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1.

Quando menos esperei, senti que ele se inclinava em mi-


nha direção. Não ousei me mover, o coração congelado. Com
as duas mãos, tomou-me o rosto, enterrado no chão do pátio
da casa de Simão. Meus olhos se escondiam. Meu rosto se fe-
chava. Suavemente, voltou-o para o seu, e me olhou. Olhou-me
profundamente, vazando-me a alma, conhecendo-me toda.
Olhou-me e me amou. Meu impulso era chorar, berrar, urrar
pela dor daquele amor, que me tomava assim, sem avisar; que-
ria sair correndo, sumir!
Então ele não sabia quem eu era?1 Não sabia que não podia
me tocar? Não sabia que ficava muito mal para um rabi sequer
olhar para uma prostituta? Será que ele não sabia que eu peca-
va, que era a quarteleira, a pecadora mais conhecida da cidade?
Seus olhos ignoravam o que todos sabiam, o que eu sabia,
o que meu coração gritava, com urgência: Afasta-te! Sou peca-
dora! Sem me ouvir, os olhos mais belos que já vira insistiam em
me olhar e me amar, em passar para dentro de mim e ser, em
mim, sem a menor cerimônia, amor indiviso, total, inteiro.
Lutei o que pude contra aquela doce invasão. Lembrei-me
de quantos me haviam decepcionado, ferido. Lembrei-me do
quanto era impura, impura, impura! Mil vozes dentro de mim gri-
tavam: Nãaao! Não quero! Vieram à tona as mágoas, as dores,
a solidão, o desprezo, a desesperança, o abandono, a verda-
de atestada pela Lei de Moisés: Sou pecadora! Afasta-te! Que
queres comigo? Afasta-te! Não suporto este amor! Não quero
1 Baseado em Lc 7,36-50.
A MULHER QUE MUITO AMOU

sofrer! Não quero que me olhes assim! Vai-te! Entretanto, abra-


sada por aquele olhar, o grito surdo de minha alma se consumia.
Ficava cada vez mais fraco, mais tênue, mais entregue.
Abandonei-me. Aquele amor penetrou os meus espaços
como fogo líquido que tudo devora. Derreteu os ferrolhos de
ferrugem da minha alma e, docemente, fez-se acolher, enchen-
do-me dele, como lava incandescente cauterizando os sulcos,
agora rendidos, da dor. Queimando-me as entranhas da alma,
seu olhar aprisionou o meu, amou-me e fez-me novamente vir-
gem, como ele.
Conquistada, entreguei-me. Plenificada, rendi-me. Rendida,
acolhi. Acolhendo, fui revirginizada. Novamente virgem, entre-
guei-me e acolhi, para sempre, aquele Rabi-Amor, Rabi-Ahavah.2
Meus olhos grudavam-se aos dele. Não estava mais em
mim. Encontrava-me nele e, de mim, nada mais sabia. Estava
morta, grudada à Vida. E Vida era ele. Só ele existia. Lava arden-
te, ele me preenchia. Em sede suprema, vazia, esquecida de
mim, todo o meu ser o acolhia, desejando não ser para que ele
fosse, desejando morrer para que ele vivesse, morrendo a mor-
te que nunca acaba de morrer, vivendo a Vida que nunca sacia
de viver. Seu amor consumia, consumia...
Sem saber como, via-me também em chamas dentro dele
e percebia que, ainda que tivesse forças para dizer-lhe que eu
não valia a pena, não o teria convencido. Dava-lhe gosto atrair-
-me toda, acolher-me inteira. Surpresa, via-me enchê-lo de
inefável alegria, à medida que se derramava em mim, para dar
espaço ao meu derramamento nele, fazendo-me viver em si e
enchendo-o de júbilo. Seus olhos não se soltavam dos meus e,
muito devagarinho, foram sorrindo, transbordando a felicidade
do nosso encontro.
Pendurada em suas mãos, senti-me desfalecer e mergulhei
em uma vida desconhecida. Vida que jamais vivera, mas sem-
2 Ahavah é a transliteração da palavra “amor”, em hebraico.

