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PREFACIO Este livro foi pensado e escrito ao longo dos anos em que leccionei o curso de Introdugo e Metodologia das Ciéncias Sociais na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Dos meus alunos, a lembranca grata de tantas discusses ¢ perplexidades a volta de ideias muitas vezes polémicas. A investigacao de que este livro dé conta foi sempre um trabalho partithado, primeiro, com os colegas do niicleo de Ciéncias Sociais da Faculdade, depois, com eles e com os membros do Conselho de Redaccao da Revista Critica de do Centro de Estudos Sociais. O que se apresenta aqui é, pois, um trabatho que genuinamente thes pertence também. Uma referéncia especial a Maria Irene Ramatho, que lewe comentou com inexcedtvel detathe 0 manuscrito. Para além deste grupo mais restrito, muitos outros colegas € amigos colaboraram de muitas formas (as vezes sem 0 saberem) na preparacdo deste livro. Mesmo correndo 0 risco de omisséo néo posso deixar de citar expressamente Sedas Nunes, David Trubek, Samuel McDowell, Richard Abel, Madureira Pinto, Jodo Ferreira de Almeida, Armando Castro, Teixeira Fernandes, Jiilio Mota, Joaquim Feio, Fatima Dias, Teresa Lello, Luisa Ferreira, Jorge Ferreira e em particular Rosério Pericéo pela inestimével ajuda ha preparacdo do manuscrito para publicacdo. Que os resultados nao desmerecam o esforco daqueles que os propiciaram. Socials e, finalmente, com todos eles ¢ os investigadores INTRODUCAO 0 meu intento ndo & ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para bem condusir a sua ‘razdo, mas somente mostrar de que maneira pro ‘cure conduzir a minha, DESCARTES No pequeno livro Um Discurso sobre as Ciéncias procurei demonstrar que a ciéneia moderna se encontra mergulhada numa profunda crise. ‘A época em que vivemos deve ser considerada uma época de transigao entre o paradigma da ciéncia modema e um novo para- digma, de cuja emergéncia se vo acumulando os sinais, ¢ a que, & falta de methor designagdo, chamo ciéncia pés-moderna. Indiquei entio, ainda que muito sucintamente, alguns dos principios que presidem & construgao do novo paradigma. © presente livro parte da ideia de que vivemos uma fase de transigdo paradigmitica e procura defini 0 perfil tedrico e sociol6- ico da forma de conhecimento que, nesta fase, transporta os sentidos emergentes do paradigma da ciéncia pés-moderna. Com este objec tivo submete @ uma critica sistemitica as correntes dominantes da reflexdo epistemolgica sobre a ciéncia modema, recorrendo, para isso, a uma dupla hermenéutica: de suspeigio e de recuperagii (1) Posto, Afrontamento, 1987, desenvolvimento deste tema central é pautado pelo principio de que, qualquer que seja a opgo epistemolégica sobre 0 que a ciéncia faz, a reflexio sobre a ciéncia que se faz nao pode escapar ao cfrculo hermenéutico, 0 que significa, antes de mais, no podermos com- preender qualquer das suas partes (as diferentes disciplinas cientifi- cas) sem termos alguma compreensio de como «trabalha» o seu todo, ¢, vice-versa, no podermos compreender a totalidade sem termos alguma compreensdo de como «trabalham> as suas partes. Alids, 0 todo ea parte so aqui, de algum modo, uma iluséo mecdinica, pois 0 principio hermenéutico é 0 de que a parte € tio determinada pelo todo como o todo o é pelas suas partes (Gadamer, 1983: 162) Orecurso ao circulo hermenéutico para compreender criticamente a ciéncia modema tem uma justificagao especifica. A reflexao her- ‘menéutica visa transformar o distante em préximo, o estranho em familiar, através de um discurso racional — fronético, que no apoditico — orientado pelo desejo de diélogo com 0 objecto da reflexo para que ele «nos fale», numa lingua nfo necessariamente a nossa mas que nos seja compreensivel, e nessa medida se nos tore relevante, nos enriquega ¢ contribua para aprofundar a auto-com- preensio donosso papel na construgio da sociedade, ou, naexpressao cara Ahermenéutica, do mundo da vida (Lebenswelt). Por isso, Rorty, a0 adoptar o behaviorismo epistemolégico, de que adiante se dard noticia, sugere que se adopte uma atitude epistemolégica perante 0 discurso normal, comensurdvel, compreensivel, ¢ uma atitude her- menéutica perante 0 discurso anormal, incomensurdvel, incom- preensfvel, mas que desejamos «trazer» a um discurso normal, do qual, alids, se pode depois dar conta epistemologicamente (Rorty, 1980: 320 ¢ ss.). Ora, se € certo que a distingo