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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PETRÓPOLIS

CENTRO DE TEOLOGIA E HUMANIDADES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
DOUTORADO EM EDUCAÇÃO

CLUBE DE LEITURA: DO GIRO DA RODA À FORMAÇÃO DO


LEITOR – AÇÕES PROPOSITIVAS DE UMA ESCOLA PÚBLICA

FLÁVIO JOSÉ DO BOMFIM

PETRÓPOLIS
2019
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PETRÓPOLIS
CENTRO DE TEOLOGIA E HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
DOUTORADO EM EDUCAÇÃO

CLUBE DE LEITURA: DO GIRO DA RODA À FORMAÇÃO DO LEITOR –


AÇÕES PROPOSITIVAS DE UMA ESCOLA PÚBLICA

Tese apresentada ao programa de Pós-


Graduação em Educação da
Universidade Católica de Petrópolis,
como requisito parcial para obtenção
do título de Doutor em Educação.

Orientador: Prof. Dr. Pedro Benjamim


Garcia

PETRÓPOLIS
2019
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

CIP – Catalogação na Publicação

B695c Bomfim, Flávio José do. Clube de leitura: do giro da roda à formação do
leitor – ações propositivas de uma escola pública / Flávio José do Bomfim. –
2019. 178 f. : il.

Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Católica de Petrópolis,


2019. Orientação: Prof. Dr. Pedro Benjamim Garcia. Linha de pesquisa:
Formação e trabalho docentes: políticas e práticas

1.Formação do leitor. 2. Rodas de leitura. 3. Letramento literário. I. Garcia,


Pedro Benjamim (Orient.). II. Título.

CDD: 372.4

Universidade Católica de Petrópolis (UCP)


Bibliotecária responsável: Marlena H. Pereira – CRB7: 5075
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PETRÓPOLIS
CENTRO DE TEOLOGIA E HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
DOUTORADO EM EDUCAÇÃO

CLUBE DE LEITURA: DO GIRO DA RODA À FORMAÇÃO DO LEITOR


– AÇÕES PROPOSITIVAS DE UMA ESCOLA PÚBLICA

Doutorando: Flávio José do Bomfim

Orientador: Prof. Dr. Pedro Benjamim Garcia

Petrópolis, 27 de fevereiro de 2019.

BANCA EXAMINADORA:

Prof. Dr. Pedro Benjamim Garcia (UCP)

Prof.ª Dr.ª Fabiana Eckhardt (UCP)

Prof.ª Dr.ª Debora Breder Barreto (UCP)

Prof.ª Dr.ª Tania Dauster (PUC-RIO)

Prof.ª Dr.ª Marlene Alves de Oliveira Carvalho (UFRJ)


À Helena, flor de primavera.
AGRADECIMENTOS

A Deus, pelo dom da vida.


À palavra, vívida e redentora.
Ao Professor Pedro Benjamim, pelas pertinentes orientações e pelo apoio irrestrito em todo
o desenvolvimento desse trabalho.
Aos professores e alunos da E.M. Zona Rural pela acolhida, vivências e histórias.
À minha família e amigos, sempre presentes, especialmente nos momentos mais difíceis.
Aos meus pais Ládia e João (in memoriam) pela Pedagogia da boniteza que me ensinaram
desde cedo.
Não me pergunto mais pela coragem de um dia ou pela covardia
de uma noite ou vice-versa
noite e dia nada têm a ver
com coragem e covardia
um não me esconde
outra não me desvela
assumo – sem pretexto – o texto que ora sou.

Pedro Garcia
RESUMO

O presente estudo teve como objetivo investigar o projeto Clube de leitura enquanto
prática pedagógica em uma escola pública municipal do Município de Duque de Caxias/RJ,
desenvolvido por meio de uma atividade de leitura literária: a roda de leitura. As discussões
apresentadas ratificaram que o texto não é dotado de apenas um significado (CHARTIER,
1999), mas possui um panorama interativo, onde estão embutidos conceitos como o da
enunciação, dialogismo, intertextualidade, que oportunizam uma relação aberta com o
leitor, ampliando a sua significação. A leitura se representa como uma transposição para a
linguagem verbal dos múltiplos signos que acumulamos na nossa relação com o mundo que
nos cerca. Dessa forma, torna-se um instrumento de formação num sentido amplo, não
apenas nas capacidades de decodificação de palavras ou frases e nem somente para a
aquisição de conhecimentos escolares. Nesse caminho, buscou-se compreender os pontos
positivos presentes nessa ação, os suportes literários manipulados pelos seus agentes e a
dimensão da proposta como prática educativa, a fim de que possa se apresentar como uma
alternativa propositiva a um cenário de educação mais amplo. A opção metodológica foi a
de uma pesquisa qualitativa de viés etnográfico, buscando uma análise não somente das
relações interpessoais cotidianas na sua estrutura física, mas sobretudo nas suas relações
simbólicas. Etnografia, para Geertz, é o esforço intelectual empreendido para a elaboração
de uma “descrição densa” sobre a cultura estudada (1989, p.15). O autor propõe um modelo
de análise cultural hermenêutico, ou seja de caráter interpretativo. Nessa linha, o
pesquisador deve realizar uma descrição em profundidade das culturas, compreendendo-as
como textos ou “teias de significados” que devem ser interpretados. Assim, o estudo foi
desenvolvido por meio de observação participante nos encontros do Clube de leitura,
entrevistas semiestruturadas de alunos e professores, análise documental e questionários.
Concebendo a leitura literária como uma prática de fruição estética e um meio plural de
acesso à cultura, a investigação apoiou-se sobre os seguintes aportes teóricos: o conceito de
leitura sustentou-se nas considerações de Barthes (2010), Chartier (1996), Yunes (2002),
Larrosa (2002), Manguel (1997), Kleiman (1995), Petit (2008), Bourdieu (2001), Certeau
(2003) e Freire (1996). No que concerne ao letramento/letramento literário: Soares (1988),
Paulino (2000) e Cosson (2012). A análise das rodas de leitura foi vinculada ao conceito
defendido por Garcia (2007) e Vargas (1997). Os suportes tecnológicos como ferramentas
instrumentais foram analisados sob a ótica de Lévy (1999) e, por fim, a análise da prática
docente sob a imagem do professor reflexivo presente nos estudos de Schön (2000) e
Shulman (2014).

Palavras-chave: Formação do leitor. Rodas de leitura. Letramento literário.


ABSTRACT

The present study aimed to investigate the Reading Club project as a pedagogical practice
in a municipal public school in the Municipality of Duque de Caxias/RJ, developed through
a literary reading activity: the reading wheel. The discussions presented ratified that the text
is not only endowed with a meaning (CHARTIER, 1999), but it has an interactive
panorama, where concepts such as enunciation, dialogism, intertextuality are embedded,
which allow an open relationship with the reader, its significance. Reading is represented as
a transposition into the verbal language of the multiple signs we accumulate in our
relationship with the world around us. In this way, it becomes an instrument of formation in
a broad sense, not only in the capacities of decoding words or phrases and not only for the
acquisition of school knowledge. In this way, it was sought to understand the positive
points present in this action, the literary supports manipulated by its agents and what the
dimension of the proposal as an educational practice, in order that it can present itself as a
propositional alternative to a broader education scenario. The methodological option was
the one of a qualitative research of ethnographic bias, looking for an analysis not only of
the daily interpersonal relations in its physical structure, but mainly in its symbolic
relations. Ethnography, for Geertz, is the intellectual effort undertaken to elaborate a "dense
description" of the culture studied (1989, p.15). The author proposes a model of
hermeneutic cultural analysis, that is, of an interpretative character. In this line, the
researcher must carry out an in-depth description of the cultures, understanding them as
texts or "webs of meanings" that must be interpreted. Thus, the study was developed
through participant observation in the meetings of the Reading Club, semi-structured
interviews of students and teachers, documentary analysis and questionnaires. Conceiving
literary reading as a practice of aesthetic enjoyment and a plural means of access to culture,
research was based on the following theoretical contributions: the concept of reading was
based on the considerations of Barthes (2010), Chartier (1996), Yunes (2002), Larrosa
(2002), Manguel (1997), Kleiman (1995), Petit (2008), Bourdieu (2001), Certeau (2003)
and Freire (1996). As far as literary literacy is concerned: Soares (1988), Paulino (2000)
and Cosson (2012). The analysis of reading wheels was linked to the concept advocated by
Garcia (2007) and Vargas (1997). Technological supports as instrumental tools were
analyzed from Lévy's (1999) perspective and, finally, the analysis of the teaching practice
under the image of the reflexive teacher present in the studies of Schön (2000) and
Shulman (2014).

Keywords: Formation of the reader. Reading wheels. Literary literacy.


RESUMEN

El presente estudio tuvo como objetivo investigar el proyecto Club de lectura como práctica
pedagógica en una escuela pública municipal del Municipio de Duque de Caxias/RJ,
desarrollado por medio de una actividad de lectura literaria: la rueda de lectura. Las
discusiones presentadas ratificaron que el texto no está dotado de apenas un significado
(CHARTIER, 1999), pero posee un panorama interactivo, donde están embutidos
conceptos como el de la enunciación, el diálogo, la intertextualidad, que oportunizan una
relación abierta con el lector, su significación. La lectura se representa como una
transposición al lenguaje verbal de los múltiples signos que acumulamos en nuestra
relación con el mundo que nos rodea. De esta forma, se convierte en un instrumento de
formación en un sentido amplio, no sólo en las capacidades de decodificación de palabras o
frases y no sólo para la adquisición de conocimientos escolares. En ese camino, se buscó
comprender los puntos positivos presentes en esa acción, los soportes literarios
manipulados por sus agentes y cuál es la dimensión de la propuesta como práctica
educativa, a fin de que pueda presentarse como una alternativa propositiva a un escenario
de educación más amplio. La opción metodológica fue la de una investigación cualitativa
de sesgo etnográfico, buscando un análisis no sólo de las relaciones interpersonales
cotidianas en su estructura física, sino sobre todo en sus relaciones simbólicas. La
etnografía, para Geertz, es el esfuerzo intelectual emprendido para la elaboración de una
"descripción densa" sobre la cultura estudiada (1989, p.15). El autor propone un modelo de
análisis cultural hermenéutico, o sea de carácter interpretativo. En esta línea, el investigador
debe realizar una descripción en profundidad de las culturas, comprendiéndolas como
textos o "telas de significados" que deben ser interpretados. Así, el estudio fue desarrollado
por medio de observación participante en los encuentros del Club de lectura, entrevistas
semiestructuradas de alumnos y profesores, análisis documental y cuestionarios. La
investigación se apoyó sobre los siguientes aportes teóricos: el concepto de lectura se
sostuvo en las consideraciones de Barthes (2010), Chartier (1996), en la que se interpreta la
lectura literaria como una práctica de fruición estética y un medio plural de acceso a la
cultura, (2002), Larrosa (2002), Manguel (1997), Kleiman (1995), Petit (2008), Bourdieu
(2001), Certeau (2003) y Freire (1996). En lo que concierne al letra / literal: Soares (1988),
Paulino (2000) y Cosson (2012). El análisis de las ruedas de lectura fue vinculado al
concepto defendido por García (2007) y Vargas (1997). Los soportes tecnológicos como
herramientas instrumentales fueron analizados bajo la óptica de Lévy (1999) y, por fin, el
análisis de la práctica docente bajo la imagen del profesor reflexivo presente en los estudios
de Schön (2000) y Shulman (2014).

Palabras clave: Formación del lector. Ruedas de lectura. Lectura literaria.


LISTA DE FIGURAS

. Figura 1 – Pátio do interior da E.M. Zona Rural p. 38

. Figura 2 – Ruas do entorno da escola p.39

. Figura 3 – Ruas do entorno da escola p.39

. Figura 4 – Ruas do entorno da escola p. 39

. Figura 5 – Ruas do entorno da escola p. 39

. Figura 6 – Igrejas protestantes do entorno p. 40

. Figura 7 – Igrejas protestantes do entorno p. 40

. Figura 8 – Espaço da Sala de informática p. 101

. Figura 9 – Espaço da Sala de informática p. 101

. Figura 10 – Sala da Biblioteca p. 109

. Figura 11 – Sala da Biblioteca p. 109


LISTA DE QUADROS

. Quadro 1 – Taxa de aprovação ao final da 1ª série do Ensino Fundamental p. 125


LISTA DE TABELAS E GRÁFICOS

. Gráfico 1 – Tipo de informação que busca na internet p.103

. Gráfico 2 – Tipos de sites que mais acessa p. 104

. Gráfico 3 – Comportamento na leitura e na pesquisa p. 105

. Gráfico 4 – Utilidade prática das informações p. 106


LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

. SAEB – Sistema de Avaliação da Educação Básica p. 27

. INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária p.37

. PROLER – Programa Nacional de Incentivo à Leitura p. 48

. CIEP – Centro Integrado de Educação Pública p. 53

. BNCC – Base Nacional Comum Curricular p. 53

. CNE – Conselho Nacional de Educação p. 53

. MEC – Ministério da Educação p. 83

. PNBE – Programa Nacional de Biblioteca na Escola p. 83

. PNE – Plano Nacional de Educação p. 83

. PNLL – Plano Nacional do Livro e da Leitura p. 113

. PROFA – Programa de Formação de Professores Alfabetizadores p. 125

. LDBEN – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional p. 125

. PNAIC – Pacto Nacional da Educação na Idade Certa p. 126

. ANA – Avaliação Nacional da Alfabetização p. 126


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO p.16

1. FUNDAMENTOS DA PESQUISA E SEUS ASPECTOS CONSTITUTIVOS –


QUESTÕES METODOLÓGICAS p. 23

2. NO CAMPO, A PESQUISA p. 37
2.1 – A escola – aspectos históricos e estruturais p. 37
2.2 – A filosofia institucional p. 40
2.3 – Fundamentos teóricos-metodológicos da instituição p. 41
2.4 – Análise do perfil metodológico p. 42
2.5 – O clube de leitura: representações de uma docente como mediadora de leitura
p. 44

3. O CLUBE DE LEITURA – MEDIAÇÕES E REPRESENTAÇÕES p. 58


3.1 – O primeiro p. 59
3.2 – O segundo p. 61
3.3 – Um outro encontro p. 62
3.4 – Um encontro inusitado p. 63
3.5 – No giro da roda p. 64
3.6 – Reflexões sobre a prática pedagógica – os respectivos apontamentos p. 65

4. VOZES DOS SUJEITOS – A NEGOCIAÇÃO DO SENTIDO p. 74


4.1 – O aluno Estêvão p. 77
4.2 – A aluna Micaela p. 81
4.3 – O aluno Rogério ou Elias ou Arthur p. 89
4.4 – O aluno Tito p. 91
4.5 – A aluna Bruna p. 95
4.6 - O leitor e suas tecnologias– aparatos digitais como ferramentas: entre redes e
paredes p. 98
4.7 - A biblioteca como espaço de construção: uma disponibilidade essencial p. 109

5. A LEITURA, A ESCOLA E OS LEITORES – DIÁLOGOS POSSÍVEIS p. 123


5.1 – A leitura como experiência: em análise, o letramento literário p. 133
5.2 – Os suportes de leitura: encontros e conexões p. 140
5.3 – O professor como mediador: as concepções orientadoras p. 147

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS p. 157


INTRODUÇÃO

De modo inicial, gostaria de demarcar a trajetória que me trouxe até aqui. Meu nome é
Flávio José do Bomfim, sou pai da Helena e esposo da Evânia. De uma família muito pobre
de seis irmãos e pai alcoólatra e iletrado, eu fui salvo pela leitura! A leitura, o
conhecimento me salvou da indigência, dos determinismos sociais e do "provincianismo
compulsório". A palavra elaborou a minha identidade e, sobretudo, possibilitou-me o
usufruto da liberdade. E o acesso que tive a ela foi essencialmente fundamentado pela
escola.
Tive uma infância muito pobre. Recordo-me que minha mochila era um saco de
cinco quilos de arroz. Os cadernos eram encapados com papel de pão, as calças e camisas
com muitos remendos muito bem cosidos, o que garantiam a admiração e elogios quanto ao
asseio que minha mãe dispensava aos seus filhos. Apesar das intempéries, sempre fui ávido
pelo saber. Com escassos recursos materiais, o acesso que eu tinha às primeiras letras era o
momento que eu vinha do mercado com as compras embrulhadas num jornal velho, que eu
retirava e lia as reportagens e manchetes como se fossem notícias atuais. Gesto que
compreendo metaforicamente como a janela que me fazia espiar o mundo e desvelar
possibilidades, mesmo que remotas, de acesso.
Nos primeiros passos da alfabetização, recordo-me que ganhar um livro era ganhar
também um pouco de vida e felicidade. Achava que ele tinha um cheiro diferente, um
mistério a ser desvendado que me motivava à descoberta. A partir de cada escrito, eu
compreendi, mais tarde, que o meu imaginário se desenvolveu e minhas percepções se
ampliaram. Na sequência da aprendizagem do alfabeto, ficava ansioso para aprender a letra
seguinte e, a partir dela, conquistar mais um código capaz de me conceder compreensão e
sentido para as histórias que desejava desvendar.
Eu fui salvo pela leitura, conforme revela Petit referindo-se ao poder da leitura
desenvolvida em regiões da América latina afetadas por desequilíbrio social:

A leitura exerceu um papel protetor, salvando-os da apatia, da indiferença, da


exclusão e do esquecimento, e favoreceu a troca de experiências artísticas e
humanas. (2009, p. 246)

16
Durante a minha infância, sempre tive fascínio pelos livros. As histórias povoaram
meu imaginário infantil de modo que desde muito cedo tive necessidade de escrever minhas
próprias narrativas, levando-as sempre para dentro da escola. Através do ingresso no espaço
escolar, o acesso aos textos ficou mais viável e a escola favoreceu o fortalecimento da
minha competência leitora com atividades diversificadas e com uma biblioteca bem
estruturada. Na adolescência, era o seu assíduo frequentador; lia romances, histórias em
quadrinhos, livros de pesquisa e muitos outros, pois era um espaço atraente e com muitos
títulos à disposição.
De acordo com Susan Sontag:

Ter acesso à literatura, à literatura de mundo, era escapar da prisão da futilidade


nacional, da vulgaridade, do provincianismo compulsório, do ensino vazio, dos
destinos imperfeitos e da má sorte. A literatura era o passaporte para entrar numa
vida mais ampla, ou seja, a região da liberdade. (2008 apud CADERMATORI
2009, p. 21)

Na vida adulta, tornei-me professor. Após a minha formação, recordo-me da


construção de uma escola perto da minha casa. Minha mãe, no afã do meu primeiro
emprego, foi à obra pedir uma vaga para que eu trabalhasse como ajudante de pedreiro;
algo que não foi concedido. Mais tarde, aquela foi a primeira escola na qual eu lecionei
como professor. De alguma forma, como eu era o desejo da minha mãe, eu a construí.
Porém o material colocado ali por minhas mãos, a usura do tempo nem a traça poderão
corroer.
Como professor, não tive as oportunidades fáceis, mas certamente as melhores para
eu crescer e me elaborar como pessoa e como profissional: alunos com defasagem de
aprendizagem, sem suporte familiar, agressivos, comunidades violentas, uma dura
realidade. Muitas vezes olhei para a porta da rua. Mas sempre o sinal tocava, adiando a
minha decisão de desistir para o dia seguinte. Prossegui. Obtive alguns êxitos. Recebi no
ano de 2000 um Prêmio de Valorização do Magistério em nível municipal na Rede Pública
em que lecionava. Nos três anos subsequentes também fui contemplado com o referido
prêmio.
O mérito a isto deve-se, em sua maior parte, ao auxílio do tempo, que muito me
ajudou respondendo as angústias e incertezas do meu caminhar pedagógico. Com ele obtive
este aprendizado: existem coisas que só o tempo pode responder. Ele me ensinou o quanto

17
não sei e como isto me concede leveza para construir minha trajetória sempre adiante,
respeitando os limites e as possibilidades humanas. Formei-me como pedagogo na
graduação, buscando compreender melhor de que forma a aprendizagem se processa.
Comecei a ter acesso a conceitos teóricos, a compartilhar análises e reflexões diversas sobre
questões relacionadas à educação e compreendê-la, desde então, como uma atividade
diligente. Nesse período, o meu trabalho de conclusão de curso versou sobre o tema do
letramento1. Apesar desta formação em nível superior, continuei a lecionar na Educação
Básica, no 1º segmento do Ensino Fundamental. Um pouco menos intuitivo amparado pelos
estudos acadêmicos, desempenhava minha função buscando sempre alternativas de
enfrentamento menos penosas para as dificuldades de aprendizagem de crianças, em muitos
casos, em vulnerabilidade social.
Neste momento comecei a escrever alguns textos, que de forma lúdica, pudessem
favorecer o hábito da leitura. Alguns escritos tornaram-se livros publicados, roteiros de
cinema e peças teatrais2. Assumi os braços da literatura como ferramenta pedagógica. Com
a publicação dos livros pude dialogar com muitas realidades distintas no âmbito
educacional. Ciclos de debates com alunos e professores da rede pública e privada, pais e
responsáveis de alunos, secretarias de educação de muitos municípios. Em 2005 fui
convidado para trabalhar na Secretaria Municipal de Educação do Município de Duque de
Caxias. Participei da Elaboração da Reestruturação Curricular da Rede que implementou os
Ciclos de alfabetização, bem como as Salas de Tecnologia Educacional e de Leitura nas
unidades escolares. Com toda a equipe da Secretaria elaboramos um Projeto chamado “Leia
Caxias”, que consistia numa biblioteca itinerante montada num caminhão baú que visitava
as escolas com seis mil títulos de literatura infantil e juvenil para os alunos e a comunidade.
Essa biblioteca era recebida nas unidades escolares pelo Dinamizador de Leitura3. O

1
Segundo Soares (1998), a palavra letramento começa a ser usada a partir do momento em que o
conceito alfabetização torna-se insatisfatório. Não basta mais saber ler e escrever tão somente, é preciso fazer
uso social da leitura e da escrita. Nessa concepção, vale a reflexão sobre os eventos em que essas práticas são
postas em ação, bem como as consequências dela sobre a sociedade.

2
“Em algum lugar no arco-íris” (2007), “O chapéu da verdade” (2009) e “Pra frente é que se anda!”
(2012), livros publicados pela Editora Motivos. Em 2013 escreveu o média-metragem “Não pise na bola!”
produzido e dirigido por Charles Daves. Em 2014 escreveu a peça “O baú encantado de histórias” que ficou
em cartaz durante um ano nos teatros do RJ.

18
Regimento Interno dos Funcionários Públicos de Duque de Caxias prevê a figura desse
profissional, atribuindo-lhe as seguintes funções:
Incentivar e difundir, com criatividade, a leitura como instrumento de formação,
de informação e prazer; conhecer e manter organizado o acervo bibliográfico da
Unidade Escolar; promover práticas leitoras inclusivas; planejar, atender,
acompanhar e avaliar, permanentemente, o processo de formação do leitor com a
Equipe Pedagógica e Docente da escola; incentivar e propor projetos específicos
de leitura e desenvolver os propostos pela Secretaria Municipal de Educação.
(2000, p. 19)

A cada ano, o trabalho dos dinamizadores é norteado por um projeto macro da rede,
dividido em etapas que serão desenvolvidas durante o ano letivo. Assumi, por um período
de 4 anos, a coordenação do Projeto de Implementação de Leitura, órgão gestor dentro da
Secretaria Municipal de Educação, responsável pela orientação das ações desenvolvidas
pelos Dinamizadores. Nesse período tive a incumbência de elaborar e desenvolver
articulações que atendessem cerca de 80000 (oitenta mil) alunos da rede municipal.
Os projetos propostos foram os seguintes:
. 2009 – “Brasil Diversos – uma viagem literária” (versava sobre a poesia de
Manuel Bandeira e a música de Heitor Villa-Lobos);
. 2010 – “Orthofiando histórias, tecendo memórias” - homenagem à escritora Sílvia
Orthof e a seus escritos, o futebol e literatura (ano da Copa do mundo), histórias de matriz
africana (os griôs) e literatura e cidadania (ano de pleito nacional). Centenário de Euclides
da Cunha;
2011 – “Veredas literárias: rumo à terra sem males” - histórias dos povos
indígenas e textos da tradição oral e do folclore nacional. Resgate das histórias peculiares
ao Município em sua grande parte ocupada por imigrantes nordestinos. Homenagem
especial à escritora Ruth Rocha;
.2012 – “Desvelando caminhos por um país literário: ontem, hoje e sempre!” -
estudo do Manifesto “Por um Brasil literário” de Bartolomeu Campos de Queiroz,
Centenário de Luiz Gonzaga e as histórias do interior do Brasil. Homenagem à escritora e
contadora de histórias Bia Bedran.

3
O Dinamizador de Leitura é um professor extraclasse que atua de forma itinerante atendendo às
turmas das Unidades Escolares, em aulas semanais com duração de 50 minutos, desenvolvendo um projeto de
incentivo à leitura elaborado pela Secretaria Municipal de Educação para o ano letivo vigente.

19
Como necessidade de suporte a esse trabalho ingressei no mestrado; um tempo
profícuo, onde pude angariar experiências e agregar novos conhecimentos ao meu fazer
docente. Em 2012 o concluí, defendendo, na ocasião, a dissertação intitulada de “O espaço
escolar e formação do leitor: ações propositivas de uma escola pública no Município de
Duque de Caxias”. Trabalho este que me possibilitou a reflexão sobre a formação do leitor
no espaço escolar, destacando a escola como um ambiente privilegiado para esta
construção.
O estudo originou-se da necessidade de cumprir mais uma etapa da minha formação
acadêmica que sempre buscou compreender de que maneira a elaboração da aprendizagem
se processa em diversos níveis. No diálogo com os sujeitos da pesquisa em questão, com os
colegas de curso, com o meu professor orientador e com as bases teóricas consultadas, foi
possível evidenciar a importância da leitura, do texto literário, como valioso instrumento na
constituição educativa dos indivíduos e na formação da sua identidade. A pesquisa
ponderou ainda que alguns estímulos ao hábito da leitura podem ser otimizados pela família
dos educandos (KLEIMAN, 2004), no entanto, é na escola que se enrijecem os
fundamentos para formar um leitor que, segundo Manguel
lê o sentido; é o leitor que confere a um objeto, lugar ou acontecimento uma certa
legibilidade possível, ou que a reconhece neles; é o leitor que deve atribuir
significado a um sistema de signos e depois decifrá-lo. (1997, p. 19)

Partindo desses pressupostos, a referida pesquisa se debruçou sobre a forma como


se processa a recepção do ato de ler e sobre a maneira com que ela atua e se consolida. Em
seu desenvolvimento o fazer docente apresentou-se como eixo norteador desse escopo, que
deve ser desempenhado por meio de uma ação dialógica, na troca de experiências e
vivências com os diversos atores da comunidade escolar. O estudo descreveu que a
habilidade leitora acontece num espaço de construção coletiva, em diversos níveis de
relação. Algo que pode favorecer ainda o aperfeiçoamento da pessoa humana, concedendo-
lhe elementos para o exercício da cidadania na complexidade do mundo contemporâneo
(CADERMATORI, 2009). O conhecimento produzido pode ainda ser compreendido como
ferramenta de iluminação, dando clarividência às questões e nomeando os fenômenos que
compõem as relações sociais.
As discussões apresentadas ratificaram que o texto não é dotado de apenas um
significado (CHARTIER, 1999), mas possui um panorama interativo, onde estão embutidos

20
conceitos como o da enunciação, dialogismo, intertextualidade, que oportunizam uma
relação aberta com o leitor, ampliando a sua significação. A leitura se representa como uma
transposição para a linguagem verbal dos múltiplos signos que acumulamos na nossa
relação com o mundo que nos cerca. Um processo que nos permite, muitas vezes
inconscientemente, muitas outras leituras. Essa relação assume um caráter interpretativo,
renegando imposições conteudistas ou a passividade de sujeição ao texto (PETIT, 2009).
O leitor
caça em terras alheias, demarca com os olhos, com o dedo, com o franzir das
sobrancelhas, com o sorriso, seus caminhos em busca do sentido. Sob a
contingência, sem dúvida, e no espaço próprio do texto, ele elabora – como quer
ou como pode – sua leitura do texto: um novo texto. (CHARTIER E HEBRARD
1998, p. 33).

O campo de investigação do trabalho foi a E.M. Fênix4, uma escola pública do


Município de Duque de Caxias que desenvolve um projeto sistemático para a formação do
leitor. Acompanhei o trabalho durante um semestre em 2011 e pude estabelecer uma
compreensão mais densa sobre os desafios dessa proposta para o universo educacional, bem
como mensurar a relevância dos resultados do mesmo em busca do êxito pedagógico. No
doutorado busquei aprofundar o estudo sobre a formação do leitor literário no espaço
escolar, desejando me aproximar de uma proposta de ação aplicável a qualquer realidade
com recursos modestos, no entanto que fosse possível reconhecer os seus alcances em
relação ao objetivo traçado.
Uma inquietação revelada recentemente foi a de que os estudos buscados até então
na minha trajetória profissional e acadêmica basearam-se na formação do leitor que se
elabora por meio do texto literário sob o suporte livro. Os ciclos de estudos da pesquisa, as
discussões e análises que se fizeram presentes desencadearam, no entanto, outros
desdobramentos em torno do tema. Eu iniciei um processo de percepção, até então
adormecido, de que o letramento literário, termo que será aprofundado adiante, pode se
desenvolver sob vários outros suportes, principalmente na era de tantos aparatos
tecnológicos. Chartier (1999) pondera a este respeito considerando que a “revolução do
texto eletrônico”, com o surgimento das novas tecnologias digitais, modifica não somente a

4
Nome fictício da escola, a fim de preservar o seu anonimato.

21
técnica de reprodução dos textos, como também suas estruturas e as formas do suporte que
o comunica aos leitores, algo que inevitavelmente faz parte do cotidiano dos educandos.
Assim sendo, se evidencia a necessidade de ampliar o campo de análise que alcance
e considere a construção de outras narrativas, o confrontamento de questões e
estabelecimento de uma prática leitora, que pode ocorrer também sob os suportes
tecnológicos. Soares (2002) traz à luz da teoria o termo letramento digital que seria um
certo estado ou condição dos que adquirem ou dos que se apropriam da nova tecnologia
digital e exercem práticas de leitura e de escrita na tela, diferente do estado ou condição –
do letramento – dos que exercem práticas de leitura e de escrita no papel. Uma nova
socialização, mediada pela tecnologia, se apresenta. Pessoas que partilham dos mesmos
interesses se conectam, valores e culturas se fundem, recriando-se ao mesmo tempo em que
criam uma cultura coletiva vivenciada em espaços-tempos diferenciados entre os membros
dessa comunidade que se forma já em constante mutação. As informações que transitam
pelo mundo chegam em formatos diversos em cores, sons, imagens, causando um impacto
no campo educacional, modificando a maneira das pessoas pensarem de forma crítica a
realidade. A escola, na sua concepção de ideário pedagógico, não pode manter-se refratária
a esse processo.
Assim sendo, tendo por base a minha trajetória profissional e acadêmica, bem como
a necessidade de investigação de práticas leitoras no espaço escolar e a reflexão de como os
suportes tecnológicos permeiam essas ações, deu-se a elaboração da pesquisa que ora se
apresenta.

22
1. FUNDAMENTOS DA PESQUISA E SEUS ASPECTOS CONSTITUTIVOS –
QUESTÕES METODOLÓGICAS
“_ Não posso acreditar nisso! – disse Alice.
_ Não pode? - disse a Rainha com tom de voz penalizado. _ Tente outra vez: respire profundamente e
feche os olhos.
Alice riu. _ Não adianta fazer isso – disse ela -, ninguém pode acreditar em coisas
impossíveis.
_ Eu diria que você nunca praticou bastante – disse a Rainha. _ Quando eu tinha a sua idade
praticava sempre meia hora por dia. Às vezes me acontecia acreditar em seis coisas impossíveis antes do café
da manhã”.
(Lewis Carroll em No país das maravilhas. Através do espelho e o que Alice encontrou lá).

O diálogo acima, da Rainha com Alice no clássico de Lewis Carrol5 , retrata, em


muito, a realidade atual brasileira. Vivemos um tempo de ausências de utopias,
esvaziamento ideológico de causar temeridade até aos mais otimistas; um tempo de
incertezas, dissidências que colocam em risco a premissa de desenvolvimento nacional.
Sobretudo no momento social atual onde o exercício democrático e autônomo das práticas
docentes é colocado em suspeição. Um campo ideologizado por um sistema de poder
arbitrário e pernicioso, busca estabelecer um discurso autoritário e impositivo em
detrimento do espaço educativo permeado pela crítica e pelo livre debate. Um processo que
assomado a outras tantas questões no campo educacional revelam um sentimento de
insatisfação que nem mesmo as várias reformas aplicadas ao segmento têm minimizado ou
respondido às inquietações vigentes de forma relevante e satisfatória. A escola, que sempre

5
Lutwidge Dodgson, mais conhecido pelo seu pseudônimo Lewis Carroll (Cheshire, 27 de janeiro de
1832 — Guildford, 14 de Janeiro de 1898), foi romancista, poeta e matemático britânico. Trecho relativo à
tradução de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Summus, 1980.

23
teve um papel de destaque nas construções sociais, vê-se desafiada nos seus objetivos
pedagógicos e formativos, no que concerne à tentativa de formular estratégias de
enfrentamento para fortalecer-se, enquanto instituição educativa, redimensionando a sua
concepção de ensino e o seu próprio papel no tabuleiro social (KRAMER, 2001).
Acirrando esse processo de reflexão, é importante, salientar, sobretudo nesse
momento, os dizeres de Paulo Freire acerca das suas concepções sobre o papel da escola e
do seu projeto político-pedagógico. No seu pensar, defendeu sempre o processo educativo
abalizado numa relação de horizontalidade em detrimento de uma autoritária e
autossuficiente. De fato, ao lançarmos luz sobre o espaço escolar é imprescindível demarcar
que o autoritarismo é antidemocrático e antipedagógico. Ele não possibilita o diálogo, nem
tampouco pontos de vistas diferentes e/ou divergentes. O autoritarismo historicamente não
serviu senão para segregar e marginalizar.
Dessa forma, não há a possibilidade de repensar o espaço escolar como um espaço
repressor. É necessário não só o conhecimento da importância do diálogo e da
horizontalidade do discurso para construção de uma prática democrática e emancipadora
em sala de aula, como também o enfrentamento a toda mínima manifestação de uma
postura autoritária. Para Freire, “o diálogo é o encontro amoroso dos homens, mediatizados
pelo mundo, para pronunciá-lo” (FREIRE 2005, p.91). Algo que pode transformar e
humanizar.
Em sua obra o viés da autonomia e da liberdade estavam sempre presentes. Para ele
os homens são considerados seres “inconclusos” e vivem numa relação dialética entre os
condicionamentos e sua liberdade. Defrontados com a realidade, nas suas dimensões
concretas e históricas, eles podem elaborar uma ação que esteja respaldada no exercício do
pensamento de forma livre e autônoma. Esse movimento quando sofre alguma obstrução
pode gerar a desesperança, ou seja “(...) a percepção que os homens tenham num dado
momento histórico, como um freio a eles, como algo que eles não podem ultrapassar”
(FREIRE 2005, p.105). Por outro lado, “no momento em que a percepção crítica se
instaura, na ação mesma, se desenvolve um clima de esperança e confiança que leva os
homens a empenhar-se na superação das situações-limites ( ibid 2005, p. 105)”.
Assim, os homens são capazes de vislumbrar o que chamou de inédito-viável
(FREIRE, 2005), ou seja o processo de desvelar as possibilidades de uma dada situação por

24
meio da análise da mesma, buscando ultrapassar as situações-limites que a interpõem. Para
ele, não se chega “à libertação pelo acaso, mas pela práxis de sua busca; pelo conhecimento
e reconhecimento da necessidade de lutar por ela (ibid 2005, p. 34)”. Nesse pensar, a práxis
é conceituada como a “reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo (ibid
2005, p. 42)”. Por ela, portanto, pode-se superar as situações limitadoras que nos impedem
de sermos livres e sujeitos das nossas vidas. O inédito-viável é a percepção que o homem
tem que vai além das situações-limites. É uma percepção crítica de que algo é possível de
ser vislumbrado, ultrapassado, concretizado pela práxis libertadora e a ação dialógica ou
outra que pretenda os mesmos fins.
Inegável, que atualmente a escola, que sempre teve um papel de destaque nas
construções sociais, vê-se desafiada nos seus objetivos pedagógicos e formativos, no que
concerne à tentativa de formular estratégias de enfrentamento para fortalecer-se, enquanto
instituição educativa, redimensionando a sua concepção de ensino e o seu próprio papel no
tabuleiro social (KRAMER, 2001). A proposta de Freire com o inédito-viável se apresenta,
nesse contexto, como um encaminhamento, visto que propõe uma postura frente ao mundo
como projetos abertos. Já que, nas palavras do próprio, “o mundo não é. O mundo está
sendo” (FREIRE 1996, p. 85). Para tanto, urge que a escola, sobretudo a escola pública,
reflita sobre a sua ação. Mais do que tudo, não só para constatar o que se apresenta como
desafio, mas para intervir. Ou seja, a análise crítica ao invés de paralisar a ação pedagógica,
pode movê-la a inferências significativas ao processo.
Esse ato de pensar a realidade se dá na comunicação que é uma relação dialógica
comunicativa com seus pares, trazendo para si algumas considerações passíveis de reflexão:
para quais objetivos as instituições de ensino estão formando os sujeitos contemporâneos?
Ou seja, que tipo de sociedade desejamos edificar? Quais práticas pedagógicas serão
indispensáveis para instrumentalizar o sujeito para uma intervenção social crítica e
consciente em busca do bem-comum? Tendo por base ainda a obra de Paulo Freire, não
basta apenas alcançar a compreensão crítica da situação de opressão para libertar os
oprimidos. É necessário desvelar e dar um passo para superá-la engajando-se na luta
política pela transformação das condições concretas em que se dá a opressão. Dessa
maneira, cada pessoa assume a luta pela construção do inédito-viável. De acordo com Ana
Maria Freire (2006, p. 206-207) “o inédito viável é na realidade uma coisa inédita, ainda

25
não claramente conhecida e vivida, mas sonhada e quando se torna um percebido destacado
pelos que pensam utopicamente, esses sabem então, que o problema não é mais um sonho,
que ele pode se tornar realidade”.
Assim, uma das tarefas do educador, em comunhão com outros educadores, é
desvelar as possibilidades diante das situações-limites e, por meio da análise política,
buscar transpor os obstáculos e vislumbrar o inédito-viável para aquela situação. Esse
movimento amplia a relevância do fazer pedagógico, visto que as exigências
contemporâneas cada vez mais requerem a atuação de um cidadão aprofundado em
conhecimentos que permitam uma interação consciente diante do seu cotidiano.
Os resultados da educação se manifestam, não apenas no plano racional, mas,
sobretudo, nas vivências dos valores adotados. A vivência vai produzir um tipo
de resposta criativa diante dos desafios colocados pela realidade. Não se trata
apenas de adaptar a inteligência do educando aos códigos, aos sistemas
estabelecidos, o que seria um processo de treinamento e adestramento a
comportamentos desejáveis, mas de desenvolver uma reflexão que possibilite
comparações, analogias, juízos que descubra novas respostas para novos desafios.
(WERNECK, 1999, p. 102)

A escola enquanto instituição educativa se estabelece dentro de uma complexidade


organizacional, na definição de suas metas e objetivos; algo que não ocorre isoladamente.
Ela faz parte de perspectivas ideológicas, políticas, que permeiam suas ações, que
necessariamente devem responder a uma vasta pluralidade de intenções destinadas a ela.
Esse anseio atinge diretamente o fazer docente. Em muitos casos, com sua autonomia
rechaçada, o professor é pressionado pelas demandas da uniformidade dos resultados que
deverão provir do seu fazer pedagógico, algo que nem sempre é satisfatoriamente
correspondente (NÓVOA, 2003).
Entre um dos seus objetivos fundamentais está o engajamento social do educando
por meio do mundo letrado. A escola é a instituição responsável por essa inserção,
formando as competências linguísticas necessárias às diversas situações comunicativas. O
aluno, numa perspectiva interacionista6, é agente do seu aprendizado elaborando
concepções, testando hipóteses numa postura de investigação diante dos objetos de estudo.

6
O ideal interacionista consta nos estudos de Piaget e Vygotsky, que concebe a criança como um ser
ativo, que constantemente cria hipóteses sobre seu ambiente, atuando no processo de seu próprio
desenvolvimento. Porém, enquanto Piaget defende que a estruturação do organismo precede o
desenvolvimento, para Vygotsky é o próprio processo de aprendizagem que gera e promove o
desenvolvimento das estruturas mentais superiores.

26
Desse modo, ele assume um papel ativo, utilizando-se dos mesmos e de suas significações
para conhecer, aprender e, dessa forma, se desenvolver. No entanto, essa premissa não está
totalmente garantida nas análises das instituições educativas brasileiras contemporâneas. A
inquietação com o ensino da língua, o domínio do código, perdura e tem sido assunto
recorrente nas mais variadas correntes acadêmicas. Os órgãos governamentais reconhecem
a relevância da escola se empenhar em estreitar a relação dos alunos com o universo das
letras. Para o Ministério da Educação, o ensino da Língua Portuguesa deve estar
relacionado com a função social da língua como condição basilar para o ingresso no mundo
letrado e para que o sujeito possa constituir seu processo de cidadania. Segundo os
Parâmetros Curriculares Nacionais, a leitura é um processo no qual o leitor constrói
significados a partir do texto, em consonância com os objetivos determinados, com seus
conhecimentos sobre o assunto, sobre o autor e sobre o sistema de escrita.
O domínio da língua tem estreita relação com a possibilidade de plena
participação social, pois é por meio dela que o homem se comunica, tem acesso à
informação, expressa e defende pontos de vista, partilha ou constrói visões de
mundo, produz conhecimento. Assim, um projeto educativo comprometido com a
democratização social e cultural atribui à escola a função e a responsabilidade de
garantir a todos os seus alunos o acesso aos saberes linguísticos necessários para
o exercício da cidadania, direito inalienável de todos. (BRASIL 1997, p.23)

A matriz referencial das provas de Língua Portuguesa do SAEB e da Prova Brasil7


está também focada na interpretação de texto, que exige o domínio da competência de
compreensão e análise textual. Estes exames apresentam a combinação de várias
modalidades de leitura em diversas situações cotidianas e de comunicação. O texto é o eixo
norteador das organizações cognitivas das atividades. Segundo os Parâmetros Curriculares
Nacionais:
A leitura na escola tem sido, fundamentalmente, um objeto de ensino. Para que
possa constituir também como objeto de aprendizagem, é necessário que faça
sentido para o aluno, isto é, a atividade de leitura deve responder, do seu ponto de
vista, a objetivos de realização imediata. Como se trata de uma prática social
complexa, se a escola pretende converter a leitura em objeto de aprendizagem
deve preservar sua natureza e sua complexidade, sem descaracterizá-la. Isso

7
O Saeb e a Prova Brasil são dois exames complementares que compõem o Sistema de Avaliação da
Educação Básica. O Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), realizado pelo Inep/MEC,
abrange estudantes das redes públicas e privadas do país do ensino fundamental e também no 3º ano do ensino
médio. São aplicadas provas de Língua Portuguesa e Matemática. A avaliação é feita por amostragem. Nesse
estrato, a prova recebe o nome de Prova Brasil e oferece resultados por escola, município, unidade da
Federação e país.

27
significa trabalhar com a diversidade de textos e de combinação entre eles.
Significa trabalhar com a diversidade de objetivos e de modalidades entre eles, ou
seja, os diferentes “para quês” – resolver um problema prático, informar-se,
divertir-se, escrever ou revisar o próprio texto – e com as diferentes formas de
leitura em função de diferentes objetivos. (ibid, p.54)

Desse modo, é preciso reconhecer a necessidade de adotar e reelaborar mecanismos


de leitura e criar situações que permitam que os alunos desenvolvam sua capacidade leitora.
“A leitura não se constrói sobre o nada. Há algo que provoca o leitor, lhe interessa, lhe
instiga um outro pensamento que lhe permite dar asas à imaginação” (YUNES 2002,
p.194). O professor pode ensinar para além da mera decodificação, buscando uma
compreensão do escrito por meios de múltiplas atividades que visem este objetivo.
Num mundo que restringiu a prática da oralidade à passividade dos
ouvintes/telespectadores; que se contentou com garranchos de uma assinatura
como sinal de alfabetização; que transformou a comunicação em controle
ideológico de massas, o conceito de leitura precisa ser revisto, assim como as
práticas de iniciação. O que seria preciso reconsiderar, reler neste percurso das
práticas leitoras, para instaurar novas percepções e readmitir nesse exercício, algo
que interaja com o leitor potencial? (ibid, p.191)

A indagação proposta pela autora é inquietante. Os espaços escolares, senão atentos,


podem incorrer no equívoco de conceder relevância demasiada ao processo de
decodificação da língua, centralizada apenas na detenção do seu código gráfico. Na maioria
das vezes, a preocupação mais premente se organiza apenas em torno de saber oralizar o
texto e, raramente, na construção de significado ou construção de conhecimento através
dele. Freire expôs, certa vez, que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”, na sua
obra intitulada “A Importância do Ato de Ler” (1988). Esse processo de leitura propagado
por ele, denominado como o “ato de ler”, busca a percepção crítica, a interpretação e a
“reescrita” do lido pelo indivíduo. Nesse contexto, o texto exposto pode trazer em si uma
reflexão, uma possibilidade de releitura e/ou uma forma de interpretar a própria realidade.
Assim, o leitor pode decodificar não apenas as mensagens do texto, mas compreendê-las a
partir as leituras do mundo que o cerca. Esse processo pode permitir que sejamos atores de
nossa própria história, donos de nossos destinos e não apenas meros reprodutores do
discurso prevalecente. O leitor que absorve a experiência do texto pode identificar suas
mensagens e estabelecer um processo de articulação com seus próprios saberes, imergindo
nos seus sentidos mais profundos.

28
Nessa busca, o papel reflexivo do professor (SHULMAN, 2014; SCHÖN, 2000) é
fundamental. Uma prática pedagógica abalizada nesse caminho pode conceder aos alunos a
capacidade de não apenas localizar informações, mas, sobretudo, de estabelecer relações de
um texto com outros textos e contextos, refletir sobre seus sentidos e se permitir a uma
experiência que o auxilie no seu vínculo consigo e com o meio em que vive. É necessário
criar situações de aprendizagens que oportunizem aos alunos criar, rever o seu
desenvolvimento cognitivo e a compreensão da realidade onde está inserido, visto que mais
do que nunca é preciso pensar relacionalmente. A manipulação do texto no ambiente escolar
não pode apenas atender a uma exigência curricular fria e previsível e ao mesmo tempo não
pode ser encarado pelo educador como mais uma exigência protocolar do seu ofício tão
rechaçado de tantas demandas burocráticas.