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MARIA EMMIR O. NOGUEIRA

pre fora minha. Vida vivida um no outro, mergulhados em uma


única experiência de misericórdia.
Incapaz de mover-me, ouvi sua voz, longe, longe: Simão...
um credor tinha dois devedores... perdoou a ambos a sua dívi-
da... Qual deles o amará mais? Qual deles o amará mais? Qual
deles o amará mais? Meu ser gritava em palavras mudas: Eu!
Eu! Eu te amarei mais! Ninguém, ninguém te amará mais! No
entanto, ninguém me ouvia! Também ele não ouvia! Ele só era.
Como eu. Só era, sem forças para qualquer outra coisa.
Vês esta mulher? Não! Simão não via! Ninguém me via! Só
ele! Nem mesmo eu me via, a vasculhar em mim, buscando
aquela vergonha profunda que me acompanhara por tantos,
tantos anos. Onde estava a pecadora? Onde estava a prostitu-
ta? Onde, a impura? Não mais me encontrava, não mais achava
aquela mulher.
Suas palavras continuavam a me cortar cada vez mais fun-
do: Tu, ... mas ela... tu não... mas ela... e eu queria berrar de dor e
gozo por aquele fogo cortante da misericórdia que me esquar-
tejava a alma. Quanto mais desejava gritar: Não eu, mas tu! Não
eu, mas tu! Tu és o perfume! Tu és o beijo! Tu, as lágrimas que
lavam! Tu, o bálsamo! Tu! Tu! Não eu, mas tu!, mais se me es-
quartejava a alma, mais me doía o gozo, mais incapaz eu era.
Nenhum fogo se compara ao amor! Nenhum queima tanto
e por tanto tempo como o fogo da misericórdia. Nenhum corta
tão fundo, tão visceralmente! Haveria ainda algo a viver? Have-
ria ainda algo a desejar?
Sim, haveria. A obra não estava acabada. O corte mais pro-
fundo estava por vir: nossos olhos se entregaram, mais inteira-
mente ainda: Seus muitos pecados lhe foram perdoados... per-
doados… perdoados!!! Pois ela tem mostrado muito... amor!!!
Não sei ao certo, mas creio que me curvei sobre mim mes-
ma. Soluços altos abafados pelo corpo gritavam: Perdoados,
ele disse? Muitos pecados? Então ele sabia?!? Então ele conhe-

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A MULHER QUE MUITO AMOU

cia?!? Ai, meu Deus! Ele sabia! Ele perdoava!!! Meus muitos pe-
cados... Ele os conhecia!!! E, em vez de afastar-se, Ele perdoa-
va! Ele perdoava! Ele me perdoava, a mim… a mim… pecadora!
Perdoada!
Ah, a dor de ser perdoada assim, sem mais nem menos, sem
nem mesmo pedir perdão! Sem mesmo ir ao Templo e cumprir
as prescrições da Lei! Quando tinha sido, mesmo, que eu tinha
muito amado? O alabastro! O perfume! O frasco de perfume
guardado para quando eu tomasse jeito! Teria sido isso? Teria
sido isso o meu amar? Mas, não, não! Ele me olhara primeiro!
Aquele olhar me fizera pegar o frasco! Meu Deus! Ele, que me
fizera pegar o perfume, dizia que eu muito havia amado? Então,
um frasco de perfume é amor? Então, um pouco de bálsamo
perfumado é arrependimento? Ou seria o contrário? O perdão
dos meus muitos pecados em troca de um vidro de alabastro
de óleo perfumado?!? Ou em troca de nada?3
Talvez, as lágrimas! Sim! Podia ver suas marcas claras em seus
pés sujos da poeira. Eram tantas que iam lavando tudo. A poeira
em seus pés, a lama em meu coração. Seriam as lágrimas o amor?
Não! Não era isso! Ele queria me guardar! Queria me elevar!
Ele conseguia ver o que eu não via, o que ninguém via! Ele se via
em mim e dizia que era eu quem muito amava! Ele tomava o
meu lugar! Ele tomava o meu lugar! Meu Deus, ele era louco!
Não entendia mais nada. Era dor demais, era amor demais,
eu não tinha forças, não conseguia pensar, não conseguia falar!
Quis morrer, quis rolar pelo chão do pátio, e berrei, e chorei, feri-
da pela deliciosa dor do amor. Não sei o que pensaram de mim e
não me interessava mais. Sei que me agarrei a ele. Aos seus pés,
aos seus olhos, às suas mãos que me seguravam o rosto, ao seu
amor, a ele todo.
3 “O líquido que a mulher carregava no vaso de alabastro era o nardo puro (Marcos 14,3). O nardo
era um perfume raro feito de raízes de uma planta nativa do Himalaia. Nos tempos bíblicos, ele era
importado justamente em frascos selados de alabastro. Esses pequenos vasos de alabastros eram
abertos apenas em ocasiões muito especiais.” CONEGERO, D. O Que é o Vaso de Alabastro? Dis-
ponível em: <https://estiloadoracao.com/o-que-e-vaso-de-alabastro> Acesso em 2 de jun. 2020.

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MARIA EMMIR O. NOGUEIRA

No meio da imensidão em que me transformara, vi o seu


sorriso-quase-riso: Vai! Senti o fogo dos seus olhos me invadir:
Vai em paz!
Estranho, mas eu quis sair dali! Eu precisava ir. Tudo se havia
acalmado. Tudo se havia encaixado perfeitamente em algum
lugar dentro de mim. Estranhamente tranquila, pus-me de pé e
tentei arrumar os cabelos desgrenhados. Estava pronta! Sabia
que eu permaneceria nele e ele em mim. Ir ou ficar era a mes-
ma coisa, a mesma alegria. Éramos o selo um do outro.Tudo era
amor! Tudo era ele!
Arrastei-me voando para casa por novos velhos caminhos.
Não sei quando cheguei, o quanto demorei. Sei que o leito do
meu pecado estava coberto de relva e as vigas de minha casa
eram do mais nobre cedro4. Lá dormi, novamente virgem, lá
despenquei, enferma de amor, para nunca mais ser curada.

4 Cf. Ct 1,15-17.

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