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JOSE ORTEGA Y GASSET ‘ MEDITACGES DO QUIXOTE ‘Tradugao de Ronald Robson LL ost oRrEcA¥ Gasser E ainda uma tiltima palavra. O leitor descobrir4, se no me equivoco, até os tiltimos rincdes destes ensaios, o pulsar da preocupacio patriética. Tan- to quem os escreve como a quem se dirigem origi- naram-se espiritualmente na negagio da Espanha caduca, Ora bem: a simples negag&o € uma impie- dade. O homem pio ¢ honrado, quando nega, con- trai a obrigagao de edificar uma nova afirmacio; de tentar edificd-la, entenda-se. Assim nés, Tendo negado uma Espanha, vemo- -nos na gestal? de encontrar uma outra, Essa tarefa de honra no nos deixa vi et. Por isso, caso se pe- netrasse até as mais intimas ¢ pessoais de nossas meditagdes, serfamos surpreendidos fazendo com as mais humildes luzes de nossa alma experimentos de uma nova Espanha. Madri, julho de 1914. 13 O termo original € paso bonroso, referencia ao episodio em que fo nabee leonés Dom Svero de Quifones (1409-1456) desafiou a todo e qualquer cavaleio que desejassecruzar a ponte sobre 0 rio Grbigo entre Leto ¢ Ascorga: quem nao se dispusesse ao embate, jsto é,a passar com honta, que trasse uma das luas e, diante de todos, erurasse pela igua, Naerados por Peco Rodefguer de Lena, (0s feitos do nobre leonésoriginaram El fibro del passo hones, luma das grandes expresses do idedrio cavalheiesco na literatura espantiola— a MEDITAGAO PRELIMINAR, {st etwas der don Quixote nur eine Posse? E porventura Dom Quixote s6 uma bufonaria? Hermann Cohen, Ethik des reinen Willens, p. 487 monastétio de El Escorial se levanta sobre tum oute'ro. A encosta meridional desse ou- teiro desce recoberta por um pequeno bos- ‘que, composto ao mesmo tempo de carvalhos e de freixos. O local se chama “La Herreria”. © imenso volume arroxeado do edificio muda, segundo a esta~ ‘do, 0 seu carter de acordo com esse manto de mata cespessa que se estende a seus pés, 0 qual é acobreado no inverno, éureo no outono ¢ verde-escuro no ve- ‘io. A primavera passa por aqui veloz, instanténea ¢ excessiva — como uma imagem erdtica para a alma acerada de um cenobita. As drvores se cobrem ra- pidamente de copas opulentas de um verde claro e novo; 0 solo deseparece sob uma grama de esmeral- 8 1054 ORTEGAYGASSET da que, por sua vez, um dia se veste com 0 amarelo das margaridas, outro com 0 roxo das lavandas. Ha lugares de excelente siléncio — o qual nunca é si- lencio absoluto. Quando se calam por completo as coisas em torno, o vazio de rumor que deixam exige ser ocupado por algo, e entao ouvimos 0 martelar de nosso coragao, as chicotadas do sangue em nossas yeias, a fervura do ar que invade nossos pulmées e que logo foge apressado. Tudo isso é inquietante por- que tem uma significagaio demasiado conereta. Cada batida de nosso coragio parece que vai ser a iltima, ‘A nova batida salvadora que chega parece sempre ‘uma casualidade e no garante a subseqiiente. Por isso € preferivel um siléncio no qual soem sons pu- ramente decorativos, de referéncias inconcretas. As- sim € neste lugar. Hi claras aguas correntes que vio rumorejando longe e ha, dentro do verde, avezinhas que cantam — verdelhdes, pintassilgos, papa-figos ¢ algum sublime rouxinol, ‘Numa destas tardes da fugaz primavera, vieram a0 meu encontro em La Herrerfa estes pensamento: 1.A floresta Com quantas érvores se faz uma selva? Com quantas casas uma cidade? Segundo cantava o la- vrador de Poitiers, le hauter des masson empéche de voir la vlla,? 