Diante desse quadro, a pesquisa ora apresentada buscou refletir sobre uma prática
pedagógica que, no seu escopo, pudesse contribuir para a concretização das questões
expostas acima. Nesse percurso elegeu se aproximar de um projeto pedagógico
desenvolvido por meio das rodas de leitura, desenvolvido por docentes de uma escola
pública municipal de uma área rural de Duque de Caxias denominado de Clube de leitura.
O conceito de rodas de leitura, segundo Garcia:
Se caracteriza, como diz o nome, por um círculo ou semicírculo, reunindo um
determinado número de pessoas em torno do leitor-guia. (...) A roda de leitura, ou
qualquer evento onde a palavra circule, é uma aventura quase sempre
imprevisível, o que lhe dá um sabor de novidade. (2007, p.21)

Por essas características, considerei que o trabalho com rodas de leitura traz em si a
leveza que julgo ser necessária ao despertar do gosto e, sobretudo, do hábito da leitura junto
aos educandos, podendo se potencializar como uma valiosa ferramenta pedagógica. As
rodas possuem elementos básicos que a compõem, tais como: o tempo, o espaço, os textos
mais adequados aos momentos e o leitor-guia. No seu desenvolvimento, o tempo deve ser
dividido considerando o exercício em si da leitura e o debate do grupo em relação ao texto
lido. Quanto ao espaço, é aconselhável que ele seja acolhedor e silencioso (VARGAS,
1997).
Os estudos sobre as rodas de leitura concedem ao leitor-guia uma importância muito
relevante, pois ele é o responsável por coordenar a ação, tendo sensibilidade de condicionar

29
a composição do encontro, onde pode ocorrer de forma silenciosa, compartilhada, lida,
relida, debatida e/ou declamada.
Sobre ele, afirma Vargas:
Professor, escritor, crítico literário ou leigo, o leitor-guia possui função decisiva
na leitura de qualquer texto. É através do modo como ele encara o ato de ler que
sua leitura far-se-á mais ou menos interessante. (ibid, p.61).
Para Yunes:
O trabalho do leitor-guia é fazer luz sobre as cenas de leitura, ao ato de leitura,
sem impor sua condição ou a do autor. O que se quer alcançar (...) é a descoberta
da condição de leitor e uma qualificação maior para a leitura, por conta mesmo da
troca, do intercâmbio, da interação de vivências e histórias de leitura – segundo o
repertório de cada um. (1999, p.20)

Outro aspecto de intensa importância para o êxito da roda é a escolha do texto; algo
que deve garantir o interesse do grupo. Tendo em mãos essas considerações, investiguei,
como campo de pesquisa, o projeto: “Clube de leitura”, como exposto anteriormente,
idealizado pelos professores da E.M. Zona Rural onde se reúnem quinzenalmente alunos e
professores, em número médio de 20 participantes, para compartilharem leitura por meio da
roda. Essa prática despertou meu interesse por ser uma atividade que não necessitava de
uma logística tão elaborada para a sua aplicabilidade, podendo ser desenvolvida, como
descrito anteriormente, por qualquer professor. Desse modo, bem próxima do que considero
importante ser analisado nesse momento de estudo. A pesquisa, à luz do aporte teórico,
analisou as práticas e representações discentes e docentes com a leitura elaboradas a partir
do trabalho sistematizado desenvolvido pela escola para este escopo com o trabalho de
rodas de leitura.
Conforme Chartier:
As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à
universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas
pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário
relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza. (...)
As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem
estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma
autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto
reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e
condutas. Por isso esta investigação sobre as representações supõe-nas como
estando sempre colocadas num campo de concorrências e de competições cujos
desafios se enunciam em termos de poder e dominação. As lutas de
representações têm tanta importância como as lutas econômicas para
compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua
concepção do mundo social, os valores que são seus, e o seu domínio. (1999, p.
17)

30
Assim sendo, por meio de uma análise interpretativa dos discursos e ações presentes
no campo, o acompanhamento do desenvolvimento do projeto educativo com rodas de
leitura nessa escola pública, teve como objetivo mensurar os seus efeitos mais relevantes,
além de compreender quais influências as representações relacionadas à leitura literária
elaboradas pelos alunos sofreram a partir desse trabalho. A descrição analítica demarcou,
ainda, outros pareceres igualmente relevantes, que se fizeram presentes no decorrer do
estudo, tais como:
. a percepção das influências que o trabalho com rodas de leitura exerceu na
expressão, identidade e olhar reflexivo dos sujeitos da pesquisa sobre si e seu entorno;
. a reflexão sobre a roda de leitura como interface pedagógica: sua importância e
influência no processo de construção do conhecimento e na potencialização do hábito da
leitura;
. o reconhecimento dos suportes de leitura utilizados na roda e como eles compõem
o painel pedagógico da Unidade Escolar e de que maneira são internalizadas junto ao
currículo;
. a identificação dos hábitos de leitura dos jovens na internet, bem como a influência
deste suporte tecnológico na leitura de textos literários.
As discussões apresentadas foram orientadas na perspectiva de leitura como
experiência. Na concepção de Larrosa, “a experiência seria aquilo que nos passa. Não o que
se passa, senão o que nos passa” (2002, p. 136).

Para ele:
[...] Fazer uma experiência com algo, significa que algo nos acontece, nos
alcança; que se apodera de nós, que nos derruba e nos transforma. Quando
falamos de fazer uma experiência isso não significa precisamente que nós a
façamos acontecer; fazer significa aqui: sofrer, padecer, tomar aquilo que nos
alcança respectivamente, aceitar, na medida em que nos submetemos a isso. (ibid
2002, p.138)

No tocante ao campo educacional, Kramer afirma que:


Pensar a leitura como experiência (na escola, na sala de aula ou fora delas) refere-
se a momentos nos quais fazemos comentários sobre livros que lemos, trocando,
negando, elogiando ou criticando, contando mesmo. Enfim, situações nas quais –
tal como uma viagem, uma aventura – fala-se de livros e de histórias, contos,
poemas ou personagens, compartilhando sentimentos e reflexões, plantando no
ouvinte a coisa narrada, criando um solo comum de interlocutores, uma
comunidade, uma coletividade. O que faz da leitura uma experiência é entrar em

31
corrente onde a leitura é partilhada e onde, tanto quem lê, quanto quem propiciou
a leitura ao escrever, aprendem, crescem, são desafiados. (2000, p.21)

Tal experiência formativa pode romper paradigmas e propiciar ao leitor um


confronto com suas certezas, de modo que seja consolidado um sentido mais abrangente
sobre si mesmo. Assumidos esses pressupostos, o arcabouço metodológico desse estudo se
constituiu por meio de uma pesquisa qualitativa de viés etnográfico.
No pensar de Dauster (2012):
As “interfaces” entre a Antropologia e a Educação vão sendo construídas com
leituras, problematizações, no exercício do trabalho de campo, na observação
participante, em busca de um conhecimento “de dentro”, na escuta das categorias
sociais identificadas no ponto de vista do universo estudado, num modo de elaborar
o diário de campo, numa conceituação de cultura, num modo de escrever e,
portanto, numa forma de pensar. Entre alteridades, olhares, escutas, percepções das
diferenças e significados, relativizações (ibid,1998), se forja a epistemologia de
pesquisa etnográfica e se produzem “objetos” de pesquisa”. (p.02 – grifos da
autora)
Nessa perspectiva, como pesquisador, busquei aplicar um esforço intelectual que
garantisse uma elaboração descritiva sobre a realidade estudada, compreendida como um
texto envolto em um emaranhado de significados passíveis de interpretação. Os fenômenos
educacionais foram observados com o apoio de conceitos e estratégias do campo
antropológico. Por conseguinte, o estudo proposto foi o resultado de um diálogo constante
com o campo em questão, oportunizando uma correlação entre as pressuposições
formuladas e as vozes presentes entre seus atores. Dessa forma, a escola foi analisada não
somente nas relações interpessoais cotidianas ou na sua estrutura física, mas sobretudo nas
suas relações simbólicas.

Em outras palavras, trata-se de situar os fenômenos na especificidade do social, o


que significa desnaturalizá-los, ou seja, mostrar que entre outros fatores, as
atitudes, os comportamentos e os gostos são socialmente construídos e nada têm
de naturais, pois pertencem ao campo da cultura e das relações sujeito/sujeito e
sujeito/objeto. Trata-se de buscar significados, sistemas simbólicos e de
classificação, em uma postura antropológica, que pressupõe a quebra de visão
dissimuladora da homogeneidade. (DAUSTER 2012, p.05 – grifos da autora)

Etnografia, para Geertz, é o esforço intelectual empreendido para a elaboração de


uma “descrição densa” sobre a cultura estudada (1989, p.15). O autor propõe um modelo de
análise cultural hermenêutico, ou seja de caráter interpretativo. Nessa linha, o antropólogo
deve realizar uma descrição em profundidade das culturas, compreendendo-as como textos
ou “teias de significados” que devem ser interpretados. Em seus escritos, defende o
conceito semiótico da cultura, apurado na acuidade de análise, pois, segundo seu parecer, o

32
ser social está emaranhado nessa teia de significados tecida por ele mesmo. (ibid 1989,
p.15)
Como sistemas entrelaçados de signos interpretáveis (o que eu chamaria
símbolos, ignorando as utilizações provinciais), a cultura não é um poder, algo ao
qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os
comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro
do qual eles podem ser descritos de forma inteligível – isto é, descritos com
densidade. (ibid 1989, p.24)

No pensar de Geertz (1989, p. 75), a ideia mais importante da antropologia do tipo


“do ponto de vista do nativo” (que ele pratica) é a de que o sentido é socialmente
construído (e cabe ao etnógrafo interpretá-lo):
A percepção de que o sentido, sob a forma de sinais interpretáveis – sons,
imagens, sentimento, artefatos, gestos –, só passa a existir dentro dos jogos de
linguagem, das comunidades discursivas, dos sistemas de referência
intersubjetivos e das maneiras de construir o mundo; de que ele surge no contexto
de uma interação social concreta, em que uma coisa é uma coisa para um você e
um eu, e não em alguma gruta secreta na cabeça; e de que ele é rigorosamente
histórico, moldado no fluxo dos acontecimentos. (1989, p.75)
Em consonância com essa perspectiva, o trabalho empírico da pesquisa foi realizado
com um viés interpretativo em busca de compreender a realidade estudada por meio da
inserção do ambiente escolar em questão. Nesse caminho, trouxe à tona ainda a questão da
teoria e da prática de modo indissociáveis. Nesse trabalho, particularmente, a teoria trazida
pelos autores serviu como preâmbulo para traçar a rota a ser percorrida, subsidiando o
conhecimento sobre a temática e o diálogo com o grupo a ser pesquisado. Posteriormente,
ela fundamentou a descrição das vivências e o esforço de tradução dos fatos numa teoria
interpretativa.
O antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira no artigo “O trabalho do antropólogo:
olhar, ouvir, escrever”, agregou igualmente valor ao estudo ora apresentado ao dissertar
sobre a importância desses três vértices do fazer antropológico: “olhar, ouvir, escrever”,
descrevendo-os como etapas essenciais no exercício da pesquisa e da apreensão dos
fenômenos sociais. O autor considera que num primeiro momento esses aspectos podem
parecer familiares ou até mesmo triviais. No entanto, para ele:
Num segundo momento – marcado por nossa inserção nas ciências sociais – essas
“faculdades”, ou melhor dizendo, esses “atos cognitivos” delas decorrentes,
assumem um sentido particular de natureza epistêmica. (...) Enquanto no olhar,
no ouvir “disciplinados” – a saber, disciplinados pela disciplina – se realiza nossa
“percepção”, será no escrever que esse “pensamento” se exercitará de forma mais
cabal, como produtor de um discurso que seja tão criativo quanto próprio das
ciências voltadas à construção da teoria social. (OLIVEIRA 1996, p.15- grifos
do autor)

33
A reflexão sobre as considerações do autor fundamentou inúmeras ponderações
pertinentes ao estudo. Concedeu clarividência à compreensão da pesquisa como uma
atividade humana no campo educacional que, sobretudo, estará atenta aos seus símbolos
comunicacionais. A elaboração das representações conceituais sobre os sujeitos da pesquisa
deve abandonar pré-conceitos e estereótipos, lançando um olhar sobre o entendimento das
diferenças e de suas significações específicas e singulares. Outro dado apresentado pelo
artigo foi a ponderação sobre a etapa de escrever a respeito do vivenciado e observado no
campo. Para ele, a forma de transcrever deve garantir a lisura e confiabilidade da pesquisa.
Um processo complexo que requer habilidade na redução, organização e interpretação dos
textos. Todo este material precisa ser organizado e categorizado segundo os critérios
descritos ou pré-estabelecidos no projeto, de acordo com as finalidades da pesquisa. O
aporte teórico estabelece um particular estreitamento neste momento onde poderá
oportunizar interpretações e explicações que procurem dar conta, em alguma medida, do
problema e das questões que motivaram a investigação.
Levando em conta esse arcabouço teórico, enfatizo que o viés etnográfico apenas
norteou a inserção no campo, no entanto as limitações desse processo estiveram presentes.
Os elementos conceituais que a proposta em si abarcou, puderam prestar suportes
conceituais substanciais à análise e interpretação dos dados, no entanto sem a pretensão de
aferir um cunho antropológico contemplado em todas as suas especificidades. O interesse
primordial foi o de confrontar percepções, levantar hipóteses e evitar generalizações, tendo
em vista a incipiência dos recursos aplicados. Não obstante, que as reflexões propostas
possam subsidiar outras análises a serem realizadas por outros pesquisadores e/ou
professores interessados no teor dessa investigação.
A metodologia empírica foi composta com a participação dos encontros do Clube de
leitura8 – observação livre e elaboração do diário de campo -, entrevistas semiestruturadas
com alunos e professores, aplicação de questionários e análise documental (currículo,
projeto pedagógico e avaliações). Todo esse trabalho está apresentado no registro dessa
escrita, buscando oportunizar uma reflexão propositiva, com vistas à relevância do tema aos

8
Nome dado ao projeto com rodas de leitura pela E.M. Zona Rural.

34
vários segmentos educacionais a posteriori, que possa tornar o estudo permeável a novas
questões e análises interpretativas. A pesquisa firmou o compromisso em apresentar um
quadro de atuação educativa, alimentado tanto dos princípios teóricos acerca dos afazeres
em torno da formação do leitor, como de elementos práticos que pudessem subsidiar o
trabalho docente no seu trato cotidiano.
Concebendo a leitura literária como uma prática de fruição estética e um meio
plural de acesso à cultura, a pesquisa organizou-se da seguinte forma:
. 1 – No tópico 1, tratou dos fundamentos da pesquisa e dos seus aspectos constitutivos,
bem como das questões metodológicas adotadas;
. 2 – Ao inserir-se no campo, a pesquisa debruçou-se na análise dos aspectos documentais:
o Memorial da instituição pesquisada e o seu Projeto Político Pedagógico que continham a
filosofia institucional e os fundamentos teóricos-metodológicos que norteavam a sua
prática. Esse tópico apresentou a análise desses dados, bem como as concepções
pedagógicas da professora Vera, idealizadora do projeto do Clube de leitura;
. 3 – O tópico três discorreu sobre a descrição da realização do Clube de leitura e aferiu os
apontamentos mais relevantes correspondentes aos encontros vivenciados;
. 4 – No tópico quatro, versou sobre as vozes dos sujeitos da pesquisa originadas das
entrevistas aplicadas aos alunos do projeto. Abordou ainda, por meio de um questionário,
os usos que os mesmos faziam dos aparatos digitais, tentando compreender as práticas
leitoras desenvolvidas pelos mesmos sob esses suportes. Esse tópico esboçou ainda os
dizeres do professor da sala de informática e da bibliotecária sobre o trabalho do fomento à
formação do leitor desenvolvido por eles;
. 5- Nesse tópico, o aporte teórico que deu origem às questões da pesquisa foi organizado
na análise e compreensão dos temas trazidos pelo campo;
. 6 – Por fim, as considerações finais versaram sobre algumas proposições promovidas pelo
o estudo no seu aporte teórico, bem como a análise das práticas pedagógicas desenvolvidas
na E.M. Zona Rural, mediante o projeto do Clube de leitura.
Ao abordar a leitura é oportuno enfatizar que ela é múltipla em suas dimensões. Na
escola, em particular, ela perpassa disciplinas curriculares, destinadas à informação e/ou
aquisição do conhecimento. Esta pesquisa privilegiou, no entanto, a leitura por fruição,
levando-se em conta o prazer como viés propulsor da formação do leitor, dialogando com

35
os sujeitos envolvidos que compuseram o quadro operacional da escola em destaque. Tal
ponderação não pretende desqualificar outras formas de leitura, quer apenas analisar os
resultados e as influências mais destacadas com esse tipo de trabalho.

Barthes classifica:

Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia, aquele que vem da
cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura.
Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta
(talvez até um certo enfado) bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, a
consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças. (2010, p.20)

Manguel (1997) ao descrever o momento do primeiro contato com o universo das


letras, revela que o ato de ler o reportou a uma dimensão superior, onde era possível
transformar as linhas em realidades vivas, uma espécie de onipotência. Considera este
marco como um rito de passagem. Valho-me desta analogia para analisar o ato de ler como
um desvelamento do mundo, onde os sujeitos que por ele transitam são capacitados a
interpretar e atribuir significados ao mundo que os cerca. Um fazer inquisitivo que "quase
não deixa traços visíveis nem garantias contra a usura do tempo, mas ação produtora que
em cada um dos seus encaminhamentos e de fazeres, ao mesmo tempo alteram e conferem
existência ao texto" (CHARTIER; HEBRARD 1998, p. 32). Uma apropriação de conceitos
difusos e em permanente movimento em busca de sentido e de uma leitura da própria vida.
No que tange às instituições educacionais, a pesquisa pretende reforçar a ideia da
escola como espaço privilegiado à formação do leitor. Nessa lógica os leitores são
entendidos como sujeitos que, no universo escolar, podem desenvolver suas competências
linguísticas e leitoras, elaborando ainda, no campo simbólico, sua identidade. Que as
análises firmadas a partir do campo possam ainda contribuir para abrir uma discussão em
torno da relevância da formação do leitor, suas práticas e representações mais
significativas, e ainda, pensar nas diferentes maneiras de incorporar as suas modalidades
aos fazeres educacionais, redimensionando as fronteiras linguísticas e, consequentemente,
ampliando os esquemas cognitivos dos mesmos.

36
2 - NO CAMPO, A PESQUISA
2.1 - A ESCOLA – ASPECTOS HISTÓRICOS E ESTRUTURAIS

A escola definida como campo para a pesquisa foi uma instituição pública
municipal da área rural do Município de Duque de Caxias/RJ. O critério para tal seleção
deu-se por meio do contato com a professora Vera, que fez o relato da experiência que
estava vivenciando na escola por meio do Projeto: “Clube de leitura”, organizado por ela e
outros professores da Unidade Escolar. À procura de práticas que evidenciassem e
enrijecessem o espaço escolar como ambiente privilegiado à formação do leitor, julguei
pertinente o acompanhamento dessa experiência, confrontando-a à luz da teoria, para
apurar suas implicações mais significativas.
Nessa aproximação, a análise do Memorial Escolar da instituição registra que a
E.M. Zona Rural começou com a iniciativa de uma senhora da comunidade que, por volta
de 1964, começou com as crianças os primeiros ensinamentos a respeito da leitura e da
escrita. Como a procura por este conhecimento era grande, aos poucos se juntaram a ela
outras voluntárias, professoras leigas em sua maioria para auxiliar o trabalho. Cada qual
lecionava em locais disponíveis na região: garagens, varandas e igrejas.
No ano de 1965, o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária),
em parceria com a Prefeitura Municipal de Duque de Caxias, ampliou um prédio já

37
existente onde passou a funcionar a Escola Municipal Zona Rural. Foram chamadas novas
professoras e as que antes lecionavam para a comunidade não puderam mais continuar por
serem leigas. A escola passou a ser organizada por uma professora designada para a função
de Diretora. Assentamentos documentais revelam que em 1969, o Conselho Estadual de
Educação autorizou o registro da escola (Portaria 50.168/69), publicado em Diário Oficial
em 03/09/1969. No ano de 1992, a escola passou por uma reforma, sendo realizada sua
primeira ampliação, passando a contar com 6 salas de aula. Até o ano de 2001, ela só
funcionava em dois turnos. Entretanto, a grande procura por vagas fomentou a necessidade
de ampliação do atendimento, inaugurando assim, o terceiro turno, que ainda hoje se
mantém. Em 21 de outubro de 2005, a escola foi reinaugurada com um prédio novo, situada
no mesmo endereço onde funciona atualmente.

Figura 1: Pátio do interior da E.M. Zona Rural atualmente.

Fonte: Registro Fotográfico realizado pelo pesquisador.

Sua infraestrutura é constituída de 10 salas de aula, sendo 03 especializadas


(Recursos, Leitura e Informática), sala de Serviço Orientação Educacional, refeitório,
cozinha, banheiros masculino e feminino, secretaria, sala de arquivo e sala da Direção. A
partir de 2007, foi implantado o segundo segmento do Ensino Fundamental que está
alocado no 3º turno, atendendo as turmas até o 9º ano. Sua gestão está sob a
responsabilidade de uma Diretora Geral e uma Vice-Diretora, eleitas pela comunidade
escolar para as respectivas funções; ambas moradoras da região. A escola atende a três

38
turnos distintos nos seguintes horários: 1º turno: 7h às 11h, 2º turno: 11h às 15h e 3º turno:
15 às 19h. Conta atualmente com cerca de 900 alunos.
A comunidade escolar tem na sua maioria alunos oriundos de famílias que vivem
com uma renda que gira em torno de um salário mínimo. Como as famílias são numerosas,
variando de 4 a 10 pessoas por casa, considera-se que a maior parte dos alunos atendidos
vive em situação de pobreza. A comunidade está situada numa área tipicamente rural,
afastada do centro comercial de Duque de Caxias cerca de 40 quilômetros. Quanto ao
aspecto econômico, está voltada para a agricultura e a pecuária, sendo estas fontes
geradoras de empregos no local, embora de maneira informal. O bairro não possui
infraestrutura satisfatória, caracterizando a escola como um dos únicos referenciais de
serviço público.
Não existe posto de saúde e quando há a necessidade de atendimento médico, os
moradores se deslocam ao Hospital de Saracuruna, ao Hospital Moacir do Carmo ou aos
postos de saúde situados em outros bairros.

Figs. 2 e 3 – Ruas do entorno da escola

Fonte: Registro Fotográfico realizado pelo


pesquisador.
Há no bairro uma igreja católica, São Bartolomeu, e várias igrejas protestantes. São
nesses espaços que a comunidade se concentra, pois não existem áreas de lazer
estruturadas.

39
40
Figs. 4 e 5 – Ruas do entorno da escola
Fonte: Registro Fotográfico realizado pelo pesquisador.

41
Segundo o Projeto Político Pedagógico da Instituição, a comunidade apresenta um
baixo nível de escolaridade. Isso se dá pelo fato de alguns alunos precisarem trabalhar
desde cedo para contribuir com a renda familiar, ou abandonarem os estudos por não
disporem de recursos financeiros apropriados. Os pais creditam à escola o papel de
possibilitadora de ascensão social, refletindo suas expectativas de uma vida melhor para
seus filhos através da escolarização. São, em sua maioria, famílias semialfabetizadas que
esperam que a escola ofereça novas e diferentes possibilidades de futuro9.

Figs. 6 e 7 – Igrejas protestantes do entorno

Fonte: Registro Fotográfico realizado pelo


pesquisador.

2.2 - A FILOSOFIA INSTITUCIONAL

No seu Projeto Político Pedagógico a comunidade escolar da E.M. Zona Rural


assume como umas das suas principais funções educativas a formação de cidadãos
autônomos, capazes de lidar com a sua realidade de forma responsável e crítica, conscientes
do papel que desempenham socialmente. Neste percurso, compreende que cabe à escola
possibilitar a construção de conhecimentos que permitam ao aluno uma participação ativa
na sociedade. Esses conhecimentos devem estar contextualizados de acordo com a
realidade do educando, para que ele consiga utilizá-lo em sua vida prática. Os professores
da escola explicam essa educação como sendo a que trabalha os conhecimentos prévios que

9
Os dados descritos referem-se à análise do Memorial Escolar realizada em agosto de 2017.

42
o aluno possui e os façam problematizar seus saberes e confrontá-los com o saber
historicamente elaborado na sociedade, de modo a melhorar o seu entendimento sobre as
questões que os rodeiam e, assim, melhorar a sua realidade de vida e transformar a
realidade local.
Atuando na comunidade em que está inserida, a escola pretende favorecer a tomada
de consciência dos direitos e deveres de cada um, de modo a instrumentalizá-los para a
resolução de problemas de forma independente. Para isso, a participação efetiva de todos
nessa construção deverá ser uma busca constante. O Projeto Político Pedagógico preconiza
que é papel da escola contribuir para o desenvolvimento do aluno de forma integral,
considerando os seus aspectos cognitivos, afetivos e psicomotores. Para eles vale a ressalva
da importância de se trabalhar, de modo que fique assegurado no espaço escolar um
ambiente harmonioso, onde o respeito mútuo, a ética e os valores morais possam estar
presentes em todas as situações, onde todos os indivíduos, independente da função que
ocupam possam ser valorizados e estimulados a exercer uma postura solidária, digna e
respeitosa para com os demais.
A filosofia implementada espera uma escola em movimento, renovada
continuamente. Que tenha autonomia e liberdade para tomar decisões e que ofereça
igualdade de crescimento e oportunidade para todos. Busca uma formação educacional
onde os alunos sejam preparados para um futuro imprevisível, sendo capazes de enfrentar
os desafios e buscar as soluções mais adequadas para si, para a comunidade e para a
sociedade da qual são protagonistas.

2.3 - FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS DA INSTITUIÇÃO


O grupo de profissionais da Escola Municipal Zona Rural elegeu o fundamento da
sua prática pedagógica, optando por trabalhar com a teoria sócio interacionista10,
acreditando que é através da interação que o sujeito constrói seu conhecimento. Ao elegê-
la, no entanto, o corpo docente da Unidade escolar não pretende absolutilizá-la e/ou
desconsiderar a validade de outras concepções. Pretende aprofundar os estudos que
perpassam por esta teoria reconhecendo que o sujeito que busca adquirir conhecimento

10
Segundo Vygotisky, a teoria sócio interacionista é o processo segundo o qual o desenvolvimento
humano se dá nas relações de trocas entre parceiros sociais, através de processos de interação e mediação,
impulsionados pela linguagem

43
participa ativamente desse processo. O aluno é entendido como sujeito múltiplo e também
em sua dimensão social, produzido na História e construtor dela, marcado pela organização
cultural a que pertence e agente da cultura. A aprendizagem, o confronto com alteridade e,
consequentemente, o desenvolvimento das competências de cada um, acontecem nos seios
das interações sociais. É interagindo, é trocando que ele adquire novos conhecimentos.
Assim se fundamenta o intercâmbio de experiências no interior da escola e a
valorização dos saberes de todos os envolvidos no processo educacional. Esse movimento é
evidenciado na pesquisa de Vygotsky ao afirmar que:

O aprendizado humano pressupõe uma natureza social específica e um processo


através do qual as crianças penetram na vida intelectual daqueles que as cercam
(...) um aspecto crucial da aprendizagem é que ele cria a zona de
desenvolvimento proximal; ou seja, o aprendizado desperta processos internos de
desenvolvimento, que são capazes de operar somente quando a criança interage
com pessoas em seu ambiente e quando em cooperação com seus companheiros.
Uma vez internalizados, esses processos tornam-se parte das aquisições do
desenvolvimento independentemente da criança. Desse ponto de vista, (...) o
aprendizado adequadamente organizado resulta em desenvolvimento mental e
põe em movimento vários processos de desenvolvimento que, de outra forma,
seriam impossíveis de acontecer. (1989, p.99)

Desse modo, a escola compreende que o professor precisa estar consciente de seu
papel como facilitador da aprendizagem do seu aluno. É ele quem media a relação do aluno
com o objeto de conhecimento. É preciso que o professor reconheça o que o aluno já sabe,
para, a partir daí fazer intervenções que o façam problematizar o seu conhecimento e criar
novas hipóteses a respeito do novo conhecimento.
Neste processo, o professor deverá aproveitar a heterogeneidade presente em sua
sala a favor da aprendizagem. Entendendo que se a escola quiser investir em um processo
de aprendizagem que impulsione o avanço, precisa adotar como prática cotidiana o trabalho
com grupos heterogêneos, em que as crianças se ajudem mutuamente. A escola considera
de extrema importância a relação que o professor estabelece com os seus alunos. Essa deve
estar pautada no respeito e no diálogo, cabendo ao docente estabelecer um clima de
confiança no grupo, de modo a promover o bem-estar de todos. Acredita ainda ser também
papel do professor buscar trabalhar as questões sociais atuais, favorecendo o entendimento
e questionamento de diferentes situações que influenciam diretamente a vida de seu aluno,
da sua família e da sua comunidade, objetivando a criticidade e a formação de valores
desde o início de sua vida escolar.

44
2.4- ANÁLISE DO PERFIL METODOLÓGICO

A análise documental dos princípios ideológicos da E.M. Zona Rural foi de grande
valia para a pesquisa. Num movimento de imersão nos seus aspectos filosóficos, nos seus
recursos metodológicos e nas suas metas educativas, torna-se mais elucidativa a abordagem
aos atores que compõem o seu domicílio. Esses sujeitos trazem em si variados
pertencimentos, constituindo-se subjetivamente no entrelaçamento dessas múltiplas
relações. Eles possuem uma história a ser contada, uma experiência a ser contemplada e
acredito que a escola pode estabelecer um canal de diálogo com essas peculiaridades. Esse
entendimento está abalizado na percepção de que o ser humano é um ser social envolto
numa formação contínua em múltiplos estágios de aprendizagem.
Para Libâneo (1998, p.22):
(...) Educação é o conjunto das ações, processos, influências, estruturas, que
intervêm no desenvolvimento humano de indivíduos e grupos na sua relação ativa
com o meio natural e social (...) É uma prática social que atua na configuração da
existência humana individual e grupal, para realizar nos sujeitos humanos as
características de ser humano.

Atrelada a essa concepção, as matrizes sociais nas quais convivem os educandos,


evidenciam diversidades que podem se traduzir como possibilidade de interação e
experimentação. Quando a escola assume esse procedimento, abre espaços para as
realidades particulares dos educandos, assimilando e compreendendo sua relevância dentro
do seu projeto pedagógico.
(...) Enquanto lutamos para conquistar condições concretas para uma escola de
qualidade para todos, o desafio mais sério que precisamos enfrentar na escola é,
na verdade, um dos mais pesados e difíceis problemas da nossa própria condição
humana: o apagamento das diferenças, o não reconhecimento de que aquilo que
caracteriza nossa singularidade – de nós, seres humanos – é justamente nossa
pluralidade (...) (KRAMER 2001, p. 67)

A escola tem esse desafio diariamente: refletir sobre a multiplicidade e a


singularidade dos seus educandos, nos saberes advindos deles, das suas vivências e
inclinações, visto que “a reflexão sobre o seu ensino é o primeiro passo para quebrar o ato
de rotina, possibilitar a análise de opções múltiplas para cada situação e reforçar a sua
autonomia face ao pensamento dominante de uma dada realidade” (ALARCÃO 2005, p.
82-83).

45
Uma ferramenta indispensável para a concretização desse objetivo é a linguagem. A
escola é semelhante a um organismo vivo, dinâmico, em movimento. Um movimento que
dialoga com sua realidade, refletindo suas conquistas e contradições. Ela faz exposição do
movimento humano e social que a integra, de forma particular e complexa. Nesses moldes a
linguagem perpassa por essas relações como um eixo de integração e pode exercer uma
função organizadora e planejadora do pensamento e se consolidar na interação social como
expressão fundamental. O sentido que as palavras agregam podem possibilitar a
organização do real e a comunicação dos membros das diversas culturas, favorecendo a
expressividade e a constituição da identidade de cada um. Essa perspectiva motivou a
criação do projeto ora investigado. Algo que foi idealizado e desenvolvido pela professora
Vera, nas concepções da sua prática docente descritas adiante.

2.5- O CLUBE DE LEITURA: REPRESENTAÇÕES DE UMA DOCENTE COMO


MEDIADORA DE LEITURA

Ao traçarmos uma reflexão sobre a história de formação de diferentes leitores,


certamente vamos verificar a importância determinante que os ambientes geradores dessas
práticas tiveram sob a elaboração do ato de ler. E num desdobramento dessa análise,
consideraríamos ainda como esse processo esteve em algum momento vinculado a
situações e experiências que permearam essas ações e permitiram o aprimoramento do
gosto pela leitura; ato que, no estrato dessa pesquisa e de muitos outros estudos (PETIT,
2009; YUNES, 1999; CADERMATORI, 2009), é um valor essencial para potencializar a
abertura dos canais do pensamento e da imaginação.
Ao analisá-lo como valor é imperativo conceituarmos esse termo. Para isso
apresento a definição defendida por Werneck que nos diz que “valor é aquilo que, de algum
modo, vale para o homem; aquilo de que é carente, aquilo que satisfaz a sua necessidade ou
que preenche a sua falta” (2003, p.46).
E complementa:
Para a axiologia, o homem é um ser em estado de incompletude, de imperfeição,
um ser que tem consciência da sua carência e que, por isso, continuamente, busca
completar-se e perfazer-se. Antes de qualquer definição racional, o ser humano
conhece-se a si mesmo como alguém que necessita de algo que o possa completar.
Este objeto que pode satisfazê-lo, plenificá-lo, é exatamente o valor. (ibid, p. 46).

46
Sob essa perspectiva a leitura e o universo das letras são decisivos na formação do
cidadão que seja capaz de estabelecer uma ligação com os conhecimentos adquiridos e suas
relações sociais. Não obstante, ao passo que impele uma inserção mais crítica e consciente
no mundo, ela também pode favorecer o desenvolvimento do imaginário, da inventividade.
Estabelecer-se como um exercício de grande valia do pensamento; uma fuga criativa do
mundo: “o livro em geral e a literatura de modo especial emitem vozes mais sutis e menos
ressonantes em meio à barafunda dos discursos” (CADERMATORI 2009, p.121).

A leitura abre um novo horizonte e tempos de devaneios que permitem a


construção de um mundo interior, um espaço psíquico, além de sustentar um
processo de autonomização, a construção de uma posição do sujeito. Ler permite
uma atividade de narração que estabelece vínculos entre os fragmentos de uma
história e, às vezes, entre universos culturais. Ainda mais quando essa leitura não
provoca um decalque da experiência, mas uma metáfora. (PETIT 2010, p. 32)

É simplório considerar que a leitura vai mudar o mundo, no entanto,


indiscutivelmente, vai apontar caminhos, principalmente quando ela deixar de figurar nos
espaços escolares apenas de modo instrumental e protocolar. O trabalho com o texto, com
a literatura vai alargando o nosso repertório textual, fomentando uma habilidade
linguístico-formal e promovendo a imersão no imaginário simbólico; “não se tornariam
necessariamente grandes leitores, mas os livros já não os desencorajavam nem os
assustavam. Ao contrário, ajudavam-nos a encontrar palavras, a serem um pouco mais
autores de sua própria história” (PETIT 2008, p. 11). O entendimento da língua, das
manifestações literárias vão se aproximar do sujeito e da sua própria história e podem
acomodar-se em um espaço de destaque em sua vida.
Dentre outros espaços educativos formais e informais, a escola se configura como
um espaço privilegiado para a formação do leitor. Articulada a várias formas de
conhecimento, ela pode imprimir as marcas sumárias que podem delinear um futuro leitor.
Um trabalho equivocado nessa área, atrelado a catálogos pré-fixados por um planejamento
enrijecido, pode favorecer, no entanto, o rechaçamento da leitura enquanto prática em seu
caráter fruitivo. Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), os processos de
ensino e aprendizagem, no que tange à formação do leitor, trazem para a discussão
pedagógica aspectos de excepcional importância, em particular no que se refere ao modo

47
como se devem entender as relações entre desenvolvimento e aprendizagem, à relevância
da relação interpessoal nesse processo, à relação entre educação e cultura e ao papel da
ação educativa ajustada às situações de aprendizagem e às características da atividade
mental construtiva do aluno em cada momento de sua escolaridade.
Cagliari (2002) afirma que o professor precisa saber como acontece o processo de
aquisição do conhecimento de seus alunos, de como eles se situam em termos de
desenvolvimento emocional e de como eles vêm evoluindo no processo de interação social,
pois assim, ele pode encaminhar o processo de aprendizagem de forma agradável e
produtiva. Dessa forma, estará mais livre para selecionar métodos e técnicas, buscando os
rumos e o ritmo que considerar mais adequados à sua turma, colocando sua experiência,
argúcia e discernimento acima de qualquer modelo pré-estabelecido. Uma prática que
Shulman (2014) vai classificar como raciocínio pedagógico, ou seja um olhar reflexivo
sobre os propósitos educativos que envolvem a compreensão, a transformação, a instrução e
a avaliação de todo o processo.
Na Escola Municipal Zona Rural, tive acesso ao projeto “Clube de leitura”,
idealizado e desenvolvido pela professora Vera (nome aferido por mim) em parceria com
alunos e outros professores. Essa parceria em grande parte fez-se necessária devido à
necessidade de alunos e professores envolvidos terem que participarem da proposta em
horários alternativos, fora dos seus quadros habituais de atuação. Como docente, a
professora Vera contou-me que atuava na escola desde o início de sua carreira pedagógica.
É concursada pela Prefeitura Municipal de Duque de Caxias, lecionando a disciplina de
Língua Portuguesa há cerca de 27 anos. Inicialmente era, segundo sua fala, “professora
primária” e depois cursou a Faculdade de Letras e começou a lecionar a disciplina,
atendendo aos alunos do 2º segmento do Ensino Fundamental. Amante dos livros e da
Literatura, Vera protela a iniciação do seu processo de aposentadoria, pois acredita que
ainda pode contribuir para a formação dos alunos daquela comunidade, que são filhos e
netos de ex-alunos seus. Perguntei a ela o que motivou a criação do projeto do “Clube de
leitura”:
“Percebi, através dos Conselhos de classe e das reuniões com outros professores,
que a escola estava muito preocupada em cumprir o planejamento da disciplina
de Língua Portuguesa. Os conteúdos são extensos e existe uma cobrança para que
eles se cumpram durante o ano letivo. Um dia, um aluno me perguntou se a nossa
aula poderia ser na Biblioteca da escola por causa do ar-condicionado, que na sala
não tem. Eu concordei e levei a turma para a biblioteca e percebi que muitos

48
alunos nunca tinham estado naquele espaço. Fiquei abismada, principalmente
com a minha prática. Eu sou uma professora de Língua Portuguesa e nunca tinha
levado meus alunos a fazerem uma visita à biblioteca da escola com mais de
7.000 livros. Falei dessa experiência com outros professores e eles também
relataram que não tinham tempo dentro do programa para a utilização daquele
espaço de leitura. Foi então que nós resolvemos criar um momento à parte para
usufruir daquele lugar, com alunos e professores que quisessem ler de forma
gratuita. Apenas pelo gosto de compartilhar os textos. Foi daí que surgiu o
projeto”.

Segundo a professora, a partir daí foi feita uma reunião com a coordenação da
Unidade Escolar solicitando a autorização para que alunos e professores pudessem vir à
escola em horários alternativos. Houve uma divulgação da proposta em forma de cartazes
no pátio, onde alunos e professores de forma livre optariam em participar ou não dos
encontros que ocorreria quinzenalmente, no horário de contra-turno, no espaço da
Biblioteca, em forma de rodas de leitura. Os encontros duravam em média de 1h30 e era
direcionado por um dos professores integrante do grupo. Os componentes teriam a
liberdade de participarem dos encontros, sem necessariamente cumprirem uma
obrigatoriedade de presença. Seriam momentos de leituras compartilhadas e a partir delas,
debates e/ou ações pontuais sobre os temas ocorreriam. A proposta abrigou no primeiro ano
de execução em meados de 2016, época que foi iniciada, cerca de 25 pessoas entre alunos,
professores e funcionários.
Para Vera, a escola ao se debruçar apenas sob as demandas do planejamento da
disciplina estava falhando na formação dos leitores. Para ela, isso ocorria em parte pelo
acúmulo de demandas burocráticas as quais ela está subordinada que rechaçam o espaço
destinado às práticas leitoras nas atividades em sala de aula ou fazem com que elas sejam
desenvolvidas de forma mecânica e desestimulante, apenas como uma exigência protocolar.
Fazia-se necessário, sob seu parecer, um arejamento das práticas leitoras no contexto
escolar, onde se privilegiasse a inventividade e o imaginário. Mecanismos que tornariam
dinâmico o processo leitor de cada indivíduo. Assim sendo, torna-se possível, sem perder
de vista as dimensões constitutivas de cada texto, redimensionar as fronteiras linguísticas
que lhes são impostas, ampliando seus sentidos e desenvolvendo a perspectiva da leitura
como fonte de prazer. Para ela, o espaço da Biblioteca escolar era um espaço propício ao
desenvolvimento do hábito da leitura e servia ainda como valioso suporte ao trabalho
docente escolar. O estreitamento desses dois segmentos (biblioteca/sala de aula) poderiam

49
favorecer um arejamento das práticas leitoras prevalecentes e a concretização mais incisiva
dos objetivos pedagógicos demarcados pela Unidade escolar.
Analisei o projeto na sua concepção conceitual. Nele estavam descritos alguns
objetivos:
“ a-Desenvolver a leitura como ampliação do imaginário no espaço
escolar;
b- Reconhecer o trabalho com o texto literário como possibilidade
de um processo de inferências e experiência;
c- Aguçar o desenvolvimento da percepção da intertextualidade;
d- Exercitar a postura crítica diante do texto;
e - Estimular o educando acerca da criação do seu próprio texto,
por meio do exercício e fortalecimento de sua capacidade cognitiva-conceitual,
respaldada nos gêneros estudados;
f – Oportunizar o desenvolvimento da oralidade, apresentando o
espaço escolar como um espaço de livre debate, argumentação e desenvolvimento
do senso crítico”.
(Projeto: Clube de leitura da E.M.Zona Rural 2016,
p.3)

A proposta era destinada aos alunos do segundo segmento, tendo em vista que eles
estudavam no 3º turno da escola, no horário das 15h às 19h e podiam chegar à escola mais
cedo para participarem do projeto. O mote fulcral da proposta em oportunizar uma leitura
compartilhada vai ao encontro dos estudos de Colomer (2007) sobre a leitura no espaço
escolar. Para a autora o comentário compartilhado auxilia o entendimento do texto:

Trata-se, portanto de assegurar a compreeensão dos elementos concretos – as


palavras, as referências etc -, oferecer a exploração conjunta e o intercâmbio de
significados até chegar a interpretações plausíveis. Os alunos progridem a partir
de uma leitura compreensiva – entendida como leitura que se limita a explorar os
elementos internos do enunciado, os sentidos denotados – ao enriquecimento da
leitura interpretativa – entendida como leitura que utiliza conhecimentos externos
para suscitar significados implícitos, segundo sentidos ou símbolos que os
leitores devem fazer emergir no texto de forma compartilhada . (p.149)

Yunes (1999) reitera a relevância das rodas de leitura, destacando que essa prática
foi desenvolvida nas últimas décadas em vários espaços pelo Brasil através do Programa
Proler, criado em 1992, pelo Ministério da Cultura, com o objetivo de fomentar o acesso ao
livro e difundir o hábito da leitura. A autora considera que as palavras compartilhadas
dançam nos ouvidos e assomam a memória e podem despertar o gosto pelo saber. “Os
efeitos difundem-se por meio de múltiplos componentes das subjetividades que estão em
circulação no campo social. Os aprendizes precisam do acesso aos tesouros da história e da
cultura” (ibid, p.15).

50
Conversei um pouco mais com a professora Vera, a fim de tentar compreender as
representações que ela estabelecia sobre a função docente que desenvolvia, bem como
pretendi analisar o seu papel como mediadora de uma prática de leitura voltada ao fomento
da formação do leitor. Indaguei se com tantos anos de magistério, a professora percebia as
mudanças ocorridas na educação no que tangia à relação do aluno com aprendizagem e o
papel do professor nesse processo:
“Acredito que antigamente tínhamos a maior parte da nossa missão educacional
voltada para a questão da aprendizagem. Atualmente considero que boa parte da
minha função como professor infelizmente se dá na questão disciplinar, onde
procuro fazer com que as posturas e condutas sejam reorientadas para algo mais
aceitável. Existem muitos conflitos familiares, desajustes emocionais. Outra
questão é a defasagem da aprendizagem. Infelizmente os alunos possuem
uma grande defasagem. Talvez até motivada por essa questão engessada dos
planejamentos descontextualizados. Para ambas, acredito que a leitura é o
antídoto”. (grifos meus)

Ao trazer para o debate o enfoque na aprendizagem e, nas variáveis presentes nesse


processo, sob a ótica da professora no decorrer dos anos, os dizeres “defasagem” e
“conteúdos descontextualizados” me chamaram a atenção. Esses termos tornaram-se
corriqueiros nos espaços escolares nos últimos tempos. É comum o docente ter uma queixa
similar à da professora revelando o que aparentemente se caracteriza como uma espécie de
insatisfação com o caminhar pedagógico proposto pelas escolas e sobretudo pelos
currículos. Ao citar o termo “descontextualizados”, o juízo de referência se interpõe, visto
que para ser considerado contextualizado ele deveria estar vinculado a alguma ideia, a
algum propósito ou minimamente a uma matriz norteadora. Problematizando a questão é
válida a seguinte indagação: o que significa contextualizar? Que concepção de educação e
de escola organiza esse princípio?
Para aprofundar o debate é necessário revisitar a constituição histórica na área
educacional ocorrida no Brasil nos últimos anos. No país, particularmente, o discurso por
uma educação popular de qualidade perpassou por vários momentos históricos. Desde o
início da República, já se identificava a necessidade de melhorias estruturais e ampliação
do atendimento educacional.

Desde então, e até hoje, diagnósticos, denúncias e propostas de educação popular


têm estado sempre presentes no discurso político sobre educação no Brasil. Esse
discurso vem sendo inspirado nos ideais democrático-liberais: a igualdade social
e a democratização do ensino, vista como instrumento essencial para a conquista
desse objetivo. (SOARES 2001, p. 09)

51
Com o processo de industrialização se intensificou a necessidade de as
pessoas atingirem um nível de escolaridade mínima (ler, escrever e contar) para
lidar com as máquinas, com as medidas e, consequentemente, fortalecer as
indústrias. No final do século XIX e início do século XX se constituiu um processo
importantíssimo chamado “educação de massas” ou “escolarização em massa”
(SAVIANI, 2013). Nesse momento se deu a expansão da educação e se criou a
escola como é conhecida hoje. No Brasil esse fenômeno se materializou no final
do século XIX e início do século XX, mais precisamente 1920/1930 quando
ocorreu o momento de modernização (início da industrialização, chegada dos
imigrantes).
A educação começou a se modificar. Se antes era doméstica para as elites,
agora ampliavam-se as escolas privadas e públicas; embora as públicas ainda
muito precárias. Sua expansão só aconteceu a partir da consolidação do
movimento escolanovista, pois esse era o seu maior foco. Esse movimento
ponderava a educação como necessidade e direito, ampliando sua concepção, tendo em
vista que, naquele momento, a educação era precária e apenas alguns “privilegiados”
tinham acesso. Direito este, que segundo o texto do próprio Manifesto dos Pioneiros da
Educação11, se fundou no princípio biológico, tornando-a acessível em todos os seus graus.
Em lugar da concepção tradicional, que servia a interesses de classes, a nova
concepção vem fundar-se no “caráter biológico” que permite a cada indivíduo se
educar, conforme é de seu direito, “até onde o permitam as suas aptidões naturais,
independente de razões de ordem econômica e social. (SAVIANI 2013, p.243)

A ênfase, no entanto, à finalidade biológica descritiva no documento vai se


desdobrar no aparelhamento de gabinetes médicos, dentários, apoio da enfermagem etc,
atrelado ao espaço educacional. Essa visão biologizante esteve presente na escola nova e
fortaleceu em muito o programa de alimentação escolar. Porém práticas pautadas em
aspectos biológicos é uma crítica ao movimento da Escola Nova que perdura até hoje, pois

11
Refere-se a um documento escrito por 26 educadores, em 1932, com o título A
reconstrução educacional no Brasil: ao povo e ao governo. Circulou em âmbito nacional com a
finalidade de oferecer diretrizes para uma política de educação.

