ou alguma coisa que faziam?
EM: Dos meninos?

DF: Eh.

LS: Pra ele ficar guerreiro, corajoso.

DF: Tinha algum ritual, alguma coisa que faziam com os


meninos, que os antigos faziam ou não?
LB: Fazia.

EM: Fazia sim.

DF: Vocês lembram? A senhora lembra?

EM: Eu não lembro quase não, mas existia isso.

DF: Um ritual?
EM: Eh.
DF: Depois daquilo, era quase como que ele fosse
aceito na comunidade como homem, como guerreiro, não
é isso?
EM: É.
DF: A senhora lembra o que faziam com eles, alguma
coisa?
LB: Bom, o rapaz, quando ele tá ficando rapaz, os
velhos curavam, com a pimenta, cortavam tudo, botavam
pra caçar. “Eu vou botar seu Eduardo pra ir pescar.”
Primeira vez que ele vai pescar, né. Já fizeram trabalho
com ele.
DF: E como que era o trabalho?
LB: Pimenta ou tajá, tem o tajá que eles fazem. Lava o
braço, ferra com a lacraia, como ele tava falando. Tanto
fazia mulher como homem também fazia, dava uma
ferradinha de lacraia. Às vezes ferrava com aquele
tucandeiro que cha- mam. Já hoje não existe, existia
Projeto: Panton 2
muito. Aí vai o rapaz. Vai seu Eduardo, vai, vai caçar, leva a
espingarda, leva seu caniço e vai pescar. Aí ele vai pescar,
ou traz veado ou peixe mesmo,
2 Projeto: Panton
ele chega com a caça dele. Ele não vai ter direito de comer
a caça que ele matou.
DF: Não?
LB: Não. Senão ele fica panema. Não mata mais caça.
DF: O que é panema?
LB: Panema é, como é que, não mata mais. Nem peixe
se ele pegar ele não come.
DF: A primeira vez.
LB: A primeira vez. Se ele pegar não tem o direito de
comer a caça dele. Assim, assim mesmo menina. Menina,
quando ela se forma primeira vez, ela não tem direito
assim de conversar com rapaz; não olha pra gente; tem
que armar rede dela bem alto, que pra quando chegar
homem ou rapaz não ver. É proibido ela olhar pras
pessoas. Aí ela, por exem- plo, ela menstruou hoje: “Ela tá
menstruada.” “Então você vai ser guardada.” Aí guarda.
Isso era antigamente.
DF: Guardava como?
LB: Guardada é deixar lá dentro pra ninguém mexer
com ela, não conversar com ela. Arma redinha dela, bota
bem em cima, dessa altura assim, ela fica deitada.
DF: Quanto tempo a pessoa ficava?
LB: Uns três dias, quando ela termina menstruação.
Passa três dias, aí o avô ou pai trança olho de buriti assim
pra ela sentar em cima. Quando é de madrugada, cinco
horas, ela já tá melhor, né, senta ela naquele trançado,
como um tapete. Ela senta ali, ela vai fiar algodão, aí ela, já
é cinco e meia, ela trança de novo olho de buriti bem
comprido. “Embora, você vai tomar banho agora.” Chega
lá na beira do rio, ela vai levar três tacadas de olho de
buriti.
DF: Olho de buriti é o que? É uma...
LB: É trança.
EM: Cipó.
Projeto: Panton 2
LB: Como é, modo dum cipó. Palha de buriti, eu chamo
2 Projeto: Panton
de olho.[...] Trança, aí o pai dá três tacadas na menina, aí
ela cai na água, toma banho e vai embora pra casa. Aí
quando ela vai ralar mandioca, é benzido, o pai benze pra
poder ralar mandioca. Aí manda ela cantar.
DF: Cantar o quê?
LB: Cantar, quando ela vai cantar, ralar a mandioca ela
tem que cantar.
DF: A senhora não lembra a música não?
EM: A música da mandioca, ela sabe.
LB: Sei, sei.
DF: Então, é isso, a senhora poderia cantar pra gente?
LB: Canto sim. Aí ela vai ralar a mandioca. Aí a
mandioca tá benzida. Não acontece não. Se a gente pegar
trabalho assim, às vezes: “Ai, meu braço tá doendo!” “Ai
aqui tá me doendo!” “Minha mão tá doendo!” Pra não
acontecer isso, tem oração pra isso, que benze. Aí ela vai.
Taí a mandioca. Tá benzido vai ralar essa mandioca. Tá
bom. Aí ela pega ralo e vai ralar. Ela começa a cantar assim.
Ariike’ kai’ma sane (bis)
A’piya uyawi’shi rumpa’ pî
Ariike’ kai’ma sane (bis)
A’pi ya uyawi’shi rumpa’ pî
Mîrîrî warantî e’seren ka’ pîtîpî

[Pensando que eu era trabalhadora (bis)


Teu irmão me namorou
Pensando que eu era trabalhadora (bis)
Teu irmão me namorou.]

LB: Ela começa, ralando mandioca, né [faz um som, imi-


tando o ralar mandioca]. Aí ela continua.
Ariike’ kai’ma sane (bis)
A’piya uyawi’shi rumpa’ pî
Ariike’ kai’ma sane (bis)
A’pi ya uyawi’shi rumpa’ pî
Mîrîrî warantî e’seren ka’ pîtîpî

DF: E quer dizer o quê?


LB: Meu primo pensa que eu sou, eu sou esperta, sou
Projeto: Panton 2
trabalhadeira. Ele tá se namorando de mim.
DF: Ah é?[Risos].[...] Viu que história bonita, né.[...]
LB: Pois é assim.
EM: Pois é doutor, é assim que..., mas que nós já
pegamos já quase...
LB: Já quase no final.
EM: No final dos velhotes, mas a gente viu ainda. Enten-
deu mais ou menos como é que a gente ia pra pescaria e
chegava. Ainda alcancei andando com meu sogro. A gente
ia, a gente saia pra pescaria, a mulherada fazia, ficava
fazendo pajuaru. Quando a gente vinha chegando com o
jamaxim de peixe, as mulheres iam encontrar a gente no
caminho. De lá, quando, onde a gente parava, elas
entregavam caxiri pra gente. Aqueles baldes de caxiri. A
gente ia beber, aí elas tomando de conta do peixe. Aí elas
já iam comer ou o que elas quisessem. A gente só ia só
beber mesmo.
DF: Só fazer farra?
EM: Fazer farra, farrear. É assim que a gente, eu
gostava muito e gosto ainda de pescar. Eu gosto de peixe,
da pescaria. Não aguento mais andar. É muito longe.
DF: E rio aqui é longe?
EM: É longe, é longe pra andar.
DF: Lembra de alguma, mais alguma história especial
dessa aí? A da maniva a senhora já falou [...] Tem mais
alguma coisa que a senhora lembre? De alguma, alguma
comida, por exemplo, do que a senhora fez é o beiju né?
[...]
LS: E peixe? Tem, às vezes, tem peixe que tem história, né?
LB: Não sei de peixe também não.
DF: Assombração ou alguma coisa assim?
EM: A história do peixe, dizem que o, a pessoa né, a
me- nina ela duvidou muito, então o surubim, o surubim
dizem que é a batata da perna da menina.
2 Projeto: Panton
DF: Mas por quê?
EM: Porque o surubim ele é igualzinho à perna duma
pessoa. Ele é barrigudo e pra cá é fino. Aí eu não sei como
é que... ela é comprida. Eu não sei, sabe. Aí já ouvi falar que
é uma história do peixe que virou...
DF: Que veio da batata da coxa da menina.
EM: Da menina.
DF: Porque ela duvidava, eh?
EM: Duvidava. Realmente o surubim parece mesmo
perna de gente, o surubim [Risos]
DF: Tá certo. E como que a senhora se sente hoje, por
exemplo, dessas coisas que a senhora contou,
praticamente não faz mais nada?
LB: Não.

DF: Como é que a senhora se sente assim com...

LB: Eu me sinto assim é... Às vezes eu me alembro, né,


eu canto, aí eu não canto mais. Eu me sinto assim um
pouco triste, por não poder mais fazer nada, né. Me
lembro meus trabalhos tudo parado.
DF: Que trabalho?

LB: Eu, eu fazia pote.

DF: Ah pote!

LB: Panela de barro. Tudo foi. Acabou.

DF: A senhora nunca mais...

LB: Tá vendo aquele potezinho do lado de cá? Isso aí é


minha obra.
DF: Ah, lindo ele. A senhora não faz mais então os potes,
né?

LB: Não. Não faço, porque meu marido não quer mais
que eu trabalhe assim, por causa das mãos, que eu estou
cheia de reumatismo. Aí ele me ajudava, tirava barro né,
batia barro
Projeto: Panton 2
aí pra mim. Teve o começo de trabalho dos alunos aqui. Foi
bonito, mas acabou em nada.[...]
DF: Então, qual outro trabalho que a senhora fazia?

LB: Trabalho, fazia trabalho de branco. Eu costurava


muito.
DF: Costurava muito. Gostava de costurar?

LB: Gostava de costurar. Eu fui até instrutora daqui, das


mulheres daqui. Cada qual ganhou seu diploma de
costureira, [...] mas não continuaram, acabou em nada. [...]
Isso aí foi tempo da Sueli, dona primeira dama, do Neudo
Campos. A gente trabalhou. Aí acabou. Aí passamos pra
artesanato de barro. Acabou também.
DF: Acabou também?
LB: Acabou.
DF: O artesanato a senhora fazia desde antigamente,
desde sempre?
LB: Desde quando a minha avó me ensinou. Eu não fazia
bem feitinho como ela, mas fazia.
DF: Qual o nome dessa avó da senhora?
LB: Cecília, lá do Barro.[...] Já morreu tudo. É, minha mãe...
DF: Quais histórias ela contava pra senhora?
LB: Ela contava história pra mim que, quando ela ia mor-
rer, ia deixar essa lembrança pra mim.
DF: Que é o quê?
LB: Que é panela de barro, [...] trabalho né, de barro.
[...] Ia morrer e ia deixar pra mim. É assim. Trabalhar de
roça, ela era uma mulher, mas trabalhava muito. “Quando
vocês se criarem, vocês casam com homem trabalhador
pra vocês não sofrerem, aprender a fazer farinha,
aprender a fazer beiju, aprender a fazer o caxiri.” Tudo isso
ela ensinava, dizia pra gente. Agora, quando ela ficou velha
mesmo, que começou a chegar branco, ela dizia: “Olha”,
uma coisa assim até hoje, isso aí eu me lembro bem. Uma
coisa assim, parece que man-
2 Projeto: Panton
daram uma carta pra ela, eu não sei, ela dizia: “Olha vocês
vão ficar nesse mundo...” “Vocês vão ficar, aqui nessa
terra, vocês vão sofrer. Vocês vão brigar com branco,
branco vai surrar vocês, branco vai tomar terra de vocês.”
Tudo isso ela dizia. Dizia, parece assim uma coisa que ela
recebia assim uma mensagem.
DF: Ham ham. Ela falava sempre isso.
LB: Ela falava, minha avó. “Vocês vão sofrer. Eu não
vou mais ver não, mas vocês vão ver o sofrimento que
vocês vão passar, uma crise que vocês vão passar que os
branco...”, desculpa eu falar isso que as brancas tão aqui
que são vocês. Mas não são todos os brancos que... a
gente tá sabendo que não são todos os brancos que têm
raiva da gente.
EM: É verdade.
LB: A gente também gosta dos brancos, mas nem todo
branco gosta da gente. “Vocês vão sofrer nas mãos de
branco.”, ela dizia isso. “Vai vim branco, vai vim soldado,
vai vim delegado.” Quando ela morreu, já tinha delegado
aí no Barro. Ela dizia isso. “Vocês vão embora daqui e vão
deixar a terra de vocês pros branco.” Dito e feito. Tão
brigando aí por causa do Barro, que não é lugar de índio.
Tudo isso acontece.[...] Ainda estou existindo pra contar
história que a minha avó dizia.
DF: Então. É justamente isso que a gente quer ouvir,
pra gente registrar isso. Pensar o que sua avó falava, como
que ela pensava, como que ela via as coisas.
LB: “Rezam. Vão pra igreja, satanás não perseguir vocês.”
DF: Ela falava isso?
LB: Ela falava: “Makui ya aye’tá namai, makui mîkîrî.”
Demônio que tá andando atrás de vocês.
DF: Ham ham.
LB: “Makui” é demônio, o diabo que ela chama? “Rezam.
Vão pra igreja.”
LS: Na língua macuxi?
Projeto: Panton 2
LB: Na língua macuxi, “makui” é demônio.
LS: Ela também era católica?
LB: Era, demais. [...]
LB: Pra mim dá saudade do meu povo que foi embora.
DF: Claro que dá.
LB: Estou por aqui não sei nem como Deus me deu essa
sorte de ainda contar essa história pra vocês.
DF: Qual foi a coisa mais feliz que a senhora viu até hoje?
[...]
LB: Bom a coisa que mais...
DF: Que a senhora lembra como uma coisa boa, que
acon- tece com a gente? Tem alguma coisa que a senhora
lembra?
LB: Eu. Coisa boa que, que, que aconteceu, que, que do
passado que eu vivia com meus pais, minha avó. Quando a
gente saía pra pescaria, como ele conta, né, que levava
caxiri.
DF: Como que era essa pescaria?
LB: Pescaria assim é, quando nós éramos meninos...
“Va- mos de canoa, os caçador vão por aqui, os pescador
pegavam peixe.” A gente chegava numa paragem, com a
minha mãe, com a minha avó, fazia aquele jirau assim pra
panhar peixe. Fazia moquém de capivara, de veado, de
peixe.
DF: Moqueava como?
LB: Moqueava assim, assar peixe na brasa. [...] É, com a
quentura da brasa assim, assava o peixe pra comer.
Quando a gente ia embora, botava dentro do jamaxim.
Conhece?
DF: Não.
LB: Jamaxim?
DF: O que é o jamaxim?
2 Projeto: Panton
LB: Jamaxim já é que branco chama. A gente chamava
de panacu.
LS: É o quê? É uma cestinha?
2 Projeto: Panton
LB: É.
LB: Meus jamaxim estão todos jogados por aí. É uma
trança de arumã. Faz assim...
DF: Ah, eu sei. Que joga nas costas?
LB: Isso.
DF: Ah, eu sei o que é.
LB: Botava ali e a gente ia embora. Pras suas casas,
cada qual. Não tinha, como o Eduardo tava contando, não
tinha branco pra proibir a pesca dos índios, era liberto.
Tinha muita caça, pato, capivara, jacaré tudo enrolava.
Como é aquele passarinhozinho?
DF: É mutum?

LB: Mutum. Mas a gente era mais feliz antigamente,


tudo tá acabado, né. Eu me sinto assim triste por não ter
parceiro pra conversar comigo, pra contar história.
DF: Pra juntar assim o grupo, né?

LB: Pra juntar o grupo.

DF: Eu tava lendo esses dias uma coisa bem bonita. Aí


tava lá dizendo assim que se a gente não contar, não ficar
contando as histórias um pro outro, elas morrem.
LB: Esqueci de dar o meu nome indígena...

DF: Ah, como é o nome da senhora indígena?

LB: Tî wa’.

DF: Significa o quê?

LB: Trempi.

DF: Trempi é o quê?

LB: Trempi é três...é coisa assim de fazer fogo.

LS: É fogo no chão, é uma trempi.

LB: É três pedra. Uma aqui, outra aqui.

DF: Ah, sei o quê que é. [...] Tem nome indígena também
Projeto: Panton 2
ou não?

EM: Tenho não senhor.

LB: Que é fogão dos antigos, né. Aí a gente coloca o


fogo e faz damorida, faz essas coisas.[...]
LS: Assim, na época da avó da senhora, quando ela
fazia, dizia essas coisas que vocês iam sofrer de branco,
que vocês iam ser surrados, que iam brigar pela terra, já
existia a pre- sença da igreja lá na comunidade?
LB: Já.

LS: Já existia padre já?

LB: Já, já existia. O meu pai conta que, que ele, primeiro
padre que andou por aqui, padre alemão, ele fala assim
nome dele é Dom Preau, né Eduardo?

EM: É.

LB: Dom Preau. Isso aí eu não alcancei. Quando me en-


tendi, conheci padre Dom Alcino.[...] Isso. Padre Dom
Alcino. Foi ele que me batizou também. Aí de lá pra cá que
começou a mudar. Tempo dos índios já conheceu os
brancos. Mas ele falava macuxi.[...]

DF: A senhora lembra como era, se tinha algum culto


antes da religião? Que ele já chegou depois não foi? A reli-
gião católica nem sempre existiu aqui? Ela veio junto com
os brancos, não foi?

LB: Eu acho que sim.

DF: Então, ela veio junto.

LB: Porque quando eu me entendi já existia católico, né?

DF: Então.

LB: Aí, o que existia antes, eu não sei.

DF: Nunca ouviu contar de como que era, nada?


2 Projeto: Panton
LB: Não, não. Agora, faziam culto em macuxi.

DF: Em macuxi.

LB: Mas aí, quando me entendi rezavam em macuxi.

LS: Mas já as orações do... que os brancos passavam?

LB: Já dos brancos. Traduzido pra, traduzido em macuxi.


Antes mesmo, quando meus avôs, nunca me contaram.[...]

DF: [...] Vamos lá. Essa é a canção que a senhora falou


que era do seu avô?
LB:
Akan nîkî tami paran inîpî man, kra shosi
Akan nîkî tami paran inîpî man, kra shosi
kra sho, kra sho, kra shosi, kra shosi

[tá vindo água do mar que não é boa


tá vindo doença aí,
cristo cristo meu cristo cristo meu]
DF: E o que que significa?
LB: Akan nîkî tami paran inîpî man. “Olha gente vem
doença. Vem doença aí”. kra shosi, que diz. Akan nîkî tami é
olha vem doença. É isso aí que ele canta kra shosi / kra sho,
kra sho, kra shosi, kra shosi.
Projeto: Panton pia’
Entrevistado: Lucinézio Peres Ribeiro
Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)
Assistente de Entrevista: Lucimar Sales (LS)
Local: Comunidade Santa Rosa, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR
Data da Entrevista: 10/10/2008
Transcritora: Keyty Almeida de Oliveira
Conferência de Fidelidade: Devair Antônio Fiorotti
Copidesque: Devair Antônio Fiorotti
Duração: 32’’33’’’
Projeto: Panton 2
DF: Qual é o nome do senhor?
LR: Lucinézio Peres Ribeiro.
DF: Lucinézio Peres Ribeiro. Você é irmão do tuxaua?
Qual é a sua idade?
LR: 40.
DF: Você nasceu aqui em Santa Rosa mesmo ou não?
LR: Não, eu não. Eu nasci lá no lugar que o papai
morava, que era atrás desta serra aqui, por nome Iguapirá.
DF: Iguapirá.
LR: Iguapirá, um igarapé que passa lá e tinha uma casa
lá, uma roça. A gente nasceu lá e a gente veio pra cá
nascido já. E eu não estou lembrado de com quantos anos
eu vim pra cá, mas acabei de me criar aqui. Até hoje eu
moro e trabalho aqui.
DF: De lá pra cá, você veio e ficou esse tempo todo?
LR: Eh, a gente ficou aqui. Até hoje a gente mora aqui.
DF: A sua primeira língua foi português ou foi macuxi?
LR: É o português, porque a gente hoje, hoje a criança
daqui, do futuro, tudo vai nascendo, vai tudo nascendo
com a língua portuguesa, porque você sabe, é como a
Sebastiana falou? A gente, a mãe e o pai, eles ensinaram
desde criança, e os filhos já nascem sabendo a palavra com
a língua que estão falando atualmente.
DF: E você é casado?
LR: Sou casado.
DF: Tem filhos?
LR: Tenho, tenho 08 filhos.
DF: E a sua esposa é macuxi também?
LR: É macuxi.
DF: Vocês têm, assim, esse incentivo pra que eles
apren- dam a língua macuxi ou só é o português?
2 Projeto: Panton
LR: Assim, a gente já, hoje os meninos aqui na escola,
os professores vêm batalhando com eles, com as crianças,
pra ver se conseguem aprender, mas, pelo que eu vejo,
não estão conseguindo, não.
DF: Não estão conseguindo?
LR: Até porque, eu mesmo estudei, depois que a gente
estudou língua macuxi com os professores que vieram de
fora. Aí a gente, eu pelo menos não consegui assim falar,
al- gumas coisas é que a gente entende. E assim é como
estão as crianças hoje aqui na escola, tem professor de
língua materna que estão dando aula direto pra eles,
semanalmente, mas a gente não vê assim, até porque,
assim, o pai não fala com o filho e isso é a dificuldade. Até
o próprio professor que dá a aula, o filho dele não fala, aí é
diferente do que a gente vê ali na comunidade do
Sorocaima I, Bananal. Ali é pai falando com os próprios
filhos dentro de casa mesmo. Aí, se fosse assim também,
com certeza tinha alguém. Eu não vejo aqui uma criança
que vem falar com o pai, o pai falar com seu filho direito.
Às vezes fala assim, na brincadeira, mas diretamente. Se
falasse diretamente, com certeza ia aprender mais. Hoje
não, só fala português direto, aí a criança se dedica mais
ao português.

DF: Você estudou na sua comunidade mesmo ou não


estudou?
LR: Eu estudei aqui mesmo. Eu parei, eu estudei até a
4°série, aí a gente não saiu pra estudar fora, porque todos
meus irmãos, que hoje estão trabalhando, eles foram estu-
dar fora. Aí eu fiquei aqui até que passaram 14 anos ou foi
mais, parece, sem estudar. Aí a gente voltou, porque veio
o EJA pra cá. Aí a gente voltou a estudar, a gente fazia a 5ª
a 8ª, aí a gente tá no 1°ano hoje, até terminar o 3°ano.
Estou batalhando pra terminar.
DF: E você sabe um pouquinho da história da
comunidade: como ela surgiu, quando ela surgiu?
LR: Eh, essa história, é porque, eu não estou bem lem-
brado no momento, mas a gente já fez uma pesquisa disso
Projeto: Panton 2
daí com os próprios idosos daqui mesmo. Aqui o próprio
tio Eduardo [aqui presente], seu Vitalino, o vovô que tá lá
em Pacaraima hoje com 90 e poucos anos. Então, foi, e nós
temos isso escrito. Só que eu não estou lembrado aqui no
mo- mento a data certa, mas a gente fez um
levantamento. Aqui mesmo na escola tem isso aí, essa
história da criação dessa comunidade. É assim o que eu
estou lembrado no momento, porque a busca que a gente
fez, e que estou lembrado no momento, é que já existia
antes, morava um pessoal aqui, e eram poucas pessoas
que moravam aqui. Então, com um certo tempo, aqui
chamava, o nome daqui era Orocaima, e aí certo tempo
vieram os religiosos, os padres, e aí já foram mudando, já
mudaram esse nome de Santa Rosa. E mudaram de
Orocaima pra Santa Rosa. Então, de lá pra cá foi assim,
essa evolução. Aí foi chegando mais gente aqui, só que eu
não tenho a data assim, no momento, mas a gente tem
isso aí escrito cada um que a gente pegou dos idosos, dos
mais velhos, assim, do jeito que vocês estão fazendo aqui,
nas suas buscas, consultando, um e outro, a gente montou
um livro, esse livro que a gente tem escrito na escola.
DF: Ah, na escola?
LR: Tem na escola. Aí o diretor Francisco, ele tem esse
livro escrito, ele levou e a gente fez, trabalhou esse
projeto, tipo assim, projeto. A gente fez um levantamento,
aí levou pra Boa Vista pra encadernar. Aí a gente tem esse
livro na escola, só que eu não estou lembrado no
momento.
DF: E as histórias dos antepassados: sabe, ouviu falar,
dos antigos?
LR: As histórias, têm várias, muitas histórias, histórias
de animais, das terras, assim, conforme você tava
perguntando pra Sebastiana, do Macunaima, assim. Depois
que a gente começou a estudar, a gente viajou lá, pra ali,
pro Perdiz, pra Pedra Pintada. Aí a gente foi, a gente já
tinha ouvido falar nessas histórias, aí lá a gente foi,
aprofundando mais, como se diz, foi pesquisando mais
como foi a história de Macunai- ma, que passou por certos
2 Projeto: Panton
lugares. Lá no Perdiz, eles contam a história de
Macunaima; lá na Pedra Pintada, têm outras
Projeto: Panton 2
histórias, que passaram muito tempo lá. O vovô, o vovô
conta uma história assim, ele fala assim pra gente: “Você
fala tanto em Macunaima, Macunaima é um diabo!”, fala
assim o vovô. Mas ele sabe da história todinha de
Macunaima, o vovô. A gente fala que Macunaima é um, é
um homem que andou em certos lugares, aí, então é
assim, pelo vovô, ele fala a história dele mesmo, como ele
sabe. Não é como a gente sabe, como já botaram em livro,
um livro que tem as histórias do Macunaima é diferente,
mas a do vovô mesmo, se você chegar a conversar com
ele, procurar essa história de Macunaima. [...] E ele, ele é
de 1912, ele sabe muitas, muitas histórias boas pra se
contar.
DF: [...] E dessas histórias, qual você sabe e que você
acha boa?
LR: Essas histórias, assim, que a gente acha boa, a
gente acha todas. Só que, pra se contar correto como foi,
eu não sei bem ela não. Mas é bom que a gente colha
essas histórias, como hoje elas já estão até num livro, né?
As crianças, que nem, nunca nem, só ouviram falar assim,
os meninos daqui conhecem Macunaima como ali, só o
Centro Macunaima, o Malocão [risos]. Falar de
Macunaima, eles pensam logo no Centro Macunaima, mas
só que eles não sabem da realidade que foi o Macunaima.
A criança de hoje, daqui pra frente não vai saber o que é o
Macumaima, mas no passado eles têm uma história escrita
profunda mesmo do Macunaima.

DF: E o que falta pra eles saberem?


