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A ORGANIZAGAO NEUROFUNCIONAL DA PSICOMOTRICIDADE: introdugao @ obra de Luria Aleksandr Romanovich Luria, juntamente com Vygotsky, Leontiev ¢ Rubinstein, é um dos psicélogos russos mais considerados interna cionalmente, sendo uma figura pioncira da neuropsicologia mundial. Seus trabalhos, marcadamente de cunho dinico-experimental, esido muito ligados ao estudo dos mecanismos do cércbro ¢ das suas relacoes com as manifes- ages expressivas e concretas do psiquismo hui mano (Whittrock et al., 1972). Para lancar o desafio da aceitagao universal deuma tcoria psicomotora do ser humano, men- sagem essencial deste livro, sem ddvida Luria for- nece intimeras pistas de inyestigacao, principal- mente as que dizem respeito a relagdo cértex- motricidade. Para Luria (1966b, 1975a, 1980), 0 cérebro humano € 0 produto filogenético ¢ onto- genético de sistemas funcionais adquiridos em varios milhées de anos, ao longo do processo s6- cio-histérico (sociogenético) da espécie humana. Lawia (Luria, 1966b, 1975a, 1980; Luria etal, 1977) define sistemas funcionais como a coor- denacdo de reas ein interacao no cérebro, ten- do em vista a produggo de um dado comporta- mento ou conduta, consubstanciando qualquer processo de adaptacao ou de aprendizagem cujo produto final stubentende um processo cognitive complexo, O desenvolvimento ¢ a aprendizagem, no modelo luriano, resultam, portanto, da criagao de conexdes entre muitos grupos de células que se encontram posicionadas em disiantes areas docérebro, Conseqilentemente, a aprendizagem da praxia, da leitura, da escrita ou do célculo, & luz deste modelo, implica que no eérebro da cri- anga se opere um proceso ativo conjuntural ¢ reorganizador de sistemas funcionais miiltiplos ¢ de integracao progressiva. E nessa ética que a crianga normal, também segundo Piaget (1967), evolui de uma inteligéncia sensorial a uma inte- ligéncia formal, pasando pelas inteligéncias pré- operacional ¢ operacional conereta. Pata Luria (1969, 1970, 1973), a maturacio cerebral efetua-se, igualmente, através da emer- géncia de sistemas funcionais, pondo em jogo ¢ em interacao sistémica varios conjumtos de cé- lulas neuronais bem especificos. £, portanto, a instalagao de conexées ncuronais provocadas pelaaprendizagem que, sucessivamente, vai per- mitir a integracdo complexa da informacao multissensorial, que ilustra a passagem da lin- guagem corporal 3 linguagem falada, e desta & linguagem escrita (Fonseca, 1999, 2002). Segundo o pensamento luriano, as aprendi- zagens resultam da seqiiéncia hem definida de estddins ¢ da integracao complexa de circuitos neuronais disponiveis, ilustrando uma reorga- nizacdo cognitiva progiessiva, onde cada area pode operar unieamente em conjugacdo com oultas areas a fim de produzir comporiamen: tos, como, por exemplo, andar, jogar, manipu- lar, falar, ler, escrever ou resolver problemas. Nenhuma drea do cérebro pode ser conside- ada a tinica respansével por qualquer compor= tamento humano vohmntario ou superior, exata~ 406 Desenvolvimento psicomotor e aprendizagem, GRAFOMOTRIG DADE ‘4 mil angs 8.6. ‘OROMOTRICIDADE ‘Lmingo de anos LIGUAGEM ESCRITA (linguagem logogratica e visuopratiog) LINGUAGED FALADA (linguagem auditivo-verbal) LINGUAGEM CORPORAL (inguagem mimice-gestuel fe tatl-cinestesica] mente porque o desempenho ou a realizagao de fungdes se fundamenta em uma interagao di- namica ¢ sistémica de muitas areas do oérebro, isto €, uma espécie de equivalente funcional a0 que sugerem os “equipotencialistas”, mas, como 0s “localizacionistas”, Luria conlere, igualmen- te, funcbes especificas a cada area do cérebro. Para andar de bicicleta, nadar, let, escrever ou calcular, por exemplo, o cérebro poe em agdo, para cada um dos processos, um complexo siste- ‘ma funcional total, composto de varios subsiste mas visuais, auditivos, tdull-cinestésicos, vesti- bulares, proprioceptivos © motores, que intera- tuam seqiiencialmente e harmonicamente. Desta forma, Luria coloca-se em uma posigao em claro desacordo com ambas as teorias. Porassumir que algumas Areas, ¢ nao todas, se combinam ¢ se articulam para gerar comportamentos, este pio- neiro russo esta em contradicao com os localiza- cionistas. Paralelamente, como o tecido cerebral 6 psicoldgica e fisiologicamente especializado, Luria est em contradicéo também com os equipotencialistas, Em s{ntese, as aprendizagens ndo-verbais € verbais resultam do funcionamento de sistemas que integram varias areas do cérebro, mais do que de dreas espectficas bem determinadas. De acordo com este axioma, uma dada aprendiza- gem pode ser afetada quando qualquer parte do sistema funcional por ela responsével estiver, igualmente, perturbada. Com base nesta per pectiva, um individuo pode apresentar, por exem- plo, sinais de dispraxia ou de dislexia, ou mes- ‘mo de apraxia ou de alexia, sem apresentar le- ses no cértex motor (denominado centro motor pelos localizacionistas) ou no giro angular (de- nominado centro de leitura pelos localizacio- nistas), dado que podem verificar-se disfiungdes em: alguns componentes do sistema funcional da mouicidade ou da leitura Consegiientemente, 0 conceito de sistemas funcionais é, para Luria, diferente dos concei- tus inerentes as teorias da localizacao ou da cquipotencialidade. A teoria da localizacéo, pre- conizada por frenologistas, como Gall, citado por Luria (1980b), sugere que todos os compor- tamentos resultam de areas ou centros especi- feos do cérebro (p. ex. centro da marcha, cen- to da fala, centro da leitura, centro da escrita, centro do célculo, etc.) e, conseqiientemente, indica que todos os transtornos ou lesGes po- dem ser adstiitos a dreas cerebrais circunsc tas. A teoria da equipotencialidade, defendida por outros autores, principalmente Flourens, também citado por