52
esse dado, em muitos casos, serviu de base para explicar o fracasso escolar, em detrimento
do seu caráter pedagógico.
As estruturas presentes no Manifesto, marco do movimento da Escola Nova que
buscava reconstruir a educação no Brasil preconizava ainda, dentro da lógica da autonomia,
os princípios de financiamento para educação. O documento propunha um sistema
coordenado em toda República, obedecendo a um plano comum. Sendo o Manifesto uma
proposta de reforma, ele rechaçava a perspectiva da educação tradicional e tentava abarcar
um grande número de eventos e contextos diferenciados. No entanto, uma das críticas ao
seu conteúdo vai dizer que ele não se enquadrava na realidade brasileira, sendo visto como
elitista. No Brasil causou suspeição até mesmo nas elites que vão olhar para essas escolas
com restrições. Em sua ideologia, ele descreveu a educação como um programa de longos
deveres, que comprometia as novas gerações e o futuro de país.
Em síntese o Manifesto apresentou um caráter contraditório e heterogêneo em seu
teor e buscou apoio para se legitimar. Nessa busca, fez algumas concessões, algo que
também se fez presente em outros debates sobre a educação brasileira no decorrer da
história em meio a diversos conflitos de interesse. Os discursos, quase sempre, são frutos de
processos prenhes de uma narrativa disposta a produzir ideias, reconfigurar imagens e
incutir valores, que tinham a pretensão de dar clarividência às relações do universo social
regulamentado politicamente. Este monopólio de legitimidade apontava ainda para a
reforma da coisa pública, apresentando a preeminência do mercado como mecanismo
controlador de recursos. Qualquer outra visão de mundo que não se reconhecesse nessa
análise era classificada como achaque populista que atentava contra a ordem pública e os
poderes do Estado. Na perspectiva drástica dessa hegemonia se expressava analiticamente e
fundamentalmente, quase sempre, não o interesse de bem-estar social ou crescimento
econômico, mas, sobretudo a alteração dos temas e valores humanitários partilhados, de
modo que se tornem subjacentes e se emoldurem nas alternativas da lógica dominante e
excludente do capital (NÓVOA, 1995).
A partir do Movimento escolanovista, ao longo do tempo, muitos outros debates
acerca das Políticas públicas de educação se fizeram presentes e faziam apontamentos sobre
aspectos de ordem quantitativa – aumento da oferta e vaga e ampliação do tempo de
permanência escolar – e de caráter qualitativo – aperfeiçoamento das práticas docentes e

53
introduções de novas perspectivas pedagógicas. Assim, logo veio à tona o princípio de
Educação Integral que aos poucos foi se consolidando como uma resposta mais aproximada
à precarização do ensino e passou a figurar como uma possibilidade de avanço educacional
do país, numa concepção que “contempla o desenvolvimento do ser humano em suas
múltiplas possibilidades de produzir conhecimento, nos planos cognitivo, afetivo, físico,
estético e ético, cultural e social” (HORA e COELHO 2011, p. 01). Essa análise remontava à
Paidéia grega, preconizando uma formação humana mais completa.
Em outras palavras, há um sentido de completude que forma, de modo integral, o
Ser do que é humano e que não se descola de uma visão social do mundo. (...)
Uma perspectiva que não hierarquiza experiências, saberes, conhecimentos. Ao
contrário, coloca-os como complementares e fundados radicalmente no social.
(COELHO, 2009, p.85)

O próprio Anísio Teixeira, um dos mentores intelectuais do Manifesto dos Pioneiros


da Escola Nova, de 1932 defendia uma concepção de educação que se aproximava em
muito do conceito de uma educação integral (NUNES, 2009). Os fundamentos de uma
educação integral que oportunizasse o alcance a áreas mais amplas da cultura, socialização,
preparação para o trabalho e para o exercício da cidadania estiveram presentes na ideologia
das suas concepções como político e pensador. Na sua obra de defesa da democratização da
educação estava embutida a defesa da ampliação da jornada escolar dos educandos nos
diversos níveis de ensino.
Na história da educação, a análise das práticas de educação integral identifica que
seu desenvolvimento ocorre invariavelmente sobre a ótica do tempo integral e/ou na
ampliação do tempo de permanência na escola e esteve presente em muitos discursos
políticos como uma concepção mais desejável de projeto educacional. Outro fator agregado
às práticas contemporâneas relacionadas à educação integral é o cunho de assistência
social, pensado ao enfrentamento da problemática de crianças em vulnerabilidade social.
Na ampliação de sua permanência na escola, além do atendimento pedagógico, elas
também seriam atendidas com atividades esportivas, culturais, com um programa de
alimentação escolar e, em alguns casos, por um atendimento médico e/ou odontológico
especializado.
No entanto, apesar de relevante, em âmbito nacional a Educação integral ainda não
se consolidou como política pública permanente, figurando ainda em ações apenas focais.
Os interditos de financiamento, de propostas pedagógicas adequadas, de estrutura física

54
polivalente, impediram a sua universalidade, o que ainda ocasiona outros problemas, pois
estratifica e vincula as suas práticas a critérios de punição ou mesmo de defasagem de
aprendizagem. Isso ocorre, também, em muito, por conta de uma prática viciosa dos Órgãos
gerenciais educativos, permeados de temas permanentes e outros temas recorrentes. Onde
nem sempre uma ideologia conclamada, legítima ou não, se concretiza como uma política
pública, pois pretende apenas responder de forma focal a algumas contingências que
insurgem no aligeirar das demandas. A Educação Integral é um claro exemplo disto.
Embora já se tenha desenvolvido alguns projetos em torno dela, tais como o Centro
Integrado de Educação Integral (CIEP) no Rio de janeiro12 e apareça em muitos círculos de
debates, ela, na maioria das vezes, é defendida apenas por meio do senso comum ou como
bandeira político-partidária, sem apresentar uma análise mais aprofundada que considere o
seu real entendimento, ficando apenas na ordem do dia, sem a manutenção adequada à sua
consolidação.
Uma ação recente de ampliação de permanência no espaço escolar foi o Programa
Mais Educação implementado pelo Governo Federal. Essa ação é um dos objetivos do
Plano de Desenvolvimento em Educação e uma ação indutora para fortalecer o
empoderamento da Educação Integral no pais. Sua abrangência atendeu boa parte do
território nacional, com alunos, no contra turno escolar, tendo acesso a atividades ligadas ao
meio ambiente, saúde, esporte, cidadania, artes e educação econômica. No entanto, seu
desenvolvimento teve vários entraves como escassez de recursos para o financiamento e
principalmente as questões de ordem física e estrutural. Alguns gestores das unidades
escolares criaram estratégias para ampliar a permanência do aluno, com a finalidade de
receber um financiamento maior de recursos humanos, financeiros e estruturais. Porém, o
que ocorreu foi uma sobrecarga sobre os mesmos, onde assomaram inúmeras tarefas de
caráter financeiro, além de funcionários assumirem outras funções alheias aos seus
afazeres, por conta da ampliação da demanda, precarizando cada vez mais qualquer
possiblidade de êxito pedagógico.

12
Os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) foram um projeto educacional de autoria
do antropólogo Darcy Ribeiro, que os considerava "uma revolução na educação pública do País". Implantado
inicialmente no estado do Rio de Janeiro, no Brasil, ao longo dos dois governos de Leonel Brizola (1983 –
1987 e 1991 – 1994), tinha, como objetivo, oferecer ensino público de qualidade em período integral aos
alunos da rede estadual.

55
Recentemente, a precarização do ensino, voltou à cena no Documento do BNCC
(Base Nacional Curricular Comum)13 para os ensinos infantil e fundamental aprovada em
2017 em votação no Conselho Nacional de Educação (CNE). A BNCC dá diretrizes para
orientar a elaboração dos currículos das redes municipais, estaduais e federal de ensino,
tanto nas escolas públicas quanto particulares, assumindo como um dos seus vetores o
princípio da educação integral como recurso de enfrentamento à defasagem de
aprendizagem e readequação curricular.
Ao longo da Educação Básica, as aprendizagens essenciais definidas na BNCC
devem concorrer para assegurar aos estudantes o desenvolvimento de dez competências
gerais, que consubstanciam, no âmbito pedagógico, os direitos de aprendizagem e
desenvolvimento. Na BNCC, competência é definida como a mobilização de
conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e
socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana,
do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho.
Ao adotar esse enfoque, a BNCC indica que as decisões pedagógicas devem estar
orientadas para o desenvolvimento de competências. Por meio da indicação clara
do que os alunos devem “saber” (considerando a constituição de conhecimentos,
habilidades, atitudes e valores) e, sobretudo, do que devem “saber fazer”
(considerando a mobilização desses conhecimentos, habilidades, atitudes e
valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício
da cidadania e do mundo do trabalho), a explicitação das competências oferece
referências para o fortalecimento de ações que assegurem as aprendizagens
essenciais definidas na BNCC. (BRASIL 2017, p.11)

Nesse contexto, a BNCC reconhece que a Educação Básica deve visar à formação e
ao desenvolvimento humano global, o que implica compreender a complexidade e a não
linearidade desse desenvolvimento, rompendo com visões reducionistas que privilegiam ou
a dimensão intelectual (cognitiva) ou a dimensão afetiva. Significa, ainda, assumir uma

13
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento de caráter normativo que define o
conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo
das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo a que tenham assegurados seus direitos de
aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade com o que preceitua o Plano Nacional de Educação
(PNE). Este documento normativo aplica-se exclusivamente à educação escolar, tal como a define o § 1º do
Artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394/1996), e está orientado pelos
princípios éticos, políticos e estéticos que visam à formação humana integral e à construção de uma sociedade
justa, democrática e inclusiva, como fundamentado nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação
Básica.

56
visão plural, singular e integral da criança, do adolescente, do jovem e do adulto –
considerando-os como sujeitos de aprendizagem – e promover uma educação voltada ao
seu acolhimento, reconhecimento e desenvolvimento pleno, nas suas singularidades e
diversidades.
Lançando um olhar analítico sobre esse traçado histórico e as providências
organizadas em torno da educação brasileira e à suposta “precarização do ensino” citada
pelo relato da professora Vera, procuro ainda tentar responder à questão da
contextualização. Como garantir um referencial que se aproxime minimamente dos anseios
de uma educação de qualidade? Os arranjos vigentes demonstram a precarização de
algumas práticas, que ignoram a complexidade da questão que perpassa por estruturas
físicas adequadas, ressignificância de currículo, garantia de acesso às várias áreas do
conhecimento e, sobretudo, no tocante à acuidade com o fazer docente, o orquestrador da
proposta (BRANDÃO, 1999).
Nesse caminho, Coelho (2009) apresenta a concepção de “espasmos pedagógicos”
– fatos, situações e discursos que acometem a educação em determinados momentos. Numa
outra análise, seria uma espécie de modismo sazonal, onde se comenta a respeito de algum
tema ou fato em profusão, mas que, na verdade, ninguém sabe ao certo o que é. O senso
comum vai se apossando da questão e não se buscam os conceitos. Usam-se palavras,
expressões, “sinônimos” que vão sendo substituídos no decorrer dos discursos, no entanto o
conceito não é trabalhado. Em muitos casos recorre-se à utilização de jargões, que
naturaliza temas importantes, sem, no entanto, consolidar sua concepção.
Acredito que quando tratarmos as considerações, aprofundarmos as questões, as
ações serão mais efetivas e menos intuitivas. Esse exercício reflexivo é fundamental, pois a
exposição dos diversos conceitos a que se teve acesso, oportuniza um entendimento mais
aproximado do adequado às propostas pedagógicas das escolas. Isso pode favorecer que os
temas tratados não sejam descontextualizados de uma análise mais crítica, desvinculada dos
processos históricos a eles inerentes. É necessário fundamentar a ação educativa em
questão na sua complexidade, não se limitando apenas à reprodução de códigos e
conhecimentos politicamente desenhados. Quanto à questão da contextualização, o próprio
documento do BNCC procura responder quando apregoa que cabe aos sistemas e redes de
ensino, assim como às escolas, em suas respectivas esferas de autonomia e competência,

57
incorporar aos currículos e às propostas pedagógicas a abordagem de temas
contemporâneos que afetam a vida humana em escala local, regional e global,
preferencialmente de forma transversal e integradora.
Respondida à questão, remetemos instantaneamente a outra: nós, como docentes,
estamos preparados para tal? A educação se consolida como um mecanismo valioso sob a
perspectiva da luta emancipatória. Deslocar e rever sentenças educativas individualizadas e
consagrar este processo com o enfoque social torna-se uma necessidade. Através dela é
possível decifrar com mais clareza os códigos das condutas sociais, refletindo e
oportunizando um estranhamento produzido junto às convenções socialmente aceitas de um
modo geral. Nesse processo, podem ocorrer concepções equivocadas ou ingênuas demais e,
na outra ponta, invariavelmente, surgirão contradições. No entanto, é na reflexão sobre a
prática que o processo se constrói e, de forma compartilhada, pode se consolidar.

Retomando a entrevista, questionei a professora Vera sobre a ideia de realizar o


projeto em forma de rodas de leitura, buscando compreender como essa dinâmica se
localiza como facilitadora ou não do processo numa comparação ao cotidiano da sala de
aula:

“A estrutura é determinante. Na sala de aula o meu aluno fica de costas pro outro.
É muito desconfortável essa posição. Em círculo o trabalho flui melhor eles
podem se comunicar de outra forma. Podem compreender que todos estão
buscando as mesmas respostas e que podemos nos ajudar a achá-las”.

Vera, no entanto, reconheceu que modificar a disposição das cadeiras numa sala de
aula convencional era muito difícil por conta da quantidade de alunos, do mobiliário e da
própria rotina de transição entre as várias turmas que ocupavam aquele espaço. No
desenvolvimento da conversa, me interessei pela questão das tecnologias no entendimento
da professora, tendo em vista que ela é oriunda de uma formação analógica. Perguntei quais
sãos os avanços e interditos presentes nessa relação, segundo ela:

“Acho que tudo tem o seu ponto positivo e negativo. Tudo tem um limite. Aqui
na sala, os celulares isoladamente são dispersivos. Mas quando bem orientados...
Por exemplo, aconteceu uma situação de nomes, onde os alunos se manifestaram
que alguns nomes eles não gostavam pela sonoridade, por bulling etc. Sugeri que
pesquisassem os significados dos nomes. Eles fizeram e ficaram surpresos com as
descobertas. Isso foi de uma hora pra outra, algo que antes poderia demorar mais.

58
Pra mim, as velocidades se potencializam. Mas a forma de escrever de modo
formal deve prevalecer”.

Solicitei à professora que ela fizesse uma análise avaliativa do desdobramento do


projeto até então e pedi que destacasse os avanços e os limites encontrados:

“A maioria dos alunos passou a gostar mais de ler. Gostam da biblioteca.


Considero que a nossa escola é privilegiada, pois temos esse espaço que eles
visitam. Faltava a oportunidade. No entanto, sinto falta de outros espaços, de
passeios a outras realidades, pois acredito que a ampliação da cultura é
fundamental. Sinto que o trabalho está fluindo, quando eu percebo que os alunos
aplicam no seu cotidiano os ensinamentos adquiridos. Quando eles percebem a
relação do que aprendem com as situações do dia a dia. A leitura faz um pouco
essa ponte. Através dela acho que os alunos podem compreender melhor seu
papel no mundo. Sua relação com o outro. É interessante quando percebo que os
alunos do clube discutem algo das rodas na sala, despertando o interesse daqueles
que não participam. Mesmo interessados no assunto, eles não se dobram e fingem
que não ligam. É uma resistência que eu ainda não entendi direito o motivo.
Mas também pra nós é um trabalho de resistência e sobretudo de persistência”.
(grifos meus)

Sobre a resistência descrita pela professora Vera, um estudo de Michèle Petit com
jovens imigrantes, moradores da periferia de grandes cidades francesas, propõe uma
reflexão sobre o que a autora classificou de “medo do livro”. Segundo ela a leitura pode ser
a chave para várias transformações, recompondo representações e relações de
pertencimento: “Os seres humanos têm uma relação muito ambivalente com o movimento,
a novidade, a liberdade, o pensamento, que podem ser, por um lado, objeto de fortes
desejos, mas também de medos associados a esses desejos”. E complementa: “A leitura é
uma prática arriscada para o leitor, que pode ser privado de sua segurança, perturbado em
suas relações e, sobretudo para o grupo, que pode ver uns dos seus se distanciar e ir
embora. E também para os poderes”. (PETIT 2008, p. 110)
O projeto do Clube de leitura estava ativo no cotidiano dessa Unidade escolar. Um
processo interativo, modificado e construído com as intervenções dos sujeitos que o
produziram. Esta relação estava vinculada ao saber formal, científico, mas também,
segundo a professora, havia espaço para o prazer, a imaginação e as emoções. Nesse
processo o papel da linguagem foi fundamental, permitindo as trocas sociais, as interações
e a organização cultural dos grupos humanos. Sob o ponto de vista sócio interacionista
descrito no Projeto pedagógico escolar, foi na troca social, na linguagem, que o pensamento
tomou forma e se transformou. Para Vigotsky:

59
A relação entre pensamento e palavra é um processo vivo: o pensamento nasce
através da palavra. Uma palavra desprovida de pensamento é uma coisa morta, e
um pensamento não expresso por palavras permanece uma sombra (...) a
característica fundamental das palavras é uma reflexão generalizada da realidade
(...) uma palavra é o microcosmo da consciência humana. (1989, p. 131)

Após essa etapa de investigação, segue a descrição de alguns encontros que


participei e as impressões mais relevantes que obtive.

3. O CLUBE DE LEITURA – MEDIAÇÕES E REPRESENTAÇÕES

“Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, para depois ter o susto de o ter. Horas
depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo
comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes.
Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade”. (LISPECTOR, 1981)

Para aprofundar a compreensão sobre a relação do projeto do Clube de leitura e o


fomento ao hábito de ler junto aos alunos, acompanhei o desenvolvimento de alguns
encontros do grupo. Como foco da pesquisa, desejava reconhecer as técnicas aplicadas ao
projeto, bem como seus efeitos nas relações entre alunos e professores no que tangia à
leitura como interlocutora. Importava ainda a compreensão dos suportes vinculados a essa
prática, a forma com que os textos seriam apresentados (fragmentados, lineares etc), bem
como estabelecer uma reflexão analítica sobre os resultados pretendidos a partir da
manipulação do texto (se sua finalidade é pragmática, pedagogizada, entre outros); se o
texto está numa relação de utilidade apenas imediata ou se havia espaço para a
possibilidade de diálogo e interação entre os educandos baseados na experiência de si e da
partilha com o outro. O fato de, como pesquisador, julgar o projeto e a capacidade técnica
da professora Vera relevantes até então, não seria uma garantia irrestrita de que a proposta
fosse, no seu desenvolvimento, igualmente significativa.
Em minha trajetória no magistério, infelizmente percebi que muitas unidades
escolares carregavam em si uma ação contraditória no que concernia à formação do leitor: o

60
discurso sempre, ou na maioria dos casos, favorável ao desenvolvimento da competência
leitora dos educandos, numa evidente dualidade com uma prática irrelevante, sem espaço
específico e sistemático nem caráter intencional para tal, o que inviabilizava a
concretização das suas intenções. Para Silva (1988, p. 4), nem sempre há na escola, o
espaço para o “adestramento crítico dos textos propostos”, formando-se apenas ledores e a
leitura
perde a sua validade porque as palavras do escritor ficam como magicamente
fechadas em si mesmas, sem que os elementos do real, indicados ou evocados
pelas palavras, sejam efetivamente colocados em relação direta com a história e a
experiência do leitor. Desse modo os signos impressos são tomados como
autônomos, sem que o leitor elabore e faça mediação com o social, com o
concretamente vivido.

Apesar da existência de alguns eventos reflexivos voltados para a importância da


formação do leitor no espaço escolar, de modo geral, é notório que estamos distantes de
rompermos ou ressignificarmos o tratamento destinado à literatura no mesmo. “O leitor não
é passivo, ele opera um trabalho produtivo, ele re-escreve. Altera o sentido, faz o que bem
entende, distorce, re-emprega, introduz variantes, deixa de lado os usos corretos. Mas ele
também é transformado: encontra algo que não esperava e não sabe nunca aonde isso
poderá levá-lo” (PETIT 2008, p. 28). Mais do que nunca, é preciso considerar o
aluno um participante ativo no levantamento de hipóteses e na escolha de
estratégias para construir sentidos mediados pela leitura.
No pensar de Silva (2010, p. 76) é necessário redimensionar o conceito de
linguagem presentes nos nichos escolares, visto que ela é uma ferramenta propulsora da
interação nas relações sociais dos diversos grupos de uma sociedade:
Interagir pela linguagem constitui falar alguma coisa a alguém, de certa forma,
num determinado momento histórico. Pela linguagem é possível manifestar
ideias, pensamentos, estabelecer relações interpessoais e influenciar os outros,
modificando as representações que fazem da realidade. É na interação social,
condição de desenvolvimento da linguagem, que o indivíduo se apropria do
sistema linguístico.

No curso do projeto do “Clube de leitura” estas considerações, linguagem e


interação, estavam presentes em forma de embasamento teórico e objetivos delineados.
Propunha ainda como questão a preocupação da escola em estimular o aluno a observar que
nenhum texto é totalmente neutro e que se relaciona com outros textos, no tempo e no
espaço, sendo aplicada para tanto uma abordagem textual direcionada para a participação e

61
interpretação crítica dos leitores. Isto posto, descrevo a seguir o desenvolvimento de alguns
encontros do Clube, demarcando os seus respectivos apontamentos.

3.1 - O PRIMEIRO

O primeiro encontro em que participei foi realizado na biblioteca em abril de 2017.


O lugar era arejado, possuía ar-condicionado. No centro as cadeiras estavam dispostas em
círculo, ladeado por vários livros no total de 7.000 (sete mil), segundo a bibliotecária, que
ficavam nas estantes. Os alunos foram chegando aos poucos e acomodando-se junto à roda
de forma ordeira. Eram todos adolescentes na faixa de 11 a 16 anos, em número de 20 em
média. No canto havia uma mesa posta com alguns biscoitos, suco e café. Mesmo com uma
aparente organização, percebi que a Unidade Escolar estava vivendo um momento
conturbado, devido a atrasos nos pagamentos dos profissionais e sucessivas greves e
paralisações decorrentes disso. No entanto, a professora Vera desejou manter a proposta
acontecendo, tendo em vista, dentre outras questões, o próprio andamento da minha
pesquisa, que, segundo ela, poderia oferecer um parecer mais técnico sobre uma prática que
julga ser em grande parte intuitiva.
Após um período de um mês de paralisação devido à greve, a proposta retomou.
Tendo em vista o período de recesso ocasionado pela greve e pela presença de alguns novos
membros, os alunos se reapresentaram orientados pela professora Vera e depois
conversaram sobre a proposta do Clube de leitura. A professora falou a respeito dos
encontros acontecerem no espaço da biblioteca tendo em vista a necessidade de
revitalização do mesmo. Os alunos concordavam que a biblioteca era um espaço
privilegiado na escola, pois tinha muitos títulos e ar-condicionado. Na conversa, os alunos
relataram que identificavam o espaço, até então, apenas como espaço de pesquisa.
Narraram que gostariam de ter mais tempo para ficar ali, pois em casa não tinham muito
acesso aos livros. Muitos ainda acrescentaram, que consideravam a biblioteca como um
espaço de entretenimento, pois não tinham muitas possibilidades de lazer na comunidade.
Propuseram criar um grupo no WhatsApp 14
para interagirem melhor sobre os encontros do

14
WhatsApp é um software para smartphones utilizado para troca de mensagens de texto
instantaneamente, além de vídeos, fotos e áudios através de uma conexão à internet.

62
clube.
A seguir, a professora chamou atenção para o formato do círculo. Disse que era
importante perceber a importância daquela forma, pois assim poderiam se olhar e
estabelecerem um melhor diálogo. Logo adiante, pediu que cada um se apresentasse,
dizendo seu nome. Aproveitou a apresentação para explicar que os nomes têm significados.
Alguns contaram as suas histórias, os motivos de serem chamados daquela forma. Muitos
disseram que era homenagem aos avós, alguma promessa ao nascer ou que foi escolhido
pelos irmãos.
Propôs, adiante, que cada um confeccionasse um crachá com seu nome em forma de
acróstico e que colocasse nele: um defeito e uma qualidade que julgassem que possuíssem.
Todos fizeram e depois falaram na roda a respeito das suas considerações. Alguns alunos
não conseguiram se apresentar ao grupo expondo suas características por vergonha, mas a
maioria falou. A professora pediu que atrás do crachá, eles colocassem agora um nome de
uma personagem literária que eles mais se identificavam. Todos retomaram ação. Ao final
explanaram os nomes e os motivos: Magali, Pelezinho, Helena dos vampiros, Ariel, Branca
de Neve, Pequeno Príncipe, foram citados entre outros. Os alunos agora pareciam mais
soltos. A professora distribuiu um texto para que a roda lesse: “O abridor de latas”15 conto
de Millôr Fernandes. Cada aluno leu parágrafos e ao final discutiram sobre o texto. O
escrito é uma espécie de fábula anedótica que fala da lentidão das tartarugas para
resolverem um problema. O grupo achou o texto engraçado e a professora propôs que para
o próximo encontro, eles elaborassem outro final para aquela história lida. Feito isto, pediu
que os alunos se servissem do pequeno lanche montado e encerrou o encontro.

3.2 - O SEGUNDO
O clube de leitura foi realizado dessa vez na sala de informática, a meu pedido.
Queria perceber um pouco a relação dos alunos no manuseio livre e/ou orientado com a
internet na escola (celulares/computadores). O professor de informática era membro do
Clube e se propôs a dinamizar o encontro.
Os alunos sentaram-se diante dos computadores e o professor disse que eles teriam
um tempo de 15 minutos para verem o que quisessem. Todos eles entraram imediatamente

15
Anexo 1.

63
nas redes sociais. Adiante, a conexão começou a travar um pouco, fazendo com que alguns
desistissem da tarefa. A partir de então, alguns alunos pediram para que o professor
permitisse que eles usassem os celulares que traziam “escondidos” nas mochilas, pois era
proibido o uso dos mesmos na escola, pois a sua conexão era mais rápida.
O professor negou a autorização e pediu que os alunos se agrupassem nas máquinas
que ainda estavam em funcionamento. Nesse momento fez-se o caos, pois estava muito
calor na sala com o ar-condicionado quebrado. Além da balbúrdia estabelecida em torno
das redes abertas, pois, para muitos, era algo de cunho particular. O professor interrompeu a
tarefa e passou uma atividade dirigida. Disse que eles teriam que pesquisar algo na internet
que explicasse a “Diáspora africana”. Orientou que a pesquisa teria que ter um recorte, pois
o tema era amplo e os alunos deveriam ter a habilidade de selecionar as melhores
informações sobre o assunto. Informou que todo assunto tem dimensões amplas que devem
ir se limitando ao objeto que se quer pesquisar. Os alunos colocaram-se a pesquisar.
Quando acharam o tema, o professor solicitou que fizessem um texto em cima das
informações. Eles se desesperaram, pois as informações eram muitas. O professor então
propôs que pegassem os celulares e fotografassem as informações para produzirem
posteriormente. Esse fato merece um relevo, pois o celular é proibido na escola, no entanto
nos “guetos” da sala de informática, foi permitido momentaneamente para sanar uma
insuficiência de recurso.
O professor aproveitou a oportunidade para explanar sobre as redes sociais,
alertando sobre a ética na utilização dessa ferramenta: o pudor quanto às informações
pessoais, as fotos, o modo de escrever, os vírus. Revelou nesse momento que eles não
precisarão fazer a pesquisa e que aquilo foi apenas um laboratório sobre as tecnologias no
espaço escolar. O grupo então começou a discutir a experiência, revelando a obsolescência
das máquinas e da internet na escola, a proibição do celular e a importância daquela
ferramenta no mundo atual. Para muitos, o único acesso era na escola, mesmo com os
interditos frequentes. O professor, ao final, pediu que desligassem os computadores.

3.3 - UM OUTRO ENCONTRO

64
O encontro do grupo nesse momento tratou do tema Ética e política. Embora a
proposta do clube fosse despretensiosa, segundo a professora Vera, algumas vezes o debate
era direcionado a algum tema específico para melhor fluidez. Os noticiários estavam
explorando a Operação Lava-Jato em andamento no Brasil atualmente. Muitos políticos dos
altos escalões estavam sendo investigados em obras superfaturadas e, alguns deles, presos.
O país estava imerso numa grande crise financeira e, sobretudo moral.
A roda começou com a professora perguntando aos alunos o que eles tinham ouvido
falar nas mídias nas últimas semanas que foi mais recorrente. Eles se posicionaram em
torno de vários temas, mas as prisões dos políticos, inclusive do ex-governador do RJ,
Sérgio Cabral, ganhou reconhecimento. Muitos se posicionaram sobre o tema, relatando o
prejuízo do povo que sofria diretamente com a questão. A professora então apresentou o
texto: "O pote vazio"16 e pediu que fizessem a leitura. O texto falava de um imperador que
queria escolher o seu sucessor e, para isto, entregou uma semente para que aquele que
cultivasse a mais bela flor se tornaria rei. Ao final de um mês, todos levaram ao imperador
as mais diversas flores e apenas um entrega o pote vazio. Este tornou-se imperador pela sua
honestidade, pois as sementes não poderiam germinar, visto que estavam todas queimadas.
A discussão em torno do texto, trouxe para roda o debate sobre as situações cotidianas em
que temos que demonstrar ética e responsabilidade. O grupo debateu bastante e a professora
pediu que cada um escolhesse um livro para que fosse levado para casa para aprofundar o
tema.

3.4 - UM ENCONTRO INUSITADO

O trabalho com a roda, dessa vez, aconteceu de forma muito inusitada. Os alunos
estavam esperando para participarem do Clube de leitura e conversavam de forma ansiosa.
Quando a professora chegou para desenvolver o debate, quis saber o motivo da inquietação.
Eles relataram que haveria prova de História e que o professor era muito rigoroso e não
estavam seguros para fazerem a avaliação. A professora orientou-os quanto à necessidade
de estabelecer uma rotina diária de estudo e não deixar para última hora. Eles retrucaram
dizendo que haviam estudado, mas mesmo assim não estavam confiantes no bom êxito. A

16
Anexo 2.

65
professora pediu que encerrassem o assunto e falassem a respeito dos livros lidos no último
encontro.
Durante a discussão, o professor de História apareceu na porta e a professora relatou
o receio dos alunos quanto à avaliação. O professor ficou surpreso com a presença de
alguns alunos tidos como indisciplinados no Clube de leitura e pediu licença à professora
para fazer um trabalho. A professora Vera consentiu e o professor pediu que o restante da
turma entrasse na biblioteca junto com os alunos do Clube. Os alunos se acomodaram.
Percebi que o professor tinha uma grande empatia com os educandos. Explicou que naquele
dia seria aplicação da prova de avaliação da disciplina do 2º bimestre. Disse que antes do
início da prova, os alunos poderiam elaborar as suas “colas”, que seriam usadas durante o
exame. Explicou que daria um tempo de 10 minutos para cada aluno pesquisar no livro e no
caderno e fazer as anotações que desejasse para consultar tal anotação durante a prova. No
entanto alertou que só poderiam consultar aquilo que registrasse no papel, sem poder
recorrer ao caderno ou ao livro.
Imediatamente todos os alunos iniciaram um processo de pesquisa e registro dos
pontos que consideravam importantes. A concentração e o empenho na atividade eram
incisivos e cada aluno apresentava uma avidez impressionante sobre os conteúdos
trabalhados. Ao final do tempo, o professor pediu que cada um ficasse apenas com as suas
anotações sobre a mesa e que guardassem o restante do material; algo que foi prontamente
realizado pelos mesmos.
A avaliação foi distribuída com 20 questões sobre os conteúdos trabalhados que
tinha questões de múltipla escolha, respostas diretas, falso e verdadeiro, análise crítica de
texto e correlação de itens. O professor orientou que das 20 questões os alunos deveriam
escolher apenas 10 para responderem. A turma começou a realizar o exame, optando pelas
questões que julgassem mais adequadas a seus conhecimentos. A avaliação teve o tempo de
duração de aproximadamente 1 hora e meia. Os que terminavam, entregavam a prova e se
retiravam da sala. Observei que durante o exame, os alunos consultavam suas anotações e
que o clima era de harmonia e consenso entre alunos e professor.
A professora da roda e eu ficamos maravilhados com o que tínhamos presenciado.
Os alunos, antes temerosos, tiveram acesso à autonomia que concedeu uma maior
segurança para a tarefa. Após o recreio, o clube se reuniu rapidamente para avaliar o que

66
tinha acontecido e os outros alunos que não eram do grupo, disseram que participariam do
próximo encontro.

3.5 -NO GIRO DA RODA

O encontro do clube girou em torno do cinema. O professor de informática montou


o aparato de Datashow com um telão e exibiu um curta-metragem que tratava das
descobertas mais recorrentes dos adolescentes em relação ao namoro. O vídeo durou mais
ou menos 30 minutos e depois os alunos debateram os temas: namoro, primeiro beijo,
escola. O professor disse que a história do filme é também uma narrativa sob um outro
suporte e revelou que existem várias formas de leitura, ou de se interpretar uma mensagem.
Apresentou uns livros imagéticos e pediu que os alunos falassem daquelas histórias.
Mostrou no telão umas charges. Umas telas de pintores e, ao final, uma música romântica
para traduzirem sua mensagem. O encontro foi bem descontraído. Os alunos aproveitaram o
momento para se confraternizarem, pois já era o último encontro. Assim, o professor
propôs que utilizassem os celulares para trocarem mensagens entre eles. Disse que estava
liberado naquele momento o acesso. Os alunos fizeram a tarefa e um deles propôs fazer a
gravação. Fizeram um pequeno vídeo e o professor exibiu no telão o resultado. A
professora Vera conseguiu uma doação de uma editora de livros infantojuvenis e
presenteou os presentes, encerrando os trabalhos nesse fim de 2º semestre.

3.6 - REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA PEDAGÓGICA - OS RESPECTIVOS


APONTAMENTOS

A análise dos encontros do Clube de Leitura não será uma tarefa das mais fáceis,
tendo em vista o desenvolvimento da proposta num espaço demarcado por múltiplas
influências externas que ocorreram nesse período, tais como o movimento da greve, o qual
comprometeu em certa medida a continuidade do trabalho; o atraso nos pagamentos, a
escassez de material didático na escola, entre outros. No entanto, o enfrentamento das
condições adversas através do empenho da professora Vera, responsável pela proposta,
mereceu especial destaque. Não obstante, independente dos interditos, as práticas

67
observadas nos espaços escolares, de modo geral, têm demonstrado que um projeto de
formação de leitores nas escolas oferece graus similares de dificuldade. Há de se ter
empenho, visto que a realização de uma proposta como essa, ainda se configura como um
projeto complementar ou um tema transversal em muitos currículos. Raro é o fato dos
projetos pedagógicos garantirem como elemento estrutural da sua composição um projeto
de formação de leitores literários dentre os seus objetivos primordiais.
Para Eliana Yunes (2002) essa consideração é algo prejudicial ao processo
pedagógico, visto que a defesa da autora sugere que a leitura permite importantes conexões:
À leitura corresponde tal alargamento de mundo, uma ampliação tão potente da
linguagem, primeiro linguística e logo semiótica (pela transposição do modo de
construção de significados e sentidos de uma esfera para outra), que ler passa à
condição sine qua non para partilhar ideias e reflexões que, de alguma maneira,
movem o universo humano. Isto, simplesmente porque ao organizar o discurso
pessoal a partir da langue coletiva, o falante começa a exercitar a prática que o
faz verdadeiramente humano - a de pensar. (ibid, p.3 - grifos da autora)

Assim sendo, faz-se necessário um arejamento das práticas leitoras no contexto


escolar, onde também se privilegie a inventividade e o imaginário. Mecanismos que podem
tornar dinâmico o processo leitor de cada indivíduo. A literatura dialoga com outras
linguagens artísticas como a música, a fotografia, a escultura, a pintura, o cinema, o teatro,
o cartum, o quadrinho e com a vida de um modo geral. É possível, sem perder de vista as
dimensões constitutivas de cada texto, redimensionar as fronteiras linguísticas que lhes são
impostas, ampliando seus sentidos e desenvolvendo a perspectiva da leitura como fonte de
prazer.
Apesar da relevância da questão, estabelecer diretrizes e aplicá-las no cotidiano
escolar sobre esse prisma não é uma empreitada das mais fáceis. Aqui se demarca o mérito
da professora Vera com a proposta do Clube de leitura. Visivelmente ela trouxe no seu
desenvolvimento uma espécie de filosofia provocativa que buscou a participação dos
jovens alunos de forma protagônica dentro da escola, estimulando os educandos ao debate e
potencializando a escola como um espaço de valor dentro da comunidade. A ação do Clube,
numa análise mais aproximada, deu-se como um reforço ao caráter estratégico da formação
do leitor, ao passo que simultaneamente oportunizou a sinergia entre a ação pedagógica e o
universo juvenil.

68
No percurso analítico, compreendo que o método aplicado da roda de leitura como
questão metodológica, erigiu-se como um diferencial positivo no processo. No entender de
Cagliari (2009, p. 38):
A questão metodológica não é a essência da educação, apenas uma ferramenta.
Por isso, é preciso ter ideias claras a respeito do que significa assumir um ou
outro comportamento metodológico no processo escolar. É fundamental saber
tirar todas as vantagens dos métodos, bem como conhecer as limitações de cada
um.

Os profissionais envolvidos no projeto foram exitosos nessa escolha, mesmo


desenvolvendo-o de forma intuitiva, conforme parecer da própria professora Vera. Foi a
metáfora da reinvenção da roda em pleno século XXI. A mesma roda que, entremeadas de
livros, transformam e transportam a muitos possibilitando a construção do indivíduo. A
escritora Lygia Bojunga, ao recordar sua trajetória de leitora e escritora, deu o seguinte
depoimento:
(...) Eu brincava de construtora, livro era tijolo; em pé, em parede; deitado, fazia
degrau de escada; inclinado, fazia telhado. (...) Cismei um dia de alargar a troca:
comecei a fabricar tijolo para – em algum lugar – uma criança juntar com outros,
e levantar a casa onde ela vai morar. (2008, p. 18)

Remetida à coletividade, como observado no Clube de leitura, essa construção


tornou-se mais significativa, sobretudo numa comunidade com parcos aparatos estruturais
do poder público. Com um apelo político embutido em si, talvez também de forma
intuitiva, compreendi que esse trabalho serviu como suporte de distinção social entre os
alunos. De alguma maneira, eles eram alçados a uma outra dimensão, desancorados por ora
da realidade em que habitavam para viverem a experiência que os reportavam a outras
análises e perspectivas para, adiante, reinserir-se aos seus contextos habituais. No entanto,
inegável que ao reconhecerem e experimentarem essa forma de comunicação presente na
roda de leitura, instantaneamente foi iniciado uma nova comunidade interpretativa com
conexões e apropriações distintas das anteriormente conclamadas que buscará a afirmação
e/ou negação às tais práticas. O campo simbólico instaurado nessa concepção se coadunou
com a ponderação feita por Michel de Certeau sobre os grupos sociais franceses do início
da década de 70, quando asseverou que:
O desígnio que um grupo elabora traduz-se imediatamente por uma constelação
de referências. Elas podem existir apenas para ele, não ser reconhecidas
exteriormente. Nem por isso são menos reais e indispensáveis para que haja uma
comunicação. (...) Uma linguagem uma vez falada (...), implica pontos de

69
referências, fonte, uma história, uma iconografia, em suma uma articulação de
“autoridades”. (CERTEAU 2003, p.34 - grifo do autor)

As referências elaboradas através do texto são inúmeras. Elas serão abrigadas nas
inter-relações estabelecidas enquanto sujeitos sociais e atuarão nos seus respectivos espaços
sociais, apresentado aqui no conceito defendido por Bourdieu:

Pode-se (...) representar o mundo social em forma de um espaço (...) construído


na base de princípios de diferenciação ou de distribuição constituídos pelo
conjunto das propriedades que atuam no universo social considerado, quer dizer,
apropriadas a conferir, ao detentor delas, força ou poder neste universo. Os
agentes e grupos de agentes são assim definidos pelas suas posições relativas
neste espaço. (...) Na medida em que as propriedades tidas em consideração para
se construir este espaço são propriedades atuantes, ele pode ser descrito também
como um campo de forças, quer dizer, como um conjunto de relações de força
objetivas impostas a todos os que entrem nesse campo e irredutíveis às intenções
dos agentes individuais ou mesmo às interações diretas entre os agentes. (2000,
133-134)

O texto é uma forma valiosa de rememorização muito intensa, por vezes afetiva e
amplia significativamente o nosso saber e a nossa relação com o mundo. É um processo
dinâmico onde, ao passo que oportuniza uma inserção no grupo social, nos separa de
alguma forma e nos concede autonomia reflexiva. É uma recriação, uma recomposição que
vai além das expectativas estabelecidas socialmente. Na análise do trabalho das rodas de
leitura proposta pela professora Vera, na E.M. Zona Rural com alunos com características
de vulnerabilidade social, foi possível trazer à reflexão a pesquisa desenvolvida pela
antropóloga francesa Michèle Petit sobre as práticas de leitura entre populações
marginalizadas, majoritariamente jovens imigrantes, moradores da periferia das cidades
francesas17.
Segundo seus achados os jovens das periferias das grandes cidades francesas, ao
entrarem em contato com o signo textual estabelecem relações na produção de sentidos
determinantes para o seu posicionamento social. A leitura, uma espécie de refúgio
momentâneo, se apresentou como uma ferramenta para pôr o pensamento em movimento,
para suscitar querências, escolher caminhos, construir identidades. Plena de sentido, a
leitura fluiu livre, autônoma, na busca da sua completude através do olhar do leitor. O
espaço da biblioteca se fundamentou como uma lógica de resistência às diversidades sociais

17
In “Os jovens e a leitura – uma nova perspectiva”, 2008 – Editora 34.

70
e, nos seus ritos silenciosos, se constituiu como espaço de liberdade e emancipação, dotado
de educação, poética e cultura.
Na análise ainda do espaço da biblioteca tanto da pesquisa de Petit, quanto o da E.
M. Zona Rural, onde se realizou o Clube de leitura foi possível dar relevo à diferenciação
entre lugar e espaço, proposta por Certeau (2001). Para ele, lugar é “(...) uma configuração
instantânea de posições. Implica uma relação de estabilidade” (p. 201). Seria possível
entender o lugar como uma rua, uma praça – quando planejada e construída –, como a
malha viária de uma cidade, ausente de significado. Ou seja, seria a configuração espacial
das coisas o que impossibilita, por exemplo, duas coisas ocuparem o mesmo lugar. Sob a
perspectiva de Certeau, podemos entender o espaço como a prática do lugar, ou seja, como
os sujeitos o transformam a partir das suas ocupações, apropriações e vivências, desse
modo “o espaço é um lugar praticado” (ibid, p.202).
Os sujeitos, em seus itinerários cotidianos, simbolizam o lugar a partir das
interferências, tanto corporais quanto cognitivas, nessas configurações físicas. Assim, para
o autor, “(...) a rua geometricamente definida pelo urbanismo é transformada em espaço
pelos pedestres” (ibid, p. 202). Ele ainda acrescenta que são os passos que moldam os
lugares e os transformam em espaços, que inserem e inscrevem nestes, camadas simbólicas
que se sobrepõem e criam uma extensa rede de significados que, compartilhados
simbolicamente através da comunicação, modificam os usos que os sujeitos fazem dos
mesmos (ibid, p. 176). Formam, de tal modo, “(...) uma história múltipla, sem autor nem
espectador, formado em fragmentos de trajetórias e em alterações de espaços” (ibid, p.
171). Em outras palavras, o espaço realiza-se enquanto vivenciado, ou seja, um
determinado lugar só se torna espaço na medida em que indivíduos exercem dinâmicas de
movimento nele através do uso, e assim o potencializam e o atualizam. Quando ocupado, o
lugar é imediatamente ativado e transformado, passando à condição de lugar praticado.
Ao revisitarmos a perspectiva da interação simbólica de que os sujeitos da pesquisa,
em ambos os casos, alunos e professores/bibliotecários, elaboraram com o projeto através
da comunicação, podemos aplicar esse conceito ao redimensionamento sofrido pelo lugar
biblioteca (antes, ausente de significado), agora, reconfigurado como espaço permeado
pelos rastros deixados por inserções textuais e imagéticas, por discursos particulares e
únicos, intensamente subjetivos, e por partilhas de experiências pessoais sob a ótica do

71
universo das letras. Nos relatos dos envolvidos nas pesquisas referidas, é comum identificar
o que a leitura representou para cada um, tornando-se o principal aspecto constituinte do
pensamento crítico. De forma geral, leitura fulgurou como prática geradora de
sociabilidades.
Para tanto, Petit destaca ainda na sua experiência um ponto fulcral ao processo
estudado: o mediador.

O gosto pela leitura não pode surgir da simples proximidade material com os
livros. Um conhecimento, um patrimônio cultural, uma biblioteca, podem se
tornar letra morta se ninguém lhes der vida. Se a pessoa se sente pouco à vontade
em aventurar-se na cultura letrada devido à sua origem social, ao seu
distanciamento dos lugares do saber, a dimensão do encontro com um mediador,
das trocas, das palavras “verdadeiras”, é essencial. (2008, p. 154 - grifo da
autora)

Com base nesses apontamentos e traçando um paralelo analítico, no Clube de leitura


foi possível reconhecer a influência dos professores junto aos alunos durante a proposta.
Inicialmente, a postura propositiva dos docentes fora determinante para consolidar o
interesse dos educandos à dinâmica e à apropriação do espaço como um local de livre
debate e troca. De modo geral, ao estarem em círculo, os papéis sociais, anteriormente,
rigorosos e enrijecidos (aluno x professor) são atenuados numa construção de similaridades
que permitiram que as descobertas pudessem fluir de forma mais próximas. Assim, o que se
viu foi a leitura fluída (textos, livros, imagens, som, textura) não somente enfocada como
ferramenta pedagógica, mas sobretudo como uma ponte à liberdade de análise e expressão
espontânea que refez, aos poucos, uma rede simbólica enfraquecida pelas circunstâncias
reais daquele entorno.
A professora Vera tinha como incômodo “a questão intuitiva” do projeto, pois
julgava que sua ação deveria estar abalizada num aporte teórico e não somente na sua
intenção particular. Embora com algum embasamento teórico, tinha consciência da
insuficiência dos seus recursos para tal. Na minha observação, por muitos momentos, me
distraía da minha postura de pesquisador e me via envolvido na simplicidade do gesto
presenciado. Não posso reforçar a falácia de que a prática se estabelece nos espaços
escolares em detrimento à teoria, no entanto julgo que a pedagogia requer um traço de
humanização que talvez somente a prática conceda. Nesse embate, oportuno seria
identificar um docente que desempenhasse a observância e análise dos fenômenos

72
educacionais a partir de uma apreciação científica sistematizada, demarcada por uma
experiência do processo. Nesse percurso, como não apresentar à professora Vera e seus
pares a imagem do professor reflexivo (Schön, 1999)?
Apoiado nesses estudos Alarcão revela a importante desse profissional junto a
estruturação do conhecimento pedagógico. Para ela, essa busca:
(...) Reflete na e sobre a interação entre a pessoa do professor e a pessoa do aluno,
entre a instituição escola e a sociedade em geral. Desta forma, têm um papel ativo
na educação e não um papel meramente técnico que se reduza à execução de
normas e receitas ou à aplicação de teorias exteriores à sua própria comunidade
profissional. (2005, p. 176)

E complementa, considerando que


uma prática reflexiva leva à (re)construção de saberes, atenua a separação entre
teoria e prática e assenta na construção de uma circularidade em que a teoria
ilumina a prática e a prática questiona a teoria. (ibid, p. 99).