LR: Falta pra eles voltarem a conhecer mesmo é a
busca dessa história e andar com eles em certos lugares
como eu falei: lá na Pedra Pintada, em certos lugares
assim, nas terras onde morou o Macunaima, passou
deixando algumas trilhas, com aqueles desenhos nas
pedras. E dizem que foi o Macu- naima que passou as mãos
lá, deixou desenhado, dizendo o vovô que aquilo ali era
Macunaima, o tempo que passou lá. Só o vovô pode
contar essa história bem aí.
2 Projeto: Panton
DF: Eh, eu queria conhecer esse vovô.
LR: [risos] Eh, o vovô sabe, quando a gente tá visitando
Projeto: Panton 2
ele, a gente tem que andar vivo. O vovô, só que é assim, o
vovô não tá mais, assim, como há dois anos atrás quando
a gente começou com o trabalho desses estudos, ele não
tá mais assim dessa forma. Ele esteve um tempo desse, ele
teve doente, então ele teve uma decadência muito
grande, até de memória mesmo. Ele tá...
DF: E como você vê a questão indígena hoje, você já
pensou sobre isso ou não?
LR: No sentido indígena?
DF: Eh, você hoje, você é um indígena, o que você
gostaria de falar a respeito...
LR: Como eu me sinto indígena?
DF: Eh, por exemplo, eu sou descendente de italianos.
Meus avôs vieram pro Brasil numa época lá. Mas ninguém
fica falando: “Você é italiano, você é brasileiro, não sei o
quê.” Eu sei que eu sou brasileiro e pronto. Mas o
indígena, hoje, ele tá no Brasil, tava antes, ele é indígena,
tem uma lei pra ele, a legislação específica indígena; mas
ao mesmo tempo ele é brasileiro, não é?
LR: Eh.
DF: Isso não dá certo nó na cabeça ou não dá, é normal?
LR: Eu acho que o indígena, hoje, tem um privilégio de
ser dado ao indígena liberdade no seu próprio território,
não é? Assim, porque ele, o índio, ele não tem fronteira,
então é uma liberdade que hoje ele tem na, assim, de o
indígena ele ter essa liberdade de usufruir do que existe na
sua terra e andar no seu território pra onde você quiser,
né? Eu moro aqui, aqui é a área São Marcos. Eu, como
indígena, posso sair daqui e morar lá, lá na Serra do Sol. Eu
posso ir lá pra Raposa Serra do Sol, é um privilégio que o
indígena tem. Aí como hoje o branco, ele mora lá, vamos
dizer assim, vamos falar do brasileiro, o brasileiro, hoje, pra
ir morar lá no outro país tem que ter [autorização]. Lá tá
saindo no jornal que estão botando [pra fora] um monte
de estrangeiro. Não tem essa lei que impede o indígena?
Projeto: Panton 2
DF: Isso com todo mundo?
LR: Como assim?
DF: Por exemplo, você pode isso só no Brasil ou você
poderia fazer isso na Venezuela?
LR: Não, eu acho que só no seu território, no Brasil, né?
Porque com certeza que [...] é assim, o indígena no Brasil,
é como eu estou falando, eu acho que ele é livre pra
morar, en- tendeu? Mas até assim, pra ir pra outro país. Ele
vai depender da própria língua dele, se ele fala bem a
língua espanhola ou a língua lá dos taurepangues. Os
taurepangues aqui do Soro- caima, do Bananal, eles
trafegam direto pra lá. Então, é uma das liberdades de
hoje. O indígena, ele tem muito hoje dessa liberdade que
ele tem, dentro da área demarcada, não é?
DF: Entendi. E a religião, você tem uma religião?
LR: A gente é..., a religião só é uma, o Cristianismo é
mundial. Mas só que dentro da religião já surgiram várias
outras. E que hoje faz parte da Igreja Católica. Então, essa
religião é também um dos problemas que acontece dentro
dos indígenas hoje, a questão de separação. Vocês que já
andaram muito, já perceberam isso? Assim, onde tem uma
religião, duas, três religiões na comunidade a comunidade
cresce e se divide.
DF: Entendi.
LR: Por que assim, a Igreja Católica hoje, fazer que nem
o outro, como a gente diz, é o que mais peca, né? Com
exce- ção de religião, Igreja Católica ou evangélica, assim,
porque o católico, ele faz tudo: bebe, fuma, dança, esse
negócio todo, né? Aí outros que são da Igreja Batista, aí
não traba- lham dia de sábado, só trabalham de domingo
pra frente, às vezes. Tem umas que impedem até de usar
roupas, unha pintada, esse negócio todo. Então, a religião
hoje, ela vem desculpando até a convivência dos próprios
indígenas nas comunidades. Vem fazendo com que a
comunidade até se divida, uma parte do bem outra da
parte do mal [risos].
2 Projeto: Panton
DF: Entendi o que você quis dizer. Outra coisa: você pas-
Projeto: Panton 2
sou por alguma iniciação indígena, assim, quando você virou
rapaz, ou não existia isso mais?
LR: Como assim?
DF: Por exemplo, a questão da puçanga. Você é novo,
40 anos, mas na sua época ainda teve isso pra você poder
caçar, pra poder...
LR: Não, não, eu nunca passei por isso não, mas já ouvi
falar muitas histórias.
DF: O que você ouviu falar?
LR: Assim, pra um cara ser caçador tinha que fazer,
fazer assim como o próprio vovô mesmo, assim, os idosos,
pra ser caçador, largar de ser preguiçoso tem que passar,
tomar um banho de pimenta, passar pimenta nos olhos,
metia pimenta na bunda [risos], é assim que os idosos
falam.
DF: Já conheço essas histórias, já ouvi falar...
LR: Essa aí é mais ou menos o que eu ouvi falar da
questão de puçanga. Agora, já ouvir falar de ter planta
aqui, que é usada. Um dia desses, nós távamos falando de
um camarada aí, que o pai dele usava puçanga pra atrair
mutum, pra atrair traíra, pra atrair não sei o que mais, uns
peixes assim. Um dia desses a gente tava conversando
assim, um cara lá que tinha em frente de casa, né, aí a
gente disse que ia contar umas his- tórias do pai dele
também, o [...], que é professor de macuxi. Ele sabe das
histórias que o pai dele usava e, assim, nunca, nunca
passou por mim. O papai falava pra gente fazer isso. Acho
que nem ele, o papai, nunca usou porque ele se criou assim
até com os fazendeiros, o papai se criou assim com os
fazendeiros. Depois que se juntou com a mamãe, passou
uns tempos, é que ele veio pra trabalhar na comunidade.
Eu acho que na época do vovô, com certeza, era dessa
forma, aí tem a história dele. Tio Eduardo morou muito
tempo com o vovô, ele sabe dessas histórias que o vovô
passou que aí já é de curar, colocar pimentas nos olhos.
DF: Você mora aqui na comunidade? Qual é a maior difi-
2 Projeto: Panton
culdade que você tem aqui hoje?
2 Projeto: Panton
LR: A maior dificuldade, dificuldade, que a gente vê
aqui na comunidade é uma desunião, assim, não a
desunião, de pessoas que vivem intrigadas com as outras.
É, assim, uma desunião que a comunidade não consegue
mais trabalhar em conjunto, sabe? E a gente, de uns
tempos pra cá. Desde a época do papai, quando ele
trabalhava, ele era mais novo, ele trabalhava de roça
comunitária, mas desde lá já vinha acontecendo isso.
Porque ele me falou, assim, quando come- çamos tinha
uma grande quantidade de gente trabalhando na
comunidade, aí, com o final do trabalho ficava bem pou-
quinho. Assim, porque o pessoal via que tava trabalhando
e não tava tendo lucro do trabalho. Eu me lembro de uma
roça que eles botaram faz muito tempo,(eu não trabalho
direto na roça), botaram uma roça muito grande lá pra
dentro, muita gente botou, uma roçona. Aí derrubaram, da
coivara pra trás começou a dar pra trás. Então, é uma
desunião de trabalho, e não conseguem fazer um trabalho
direto do começo com a quantidade de pessoas pra
terminar com a mesma quantidade. Aí as pessoas vão
desistindo, tem outra coisa pra atrapalhar e vão
desistindo. Então, é uma desunião de trabalho na
comunidade. Aí a comunidade vai, vai, vai, vai
enfraquecendo, assim. Até o próprio tuxaua mesmo
conver- sa com a comunidade, assim, porque tem o
tuxaua, tem o segundo tuxaua e tem o capataz. O capataz
ele sabe que é pra puxar o coelhinho aqui na comunidade.
Até o próprio capataz não puxa o coelhinho, assim, é uma
dificuldade por- que o capataz, hoje em dia ele estuda. O
capataz era o meu irmão, aí a gente tinha um projeto,
digamos que eu vou falar do ano passado. A gente
trabalhou num projeto aqui que a gente entrava da
lavoura de mandioca que tava plantada. Então, assim,
eram envolvidas três comunidades e nem as próprias três
comunidades não se envolviam no trabalho. E vinham dois,
vinham três, vinham três, mas quem acabou se matando
foi a própria comunidade. O meu irmão, que é o vaqueiro
hoje que trabalha ali, é que era o capataz, se matou
trabalhando. Aí o pessoal já achava que ele tava ficando
Projeto: Panton 2
era doido. O pessoal ficava olhando pra ele trabalhar e...
DF: Não ia junto...
2 Projeto: Panton
LR: ...não ia junto. Aí mudou de capataz e agora esse
capataz não tá mostrando trabalho. Então, é assim, uma
difi- culdade de união dentro do próprio serviço da
comunidade. Não é desunião assim de briga, não, é de
trabalho.
DF: De conseguir fazer as coisas junto,
LR: De conseguir fazer as coisas junto. E a gente esteve
fazendo a farinha depois desse projeto, a mandioca já tá
tudo no jeito de fazer farinha e a gente conseguiu
trabalhar na farinhada; e juntou, parece que eram umas
cinco ou seis famílias, aí trabalhou. Aí os outros não
estavam, era assim, pra comunidade toda em união fazer
um farinhada só e trabalhar do começo ao fim, mas só que
não aconteceu, foi uma parte que fez, uma parte de
dentro e uma parte de fora. Então, assim, não tem essa
união dentro da comunidade, então, é uma dificuldade que
a comunidade passa
DF: E uma coisa boa daqui da Santa Rosa que você
gosta muito. Uma felicidade...
LR: Uma felicidade? Rapaz, felicidade aqui, a felicidade
hoje aqui é a comunidade, hoje tem em mãos, [...] no caso,
se não fosse, não fosse assim essa semente que os idosos,
os velhinhos deixaram pra gente. No caso o Vitalino, que
vocês já passaram lá com ele; o vovô; o meu pai; aqui o
Eduardo; foram eles que adquiriram pra comunidade a
felicidade da comunidade, que tem essa semente em
mãos, hoje. Que é uma semente de pecuária que a
comunidade tem hoje em mãos. Se não fosse essa
semente que os idosos deixaram pra gente, então a
comunidade com certeza tava lá em baixo. E tava
passando mais dificuldade ainda, então a felicidade da
comunidade hoje é esse projeto que os idosos deixaram
pra gente, ter plantado, ter semeado e colhido. Já a
comunidade hoje tá só usufruindo. Então, isso daqui pra
frente é só tocar o barco pra frente. É uma coisa que os
idosos deixaram pra gente, pros mais novos, né? Só
administrar, porque eu vejo que a felicidade da
comunidade é isso, que tem um projeto bom de memória.
Projeto: Panton 2
DF: O que você pensa da entrada da tecnologia, da infor-
2 Projeto: Panton
mação na comunidade? Se é importante, não é, como é
que você pensa isso?
LR: A tecnologia hoje é boa demais, no caso, vou já
tocar no assunto, do projeto, que a comunidade tem em
mãos, assim da tecnologia. O meu irmão Valcir, que foi o
primeiro tuxaua de três anos atrás, hoje ele trabalha num
projeto, ele é o, como é, o listador do depósito da região.
Então, hoje ele tá querendo, acima da tecnologia, ele quer
trazer o benefício pra comunidade, assim, ele quer trazer
semente de rebanho de fora pra usufruir dentro da
comunidade, no caso, como é que se chama, a
inseminação. Então, é uma das tecnologias que vão trazer
daqui a alguns tempos, ele vai trazer pra dentro da nossa
comunidade, então a tecnologia é boa hoje pra todo
mundo, não é?
DF: O que é que você pensa sobre a vinda de
computador pras crianças, esse negócio todo?
LR: Ah, sim, então, acima desse computador é o que a
gente vê hoje é que a tecnologia ela vai derrubar um
pouco, assim, um pouco da tradição indígena. Aqui na
comunidade, uns tempos atrás os alunos faziam dançar
muito a parixara, de vez em quando apresentavam fora,
hoje não, hoje já pa- raram de dançar parixara. A tradição
já tá ficando pra trás, estão esquecendo. Então, já assim da
tecnologia, os alunos vão começar a fazer curso agora, a
gente vai fazer curso de informática. Antão vão com
certeza abrir outras ideias, vão ter outras ideias na frente e
vão esquecer da tradição indígena, hoje.
DF: Mas pode-se fazer alguma coisa, não pode?
LR: Pode sim, mas tem que ter uma pessoa daqui, de
dentro de casa. Se não tiver uma pessoa de dentro de casa
pra vir puxando isso aí ela vai esquecer, né? Assim, a tecno-
logia hoje é boa pra todo mundo, porque a gente vai,
como eu estou falando, vai abrir a mente, vai abrir a
memória, vai abrir benefício pra cima do estudo. Daqui pra
frente, prin- cipalmente o computador, aí você vai, o aluno
vai estudar, daqui um tempo ele vai arrumar um emprego
Projeto: Panton 2
em cima disso
2 Projeto: Panton
aí, pra se beneficiar. Então, acima disso, eu acho que a cultura
vai sendo esquecida.
DF: A cultura local...
LR: ...local. Se não tiver uma pessoa, assim, que persista
pra estar puxando essas informações, ela vai ser esquecida
[...]. Uma pessoa empenhada, mas só que de um tempo
pra cá ele tem esquecido um pouco porque tem muito
trabalho, é reunião pra um lado é reunião pro outro. A
vovó era a única pessoa que puxava esse trabalho, mas ela
já tá idosa, tá bem velhinha, não aguenta mais estar
ensinando os alunos. Então, eles vão partir pra informática,
hoje. Dia 27 vai começar o curso, então as crianças, os
alunos vão entrar na nova era, né, pra comunidade. Então,
mas é bom pra cultura indígena hoje,
DF: Mas é bom arrumar um jeito de ter as duas coisas...
LR: Manter os dois, né, porque uma evolui direto, né, e
a outra não. Uma se mantém. Se não tiver aquela pessoa
pra estar mantendo aquela tradição, ela vai sumir e a
tecnologia, ela vai todo dia, ela vai evoluindo, né? É assim
que eu vejo essa questão da tecnologia pra hoje. É bom
pra todo mundo, porque o Brasil hoje, o Brasil não, o
mundo, né, todo dia muda a tecnologia e tem gente que
diz que quem não acompanha a tecnologia é cego e tem
que estar sempre informado.
DF:[...] você tem uma opinião formada sobre a questão
Raposa, hoje? O que você acha disso, o que você pensa?
Consegue entender o que tá acontecendo direito?
LR: Assim, da Raposa Serra do Sol?
DF: Eh, em relação a ela.
LR: O que eu vejo assim, tem os direitos de como eu
tava falando, um direito de todos, de cada um brigar pelo
que pre- cisa, de adquirir essa conquista. Com certeza eles
vão fazer com que elas sejam ocupadas de forma como
devem ser, né?
DF: O senhor tá falando dos indígenas...
Projeto: Panton 2
LR: Dos indígenas. Através dos não índios, assim,
porque antigamente, eles, brancos, falavam que eles iam
em paz
2 Projeto: Panton
com os brancos, com os índios, mas isso é menos verdade,
porque hoje tem indígena que tem prova disso, né, como o
próprio papai mesmo trabalhou, não sei quantos anos com
os brancos e nunca deram um couro pra ele morrer em
cima. Então, hoje não, alguém já abriu a visão do indígena,
e isso não é correto, estamos sendo escravizados, estão
usando a força dos índios pra crescer, não é?
DF: Outro dia saiu uma entrevista no jornal, assim, por
escrito - Você conhece aquele tenente que lotou na II
Guerra Mundial, aquele taurepang, o tenente Paulino? Ele
tava meio indignado e falou o seguinte[...] “Por que que os
índios po- dem chegar em Boa Vista e entrar no meio de
todo mundo e por que, de repente, os brancos não podem
nem, às vezes, visitar uma comunidade?” Ele colocou isso
lá. O que você pensa a respeito disso?
LR: Assim, porque, eu penso que é dessa forma, é até
difícil de responder assim, porque o índio, ele anda no
meio de todo mundo lá porque certamente a gente não
conhece muito como andar, ainda mais se tiver mais
ameaçado que tudo aí. E o branco não, quando ele chega
lá, ele vai lá pro meio do indígena, o pessoal já fica de
antena ligada: “Quem é essa pessoa diferente aqui no meio
dos índios? Ele tá caçando alguma coisa.” Quando ele tá lá
é porque tá querendo outra coisa, tá interessado em
alguma coisa.
DF: É porque a gente não pode chegar na comunidade
e entrar dentro dela, não é?
LR: Eh.
DF: Quer dizer, a gente não pode, mas o índio pode
entrar em qualquer local. E era ele mesmo, que é indígena,
perguntando isso, ele não reponde também não, ele só faz
a pergunta.
LR: Eh, um pouco difícil pra responder, mas o que eu
penso mais ou menos é isso.
DF: Então, tá certo.
LR: É imaginação, mas a pergunta é difícil mesmo.
DF: É difícil, não é?
Projeto: Panton 2
LR: Isso. Hoje nem todos os indígenas estão entrando
em certos lugares, porque tem muita gente com raiva do
indígena por causa da Raposa, não é? Às vezes, ele não é
nem da Raposa, mas quando se vê um índio já pensam que
é da Raposa, porque hoje em dia só falam na Raposa, só
falam em Raposa. Às vezes o cara não é nem de lá.
DF: Hoje em dia parece que só existe Raposa.
LR: É mesmo, todo indígena é da Raposa, hoje.
DF: Então, tá certo. Obrigado.
2 Projeto: Panton
Projeto: Panton 2

Projeto: Panton pia’


Entrevistada: Sebastiana Peres dos Santos (SP)
Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)
Assistente de Entrevista: Lucimar Sales (LS)
Local: Santa Rosa, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR
Data da Entrevista: 11/10/2008
Transcritora: Ana Maria Alves de Souza
Conferência de Fidelidade: Airton Vieira e Devair Antônio Fiorotti
Copidesque: Airton Vieira e Devair Antônio Fiorotti
Duração: 23’’10’’’
2 Projeto: Panton
2 Projeto: Panton
DF: Qual é seu nome?
SP: Meu nome é Sebastiana Peres dos Santos.
DF: Tem quantos anos, Sebastiana?
SP: 44.
DF: Você é de qual etnia?
SP: Macuxi.
DF: A primeira língua que você falou era o quê? Era o
macuxi ou foi a língua portuguesa?
SP: Eu sou macuxi, mas não sei falar, só sei mal é portu-
guês mesmo.
DF: Qual o nome do seu pai?
SP: Meu pai já é falecido, o nome dele era Moisés dos
Santos.
DF: E de sua mãe?
SP: Julieta Soares.
DF: Os dois eram macuxi também?
SP: Não, meu pai era wapixana e minha mãe macuxi.
DF: Você nasceu aqui em Santa Rosa mesmo ou...
SP: Não, eu morava na Santa Inês, mas Santa Inês é
região do Amajari.[...]
DF: Você veio pra cá faz muito tempo?
SP: De lá pra cá eu estou com 21... 21 anos aqui.
DF: Aqui?
SP: Sim.
DF: Certo. Você é casada?
SP: Eu tive marido 17 anos, e estou separada há 8 anos.
DF: Ah... Tem filhos?
SP: Tenho. Eu tive sete filhos, perdi dois, agora estou
com 5.
Projeto: Panton 2
DF: Tá com 5 filhos. Uma coisa que você já falou, que é a
parte da língua, você não aprendeu. Os seus pais falavam?
SP: Meu pai falava e minha mãe fala também.
DF: Ela fala ainda?
SP: Fala.
DF: Ela fala macuxi, porque ele é que era wapixana...
SP: Eh, ele era wapixana. Minha mãe é macuxi.
DF: Como você vê essa relação com a língua, hoje? O
fato de você ser macuxi e de repente não saber a língua,
isso atrapalha, ajuda?
SP: Não, assim, se eu soubesse falar a língua macuxi,
pra mim seria um prazer, porque minha mãe nunca me
ensinou, desde quando... porque eu tenho assim pra mim
que a pessoa aprende a falar quando tá crescendo,
aprende a falar, né. Já vai falando até quando, depois de
velho... Assim, que eu já vim estudar foi aqui, e não
consegui mais. Não consegui mais falar.
DF: Fluentemente.
SP: Isso.
DF: Você só entende algumas palavras?
SP: Algumas coisas ainda, mas não são todas não.
DF: Aquela questão das histórias da comunidade, os
mitos... a gente fala mito, mas pra muitas comunidades é a
própria história, não é?
SP: É.
DF: E a sua mãe falava pra você, não falava essas histó-
rias, assim, de Macunaima... nem sei se nessa comunidade
tinha isso.
SP: Não.
DF: Essas narrativas, assim.
SP: É que ela falava, assim demais, de lá da Santa Inês,
onde eu morava.
Projeto: Panton 2
DF: Ahã. E o que ela falava, você lembra?
SP: Lembro. Ela falava assim, que de primeiro, aqui, não
tinha muitas doenças como estão tendo agora, e a gente
não tinha (eles lá, né, que eu ainda não tinha nascido), não
tinha hospital, quando a pessoa adoecia era o pajé que
tratava. As pessoas procuravam mais o rezador, porque o
Pajé é um, e o rezador é outro e principalmente sobre os
dentes também, porque as pessoas não usavam esse
creme dental de hoje e tratavam os dentes com pimenta
malagueta.
DF: Com a pimenta!?
SP: Sim. E carvão. E fazia aquelas goldas de mirixi pra
passar nos dentes.
DF: Golda de mirixi, o que é?
SP: Assim, tirar a entrecasca de mirixi e fazer aquela
água, coava e fazia.
DF: E, por exemplo, a gente vai a muitas comunidades,
até mesmo pra conhecer, e tem muitas histórias de
animais, de bichos que falam.Chegaram a contar essas
histórias pra você ou não?
SP: Eh, chegava sim.
DF: Você lembra de alguma?
SP: Eu me lembro duma história que ela contava pra mim.
DF: Qual?
SP: Ela contava que isso é... hoje eu conheço esse
rapaz, só que ele ... lá minha mãe falava que no tempo
duma festa tinha um monte de raposa, e essa raposa se
transformou em uma pessoa e carregou um menino. A
mãe dele tava dançando, com o pai, assim, aí quando
foram procurar o menino na rede ele não tava. Aí fez dois
dias, juntaram todo mundo e foram procurar. Ele tava
numa loca. E ele tava só carrapicho, mas hoje eu conheço
ele, esse menino, ele já é velho, mas conheço ele.
DF: Então, a história é verdadeira mesmo?
2 Projeto: Panton
SP: É verdadeira mesmo. Eh, eu conheço esse menino.
Raposa, foi a raposa que carregou ele, ele tava numa loca.
É, hoje eu conheço esse rapaz. Já tá é homem. Ele só tava
carrapicho, ele tava assim numa loca.
DF: Ahã. E, por exemplo, se ouve muito falar em
história daqui de cima: da mulher que se casou com
Guariba. Já chegou a ouvir?
SP: Não.
DF: Histórias desse tipo você não...
SP: Não.
DF: Você acha importante o resgate dessas histórias? O
que você pensa a respeito disso?
SP: Eu acho, assim, importante, porque aqui, depois
que eu passei pelo Santa Rosa, cheguei, nós procuramos,
assim, eu ajudei também a pesquisar esse pessoal mais
velho que nós tivemos uma história... pra gente levar pra
um estudo, porque eu estudava de primeiro, agora não
estudo. Aí eu achei muita coisa interessante. Interessante,
porque hoje a gente faz a festa até na [palavra
incompreensível]. De primeiro não, era batendo lata, era
no fogo, era essa de Natal que passava, era muito
importante. Eu acho demais, e hoje é completamente
diferente, e principalmente sobre as doenças. Eu trabalho
11 anos na área da saúde. Eu viajo muito pra fazer a
remoção, fazer pra lá, porque, de primeiro, quando essas
histórias que eu leio assim, que eu dou conta, de primeiro
não tinha. E mesmo ficou bom, agora você tem transporte,
porque, de primeiro, eles levavam a pessoa na rede pro
hospital, porque só tinha hospital no Surumu. A gente
levava na rede, ia de carro de boi.
DF: E demorava, levava um tempo.
SP: Demorava mais. Hoje não, assim, já que chegou
mais doença, só que ficou melhor por causa dos
transportes, porque já tem o avião, tem o carro. Embaixo
tem uma pista bem ali assim, mas só quando... assim,
graças a Deus que não tem essa doença muito...
Projeto: Panton 2
DF: Muito grave.
SP: Grave. Só uma vez que foi uma pessoa que faleceu,
porque... sempre eu tava subindo, então é assim mesmo, a
gente leva pra Pacaraima.
DF: Me diz uma coisa: você é da área da saúde. Já ouviu
falar em Canaimé, não ouviu?
SP: Que?
DF: Canaimé?
SP: Já.
DF: O que você sabe sobre isso? O que você pensa?
SP: Eu acho que Canaimé, sempre eu falo... Canaimé,
pra mim, é uma pessoa que ele se pinta de tinta do mato e
se cobre com couro de alguma coisa. Porque a gente me
fala assim, que o Canaimé, ele é um parente indígena, que
ele faz, ele tem a puçanga dele, que faz pra gente não ver
ele. É mesmo que em Boa Vista. Em Boa Vista são os
malandros, que os brancos chamam. Aqui já é o Canaimé.
DF: Tá certo. Você já atendeu algum caso aqui? Por que
dizem que ele faz mal às pessoas sem as pessoas merece-
rem, não é?
SP: Eh. Não, eu já vi lá na Santa Inês onde eu morava.
Tinha um senhor, ele foi daqui. Tinham feito um serviço,
tinha caxiri (você sabe o que é caxiri, de mandioca?)...
DF: Sei.
SP: Estiveram, aí ele foi pra lá, aí toda hora ele saía,
toda hora ele saía, toda hora ele saía, e a gente tentando
acompanhar e ele não deixava ninguém acompanhar ele.
Aí quando foi no outro dia, ele já amanheceu já doente. Ele
já tava com folha dentro dele, pelo ânus dele, por aqui
assim. Ele morreu no outro dia, ele tava só fazendo,
evacuando só sangue, aí ele faleceu. Ele chegou e aí o pajé
bateu folha e disse que foi o Canaimé que tinha malinado
dele. Eu vi, aí eu vi mesmo, que depois que ele faleceu, aí
eu fui lá na cova. Mas eu era ainda cunhantã?
2 Projeto: Panton
DF: Cunhantã? [risos]
SP: Ainda era.
DF: Outra coisa: tem uma pergunta que eu faço, que eu
mesmo não tenho resposta pra ela, eu tenho mais é
dúvida. Por exemplo: como você se sente? Você é de
origem indíge- na. Ao mesmo tempo você é brasileira, não
é?
SP: É.
DF: Ao mesmo tempo tem uma legislação que diz que
os indígenas são donos das terras deles. Não é ser dono, é
que a terra é da União. Mas ao mesmo tempo essas terras
sempre foram dos indígenas. Eles podem interferir nas
terras só até certo ponto, não é? Eles não podem chegar e
querer arrancar pedra, levar pedra, porque tem que ter
autorização. Como você vê isso tudo?
SP: Eu fico assim, é como eu entendi, eu vejo que as
terras são dos indígenas, mas pra mim não era proibido
tirar nada. Assim, se fosse eu, a poderosa, eu deixava tirar,
porque todo mundo precisa. É assim.
DF: E como você se vê como indígena e brasileira? Você
passa por preconceito, não passa, já passou alguma vez?
SP: Demais, preconceito como indígena já passei
demais. Assim, têm os outros que têm preconceito com o
índio, as- sim, como eu indígena já passei...
DF: Que tipo de preconceito?
SP: Não, assim, porque quando eu viajo, sempre eles fa-
lam, assim... que eu não sou caboca, né, que eu sou
indígena. Eles falavam que tinham preconceito com
caboco, porque caboco sovinava terra, não sei o que, não
sei o que... aí eu no carro senti que eles estavam com
preconceito comigo. Tinha vez que eu não respondia,
porque ia muita gente e... Aí eu não respondia... Quer
dizer, que eu não era caboca, aí eles diziam pra mim: “A
senhora é índia!” “Índia? Você não é índia, porque índia
não tem o cabelo enrolado... você é caboca!” Eu disse que
não, que eu não era caboca, que eu era índia, índia. Ele
Projeto: Panton 2
disse que não, porque índia não andava
2 Projeto: Panton
de roupa, andava nua, não tinha brinco, não tinha nada. Eu
disse que não, que eu uso tudo isso na minha roupa, mas o
meu sangue é de índio.
DF: E o que é ser índio?
SP: Ser índio pra mim é índia macuxi, como eu sou, mas
só que hoje eu não ando mais nua, né, porque eu já sou
índia aculturada, mas eu sou índia... eu me orgulho, a
minha mãe é índia macuxi, meu pai é wapixana. [...]
DF: E histórias sobre lendas, de Macunaima, só ouviu
contar, não ouviu? Ou só conhece por outros?
SP: Não, só ouvi mesmo contar histórias de Macunaima...
DF: Na sua época, já passou por alguma iniciação? Por
exemplo: os meninos, em algumas comunidades, quando
eles vão se tornando rapazes, eles fazem cortes nos braços
pra...
SP: Não, não, passei não...
DF: Isso já tinha acabado.
SP: Já, já tinha acabado, mas só que existia sim.
DF: A sua mãe contava alguma coisa que acontecia?
SP: Contava.
DF: Você lembra?
SP: Ela falava que quando a pessoa ficava... ela tinha a
menstruação pela primeira vez, ela se pintava toda e ficava
no quarto até quando ela ficava boa. Ficava lá.
DF: E depois?
SP: E depois saía. A primeira vez que ela ficava menstru-
ada era assim.
DF: Mas isso, praticamente não existe mais, não é?
SP: Não existe mais não.
DF: Mais alguma coisa, Sebastiana?...
SP: Porque hoje eu tenho minha sobrinha que... eu tenho
Projeto: Panton 2
uma filha que já tem um filho, essa que mora comigo, aí eu
vejo minha sobrinha todo mês assim, só verificando, eu
não sei quando elas estão menstruadas, assim, elas se
escon- dem, sei lá, todo tempo. Porque de primeiro não
era assim não, porque a minha mãe fala assim, quando eu
fiquei pela primeira vez menstruada, ela não deixava eu
comer nada doce não, e nem assim, por exemplo, fritura.
Ela mandava matar o veado e mandava o meu pai... eu não
comia, assim, o churrasco, assim porque eu ia, ficava
panema, o homem e a espingarda, era assim, não comia.
Mas ainda cheguei nisso assim...
DF: Não comer?
SP: Não, meus pais não deixavam eu comer, assim,
quan- do eu tava menstruada, comer o churrasco que
mandavam pra nós.
DF: Eh, eu já ouvi contando que é muito forte essa
relação com a menstruação.
SP: Não podia andar de cavalo, nem tomar banho no rio.
DF: E por quê? Falaram por quê?
SP: Do cavalo?
DF: É.
SP: Do cavalo, porque o cavalo morria.
DF: O cavalo morria?
SP: Eh, ficava magro, aí morria.
DF: É como se a mulher contaminasse as coisas...
SP: Isso. Era assim. E a mulher, não sei agora, a mulher
quando tava grávida também não ia lá onde os bichos co-
miam. Quando matavam uma coisa, se a mulher grávida
fosse lá, ele não via mais [risos] eu não sei nem se isso é
verdade, mas não deixavam, não.
DF: Só mais uma coisa. E sobre a puçanga?
SP: Ah! puçanga pra poder...
2 Projeto: Panton
DF: Isso!
SP: Nunca passaram em mim não, mas eu já ouvi falar
que tem muita puçanga pra pessoa ser... ser caçador.
DF: E o que é puçanga? O que significa a palavra puçanga?
SP: Puçanga é assim uma plantinha, uma planta. Aí
faziam chá de umas plantas, mas tem a planta pra caçador,
pra ter até mulher. Tinha um até que me falou que o pai
dele fez assim puçanga, né, pois até tucandeira ferrar ele
debaixo da língua pra ele ser bom de mulher...
DF: Pra quê?
SP: [risos] Ser assim, bom de mulher?
DF: [risos] Ah, bom de mulher! E qual é essa puçanga?
SP: … é tucandeira, tucandeira, ferra debaixo da língua.
DF: O que é tucandeira?
SP: É uma formiga.
DF: Ah...
SP: Mas dói...
DF: Debaixo da língua?
SP: Debaixo da língua, dizem que pra ficar bom de mu-
lher [risos]. Mas agora eu não sei qual é, [se dirigindo a
uma pessoa ao lado]: Ele deve saber qual é, mas tem dois
tipos. Será que é igual? Sei que tem gente que faz
garrafada pra gripe, não sei o que... pega, cozinha, faz
aquele mel. Puçan- ga é plantada, é nome de uma planta,
não, estou falando que tem tantas plantas, mas tem uma
puçanga pra aquilo. Como assim? Eu quero uma puçanga
pra ser bom de homem: tem. Pra eu ser bom de caça: tem
também. Pra eu ser bom de pesca, assim, tudo tem...
puçanga, mas só que tem um nome. Não faz a puçanga,
assim, de rapazes. De primeiro, eles cortavam [aponta pros
braços], aí faziam a puçanga pra eles terem força, assim
quando for brigar, pra ser...
DF: …ser guerreiro.
2 Projeto: Panton
SP: Eh.
DF: E você tem alguma opinião formada sobre essa
ques- tão da Raposa? O que você pensa a respeito disso?
SP: Não, não...
DF: É tão complicado que a gente não sabe o que é
certo ou o que é errado, né?
SP: Tem tanta coisa de errada...
DF: Eh, não sabe não. Você tem religião?
SP: Tenho. É católica, católica.
DF: Desde sempre?
SP: Desde sempre. Mas chega um monte de gente pra
mim, pra eu ser evangélica, né? Mas até agora eu não quis
trocar não, eu sou católica mesmo. Eu sou meio macuxi e
wapixana... já sou macuxana!
DF: acuxana!?
LS: Mas você escolhe se quer ser macuxana, macuxi, ou
não? Como é isso?
SP: Não, pra mim é porque o meu pai e minha mãe, é
tipo...
DF: É por isso que ela falou macuxana.
LS: Que é uma mistura.
DF: É [risos].
SP: Porque é meu pai e minha mãe... aí eu não posso ficar
só de um lado.
DF: Justamente.
SP: Fico dos dois.
DF: Então, tá certo, é mais ou menos isso mesmo. Tem
alguma outra história que você queira contar?
SP: Não. Não tem, não.
DF: Qual é a coisa mais triste que já aconteceu na sua vida?
Projeto: Panton 2
SP: Ah! Coisa mais triste tem demais, acho que sou a
pessoa mais sofrida do mundo, eu.
DF: Então, conta o que foi mais triste?
SP: Eu perdi dois filhos meus e meu outro, três anos se-
guidos. O primeiro foi um filho meu que eu perdi de 20
anos, mataram ele, né? Aí o segundo, a minha casa
queimou com tudo e eu fiquei só com a roupa do meu
corpo mesmo, né? Eu não sabia nem como assim, quando
meu filho morreu, não, porque ficou tudo na minha casa,
eu tinha como... mas quando a minha casa queimou eu
não tinha nem como recomeçar. Era minha casa lá! Aí
quando queimou, queimou mesmo tudo, não sabia nem
como começar minha vida de novo. Eu não sabia mais,
assim, deu vontade de desistir...
DF: Mas, pelo visto a senhora tá aqui hoje e bem forte,
não é?
SP: Iche, demais.
DF: E qual foi a coisa mais feliz?
SP: A coisa mais feliz foi que eu ainda estou aqui depois
de todas as coisas que eu passei. Muita gente me chamava,
conversando demais pra eu largar tudo pra lá e me
conformar com meu filho que tava aqui e com o pessoal da
comunidade com quem eu trabalho. E eu acho que eu
estou mais feliz, porque eles gostam muito de mim, do
meu trabalho. Acho que eu nunca, eu penso que nunca fiz
mal pra ninguém. Feliz de estar com minha mãe, conhecer
minha mãe, né? Apesar de ter perdido minha casa consegui
tudo que eu tinha perdido. E hoje já estou na minha casa.
DF: Guerreira!
SP: Guerreira.
DF: Puçanga que fizeram pra você foi boa. Então, tá certo.
Eu queria agradecer, obrigado.
SP: De nada, qualquer coisa...
2 Projeto: Panton
Projeto: Panton 2