1. Or versos, fora de seu contexto original, podem ser traduzidos 4 MearagDEs 00 QUOTE © 0 adagio germinico afirma que as arvores nao deixam ver a floresta. Selva ¢ cidade so duas « sas essencialmente profundas, e a profundidade esta condenada de maneira fatal a converter-se em superficie se quiser manifestar-se. ‘Tenho agora ao meu redor umas duas dezenas de graves carvalhos ¢ de freixos gentis. E isto uma floresta? Certamente que nao; estas so as arvores que vejo de uma floresta, A floresta verdadeira se compée das drvores que nao vejo. A floresta é uma natureza invisivel — por isso em todos os idiomas seu nome conserva um halo de mistério. Posso agora levantar-me ¢ tomar uma destas incertas veredas por onde vejo cruzarem as méru- las. As drvores que antes via serao substituidas por outras andlogas. A floresta ird se descompondo, desmanchando em uma série de pedacos sucessiva- mente visiveis. A floresta foge dos olhos. Quando chegamos a uma destas breves clarei- ras que 0 verdor abandona, parece-nos que havia ali um homem sentado sobre uma pedra, com os cotovelos nos joclhos, as palmas das mos nas tém- poras, € que, precisamente quando famos chegar, levantou-se ¢ foi-se. Suspeitamos que esse homem, dando uma breve volta, foi colocar-se & mesma postura nao muito longe de nés. Se cedermos 20 ‘como “a altura da casa / ampede de ver a vila [no sentido de Sia poquensinteriorana]” ou*a ature do casa [no sentido ddecasa nabre, finda] /impedede vera casa de camo simple, Inumilde)". O sntido do texto de Ortega autoriza, parece, a primeira versio, Mas hi af uma natural ambighidade 4s desejo de surpreendé-lo — a esse poder de atragao que 0 centro das florestas exerce sobre quem nelas entra —, a cena se repetira indefinidamente. A floresta esta sempre um poco mais além de onde estamos. De onde estamos acaba de retirar-se deixando apenas suas pegadas ainda frescas. Os antigos, que projetavam em formas corpéreas ¢ vivas as silhuetas de suas emogdes, povoaram as selvas de ninfas fugitivas. Nada mais exato e ex- pressivo. Conforme caminhais, voltai rapidamente a vista para uma clareica em meio & mata espessa € encontrareis um tremor no ar como se houvesse pressa em encher-se 0 vazio que, ao fugir, deixou um ligeiro corpo nu. Tomado a partir de qualquer um de sens Iuga- res, a floresta 6 a rigor, uma possibilidade. & uma vereda que poderfamos tomar; é um manancial de onde nos chega um cumor fraco carregado nos bra- gos do siléncio e que se poderia descobrir a poucos assos; so versos de cantos que fazem ao longe os passaros em uns galhos sob os quais poderfamos chegar. A floresta é uma soma de possiveis atos nos- sos, que 20 realizar-se perderiam seu valor genuino. © que da floresta se acha diante de nés de maneira imediata é s6 pretexto para que o mais se encontre oculto e distance. 2. Profundidade e superficie Quando se repete a frase “as Arvores nao nos deixam ver a floresta”, talvez nfo se entenda seu 46 MeDiTAgOES 00 QUIKOTE rigoroso significado. Talvez a gozacio que nela se quer fazer volte seu aguilhao contra quem a diz. As rvores nao permitem que se veja a flores- ta, ¢ precisamente gragas a isso é que a floresta, de fato, existe. A missdo das arvores patentes é fazer latentes 0 resto delas, e s6 quando nos damos per- feita conta de que a paisagem visivel ests ocultando outras paisagens invisiveis nos sentimos dentro de uma floresta. A invisibilidade, o ocultar-se nao é uma qualida- de meramente negativa, mas uma qualidade positi- vva que, ao verrer-se sobre uma coisa, transforma-a, faz dela uma coisa nova. Nesse sentido é absurdo — como afirma a frase supracitada — pretender ver a floresta, A floresta € 0 latente enquanto tal. Hi aqui uma boa ligéo para os que néo véem a multiplicidade de destinos, igualmente respeitaveis ‘e necessérios, que o mundo contém. Existem coisas que, quando manifestas, sucumbem ou perdem seu valor e que, 20 contrario, ocultas ou preteridas al- cangam sua plenitude, Ha quem alcangaria a plena expansio de si mesmo ocupando um lugar secan- dério, ao passo que o afd de situar-se em primeiro plano aniquila toda a sua virtude. Em um romance contemporaneo se fala de um menino pouco inteli- gente, porém dotado de notavel sensibilidade mo- ral, que se consola por ocupar o iiltimo lugar em todas as matérias escolares, pensando: “Afinal de contas, alguém tem de ser o tiltimo!”