Unindo os pareceres, me arrisco a enfatizar a relevância desse profissional tão


importante na mediação e fomento ao hábito da leitura. O cerne do trabalho seria o
resultado de uma reflexão concisa da realidade educacional oportunizados pela prática e o
diálogo com os saberes da comunidade científica. Penso no ganho às questões educativas
ocasionado pelo o constructo de uma ação pedagógica embasada na teoria, sob a influência
deste acumulado da experiência do professor que alguns pesquisadores classificam como
“conhecimento tácito” (GUBA E LINCOLN 1989, p. 176); aquilo que o docente sabe, mas
não consegue isoladamente expressar sob forma proposicional.
Retomando a análise, no que tange ao trabalho de formação do leitor, a prática
avaliada vai ao encontro da consideração de Larrosa:
O que o professor deve transmitir é uma relação com o texto: uma forma de
atenção, uma atitude de escuta, uma inquietude, uma abertura. E isso não é se
limitar a uma posição passiva, não é meramente administrar o ato da leitura
durante a aula. Não é só deixar que os alunos leiam, senão fazer que a leitura,
como experiência, seja possível. A função do professor é manter viva a biblioteca
como espaço de formação. E isso não significa produzir eruditos, ou prosélitos,
ou em geral pessoas que sabem, mas é manter aberto um espaço em que cada um
possa encontrar sua própria inquietude. (2002, 151)

Reforçar, dessa forma, a imagem do professor como mediador do processo faz-se


necessário. O projeto do Clube de leitura oportunizou a elaboração da aprendizagem por
caminhos alternativos ou que, de alguma maneira, estavam submersos em demandas

73
protocolares no cotidiano escolar. No seu desenvolvimento, foi de encontro a uma prática
mecanizada com a manipulação do texto conclamada nas práticas escolares prevalecentes,
ampliando, por meio da roda, sua abrangência e os efeitos das suas mensagens. No entanto,
propor uma nova ordem e romper e/ou ressignificar a metodologia aplicada a essa
demanda, dependerá sim de um estímulo atraente, que se apresente como uma possibilidade
de travessia mais segura. O professor, ao colocar-se, lado a lado com o aluno,
demonstrando o prazer que a leitura lhe proporciona, com bastante naturalidade, pode fazer
com que ocorra uma espécie de contágio e garantir a validação e aceitação da proposta.
Pois:

Uma das formas de formar leitores é por meio do contágio, do incentivo, da


sugestão, do prazer que a leitura proporciona. O professor, nesse sentido, deve ser
aquele que orienta, que conversa sobre o livro lido ou indica algum, de maneira
descontraída, lado a lado com os alunos, sem imposição de
autoridade. A influência do professor pode transformar a caminhada de não-
leitor, num processo contínuo e de grande prazer para ambos. (SILVA 2010, p.
37)

Apesar de acentuada relevância, é possível perceber ainda que a atuação docente


pode atuar de forma nociva nessa perspectiva, tendo em vista que somos resultados de um
meio escolar que, por vezes, se classifica como um espaço alienante e massificador. Como
pesquisador, procurei compreender as arranhaduras presentes (se é que existiram). Senso
comum a consideração de que o processo pedagógico é dotado de nuances que avançam,
recuam, arriscam, corrigem, como todo organismo. No entanto, no Clube de leitura,
equívocos eram pequenos ou quase imperceptíveis. Por momentos, julguei que talvez fosse
o meu olhar condescendente sobre a proposta que me era muito aprazível. Porém, adiante
aprofundei a questão.
No campo educacional, comumente as propostas pedagógicas são elaboradas de
maneira exógena e assimiladas como uma prática impositiva que, na maioria das vezes, não
se coadunam com o contexto escolar. Fórmulas burocratizadas advém de gabinetes de
forma efêmera como condição de solução para situações adversas presentes no fazer
pedagógico, apontadas por avaliações externas de questionável grau de elaboração. O
resultado dessa equação é uma prática cada vez mais rechaçada a exigências que
correspondam às demandas institucionais sem maiores aprofundamentos. O professor
delibera de forma frágil algumas pequenas ações a título de prestação de contas sobre as

74
posturas imediatistas apresentadas que não alteram, de forma significativa, a estrutura
curricular prevalecente.
No Clube de leitura, talvez seja esse o ponto de ganho que reduziu a presença de
equívocos: o projeto nasceu do chão da escola, da necessidade identificada dentro daquela
realidade e assumida mais concretamente pelos docentes envolvidos. Reforço que isso não
é uma garantia do êxito, mas, sem dúvida, atua favoravelmente junto à proposta.
O formato de roda de leitura e a dinâmica apresentada minimizou a ideia da
didatização da literatura defendidas por alguns teóricos como nociva, porém não a diluiu
por inteiro. Essa questão é um risco sempre presente frente às exigências acadêmicas
atuantes na sociedade no que concerne à vida escolar dos educandos e os conhecimentos
que devem ser aplicados nos processos seletivos dos vestibulares. Formar leitores, pode,
sob esse contexto, configurar-se como algo subjacente.
No Clube de leitura, de forma intuitiva (agora sim) presumo, o texto se apresentou,
na maioria das vezes, de forma livre, despretensiosa, porém o “didatismo” em algumas
análises não se isentou plenamente. Magda Soares, propõe um entendimento da questão ao
afirmar:
O que se pode criticar, o que se pode negar não é a escolarização da literatura,
mas a inadequada, a errônea, imprópria escolarização da literatura, que se traduz
em sua deturpação, falsificação, distorção, como resultado de uma pedagogização
ou uma didatização mal compreendidas que, ao transformar o literário em escolar,
desfigura-o, desvirtua-o, falseia-o. (2009 apud EVANGELISTA 2003, p.22).

Assim, valendo-me dessa premissa, no traçado histórico da formação docente e da


prática conclamada nos espaços escolares, é possível afirmar que a escolarização da
literatura é inevitável. Isto posto, o desafio que adiante se apresenta é o de como podemos
fazê-la de forma mais adequada, que garanta o texto como uma estrutura comunicativa,
estética, artística e como suporte de desenvolvimento cognitivo e funcional. Até porque na
outra ponta vale a ressalva que nos nichos escolares, uma outra consideração levou a um
prejuízo na educação de crianças e jovens, visto que para privilegiar o prazer, muitas
escolas deixaram de lado práticas e atividades que, embora, pouco prazerosas, são
necessárias para o desenvolvimento das competências de leitura (COLOMER, 2007).
Assumidas essas preposições permeadas pelo bom senso, não se deve ainda desconsiderar
que ao tratarmos da formação do leitor é necessário assumir que esse processo embora

75
individual, acontece numa rede relacional e se classifica como uma espécie de tradução da
linguagem verbal, na transposição das nossas relações mais intrínsecas com o mundo.

A imprensa deu-nos a ilusão de que todos os leitores do Dom Quixote estão lendo
o mesmo livro. Para mim, ainda hoje, é como se a invenção da imprensa jamais
tivesse acontecido, e cada exemplar de um livro continua a ser tão singular
quanto a fênix. E, contudo, a verdade é que livros determinados emprestam certas
características a leitores determinados. (...) Um livro traz sua própria história ao
leitor. (MANGUEL 1997, p. 29)

Aprofundando os achados sobre a observação realizada, a análise do suporte


tecnológico presente na proposta merece ainda uma especial atenção. Para Chartier,
atualmente há "novas modalidades desconstrução, publicação e recepção dos discursos.
Por isso a textualidade eletrônica de fato transforma a maneira de organizar as
argumentações, históricas ou não, e os critérios que podem mobilizar um leitor a aceitá-las
ou rejeitá-las. (...) Permite uma articulação aberta, fragmentada, relacional do raciocínio,
tornada possível pela multiplicação das ligações hipertextuais (2009, p. 59). Assim, os
suportes presentes no projeto, bem como as implicações mais relevantes da proposta sob o
ponto de vista dos alunos serão descritas adiante.

4 - VOZES DOS SUJEITOS – A NEGOCIAÇÃO DO SENTIDO

Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu


A gente estancou de repente ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa no nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva e carrega o destino pra lá.
(Roda-viva Chico Buarque de Holanda)

O desenvolvimento desse estudo propiciou um alargamento das minhas percepções


em torno do trabalho com a formação do leitor no ambiente escolar, algo que sempre
figurou como meu objeto de estudo e interesse acadêmico e profissional nos últimos anos.

76
A partir das vivências firmadas e as análises estabelecidas nesse processo da pesquisa, pude
estabelecer uma teia relacional que abarcou o arcabouço das minhas experiências até então
angariadas e as premissas propositivas presentes no universo por ora investigado.

Nesse entendimento, percebi que a pesquisa se construiu sob uma espécie de


correspondência entre o que eu julgava saber e o que eu desejava descobrir. Um processo
que potencializou a relevância desse estudo, visto que ele foi pautado sob “uma certa
familiaridade sobre o estado do conhecimento do tema” e desdobrado na perspectiva de
“indicar qual a lacuna ou inconsistência no conhecimento anterior que o gerou” (ALVES,
1991, p.57). Nessa etapa, essa consideração se fez presente de forma incisiva, pois foi o
momento em que me aproximei do pensamento dos educandos, sujeitos que originaram a
proposta, para tentar mensurar e compreender as representações sobre a leitura formuladas
e/ou reformuladas por eles a partir do trabalho desenvolvido pelo projeto do Clube de
leitura.

Revisitando o conceito, para Roger Chartier, representações dizem respeito ao


modo como, em diferentes lugares e tempos, a realidade social é construída por meio de
classificações, divisões e delimitações. Para ele os esquemas intelectuais criam figuras as
quais dotam o presente de sentido. Assim, pode-se pensar numa “história cultural do social
que tome por objeto as representações do mundo social” (1998, p. 27). Chartier acredita
que esses códigos, padrões e sentidos são compartilhados, e apesar de poderem ser
naturalizados, seus sentidos podem mudar, pois são determinados pelas relações de poder e
pelos conflitos de interesses dos grupos sociais. Compreende, para tanto, que as
representações são expressas por discursos. E as leituras dos discursos feitas pelos sujeitos
e a consequente produção de sentido são determinadas por certas condições e processos
históricos.

Assim, buscando a compreensão dessas assertivas, é possível considerar que há uma


pluralidade dos modos de emprego dos discursos e uma diversidade de leituras que devem
ser evidenciadas, revelando que as categorias aparentemente invariáveis são
dinâmicas. Algo que conferiu à pesquisa a necessidade de esmiuçar as estruturas simbólicas
existentes, por vezes contrastáveis, sendo papel dela a tentativa de compreender e explicar
seu funcionamento. Uma organização composta por uma plasticidade dotada de avanços e
recuos a etapas anteriores, condicionamentos de redefinições e novos olhares aos dados

77
produzidos, que pôde demarcar uma perspectiva dinâmica e construtivista ao estudo
(KAUFMANN, 2013) em detrimento de uma concepção meramente linear ou
metodológica.

Na consideração dessas análises, compreendi que o mote central da pesquisa residiu


nesse momento de diálogo com os educandos. E como pesquisador pretendi absorver as
informações selecionando as abordagens inerentes ao seu tema em forma representativa,
dialogando com alguns alunos que, de alguma forma, se destacaram no desenvolvimento dos
debates nas rodas de leitura; aprimorando a habilidade de filtragem dos achados,
intercambiando as questões encontradas e interpretando de forma mais inteligível e imparcial,
as “estruturas simbólicas” presentes.

Até então a descrição proposta nesse estudo estava pautada na busca da compreensão
do método, das suas nuances e da importância do papel do professor como mediador nesse
processo. Por conseguinte, a escola foi analisada nas relações interpessoais cotidianas e na
sua estrutura física retratada na elaboração descritiva sobre a realidade estudada,
compreendida como um texto envolto em um emaranhado de significados passíveis de
interpretação.

De acordo com o seu Projeto Político Pedagógico, o seu corpo discente é oriundo
da localidade caracterizada como uma zona rural e de classes populares. O perfil dos
educandos é descrito como aqueles que são afetados diretamente com a violência de onde
residem, comandada por pequenos grupos criminosos que tomam os territórios para a
prática ilícita de comercialização de drogas e aditamento de controle dos comércios. Muitos
abandonam os estudos por conta de gravidezes precoces ou morte encomendada pelo
comando dominante.

De acordo com os formulários respondidos (anexo 3) em número de 20, temos a


classificação de 65% de homens e 35% de mulheres. A faixa etária varia entre 11 e 16
anos. O perfil econômico das famílias traz em si um alto índice de desemprego, cerca de
72%, sendo a forma de sustento garantida por meio de trabalhos informais, sem carteira
assinada. As profissões que aparecerem para exemplificar o ofício do mantenedor
financeiro da família foram: manicure, depiladora, vendedora de loja, motorista de ônibus,
motorista de moto táxi, diarista, atendente de loja, despachante, sacoleiro e padeiro. Em sua

78
maioria, 60%, os alunos não moram com os pais e são criados por parentes por motivo de
morte, não reconhecimento de paternidade ou separação dos cônjuges.
A maioria dos alunos, 80%, apenas estudam e os outros fazem “bicos” para
complementar a renda familiar. As moradias de todos são de alvenaria, sendo 45% de telha
de amianto e 55% de laje. Apenas 30% possuem água encanada e o restante, poço
artesiano. Moram de aluguel cerca de 40% dos alunos, 35% em casas de parentes ou
cedidas por eles e 25% em casas próprias. O acesso aos livros de literatura ocorre por meio
da escola. Em casa apenas jornais e revistas de vez em quando. Todos possuem acesso ao
celular, sendo que 85% tem conexão com a internet. O computador é acessado por meio de
lan houses locais ou da escola, sendo apenas 15% declarar possuí-lo em casa. A religião
predominante é o protestantismo, 62%, seguido pelos católicos, 25%, espírita 10 % e sem
religião 3%.

Em posse desses dados, valho-me, por ora, como estrutura analítica, dos dizeres dos
alunos. Agregado à participação dos encontros do Clube de leitura foi possível estabelecer
o exercício do olhar que buscou emergir na realidade apresentada para apurar
diligentemente as tramas que a compunha, coadunado à proposição de Dauster quando
assevera:
Reitero a produção de um conhecimento dos fenômenos educacionais a partir de
observação participante e do “olhar” relativizador. Sem querer transformar o
educador em antropólogo, trata-se de convidar o educador a mergulhar em outro
sistema de referências baseando-se na prática antropológica, buscando o ponto de
vista do “outro” nos seus próprios termos.com tudo que esta expressão quer dizer.
Trata-se de estabelecer outra forma de problematização a partir da qual, por
exemplo, o aluno não será percebido pela “ótica da privação cultural”, mas será
encarado a partir de seu mundo e valores. Ademais, na pesquisa, busca-se outra
construção do objeto e interpretações dos fenômenos ditos educacionais, dentro
ou não das instituições educacionais a partir de outro código, apropriando-se de
outras “linguagens”, conceitos e modos de “olhar, ouvir e escrever”. (2012, p.10
– grifos da autora)

Por assim dizer, o estudo foi um resultado do diálogo com o campo em questão,
oportunizando uma correlação entre as pressuposições formuladas e as vozes presentes
entre seus atores, que se organizarão adiante, em torno do discurso dos educandos extraídos
por meio de entrevistas semiestruturadas (anexo 4). O objetivo foi o de investigar como o
projeto Clube de leitura influenciou a relação dos mesmos com o universo leitor, bem como

79
agregou conhecimentos constitutivos na sua relação identitária pessoal e com o mundo que
os cerca.

4.1– O ALUNO ESTÊVÃO

A gente vai contra a corrente até não poder resistir


Na volta do barco é que sente o quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva a mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda-viva e carrega a roseira pra lá.
(Roda-viva Chico Buarque de Holanda)

Estêvão foi o primeiro aluno entrevistado. No desenvolvimento dos encontros do


Clube de leitura ele sempre se posicionava diante das questões apresentadas através dos
textos lidos pelo leitor-guia de forma coerente e clara. Seu interesse pela proposta era
notório, tendo em vista que sempre era o primeiro a chegar e ficava na biblioteca
organizando as cadeiras em forma de círculo e/ou recolocando os livros nas estantes. O
Estevão é um aluno que se destacou no grupo de leitores, pois se posicionava com
facilidade diante das discussões apresentadas. Apesar da pouca idade, demonstrava uma
maturidade no modo de expor seus pontos de vista e articulava seus argumentos com
desenvoltura.
Ele tinha 11 anos. Sua família residia na localidade próxima à escola e ele morava
com seus pais biológicos e mais dois irmãos menores. Expliquei ao aluno que estava
acompanhando o projeto do Clube de leitura da professora Vera e desejava compreender de
que maneira os alunos se relacionavam com a leitura, bem como de que forma avaliavam o
desenvolvimento do projeto. Estêvão me respondeu que sempre gostou de ler, sobretudo as
Historinhas em quadrinhos da Turma da Mônica (personagens do cartunista brasileiro
Maurício de Sousa). Revelou que sempre teve o hábito de pegar livros emprestados na
biblioteca, pois seus pais não tinham condições de comprá-los. O último que lera, embora
não se recordasse o nome, tratava da história de um menino que tinha inventado um
programa novo para a internet.
Ao ser indagado se a biblioteca na escola era algo importante, ele respondeu que
sim, pois era nesse espaço que eles podiam fazer pesquisas, encontrar os amigos das outras
turmas e também “descansar”. Diante dessa consideração, traçando um paralelo analítico,
recorro à obra literária “A arte de ler ou como resistir à adversidade”, onde a autora Petit

80
traz um relato similar ao do aluno sobre o espaço da biblioteca no qual, segundo ela, seria
uma ruptura proporcionada pela ficção, um gesto de liberdade. “Trata-se não apenas de
uma evasão do mundo, mas de inventar um ponto de apoio para lidar com o mundo aqui e
agora, de introduzir um canto na realidade” (2009, p. 76). De fato, o termo “descansar”
proferido por ele sugere não uma espécie de fuga no sentido pejorativo da palavra, mas
sobretudo a abertura para um lugar onde o devaneio, o pensamento e a imaginação podem
ser acessados.
Provocado ainda pelo relato de Estêvão, podemos trazer para o debate a temática do
ócio e de qual espaço ele tem ocupado no ambiente escolar. Sabemos que vivemos numa
cultura ocidental moderna, que apregoa seus valores na ascensão econômica do capitalismo
como sistema econômico, que prioriza muito mais o tempo de trabalho (produção) que o
tempo do ócio, que, em certa medida, é tido como um “desvalor” nocivo ao mundo da
geração de renda. Nessa concepção, ter tempo livre significa estar longe do trabalho. O
lazer, na concepção capitalista, é o tempo de restauração, em que o descanso e o prazer em
fazer coisas mais leves possibilitam ao trabalhador voltar a trabalhar com vigor. Não é este
o tempo do ócio. Ao menos não esse que nos interessa. O tempo do ócio não é um intervalo
do trabalho, mas um tempo vivencial e escolhido como importante para viver e realizar-se.
É preciso, todavia, por um instante afrouxar as rédeas à exuberância e à liberdade
e fazer uma interrupção momentânea à sobriedade austera demais. (...) É
impossível alcançar o sublime e o inacessível enquanto a alma pertencer a si
mesma: é preciso que ela se desvie de seu caminho habitual, se liberte: e que,
mordendo o freio arrebate seu cavalheiro e o faça subir a alturas onde jamais ele
se arriscaria por si mesmo. (SÊNECA apud VASCONCELLOS 2009, p.84)

A discussão do tema torna-se ainda mais relevante se afirmarmos que a vivência do


tempo do ócio é um componente indispensável à formação escolar - sobretudo à formação
do leitor, pois permite que o educando, para além da função de utilidade, da obrigação de
ser útil e produtivo, se satisfaça com a disposição do tempo para si e desloque-se a novas
representações. O ambiente da biblioteca e do Clube, no relato do Estêvão, oportunizou
esse desvio onde o fez encontrar esse espaço, longe da idolatria do trabalho e/ou da
competividade.
Nesse sentido, Vasconcellos assevera:
Não é possível fazer educação sem uma certa dose de ociosidade amorosa. É
preciso um tempo de vazia contemplação. Uma espera sem desejo. Uma
expectativa pelo improvável, pelo inonimado. (...) Um tempo de vazio. Um

81
espaço de pausa. A aprendizagem de si e do mundo se faz em horinhas de
descuido, de enamoramento. (2009, p. 91)

Na continuidade da entrevista, ele me disse que, embora gostasse de ler,


compreendia que poderia ler mais. Perguntei sobre qual era a dificuldade de fazê-lo e ele
discorreu sobre os inúmeros deveres que tem que dar conta relacionados às disciplinas do
6º ano do Ensino Fundamental, o que o deixava bastante cansado. Indaguei a respeito da
utilização da internet e se ele tinha o hábito de fazer leituras de histórias nesse suporte.
Estêvão retrucou afirmando que a conexão com a internet era muito precária na região e
que preferia ler os livros da “forma que eles são”. Na internet, ele tinha o hábito apenas de
jogar e conversar com as pessoas.
Ao dizer que prefere ler os livros da “forma que eles são”, o aluno externou o
princípio do seu entendimento do ato de ler através do suporte impresso. Essa consideração
é remetida aos dizeres de Chartier (1999) onde considera que o livro produz sentido através
de sua materialidade. A partir da Idade Moderna, o livro na sua dimensão material,
fundamentou-se como um dos suportes mais usuais para diferentes tipos de textos,
particularmente para as obras literárias. Uma dessas invenções que provocaram uma
verdadeira revolução no terreno da escrita e da leitura foi a imprensa, isto é, a máquina de
impressão tipográfica inventada pelo alemão Johann Gutenberg no século XV. A ampliação
da produção e da circulação dos livros contribuiu para a análoga ampliação das diversas
formas de produção de sentidos em torno dos conteúdos guardados nesse objeto. A
apresentação do escrito, desde os hieróglifos até o texto visível na tela do computador, para
falar das diversas formas como o escrito foi sendo difundido, provocando as sucessivas
“revoluções da leitura”, em diferenciados períodos da história. Assim, no pensar do
historiador francês as maneiras pelas quais se apresentam os escritos e seus suportes
contribuem para a compreensão de seus significados subjacentes: “Com efeito, cada forma,
cada suporte, cada estrutura da transmissão e da recepção do escrito afeta profundamente
seus possíveis usos e interpretações” (ibid, p. 44-45). Em outras palavras, cada objeto
produzido para conter um texto influencia também o modo como é utilizado, sobretudo no
que concerne à construção do sentido do texto que este objeto contém. A materialidade do
suporte, nessa concepção, torna-se, portanto, inalienável das representações e de seus usos.

82
Para Estêvão, o livro impresso revela esse entendimento e, a partir dele, a sua
representação.
Externei ao aluno minha observação em relação ao seu comportamento interessado
e coerente diante das questões do grupo e aproveitei para perguntar-lhe se ele possua algum
sonho e como a escola poderia contribuir para alcançá-lo. Ele me respondeu que gostaria de
ser cozinheiro. Disse que gostava de cozinhar e inventar pratos, sendo macarrão o seu
preferido. Para tanto, gostaria de cozinhar em diversos lugares pelo mundo e que só
conseguiria por meio de uma boa educação.

Para terminar, perguntei ao Estêvão sobre o Clube de leitura e qual a sua impressão
sobre o projeto. Ele, então, me respondeu:
“Eu acho muito interessante. Aqui os colegas que geralmente ficam fazendo
bagunça, falando besteira, falam coisas legais. Assim, dá mais coragem da
gente falar alguma coisa. Tem também a união do grupo. Além de ser uma
oportunidade da gente conversar. Ler o texto. Eu gosto muito de conversar com
as pessoas e na escola não tem muito tempo pra isso, pois são muitos deveres. No
clube, a gente aproveita! ” (grifos meus)

O relato do aluno ao abordar a questão da comunicação com seus pares revelou uma
perspectiva relacional nas abordagens discursivas vivenciadas, sugerindo uma posição mais
confortável, para ele, de fazer seus apontamentos perante o grupo. Isso ocorreu, em dada
medida, por não haver uma preponderância de um único discurso ou de uma única verdade,
visto que uma das características essenciais das rodas de leitura é a negociação do sentido.
As preleções presentes nessa ação devem assegurar que se estabeleça um vínculo
comunicativo onde o espaço narrativo contemple a pluralidade de olhares presentes.
Os estudos de Garcia (2007) acerca das rodas de leitura ao abordar a leitura como
experiência concordam com a necessidade irrestrita de escutar, dialogar e negociar sentido:
Escuta porque tenho que ouvir o que o outro (ou os outros) têm a dizer; diálogo
porque, reagindo a esta fala, coloco minha opinião sobre o que está sendo
debatido: negociação de sentido porque nem sempre há consenso acerca dos
temas que estão sendo tratados, podendo-se chegar a um denominador comum –
em alguns casos por mútuas concessões. (p.02)

No pensar de Petit (2009, p.104) através dos textos lidos, a leitura coloca o
pensamento em movimento externado por meio das palavras, retomando uma atividade de
simbolização, de associações e construção de sentidos compartilhados e desenvolvendo
ainda um uso mais fluido da palavra, das expressões linguísticas.
Para ela:

83
Do nascimento à velhice, estamos sempre em busca de ecos do que vivemos de
forma obscura, confusa, e que às vezes se revela, se explicita de forma luminosa e
se transforma, graças a uma história, um fragmento ou uma simples frase. (...) A
verdadeira questão, a partir daí, não é saber como escapar disso, mas como
aumentar o seu dinamismo e a sua extensão. (ibid, p.112)

A negociação do sentido é onde esse processo se consolida de forma mais premente.


Em função da mensagem, ocorre um esforço dos interlocutores de compreensão que pode
oportunizar insumos cognitivos capazes de consolidar e/ou modificar um entendimento.
Um campo simbólico do conhecimento que, segundo os estudos de Garcia (2003), não se
fecha, ao contrário se abre em múltiplas possiblidades.

Sendo assim todos opinam sem medo de errar. [...] A ambiguidade do texto
permite posições discrepantes acerca do seu significado. E, além disso – o que
não é raro ocorrer – alguém descobre uma linha de interpretação que o professor
não previa. É que na leitura compartilhada de um texto literário a possiblidade de
invenção, da criação, está sempre aberta. Este talvez seja o aspecto mais
fascinante de toda esta experiência, abrir espaço para a criação. E a criação é o
caminho para a autonomia, para autoafirmação. (ibid, p.20)

Um caminho traçado sobre a dialética da relação de si com o texto e de si com o


outro, validando as impressões relacionadas ao texto e, sobretudo, ao contexto. Essa
partilha é um investimento necessário e irrestrito, inicialmente mediado pelo professor e,
posteriormente, seguido com autonomia pelo educando.

4.2 – A ALUNA MICAELA


A roda da saia, a mulata
Não quer mais rodar, não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou
A gente toma a iniciativa
Viola na rua, a cantar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a viola pra lá.
(Roda-viva, Chico Buarque de Holanda)

Como contraponto à entrevista de Estêvão, escolhi a aluna Micaela. O fiz pelo fato
de que, em oposição ao comportamento do colega, ela era muito silenciosa. Não conseguia
compreender o motivo pelo qual Micaela continuava no projeto, sendo ela tão tímida. Na
entrevista, no entanto, mesmo com um tom de voz bem miúdo, ela conversou um pouco

84
comigo. Disse que tinha 13 anos e 13 irmãos, algo que me causou espanto. Justificou que
são irmãos por parte do seu pai que tinha outras famílias. Ela morava apenas com a mãe.
Cursava agora o 7º ano do Ensino Fundamental, pois tinha ficado retida dois anos no 5º
ano. Expliquei a ela o motivo da entrevista e perguntei se ela se considerava uma boa
leitora. Ela me respondeu que sim. O livro de que mais gostou foi “Cidades de papel” de
John Green e que estava lendo agora um da Kéfera, uma youtuber da atualidade. Por serem
livros atuais, considerei que eles não faziam parte do acervo da biblioteca, que continha,
em sua maior parte, livros mais antigos. Ela me respondeu que a bibliotecária trazia os
livros de casa e emprestava para ela.

Na análise desse relato é possível identificar uma relevante ação da bibliotecária


para conquistar o interesse da aluna para o universo leitor. Nos estudos voltados à
promoção da leitura no âmbito escolar é comum encontrarmos apontamentos que revelam a
significativa contribuição do mediador nesse processo, em muitos casos, identificados
como a figura do bibliotecário. O autor francês Pierre Bayard, certa vez, apresentou uma
relevante metáfora acerca dos livros, classificando-os como uma segunda linguagem, aos
quais recorremos para falar de nós mesmos. Para ele: “O bom leitor opera uma travessia de
livros, sabe que cada um carrega uma parte dele mesmo e pode mostrar-lhe o caminho, se
ele tiver a sabedoria de não parar por ali” (2007 apud PETIT 2010, p. 111). O caminho de
livros para essa travessia, assim como o relato da Micaela, pode ser construído pelas mãos
de um bibliotecário. Sua função ganha especial importância se considerarmos que o
professor não consegue, em grande parte, abdicar da sua grande demanda de afazeres
burocráticos e curriculares para se aplicar a um trabalho sistemático de promoção do hábito
e gosto pela leitura. Muitos educandos não desenvolveram esse apreço por terem tido uma
experiência desprovida de sentidos com os livros, com vivências protocolares de uma
leitura imposta, ou de mera memorização e decifração de códigos e símbolos, rechaçado,
nessa dinâmica, a capacidade de criar e descobrir.

Retomando o exemplo da bibliotecária da escola que traz livros do seu acervo


pessoal ou de seus familiares para complementar um déficit do acervo escolar é possível
ajuizar a essa ação uma intenção de aproximar o aluno para esse espaço de troca que é a
biblioteca. No tocante a essa questão vale o adendo que demarca a ausência desse espaço
em muitas unidades escolares do Brasil. No âmbito federal alguns programas buscam

85
minimizar a escassez e/ou inexistências das bibliotecas escolares. O MEC regulamentou a
execução do Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE)18, no contexto de seus
programas de livro didático. Em seu escopo ele distribui às escolas de educação básica e da
educação de jovens e adultos da rede pública de ensino obras de literatura e de referência,
de pesquisa e de outros materiais relativos ao currículo nas diversas áreas do conhecimento.
No entanto, além de não contemplar obviamente a rede privada de ensino, esse Programa
por si só não é capaz de promover a universalização das bibliotecas na rede pública de
ensino de todo o país.

De outra maneira, foi aditada a Lei das Bibliotecas Escolares- Lei nº 12.244/2010
na esfera educacional, promulgada a Lei nº 12.244, de 24 de maio de 2010, que “dispõe
sobre a universalização das bibliotecas nas instituições de ensino do país”. Essa legislação
representa um importante avanço ao dispor que todas as instituições de ensino, sejam elas
públicas ou privadas, nos diferentes níveis e em todos os sistemas de ensino deverão
contar, na sua infraestrutura, bibliotecas.
Os sistemas de ensino deverão desenvolver esforços progressivos para a
universalização das bibliotecas escolares em todo o País, num prazo máximo de
dez anos. Por sua vez, as bibliotecas escolares deverão ter, obrigatoriamente, em
seu acervo de livros de, no mínimo, um título para cada aluno matriculado,
cabendo ao respectivo sistema de ensino determinar a ampliação deste acervo
conforme sua realidade, bem como divulgar orientações de guarda, preservação,
organização e funcionamento das mesmas (art. 2º, parágrafo único) .

Mais recentemente, foi aprovado o novo Plano Nacional de Educação (PNE) 19 para
o decênio 2014-2024 e que, embora não traga explicitamente nenhuma meta para a
implantação de bibliotecas escolares, prevê a seguinte estratégia: “Promover, com especial
ênfase, em consonância com as diretrizes do Plano Nacional do Livro e da Leitura, a

18
O Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), desenvolvido desde 1997, tem o objetivo de
promover o acesso à cultura e o incentivo à leitura nos alunos e professores por meio da distribuição de
acervos de obras de literatura, de pesquisa e de referência. O atendimento é feito de forma alternada: ou são
contempladas as escolas de educação infantil, de ensino fundamental (anos iniciais) e de educação de jovens e
adultos, ou são atendidas as escolas de ensino fundamental (anos finais) e de ensino médio. Hoje, o programa
atende de forma universal e gratuita todas as escolas públicas de educação básica cadastradas no Censo
Escolar.

19
O Plano Nacional de Educação (PNE) foi aprovado em 26 de junho de 2014 e terá validade de 10
anos. Esse plano estabelece diretrizes, metas e estratégias que devem reger as iniciativas na área da educação.
Por isso, todos os estados e municípios devem elaborar planejamentos específicos para fundamentar o alcance
dos objetivos previstos — considerando a situação, as demandas e necessidades locais.

86
formação de leitores e a capacitação de professores, bibliotecários e agentes da comunidade
para atuar como mediadores da leitura, de acordo com a especificidade das diferentes
etapas do desenvolvimento e da aprendizagem” (meta 7.33).

Apesar do exposto, o Censo Escolar20 de 2016 aponta para os seguintes números em


relação ao equipamento biblioteca escolar nos estabelecimentos de ensino públicos e
privados: Do total de 217.480 escolas públicas do país, apenas 21% possuem biblioteca em
suas dependências. Já do universo de 61.878 escolas da rede privada de ensino, 38%
possuem esse equipamento escolar.

A distribuição de bibliotecas escolares por região apresenta o seguinte quadro:

. Região Norte: do universo de 33.955 escolas, apenas 16% possuem biblioteca

. Região Nordeste: de 109.240 escolas, apenas 18% declararam possuir biblioteca

. Região Centro-oeste: de 13.124 escolas, 39% possuem biblioteca

. Região Sudeste: do total de 88.216 escolas, 28% contam com biblioteca

. Região Sul: de 34.823 escolas, 44% dispõem de biblioteca.

Diante desses números, podemos concluir que, hoje, no Brasil, segundo o Censo
Escolar de 2016, do universo de 279.358 estabelecimentos de ensino públicos e privados,
somente 25% possuem biblioteca escolar em sua infraestrutura. Ou seja, cerca de 75% das
escolas brasileiras estão ainda desprovidas desse importante recurso didático-pedagógico: a
biblioteca. Cabe à educação brasileira caminhar nesse sentido, visto que, no pensar de Petit:
Um bibliotecário pode transmitir, levado por sua paixão, o despertar do gosto de
ler. Sobretudo no caso dos que não se sentem muito seguros a se aventurar por
essa via devido à sua origem social, pois é como se a cada passo, a cada umbral
que atravessam, fosse preciso receber uma autorização para ir mais longe. [...] O
papel do iniciador se revela primordial no acompanhamento do trajeto do leitor.
(2010, p. 166)

Micaela disse-me ainda que a leitura era feita apenas na escola, pois em casa a mãe
só comprava revistas. Perguntei sobre o texto na internet e ela me revelou que acha que a

20
O Censo Escolar é o principal instrumento de coleta de informações da educação básica e o mais
importante levantamento estatístico educacional brasileiro nessa área. É coordenado pelo Inep e realizado em
regime de colaboração entre as secretarias estaduais e municipais de educação e com a participação de todas
as escolas públicas e privadas do país.

87
internet atrapalha um pouco a vida do estudante. Ao ser indagada pelo motivo da
afirmação, me contou:
“Não sei, às vezes eu fico meio embaralhada. Pois até na escola mesmo...eu
escrevo de um jeito e na internet de outro. Outro dia eu fui escrever não e só
coloquei o “n”, a professora perguntou o que que era. Tipo, no zap eu escrevo de
um modo, mas aqui a professora não vai entender”.

Na sequência da conversa, perguntei se ela achava que haviam modos diferentes de


escrever na escola e na internet. Ela respondeu que sim e complementou:
“Na internet as pessoas se entendem. Mas se eu escrever na escola do jeito que eu
escrevo lá...aí, ninguém ia entender. (risos) Ah, porque na escola eu escrevo de
outro modo. Eu procuro dá um jeito, pois eu não gosto de falar no áudio. Às
vezes eu escrevo meio malucado só para a galera não me zoar, mais eu acho mais
importante escrever certo”. (grifos meus)

Micaela ao dizer que considera mais importante escrever “certo”, evidencia que
existe formas de escrita diferenciadas entre a escola (papel) e a internet (digital), sendo
esta, na sua consideração, uma escrita “errada”, porém aceita e compreendida quando
manipulada sobre esse suporte. Trazendo uma breve consideração a respeito, tendo em vista
a introdução feita sobre o tema e a consideração vindoura sobre os suportes digitais, é
possível considerar que o final do século XX foi marcado por um crescente
desenvolvimento do uso da internet, que ressignificou conceitos, saberes por meio da
leitura e, sobretudo, nesse caso, da escrita. A chamada sociedade em rede (LÉVY, 1999)
trouxe consigo um novo paradigma de acesso e produção de conhecimento.
O novo suporte do texto permite uso, manuseios e intervenções do leitor
infinitamente mais numerosos e mais livres do que qualquer uma das formas
antigas do livro. [...] O leitor não é mais constrangido a intervir na margem, no
sentido literal ou no sentido figurado. Ele pode intervir no coração, no centro.
(CHARTIER, 1998, p. 77)

Um novo processo de escrita/leitura se instaurou, propondo e modificando o escrito


tanto na sua forma morfológica, quanto sintática.
O hipertexto é dinâmico, está perpetuamente em movimento. Com um ou dois
cliques, obedecendo por assim dizer ao dedo e ao olho, ele mostra ao leitor uma
de suas faces, depois outra, um certo detalhe ampliado, uma estrutura complexa
esquematizada. Ele se redobra e desdobra à vontade, muda de forma, se
multiplica, se corta e se cola outra vez de outra forma. Não é apenas uma rede de
microtextos, mas sim um grande metatexto de geometria variável, com gavetas,
com dobras. Um parágrafo pode aparecer ou desaparecer sob uma palavra, três
capítulos sob uma palavra ou parágrafo, um pequeno ensaio sob uma das palavras
destes capítulos, e assim virtualmente sem fim, de fundo falso em fundo falso.
(LÉVY 1999, p. 40-41)

88
Dessa forma, uma significativa parcela social, sobretudo os jovens, deixou de
escrever manualmente para digitar, gerando com isso, uma forma peculiar de comunicação
que permite abreviações reconfiguradas, sentidos atribuídos a fonemas isolados, imagens de
ícones figurativos para enunciar um conceito ou uma ideia e o entendimento
comunicacional pela escrita independentemente de estar ou não descrita segundo à norma
culta da língua.
Mesmo diante dessas características, compreendidas como nocivas aos processos
cognitivos de aprendizagem para alguns educadores, Chartier (1998) concorda com Lévy
(1999) que a perspectiva do advento da internet ampliou a própria cultura da escrita e da
leitura. Chartier acredita ainda que:
Pela primeira vez, estes três níveis: o nível da técnica, o nível da forma de
suporte, e o nível da prática da leitura se transformam ao mesmo tempo. Quer
dizer que a textualidade eletrônica é, evidentemente, uma revolução tecnológica,
que transforma totalmente a forma de inscrição da cultura escrita, substituindo
pela tela do computador todos os objetos e a cultura impressa: o livro, o jornal, a
revista, etc. E isso implica, ou permite, uma transformação da relação com o texto
escrito pelo leitor. (2011, p.17)

Micaela, ao externar essa consideração sobre a diferenciação da escrita, evoca a


necessidade da reflexão no processo pedagógico dessas percepções, visto que a escola é
fruto de um movimento histórico evolutivo e não pode manter-se refratária a ele.
Retomando a entrevista, contou-me que queria ser advogada, pois gostava de defender as
pessoas e desejava também defender o seu pai. Perguntei porque ela teria que defender seu
pai e ela me respondeu que ele estava preso. Compreendi nesse momento o motivo do
silêncio da menina perante os debates na roda de leitura. Ela trazia consigo esse drama
pessoal e de alguma forma, usava do momento da roda, como refúgio da realidade
indesejada.
Esse relato da sua dor e da sua participação no projeto, remete às considerações
feitas por Petit (2010) nos seus estudos sobre a promoção da leitura no tocante ao que
denominou como “desvio”, ou seja, “a necessidade de encontrar vias indiretas para
ressignificar algo”, tomando veredas e caminhos transversais.

É então, um esquecimento temporário da dor, do medo ou da humilhação que se


torna possível. [...] Os livros são moradas emprestadas onde é possível se sentir
protegido e sonhar com outros futuros, elaborar uma distância, mudar de ponto de
vista. (p.284)

89
Nessa análise, o trabalho do Clube de leitura, mas do que uma ferramenta
pedagógica, pôde recompor um tecido simbólico danificado por um desgosto,
oportunizando um acesso a novas ordens imaginárias, não constituindo simplesmente uma
espécie de fuga, mas sobretudo uma pausa necessária para aplacar sentimentos demasiados
dolorosos. Para Micaela foi importante o projeto, pois, segundo ela, é na escola que ela tem
que ler, pois em casa isso não seria possível por conta da dificuldade de conseguir os livros.
Perguntei porque motivo ela ficava tão silenciosa na roda. Ela me respondeu:
“Eu acho que sou mesmo um pouco tímida, mas eu gosto de ouvir as histórias, de
estar com os meus amigos, porque fico confortável no meio deles. Eu sou mais
velha e fico com medo de falar alguma coisa errada. Espero que um dia eu
possa falar mais de mim sem muito medo” (grifos meus).

Nesse momento, eu tive que concluir a entrevista com a Micaela, pois percebi que
ela estava no limite da sua contribuição. Ou, até mesmo, já o tinha extrapolado. Tive desejo
de explorar a questão que relatou sobre o fato de “falar mais de mim sem muito medo”, mas
senti que poderia contribuir para que esse medo se agigantasse. No entanto, através da sua
fala eu comecei a refletir sobre a possível origem desse medo. Teria ele sido produzido pela
escola? Teria ela sido silenciada pelos dois anos de repetência que relatou? No caminho da
análise dessas hipóteses pensei que um aparente paradoxo poderia estar se fazendo
presente: do mesmo modo que a escola poderia dar voz, a exemplo do Clube de leitura, ela
também poderia silenciar. Aprofundando um tanto mais, emergem questões de naturezas
estruturais dos sistemas escolares, sobretudo dos que são públicos e atendem, em sua
grande maioria, as classes populares. Esse tema é abordado no artigo “Educação popular e a
escola pública: antigas questões e novos horizontes”, onde as autoras expõem os embates
concernentes ao direito à educação no Brasil, que desde de sua implementação até os dias
atuais traz em si tensões e crises presentes nos interiores das escolas na garantia do acesso
e permanência para todos.
Em outras palavras:
A persistência do fracasso escolar, constantemente se traduz em um discurso que
afirma o insucesso como ato individual, decorrente da dificuldade de
aprendizagem produzida por características dos sujeitos e/ou modos de vida das
classes populares. (...) Não problematiza a estrutura homogeneizante,
monocultural, classificatória e seletiva do projeto hegemônico de escola e,
tampouco questionam suas frágeis relações com as referências e expectativas das
classes populares, especialmente no que se refere às opções curriculares e aos
procedimentos didáticos no marco das tensões entre a cultura escolar e as culturas
populares. (ESTEBAN e TAVARES 2013, p.296)

90
Dessa forma, a escola por não tratar ou não saber tratar seus sujeitos com igualdade
e, ao mesmo tempo, respeitar as diferenças, fracassa em seus objetivos negando “a função
social de transmissão-assimilação do saber sistematizado, que é a atividade nuclear da
escola” (SAVIANI, 2003, p.15). Ao se falar em educação, a preocupação com o ensinar e o
aprender os saberes historicamente acumulados, deve-se fazer presente e se constituir no
“cerne de uma prática pedagógica compromissada com a socialização do conhecimento
escolar para todos os sujeitos da escola” (SAVIANI, 2003). Micaela foi silenciada ou se
silenciou? Paulo Freire analisou essa “cultura do silêncio” que se caracterizava pelas
comunidades que se tornaram dependentes e que viraram mudas. Para Petit (2009, p. 135):
Decifrar o silêncio é uma tarefa complexa: ele exprime um desconforto diante do
que vem da cidade, uma censura para com os tempos traumatizantes da história,
uma repressão da expressão dos sentimentos, uma preferência dada a outros
modos de simbolização, de expressão, por vias não verbais?

Essas respostas talvez não se elucidem tão cedo. O fato é que, para uma pesquisa
como esta que discute o mote da oralidade como perspectiva de elaboração de identidades e
subjetividades, seu medo de se pronunciar é no mínimo inquietante. A obra “A Miséria do
mundo”, publicada sob a coordenação do sociólogo francês Pierre Bourdieu, propõe, em
um dos seus blocos, uma análise sobre as relações entre exclusão escolar e social.
Problematiza o princípio da universalização e democratização do ensino que, por muitas
vezes vai ao encontro dos mecanismos sociais imperceptíveis responsáveis pela exclusão.
Nesse percurso, revela a substituição da eliminação brutal por uma espécie de eliminação
branda. Essa modalidade de exclusão, mencionada no livro como “exclusão de interior”
dilacera aos poucos as esperanças advindas do suposto acesso de escolarização universal.
A fundamentação da eliminação branda reside em considerar a forma com que a
escola distingue os grupos sociais e, de certa forma, reproduz as estruturais sociais, sem
valer-se declaradamente dos princípios fundamentais da diferenciação. O acesso “irrestrito”
ao ambiente por si só não garante condições paritárias. Bourdieu observa (1996) que é
ilusória a promessa da democracia onde todos terão os mesmos acessos, as mesmas
condições de fala e expressão. O âmbito do discurso é restrito, sobretudo nas sociedades
contemporâneas. A capacidade de expor um pensamento, de articular uma ideia, de
defender um princípio é diferenciado ainda entre homens e mulheres, ricos e pobres, negros
e brancos etc. Nesse viés, a educação pode criar mecanismos modificadores que poderão

91
possibilitar, até mesmo para os mais marginalizados, os sistemas básicos à expressividade,
à elaboração da representação da realidade e à formulação de práticas participativas mais
atuantes. Micaela, escuta; fala pouco. No entanto, tem o livro nas mãos. Ele pode forjar a
sua voz. E ela, a voz, valendo-me da metáfora elaborada pelo escritor brasileiro Monteiro
Lobato, pode ser a sua “chave do tamanho”21. Que essa chave permita o acesso, que desvele
caminhos e que a faça crescer.

4.3 – O ALUNO ROGÉRIO OU ELIAS OU ARTHUR

O samba, a viola, a roseira um dia a fogueira queimou


Foi tudo ilusão passageira que a brisa primeira levou
No peito a saudade cativa faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda-viva e carrega a saudade pra lá
(Roda-viva, Chico Buarque de Holanda)

Esse aluno me chamou a atenção logo no primeiro encontro do Clube de leitura,


pois já na apresentação ele contou parte de sua história onde relatou que teve três nomes,
mas que agora se chamava Arthur Gabriel. Dizia isto com orgulho, pois segundo ele, tinha
nome de rei e de anjo. Na entrevista, ele pôde esclarecer melhor:
“Meu nome era Rogério, quando eu nasci. Era um nome feio. A minha mãe não
me registrou. Aí depois ela quis botar o nome do meu pai que era Elias. Porque
ele tinha morrido e ela quis fazer uma homenagem. Ela ficou muito triste com a
sua morte, tomou muito remédio e também morreu. Eu fiquei sozinho sem pai
nem mãe. Dizem que a morte do meu pai foi porque ele levou tiro. Aí, fiz 4
cirurgias porque eu tinha uma doença do fígado. Aí meus tios me adotaram. Eu
falei com eles que eu ficava muito triste de lembrar do meu pai e eles tiveram a
ideia de mudar o meu nome no registro de adoção. Eu falei que queria um nome
de rei e de anjo, Arthur Gabriel. Demorou bastante pra mudar meu nome, mas
pelo menos agora eu não lembro tanto do meu pai”.

