Você está na página 1de 12

ÇATALOGAÇÃO N A FONTE DA RIIJLIQTEÇA DA FACULDADE DE DIREITO DA UFMC

ISRN DTPARTAUEYTO NhCIOVAL DO LIVRO

''' Iiirisdição r> hernic~nfiuiicacon5tiiucioiial no Estado Oemncráticn


dcb Uirei!o/.Varcrilo Andrade Canoni de O l i v ~ i r a(coordena-
(3ol. - Bplo Harirnnlr: Mandamcnlor, 2004.

Incliii Billl~ogr~fia.
1 5 , 5 x 2 7 , s - 5112 p 3 ~ i n a s
ISRN: RS-7h04-0?2--

1 . Urreita constitucional. 2. Hermenêutica (Direito). 3 ,


~i~risrdtçàa(nireito conititircional), I. Oliveira, Marcelo Andrarle
Cattoni de.

CDU
&, , , , ,: 342..8:340.132.ú
340.1 32.k342.4

EDITOR: ARNALDO OLIVEIRA J U N I O R

I Produç,5o grafica: Alexandre Cardoso

I ÇOPYRICHT O 2004 RY

I DEÇALOGO LIVRARIA E EDITORA


Rija fcpirito Santo, 1.025 - Loja H Centro - CFP 301 60-031- BH - M G
Telefax: 131) 3226 771 7
E-mari: editora-Jm~ndamentos,torn~br

LIVRARIA MANDAMENTOS
Rua Coitaca.çes, R2 - Centro - CEP 301 90-050 - BH - MC
Telefnx: (31 1 321 3 2777
E-rnail: livtaria@mandamentos.com.br

Nenhuma parte desta edição pode ser reproduzida, sejam quais forem os meios
oir formas, sem a expressa autorizaçào da editora.

1MPRESSO NO BRASIL
PRIN TED IN BRAZII
-- -
T E M 0 5 UM ADVOGADO JUNTOAO PAI, JESUS CRISTO, O JUSTO."
(1 10 2 1 ) Ao Professor Douznr Menelick de Carvalho Netto.
A HERMENEUTICA CONST1TUCIONAL SOB O
PARADIGMA DO ESTADODEMOCRATECODE
Dl REITO

MENELiCK DE CARVALHO NEaTO

São épocas difíceis para o constitucionalista essas em que o


sentimento de Constituição, para empregar a expressão divulgada
por Pablo Lucas Vesdií. é aniquilado nio sú pela continuidade e
prevalência de práticas constitucionais típicas da ordem autocr5tica
anterior, mas igualmente pela tentativa recorrente de alteraçfio for-
mal da Constituição. Tentativas essas que, alcancem ou não o fim
menor e específico a que visam diretamente, teminam sempre por
ferir a aura de supremacia de que se deve revestir a Cnnsticuição para
que seja capaz de Itgjtimar e de articular tanto o Estado quanto todo
o demais Direito que nela se assentam. Instrtura-se, assim. urna
sittlaqno que tende a desvelar dois paradoxos bisicos da rnodemida-
de. Torna-se cada vez mais visível que, na modernidade, tanta o
Direito funda a si mesmo, bem como que igualmente a política, o
Estado, Ç o prDplio fundamento de si mesma. Esses paradoxos do
fundamento de ambos os sistemas são velados, coma demonstra
Ni klas Luhmann, pela aquisiçzo evolutiva que representou a inven-
ção da ConstituiçBo formal nos finais do s6çulo XVIII. É a difetençi-
aç3o entre um Direito supenar, a Çonstituiqão, e o demais Direito.
que acopIa estruturalmente Direi to e política, possibilitando o fecha-.
mento operacional, a um sló tempo, do Direito e da Política. Em
outros termos, é por intermédio da Constituição que o sistema da
política ganha legitimidade operacional e C também por meio dela
que a observância ao Direito pode ser imposta de forma coercitiva.
Nessa situação, os próprios Orgãos legi tirnãdos pela Constituição
voltam-se contra a sua base de legitimidade para devorá-Ia, tal como
7 MENEtlCK DE CARVALHO NEnO

I
Cronos fizera com os seus próprios filhos. Revela-se a face brutal da tas necessfirias ou impossíveis. E, contra a segunda falha apontada,
1 privarizaqãa da público. do poder estatal instnimentalizado. reduzi- recordamos o próprio Mans Kelsen, o mais fmafista dos juristas. que
de a mero prêmio do eleito, visto como "as batatas" a que faz jus o requer, uma vez que o objeto da norma jurídica não é urna determinada
vencedor, nn dizer de Machado. 6 o sentimento de anomia que passa conduta humana e sim a internalização de um certo padrzode conduta,
a carnpear solto, vigoroso, alimentando-se n fartar das dificuldades ou seja, uma outra norrna de car5ter sociológico, para a própria exis-
que encontramos em recuperar as sementes de liberdade presentes tencia formal de uma noma um mínimo de internalizaç50 social. Ao
em nossa Constituição, mergulhadas em nossas tradições. E as tradi- nosso ver, para que a colocação do problema deixe de scr ela própria
qOes de qualquer comunidade politico-jurídica s3o sempre plurais, um seu reforço, 6 precise que busquemos postulá-Io de outro modo.
por mais autoritárias que possam ser as eventualmente vitoriosas ao Esse outro modo, acreditamos, deve vincular-se ao reconhecimento de
longo de sua historia. que as prdticas sociais, ou melhor, as posturas e supostos assumidos
A força nomativa da ConstituiçEo, como uma homenagem pelos distintos atores em sua açio, a garnhtica dessas prfitiça sociais, é
formal a Konmd Hesse, é reduzida a um mero ideal loewensteineano, alribuidora de sentido, de significação.
o que s6 vem, em Último temo, reforçar a força nomativa, a Assim, acreditamos que o Judici5rio ocupe um papel central
idealidade, da facticidade que se revela na continuidade das velhas na Ardua tarefa de promover não somente a segurança juridica, mas ri
priticas políticas e juridicas que a Constituição veio abolir, na medida crença no próprio Direi to, na justiça. Outra característica essencial
cm que se a eleva 5 condiqão de "'realidade." h.se, superando os do Direito moderno é o seu carbter textual. O fato de que s6 temos
stipostos de uma filosofia da conscicnçia, tematizarmos a condição acesso às suas normas mediante textos discursivarnentc constniídos
humana como uma condição Iin@ística, discursiva, hermenêutiça, e recof~stniídos.Portanto, os supostos da atividade de interpretação
vercmos que a nossa pr0pria "'realidade" cotidiana e inafastável 6 de iodos os operadores juridicos, do legislador ao destinatirio da
permeada de idealidades, de pretensões Idealizantes, constitutivas da norma, s5o da maior relevbncia para n implementação de um ordena-
capacidade linguistica como tal. Por isso mesmo a oposiqão entre a mento, o que nos remete para a tematização das gramiticas subja-
constituição formal tomada como consrituiçiio irleal e a efetiva prag- centes hs prfiticas sociais instauradas. Uma delas é a que revela a
rnfitica politico-.jurÍdica vista como çonstiritição real é, ela própria, crença de que todos os problemas e virtudes de nossa vida jurídica
uma construção idealizada, uma armadilha conceitual que et'erniza o dependeriam da qualidade literal de nossos textos Fegislativos. Es-
que pretendera denunciar, pois, por um lado, 6 incapaz de revelar a quece-se que os textos são o objeto da atividade de interpretação e
natureza de idealidade normativa das terríveis pretensões idealizantes n30 O seu sujeito. Que o anseado aprimoramento de nossas institui-
que ganham curso sob a capa do que denomina "realidade", e, por qões pode requerer algo muito mais compIexo do que a simples
O U ~ O absolritiza
, o poder de regularnen taçãa de condutas da Constitui- reforma de textos constitucionais e IegjsEativas. Tudo esth a indicar a