Projeto: Panton pia’


Entrevistado: José Vitor da Silva (JV)
Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)
Local: Comunidade Guariba, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR
Data da Entrevista: 20/03/2009
Transcritora: Ana Maria Alves de Souza
Conferência de Fidelidade: Airton Vieira e Devair Antônio Fiorotti
Copidesque: Devair Antônio Fiorotti
Duração: 1’13’’16’’’
2 Projeto: Panton
Projeto: Panton 2
DF: Qual o nome completo do senhor?
JV: Meu nome é José da Silva.
DF: Ah! José da Silva.
JV: Eh, José Vítor da Silva.
DF: Ah, José Vítor, só que conhecem o senhor por seu
Vitor. Bem, e qual a idade do senhor?
JV: Eu tenho 60 anos.
DF: Qual a etnia?
JV: Eu sou de 1940, 48.
DF: O senhor é macuxi?
JV: Eu sou macuxi.
DF: Tá certo. A primeira língua que o senhor aprendeu
foi o português ou foi o...?
JV: Não, a primeira língua, quando eu nasci, quando eu
aprendi a falar, foi o macuxi mesmo. O português eu
aprendi a falar depois de sete anos, eu aprendi a falar. Foi,
branco me levou da casa do meu pai. Eu tava com sete
anos, aí aonde foi que eu aprendi a falar português, só que
nunca estudei.
DF: Ah! Sim. O senhor nunca foi à escola?
JV: Nunca fui. Naquele tempo não existia escola. Escola
teve quando eu tava com, parece, eu tava com 14 anos,
quando chegou o primeiro colégio, chegou no Maturuca, o
primeiro colégio chegou.
DF: E o senhor nasceu em qual comunidade?
JV: Eu nasci na comunidade da Pedra Branca, lá na fron-
teira da Guiana com o Brasil, ali pra serra.
DF: O senhor falou que foi viver com os brancos com 7
anos?
JV: 7 anos.
DF: Como foi essa história?
JV: Não, ele me levou pra criar com ele lá, pra trabalhar,
2 Projeto: Panton
trabalho de garimpo. Aí esse que acabou de me criar ele
trabalhava muito de roça, roça de plantio de arroz, milho,
ma- caxeira, aí trabalhava de horta, a gente criava porco,
criava galinha, criava tudo nesse tempo. Então, onde eu
trabalhei, começamos a trabalhar. Ele dizia assim: “Olha,
meu filho, eu vou te ensinar a trabalhar, porque um dia
você vai ficar homem, vai ficar homem porque você vai
formar família.” Daqui pra lá você já tem, você já sabe
trabalhar, você já sabe se virar pra si mesmo. Eu não vou
lhe ensinar a roubar e nem mentir, eu vou te ensinar a
trabalhar. E também eu não vou te botar no colégio
porque não tem colégio. Se tivesse colégio eu te botava
pra estudar também, aí daqui já saía formado.” E como
não existia colégio, então eu passei, eu fiquei desde sete
anos até arrumar mulher, essa mulher velha aí. Essa é a
primeira mulher que eu arranjei, arrumei mulher com 16
anos, essa mulher aí.
DF: Aí estão juntos até hoje?
JV: Até hoje vivo com ela. O pessoal gostou muito, que
eu morei também no Surumu. Quando eu casei com ela
que vim de lá, ela morava lá no Surumu. Tem muito conhe-
cido dela que quando eu fiz 40 anos de casado, aí fizemos
aniversário do casamento, aí os conhecidos dela foram.
“Ah! José, esse é a primeira mulher que você arranjou?”
“É a primeira mulher.” “Vocês nunca se largaram?” “Não.”
“Nunca procurou?” “Nunca procurei não.” “Rapaz, que
bom rapaz, é bonita essa história. Mas nem ela também...
vocês não brigam não?” “Não. A gente briga assim...”
“Mas você nunca bateu nela?” “Não. De jeito nenhum. Pra
que bater em mulher, mulher também é gente.” Eu não
maltrato ela não. E até hoje nós estamos aí. Então, quando
me casei, casei em 66, me ajuntei com ela, foi em 66, aí até
hoje nós estamos aí. Eu casei no padre, foi no dia 7 de...
não, no dia 4 de fevereiro de 1967, casei no padre com ela.
Nunca casei no civil, mas casei no padre. Até hoje nós
vivemos. Produzimos doze filhos, mas morreram oito, aí
nós só temos quatro, um menino e três mulheres.
DF: Um menino e três mulheres.
Projeto: Panton 2
JV: Eh. Morreram oito.
DF: Mas quando era novinho ainda?
JV: .Eh. Quando nascia, morria; quando nascia, morria.
Com dois dias, três dias morria um pra ser criado. Até que
esses aí se seguraram, estão aí comigo, estão tudo aí
comigo. Até hoje nós estamos aí vivendo junto com ela.
DF: Qual o nome do pai e da mãe do senhor?
JV: O nome da minha mãe, finado meu pai, o nome dele
era Noberto, Noberto Souza Silva. Minha mãe, Maria
Martina da Silva. A minha mãe ainda é viva, o meu pai
morreu em 2004, meu pai morreu.
DF: Tá certo. E qual a religião do senhor?
JV: Minha religião é católica.
DF: O senhor é católico.
JV: Eh,.católico. Eu nasci, como diz a história, eu nasci
no católico e vou morrer no católico mesmo. Eu não troco
de religião. Porque muitos dizem que só é um Deus, então
ninguém pode ficar trocando de religião.
DF: Sei. E qual a coisa mais feliz que o senhor viu até hoje?
JV: A coisa mais feliz que eu vi até agora na minha vida,
a gente vive assim no meio dos outros, vive em paz, com
tan- ta amizade, considera os outros como amigo, como
irmão, como irmã. A gente chega em qualquer casa, a
gente tá tudo em paz, junto, né?...
DF: Bem recebido...
JV: Bem recebido. Eu gosto de todos os companheiros.
Como eu tinha falado muito pros brancos, às vezes em
casa chega branco, chega preto, chega índio, chega tudo.
Aí eu converso, aí conto uma história, “Olha,
antigamente...”; aí o pessoal: “Conta a história assim, do
que aconteceu anos atrás...”, conto tudo. Aí, mas uns
dizem que eu estou falando besteira, mas eu conto tudo.
Aí minha mulher fica piscando pra um assim: “Não, por que
tu conversa muito assim?” “Não, porque eu tô contando
história...” Eu não estou esculham-
2 Projeto: Panton
bando ninguém, aí eu conto, aí vou embora. Conversar, eu garimpar...
gosto de conversar muito. Se eu pudesse conversar uma
JV: Não consegue parar
noite todinha eu conversava. Aí eu fico assim mentindo,
não. Só que eu parei, eu parei.
né?
Por esse tempo nos povoaram
DF: [Risos] E o senhor sabe a história da fundação da aqui. Nesse tempo o
comunidade? transporte
JV: Quando eu cheguei aqui em 67, já tava fundado já,
aí.
DF: Já tinha.
JV: Já tinha. Eu cheguei aqui foi em 67. 68 eu cheguei
aqui. DF: Então, o senhor já morou em vários lugares?
JV: Eu morava aí no Surumu. Passei, passei 30 anos. Já
estou com 12 anos aqui, mais de 12 anos. Eu passei aqui,
professor, quando eu cheguei nessa região do lavrado aí.
Quando acabei de casar, eu fui pra Venezuela, em 67.
Passei 9 meses por Santa Elena. Aí, tempo que mataram
um [dia- manteiro] no garimpo, lá pro Paú, estavam
retirando todos os brasileiros pra fora, pra cá. Aí eu vim
junto. Nós viemos duzentos garimpeiros da Venezuela, nós
viemos por aqui. O varadeiro era bem por aqui assim.63
Aqui era mata virgem, não tinha nem sinal de gente
morando aqui não.
DF: O senhor trabalhava no garimpo?
JV: Trabalhava no garimpo, eu me criei no garimpo.
Como eu estou dizendo, eu me criei no garimpo. Tava no
garimpo, pra lá, quando fomos expulsos. Nós varamos
aqui, de pés, aqui, andando na pernada, que era caminho
de boi, por aqui assim, ele varava por aí. Faz tempo, não
era BV-8, era Divisor.
DF: Divisor?
JV: Eh, Divisor o nome do lugar. Morava o Alcides Lima,
aí.
DF: Garimpa até hoje?
JV: Não. Até hoje garimpo fechou tudo. Não pode mais
nem pensar em garimpo mais não.
DF: Dizem que quem garimpou não consegue parar de
Projeto: Panton 2

63
Aponta para a mata ao seu redor.
do Surumu lá era a FAB. Não existia nem carona porque não
existia nem carro.
DF: Qual era o transporte?
JV: Avião, aqueles aviões da FAB.
DF: Ah! Da FAB, Força Aérea Brasileira.
JV: Eh. Força Aérea Brasileira. Daqui pegava gente,
todo tempo pousava aqui. Aí nós fomos pra pegar, os
outros [ga- rimpeiros] que iam pra Boa Vista, foram pra
pegar avião. Aí, daí, fui embora pra casa, fiquei não,
morava já aí.
DF: Chegou a garimpar no Tepequém?
JV: Não, nunca cheguei a conhecer não, até hoje não
che- guei a conhecer. Mas no Maú eu trabalhei muito. Eu
peguei muito dinheiro e não tenho nada na vida até hoje.
Eu digo, todo mundo sabe já que eu peguei muito dinheiro.
Eu era, sempre sabia o que era dinheiro; assim, mesmo os
meus pais de criação, que eram diamantários, roubaram
muito dinheiro, não davam nem metade do dinheiro,
compravam as fazendas, tudo. Aí eles também morreram
sem nada também, acabaram tudo. Aí, até hoje arranjei
mulher e estou com ela aí. É minha vaca que eu comprei
com o dinheiro de diamante né? [risos]

DF: E as histórias dos antigos, o senhor tem alguma his-


tória pra contar?
JV: Histórias antigas?
DF: Eh.
JV: Só dança da história deles, que dançam, né? Anti-
gamente o finado vovô e vovó faziam muito festejo. Hoje,
parentes estão, diz que estão por aí fazendo briga por essa
Serra do Sol, que já estão fazendo aleluia. Isso aí não era
dança de guerra não, isso era dança de festa deles. Faziam
festa por tempos, não o modo de briga não, não era de
guerra. Era festejo deles no tempo que faziam festejo de
Natal, assim como hoje. Assim como existe hoje, tem
festejo de março, tem carnaval, tem dia das mães, tem a
Projeto: Panton 2
fogueira,
2 Projeto: Panton
tem São Pedro, tem Santo Antônio. Naquele tempo eles
faziam ao mesmo tempo, e eles tinham um mês de festa.
Aí convidava o chefe deles, assim: “Rapaz, tal lugar nós
vamos fazer festejo grande, vamos convidar tantas
comunidades...” Naquele tempo não se falava comunidade
também. “Então faz o pajuaru, faz o pajuaru aí”; aí tinha
pajuaru, tinha tari- paiuá, bebida deles, ficava forte. Aí
marcavam um, aí faziam um bilhetinho deles, fazia um
cordão assim de olho do buriti; aí dava nó; aí dizia.
“Começa hoje”, começa isso aqui tal dia, aí tudo avisava
até domingo, até chegar aquele dia do pra- zo marcado
deles né, naquele dia que vão lá pra festa, né? “Aqui, tal
dia nós vamos chegar”, aí chegava naquele dia. Aí
começavam beber, aí começavam dançar já a tal de aleluia,
tinha tal de tukui, tinha tal de parixara, esses músicos deles
que eles dançavam.
DF: E o senhor sabe alguma música daquelas ainda?
JV: Não.
DF: O senhor lembra?
JV: Não, eu não estou dizendo que eu nunca aprendi! Aí
eles dançavam, festejavam a noite toda, faziam roupa de
olho de buriti, assim. Aqui estavam fazendo, fabricando
aqui pra apresentação. Não sei se eles ainda têm por aí.
Faziam chapéu de olho de buriti. Aí eles dançavam,
pintavam com uma pitada de jenipapo, ficava roxo,
pintavam por aqui, tudo pintado. Aí o que é que eles
faziam? Aí tinha umas carreiras pra peitar nos outros
também. Nesse meio do festejo deles, eles faziam pra
peitar nos outros.

DF: Como era?


JV: Ficava só de calção, tiravam a camisa. Aí se
pintavam, aí ficavam assim, umas dez aqui na chegada, as
pessoas vinham correndo de longe, lá da Boca da Mata,
vinham correndo pra peitar no outro. Aí outro ficava
esperando lá, ficava já pronto. Rapaz, eles não vêm
brincando não, vêm pra peitar com força. Aí chegava de lá,
aí tava assim espe- rando, quando pensar que não: “Tá!” Aí
Projeto: Panton 2
se ele fosse forte, se segurava. Pegava ele, não sei como
eles faziam força. Aí
2 Projeto: Panton
tinha força, quem tinha força não suspendia não, aí
precisava vir mais cinco ou seis pra poder suspender só
um, porque ele tinha força. Eles lutavam, arrastavam um
por aqui assim na cintura dele, arrastando ele aí porque ele
fazia força. Sei que eles lutavam muito, até suspender ele.
Aí quando suspendiam ele, pronto, acabou. Aí vinha outro
de novo.
DF: E isso era pra chegar na festa?
JV: Era pra chegar na festa. Aí, até que tá bom. Aí
dança- vam a noite toda, cantando aleluia, cantando tucui,
aleluia, tudo. Agora tinha uma ordem: “Olha, pra vocês
quando conhecer menina, não é pra mexer com menina
não, se for pego com a menina pode fazer casamento dele,
logo.” Aí se for pego com a menina, já saíam casados de lá.
DF: [risos] Ah é!
JV: Eh. De primeiro, eu digo assim, antigamente até eu
conheci, naquele tempo a mulher não usava calcinha né,
calcinha dela só roupa mesmo. Como foi que a velha disse:
“Rapaz, tu não tem vergonha de dizer não?” O peixe era
criado sem loca. Mas, então naquele tempo não usava, só
chegou agora, poucos tempos apareceram essas calcinhas.
Naquele tempo não existia cueca também. Existia só cal-
ção. Primeira cueca do homem era o calção, primeira cueca
quando chegava, quando eu conheci no garimpo, mas era
só depois, já apareceram essas cuecas, calcinha pra
mulher, quando apareceu. Agora hoje, criança nasceu, com
meia hora já tem uma calcinha nela, né?

DF: [risos]
JV: E quando tá com dez anos, já tá tarada, já tá ficando
buchuda, isso que tá acontecendo hoje. Tudo eu digo
assim, né, que tá acontecendo isso. Pois é, antigamente
eles dan- çavam assim. Aí passavam dois, três dias ficavam
bêbados, e ninguém não abusava, eles não brigavam não.
Aí ia acabar a festa, ia embora. Aí outro tempo, já outra
comunidade ia fazer outra festa, já a tal de parixara, né?
Agora, o negócio de aleluia era pra ser visto no Natal, dia
24, 25, eles dançavam muito esses daí também, eles
Projeto: Panton 2
dançavam muito.
2 Projeto: Panton
DF: Sim.
JV: E acabou. Hoje acabou.
DF: E, por exemplo, história de macaco, de alguma
coisa, o senhor sabe?
JV: Não... História de macaco, tem muita história de
macaco, né...
DF: Assim, alguma lenda. O senhor sabe alguma, já
ouviu falar?
JV: Tem. Nunca ouvi falar dessa de macaco. Tem essas
de macaco, muito, mas eu não sei contar bem não. Tem a
do jabuti também, né...
DF: Então!
JV: Tem o Jabuti, diz que enganava onça, né?
DF: Como?
JV: Só tinha um bebedor. Aí história começa com a do
macaco. Só tinha um bebedor. Aí, jabuti tava lá, destar que
tinha uma onça no bebedor. Demorou, Jabuti não aguen-
tou mais de sede, né, aí apareceu lá. Aí a Onça velha “tan”,
pegou. Aí: “Ah! compadre Onça, o que tem de comida pra
gente comer, tô com uma fome” “Ah! Compadre, não vai
me comer não, rapaz. Não vai me comer, não.” “Tô com
fome. Tava só esperando boia pra chegar aqui pra mim
pegar; tu apareceu, vou te comer agora.” Aí tinha um pé
de buriti, assim: “Então pra mim não escutar teu dente
dentro do meu casco, quebrando, tu me leva lá no pé de
buriti, aí me quebra todo e tu me come; aí não escuto
zoada do teu dente valente.” Aí, Onça velha foi lá no buriti,
aí “pá”, escapuliu, não quebrou não, aí mergulhou dentro
d’água. Aí onça tava lá esperando jabuti boiar, Jabuti
nunca boiou, foi pra outro canto. Lá aparece o Macaco de
novo com sede, aí pega o Macaco de novo. Aí Jabuti fala:
“Olha, compadre Macaco, tem uma Onça aí que tá só
esperando pra comer a gente. Eu enganei ela dizendo que
ia quebrar casco no pé de buriti, mas não quebrou não. Eu
caí e mergulhei, aí eu vim boiar
Projeto: Panton 2
aqui.” “Eu vou enganar ela lá.” Aí ele foi. Aí tava bebendo
água, aí pegou ele: “Ah! Macaco, eu vou te comer. Jabuti
me enganou, agora eu vou te comer.” “Não rapaz, como é
que tu vai fazer? Me pega pelo rabo assim, me roda assim e
me joga lá, pra mim bater no pau, pra não escutar teu
dente na minha cabeça.” “Tá bom.” Aí ele pegou assim,
jogou no pau, pegou no pau lá dentro. Aí Macaco foi
embora. Só tinha um bebedor. “Agora, dois me
enganaram. Agora, como que eu vou beber água agora?”
Aí ele entrou, achou um abelheiro, né, se melou de mel
todinho, se melou lá. “Eu vou beber água agora.” Aí se
melou de mel, chegou lá se encheu de folha, o Macaco. Ele
já tinha ido duas vezes. Aí chegou lá. “Ah! Compadre
Folharal, agora eu vou te comer. Macaco me enganou, eu
vou te comer.” E o [Macaco Folharal falou]: “Eu não sou
Macaco não. Aqui não tem nada pra tu comer não, eu sou
magro.” “Não, eu te como assim mesmo, eu tô com
fome.” Aí pegou de novo. “Agora eu vou fazer assim o
mesmo que tu fez com o Macaco. Tu me leva...” Lá ele joga
de novo; escapuliu e foi embora. Lá, ele correu atrás dele
lá, aí entrou no buraco do tatu assim. Entrou no chão. Aí tá
lá, no buraco, pelejando pra tirar. Peleja pra tirar e nada. Aí
chamou urubu: “Ei compadre Urubu, tu fica aqui vigiando
esse buraco aqui que o Macaco Folharal tá aí dentro; que
eu vou buscar ferramentas pra mim cavar.” “Tá bom,
então pode ir.” Aí foi embora atrás de coisas dele pra
cavar. Aí ele chegou, não, aí ele apareceu, aí Urubu tava lá.
Aí o Macaco: “E aí compadre Urubu, o que é que tu tá
fazendo aí?” “Rapaz, eu tô vigiando aqui que o compadre
Onça deu ordem aqui, ele foi buscar as coisas dele pra tirar
o Folharal que tá aí dentro.” “Sou eu que estou aqui
rapaz.” “É tu é?” “É, mas tu arregala bem os teus olhos
assim, porque se tu não arregalar bem teu olho, assim, eu
vou sair e tu não vai nem me ver. Tu arregala teus olhos
bem assim e fica bem perto do buraco com os olhos
arregalados, aí tu vai me enxergar quando eu sair.” Aí ele
pegou um pouco de barro lá, aí quando ele arregalou os
olhos dele, aí “tá”, ele jogou areia nos olhos dele, barro
nos olhos dele. Aí ele saiu e foi embora. Olha aí a história
2 Projeto: Panton
do compadre Folharal. Aí a Onça chegou: “Cadê, ele tá aí.”
“Rapaz, ele tá
Projeto: Panton 2
aí.” Aí cavou o buraco, o lugar mais limpo. Folharal já tinha espantou, a
ido embora. Mas era mesmo ele, o Macaco, só que ele se
melou com o mel, né, aí se enrolou na folha e ficou cheio
de folha. Acabou já a história do Macaco. Uma história que
eu estou concluindo até hoje...
DF: [risos] Dá saudade?
JV: [risos] Matando a saudade. Pois é, professor, é
assim a história...
DF: E história do Macunaima, o que é que o senhor
sabe a respeito, que o senhor ouviu contar?
JV: A história do Macunaima com aquele irmão dele. O
irmão dele era o Anaipê,64 do Macunaima, do Insikiran,né?
Do Insikiran, eles andavam muito por aí. Aí irmão dele,
esse Anaipê era danado, era danado, ele andava em todo
coisa que não prestava, né? Aí o irmão desse, o Insikiran
dizia pra ele: “Meu irmão, deixa de estar fazendo danação
rapaz, tu morre!” “É nada. Não vai acontecer nada
comigo, não. Eu sei o que eu tô fazendo.” Aí acharam um
buraco onde morava um camaleão muito grande. Aí: “Eu
vou cavar esse camaleão, mano, pra mim, pra nós comer,
pra...” “Não rapaz, deixa ele, ele é brabo...” “Não, eu vou
cavar ele!” Aí foi cavar ele. Aí lá esse camaleão comeu ele,
engoliu ele. Agora o que esse Insikiran faz? “Agora comeu
meu irmão, eu fiquei sozi- nho.” Aí cava o buraco, até que
achou camaleão lá dentro, camaleão grande que tinha
engolido o irmão dele. Aí lá ele matou o camaleão, partiu o
camaleão, e o irmão dele tava lá dentro inteiro, tinha
engolido inteiro, já tava morto já, né? Lá ele trabalhou,
rezou, aí lá levanta de novo esse irmão dele: “Rapaz, mas
tu é muito teimoso. Eu não disse que ia te engolir. Você é
muito teimoso...” “Não, eu só queria malinar de ti fazendo
isso.” “Mas não faça mais uma coisa dessa não, meu
irmão, porque tu só fica me dando trabalho.” Lá foram de
novo. Aí tinha esse tal de Mapinguari, aí tava lá. “Mano,
umbora empurrar uma pedra.” “Rapaz, deixa aí, o Sol vai
escurecer, vai escurecer aqui pra nós.” “Não, eu vou
arrumar uma pedra.” Aí tinha uma pedra em falso assim
em cima dele, aí empurrou a pedra. Quando ele se
2 Projeto: Panton

