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HISTORIA NO PLURAL Tania Navarro Swain (organizadora) Autores: ‘Sonia Lacerda Tania Navarro Swain Maria Eurydice de Barros Ribeiro Marcos A. da Silva Maria T. Negrao de Mello Jaime de Almeida Eleonora Z. Costa Mary Del Priore Coleco Tempos dirigida por Emanuel Aragjo Historia, narrativa e imaginagao histérica Sénia Lacerda Departamento de Histria Universidade de Brasia s historiadores sempre contaram est6rias. De Tuefdi- ‘des Gibbon e a Macauilay, a composicao da narrativa ‘em prosa vivida e elegante sempre foi tida como sua maior ambigo. Considerava-se a histéria um ramo da retGrica. Nos diltimos cingilenta anos, entretanto, essa fungo de contar est6ria adquiriu mé fama entre os que se viam como @ vanguarda da profissdio, os praticantes dda chamada “nova hist6ria’ do perfodo ap6s a Segunda Guerra Mundial. (..) Contudo, atualmente detecto si- rnais de uma corrente subterrdnea, que arrasta muitos dos proeminentes ‘novos historiadores’ de volta a algu- ‘ma forma de narrativa. Assim Lawrence Stone (1979:8), num artigo bastante referido no debate sobre as relacGes entre histéria e narrativa, que se vem travando hé cerca de trés décadas, resume a trajetéria percorrida, desde os gregos, pelo discurso historiogréfico. O que chama aten- io neste apanhado é, antes de mais nada, a duracdo persistente da tradigio da narrativa hist6rica, nos paises de cultura de origem greco-latina, ainda que se possam descontar os séculos de vigén- cia de modalidades néo narrativas de registro hist6rico, como os anais e a crOnica. Em contraste com essa persisténcia, surpreende | a brevidade do tempo durante o qual ~ ainda segundo o autor—o | ‘ modelo narrativo de composigéo historiogréfica foi suplantado | or outro, concebido como uma hist6ria cientifica, explicativa. 10 ‘Tania Navarro Swain (organizadora) © segundo ponto relevante da passagem citada é, pois, 0 prognéstico do eclipse desse paradigma mais recente, diante da maré montante de tendéncias que na opiniéo de Stone configuram uum renascimento da narrativa histérica, embora sob feigdes dis- tintas da antiga hist6ria narrativa. Tais tendéncias, apesar da rela tiva diversidade de orientagées e focos de interesse que abran- ‘gem, para este autor correspondem aproximadamente A rubrica ‘mentalidades’, aplicada a pesquisas cujo fundo comum seria 0 empenho na reconstituico dos modos de vida e pensamento do passado, a colocagéo do humano e do particular como objeto central da histéria, em contraposicao as estruturas ¢ foreas impes- soais, ¢ a conseqiiente incompatibilidade com métodos de anélise estatisticos e com esquemas de explicacdo deterministas.! texto de Stone, na verdade, suscita questées dificeis de solucionar na moldura conceitual de sua argumentacdo. A mais abrangente e crucial é a indagagio sobre o significado atribuido & categoria narrativa, pelos diversos participantes do debate, e so- bre a natureza exata da alegada oposicao entre ‘hist6ria narrativa’ outras modalidades de escrita histérica. Essa indagaco perdura, alids, a despeito da extensa bibliografia disponfvel consagrada a0. tema em causa Decerto a permanéncia de diividas deve-se, em ampla medida, as divergéncias de perspectiva ¢ a insuficiente ex- plicitagdo dos pressupostos que sustentam as tomadas de posigao nesse terreno.> O presente trabalho propde-se, em conseqiéncia, a despretenciosamente sistematizar alguns pontos amitide obscu- 1. Cf. Stone (1979: 13 €21). 2. Mencionem-se apenss, para ficar nos trabalhos mais divelgados junto 20 pablico brasileiro, a abundante producto de Hayden White (1980, 1982, 1984, 1992) 60 ‘esclarecedor ensaio de Luiz Costa Lima (1988). Ver ainda Riedel (1988), coletines 4e textos resultante de um col6quio especificamente dedicado dscusslo das rela- es entre narmativa, floc chistéra. 3. Bublicagées recente em lingua portuguesa, que abordam o problema da construct do discurso historiogrdfico sob a Gptica mais ampla do exame das represeniagées em histria cultural e da iias,oferecem importantes subsfdios para a elucidacto dos obstdculesimplicitos aqui referides. Merecem destaque Hunt (1992) ¢ Charter (1990). Hist6ria no plural st recidos no tratamento do assunto, problematizando os termos em que se tém expressado, na maioria das vezes, tanto a rejeicao quanto o reconhecimento da legitimidade do uso de esquemas “narrativos’ — ou seja, de procedimentos correntemente identifica- dos com a literatura ficcional - em historiografia. Na primeira arte, procura-se evidenciar como a polarizagio estabelecida em tomo da antinomia ‘hist6ria narrativa’ versus ‘hist6ria cientifica’ confunde, mais do que esclarece, a questo dos nexos entre 0 co- nhecimento histérico ¢ suas formas de construcdo € exposicao; 0 artigo de Stone, adotado como ponto de partida, ilustra bem as di- ficuldades em que income as tentativas de revalorizar os ele ‘mentos ‘narrativos’ da composicao historiogréfica, ao se encerra- em nos limites daquela antitese. A segunda parte visa a aprofun- dar a discussdo previamente esbocada, mediante a evocagéo do ‘questionamento filos6fico subjacente & critica dos historiadores 20 narrativismo ¢ pelo recurso a outras referéncias tedricas. Pro- cedentes em particular da critica literéria, estas iltimas permitem considerar em outras bases o papel da imaginagdo e da ‘encena- ‘¢4o" na constituigéo do pasado como realidade significati que se explora no tiltimo t6pico. ‘Uma relagao problemética Observe-se, de inicio, a verdadeira campanha levada a efeito contra a ‘histéria narrativa’ no seio da tradicéo francesa de histo riografia comumente conhecida como escola dos Annales. E fato mais que notrio, inclusive expressamente declarado por historia- dores vinculados, por formagéo e inscricio profissionais, & matriz institucional dessa ‘escola’, que tal designacéo abriga e encobre correntes disciplinares divergentes, sejam ou no essas divergén- cias tipificdveis no molde de ‘geragdes’.4 Também é de ressalvar 4. Ver,a propésito, Burke (1991: 93-107) ¢ Hunt (1992). 12 ‘Tania Navarro Swain (organizadora) a mudanga de perspectiva, na apreciaco do significado da narra- tiva em histéria, desde a chamada terceira geracéo da ‘escola’, rmudanga essa que tem sua expresso mais sistemitica e radical em Roger Chartier.5 Nao € menos verdade que, no conjunto, se pode ver na rejeicéo & idéia de relato uma das marcas do movi- mento de renovacao historiogréfica inspirado por Lucien Febvre e Mare Bloch. Com efeito, a critica & histéria pejorativamente qua- lificada de événementiel ou historisante, identificada com o relato politico-factual de orientaco empirista, foi a bandeira que catali- ‘sou os esforcos dos fundadores da revista. E nao apenas Febvre Bloch condenaram incansavelmente 0 bindmio hist6ria factual/ histéria politica, considerado indissocifvel da exposicio narrati- va; Fernand Braudel jamais perdeu ocasifio de expressar sua hos- tilidade a essa triade. Ainda recentemente, Jacques Le Goff, 0 historiador que sucedeu 0 autor de O Mediterréneo na presidén- cia da antiga VI Secdo da Ecole Pratique des Hautes Etudes — e ademais com justiga considerado como um dos expoentes da his- t6ria das mentalidades —, reiterou idéntico menosprezo pela nar- rativa, em nome da imprescindibilidade de uma hist6ria cientifica ¢ explicativa: Vocé sabe que especialmente os pafses anglo-sax6ni- ‘cos mantiveram vivo 0 debate sobre a possibilidade de hist6ria forecer explicagdes. Ora, sem entrar em discusses de complexa epistemologia, (...) direi que me parece que toda hist6ria, ¢ no s6 a que tem a eti- queta de nova, jé nao pode contentar-se em nao forne- cer explicagdes. (...) Num plano mais geral, 0 que que- ro dizer € que j& ndo se pode parar numa hist6ria pu- ramente narrativa.6 5. A explictagfo dos pontos de vista de Chartier sobre o problema encontra-se em 1990: 80-88. 