Perguntei a ele qual era a diferença do nome Elias para o atual.


“Eu acho que eu fosse Elias eu seria mais quieto, mais calado, pois esse nome me
lembra algo muito triste que foi a morte do meu pai. Só que eu não acredito que
meu pai morreu. Um dia eu acho que eu ainda vou encontrar ele. Acho que meu

21
A chave do tamanho é um livro infantil de autoria de Monteiro Lobato e publicado em 1942, cujo
tema central gira em torno da ideia da boneca Emília em encontrar a chave da guerra e desligá-la para não
mais haver sofrimento. No seu lugar, no entanto, ela desliga a chave do tamanho, alterando o tamanho das
coisas e consequentemente gerando um grande transtorno. Ao final, tudo volta ao normal e a guerra se
encerra.

92
nome atual me dá mais esperança e um pouco de força. Eu quero procurar ele pra
ver de novo ele”.
A história de Arthur despertou um especial interesse, pois foi narrada de forma
muito inusitada; a começar por sua troca de nomes. Garcia (2003) em seus estudos sobre
rodas de leitura, declara ser primordial o trabalho inicial voltado para o nome e sua origem;
o primeiro sinal identitário:
Acho importante aprofundar esta questão da identidade, através da literatura,
tendo em vista resgatar identidades fragmentadas de jovens de camadas
populares. Por que através da literatura? Porque a literatura nos conduz a um
conhecimento que não está comprometido com a razão prática (Sahlins, 1979),
permitindo aos participantes da roda o livre voo pelo imaginário sem o fantasma
do erro, que é sempre punitivo no regime escolar. (p.71)

Para Arthur o nome trouxe em si um marco inicial da sua história, projetando uma
perspectiva de inserção social. Esse chamamento remetia, segundo ele, à força necessária
para o alcance dos seus objetivos. Seguindo a entrevista, contou-me que tem outras irmãs,
mas que não as conhece. Com 11 anos, cursava o 6º ano do Ensino Fundamental. Seu
sonho era ser arquiteto, pois apreciava construção. O livro que mais gostou foi “Meu pé de
laranja lima” de José Mauro de Vasconcelos que pegou na biblioteca. Disse-me que em
casa, embora mexesse no computador para fazer os trabalhos da escola, a mãe adotiva
recomendava sempre que pegasse os cadernos para escrever algo para reforçar a letra.
“Escrever no computador é diferente. O computador é digital e no caderno eu
tenho que escrever. Lá a gente se comunica, mas esquece um pouco da forma
certa de escrever”.

Quanto ao Clube de leitura ele considerava que tinha que ter mais vezes.
“Tô gostando. Parece que une mais os amigos um pouco. Tinha amigos que eu
nem notava direito o jeito do cabelo, a forma de falar. Lá eu sei que o que eu falar
vai estar um pouco certo porque é a minha opinião. Até quem não é amigo se
aproxima mais. No círculo dá um pouco de dificuldade, mas a gente vai se
acostumando”. (grifos meus)

O relato de Arthur ao dizer sobre “ir se acostumando” se coaduna com o princípio


da familiaridade que aparece nos estudos de Petit (2010), quando declara a respeito dos
espaços de leitura: “trata-se de lugares coletivos, mas cada indivíduo é tratado como um
sujeito que testemunha uma escuta, uma disponibilidade singular. [...] Os pertencimentos
próprios são respeitados assim como as falas que eles pronunciam” (p.283). Educar, sobre
esse pressuposto, não significa apenas reconhecer o outro como diferente, mas refletir sobre
as relações e a garantia dos direitos de todos, bem como a valorização das singularidades. E

93
a escola é o espaço sociocultural privilegiado em que as diferentes identidades se
encontram e se constituem.

4.4 – O ALUNO TITO


Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
(Roda-viva, Chico Buarque de Holanda)

O aluno Tito foi quem se ofereceu para a entrevista. Nos encontros do Clube de
leitura ele é uma espécie de organizador que procurava sempre dar melhor aproveitamento
para o tempo em que eles se realizam. Nas considerações na roda trazia sempre uma
referência de alguma personagem dos tantos livros lidos e das histórias ouvidas, segundo
seu relato. Sobre si, no entanto, falou bem rápido:
“ENTREVISTADOR: Quantos anos?
TITO: 13 anos. Eu tenho dois irmãos e sempre estudei aqui na escola. Quem me ensinou a ler foi a Tia
Roberta.
ENTREVISTADOR: Acha importante a pessoa ler?
TITO: Sim. Por que quando a pessoa aprende a ler cedo é mais fácil conseguir as coisas na vida. A minha
irmã tem preguiça de ler. Isso é muito ruim! Eu quero ser médico.
ENTREVISTADOR: Mas tem que estudar muito...
TITO: Primeiro eu vou começar como professor e depois quem sabe. Por isso eu leio muito! O último livro
que li foi “O pequeno Príncipe” de Antoine de Saint-Exupéry. Peguei na escola.
ENTREVISTADOR: GOSTA DO CLUBE DE LEITURA? É muito legal. A gente pode se expressar,
conhecer melhor os nossos amigos. Na sala, às vezes a gente falava uma coisa e eles começavam a rir da
gente, mas agora todo mundo procurar escutar o que a gente tá falando. Tem coisas que a gente não
tem coragem de falar. Aí eu fico quieto e fico falando na mente.
ENTREVISTADOR: E o computador?
TITO: Tá estragado”. (grifos meus)

Eu tive pouco ou nenhum espaço para considerações na conversa com ele. De uma
praticidade desconcertante, estava preparado para responder a qualquer perguntar sem
muito rodeio ou afetação. Fiquei quase sem fôlego com a sua forma de encarar a vida,
sendo ainda tão jovem, aluno do 8º ano do Ensino Fundamental. As respostas eram
apressadas. Como se a vida não esperasse. Segundo ele: “quando não o ouvem, fala na
mente”, consigo mesmo. O computador, as novas tecnologias, as ferramentas digitais
ficaram secundarizadas com sua resposta a respeito: “Tá estragado”. Esse movimento
sobressaltado de expressão, talvez tenha relação com a parte do seu relato que foi grifado:
“alguém que escuta o que ele está falando”. Essa sentença traz novamente a questão das

94
vozes silenciadas no espaço escolar, em detrimento do livre debate e do diálogo que
deveriam permear tais relações.
Freire (1996, p. 93) alega que “não há nada que mais contradiga e comprometa a
imersão popular do que uma educação que não jogue o educando a uma experiência do
debate e da análise dos problemas e que não lhe propicie condições de verdadeira
participação”. É imprescindível demarcar o espaço escolar como um campo de resistência e
de oposição à exclusão social. Tornar o diálogo apto a mediar a articulação dos saberes, a
troca de experiências e a fomentar vínculos.
Essa aprendizagem leva a reinventar o trabalho escolar traduzindo para sua
prática em sala de aula o diálogo, a participação, o coletivo, a alteridade, a
solidariedade, as diferenças culturais, os múltiplos conhecimentos e o exercício
da partilha democrática do poder como meio para o fortalecimento do saber,
como elementos nucleares em uma dinâmica pedagógica centrada na complexa
interação de docentes, discentes e conhecimentos, na busca do ser mais. (ibid,
p.121)

Para Tito os livros eram importantes. A escola o conhecia como o Menino


Maluquinho, numa alusão à personagem clássica do escritor e cartunista Ziraldo. Tive
tempo de perguntar a ele a identificação com as características da personagem:
“Um dia teve uma apresentação na escola e a professora me chamou para ser o
Menino Maluquinho. Eu fiquei muito feliz com o convite, mas fiquei meio
nervoso. O Menino Maluquinho usa uma panela na cabeça e é bem animado. Eu
acho que eu sou meio maluquinho. Mas eu acho que posso fazer outros
personagens. Eu gosto dos piratas, dos heróis e também dos cientistas. Não sei
direito! A gente pode ser tanta coisa! É só imaginar!” (grifos meus)

No pensar de Garcia (2010, p.76), as experiências com rodas de leitura devem


buscar a gratuidade da leitura, o ler por prazer, bem como o movimento que pode fazer com
que essa atividade se torne uma experiência que coloque para fora as fantasias e
necessidades dos participantes. Algo que pode aflorar o imaginário que, nessa concepção
do autor supracitado, classificou-se como “a forma como cada um interpreta as narrativas,
os acontecimentos cotidianos e sua própria maneira de ser e atuar, apontando para o
imprevisível e antecipando o porvir”. Para o aluno Tito a apropriação desse mecanismo já
se encontrava assimilado, quando assumiu uma característica de uma personagem e
considerou que poderia ser muitas outras através do exercício de imaginar.
A leitura apresenta-se como um valor imensurável na busca do homem de
emancipar-se como sujeito, adquirindo autonomia e assumindo-se como agente
transformador de sua história. Ler é constituir-se como sujeito social. O sujeito, ao

95
desempenhar este ato, imerge numa ação de produção de sentidos, que necessariamente vai
imputar-lhe inúmeros valores, que muitas vezes podem colaborar para mudanças na própria
sociedade.
A literatura, em particular, sob todas as formas (mitos e lendas, contos, poemas,
romances, teatros, diários íntimos, histórias em quadrinhos, ensaios), fornece um
suporte notável para despertar a interioridade, colocar em movimento o
pensamento, relançar a atividade de simbolização, de construção do sentido, e
incita trocas inéditas. (PETIT 2010, p.284)

Essa concepção está bem demarcada na obra “O último leitor” de Ricardo Piglia,
quando relata no quarto capítulo a relação Ernesto Guevara22 com a leitura. O texto narra
parte da trajetória de Che Guevara em sua militância política e sua profunda relação com a
leitura; que se funde com a sua história e lhe dá forma e sentido. Muitas vezes, faz-se
exaltação à figura do guerrilheiro revolucionário, mas raramente mencionam outros
aspectos de sua vida. No texto, o autor busca dar contornos humanos a Guevara, que por
meio da leitura sofreu mutações e marcas na sua personalidade, absorvendo um modelo
ético, um modo de conduta, uma experiência reveladora: “a leitura funciona como um
modelo geral de construção de sentido” (PIGLIA 2006, p. 98).
Por ser um homem de ação, muitas vezes se isolava para a leitura, paixão que
remonta à sua infância até sua morte. Ele próprio classifica o ato de ler como uma
dependência. Essa ação leitora era uma espécie de aparte entre o ser social e o ser pessoal.
Era o momento de repouso e descanso, onde nutria forças para os embates. Guevara tornou-
se um ávido leitor. Essa experiência com o livro o acompanhou durante a vida. As imagens
dos textos eram aplicadas ao cotidiano, revelando condutas e formas de pensar. Uma
simbologia de um novo sujeito, onde ele mesmo aparecia como modelo dessa construção.
Durante sua trajetória, houve várias mudanças, ritmos variados, porém o ato de ler
se interpunha como ação constante. O leitor sobrevive em Guevara, sob o conflito do ser
político e a leitura isolada e reflexiva. O ato de ler, no entanto, impulsiona Guevara a
escrever. Ele começa a fazer registros em um diário, onde fala de si e do que lê. Começa
então a disseminação dos seus pensamentos por meio deste ato, revelando seu desejo de ser
um escritor. As suas viagens configuram a busca de sua identidade por meio da

22
Ernesto Rafael Guevara de La Serna, mais conhecido como Che Guevara, foi um famoso
revolucionário socialista do século XX. Argentino, nasceu na cidade de Rosário em 14 de junho de 1928. Foi
executado em 9 de outubro de 1967, na aldeia de La Higuera (Bolívia).

96
experimentação. Acumulava vivência e livros. Sua marcha revela o interesse de colocar a
política como uma ação em movimento, sem lugar fixo, sem territórios.
O autor o apresenta como líder político, um exemplo de uma vida burilada na
experiência paralela à figura do leitor em busca da construção de sentidos. Nos momentos
finais de vida, uniram-se o Che leitor e o Che político, como uma fusão poética daqueles
que estiveram juntos desde o início. A leitura, neste caso, potencializou-se como uma
perspectiva de entendimento seja social ou pessoal, algo que ocorre ao leitor. No tocante a
Tito, aluno da entrevista, os traços práticos das suas percepções faziam uma sugestão da
experiência com o universo literário, prenhe de múltiplas possibilidades que se
apresentavam de forma vertiginosa e que preenchiam o seu modo de interpretar os fatos e
de fazer suas projeções. Jorge Larrosa (2002) nos fala a respeito da leitura enquanto
formação e sua misteriosa atividade que nos faz ser aquilo que somos, ou seja, a ideia de
sermos o que somos está intimamente ligada a uma leitura, que nos afeta, nos transforma. A
leitura torna-se nesta perspectiva subsídio do sujeito na construção de si mesmo, extraindo
muitas vezes da personagem, a expectativa de sua própria identidade.
Na análise das considerações do aluno, a leitura apresenta-se igualmente como a
mediadora de uma prática social, ou seja, motiva e capacita o indivíduo a participar
ativamente do meio em que vive. Neste sentido, ela se potencializa como valor, tendo em
vista os desafios contemporâneos que se interpõem, principalmente no que concerne ao
Sistema Educacional Brasileiro. Não é novidade que o Brasil ainda enfrenta o sério
problema do analfabetismo concreto e funcional, tanto de brasileiros que saem da escola e
de outros que não tiveram a oportunidade de se apropriarem do saber da leitura e escrita. É
fato que neste país há um número significativo de pessoas que não possuem o saber
necessário para atender às exigências de uma sociedade letrada e muitas mazelas sociais
derivam desta constatação.
Para Petit (2010) é muito mais difícil ter voz ativa no espaço público quando se é
inábil no uso da cultura escrita. Para ela, ter familiaridade com a, leitura não é suficiente
para garantir nada, no entanto, os que estão distantes dela correm um sério risco de ficarem
fora do jogo:
No momento em que a visibilidade midiática, os signos exteriores de riqueza, a
cultura técnica ou o desempenho esportivo parecem ter prevalecido há muito
tempo sobre os valores literários, o poder permanece ligado à escrita. Se o atual
presidente da república francesa se exibe muito mais em parques de diversões ou

97
com cantores populares do que em livrarias, é em uma biblioteca, ante os livros,
que ele posa para a fotografia oficial. E, no cotidiano, se aconselha com homens
de letras. (p.288)
No trabalho com os alunos, a literatura se apresentou como ponte de travessia, onde
puderam passear por mundos desconhecidos. Essa apropriação concedeu a possibilidade de
o grupo interpretar a realidade e buscar soluções dos seus problemas à luz de poesias,
contos, romances, narrativas, confrontando valores, experimentando alternativas para o
cotidiano e desvendando culturas distintas. Esse processo possui farta possibilidade de
alimentar a imaginação, subsidiar a construção da identidade e construir o senso crítico
diante da vida cotidiana.

4.5 – A ALUNA BRUNA

Roda mundo, roda-gigante


Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
(Roda-viva, Chico Buarque de Holanda)

A aluna Bruna tem 12 anos. O motivo da entrevista foi o fato de que no início do
projeto ela era muito arredia e com o passar do tempo foi tornando-se mais sociável. Na sua
apresentação inicial, apresentou-se como rebelde. Perguntei a ela o motivo da declaração:

“Meu pai que me chama assim. Eu tenho outros 3 irmãos que vivem separados
nas casas de meus parentes. Antes eu morava com minha mãe, mas ela tomou uns
remédios e tentou se matar e eu passei a morar com o meu pai. Eu sinto muita
falta dela. Quando eu tô em casa me dá uma agonia. Acho que ele me prende
muito. Se tem uma festa ele nunca deixa eu ir. A gente briga bastante. Me dava
um negócio que eu não sabia o que era. Agora eu sei: é um ódio que eu não
sei controlar”. (grifos meus)

Nesse relato, a aluna nomeia um sentimento que a angustiava, mas que outrora não
sabia do que se tratava. Esse processo de entendimento, pode ser um reflexo do trato com o
texto literário nas rodas de leitura, visto que ele engendra essa capacidade de nomeação dos
fenômenos internos e externos que permeiam nossas relações.
É o que diz o escritor italiano Alessandro Baricco:

A literatura deve ser um meio para que possamos enfrentar a tristeza da realidade,
os nossos medos e os silêncio. Ela deve tentar pronunciar palavras, pois temos
medo do desconhecido e do abominável. Acredito que todas as histórias são

98
apenas elaborações linguísticas complexas que tentam dar nome a nossas feridas,
a nossos medos, tornando-os menos assustadores. [...] Se conhecemos o que nos
assusta, podemos enfrentá-lo. Nomear é conhecer. (1998 apud PETIT 2008, 136-
137)
Bruna me revelou que é em sua casa que seu ódio explodia, pois gostaria de estar
perto da sua mãe para cuidar dela. Seu pai dizia muitas coisas sobre sua mãe que ela não
acreditava: como o fato de deixar seus irmãos passarem fome por três dias consecutivos. A
aluna falou um pouco mais sobre sua vida:

“Tudo isso me faz sofrer. Mas pelo menos agora eu sei o que é. É ódio. Antes eu
não sabia. Eu vou pro meu quarto. Fico sozinha e tento resolver um pouco. Já
tentei a televisão, não dá certo. Aí, comecei a experimentar os livros. Isso tem
me aliviado. Eu acho que é a minha sede de liberdade que faz isso. Meu pai tenta
conversar comigo, acha que eu faço de propósito, mas não é. Eu queria muito ter
uma casinha e ter uma família pra mim”. (grifos meus)

Petit (2013) reconhece o ato de ler como uma metáfora da descoberta, do


deslocamento em meio a inúmeras surpresas, escrituras e geografias, que vai se construindo
e nomeando, ao mesmo que que se constitui e nomeia. A aluna Bruna, ao relatar que os
livros provocam um alívio em certa medida, vai ao encontro do pensar da autora quando
revela que ler “elabora um espaço de liberdade, a partir do qual podem dar sentido a suas
vidas, e encontrar, ou voltar a encontrar, a energia para escapar dos impasses nos quais eles
se sentem encurralados”. (p.31)
Prossegui com a entrevista tentando consolidar a questão da leitura. Sobre os livros
falou que estava adquirindo o hábito e o gosto aos poucos com os textos do Clube de
leitura. Disse que ainda estranhava a questão de ficar em círculo, ainda mais com os
professores juntos. Sobre ler no computador, ela disse que o seu pai tinha tomado seu
aparelho como punição por uma briga, mas que via mais vídeos pela rede. Bruna cursava o
6º ano do Ensino Fundamental. Destacou a contribuição mais significativa do projeto para
ela:
“Eu ainda acho um pouco estranho porque eu tô mais acostumada a ficar sozinha.
Mas isso me ajuda a falar mais. E agora eu já estou lendo um pouco mais e
entendo melhor o que eles estão dizendo. Eu faço coleção de leituras e anoto
no meu caderno quantos livros eu li. Aqui na escola as pessoas não acreditam
muito na minha vida em casa. Hoje eu procuro mais falar a verdade, pois assim as
pessoas vão confiar mais em você. Foi ali com os textos que descobri o meu
sentimento, o meu problema (o ódio) e sei que posso descobrir também outras
coisas”. (grifos meus)

99
Goulemot (2013) apresenta o termo biblioteca cultural, referindo-se ao processo de
acumulação de leituras anteriores que permite uma interação com outros saberes ao nos
depararmos com um novo texto. Algo que influenciará o sentido constituído, firmando uma
espécie de acordo entre as representações adquiridas e os códigos admitidos entre o leitor e
o escrito. Para ele “ler será, portanto, fazer emergir a biblioteca vivida, quer dizer, a
memória das leituras anteriores e de dados culturais. É raro que leiamos o desconhecido ”
(p.113).
Essas associações foram perceptíveis, não apenas na aluna Bruna, quanto na maioria
dos alunos. Antecipando algumas conclusões, o trato com o texto no trabalho com as rodas
de leitura oportunizou o movimento da palavra. Os efeitos produzidos a partir daí tornam-se
irrestritos. Alguns são possíveis mensurar, estabelecer análises comparativas com o aporte
teórico, outros permaneceram silenciados e se manifestarão ou não nas relações cotidianas
de cada um. O fato que o grande ganho do projeto residiu na oportunidade. Como ponderou
Garcia (2003) na análise do trabalho com rodas de leitura:

Não estou buscando uma fórmula mágica que dê conta dos problemas que
envolvem as complexas questões de aquisição do conhecimento, mesmo porque
nem sempre a dinâmica da roda dá certo. Textos são rejeitados, os debates nem
sempre se sucedem na medida em que, na minha opinião, seriam mais produtivos;
há sempre o que “fala demais” e o que “fala de menos”, sendo difícil coordenar o
acesso democrático da palavra a todos. Mas mesmo com os problemas que
resultam de qualquer prática educativa, o saldo que tenho obtido é positivo.
(p.06)

O que se percebeu é que a vivência da escuta ou da leitura dos textos ajudaram a


despertar regiões silenciadas, que geralmente no cotidiano escolar, em meio a tantas
demandas curriculares, não há espaço para se apresentarem. Quando compartilhadas
tornam-se narrativas passíveis de serem recompostas. Para Petit, “não importa o meio onde
vivemos e a cultura que nos viu nascer, precisamos de mediações, de representações, de
figurações simbólicas para sair do caos, seja ele exterior ou interior. O que está em nós
precisa primeiro procurar uma expressão exterior, e por vias indiretas, para que possamos
nos instalar em nós mesmos” (2010, p.215).
É ingênuo considerar que a leitura por si só seja suficiente para fornecer tais
representações e reestabelecer o ajuste de nossas dramas e emoções. No entanto, os
vínculos necessários para isso podem estar elencados junto à manifestação da palavra, pois

100
na afirmação da mesma autora, “somos seres de linguagem em perpétua busca dos prazeres
da expressão” (ibid, p.115). Ainda nessa obra, Petit discorre sobre a literatura como
contribuição de “curar o olhar”. Para isso, ela transcreve um relato de Gilbert
Grandguillaume em um texto dedicado a Sherazade, onde, remetido ao enredo da história,
lembrou que o rei recordava sempre à lembrança traumática: a traição da esposa. Por meio
da divisão das noites, a contadora permitiu a reintrodução do tempo. A sua voz proferindo a
narrativa produziu nele o esquecimento da percepção de uma desgraça, desvinculando-o da
visão do seu drama. “A narração vai opor essa visão obsessiva do rei à pluralidade das
figuras que engendram em nós os mil pequenos detalhes nos quais a nossa visão de mundo
se apoia”. (ibid, p. 101)
Yunes (1995, p.187) explica que há um prazer na informação obtida. Uma sensação
de mundo mais amplo que a leitura pode trazer, mesmo numa sociedade eletrônica onde
muitas vezes o visual tende a substituir o verbal. Para ela, é preciso reinventar a leitura.
Consolidar a percepção de que não lemos apenas palavras sequenciais, mas termos que se
negam, se contradizem, se comunicam, se associam e negociam significações. “É preciso,
portanto, insistir-se sobre o que há de criador e de distintivo na leitura”. (CHARTIER,
2001, p.242)
A literatura ajuda a dar forma aos lugares onde viver, a se lançar e abrir caminho.
Página e país têm a mesma etimologia. [...] As obras literárias esbanjam
paisagens sem conta incitando a cada um a compor sua própria geografia”.
(PETIT 2010, p.93-94)

Esses trajetos evocados pelo Clube de leitura eram dotados de característica


culturais, educativas e sobretudo políticas, pois operaram a tomada de consciência de si e
dos outros e o redimensionamento das fronteiras sociais conformadas pelo poder vigente.

4.6 – O LEITOR E SUAS TECNOLOGIAS – APARATOS DIGITAIS COMO


FERRAMENTAS: ENTRE REDES E PAREDES

Como um dos objetivos da pesquisa, mantive a ideia de investigar a identificação


dos hábitos de leitura dos jovens na internet, bem como a influência desse suporte
tecnológico na leitura de textos literários. Nesse caminho, interessava a esse estudo elaborar
uma ilustração do comportamento do leitor atual com a manipulação das mídias digitais,

101
tendo em vista o impacto de crescimento das mesmas nas últimas décadas, o qual afetou
diretamente a forma de difundir e de obter informações, sobretudo junto ao público juvenil.
Estamos imersos em uma sociedade onde há muito os processos manuais foram
substituídos pela automação, em uma crescente e galopante ascensão das tecnologias, que,
em grande parte, facilita a vida da humanidade, sendo a cada momento reformulada para
melhor atender suas necessidades e demandas. As discussões sobre ler em suportes
impressos e/ou eletrônicos ainda provocam divergências entre educadores, que, em muitos
casos, consideram a manipulação dos aparatos tecnológicos nos ambientes escolares como
elementos dispersivos do pensamento. No entanto, a escola não pode se manter refratária a
esse processo, pois a figura do leitor virtual é uma realidade premente. Assim sendo,
podemos contribuir para a preparação mais produtiva de um aluno capacitado a interagir
com essa revolução na estrutura e na forma de ler a que se refere Chartier (1998).
Indo ao encontro dessa consideração, Lévy (1999, p.15) afirma:
A nova universalidade não depende mais exclusivamente da autossuficiência dos
textos, de uma fixação e de uma independência de significações. Ela se constrói e
se estende por meio da interconexão das mensagens entre si, por meio da sua
vinculação permanente com as comunidades virtuais em criação, que lhe dão
sentidos variados em uma renovação permanente.

As formas de interações humanas foram afetadas pelo uso que se faz das tecnologias
que permeiam o nosso cotidiano, tornando grande parte das nossas ações informatizadas.
No frenesi das novidades que foram aparecendo e das quais nos apoderamos rapidamente,
nossa forma de viver foi se alterando. Hoje aprendemos maneiras diferentes de fazermos o
que sempre fizemos. Mudaram as coisas, o cotidiano e as maneiras das pessoas se
relacionarem.
Não estranhamos mais palavras como chat, software, hardware, Messenger e
outras, mesmo não fazendo parte do nosso idioma. Mesmo sendo o computador um canal
de comunicação dos mais acessados, atualmente os smartphones (celulares com
características similares às do computador) é acessório quase que obrigatório na interação e
comunicação das pessoas e as redes sociais, elemento indispensável de interação para
muitos.
Em termos do trato com a literatura, a tecnologia permite o acesso a textos de
gêneros diversos. Inegável que a manipulação das mídias digitais pode condicionar e
influenciar os processos cognitivos e discursivos dos educandos, no entanto a introdução de

102
novas formas de leitura sugestionada por ela, não deve romper nem desqualificar o suporte
impresso. Nesse estudo, necessariamente não há o desejo aprofundar ou nomear esses
efeitos da leitura sob o suporte virtual, mas perceber qual a prática leitora que os alunos
exercem ou não através dela. Isto posto, considero ainda relevante a questão de refletir a
respeito da forma com que a escola tem internalizado as ferramentas tecnológicas como
suportes pedagógicos.
No projeto do Clube de leitura, onde ocorreu a junção colaborativa dos professores,
esteve presente nesse grupo o professor Rian (nome aferido por mim), que era o docente da
sala de informática da escola. Ele tem 32 anos, é pedagogo e é a primeira escola pública em
que leciona. O segundo encontro do Clube de leitura relatado nessa pesquisa, foi
coordenado por ele. Seu trabalho é desenvolvido num espaço específico: a sala de
informática. Esse ambiente foi adaptado para tal, pois antes funcionava como sala de aula
regular. É um espaço circundado por computadores, onde os alunos aos pares ou em trio
acessam os monitores. O espaço tem aparelho de ar-condicionado, uma TV e uma estante
com alguns poucos livros. Dialogamos a respeito das suas percepções sobre a questão da
tecnologia no processo educacional escolar. Ele me contou que chegou recentemente na
escola, advindo do último concurso. Disse-me que ao ser convocado para exercer a função
estava entusiasmado, mas ao assumi-la ficou um tanto decepcionado com a questão
estrutural encontrada, que, segundo seu parecer, era insuficiente:
“Eu esperava encontrar outra realidade. Até porque o Município de Caxias é um
dos municípios mais ricos do Estado; mas a realidade aqui é outra. Os
computadores são poucos, quando funcionam. Ficam dois ou três alunos por
máquina. A internet é muito lenta e isso causa um grande transtorno. Os alunos
da escola sabem que nas suas casas, com seus aparelhos eles têm um acesso
muito melhor. Acho também que a proposta da Secretaria de Educação é um
pouco ultrapassada, pois hoje os alunos não têm somente que manipular as
máquinas, mas eles são agentes que podem criar a partir disso. É uma
concepção muito passiva que não cabe mais no mundo moderno.” (grifos
meus)

O fato de Rian julgar que a proposta pedagógica é passiva se coaduna com a


afirmação de Lévy (1999, p.157). Para esse autor, “o ciberespaço suporta tecnologias
intelectuais que ampliam, exteriorizam e modificam numerosas funções cognitivas
humanas”. De modo de que o contato com a tela pode despertar novos processos
cognitivos, novas formas de conhecimento e, no mote dessa pesquisa, novas formas de ler e
entender o mundo. Segundo o autor, com o advento do ciberespaço, o saber articula-se à

103
nova perspectiva de educação, em função das novas formas de se construir conhecimento,
que contemplam a democratização do acesso à informação, os novos estilos de
aprendizagem e a emergência da inteligência coletiva. Fatores como a grande velocidade
das inovações tecnológicas, as decorrentes mudanças no mundo do trabalho e a proliferação
de novos conhecimentos acabam por questionar os modelos tradicionais de ensino, que
enfatizam a transmissão dos saberes.
Figs. 8 e 9 - Espaço da Sala de Informática

Fonte: Registro Fotográfico realizado pelo


pesquisador.

Rian entendia que seu trabalho poderia render muito mais, no entanto ele esbarrava
nas questões estruturais tanto físicas quanto administrativas-pedagógicas:

“Aqui na escola ainda tem a questão da proibição do uso dos celulares. Isso na
minha aula é muito ruim. Eu sei que a conexão dos alunos é muito melhor do que
a da escola. Muito melhor! Mas aqui eu tenho que manter a hierarquia, pois sou o
professor. É um papel social que não pode se inverter. Mesmo de forma precária
a escola tem que manter a sua função de apresentar o trabalho, mas é muito
difícil, pois eu sei que eles têm suportes melhores. Isso pra mim é um caos, pois
os alunos percebem que é uma ação apenas para “inglês ver”. Eu queria mais,
mas tenho os meus limites. Não posso ferir a ordem da escola com a questão
do celular, mesmo considerando que ele podia ser uma ferramenta muito
útil. Pelo menos para mim.” (grifos meus)

No Município de Duque de Caxias, a lei que proíbe o uso de aparelhos celulares nas
salas de aula é a de nº 2242, datada de 03 de abril de 2009. O projeto de lei que originou a
norma foi justificado sob a alegação de que o uso do telefone poderia desviar a atenção dos
alunos, possibilitar fraudes durante as avaliações e provocar conflitos entre professores e

104
alunos e alunos entre si, influenciando o rendimento escolar. Realizando um rastreio breve
observaremos que Leis impositivas como essa, existem também em outros municípios e
estados da Federação e restringem a capacidade dos espaços escolares de assumirem a
autonomia para organizarem suas práticas. A meu ver a inserção das tecnologias no
contexto educacional necessita ser reconhecida, e pensada, de modo a estabelecer
momentos de comunicação inteligente, através de projetos que flexibilizem as diversas vias
de interação entre educandos e educadores. Dessa forma a escola pode oportunizar a
vivência de um processo comunicacional entre seus pares, bem como tornar favorável o uso
potencial dos diversos recursos e funções dos aparelhos celulares, como, por exemplo,
atividade de captura e edição de imagem e vídeo, organização de listas musicais, agenda
virtual, recursos da tv, e/ou aplicativos com diversos serviços disponíveis e gratuitos.
Para mim, a discussão atual sobre o uso de tecnologias na escola ultrapassa as
fronteiras do “proibido” ou do “permitido”, atingindo a compreensão do que já não se pode
mais negar: o uso potencial dessas tecnologias por crianças e jovens. No momento, faz-se
necessário incorporá-las ao contexto escolar, possibilitando aos educadores e educandos
usá-las nas atividades de forma criativa em vários espaços, e não simplesmente
restringindo-as ao espaço da sala de aula. No Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-
2024, pode-se constatar que a inovação e a tecnologia são vistas como estratégias para
atingir os fins educacionais desejados, segundo disposto nas metas 5 (estratégias 5.3, 5.4 e
5.6) e 7 (estratégias 7.12 e 7.15).
A Base Nacional Comum Curricular igualmente reconhece a relevância da cultura
digital e o seu impacto nas esferas sociais. A competência geral número 2, prevê "exercitar
a curiosidade intelectual e recorrer à abordagem própria das ciências, incluindo a
investigação, a reflexão, a análise crítica, a imaginação e a criatividade, para investigar
causas, elaborar e testar hipóteses, formular e resolver problemas e criar soluções (inclusive
tecnológicas) com base nos conhecimentos das diferentes áreas".
Já a competência geral número 5, estabelece a necessidade de "compreender,
utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica,
significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se
comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas
e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva". Assim sendo, a restrição é no

105
mínimo paradoxal e deveria conceder ao Projeto Político Pedagógico de cada escola a
liberdade de definir estratégias, para a incorporação das tecnologias móveis como recurso
pedagógico.
Perguntei a Rian se ele conseguiria mensurar os usos que os alunos faziam dos
computadores e os objetivos dos seus acessos.
“Eu acredito que os computadores para esses jovens são mais uma fonte de
entretenimento e, às vezes, de pesquisa. Eles falam muito dos vídeos, das séries.
Acredito que a questão literária se resuma a isso, no máximo. Aqui nas aulas eu
procuro estabelecer uma utilidade mais produtiva com as redes sociais, os
sites. Já tentei montar blogs, fazer eles escreverem, mas os recursos são muito
escassos. Chega a ser ingênua a minha atuação. Mas eu preciso comunicar a
informação, seja ela qual for. Sei que é o mínimo que posso fazer. Pois nenhuma
tecnologia, pode ser superior ao humano nas relações. Eu sou pedagogo e não
posso deixar de dar esta contribuição. No Clube de leitura eu procuro ajudar de
alguma forma. Fui convidado para entrar com a parte tecnológica e acho bacana,
mas seria muito melhor se os recursos não fossem tão escassos.” (grifos meus)

O relato do professor ao revelar a preocupação em “estabelecer uma utilidade mais


produtiva com as redes” pode ser traduzido pela necessidade de educar o olhar dos alunos
para organizem uma espécie de filtro, capaz de extrair um aproveitamento mais
significativo do mundo virtual. Nesses espaços, os jovens lidam com estruturas que
incentivam comentários, compartilhamentos, troca de pareceres de forma coletiva.
Educando o olhar é possível orbitar pelas inúmeras janelas que são abertas pela tela digital
e estabelecer práticas que possam reforçar a autoestima, que estabeleçam vínculos e
estimulem mecanismos cognitivos de convivência e sociabilidade.

106
No desdobramento ainda da questão, apliquei um questionário (anexo 5) aos alunos
participantes do Clube de leitura sobre as questões que envolviam os usos dos suportes
tecnológicos. O gráfico a seguir esboçou um panorama dos tipos de informações que os
alunos do costumavam acessar na rede.

TIPO DE INFORMAÇÃO QUE BUSCA NA INTERNET


Saúde e beleza
Esporte
Lazer e viagem
Mundo dos famosos
Música e Vídeo
Educação e Pesquisa
Política
Sites de compras
Literatura

GRÁFICO 1

O gráfico não está dividido em percentuais, tendo em vista que o aluno poderia
responder mais de uma opção. Analisando o resultado onde os itens “Mundo dos famosos”
e “Música e vídeo” são indicadores mais expressivos, seguidos por “Educação e pesquisa”,
é possível validar a hipótese de usos voltados ao entretenimento, em sua maior parte, e a
questão dos estudos como fonte de coleta de dados em segundo plano, como relatado pelo
professor Rian.
O gráfico a seguir refere-se aos tipos de sites mais acessados pelos alunos.

107
TIPOS DE SITES QUE MAIS ACESSA
Redes sociais Sites de busca e Pesquisa Youtube Outros

GRÁFICO 2
Nesse gráfico, as redes sociais despontam como sites mais acessados. No entanto, o
site de busca e pesquisa continua aparecendo em segundo lugar reforçando a hipótese
anterior. O gráfico da página seguinte esboça um panorama de como os alunos lidam com
as informações que buscam na internet. Ou seja, como entretenimento ou mesmo como
pesquisa escolar, o volume de informações disponibilizadas é infindo. Assim sendo,
presume-se que se estabeleça uma avaliação crítica desses conteúdos, de modo que a
manipulação dos dados seja realizada com critérios de organização, de seletividade, de
ordenação e pertinência. O acesso apenas não garante uma interação adequada. Por essa
razão, Lévy (1999) defende que o leitor em tela precisa ser mais ativo que o leitor em
papel, já que o computador se apresenta como um “operador de potencialização da
informação”.

108
GRÁFICO 3

COMPORTAMENTO NA LEITURA E NA PESQUISA


Lê o texto das informações na íntegra
Vai direto ao ponto, pulando partes do texto
Procura por tópicos
Procura por imagens que expliquem o que procura
Procura na internet, mas prefere os livros

A partir desse prisma é possível reconhecer indicadores do comportamento dos


jovens em relação aos usos que fazem acerca da forma de leitura com as mídias digitais. O
item “procura por imagens que expliquem o que procura” revela o quanto o visual, como
comunicação mais imediata, desponta como uma questão de muita relevância para os
alunos. A imagem, sobretudo com os jovens, ainda é uma forma de comunicação muito
presente e de cunho mais instantâneo e atrativo. No tópico que trata da seleção das
informações, colocando “a leitura na íntegra do conteúdo” em segundo plano, pode
representar a consciência de uma dinâmica de leitura mais imediata e produtiva, mas por
outro lado, pode ser também o indicativo de um movimento provocado pelo imperativo do
mundo digital onde as velocidades impõem um ritmo mais acelerado. O fato é que os
critérios citados anteriormente como características desse leitor virtual, estão presentes
nesse panorama.
O quadro abaixo, trata da influência que as informações geram nos usuários da rede.
Através de uma análise é possível compreender o impacto que as informações provocam
nos educandos, alterando suas percepções e agregando novos saberes. Lévy (1999) assevera
que os desdobramentos da cibercultura estabelece uma nova relação com o saber. Explica
que a velocidade do surgimento e a renovação de sistemas estão cada vez maiores e tornam
mais dinâmica a apreensão do conhecimento.

109
UTILIDADE PRÁTICA DAS INFORMAÇÕES
Te ajudam a adquirir algum novo conhecimento
Influenciam a sua vida
Fez você mudar de opinião
Não interfere no seu modo de vida

GRÁFICO 4
O item “não interfere no seu modo de vida” aparece com um percentual mínimo,
fortalecendo a hipótese da influência consubstancial provocada pelas mídias digitais.
Durante o preenchimento dos questionários, procurei conversar de maneira informal com os
jovens sobre o modo com que utilizavam os suportes digitais. Ao indagá-los sobres os usos
que eles faziam da internet, me explicaram que a rede os aproximavam de muitos conceitos
dos conteúdos que ficavam apenas no campo da abstração. Relataram que algumas
disciplinas não tinham livro didático e as informações virtuais complementavam as
informações. Disseram-me que a forma com que os assuntos podiam ser apresentados no
computador favoreciam a compreensão, através de textos, imagens, vídeos e outros links
com outros tantos textos sobre o mesmo assunto. No entanto, um dado curioso apresentado
pelos alunos é que, apesar da internet facilitar o acesso à pesquisa, eles “confiavam” mais
nas informações dos livros impressos, ou seja, para eles a veracidade das informações
presentes nos livros era inquestionável. Quanto à questão literária, todos foram unânimes
em afirmar a preferência pelo modelo impresso.
Findada análise dos dados descritos nos formulários foi possível angariar algumas
compreensões acerca da temática dos suportes tecnológicos junto aos educandos. O
crescimento das mídias digitais e a manipulação das mesmas pelos educandos é uma
realidade cada vez mais crescente e impactam diretamente a forma de elaborar ideias, de

110
construir conhecimentos e de interpretar a realidade. Roger Chartier considera que a
“revolução do texto eletrônico”, com o surgimento das novas tecnologias digitais, modifica
não somente a técnica de reprodução dos textos, como também suas estruturas e as formas
do suporte que o comunica aos leitores (1999, p.97). O historiador francês ressalta
mudanças ditadas pela representação eletrônica dos textos:

Ela substitui a materialidade do livro pela imaterialidade de textos sem lugar


específico; às relações de contiguidade estabelecidas no objeto impresso ela opõe
a livre composição de fragmentos indefinidamente manipuláveis; à captura
imediata da totalidade da obra, tornada visível pelo objeto que a contém, ela faz
suceder a navegação de longo curso entre arquipélagos textuais sem margens,
nem limites. Essas mutações comandam, inevitavelmente, imperativamente,
novas maneiras de ler, novas relações com a escrita, novas técnicas intelectuais.
(grifos meus)

Ao considerar essa premissa das técnicas intelectuais oriundas desse suporte, a


escola pode se aproximar da questão através do seu fazer pedagógico. Já passa da hora de
abandonarmos o temor de que a internet aja apenas como elemento dispersivo ou que afaste
definitivamente os jovens da literatura. Algo que não é totalmente incogitável, tendo em
vista que os indicadores de leitura do Brasil continuam pífios e a venda de livros vem
caindo de forma vertiginosa, fechando, até mesmo, livrarias tradicionais de grande porte.
Porém, demonizar a tecnologia não favorece a reflexão. Um ponto pacífico, a meu ver, é
aproximar essas duas vertentes, respeitando suas especificidades, e promovendo um regime
colaborativo entre ambas. A tecnologia como parceira da leitura pode torna-se filtro e guia
para títulos de qualidade. Vários aplicativos, portais, blogs e programas atualmente buscam
valorizar o livro e estimular a leitura.
Um exemplo concreto é o e-book. Trata-se de uma solução tecnológica que simula a
leitura do livro em um suporte eletrônico. Essa solução permitiu minimizar o custo final do
livro, o que, por sua vez, facilitou o acesso. Outro movimento é o da venda on-line do
próprio livro impresso, algo que coloca, virtualmente, qualquer título ao alcance do leitor.
Os escritores também fazem uso da tecnologia para driblar as dificuldades do
mercado editorial. Ainda que os custos de publicação tenham caído bastante – até pelos
efeitos dessa mesma tecnologia -, eles ainda são altos e muitos escritores optam por lançar
suas obras inicialmente no formato e-book, para depois lançarem em papel. Esses mesmos
escritores ainda se aproximam dos seus leitores, por meio das redes sociais, desmitificando
sua imagem, antes sisuda e distante. Outra vertente da cooperação entre a tecnologia e a

111
literatura são conteúdos e aplicativos que buscam estimular a leitura de livros. Os sebos
virtuais, as grandes bibliotecas que podem ser acessadas entre tantos outros.
Para tanto, a tecnologia no espaço escolar é um prenúncio de múltiplas
possiblidades. As ferramentas digitais fazem parte do cotidiano pessoal de alunos e
professores, sendo necessário apenas elaborar uma interconexão com o cotidiano escolar. A
escola conectada não é aquela que tem em si vários aparatos tecnológicos, mas aquela que
os utilizam compreendendo-os como elementos de produção do conhecimento. A prática de
buscar dados, de confrontar informações, de acessar vários sites à procura de um dado
assunto, pode favorecer o potencial investigativo e pesquisador dos alunos. Uma
competência essencial no mundo moderno. No tocante ao estímulo à leitura, sobretudo
literária, os dados aqui levantados mostraram que ela ainda é incipiente. No percurso da
dinâmica tecnológica, a leitura na tela digital é mais aligeirada e seletiva. A preferência do
texto impresso quanto à questão literária é unânime. No entanto, acredito, que mesmo
constatada essa preferência pelo texto escrito em papel, os mecanismos que o mundo virtual
desenvolve, podem despertar habilidades que favorecem a leitura e a interpretação do texto
impresso. Essa manipulação pode elaborar uma espécie de consciência polivalente ou
prurilateral.
Nessa perspectiva, coloca-se Yunes ao assinalar:
O homem não pode formar uma consciência unilateral de si mesmo, nem mesmo
forjada, sem contato com o entorno ou a realidade da qual partilha. O sujeito, é
verdade, elabora subjetivamente hipóteses sobre as coisas que perscruta, que
observa. Eles não estão isolados e formulam este conhecimento em sistemas de
expressão e comunicação, as linguagens. (...) O saber se dá num processo
complexo de intercruzamentos permanente de vozes. A palavra instaura uma
visão de mundo sobre a realidade com marcas da linguagem. (1995, p.192-193)

Por fim, para a educação contemporânea as exigências e estratégias pedagógicas


devem considerar a produção de conhecimento em rede. A elaboração do pensamento, a
capacidade leitora, requer a habilidade de associar, relacionar, comparar, agrupar esquemas
de interpretação, para atuar sob esse aumento exponencial e vertiginoso da informação.
Mais do que ensinar o saber, faz-se necessário ensinar a relação com o ele, algo de valor
imensurável, sob qualquer forma de suporte.

112
4.7 - A BIBLIOTECA COMO ESPAÇO DE CONSTRUÇÃO: UMA
DISPONIBILIDADE ESSENCIAL

No percurso da pesquisa, o campo concedeu relevo a questões que deveriam ser


aprofundadas, demarcou alguns novos elementos que poderiam ser analisados e pessoas
que se apresentaram com uma função muito importante no desenvolvimento do projeto do
Clube de leitura. Uma dessas foi a bibliotecária; que eu a chamarei de Sara. Além de ser a
professora responsável de coordenar o fluxo dos alunos na biblioteca, de organizar o acervo
de mais de 7000 títulos e de dinamizar o espaço de modo que os mesmos tenham acesso às
obras, ela prestava um suporte ao trabalho dos professores da Unidade escolar,
disponibilizando os acervos novos que chegavam, propondo obras sobre determinados
temas e, particularmente, no projeto do Clube, organizava o espaço das rodas e auxiliava o
seu desenvolvimento.

Figs. 10 e 11 – Sala da Biblioteca

Fonte: Registro Fotográfico realizado pelo pesquisador.