q;io e do Direito em geral. Cumpre salientar, portanto. que, por um que a reforma, para ser produtiva, deveria dar-se precisamente no
Indo, contra a primeira deficiência da visão da Teoria da Constituição imbito das posturas e das práticas sociais, ou seja, das gramáticas
clissica, o Direito moderno é um Direita que se volta para a regula- mediante as quais implementamos nossa vida cotidiana. E, nesse
rncntaqão de condutas futuras, sendo-lhe inerente a assunção do risco aspecto, a atividade jurisdiçional, na medida em que I he atribuida
do eventiial descumprimcnto de suas normas. Aliás, o Direito regula um papel central na arquitetura constitucional para o assentamento
apenns as condutas possiveis. refoge a ele a regulamentação de condu- das expectativas jurídicas prevalenses na sociedade, é sempre o pólo
i u i í i ~ u i ~ tti ltti t K M t N t U I ICA LONÇTITUÇIONAL r MENELICK DE CARVALHO NET'TO

em torno do qual se desenvolveu e se desenvolve a discussão teoreti- De inicio, portanto, cabe-nos intrduzir a noç3o de p a r a d i p a
ca c teórica sobre ;i leitura e a aplicação dos textos le_eislativos, ou e o seu emprego na Teoria Geral do Direito e no Direito Consti tucio-
seja, sobre a atividade de interpretaç9o. nal. O conceito de paradigrna, corno jii tivemos ocasião de afirmar,
Contudo, o que é interpretaçb? Será que interpretamos ape- vem da filosofia.da ciência de Thomas Kuhn? Tal noção apresenta
I

I
nas textos? Nesse passo, temos que nos referir, ainda que rapidamen- um duplo aspecto, Par um lado, possibilita explicar o desenvolvi-
te, a Hans Georg Gadamer e i denominada virada htmenFuticn que mento científico como um processo que se verifica mediante niptu-
empreendeu. Gndatner vincula-se h tradição teorética da hemeriêutj- r&<, atravts da tematização e explicitação de aspectos centrais das
ca filosófica, uma corrente de pensamento na história da filosofia grandes esquemas gerais de pd-compreensões e v i s h s de mundo,
que se dedica ao estudo do estatuto das denominadas cisncias clo consubstanciados no pano de funda naturalizado de silêncio assenta-
espiriro, das ciEncias humanas e sociais. A sua importfincia para nós do na gramática das ptjticas sociais, que a um sd tempo toma
reside no irnpucto que sua obra produzirá sobre o conceito de ciência possivet a linguagem, a comunicaçãa, e I imita ou condiciona o nosso
em geral, encontrando-se na raiz do conceito de paradigrna de agir e a nossa percepção de n6s mesmos e do mundo. Por outro,
Thomas Kuhn, a informar toda a atual filosofia da ciência. tarnbem padece de Ióbvias simplificações, que sO são v5lidas na
Para resgatarmos os exigentes pressupostos que informam a medida em que permitem que se apresente essas grades seletivas
poslura do juiz em uma tutela jurisdicional constit~tcionalrnentende- gerais pressupostas nas visões de mundo prevalentes e tendencial-
quada ao priradi_mn do Estado Democrático de Direi te, tornaremos mente hegemônicas em determinadas sociedades por certos periodns
os supostos iniciais de Ronald Dworkin, enquanto um autor que tem de tempo e em contextos determinados. É claro que a história como
por terna de sua predileção precisamente a reforma judicial que tal é it-iecupwável e incernensuravelmente mais rica do que os es-
pretendemos tematizar. Para ele, a unicidade e a irrepetibilidnde que quemas que aqui serão apresentados, bem como se reconhece as
caracterizam todos os eventos históricos, ou seja, tarnbkrn qualquer infinitas possibilidades de reconstrução e releitura dos eventos histb-
caso concreto sobre o qua I se pretenda tutela jurisdicional, exigem ricos. Assim, a nível de detal hamento e preciosismo na recanstruç50
do Jziiz hcrcúlea esforço no sentido de encontrar no ordenamento desses paradigmas vincula-se diretamente aos objetivas da pesquisa
considerado em sua inteireza a única decisão c a t a para este caso que se pretende empreender. Aqui, no sentido de introduzimos
cspccífico, irrepetivel por definiçfio. Em outros termos, rodo e qwal- rapidamente a aplicaçlo do oçoncei to no Direito Constitucional, so-
quer casa deve ser tratado pelo julgador como um caso dificil, como bretudo com vistas aos supostos da hemeneutica constitucional,
um hnrd crise.' Mas, comecemos do começa. Afinal de contas o que reconstruiremos um único grande paradigrna de Direito e de organi-
é um pamdi gmn? E ainda mais precisamente, o que é e quais são os zação política para toda a antiguidade e Idade Media, como
paradigmas constitucionais? Em que eles afetam a questso da inter- contra@ontoh modemidãde que, por sua vez, ser8 apresentada em -
pretação em geral e da inierpretaçfio constitucional em particular? três grandes paradigrnas (o do Estado de Direito, o do Estado dc
Bem-Estas Social e o do Estado Democr5tico de Direito), que