64
Anaipê é conhecido em geral por Aninkê.
Projeto: Panton 2
pedra veio “pá”, aí matou o Curupira. Lá escureceu, aí eles
estavam no escuro. “Rapaz, você é muito danado.” Aí lá
fez trabalho de novo pra clarear. “Mas, você é danado!”
Então, assim a história desse Macunaima né, que eles
chamavam Insikiran e o irmão dele era Anaipê né, história
deles. E fize- ram tanto aquelas serras, serra do... Aquelas
pedras por aí que tem, aquelas pedras de carapanã foi eles
que fizeram; aí aonde mexe com essas pedras, aí dá
carapanã. Aí tem pedra de pium, aonde fizeram, pedra de
pium mesmo, fica ali, aí quando mexe com ele, com pedra
de pium, aí dá muito pium. Foi eles que fizeram isso. Esse
era armação do irmão dele, desse Anaipê que fez.

DF: Eram três?


JV: Eram três. Era Macunaima, Insikiran e Anaipê, né?
Eram três. Até hoje essa história do Macunaima com o
Anaipê, com o Insikiran serviu pra oração pra tratar gente
doente, que os parentes índios rezam, desde esse tempo
né? Tudo coisa que irmão dele ia fazendo, tudo ia
levantando irmão dele. Às vezes o irmão dele morria,
engolia, matava, todo tempo, os bichos engoliam ele. Aí
irmão dele pegava ele, tirava de dentro, aí fazia ele ficar
vivo, fazia ele ficar vivo. Até hoje serve de oração. Quando
a gente tá fazendo oração tem que chamar o nome dele:
do Insikiran, Macunaima...

DF: O senhor conhece alguma oração?


JV: Eu sei oração.
DF: E pode falar ou não?
JV: Eu posso falar, mas o senhor não vai entender né?
(risos) Não tem problema não?
DF: Tem não.
JV: Então, assim que eles se chamam. Então, hoje é
meu filho, assim, meu filho adoece, de susto, qualquer
coisa, meu filho, criança, né? Aí tá doente, aí papai vai
dizer: “Meu filho tá doente, o que ele tem?” Aí vão olhar, aí
tá bom, aí eu rezo assim:
2 Projeto: Panton
Urî sane tî, urî sane tî Insikiran pia
Sene moi’ e’tarîmo’tî pî wai tî piri’ya enato’pe
Î’ pî iteparan era’tisa, o’ma ya ira’tisa, paran ya
yapî’sa
Yannanî pî pî wai tî urî tî Insikiran pia tî
Insikiran pia ya imasa’kapî mantî,
Anike pia ya i’masa’ka pî mantî
Makunaimî pia ke imasa’ka pî wai tî,
tumasi yenî pan nî pî’ wai tî,
Kumi ya wanî tî ke, yennî pan nî pî’pi wai tî,
i’masa’kapî wai tî
Inîrî piri ya para wanî ton pe para, i’masa’kapî wai tî,
Urî tî Insikiran pia, Anike pia se tî,
Makunaimî pia ke i’misa’kapî wai tî
Inîrî piri ya para enato’ pe para i’masa’kapî wai tî
urî sane tî
Insikiran pia se tî.

[Eu sou eu, eu sou eu filho do Insikiran.


Estou rezando este menino pra ele ficar bom,
Porque a doença virou nele, bicho virou ele, doença
pegou.
Fiz ele melhorar. Sim, sou filho do Insikiran.
O filho do Insikiran fez ele levantar, filho de Anikê
fez ele levantar.
Com filho de Makunaima fiz ele levantar, fiz ele
comer.
Com puçanga fiz ele ficar esperto, com Makunaima,
com puçanga,
Com minha comida, com minha peneira.
Com meu mel fiz ele ficar bom.
Fiz ele levantar pra ele nunca mais ficar doente,fiz
ele levantar.
Sou eu filho de Insikiran, filho de Anikê, filho de
Makunaima.
Fiz ele levantar, para nunca mais ele ficar doente.
Fiz ele levantar, sim, sou eu filho do Insikiran.]

Quando homem diz que é pia, né? Quando é mulher,


menina, diz Insikiran pasi. Assim, oração dele. Então, desde
quando ele levantou esse irmão dele doente, foi engolido
pelo bicho, tudo ele ia levantando. Até hoje serve de
oração.
DF: E a tradução é mais ou menos como?
JV: Uhn?
DF: A tradução pro português.
Projeto: Panton 2
JV: É porque diz assim: “Eu estou levantando esse
nene- zinho que tá doente, [como é o nome?] com esse
Insikiran, Macunaima, e com ele mesmo que estou fazendo
saúde dele, chamando meu nome, chamando o nome do
meu irmão, nome do outro irmão mais velho, que é o
Macunaima [que o senhor falou]. Daí são os três que estou
chamando que daí foram trazendo, e já devolvendo e já
tirando a doença dele tudo, voltando pra eles melhorarem a
situação dele, como ele tá”, que ele tá dizendo assim, né? É
assim que até hoje serve pra oração, esse Macunaima,
todo mundo sabe essa oração.
DF: Ah é?
JV: Eh, tudo, não é só eu não. Eu aprendi com eles, com
os antigos, eu não disse que eu não aprendo muito, mas eu
aprendo oração.
DF: Sim.
JV: Aprendi essa oração pra doente, pra curar doente.
DF: Tem mais alguma história que os antigos contavam,
que o senhor já ouviu e que possa contar pra gente?
JV: O finado vovô contava história... Como eu tava
dizen- do, esses portugueses que carregaram os índios
daqui de Roraima, eu não sei dizer que ano, que tava
dizendo agora. Esses portugueses vieram, eu não sei de
que ano, mas vie- ram muitos brancos, eles vieram de
navio. Saía, não sei se o senhor conhece lá no Normandia,
tem a que se chama Casa Branca, aí que era ponto do
navio, quando chegavam os por- tugueses. Aí começaram
carregar criança de 10 anos, de casal, todas malocas
pegaram, aí levaram pra Manaus, [Portugal], carregando lá
pra ilha da Baixa da Amazônia que ficaram por aí. Até hoje
existe ainda. Aí levaram, aí já foram carregando, aqueles
que levaram primeiro estudaram, botaram pra es- tudar
pra lá; aí serviram o quartel, tudo serviram pra lá. Aí já no
final, com os tempos, aí já começaram a carregar de 20, já
de anos, aí já começaram a carregar já os outros que
ficaram. Já pro final, eles estavam começando já carregar o
papai já, o velho. Os restos dos filhos dele que foram
2 Projeto: Panton
primeiro, que já eram soldados, aí falavam pra ele: “Olha,
quando...” Aí,
Projeto: Panton 2
naquele tempo os antigos eram ligeiros, eles não tinham
medo não, eles quando pra flechar um, eles se armavam
ligeiro, eram treinados. Hoje não tem mais, hoje tem gente
civilizada, ficaram medrosos. Todo mundo tá vendo que
eles ficaram todos medrosos. Aí não sabe nem mais lidar
com esses problemas que estão tendo hoje, mas
antigamente não. Aí, tinham uns soldados assim, esses aí
tudo têm medo, se flechar um deles, eles não vão pegar a
arma deles não: “Quem flecha ele? Mas não vão me flechar
não!”, que era parente dele, né? Aí o primeiro que
flecharam era ele, aí de repente acabavam com ele. Finado
vovô mostrou lá pra cá do Normandia, tem uma tal de
fazenda, fazenda Baiano, cá pra Serra, perto do
Normandia, aí começaram a matar ele. Aí tinha outro
boqueirão que chamava [...], pra pegar, chegar aqui no
rumo do morro; também mataram muito pra aí. Eu vi lá os
ossos dele. Mais pra cá da serra do Caranguejo mataram
outro, também. Aí ontem mataram um aqui na subida da
serra da Pedra Branca. Aquela serra faz assim que tem
uma subida, tem uma maloca que ela tá cheio de osso de
branco lá, último que mataram. Eh, por que é que eles
mataram? Por causa do pai deles, [como é], filho deles que
foram pra lá e que levaram, que já estudaram e serviram, aí
já trouxe- ram eles pra já pegarem o resto deles; mas foi o
contrário, disseram que ele tinha medo do pessoal deles
que estavam pegando, ele tinha medo. Aí agorinha
acabaram essas histó- ria do branco. Aí isso, minha
cunhada que era amazonense, que estudou nesses
colégios que o senhor trabalha, aí eu falei pra ela: “Não,
existiu isso mesmo!”, que tem livro deles dos alunos, tem
história deles. Existiu, e ela fala.
DF: Que vieram pegar as pessoas aqui?
JV: Eh, que tem história de verdade, que aconteceu isso
daí.
HM: Seu José, o senhor falou sobre o Mapinguari. O se-
nhor poderia contar um pouco sobre ele pra gente?
JV: Esse Mapinguari se chama Taitei. Ele mora na mata,
2 Projeto: Panton
pai da mata né, daí ele chama Taitei. Pode ver que tudo que
Projeto: Panton 2
é fumaça que tem por aí na mata, tudo é ele que faz na
mata. Esse Taitei é um bicho assim cabeludo, que nem
arma ou de tiro, assim, não mata ele não. É tudo cabeludo
uma vez que eu mostrei ele bem por aqui que nem bicho,
careca pelado assim, assim um bicho que faz, gritando por
aí. Ele grita na mata quando ele tá sozinho por aí. Só na
mata, ele grita. Um bicho que ele é muito difícil a gente
ver, mas quando ele ataca, ele aparece e grita
“huuuuuuuu!”, ele grita. Agora só que já tá tudo
desmatado, tá muito longe por dentro dessas matas. Tem
uma moradia dele por aí, o Mapinguari; os macuxis
chamam pra ele Taitei.

DF: Taitei.
JV: Pois então.
DF: E ele faz o quê?
JV: Ele mesmo, ele uma pessoa, mas só que ele é um
bicho encantado.
DF: É um bicho encantado.
JV: Bicho encantado que vive na mata também.
HM: O senhor pode descrever ele pra gente, como é
que ele é?
JV: Não, ele é gente mesmo, ele é gente, completamente
gente, mas só que ele cabeludo.
DF: Ele faz maldade, alguma coisa?
JV: Ele não faz não, ele não faz maldade não. Ele mora
mesmo por aí, pra espantar os outros, por aí.
DF: E sobre o Canaimé, o que é que o senhor sabe?
JV: Canaimé, é gente mesmo, rabudo, né? É como tem
bandido na cidade, então esses daí são Canaimé, chama
Kanaimî.
DF: Kanaimî?
JV: Kanaimî, que nós chamamos Kanaimî, em macuxi.
Kanaimî anda de muito, não andam de pouco não, anda de
2 Projeto: Panton
quarenta, anda de trinta, anda até menina, mulher deles,
anda com eles pra pegar homem, assim. A gente, eu estou
trabalhando ali, aí eles estão aqui, aí estamos trabalhando,
fazendo a roça. Aí o que é que ele faz? “Aí tu se apresenta
lá pra ele.” [Diz] pra menina né: “Enquanto tu se
apresenta pra ele lá, aí tu convida ele pra fazer relação
contigo. Aí então tu faz, tu segura ele com força que nós
vamos pegar ele lá!” Aí apresenta menina lá. Ele anda com
menina. Aí enquanto a gente fala pra ele lá, aí ela encontra
o homem, que homem [não tá] cismado, aí pega ele, se ela
agarrar aí já vem e encosta, o rabudo velho. Aí pegam ele,
aí quebra ele todinho. Eles tiram bumbum da gente
enfiando a faca, eles tiram bumbum, assim. Aí costuram lá
dentro aquela tripa da gente, lá o resto do bumbum, fica a
costura. Aí eles cortam a piroca da gente, corta, corta
língua. Às vezes eles furam, pinicam todinha a língua,
todinha com espinho. Aí passam cuspe na boca da gente
assim, aí a gente olha, vai bonzinho daqui, não vai sentindo
nada, quando chega na tua casa, aí já vai logo, dá febre em
você lá na casa.
DF: Dizem que a pessoa não lembra.
JV: Não lembra não. Aí chegando você não diz nada,
você sabe, lembra, mas só que não conta pra sua família.
Lá doente, morre.
DF: Pra poder contar tem que fazer o quê?
JV: Tem que lavar água de pilão.
DF: Ouvi falar.
JV: Eh, água de pilão, lava água de pilão. Bota água,
lava pilão, aí dá pra pessoa. “Ah! Mas se tiver vivo, conta”,
mas tem gente que morre na hora, mas sempre conta
também. Assim, tem é muito desse que vem da Guiana.
DF: Vem da Guiana?
JV: Vem da Guiana.
DF: Já me falaram isso também.
JV: Vem da Guiana, vem daquelas serras, pro lado do
Bonfim. Ali só tem parente rabudo pra lá. Aqui nessa faixa
2 Projeto: Panton
da Venezuela tem; pra Guiana tem; tudo vem de lá.
DF: E eles fazem por fazer, não tem motivo nenhum.
JV: Sem motivo nenhum. Às vezes é assim, eles trazem
trança de peneira, jamaxim, abano, essas coisas assim, al-
gumas coisas que eles trazem, panela, lá vindo da Guiana,
eles trazem. Aí eles vêm vender a troco de uma rês. Vamos
dizer: eles tem uma rede, e querem uma rês, aí: “Ah! não,
tal dia nós vamos pegar, a gente deixa tudo fiado. Tá bom
nós vamos voltar.” E com poucos dias eles já vêm fazer
isso já, aí não tá nem esperando, tá devendo, quebram
dois, três por aí, aí vem embora, aí eles viram lobisomem
(nós chamamos oilubut, que vira bicho, aí vira tamanduá,
se transforma em tamanduá; transforma até na galinha, no
cachorro; até em mambira, tatu, tudo ele se transforma,
tudo bicho. Aí fica gritando assim, como imitando grito de
macaco, imitando pássaro, imita assim quando tá virando
lobisomem, nós chamamos assim no macuxi oilubut, que é
lobisomem no macuxi, oilubut.
DF: E iniciação de menino ou menina, como é que era
antigamente? Menina quando tá na puberdade, virando
mocinha, o que é que fazia antigamente?
JV: Antigamente, quando a menina se formava, era
mui- to difícil andar como hoje, não tem mais a lei, né? Hoje
já a menina se forma, como tava dizendo agora, a menina
hoje nasceu, com meia hora tá de calcinha, mas naquele
tempo a mãe da menina, e os curumim mesmo, não
usavam roupa primeiro, não usavam roupa não. A mulher
nascia, até mu- lher mesmo, até quando arranjava marido,
e naquele tempo [quando ia] arranjar marido, ela era
moça, não era como hoje que menina de dez anos não é
mais nada. Antigamente tinha, existia menina moça,
porque... não usava calcinha, mas tinha respeito, tinha lei
pra não coisar isso. Naquele tempo, era muito cuidado que
eles tinham quando a menina se formava. Aí diziam assim:
“Mamãe, já sangrei agora...” Aí cortavam o cabelo bem
curtinho assim, cortezinho assim, aí escondiam lá dentro,
aí só saía de lá depois de um mês. Aí guardado lá,
pendurado lá em cima, lá que a mãe dava [tudo]. Só tirava
escondido ela pra fazer xixi, levavam ela bem escondido
dos
2 Projeto: Panton
outros pra ela fazer cocô. Pra ela urinar era bem mistura com pimenta. Aí
escondido, ninguém não via não. Quando depois de um mandava pela venta, aí já
mês, quando ti- ravam de lá, que faziam... Aí tem esse pegava tudo assim, essas
urucum né, chama hoje de urucum que faz de coisa, pimentas,
colorau, esse daí. Apanhavam um bocado aí, misturavam,
fazia e dava pro velho rezar, pra poder levantar da rede,
levantar pra poder olhar os outros, pra poder andar com
os outros. E o velho rezava, aí tirava da rede, aí fazia, fazia
um cinturão de miolo de buriti, tinha mais isso ainda! Ele
botava, tirava esse daí, trançava um cordão assim: “Agora
cunhantã vai sair hoje.” E lavava ela por aqui tudo, nas
pernas dela, por aqui tudo. Aí tinha mais outro ainda,
molho de pimenta que passava por aqui pelos pés dela,
por aqui pelos olhos, tudo.65 Aí depois que passava esse
urucum, pintava ela tudo bem vermelho por aqui na
cabeça dela, por aqui no pé, tudo, pelos tudo pintado, pra
poder sair, né? [...] Hoje ninguém não faz mais: a menina
se formou, aí fica por aí mesmo, não tem mais respeito. Aí,
até antigamente... Por isso não adoeciam primeiro, não
adoe- ciam não, todo pessoal era sadio. Hoje a menina de
10, 12, tá adoecendo, tá desmaiando, porque não aguardou
a lei que o vovô, antigamente, eles guardavam, não existe
mais hoje, tá na civilização, não deixa né? Aí não tem
como.

DF: Sim.
JV: Né?
DF: E os meninos, tinha alguma coisa?
JV: Os meninos... Os meninos ficam rapazes, mas era
assim mesmo. Antigamente, os velhos criavam filho assim:
eles usavam muito, tal de puçanga. Usavam puçanga de
veado; usavam puçanga de jabuti; usavam puçanga de
capoeiro; usavam oração de tatu; de paca. Tudo tinha uma
parte, uma plantazinha como diz daí, eles usavam. O que é
que eles faziam? Os velhos, que eram pais deles, tratavam
as crianças, esses meninos, pra ser caçador, pra ser
pescador. Aí tem aquele, nesse mato por aí tem um
[jericazinho], ele corta que só. Aí tem aquele tal de, como
que chama?, um mato que tem por aí, aí corta tudo,
Projeto: Panton 2

65
Essas foram ditas e acom- panhadas por uma gesti- culação
indicando onde eram passadas a pimenta, o urucum..
2 Projeto: Panton
tudo eles passavam. Aí metia assim corda pela venta, aí
tirava, cortava tudo, tá tratando. Aí passava um mês, aí
levavam ele pra caçar, pra pescar, aí tá pegando peixe.
Pegando peixe aí. Por quê? Porque foi tratado, aqueles que
não eram tratados não pegavam nada.
DF: Pegavam não?
JV: Não pegavam, não. Aquele que não era tratado não
caçava, não enxergava veado, porque botava [pimenta],
planta nos olhos. Aí quando vai andando, tá olhando
veado: “Tem um veado ali.” “Mata!” Também eles não
comiam aquela caça que ele matou.
DF: A primeira.
JV: A primeira. Só comia já a terceira caça que ele
matava, que ele já podia comer; mas a segunda, primeira e
segunda ele não comia.
DF: O senhor sabe por quê? Tem alguma explicação?
JV: É porque, se ele comesse logo caça dele, que ele
matou, ele não matava mais, não matava mais, não
acertava mais tiro na caça. É por isso que era assim. Então,
esses meni- nos também, também tinham tratamento
também, pra fazer caxiri. Por que é que hoje caxiri não é
mais gostoso? Hoje se chama caxiri, chibé. Antigamente,
quando as mocinhas iam fi- cando grande, a mãe delas, avó
pegava aquele mel de abelha, aí queimava bosta de
cachorro, secava bosta de cachorro por aí, aí misturava, aí
pegava folhinha, corta né, aquelas folhas amoladas, aí
cortava a língua delas assim, mandava botar a língua pra
fora, aí cortava, tudo cortava, botava sangue pra fora, aí
deixava o sangue sair. Aí quando o sangue saía, parava, aí
mandava lavar com água, aí já queimava com esses
negócios. Já tinha pimenta malagueta por cima, aí
queimava tudo. Aí quando fazia caxiri, aí fazia um caxiri!:
“Agora mas- tiga beiju!” Então, é assim a história do
parente. Aí molhava um bocado daquele beiju assim, aí
molhava de molho, botava de molho assim, mastiga aquilo
tudinho. Aí como tinha o do finado velho Cícero que
morreu, o gaúcho, caxiri de boca, aí mastigava caxiri, aí
Projeto: Panton 2
botava na vasilha. Aí, massa tá cozinhan-
2 Projeto: Panton
do lá na panela, né?, tá no fogo lá a massa que faz caxiri. Aí
pegava essa outra coisa mastigada e misturava lá todinha.
Aí quando cozinhava tudo, tirava, peneirava. Quando dava
três horas, o caxiri tava bom de beber, já tava azedo já. Era
assim que se tratavam. É o trabalho de mulher fazer caxiri
ficar forte, azedo. Ficar apurando assim, tipo como estar
fermentando, né? Fermentando, é.
DF: Me contaram que é assim mesmo.
JV: Pois é assim mesmo. Hoje não usa mais, não tem
mais, não tem mais não.
DF: Hoje é diferente?
JV: É diferente, muito diferente. Antigamente tinha
uma cantiga da mulher, que o finado vovô cantava. Nesse
tempo não tinha motor, era ralo. Estão ralando mandioca
aqui no ralo, mandioca, aí estão ralando, e tinha a cantiga.
DF: E como é que era?
JV: Era assim, finado vovô cantava assim, diz assim:
Pîkakî sumari, pîkakî sumari, pîkakî
Wirisi yenpî’kakî, wirisi yenpî’kakî, wirisi
Sau, sal ta to’ pe sumari ya, pî’kaki wirisi
Sau, sau, sau, só.

[Acorda ralo, acorda ralo, acorda ralo. Acorda.


Acorda menina, acorda menina , irmã
Para o ralo dizer sau, sau, menina.
Sau, sau, sau, só] 66 66
Esses sons finais são ono-
matopeias do barulho
É mulher que trabalha com mandioca. “Mari.” é ralo, tá oriun- do do ato de ralar
mandioca.
mandando o ralo acordar pra fazer “sosó.” e pra ralar, pra
fazer ralo, aí diz assim:
Pîkakî sumari, pîkakî sumari, pîkakî
Wirisi yenpî’kakî, wirisi yenpî’kakî, wirisi
Sau, sal ta to’ pe sumari ya, pî’kaki wirisi
Sau, sau, sau, só.