Luria, ¢, essencialmente, Lashley (1929), em contrapartida, sugere que todos os comportamentos envolvem a pattici- pacdo equitativa de todas as areas, ou seja, de- fende que nenhuma drea pode conclusiva- mente especificar uma aprendizagem particu Jar Halstead (1947), nas suas pesquisas com intimeros portadores de lesbes cerebrais, nao conseguiui encontrar evidéncias factuais que sustenlassem os pressupostos desta doutrina de “agao em massa’. A visio de Luria é inequivocamente diferente de ambas. Para ele, nenhuma 4rea do cérebro se pode considerar responsavel por qualquer apren- dizagem, ou por algum comportamento particu- lar, Por analogia, nem todas as Areas so consi- deradas igualmente contribuintes para a praxia global ou fina, a leitura, a escrita ou o célculo, A teoria luriana dos sistemas funcionais concebe que 0 cérebro opera apenas com um mimero li- mitado de éreas quando esta envolvido na pro- dugo de uma aprendizagem espectfica, cada uma delas desempenhando um papel peculiar dentro do sistema funcional, denominado cons- telagao de trabalho. Anogio de sistema funcional tende a equacio- har uma concatenagio ou uma cadeia de trans- missao, onde cada ligacio, elo ou zona de media do representa uma drea particular, Cada clo é hecessario para que a cadeia seja uma toralidade funcional, cada um participando com uma fun- ao especifica no sen conjunto estratural. Dai re- sulta a nogao de que, se alguma parte do sistema funcional esté disfuncional ou desagregada, em termps sistémicos, a aprendizagem representa- da pela cadvia funcional pode obviamente ser aletada, como eviclenciam intimeros casos elini- cos de incapacidade de aprendizagem (Luria, 1977a, 1977), por exemplo, de agnosia (distur Gio de input), de afasia (disfungao de integracao € de claboragio) ou de apraxia (disfuncao de output). No caso das dificuldades de aprendiza- ‘gem, como, por exemplo, de dispraxia, disfasia, dislexia, disortogralia ou discalculia (denomina- da dismatematica por alguns autores), também se podem identificar formas mais sutis ¢ leves (denominadas sofi na bibliografia anglo-sox0- nica) de imaturidade, disfungao ou desagrega- Go da cadeia funcional que ilustra as aprendi- zagens escolares correspondents, Para esclarecer essa questo, Luria propde a nogio de pluripotencialidade, reforgando aidéia de que qualquer dtea especilica do cérebro pode Vitor da Fonseca 407 participar de intimeros sistemas funcionais a0 mesmo tempo, reforgando a extraordindria plas- ticidade do drgio da aprendizagem. Em conse- qiiéneia dessa propriedade neuroluncional, além de muitas outras (Fonseca, 2001), se uma area do cérebro se encontra lesada, disfuncional ou imatura, varias aprendizagens podem estar com- prometidas, e nao apenas um determinado tipo, dependendo do numero de sistemas funcionais nos quais tal drea participa. Em sintese, as varias areas do cérebro nao tabalham isoladas, uma vez que uma dada aprendizagem s6 pode cmergir quando resulta da conperagio sistémica, harmonica e sinergética das mesinas. Assim € também no surgimento das subcompeténcias ndo-simbélicas ¢ compe- téncias simbélicas da leitura, da escrita e do cal- culo. Deatro do mesmo contexto, Luria refere Se a0 conceito de sistemas funcionais alternati- vos, sugerindo que uma dada aprendizagem ou processamento de informacao pode ser produ: ‘ido por mais de um sistema funcional, evocan- do que 0 céiebro, como érgao de incomensuré- vel flexibilidade, nao sc estrutura ou se reorga- niza com base em sistemas funcionais fixes, ri- gidos ou imutaveis Por este conccito, explica-se por que muitos individuos com lesdes, disfungaes ou traumatis- mos cerebrais no apresentam os déficits espe- rados ¢ muitos deles recuperam espontaneamen- te algumas funcdes, independentemente da sua lesao subsistir. Por analogia, quando identifica- mos varios sinais de dispraxia global ou fina, de dislexia (dislonética, diseidética ou mista) ou de disortograiia, também nao podemos toma-los como indicadores fixos ou perpétuos do poten- ial de aprendizagem, razao pela qual, em muitos desses casos clinicos, uma prescri¢éo psicocdu- cacional bem desenhada a partir de um diagnds- tico psicoeducacional dindmico pode superar ¢ compensar a vulnerabilidade dos componentes ‘esubcomponentes que parti clonal da leitura, da escrita ou do caleulo. Neste dominio, Luria (Luria, 1979, 1975b, 19754, 1968, 1969; Luria e Tsetkova, 1987) adian- ta que a recuperacio de fungdes apds lesGes tal- vez se verifique porque: 408 Desenvalvimento psicomotor e aprendizagem ~ as competéncias decorrentes de niveis su- periores de integragdo cerebral, em al- guns casos, podem compensar competén- Glas adstritas a niveis inferiores; = a recuperacio de fungbes psfquicas su- periores pode ser alcangada por reforco, automatizacan ou enriquecimento de fungées psiquicas basicas: = 0 papel de uma dada area lesada pode ser assumido por outra area do cérebro. Océrebro, em condigdes ambientais normais, € um orgao plastico e flexivel, c nessas condi ges que o proceso de aprendizagem decorre. Se surge um problema on uma dificuldade, por lesdo, imaturidade ou por outra razao, nao quer dizer que o sistema funcional esteja prospectiva~ mente bloqueado ou desagregado. Pelo cont rio, 0 que esta concepgao sugere ¢ algo muito diferente. Se existe alguma dificuldade, pode- mos mudar a natureza da tarefa (condigdes ex- ternas) ou a composigao do sistema ou cadeia funcional, mudando a localizagio neurofuncional do processamento da informacio (condigées in- ternas), alterando, conseatientemente, a moda- lidade de input ou de output, adequando nevas formas de processamento simultaneo ou seqiiencial da informagio, modificando 0 con- tetido verbal para nao-verbal, ajustando a estru- tura mental de um componente para subcom- ponentes mais elementares ou, entdo, promover ¢ automatizar as fungdes