Algo que foi identificado, numa primeira análise, foi a empatia que a bibliotecária
tinha com os alunos. Nos encontros das rodas era possível perceber a proximidade entre
eles e ela, hipótese confirmada no relato da entrevista da aluna Micaela, quando expôs que
a bibliotecária, muitas vezes, emprestou livros do seu acervo pessoal para que ela lesse.
Isso posto, eu solicitei uma conversa com a bibliotecária. Sara tem 55 anos, é casada e tem
uma filha. Ele me contou que atua na escola desde que entrou na prefeitura há 25 anos. Em

113
princípio era “professora primária regente”. Adiante, quando engravidou, viveu uma
gestação de risco. Após o parto difícil ficou licenciada por um período e quando retornou à
escola foi realocada na biblioteca em caráter de readaptação profissional. Segundo ela, no
início aquele espaço não era uma biblioteca. A proposta de incentivo à leitura era
desenvolvida por meio de uma caixa de papelão com apenas seis títulos que visitava as
salas, onde ela lia as histórias para os alunos semanalmente. Relatou que o zelo pelo
pequeno acervo era tamanho, que os livros eram encapados com papel contact para que não
sofressem nenhuma avaria. Aos poucos, com a participação de feiras e eventos e pedidos a
editoras, o acervo foi aumentando. E o trabalho foi acontecendo gradativamente.
Ao ser indagada sobre ter tido algum tipo de formação para a consolidação da
biblioteca na escola, me informou que tudo aconteceu de forma intuitiva. Para ela, o livro
foi a sua própria formação:
Era a leitura de um livro que me indicava o próximo passo. Eu era inexperiente.
Estava começando minha carreira e já estava numa situação desconfortável de ter
que estar fora da sala de aula que era o ambiente natural da minha profissão.
Então eu tive que construí um novo espaço! Eu penso que a experiência que o
contato com os livros me trouxe, me fez ser uma professora muito melhor.
Embora eu tivesse alguma intenção pré-definida, foram os livros que me
ensinaram como eu tinha que trabalhar. Hoje eu não consigo dar uma aula sem
um texto para me auxiliar. Eu aprendi que a literatura explica tudo! Eu posso
ensinar qualquer coisa para uma criança com livros. O que eu acho mais lindo é
que você pode falar de tudo, sem precisar citar o nome do problema. Esses temas
da atualidade como diversidade, feminicídio, a ética; a literatura pode traduzir
todos esses conceitos de forma colorida, de forma lúdica. Tem um livro aqui que
é muito interessante sobre o mosquito da dengue. O mosquito é o narrador e ele
procura levar o leitor a ter informações erradas sobre os cuidados com a dengue
para que ele fique vivo, mas ao final ele é desmascarado. Então é engraçado e ao
mesmo tempo informativo. Acho que tá faltando isso nos currículos. Uma espécie
de ilustração do conhecimento. Sei que nem sempre isso é possível, mas quando
acontece funciona muito”. (grifos meus)

Nessa descrição, Sara confessou que foi formada pelo trabalho com os livros. Na
possível interpretação do que foi dito é possível compreender que ela teve uma experiência
pessoal com o universo leitor, algo que pôde, mais adiante, subsidiar a sua prática. Alguns
estudos consideram que práticas de leitura estão estritamente vinculadas às apropriações do
texto pelo leitor. Esse processo pode ser desencadeado de forma coletiva, no entanto seus
efeitos são individuais e escapa a qualquer tentativa de previsibilidade ou conformidade.
Para Larrosa (2002, p.28) “a experiência tem sempre uma dimensão de incerteza que não
pode ser reduzida. Além disso, posto que não se pode antecipar o resultado, a experiência

114
não é o caminho até um objetivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, mas é
uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem “pré-ver” nem
“pré-dizer””. Chartier (2011) compartilha desse entendimento ao afirmar que as leituras
são sempre plurais e são elas que constroem de maneira diferente o sentido dos textos. O
leitor é aquele que vai sempre buscar o que é distintivo na leitura, algo que pode agir sobre
as suas estruturas mentais e através delas, se desdobrar às estruturas sociais. No caso
específico de Sara, sua experiência, certamente, a impeliu para desenvolver o seu trabalho.
Quando iniciou a proposta com uma caixa de papelão com apenas 6 títulos, indo até os
alunos, ela se elaborou como ponte para que outros pudessem ter o contato e, por
conseguinte, pudessem, igualmente, serem afetados pela experiência, algo que de outra
maneira, talvez não ocorresse.
Apropriar-se efetivamente de um texto pressupõe que a pessoa tenha tido contato
com alguém – uma pessoa próxima para quem os livros são familiares, ou um
professor, um bibliotecário, um fomentador de leitura, um amigo – que já fez com
que contos, romances, ensaios, poemas, palavras agrupadas de maneira estética,
inabitual, entrassem na sua própria experiência e que soube apresentar esses
objetos sem esquecer isso. Alguém que descontruiu o monumento, fazendo com
que encontrasse uma voz singular. (PETIT 2010, p.48)

Sara assimilou o chão da escola com o um espaço de formação para si. As suas
experiências na inter-relação com seus pares (alunos e professores) enriqueceram e
forjaram a sua prática. A escola aqui tomada como lócus, é um espaço permeado de
práticas cooperativas que oferecem condições reais que possibilitam formar e construir. No
seu caminhar ela pôde desenvolver um trabalho pedagógico que permitiu efetivamente o
crescimento mútuo dos sujeitos envolvidos no processo educativo.
No pensar de Freire:
Este é um saber fundante da prática educativa, da formação docente, o da nossa
inconclusão assumida. (...) Quando saio de casa para trabalhar com os alunos, não
tenho dúvida nenhuma de que, inacabados e conscientes do inacabamento,
abertos à procura, curiosos, “programados, mas para prender”, exercitaremos
tanto mais e melhor a nossa capacidade de aprender e de ensinar quanto mais
sujeitos e não puros objetos de processo nos façamos.” (1996, p.65)

Assumidos esses pressupostos, amplia-se a dimensão transformadora da ação


educativa onde alunos e professores crescem mutuamente, permitindo o enrijecimento de
competências humanas que favorecem a construção de uma escola democrática, orientada
sob uma prática pedagógica menos intuitiva e mais consciente e direcionada.

115
Prosseguindo nossa conversa eu parabenizei a professora pela concretização do
espaço da biblioteca iniciado por meio de uma caixa de papelão. Perguntei a ela se
conseguiria mensurar algum benefício causado por esse trabalho naquela comunidade
escolar. Ela, no entanto, retrucou a minha hipótese de concretude da proposta de trabalho,
pois segundo ela ainda falta muito a ser feito:
“Eu acho que falta aqui gente envolvida com a leitura. O espaço da biblioteca é
um espaço de resistência diária. Eu trabalho sabendo que a qualquer
momento que houver a necessidade de ter uma sala de aula a mais, será a
biblioteca a primeira a ser desmontada para isso. Isso me angustia, pois eu
acredito que o coração da escola tá aqui dentro. Precisamos de agentes. Eu me
sinto insuficiente nesse espaço. O trabalho é muito grande. A importância dele é
maior que os muros dessa escola. Sozinha eu sou não consigo. São muitos
impedimentos. Até faxina eu fiz nessa sala por falta de funcionários. Sei que não
é esse o trabalho, mas eu tenho que defender esse espaço. Aí a bronquite me
atacou!! Tinha teia de aranha, bicho, resto de comida...eu não tenho tempo”.
(grifos meus)

A ideia do espaço da biblioteca como um espaço de resistência é o tema central da


obra “A arte de ler ou como resistir à adversidade”, da antropóloga francesa Michèle Petit.
No livro, a autora apresenta experiências de leituras desenvolvidas em lugares onde a crise
é particularmente intensa (situações de guerra e violência, contextos de deslocamentos
populacionais e recessões econômicas etc.) e de acentuada deterioração das condições de
vida. Nessa investigação, ela explicita a capacidade da literatura de ajudar aos que, entram
em contato com ela, a resistirem às adversidades. Nesse sentido, defende a sua apropriação
como suporte de engajamento, na medida em que, além de aguçar a crítica, nos prepara
para ler melhor os discursos sociais. A autora esclarece que para tanto, faz-se necessário a
presença de um mediador, cuja principal função seria auxiliar na compreensão da literatura
como instrumento de organização e transformação da própria história dos leitores. São
esses mediadores culturais que criam uma “abertura psíquica”, revelando ao leitor o
universo dos livros e da literatura, elevando sua função a um patamar de valor
imponderável. Para Petit, “precisamos do outro para revelar as nossas próprias fotografias”,
ou, de modo mais incisivo, “sem o outro, não existe sujeito” (2009, p.51). Esse processo de
partilha e de interdependência mediada pelo texto pode recuperar e sustentar um sentimento
de continuidade, fortemente ameaçado atualmente, sobretudo em espaços de crise. Na
biblioteca da E.M. Zona Rural esse papel cabia à professora Sara, no seu ofício de
bibliotecária.

116
Ela revelou a sua angústia quanto à permanência do espaço da biblioteca,
explanando que o mesmo é resultado de uma adaptação, onde fora alocado, onde antes era
uma sala de aula convencional. Isso demonstrou que apesar dos avanços nas políticas
públicas voltadas ao fomento da leitura na educação, o espaço de uma biblioteca ainda não
foi internalizado totalmente como elemento indispensável ao fazer educacional.
O PNLL (Plano Nacional do Livro e da Leitura) criado pelo Decreto nº 7.559,
publicado no Diário Oficial da União em 05 de setembro de 2011, traz as seguintes
anotações:
Art. 1º O Plano Nacional do Livro e Leitura - PNLL consiste em estratégia
permanente de planejamento, apoio, articulação e referência para a execução de ações
voltadas para o fomento da leitura no País.
§ 1º São objetivos do PNLL:
I - a democratização do acesso ao livro;
II - a formação de mediadores para o incentivo à leitura;
III - a valorização institucional da leitura e o incremento de seu valor simbólico; e
IV - o desenvolvimento da economia do livro como estímulo à produção intelectual
e ao desenvolvimento da economia nacional.
Apesar de relevante enquanto política pública, o decreto não garante os espaços
adequados para o desenvolvimento de tal proposta. Os números estatísticos relativos à
quantidade de bibliotecas no país, descritos anteriormente, ainda são pífios, sobretudo nos
espaços escolares. A preocupação da bibliotecária Sara quanto ao desmonte da biblioteca
refere-se ao campo físico, porém ao refletir um pouco sobre o trabalho que desenvolveu ali
durante tantos anos e, deslocando a questão para o campo simbólico, acredito ser
impossível que isso aconteça. Os escritos instaurados em todos aqueles que tiveram
contato direto com esse trabalho, são contingências apreendidas que estarão presentes
permanentemente na vida desses alunos enquanto sujeito sociais. O espaço simbólico da
biblioteca é algo que será mantido nas relações deles consigo mesmos e com o meio. Ana
Maria Aráujo Freire (2015, p. 293) ao considerar a obra de Paulo Freire e sua relação com a
palavra discorre:
Foi pela imbricação de sentimentos, emoções, observação, intuição e razão que
ele criou a sua “leitura de mundo”, uma epistemologia, uma teoria do
conhecimento, uma compreensão crítica da educação na qual disse a sua palavra
lendo o contexto do mundo ditado pelo “texto” que seu corpo consciente lhe dizia

117
e ele “escutava” e sobre ele refletia. Daí porque Paulo entendia que a palavra
verdadeira é práxis transformadora, porque ela diz da intenção de não dizer a
palavra vazia ou perversa, oca ou inconsistente, astuta ou destruidora, mas a
palavra certa, a palavra verdadeira. (...) Dizer a palavra verdadeira, para ele, é
biografar-se. É possibilitar que sejamos sujeito da história também e saiamos da
condição de apenas objeto da sociedade. (grifos meus)

Biografar-se é perceber no caótico um sentido, é experimentar o fantástico, é


desrealizar e vivificar: “aqui e ali o mundo se explica. A palavra instaura o mundo.”
(YUNES 1995, p.189).
Ler não nos separa do mundo. Somos introduzidos nele de uma maneira
diferente. O mais íntimo tem a ver com o mais universal e isso modifica a relação
com os outros. (...) Pode ajudar a elaborar uma identidade em que não se está
reduzida apenas aos laços de pertencimentos, mesmo quando se tem orgulho
deles, e levar à construção de uma identidade plural, mais flexível, mais
adaptável, aberta ao jogo e às mudanças. (PETIT 2013, p. 55)

Esse ganho uma vez elaborado, jamais se perde. O espaço da interlocução está
potencialmente aberto e nos faz assumir a autonomia de fazer a opção sobre qual concepção
de valor queremos que ilumine a nossa existência. No diálogo com a bibliotecária, insisti
para que ela mensurasse se houve algum avanço no trato com a leitura por parte dos alunos
e professores. Ela me disse que atualmente considera que os professores são mais
conscientes da importância desse trabalho de fomento à formação do leitor, que o governo
federal manda mais acervo, que existem mais programas de incentivo à leitura e que os
alunos valorizam e reconhecem mais a importância do espaço da biblioteca. Porém esse
trabalho, na sua análise, ainda é um “acessório à parte” e que não está totalmente integrado
aos objetivos da escola, de modo que, “tem a impressão de que quando se aposentar, de
repente ele não aconteça mais”.
Nesse relato, Sara deixou transparecer a sua intensa ligação com o trabalho que
desenvolve. Além da questão técnica e profissional, pude perceber uma relação afetiva e
apaixonada por essa ação. Indaguei a ela qual era a sua experiência com a leitura e qual era
a sua compreensão sobre a relevância desse trabalho:
“Eu acho que professor tem que ser exemplo. Eu procuro despertar o gostar de
ler dos alunos, porque sei que isso pode nos aparar em muitos momentos da vida.
Como foi comigo que tive também uma infância pobre. O meu objetivo é esse!
Eu procuro incentivá-los assim como eu faço com a minha filha que hoje tem 18
anos. Ler te coloca no mundo. Um artigo, uma história, uma crônica, quando
você gosta de ler aquilo vai te enriquecer, vai te servir em algum momento. Uma
ideia apenas no pensamento é só uma ideia, mas quando compartilhada ela
passa a existir. A pessoa muda. A gente começa a se policiar em relação à outra
pessoa, a se colocar no lugar do outro”. (grifos meus)

118
Ao reiterar a questão do professor-exemplo e da utilidade da leitura partilhada, Sara
esboçou uma questão crucial para o trabalho de formação do leitor: o viés de referência.
Dominar a leitura, historicamente sempre foi sinônimo de exercer o poder. Lévi-Strauss
(1995 apud Petit 2009, p. 25) assevera:
A função primária da comunicação escrita foi favorecer a servidão. O emprego da
escrita com fins desinteressados, visando extrair-lhe satisfações intelectuais e
estéticas, é um resultado secundário, se é que não se resume, no mais das vezes, a
um meio para reforçar, justificar ou dissimular o outro.
Para ele, a leitura permite o prestígio entre os seus semelhantes e isso, por muito
tempo incutiu o medo, incitou a limitação do movimento e fomentou o “colocar cada um no
seu lugar”. Alberto Manguel, na obra “Uma história de leitura” nos lembra que tanto o
chicote quanto o livro, foram durante séculos, o símbolo daquele que ensinava a ler; em
outras palavras, o professor. Essa ordem simbólica instituída é algo que necessita ser
ressignificada. A referência que um trabalho com a formação do leitor precisa elaborar é
uma referência de aproximação. Barthes destaca a profunda ligação entre a língua e o
poder: “assim que ela é proferida, seja na intimidade mais profunda do sujeito, a língua
entra a serviço de um poder”. No entanto, observa também: “ (...) só nos resta trapacear
com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico
que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor permanente da linguagem eu a
chamo, quanto a mim: literatura” (1992, p. 16). O autor sugere, por meio desse pensamento,
que a literatura remodele os papéis, colocando alunos e professores como aprendizes. O
professor atualmente, como exemplo, deve desenvolver sua competência profissional de
forma articulada.
O domínio de suas ações docentes não está limitado a um campo restrito do
conhecimento, que somente ele possui legitimidade acadêmica para acessar. Para Schön
(2000), o exercício de uma profissão evoca um conhecimento muito mais complexo, que
recorre a dimensões que não podem ser representadas por conhecimento proposicional, mas
que é construído e desenvolvido com base na experiência. Para tal, o profissional pode
beneficiar-se de conhecimentos de cunho acadêmico, mas requer claramente outros
recursos. O conhecimento profissional resulta de um acumular de experiência num domínio
bem definido e é validado pela capacidade de resposta que o profissional e a sua
comunidade conferem a problemas que surgem no dia-a-dia. Este aspecto é essencial para

119
Schön, que usa o termo “conhecimento-em-ação” para descrever o conhecimento que está
embebido na ação competente de um profissional, avançando também com a ideia de
“epistemologia da prática” para valorizar o papel da experiência como geradora de
conhecimento. O professor mais do que ensina, ele instrui.
O fluxo desse movimento altera as relações que os alunos elaboram entre si, pois
num ambiente de troca (professor e aluno) ele sente-se mais confiante em partilhar o seu
olhar, o seu entendimento também com seus pares. O exercício do falar, do escutar são
condicionamentos essenciais ao fortalecimento do hábito da leitura. A possibilidade de
interação com os colegas produzindo leituras compartilhadas favorece a construção de uma
comunidade de leitores. Por conseguinte, essas comunidades, que se formam nas salas de
aulas, se expandem para fora dos muros escolares num diálogo direto com a realidade
social circundante.
Valendo-me da citação da importância de compartilhar ideias da professora Sara,
trouxe para a nossa conversa o projeto do Clube de leitura. Quis saber a sua avaliação sobre
a proposta desenvolvida pela professora Vera:
“Pra mim a Vera é louca (risos)!! Como uma pessoa com tanta coisa pra fazer em
sala de aula, ainda vai arrumar mais uma tarefa? Estou brincando! O trabalho é
magnífico! É tão grande e tão simples. Como a leitura é! A roda de leitura
trouxe um novo gás para a biblioteca, os alunos visitam mais esse espaço.
Parecem que amadureceram. Tem momentos que eu me sinto numa
daquelas bibliotecas universitárias, sisudas, sabe?! É muito bonito de ver a
relação deles entre si. O respeito com a fala do outro. As referências com os
acontecimentos do cotidiano. Abre muito a mente e muda a postura enquanto
pessoa. Isso para o bem e também para o mal, viu?!. Minha filha, por exemplo,
está militando politicamente demais. Eu peço a ela calma. Ela tá angustiada. Acha
que tá tudo errado. Mas eu sei que é a leitura que faz isso. A tal leitura de
mundo. Por isso que o leitor deve diversificar o que ler: ler artigo, ler romance,
ler poesia pra amenizar o sofrimento de se apropriar do saber. É um pouco doído,
mas é necessário, pois a gente passa a compreender melhor a realidade...aquilo
que também não está dito ou escrito”. (grifos meus)

Nesse relato a bibliotecária Sara mensurou alguns aspectos positivos do trabalho


com rodas de leitura. Antecipando uma avaliação do projeto na análise da descrição feita
foi possível reconhecer o quanto a proposta possibilitou o crescimento do grupo atendido
pelo projeto, principalmente no trato que foi elaborado com o espaço da biblioteca e com o
relacionamento com os outros alunos. Nomear os efeitos da partilha de textos em rodas de
leitura, vem sendo descritos por outros tantos estudos. Para Garcia (2003) o trabalho com a
literatura tem inter-relação com a construção da identidade23. Segundo o autor, isso ocorre

120
por meio da partilha e nas redes de significados enunciadas dos pontos de vista do outro. As
narrativas são também formas de autoria. Nesse trabalho, elas promovem autonomia, a
muitos sonegada, sobretudo nas camadas populares onde a premissa do “não saber falar”
demarca a diferença sobre alguém que “sabe falar”, porque detém a fala legítima. O
trabalho com as rodas enfatiza “o desejo da emergência da fala produzindo autoestima pela
reconstituição da identidade fragmentada: de um lado, a negação de si, introjetada
socialmente; de outro, a busca do eu a ser reconstruído” (p.76), que pode ocorrer por meio
das sociabilidades oportunizadas pelo texto. Segundo ele, é legítima a consideração sobre
os benefícios dessa prática, sobretudo se pensada no espaço escolar: local do “instituído”,
que se reproduz através de um saber instrumental. O desafio que se apresenta é dividir a
palavra com o outro, concedendo-lhe ferramenta para reconstrução de si mesmo.
Petit (2010) ao estabelecer uma análise sobre o trabalho com a promoção da leitura,
revela que esse movimento, ao passo que reconduz a uma inserção social, nos desperta
igualmente a nossa retirada do cotidiano material. Nesse lugar é possível distanciar-se para
respirar, para preservar a possibilidade de um devaneio, de um pensamento. Para ela esse
espaço é fundamental, sobretudo para os que vivem num ambiente caótico. O fato é que, de
um modo ou de outro, essa atividade compartilhada convoca uma atividade de
simbolização:
Ali, os leitores se sentem vinculados aos outros – aos personagens, ao autor, aos
que leram o livro, que leram juntos ou que farão um dia -, descobrindo que
dividem as mesmas emoções, as mesmas confusões; por outro lado, eles se veem
separados, diferente daquilo que os cerca, capazes de pensar independemente. (...)
É um espaço no qual se pode evoluir. É evidente que o mundo não se vê
reparados os seus dramas, suas desigualdades, mas uma margem de manobra se
anuncia. (p.83)

Seria possível ainda ponderar, como efeito das rodas o gesto de aprender a ler, ou
melhor dizendo de reaprender a ler. Essa assertiva dialoga plenamente com o sentido de
leitura de mundo na concepção freiriana, que se explica, não por uma manipulação
mecânica de palavras, mas através de uma relação dinâmica que vincula linguagem e

23
A identidade está ligada à noção de permanência que escapa às mudanças que possam afetar o
sujeito no decorrer do tempo. Em segundo lugar, assegura a existência do que está separado, permitindo
circunscrever a unidade indispensável para fazer distinções. Por último, é uma das relações possíveis entre
dois elementos, por meio da qual se estabelece a semelhança absoluta que reina entre eles, permitindo
reconhecê-los como idênticos. Estas três características são solidárias: constância, unidade e reconhecimento
do mesmo. (Nota do autor in DAUSTER, Tania; FERREIRA, Lucelena (orgs.). Por que ler? Perspectivas
culturais do ensino da leitura. Rio de Janeiro: Lamparina, 2010.)

121
realidade, que quanto mais experimentada, mais aumentada fica na capacidade de ser
percebida; os discursos sociais ficam expostos a essa percepção.
Sara ponderou sobre a angústia sentida por sua filha a respeito dos problemas
sociais contemporâneos ocasionados, segundo ela, pelas leituras: prognóstico recorrente a
muitos outros leitores. Os lugares do texto, da leitura, animam o corpo, o pensamento e
podem, em certa medida, ocasionar o que Petit (2010) classificou de “infortúnio mental”.
No entanto, povoando o imaginário com as imagens produzidas pelo universo literário, o
leitor pode se sentir bem mais preparado para esse enfrentamento.
Expus à Sara o relato da aluna Micaela que versou sobre os momentos em que a
bibliotecária trouxe o seu acervo literário pessoal para o emprestá-lo aos alunos. Ela fez as
suas considerações a respeito:
“O aluno chega aqui e não sabe o que quer. Aí eu logo pergunto: você gosta de
quê? Mas ele não sabe. Ele não sabe saber. Isso é angustiante. Mas ainda quando
eu olho em volta eu percebo que eu não tenho ferramentas suficientes. Aí eu vou
buscar onde tem. Minha filha vive comprando livros. Esses da moda! Aí eu pego
e trago, porque sei que vai despertar o interesse. O livro precisa girar. O professor
tem mania de entulhar tudo. A gente tem que deixar o livro andar. É tão bacana
quando um aluno recebe o livro que você tá emprestando que tem o seu nome ou
o nome de alguém da sua família. Eu percebo que se estabelece um elo de
afetividade também. É como se eu dissesse pra ele que eu confio nele. Confio que
ele vai cuidar de algo que é meu. A partir daí, quando ele volta pra me entregar,
eu sei que alguns nem leram os livros, mas dá o prazo e precisa devolver. Às
vezes não leu, porque não teve tempo ou porque não gostou, mas eles me
devolvem agradecidos. Eu finjo que não percebo. O que passa acontecer a partir
daí é que esse aluno começa a frequentar a biblioteca. Eu sinto que o livro
cumpriu a sua função. A partir daí até mesmo um determinado gosto do aluno por
determinada leitura passa a ser construído”.

Dessa vez, desconsiderei a possibilidade de grifar algum trecho do exposto, pois


pensei em fazê-lo na íntegra. Sara retratou tantas nuances caras para mim, na tradução do
que tenho chamado de “chão da escola” que seria impossível demarcar apenas alguma
passagem. O relato da bibliotecária, na maioria dos seus ditos, são fotogramas de uma
realidade permeada pela palavra literária, portanto, rica de detalhes, de reconstruções, de
apropriações singulares. Até mesmo quando o livro escapa (“eu sei que alguns nem leram
os livros”), ele cumpre a sua função de estabelecer pontes (“eles me devolvem
agradecidos/esse aluno começa a frequentar a biblioteca”). E esse recorte ocorre de forma
lúcida sob o olhar de Sara, ou melhor do cotidiano dela. Um cotidiano com todas as
características que o termo acomoda: de rotina, de trabalho, de quefazeres, de cansaços, de
interditos, de dúvidas e de certezas. Um cotidiano escolar com todas as engrenagens

122
passíveis do seu contexto, traduzidos pelo olhar que poderia estar “acostumado” da
bibliotecária, no entanto ainda consegue a tradução perspicaz do que vê.
Ponderar acerca desse regime concreto e extrair dele subjetividades me reportou aos
escritos de Certeau, no seu cotidiano traduzido nas “artes de fazer”. Na obra, ele apresenta
práticas cotidianas realizadas por sujeitos nas suas interações sociais. Para ele, apesar dos
ruídos advindos do ambiente externo, interessa perceber a individualidade de cada sujeito
onde se organiza a sua pluralidade. As práticas cotidianas, traduzidas na forma do interagir,
do andar, do organizar, do falar, como ações costumeiras, que poderiam passar
despercebidas, são, sob a ótica sensível do autor, reinvenção do cotidiano, traduzidas nas
“artes do fazer”, que elaboram lugares singulares de liberdade.
Os relatos de que se compõe essa obra pretendem narrar práticas comuns.
Introduzi-las com as experiências particulares, as frequentações, as solidariedades
e as lutas que organizam o espaço onde essas narrações vão abrindo um caminho,
significará delimitar um campo. Com isso, será preciso igualmente uma “maneira
de caminhar”, que pertence, aliás, às “maneiras de fazer” de que aqui se trata.
Para ler e escrever a cultura ordinária, é mister reaprender operações comuns e
fazer da análise uma variante de seu objeto (CERTEAU 2001, p.35).

Há aproximações entre o olhar de Sara e Certeau. Aproximações que trazem no seu


cerne o convite para sair do tempo, do espaço cotidiano para entrar num mundo mais
amplo: “para conhecer as soluções que outros deram para o problema de estar de passagem
pela terra. Para habitar o mundo poeticamente e não apenas estar adaptado ou inadaptado a
um universo produtivista” (PETIT 2013, p. 144). Ao dizer: “o livro precisa girar!”, Sara
concedeu a ele a sua finalidade primeira segundo alguns escritores: a errância, intuito
essencial à sua existência.
Trazendo de volta uma questão explanada por Sara, comentei acerca da citação feita
por ela a respeito da forma com que os livros estavam mexendo com a maneira da sua filha
de entender o mundo. Num paralelo com as questões atuais relatei que, em alguns espaços,
o debate atual acerca do que chamam de “doutrinação” no espaço escolar é recorrente, ou
seja, a ideia de que o professor, além do seu suposto papel de ensinar, tenta incutir
ideologias nos alunos através de suas práticas docentes. Perguntei se ela conceberia o
trabalho de formação do leitor desvencilhado de um viés ideológico:
“Eu acredito que sim! Mas não o meu! Eu sempre dou o meu recadinho. (risos)
Eu não consigo! Eu acredito que tudo tem um por quê. Pra mim, pensando
melhor, o que eu faço é mais do que um recadinho: é um estímulo à reflexão. O
exercício do pensamento. A leitura tem que colocar o pensamento em
movimento! Isso é muito importante, sobretudo pra esses alunos que pisam na

123
lama. Esse espaço da biblioteca é um espaço de reflexão. Podem chamar isso de
doutrinação ou do que quiserem, mas é um caminho que a literatura me apontou.
Tem um livro que se chama “A pipa e a flor” de Rubem Alves. Ele fala sobre a
questão da liberdade. Conta um romance entre uma flor e uma pipa. Uma relação
impossível, pois a pipa quer voar e a flor está fincada no chão. Eu não dava nada
por esse livro, mas quando eu o apresentei na sala foi um acontecimento. Falar de
liberdade, algo que deveria ser um princípio básico de qualquer ser humano, é
algo que precisa ser refletido numa comunidade cerceada pelo tráfico, pela falta
de oportunidade, de estrutura!!! Nós somos seres sociais e os espaços sociais
devem ser espaços onde o pensamento aconteça. Isso é doutrinação? Não sei.
Não me interessa. O que interessa é que essa reflexão foi oportunizada por
um texto. O livro me dá mais segurança de dialogar, de ampliar o
entendimento do meu conteúdo, do meu planejamento. Essa é a minha
bandeira. Se tiram isso da escola eu acho que a sociedade não tem futuro”.
(grifos meus)
Sara, ao revelar que “dá sempre um recadinho” com o trabalho que desenvolve de
promoção da leitura, vai ao encontro da concepção freiriana de educação, que pressupõe o
processo educativo como instrumento de emancipação e libertação das amarras sociais que
nos oprimem. Um gesto que só se torna válido à medida que oportuniza a democratização
do processo com participação crítica e livre de alunos e professores. O que Freire entende
por práxis educativa, como já enunciada, é a reflexão dos homens sobre a realidade para
transformá-la: “a práxis constitui a razão nova da consciência oprimida e que a revolução,
que inaugura o momento histórico desta razão, não pode encontrar viabilidade fora dos
níveis de consciência oprimida” (FREIRE 2005, p.53). O processo pedagógico sob esse
mote atenderá a um mecanismo progressivo e revolucionário, onde a consciência das
classes populares acontecerá por meio de uma prática pautada no diálogo e na consciência
crítica mediada pelo professor.
A responsabilidade do professor, de que às vezes, não nos damos conta, é sempre
grande. A natureza mesma de sua prática eminentemente formadora, sublinha a
maneira como a realiza. Sua presença na sala é de tal maneira exemplar que
nenhum professor ou professora escapa ao juízo que dele ou dela fazem os
alunos. E o pior talvez dos juízos é o que se expressa na “falta” de juízo. O pior
juízo é o que considera o professor uma ausência na sala. (FREIRE 1996, p. 73 -
grifos do autor)

Nesse sentido, a “ausência” seria pontuada na negação da reflexão, no amordaçar


dos dizeres pedagógicos em busca da elaboração da consciência crítica. Para Freire, o
conceito da educação problematizadora tem no diálogo o seu aspecto substancial: “o
diálogo freireano vai à raiz mais profunda das coisas para explicar, temporária e
criticamente, a realidade concreta. O diálogo freireano prioriza a pergunta que faz pensar,
que nos coloca em dúvida e não a resposta pronta, espontânea, “neutra”, sem reflexão

124
(FREIRE A.M. 2015, p.295 - grifos da autora). Sara compreendeu a sua prática alicerçada
nesse princípio. Nesse caminho, o livro promovia a interlocução entre os temas, os debates,
as reflexões propostas e ilustrava conceitos que julgava serem importantes dentro da
realidade que lecionava.
A respeito da sua formação acadêmica, a bibliotecária me contou que cursou
Pedagogia e fez a pós-graduação latu sensu em literatura infanto-juvenil. Para ela, os
estudos acadêmicos foram importantes, no entanto foi o cotidiano escolar que a formou
verdadeiramente. Foram os entraves do sistema que despertaram suas potencialidades. A
teoria a deixou mais atenta, no entanto, nada como o dia a dia da escola para estruturar esse
conhecimento. No decorrer da nossa conversa eu pontuei que a sua prática ligada à
formação do leitor estava muito vinculada ao suporte do livro impresso. A partir dessa
constatação, questionei o seu entendimento a respeito dos suportes tecnológicos na
atualidade. Solicitei que ponderasse a respeito do leitor e suas possíveis leituras através
desses mecanismos digitais:
“O leitor para mim será leitor em qualquer circunstância. A leitura é parte
dele, do seu entendimento de si e do mundo. Com a tecnologia essa relação
continua a existir, porém acredito que de forma diferente. Por exemplo, aqui na
escola, os alunos falam muito das séries que acompanham na internet. É uma
febre, pois aparece sempre alguma que está na moda. “A casa de papel” era o
grande comentário das rodas. Isso também é uma forma de narrativa. Como eu
posso desconsiderar? É interessante ver as formas como eles conversam a
respeito disso, a identificação com alguns personagens, os desfechos dos
episódios. É tudo mais imediato, tem uma velocidade diferente. Mas eu acredito
que o livro jamais será desprezado. Um livro não precisa de energia, não
descarrega a bateria, pelo contrário ele é a própria bateria. Eu acredito
muito nisso. Livro é livro”. (grifos meus)

De forma conclusiva, Sara disferiu uma resposta que talvez pudesse atender a
contento à questão da discussão da morte do livro frente aos aparatos tecnológicos ao
afirmar que: “o leitor é leitor em qualquer circunstância”. O ler é a sua forma de
compreensão e de relação, em qualquer lugar, sob qualquer suporte. Considerando a
influência digital sobre os alunos, ela ainda dá relevo a um entendimento pertinente ao citar
as séries e seus enredos como narrativas passíveis de interpretação. A vacilação didática
perante as formas de aproveitamento desse recurso torna-se menor mediante ao exposto,
visto que o recurso das narrativas na rede e sua inserção no cotidiano dos alunos, pode
subsidiar análises presentes nos planejamentos pedagógicos formais. Inegável que os

125
recursos linguísticos nessa concepção devem ser repensados e redimensionados. Os novos
enfoques, propõem dinâmicas mais ativas e comunicativas.
Quanto ao livro, Sara apresentou um parecer igualmente revelador. Elegeu-o
também como uma tecnologia: “livro é livro!”. O que se expõe em toda a análise é que a
formação da capacidade leitora, em todos os matizes aqui apresentados, é uma competência
que deve ser constituída sobre vários estímulos, com o exercício da capacidade
interpretativa, com negociação de sentido por meio da partilha, da escuta e, sobretudo, por
meio de uma concepção de educação que privilegie o diálogo e a democratização do saber.
Nesse caminho o professor pode mediar esse processo, instrumentalizando a elaboração dos
discursos, dos quais não acontecem num vazio. Demanda de percepções, de enunciados, de
referências anteriores para que estejam apoiados e organizados adequadamente numa lógica
comunicativa precisa e consciente. A bibliotecária Sara lançou mão da sua força produtiva
em prol da circulação livre do pensamento e da palavra no espaço escolar; algo de valor
imponderável.

126
5. A LEITURA, A ESCOLA E OS LEITORES – UM DIÁLOGO POSSÍVEL

No latim, legere, que deu origem ao vocábulo ler, significa colher, recolher, juntar.
No mundo contemporâneo essa habilidade permite múltiplas possibilidades de
interpretação das informações que circulam no cotidiano e das concepções que as
sustentam. Indiscutivelmente, a leitura representa uma atividade ímpar na vida do
indivíduo. Através dela podemos compreender a realidade e agir criticamente sobre ela. A
partir daí, faz-se necessária a indagação: onde nasceriam os estímulos à leitura? Alguns
garantem que o apreço pelo livro é um hábito que se consolida na infância numa prática
cotidiana, sendo os pais os grandes incentivadores, fundamentalmente, em casa. Um
depoimento do escritor Rogério Andrade Barbosa (in GARCIA e DAUSTER 2000, p. 133-
134) reforça esta consideração:

Cresci rodeado de livros. Meu pai é professor e escritor. Tem mais de cem livros
publicados, entre eles, gramáticas, dicionários e livros didáticos. É professor de
Latim, Português e Francês. Hoje ele tem oitenta anos e se relaciona muito com
os livros. Minha mãe, embora apenas com o quarto ano primário, lê muito, talvez
por influência do meu pai e de todos aqueles livros lá em casa. Os dois eram
ótimos contadores de histórias. Muito antes de eu aprender a ler, eles já
inventavam personagens. (...) Depois eu fui lendo histórias. Sempre fui de ler de
tudo. (...) Eu lia tudo o que havia na biblioteca do meu pai.

Mesmo considerando a relevância desta atuação familiar, acredito que a escola é


um espaço privilegiado para a formação do leitor, sobretudo nas classes populares. É

127
possível que se aprenda ler e escrever fora do espaço escolar, mas é ali que os
conhecimentos próprios da produção intelectual se organizam, se agrupam e se expandem,
sobretudo em temas que escapam ao senso comum. A escola provê de dispositivos variados
a esse objetivo, além de uma grande clientela, o que torna sua disseminação mais
abrangente, como revela o escritor Luiz Antônio Aguiar ao considerar que
a escola tem um papel importante na formação do leitor, porque em casa não se
forma mais leitores. Não há tempo, não existe o hábito, o gesto. Todo este
prejuízo da não-leitura, hoje em dia, está dentro de casa. Então tem que ter algum
lugar onde um sujeito possa pegar um livro. Ler. Tem que ser na escola. Talvez
com outros procedimentos. (ibid, p. 90)

O fato de o autor sinalizar sobre a importância de dar às práticas leitoras no


ambiente escolar outros procedimentos, certamente está respaldado na verificação de que
atualmente, de uma forma geral, há uma espécie de precariedade e ineficiência dos sistemas
de ensino no que concerne a essa formação, de modo que cada vez mais jovens e crianças
se desestimulam na aventura da leitura de livros, muitas vezes restrita à prova e fichamento,
evidenciando um despreparo funcional das práticas sociais inerentes à leitura (SOARES,
2002). A grande demanda de protocolos curriculares, tem interferido negativamente no
processo de leitura, restando para ele um parco contato, que não avança além da mera
decodificação. Além disso, quando a escola não assume a formação do leitor como um dos
seus objetivos pedagógicos essenciais ela pode falhar na sua ação e não estimular um leitor,
que além de dominar o código linguístico, exercite a leitura também fora dos muros
escolares. Visto que em muitos casos, o espaço destinado às práticas leitoras nas atividades
em sala de aula faz com que elas sejam desenvolvidas de forma mecânica e desestimulante,
apenas como uma exigência protocolar.
No pensar de Solé:
O problema do ensino da leitura na escola não se situa apenas no nível do
método, mas na própria conceituação do que é leitura, da forma em que é
avaliada pelas equipes de professores, do papel que ocupa no Projeto Curricular
da escola e das propostas metodológicas que se adotam para ensiná-la. (1998, p.
33)

Soares compartilha desse posicionamento acrescentando que


os exercícios que, em geral, são propostos aos alunos sobre textos de literatura
não conduzem à análise do que é essencial neles, isto é, à percepção da
literalidade, dos recursos de expressão, do uso estético da linguagem; (...) voltam-
se apenas para as informações que os textos veiculam, não para o modo literário
como os veiculam. (2003, p.43)

128
Nos primeiros anos de escolaridade é comum verificarmos o empenho da escola em
oportunizar variados estímulos literários com texturas, tamanhos e cores diferenciadas, sem
a cobrança de um retorno dos textos lidos, a fim de que o aluno possa adentrar no universo
das letras de forma natural. Vencida a etapa da alfabetização, o texto começa a circular no
ambiente escolar como uma exigência para obtenção da aprovação na esfera da hierarquia
burocrática do ensino. Algo que não encontra ressonância no universo do educando.
Portanto “a pedagogia da leitura na escola não tem logrado grandes êxitos na criação de
leitores permanentes” (YUNES 1995, p.190).
Aqui vale ponderar ainda a concepção instrumental da língua praticada em muitas
instituições. Em muitos casos, a alfabetização é reduzida a um mecanismo de decifração,
tendo como objetivo que o educando detenha apenas o domínio do código textual. Mais
adiante, essa tecnologia leitora é utilizada apenas, em grande parte, para apropriação de
conhecimentos conteudistas e as práticas sociais da leitura, fundamental para o
engajamento cidadão do educando, não são consolidadas; “o artificialismo linguístico,
delimita o campo de abrangência do aluno enquanto usuário da leitura” (KLEIMAN 1995,
p.46).
Os documentos oficiais dos Programas Educacionais Federais apresentam dados
que demonstram que ainda estamos longe de alcançarmos índices satisfatórios nas etapas
iniciais do processo de aprendizagem em âmbito nacional. O PROFA24 relata que
infelizmente os sistemas educacionais não têm garantido o direito à alfabetização. Segundo
ele, num primeiro momento, porque o acesso à escola não estava assegurado a todos;
depois, porque, mesmo com a democratização do acesso, a escola não conseguiu – e ainda
não consegue – ensinar efetivamente todos os alunos a ler e escrever, especialmente

24
Programa lançado em dezembro de 2000 pela Secretaria de Educação Fundamental do Ministério
da Educação (SEF/MEC) com o objetivo de oferecer novas técnicas de alfabetização, originadas em estudos
realizados por uma rede de educadores de vários países. Esses estudos têm como base as transformações nas
práticas de ensino da leitura e da escrita ocorridas a partir de 1985 com as pesquisas de Emília Ferreiro e Ana
Teberoski e a publicação da obra “Psicogênese da Língua Escrita”. Assim, o PROFA leva em conta a nova
concepção de que, para o aluno aprender corretamente a ler e escrever, é necessário que ele participe de
situações que o façam refletir, inferir, estabelecer relações e compreender informações, transformando-a sem
conhecimento próprio. Com isso, de acordo com o documento de apresentação do programa, já não é mais
possível conceber a escrita exclusivamente como um código de transcrição gráfica de sons, ou mesmo
desconsiderar os saberes que os alunos já possuem antes de se escolarizar.

129
quando provêm de grupos sociais não-letrados. A partir da época em que as estatísticas
estão disponíveis, é possível constatar que muitas das crianças que ingressam no Ensino
Fundamental são reprovadas no final do ano, como indica a tabela abaixo.

QUADRO 1 - TAXA DE APROVAÇÃO AO FINAL DA 1-ª SÉRIE DO ENSINO


FUNDAMENTAL

1956 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998
41,8% 47% 46% 49% 51% 51% 51% 50% 53% 53% 58% 65% 68,7%
*Nos anos de 1997 e 1998, algumas secretarias de educação passaram a adotar o sistema de ciclos,
previsto na LDBEN

FONTE: Documento do Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – disponível em


http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Profa/apres.pdf acessado em dez.2018

O documento confirma que há muito tempo os índices de fracasso escolar na


alfabetização são inaceitáveis e as medidas tomadas no âmbito dos sistemas públicos pouco
têm contribuído para transformar esse quadro de forma significativa. Ao analisar a tabela
acima, parece indicar que é falsa a crença de que "antigamente todos aprendiam na escola".
Desde 1956, com estatísticas mais precisas a respeito dos índices de promoção e retenção
na escola pública brasileira, constata-se que os alunos reprovados (ou "retidos", como se
preferiu chamar anos depois) já representavam parcela significativa – e isso sem contar o
grande número de crianças brasileiras que nem frequentava a escola.
A falta de explicações para as causas do fracasso da escola em alfabetizar todos
os alunos fez com que essa responsabilidade, direta ou indiretamente, fosse a eles
atribuída – à sua suposta incapacidade de aprender e/ou às suas perversas
condições de vida. Apesar de todas as razões sociais e políticas para não
depositar a responsabilidade pelo fracasso no aluno, as teorias do déficit
cognitivo e/ou da "carência cultural" acabaram por consolidar a crença de que a
possibilidade de indivíduos aprenderem teria direta relação com a sua condição
econômica, social e cultural. Com isso, consolidou-se progressivamente uma
cultura escolar da repetência, da reprovação, que acabou por ser aceita como um
fenômeno natural. O país foi se acostumando com o fato de cerca de metade de
suas crianças não se alfabetizar ao término do primeiro ano de escolaridade no
Ensino Fundamental. Essa cultura teve uma enorme influência no universo de
representações que os educadores foram construindo sobre o fracasso escolar e
sobre os alunos que fracassam, bem como na sua relação com eles. (BRASIL
2001, p. 9)

Na esfera do enfrentamento do problema dos Sistemas de Ensino quanto à questão


da alfabetização foi constituído o PNAIC - Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade
Certa, que, segundo o seu documento oficial, é um compromisso formal e solidário
assumido pelos governos Federal, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios, desde

130
2012, para atender à Meta 5 do Plano Nacional da Educação (PNE), que estabelece a
obrigatoriedade de “Alfabetizar todas as crianças, no máximo, até o final do 3º (terceiro)
ano do ensino fundamental”.
O programa, de acordo com dados disponíveis no Sistema Informatizado de
Monitoramento do PNAIC (SisPacto), descreve que, em 2013, foram capacitados, em
Linguagem, 313.599 professores alfabetizadores em curso com carga horária de 120 horas;
em 2014, foram 311.916 profissionais e a ênfase da formação foi em Matemática, em curso
com carga horária de 160 horas; em 2015, foram capacitados 302.057 professores em
temáticas como Gestão Escolar, Currículo, a Criança do Ciclo de Alfabetização e
Interdisciplinaridade; e, em 2016, foram 4 248.919 alfabetizadores e 38.598 coordenadores
pedagógicos atendidos em cursos com carga horária mínima de 100 horas e com ênfase em
leitura, escrita e letramento matemático. Mesmo com esse montante de atendimento os
dados da Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA) em 2013 e 2014, demonstra ainda o
baixo rendimento das crianças em Língua Portuguesa e Matemática.
Observando a educação brasileira como um todo encadeado e orgânico e
reconhecendo que mesmo os estados com melhores indicadores ainda estão distantes do
resultado desejado, o PNAIC passou a compor uma política educacional sistêmica que
parte de uma perspectiva ampliada de alfabetização, trabalhando a Alfabetização na Idade
Certa, a melhoria da aprendizagem em Língua Portuguesa e Matemática no Ensino
Fundamental, bem como a inclusão da Educação Infantil garantindo as perspectivas e as
especificidades do trabalho de leitura e escrita com as crianças.
Em 2017, ampliando a análise dos resultados da ANA 2013 e 2014, das taxas de
aprovação e distorção idade-série do Ensino Fundamental, dos registros qualitativos dos
professores no SisPacto, das avaliações sobre o PNAIC, e considerando os depoimentos
dos professores alfabetizadores, dos formadores e dos gestores públicos nas formações já
realizadas, verificou-se que é preciso manter o esforço concentrado na implementação de
estratégias didático pedagógicas que efetivamente permitam às crianças a consolidação dos
direitos, das competências e das habilidades de Leitura, Escrita e Matemática previstos para
serem alcançados em cada ano do Ciclo de Alfabetização.
Nesse processo ainda é importante considerar que a interlocução nos espaços
escolares ocorre, em grande parte, de forma precária. A fluência verbal no diálogo e na

131
troca de saberes e impressões, não estão garantidas nas escolas, comprometendo a dialogia25
tão fundamental nessas relações, tendo em vista que “somos seres de linguagem e seres de
narrativa, e estas possuem um valor reparador” (PETIT 2010, p. 288).
No entendimento de Yunes:
A leitura não é um mero exercício sobre a escrita dos outros, mas formulação
lenta da própria escrita em relatos e ações. Ler é inscrever-se no mundo como
signo, entrar na cadeia significante. (...) A leitura é uma escrita de si mesmo, na
relação interativa que dá sentido ao mundo. (1995, p. 195)

O que temos observado, é que a escola tem falhado sobremaneira na formação de


leitores que decodifiquem o texto e possam estabelecer uma compreensão do que se lê.
Muitos se alfabetizam, o que nas classes populares também tem sido um processo muitas
vezes incompleto, mas não internalizam a leitura como fonte de prazer e conhecimento. E a
gravidade maior da questão é que este processo de trabalho com o signo textual nos espaços
escolares tem gerado uma ojeriza nos educandos de modo que muitos não suportam sequer
cogitar a possibilidade de lerem um livro sem a obrigatoriedade imposta pela escola.
Cadermatori analisa esse dado ponderando que
nem sempre a capacidade intelectual de um jovem encontra no sistema de ensino
condições adequadas para se desenvolver. Nem sempre as indagações existenciais,
que neste período se esboçam, encontram estímulos externos para que se
fortaleçam. (2009, p.64)

E complementa, citando uma frase de Beatriz Sarlo, na qual diz que “a nossa escola
corteja o mundo dos jovens, em vez de lhes oferecer a alternativa de conhecer outros
mundos” (ibid, p.65). Algo que causa danos irreparáveis, tendo em vista que a formação do
leitor, em muitos casos, sobretudo nas classes populares, tem como marco inicial o espaço
escolar. Daí emergem alguns questionamentos: qual a importância da leitura para a
formação cidadã? O que estamos levando para a sala de aula, em se tratando de leitura,
contribui para a formação do leitor crítico e reflexivo?