6. Le Goff (1986: Hist6ria no plural 13 A primeira vista, contudo, existem af incoeréncias. Se Stone ‘stiver correto em contrastar a modalidade narrativa de histéria ‘com 0 padrio cientifico-explicativo de historiografia, néo seriam as declaragdes de Le Goff inconsistentes com seu alinhamento nas fileiras dos cultores da pesquisa de mentalidades? Pois na in- terpretagdo stoneana do panorama atual da disciplina, a preemi- néncia adquirida pelos objetos de estudo identificados geralmente com a nogio de ‘mentalidades’ ¢ a revalorizagio da escrita narra- tiva correlacionam-se de maneira intrinseca: haveria uma especial conformidade entre uns ¢ outra. Incongruéncia andloga pode ser apontada em Braudel. So bem conhecidas as bases em que formulou suas objecdes ao nar- rativismo em historiografia, manifestadas conjuntamente a um ‘chamamento no sentido da aproximagio da histéria com as cién- cias sociais. Blas se acham enunciadas de maneira especialmente interessante, pelo estilo, na seguinte passagem: A vida, a hist6ria do mundo, todas as hist6rias parti- culares se nos apresentam sob a forma de uma série de eventos: entendam atos sempre draméticos breves. ‘Uma batalha, um encontro de homens de Estado, um discurso importante, uma carta capital, so instanta- neos da histéria. Guardei a lembranca, uma noite, perto da Bahia, de ter sido envolvido por um fogo de artificio de pirilampos fosforescentes; suas luzes péli- das reluziam, se extinguiam, brilhavam de novo, sem romper a noite com verdadeiras claridades. Assim so ‘0s acontecimentos: para além de seu clardo, a obscuri- dade permanece vitoriosa. (...) Confessai, entretanto, que freqiientemente sio ‘essas ténues imagens do passado e do suor dos homens que nos oferece a crénica, a hist6ria tradicional, a hist6ria-narrativa cara a Ranke... Clardes, mas sem claridade; fatos, mas sem humanidade. Notai que essa hist6ria-narragdo tem sempre a pretensio de dizer “‘as coisas como elas se passaram realmente”. (...) Na rea~ lidade, ela se apresenta como uma interpretagao, a seu 14 ‘Tania Navarro Swain (organizadora) modo dissimulada, como uma auténtica filosofia da hist6ria. Para ela, a vida dos homens é dominada por acidentes draméticos. (...) Falaciosa ilusdo, todos nés (© sabemos. (...) A tarefa é justamente ultrapassar essa primeira margem da histéria. E preciso abordar, em si ‘mesmas e por si mesmas, as realidades sociais.7 Tanto quanto a ilusio do evento, vale dizer, a aceitacao das aparéncias como se constituissem a verdadeira realidade social, aqui se contesta o parentesco da histéria positivista, de tipo ran- keano, com a filosofia da hist6ria, entendendo-se por essa expres- so a construcéo teleolégica de um processo conduzido a0 seu destino pelo “jogo dos seres excepcionais”. Mas nao s6 isso. Tal ‘como em numerosas outras ocasides, Braudel sublinha o signifi- cado dramético do acontecimento e, em consequéneia, a afinidade do relato factual com a encenagéo, com a montagem do cenério para a aco dos protagonistas do drama histérico;$ ou seja, a con- vergéncia da historiografia politico-narrativa com a composicio fiecional. ‘Nao obstante, mais de um comentador da obra do sucessor de Lucien Febvre pés em relevo a marcante presenga de categorias especificamente narratol6gicas na construg40_historiogréfica braudeliana; presenca que, longe de se limitar aos escritos que tratam do ‘tempo breve’, incide no proprio émago de suas con- cepcées. Esse é, por exemplo, 0 julgamento de Ricoeur, que con- sidera 08 conceitos de acontecimento ¢ de longa duragio elabora- dos segundo a apreensio do tempo inerente as configuragées nar- rativas.® Ainda mais longe vdo as observacées de Kellner (1987: 27 ¢ 10-11). Nao apenas mostram, na estrutura formal e em diver- 08 enunciados do texto de O Mediterrdineo, a manifestacéo de ‘Lm agudo senso de natureza alegérica do discurso historiogréfico, T, Braudel (1978: 23-28) 0 grifo 6 do autor. 8. Cf. Braudel (1978: 49). 9. Apud Chartier (1990: 82, n. 20). Hist6ria no plural 15 mas também apontam as semelhangas do primeiro segmento da obra com 0 Tableau de la France de Michelet; ademais dos recur- sos retéricos e figurativos caracterfsticos desta composicao, Braudel utiliza ali o mesmo artificio narrativo: a construgdo do sentido do objeto (no caso, o mar) por movimentos concéntricos de exposig&o. Ora, gabada como modelo precursor de uma histé- Tia ndo-narrativa, a pega de Michelet (integrante da Histoire de la France, mas publicada em separado um pouco mais tarde) inspi- rou-se diretamente no esquema da narragéo de Notre Dame de Paris, de Victor Hugo. m suma, andlises textolégicas desse tipo conduzem, confor- me diz Kellner, mencionando 0 esbogo genealégico tracado por Jacques Revel e Roger Chartier,!9 a irénica constatagdo de que “‘a historia social cientifica, tal como a hist6ria narrativa, tem um importante ancestral na novela roméntica”. Diante disso, cabe perguntar, com o autor do artigo: quem escreve e quem nfo es- creve hist6ria narrativa? Detenhamo-nos um pouco em Furet. Dissidente declarado da tradicéo annaliste de hist6ria social, nao s6 em sua vertente mais nova, do imaginério ou mentalidades, mas inclusive na versio braudeliana, regida pelo conceit de diferentes duragées,"! sua critica ao narrativismo coincide com a de Braudel em muitos as- pectos. A semelhanga deste, porém de maneira muito mais radi- cal, Furet aplica-se em demonstrar seu funcionamento similar 20 do romance e, mais precisamente, a contaminagdo ideolégica em- butida na moldagem do discurso histérico pelo da biografia. As- sim como a narrativa biogréfica confere sentido as experiéncias individuais organizando-se em funco de uma trajet6ria finalista — ¢ tal como 0 romance ordena fatos ficticios em toro das agdes € sentimentos de seus personagens ~, a histéria narrativa monta fa- 16 ‘Tania Navarro Swain (organizadora) tos supostamente verdadeiros a fim de contar a ‘ou da nacao.!2 ‘Tanto Furet quanto Braudel designam como histéria narrativa © relato factualistico, guiado pelo eixo dos acontecimentos politi- ‘cos, militares € diplométicos, ou seja, a espécie de historiografia consagrada nos meios académicos do infcio do século ¢ dominada por uma epistemologia empirista, mais ou menos consciente. Fu- ret, todavia, vai além, incluindo na condenaco dirigida ao narra- tivismo a chamada ‘nova hist6ria’, identificada sobretudo com 0 ‘estudo das mentalidades. Afirma que “entre a boa velha histéria narrativa, que reconstitui os fatos segundo a légica cronolégica do romance, e a hist6ria que a si pr6pria dé 0 nome de nova, por- que pede emprestada uma parte de sua bagagem a disciplinas vi- Zinhas, a oposigéo néo 6 téo niftida nem tio real, como a segunda leva a pensar”.13 A radicalizacdo dos ataques de Furet é a contrapartida direta de sua opcao por uma metodologia estatistica, que se apresenta ‘como um aprofundamento da proposta de alianga da histori com as ciéncjas sociais. Defendido e efetivado de maneiras diver- ‘sas desde os primérdios do movimento dos Annales, o projeto de colaboracdo com outras disciplinas sofreu uma inflexdo em virtu- de da preponderdincia crescente adquirida, entre alguns historia- dores da Grbita de influéncia annaliste, pelas abordagens chama- das de hist6ria quantitativa ¢ andlise serial.!