cognitivas de processa- mento de dados (input, elaboragio ¢ eutput) ete, adaptando a tarefa ao estilo ¢ ao perfil cognitivo de aprendizagem do individu. Apesar de saber-se ainda muito pouco como ser humano aprende e como seu cérebro fun- ciona, ¢ de a andlise cérebro-aprendizagem ser ainda muito rudimentar, a teorid neuropsicol6- gica de Luria apresenta uma arquitetura per- ceptivel para compreender como a aprendiza- gem se estrutura, pois apéia-se em um grande niimero de investigagées neuropsicolégicas realizadas sobre o problema (Golden, 1981). A organizagao funcional do cérebro proposta por Luria permite entender como os sistemas funcionais trabalham, seja nas praxias ou na linguagem. ‘As aprendizagens escolares da leitura, da es- crita e do calculo, compostas de componentes receptivos (input), integrativos, claborativos ¢ expressivos (ouput), emergem da cooperacao de varias reas ou zonas corticais e subcorticais, ¢ nao, como se pensava na teoria neuirolégica clés- sica, de uma s6 area especifica. Tal cooperagao complexa joga com a participagao particular de cada uma das éreas cercbrais, relacionadas com um dado sistema funcional, de modo que a sua disfuncao, imaturidade on destrnicao, como no causa a perda total da perjorntance (afungio), induz, necessariamente, a desarticulacéo ou desconjuntura de algumas subfungoes, enquan- to outras se podem manter intactas, 0 que ¢ de- veras promissar em termos de modificabilidade hhabilitativa para muitos casos clinicos. (© PAPEL DOS ANALISADORES PROPRIOCEPTIVOS. E EXTEROCEPTIVOS Como j4 mencionei nos capftulos sobre Wallon e Ajuriaguerra, o ser humano dispoe de: uma sensibilidade interoceptiva: do in- terior do corpo, de raiz visceral; — uma sensibilidade proprioceptiva: do matis- culo, do tendao e da articulacao, da acao da gravidade e da motricidade sobre o cor- poe, igualmente, da pele; uma scnsibilidade exteroceptiva: do mundo exterior, espacial, temporal, am- biental, objetal e sociocultural. Luria (1966b, 1966c, 1975a, 1975c) como que reforca esta sensibilidade emanada do organis- mo complexo do ser humano ao dar também, grande importancia ao papel dos analisador proprioceptivos ¢ exteroceptivos na integragio, naelaboragao ena execucio da motricidade com- plexa ¢ voluntatia. Segundo este autor, a mo- tricidade resulia da informagéo dada por tais analisadores, que € posteriormente trabalbada e refletida no cérebro, por meio de uma atividade mental analitico-sintética Vitor da Fonseca 409 MOTRICIDADE <——— mUsculo, ¢—— MUNDO EXTERIOR = 4» Nass EXTEROCEPTIVOS ¢——> pROPRIOC=PTvOS CORTEX ‘ANALISADORES |———> ATIVIDADE ANALITICO-SINTETICA, INTEROGEPTIVOS. Ousseja: pensamos o mundo exterior de uma forma material econcreta através da motricidade. De fato, a motricidade, desde o primeiro dia de vida, assegura a maturacao ea organizacao inte- grada do sistema nervoso, sendo, simultanea- mente, a materialidade sobre a qual assenta a construgo da histéria de cada um. Necessaria- mente, neste aspecto evolutivo, por sua vez, cs implicita uma relagio de unidade entre 9s cen- tros de meméria ¢ 0s centros de integracdo per- ceptiva. Sao estes tiltimos, para Luria, os ana- lisadores peritéricos distais (visio ¢ audigao) e proximais (proprioceptividade, pele, sentido do {ato, sentido cinestésico e sentido vestibular] Portanto, a motricidade, como comporta- mento intencional, nao é 0 resultado de contia- ées musculares puras, mas, sim, uma resposta auma causa exterior (‘pwt) integrada e conser vada por uma atividade superior de anidlise e sin- tese e que se materializa sob a forma de uma acdo ou gesto humanizado (output). 6 interes- sante recordar, em paralelo, que a antropologia fundamenta a adaptacao biolGgica do ser hu- mano também em termos de motricidade Assim, segundo esta perspectiva antropol6gi- a, foi a motricidade que gerou uma auténtica sevolugao morfologica e anatémica no homini- co, ao provocar profundas alteragoes ¢ liberia- ‘GOes 6sseas nos membros, devido as transforma- ges pravocadas pela postura bfpede na locomo- 40, na denticio, na mandibula, no aparelho di. gestivo, no sistema visual, na expansio e ativagio cerebral, ua migracao e comunicagao dos neurd- nios, etc. (Fonseca, 1989a, 1999b, 2001, 2003). REGO i INPUT —> esis seesice_|oewrros| ons a prcisho| _ | MascuLos| es fe COMPORTAMENTO- : Smee) NO eae SISTEMA DE FEEDRACK A410 Desenvolvimento psicomotor e aprendizagem ‘© CONTROLE PSIQUICO DA MOTRICIDADE © macaco, por exemplo, como tem de adap- tar-se a drvore como ecossistema complexo, de- senvolve naturalmente, por un lado, membros de preensao, por isso é quadrimano, €, por ou- 110, 0 sentido da visao estereoscépica, uma vez que para ele trepar ¢ saliar de galho em galho nao é possfvel, com o sentido doolfato como ana- lisador sensorial preferencial, como na maioria dos mamifferos, cuja adaptagio é essencialmen- te terrestre Pela mesma razao, o ser humano, jé bimano, pela especializacao postural dos seus pés, precisa desenvolver 0 controle interior (proprioceptive, tatil-cinestésico, vestibular) do seu corpo em movimento transformador criador, isto é, pra- sxico, para garantir uma pestura bipede que lhe Iiberte as maos da gravidade c da locomogao para a funcao criadora do trabalho e da fabricacio de instramentos ¢ de ferramentas. Esse controle interior representa, pois, a organizacéo cortical da motricidade humana na stia unidade dialética de relagao entre 0 corpo ¢ 0 cérebro, € entre 0 movimento e © comportamento, entendido como relagio inteligivel e internalizada entre a situacao e a acdo. O corpo surge, portanto, mais uma vez, como @ componente material do ser humano que, por isso mesmo, contém o sentido con- creto de todo 0 comportamento sécio-histérico da humanidade, 0 corpo nao é, assim, 0 caixo- te da alma, mas o enderego da inteligéncia. 