1 DWORKIN, R. h k i n g r i ~ h t ssrriorrsty. Carnbridge, Massachtisetis. Harvard


Univer<r!y, 197R, p R 1-130; A rnnirfr of p r i n c i p l ~ .Carnhridpe. Massachusett~- 2 KUHN, T.S.A esrrimrri das rmlugões cienirfirm. S?iaPaulo: Perspectiva. 1994. p.
Hnrvard University. 19R5,p. 119-145. 21 8-732.
MENELICK DE CARVALHO NETO

tendencialrnente se sucedem, em um processo de superação e fazer com que cada vez mais indivíduos livres e possessivos pcutici-
stibsunçi"i (~srrifl~ehen), muito embora aspectos relevantes dos pem do crescente mercado como proprietários, no rninimo. do pr6-
pnradigmns anterioms, inclusive o da antiguidade, ainda possam p i o corpo, ou seja, da força de trabalho que Ihes possibilita o
encontrar. no nível Fático, curso dentre nós. a condicionar leituras comparecimento cotidiano ao mercado enquanto propriedrios de
inadequadas das textos constitucionais e legais. Dai mesmo a razão e urna mercadoria a ser vendida (Marx}; passando peIo desenvolvi-
n necessidade de também apresentarmos os paradigrnas anteriores, mento das práticas de investigação policial (Foucaul t, Urnberto
pois, mediante essa contraposição, mel hm poderemos compreender Eco); pela destruição da cosmologia feudal fechada e hicrarquizada.
o nova paradigma positivado e suposto pela Constituiç30 da Repii- substituída pela ison0mica estrutura rnatemfitica de fitomos que
hlicli de 1988. constitui o universo infinito da física de Galileu (Koysk); pelas lutas
Examinemos, primeiramente, o primeiro paradigma constitu- por liberdade de confissão religiosa e pela çonsegilente distinçao e
cional em contraponto com e pd-moderno. separação das esferas norinativas da religiiio, da moral, da ética
O Direilo e a organização polifica pré-modernos encontra- social e do Direito (Weber), etc.
vam traduçh, em ultima andise, em um amiilgama normativo indi- Seja como for, o relevante é que todos esses processos de
ierenciado dc religiiio, direi ta, moral, tradição e costumes transccn- mudança se integram em uma profunda alteração de paradigma. As
dentalmente justificados e que essencialmente não se diçcemiam. O intuições da moral individual racionali s ta, vistas como verdades
Direi to é visto como a coisa devida a aIgdm, em razão de seu local rnatemhticas inquestionávei s, colocam em xeque a tradição, agora
de nascimento na hierarquia social [ida como absoluta e divinizada reduzida a meros usos e costumes sociais, que, para os homens da
nas sociedades de castas, e ajiisiiça se reulizn sobretudo pela sabe- época, s6 pode ser explicada como o reçul tado da çornipção hist6rica
cloriu F sei~sibilidadec10 crplicciclnr em "bem observar'" o princípio e que, assim, deveria ser alterada pela imposição de n m a s racional-
rln egíiirlade %erornadocomo a lramonia requerida pelo tsatamenro mente elaboradas pelos homens enquanto sujeitos de sua história,
dtlsijqiicrl qrre doeria reconh~cere reproduzir as diferenças, ns inaugurando ou remodelando um tipo recente de organização políti-
d ~ s i ~ i ~ n l d a dubsolurizndas
es, da ressiturci social (a phrnnesis ca, os Estados nacionais.
aristottlicn, a servir cle modelo para a posmrn do Iienneneidfa).O Os Estados nacionais são consmiidos como espaços laicos de
Direito, portanto, enquanto um iinico ordenamento de nomas gerais definição e imposição dessas regras racionais que deveriam reger
e abstraras v:ilido para toda a sociedade, nao existia, mas tão-sornen- irnpositivamente a organização e a reprodução social, a nomativida-
te ordenamentos sucessivos e excludentes entre si, consagradores de propriamente jurídica. O Direita, enquanto essa normatividade
dos privilégios de cada casta e facyão de casta, consubstanciados em específica, diferenciada e decorrente de idéias abstratas consideradas
normas oriundas da barafunda legislativa imemorisil, nas tradições, verdadeiras por evidência, como analisa Mmuse, s6 poderia ser,
nos usos e costumes locais, aplicados casuisticarnente como normas compreendido agora çomo um ofdenamento de leis mionalmen te
concretas e individuais. e não çomo um único ordenamento jurídico elaboradas e impostas B observação de todos por um aparato de
integrado por nomas gerais e abstratas vilidas para todos. organização politica Paicizado.
Verifica-se a dissoiução desse paradiurna ao longo de pelo O que se produz mediante um processo de redução, em que a
menos três séculos, por um sem-número de fatores que vão desde a direito deixa de ser a coisa devida transcendentalmente assentada na
II aç3o dissolvente do capital, a diluir os laços e entraves feudais e a rígida e irnutavef hierarquia social da sociedade de castas, para se
rrnnsfomar no Direita. ou seja, em um ordenamen to constitucional e relativa h vida, 9 liberdade e i propriedade dos súditos. Contudo, em
legal que impõe, 9 toda uma afluente sociedade de classes, a obser- face do Direito Privado, reino por excelência daquelas verdades
vincin daquelas idéias abstratas tomadas corno Direito Natural pela evidentes, o Direito Público, ao variar, em seus detalhes, de pais para
j usr:ici onalisrno. Idéias abstratas tais como a da liberdade individual psiIs, i visto corno mera canvençiio, pois da "sociedade política"
de se "fazer tudo aquilo que as leis não proíbam" (LockeíMontes- deveria participar apenas a "melhor sociedade", convcncionalmente
quieu) o11da "liberdade de ter" dos modernos em oposição b "liher- estabelecida pela requisita de renda mínima para o exercício do
dnde de ser" dos unti gos {Hegel, Benjamin Constnnt}; tais como si da voto, bem assim pelos critérios mínimos crescentes de renda
i giialdade de todos que, conquanto muito diferenres em outros aspec- censituriamente escalonados para que algukm pudesse se candidatar
tos. siio iguais diante da lei. Ou, como explica Pashukanis, são iguais a cargos públicos locais, regionais e nacionais.
no sentido de todos se apresentarem agora coma proprietários, no O Direito Privado, por sua vez, corresponderia bquelas verda-
mínimo. de si próprios, e, assim. formalmente, todos devem ser des rnatemriticas inerentes a todo e qualquer indivíduo: os direitos h
iguais perante a lei, porque proprietários, sujei tos de direito, devem- vida, h liberdade, i igualdade e à propriedade privada. Assim, socie-
clo-se pôr fim nos odiosos privilégios de nascimento. dade politica e sociedade civil são separadas por um profundo fosso.
Pela primeira vez na história pós-tribaf, todos os membros da Na psirneira, os interesses gerais deveriam prevalecer mediante a
sociedade são, ou devem ser, propriedrios, homens livres e, assim, ahbwição de sua identificaç50 e guarda aos membros dessa "socie-
iytialmente su-jeitos de direito, capazes, até mesmo o mais humilde dade politica", dessa "'melhor sociedade", àqueles cultural e econo-
trahalhadm braçal, de realizar atos juridicos contratuais como o da micamente bem aquinhoados. E a "razão práticd' apontava para o
compra e venda da força de trabalho. Com o movimento çonstitucio- estabelecimento do mínimo de leis gerais e abstratas, pois já que
rinlis ta implantam-se Estados de Direito que resultam da confmacão liberdade é fazer tudo aqui t o que as leis n5o proíbam. quanta menos
da organizaçao política B necessidade de que essas Idkias, tidas corno leis, mais livres seriam as pessoas para desenvdver as suas proprie-
direito natural de cunho racional, verdades matemáticas absolutas e dades (aqui o temo é empregado na acepção da época, como tam-
inqucstfanfiveis (caracterizadoras do individuo - essa outra invenção bém abrangente dos dotes fisicos e mentais de uma pessoa). A
clli modernidade) pudessem encontrar livre cursn e se impor. segunda, a sociedade civil, é o espaço naturalizado em que as propri-
O Direi to é visto, assim, como um sistema n m a t i v o de regras edades devem ser desenvolvidas o mais livremente possível median-
gerais e abstratas, vfilidas universalmente para todos os membros da te a garantia da iguaidãde formal de todos perante a lei. não impor-
sociedade. O Direito Público, no entanto, deveria assegurar, mesmo tando quão desiguais possam ser em temos materiais.
qiic por in termbdio de formas e sistemas de governo variados, o n3o- O Direito, enquanto ordenamento, ao estabelecer limites uni-
retomo ao absoliitismo, precisamente para que aquelas idéias abstra- versais preponderantemente negativos (não furtar, não matar, etc.,
tas pudessem ter livre curso na sociedade, mediante a limitação do como traduzido, por exemplo, por Fichte) é, então, visto como Ô
Estado ri lei e ri adoçao do principio da separaqão dos poderes que, conjunto de regras que delimitam os espaqos de liberdade dos indiví-
ainda que lido dc distintos modos, sempre deveria requerer, no duos - as linhas demarcat6riaç da fronteiras em que termina a liber-
mínimo, tarnbbrn a aprovaçao da representação censitária da "me- dade de um individuo e em que se inicia a liherdade de outro. Assim,
Ihcir sociedade" no processo de elaboração dessas mesmas leis. E. o paradigma do Estado de Direito ae limitar o Estado h legalidade.
assim, Bs leis deveria ser reservado o tratamento de toda a matéria ou seja, ao requerer que a lei discutida e aprovada pelos representan-
"I - MENEklCK DE CARVALHO NErQ