* No entendimento de ida’ do Estado seu principal tedrico, a interpretagéo do passado alcangada me- dadeira alternativa ao discurso narrativo. Ela rompe por completo com 0 esquema da biografia e do romance, que, sob essa pers- pectiva critica, produz simplesmente uma mimetizacao da vivén- cia coletiva. Nao apenas substitui o objeto empitico da histéria 12, Furet ed 13, Furet (6d: 30). 14, Paraa distinglo entre aba, ef. Furet 6.4. 59-62). Hist6ria no plural 7 tradicional — eventos, agentes e agGes — por um objeto abstrata- mente construfdo,15 mas ainda, com esse procedimento, suprime 0 tempo existencial. A_historiografia serial (¢ suas congéneres) é francamente cientifizante em sua inspiracdo, mesmo quando scus praticantes admitem que as peculiaridades do objeto da histéria nfo permitem 1a plena realizaco do ideal cientffico nesse campo. Com efeito, pega a maxima aproximacdo possivel ao rigor I6gico do racioci- nio hipotético-dedutivo, mediante a elaboragao de hipéteses ex- plicativas fundadas em variéveis controléveis e a conseqiiente re- mincia tanto ao uso de testemunhos “subjetivos’ quanto & conside- ragao de fatores ‘psicolégicos’ coletivos. Desse modo, pretende depurar a escrita da histéria das impurezas ideolégicas, nao cien- tificas, que, como filha do romance, ela teria herdado da narrativa.!6 Voltemos a tese de Stone. Sua idéia de um renascimento atual da narrativa coincide surpreendentemente com a andlise de Furet, na medida em que atribui tal renascimento & ‘desilusio’ com as abordagens quantitativas © com os modelos causais de explicago, vale dizer, com a hist6ria cientifica: o fenémeno consistiria numa redefinigéo de métodos ¢ perspectivas historiogréficos, correla cionada a0 interesse por objetos e questées excluidos pelas meto- dologias estruturais ¢ estatfsticas. Influenciados nos wltimos anos predominantemente pela antropologia, e no jé pela economia e a demografia, os historiadores deslocaram sua atencdo para os “sentimentos, emogées, padres de comportamento e estados de espfrito”; em lugar de prenderem-se & superficie dos fatos, passa- ram a investigar as dimens6es inconscientes e simbélicas dos pro- ccessos sociais.17 15, Furet (ed 1883). 18 “Tania Navarro Swain (organizadora) De acordo com esse ponto de vista, a diferenga de foco — no- ‘vos temas, novas probleméticas, exploracio de fontes até entio negligenciadas — traduz-se num diferente modo de escrita. Ou seja, 0 tratamento de matérias pertencentes ao dominio das signi ficagGes e da intersubjetividade, assim como de objetos de natu- reza singular — pois a recondugdo do acontecimento e da biografia 8 dignidade de objeto historiogréfico e a reatualizacao do estudo de caso também tém af papel reconhecido'® -, induziria ao em- prego de uma linguagem mais descritiva e pict6rica, orientada pa- ra a captaco das sutilezas de sentido ¢ para a reconstituic¢ao do particular. Dai a reabilitacdo da nanativa, em reacdo contra 0 dis- curso conceitual e analitico da histéria construfda segundo os procedimentos de raciocfnio causal e dedutivo. Mas seria a qualificacdo de narrativos convenientemente apli- ceAvel aos variados estilos praticados pelos nomes associados a ‘nova hist6ria cultural’ e & ‘hist6ria das mentalidades’? A bem di- zer, ndo so de todo nitides os critérios pelos quais um autor co- mo Stone discrimina, no amplo repert6rio de obras arroladas,!9 as que cabem e nao cabem na categoria do relato. Na verdade, o em- prego do termo narrativa nesse texto resulta diibio, dada ndo s6 a heterogeneidade dos trabalhos referidos, mas também a descon- formidade entre as caracteristicas da maioria ¢ a definicio pro- posta para aquela noco: 18, Cf Burke (1991: 103-107). 19. Seleciono alguns tftuls, «fim de evidenciar a neterogencidade entre eles: Peter Brown, 0 fin do mundo cisco: de Marco Aurélo a Maomé (tad. port, Lisboa, Verbo, 1971), Emanuel Le Roy Ladurie, Montallou, village occtan de 1294 15324 (Paris, Gallimard, 1975), Georges Duby, Le dimanche de Bouines (Paris, Gallimard, 1973), Carlo Guincburg, O queiio ¢ os vermes:o cotdiano e asidéias cde um moleiro perseguido pela ngubscdo (tad. por, $40 Paulo, Companhia das Letras, 1987), EJ. Hobsbawn e George Rudé, Caplido Swing. A expansio capita {iia e a revolasruras a Inlatera do inkio do séeulo XIX (ead port, Rio de Ja- ncito, Francisco Alves, 1982), . P. Thompson, Senhoresecacadores (tad, port, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987), e Robert Darnton, The business of Enighten- ‘ment (Cambridge, Mass, Harvard U.P, 1979). Hist6ria no plural 19 organizacio do material numa seqincia cronologi- camente ordenada e a concentracio do contedo numa Unica est6ria coerente, ainda que com subenredos. As duas maneiras essenciais por que a hist6ria narrativa se diferencia da hist6ria estrutural so seu arranjo mais descritivo que analftico e seu foco central no homem, nio nas circunstincias. Trata, portanto, do particular e especifico, de preferéncia ao coletivo e estattstico. Narrativa é um modo de escrita hist6rica, mas um mo- do que também afeta e é afetado pelo contetido © pelo método.2 Ademais, nao obstante a considerdvel diversidade de instru- mental te6rico, concepgdes epistemolégicas, preferéncias teméti- ‘cas e modelos interpretativos observada no conjunto da produgo historiogréfica um tanto vagamente designada pelas expressdes ‘histéria das mentalidades', ‘hist6ria do imaginério’, ‘antropologia hist6rica’ e similares, em nenhum dos trabalhos da lavra de qual- quer de seus expoentes se podem perceber o esquema e 0s pres- supostos do relato factual empirista. Assim, contrastar ‘histéria narrativa’ e ‘histéria estrutural’ (ou explicativa, conceitual, “hist6- ria-problema’ etc.), mediante a respectiva associago com cada uum dos pélos de antiteses como descricdo x andlise, obriga a tan- tas ressalvas que se acaba por anular a distincdo entre as duas es- pécies de historiografia. Daf decorrem tentativas de caracteriza- io totalmente ambfguas, como a abaixo transcrita: De todo modo, o relato estoriado, a narrativa circuns- tanciada, extremamente minuciosa, de um ou mais ‘acontecimentos’ com base nas declaracées de testemu- nhas oculares e de participantes, € obviamente um meio de recuperar algo das manifestacdes exteriores da mentalidade do passado. A andlise continua a ser parte essencial do empreendimento, que assenta numa inter- 20, Stone (1979: 3-4), 20 ‘Tania Navarro Swain (organizadora) pretacdo antropoldgica da cultura que se pretende sis- temética e cientifica. Mas isso no pode encobrir o pa- pel dos estudos de mentalidade no ressurgimento de modos no analfticos de escrever histéria, um dos quais € o relato estoriado,21 Visto que quase sempre se usam as nogées de andlise, descri- ‘co e narragdo sem conceitus-las e sem precisar como tais catego- rias se articulam nas diferentes formas de escrita histérica, fica ‘a impressio de confusio, ou mesmo de impossibilidade de dife- rencar histéria narrativa e ndo-narrativa, Pode ser que a ambigti- dade no se deva sempre ao fato, apontado por Kellner (198° 12), de que “‘vinte anos depois de Hayden White haver observado que os historiadores definem seu oficio utilizando (...) uma nogao particularmente envelhecida de narrativa, moldada por certo tipo de romance do século XIX, (...) 