. E uma obser- vagdo fina e til para guiar-nos. Pode haver tanta ” ost ORTEGA nobreza em ser o iiltimo quanto em ser o primeiro, porque os postos dle um e outro extremo so magis- traturas de que o mundo igualmente necessita, um dependente do outro. Alguns homens se negam a reconhecer a pro- fundidade de algo porque exigem do profundo que se manifeste como superficial. Nao aceitando que cexistem varias espécies de claridade, atém-se exclu- sivamente & claridade peculiar as superficies. Nao suspeitam que é essencial ao profundo © ocultar-se atras da superficie ¢ apresentar-se somente através dela, latejando sob ela, Desconhecer que cada coisa tem sua prépria con- digo, e nao a que nés dela exigimos, é a men juizo 0 verdadeiro pecado capital, que chamo pecado cor dia’ por ter origem na falta de amor, Nada existe de tao ilicito como apequenar 0 mundo por meio de nossas manias e cegueiras, diminuir a realidade, suprimir imaginariamente pedagos daquilo que Isso acontece quando se pede ao profundo que se apresente da mesma maneira que o superficial. Nio; ha coisas que de si mesmas apresentam s6 0 estritamente necessério para que nos apercebamos de que estio por trds, ocultas. Para achar isso evidente nao é necessario recor rer a nada muito abstrato. Todas as coisas profun- das tém condig&o andloga. Os objetos materiais 2 Isto 6, *pecado do coragio". O autor estabeleve um sagaz jogo de palavtas entre “capital” c “cordial”, conteapondo “abeya” a “coragio” 48 \eDIracDES 00 QUUNOTE que vemos ¢ tocamos, por exemplo, tém uma ter ccira dimensdo qve constitui sua profundidade, sua interioridade. Tocavia, essa terceira dimensao nao a yemos nem a tocamos. Encontramos, é certo, em suas superficies alusGes a algo que jaz dentro delass mas este “dentro” nao pode nunca vir para fora e fazer-se patente da mesma forma que as faces do objeto, Seria vao se comecassemos a seccionar em camadas superficiais a terceira dimenso: por mais finos que fossem os cortes, sempre as camadas te- riam alguma espessura, isto é alguma profundida- de, algum “dentro” invisivel e intangivel. E se che- gissemos a obter camadas tao delicadas que a vista as pudesse atravessar, entao nao veriamos nem o profundo nem a superficie, mas sim’ uma perfeita transparéncia, a saber, nada. Pois, do mesmo modo* que 0 profando necessita de uma superficie para atras da qual esconder-se, necessita a superficie ou sobreface, para s¢lo, de algo sobre o qual se esten- dae que ela acoberte. Isso é um trufsmo, mas nao de todo inttil. Porque ainda existem pessoas que exigem que Ihes fagamos ver tudo tio clare quanto yéem esta laranja diante de seus olhos. E 0 fato é que, se por “ver” se entende, como eles entendem, uma fung&o meramente sensiti- vva, nem eles nem ninguém jamais vicam uma laranja. Esta é um corpo esférico, portanto com anverso verso. Pretenderao ter 8 sua frente ao mesmo tempo 3 “Mas” na primimaedigio, “senio" na eliglo de 1922. 