Aí elas vão fazendo chiiiiii67, mulher tocando e chiiii,


chiiii, 67
Imita som do processo
ralar mandioca.
fica cantando, mulher cantando.
DF: Ela sai cantando e sai ralando.
Projeto: Panton 2
JV: É... Sai ralando. Só o que eu aprendi nunca esqueci
até hoje, e essa eu aprendi desde faz tempo, nunca que
esqueci dessa música.
DF: Dessa música.
JV: Dessa música, até hoje eu canto. Aí às vezes, aí eu
canto de manhã, quando um fala: “Esse velho já amanhe-
ceu doido de novo!” É que eu lembro né, aí os outros ficam
malinando aí...
DF: Sabe alguma outra música?
JV: Não, não sei não.
DF: Essa aí o senhor guardou, né?
JV: Só essa que eu guardei. Não sei por que não saiu da
minha cabeça. Eu escutei faz tempo quando eu era criança,
quando vovô cantava assim pelas festas. Pois é, só sei que
são assim minhas histórias.
DF: E o senhor já passou alguma vez por algum tipo de
preconceito, alguma coisa, por ser indígena? Como é que o
senhor vê os índios hoje, essas questões todas?
JV: Professor eu, quando me entendi nesse... Até 1970,
a gente vinha vivendo assim tudo em paz com os brancos,
nunca via briga lá atrás. Dizem hoje, dizem: “Ah! Por que
bran- co mata?” Como que eu estou dizendo que os
portugueses vieram pegar lá o pessoal lá, vieram pegar o
pessoal daqui né, há tempos atrás. Aí, mas de lá pra cá, nós
víamos aqui muito fazendeiro. Agora, fazendeiro batia na
gente por quê? Porque pegavam uma rês dele, sem pedir
dele. Até hoje ninguém não gosta né, pegar o que é da
gente, ninguém não gosta não. Então, branco criador,
quando índio pegava um boi dele, aí às vezes foi
descoberto, aí ia pegar e dava uma surra e botava pra
trabalhar de graça. Por quê? Pra pagar o que ele fez, não
era assim à toa. Então, nós vivemos até, quando eu
trabalhei com esse branco, eu trabalhei com esse meu pai
que me criava, ele era riograndense, do Rio Grande do Sul.
A mulher dele também era do Rio Grande do Sul, era Maria
Viei... Mariano Vieira. Aí no [município de] Normandia tem
2 Projeto: Panton
ainda família dele, esse Chico Vieira, o único irmão dele que vam, tratavam tudo, também
tem lá. Aquele pai do “Pipoquinha,”68 esse Mariano Vieira. caçavam, também pegavam
DF: Ah! Sim.
JV: É pai dele. Ele é meu irmão de criação, esse “Pipo-
quinha”, que eles dizem que é tocador, cantor, esse daí é
meu irmão de criação, ele. Eu fui criado com pai dele.
Então, naquele tempo, não existia encrenca com branco.
Meu pai trabalhou muito na serraria com os brancos
fazendeiros, trabalhava na serraria fazendo cercado,
fazendo curral. Meu pai nunca apanhou não, nunca sofreu
não, ninguém nunca sofreu. Então, quando fui trabalhar
com os brancos, fui traba- lhar com aquele Mariano Vieira
que falei agora, me criou com 7 anos [até 16 anos]. Corria
com mulher do poder dele né? Aí o que hoje eu vejo.
Então, de lá pra cá, nós, a gente vê muito tudo festejo de
Natal e aonde nós festejamos lá no - não sei se o senhor já
foi lá no Maturuca? Ali era ponto de gente. Antigamente,
os tuxauas eram respeitados, não tem tanto tuxaua miúdo
como tem hoje. Cada comunidade tinha, tem tuxaua hoje,
novo, curumim; antigamente era tuxaua velho, tuxaua era
respeitado, tinha umas espadas, até hoje não sei cadê
essas espadas deles. Umas espadas, eu vi lá na Serra do
Sol, lá na comunidade Serra do Sol de Roraima tem uma
espada. Uma mulher mostrou lá pro exército, essas
espadas, tempo de general Rondon. Deixou essa espada
pro finado pai dela. Quando estrangeiro chegar aqui em
Roraima, aqui no Brasil é pra mostrar essa espada pra esse
estrangeiro, que essa é a defesa do Brasil, que general
Rondon deixou pra ela. Aí no Maturuca a gente também
tem. Até eu procurei, por esses dias, essa espada, porque
ainda tá lá. Então, quando tuxaua lá era Melquior,
perguntava, convidava toda região, olha, Pedra Branca,
Uiramutã, Socó, Lilás, Morro, tal de Ma- cedônia,
Maracanã, Santa Maria, por aí, nessas malocas tudo, pra
tudo ir. Tinha uns fazendeiros, aí falavam com o patrão lá,
com o dono da fazenda, diziam: “Olha, nós queremos
umas quatro rês pra festejar.” Eles davam, eles davam as
reses, eles não vendiam não, eles davam. Aí eles cozinha-
Projeto: Panton 2

68
Aqui refere-se ao líder da Pipoquinha de Normandia, banda de
forró originária deste município.
2 Projeto: Panton
veado, peixe, jabuti, tatu, fazia logo. Todo mundo comia,
né? Aí nunca acontecia de maltratar com nós. Por que é
que tá acontecendo hoje? Padre Jorge chegou aqui em
1970, 69...
DF: Quem?
JV: Padre Jorge. Padre Jorge, que chegou aqui pra
fazer essa guerra aqui. Foi padre Jorge que trouxe essa
guerra. Antigamente os padres pegavam tudo. O padre
chegava na comunidade fazia batismo, fazia casamento,
era um padre mesmo que fazia casamento, não tinha
guerra não. Agora, em 69 o padre chega aqui em Roraima,
aí ele trouxe guerra. Foi o primeiro guerreiro, foi esse
padre Jorge, que chegou aqui em Roraima. Não tem outro
padre que trouxe guerra, não, foi padre Jorge que trouxe
essa guerra aqui em Roraima.
DF: Isso foi na década de 70.
JV: Foi na década de 69 que ele chegou aqui. Aí o que é
que ele fez? Esse padre Jorge andava nas fazendas dos fa-
zendeiros. Andava, passava semana na fazenda e tratavam
ele muito bem, porque ele era padre. Destar que ele tava
prestando atenção como ele vivia. Aí passava semana nas
co- munidades vendo a situação também dos parentes
também. Aí quando foi na de 70, 71, ele disse assim, ele
falou, eu sei bem lembrando dessa história do padre Jorge.
Ele fazia reu- nião nas comunidades, ele fazia assim: “Olha,
vocês botam os brancos pra fora, esses brancos não são
daqui não, esses brancos vem aqui, tá na custa de vocês
aqui, usando terra de vocês, criando gado pra eles com
vocês passando fome aqui”. Ele dizia né, padre Jorge:
“Quando vocês acabarem de matar gado dele aí, aí vocês
não vão precisar não, porque é de vocês, o gado é de
vocês.” Aí o pessoal tinha medo de matar gado. O finado
velho Jair tinha muito desse aí, eram quarenta e cinco mil
reses, era o maior fazendeiro que tinha em Roraima, que
tinha placa nº 01, maior fazendeiro aqui em Roraima. Aí
acabaram com medo. Começaram a come- çar. Aí tem
aquele motorista da FUNASA, meu primo Lauro, foi criado
com Jair, e ele apanhava muito quando ele era curumim. Aí
Projeto: Panton 2
então ele serviu o quartel, aí deu baixa e ficou,
2 Projeto: Panton
voltou pra lá; foi ele que começou a matar gado. Aí
chegava gado assim no terreiro, muito boi, vaca gorda, boi
gordo, aí falava pro irmão dele, pro Pereira que mora lá:
“Mano, me dá uma espingarda que tem um veado bem ali
assim.” “Tu não tá mentindo não, Lauro?” “Não, não estou
mentido que eu vou lá matar ele.” “Já foi embora.” “Não,
não foi não!” Aí pegou espingarda dele, aí foi lá [...]
pertinho assim, boi tava comendo no terreiro. Aí “pow”,
matou né. “Mas rapaz, tu matou!” “Não, rapaz, tá com
medo é? Umbora comer gado. Eu já apanhei tanto, por que
é que vou apanhar? Não vou apanhar mais não.” Aí, por aí
começou. Filho do velho Jair Alves tinha quarenta e cinco
mil reses, eles comeram dez mil reses do Jair. Aí Jair: “Já
que não estão nem mais tratando carne certo, estavam só
tirando carne numa boa e deixando o resto, aí quase todo
mundo entrou!”, ordem do padre Jorge. Aí, finado velho
Jair trazendo polícia, levando polícia, levando exército,
fazendo medo. Aí: “tá bom de vocês começarem fazer o
retiro ali, o gado vem pra vocês.” Aí quebraram forças dos
fazendeiros, aí já coligaram com Funai também. Aí Funai já
foi botando Polícia Federal em cima, aí retiraram
fazendeiro tudo. Até hoje estão tirando. Estão tirando até
hoje. Quem fez isso foi padre Jorge; mas antigamente
ninguém não vivia assim não. Porque quando fazendeiro
tinha um serviço, convidava: “Compadre, tem um serviço
pra fazer, um cercado, limpar terreiro...”. Eles não levavam
de graça, eles pagavam. Aí eles [os índios] falavam: “O
senhor me vende uma rês?” “Vendo, tanto. Então, tu faz
esse trabalho.” Aí vendia uma rês, aí pra trocar com sal,
pra trocar com roupa, tudo ele fazia. Naquele tempo era
difícil, não tinha roda de carro, hoje tem muita roda de
carro e estão querendo acabar? Então, era difícil. Nós
enchemos tanto de vasilha olha, o telefone bem aí,
qualquer coisa a gente corre aí. Aí não existia isso, chave
na porta, mas naquele tempo... Então, tudo existiu isso,
não maltratavam não, mas hoje eles dizem: “Não, porque
fazendeiro maltratava, batia muito nos índios.” Índio
nunca foi maltratado não, nunca foram mal- tratados não,
contrário, os brancos que ajudavam a gente. Agora, hoje é
Projeto: Panton 2
que nós vamos sofrer. Tem um senhor ali em
2 Projeto: Panton
casa, lá do Mutum. Por que tá saindo do Mutum? Porque
lá tá no sofrimento. Tiraram a vila lá do Mutum, não tem
mais branco, só tem dois lá, vão tirar energia de lá. Vão
tirar telefone de lá. Eles estão vindo pra cá, eles vêm falar
com o pessoal pra vir aqui na maloca, pra arranjar
transporte pra buscar, pra fazer mudança dele pra cá. Tem
muito deles que estão por aqui na beira da estrada aqui,
que estão morando. Tudo vem da região da serra, aí pro
lavrado, pra serra do Pium tem muito parente, estão
fugindo tudo pra cá. Por que é que estão fugindo? Por que
é que não ficam pra lá? Agora que eles vão sofrer. Lá tem
muita gente aposentada. Aqueles que não são
aposentados não têm sabão, não têm sal, não têm roupa.
Não tem mais branco! Estão pra retirar todo mundo daqui.
Pra onde nós vamos agora? Nós já esta- mos acostumados,
comunidade que hoje tá na civilização, nós comemos sal,
nós comemos tudo que o branco usa, que nós não temos a
fábrica de nada. Nós sabemos fábrica de farinha, de beiju,
pajuaru, e de rede de fio, mas de roupa, ainda não tem
fábrica de fazer roupa não, nem sal, não tem fábrica aqui,
não tem. Aqui andaram os técnicos de [...], pro pessoal
fazer, plantar cana, fazer açúcar, aquele pessoal que fez
curso aí pra fazer açúcar, fazer rapadura, tudo, mas não
estão fazendo, ninguém não tá plantando não. Por que
ninguém não planta, né? É que aqui não vem pra gente
como vem professor pra ensinar no colégio. Também a
gente pre- cisa pra ensinar a gente também, mas ninguém
não faz, por quê? Aí, da outra vez que nós fizemos, nós
trouxemos ele pra fazer, pra ensinar a fazer tudo isso.
Então, é assim que a gente vivia primeiro. Não tinha
maldade do branco não, a gente vivia tudo junto. Eu
participei da assembleia lá em Boa Vista, essa da ALIDCIR,
essa que o pessoal de Brasília veio. Uma mulher e três
homens, uma pequena gente aqui de Roraima, vieram ver
a situação desse pessoal que é a favor do branco, a
SODIUR. Aí falaram muito, aí você vê o documento que
nós falamos, esse documento aqui então, leva esse
documento aqui de volta. Agora, tudo nós temos
documento, porque disseram, Funai chegou aqui dizendo
2 Projeto: Panton
que nós somos os primeiros índios brasileiros daqui da
terra. Agora, por que é que nós não somos agora? “Terra
não é de vocês não, porque vocês são ocupantes de terra.
Índio não é dono de terra, ele é ocupante. Essa terra é de
União, não é de vocês não!”
DF: O que é que o senhor pensa a respeito disso?

JV: Eu penso que ninguém não tem direito mesmo. A


força tá aí, estão chegando, tá faltando respeito, ninguém
não pode fazer nada. Aqui nós discutimos com a Funai, ali
também no BV-8, sobre isso também. A Funai não dá nada,
não dá colégio, não tem saúde, não dá nada, só tá
ganhando dinheiro nas custas da gente, em nome do índio.
Não tem nada na vida do índio aqui.
DF: E o que o senhor pensa nessa questão da terra ser
da União e o índio só...
JV: Só pra ocupar a terra.
DF: Por exemplo, o senhor não pode fazer algumas
coisas, né?
JV: Não pode. Como que não podemos fazer?
DF: Bom, a lei não é assim que funciona? O senhor não
pode tirar terra daqui, pedra, pode?
JV: Pode não.
DF: Então, é essas coisas...
JV: Olha, aqui, aqueles parentes bem aqui no malocão,
ali embaixo...
DF: Sim.
JV: Aqueles são fiscais, é da Eletronorte, da associação
São Marcos. Ninguém não pode vender pedra, ninguém
não pode vender barro, ninguém pode vender areia, nem
palha, não pode vender nada. Eles estão aí. Se a gente tá
venden- do madeira, aí eles estão aí perto. Tomaram. Tem
até um senhor ali no Igarumã, com um filho aleijado, tava
com oito metros de tábua pra vender, pra comprar
alimento pro filho.
Projeto: Panton 2
Aí o parente, o próprio parente mesmo fiscal foi lá e disse:
“Você tá vendendo aqui?” “Não tô vendendo.” Aí
tomaram o trabalho dele. “Não, mas eu sou índio!” “Não,
você não pode vender nada não.” Tomaram madeira dele
pra lá. Aqui, o próprio parente tá contra a gente. Ele tá
ganhando dinheiro e nós não ganhamos nada. Agora, isso
que eu penso: como é que nós poderemos viver agora, do
garimpo? Quando me entendi no garimpo, como eu disse
pro senhor, todos nós tínhamos dinheiro, mulher tinha
dinheiro, curumim desse ta- manho tinha, porque vivia no
garimpo. Aí nesse tempo desse padre Jorge fechou esses
garimpos tudo, tudo ele acabou, tudo padre Jorge acabou,
tudo. [Depois veio] esse Jaci, esse pessoal tudo aprendiz
de Jaci. Aqueles chefes deles aí só vêm pegar o dinheiro
em nome de comunidade. Ninguém nunca vê ele, só vive
trocando de carro, todo ano tá trocando carro. Nós não
temos dinheiro, esse dinheiro vem com todo mundo. A
linha da Eletronorte passou aqui e deram não sei quantos
mil pra dar de seguro pras comunidades. Só uma pessoa
usou esse dinheiro, e hoje tá sumido. Hoje o pessoal tá
cobrando esse dinheiro, mas eles dizem que já pagaram.
[Parece que é assim mesmo], Jaci tá pegando dinheiro, lá
pelos Estados Unidos, por aí, com o nome de comunidade,
só tá só pra ele. Porque tá sofrendo por aí, tá sofrendo por
aí? Outro dia, ano passado, teve um irmão meu baleado
com uns tiros assim, na lavoura do Paulo César, mas que
ele veio procurar. Ele foi mexer com a área do homem!
Então, isso não tá de acordo, não.
DF: Sei.
JV: Garimpo fechou, apareceu tanto pilantra na cidade,
apareceu tanto ladrão. Por quê? Não tem mais aonde tra-
balhar. Na fazenda não tem mais fazendeiro pra trabalhar,
não tem mais garimpo. Como é que nós vamos viver? Só
tem dinheiro pro funcionário, né, que estudou, que
terminou estudo, pro governador, pra Funai. Pra esses
ladrões aí tem, pros padres tem dinheiro. Tem um senhor
aí que me con- tou, quando o primeiro dinheiro saiu aqui
em Roraima, pela Diocese, né, os padres lá, esse padre
2 Projeto: Panton
Jorge tava lá na terra,
2 Projeto: Panton
lá com o Papa, onde mora pra lá. Tem tantos mil milhões,
oferta dinheiro pra ajudar essa Diocese de Roraima. Davam
de cinquenta, cem mil reais de dinheiro aí por cada oferta
pra vir pra cá pra Roraima. Então, chegou muito dinheiro,
mas só que não deram gado pra todo mundo, gado ficou
todo pra lá. Pra lá eles têm muito gado. Parente fala que
tem muito gado. Aí ficamos sofrendo assim sem nada, hoje
tá na briga já, já demarcaram a área tudo. E aonde é que
nós vamos ficar agora? Aonde que nós vamos comprar
nossas coisas? É muito sofrimento, fica difícil. Aí passou um
militar aí, um senhor gaúcho falou: “Olha, agora vai ficar
ruim pra nós todos, não é só pra vocês não, pra nós todos
vai ficar difícil.”

DF: Nem pra um nem pra outro, né? Vou repetir uma
pergunta que já fiz e o senhor não falou: o senhor já
passou por alguma forma de preconceito por ser índio?
JV: Não.
DF: Nunca?
JV: Não, nunca.
PV: Sempre normal.
JV: Eh, sempre normal.
DF: Tá certo. Acho que tá bom, senhor Vitor.
JV: Eh, acho que é só isso mesmo que eu sei...
DF: Alguma coisa que o senhor lembrou?
HM: O senhor não falou sobre um momento feliz da sua
vida.
JV: Como?
HM: Um momento feliz na sua vida?
JV: Não, eu até agora eu vivo feliz na minha vida,
porque eu vejo assim sem perturbação de ninguém, que
eu vivo feliz, trabalhando.
DF: E um momento triste, uma coisa que marcou o
senhor muito, que o senhor viu acontecer e que nunca
Projeto: Panton 2
esqueceu,
2 Projeto: Panton
no garimpo?
JV: Eh, no garimpo eu vi. Eu fiquei muito triste, porque
eu vi duas mortes de faca no garimpo, quando trabalhava
no garimpo. Os parentes mesmo se esfaquearam, que eu
vi, foi muito triste. Eu vi o pessoal morto na beira do rio
assim, esfaqueado, foi muito triste. Conhecido, era meu
amigo que morreu. Eu fiquei muito triste no garimpo.
Agora, depois nunca mais, depois teve muita alegria no
garimpo porque pegava muito dinheiro, mas hoje não tem
nada. Como eu disse né, não tem nada.

DF: Entendo.
JV: Peguei muito dinheiro.
DF: Muito diamante?
JV: Muito diamante, naquela época era diamante, não
era ouro não.
DF: Sei.
JV: Peguei muito dinheiro. Se eu tivesse aproveitado
bem esse dinheiro eu seria milionário até hoje.
DF: Qual foi o maior diamante que o senhor pegou até
hoje?
JV: Sim eu peguei muito dinheiro, muito diamante.
DF: Mas o senhor pegou algum grande?
JV: Não, nunca peguei não, só mesmo os medianos, de
180, 170 pontos, 80 pontos, assim.
DF: Sim.
JV: De quilate.
DF: O senhor tinha muito parente no garimpo?
JV: Era mais indígena que trabalhava, era mais indígena.
Depois chegou muito pessoal de fora.
DF: Que veio de fora?
JV: Assim, cearense, maranhense. Mas o que mais tem
Projeto: Panton 2
é cearense, né?
DF: Sei.
JV: Amazonense é muito difícil no garimpo. Chegou
mais cearense, paulista também.
DF: E me diga uma coisa, o senhor sabe alguma história
do timbó, a história dele?
JV: Timbó?
DF: Eh, timbó, pescar né?
JV: É, tem timbó aí.
DF: Mas o senhor sabe alguma história, algum mito
atrás dele, narrativa, alguma coisa?
JV: Esse timbó, são três qualidades de timbó: tem
timbó “folha”, tem folha que é uma, uma folhinha mesmo
assim, uma folhinha redonda. Esse daí mata peixe
também, mas ele é zangado. Ele tem que pegar dois sacos
daquele, aí ma- chuca ele todinho, calado, né? Tem um
pocinho assim cheio de peixe, aí machuca ele todinho, aí
ele, porque tem gente como o senhor ali. Aí ele manda:
“Vocês calem a boca aí, va- mos botar calado, sem gritar,
sem bater água.” Aí machuca todinho, aí bota, aí vai
botando no saco aquela golda dele todo, aí quando os
peixes estiverem boiando já começando a virar, deixa eles
morrerem né, não deixa ninguém pegar não, deixa ele
morrer primeiro. Quando estiver tudo ruim, morrendo
mesmo, aí eles começam a pegar. Quando gór- dio, que
eles começam a pegar, aí pega todinho. Mas antes,
quando ninguém obedecia ao chefe que tá mandando não
mexer, se mexer, os peixes ficavam todinhos, aí esse
timbó, essa folha, elas ficavam, a água ficava roxa todinha.

DF: Roxa?

JV: Ficava roxa tudo, porque zangou já, já zangou. Todo


ele é zangão. Essa raiz também chamam de timbó
também. Ele zanga também. Aí essa raiz, eles arrancam
muito essa folha, muito assim, trinta, quarenta sacos pra
botar no rio, no rio assim. Quando o rio é seco, aí bate
2 Projeto: Panton
tudinho, aí mesma
Projeto: Panton 2
coisa. Aí: “Bota aí todo mundo por igual. Deixa os peixes
morrendo aí, quando tiver aí, não vão flechar ele agora
não, fica com flecha, né.” Aí deixava morrendo, revirando
tudo, aí dizia: “Pode começar a ajuntar peixe.” Aí vamos
embora matando peixe aí, morrendo tudo, aí se mexer
também ele se zanga. Aí peixe fica bom todinho, não
morre não, não morre não. Tem outra que é chamada
“casca”, também tem casca que é igual sangue. Esse é
zangão também, tem que botar com muito cuidado. Aí
morre peixe, deixa morrer. Agora, quando peixe estiver
começando a morrer também, se mexer com ele também
ele fica bom todinho, ele zanga também.
DF: Entendo.

JV: É assim o timbó.

DF: Tem que seguir o que o chefe tá falando, né?

JV: Tem que obedecer ao que o chefe tá falando, se não


obedecer ele se zanga pra lá, aí a gente passa fome.
DF: Sei.
JV: Eh.
DF: Então, tá certo senhor Vitor.
JV: Ouvir dizer professor, que esse timbó tá servindo
pra diabetes?
DF: Eh? Não estou sabendo, não.
JV: Estão dizendo por aí que não é pra dizer pra
ninguém, mas estão dizendo aí pra Venezuela. Diz que pra
Venezuela...
DF: Estão usando.
JV: Já usaram esse timbó, essa raiz que tem na mata. Aí
lá condenaram ele de doente de AIDS, de diabetes. Então,
porque lá eles não tratam, quem tá condenado vai
embora, quem tá condenado morre pra lá. Aí, lá vai, aí
pega cipó que é esse timbó.
DF: Entendi.
2 Projeto: Panton
JV: Aí arrancaram: “Vamos logo tomar esse timbó que
Projeto: Panton 2
nós morremos aqui mesmo, nós já estamos sofrendo por
aqui.” Aí pisaram, aí tiraram aquela golda do timbó, tudo.
Aí tiraram um pouquinho assim, aí manda pro peito; aí des-
maiaram. Quando foi umas dez horas aí acordaram,
tudinho acordou, com fome [risos], com fome acordaram,
aí levaram pra comer tudo. Quem tava com AIDS também
provocou. Aí ficou tudo bom. Aí passou um dia, voltaram,
tudo bom. Aí foram pro médico, aí foram fazer exame, não
tinha mais nada. Aí perguntou: “O que é que vocês
beberam? Com o que é que se trataram?” “Nós nos
tratamos, nós tomamos golda de timbó.” Aí ficam
provando. Aí estão estudando pra fazer remédio pro
diabético, pra AIDS.
DF: Se for bom, que beleza, não?
JV: É porque esse aí a gente bota num igarapé desse,
mata piaba. Às vezes não mata tudo. Aí água fica limpa,
limpa, limpa; depois que a gente coisa né, limpa a água
bem limpa, o igarapé fica tudo limpo. Aí deve ser bom pra
remédio, aí eles devem estar provando esse.
DF: Tá certo. Se o senhor tiver uma história depois que
quiser contar pra gente, a gente volta.
2 Projeto: Panton

Projeto: Panton pia’


Entrevistado: Aprígio Ramos (AR)
Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)
Local: Comunidade Guariba, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR
Assistente de Entrevista: Huarley Mateus do Vale Monteiro
Data da Entrevista: 21/03/2009
Transcritora: Ana Maria Alves de Souza
Conferência de Fidelidade: Airton Vieira
Copidesque: Devair Antônio Fiorotti
Duração: 28’’35’’’
Projeto: Panton 2
DF: Qual o nome do senhor?
AR: Aprígio, Aprígio Ramos.
DF: Aprígio Ramos. Qual a idade do senhor?
AR: É sessenta, sessenta e oito, sessenta e nove.
DF: Sessenta e nove?
AR: É.
DF: O senhor nasceu quando?
AR: Em 1930, 39, por aí assim. Tá na minha identidade,
por aí assim.
DF: A etnia do senhor é a macuxi?
AR: É macuxi.
DF: Hoje na comunidade o senhor tem alguma função?
De tuxaua ou secretário, alguma coisa?
AR: Tem. Tem esse aí que passou, o tuxaua, né? Tem
outro irmão dele, o Alfredo, é segundo dele. Agora
secretário não tem não. Tem não.
DF: Mas o senhor tem alguma função hoje?
AR: [risos] Não entendo muito bem.
DF: A pergunta?
AR: Sim, português.
DF: Ah! Entendi agora.
AR: A função, função...
DF: O senhor representa alguma coisa na comunidade
hoje?
AR: Não. Apenas que sou membro.
DF: E o senhor chegou a estudar?
AR: Eu sei ler um pouquinho e escrever. Eu estudei, eu
estudei em 1940, em 49. No tempo da escola que
começou, na Escola Beteu no bairro Surumu. Estudei só
um ano só. Só aprendi a escrever meu nome e eu sei as
letras. Eu entendo
2 Projeto: Panton
as letras tudo, mas eu não sei. Eu tava com doze anos,
quan- do comecei a estudar, tava com doze anos, e eu não
69
Dentre os indígenas en- sabia falar português, eu entendia só gíria, 69 gíria, esse
trevistados, “gíria” refere- macuxi, né, eu falava só isso aí. Que meu pai, minha mãe
-se à língua nativa.
não sabiam falar nada; meu pai só falava gíria, então me
ensinaram a falar gíria. Aí quando eu entrei na escola, eu
não entendia português não; aí quando eu aprendi, recebi
o livro desse abecedário, aí eu aprendi. Eu aprendi ler antes
de aprender falar português. Eu aprendi ler livro; eu
aprendi mais ligeiro as letras. Depois foi aprendendo
português, pouco; entendia mais um pouquinho
português. Aí fui assim. Aí entendo mais português, pouco.
DF: Como é que era a escola naquela época? Qual foi a
dificuldade que o senhor teve?
AR: Porque acabou a escola. Parou. O missionário foi
embora, americano, na época, quando abriu a Escola
Beteu. Aí acabou, foram embora, voltaram os missionários,
foram embora pra terra deles. Aí ficaram as professoras,
eram bra- sileiras, de Boa Vista. Dona Levina, dona Edite
Barros, que era professora maranhense. Aí voltaram pra
terra deles, aí acabou, parou a escola.
DF: Parou a escola, né?
AR: Eh. Acabou. Quantos anos, não sei quantos anos
passou, aí ficou missionário Aroldo aí no Beteu. Sempre ele
caminhava pro Contão. Eu sou morador lá do Contão.
DF: Ah! O senhor é do Contão?
AR: Eh. Fui criado aí. Até quando nós tornamos a
aceitar os crentes, ser crentes. Era tudo bagunçado lá no
Contão, eh, tudo: vivia só na bebedeira, pajuaru, cachaça.
Cachaça morava assim perto, o comércio dos brancos aí,
tinha outro lá embaixo. Quando tomava pajuaru e acabava
pajuaru iam atrás da cachaça, traziam dois, três, garrafas e
bebiam; tudo na briga um com os outros, né? Vivia assim.
Até quando nós tornamos a aceitar a palavra de Deus,
assim, os crentes, essa Igreja Batista Regular, aí parou,
parou muito no Contão. Os velhos que entenderam a falar
assim gíria, a pregação do
2 Projeto: Panton
Evangelho, aí ficaram; tornaram mais ser crentes; entende-
ram mais; aí pararam com bebida; pararam mais com
bebida. Aí foi até quando eu vim morar pra cá, já tava
parada já a be- bida. Muitos não queriam parar, mas foi
deixando, deixando, deixando, e hoje parou, como até
hoje tá parado a bebida. Mas têm alguns que estão
bebendo mais, tem muitos que estão bebendo lá.
DF: Bebem ainda, né?
AR: Eh. Estão se matando, furando outro de faca, essas
coisas que tem acontecido lá. Até hoje existe ainda briga
lá. Mas pra aqui eu vim sozinho, eu saí de lá, eu vim pra cá.
Até ia com seu Macário e entrei pro Bananal. Cheguei lá no
Bananal com finado velho Bento, que era um velho daí
também, que era morador. Os filhos dele estão aí, que já
morreu. Ele tinha esposa dele, morreu também. Eu tava
aqui quando morre- ram. O velho Macário tava com
esposa, morreu a esposa, hoje tá sozinho sofrendo aí, tá
velho já.