entre discurso nor- mal ¢ discurso anormal € pensada, no seguimento da distinglo de Kuhn entre ciéncia normal ciéncia revolucionéria (Kuhn, 1970), para operar no interior do conhecimento cientifico, a verdade € {que este se tem vindo a tomar, no seu todo, um discurso anormal, incomensuravel com os discursos normais que circulam na sociedade e dio sentido as priticas ¢ relagbes sociais individuais que a consti- 10 tuem. O distanciamento e a estranheza do discurso cientifico em relagio, por exemplo, ao discurso do senso comum, a0 discurso estético ou a0 discurso religioso esto inscritos na matriz da ciénci modema, adquiriram expressio filoséfica a partir do século XVII com Bacon, Locke, Hobbes ¢ Descartes € néo tém cessado de se aprofundar como parte integrante do processo de desenvolvimento das ciéncias ®. Alids, este processo tem vindo a fazer com que 0 distanciamento e a estranheza do discurso cientifico se reproduzam no préprio interior da comunidade cientffica, na medida em que 0 avango da especializagdo toma impossivel a0 cientista, e jé no apenas ao cidadao comum, compreender 0 que se passa (e por que se passa) a volta do habitéculo (cada vez mais estreito) em que vive em Scientiapolis. A reflexiio hermenéutica toma-se, assim, necesséria para trans; formar a ciéncia, de um objecto estranho, distante e incomensurével com a nossa vida, num objecto familiar e préximo, que néo falando lingua de todos os dias € capaz de nos comunicar as suas valéncias © 08 seus limites, os seus objectivos e o que realiza aquém e além deles, um objecto que, por falar, seré mais adequadamente conce- bido numa relagio eu/tu (a relagio hermenéutica) do que numa relagdo eu/coisa (a relagio epistemolégica) e que, nessa medida, se transforma num parceiro da contemplagao e da transformagio do ‘mundo, Compreender assim a ciéncia nao ¢ fundé-la dogmaticamente, em qualquer dos principios absolutos ou a priori que a filosofia da cigncia nos tem vindo a forecer, desde 0 ens cogitans de Descartes, reflexao transcendental de Kant, ao espirito absoluto de Hegel, & consciéncia pura e sua intuigdo das esséncias de Husserl, & imedia- ‘so da percepgao sensorial do empirismo anglo-saxénico e do sen- sualismo francés. Ao contrério, trata-se de compreendé-la enquanto prética social de conhecimento, uma tarefa que se vai cumprindo em, (©) A medida da distincia do conhecimento cientifico em relagao as demais formas de conhecimento ilusra-se bem na evolugSo semantica do conceito We teoria desde © pensamento grego até a0s nossos dias. Cr. Gadamer (1983: 17). didlogo com 0 mundo e que € afinal fundada nas vicissitudes, nas opressées € nas Iutas que © compéem ¢ a nds, acomodados ou revoltados. © cfrculo hermenéutico cumpre-se, desconstruindo um a um os diferentes objectos te6ricos que a ciéncia constréi sobre si propria e, com eles, as diferentes imagens que da de si, a fim de tomar ‘compreensivel por que raz%o foram constnufdos esses objectos ¢ nfo ‘outros, essas imagens e nao outras. A desconstrugdo faz-se mediante ‘ apelo ao inobjectivavel e ao inimaginavel que tomam ou tornaram socialmente possivel os objectos ¢ as imagens cientificas em uso. Do ‘mesmo'modo que, como diz Bachelard, a teoria do objective deve ser construida contra o objecto (1972: 250), assim também s6 aplicando ‘acigncia contra a ciéncia é posstvel levé-Ia a dizer ndo s6 0 que sabe de si, mas tudo aquilo que tem de ignorar a seu respeito para poder saber da sociedade o que esperamos que ela saiba. ‘A reflexio aqui proposta tem como eixo privilegiado as cién- ccias sociais, sendo a partir desse eixo que se reflecte sobre as ciéncias no seu conjunto e a sociedade em geral. E sabido que as ciéncias sociais se constroem a partir de uma totalidade, a «realidade social», © «fenémeno social total», ¢ que por isso «a distingao entre as varias Ciéncias Sociais s6 pode provir das préprias Ciéncias Sociais, ¢ nfio pode ter outro significado que nao seja o de cada uma dessas dis ciplinas encarar, abordar, analisar de uma forma diferente aquela mesma ‘realidade’» (Nunes, 1972: 20). A fragmentagio disci- plinar, que assim resulta de processos internos ao conhecimento cientifico-social, produz neste um duplo esquecimento: 0 de as cigncias sociais serem uma prética social entre outras; 0 de as diferengas que elas constroem sobre a realidade social (0s seus objectos tesricos) nao serem diferentes das diferengas que Ihes permitem afirmar a sua autonomia