4 “Do proprio modo" no texto de 1922, 49 o anverso ¢ 0 verso da laranja? Com os olhos vemos uma parte da laranja, mas o fruto inteiro nao se nos dé nunca de forma sensfvel; a maior porgdo do cor po da laranja se acha latente aos nossos olhares. Nao € preciso, pois, recorrer a objetos sutis e metafisicos para indicar que as coisas possuem ma- neiras diferentes de se apresentars mas,’ cada qual 8 sua maneira, igualmente claras. O claro nao & somente aquilo que se vé. A claridade com que a terceira dimensio de um corpo se nos oferece é a mesma com que se oferecem as outras duas, e no entanto, se nao houvesse outro modo de ver que no 0 passivo da visio estrita, as coisas, ou certas qualidades delas, nao existiriam para nés. 3. Arroios e papa-figos E agora o pensamento um dialético fauno que persegue, como a uma ninfa fagaz, a esséncia do bosque. © pensamento sente uma fruigio muito parecida com a amorosa quando apalpa 0 corpo nu de uma idéia, Por haver reconhecido na floresta sua natureza fugitiva, sempre ausente, sempre oculta — um con- junto de possibilidades —, nao temos inteira a idéia da floresta. Se o profundo e latente ha de existir para nés, haverd de se nos apresentar; e ao se apre- sentar hé de fazé-lo de tal forma que nao perca sua qualidade de profundidade e laténcia. 5 Na edigio de 1922, apis este “mas”, hi dois pontoss nas Obras Gompletas, virgula, 50 eDiTagdeS D0 QUITE Como dizia, a profundidade padece a sina irre~ vogiivel de manifestar-se em caracteristicas superfi- ciais. Vejamos como o faz. Esta 4gua que corre a meus pés faz um brando queixume ao tropecar com os seixos e forma um brago curvo de cristal que cinde a raiz. deste carva- tho. No carvalho entrou hi pouco um papa-figos como em um palicio o filho de um rei. © papa-figos faz sair um denso grito de sua garganta, tao musical que parece uma nota tirada do canto do rouxinol, um som breve € sibito que num instante preenche por completo o volume perceptivel da floresta, Da ‘mesma mancira preenche subitamente o volume de nossa consciéneia um pulsar de dor. Tenho agora diante de mim estes dois sons: mas, no esto ss. Sao meramente linhas ou pontos de sonoridade que se destacam por sua genufna pleni- tude e seu peculiar brilho sobre uma multidao de outros rumores e sons com eles entrelagados. Se do canto do papa-figos pousado acima de minha cabega ¢ do som da agua que flui aos meus pés faco deslizar a atencdo para outros sons, en- contro-me de novo com um canto de papa-figos eum rumorejar de agua que se afana em seu 4s- pero leito. Mas que acontece a estes novos sons? Reconhego um deles sem vacilar como 0 canto de um papa-figos, mas Ihe falta brilho, intensi- dade:* nao dé no ar sua punhalada de sonorida- 6 “Plenitude”, de acordo com o texto de 1922. st JOSEORTEGAYGASSET de com a mesma energia, no preenche o ambito da mesma mancira que o outro, antes se desloca sub-repticiamente, medrosamente, Também reco- nheco 0 novo clamor da fonte: mas ai! Dé pena ouvi-lo, Seté uma fonte enferma? £ um som como © outro, porém mais entrecortado, mais solucante, menos rico de sons interiores, como que apagado, como que embaciado: as vezes nao tem forca para chegar 20 meu ouvido: € um pobre rumor débil que cai pelo caminho. sao Tal 6 a presenga desses dois novos sons: como meras impressées. Mas eu, ao escuta-los, nio me detive a descrever — como aqui fiz — sua 0 Jogo os ougo, envolyo-os em um ato de interpreta- ‘Gio ideal ¢ lango-os longe de mim: ougo-os como ples presenga. Sem necessidade de deliberar, distantes. Se me limio a recebé-los passivamente em mi nha audigao, estes dois pares de sons so igualmente presentes e proximos. Mas a diferente qualidade so- nora de ambos os pares me convida a distancié-los, atribuindo-Lhes distinta qualidade espacial. Sou eu, pois, por um ato meu, quem os mantém em uma distensio virtual: se faltasse esse ato, a distincia desapareceria e tudo ocuparia indistintamente um mesmo