0 ser humano habita o unundo exterior pelo seu corpo, que surge como um componente espa- Gal e existencial, corticalmente oxganizado, no qual ¢ a partir do qual o ser humano concentra e€ dirige todas as suas experiéncias ¢ vivencias, Estou, pois, de acordo com Luria (1961, 1964, 1966a, 1966b, 1979), quando este destaca a im- portincia da motricidade no desenvolvimento global (bioldgico, psicoligico e social) da espé- Ge humana e, obviamente, da crianga. Note-se como, desde os primeiros segundos de vida, € a motticidade que cria os dados necessatios para uma organizacao sensorial ¢ neuronal interna- mente estruturada c, em conseqiiéncia, também qa a necessidade de um suporte ou de um ali- cerce autocentrado em que possa assentar todo 6 desenvolvimento das estruturas perceptivas, cognitivas e motoras {por isso adaptativas), que, por sua vez, permitirao ao ser humano ser um ‘animal cultural e social”, capaz de realizar ages para alguma coisa, ou seja, materializar proje tosintencionais de uma adaptagao interiorizada ¢ transcendent Note-se também como, sem essa via em cor ticalizagao progressiva c hierarquizada, nao vi- xia a ser possivel, a partir da motricidade (ma- cau e micro), chegar mais tarde no desenvol mento normal & linguagem (oro € grafomo- tora). Sem dtivida, pois, Luria (1969a, 1969b, 1973) surge na mesma linha de psiquismo dos varios autores europeus ¢ americanos jé abor- dados, tornando-se mais consensual a aceita- cao universal da concepgao psicomotora do ser humano. ORGANIZAGAD SENSORIAL cosricauzecio EsTRUTURAGIO + Moticidade PERCEPIIVA intencional > >| + Unevoem Em suma, pode-se dizer que a motricidade é organizada pelos analisadores exteroceptivos, proprioceptivos e interoceptivos, em trabalho de intima relacéo e interagao com 0 cértex cerebral O CORTEX E A COMPLEXIDADE DA PSICOMOTRICIDADE A organizacéo do o6riex € funcao da comple- xidade da motricidade que, organizada, por sua vez, et comportamentos, resulta da generaliza- Ao ¢ da associagéo dos dados (inputs) sensoriais vindos da periferia (olhos, ouvidos, pele, miscu- los, tenddes, ligamentos ¢ articulagées). Entre 0 mundo exterior (0 ambiente ou os ecossistemas naturais € sociais) ¢ o eértex, diz-nos Luria, exis- te um processo sensorial ¢ neuronal que trans- forma 0 estimulo vindo do exterior (input) em um estimulo significativo integrado mentalmen- te. Dos érgaos sensoriais &.medula ou ao télamo para 0s centros carticais, a sensacio é transfor- mada sucessivamente cm percepcio, imagem, simbolizacao, conceptualizacio. O cértex surge, assim, como um 6rgao es pecializado em analisar os estinmulos exteriores, organizando-os, categorizando-0s, classificando- 08 ¢ transformando-os em experiéncias a reter ¢ a conservar pela meméria como background e re- pertério de informacao a recuperar e arechamar, para elaborar ¢ executar respostas motoras adaptativas para o futuro. Assim, € possivel com- preender poque 0 cértex reflote o mundo exterior ¢, portanto, toda a experiéncia passada, na qual, alias, a mouricidade tem um lugar muito signifi- cativo ¢ primacial. Ora, essa funcao exige que 0 cortex, considerado por Pavlov o sistema mais clevado da auto-regulacio, receba informayaodo mundo exterior, a partirda gual a erianga integra Vitor da Fonseca 411 uma imagem subjetiva (o seu eu intencional) ¢ elabora, planifica eexecuta uma resposta motora adaptada as circunstincias desse mesmo meio. $6 nesta relagao de unidade dialética entre a imagem subjetiva c 0 mundo objetivo é possivel 4 crianga apreciar os resultados dos seus atos, auto-regulé-los ¢ simultaneamente programar wma conduta futura, relacionando teleonomica- mente um objetivo e um fim a atingir, desenca- deando entre os dois momentos da agdo um con- junto de procedimentos que envolve uma casc ta funcional descendente, entre os sistemas fron tais e medulares, pasando pelos subsistemas mo- tores piramidais, cxtrapiramidais, reticulados € cerebelares. Apenas pela meméria a crianca fica apta a associar a experiéncia passada com a experién- cia presente, em uma sobreposicao da memaria interior {passado) com o estimulo exterior (pre- semte 0 aqui € agora da situacao). 6 claro que Luria (1966b, 1966c, 1969b, 1973, 197da ¢ 1974b), ao apresentar esta perspectiva, aprox ma-se de Ajuriaguerra na sua nogo de somato- gtama (conhecimento integrado do corpo), de engrama (integragao cognitiva ¢ afetiva da ex- perigncia anterior) e de opticograma (integracgao do estimulo visual exterior imediato e respective processo perceptivo). Convém recordar como, na visao de Ajuria- gucrra, oopticograma (ou tatilograma ou audio grama) é vokintério, enquanto 0 somatograma © 0 engrama sao automaticos, isto ¢, aparecem sem interferéncia da consciéncia, ou seja, a cons- cigncia, ao decidir executar uma aco, recorre co “armazém das experiéncias sensoriais memori- zadas ¢ integradas” como referéncia para pro- RECEPTOR EsTiMULO EXTERIOR MuNnpo EXTERIOR PROOESSO) SENSORIAL ore) 412 Desenvolvimento psicomotor € aprencizagem duzir uma nova relacao conduta-fim, uma nova conexio idia-acao ou ideomotricidade, Também se pode dizer que, enquanto 0 opticograma tem. por funcao distinguir os sinais exteriores (ex- trassomaticos), que se encontram em mudanca permanente, 0 engrama memoriza a experién- cia anterior ¢ os somatogramas espectficas apren- didos (intrassomaticos), ajustando e calibrando, em termos intcriores, a motricidade ¢ 05 gestos 8 situacto exterior. Eo que ocorre, por exemplo, quando a crian- ¢a escreve, O opticograma permite-The notar Gesde as condigdes de espago do caderno ou do papel, da carteira edo ambiente. © engrama per- mite-lhe 0 uso de automatismos vistoespaciais, adquitidos anteriormente (evolugao iconogrética das letras, das palavras ou das frases), O soma- tograma peumite-lhe o uso de motricidades finas, tais como a preensao do Lapis, ¢ as praxias