DF: Eu o vi.
AR: É esse aí. Eles são os moradores daí.
DF: O senhor chegou aqui quando?
AR: Eu cheguei aqui não sei que ano não, não sei que
ano não. O professor sabe, esse professor sabe. Esse
tuxaua que passou pelo senhor, ele sabe de que ano
chegamos aqui. Eu não sei que ano que eu cheguei aqui
não. Aí foi indo assim. Aí formamos comunidade. Precisei
da escola. Aí esse meu genro, professor João (a casa dele é
ali), ele era professor, veio de lá do Contão, aí casou com
minha filha. Aí caminhava daqui lá na entrada; tinha escola
lá na entrada, nessa BR, sei lá. Aí vivia assim, vivia
encrencando lá, o pessoal de lá ficava encrencando com
ele. Aí procuramos levantar uma escola aqui. Quando eu
fui procurar, nós fomos procurar, preci- sava tuxaua, aqui
não existia ainda tuxaua não. Só era um pouquinho, só um
pouquinho, só nós mesmos: uns quatro ou cinco, tinha uns
dez alunos ainda. Aí nós fomos procurar na Funai, aí
disseram que só com o tuxaua. Atrás de tuxaua, levantava
Projeto: Panton 2
a escola. Aí fomos procurar de novo, procurar de
2 Projeto: Panton
novo, foi indo assim. Aí tinha doze alunos quando
levantamos escola, bem ali assim onde tão estudando; aí
era, não era essa aí não, era outra casa. Aí começou aí, nós
começamos aí, começou, professor começou, foi
trabalhando aí, até que melhorou. Essa escola aí foi do
tempo do governador Neudo Campos, onde saiu no tempo
dele. Assim foi senhor, começando assim.
DF: Qual o nome dos pais do senhor?
AR: Meus pais?
DF: Eh.
AR: Era, meu pai é Afonso, Afonso; minha mãe Carolina;
meu avô é Moisés; minha avó era Alda.
DF: E todos eram macuxi?
AR: Tudo macuxi. Misturou com Monaicó; misturou
com eliang, porque meu avô é eliang, do pai do meu pai
né, eliang. Agora minha mãe é monaicó, pai dela, mãe dela,
é tudo mo- naicó. Aí misturou com eliang com monaicó. É
assim.
DF: A sua esposa, ela é macuxi também?
AR: Minha esposa é macuxi.
DF: Quantos filhos o senhor tem?
AR: Tem, tem onze. Era doze, morreu um, uma filha,
aqui mesmo. Era quinze, morreram três, quatro. Aí ficou
esses filhos aí. Essa é só minha família daqui, não tem outra
não. É só mesmo esses. Agora aqueles ali são outros, lá da
Pedra Branca, esse acolá, aonde o senhor chegou lá na
casa deles, são da Pedra Branca. Chegaram por aí...
DF: Qual foi a coisa mais triste que o senhor viu nesse
tempo todo que o senhor viveu? Tem alguma coisa triste
que o senhor queira contar pra gente, que tenha vivido ou
visto?
AR: Não senhor, tem não. Parece que não tem não.
DF: E alegre?
AR: É sempre alegre, somos crentes, evangélicos. Toda
2 Projeto: Panton
semana a gente entra aqui na igreja; faz a pregação. Tem
nosso pastor, lá adiante, lá do fim das casas. Esse pastor é
parente mesmo meu, parente dos índios. Ele estudou pra
ser pastor, aí faz trazer a palavra de Deus pra gente.
Explicar, ensinar, ensinar as crianças andar, viver, assim na
paz.
DF: Foi o senhor que fundou a comunidade?
AR: Foi. Fui eu que fundei. Os primeiros que chegamos
aqui era eu e ele, esse tuxaua, esse tuxaua mais velho,
mais velho da turma é esse aí.
DF: Ele é filho do senhor?
AR: Eh. Meu filho. Só nós dois que fundamos aqui.
DF: Que veio lá do Contão não é isso?
AR: Eh, do Contão.
DF: Como é que era a alimentação quando o senhor
morava lá no Contão, quando o senhor era menino? E hoje,
mudou alguma coisa?
AR: Era um pouco melhor né? Lá, lá tem muita gente
que diz que lá no mesmo lugar lá no Contão, lá no lavrado,
dá, plantando, trabalhando. Eles dizem né, tem muita
gente que diz isso aí. Aí quando eu vim pra cá, eu achei
melhor do que lá, porque lá dá no inverno, que planta
mandioca, planta tudo, o que planta lá só dá no inverno,
mas quando chega o verão brabo mata tudo, morre, seca,
na beira do rio ali, igapó, seca, seco, seco, seco mesmo ali.
DF: Aí não produz mais nada?
AR: Não, não nasce mais nada. No verão não, com dois,
três meses de verão, não nasce mais nada. Quente. Muito
seco. Aqui não, todo tempo, porque aqui é cabeceira do
rio, dos igarapés. Aí todo tempo é úmida a terra: aí não
morre não; não morre plantação; não morre não. Dá
abacaxi, dá o que a gente plantar, cana, não morre não. No
tempo da banana, banana comprida. Lá não existe, no
Contão não existe, não dá lá, terra não dá. Dá e, quando
chega verão, cai, desce antes de dar frutos. Aqui não, todo
Projeto: Panton 2
tempo dá banana,
2 Projeto: Panton
dessas bananas dá miúdo ali, de prata, banana prata, todo
tempo dá. Aí eu achei melhor aqui.
DF: Eh. Se se produz o ano inteiro é muito melhor, não?
AR: Eh.
DF: Vocês fazem algum ritual antigo ainda, alguma
coisa da época dos pais do senhor, o senhor lembra?
AR: Como?
DF: Por exemplo, os rituais antigos, fazem ou não ainda
na comunidade? Vocês dançam ainda o parixara ou não?
Acabou tudo...
AR: Não senhor. Dançava lá no Contão, eu cheguei ver
dançar quando tinha doze anos, antes de ir pra escola.
Depois mesmo da escola, tá com quinze anos, existia esse
parixara, existia. Meu pai dançava o negócio de aleluia,
chamam outro tipo de cântico que eles chamam sem ser
parixara, né? Nunca vi papai dançar parixara, mas tem
outro tipo de dança dele e que dançava assim rodeando;
assim, rodeando, tomando pajuaru, bebo, só tinha essa aí.
Aí quando acabou esse aí, parou tudo, quando nós
aceitamos religião, crente né, aí acabou tudo, parou tudo.
Aí ninguém, não existe mais essas coisas aqui no nosso
meio não.

DF: Tem algum canto naquela época que o senhor lembra?


AR: Cântico?
DF: Eh. Quando o senhor era criança o seu pai cantava,
falava alguma história...
AR: [Risos] Não senhor.
DF: Nada?
AR: Não. Tem muita coisa que ele aprendeu. Ele cantava,
dançava e assim, mas eu nunca consegui aprender não.
DF: E alguma história o senhor sabe? Seu pai contava
alguma história de bicho...
AR: Contava história do macaco, do... eu já esqueci tam-
Projeto: Panton 2
bém, né? [risos].
DF: O senhor não sabe nenhuma não?
AR: Não, senhor. Eu nunca aprendi também história,
des- sas histórias. Eh, estudando na Bíblia, na Escritura, aí
esquece tudo. Estuda mais na Escritura, na Bíblia. História,
onde foi que os antigos andaram? Andaram em Israel,
Jesus cristo nasceu no meio do Israel, Israel rejeitaram,
essas história assim que a gente estuda que tá no...
DF: Na escritura.
AR: Eh.
DF: Mas a história do macaco o senhor não lembra?
AR: Não. Do macaco tem muitos que sabem, tem gente
que sabe contar história, agora eu não sei não.
DF: E a história, por exemplo, do Macunaima?
AR: Também Macunaima tem muita história dele.
Dizem que Macunaima ele nasceu não sei aonde, aí foi
andando pra lá... O senhor já viu Pedra Pintada? Pois esse
aí diz que é escola dele. Aí diz que a Pedra Pintada foi a
escola dele. Aí foi, lecionou não sei quantos alunos lá, daí
foi embora. E tem outra pedra lá na beira do rio, dele
também, esse mesmo como aí na Pedra Pintada, na beira
do rio assim. O senhor já não andou por aí não.
DF: Nessa outra não. Só na Pedra Pintada.
AR: Pedra do Rio assim, tem três assim. Ninguém vai lá
não. Tem uma janela desenhada assim. Hoje em dia a
gente olha muito pra ele e só aparece uma visão lá. E
disseram que não olha muito tempo não, pode olhar
assim, desenhado assim, numa janela assim. Aí ninguém
vai lá não, lá na beira do rio assim, feio lá, aí a laje é grande,
fica aqui, aí ela fica separada assim. Era casa dele também,
do Macunaima. Daí ele foi embora, foi embora, lá pra
Santa Maria, lá tem pedra também lá. Lá diz que ele, ele
também tem um inimigo dele e queria matar ele; entrou na
terra, foi embora e saiu lá, lá no Santa Maria. Lá tem uma
pedra alta também, ele ficou aí,
2 Projeto: Panton
por aí. A gente conta assim, história de Macunaima. Agora
não sei de onde ele.
DF: Ele fazia o quê?

AR: Ele diz que andava, andava mesmo, abria escola né,
aí foi embora pra aí. Aí quando na beira do rio não fez nada
não, só tinha, só tinha casa dele; e, do outro lado do rio, é,
casa do Raposa, esse cachorro dele, Raposa, e [olhar] dele
né, assim, Raposa. Aí agourava ele, cavava toda noite lá, aí
que é onde inimigo perseguiu ele. Ele entrou na terra e
saiu lá no Santa Maria, Raposa que agourava ele, cachorro
dele. Tem duas pedras lá, laje grande, é dele. E assim
acabou pra lá, a história do Macunaima.
DF: E a história do Canaimé, o senhor sabe pra contar
pra gente?
AR: Canaimé?

DF: Eh.

AR: Não senhor. Canaimé existe até o dia de hoje,


Canai- mé, rabudo, né, que chama.
DF: Rabudo.

AR: Eles matam parente, perseguem parente, mata,


que- bra. Aí fica lobisomem e vira lobisomem, depois eles
tornam de novo homem. São assim, rabudos.
DF: Por que ele faz isso?

AR: Desde o princípio né, que persegue gente, mata


gente, mata outro. Esse chamado bandido. Hoje muito na
cidade, existe bandido, mesmo rabudo.
DF: Mesmo rabudo [risos].

AR: Canaimé é bandido, ele.

DF: O senhor já ouviu falar da história da mulher que foi


pega pelo macaco ou não?
AR: Não senhor.
Projeto: Panton 2
DF: Não?
AR: Não.
DF: Tem alguma história que o senhor queira contar pra
gente? Que o senhor sabe, que o seu pai falava, alguma
narrativa...
AR: Não senhor, nunca, nunca aprendi história não.
DF: A comunidade tem pajé ainda?
AR: Pajé?
DF: Eh.
AR: Não senhor.
DF: Tem não, né?
AR: Não. Ninguém consente mais pajé aqui, nem reza.
Nós quando ficamos doentes, contamos só com hospital,
remédio, mas pajé, reza já não existe mais.
DF: Qual a principal dificuldade que tem aqui na
comuni- dade que o senhor vê?
AR: Dificuldade?
DF: É.
AR: Nada não.
DF: Nada?
AR: Nada.
DF: Vocês pescam ainda com timbó ou não?
AR: Às vezes. Quando eu cheguei aqui, o pessoal
pescava, o pessoal daí desse Bananal só usava esse aí, o
timbó. Esses igarapés que estavam lá em cima, vem
matando o que tiver dentro. Vai embora pra baixo, só
ajuntando, mas também esse igarapé fica sem nada, nada,
nada...
DF: Mata tudo.
AR: Mata tudo. Até as piabinhas, miudinhas que estão
os filhotezinhos vão acabando tudo. Aí quando nós
chegamos aqui não existia piaba quase não. Agora quando
2 Projeto: Panton
nós chega-
Projeto: Panton 2
mos daqui, aqui tá cheio de piaba, sarapó, cará, traíra, tem
muitozinho aqui, criaram mais, estão criando ainda, porque
ninguém não tá botando mais. Nós usamos, eu uso mais
esse aí...
DF: Ah! Tarrafa.
AR: Esse aí. Esse aí não mata tudo não, mas pega os
mais graúdos. Aí de vez em quando nós estamos pescando
pra fora com tarrafa, nós estamos usando malhador, pra
peixe grande, aí pro Paricarana, Parimé, esses lagos pra lá.
Isso aí. Agora isso aí ninguém usa não. Algumas vezes a
gente já usou, mas não é toda vez não.
DF: Então, tá certo. A entrevista é só isso mesmo.
AR: Ahã.
DF: Obrigado.
3 Projeto: Panton
Projeto: Panton 3

Projeto: Panton pia’


Entrevistada: Áurea da Silva Galvão (AG) e seu Genário (SG)
Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)
Local: Comunidade Samã, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR
Data da Entrevista: 24/3/2009
Transcritora: Keyty Almeida Oliveira
Conferência de Fidelidade: Airton Vieira e Devair Antônio Fiorotti
Copidesque: Devair Antônio Fiorotti
Duração: 15’’22’’’
3 Projeto: Panton
Projeto: Panton 3
DF: Qual é o nome da senhora?
AG: Áurea da Silva Galvão.[...]
DF: Quantos anos a senhora tem?
AG: Cinquenta.
DF: [...] Qual a etnia da senhora?
AG: Macuxi.
DF: A senhora é macuxi. Na comunidade, a senhora tem
alguma função específica ou não?
AG: Tem não.
DF: A senhora pertence a alguma associação?
AG: Não.
DF: A senhora chegou a estudar?
AG: Até a segunda série. [...]
DF: Qual foi a primeira língua que a senhora aprendeu?
Foi o português ou o macuxi?
AG: Português. Esse que nós estamos falando.
DF: Português. A senhora sabe macuxi?
AG: Não senhor.
DF: A mãe da senhora não ensinou pra senhora?
AG: Eu escutava ela falar com o meu pai, mas nunca
passaram pra gente.
DF: A senhora trabalha em quê? Na agricultura mesmo?
AG: Eh, na agricultura.
DF: Na agricultura. O que vocês estão produzindo de
bom aqui agora?
AG: Mandioca, macaxeira, banana. [...] Batata, abacaxi.
DF: E qual o nome do pai da senhora?
AG: Paulo.
DF: Seu Paulo. E a sua mãe?
3 Projeto: Panton
AG: Martina.

DF: De quê? A senhora lembra?

AG: Do papai era Ferreira.

DF: Os dois eram macuxis?

AG: Ele era taurepang e a mamãe era macuxi.

DF: Ah! Ele era taurepang...

AG: Eh. Martina da Silva.

DF: Sim. A senhora tem alguma religião?

AG: Eh, eu tenho.

DF: Qual é?

AG: Assembleia.

DF: A senhora é da Assembleia. A senhora é evangélica.

AG: Ahã.

DF: A senhora é casada há quanto tempo?

AG: Desde 95. Ah, 96, 96 mesmo.

DF: O senhor também é macuxi?

SG: Sou.

DF: Qual é o nome do senhor?

SG: Genário.

DF: Seu Genário? E quantos filhos a senhora tem?

AG: Eu tenho nove.

DF: Nove filhos. Agora uma coisa bem pessoal: qual foi
a coisa mais triste que a senhora já viu na vida? O que a
senhora menos gostou, ficou mais chateada?
AG: Como assim?

DF: A coisa mais triste, que a senhora nunca esqueceu.


Só teve coisa boa?! Olha que beleza!

AG: Pra mim não tem tristeza, pra mim.


Projeto: Panton 3
DF: Não tem tristeza não? E felicidade, qual foi a melhor?

AG: Não tem melhor também, pra mim.

DF: Não tem, não?

AG: Eu tenho pra mim, melhor.

DF: E qual foi a melhor coisa que aconteceu?

AG: A melhor coisa é que eu estou vivendo, a saúde. [...]


DF: A senhora nasceu onde? Nasceu por aqui mesmo?
AG: Nasci por aqui mesmo.
DF: Foi aqui em Pacaraima mesmo? Essa região aqui?

AG: Pertence à Pacaraima.

DF: Em qual local?

AG: Serra do Rato. [...] [risos] Na realidade é no Arai que


eu nasci.[...]
DF: Na comunidade do Arai. A senhora sabe a história da
fundação da comunidade? Quando foi fundada?
AG: Nunca lembrei. Nunca botei na minha cabeça assim.

DF: A senhora sempre morou aqui mesmo?

AG: Moro. Teve uma vez que eu passei dois anos fora
daqui.
DF: A senhora já morou em outro local também? Outra
cidade?
AG: Boa Vista.

DF: A senhora já morou lá?

AG: Cheguei agora, esses tempos, dezembro vai fazer


um ano que eu cheguei. Passei um ano e seis meses lá.
DF: Sei. Em relação à comunidade, a senhora sabe quem
foi o primeiro líder? O primeiro tuxaua?
AG: Era Feliciano. Se eu não me engano, era Feliciano.
DF: E a alimentação, a senhora acha que mudou muito,
3 Projeto: Panton
é a mesma coisa?
AG: Mesma coisa.
DF: De quando a senhora era novinha mudou muito? A
mesma coisa?
AG: A mesma coisa. Continua a mesma coisa.
DF: Antigamente as pessoas tinham uma espécie de ini-
ciação, por exemplo, os meninos, quando estavam virando
rapazes, raspavam o braço deles assim, pra sair sangue,
pra ficar um guerreiro forte, coisas assim. A senhora
chegou a ver alguma coisa?
AG: Não, nunca.
DF: Nunca, né?
AG: Foi como é, assim, normal.
DF: Quando tava virando moça também...
AG: Também não.
DF: Também não, né? Normal como é hoje mesmo, né?
AG: Nunca aconteceu isso de arranhar o braço? [risos]
DF: E nem usar pimenta pra ficar esperta?
AG: Não, disso aí também não tenho lembrança, não.
DF: E como a senhora vê o indígena hoje? A senhora é
mulher, é indígena e como é que a senhora vê hoje? [...] A
senhora passa por algum preconceito? Não passa? A
senhora tem...
AG: Tem não, não tenho não.
DF: Tem não?!
AG: Normal.
DF: A senhora vive normal, tudo tranquilo. Nunca acon-
teceu nada triste?
AG: Pra mim, não.
DF: E as coisas que saíram por aí falando, da discussão
dos indígenas...
Projeto: Panton 3
AG: Também não! Eu não saio daqui.
DF: Não sai não.
AG: Não saio por aí pra, eu não tenho como...
DF: Sei. Outra coisa, as histórias antigas, a senhora lembra
alguma? História de Macunaima, do Canaimé, do timbó...
AG: Do timbó eu me lembro bem que a minha mãe con-
tava, mas eu não sei bem.
DF: O que ela contava? Vai deixar morrer? Se a senhora
não lembrar ninguém vai saber.
AG: É.
DF: O que ela contava?
AG: Do timbó não sei, já esqueci.
DF: Não lembra do menino que foi levado pela dona
Raposa?
AG: Ahã.
DF: É essa a história?
AG: Acho que é, não lembro. Não tem uma história do
passarinho que fica arrastando o couro da sucuriju, sempre
ele passa por aqui... [risos]
DF: Como é que é? Essa eu não conheço não, pode me
contar? Como é essa história? Gostaria de saber!
AG: Ele me contava que o passarinho tava (como é que
era o nome dele mesmo?), tal de Carapanã. E ficava
passando por cima. Daí diz que é couro da sucuriju que ele
vai levando. Aí esse menino, o Timbó, que estão falando,
sei muito pouco, não gravei muito não...
DF: E levava esse couro pra quê?
AG: Nem sei. Foram arrastando, que tiraram esse couro
da sucuriju, saíram levando...[...] Se a minha mãe estivesse
aqui, mas ela tá lá no Surumu.
DF: Sua mãe tá no Surumu?
AG: Tá. Martina da Silva, da maloca do Barro. [...]
DF: E ela sabe essas histórias todas?
DF: E a senhora não lembra da história então?
AG: Não tenho história não.
DF: Tem não?! Nenhuma? Da anta, da raposa?
AG: Da anta só indo no rio pra eu contar, mas não
lembro não... [...]
SG: Não, da Mariazinha, é de um menino que se
perdeu, que a mãe tinha uns filhos, uns quatro filhos
pequenos, mas que esse tinha uma base de uns seis anos,
mais ou menos. Aí ela foi e saiu pra roça com ele (isso foi
na Guiana, o cara me contando). Aí foi, não têm esses
araçás, tipo uma goiaba?
DF: Sim, conheço.
SG: Tem muito na beira do rio. Nesse Amajari é só o que
tem. Aí diz que esse menino foi buscar uns araçás pra
comer, aí sei que a mãe seguiu na frente (lá tem muita
serra, né?); e aí quando o menino entrou lá pro meio das
serras, sei lá pra onde, sei que não acertou mais o caminho
de volta. Aí pronto, entraram na serra atrás dele, aí pronto.
Cada vez que ele andava, ele entrava mais pra serra. Aí
andaram atrás dele, nunca acharam ele. Sei que passou um
ano aí mais ou menos perdido, aí: “Ah, esse aí morreu, um
bicho comeu, com certeza, qualquer coisa parecida!” Aí
um pescador vinha pescando de lá pra cá, e tinha um poço
d’água no verão né? Tinha um poço d’água lá que nunca
secava. Aí esse menino já tava virando bicho mesmo, já
morava dentro da serra, dentro das pedras, sei lá onde que
ele morava. Aí o pescador foi lá e viu ele lá, só que aí: “será
que era o menino?” Era o local dele brincar sozinho lá
naquela praia lá. Ele tava sozi- nho, daí já brincava sozinho.
Aí ele corria pela aquela areia lá: pulava, banhava, deitava
na areia, pulava, tava que nem bicho mesmo, em um ano.
Daí eu sei que ele foi lá na casa do pai dele. Falou. Sei que
reuniram um bocado de pessoas e foram lá buscar esse
menino. Aí pareceu que ela já tava tipo bicho mesmo,
porque o bicho selvagem ele sente qualquer
Projeto: Panton 3
pessoa, ele sente, e ele já tava desse jeito. Sentiu os caras;
sei que correu pra trás e não pegaram não. Aí foram de
novo, foram. Toda tarde ele banhava nesse igarapezinho:
banhava, pulava, brincava, aí tava se divertindo ali naquela
praiazinha. Aí sei que ficaram longe, escondidos, aí ficou
muita gente já. Aí eles viram na hora que ele chegou lá na
areia; bebeu água; começou a pular; rolava na areia;
brincava; pulava. E já vai cinco horas da tarde, que era pra
ele ir já pra casa dele, que ele morava na serra, numa pedra
lá. Rapaz, que esses caras partiram nesse menino pra
pegar. Pensou que não, já estavam fechando ele, e ele
mordeu um bocado, soltava. Ele levantava e gritava bravo
mesmo. Um ano já que ele tava, ele tava com seis anos. Já
tava com sete anos, mais ou menos, e não tinha morrido
não. Eu sei que pegaram ele, levaram pra casa, mas ele não
se acostumava mais não. Se soltasse ele, ele corria: não
conhecia mais mãe, não conhecia mais pai. Aí levaram ele
pra casa. Aí ele não acostumou; aí não comia nada; só
queria correr pro mato. Aí sei que passou uma se- mana
sem comer. Não comia mais comida assim, só queria
comer fruta. Sei lá o que comia na mata. Aí sei que ele
passou mais de um mês, levaram ele pra outro lugar. Um
mês que ele tava, que ele foi começar voltando pro
normal. Parece que o nome dele, parece que era
Raimundinho, uma coisa assim. Ele era guianense, ele. Aí
sei que levaram ele aí pra cidade, pra estudar, parece. Aí
ele também já, aí ele amansou, também mais de anos e
anos ali, estudando. Aí não sei mais que fim levou esse
Raimundinho. Só sei que ele mora pra lá...
DF: Mora na cidade?
SG: Mora na cidade. Parece que até doutor é.
DF: Tá certo. Na comunidade tem algum ritual antigo?
Parixara? A senhora dançou parixara já?
AG: Dancei.
DF: Sabe algum pra cantar pra gente?
AG: Sei não. Só sei quando eu escuto por aí.
DF: Não lembra. Tem uns bonitos, não?[...]
3 Projeto: Panton
AG: Aqui ninguém faz, nunca, nunca vi assim.
DF: Não lembra nenhum que a senhora queira cantar
pra gente?
AG: Não lembro não, aí eles cantam só no macuxi, né, aí
não tem como...
DF: Então, tá certo, dona Áurea. Obrigado.
AG: De nada.
Projeto: Panton 3

Projeto: Panton pia’


Entrevistado: Seu Oliveira (SO)
Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)
Local: Comunidade Samã, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR
Data da Entrevista: 25/3/2009
Transcritora: Keyty Almeida Oliveira
Conferência de Fidelidade: Airton Vieira e Devair Antônio Fiorotti
Copidesque: Devair Antônio Fiorotti
Duração: 19’’25’’’
3 Projeto: Panton
Projeto: Panton 3
DF: Qual é o nome do senhor?
SO: Oliveira. [...]
DF: Quantos anos o senhor tem?
SO: Eu tenho 51.
DF: De qual etnia o senhor é?
SO: Sou wapixana misturado com macuxi.
DF: O senhor tem alguma função específica na comuni-
dade?
SO: Rapaz, a minha função é essa aqui.
DF: O senhor tece.[...]
SO: Que encomenda né, aí eu faço aí...
DF: O senhor faz por encomenda?
SO: Eh.
DF: Esse é um tipo de tecelagem, não é?
SO: Eh, isso que eu faço aí, eu faço assim quando as pes-
soas encomendam, aí eu faço [...]
DF: Ah sim, só quando faz a encomenda. E o senhor
aprendeu com quem?
SO: Eu aprendi por conta própria mesmo.
DF: Conta própria.
SO: Eh.
DF: O senhor viu as pessoas fazendo...
SO: Fazendo... aí botei na cabeça de fazer também, aí
fui fazendo.
DF: Sim, e o senhor chegou a estudar? Foi pra escola?
SO: Não, nunca fui.
DF: Nunca foi.
SO: A região onde eu fui criado não tinha escola. A
escola era muito longe. Nesse tempo não existia todos
esses colé-
3 Projeto: Panton
gios, ainda não. A pessoa que corria atrás do colégio. Hoje
não, o colégio que corre atrás da pessoa e as pessoas não
querem estudar.
DF: O colégio é dentro da comunidade.
SO: E as pessoas não querem estudar. Eu não tive essa
oportunidade.[...] Fui criado nas fazendas depois do Maú,
fui criado por essas bandas do Maú, pelos lados da Guiana.
DF: O senhor quando aprendeu a língua, aprendeu qual
língua primeiro?
SO: Quando meu pai foi falecido, eu fui, a minha mãe
me deu pra outras pessoas me criar. Eu fui criado com meu
padrinho, mora em Boa Vista, mas já morreu também. Fui
criado com ele. Passei uns tempos com ele, ele foi me
buscar. E de lá, tinha meu padrasto, mas só que ele bebia
muito e me maltratava muito, aí eu fui embora; vim
embora.
DF: Entendo.
SO: [...] Mas tudo que eu aprendi foi bom.
DF: Mas a língua que o senhor aprendeu primeiro foi o
português?
SO: Foi o português mesmo.
DF: O senhor sabe wapixana e macuxi?
SO: Não, sei não. Não sei falar não.
DF: Sei. E o senhor trabalha na agricultura?
SO: Eh, na agricultura.
DF: Sempre trabalhou na agricultura?
SO: Na agricultura.
DF: E o que tá produzindo hoje em dia?
SO: Hoje em dia não estou produzindo muito porque
eu não... Faz quatro anos que eu separei da família, eu
fiquei sem fazer nada [...], mas é assim, sai pra trabalhar
pelo garimpo, depois a gente volta.
DF: Ah! o senhor é garimpeiro também?
Projeto: Panton 3
SO: Sou, também garimpo. [...]
DF: Sei. O senhor lembra o nome dos seus pais?
SO: O meu pai era Marino. A minha mãe é Regina, ainda
é viva, mora em Boa Vista.
DF: Ah! ela é viva e mora em Boa Vista. E o seu pai era
de qual etnia?
SO: Wapixana.