plano. Disso resulta que é a distancia uma qualidade tual de certas coisas presentes, qualidade que s6 adquitem em virtude de um ato do sujeito. O som niio é distante, faco-o distante eu. 52 MEDITAGDES DO QUOTE Cabe fazer reflexdes andlogas sobre a distancia visual das arvores, sobre as veredas que avangam buscando o coragao da floresta. ‘oda esta profun- didade de distancia existe em virtude de minha colaboragio, nasce de uma estrutura de relagdes que minha mente interpde entre umas sensagdes € outras, Hi, pois, toda uma parte da realidade que se nos oferece sem maior esforgo que 0 abrir dos olhos € ouvidos — o mundo das puras impresses —, tan- to que 0 chamamos mundo patente. Mas ha um transmundo constituido por esteuturas de impres- ses, que, se é latente com relagio Aquele outro, nao é por isso menos real. Necessitamos, é certo, para que este mundo superior exista para nés, abrir algo mais que os olhos, realizar atos de maior es- forco, mas a medida desse esforgo nao the tira nem acrescenta realidade. O mundo profundo é tio cla- 10 como o superficial, apenas nos exige mais, 4, Transmundos Esta benéfica floresta que unge de satide meu corpo proporcionou ao meu espirito um grande ensinamento. £ um bosque magistral, velho como devem ser os mestres, sereno e miltiplo. Ademais cla pratica a pedagogia da alusio, tinica pedagogia delicada ¢ fecunda.” Quem quiser nos ensinar uma verdade, que no no-la diga: simplesmente aluda 7 *Profunda” na edigio de 1922. 83 JOSE ORTEGAYGASSET a ela com um breve gesto, gesto que inicie no ar uma trajet6ria ideal pela qual deslizssemos, che- gando nés mesmos até os pés da nova verdade. As verdades, uma ver sabidas, adquirem uma crosta utilitarias no nos interessam j& como verdades ¢ im como receitas titeis. Essa pura iluminacao sti- bita que caracteriza a verdade, ela a possui s6 no instante de seu descobrimento. Por isso seu nome rego, alétheia — que originariamente significou 0 mesmo que depois a palavra apocalipsis —, quer dizer descobrimento, revelar, desvelar propriamen- te, tirar um véu ou cobertura. Quem quiser nos en- sinar uma verdade, que nos situe de modo que a descubramos nés. Ensinou-me esta floresta que hé um primeiro plano de realidades © qual se imp&e a mim de uma maneira violenta; sfio as cores, os sons, 0 prazer € a dor sensiveis. Ante este plano, minha situagio é passiva. Mas atrs dessas realidades aparecem ou- tras, como em uma serra os perfis de montanhas mais altas quando chegamos aos primeiros contra- fortes. Erigidos uns sobre os outros, novos planos de realidade cada vex mais profundos, mais suges- tivos, esperam que ascendamos a eles, que penetre- mos até cles. Mas essas realidades superiores sio mais pudicas: nfo se atiram sobre nés como sobre presas. Ao contrario, para fazerem-se patentes nos cobram uma condi¢ao: que queiramos sua existén- cia e lutemos por elas. Vivem, pois, de certo modo apoiadas em nossa vontade. A cia, a arte, a jus- sa eomTagoes 00 qunoTE tiga, a gentileza, a rcligido sto érbitas de realidade que nao invadem barbaramente nossa pessoa como faz a fome ou o frio; s6 existem para quem tem vontade delas. Quando o homem de muita fé diz que vé a Deus na campina florida e na face obtusa da noite, nto se expressa mais metaforicamente do que se falas- se ter visto uma laranja, Se nao existisse algo além de uma visio passiva 0 mundo ficaria reduzido a um caos de pontos luminosos. Mas existe, acima do ver passivo, um ver ativo, que interpreta vendo ¢ yé interpretandos um ver que é olhar, Patio soube encontrar para essas visdes que sao olhadas uma palavea divina: chamou-as de idéias. Pois bem, a terceita dimensio da laranja néo é mais que uma