grafo- motoras harménicas que executam os grafemas, as quais exigern complexos fatores de integracio visuomotora, visuoespacial, (onico-postural ¢té- til-cinestésica Qualquer motricidade, seja ela na escola, no trabalho, no jogo ou na rua, exige um comple- xo programa de organizaco cortical, reunin- do, como mencionei, os és subconjuntos (ou sistemas) segundo a interdepenciéncia que aca- bo de considerar. Quase se poderia dizer que @ relacdo em interdependéncia destes aspectos sintetiza a prépria evolucdo do ser humano. ‘A organizacio do cérebro resultou, seg Lauria, (1975a, 1975b, 1975¢, 1977), da ativida- de motora do ser humano, precisamente na me- dida em que também a maturagao do sistema nervoso da crianca se forma pela atividade desta em uma crescente maturidade de interacdo com o seu ambiente (fisico, abjetal ¢ sécio- Recorde-se, entretanto, como, em termos aniro- poldgicos, a complexa organizacao do cérebro $6 foi possivel devido a extrema e variada moblli- dade das extremidades dos membros do corpo € vice-versa. Tal motricidade ¢ versatilidade, pre- ferencialmente das extremidades peritéricas (pés, maos e boca) ampliou-se dos primatas, pela ne- cessidade da sua adaptagio as arvores, aos seres humanos, pela necessidade da sua adaptacio a um sistema ccolégico mais amplo, como as es! pes (Fonseca, 1999b, 2001), em que a relagio membros-visao se tornouessencial, como se pode constatar no estilo de vida que a atividade de caca sugere em termos evolutivos. Tal necessidade, no entanto, ultrapassou, no ser humano, a adaptacao ecolégica 4 drvare para chegar A necessidade de fabricar ¢ de manipular objetos, ferramentas ¢ utensilios culturais, dat ser necessdrio o cérebro poder e ter que analisar e sintetizar a relagdo entre estimulos exteriores, a propria imagem interior (somatognosia) ¢ as respostas motoras adaptativas, igualmente gera- doras ativas de efeitos ¢ de conseqiiéncias expe rimentades por retroalimentacio eficaz (feed- back), que acabam por renovar e por restruturar sisternicamente a sua organizacao ¢ integragao neuroluncional. Essas consideragées so importantes no do das dificuldades le aprendizagem. Enquanto actianca ndo ouve e vé, no sentido da integragso sensorial e neuronal, cla nao pode aprender a Jer, a escrever ou contar, ou seja, nao podeascen- era fungées psiquicas superiores que s6 podem ‘ocorrer em wm. contexto sécio-histérico. Note-se gue os sistemas sensoriais processam a informa- Glo (visual, auditiva, rétil-cinestésica, ete.) em quatro etapas, segundo Luria: estu- 1, discriminacao (D) 2. seqtiéncializacao (Se) 3. anilise (A) 4. sintese (Si) Vitor da Fonseca 413 [> CEREBRO. ESTIMULO nthe RESPOSTA, Avomivo — --» owiof [B}-+[S}-+[a}-»[s]}—+[ Boca, + ‘novona fous (FALAR) DJ oiscriwunacio ROMOTRICIDADE '$ ]SEQUENCIA A] ANALISE si] sinrese ie ESTIMULO = RESPOSTA. wsuat er) ‘> Wiss} [b}-»[s}-+[a}-»[s]}—>[ao_—) > ‘wotora (ESCREVER) GRAFOMOTRICIOADE O cértex, como conseqiiéncia da adaptacao evolutiva j4 mencionada, torna-se a central de regulagio ¢ de controle de estimulos ¢ de respos- tas, sejam estes 0 som, @ luz ou outa fonte de informacio exterior qualquer, ou, ainda, as ages multifacctas ales adstritas em texmos de com= portamento e de relacdo inteligivel. O cortex exis te, portanto, para e pela aptidio em analisar ¢ sintctizar os cstimulos exteriores, organizando- 5 ¢ categorizando-os, isto é arrumando-os ordenando-os em fungao de qualquer coisa, 0 que inclui 2 sua intrinseca significacdo. Dai que o cortex esteja, por razties de evolucdo, estrururado em Areas primarias, secundarias ¢ tercidrias ow de associagio e de projecio. A area occipital cap- tae integra os estimulos da visio; a area tempo- ral capta e integra os estimulos auditivos; a area parietal capta ¢ integra os estfrmulos propriocep- livos, vestibulares ¢ tétil-cinestésicos Ocértex, como nos diz Luria (1966b, 1966c, 1975a, 1975¢c), integra os estimulos relevantes {desintegrando os estimulos irrelevantes, algo que no se observa em muito casos com per= turbagdes de desenvolvimento) que lhe che gam, através dos miltiplos analisadores sen- sotiais espectficos ¢ periféricos. Essa integracao, alias, ndo é mais do que um poder de coorde- nacio, de co-fungio e de associagao dos varios ou de todos os estimulos vindos de dentro e de fora da totalidade do nosso corpo. 0 nosso e6rtex funciona, pois, como a central telefOnica de uma grande cidade, que recebe as mais variadas chamadas inter-regionais, pondo- as em perfeita eharmoniosa comunicagio—quan- do a poe, pois 05 seus lapses fiuncionais podem cquivaler a pequenas ou grandes avarias entre as Varias redes do sistema, Nas palavras do proprio Luria (1975d, 1977c), 0 cértex surge como uma constelacao de traballio, Para nés, porém, a.cons- telacdo de redes neuronais vai mais longe, che- gando mesmo a ser uma galaxia, Ou seja, 0 cére- bro é como uma galaxia de milhoes e milhoes de estrelas (neurénios), que, reunidas em um con- junto operacional complexo, confere ao ser hu- muanoa possibilidade, c, por isso, a responsabilida- deea intencionalidade de programar e de crientar todas as condutas do seu ser, da sua auto-organ zagio transcendente ¢ existencial. E claro que as constelagées de trabalho de Luria correspondem aos padrées de comporta- mento (behaviour patterns) dos autores ociden- lais e norte-americanos de orientagao cibernéti ca (Halstead, 1974; Heilman ¢ Valenstein, 1979; Lashley, 1921, 1951). Tais constelagées sdo res- ponsaveis pela organizagao de todas as condu- tas intencionais. Note-se que falar em condutas 414 Desenvolvimento psicomotor ¢ aprendizagem Loputo trontal Fiosura sential Fissura cerebral tateral Léoul0 temporal Protuberancia Mesuia Lebulo temporal Lébule aeciptal Cerebalo intencionais 6 mesmo que falar em motricidade intencional, pois, como eu, 0 prépria Luria en- tende nao ser