enquanto praticas sociais de conhecimento privilegiado. Deste duplo esquecimento resulta uma préticas dupla distincia ou estranhamento: em relagio as dem: sociais que constituem 0 «fenémeno social total» ¢ em relagio 20s demas saberes, cientificos ou nao, que sobre este tiltimo se consti 12 tuem. A reflexdo hermenéutica tem, pois, aqui um duplo cabimento: tomar compreenstvel o que as ciéncias sociais sio na sociedade ¢ 0 queelas dizem sobre asociedade. E porque o conhecimento cientifico- -social é hoje um elemento constitutivo, tao fntimo quanto ignorado, do nosso Dasein social, a compreensao hermenéutica das ciéncias sociais €, em sentido muito preciso, a auto-compreensio do nosso estar no mundo técnico-cientifico contemporaneo. ‘A relevncia pritica deste sentido toma-se evidente quando se dilucidam em mais detalhe e em toda a sua historicidade as determi- rages mttuas entre as ciéncias sociais e a sociedade. Enquanto pré- tica de conhecimento, as ciéncias sociais transformam a sociedade em miltiplos objectos teéricos e, nesse sentido, objectivam (coisifi cam) a sociedade. Contudo, o reconhecimento social deste conheci- ‘mento faz com que tal objectivagao seja aproprivel e, nessa medida, subjectivavel. E-o precisamente na medida em que os objectos te6- ricos se transformam nos objectivos sociais dos sujeitos sociais que podem investir no conhecimento cientifico-social e, portanto, apro- priar-se dele. Por exemplo, um estudo econdmico pode ser utilizado, por uma empresa para melhorar a sua actuagdo, ou seja, para se afitmare fortalecer enquanto sujeito social. Quer isto dizer que, dadas as condig&es sociais de produgo e apropriago do conhecimento cientifico, a criago de objectos te6ricos esté cada ver.mais vinculada A criago ou potenciagao de sujeitos sociais e, consequentemente, & destruigiio ou degradago dos sujeitos sociais que nao podem investir no conhecimento cientifico ou apropriar-se dele. Em suma, a subjec- tividade social ¢ cada vez mais o produto da objectivacio cientifica Ahermenéutica sociolégica das condigdes de produgao.e apropriagaio do conhecimento é, assim, indispensével para saber como se consti- tuem e distribuem socialmente os sujeitos sociais ¢ seus objectivos e, portanto, como se desenrolam os processos de potenciagao ¢ de degradagio da subjectividade social. Por outro lado, enquanto prética social, as ciéncias sociais so subjectivadas pela sociedade na medida em que estacria as condig&es de emergéncia € fortalecimento tanto dos sujeitos individuais da 3 ciéncia (0s cientistas) como dos sujeitos colectivos (as universidades, as disciplinas cientificas, os centros e os projectos da investigacdo), No entanto, na medida em que produzem conhecitento, os sujei- tos da ciéncia so objectivados nos objectos te6ricos que criam. A objectivagao dos cientistas esté bem simbolizadano cardcterandnimo do conhecimento cientifico ®, no facto de ele, uma vez socialmente, produzido e investido, adquirir uma materialidade propria que 0 separa e 0 aliena do seu criador. O cientista deixa de ser um sujeit -para-si para ser um sujeito-para-os-objectos. Mas porque a criagao dos objectos teéricos esté, como disse, cada vez mais vinculada aos objectivos sociais dos sujeitos sociais que podem investir no conheci- mento cientifico ou apropriar-se dele, resulta serem tais objectivos cada vez mais responséveis pela criagao e potenciagao de sujeitos de ciéncia, isto €, dos cientistas cujos objectos te6ricos esto em con- sondincia com eles e, consequentemente, pela destruicao ou degra- dago daqueles cujos objectos teéricos esto em dissonancia com cles. Em suma, a subjectividade cientifica 6 cada vez mais 0 produto da objectivagao social. A hermenéutica sociolégica das condigées de produco e apropriacdo do conhecimentoé, assim, indispensdvel para saber como se constituem ¢ distribuem socialmente os cientistas € seus objectos tedricos e, portanto, como se desenrolam os processos de potenciagao e de degradagio da subjectividade cientifica. Ao reflectir sobre as condigdes de produgio e apropriagio do conhecimento cientéfico, a dimenséo hermenéutica visa compreen- der e desvelar a ininteligibilidade social que rodeia ¢ se interpenetra nas ciéncias sociais, elas que sfo, na sociedade contemporaine, ins trumentos privilegiados de inteligibilidade sobre 0 social. A com- preensio do real social proporcionada pelas ciéncias sociais s6 é possivel na medida em que estas se auto-compreendem nessa pratica € no-la devolvem, duplamente transparente, a nés que somos 0 (@) Piaget v8 no anonimato a grande vantagem das cigncias sobre filosofia. cle que toma possivel a descentraglo do sujeito individual na dreocio do sujeto epistémico 1967: 15). 