0 debate sobre narrativa ainda gi- raem tomo de est6rias, como se estas fossem sua esséncia, ¢ no simplesmente uma de suas modalidades”. Seja como for, se na ressurgente histéria narrativa “‘a anélise permanece tio essencial ‘em suas metodologias como a descrigio”’,2? cabe perguntar 0 que ‘do os “modos néo-analiticos de escrever histéria”’, distintos do “‘telato estoriado”’. ‘Todas essas incertezas, em suma, parecem justificar a afirma- tiva de que “‘o debate sobre narrativa ¢ histéria é usualmente con- duzido sobre falsas premissas”’.?? Por falsas premissas entende-se © deslocamento de foco que faz. com que a discusso quase sem- pre se atenha aos aspectos temtico, metodolégico e ‘enunciativo’ do trabalho historiogréfico, deixando de lado — ou apenas aflo- rando ~ as questées de fundo, quais sejam, a da natureza do co- nhecimento hist6rico-e_do lugar que nel 21. Stone (1979: 16-17). 22, Stone (1979: 19) 23, Kellner (1987: 12) Hist6ria no plural 21 ponstrucéo discursiva. Desfazer os mal-entendidos requer trazer & tona essas questées subentendidas. A problemética da relago tema da narrativa hist6rica tornou-se alvo de atengio de historiadores profissionais a partir da década de 1960, ou seja, depois que © pensamento de orientacdo estruturalista investi contra o ‘historicismo’.2 Denunciou-se, ento, a apropriacao dos mecanismos de naturalizacéo, inerentes & narrativa, pela tradicéo historiogréfica ocidental. Ao que se pode depreender dos ‘escritos de combate’ de Lucien Febvre e Marc Bloch, e mesmo dos gran- des textos metodolégicos de Fernand Braudel, datados da década de 1950, primeiramente a recusa da hist6ria tradicional, chamada de événementielle ou de histoire historisante pelos fundadores dos Annales, dissera respeito ao paradigma de histéria consagra- do pela escola metédica, isto é, & espécie de “‘crénica de novo estilo”, na expresso de Braudel, que advinha da adoco dos pre- ceitos de um empirismo ingénuo, para o qual os ‘fatos’ e seus ne- xos seriam realidades a colher na documentacdo. Os epitetos pe- jorativos, nessa perspectiva, indicavam simplesmente 0 questio- namento da causalidade factual, concebida como pura sucesso de ‘tos humanos, situagdes ou modos de vida manifestos nas fon- tes.25 Ainda que esse questionamento levasse — implicitamente 24, Dada a muliplicidade de acepedes do termo, € necessério especificar que aqul se trata do sentido depreciativo e polmico que adquiriu no contexto ora referido,© ‘com que aparece em Barthes, Althusser, Lévi-Strauss e outros representantes do ‘strutraismo. A esta inspiracto filiam-se dretamente, por exemplo, os jutzos de Faret sobre «histeia naratva, designada por ele alternativamente como tradi ‘ional ehistorcists ef. Furet (el 12,18). 25. Compareat-se at seguintes descrig6es da histria positvits, de Febvre (1977: 176-177 e Braudel (1978: 46). “O que de fato um historiadorhistrizante”", lndaga primero, para responder: “Um homem que, trabalhando sobre fatos Paticulares por ele mesmo escolhidos, e propde liga esses fatos entre si coorde- 25) ‘Tania Navarro Swain (organizadora) apenas, no caso de Febvre e Bloch, mas de forma sistemética no de Braudel ~ a contestagio do principio de inteligibilidade deri- vado da cronologia linear, ele néo importava na identificagio de tal principio com uma ‘Iégica da narracéo’. E este, contudo, o fimago da critica que os paladinos da metodologia batizada de hist6ria serial enderecam a *histéria historicista’: De fato, a explicagio histérica tradicional obedece & I6gica da narracdo: o antes explica o depois. Uma vez que, nesta acepco, a histéria tem um sentido por as- sim dizer preliminar ao conjunto de fendmenos que envolve, basta organizar os fatos histéricos na escala do tempo para que eles recebam, por esse fato, a sua significago no interior de uma evolucdo conhecida de antemio. A propria selecdo desses fatos obedece a esta I6gica implfcita, que privilegia o perfodo em relagio a0 objeto e escolhe os acontecimentos em relacio a0 seu lugar numa narracao.26 Em contraste com essa justificacio teorizada da aversio 20 discurso hist6rico narrativo, equiparado em outra passagem do mesmo trabalho (Furet, s.d.: 25) ao “romance das existéncias”, Braudel (1978: 46-49) situou a ruptura com a “crénica de novo estilo” no aparecimento da modalidade de histéria social de La- brousse e seus discipulos, caracterizada por ele como “uma nova forma de narrativa hist6rica, digamos 0 recitativo da conjuntura”. Sublinhou inclusive as ligag6es de seu préprio modelo historio- grifico com esse ‘recitativo’, ao comentar que este “deveria (...) conduzit & longa durago”. Deveria, porém néo 0 fez, conforme ‘ni-los e depois (cito 0 Halphen de 1911) analsar as mudancespolfticas, sociis© ‘morals que 0s textos ncsrevelam num dado momento”. O segundo também se re- porta lalphen: “Basta excrevia ainda ontem Louis Halphen,deixar-se dealgum, modo levar pelos documentos, lidos um apés o outro, tal como se nos oferecem, para vera corrente dos fats se reconstituir quae avtomaticamente. Esse ideal (..) Fesulta por volta do fim do século XIX numa erGnica de novo esto” 26, Puret(s.d: 17. Hist6ria no plural 23 se apressa Braudel a acrescentar; em lugar disso, retornou a0 “tempo curto”’, ao tempo do acontecimento, “a mais caprichosa, a mais enganadora das duracées”. E isso porque “‘o historiador é, de bom grado, encenador. Como renunciaria ao drama do tempo breve, aos melhores fios de uma velhissima profissio?”. Narrati va histérica, na compreensio de Braudel, ainda seria, pois, sind- nimo de relato factual, de histéria limitada ao 4mbito do tempo curto. Ha, sem diivida, nuances na maneira como distintas geragGes de historiadores vinculados aos Annales opuseram-se & associacéo entre histéria e narrativa; hd, correspondentemente, sensiveis di- ferencas entre as abordagens com que se dispuseram a ultrapassar tal associacdo. Braudel e Furet sio exemplares nesse sentido. De uum lado, a longa duracéo, ou mais precisamente 0 reconheci- mento de miltiplas temporalidades na histéria e, com isso, a pos- sibilidade de abrigar em sua escrita todas as dimensoes da espes- sura do tempo, sem abrir m4o nem da descricio da concretude e do fenoménico -- basta pensar nas ricas imagens de que est re- pleta uma obra como O Mediterrdneo — nem do exercicio da his- toriografia como trabalho de criagdo conceitual. De outro, as sé- ries analiticas: a deliberada exclusio da “‘ordem do vivido"’, do tempo existencial, a fim de despojar a interpretagdo histérica de qualquer determinacao ideolégica”.27 Se Braudel quis assegurar para a histéria um elevado estatuto cognitivo, prescrevendo-lhe para tanto ultrapassar o nivel das aparéncias, que identificou com 0 do relato das acdes militares e politicas, a hist6ria cientifica & Furet foi uma explicita resposta & acusagdo de que a histéria nar- rativa nada mais € que a forma especffica da elaboragao da ideo- Jogia ocidental da unidade de um sujeito coletivo — humanidade, Estado ou civilizacéo — em processo uniforme de cumprimento de um destino. Formulada em perspectiva quer antropolégica, quer 27, Cf. Braudel (1978: 25, 35,68; € 1984: 22), Furet (6.4 83-84) 24 ‘Tania Navarro Swain (organizadora) epistemolégica, quer de teoria litersria,?