25
Dialogismo é o que Mikhail Bakhtin define como o processo de interação entre textos que ocorre
na polifonia; tanto na escrita como na leitura, o texto não é visto isoladamente, mas sim correlacionado com
outros discursos similares e/ou próximos. Dialogismo se dá a partir da noção de recepção/compreensão de um
enunciado o qual constitui um território comum entre o locutor e o locutário. Pode se dizer que os
interlocutores ao colocarem a linguagem em relação frente um a outro produzem um movimento dialógico.

132
Essas indagações são recorrentes nos nichos educacionais e oportunizam amplas
reflexões. Mesmo com variadas respostas, o que urge é desenvolver um trabalho capaz de
dar ao educando condições de compreender o texto, estabelecendo as relações com o seu
próprio universo, preenchendo as lacunas que por ventura possam surgir no ato de ler.
Nessa perspectiva, existe, no entanto, um método único e preferencialmente aceito para
formar leitores?
Scholes afirma:
Não é simples o sistema proposto. A leitura é de fato aprendida e ensinada, o que
pode fazer-se bem ou mal; mas contém em si uma dose demasiada elevada de
arte e habilidade para que seja possível submetê-la por completo – ou mesmo em
grande parte – à metodização. Educar, porém, equivale a conduzir o método às
últimas consequências, procurando depois maneira de prosseguir um pouco mais
sem ele. (1991, p. 18).

Assim sendo, o trabalho para a formação de leitores requer a consciência de que o


método é um processo em vias de construção. Um trabalho pautado no diálogo, na
observação, no contato com vários signos textuais, pois ler é uma das habilidades
intelectuais mais suscetíveis a serem desenvolvidas no ambiente escolar para com os
discentes, principalmente se formos analisar os anseios mais recorrentes entre os docentes
que apresentam este fator como um dos principais desafios do ensino brasileiro.
O brio do texto (sem o qual, em suma, não há texto) seria a sua vontade de
fruição: lá onde precisamente ele excede a procura, ultrapassa a tagarelice e
através do qual tenta transbordar, forçar o embargo dos adjetivos – que são essas
portas da linguagem por onde o ideológico e o imaginário penetram em grandes
ondas. (BARTHES 2010, p. 20)

A língua é a gênese da representação do mundo e está presente em todas as áreas


cognitivas, ampliando a responsabilidade de formar leitores também nessas áreas. Essa
ação atua como algo contínuo no universo escolar, estimulando nos alunos a investigação e
articulação do texto com a construção do seu conhecimento. Um exercício que prime por
considerar a linguagem na sua multiplicidade, proporcionando familiaridade com
expressões culturais e científicas construídas historicamente. “Trata-se de formar sujeitos
que possam navegar sem bússola para o desconhecido, buscando um conhecimento que, a
cada passo, é necessário rever e reavaliar” (GARCIA 2003, p. 22).

133
A esse respeito ratifica-se ainda mais a distância que frequentemente se interpõe
entre as competências leitoras relevantes e as práticas pedagógicas mais recorrentes, visto
que as mesmas têm reforçado um modelo de operação onde a postura ativa do educando na
reconstrução e reformulação de sentido, articulados com os elementos sociais externos,
com os valores mais altos, ideologias e saberes não se consolida. O ativismo pedagógico
não absorve em si, a fruição do texto, tão importante para a aquisição do hábito da leitura.
Para Yunes:
A fruição decorre de uma percepção mista de necessidade e prazer, desliza sobre
o tempo e não pesa sobre o leitor, na medida em que uma intimidade maior, uma
inter-relação cada vez mais ágil se faz entre as leituras e a interação com a obra.
(...) Um convite ao leitor para adentrar neste espaço com o seu imaginário. Daí
talvez valha a pena assimilar com Barthes a diferença entre leitura de fruição e
leitura de prazer. Esta permite o esgotamento rápido das sensações; aquela
permanece e interroga. (1995, p. 194)

Em nossas escolas, é comum a confirmação, por parte dos estudantes, da imagem de


que estudar, ler e conhecer literatura são coisas sem sabor, ligadas apenas ao universo das
obrigações acadêmicas, distantes dos prazeres encontrados no mundo e na própria vida.
Isso ocorre por conta das práticas leitoras prevalecentes nos nichos educacionais apontarem
para uma passividade do aluno neste processo, recebendo a informação do professor, o
“único” preparado para discorrer sobre o objeto e estabelecer comparações tidas como
relevantes. Quando muito, o aluno tem participação mais ativa no final deste processo,
quando é solicitado a responder perguntas formuladas sobre a interpretação de um texto.
Mesmo assim, raramente essas questões exigem dele um esforço interpretativo maior, que
analisem as estruturas sintáticas ou estilísticas da obra, os traços pessoais do autor ou
alguma outra mediação que não esteja colocada no texto de forma mais direta. O texto
torna-se um mero discurso didático, assumindo um papel periférico.
Não obstante, o momento da leitura, pode se tornar, no campo simbólico, uma
experiência de troca não somente do leitor, ou do próprio autor, mas algo que abarque uma
esfera sociocultural. “Ao seguir o texto, o leitor pronuncia seu sentido por meio de um
método profundamente emaranhado de significações aprendidas, convenções sociais,
leituras anteriores, experiências individuais e gosto pessoal” (MANGUEL 1997, p.52-53).
Assim sendo, “não é um processo automático de capturar um texto como um papel
fotossensível captura a luz, mas um processo de reconstrução desconcertante, labiríntico,
comum e, contudo, pessoal”. (ibid, p. 54)

134
A ausência desse entendimento empobrece o processo e o torna insosso e
burocrático, como nos diz Larrosa:
A vida humana se tornou pobre e indigente e o conhecimento moderno não é mais
o saber ativo que alimentava, iluminava e guiava a vida dos homens, mas é algo
que flutua no ar, estéril e desconectado dessa vida na qual não pode mais se
encarnar. (...) Na busca de um modelo de aprendizagem natural, a pedagogia se
converte na realização de uma sequência previsível de desenvolvimento, no
processo evolutivo de um sujeito psicológico e abstrato. (2002, p. 143)

No artigo “O valor simbólico da leitura”, Moacyr Scliar (2008) descreve uma


situação curiosa acerca do poder simbólico da leitura:

Um filme canadense antigo retrata a chegada dos colonizadores brancos ao


Canadá. O encontro entre estes e os indígenas é marcado pelo estranhamento. Em
particular, o chefe da tribo, cuja cultura é ágrafa, não entende por que os brancos
rabiscam coisas em papel. O comandante do navio então se propõe a demonstrar,
de maneira prática, a utilidade da escrita. Mostra um marinheiro que está à
distância e diz ao indígena que quer a pistola dele e que o homem vai fornecê-la.
Escreve então um bilhete, dizendo “Manda-me tua pistola.” e pede que o índio o
leve até o marinheiro. Ao receber o papel, este, de imediato, entrega sua pistola. O
índio fica assombrado: como o marujo descobriu que o chefe queria a sua pistola,
se nada ouviu dele? E então se dá conta que o texto fez a mágica. Podemos
imaginar o temor e o respeito com que passou a olhar as letras manuscritas ou
impressas no papel. A partir dali elas certamente adquiriram para o chefe, e talvez
para a tribo, um valor simbólico. Que, entre parênteses, deve ter ajudado na
dominação da região pelos brancos. (p.02)
A cena descrita acima põe em relevo o sentido de poder que está implícito naqueles
que dominam o código da escrita e, nesse caso, da leitura. A forma de escrever escolar,
herdada da tradição moderna, dada como certa e verdadeira em contraste com a pluralidade
de produções determinadas pela prática da escrita nos dispositivos móveis do nosso tempo,
determina as fronteiras entre os que detém ou não o código, ou, no pensar Certeau, quem
domina ou não o jogo escriturístico. Segundo Michel de Certeau, “o código da promoção
socioeconômica domina, controla ou seleciona segundo suas normas todos aqueles que não
possuem esse domínio da linguagem” (2001, p.222). E consagra a prática escriturística
como legítima e a oralidade é subjugada ao segundo plano.
Nesse sentido, Certeau nos alerta que “as coisas que entram na página são sinais de
‘uma passividade’ do sujeito em face de uma tradição; aquelas que saem dela são as marcas
do seu poder de fabricar objetos” (ibid, p. 224). Portanto, segundo o autor, a economia
escriturística combina “o poder de acumular o passado e de conformar a seus modelos a
alteridade do universo” constituindo-se uma prática “capitalista e conquistadora” (grifo do
autor). Quem domina a escritura conquista um poder. Esse “poder, essencialmente

135
escriturístico” define “o código da promoção socioeconômica e domina, controla ou
seleciona segundo suas normas todos aqueles que não possuem esse domínio da
linguagem” (ibid, p. 227)
A ideia de uma produção da sociedade por um sistema “escriturístico” não cessou
de ter como corolário a convicção de que, com mais ou menos resistência, o
público é moldado pelo escrito (verbal ou icônico) e torna-se semelhante ao que
recebe. Enfim, deixa-se imprimir pelo texto e como o texto que lhe é imposto
(CERTEAU ibid, p. 238).

Pensar a prática de leitura articulada a uma atividade política faz-se necessário. Os


jogos de poder configuram-se e dão o tom de como são permitidas determinadas formas de
compreensão e circulação do conhecimento. O híbrido poder/saber está sempre articulado
e, neste sentido, os sujeitos leitores necessitam elaborar possibilidades de circular nas
esferas sociais conduzindo seus objetivos e elaborando a usa própria forma de interpretar os
mundos socialmente constituídos onde eles habitam.
Assim, valendo-se dessa ilustração, uma consideração sobre o status da língua
torna-se pertinente: como apropriar-se dela como um elemento revelador na formação do
sujeito na construção de sua subjetividade constitutiva e não mais ou apenas como um
imperativo do poder conformador e doutrinário? A escola deve refletir todo o tempo sobre
qual direção ruma a proposta pedagógica que executa no que concerne ao desenvolvimento
da linguagem e à formação do leitor, desenvolvendo seu trabalho visando formar um leitor
que, segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais:
Seja capaz de selecionar, dentre os trechos que circulam socialmente, aqueles que
podem atender a uma necessidade sua. Que consegue utilizar estratégias de
leitura adequadas para abordá-los de forma a atender a essa necessidade. Alguém
que compreenda o que lê; que possa aprender a ler também o que não está escrito,
identificando os elementos implícitos; que estabeleça relações entre o texto que lê
e outros textos já lidos; que saiba que vários sentidos podem ser atribuídos a um
texto; que consiga justificar e validar a sua leitura a partir da localização de
elementos discursivos. (BRASIL 1997, p.54)

A leitura apresenta-se como um valor na busca do homem de emancipar-se como


sujeito, adquirindo autonomia e assumindo-se como agente transformador de sua história.
Ela “engendra a fala, desencadeia o fio das associações, reativa uma atividade de
simbolização, de narração. Permite colocar palavras em regiões dolorosas de si” (PETIT
2010, p. 217). O desafio da escola é refletir e atuar sempre sobre a dicotomia entre ler por

136
gosto ou por obrigação, demarcando sempre o processo de construção de formas de
interpretação e experiências de fruição literária.

Este espaço criado pela leitura não é uma ilusão. É um espaço psíquico que pode
ser o próprio lugar da elaboração ou da reconquista de uma posição de sujeito.
Porque os leitores não são páginas em branco onde o texto é impresso. Os leitores
são ativos, desenvolvem toda uma rotina psíquica, se apropriam do que leem,
interpretam o texto, e deslizam entre as linhas seus desejos, suas fantasias. Para
evocar essa liberdade do leitor, Michel de Certeau tinha uma bela fórmula: “Os
leitores são viajantes, circulam em terras alheias; são nômades que caçam
furtivamente em campos que não escreveram”. (PETIT 2013 p. 44)

A intervenção pedagógica deve ter clareza quanto à complexidade que envolve


a apropriação cognitiva que abarca aspectos técnicos (estilos, autores, estruturas
morfológicas), bem como a dimensão pessoal (a construção de sentidos, a compreensão e
inserção nas correntes discursivas). Nessa concepção, redimensionam as fronteiras
linguísticas, onde o leitor, a escola e própria sociedade podem se transformar.

5.1 - A LEITURA COMO EXPERIÊNCIA: EM ANÁLISE, O LETRAMENTO


LITERÁRIO

Ao propormos uma reflexão sobre a leitura e os sentidos produzidos por meio dela
constatamos que ela possui um elevado grau de importância para a vida do homem em
sociedade. Os apontamentos a seguir, propõem que, para além da mera decodificação
linguística e da passividade diante do signo formal, as modalidades textuais podem assumir
um status dinâmico, onde as compreensões emanadas a partir do texto estarão sujeitas ao
contexto histórico e às subjetividades de cada leitor. Nessa análise, é ele que se apropria do
texto e produz, a partir de suas expectativas e de suas competências intelectuais,
significações a respeito do mesmo. Assim, seria ainda pensar não tão-somente como
podemos “construir” leitores, mas sobretudo como a leitura pode ajudar a construir as
pessoas, sujeitas de seus destinos, mesmo diante, muitas das vezes, de contextos
desfavoráveis (PETIT, 2013).
A criação literária, nessa concepção, encontra sua realização na leitura. Essa mescla
entre as expectativas do escritor e as impressões do leitor, confere ao ato de ler um caráter

137
imprevisível, no qual cada indivíduo terá a liberdade de conferir a um texto que é único,
uma marca interpretativa pessoal; uma sucessiva ruptura dos códigos narrativos
(GOULEMOT, 2011).
Petit assevera:

A leitura tem o poder de despertar em nós regiões que estavam até então
adormecidas. Tal como o belo príncipe do conto de fadas, o autor inclina-se sobre
nós, toca-nos de leve com suas palavras e, de quando em quando, uma lembrança
escondida se manifesta, uma sensação ou um sentimento que não saberíamos
expressar revela-se com uma nitidez surpreendente. (2008, p. 7)

No contato com o texto, os leitores lhes dão outro significado, o interpretam à sua
maneira. Essa interpretação é independente e vai romper com qualquer tentativa de
conformidade ou estreitamento de seus significados. Nesse gesto se estabelece uma
composição entre as vozes do leitor e escritor na interpretação de significações: “nessa
leitura, o escritor e o leitor constroem-se um ao outro; o leitor desloca a obra do escritor, e o
escritor desloca o leitor, às vezes revelando nele um outro, diferente do que acreditava ser”
(ibid, p.37). O leitor que absorve a experiência do texto estabelece um processo de
articulação com seus próprios saberes, o qual para Dauster (1994, p.59) seria o “leitor
concreto, particularizado e singularizado, na sua variabilidade histórica e social
(CHARTIER, 1990), que tanto está inscrito em textos como os “re-escreve”, na medida em
que deles se apropria e que os interpreta de acordo com os seus sistemas de referências,
suas disposições e visão de mundo”.
Scholes mensura esta dimensão afirmando que:
Lemos a vida tal como lemos o livro e a atividade de leitura é, de fato, uma
questão de abrir caminho através de sinais e de textos a fim de entender com maior
profundidade e clareza não só aquilo que neles descobrimos, mas também as
nossas próprias situações, tanto na sua especificidade e historicidade como nas
dimensões mais permanentes e inevitáveis. (1991, p.34).

Barthes descreve esta relação do leitor com o texto como uma relação dialética ao
afirmar que:
Admite-se comumente que ler é decodificar: letras, palavras, sentidos e
estruturas, e isso é incontestável; mas acumulando as decodificações, já que a
leitura é, de direito, infinita, tirando a trava do sentido, pondo a leitura em roda
livre (o que é sua vocação estrutural), o leitor é tomado por uma intervenção
dialética: finalmente ele não decodifica, ele sobrecodifica; não decifra, produz,
amontoa linguagens, deixa-se infinita e incansavelmente atravessar por elas: ele
é essa travessia. (1988, p. 51).

138
Esta perspectiva concede à leitura um status mais complexo e abrangente. Walter
Ong (1998) considera que tanto a leitura quanto até mesmo a própria escrita não são apenas
meros apêndices da fala, pois o seu movimento transforma tanto a fala quanto o próprio
pensamento. O leitor que vai construindo e produzindo os sentidos por meio dos textos
desenvolve a criticidade de modo que compreende as intencionalidades submersas nas
narrativas, gerando significados que vão ampliar o entendimento em relação ao mundo que
o cerca. A leitura se representa como uma transposição para a linguagem verbal dos
múltiplos signos que acumulamos na nossa relação com o mundo que nos cerca. Um
processo que nos permite, muitas vezes inconscientemente, muitas outras leituras. Essa
relação assume um caráter interpretativo, renegando a passividade de sujeição ao texto.
A autonomia do leitor em relação ao texto, segundo Petit (2008) desenvolve uma
espécie de “alquimia da recepção”, não sendo possível dominar o leitor nem controlar os
acessos aos textos:
Na realidade, os leitores apropriando-se dos textos, lhes dão outro significado,
mudam o sentido, interpretam à sua maneira, introduzindo seus desejos entre
linhas: é toda uma alquimia da recepção. Não se pode jamais controlar o modo
como um texto será lido, compreendido e interpretado. (p.26)

Chartier (1998) pondera em seus estudos sobre a leitura que as formas de ler variam
ao considerarmos as diferentes classes sociais, etnias, regiões etc. Essa espécie de
negociação que a leitura faz com o campo social produzem certos efeitos de sentido,
essenciais, segundo o autor, na construção da significação. A leitura de um texto pode
engendrar um processo de construção cultural e histórica que se efetive a partir da
combinação entre as condições materiais destinadas à sua realização e o lugar em que cada
leitor se encontra no momento de manipulá-la. Ao nos defrontarmos com o texto
reconhecemos várias imagens que nos permitirão uma melhor compreensão do objeto
textual.
Scholes revela que:
A leitura é sempre um esforço conjugado de compreender e de incorporar. Tem
de inventar-se o autor, imaginando-lhe os propósitos, e utilizar-se a evidência
disponível para o estímulo criativo pessoal (estímulo alcançado, em parte, pela
apresentação de restrições a esse mesmo processo). É preciso também incorporar
o texto objeto de leitura ao repertório textual privativo. ( 1991, p. 25)

139
Partindo desse pressuposto, o leitor ao manipular o texto, concede-lhe existência.
Nenhum texto é uma obra acabada, mas sim se apresenta como algo em vias de construção
à procura de um sujeito capaz de restabelecer o significado. É um mecanismo dinâmico que
adquire sentido com o movimento das forças que agem sobre ele: a subjetividade do leitor,
o contexto espaço-temporal em que está inserido e suas peculiaridades e ideologias
conferidas no ato da sua concepção. “É o ato de ler concreto que está em jogo. Leitura não
é mera decifração de sinais do texto, e nem mero conteúdo semântico dissociado de um
suporte neutro. A leitura existe nas relações de apropriação, nas diferenças de uso
partilhado, no que os leitores fazem dela” (DAUSTER 2003, p. 96).
A esse respeito Petit nos diz:
A leitura – que era, de início, uma atividade que se prescrevia para enredar as
pessoas na malha das palavras – converteu-se em um gesto de afirmação de
singularidade. Tornou-se um atalho, cada vez mais utilizado, para escapar do
tempo e do lugar em que supostamente se deveria estar; escapar deste lugar
predeterminado, dessa vida estática e do controle mútuo que uns exercem sobre
os outros. (2008, p. 28)

Cadermatori endossa essa consideração e acrescenta:


Uma das razões pela qual as narrativas sempre fascinaram os homens reside na
capacidade que elas têm de dar conteúdo ao tempo, jogar com ele. Da mais
simples à mais complexa, uma narrativa, à sua maneira, faz figuração temporal.
Rompe com a marcação dos relógios e possibilita uma relação com o tempo
distinta das experiências temporais comuns e involuntárias. (2009, p.44)

Assumindo esses pressupostos nas práticas docentes com vistas à formação do leitor
é possível que esse processo formativo se torne também uma experiência pessoal capaz de
elaborar as subjetividades constitutivas dos educandos. Larrosa (2002) reflete a respeito da
leitura enquanto formação e sua misteriosa atividade que nos faz ser aquilo que somos, ou
seja, a ideia de sermos o que somos está intimamente ligada a uma leitura, que nos afeta,
nos transforma. A leitura literária torna-se, nessa perspectiva, subsídio do sujeito na
construção de si mesmo, extraindo muitas vezes das personagens, a expectativa da sua
própria identidade. Essa transformação é provocada pelo que nos transpassa e depende da
particularidade de cada um.
Dessa forma
pensar essas experiências significa que, em contato com elas, atendendo àquilo
que elas têm a dizer, acolhendo-as naquilo que têm de impensável, o pensamento
se libere e se abra à sua própria formação. ( LARROSA 2002, p. 159)

No entanto, ele acrescenta que

140
o fármaco atua de forma diferente em pessoas diferentes; cada viajante faz uma
viagem diferente; não há uma estratégia segura que ofereça garantias de que o
jogo tenha êxito; cada tradução produz um novo sentido sobre o traduzido. Não
se pode planejar a leitura de modo técnico. (ibid, p. 154)

Do mesmo modo, desdobrando essa consideração, não se pode esgotá-la no


momento em que se lê. Pelo contrário, esse é o princípio de um processo interativo,
prolongado nos efeitos produzidos na vida do leitor e no seu convívio social. A palavra
rompe com qualquer tentativa de conformidade, com o monopólio da legitimidade; pode
assumir um valor simbólico que vai além da sua significação, conquistando novos espaços
e apontando novas possibilidades de perceber e entender a própria realidade humana. Esse
processo concede ainda ao leitor uma apropriação do valor simbólico inerente ao texto,
implicando em comunicação que promove sentidos e desenvolve subjetividades
constitutivas dos sujeitos que por elas transitam.
Segundo Petit:
É talvez antes de tudo à parte exilada de cada um que os livros, e mais ainda a
literatura, se endereçam. A escrita literária é, em si mesma, em larga medida, uma
tentativa de agarrar o que está perdido, faltando ou inacabado, de superar espaços,
abolir fronteiras, reunir o que está separado, reconstituir terras desaparecidas,
épocas passadas. (2009, p. 264)

Leitura como formação, como experiência e produção de sentidos torna-se um


processo interativo e essencial para o engajamento social do homem. Por ela podemos
construir conceitos alusivos à nossa formação enquanto sujeitos. No desenvolvimento do
ato de ler reconfiguram-se valores, crenças, gostos, que não pertencem somente ao leitor,
mas a um contexto sociocultural mais amplo e irrestrito. Ele é produzido pelo autor a partir
dos seus significados constituídos pelo seu mundo de significação e é redimensionado pelo
leitor, que vai atribuir-lhe significado a partir da relação que mantém com o seu próprio
mundo. O leitor ao esgrimir com o texto vai buscar o sentido na sua própria particularidade
(COLOMER, 2007).
No pensar de Scholes:
A leitura não se resume a permanecer num conforto exterior ao texto, onde o
poder deste não possa atingir-nos. Há que penetrar nele, atravessar o espelho e
vermo-nos do outro lado. (...) Não é possível mantermo-nos fora da textualidade,
seja de que modo for. Quando tomamos consciência de nós próprios, achamo-nos
já totalmente desenvolvidos como criaturas textuais. O que somos e aquilo em
que nos tornaremos foi antecipadamente modelado por poderosos textos culturais.
(1991, p. 43)

141
A compreensão desses mecanismos cognitivos inerentes ao trato com o texto no
espaço escolar trará às intenções pedagógicas a perspectiva dos letramentos. Aqui o plural
explica-se pela imprecisão que, na literatura educacional brasileira, ainda marca a definição
de letramento. Não há, entretanto, propriamente, uma diversidade de conceitos, mas
diversidade de ênfases na caracterização do fenômeno. Segundo Kleiman (1995, p.19)
podemos definir hoje letramento como “um conjunto de práticas sociais que usam a escrita
enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos
específicos”. Já Tfouni (1988, p.16) conceitua-o em confronto com a alfabetização:
“Enquanto a alfabetização ocupa-se com a aquisição da escrita por um indivíduo, o
letramento focaliza os aspectos sócio históricos da aquisição de um sistema escrito por uma
sociedade”.
Soares (1998) conceitua letramento como o estado ou condição de indivíduos ou de
grupos sociais de sociedades letradas que exercem efetivamente as práticas sociais da
leitura e da escrita e participam competentemente de eventos de letramento. O que esta
concepção acrescenta às anteriormente citadas é o pressuposto de que o indivíduo ou grupo
social que domina o uso da leitura e da escrita tem as habilidades e atitudes necessárias para
uma participação ativa e competente em situações em que práticas de leitura e/ou de escrita
têm uma função essencial.
Sugerida por Cosson e Souza (2011) a reflexão sobre o letramento vai ser coadunar
com a análise apresentada por Soares, que “designa as práticas sociais da escrita, os
processos de interação e as relações de poder relativas ao uso da escrita em contextos e
meios determinados” (ibid, p. 102). Os autores ampliam o estudo para revelar o letramento
literário como um dos usos sociais da escrita, no entanto destacando o lugar singular que
ele se interpõe junto aos indivíduos, visto que “a literatura tem o poder de se metamorfosear
em todas as formas discursivas [possíveis]. E isso se dá porque a literatura é uma
experiência a ser realizada” (COSSON, 2012, p. 17) promovendo, a partir dos textos
literários, um modo privilegiado de inserção no mundo da leitura e da escrita.
Mais adiante, definem o letramento literário como “o processo de apropriação da
literatura enquanto construção literária de sentidos” (PAULINO e COSSON, 2009, p. 67
apud COSSON e SOUZA, 2011, p. 103).

142
A escola pode ser um espaço de compartilhamento e ampliação dos sentidos
produzidos pelos educandos através do trato com o texto literário. Segundo eles, os leitores
nesse processo, ao passo que se inserem no meio, ocupando seus papéis, assumem-se
igualmente como membros da coletividade e a partir daí ampliam as fronteiras
possivelmente demarcadas no campo da leitura.
Chartier pondera:
Antes de mais nada é preciso dar à leitura o estatuto de uma prática criadora,
inventiva, produtora, e não anulá-la no texto lido, como se o sentido desejado
pelo autor devesse inscrever-se com toda a imediatez e transparência, sem
resistência nem desvio, no espírito dos seus leitores. Os atos de leitura dão ao
texto significações plurais e móveis situam-se no encontro da maneira de ler
coletivas ou individuais, herdadas ou inovadoras e dos protocolos de leitura
depositados no objeto lido. (2011, p. 78)

Se realizarmos um paralelo histórico sobre o trabalho voltado para a leitura de


textos literários, verificaremos que ele sofreu muitas transformações. Recordo-me que na
minha infância os livros literários eram dogmáticos, autoritários e voltados para uma
conclusão fechada em si. Atualmente verifica-se a existência de um avanço que privilegia
uma diversidade de olhares e formatos. Outra consideração pertinente é que o estímulo
social à promoção de leitura também sofreu um crescimento. Embora ainda muito modesto,
o número de bibliotecas aumentou; as livrarias, o acesso ao livro e a sua variedade, os
programas nacionais de incentivo à leitura também.

A questão que se apresenta nesse contexto é, no mínimo, instigante: por que a


literatura na sala de aula continua, em muitos casos, sendo tratada como pretexto por
exemplo, para introduzir conceitos de gramática, ilustrar questões históricas, resolver
problemas comportamentais etc. Dificilmente a leitura se apresenta no âmbito escolar como
uma alternativa ao lúdico e encantamento, sem estar atrelada a usos e utilitarismos, como
um recurso para ampliação do imaginário, como poderio de criação.

Depois desses requisitos, o professor poderia explorá-la como desejasse, até mesmo
como recurso didático, pois o leitor já poderia estar devidamente conquistado e encantado.
Para isso é importante ressaltar que o letramento literário perpassa não somente por textos
valorizados pela cultura letrada. Os eventos literários podem ter a utilização de filmes,
mangás, best sellers, revista, jornal, entre outros.
É necessário, segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais:

143
Romper os limites fonológicos, lexicais, sintáticos e semânticos traçados pela
língua: esta se torna matéria-prima (mais que instrumento de comunicação e
expressão) de outro plano semiótico – na exploração da sonoridade e do ritmo, na
criação e recomposição das palavras, na reinvenção e descoberta de estruturas
sintáticas singulares, na abertura intencional a múltiplas leituras pela
ambiguidade, pela indeterminação e pelo jogo de imagens e figuras. (BRASIL,
1998, p. 27)

Nesse ponto não podemos negligenciar a discussão em alguns ciclos acadêmicos


sobre a escolarização da literatura, apresentada, na maioria das vezes, como algo nocivo à
formação do leitor. Embora considere relevantes alguns apontamentos a respeito de um
tema espinhoso, como docente considero que, muitas vezes, essa preocupação pode ser um
interdito a mais na esteira do fazer docente com o processo de letramento literário ora
proposto. O medo de errar ou de evidenciar a escolarização da literatura, ou seja, a
conformidade dela aos protocolos pedagógicos pode tirar do professor sua autonomia para
mediar esse trabalho. Aparando as arestas, a literatura está e sempre estará escolarizada,
como revela Soares (1998). Ela não vai se manter da mesma forma dentro e fora da escola,
tendo em vista que sofrerá invariavelmente influência do discurso pedagógico onde está
inserida. Agora, a meu ver, a questão maior é que a concepção de ensino, estritamente de
ensino para a formação do leitor literário, adotada pela escola definirá a “escolarização”
que será realizada na instituição.
Cosson salienta que:
(...) Devemos compreender que o letramento literário é uma prática social e,
como tal, responsabilidade da escola. A questão a ser enfrentada não é se a escola
deve ou não escolarizar a literatura, como bem nos alerta Magda Soares, mas sim
como fazer essa escolarização sem descaracterizá-la, sem transformá-la em um
simulacro de si mesma que mais nega do que confirma seu poder de
humanização. (2009, p. 23)

Esse entendimento respeitará e permitirá o silêncio que uma leitura pode


oportunizar. Diante de um texto podemos calar, não termos nada a dizer ou, em outras
palavras, nos apropriarmos novamente da nossa capacidade de silenciar. Nos colocar à
deriva, na fruição intratável que me liga ao texto (BARTHES, 2010), interrompendo o que
sabemos e nos impelindo a construções nunca antes mensuradas nas modalidades
canônicas26. No jogo do “tabuleiro social” ela deve nos estimular a assumirmos nossos

26
A literatura deve ser sentida como uma das formas em que se auto organiza e se autorrepresenta o
imaginário antropológico e cultural; um dos espaços em que as culturas se formam, se encontram com outras

144
espaços e sairmos das nossas acomodações, dos rótulos estigmatizantes e excludentes e nos
enveredarmos pelos caminhos da descoberta. A leitura é um marco inicial na formulação da
reflexão e do pensamento na elaboração de sentido. Um movimento salutar no
desenvolvimento da própria inteligência.

5.2- OS SUPORTES DE LEITURA: ENCONTROS E CONEXÕES

As reflexões propostas até o momento assumem o ato de ler como uma ação
interativa de construção e reconstrução com o texto; a manipulação de um sentido possível
que pode ser resgatado e/ou construído. No entanto, os suportes agregados à leitura podem
influenciar o resultado desse processo. Essa questão absorve para si um teor investigativo
relevante, visto que o texto, na sua existência, está acoplado a uma materialidade. Para
Roger Chartier (2011) embora seja recorrente a abordagem à literatura numa espécie de
abstração textual, reduzida a seu conteúdo semântico, é necessário romper com essa
partilha, objetando que os suportes vinculados às formas de ler, ver ou manipular o texto,
estão intrinsicamente ligadas à sua significação.
Os autores não escrevem livros: não, escrevem textos que se tornam objetos
escritos – manuscritos, gravados, impressos e, hoje, informatizados – manejados
de diferentes formas por leitores de carne e osso cujas maneiras de ler variam de
acordo com as épocas, os lugares e os ambientes. (CAVALLO; CHARTIER,
1998, p. 9).

Os registros da escrita alfabética foram reproduzidos e assimilados por meio de


muitos suportes no decorrer da história. Pedaços de couro, papiro, pergaminho, livros entre
outros compuseram essa trajetória. Já no século XX, o computador angariou um status
indispensável na atividade comunicativa. Assistimos hoje, como sustenta Ruiz (2005,
p.293), à consolidação de um novo paradigma comunicacional interativo e à aparição de
novos espaços “para a pluralidade, a diversidade, o intercâmbio multicultural e a
participação dos cidadãos à escala global”. O uso cada vez mais frequente das tecnologias
digitais reconfigura e redimensiona a relação com o próprio saber, redefinindo seus espaços

culturas, as absorvem, pretendem conquista-las ou confrontar-se. A literatura oferece importantes suportes e


modelos para compreender e representar a vida interior, os afetos, as ideias, os modelos para representarmos
nosso passado e a nossa história. (COLOMER 2007, p. 29)

145
e suas apropriações. A necessidade que se apresenta de readaptação aos suportes não é
condição específica da era tecnológica. Ela sempre existiu, por ser uma atividade ligada aos
conceitos culturais, políticos e econômicos de dadas sociedades. No entanto, é oportuna a
ressalva de que a leitura por meio de um suporte tecnológico

obriga o leitor a novos gestos, a novas práticas intelectuais. Do codex à tela, o


passo é tão importante quanto o que foi dado ao passar do rolo ao codex. São
assim afirmadas ou impostas novas maneiras de ler que ainda não foi possível
caracterizar totalmente, mas que, sem a menor dúvida, implicam práticas de
leitura sem precedentes. (CAVALLO; CHARTIER, 1998, p. 32).

As discussões sobre a validade de ler em suportes impressos e/ou eletrônicos têm


causado divergências entre alguns autores sobre a qualidade da leitura que se faz por meio
deles. Alguns consideram que atualmente as pessoas, principalmente os jovens, estão cada
vez mais utilizando suportes variados de leitura oportunizados pela Internet e pelo avanço
tecnológico, no entanto, em muitos casos, abdicam do vínculo com o livro, com a literatura
e se comunicam com abreviaturas e sem a capacidade de sustentar uma ideia ou concluir
um raciocínio. Discorrem que a quantidade de informações, as redes sociais, a manipulação
dos meios eletrônicos nos dão a impressão de que estamos muito bem informados ou
sabemos tudo, sem considerar o aproveitamento cognitivo que desenvolvemos com esses
fragmentos que manipulamos e a dispersão do pensamento que esta ação isoladamente
opera.
Para Larrosa:
Vivemos num mundo em que acontecem muitas coisas. Tudo o que sucede no
mundo é imediatamente acessível. Os livros e as obras de arte estão à nossa
disposição como nunca estiveram antes. Nossa própria vida está cheia de
acontecimentos. Mas, ao mesmo tempo, quase nada nos passa. Os
acontecimentos da atualidade, convertidos em notícias fragmentadas e
aceleradamente obsoletas, não nos afetam no mundo de nós mesmos. (2002, p.
136)

Kramer, coadunada com esse entendimento, aprofunda a questão:


As leituras ou escrita em rede me ensinam que os jovens têm hoje outros modos e
lugares de ler e escrever. Válidos, sim, aí vivos e presentes. Lê-se muito, sim,
mas de modo disperso. E se escreve muito: no correio eletrônico, na Internet e em
toda uma produção cultural que faz uso de avanços tecnológicos e possibilita que
um maior número de pessoas produza e consuma textos. Mas tem sido esta
prática de leitura e de escrita uma experiência, têm as pessoas aprendido com ela?
(2000, p. 21)

146
No pensar de Lévy (1999, p. 42) os avanços da tecnologia trouxeram uma espécie
de democratização do conhecimento socialmente aceito e legitimado: “O ponto fulcral é a
ampliação do espectro educacional, mediante a transição de uma educação e de uma
formação estritamente institucionalizada, para outra, erguida em meio à aprendizagem
ocorrente na troca de saberes, em diversas instâncias sociais que não somente as
instituições de ensino”. Defende que as tecnologias da informação oportunizam acessos
variados ao conhecimento, emergindo estilos de aprendizagem remodelados que podem ser
compartilhados, ampliando o potencial cognitivo dos grupos numa construção colaborativa
que ocorre no ciberespaço27.
Nessa ordem, se desfaz o modelo de um conhecimento acabado em si mesmo, pois
o texto eletrônico se desdobra em sua estrutura podendo desenvolver várias dimensões do
pensamento. Na seara dessa discussão, os pareceres de Lévy são citados quase sempre no
que concerne aos estudos sobre hipertexto na contemporaneidade:
Tecnicamente, um hipertexto é um conjunto de nós ligados por conexões. Os nós
podem ser palavras, páginas, imagens, gráficos ou partes de gráficos, sequências
sonoras, documentos complexos que podem eles mesmos ser hipertextos. Os itens
de informação não são ligados linearmente, como uma corda com nós, mas cada
um deles, ou a maioria, estende suas conexões em estrela, de modo reticular.
Navegar em um hipertexto significa, portanto, desenhar um percurso em uma
rede que pode ser tão complicada quanto possível. Porque cada nó pode, por sua
vez, conter uma rede inteira. (LÉVY 1993, p. 33)

De modo metafórico, hipertexto é um texto caleidoscópico, que se desdobra e gira


à frente do leitor (ibid, p.56), sem linearidade. Pensar nessa perspectiva é considerar que as
novas tecnologias de informação e comunicação podem oportunizar diferentes formas de
ler/ver o mundo, considerando que o contato com o texto, a motivação para a leitura e as
estratégias gizadas para a sua aprendizagem constituem, nessa ordem, um mosaico
multifacetado que instaura em si, novas vias no imaginário.
Nesse sentido, Chartier esclarece:

A inscrição do texto na tela cria uma distribuição, uma organização, uma


estruturação do texto que não é de modo algum a mesma com a qual se
defrontava o leitor do livro em rolo na Antiguidade ou do manuscrito impresso,
onde o texto é organizado a partir de sua estrutura de cadernos. O fluxo

27
O ciberespaço é o novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos
computadores. O termo especifica não apenas a infraestruturas materiais da comunicação digital, mas também
o universo oceânico de informações que ele abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam
esse espaço. (LÉVY 1999, p.17)

147
sequencial do texto na tela, o fato de que suas fronteiras não são mais tão
radicalmente visíveis, como do livro encerra, a possibilidade para o leitor de
embaralhar, de entrecruzar, de reunir textos que são inscritos da mesma memória
eletrônica, todos esses traços indicam que a revolução do texto eletrônico é uma
revolução nas estruturas do suporte material do escrito, assim como nas maneiras
de ler. (1998, p. 129).

Ao encontro de Lévy, Chartier apresenta ainda considerações acerca do que chama


de “revolução do texto eletrônico”, embora seus estudos se apoiem mais propriamente no
objeto livro, no decorrer dos séculos, e ao leitor e às práticas de leitura elaboradas em cada
tempo. Ameniza o medo instaurado entre as duas hastes da questão sobre o texto digital e o
texto impresso, objetando que “entre as lamentações nostálgicas e os entusiasmos ingênuos
suscitados pelas novas tecnologias, a perspectiva histórica pode traçar um caminho mais
sensato, por ser mais bem informado” (2002, p. 9).
No caminho do entendimento do objeto como elemento histórico, o pesquisador
francês lança luz sobre o advento tecnológico como um dos elementos de ler e de escrever,
sempre considerado dentro de uma longa história de idas e vindas, extinções e inovações,
assim como, principalmente, de concomitâncias e continuidades. No entanto, precisamente
sobre o texto eletrônico, considera que:
Abrem-se possibilidades novas e imensas. A representação eletrônica dos textos
modifica totalmente a sua condição: ela substitui a materialidade do livro pela
imaterialidade de textos sem lugar específico; às relações de contiguidade
estabelecidas no objeto impresso ela opõe a livre composição de fragmentos
indefinidamente manipuláveis; à captura imediata da totalidade da obra, tornada
visível pelo objeto que a contém, ela faz suceder a navegação de longo curso
entre arquipélagos textuais sem margens nem limites. Essas mutações comandam,
inevitavelmente, imperativamente, novas maneiras de ler, novas relações com a
escrita, novas técnicas intelectuais. (CHARTIER 1999, 100-101)

Para Chartier, na era digital “a transformação das formas e dos dispositivos através
dos quais um texto é proposto pode criar novos públicos e novos usos”, e que, “passando
do codex à tela, o ‘mesmo’ texto não é mais o mesmo, e isso porque os novos dispositivos
formais que o propõe a seu leitor modificam as suas condições de recepção e compreensão”
(1998, p. 92). Porém a suspeita da extinção do escrito impresso não é aventada na sua obra,
pois, segundo ele “apenas preservando a inteligência da cultura do códex poderemos gozar
a ‘felicidade extravagante’ prometida pela tela” (ibid, p. 107 – grifos do autor).
Percebemos que a questão que ora se apresenta é um tanto maior que o simples fato de

148
julgar a nocividade ou não dos suportes tecnológicos junto ao hábito de ler, pois a
necessidade de interlocução das narrativas sob qualquer suporte é premente.
No pensar de Paulino:
Como na contemporaneidade há hibridizações e quebras de fronteiras entre os
gêneros de textos, é num momento assim que os trânsitos culturais carecem mais
de sinalizações, pois as marcas de identidade permitem que a polifonia se distinga
de um falatório vazio, de um vale-tudo em que as diferenças são negadas para
facilitar o jogo do mesmo disfarçado em outro. (2000, p.39)

Portanto, na esteira dos desafios apresentados pela tecnologia da comunicação em


rede, importa, na perspectiva da formação do leitor, revestir o processo educativo de
pressupostos que favoreçam a comunicação, abalizadas em práticas conscientes de acesso à
leitura sob esses novos suportes. São elaborações de competências cognitivas diferenciadas
que permitam a manipulação dessas ferramentas.
É inegável que o computador é uma preciosa ferramenta no processo educativo. O
acesso e a difusão da informação cada vez mais rompem fronteiras e fazem parte do
cotidiano de todos nós e, na vida dos jovens e adolescentes, particularmente, ocorre de
forma mais incisiva, independente das finalidades: chats, correios eletrônicos, pesquisas
escolares, lazer e entretenimento. Amparado no conceito de letramento digital isto é, um
certo estado ou condição que adquirem os que se apropriam da nova tecnologia digital e
exercem práticas de leitura e de escrita na tela, diferente do estado ou condição – do
letramento – dos que exercem práticas de leitura e de escrita no papel (SOARES 2002,
p.151), podemos considerar que letrar digitalmente é constituir o domínio de informações e
habilidades mentais para manipular os gêneros e práticas discursivas que serão
desenvolvidas a partir das ferramentas tecnológicas.
Fazer essa junção, ou atrelar definitivamente esse princípio aos objetivos
fundamentais da escola é um longo caminho ainda a ser percorrido, tendo em face a
realidade do ensino atualmente. A literacia nos espaços escolares nessa nova ordem, mais
do que nunca será compreendida como um processo de diálogo e construção permanente.
Num mundo globalizado, onde as fronteiras constantemente são redefinidas, as
delimitações do signo textual igualmente serão expandidas, agregando a ele movimento de
sons e imagens. O livro impresso se mantém como um instrumento relevante no processo
de formação do leitor, pois se instaura no território dos afetos, das sensações e da memória.

149
Já no universo digital, o campo de exploração pode perpassar pelos nichos da
interatividade, das bibliotecas virtuais, blogs, motivando os alunos a trilharem caminhos
desafiadores e compensadores.

O mundo dos textos eletrônicos também remove a rígida limitação imposta pela
incapacidade do leitor de intervir no livro. O objeto impresso impunha sua forma,
estrutura e espaços ao leitor e não supunha nenhuma participação material/física
do leitor. Se, contudo, quisesse inscrever sua presença no objeto, ele só poderia
fazê-lo clandestinamente, ocupando com seu manuscrito as margens ou as
páginas em branco. Tudo isso muda com o texto eletrônico. Não apenas os
leitores podem submeter o texto a uma série de operações (podem indexá-lo,
mudá-lo de um lugar para outro, decompô-lo e recompô-lo), mas podem também
tornar-se coautores. (CHARTIER, 1999, p. 27)

Pensar essas novas estruturas, tanto no que diz respeito à sua forma significante
quanto de significado, vão de encontro com o que até o momento se convencionou a ser
chamado de leitor e a sua identidade. A inscrição do texto na tela de um computador
promove uma estruturação para o corpo da mensagem que se difere amplamente daquelas
com que se defrontava o leitor da Antiguidade, o leitor medieval e até mesmo o leitor
moderno e contemporâneo do livro manuscrito ou impresso. Historicamente a partir do
final do século XVII e início do século XVIII, quando o livro teve seu acesso difundido, fez
com que surgisse uma nova categoria social, o grande público leitor. Essa replicação,
interferiu na identidade do leitor, antes ligados à aristocracia e ao clero, sendo agora
adaptado ao público recém-iniciado. Conclui-se daí que a identidade leitora está
diretamente convencionada a uma construção histórica. Se antes o livro era encastelado
numa perspectiva de elemento depositário dos saberes mais altos da humanidade, no
decorrer da história ele se transforma como um produto de consumo, mantendo-se como
veículo legítimo de saber e erudição, mas, no entanto, atendendo, de modo menos
complexo, a um público que não poderia dispor de grandes esforços para chegar a um
estado de fruição. A concepção do autor sempre povoou o imaginário coletivo como aquele
que detinha palavras prenhes de valor, enquanto, na outra ponta, o leitor ocupava um papel
de aprendiz.
O livro se estabelece como o mediador qualificado entre autor e leitor,
encarregado de traduzir ou explicar, para leitores supostamente incautos,
significados ocultos e sutilezas estilísticas criadas pela mente “privilegiada” do
autor/erudito/detentor do saber legítimo. (KIRCHOF 2008, p. 131 – grifos do
autor).