DF: Sua mãe?

SO: Macuxi.

DF: O senhor tem religião hoje?

SO: Rapaz, a religião que eu frequentei mais foi a Assem-


bleia de Deus.
DF: E o senhor é casado?

SO: Sou. Fui casado.

DF: O senhor era casado com alguém da etnia macuxi?

SO: Eh, macuxi.

DF: Qual a coisa mais triste que o senhor viu até hoje?
Que o senhor tem recordação?
SO: A coisa mais triste que acho que [...] comunidades,
porque a gente não [...].
DF: E a coisa mais alegre, o senhor lembra?

SO: A coisa mais alegre que eu lembro é trabalhar junto


com meus colegas de trabalho.
DF: O senhor nasceu onde? Aqui mesmo?

SO: Nasci no Surumu. [...]


DF: E o senhor sabe a história da fundação da
comunida- de? Como é que ela foi fundada?
SO: Isso aqui foi em 87, eu cheguei aqui. Ela foi fundada
já no final de 87. Os fundadores dessa comunidade foram:
com- padre Feliciano, Mozarildo, Manoel, Áureo, Lourenço
(não sei
3 Projeto: Panton
mais?), finado Cristiano. Foram os fundadores daqui dessa
comunidade, Samã II, que tem ali embaixo, né? Isso aqui
era colônia, era colônia. Foi indenizado, aí nós passamos
pra cá.
DF: Quem foi o primeiro tuxaua, o senhor lembra?
SO: O primeiro tuxaua foi o Feliciano. Segundo tuxaua
foi o Mozarildo.
DF: E agora é o seu Lorenço?
SO: Agora é o Lourenço.
DF: [...] O senhor morou na cidade?
SO: Não, eu não morei muito na cidade não. Eu não
gosto da cidade não, prefiro assim, no interior. Nunca
gostei de cidade. Minha mãe mora lá. Tenho até que ir lá
uma hora. [...]
DF: E a alimentação, como era antigamente? E agora, o
senhor acha que mudou muito?
SO: Não, mudou nada não. [...] Dentro da mata aqui
não tem coisa ruim não. Todo tempo eu gostei de morar
aqui dentro da mata. Eu morava numa comunidade ali no
Arai, eu botei a roça lá dentro da mata[...]. Passei uns dois
anos morando em Pacaraima. [...]Tava indo bem, depois
deu contrário.
DF: O senhor pertence a alguma representação indígena?
SO: Agora, por enquanto não. [...] O Mozarildo é o se-
gundo tuxaua dele[...].
DF: E como o senhor vê o índio hoje? O senhor acha
que mudou muito, não mudou? Qual é a sua opinião a
respeito?
SO: A minha opinião dos índios, por uma parte ficou
bom, né, por outra parte ficou pior, porque depois que
indeni- zaram, que saíram essas indenizações, o próprio
parente mesmo ficou pior do que os civilizados.
DF: Por quê?
SO: Porque por uma parte, o cara não pode caçar lá
Projeto: Panton 3
pras áreas dele. Pra ir caçar e pescar, tem que passar lá.
Então, não
3 Projeto: Panton
melhorou nada, eu sei que eu acho que não melhorou não.
DF: E qual é a parte boa que o senhor tava falando?
SO: A parte boa é que a gente acha aqui dentro, porque
assim, morar aqui dentro nós temos liberdade pra sair pra
qualquer canto dentro da nossa área, né? Não tem quem
empate a gente. [...]
DF: E as festas hoje na comunidade, como é que são?
Antigamente era melhor? Pior? É diferente? O senhor
lembra?
SO: As festas da comunidade [...], dessa que tá acon-
tecendo, essa comemoração do dia que a comunidade foi
fundada, sempre foram boas, né?
DF: Sim.
SO: Tem dificuldade não.
DF: E as danças antigas têm ainda?
SO: Ah, não tem não, isso aí não tem não. Pra cá não
existe mais não. Existe é pra essas outras comunidades por
aí. [...] Os mais antigos que tinham aqui, que cantavam na
língua deles, não tem mais, acabou tudo. Mas tem um
sobrinho deles que aprendeu um pouquinho e quando tem
festa ele canta... uns parixarazinhos...
DF: E o senhor não sabe nenhum?
SO: Não, sei não. [...]
DF: E tem história antiga de seu povo, por exemplo, do
Canaimé. O que o senhor sabe a respeito do Canaimé?
SO: [risos] Rapaz, do Canaimé eu não sei não.
DF: Nunca ouviu falar nada?
SO: Sei do Canaimé, não.
DF: Nunca ouviu falar nada?
SO: Vi falar dele: Canaimé faz aquilo, Canaimé faz isso,
eu não sei [...]
DF: E histórias, o senhor conhece alguma história de
anta, de raposa, alguma coisa de Macunaima?
Projeto: Panton 3
SO: Sei não, de Macunaima também não sei não.
DF: E a história do surgimento do timbó, ouviu falar ou
não?
SO: Do surgimento do timbó também não. Que eu morei
em aldeia, não. Morei mais assim nas fazendas.
DF: Em fazenda, né? Então, o senhor não ouviu um
contar pro outro?
SO: Nunca ouvi não.
DF: Existe na comunidade alguma tentativa de resgatar
um pouco essas histórias?
SO: Não, não sei não.
DF: A língua eu acho que tem, porque eu passei ali e eles
estão ensinando macuxi.
SO: Eh, deve ter né?
DF: E a caça hoje continua do mesmo jeito ou...
SO: Continua, não acaba não.
DF: De vez em quando o senhor caça?
SO: De vez em quando vai, dá uma caçada...
DF: E existe algum tipo de iniciação pros meninos? Por
exemplo, quando tá virando rapaz tem comunidades que
eles pegam, cortam, passam pimenta...
SO: Ah não, aqui pra cá ninguém usa isso não.
DF: Mas na época do senhor não usava, quando era
criança?
SO: Não, eu não fui criado com isso não. Já fui pra mão
do meu padrinho[...]. e de lá eu saí pra trabalhar desde pe-
quenininho, que eu vivo assim trabalhando. Pequeno não,
desde de novo, que eu ainda sou pequenininho [risos].
Desde novo, trabalhando pra me sustentar. [...]
SO: Quem foi criado no interior sabe o que é bom e o
que é ruim. A pessoa que nasce na cidade não sabe de
nada, só coisa fácil. Filhinho de papai e mamãe[...]
DF: Qualquer coisa é difícil. [...]
SO: Era o sistema dos antigos, qualquer coisa era
pimenta. Quando não era pimenta, era ferrada de
tucandeira. Como uma mulher tava falando aí, a senhora
dali. O tratamento de primeiro era de tucandeira, enfiava
um bocado de tucan- deira na flecha e tacava no espinhaço
do cara, pra não doer o espinhaço.
DF: O que é tucandeira?
SO: São umas formigonas que tem no mato. Formigão.
Dói mais que [a correia]. Aí não pode mais maltratar as
crian- ças por causa disso.
DF: E pra caçar, pra pescar, pra ser bom caçador, tem
uns rituais, não tem?
SO: Eu acho que tem, né? Eu nunca vivenciei não.
DF: Tem um que bota pimenta no olho do cidadão,
tabaco, pra enxergar longe. [...]
SO: Na nossa tradição aqui, não é das pessoas ficar usando
mais essas coisas, né?
DF: Então, tá certo, seu Oliveira. Obrigado.
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Projeto: Panton pia’
Projeto: Panton 3
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Projeto: Panton pia’


Entrevistados: Domício Pereira da Silva (DP) e Regina Santos (RS)
Entrevistador: Devair Antônio Fiorotti (DF)
Local: Sol Nascente, TI Alto São Marcos, Pacaraima, RR
Data da Entrevista: 30/3/2009
Transcritora: Ana Maria Alves de Souza
Conferência de Fidelidade: Devair Antônio Fiorotti
Copidesque: Devair Antônio Fiorotti
Duração: 55’’22’’’
3 Projeto: Panton
DF: Qual o nome do senhor?
DP: Domício.
DF: Domício de quê?
DP: Domício Pereira da Silva.
DF: Qual a idade do senhor?
DP: Sessenta e dois.
RS: Três.
DP: Sessenta e dois.
DF: Qual a etnia?
DP: Macuxi.
DF: O senhor tem alguma função específica na comuni-
dade?
DP: Tenho.
DF: Qual é?
DP: Eu sou tuxaua da comunidade. [...]
DF: Qual é o nome da comunidade agora ou se ela já
teve outro nome?
DP: Não. Só teve só um nome, que é Sol Nascente.
Quan- do nós formamos, nós já colocamos esse nome, Sol
Nascente.
DF: O senhor chegou a estudar, seu Domício?
DP: Não, nunca cheguei a estudar.
DF: Qual a primeira língua que o senhor aprendeu? Foi o
português ou foi o macuxi? Foi o macuxi que o senhor
falou [primeiro]?
DP: Foi. Bom, a primeira língua que eu aprendi foi o
português, porque no tempo da minha mãe, ela achava
que ninguém mais podia aprender a nossa própria língua
que era o macuxi. Ela falava, aí não sei quem deu a ideia
que nós não podia mais falar. Ela não ensinou mais nada da
nossa língua pra gente.
DF: Ah! Falaram pra ela que não podia...
DP: Falavam pra ela que não podia ensinar nós, que não
era língua. Aí ela não falava mais pra nós o macuxi. Ela
tentou ensinar nós desde criança já no português.
DF: Aqui na comunidade o senhor é o quê? O senhor é
agricultor, mexe na agricultura ou não? Ou já mexeu?
DP: Aqui na comunidade nós estamos mexendo com
agricultura, nós também mexemos com a pecuária. Tudo
isso é o que nós temos aqui na comunidade.
DF: O que é que tá produzindo mais hoje?
DP: Hoje nós temos aqui, a gente planta mandioca, feijão.
Tudo o que você plantar dá. Cana...
DF: O senhor lembra os nomes dos pais do senhor?
DP: Lembro. O do meu pai é Sisinato Pereira da Silva, e
da minha mãe Sivilda Lauriano de Lima.
DF: Qual a etnia deles? Eles eram o quê?
DP: A minha mãe era macuxi. Agora o meu pai tem
outra etnia. Foi quando vieram de Manaus. Ele era
amazonense, aí ficaram aqui em Roraima, se encontraram,
aí que construiram a família.
DF: Mas ele era indígena ou não?
DP: Não. Ele era assim preto, como diz, moreno,
porque sempre teve aquela, as indígenas sempre casavam
com... Hoje ainda acontece.
DF: Claro. É normal.
DP: É normal. Não era de agora não. Aí diziam que era
de agora, mas não era não, já vem desde de faz tempo,
bastava um casal querer...
DF: Aqui na comunidade hoje tem alguma regra,
alguma coisa que fala “Olha, tem que casar só com
indígena... Tem que casar é aberto.” Como é que é?
DP: Sempre eu aconselho é que case com indígena, que
Projeto: Panton 3
tem mais o costume de viver na comunidade, que branco
às vezes nunca acostuma, reclama assim, com a norma da
comunidade. Agora, indígena não, ele já nasceu, ele conhe-
ce, acostuma mais fácil. Sempre acontece quando bota pra
estudar, que até termina, estuda até a quarta série na
comunidade. Então, sai. Aí quando sai assim: “Mãe eu vou
fazer faculdade”, em Pacaraima ou em Boa Vista. Nesse
intermediário de escola, já começa a namorar um branco,
uma hora já tá junto.
DF: E aqui na comunidade o senhor tem alguma religião?
DP: Tem. Nossa religião até agora é católica, ainda. [...]
Todos nós.
DF: O senhor é casado?
DP: Sou.
DF: Qual a etnia da sua esposa?
DP: É macuxi.
DF: Quantos filhos o senhor tem?
DP: Nós temos nove. [...]
DF: Ah! Que beleza. [...] Qual é a coisa mais triste que
o senhor viu? Depois eu vou perguntar qual é a mais feliz,
até hoje.
DP: Como assim?
DF: A sua vida inteira, uma coisa triste que o senhor viu,
que o senhor nunca esqueceu, que marcou.
DP: Uma história triste.
DF: O senhor já viveu bastante. Já deve ter visto um
monte de coisa.
DP: Eh, a coisa mais triste que a gente vê assim é
quando tá doente. Doente é a coisa mais triste que tem na
vida da gente. Isso que eu vejo assim.
DF: E feliz? Coisa boa.
3 Projeto: Panton
DP: Eh, coisa boa é você estar com saúde, ter
disposição pra trabalhar. Então, a gente tá feliz. Como têm
muitos que dizem assim: “Não, que, pra gente ficar feliz é
dinheiro.” Não é dinheiro não, é saúde da gente. Você
estando com saúde, você pode adquirir dinheiro.
Primeiramente é a saúde. Então, que Deus ajudando a
gente, dando saúde da gente, né. Estou com toda essa
idade, sessenta e quatro anos, até hoje, graças a Deus, não
estou doente, assim dizer que vivi doente, ainda vivo
trabalhando, tenho vontade de trabalhar, arrumando as
coisas. Lá em casa é tudo arrumadinho. Então, sempre
gosto de participar da reunião, que tem a nossa reunião,
eu sempre gosto de estar no meio, porque a gente busca
travar conhecimento de trabalho hoje.
DF: Tem algum fato marcante que o senhor queira contar?
DP: Como assim?
DF: Alguma coisa que aconteceu que o senhor achou
que foi importante pro senhor, uma coisa marcante que
aconteceu. A gente tem na vida da gente algumas coisas
que acontecem...
DP: A coisa mais triste que há de marcante foi quando a
gente coisou que a gente tava com toda essa... Pacaraima
é uma, tá dentro de uma área indígena. Quando a gente
ques- tionava pelos direitos da gente, muito pessoal de
Pacaraima criticava e marcava a gente. “Ah! Porque vocês
fazem...?” “Não. Porque nós estamos procurando nossos
direito.” Pacaraima tá numa terra indígena. E o que eu
tenho que dizer que nós temos que ver a situação de
Pacaraima, sentar pra conversar. Então, é uma crítica que
eles fazem, é muita crítica em cima da gente. “Não é assim.
Não, eu sei que não pode. Não, é eu que tô fazendo.” E
tem autoridade dizendo que foi demarcado, homologado
como área indígena. Agora, nós vamos ver como resolver
o problema de Pacaraima. Aí sempre o pessoal ficava
assim, marcando a gente, falavam. Pelos meus direitos eu
posso falar em qualquer canto, não vou esconder se eu
tenho meus direitos todo tempo, que tava errado.
Projeto: Panton 3
DF: E aí aconteceu alguma coisa?
DP: Não, não. Não aconteceu assim porque a gente evi-
tava. Quando tava no conflito, a gente saía dessa parada
pra não ter aquele confronto. A gente sempre se retirava
pra não acontecer esse caso, agressão, sempre saía.
DF: O senhor fala alguma língua indígena?
DP: Não. Não falo não. Eu entendo um pouco, porque
minha mãe nunca deixou a gente assim. Ela falava, a gente
entendia algumas coisas que ela falava, mas ensinar
mesmo assim falar, eu não sei não.
DF: Não. E o senhor nasceu onde?
DP: Eu nasci aqui mesmo na área de São Marcos. Nasci
na... Ela disse que eu nasci na Formosa, era um sítio. Ela
morava por lá, eu nasci lá, ali perto do Perdido.
DF: Perto do Perdido?
DP: Eh. Era um retiro lá. Ela disse: “Tu nasceu na Formo-
sa.” Aqui na área do São Marcos, mesmo. Eu nasci aqui no
São Marcos.
DF: E qual a história da fundação da comunidade, dessa
comunidade aqui?
DP: A nossa? Nós morávamos ali no Curicaca, primeiro.
Aí nós, como teve aqui a retirada dessas pessoas dessas fa-
zendas, aí nós ficávamos pensando: “Como é que nós
vamos ocupar?” Foi o que falavam pra mim. “Porque eu
sou índio, vocês vêm ocupar, vão tomar de conta?”
“Vamos. Nós vamos tomar de conta.” “E não vão
abandonar?” Eles disseram: “Não.” Então, a gente morava
lá e saiu. Nós tiramos o gado primeiro de lá. Nós tínhamos
gado lá dentro, aí a pessoa sempre trabalhava de roça, o
gado ficava na roça. “Não nós vamos tirar porque aqui
gado tá invadindo e tal.” “Nós vamos deixar aí tu tirar o
gado.” Aí desocuparam aqui a fazenda, aí nós tiramos o
gado de lá. Aí nessa saída do gado, aí nós ficamos
pensando, aí nós e mais seis pais de família: “Como é que
nós vamos sair daqui e cuidar lá no Curicaca? Acho que é
melhor nós ficarmos morando logo aqui, cuidar desse
3 Projeto: Panton
lugar
Projeto: Panton 3
que vão deixar, nosso gado já tá aqui, e se quiserem
ocupar alguém de lá e quiserem tirar a gente, a gente sai
daqui, senão nós vamos ficar.” Aí foi uma decisão junta. Aí
um dia o meu irmão me chamou: “Olha, umbora logo
arrumar um lugar aqui pra gente morar, porque senão
ninguém cuida de lá e nem daqui.” Então, aí nós nos
reunimos, nós juntos nos reunimos, a família toda, os seis
pais: “Nós vamos formar uma comunidade.” Aí
convidamos, os outros ficaram lá. “Nós vamos fazer uma
comunidade lá embaixo, senão ninguém cuida nem daqui e
nem de lá. Tem que trabalhar.” Aí eu disse: “Ninguém vai
pra lá. Lá ficam só quatro pais de família, ficou lá dentro.”
Aí com a fazenda nossa, pra cá com os três, aí veio mais
gente, aí com pouco nós távamos com nove pais de
família. Aqui nós temos o igarapé mais perto pra gente
pescar, tomar banho. Aí nós nos reunimos, aí tivemos uma
reunião. A gente escreveu a ata de fundação, nós temos
ela guardada, ela todinha. Aí que nós ficamos aqui
morando, formamos aqui. Então, hoje nós temos nove pais
de família que trabalham aqui. Então, aqui é assim, porque
sempre ele ficou daquele lado ali do igarapé Paricarana,
então aqui, tu vai ficar morando aqui, cada qual, mas nós
vamos fazer nosso centro mesmo lá do outro lado. Lá tem
posto de saúde, já lá. Aí tem outro retiro lá da
comunidade. E aí a gente vai fazer tudo pra lá, lá que tem
mais casas do morador.
DF: Ah! O caminho é por aqui, é?
DP: O caminho, estrada de carro vai por ali. Agora o ca-
minho de pé vai por todo o canto. [Risos] Agora de carro
vai por ali assim. Então, aqui eu fiquei. O tanto que eu fique
aqui, porque aqui nós tínhamos que zelar, custou muito
dinheiro, né, que foi quase que mil reais nossa casa. Aí
quando entre- garam pra nós quiseram tomar de conta.
Nós investimos nosso dinheiro dessa energia de Guri, que
era pra nós ter usado pra comprar alguma coisa, comprar
um carro, comprar alguma coisa pra nós. O que é que nós
achamos? Achamos melhor usar nosso dinheiro pra pagar
os fazendeiros, pra nós podermos ficar, porque se não a
Funai não tinha recurso na época pra pagar, pra indenizar.
3 Projeto: Panton
Aí nós conversamos com a Eletronorte aqui, pra dar a
nossa parte. Aí nós ficamos
Projeto: Panton 3
assim: “Pai, vamos gastar nosso dinheiro então pra tirar os
fazendeiros? Porque não vai adiantar nós com esse
dinheiro e comprar gado, depois nós vamos botar esse
gado onde?” Nós não temos terra, colocar lá no Curicaca
vai ficar imprensado. Aí nós convidamos os tuxauas,
resolvemos tirar, contanto que a Funai repusesse nosso
dinheiro de volta. A obrigação da Funai era pagar,
indenizar. Então, nós vamos usar nosso dinheiro e a Funai
reporá esse dinheiro de volta pra nós. Isso foi a negociação
que nós fizemos.
DF: E a Funai repôs esse dinheiro?

DP: Até agora não. [Risos]

DF: Ah! Então, os fazendeiros até hoje não receberam...

DP: Esses que moravam aqui ameaçavam muito os pa-


rentes. Nós, quando nós íamos pescar, que o pesqueiro era
aqui no igarapé, aí ele ameaçava que ninguém ia pescar,
que isso aqui era dele, que tava pagando, que nós
fôssemos pra ali. [Ameaçou quase ninguém]. Aqui de
primeiro não ia porque o Curicaca era por ali, aí ele fechou
todinho, aí tinha que passar por aqui. Aí quem fosse
viajando tinha que passar bem aqui, senão ele não
autorizava passar por lá, tinha que ser por aqui. Então, o
cara ameaçava muito aqui, então por isso nós tivemos que
gastar nosso dinheiro pra desocupar, pra ficar livre. Hoje
não, agora você é livre, você chega em todo canto, o
pessoal vão. Então, foi uma dificuldade grande que a gente
teve na época, mas a gente conseguiu. Nós com todo
recurso nosso, porque senão até hoje nós távamos lá no
Santa Rosa. Que ali era Curicaca, Santa Rosa só naquele...
DF: É, eu conheço. E as famílias vão crescendo.

DP: É. Então, graças a Deus ficou mais livre pra gente


trabalhar.

DF: E o senhor morou em quais locais até hoje?

DP: Bom, eu morei em três locais. Quando nós


nascemos, quando nós viemos, o senhor sabe onde é o
3 Projeto: Panton
Cem hoje?
DF: Sei.
Projeto: Panton 3
DP: Ali perto do Cem era chamado de Liberdade, nós
mo- ramos lá quinze anos, na casa da comunidade. Ali nas
comu- nidades Três Corações que chama, ali era, não
sabiam quem morava, morava numa casa e outro morava
ali. Chamava lá Liberdade ou Santa Lúcia, depois mudou
pra Três Corações. Nós moramos lá, eram duas famílias,
nós morávamos com o pai, nós moramos lá quinze anos. Aí
de lá quando nós saímos, quando construí família aí eu vim
pra cá, pro Perdido. Que ela era daqui do Perdido, morava
aqui no Perdido. Aí morei mais ou menos três anos no
Perdido. Então, aí é quatro, porque quando eu vim de lá do
Perdido nós fomos pro Curicaca. Vi- vemos parece que
dezoito anos no Curicaca. Foi do Curicaca que nós já
viemos pra cá.
DF: E como funciona, por exemplo, o senhor não
perten- cia a Curicaca?
DP: Não.
DF: E aí de repente o senhor vai pra lá. Como funciona?
O senhor conversa com o tuxaua e pergunta “A gente
pode ficar aqui?”
DP: Sim.
DF: Como é que funciona esse trâmite?
DP: A gente chega lá, vai lá com ele, com o tuxaua, aí
o tuxaua faz a reunião com a comunidade. Aí a gente vai
participar, dizer que a gente tá querendo morar, que ali já
não deu pra nós ficar, aí tudo bem, se a comunidade
decidir: “Não porque nós somos parente, vocês não são de
outra família, vocês podem vir morar aqui com a gente.” É
assim que é conversado. Mas às vezes se a comunidade
não aceita, o tuxaua diz: “Não, não dá certo. Ele tem
alguma que vem de lá, já fez sujeira pra lá e vem pra cá...”
Aí a comunidade não aceita também. Mas quando você é
uma pessoa limpa em todo canto, aonde você chegar pode
morar tudo, mas não conhece. Quando nós fomos pra lá
que falamos: “Não vocês podem vir, que é uma família
nossa.” Inclusive essa dona Letícia é, a Regina é sobrinha
dela.
3 Projeto: Panton
DF: Ah é!
Projeto: Panton 3
DP: É. São família. Por isso quando nós chegamos lá, era
tudo família, aí nós ficamos. Aí depois que já viemos pra cá.
DF: E outra coisa: o senhor pertence a alguma
represen- tação indígena?
DP: Sim. Nós temos, nós fazemos parte da APIR, Asso-
ciação [dos Povos] Indígenas de Roraima, que é a APIR. E
tem essa que a gente criou logo depois que a, primeiro
tinha uma que era um programa na região do Truaru, que
era um programa da energia de Guri, e depois mudaram o
nome pra APTISM, porque achavam que o programa não
era certo, não falava indígena, aí isso aí se precisa colocar
outro nome. Então, ela mudou desse nome que antes era
um programa de quando eles começaram, e quando já veio
lá o programa da Eletronorte pra fazer esse convênio, era
um programa. Aí quando nós achamos: “Não, ninguém
quer programa não.” “Quem quer programa?” “Não, que
programa já é coisa as- sim passado, vamos mudar o nome
que tem que pegar com a terra indígena São Marcos.” Aí
botaram APTISM. Botaram outro nome, aí mudou.
DF: Associação dos Povos das Terras Indígenas do São
Marcos.
DP: Porque não quiseram mais programa... Mas até
hoje tem gente que chama programa, nunca esqueceu. “É
o Programa São Marcos.” É que eles se acostumaram e
muita gente ainda fala esse nome.
DF: O senhor foi o primeiro tuxaua da comunidade ou
não? Ou teve outro?
RS: Mas daqui ou não?
DP: Daqui eu fui o primeiro.
DF: Então, quantos anos têm a comunidade, mais ou
menos?
DP: Vixi! A gente esquece.
DF: Não precisa ser exato. Uns quatro anos ou cinco.
DP: É mais ou menos isso, quatro anos.
Projeto: Panton 3
DF: E outra coisa: os rituais antigos, é feito algum na
comunidade ainda?
DP: Como ritual?
DF: Um ritual assim é... as danças, tudo. Existe alguma
coisa ainda, ou não?
DP: Existe. Nós temos aqui o nosso próprio, nós temos
um grupo, que faz a dança parixara, que faz assim uma
representação, que os pessoal às vezes pede: “Será que
vocês podiam fazer uma representação assim de dança?”
Nós temos o nosso grupo que tá preparado, as crianças,
os rapazes, os trajes pra sair, aí assim que a gente sai com
grupo pra fazer representação. É de dança parixara, tucui.
Essas coisas de tradição que a gente tem.
DF: Como é que o senhor vê o indígena hoje? Assim na
relação dele com o branco?
DP: Assim, a gente vê, assim, que os indígenas com os
brancos, o que nós queremos é respeito. Cada um se
respei- tando, com certeza, não tem problema. Que nós
vamos dizer se o branco não respeita indígena também
começa a haver conflito, basta cada um se respeitando.
Porque se você tá lá na sua casa e eu estou na minha, no
dia que o senhor quiser vir na minha casa não tem
problema nenhum. Nós não temos inimizade, não tem
problema. Agora se você é uma pessoa que fica nos
ameaçando, fica difícil pra gente se encontrar aqui, porque
ninguém gostaria de você. Mas você é branco, e se você
quiser vir num fim de semana aqui com a gente não tem
problema nenhum, que não tem aquele conflito com a
Funai. Então, é cada um com seus direitos. Nós
respeitamos, porque amizade, como eu disse, amizade é
uma coisa, agora direito é outra coisa. É isso que nós
temos. Não tem nada que, se quiser vir aqui, a gente
recebe. Então, tem que ter respeito com a gente.
DF: O senhor já passou por algum tipo de preconceito?
Alguma coisa?
DP: Não.
3 Projeto: Panton
DF: Nem por ser índio? “Não, é coisa de índio”, alguma
coisa assim nunca não?
DP: Não.
RS: Eles falam que ele não era índio, que era branco.
Que mãe dele é macuxi. E tem esse preconceito com ele,
os parentes mesmos, né, com ele: “Não, ele não é índio
não, é branco.”
DF: O senhor já passou por isso, então?
DP: Já.
DF: Mas a identidade, como o senhor vê isso então? A
identidade é aquela que o senhor assume, não é?
DP: O que eu sempre dizia pra eles: “Não, isso é por
causa da minha mãe. Que minha mãe é indígena, não tem
nada a ver com meu pai que não é daqui. Eu sou indígena
por causa da minha mãe.” Aí quando eu conversava com
os próprios parentes: “Minha mãe era indígena, quem mais
sofreu comi- go foi minha mãe, meu pai não, só minha
mãe. Minha mãe teve eu na barriga nove meses, e quando
eu nasci quem me cuidou foi ela. Eu sou indígena por causa
da minha mãe.” Aí eles ficavam assim: “Ah! Tá certo.”