* essa critica desautoriza- va as pretensdes de realismo, objetividade ou neutralidade de to- das as formas de representagéo miméticas, vale dizer, realistas, tanto histéricas quanto ficcionais: todas produzem, mediante o6- digos e regras constituidos segundo as tendéncias culturais domi- nantes, uma imagem ordenada do mundo supostamente real. Foi ‘ecoando tais andlises que ganharam preeminéncia metodologias ( que, pelo expurgo dos componentes existenciais e subjetivos das / fontes e das categorias do pensamento histérico, buscaram | “‘desmitologizé-lo’, ou seja, dissocié-lo dos procedimentos de_) narracio. Assim, 0 foco principal da critica antinarrativista, marcante na tcoria historiogréfica dos tltimos trinta anos, hoje nao é tanto © caréter descritivo, diagnosticado como auséncia de anélise ou de teoria. E antes o parentesco com as estruturas ¢ os efeitos de certo género de ficgao literdria — 0 romance novecentista — que se esconde sob a forma narrativa. Furet (s.d.: 26), mais uma vez, ex- prime francamente esse ponto de vista, a0 declarar que ‘a narrativa oferece ao trabalho de arquivos e a erudi- co 0 encanto ¢ até o prazer do romance. Construfda numa sucessio de fatos concretos e fmpares, mobiliza mais © poder de evocacio do historiador do que a ca- pacidade propriamente intelectual, a arte mais do que o espitito, a sensibilidade mais que a inteligéncia. (...) A narragio do passado, se for boa, isto &, niio s6 “verdadeira’ (quanto aos fatos contados) mas feita com um mfnimo de profundidade, € insepardvel da simpatia do historiador pelo ‘vivido’ do perfodo a que se refe- rem os acontecimentos por ele narrados, a maneira como 0s homens dessa €poca apreenderam e atravessa- ram 0 que constitui a matéria da sua narracdo. Ora, esta simpatia, que permite, se nio a restituicio, pelo 28. Marcos importantes no desoncadcamento desse processo rftico foram Lévi- Straus (1962) e Barthes (1967, originalmente pubicado em 1967). Hist6ria no plural 25 ‘menos wna restituigio daquilo que desapareceu, € da ‘ordem do afetivo ou do ideol6gico, ou de ambos. Esta substituiu-se 4 questio explicitamente formulada para constituir 0 laco entre o passado e o presente. Af esté o sentido da proclamaco — seja triunfante, seja des- denhosa — de um retorno & narrativa na historiografia mais recen- {e, Pois € bvio que a caracteriza¢o de um ‘modo narrativo’ tanto pela obediéncia & causalidade cronolégica quanto pelo procedi: mento descritivo, em oposigao a0 analitico, no condiz com a hatureza dos refinados exercicios historiogréficos usualmente ‘apontados como repesentativos da tendéncia atual. Em contrapar- tida, aquela proclamaco torna-se significativa quando vinculada A preferéncia dos estudos ditos de mentalidade, de antropologia hist6rica ou de histéria do imagindrio por temas ¢ abordagens ‘que, desenvolvidos amide com pericia literdria, mediante a ex- Ploracdo consciente de recursos de estilo, adquirem uma vivaci- dade imagistica que Ihes confere o efeito de evocacdes. Nao por outro motivo, enquanto Stone (1979: 13 ¢ 19) vé no renascimento dn narrativa, que associa aos estudos de mentalidades, o sintoma de um desencanto com a ‘histéria cientifica’, Furet (s.d.: 26-27), ‘no p6lo oposto, deprecia a ‘nova hist6ria’ em razo de suas moti ages nostélgicas, alegando que “‘esté menos ligada ao passado, (que retraca, por uma série de questées particulares do que pela Daixiio de nos dar, como se pudessem reviver, as crencas, as emo- ‘gbes e as representagdes de nossos antepassados”. Aparentemente, portanto, a questo do narrativismo se resol- Yeria pela comprovacéo da indole afetiva, sutilmente ideolégica, de uma producio historiogréfica governada por principios esteti- vantes © pela imaginagio evocativa. H4 que notar, porém, que a ugestio pict6rica, a utilizagao de cédigos poéticos ou retdricos para a criagdo de efeitos draméticos indissocisveis da ‘informa- ‘gio’ (ou contetido conceitual) do texto histérico néo correspon- dem, entre os praticantes desse tipo de escrita, as mesmas motiva- 26 ‘Tania Navarro Swain (organizadora) Ges ou a idénticas concepeses da disciplina histéria. Ao contré- rio, sio comuns a historiadores fortemente diferenciados no que 4iz respeito nao 36 aos interesses teméticos e aos métodos de pes- quisa, mas também as filiagGes tedricas e as estratégias discursi- vas. Pense-se, por exemplo, na ‘arte pontithista’ de Peter Brown, a que se refere Stone (1979: 12). Pense-se, em contraste, na con- jung&o que Duby realiza, ao reivindicar sem hesitacdo 0 estatuto literério da historiografia e simultaneamente apoié-lo na elabora- ‘cdo rigorosa de suas categorias de andlise. Pense-se, ainda, nas peculiaridades de Braudel, autor de “uma obra-prima de histéria picaresca Rabelais”? e formulador do modelo triplice de pers- pectivacdo do objeto — estrutura, conjuntura, evento ou longa, mé- dia e curta duraco — que fez escola na historiografia francesa. ‘Como os exemplos citados evidenciam, o emprego dos meios literérios na historiografia contemporinea de vanguarda 6 cons- ciente, refletido, vale dizer, desvinculado de qualquer epistemo- logia realista, oposto mesmo & ilusdo de representar ‘o que acon- teceu’. Muito longe se est, nesses casos, do empirismo ingénuo & da nocao de verdade hist6rica prépria & hist6ria politica tradicio- nal, a despeito do que &s vezes pretendem seus censores. Por ou- tro lado, historiadores de variadas correntes tendem agora a reco- nhecer 0 quase inevitével entrelagamento da historiografia com as. diversas modalidades de criagio ficctonal. O qj quer dizer, obviamente, que esses mesmos historiadores definam e avaliem de maneira idéntica o fato que admitem. Para verificd-lo, basta per- correr a gama de respostas fomecidas 2 questo da incidéncia da ficgdo na hist6ria por uma difzia de grandes nomes da historio- grafia francesa, convocados a refletir, em mesa-redonda, sobre os 29, Hexter (1979: 132). Num estudo penetrane da obra braudeliana, 0 autor compara ‘forma narrativa de O Mediterrdneo 8 da novela burleca do século XVI, em Par= ticular & de Rabelais: “O trato de Braudel com 0 passado 6como o de Gargantua: ‘encontra enorme prazernele, em seus mals vasos lineamentos em seus maisfa- timos detalhes; um irreprimfvelapette por ira toda parte, vendo tado e contando ‘oque v6" (dem: 123). Hist6ria no plural a problemas com que se defronta a chamada nova hist6ria.? Con- tentemo-nos em comparar dois pronunciamentos: [EMMANUEL LE ROY LADURIE] Pergunto-me se a hist6ria nfo acabard por ser uma mistura entre as cién. cias humanas, por um lado, ¢ a literatura, 0 romance, ‘as belas-artes, 0 cinema, 0 teatro e a Opera, por outro. i caea secblghRitte yue Fae case Hranteea: pore Jjamais conseguiremos edificar uma ciéncia pura. Mas também € a nossa forga, ainda que relativa, porque is- so talvez nos permita impormo-nos a um certo piblico que sera afastado, por exemplo, pela lingiifstica pura. [MICHEL DE CERTEAU] A histéria nfo é cientifica, se por cientifico se entender o texto que explicita as regras da sua producio. E uma mistura, 6 ficgdo cientf- fica, em que a narrativa apenas tem a aparéncia do ra- Giochi, mas que também ado € menos circunscrita por controles e possibilidades de falsificagfo. Assim se entendem as notas, a cronologia, todas as manhas que apelam para a credibilidade ou para as ‘autoridades’. Esses expedientes permitem suprir, por uma narrativi- dade, 0 que falta em rigor. Efetivamente, essa mistura liga num mesmo texto a ciéncia e a fébula, as duas metades simbdlicas da nossa sociedade. Nessa medida, la representa e articula a modernidade. Tem figura de mito. Entre a complacéncia de Ladurie e 0 severo ajuizamento de Certeau a distincia € considerdvel. Poder-se-ia ainda contrastar ambas as apreciagdes com a posicéo apologética de Arits,?! apoiada na contraposicao entre “‘abstracdo do modelo” (histéria social cientifica) e “‘reencontro”” da “* Nao deixam, de fato, de 5, Ver sua imterpretaco peculiar da ‘Ii pottica’viqueana em White (1976). 