150
Com as tecnologias digitais, essa acomodação se reconfigura. Os saberes podem ser
compartilhados, redistribuídos, reconstruídos, juntamente com a identidade do leitor. No
ciberespaço, os sistemas semióticos são também de competência do leitor, figurado, numa
ambiência mais ampla, como coautor.
Soares explicita esse entendimento esclarecendo que:

Enquanto no texto impresso é grande a distância entre o autor e leitor- segundo


Bolter (1991, p.3), o autor do texto impresso é a monumental figure (uma figura
monumental) e o leitor é apenas a visitor in the author’s cathedral (um visitante
na catedral do autor) – no texto eletrônico, a distância entre autor e leitor se
reduz, porque o leitor se torna, ele também, autor, tendo liberdade para construir,
ativa e independentemente, a estrutura e o sentido do texto. Na verdade, o
hipertexto é construído pelo leitor no ato mesmo da leitura: optando entre várias
alternativas propostas, é ele quem define o texto, sua estrutura e seu sentido.
Enquanto no texto impresso, cuja linearidade, por si, já impõe uma estrutura e
uma sequência, o autor procura controlar o leitor, lançando mão de protocolos de
leitura que definam os limites da interpretação e impeçam a superinterpretação,
como propõe Umberto Eco (1995,2001), no texto eletrônico, ao contrário, o autor
será tanto mais competente quanto mais alternativas de estruturação e
sequenciação do texto possibilite, quanto mais opções de interpretação ofereça ao
leitor. ( 2002, p.154)

A ruptura dessas convenções legitimadas até o momento, podem também apontar


para necessidade de a escola igualmente romper com outras barreiras técnicas (de como
lidar com o sistema operacional e internalizá-lo como ferramenta pedagógica) e cultural –
imergindo nesse contexto para compreender o fenômeno, assumindo que ele, como um
procedimento, não equaciona todas os interditos do processo de formação do leitor, nem tão
pouco leva ao fracasso, quando utilizado. Vale a ressalva que o método ao passo que pode
romper fronteiras, vai inevitavelmente se deparar com outras tantas, pois ele é um
organismo vivo e dinâmico. O leitor vai elaborando as competências de manipulação dos
suportes, sendo ele novo ou não. À escola cabe a mediação desse projeto.
Para o leitor da era digital, ou de qualquer outra época, faz-se necessária a prática da
intertextualidade, pois os textos podem dialogar entre si, sendo numa página da web, ou no
livro impresso. Ponto pacífico, no entanto, é considerar que:
O sistema literário, como tal, se torna diferente daquele assumido pelas gerações
anteriores. Alguns afetam aspectos tão básicos como a emergência de um
discurso tecnológico e científico, que eclipsava o prestígio tradicional das
humanidades como disciplinas formadoras das elites sociais, ou como ruptura de
um certo consenso social sobra a importância da aprendizagem literária em favor
de outros usos linguísticos. (...) Qual o efeito que podem ter na leitura as novas
tecnologias? Ainda que seja cedo sabê-lo, parece lógico supor que terão fortes
repercussões. (COLOMER 2007, p. 22)

151
É possível, por fim, pensar na hipótese de que esses sistemas de deslocamentos de
suportes, pode apresentar, mesmo de forma incipiente, um leitor literário do ciberespaço: o
qual seria uma espécie de ciberleitor, dotado de conexões em comunidades virtuais,
perfomatividade, multisequencialidade, pois “o ciberespaço suporta tecnologias intelectuais
que amplificam, exteriorizam e modificam numerosas funções cognitivas humanas:
memória, imaginação, percepção, raciocínio” (LÉVY 1999, p. 157). Qualquer reflexão
sobre as concepções educativas da era contemporânea, bem como a formação do leitor deve
ser respaldada na análise dessas categorias que se relacionam e inter-relacionam com a
elaboração do próprio saber.

5.3 - O PROFESSOR COMO MEDIADOR – AS CONCEPÇÕES ORIENTADORAS

Quero dizer que ficou vazio de sentido o que enunciamos. Razão pelo qual é necessário reencontrar a
verdade da palavra.
Pedro Garcia

As ponderações propostas até então ratificaram a relevância substancial da leitura


enquanto elemento de formação constitutiva do sujeito, sobretudo no mundo
contemporâneo, onde se acentua a necessidade de pessoas cada vez mais capazes de
compreender a complexidade das relações sociais que se interpõem, bem como de
manipularem adequadamente a demanda exponencial das informações que transitam por
elas. Os contextos e cenários que permeiam a vida das novas gerações são múltiplos e
dinâmicos. No entanto, os dispositivos escolares vigentes, a forma de organização dos
espaços e dos tempos de aprendizagem, os estratos curriculares enrijecidos, os sistemas de
ensino, muitas vezes não acompanham esse movimento, causando uma dissonância entre o
que se apresenta como fazer pedagógico e a realidade circundante. Ponto pacífico a
consideração de que, mais do que nunca, almeja-se uma mudança qualitativa relacionada à
escola enquanto instituição de ensino, onde a figura do docente como elemento articulador
no estímulo e orientação da aprendizagem é fundamental. Visto que:
Um professor pode transformar a compreensão de um conteúdo, habilidades
didáticas ou valores em ações e representações pedagógicas. Essas ações se
traduzem em jeitos de mostrar, interpretar ou representar ideias, de maneira que

152
os que não sabem venham a saber, os que não entendem venham a compreender e
discernir e os não qualificados tornem-se qualificados. Portanto, o ensino
necessariamente começa com o professor entendendo o que pode ser aprendido e
como deve ser ensinado. Ele procede com uma série de atividades, durante as
quais os alunos recebem instruções e oportunidades específicas para aprender,
embora o aprendizado propriamente dito seja, em última análise, de
responsabilidade dos alunos. (SHULMAN 2014, p. 205)

No traçado histórico, para alguns teóricos (SAVIANI, 2001; ALARCÃO, 1996), o


entendimento do trabalho docente baseou-se numa concepção epistemológica escolástica,
que respondia a uma lógica de racionalidade cartesiana: “uma mescla de idealismo ingênuo
e mecanicismo técnico, que afirmava uma relação linear e unidirecional da teoria à prática”
(SAVIANI 2001, p. 44). Essa concepção fragmentada reforçava um entendimento ingênuo
e deturpado onde a prática, nada mais era, do que aplicação objetiva da teoria, colocando
indiretamente o docente numa condição passiva no processo, onde o seu papel de
pesquisador, como uma forma de significação autêntica da elaboração do conhecimento do
seu fazer pedagógico ou recurso de iluminação da sua prática, ficava numa esfera
subjacente. Nessa análise, mais do que formação, ao professor interessa uma instrução que
possa extrapolar a mera aquisição e reprodução de conceitos e conteúdos, estimulando o
desenvolvimento de sistemas cognitivos complexos de compreensão e de atuação. O ensino
é uma intricada atividade cognitiva profundamente condicionada por crenças e hábitos
compartilhados socialmente. As mudanças profundas, autênticas e sustentáveis dependem
de rupturas que possam dialogar com outras estruturas instauradas para além dos muros
escolares.
Alarcão (1996), na análise dos estudos de Donald A. Schön sobre a crítica a respeito
do movimento de reflexão docente e sobre os programas de formação de professores,
destaca princípios que julga como essenciais na equação das inquietações propostas até
então: conhecimento na ação (knowing-in-action), reflexão na ação (reflection-in-action),
reflexão sobre a ação (reflection-on-action) e reflexão sobre a reflexão na ação (reflection
on reflection-in-action):

Essas competências, que lhes permite agir no indeterminado, assentam-se num


conhecimento tácito que nem sempre são capazes de descrever, mas que estão
presentes na sua atuação mesmo que não tenham sido pensados previamente. É
um conhecimento que é inerente e simultâneo às suas ações e completa o
conhecimento que lhes vem das ciências e das técnicas que também dominam.
Estas competências, em si mesmas, são criativas porque trazem consigo o

153
desenvolvimento de novas formas de visualizar competências que já possuem e
traduzem-se na aquisição de novos saberes. (p. 16)

Essas sentenças da autora estão abalizadas nas ideias de Schön no que concerne à
ênfase à prática docente reflexiva proposta por ele; uma nova epistemologia do trabalho
docente embasada no conhecimento da ação e na reflexão sobre ela. O primeiro seria uma
espécie de conhecimento tácito, como já mencionado - um fazer espontâneo que está
relacionado com o saber-fazer. Já a reflexão revela sua relevância a partir da execução da
ação e das situações, por vezes inesperadas, inerentes a ela, que demanda uma intervenção
que nem sempre o conhecimento em si da ação, isoladamente, é suficiente. O ideário a
respeito do professor reflexivo tem sido enfatizado nos estudos de vários autores como
Nóvoa (1991;1992;1995), Habermas (1973), Pimenta e Ghedin (2002), entre outros.

No pensar de Shulman a reflexão ocorre quando:


Um professor olha para o ensino e o aprendizado que acabaram de ocorrer e
reconstrói, reencena e/ou recaptura os eventos, as emoções e as realizações. É por
meio desse conjunto de processos que um profissional aprende com a
experiência. (...) um conhecimento analítico aplicado ao trabalho pessoal. (2014,
p.222)

Para o autor as pesquisas, discussões e debates sobre o que os professores precisam


saber e fazer nunca foram tão ativas. Podemos considerar que o magistério possui alguns
pressupostos estabelecidos e acordados, instituídos historicamente: 1- o professor é o
mediador do processo de aprendizagem e responsável direto pelas ações que visem alcançar
este escopo; 2 - que não se aprende apenas na escola, mas sobretudo a escola é o espaço
privilegiado para o acesso às grandes obras do conhecimento acumulado socialmente; 3 -
que a aprendizagem, embora sendo um processo particular, acontece num espaço de
construção coletiva, em diversos níveis de relação; 4 - que o professor aparece em muitas
situações como modelo para os discentes impactados diretamente pelo seu trabalho.
O recorte dessas classificações demarca que o trabalho docente assume em seu
curso várias contingências que têm relação direta com a concretização das finalidades
educativas a que se propõe. A magnitude do trabalho do professor é ampliada, uma vez que
se torna fundamental organizar premissas que estabeleçam reflexão sobre as “verdades e
certezas” que perduram dos tempos passados, permitindo o surgimento de ações mais
integradas ao momento histórico-social. Porque na verdade, ninguém espera um professor

154
qualquer; todos desejam um professor que seja competente. Isso tem angustiado a muitos,
mas considero necessário que os profissionais da educação tomem ciência de que até
mesmo a própria competência está prenhe de muitas dimensões, visto que “temos o dever
de elevar os padrões no interesse do aperfeiçoamento, mas também devemos evitar a
criação de ortodoxias rígidas” (SHULMAN 2014, p.223). Nesse pensar, se demarca a
acuidade necessária no tocante à excessividade técnica do ensino de modo que se evite a
sua formatação como um empreendimento científico frio, sem pujança.
Para Kramer:
O trabalho pedagógico é sempre construído e reconstruído, avança e recua, sofre
influências da escola e de fora dela, de nós mesmos, das crianças, não caminha
monótono, em linha reta, mas traz conflitos, dá saltos, tem contradições e por isso
mesmo pode ser rico, fascinante, revelador. (2001, p.114)

Aprofundando de modo mais pontual, é válida a análise do professor como principal


mediador do processo de formação do leitor na escola. Ao pensarmos esse processo dentro
do contexto escolar, que compreenda o texto como uma fonte de conhecimentos, prazer,
autoconhecimento, chegaremos à conclusão de que a postura do professor terá uma forte
influência dentro das suscetibilidades necessárias ao êxito desta finalidade. O professor
consciente da relevância dessa formação terá que necessariamente ser inovador, criativo,
romper com obviedades e, numa análise mais objetiva, ser um bom leitor. Professor, que
passando pelo crivo da experiência, terá constituído um saber - que Larrosa (2004) chamou
de “saber da experiência” - e consiga contagiar os seus alunos. Não é possível cativar para
o fascínio da leitura sem ter vivenciado esta experiência. A postura docente deve ser a de
quem reconhece a funcionalidade da linguagem, identifica as variedades linguísticas,
reconhece o seu valor social e histórico e se apropriou dos bens culturais a ela vinculados.
Dotado dessa vivência ele saberá que o êxito do seu trabalho em sala de aula para a
formação do leitor deverá ser estimulado com uma variedade textual com multifacetadas
estratégias.
Segundo Kleiman (1998, p. 49):
Quando falamos de estratégias de leitura, estamos falando de operações
regulares para abordar o texto. Essas estratégias podem ser inferidas a partir da
compreensão do texto, que por sua vez é inferida a partir do comportamento
verbal e não verbal do leitor, isto é, do tipo de respostas que ele dá a perguntas
sobre o texto, dos resumos que ele faz, de suas paráfrases, como também da
maneira como ele manipula o objeto: se sublinha, se apenas folheia sem se deter

155
em parte alguma, se passa os olhos rapidamente e espera a próxima atividade
começar, se relê.

Com um trabalho permanente, gradativamente, o aluno pode adquirir um


refinamento no trato com o texto de modo que, aos poucos, ele esteja diretamente ligado à
construção da sua formação. Esta familiaridade vai tornando esse contato com o signo
textual menos desconfortável, concedendo-lhe significações relevantes. Outro grande
equívoco na prática docente é considerar a leitura como uma atividade focada apenas nas
disciplinas curriculares de linguagem: “é importante ressaltar que a palavra escrita é
patrimônio da cultura letrada, e todo professor é, em princípio, representante dessa cultura”
(KLEIMAN 2004, p. 15). A recorrência dessa errônea consideração evidencia um dano
pedagógico imensurável, pois um leitor que tenha apreço pela leitura é um aluno que
dialoga tranquilamente com as outras áreas do conhecimento. O trabalho que o professor
desenvolver no que concerne à leitura dará a ele uma autonomia que o levará a ter um
melhor desempenho também em outras disciplinas curriculares.

Barthes considera o trabalho com o texto literário fundamental ao explicitar que:


Se, por não sei que de excesso de socialismo ou barbárie, todas as nossas
disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto uma, é a disciplina literária
que deveria ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento
literário. (1980, p. 05)
Mesmo diante da irrefutável relevância do trabalho de formação de leitores nos
espaços escolares, é recorrente entre os docentes a dificuldade de alcançar tal escopo, muito
em parte favorecida pelas inúmeras e diferentes concepções do ato de ler que povoam os
projetos pedagógicos escolares. No contato com o fazer educativo, até mesmo de forma
aligeirada, é possível identificar ainda, práticas e metodologias tradicionais no trato com o
texto, onde são preconizadas memorização e exigência de uma interpretação única ou
universalizada na compreensão dos textos lidos, rechaçando os múltiplos processos
cognitivos que podem ser desenvolvidos por meio dessa ação.28

28
13. A. M. Chartier, “La littérature de jeunesse à l’école primaire:histoire d’une reencontre
inachevée”, in H. Zoughebi, La litterature dès l”alphabet, Paris, Gallimard, 2002, p. 141-157, ao tratar sobre
os estudos da história educativa demonstra que professores sempre se inclinaram para os textos informativos,
considerando-os fáceis de entender e de controlar ante as sutilezas das leituras literárias. Sua crença era
compartilhada pelos pais de amplos setores sociais, que pensavam que seus filhos não podiam perder tempo
em divagações. Então, como agora em tantas regiões pouco alfabetizadas, a literatura foi vista como um luxo
supérfluo, algo próprio das elites sociais e abissalmente distanciado das necessidades da maioria da
população, que deveria aprender a linguagem escrita o mais depressa possível para poder ganhar a vida.

156
Uma dualidade demarca essa consideração revelando de forma dicotômica uma
pedagogia de leitura impositiva versus uma pedagogia de leitura de estímulo. Algo que
ainda se faz presente nos espaços escolares, mas que segundo Chartier e Hébrard, oferece
atualmente uma imagem mais tranquila com base nas acomodações práticas de sala de aula:
Depois de um século, o modelo moderno de leitura parece ter triunfado. Na
realidade, os dois modelos subsistem, mas o paradoxal está em que se deixou de
vê-los como modelos contraditórios: a nova norma é que deve-se ler ao mesmo
tempo para informar-se e para formar-se recorrendo, simultaneamente, a
aprendizagens didáticas eficazes e à leitura de entretenimento ou prazer, tanto
para instruir-se como para distrair-se, instruir-se e distrair-se muito e bem, rápida
e lentamente. É na escola onde se inventa claramente este modelo contemporâneo
de leitura, pois ela não pode abandonar a leitura de formação, que constitui a base
de suas práticas, nem pode rechaçar a leitura de informação que dá crédito a seus
discursos. (1998 apud COLOMER 2007, p. 41)

No entanto, a elevação qualitativa da mudança depende de um movimento,


representado, segundo Silva, na capacidade de:
Questionar profundamente as próprias posições filosóficas, epistemológicas,
políticas e ideológicas. Significa entender-se como ser histórico e perguntar-se
sobre suas intencionalidades sobre o que é diferente, informar-se, polemizar. É
mexer com seu corpo, voz, postura, é mexer com sua família, com seu grupo
social...é ter uma permanente frente de luta, assumir conflitos pelo alcance que
possam ter não apenas na própria história individual do aluno, mas pelo que
possam significar na sua esfera humana. É descobrir que não é simplesmente no
campo das ideias que se travam as grandes lutas, mas também na práxis. Para
tanto é preciso tolerar a ambiguidade, a transitoriedade, a insegurança, a solidão.
É saber-se construtor na provisoriedade e no possível. (2010, p. 37)

Em outras palavras, segundo Dauster:


A formação do leitor não pode resumir-se aos processos escolares, mas deve
assentar-se sobre uma política cultural e uma prática cultural/comunicativa
ampla. Se desejamos formar leitores que não sejam simples decodificadores e
identificadores do código, mas intérpretes que fazem da leitura uma prática
criadora de sentido histórico e social. (1994, p.75)

Agregar aos objetivos essenciais do trabalho docente a mediação sistemática para a


aquisição da habilidade leitora, o domínio do texto, a produção de sentido e a compreensão
que demandam da sua manipulação seria de grande valia no cenário nacional da educação.
Entre os educadores é recorrente a afirmação de que o fracasso escolar em muitas
instituições está demarcado pela dificuldade encontrada pelos alunos em relação à leitura e

157
interpretações dos enunciados. O professor consciente da importância desse trabalho, ao
desempenhar a sua função, tem a possibilidade de evidenciar em muitos, impressões
positivas sobre a leitura, mas, entretanto, compreendendo também que “a leitura não é
intrinsecamente boa, sempre legítima, com efeitos positivos sobre o indivíduo” (SOARES,
2003, p.30). A maioria dos discursos sobre leitura desconsidera que ela é “prática
ideológica, enraizada e difusora de visões de mundo, veículo de inculcação de valores,
podendo, portanto, ter efeitos e consequências diversos” (ibid, p.30). Para Larrosa a
experiência com a leitura tem que garantir o espaço à problematização, tornando o espaço
escolar um lugar de debates, de construção e des/reconstrução de conhecimentos: “eu acho
que ler serve, sobretudo, para fazer perguntas. E não importa se são novas perguntas ou se
são perguntas de sempre” (2002, p.316).

Os livros não garantem por si só a experiência da leitura, nem tão pouco, de modo
objetivo a mediação, no entanto, no segundo caso, a possibilidade de ela acontecer fica
muito mais factível. Um clássico exemplo de mediação de leitura foi o realizado por
Alberto Manguel, ainda adolescente, que se propôs a ler para Jorge Luís Borges, já idoso e
quase totalmente cego. Ele mediou por um por um tempo a leitura de vários livros para
Borges que se colocava como um atento ouvinte. Ao passo que as narrativas iam se
destrinchando, Manguel vivia a experiência de reformular e reorganizar a sua “estante
imaginária”, seu repertório particular de livros e histórias. A visão de Borges era a do
jovem mediador, mas ao mesmo tempo era essa vivência literária que ampliava o olhar do
próprio Manguel sobre a vida e sobre o mundo.

Em seu relato ele pondera:


Jamais tive a sensação de apenas cumprir um dever durante minhas leituras para
Borges: ao contrário, era como se fosse uma espécie de cativeiro feliz. Eu ficava
fascinado, não tanto pelos textos que me fazia descobrir (muitos dos quais
acabaram por se tornar meus favoritos também), mas por seus comentários, nos
quais havia uma erudição imensa, mas discreta e que podiam ser muito
engraçados, às vezes cruéis, quase sempre indispensáveis. (...) Antes de encontrar
Borges, eu lia em silêncio, sozinho, ou alguém lia em voz alta para mim um livro
de minha escolha. Ler para um cego era uma experiência curiosa, porque, embora
com algum esforço eu me sentisse no controle do tom e do ritmo da leitura, era,
todavia, Borges, o ouvinte, que se tornava o senhor do texto. Eu era o motorista,
mas a paisagem, o espaço que se desenrolava, pertenciam ao passageiro, para
quem não havia outra responsabilidade senão a de apreender o campo visto das
janelas. Borges escolhia o livro, Borges fazia-me parar ou pedia que continuasse.
Borges interrompia para comentar, Borges permitia que as palavras chegassem
até ele. Eu era invisível. (MANGUEL 1997, p. 33)

158
No fluxo das considerações sobre as estruturas mencionadas, fez-se necessário
ainda o aditamento de um aspecto fundamental, a meu ver, ao fazer docente: a constituição
da consciência filosófica (SAVIANI, 1982) e o entendimento dos mecanismos que compõe
o que Mills (1980) classificou de “artesanato intelectual”. Em ambos os casos, os autores
consideram imprescindível que o educador assuma um papel reflexivo radical, rigoroso e
de conjunto sobre os problemas que a realidade educacional apresenta, a fim de oportunizar
estratégias de enfrentamentos adequadas e eficazes que podem advir dos resultados
encontrados nas pesquisas em educação. Assim sendo, considera-se que uma ação
pedagógica significativa é indissociável de pressupostos filosóficos. No entanto, sob a ótica
do pragmatismo vigente, a filosofia muitas vezes é colocada em segundo plano ou utilizada
de modo superficial. O grande desafio é conceber a reflexão como parte essencial do fazer
pedagógico e atrelar isto, como um imperativo que necessariamente se fará presente nas
ações cotidianas escolares.

Nessa ótica o grande aliado do professor, não são apenas os instrumentos técnicos
que ele dispõe para o trabalho e sim o que ele traz em si sobre os aspectos históricos,
filosóficos, políticos, antropológicos na sua estrutura constitutiva. O valor dessa percepção
se dará por meio da capacidade de exprimir aquilo que não está aparente, compreendendo
as teorias do contexto a que ela se originou e mais adiante o seu próprio desenvolvimento;
nomeando os fenômenos sociais, a fim de tornar sua reflexão mais próxima do real. Mais
do que nunca a imagem do artesão intelectual retoma com ascendência no tocante à
formação do leitor, pois este é um processo laborioso, de destreza e perseverança. Os
avanços e recuos, o agregar e o abandonar alguns procedimentos pré-definidos, compõem
uma tessitura perfazendo uma teia de relações. A consciência do ofício do que se chama de
trabalhador intelectual (MILLS, 1980) é uma construção processada em etapas que vão
potencializando as possibilidades do êxito da proposta. Essa consciência filosófica pode
impactar os alunos nas suas subjetividades tornando o ensino significativo, premissa
essencial principalmente no processo de formação do leitor, pois retemos com mais
propriedade aquilo que nos marca.

A esse respeito, Franz Kafka certa vez escreveu:

159
De modo geral, acho que devemos ler apenas os livros que nos cortam e nos
ferroam. Se o livro que estivermos lendo não nos desperta como um golpe na
cabeça, para que perder tempo lendo-o, afinal de contas? (...) Precisamos de
livros que nos toquem como um doloroso infortúnio, como a morte de alguém
que amamos mais do que a nós mesmos, que nos façam sentir como se
estivéssemos sido expulsos do convívio para as florestas, distantes de qualquer
presença humana, como um suicídio. Um livro tem de ser o machado que rompe
o oceano congelado que habita dentro de nós. (1998 apud FISCHER 2006, p.
285)

Aqui fica evidente a paixão do escritor pelo texto literário, demarcada por uma
relação profunda e particular com o mesmo. Apesar de não podermos tomar esta
consideração como característica essencial a um bom leitor, observo que a relação com a
leitura tem que ser algo que vá ao encontro de nossas sensações, que pode ser oportunizado
a partir de um trabalho docente com suscetibilidades ideológicas e filosóficas. É necessário
um traço de humanização no trabalho docente no trato com a leitura, pois ela vai interagir
diretamente com a formação moral, intelectual, afetiva, social do aluno que podem deixar
marcas profundas positivas ou não. A sensibilidade é um fator determinante para o êxito do
trabalho com promoção de leitura no ambiente escolar e para o refinamento da percepção
estética que por ela transita. Muitas vezes a indisciplina ou a desmotivação discente se dá
pelo fato do aluno assumir um papel meramente coadjuvante no processo de aprendizagem
e no contato com o texto. O processo pelo qual o indivíduo internaliza a leitura vai além da
mera absorção, propicia a transformação. A literatura como sistema simbólico e,
particularmente, a linguagem poética exercem um papel fundamental nesta formação.

Para Solé (1998, p.22):


O leque de objetivos e finalidades que faz com que o leitor se situe perante um
texto é amplo e variado: devanear, preencher um momento de lazer e desfrutar,
procurar uma informação concreta; seguir uma pauta ou instruções para realizar
uma determinada atividade (cozinhar, conhecer as regras de um jogo); informar
sobre um determinado fato (ler o jornal, ler um livro de consulta sobre a
Revolução Francesa); confirmar ou refutar um conhecimento prévio; ampliar a
informação obtida com a leitura de um texto na realização de um trabalho etc.

Tais paradigmas supracitados, assim como tantas outras demandas protocolares do


fazer docente, se apresentam como desafios para o professor. No entanto, a mediação no
processo de formação do leitor literário como exercício do ofício intelectual pode garantir
um êxito no desenvolvimento cognitivo dos educandos, diminuindo as distorções entre as

160
inferências do contexto social e as subjetividades presentes no cotidiano escolar,
produzindo um diálogo produtivo entre ambas, redesenhando narrativas que gerem um
conhecimento agregador de valores construtivos e elucidativos do homem como ser
histórico e social.

6 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Ruth Rocha, a conhecida autora de livros infanto-juvenis, contou que num


encontro com meninos a quem ia narrar suas histórias, um deles cismou de lhe
pedir a da Chapeuzinho Vermelho. “Essa não é minha”, cansou de explicar. Não

161
adiantava. Capitulou: “Está bem, vou contar. Mas por que você quer tanto a da
Chapeuzinho Vermelho?” Pulando no seu colo, o impertinente explicou: “É pra
sentir aquele medinho gostoso, quando o lobo disfarçado entra no quarto pra
comer a vovozinha!” (GARCIA e DAUSTER 2003, p. 13)

O relato acima foi proferido pelo escritor brasileiro Joel Rufino e serve como
ilustração para evidenciar que a narrativa literária pode ir ao encontro das nossas emoções,
pode despertar inúmeras sensações e fundamentar-se como um traço de humanização na
formação constitutiva de nós, enquanto sujeitos. Essa premissa permeou todas as reflexões
propostas por esse estudo que por ora se encerra e tem, como pretensão, esboçar algumas
finais considerações.
O trabalho de inserção no campo de pesquisa teve por objetivo acompanhar o
projeto do Clube de leitura desenvolvido no interior da E.M. Zona Rural, mediado por um
grupo de professores e coordenado pela professora Vera. De modo geral, a proposta estava
pautada na necessidade de oferecer um tempo de prática leitora, desvinculada dos estratos
curriculares, por vezes austeros e enfadonhos, de modo que a mesma ocorresse de forma
fluida e despretensiosa. Nesse caminho, a partilha dos signos textuais, das modalidades de
gêneros, das estruturas narrativas, dividiu espaço com a ambivalência dos sentimentos
provocada pela leitura, com as memórias suscitadas, com os desconfortos emocionais e,
sobretudo, com a fantasia que descortina horizontes. O texto literário era o fio condutor,
envolto num mecanismo aparentemente muito simples: os escritos lidos em voz alta por um
mediador e depois, entre os participantes, uma discussão a respeito ou até mesmo o
silêncio. Colomer (2007) defende que a literatura é um dos instrumentos humanos que
melhor ensina a “se perceber”. A autora discorre sobre a metáfora de que todo o texto
apresenta em dado percurso alguma sombra, como se estivéssemos numa selva. No entanto
a literatura fornece as luzes capazes de nos mostrar caminhos; as trilhas que podem permitir
que sobrevivamos: “ilumina as relações mais complexas entre os fenômenos e
acontecimentos, para ver o mundo de forma mais inteligível” (p.70).
Os discursos proferidos no decorrer do Projeto do Clube de leitura eram produzidos
num processo de interlocução com alguma referência textual, não de forma aleatória. O
texto literário desencadeava esse processo, pois ele estimulava o acesso a níveis sensoriais
capazes de abrir canais de comunicação muito significativos. O projeto injetou vida ao
texto.

162
A linguagem não pode ser reduzida a uma ferramenta de comunicação, a um
simples vínculo de informação. A linguagem nos constitui. Quanto mais somos
capazes de dar nome ao que vivemos, às provas que enfrentamos, mais aptos
estaremos para viver, para nos tornamos sujeitos de nossos próprios destinos.
Podem nos quebrar, nos mandar embora, nos insultar com palavras e também
com silêncios. Outras palavras, porém, nos dão lugar, nos acolhem, nos permitem
voltar às fontes, nos devolvem o sentido de nossas vidas. (PETIT 2013, p. 112)

Essa reflexão sobre a importância da leitura oportunizada por meio da teoria


(mediada pelos autores) e da prática (pelas vivências do Clube), do texto literário na
elaboração das nossas subjetividades, na ampliação do ideário da inventividade, da
imaginação e da nossa própria visão de mundo, evidenciou que, neste processo, alguns
estímulos podem ser otimizados pela família, no entanto, a escola se apresenta como um
espaço privilegiado para esta formação. Com uma metodologia adequada, com variadas
oportunidades leitoras, voltadas não apenas para técnicas de interpretação, mas acima de
tudo para a ambiguidade do texto, o meio-tom, a conotação, pode se desenvolver o gosto e
o hábito de ler.
Nesse percurso, o estudo dá relevo ao trabalho docente que pode acontecer de forma
colaborativa, por meio de uma ação dialógica, na troca de experiência e vivências. Esse
trabalho pode favorecer ainda o aperfeiçoamento da pessoa humana, concedendo-lhe
elementos para o exercício da cidadania na complexidade com o mundo contemporâneo. O
conhecimento produzido no espaço escolar pode ser compreendido como ferramenta de
iluminação, dando clarividência às questões e nomeando os fenômenos que compõem as
relações sociais. Kramer (2000, p.24) declara que “não é por ingenuidade ou romantismo
que valorizo a leitura literária como uma importante experiência de formação. É porque
julgo que aqui está em jogo o resgate da produção cultural para a crítica, o avanço, a
transformação”.

No diálogo com os autores presentes nesta pesquisa evidenciou-se a necessidade de


a escola arejar as suas práticas leitoras, ampliando a utilização do texto literário, que muitas
vezes serve apenas como pretexto para introduzir aspectos gramaticais ou fixar parâmetros
de comportamentos, sobrepondo-se ao estético inerente a ele. As discussões aqui
apresentadas, comprovaram que o texto não é dotado de apenas um significado; mas possui
um panorama interativo, onde estão embutidos conceitos como o da enunciação,

163
dialogismo, intertextualidade, que oportunizam uma relação aberta com o leitor, ampliando
a sua significação.

A escola pode se empenhar substancialmente à concretude desse objetivo de formar


um leitor competente, que segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais:

Se classifica como alguém que consegue utilizar estratégias de leituras adequadas


de forma a atender a sua necessidade. Alguém que compreenda o que lê; que
possa aprender a ler também o que não está escrito, identificando elementos
implícitos; que estabeleça relações entre o texto que lê e outros textos já lidos;
que saiba que vários sentidos podem ser atribuídos a um texto; que consiga
justificar e validar sua leitura a partir da localização de elementos discursivos.
(BRASIL 1997, p. 54)

Para alcançar essa finalidade é necessário que ela reflita e redescubra sua postura
diante de suas práticas leitoras, muitas vezes desempenhada de forma equivocada.
Programam-se, em muitas delas, palestras com escritores, criam-se estratégias para o
estímulo da leitura nas aulas; o aluno lê, entusiasma-se pelo enredo, vive a vida das
personagens, saboreia o texto para, em seguida, reduzir todo o processo a uma tarefa
enfadonha: cobra-se a leitura em forma de fichamentos ou avaliações escritas. O prazer do
processo interativo com o livro revela-se sob esse aspecto, como uma atividade
mecanizada, onde o aluno continuará lendo, apenas para atender a uma exigência protocolar
e não pelo gosto à leitura. A função pedagógica neste contexto aparece tão carregada de
objetivos didáticos que a linguagem literária pode se perder.
A pesquisa revelou que o professor poderá romper com este modelo,
ressignificando-o e mediando esse processo, pois ele atua diretamente com os alunos e pode
mensurar com mais propriedade o impacto das ações voltadas para a formação de leitores
junto aos mesmos. Porém, deve-se atentar ao cuidado de não estorvar a descoberta do texto,
imprimindo nele uma impressão pessoal apenas ou a impressão institucionalizada do senso
comum prevalecente. Algo que deve ser demarcado com o diálogo entre as experiências
(professor e aluno) conclamadas diante do texto, imersos num cotidiano de suscetibilidades
da circulação das ideias e pensamentos.

Analisando o campo de pesquisa, concluo que acompanhar o desenvolvimento da


prática pedagógica da E.M. Zona Rural concernente à formação de leitores me auxiliou a
compreender como este processo se aplica em contextos distintos e de como ele se
acomoda junto aos alunos pertencentes a esse universo. O estudo demarcou que a proposta

164
pedagógica em questão possuía alguns fatores que contribuíram positivamente para o êxito
do seu trabalho com literatura, tais como: 1. Um projeto específico para formação de
leitores – a professora Vera ao analisar a sua prática preconizou uma ação específica e
articulada voltada para a formação de leitores que pudesse estabelecer com o texto uma
relação de prazer, o que possibilitou consequentemente um redimensionamento cognitivo
dos seus alunos; 2. Professores comprometidos com seu fazer docente – este aspecto foi
determinante para o êxito do projeto literário da escola em questão. Os professores
envolvidos tinham consciência da relevância de seu papel como educadores, estavam
dispostos a compartilhar suas experiências para construírem novos caminhos para os alunos
e atuaram num regime de colaboração. Ademais, conheciam a comunidade onde estavam
operando e, sobretudo, possuíam uma experiência leitora.

Sobre esta questão, Larrosa considera:


Mostrar uma experiência é mostrar uma inquietude. O que o professor transmite é
a sua escuta, a sua abertura, a sua inquietude. Seu esforço deve estar dirigido no
sentido de que essas novas formas de atenção não anulem por qualquer forma de
dogmatismo ou de satisfação. Neste caso, ter apreço pela leitura não é opor um
saber contra outro saber (o saber do professor contra o do aluno ainda
insuficiente), mas é colocar uma experiência junto a outra experiência. ( 2002,
p.151).

Mesmo tendo abandonado alguns “dogmas” que cultivei ao longo de minha vida
profissional como professor, durante a pesquisa, reforcei algumas convicções. Aprendi com
os alunos da E.M. Zona Rural que embora os determinismos sociais e familiares
influenciem muito, cada um tem uma história particular, construída através de encontros e
descobertas que ocorrem de forma singular, que pode reelaborar a relação com o mundo e
com a vida, oportunizando outros deslocamentos. Compreendi que a linguagem não serve
apenas a uma dada camada social, mas ela é um instrumento de construção dos sujeitos.
Quanto mais formos capazes de nomear o que vivemos, mais aptos estaremos
para vivê-lo e transformá-lo.(...) Quando se é privado de palavras para pensar
sobre si mesmo, para expressar sua angústia, sua raiva, suas esperanças, só resta o
corpo para falar: seja o corpo que grita com todos os seus sintomas, seja o
enfrentamento violento de um corpo contra o outro.” (PETIT 2008, p. 71)

Ao analisar o fazer pedagógico da escola, ficou demarcado que a leitura pode ser
um suporte de resistência contra as formas de opressão sociais, contra os totalitarismos e
sobre todos aqueles que querem nos manipular e imobilizar. A experiência estabelecida a

165
partir da leitura pode nos conceder uma compreensão mais abrangente sobre a própria
condição humana. Evidenciou-se que o trabalho com a formação de leitores tem múltiplas
possiblidades e ele se constrói no diálogo com todos os participantes deste processo; a
democratização da leitura e o acesso aos livros ocorrem a partir de uma determinação, da
imaginação, de um questionamento diário das formas mais adequadas para que ele se
estabeleça e conquiste o interesse dos alunos. Constatei ainda que este trabalho se amplia
no momento em que se propõe não apenas a fazer com que os alunos se tornem exímios
leitores ou adquiram erudição, mas, que acima de tudo se apropriem da leitura como forma
de construção de si mesmos e como elaboração da sua liberdade. A pesquisa revelou que
embora a contemporaneidade apresente vários suportes de leituras - que não podem ser
ignorados ou negligenciados neste processo - o livro se mantém como uma ferramenta
valiosa do pensamento e da elaboração do imaginário. Pois, segundo Petit:
São hospitaleiros e nos permitem suportar os exílios de que cada vida é feita,
construir nossos lares interiores, inventar um fio condutor para nossas histórias,
reescrevê-las dia após dia. E algumas vezes eles nos fazem atravessar oceanos,
dão-nos o desejo e a força de descobrir paisagens, rostos nunca vistos, terras onde
outra coisa, outros encontros serão talvez possíveis. Abramos as janelas, abramos
os livros. (2009, p. 266)

Assim, a partir dessa provocação, encerro. Ou melhor, recomeço essa busca pelo
sentido, pela palavra, pela emancipação da minha prática educadora. Que as reflexões aqui
apresentadas, possam ampliar, em muitos, esse desejo e potencializar o chão da escola
como um espaço privilegiado para a formação do leitor: um leitor da vida, um leitor de si
mesmo, um leitor de mundo.

166
ANEXO 1
. TEXTO: O abridor de latas de Millôr Fernandes
Pela primeira vez no Brasil um conto escrito inteiramente em câmera lenta.
Quando esta história se inicia já se passaram quinhentos anos, tal a lentidão com
que ela é narrada. Estão sentadas à beira de uma estrada três tartarugas jovens, com 800
anos cada uma, uma tartaruga velha com 1.200 anos, e uma tartaruga bem pequenininha
ainda, com apenas 85 anos. As cinco tartarugas estão sentadas, dizia eu. E dizia-o muito
bem pois elas estão sentadas mesmo. Vinte e oito anos depois do começo desta história a
tartaruga mais velha abriu a boca e disse:
- Que tal se fizéssemos alguma coisa para quebrar a monotonia dessa vida?
- Formidável - disse a tartaruguinha mais nova 12 depois - vamos fazer um
piquenique?
Vinte e cinco anos depois as tartarugas se decidiram a realizar o piquenique.
Quarenta anos depois, tendo comprado algumas dezenas de latas de sardinha e várias dúzias
de refrigerante, elas partiram. Oitenta anos depois chegaram a um lugar mais ou menos
aconselhável para um piquenique.
- Ah - disse a tartaruguinha, 8 anos depois - excelente local este!
Sete anos depois todas as tartarugas tinham concordado. Quinze anos se passaram e,
rapidamente elas tinham arrumado tudo para o convescote. Mas, súbito, três anos depois,
elas perceberam que faltava o abridor de latas para as sardinhas.
Discutiram e, ao fim de vinte anos, chegaram à conclusão de que a tartaruga
menor devia ir buscar o abridor de latas.
- Está bem - concordou a tartaruguinha três anos depois - mas só vou se vocês
prometerem que não tocam em nada enquanto eu não voltar.
Dois anos depois as tartarugas concordaram imediatamente que não tocariam em
nada, nem no pão nem nos doces. E a tartaruguinha partiu.
Passaram-se cinquenta anos e a tartaruga não apareceu. As outras continuavam
esperando. Mais 17 anos e nada. Mais 8 anos e nada ainda. Afinal uma das tartaruguinhas
murmurou:
- Ela está demorando muito. Vamos comer alguma coisa enquanto ela não vem?

167
As outras concordaram, rapidamente, dois anos depois. E esperaram mais 17 anos.
Aí outra tartaruga disse:
- Já estou com muita fome. Vamos comer só um pedacinho de doce que ela nem
notará.
As outras tartarugas hesitaram um pouco mais; 15 anos depois, acharam que deviam
esperar pela outra. E se passou mais um século nessa espera. Afinal a tartaruga mais velha
não pôde mesmo e disse:
- Ora, vamos comer mesmo só uns docinhos enquanto ela não vem.
Como um raio as tartarugas caíram sobre os doces seis meses depois. E justamente
quando iam morder o doce ouviram um barulho no mato por detrás delas e a tartaruguinha
mais jovem apareceu:
- Ah, murmurou ela - eu sabia, eu sabia que vocês não cumpririam o prometido e
por isso fiquei escondida atrás da árvore. Agora não vou buscar mais o abridor, pronto!
Fim (30 anos depois)

168
ANEXO 2
TEXTO: O pote vazio
Há muito tempo, na China, vivia um menino chamado Ping, que adorava flores.
Tudo o que ele plantava florescia maravilhosamente. Flores, arbustos e até imensas árvores
frutíferas desabrochavam como por encanto. Todos os habitantes do reino também
adoravam flores. Eles plantavam flores por toda a parte e o ar do país inteiro era
perfumado. O imperador gostava muito de pássaros e outros animais, mas o que ele mais
apreciava eram as flores. Todos os dias ele cuidava de seu próprio jardim. Acontece que o
imperador estava muito velho e precisava escolher um sucessor. Quem podia herdar seu
trono? Como fazer essa escolha? Já que gostava muito de flores, o imperador resolver
deixar as flores escolherem.
No dia seguinte, ele mandou anunciar que todas as crianças do reino deveriam
comparecer ao palácio. Cada uma delas receberia do imperador uma semente especial. –
Quem provar que fez o melhor possível dentro de um ano – ele declarou – será meu
sucessor. A notícia provocou muita agitação. Crianças do país inteiro dirigiram-se ao
palácio para pegar suas sementes de flores. Cada um dos pais queria que seu filho fosse
escolhido para ser o imperador, e cada uma das crianças tinha a mesma esperança. Ping
recebeu sua semente do imperador e ficou felicíssimo. Tinha certeza de que seria capaz de
cultivar a flor mais bonita de todas. Ping encheu o vaso com terra de boa qualidade e
plantou a semente com muito cuidado. Todos os dias ele regava o vaso. Mal podia esperar o
broto surgir, crescer e depois dar uma linda flor.
Os dias se passaram, mas nada crescia no vaso. Ping começou a ficar preocupado.
Pôs terra nova e melhor num vaso maior. Depois transplantou a semente para aquela terra
escuta e fértil. Esperou mais dois meses e nada aconteceu. Assim se passou o ano inteiro.
Chegou a primavera e todas as crianças vestiram suas melhores roupas para irem
cumprimentar o imperador. Então correram ao palácio com suas lindas flores, ansiosas por
serem escolhidas. Ping estava com vergonha de seu vaso sem flor. Achou que as outras
crianças zombariam dele por que pela primeira vez na vida não tinha conseguido cultivar
uma flor. Seu amigo apareceu correndo, trazendo uma planta enorme:
- Ping, disse ele, você vai mesmo se apresentar ao imperador levando um vaso sem
flor? Por que não cultivou uma flor bem grande como a minha?

169
- Eu já cultivei muitas flores melhores do que a sua, disse Ping. - Foi essa semente
que não deu nada.
O pai de Ping ouviu a conversa e disse:
- Você fez o melhor que pôde, e o possível deve ser apresentado ao imperador.
Ping dirigiu-se ao palácio levando o vaso sem flor. O imperador estava examinando
as flores vagarosamente, uma por uma. Como eram bonitas! Mas o imperador estava muito
sério e não dizia uma palavra. Finalmente chegou a vez de Ping. O menino estava
envergonhado, esperando um castigo.
O imperador perguntou:
- Por que você trouxe um vaso sem flor?
Ping começou a chorar e respondeu:
- Eu plantei a semente que o senhor me deu e a reguei todos os dias, mas ela não
brotou. Eu a coloquei num vaso maior com terra melhor, e mesmo assim ela não brotou. Eu
cuidei dela o ano todo, mas não deu nada. Por isso hoje eu trouxe um pote vazio. Foi o
melhor que eu pude fazer. Quando o imperador ouviu essas palavras, um sorriso foi se
abrindo em seu rosto e ele abraçou Ping.
Então ele declarou para todos ouvirem: - Encontrei! Encontrei alguém que merece
ser imperador! - Não sei onde vocês conseguiram essas sementes, pois as que eu lhes dei
estavam todas queimadas. Nenhuma delas poderia ter brotado. Admiro a coragem de Ping,
que apareceu diante de mim trazendo a pura verdade. Vou recompensá-lo e torná-lo
imperador deste país.

170
ANEXO 3 – FORMULÁRIO
NOME: ____________________________________________________________
IDADE: ____________ SEXO: M ( ) F( )

FAMÍLIA
MORA PRÓXIMO À ESCOLA? S ( ) N( )
FORMA DE SUSTENTO/TRABALHO: FORMAL ( ) INFORMAL ( )
PROFISSÃO: ______________________________
MORA COM OS PAIS: S ( ) N ( ) OUTROS:
______________________
MOTIVO: DESCONHECIDO ( ) MORTE ( ) SEPARAÇÃO ( )

VOCÊ TRABALHA PARA AJUDAR EM CASA? S ( ) N( )


SUA CASA É: PRÓPRIA ( ) ALUGADA ( ) OUTROS:
_______________
ELA É DE: ALVENARIA ( ) MADEIRA ( ) OUTROS ( )
COBERTURA: LAJE ( ) TELHA ( ) OUTROS ( )
A ÁGUA É: CEDAE ( ) POÇO ( ) OUTROS ( )
EM CASA COMPRA-SE: LIVROS ( ) JORNAIS ( ) REVISTAS ( )
NENHUM DESSES ( )

POSSUI CELULAR: S ( ) N( )
TEM COMPUTADOR EM CASA: S ( ) N( )
CONEXÃO Á INTERNET: S ( ) N( ) OUTROS: ______________
TEM RELIGIÃO: S ( ) N( ) QUAL: _______________________

171
ANEXO 4 – ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA
IDENTIDADE E APROXIMAÇÃO
1. Qual é o seu nome?
2. Quantos anos você tem?
3. Você tem irmãos? Quantos?
4. Você mora com seus pais?

SOBRE A LEITURA
1. Você gosta de ler?
2. Qual foi o último livro que você leu? Onde você o conseguiu?
3. Qual é a importância do Clube de leitura para você?
4. Você acha que lê agora mais do antes?
5. Você tem um sonho? Acha que os estudos, a leitura pode te ajudar a realizá-los?

SOBRE A TECNOLOGIA
1. Você tem celular? Tem internet?
2. Para que, geralmente, você utiliza o celular e/ou a internet?
3. Em casa ou na escola?
4. O que você lê na internet?

172
ANEXO 5 - FORMULÁRIOS INTERNET

1. QUE TIPO DE INFORMAÇÃO VOCÊ BUSCA NA INTERNET COM MAIS


FREQUÊNCIA?
( ) SAÚDE E BELEZA ( ) ESPORTE
( ) POLÍTICA
( ) LAZER E VIAGEM ( ) MUNDO DOS
FAMOSOS
( ) MÚSICA E VÍDEO ( ) EDUCAÇÃO E
PESQUISA
( ) SITES DE COMPRAS ( ) LITERATURA

2. QUAIS SÃO OS TIPOS DE SITES QUE VOCÊ MAIS ACESSA?


( ) REDES SOCIAIS ( ) SITES DE BUSCA E PESQUISA
( ) YOUTUBE

3. COMO VOCÊ LER AS INFORMAÇÕES E O TEXTOS QUE VOCÊ


PESQUISA NA INTERNET?
( ) LÊ NA ÍNTEGRA
( ) VAI DIRETO AO PONTO, PULANDO AS PARTES DO TEXTO
( ) PROCURA POR TÓPICOS
( ) PROCURA POR IMAGENS QUE EXPLICAM O TEMA
PROCURADO
( )PROCURA NA INTERNET, MAS PREFERE PESQUISAR NOS
LIVROS

4. QUAL A SUA OPINIÃO SOBRE AS INFORMAÇÕES QUE VOCÊ


PROCURA NA INTERNET?
( ) TE AJUDAM A ADQUIRI ALGUM NOVO CONHECIMENTO
( ) INFLUENCIAM A SUA VIDA
( ) FAZ VOCÊ MUDAR DE OPINIÃO
( ) NÃO INTERGEREM NO SEU PONTO DE VISTA

Nome: _____________________________________________________________

173
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