DF: Como é que era a alimentação antigamente?


DP: Dos indígenas?
DF: Eh. Você acha que mudou muito ou não mudou?
DP: Mudou algumas coisas. A alimentação ela continua
do mesmo jeito. Porque hoje já tá mais aquela facilidade.
De primeiro não, a alimentação do indígena era farinha
mes- mo, com beiju, damorida, caça, não tinha negócio de
carne mesmo, era mais caça, peixe, veado, ia caçar, pra
caçar era mais assim. Plantava também muita batata, que
o indígena usou muita batata. Pra fazer a bebida dele, o
caxiri, usavam macaxeira. Hoje mudou um pouquinho
porque antes não tinha arroz, não tinha macarrão, não
tinha esse negócio de macarrão, apareceu já depois. Nós
comíamos mesmo era farinha e beiju. Agora teve a
mudança que hoje já tem várias
3 Projeto: Panton
coisas que o índio tá comprando. Aí índio já quer comer to-
mate, já quer comer batatinha, já quer comer cebola.
Antes não tinha isso, era mais a caça, que mais usava era
assado, não tinha coisa salgada. Era mais assado no fogo
mesmo. Era pouca coisa que salgava, nunca usavam muito
caça assim no sal. Hoje mata uma caça já quer salgar, não
quer mais fazer coisa pra assar como era. Então, mudou.
Só essa mudança que teve um pouquinho dos indígenas.
Foi isso.
DF: E em relação a essas novas coisas que vêm de fora
pra comunidade, o que o senhor pensa a respeito disso?
DP: Muitas coisas que vieram como o açúcar, bombom,
chiclete, água gelada, que também ninguém tinha, eles fa-
zem muito mal pro dente da criança. Muito açúcar e
chupar bombom tem criança com quatro anos que já tá
com o dente tudo estragado. Tudo estragado. E sempre
mamãe dizia assim que água gelada estraga o dente da
gente, porque quando você bebe água ele dói. Quem não
é acostumado dói no dente. Tem gente que não aguenta,
então, aquilo estraga o dente. Então, teve até, quando
começaram a dar pasta de dente, ela dizia pra nós que não
era bom, porque queimava. Então, o que serve pra de
manhã: mandava mornar água pra lavar os dentes, porque
mata os bichos. Então, eles usavam isso aí. Eu acho que era
verdade, porque os dentes dos velhos não tinha pasta e
eram bonitos. Tinha os dentes bonitos de primeiro. Não
era, como é que escapavam os dentes, né? Das mulheres e
dos homens como é que escapavam? Ficaram assim. Eles
não usavam pasta. De manhã, tem o carvão do fogão. Eles
pegavam o carvão e passavam no dente. lava- vam com
esse carvão pra ficar brilhando. Era o que dava o brilho.
Então, quando saiu a pasta ela não gostava, porque
estragava o nosso dente. “Não...” “Não dona, isso aqui vai
ser bom pros meninos escovar...” Isso foi assim.
DF: Tá certo. E a história do povo, aquelas coisas assim,
Macunaima, alguma coisa assim, o senhor já ouviu falar ou
não ouviu, como é que é?
DP: Eh, falava muito do Macunaima. Ele era... Hoje nin-
Projeto: Panton 3
guém vê mais, mas antigamente ele caminhava, ele
andava,
3 Projeto: Panton
ele era uma pessoa. Só que ele tinha poder, ele era
poderoso também, ele dizia uma coisa. Primeiro era Deus e
logo depois era ele. Por onde ele andava, você não podia
tá criticando Deus. Se criticasse, ele fazia alguma coisa do
senhor. Por exemplo, ele vinha lá, você vai levando, ela
tava contando essa história, que ele vinha aí, sempre o
pessoal saía pra caçar no Natal, pra chegar pra fazer a
festa de Natal. Ele sempre viajava. Aí teve encontro,
mandaram sete mulheres pra levar caxiri pro encontro dos
maridos que vinham da caçaria. Aí pararam num ponto que
esperaram em cima de uma laje. Aí nessa hora o
Macunaima vinha de lá pra cá, aí sempre quan- do eles
encontravam com ele, eles davam caxiri pra ele, né. Aí
disseram: “Ah! Lá vem o vovô velho ali. Mas hoje a gente
não vai dar caxiri pra ele não”, eles falaram: “Ninguém vai
dar caxiri pra ele não.” Ele escutou, ele ouvia, era
poderoso, aí tá bom. Aí juntaram os baldes, os sete baldes
assim. Aí falou com ele, deu bom dia, tomaram bênção,
falaram que não iam dar caxiri: “Ah! Eu já vou.” “Tá bom.”
Aí ele disse: “Os sete baldes vão virar pedra.” Pronto. Na
hora que ele saiu, que deu as costas, quando foram olhar,
os sete baldes viraram pedra, tava tudo encarreradinho. Aí
ele não bebeu e o marido também não bebeu.
Transformou os baldes em pedra, tudo em pedra. Essa era
a história que ela contava, do Macunaima que ele era
viajante. Ele, não sei como é que ele era, não sei se
Macunaima era pesado, se ele chegasse numa pedra assim.
Se ele passasse a mão, do jeito que ele passava, ele
desenhava, não sabia como fazia isso. Pois se ele chegasse
aqui: “Senhor, eu vou deixar a marca do meu pé em cima
dessa pedra”, ele pisava e ficava a marca do pé dele.

DF: Eu já ouvi também.


DP: Tudo ele fazia. Não sei como é que ele fazia isso.
A pedra ficava mole... Essa é a história dele, ele era muito
poderoso.
DF: E do Canaimé?
DP: Do Canaimé é só pra fazer mal aos outros.
Projeto: Panton 3
DF: Ah é!
3 Projeto: Panton
DP: É. Canaimé é igual a uma coisa... O Canaimé é igual
como são esses bandidos hoje. Aí às vezes ele chega com
aquela inveja do senhor, aquela inveja, aí ele vai lhe perse-
guir. Ou às vezes um parente, isso é como uma coisa... ele
é revoltado. Vamos dizer, tem um que mata algum parente
dele, pra lá, então ele vem lhe perseguir até lhe matar, ou
a tua família. Ele tem que fazer alguma coisa com a sua
família, se ele não pode lhe pegar então vai pegar um da
sua família, ou seu filho ou seu irmão, ele tem que
descontar aquilo que ele quiser. O Canaimé é assim, ele
vira de todo jeito assim. Aí quando ele pega pessoa diz que
ele usa, tira dente de cobra cascavel. Ele usa vários tipos
pra lhe maltratar, que o dente de cascavel, ele tem
veneno. Aí quando ele pega, enforca, aí cheira pra fazer
mal, pra morrer mesmo, pra matar. Aí você volta e já chega
em casa com febre. Aí se não tiver nenhum pajé perto pra
ver, aí você vai morrer. Às vezes tem pajé perto, né,
chama, diz o que aconteceu: “Canaimé bateu fulano... Vai
correr atrás de pajé.” Pajé vem, vai bater folha: “Não, foi
Canaimé. E tem remédio. Vão fazer remédio.” Às vezes
escapa. Mas quando não tem pajé perto...
DF: É complicado.
DP: É complicado. Morre mesmo.
DF: O senhor conheceu algum caso?
DP: Conheci vários casos que tinham acontecido isso.
DF: E o que é que o senhor pensa a respeito?
DP: Do Canaimé?
DF: Eh.
DP: Eu não sei nem o que a gente pode fazer dele.
DF: Não sabe, não é! Agora, tão falando que eles tão
descendo por causa das questões indígenas [da Raposa].
DP: Esses que mataram agora ali no Surumu, no Banco,
ele veio de lá, tal de Roberto, conheceram numa serra aí,
era Canaimé mesmo, de lá. Aí ele veio porque eles estavam
perdendo questão lá da Raposa Serra do Sol. Aí eles
Projeto: Panton 3
vieram
3 Projeto: Panton
pra brigar com o pessoal. Mas só que quando chegaram aí,
viram ele, e aí já conheciam ele: “Esse daí era Canaimé lá
da Serra.” Aí já pegaram, mataram ele mesmo.
DF: É, me falaram. E tem algum objeto que a sua mãe
tinha como sagrado, alguma coisa? Alguma coisa que a sua
mãe tinha, algum objeto que ela gostava muito? Dos
antigos...
DP: Eu não me lembro não. [...]
DF: O senhor conhece o fura-olho?
DP: Fura-olho.
DF: Já viu?
DP: Não, nunca.
DF: Nunca? É um pau em forma de garfo que eles fazem
assim, e dizem que era usado antigamente, pra furar os
dois olhos. Nunca viu?
DP: Fura-olho não. Só taquara.
DF: Taquara?
DP: Taquara era usado por Canaimé, que os parentes
iam pra roça e levavam a flecha, que é arma deles. Aí tá
capinan- do, mas ele tá prestando atenção, porque senão
Canaimé atacava eles. Aí ele flechava mesmo o Canaimé.
Ele fazia aquela flecha de maçaranduba. Ele fazia também
taquara, de ferro. Aí quando Canaimé vinha, tava
capinando, prestando atenção, ele nunca ficava entretido
não.
DF: Ficava como?
DP: Ficava olhando. Aí ele tava capinando aqui, aí ele
viu quando a pessoa abaixou. Aí ele já veio logo: “É bem
Canaimé que tá querendo me atacar aqui.” Aí o Canaimé
baixou lá e ele pegou a flecha dele, aí foi pra lá. Ele
calculou, ele tinha baixado: “Eu vou flechar ele agora.” Aí
ele foi pra lá. Aí ficou aqui. Quando Canaimé levantou pra
olhar, aí ele deu no meio da testa dele. Assim que ele fazia,
os parentes, eles flechavam mesmo.
DF: E sabe da história da mulher que foi pega pelo
Projeto: Panton 3
maca- co? O senhor já ouviu uma vez?
3 Projeto: Panton
DP: Não.
DF: Quando um indígena nasce ou morre tem algum
ritual, alguma coisa? Quando nasce, por exemplo, a família
continua normal, acontece alguma coisa, tem o período de
resguardo pro homem também. Como é que é?
DP: Sim. Aí vai por etnia, o macuxi tem a coisa
diferente. Se morrer, eles fazem só enterrar e guardar uns
dias, não é como os outros. Cada etnia tem costume
diferente. São diferentes. Que Yanomami há uma
diferença, eles fazem diferente. E já aqui não, macuxi
morreu, aí faz enterro, aí vai guardar uns dias, aí pronto.
DF: E quando o senhor tá de luto, pode fazer tudo
normal, não pode fazer, como é que é?
DP: Aí não. Aí quando tá de luto tem várias coisas que
não podem fazer. Vai guardar, né, a morte do pai, da mãe.
Por exemplo, se tem festa você não pode participar dentro
de festa, porque você tá de luto. Até um mês ou dois
meses, depende do que você querer. Você não pode estar
naquela folia não, porque durante um mês você tá
resguardando a morte do seu pai, da sua mãe ou de
qualquer família. Então, assim é que eles falavam de
primeiro.
DF: E quando nasce tem alguma coisa?
DP: Quando nasce é só alegria, quando vai nascer um
filho. Antigamente eles faziam caxiri, caxiri forte, aí
deixava guardado. Aí quando nasciam os índios já sabiam,
os outros estão só guardando ali. “Ah! Nasceu o filho do
fulano. Vamos pra lá tomar o mijo!”, que é o caxiri, caxiri
forte, aí era o mijo, na época que eles faziam. Eu conheci
bem, lembro quando a mamãe ia ganhar nenê, mandava
fazer caxiri, pra tomar o mijo. Aí eles guardavam, tiravam
aquele caxiri que tinha o mijo, é álcool puro que ele tá se
formando, isso daí que eles chamavam de mijo. “Onde
vocês moram? Vamos lá tomar o mijo.” “Nasceu fulano de
tal.” Aí a alegria dele era ir pra lá tomar o mijo.

RS: O mijo, mas era de caxiri.


Projeto: Panton 3
DP: Não vai dizer que era mijo da criança.
DF: E Puçanga, o senhor conhece alguma? Já viu alguma?
DP: Eu já ouvi contar história. Tem gente que fazia, né.
Que puçanga, que diz que a cobra mais traidora é a jiboia.
Aí tinha homem que usava puçanga pra mulher pra ver a
cabeça da jiboia e o rabo, aí diz que guarda. Aí quando
chegava assim, que gostava de uma menina, não sei como
é que ele fazia ali, então essa cabeça de jiboia fazia essa
menina gostar dele.
DF: [Risos]
DP: Isso aí que chamavam puçanga. “Ah! Fulano parece
que fez puçanga.” “Por quê?” “Ah! Porque aquela menina,
tanta mulher que gosta dele. Acho que era puçanga que
ele tinha.”, que era que ele fazia com a cabeça de jiboia,
né. “Olha, ele tem cabeça de jiboia.” Aí começavam. Aí
sempre acontecia isso, tinha isso pra fazer. Não sei se é
verdade, mas eu sei que tinha.
DF: O senhor conhece alguma história assim de
macaco, de onça, que o senhor já ouviu falar? Que onça fez
aquilo, que macaco fez aquilo, que jabuti era onça... O
senhor co- nhece alguma?
DP: Tem uma história aí do macaco, com o veado e onça.
DF: Aí como é que é?
DP: É que um Veado tinha um gado. Aí quando foi um
dia a Onça foi lá e levou um boi pra ele: “Veado, toma
conta do meu boi?” “Tá bom. Pode deixar aí com meu
gado.” Aí ficou tomando conta. Aí quando foi com cinco
anos, aí a Onça decidiu ir lá, disse que gado dele tinha
aumentado, aí queria metade do gado do Veado. Aí diz que
o Veado tava triste lá, aí o Macaco vinha. O Macaco chega:
“O que foi, camarada? Tá triste?” “A Onça deixou um boi
aqui, tá com cinco anos, e agora diz que já produziu e quer
levar metade do meu gado.” “Rapaz, deixa de ser besta!
Tu diz pra ela me esperar amanhã até nove horas, que eu
venho aqui advogar teu caso.” O ma- caco falava que ele
tava andando. “Mas tu vem?” “Eu venho. Não pode dividir
3 Projeto: Panton
gado enquanto eu não chegar.” “Então tá
Projeto: Panton 3
bom.” Aí já ficou mais animado, que o Macaco ia advogar o
caso. Quando foi oito horas, Onça chegou. “Ah! camarada
Onça, Macaco disse pra tu esperar ele.” “Que hora que ele
vai chegar?” “Nove horas ele ficou de chegar.” “Então tá
bom. Eu vou esperar.” Deu nove horas, nada. Nove e meia,
nada. Dez horas lá vem ele: “Lá vem ele.” Mas já vinha
com coisa na cabeça pra ganhar gado do Veado. Aí ele
disse: “Agora, camarada Macaco.” “Agora, rapaz. Agora
que eu venho chegando. Eu ia saindo lá de casa, tava aqui
na metade da viagem, mandaram me chamar, mandaram
me chamar que o meu pai tava sentindo dor pra ganhar
nenê.” “Mas, camarada Macaco, onde é que tu já viu
homem ganhar nenê?” “Pois é, e como é que tu quer que
teu boi produza?” Aí ele advogou causa, ganhou só uma
questão.

DF: Ah! Entendi.


DP: Então, acabou-se, queria ganhar gado... Então, foi
ad- vogado o Macaco, por isso que hoje ele é sabido da
história. Ele é muito inteligente, até hoje ele tá aí, mas ele
é inteligente pra mandar. A história dele, ele já foi
advogado já.
DF: Entendi. O senhor conhece alguma outra história?
DP: Bom o que eu sei tem do timbó também.
DF: Sabe do timbó?
DP: Eh. Do timbó era conhecido também pelo menino.
Que ele saía pra caçar, aí uma Anta, ela viveu com esse me-
nino. Não sei como é que se criavam na mata, né. Aí ela
ficou grávida desse homem. Aí os caçadores entraram na
mata pra caçar. Aí os cachorros deram logo com ela, com a
Anta que tava buchuda, já tava pra parir já. Aí os cachorros
correndo atrás, aí ele correu pra fora. Ele era homem,
perfeito, aí os caçadores estavam na mira certa. Aí ele foi e
disse pra eles: “Olha, vocês não vão atirar no bucho da
Anta não, vocês atiram na cabeça dela, que ela tá
buchuda”, disse pra eles. Aí por que esse homem sabia
assim. Aí cachorro vinha com ela correndo. Aí quando ela
caiu n’água eles atiraram mesmo na cabeça, aí mataram. Aí
3 Projeto: Panton
ele logo se apresentou, aí quando atiraram, ele chegou. Aí
quando mataram ele disse: “Vocês
Projeto: Panton 3
têm faca?” “Tem.” Aí cortaram ela e ele tirou. Era um me-
nino. Gerou numa Anta. A Anta gerou gente. Aí tiraram, ele
tava pra nascer, aí tiraram ele. Ele tomou mais cuidado que
era filho dele, tirou, deu banho ali. Aí quando ele deu
banho no poço, aí as piabas começaram a virar. Aí ele
disse: “Não, esse daqui vai ser nome dele Timbó.” Quando
deu pra matar peixe, porque timbó que mata. Então, essa
que é a história dele aí. Ele cuidava muito do menino dele.
Aí todo mundo quando queria pescar assim no poço, aí
convidavam ele. Se ele mergulhasse no poço, aí os peixes
já iam morrendo. Aí lá convidavam, toda pescaria assim,
chamavam ele, aí ele ia. Aí chega lá, manda ele mergulhar,
aí ele saía, aí os peixes já vinham com ele, já iam jantar
peixe. Aí ficaram com inveja dele: “Nós vamo matar esse
menino.” Aí quando foi um dia diz que levaram pra um
lago, onde tinha uma cobra que botou quebrante pra ele
morrer. Aí chegaram, já tava tudo preparado pra acabar
com ele, pra matar ele. Ficaram com inveja. Convidaram
ele. Ele foi. Aí ele mandou: “Mergulha direto bem aqui
assim!” Ele mergulhou e foi sair lá com essa cobra. Aí a
cobra flechou ele. Aí ele saiu d’água, os peixes não
morreram mais, aí ele saiu triste. Aí o pai dele ficou
preocupado: “Agora sim. Botaram quebrante no meu filho
e o meu filho não tem nenhum pajé por aqui, meu filho vai
morrer.” Ficou com ele. Aí como eles iam pra matar ele, se
arrumaram e foram embora. Deixaram só ele lá. Aí ele
ficou lá e morreu o filho dele. Ele ficou lá com ele: “Agora
sim, o que é que eu faço.” Aí ficou lá sozinho, aí já tava
apodrecendo. Aí: “Eu vou levar meu filho”, mas era
garotinho mesmo. Aí essa história que conta, tem aquele
timbó que tem aquelas frutinhas. Essa o senhor ainda não
viu não, né?

DF: Já sei que tem um timbó que faz da raiz.


DP: Então, daquelas frutinhas é ovo dele, quando caiu.
Então, esse timbó que dá aquelas frutas. Aí timbó de raiz é
da coxa...
DF: Da coxa dele.
DP: Da perna dele. Aí é o timbó de raiz. Então, esse daí
Projeto: Panton 3
foi desse menino que criou timbó. Porque tem o que dá de eles aprenderam alguma
frutinha e tem o de raiz que dá no chão, do chão que caiu coisa, por outra parte eles
da perna dele. Esse ovo dele que caiu é o que dá de rama, fracassaram as comunidades,
aí dá aquelas frutinhas, o timbó também. Daí a história que saíram muito e não tão
dele. Contavam um monte. Mamãe que contava essa
história.
DF: É, eu já ouvi ela, mas ela assim, é diferente em
algumas coisas. [...] E dentro da comunidade, o senhor
conhece uma outra história assim, que o senhor tenha
ouvido?
DP: Pela comunidade...
DF: Eh. Pode ser a que o senhor tenha ouvido contar.
Outra história que a sua mãe contava... Qualquer uma.
DP: Até agora não. Não sei se Regina vai lembrar de
alguma que ela sabe da comunidade.
DF: Tá certo. E como que segue a educação na comuni-
dade hoje?
DP: É a educação é assim muitas coisas. 70 E muitas tam-
bém os indígenas aprenderam assim coisas que, nós
dizemos, pela educação. Primeiro os indígenas não saíam
pra estudar. Elas cresciam e os homens também na
comunidade. Crescia, se casava, se formava ali
trabalhando. Aí a gente vê, de uns tempos pra cá, que a
educação, ela fazia muito o nosso pessoal da comunidade.
Se quiser, um jovem, um homem ir estudar ele vai estudar.
Às vezes vai pra cidade e não quer mais voltar. A mulher, a
gente coloca também: “Não, eu quero fazer faculdade,
vou pra Boa Vista”, aí não volta pra essa comunidade.
Então, as comunidades foram acabando com os indígenas.
De primeiro não, elas se casavam com vinte anos, vinte
cinco e ficavam na comunidade, morando, se casavam aqui
mesmo, é por isso que aumentavam muito. Então, tem
muitas comunidades hoje que elas estão muito vazias por
causa da educação. Que vai estudar pra outro colégio fora
da comunidade, termina não voltando mais. E muitas. Na
Curicaca conheci, elas foram tirar: “Não, eu vou estudar
em Boa Vista.” Aí elas foram acabando. Por uma parte,
3 Projeto: Panton

70
Há nesse ponto um peque- no trecho incompreensível.
Projeto: Panton 3
voltando mais.
DF: Por isso que é bom fazer a escola na própria
comuni- dade. E dificuldade hoje, quais as principais
dificuldades das comunidades hoje?
DP: Como assim dificuldade?
DF: O que mais atrapalha a comunidade a crescer, o
desenvolvimento da comunidade, o que é que é difícil
hoje?
DP: O que atrapalha muito assim na comunidade é a
bebida alcoólica. Bebida alcoólica atrapalha a vida da co-
munidade, que às vezes você tá bem, trabalhando, e aí de
repente toma, aí começa, atrapalha a comunidade. Hoje a
gente vê através da bebida. Até o caxiri forte, ele também
atrapalha. E quando é só caxiri que você faz, levanta ele
hoje pra tomar amanhã, todos ele toma, é criança, todos
tomam, porque é um caxiri doce, né, ele não prejudica
nada. Mas se você deixar ele fermentar, ele vai prejudicar,
porque um bebe mais, aí vai ficar bêbado, vai discutir com
outro, aí começa a atrapalhar a vida da comunidade.
DF: O alcoolismo.
DP: O alcoolismo.
DF: O senhor conhece a história de algum, alguma coisa
assim relacionada a algum animal? Alguma história falando
de peixe, de alguma coisa ou não?
DP: De peixe...
DF: É. Alguma coisa assim de algum animal, alguma his-
tória aí. Conhece alguma?
DP: Não.
DF: Não, né. Tem algum amuleto, alguma coisa pra
trazer sorte assim ou não? Que o senhor já ouviu falar
alguma vez.
DP: Não.
DF: Amuleto, alguma pedra, alguma coisa que possa ter.
DP: Não. Tem não.
3 Projeto: Panton
DF: E os meninos assim, por exemplo, tem algum tipo de
Projeto: Panton 3
iniciação pros meninos e pras meninas? Quando elas estão
virando moças, fazem alguma coisa ou não fazem mais?
Ou nunca fizeram?
DP: Não. Isso aí só com a mulher que pode contar alguma
coisa.
DF: E pros meninos então, pros rapazes? É porque tinha
uma cultura que cortava assim...
DP: É. Mas hoje não faz mais isso.
DF: Não faz não.
DP: Não. Já esquecemos muita coisa disso aí que o se-
nhor falou.
DF: E o senhor lembra mais de alguma coisa?
DP: Não.
DF: Então, tá certo seu Domício. [...]Tem alguma
história que o senhor queira contar, alguma coisa?
Qualquer coisa que o senhor lembre que o senhor queira
falar.
DP: Por enquanto não.
DF: Não. Então, manda um recado pra alguém que vai
ver essa fita do senhor daqui a duzentos anos. [Risos]
Manda um recado. Pense que daqui a duzentos anos um
neto, um bisneto, um tataraneto do senhor vai pegar esse
material todo e vai ler o recado que o senhor deixou pra
ele. O que é que o senhor falaria pra ele?
DP: Só deixar um recado de lembrança pros netos, pros
filhos, é o recado que eu deixo pra eles.
DF: Que manda lembrança pra eles. Tá certo. Obrigado.
3 Projeto: Panton

Eu sou eu, eu sou eu filho do lnsikiran.

Estou rezando este menino pra ele ficar bom,

Porque a doença virou nele, bicho virou ele, doença pegou.

Fiz ele melhorar. Sim, sou filho do lnsikiran.

O filho do lnsikiran fez ele levantar, filho de Anikê fez ele levantar.

Com filho de Makunaima fiz ele levantar, fiz ele comer.

Com puçanga fiz ele ficar esperto, com Makunaima, com puçanga,

Com minha comida, com minha peneira.

Com meu mel fiz ele ficar bom.

Fiz ele levantar pra ele nunca mais ficar doente,fiz ele levantar.

Sou eu filho de lnsikiran, filho de Anikê, filho de Makunaima.

Fiz ele levantar, para nunca mais ele ficar doente.

Fiz ele levantar, sim, sou eu filho do lnsikiran.

Rezado por José Vítor da Silva

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