possivel separar os padroes de motticidade dos padres cognitivas, que The dao suporte regulador e diregao estratégica. Surge, portanto, uma nova semelhanca de Luria com Wallon, que, como ele, relaciona 0 a5- pecto motor com o aspecto psiqitico correspon- dente, bem como com Ajuriaguerra, quando este relaciona a préxis com a gnosia. Ou seja, a uma terminologia diferente entre Luria, Wallon ¢ Ajuriaguerra, corresponde um mesmo conteiido ha interpretacao do comportamento humano. ‘Efetivamente, em qualquer conduta humana existe sempre a ligacdo entre o aspecto motor ¢ 0 aspecto cognitivo, £ nessa ligacdo sistémica que esté a unidade do ser em acio, e é exatamente por isso que a psicomotricidade se proclama como ciéncia de sintese, multifacetada, trandisciplinar € epistemologicamente coibida (Fonseca, 1980, 1982, 1985, 1992, 1994, 1998a, 2001a; Fonseca e Martins, 2001). A mais simples e clementar motricidade intencional envolve sempre uma ati- vidade de andlise ¢ de sintese do cértex, na m« dida em que qualquer movimento intencional esté em relagio com uma atividade perceptiva e cognitiva. OS SISTEMAS CORTICAIS DE ORGANIZAGAO DA PSICOMOTRICIDADE Para Luria, a motricidade humana é um com- portamento, isto é, uma relagao inteligivel en- tre 0 sujelio (acto) e o mundo que o envolve (situacao). O comporiamento, porsua vez, éuma unidade na qual os sistemas perceptivos ¢ re- ceptores (recepgao — input) estao em empatia e coibigio funcional com os sistemas motores © efetores (execugdo — output), Ha neste modelo uma constelacéo de traba- lho onde o cérebro a unidade de integragao e de interaggo entre 0s nossos varios sistemas cor porais, por um lado, sensoriais e neuronais e, por outro, motores. A intima inter-relagio entre os varios sistemas € essencial para a realizagéo de uum comportamento ajustado e adequado. Assim, mais umia vez, o dualismo corpo-espirito tor- na-se, nesta perspectiva, ingénuo ¢ inaceitavel, Luria reforca, ainda, toda esta perspectiva a partir da propria estrutura do sistema piramidal. ‘visto como a reuniao das fibras cértico-espinhais. Desta forma, as vias motoras descendentes par- tem do cfrtex piramidal (motoneurOnios supe- riores) ¢ dos subedrtex, passam pelo tronco cere- bral ¢ terminam nos motoncurénios inferiores da medula, Bstes, por sua vez, estao em relaca Vitor da Fonseca 415 ——> ercercio ——___> + RETROALIVENTACAO INTEGRAGAO DECISAG [Ce sciatic ———> sECUGlo, ———+ a com as fibras musculares cuja contragio produz finalmente a motricidade, Este sistema, exclusi vo dos mamiferos superiotes e dos primatas (en- tre os quais se encontra o Home sapiens), parece, pols, ser uma aquisigio filogenética recente (Fon- seca, 1989, 1999, 2001a, 2001b). Para Luria (1966b, 1975a, 1979), 0 sistema piramidal esté em relagio dialética com os sis temas extrapiramidal e cerebelar, as quais, por sua vez, sc constituern como sistema essencial e ‘0 dos animais vertebrados. Como vyertebrado superior ¢ dominante, o ser huma- no, além destes sistemas, agrega ao sistema pi- ramidal 0 sistema frontal pré-motor, ou seja, a unidade que planifica ¢ sustenta a decisdo, que posteriormente desencadeia a execucao fugal da motricidade. E, pois, interessante verificar como 9 sistema extrapiramidal, que “nasce”” mais no tronco cerebral do que no cértex, vai atingir os motoneurbnios inferiores da coluna por vias in- diretas ¢ por neurdnios de associacao. F, assim, natural que o sistema piramidal este- jamais em contato com os miisculos distais e de superficie, também chamadas, como ja mencio- nei, miisculos da vida de relagao, na sua responsa- bilidade direta pelas motricidades voluntérias inteligentes (finas). Também é natural que o sis- tema extrapiramidal esteja mais em contato com 08 miiscules proximais ¢ de profundidade na sua responsabilidade direta pela regulagio da postura da preparacaoc do suporte da motricidade, con- forme jé foi bem expresso em Ajuriaguerra. Para Luria, 0 sistema piramidal conirola ¢ seleciona a formula da motricidade desejada, isto & confere a motricidade a forma, a direcdo ¢ a coordenagao adequadas 8 situagiv-problema. A. motricidade pode, assim, atingir e satisfazer um, fim determinado pensado pelo cértex, ela 6, por este fato, vicdria da cognicéo. E neste sentido que Luria admite a motricidade humana como um comportamento que expressa a materiali- zago de uma intengao. Recordando ¢ resumindo, note-se que, para realizar-se um movimento intencional, torna- se necessario um autocontrole e uma comple- xa selegio de aferéncias, nao sé visuais ¢ audi- tivas (meio exterior) como tatil-cinestésicas, vestibulares, proprioceptivas, ténicas ¢ cmocio- ais (corpo ¢ meio interior). Como jé vimos em Ajuriaguerra, o mtsculo, por intermédio do seu fuso neuromuscular, nao é uma estutura e clusivamente motora, mas igualmente uma es- trutura sensorial. Aqui também fica bem de- monstrado como a tradicionalmente denomi- nada drea motora do cértex nao € apenas uma dreaeletora, mas ¢ também uma estrutura neu- rol6gica aferente complexa. O cortex recebe, portanto, informacées que vem, por um Jado, pelos neurinios centripetos do proprio sistema motor (fuso neuromuscular, corptisculos de Golgi © Facini, etc.) e, por outro, pelos neurdnios aferentes primérios que recebemn informagao do mundo exterior. Logo, somente por uma complexa operacio de andlise e de sin- tese aferencial, o cértex pode regular simultd- nea ¢ eferentemente todos os impulsos interocep- Livos, proprioceptivos eexteroceptivos de um aqui © agora assente subjetivamente em um passado vivido ¢ historicamente experimentado e gno- sicamente integrado, Segundo Luria, esta regu: lacao de sintese motora inerente ao cértex pro- cessa-se de duas maneiras interdependentes: uma para a coordenagao e a preciso, ¢ outra, subseqiientemente, para a execugéo. Assim, a execugao € assegurada