tes da "melhor sociedade" autorize a atuaçso de um Estado mínimo, tema, desde o socialismo implantado na Rússia Soviética em 1918,
restrito ao policiamento para assegurar a manutenção do respeito passando pelas sociais democracias como as da Alemanha de 1919 e
Aquelas fronteiras que asseguravam o mais pleno exercício i s ti ber- da Áustria de 1920, até o nazismo e o fascismo em ascensão, todas
dades individuais anteriormente referidas e, assim, garantia-se o essas formas de organização politica configuraram um movo paradig-
livre jogo da vontade dos atores sociais individuaIizados, vedada a ma,o do Estado Social, que, por sua vez, pressupõe a materializaç3o
orpnizaç5o corporativo-coletiva, configurando, aos olhos dos ho- das direitos anteriormente formais. Não se trata apenas do acrkscirno
mens de então, tim ordenamento jurídica de regras gerais e abstratas, dos chamados direitos de segunda geração (os direitos coletivos e
essencialmente negativas, que consagíarn os direitos individuais ou sociais), mas inclusive da redefinigão dos de primeira (os individu-
de primeira geraçuo, uma ordem jurídica liberal clássica. claro q i c ~ ais); a liberdade não mais pode ser considerada coma o direita de se
o CIO Estado de Direito,
.vnh este li rime iro p a r a d i p n cnnsfifi~cianal, fazer tudo o que não seja proibido por um rninirno de leis, mas agora
(3 q ~ ~ s t ã dau atividad~!Iiemenêartica do jrtiz só poderia ser vhfa pressupõe precisamente toda uma pleiade de leis sociais e coletivas
s'nrno timn atividade mect?nlca. rcsttlrnclo de uma lei!ura direta clos que possibilitem, minimamente. o reconhecimento das diferenças
t e x f o ~~ U deveriam
P ser claros e disriprtos, e a interpretação algo a materiais e o tratamento privilegiado do lado social ou economica-
sar riirado até rr~esmopela consulta ao legislador na hip6fese de mente mais fraco da relaçio, ou seja, a internrilização na legislaç3o
clrívidm c h jiiiz diante de ie.rfos obscuros 6 infrincnd~s.Ao juiz 6 de uma igualdade não mais apenas formal, mas tendencialmente
scseuvndo n pupel de mera bouçhe de la lui. material, eqüitativa. Não mais se acredita na verdade absoluta de
A vivencia daquelas idéias abstratas que conformavam o cunho matemático dos direitos individuais. O direito privado, assim
p:tradi-ma inicial do consti tucionatismo logo conduz A nega~ãoprá- comò o publico, apresentam-se agora como meras convenções e a
tica d:is mesmas na história. A liberdade e igualdade abstratas, bem distinção entre eles é meramente didática e 1150mais ontológica. A
como a propriedade privada terminam por fundamentar as práticas propriedade privada, quando admitida, o 15 como um mecanismo de
sociais do penodo de maior exploraç5o do homem pela homem de incentivo i produtividade e operosidade sociais, não mais em temos
que se tem notícia na histdria, possibi tirando um acúmulo de capital absolutos, mas condicionada ao seu uso, h sua funçfio social. Assim,
jarnai s vista, as revoluções industriais e uma disseminação da rnisé- todo o Direito 6 público, imposiçao de iim Estado colocado acima da
tia também sem precedentes. Idéias socialistas, comunistas e anar- sociedade, urna sociedade arnwfa, carente de acesso h saiide ou h
quis tas começam a colocar agora em xeque a ordem liberal e a um s6 educaç50, massa pronta a ser moldada pelo Leviatã onisciente sobre
tempo animam as movimentos coletivos de massa cada vez mais o qual recai essa imensa tarefa. O Estado continua a subsumir toda a
significativas e neles se reforçam com a luta pele diteito de voto, dimensão do piibliço, agora imensamente alargada e positivamente
pelos direitos coletivos e sociais, como o de greve e de livre organi- valotada, e tem que prover os serviços inerentes aos direitos de,
zação sindical e partidhia, como a pretensão a um saIirio mínimo, a segunda geraç5o à sociedade, como saúde, educação, previdzncia,
uma Jornada m Axirna de trabalho, i segundade e previdência sociais, mediante os quais alicia clientelas, para que os direitos de primeira
ao acesso h saúde, Li educação e ao jazer. Mudanças profundas geração possam ganhar densidade no novo sentido tendencialmen te
também de toda mdem conformam a nova sociedade de massas que materializado que passa a revesti-los.
suree após a Primeira Guerra Mundial e, com ela o novo pardigma Com essa crescente complexificação da estrutura da socieda-
coristittrcionnl cln Estndo Social. No que toca diretamente ao nosso de, verificada após a Primeira Guerra Mundial, no século XX item