idéia, e Deus € tiltima dimensio da campina. Nisso no hé mais misticismo do que quando dizemos estar vendo uma cor desbotada. Que cor vemos quando vemos uma cor desborada? O azul {que temos & nossa frente nds o vemos como ten- do sido outro azul mais intenso, ¢ esse ver a cor atual junto ao pasado, através do que ela foi, € uma visio ativa que nio existe para um espelho; € uma idéia, A decadéncia ou o esmaecer de uma cor é uma qualidade nova ¢ virtual que lhe sobrevém, dotando-a como que de uma profundidade tempo- ral. Sem a necessidade do discurso, em uma visio nica ¢ momentinea descobrimos a cor € sua his- toria, sua hora de esplendor e sua presente ruina, E algo em nés repete, de uma maneira instantanea, ss OSE ORTEGA ASSET esse mesmo movimento de caida, de mingua; é 0 que diante de uma cor desbotada encontramos em nds como uma espécie de tristeza. A dimensio de profundidade, seja espacial ou temporal, seja visual ou auditiva, se apresenta a nds sempre em uma superficie, de sorte que tal superfi- cie possui, a rigor, dois valores: um, quando nés a tomamos como o que realmente ela é; outro, quan- do a vemos em sua segunda vida virtual. No dilti- mo caso a superficie, sem deixar de sé-lo, dilata-se em um sentido profundo, E a isto que chamamos escorgo. © escorgo é 0 Srgio da profundidade visuals nele encontramos um caso limite onde a simples vi- so estd fundida com um ato puramente intelectual. 5. Restauracao e erudigao ‘Ao meu redor a floresta abre seus profundos ha mao tenho um livro: Dom Qui- xote, uma selva ideal, flancos. Em Eis aqui outro caso de profundidade: a de um livro, a deste livro maximo. Dom Quixote é 0 livro~ -escorgo por exceléncia, Houve uma época da vida espanhola em que se queria reconhecer a profundidade do Quixote. Esta época est recolhida na histéria com 0 nome de Restauracao. Em sua duragio, 0 coracao da Es- panha chegou a dar o menor niimero de batidas por minuto. 56 eDiTagoeSDO QUOTE Pego licenga para reproduzir aqui algumas pala- vras sobre este instante de nossa existéncia coletiva, ditas em outra ocasiao: Que € a Restaurayio? Segundo Ginovas, € a con- tinuagéo da historia da Espanha. Mau ano para a hist6ria da Espanha, se legitimamente valesse a Res- tauragio como sua seqiiéncia! Felizmente se dé 0 contriio. A Restauracio significa a interrupgio da vida nacional, Nao houve nos espanhéis, durante os primeiros cinglienta anos do século XIX, comple- xidade, reflexio, plenitude de intelectos mas houve coragem, esforgo, dinamismo. Caso se qu ‘0s discursos ¢ livros compostos por esse meio sé cule fossem substituidos pelas biografias de seus autores, sairiamos ganhando cem por cento. Riego ¢ Narviez, por exemplo, so enquanto pensadores — cis a verdadet — um par de desvenearass mas enquanto seres vivos so duas altas labaredas de esforgo. Por volta do ano de 1854 — que é quando no subterraneo se inicia a Restauragdo —, comegam @ apagarse sobre essa triste face da Espanha os es plendores daquele incéndio de energias; 0s dinamis- mos vio logo caindo por terra como projéteis que ‘ivessem cumprido sua parabola; a vida espanhola se recolhe sobre si mesma, far-se oca de si mesma, Este viver 0 oco da propria vida foi a Restaurasio. Em povos de animo mais completo ¢ harmdni- €0 que © nosso, pode a uma época de dinamismo suceder fecundamente uma época de tranqtilidade, de quietude, de éxtase. O intelecto € o encarrega- do de suscitar e organizar os interesses trangiilos © estiticos, como s40 © bom governo, a economia, « aumento dos recursos, da téenica. Mas tem sido caracteristico de nosso povo o brilhar mais como esforgado do que como inteligente. ra

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