pelo misculo, responsdvel pela realizagdo (materializagéo) da motricidade 416 Desenvolvimento psicomotor ¢ aprendizagem IMPULSO PARA A —> PROGRAMAGAD DA Te enn | gone MOTRICIDADE SINTESE | Saat al IMuisos rages EXECLGRO DA REAL > FeNracio | ‘MOTRICIDAD= de dentro para fora, a0 mesmo tempo em que os fusos neuromusculares enviam impulsos ao cére_ brocm misao de retrnagio para integraro plano da coordenagaoe da precisao de fora para dentro. (Qu seja: a motricidade é controlada nao sé poruma sinalizagio aferente, como também por uma sinalizacao eferente, a0 contrérin do que muitas teorias ainda sugerem, Sao, pois, 0 fuso neuromuscular e os varios corptisculos tendi- nosos periféricos, através do cerebelo, que in- formam constantemente 0 cérebro sobre a mo- tricidade em questo, O cdrtex encarrega-se de uma sintese aferente, que scleciona os impul- sos mais ajustados para a atiyidade dos moto- neurdnios, organizando simultaneamente os impulsos necessarios para a construgao do pro- grama au plano de movimento. Como retine maior ntimero de aferéncias do que qualquer outro sistema humano, 0 cortex pode elaborara sintese de um programa de res- posta e de uma aco (resposta adaptativa), exa- tamente porque recebe as aferéncias que lhe fornecem os fusos neuromusculares ¢ os cor- piisculos tendinosos e articulatérios. Estes constituem um verdadeiro fluxo de informa- gies quanto a posicao global do corpo € parti- cular dos membros; quanto ao grau tnico dos muisculos; uma sintese proprioceptiva incons- Giente ligada neurofuncionalmente ao sistema postural e motor, nao s6 em termos de automa- tismos, como também de pré-requisitos neces- sarios para a producio ¢ a execugao da condu- ta motora. Nao € demais recordar e, portanto, insistir, que 0 scr humano possui um maior mamero de estruturas aferentes do que, por exemplo, 0s pongidae (gorila, chimpanzé, orangotango ¢ gib3o), conforme expresso no diagrama simpli- ficado do controle cortical do misculo esquelé- tico no scr humano: MoscuLo MEDULA MOTO-NEURONIOS ceneeRo SS LL FIERAS MUSCULARES ‘CORTEX pete > = SUBSTANGA FSO NFOMUSGULAR ONE ee [enna] ge | RE TCUAO DIFERENCIAGAO MOTORA E DIFERENCIAGAO SENSORIAL Para inelhor explicara importanda dos me- canismos corticais na regulacao e na progra- magao da motricidade, Luria (1966c, 1975) de- monstra-nos, recorrendo a experiéncias cle- troencefalograficas e eletromiograficas, que as Areas motoras estao em interacao com as Areas sensoriais, cuja complexidade e maturidade so funcao da experiéncta sécto-histérica do indi- viduo e, simultaneamente, da sua aprendiza- gem individual. Ambas as areas sao responsa- yeis pelos complexes movimentos voluntérios, necessdirios a qualquer aprendizagem, seja ela verbal ou ndo-verbal, escolar ou artistica, No meu entender, 0 aspecio sensorial e 0 aspecto motor da motricidade humana sao duas faces da mesma moeda. Ambes nao podem ser concehidos como isolados um do outro, pois funcionalmente, sao interdependentes. Luria ajuda-nos, portanto, a compreender melhor & a assegurar que a interacao permanente e di namica entre um e outro representa uma evo- lugao que flui dos animais infer res até 0 Ser humano. Nesta evolugao, nao é de desprezar 0 significado palpavel que desempenha a quan- iam tidade de estruturas aferentes que caractet o sistema nervoso do ser humano, verdad mente tinico no reino animal. Penso, pois, que Vitor da Fonseca 417 hoje é legitimo admitir como hipétese que 0 maior ntimero de sistemas afcrentes sera re- sultante mais de uma aquisicao ¢ integracao, ¢ menos de ume disposigéo orgdnica inata, © que Luria nos permite compreender, atra- vis da crescente organizacéo cortical da mouicl- dade, € que talvez nao seja possivel separd-la do psiquismo. Este emerge, assim, como uma conseqtiéncia daquele. Ou seja, 0 psiquismo s ria uma motricidade de idéias (ideacional) sem aco motora propriamente dita, enquanto a motricidade comportamentalmente observada no seria mais do que um psiquismo em acio, como podemos apreciar na performance de um artista, de um miisico ou de um atleta olimpico. ‘Vygotsky (1962, 1993), entretanto, acrescenta algo a esta perspectiva, ao demonstrar yueasatos voluntatios, a memoria légica, as atitudes origi- nais, etc,, n&o s4o, possivelmente, propriedades inatas, mas, sim, propriedades acumuladas ¢ adiquiridas, por meio da experiéncia social e his- torico-cultural. A sociedade surge, portanto, em sintese, como 0 verdadeiro pretexto e contexto para a aprendizagemn individual ¢ wanscenden- temente subjetiva, consubstanciando, ao lado do tempo filogenético eontogenético, um outro tem- po, isto 6, 0 sociogenético. A aprendizagem humana e, conseqiiente- mente, a sta motricidade, emanam de um pro- AREAS. SENSORIAIS a INTERAGAO CORTICAL ‘AREAS >———>_wororas 1 (cinapees internas) VIAS APERENTES I INPUT ourPur MUNDO EXTERIOR (Giapses exeras) MOVIMENTO smTUAGAO ¢ wee = AgKO (Retroalimentageo) VIAS EFERENTES | 418 Desenvolvimento asicomoter ¢ aprendizagem cesso interativo ¢ intencional entre duas geta- Ses de individuos, uns experientes outros inexperientes. E a partir deste sentido afetivo erelacional, cultural, histérico e instrumental, que provavelmente se tem de conceber toda a evolugéo da espécie humana ¢ se tem de equa- cionar o desenvolvimento psicomotor da crian- ga. Desde 0 nascimento, as criangas estéo em. constante interagéo com os adultos, que inten- cionalmente se esforcam por incorpord-las na sua cultura ¢ na sua experiéneia histérica acu- mulada de significagaoes e de maneiras de fa- zer as coisas. Dos processos naturais decorren- tes da heranga biolégica, as criangas, por meio da intervengae mediatizada dos adultos, pas- sam a poder lidar com processos psicolégicos mais complexos, decorrentes da heranga cul- tural. De modalidades interpsiquicas de funciona mento, as criangas passam a lidar