34, Kellner (1980: 14) Hist6ria no plural 31 igerir uma mfstica poética andloga & que subentende a nocdo de ‘poesia inspirada’, ou seja, 0 que classificamos como mitopoética dos aedos e bardos. No fim das contas, tal entendimento do nar- {utivismo em histéria justifica, embora em sentido diferente do da ‘itica pés-estruturalista, a aproximagdo do discurso histérico ba- sendo em estratégias literérias a0 mito. Retomemos, pois, & questio do embaraco provocado pelos ‘tapeotos ficcionais da composicao historiogréfica. Esse embaraco, ‘Wo que parece, prende-se antes de mais nada as incertezas (€ di- jpncias) sobre 0 estatuto cognitive da disciplina. ‘A histéria, como disciplina, constitui-se com vistas ao aten- into de um ideal de ciéncia; talvez seja mais certo dizer com 4 condigéo de conhecimento positivo, tendo em conta 0 geral reconhecimento, desde cedo, de sua incompatibilida- ‘com 0 modelo de ciéncia fixado pelas disciplinas que estudam undo fisico.35 Natureza contingente do objeto, fluidez con- |, indeterminac&o metodolégica, subjetividade: os motivos dda incompatibilidade que se apontam so muitos e varia- De todo modo, na reivindicagio de positividade, embute-se © pressuposto realista, ainda que por vezes sofisticadamente finido, quer a declaragéo de uma deficiéncia ressentida. Nas hipéteses, a pretensfo de um saber positivo implica a sepa- nitida entre conhecimento € elaboragio ficticia; 0 que s¢ | ‘em jogo, exprima-se como se exprimir, é problema do va- ie verdade da historia. Hisse problema no se encontra superado, mas sofreu um samento de foco em razo da influéncia exercida, tanto no da teoria historiogréfica quanto até mesmo no da pesquisa a, pelas disciplinas das éreas da linguagem e da literatu- lo que, agora, vem sendo crescentemente questionado. Mas esse aspecto do ulteapasa os limites demarcedos para a dscussio do presente artigo. Ver, 8 0, Costa Lima (1989: 111-116). or 32 ‘Tania Navarro Swain (organizadora) 14.36 Ao realcar no apenas caréter de discurso da interpretagdo hist6rica, mas também a natureza construfda dos vestfgios do pas- sado — essas objetivagées da experiéncia humana, cujo sentido, quer se trate de registros escritos, de monumentos mudos ou de “testemunhos’ iconogrificos, advém dos c6digos de significagao | que nelas se acham investidos -, a perspectiva literdria exclui da | maneira mais cabal o exame da questio do fundamento ¢ do valor | da producéo historiogréfica em termos realistas. O ‘real’ perde a » qualidade de _absolute-ontolégico, ou seja, de objeto auténomo e condicionante-da-representacéo discursiva, para.encarar-se como parte integrante do universo de. sentidos institufdo mediante di versas modalidades de codificagéo. Chartier (1987: 39-40) sinte- tiza bem essa mudanga de concepgao: A relagdo do texto com o real (que talvez se possa de- finir como aquilo que 0 texto propée como real, ao constitut-lo como referente situado fora de si) constréi- se de acordo com modelos diseursivos e categorias in- telectuais peculiares a cada situagéo de escrita. (...) © real, assim, adquire um novo significado: 0 que € real, de fato, nfo € (ou nfo é apenas) a realidade visa- da pelo texto, mas a propria maneira pela qual o texto a visa, na historicidade de sua produgéo ¢ na estratégia de sua eseritura. Nao cabe aqui comentar as diversas posig6es teéricas a partir das quais se procura definir, na atualidade, a natureza do refe- rente do discurso historiogréfico c, em conexao com ela, as regras de produgéo ¢ 0s critérios de validagdo que Ihe conferem legiti- midade, Basta assinalar a distingfo geral entre pontos de vista mais atentos a determinagées ‘extradiscursivas’ — priticas e ‘Iuga- res’ sociais que inscrevem as segmentagdes do mundo social nos 36. Boa exposigdo do assunto em Hunt (1992) ¢ Kramer (1992), Hist6ria no plural 33 saberes € representagdes em geral?? ~ e abordagens centradas nos processos textuais propriamente ditos, vale dizer, no uso efe- tivo de convengées © esquemas de construcio discursivos em textos de diferentes ‘gneros’. O que me interessa destacar, po- 16m, € 0 fato de que, sob a dptica da teoria e da critica literdrias, desaparecem as barreiras rigidas entre historiografia e literatura, ou melhor, problematiza-se a oposigo entre ambas, pela énfase na dimenso postica, ou seja, inventiva ou ficticia, inerente aos procedimentos que ambas compartilham. Nesse sentido, observa La Capra (1987: 75) que € comum distinguir a histéria da literatura com base em que a histéria concerne ao reino do fato, enquanto a literatura se move no reino da ficgdo. E verdade que at eeseetacie ges sorta deritar asta Cea ere 163, 80 PESso qUe-O-esCritOr“TierBrio” pode, e nisso 0 segundo-goza de maior liberdade_para explorar rela- ‘es. Em outros nfveis, contudo, os historiadores fa~ zem uso de ficgSes heuristicas ¢ modelos, a fim de rientarem suas pesquisas sobre fatos, e a questio que vantar é se eles, em seu intercimbio com 0 passado, limitam-se a relatar eanalisar fatos. Inversa- mente, a literatura apropria-se de vérias maneiras de um repert6rio factual, e 0 transporte documental tem um efeito que invalida as tentativas de encarar a lite- ratura em termos de uma pura suspensio da referéneia A ‘realidade” ou de transcendéncia do empftico no pu- ramente imaginério. 37. Assim, por exemplo, Chartier (1990: 84-88) Certean (1982: 18-22). Advirto que ‘fo estou afirmando a identidade de orientasto entre estes dos historiadores, nem 4o conjunto de autores que enquadro numa ‘tendéecia’caracterizada em termos ‘genéricos. A mesma observasdo vale para a outra Tina de abordagem, que pro- fcuro distinguir da primeira em seus contornos esseaciais. Vinculo esta outa Orient especialmente 2 tradicio da chamada histria intelectual, segundo os pardmetros de La Capra (1987), que expée e reivindca a especifiidade de pers- pectiva desseramo da pesquisa histGrica. 