curso, portanto, urna rernodelnção do Estado e do Direito, aqui antitétiça entre a técnica e a polltica. O Estado interventor transfor-
designada "passasem do paradigrna do Estado de Direito para o do ma-se em empresa acima de outras empresas. As sociedades hiper-
Estado Social ou de Bem-Estar Social", em que o Direito 15mafeterji- çornpFexas da era da informação ou pós-industrial comportam sela-
7.ado e, precisamente em razão dessas exigências de materializaçfio ções extremamentt: intrincadas e fluidas. Tem lugar aqui o advento
do Direito, iir7o somenfe o Estnde tem n sua seara de atuaçiio dos direitos da terceira geração, os chamados interesses ou direitos
~.~rrcrorclinnri~rnente ampliadn paro nhrmger tnrefm vinçufndas a difusos, que compreendem os direitos amhientais, do consumi dor e
~ s s r r snoiln.rjfjnalidade.~~confimicnse sociais que, o p r a , lhe são da criança, entre outros. São direitos cujos titulares, na hipótese de
nrrihuídas, como o prr5priri ordenarnenrn ganha fim novo gralr d~ dano, r130 podem ser clara e nitidamente dereminados. O Estado,
conrplexidarle. O juiz agnrn nBo p o d ~ter a sua ntividadp rehzida a quando não diretamente responsivel pelo dano verificado foi, no
rima ntem tns<fu rnecclniçn de aplicaçiio s i l ~ ~ ~ i s t da i c nlei tornada mínimo, negligente no seu dever de fiscalizaç3e ou de atuação,
conio a premissa mnior sob a qrrnl .Te strhnime nictomaricnm~nreo criando uma situação difusa de risco para a sociedade. A relação
fiiro. A h~mt~nêtlticn jitriclica reclama mé~odosrnai,~sojsticados entre o público e o privado é novamente colocada em xeque. Associ-
ronro n , ancilia~s
~ relcolrj(gica,sisiêmicn e histbrica capuzes de pmnn- ar;&~ da sociedade civil passam a representar o interesse público
çipnr o senricln do lei cllr i~ontadesrrhjefiva do l~~qislnrlor na dir~ção contra o Estado prlvatizado ou omisso. Os denominados direitos de
cfo ~uantrrri~ 04jerii~n cln própria Sei, profiindamenr~ inserida nas primeira e segunda geração ganham novo significado. Liberdade e
s nureria1i:~~nnda Direito qiie a mesma prefi~~lrn,
d i i - ~ r s i ~ ede Igualdade são retomados corno direitos que expressam e possibilitam
mei-gicll~arkrna dinfirnica dns necesaidndes dos proRmrrnas e tarefas uma comunidade de princípios, integrada por membros que recipro-
roricris. Aqrri o trabalho h jiti: jd t~naque ser visto como alagomnis camente se reconhecem pessoas livres e iguais, co-autores das leis
çonzplexn ri gcrra~tirns dinciirricas e anlpIas $nnlidode.r sociais que que regem sua vida em comum. Esses direitos fundamentais adqui-
recaeni sobre os ombros do Estado. E.rplica-se assim, por exemplo, rem uma conota@o de forte cunho procedimental que cobra de
Icr~itoR t~~?rntii?a de Hans Kelsen de limitar a interpretação $0 lei imediato a cidadania, o direito de participa@o, ainda que institucio-
trrrriv.4~ de itmn ci2ncin h Direito enrnrresada de delinear o qirndro naIrnente rnediatizada, no debate piiblico constitutivo e confomador
rlcrs 1eittrxn.r po.~sirlei.r pnm n escolha discricionciria da auroridacle da soberania democrfitica do novo paradigma, o paradignin consfitri-
aplicarlorn, qunnto o decisionisma em que o mesnio recai qlaando o'n cionat do Esrado Democrático de Direito e de seu Direito
s~gr~ridn edição de sua T ~ o r i apura do direito. participativo, pluralista e aberto.
Com o final da Segunda Guerra Mundial, o modelo do Estado Ora, é claro que uma concepqão distinta e respectivamente
Social já começa a ser questionado, conjuntamente com os abusos adequada acerca da atividade hemenêutica ou interp~tativado juiz
perpetrados nos campos de concentraçiio e com ri explosiio das integra cada um desses paradigmas, a configurar distintos entendimen-
bombas arômicas de Hiroshima e Nagasaki, bem como pelo movi- tos, por exemplo, do princípio da separação dos poderes, o que noi
mento hippie na dtcada de 60. No entanto, 6 no início da década de permite detectar, tamkrn aqui, uma grande e significativa transfoma-
70 que a crise do paradigrna do Estada Social manifesta-se em toda a ção na visuo dessa atividade, bem como um incremento cmesponden-
sua dimensáo. A própria crise econômica no bojo da qual ainda nos te de exigências quanto à postura do Juiz não somente em face dos
encontramos coloca em xeque a racionalidade objetivlsta dos textos jurídicos dos quais este hauriria a n m a , mas inclusive diante
tecnocratas e do pIanejamento economico, bem como a opasiç5o do caso concreto, dos elementos fáticos que s5o igualmente inter-
MENELICK DE CARVALHO NETTO