com modali dades intrapsiquicas, isto 6, formadas dentro delas préprias, do seu proprio organismo. Os adultos sao, portanto, agentes externos, que mediatizam as cxperitncias das criancas com © mundo exterior, permitindo que, depois de tal interacao, se processe a interiorizacao das formas ¢ dos modos de operar culturalmente 0 que jd foi determinado historicamente, A natu- reza social das interagdes entre adultos ¢ crian- cas da lugar a natureza psicolégica do desen- volvimento global destas. Isso é valido tanto para as competéncias motoras como para as competéncias afetivas ¢ cognitivas 0 ESTUDO DAS LESOES CEREBRAIS E DAS FUNQOES CORTICAIS SUPERIORES Outra perspectiva conereta que Luria (1966b, 1966¢, 1975a, 1975b, 1975¢, 1975d, 1977a, 1977, 1977¢, 1979, 1980) apresenta e que ver confirmar muitas das hipéteses anteriormente evantadas no plano da pratica clinica ¢ educa- cional € o estudo das lesdes cerebrais. Note-se que este estudo, @ semelhanca do estudo dos Geficientes motores ou dos casos dispraxicos (que mais de uma vez ja propus e sugeri coma uma boa metodologia de investigagao para es- tudaro “normal”, no caso presente, oestudo da praxia), pode fornecer muitos dados objetivos acerca da importncia da organizacao cortical da motricidade, Vejamos alguns dacios conseguidos por esse mesmo autor na sua experimentagdo no campo das lesGes cerebrais, que se resume no seguinte quadro: piREITO HEMISFERIO ;QUERDO -SORDENS ESPACIAIS AGNOSIA ESPACIAL ALUSENCIA DE CONSCIENCIA /OVIMENTO PERTURDAGAO NA COMUNICAGAO NAOVERBAL APASIAS DESORDENS SENSORIAIS DESORDENS ViStIOMOTORAS ASSOMATOGNOSIA PERTURBAQOES NA COMUNICAGKO VERBAL interessante notar que este quadro apre- senta muitas semelhangas com os fundamen- tos neurolégicos que apresentei no capitulo re- ferente a Ajuriaguerra. Repare-se, entretanto, como a uma lesao do cérebro logo corresponde uma perturbagao do comportamento e, especi- ficamente, da motricidade humana. 0 que sig- nifica isso? Na neurologia dassica, as pertur- bagées das fungées corticais superiores (FCS) foram sempre apresentadas como decorrentes de lesGes cerebrais localizadas, que se subdivi- diram em trés grupos independentes: agnosias, apraxias ¢ alasias. O enfoque foi, ento, situado nas perturhacdes perceptivas, motoras ¢ da fala Mais tarde, outras perturbagoes foram adicio- nadas, como as alexias, as agrafias, as acalcu- lias, as amusias, etc,, de transcendente impor- tancia para estudar as incapacidades ¢ as difi- culdades de aprendizagem. Nos nossos dias, porém, lais desordens ou perturbagdes j4 nao sfo tao claramente demarcadas, dada a sua interdependéncia neurofuncional, pois | no podem ser considerades como sintomas com- plexos independentes. Nos tenmos cléssicos, a agnosia envolveria uma perturbacao elementar da percepcao da na- tureza da sensagio, com alieragdes na habilida- de em experiencié-la e integré-la, 0 que ¢ algo diferemte, pois envolve mais do que a sua simples € pura recepgio. A apraxia, em contrapartida, foi considerada uma desordem da realizacao de agGes e de habilidades motoras, mesmo quando ‘as fungéics motoras se encontravam intactas. Agnosia, apraxia e alasia, depois de Luria, so reconhecidas como desordens da atividade simbélica superior, isto é nao poder ser con- fundidas com atividades sens6rio-motoras sim- ples. Seu componente simbélico distingue-as de déficits sensoriais ou motores elementares. Nesta ética Turiana, as agnosias, as apraxias & as afasias nao poderao ser concebidas como in- dependentes ou como distiirbios isolados. Mui- tas observacoes clinicas, ¢ intmeros dos casos que acompanho, mostram que as perturbacoes da orientagao espacial visual (disgnosia espa- Vitor da Fonseca 419 cial) so sempre acompanhadas de perturba- gdes motoras bem definidas, uma vez que 0 conttole aferente espacial estd alterado, dat re- sultando 0 cardter apraxico do movimento, como se constata em varias situacSes de cépia ou de desenho de figuras geoméiricas. Quase sempre, nestes casos, as aesterognosias so acompanhadas por perturbag6es finas e pre- cisas dos movimentos organizados dos dedas, da mao ¢ do pulso (inicromotricidade). Por outro lado, as desordens éptico-gndsicas sao frequen- temente acompanhadas também por perturba- Ges dos movimentos dos olhos, nas quais certa~ mente a desintegragao vestibular e postural de- sempenha um papel determinante. Em qualquer dos casos é dificil determinar se as alteragoes na performance micromotora so devidas a um pro- blema gnésico (de input) ou a um problema pré- xico (de output). O que demonstra esta dificul- dade em determinar qual é 0 componente res- ponsavel pela perturhacao é a impossibilidade de distinguir as agnosias das apraxias, daf 0 pro- prio Ajuriaguerta ter sugerido a nogao de apratog- nosia, como mencionei anteriormente, © termo apratognosia, que € um paradigma cssencial da tcoria psicomotora, reflete, no fun- do, a unidade funcional sensério-motora que ca- racteriza a espécie humana, parque s4o ambos componentes de um ato mental que € impos! vel separar em termos de conduta. Para Luria, processo sensorial, seja visual, auditivo ou tétil- cinestésico, resulta do trabalho de analisadores corticais superiores, portanto nao pode ser dis- sociado dos processos inolores. Nos processos corticais superiores, nao podemos isolar as fun- Ges sensoriais das motoras. Elas esto mutua- mente implicadas neurologicamente. Nao pode- mos, conseqtientemente, separar os componen- tes sensoriais ou perceptivos dos componentes motores ou cognitivos.Enquanto as sensagées ¢ as percepgdes constituem a reflexdo seletiva do mundo exterior, possuindo, portanto, componen- tes alerentes (sensoriais) ¢ eferentes (motores), as agoes ¢ as ideagdes que as planejam eas exe- ccutam s6 podem se exprimir quando a natureza

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