34 ‘Tania Navarro Swain (organizadora) Isso néo acarreta automaticamente a negacdo da existéncia de diferencas entre a escrita de histéria e a escrita ficcional, vale di- zer, a recusa de especificidade aquela (¢ portanto a esta). Pode-se falar, com maior pertinéncia, em relativizagdo da diferenca, con- | forme patenteia a passagem citada de La Capra: 0 historiador in- terpreta, isto 6, codifica, de acordo com as normas correntes de ‘seu_género de escrita (e as vezes quebrando as regras), materiais {jf elaborados mediante outros cédigos, assim como 0 ficcionista constréi situagSes, observando (ou no) esquemas formalizados de composigéo literéria, a partir de um conjunto de elementos ex- traidos da experiéncia, pessoal e coletiva, presente ¢ passada. { Ambos dio ordem e sentido a uma massa de ‘dados’ cujo signifi- ' cado prévio ¢ distinto do que Ihes € atribufdo na composicéo. As disting6es entre os dois tipos devem-se menos & matéria-prima com que operam (pense-se em narrativas ficcionais como O nome da rosa, de Ecco, ¢ A guerra do fim do mundo, de Vargas Llosa) p-do que a0s respectivos cédigos ¢ regras de operacio, moldados pela intencdo e a finalidade que governam cada uma dessas ativi- °°" dades: a do historiador rege-se predominantemente pelo.valor do- _,Ler® cumental imputado & interpretacio histérica, 0 que implica vali- ‘ pe? dao por critérios empiricos; a do ficcionista, em contraste, atende antes a objetivos ‘performaticos’, ou seja, de suplementa- ‘<0 do significado literal e criago de novos significados para as i referéncias factuais. Mas tanto a escrita hist6rica possui dimen- | s6es performéticas quanto a obra ficcional compreende, manifesta ou virtualmente, aspectos documentais.38 a Resta a questéo da vizinhanga da histéria com a fabula e 0 mito. Ela assombra a prética historiogréfica na medida em que (esta, mesmo tendo abandonado a crenca numa correspondéncia com a ‘realidade’ objetiva, ndo renunciou & presuncéo de produzir relatos veridicos. Pois ainda que explore conscientemente as pro- His leRias Relates ven/pi os 38, La Capra 98: 53). Histéria no plural 35 priedades literérias da historiografia e admita de bom grado a Participacdo do engenho ou imaginacéo em sua obra, a maioria dos profissionais da disciplina continua a pretender para ela o atributo da yeracidade (embora no mais o estatuto de verdade): 6 iss0 0 que, em iitima instincia, especificaria a hist6ra frente & ‘cfiacdo _ficcional. Desse pressuposto comungam historiadores tio abertos ao encontro da historiografia com a literatura quanto, por exemplo, Chartier (1990: 84) e Duby (1989: 38). [CHARTIER] Relato entre outros relatos, a hist6ria singulariza-se, porém, pelo fato de manter uma relagio espectfica com a verdade, ou antes, por as suas cons- trucées narrativas pretenderem ser a reconstituigio de um pasado que existiu, Esta referéncia a uma realida- de situada fora antes do texto hist6rico, e que esta ‘em por funcaio reconstituir & sua maneira, nao foi dis- pensada por nenhuma das formes do conhecimento hist6rico, melhor ainda, ela € aquilo que constitui a hist6ria na_sua_diferenca mantida com_a.ffbula ea ficefo. [DUBY] Penso, efetivamente, que um livro de hists- ria, que a histria, enfim, € um género literério, um género que depende da ‘literatura de evasio’ — pelo ‘menos em largufssima medida. (...) ‘Mas a diferenca entre o romancista e o historiador € que o historiador-¢ obrigado-a-ter-em_conta certo niimero de coisas que se Ihe impéem; ele preocupa-se com a ‘Veracidade’, se quiser, talvez mais do que com a‘realidade’. O discurso hist6rico, entretanto, como lucidamente declara Duby (1989: 39 © 41), € essa espécie de “edificio de imagina- er: suas diversas formas S80 todas edificios igualmente imagi- lirios, de que “‘o operério € os materiais podem ser melhores ou plores””, sem que por isso nenhum se aproxime mais ou menos da verdade. Como, entéo, conciliar invencao e veracidade, requisito 36 Tania Navarro Swain (organizadora) rio historiografico com relacio & ficcdo? Problema crucial, sem diivida, posto que a antitese entre esclarecimento e mito, postula- da desde 0 século XVII pelo racionalismo nascente?? ¢ retomada, ‘com novo significado, pelo anti-historicismo contemporineo, se tomou a pedra de toque da avaliacio da legitimidade de todo dis- ‘curso hist6rico: como ciéncia, ele deveria ater-se aos procedi- mentos do raciocinio, e nfo mascarar, como quer Certeau, as condigées de sua produco; como narrativa, porém, ele deslizaria ara o territério da ficcdo, ou seja, da fébula. Porque proclama ‘compromisso com 0 veridico, a historiografia nfo pode justificar- se nem como verdade poética, nem como simples fabulacdo lid ca; ou se qualifica como ciéncia, mediante um purismo analitico, ou, adotando uma discursividade retérica, identifica-se com 0 mito. Nessa perspectiva é que Certeau classifica a hist6ria como ‘fiegio cientiica’, mistura de éenicas ¢ procedimentos légicos, © de arranjo narrativo, Para ele, a narrativa no passa de um cio de encenacéo, por meio do qual a escrita da historia esté fa- dada a destilar ideologia: Af se representam, como em cena, 0 ‘estilo’ e os fan- tasmas do autor, a sua arte de dar crédito ao seu dis- curso, a sua habilidade de fazer esquecer aos leitores aquilo de que nao fala, de fazé-lo tomar a parte pelo todo de uma época. (...) A ilusio narrativa ¢ teatral cconsiste num passe ilusionista, que transforma em dis- curso sobre o real a fabricacfo de um texto a partir de 39. Refiro-me a0 proto-iluminiemo dos adversioe do tradicionalismo classicista en- volvidos na chamada “querela dos antigos © modernos’ em particular a Fonte- nelle, que, no famoso De Forigine des fables (1686), sistematizou os argumentos ‘com jue os “mmodernos’combbteram radio da existncia de uma elevada sabe- ‘dora expresaalegoricamente no que se chamava entfo de fdbulas: a narrativas rmitopoéticas da Antiguidade pagi. Sobre ocaréter do pensamento de Fontenelle e ‘© sentido essencial da ‘querela' ver Gusdort (1974). Hist6ria no plural 37 restos documentais. Por af se insinua a autoridade que 6 historiador pode pér a servico de uma didatica, de uma normatividade social, de um poder ou de uma ideologia, fazendo crer-que.a lei de hoje ¢ o real ou a razio40 FicgZo, nessa abordagem, se usa como categoria pejorativa, € niio na acepgfo filosdfica, que se refere aos constructos imaginé- rios utilizados para resolver problemas ou para criar idealmente um ‘real’, Por alusio aos efeitos unificadores que a critica estrutu- ralista reputou inerentes as estruturas narrativas, a invengo histé- rica, vale dizer, a operacio de estabelecimento de relacées signi ficativas entre materiais empfricos em si desprovidos de sentido, é comparada & encenacio teatral. As representacdes do passado as- sim obtidas se equiparam ao ‘mito’ — as fébulas enganosas dos poetas, que, no entender dos iluministas de todas as Epocas, se fazem passar por ciéncia ou filosofia*! —, no que conceme a pro- pagacdo de um saber ilusdrio. Sua credibilidade no decorre da dimenséo racional do trabalho historiogréfico, isto é, do aparato critico filolégico e de modelos l6gicos de explicagéo, mas emana da organizacéo disciplinar: da “maquinaria social e técnica da in- \istria historiogréfica”, nas palavras do mesmo Certeau (1983: 31), que constitui 0 processo de producio de tais ficgdes. A bem dizer, a idéia de veracidade, reclamada pela historio- sgrafia, é pouco consistente. Em que pode, efetivamente, basear-se essa reivindicagéo? Em nada além de certezas factuais, estabele- cidas pela erftica filol6gica e técnicas afins, que asseguram a per- tinéncia contextual da interpretagio dos documentos. Duby (1989: 48) o reconhece expressamente, quando declara que “a constincia, a solidez. dos pontos a que nosso sonho se agarra, € © 40, Certeau (1983: 31-32). 