pretados e qiie, na realidade, integram necessariamante o processo de positivismo jurídico: ordenamento de regras, ou seja, de normas
densificaç5o normativa ou de aplicação do Direito, tal como ressaltado apliciveis h maneira do tudo ou nada, porque capazes de regular as
na atutil doutrina constitucional e na teoria geral do Direito por seus suas pr6prias cmdigões de aplicação na medida em que portadoras
tehricos centrais çomo Konrad Hessc, Robert Alexy, Friedrich MUIler, daquela estrutura descrita por Kelsen como a estrutura mesma da
Klaus Giinther, burence Trik, Ronald Dworkin, Gomes Canotil he, noma jurfdica: "Se é A, deve ser 3 ." Ora, os princípios são ramb&m
Paulo Ronrivides e Oliveira Baracho, entre tantos outros. normas jun'dicas, muito embora não apresentem essa estrutura. Qpe-
Assim, a partir deste rápido escorço, podemos ver çomo se ram ativamente no ordenarnento ao condicionarem a leirura das
verificou um incremento das exigências relativas à postura do regras, suas contextualizsições e inter-relações, e ao possibilitarem a
aplicador da lei e do responsãvel pela tutela jurisdicional que se I intepçfio construtiva da decisão adequada de um hard cnse. Os
assenta em urna crescente capacidade de sofisticaq50 da doutrina e princípios, ao contrário das regas, como demonstra Dworkin, po-
I
da jurisprudência para fmer face aos desafios decorrentes do proces- I dem ser contr;Znos sem ser contraditórios, sem se eliminarem reci-
so de continuo aumento da complexidade da sociedade moderna. procamente. E, assim, subsistem no ordenamento pnnctpios contrii-
Podemos verificas a profundidade das exigências pressupostas rios que estão sempre em concorrência entre si para reger uma
sob o paradigrna do Estado Democrático de Direito se tomarmos, d e t m i n a d a situação. A sensibilidade do juiz para as especi ficfdades
com Hahennsis, "a teoria do Direito de Dwmkin como nosso fio do caço concreto que tem diante de si é fundamental, portanto, para
condtitor, pois. lidamos inicialmente com o problema da racionalida- que possa encontrar a noma adequada a produzir justiça naquela
de, tal como posto por uma prestação jurisdicional (Rechr,sprechun,q), siniaçlo específica. E precisamente n diferenqa entre os discursos
cu-jns decisões devem cumprir simultaneamente os critérios da certe- I legislativos de justificiição, regidos pelas exigências de universalida-
za jinídica e da aceitabilidrtde raci~na!."~ de e abstração, e os discursos judiciais e executivos de aplicaqão.
Desse modo. no partradigrna do Estado Dernocritico de Direito, regidos petas exigências de respeito 5s especificidades e h
6 de se requerer do Judiciirio que tome decisões que, ,ao retrnba- concretude de cada caso, ao densificarern as normas gerais e abstra-
lharem construtivamente os princípios e regras constitutivos do Di- tas na produçáo das normas individuais e concretas, que fornece o
rei to vigente, satisfaçam, a um s6 tempo, a exigência de dar curso e substrato do que Klaus Gunther denomina senso d~ núleguahilidíide.
reforçar a crença tanto na legalidade, entendida como segurança que, no Estade Democrático de Direito, é de se exigir do
juridica, como certeza do Direito, quanto ao sentimento de justiça concretizador do ordenamento ao tornar suas decisões.'
realizada, que deflui da adequabilidade da decisão iis particularida-
des do caso concreto. E desse modo que Dworkin,também crítico literário e profun-
Para tanto, é fundamental que o decisor saiba que a própria do conhecedor da teoria da linguagem, pode afirmar que há uma
composição estrutural do ordenamento jun'dico é mais complexa que única decisão correta para um caso concreto (the ri~Jztanswer).
a de um mero conjunto hierarquizada de regras, em que acreditava o Dworkin, é claro, sabe t3a bem quanto Kelsen que qualquer texto

3 HARERMhS. Jhrgen. Fn;ikti?iiiir icnd Gtltun~.Rpitrdgp ; ~ rB i s b r ~ i h e a ndes~ 4 GUNTHER, Klaus. 7hc sense oJ nppropnnft-nass. Trad. 3ohn FarreF. Ncw York:
RPI.IFI,F
rrnddrs rleniokrniischrn Rerhrssirrots. Ftankfiirt: Suhrkamp, 1994, p. 292. State University of New York Presr, 1993.
possihi lita vhrias ieihiras, o probIema da decisao judicial, no entanto, elevada 3 condição de suposto Emptícito do conceito mesmo de
é que a mesma se dã como soIução de um litígio concreto e envolve ordenamento jurídico dos dois primeiros paradigmas constitucionais
i~ualmentea interpretaçiio dos faloir que configuram uma situação na rnodemidade. Rcdução conçeitual que visualizsva o Direito ou
de aplicoçào bnica e inepetíuel. Esses Jnrm. como revelam a própria como um ordenamento de per si racional, harmônico e sistemática
ciCncin e sua teoria. por exemplo. através do conceito de "paradig- de regras claras e distintas ou como um ordename610 de regras
ma" cm Thomas Ktinh. 60,na verdade, eqitivoienres o texto, ou seja. previamente racionalizada, harmonizado, sisrematizado e integra-
somcnie apreensíveis por meio da atividade de interpretaçlo, medi- lizado pelos juristas em sua doutrina e em seu operar. De toda sorte,
ante uma atividade de reconstruqão da situaçao fática proftindamente I pressupunha-se sempre a reduç5o da estrutura da norma jurídica ?I
rnnrcnda pelo ponto de visra de cada um dos envolvidos. Por isso esmitura das regras. ou seja, das i r n a s que, estrunrralmente. hus-
mesma, aqui, no domínio dos discursos de aplicação nomativa, faz- cam regular suas pr6prias condições de aplicaçfio. Por isso mesmo, a
se justiça não somente n:i medida em que o julgador seja capaz de própria natureza juridica dos pfincipios gerais do Direito era sempre
tomar uma decisão consistente com o Direito vigente, mas para isso objeto de discussão. Nesse contexto, é claro que os princípios s6
ele tem que ser igualmente capaz de se colocar no lugar de cada um poderiam ser considerados relevantes enquanto meias de integração
desses envolvidos, de buscar ver a quest5o de todos os angulos das possíveis lacunas legislativas. Ao criticar o modo de aplicaqno
possivei s e, assim, proceder racional ou fundamentadamente 5 esco- normativa grevalente na rnodemidade, Gunther toma um dos exem-
Ih;i da única norma plenamente adequada i complexidade e à plos de Kant, autor paradigmitico do período do Estado Liberal, mas
unicidade da situa~õode aplicação quc se apresenta. Com essa que neste aspecto, o da insensibilidade para cam a situaç50 dc
ahcrtiirn para a complexidade de toda situagão de aplicsçio, o aplicação, continua a se-lo também para o Estado Social, Para enten-
aplicador deve exigir entfio que o ordcnsmento jundico apresente-se dermos o exemplo dado por Kant como modelo para a atuação da
diante dele. n5o através de uma única n g a integrante de um tudo razão pritica, é necessário procedemos a uma drAstica síntese das
passivo. harmBnico e predeterminado que j6 teria de antemão regula- duas críticas centrais de Kant. Assim, podemos dizer em uma só
do de modo absoluto n aplicação de suas regras, mar em sua frase que se, para Kant, no domínio da razão pura, devemos agir de
integralidade, como um mar revolto de normas em permanente ten- modo a nos submetemos aos dados da experiência, no dominio da
s5o concorrendo entre si para regerem silunç8es. A imparcialidade razão pratica, por outro lado, não podemos nos deixar guiar pelas
aqui, ressalta Gunther, se traduz na capacidade de o juiz levar em consequências práticas de nossos atos, mas somente pelo imperativo
conta 3 rcconsh-uç2o fririca de todos os afetados pelo provimento e, categ6riço da generalidade: devemos agir de tal modo que a máxima
desse modo. fazer com que o ordenamento como um todo, enquanto de nossa a ~ ã opossa sempre ser uma lei universal. E neste contexto
plurolidade de normas que concorrem entro si para reger situações, que Kant prolata o seguinte exemplo. Um dia, estava ele a lecionar
se faça presente, buscando entáo qunl a norma que mais se adapta 21 em Koenningsberg, quando um aluno entra esbaforido e diz estar
situnçiio: qual a norma que. em face das peculiaridades especificas sendo perseguido pela polícia politica do Kaiser, solicitando a Kant
daquele caso visto como um hnrd ca.re. promove justiça para as que lhe permitisse esconder-se em sua sala de aula. O professor Ihe
partcr. sem deixar residuos de injustiças decorrentes da cegueira à indica a sua mesa para que ele sob ela se oculte. Chegando, a policia
si tuaç8o de aplicaq9o. Cegueira esta que até bem pouco tempo atrás política revista em vão a sala e, aa sair, um de seus membros resolve
podcr4inser confundida com a própria irnparci liadade por haver sido indagar a Kant se este vira o aluno que estavam perseguindo. Kant
snhe muito bem que essa polícia política tortura e mata os que legislativas e subverta os estritos limites legais da Administraqão
apreende. No entanto, Kant também reconhece a bondade universal (Gesetzesbind~tngder Vemaltung). É claro que aqui a principio da
do princípio moral "n30 mentir". Assim, Kant. tal como investigado
separaçjo de poderes ganha o conteúdo da distinção enne o domínio
na sua critica da razão prática, não hesita e responde ao policial que o das atividades legislativas ou discursos de justif cação, ou seja, da-
aluno se encontra debaixo de sua mesa, dando curso ao que supõe ser queles discursos que têm por critério de imparcialidade a uni vcrsali-
ri seu devcr moral, de validade universa1, não mentir. Este exemplo
dade, e o domínio da atividade de aplicação de normas, ou seja. dos
dado por Kant iliistra muito bem a critica que Guniher, seguindo discursos que, por sua vez, têm por critério de imparcialidade a
I)\-vorkin, pretende fazer ao modo de aplicaç5o do Direito ínsito aos sensibilidade para. com as especificidades de cada situação de aplica-
priradigrnns constiti~cionaisanteriores, A crença na bondade da uni- ç3o consoante a Iõtica de todos os afetados.
versalidade da regra fazia com que as homens cometessem tsemen- Apenas assim a concepçáo do Juiz Hércules, de Dworkin.
dar injustiças por se fazerem cegos às distintas situações de aplica- pode ganhar solidez. buscando-se compreender a prestação j urisdi-
$30. E esslis injustiças decorriam do fato de eles serem, efetivamen- çianal em seu aspecto funcional especifico referente h implantação,
te, incapazes de ver que os princípios, distintamente das regras, consolidaç50, desenvolvimento e reprodução não somente dn certeza
requerem aplicaçnr, concorrente, balizada por outros principias, so- do Direito, bem coma, a iam s6 tempo, do sentimento de Constitui-
hrettido os de sentido contrisio. No caso em exame, se outra fosse a $" e de Justiça. Único sentimento capaz de adequadamente assegu-
poqfura de Kant, para ele teria se tornado c ! m que o princípio rar solidez i ordem jutídica de um Estado Demucrritico de Direito.
mciralmen te adequado para reger aquela situaqão específica 1130seria Como afirma Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira
de modo algum o do "1180mentir", mas sim princípio de igual
validade iiniversal, mas de sentido cantriirio, do "não delatar". O " a legitimidade da ordem jurídiço-democritica requer deci-
principio mais adequado à si tuação de aplicação afasta, naquele sões consistentes não apenas com o tratamento anterior de
caso, a aplicação do impróprio porque aqui este produziria injustiça, casos anilogos e com o sistema de normas vigentes, mas
sem afetar-lhe a validade universal. Aliás, suposto da validade uni- pressupõe igualmente que sejam racionalmente fundadas; nos
vei-siil de um princípio é precisamente uma reserva de aplicação fatos da questão, de tal modo que os cidadãos possam uceitá-
se_giindoris cspecificidades das distintas situaqões, Ora, o Direito, tal las como decisões racionais."'
corno a moral, é também integrado por princípios, sobretudo no
domínio crinstitucional, o que requer uma aplicação das normas 6 relevante ressaltamos mais uma vez, com Ronald Dworkin,
sensiveI b distintas si tuações de aplicação. que o custo, inclusive funcional. da insensibilidade sirnplificadora da
As propostas de Dworkin para uma interpretação construtiva situaçao de aplicação, típica dos paradigmas anteriores, é alto. Não
teoricamente dirigida do Direito vigente podem, assim, ser defendi- levar a sétio os direitos, ou seja, simplificar uma situaçâo de aplica-
das nos termos de uma leitura procedimentalista que altera as exi- ção de modo a simplesmente desconhecer direi tos dos envolvidos
gemias idenIizadas da construção de uma teoria sobre o conteúdo
idealista dos pressupostos pragmáticos necessários ao discurso jurí-
dico. a operar no interior dos limites requeridos pelo princípio da
5 CATTONI DE OLIVEIRA. Marcelo A. Tutela jirrisdirional e Ertstndo Dpmorrhrico
separaçãri de poderes, sem que o Judiciário invada as competências rir I)iwiio. Belo Horizonte: Dcl Rey, 1997, p. 131 .