4, Vale lemibrar que foram os inventoes gregos da razohistéricae flosSfica, Tuct- ides e Plat, que fixaram significado de mfthos como relato absurdo ¢enga- oso. Ver, arespeito, Detienne (1992: especialmente 118). o 38. ‘Tania Navarro Swain (organizadora) rigor do controle a que o submetemos, em suma, a critica hist6ri- ca, € isso que constitui 0 valor do nosso oficio’. O resto, ou seja, 08 conceitos ¢ modelos analiticos que conectam os vestfgios do passado e Ihes impdem sentido no interior de um quadro inter- pretativo, pertence ao dominio da conjectura. Nao passa de fic- es heurfsticas, impossfveis de validar por critérios exteriores as convengées € normas da disciplina. Isso, alids, no € algo pecu- liar & historiografia, ¢ sim caracterfstico do pensamento te6rico, ‘quaisquer que sejam 0 seu campo e objeto: a arqueologia de Foucault jé o demonstrou. O que, sem diivida, é intrinseco A natureza do texto historio- grifico € 0 componente retérico, literdrio ou, se se quiser, narra- tivo. Pode-se considerar a narrativa quer como artificio que pre- enche os vazios deixados por “tudo aquilo que se-calou-e que a hist6ria substitui pelas suas ficgdes”, como pretende Certeau iz! (1983: 32), quer simplesmente como a organizacio discursiva prépria as escritas cujo objeto consiste em situagdes humanas. Em qualquer caso, trata-se de ‘encenacdo’ que a historiografia néo dis- pensa; s6 0s discursos puramente I6gico-demonstrativos prescin- dem de formas de representagdo literérias e do recurso & retérica. Tudo isso induz a admitir que nada diferencia, de modo ab- soluto, a composicao de histéria da obra literdrio-ficcional, no sentido estrito: nem o suposto cardter de reconstituicao do ‘real’, nem, com mais razo, as modalidades de enunciacio de que se vale. © que de fato distingue as duas categorias de escritas sio as ‘convenes disciplinares que as governam. Tais convenc6es ato- Fizam & segunda 6 descompromisso com a ‘realidade’, o que tal- vvez acresca 0 seu potencial de expresso de verdades; em contra- partida, conferem A primeira a autoridade de relato veridico. Nao hé, pois, como negar que a ret6rica da historiografia, conforme insiste Certeau, na mesma medida em que fabrica ‘“‘si- rmulacros (...) de um outro mundo”, reforca o poder de seducio a hist6ria e, por essa via, a eficécia ideol6gca de um tipo de dis- Hist6ria no plural 39 deve-se acrescentar que bilita que passe a funcionar diversamente, ¢ quem sabe contraria- mente, a sua atuacGo no paradigma narrativo do relato cronolégi- co factual ¢ linear. Decerto no € por acaso que enquanto a lite~ ratura contemporénea, em uma de suas vertentes, optou pelo auto- -referenciamento, vale dizer, por tematizar seu modo de opera- 0,42 a historiografia de vanguarda toma agora como objeto exame_das priticas que produziram as representagSes com que labora suas préprias imagens.43 Talvez se possa afirmar, em concluséo, que, desfeitas as ilu- ses do realismo e da cientificidade, o problema da demarcago de fronteiras entre narrativa hist6rica e narrativa literéria — sinto- me tentada a escrever entre ficcZo literdria e fico histérica — converteu-se primordialmente numa preocupacao ética. Preocupa- ¢fo ditada pela clareza da percepgdo da autoridade que a histo- riografia recebe do aparato institucional dentro de que se labora «que Ihe prescreveu 0 nexo com fatos e processos veridicos, bem como a observancia de limites no exercicio da imaginagio, em decoméncia desse nexo. it No espaco dessa problemética ético-politica, os historiadores ‘concebem as questées relevantes e desenvolvem as frmulas de tratamento correspondentes de acordo com suas diferencas de orientagio filos6fica, campo de pesquisa e inclinagGes pessoais. E se essa diversidade € inevitavel, legitima e desejével, permito-me declarar preferéncia pelas abordagens que exploram sem reservas ‘a natureza figurativa e retérica da escrita da hist6ria, buscando o antidoto para os efeitos ilusionistas a ela inerentes no prOprio res- peito aos cédigos da disciplina, vale dizer, no rigor da erudigéo, 42. Cf, La Capra (1987: 75), 483. Chartier (1990: 86-87). 40 ‘Tania Navarro Swain (organizadora) na preciso conceitual e na agudeza analitica necessétios & capta- ‘cdo da alteridade que constitui a esséncia do objeto da hist6ria. Encerro, por isso, com a citagéo de duas passagens em que Georges Duby (1989: 158 ¢ 1983: 44) exprime de modo lapidar essa visio: Produzir 0 discurso histérico €, estou convencido, de- senvolver um saber itil. Consumir 0 discurso hist6ri- €0, vejo-o como um exerefcio, um exercfcio de treino, que nos ajuda a agarrar o presente de maneira mais adequada. (...) E € precisamente na (...) evidenciagio das diferencas que me parece residir sua utiidade. Mas ereio qué 6 valor decisivo da historia, 0 seu valor moral, reside afinal no préprio método histérico. A histdria d4 ‘ligdes’ na medida em que ensina a divida metédica, 0 rigor, em que € aprendizagem de uma erf- tica da informagio. E isso que me faz pensar que a histéria (...) 6, como se dizia ainda hé pouco, a ‘escola do cidadio’, que ela contribui para formar pessoas cu- jas opiniGes sejam mais livres, que sejam capazes de submeter as informagées com que so bombardeadas a uma anélise mais IMeida, (..) menos enredadas nas imathas de uma ideologia. Ela ensina a ler a complexi- dade do real. Isto liga-se talvez ao que voc8s tinham em vista a0 di- zer que € uma certa imagem de ciéncia que faz desejar ‘cada vez mais uma parte de ficco na historia, que, aliés, no € apenas verdade para a hist6ria. Por exen- plo, na obra de Roland Barthes, a lingiifstica toma-se fundamento de um discurso que apresenta 0s mesmos caracteres do discurso do novo historiador. Esse dis- curso, baseado em observacées cientificas muito segu- ras, consegue, de fato, pelo ‘prazer do texto’, organi- zar-se como uma ficcio. A obra de hist6ria toma-se entiio, a0 mesmo tempo, um divertimento, um meio de evasio e um meio de formacdo do cidadio. Hist6ria no plural 41 Referencias bibliogréficas BARTHES, Roland (1987) ‘O dlscurso da hist6ra’e ‘0 efeito de ral’. Em idem, O ‘nor da lingua. Trad. prt, Lisboa, Eaigdes 70, pp. 121-130 131-136. BRAUDEL, Fernand (1978) Escrtos sobre a histdria. Trad. port, Sio Paulo, Perspec~ BRAUDEL, Fernand (1984) 0 Mediterrinco« o mundo mediterrineo na época de Fii- ell. Trad. port, 2 vols, So Paulo, Martin Fontes, BURKE, Peter (1991) A revolupdo francesa da historiogafia: a escola dos Annales, 1929-1989. Trad. por, S80 Paulo, Unesp. CERTEAU, Michel de (1982) A escrta da hisrdria. Trad port, Rio de Janeiro, Fo- ‘ease Universiti CCERTEAU, Michel de(1983) Ver LE GOFF eta CCHARTIER, Roger (1987) ‘Intellectual history or sociocultural history’. Em Domi- nick La'Capra e Steven L. Kaplan (orgs.), Modern European intellectual history: eappraisals and new perspecives.\thaca/ondres, Cornell U.P., pp. 13-44. CHARTIER, Roger (1990) A histni cultural ene prdtcas e representacdes, Trad. 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A percepco do imaginério como locus de investigacao cien- {ifica obedece, de certa forma, & experiéncia do kairos, na medida em que, realidade inere movimento social, condensa as ex- pectativas e 0 anseios de um aprofundamento na compreensio da realidade empirica, presa ao molde de esquemas unfvocos de in- terpretago, sacrossantos escrinios de categorias definitivas ou modelos intocéveis. 1, VerJung (v6), §§ 398-585,

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