43
por se cnfocar a questão do ingulo de um Cnico princípio aplicado ao
modo do tzido ou nada, típico das regras, termina por subverter o
própria valor da segurança jurjdica que se pretendera assegurar. Por
isso mesmo, afimamos a mera aparência de consistência de urna
decisão dcste tipo, ainda que com apenas um h i ç o princípio juridi-
co. Os princípios n30 podem, em nenhum caso, ganharem apIicaç3o
de regra, ao preço de produzirem injustiças que subvertem a crença
Parte I
na própria juridicidade, na Constituiç3o e no ordenamento. E tempo
de nos conscientizamos da importância nTio somente do que Pahlo
L~icas Verdii denomina sentimento de ConstituiçBo para a efeii-
DA CRISE POSITIVA A
vidade da própria ordem constitucional, mas que precisamente para RECONSTRUÇÃO D O DIREITO:
se cultivar esse sentimento em um Estado Dernocritico de Direito, CUNTRIBUIÇÕES A UMA
das decisões judiciais deve-se requerer que apresentem um nlvel de
racionalidade discursiva compativel coin o atual conceito process~iai
de cidadania. com o conceito de Haberje da comunidade aberta de
interpretes da Constituiç5o. Ou para dizer em outros temos, ao
nosso Poder Judiciftrio em geral, ao Supremo Tribunal Federal em
p;irticti!m. compete assumir a guarda da Constituição de modo a
densi ficar o principio da moralidade constitucionalmente acolhido
que, na âmbito da prestaç80 jurisidicionsl, encontra tradução na
sritisfaç30 da exigência segundo a qual a decisão tornada possa ser
considerada consistentemente fundamentada tanto à luz do Direi to
vigente quanto dos fatos específicos do caso concreto em quesMo, de
modo a se assegurar ri um só tempo a certeza do Direi ta e a correçgo,
a justiça, da decisão tomada.
Assim, podemos concluir que, sob as exigências da hermenêu-
I tica çonstitticionril insita ao paradigma do Estado Democrático de
Direito, requer-se do aplicador do Direi to que tenha claro a cample-
xidride de sua tarefa de intérprete de textos e equivalentes a texto,
quc jamais ri veja como algo mec3nic0, sob pena de se dar curso a
urna insensibilidade, a uma cegueira, ji não mais compatível com a
Constituição que temos e com a doutrina e jurisprudência constituci-
onais que a histbria nos incumbe hqje de produzir.

Você também pode gostar