4 principio e fim de tudo o que se diz sobre mundo, A reflexiio hermenéutica permite assim romper 0 cfrculo vicioso do objecto- -sujeito-objecto, ampliando 0 campo da compreensio, da comen- surabilidade e, portanto, da intersubjectividade, e por essa via vai ganhando para o didlogo eu/nés-tu/vés 0 que agora no € mais que uma relagio mecinica eu/nds-eles/coisas. Em conclusio, a critica das correntes dominantes da epistemolo- gia ea reflexao hermenéutica propostas nos capitulos que se seguem visam compreender a pritica cientifica para além da consciéncia ingénua ou oficial dos cientistas € das instituigées de ciéncia, com vista a aprofundar o diglogo dessa prética com as demais praticas de conhecimento de que se tecem a sociedade 0 mundo. 1 DA DOGMATIZACAO A DESDOGMATIZACAO DA CIENCIA MODERNA Os mortais devem ter pensamentos mortais ¢ ndo pensamentos imortais EPICARMO A epistemologia, diz, Piaget (1967: 7), tende a ganhar importan- cia nas épocas de crise da ciéncia, Esta asseredo tem 0 seu qué de paradoxal se nos lembrarmos que a reflexio epistemol6gica moderna temas suas origens na filosofia do século XVII c atinge um dos seus pontos altos em finais do século XIX, ou seja, no periodo que acom- panha a emergencia ea consolidacdo da sociedade industrial eassiste ao desenvolvimento espectacular da ciéncia ¢ da téenica. A cons- cigncia epistemolégica foi durante esse longo perfodo uma cons- ciéncia arrogante eo seu primeiro acto imperialista foi, precisamente, 0 de apear a prima philosophia do lugar central que esta ocupara desde Aristételes na filosofia ocidental, substituindo-a pela filosofia da .. Durante muito tempo, pois, a reflexao epistemolégica parece ter sido menos 0 reflexo da crise do que a tentativa de a negar ou, quando muito, de a superar a favor do statu quo cientifico. A esta luz, a relacio entre reflexio epistemoldgica ¢ crise da cigncia é mais complexa do que aafirmagao de Piaget pode fazer crer. Julgo ser necessério distinguir entre dois tipos de crise: as crises de crescimento e as crises de degenerescéncia. As crises de crescimento, para usar uma expressio de Kuhn (1970: 182), tém lugar ao nivel da 0 ‘matriz disciplinar de um dado ramo da ciéneia, isto €, revelam-se na insatisfagao perante métodos ou conceitos bésicos até entdo usados sem qualquer contestagaona disciplina, insatisfagio que, aliés, decorre dacexisténcia, ainda que por vezes apenas pressentida, de alternativas viveis. Nos perfodos de crise deste tipo, a reflexio epistemolégica é a consciéncia teérica da pujanga da disciplina em mutaco e, porisso, & enviesada no sentido de afirmar e dramatizar a autonomia do conhecimento cientifico em relagao as demais formas e préticas do conhecimento. £aeste tipo de crises que se refere Piaget, e iio € por ‘acaso que ele diz. crise entre aspas. As crises de degenerescéncia sio crises do paradigma, crises que atravessam todas as disciplinas, ainda que de modo desigual, e que as atravessam a um nivel mais profundo, ‘Significam 0 por em causa a prépria forma de inteligibilidade do real {que um dado paradigma proporciona e niio apenas os instrumentos metodoldgicos e conceptuais que the dio acesso. Nestas crises, que sio de ocorréncia rara, a reflexiio epistemol6gica € a consciéncia te6rica da precaridade das construgdes assentes no paradigma em cetise e, por isso, tende a ser enviesada no sentido de considerar 0 conhecimento cientifico como uma pritica de saber entre outras, € no necessariamente a melhor. Nestes termos, a critica epistemol6- gica elaborada nos periodos de crise de degenerescéncia nao pode deixar de ser também uma critica da epistemologia elaborada nos periodos de crise de crescimento. ‘Ao contrério do que & primeira vista pode parecer, nao é fécil determinar se um dado periodo hist6rico é dominado por uma crise de crescimento ou por uma crise de degenerescéncia. Como no possivel definir com seguranca 0 ciclo vital de um determinado paradigma cientifico, to-pouco se sabe quantas crises de cresci- ‘mento siio necessérias para que ocorra uma crise de degenerescéncia. ‘Alias, 0 debate epistemolégico sobre esta questo tende a ser inde- cidivel nos seus préprios termos (ou seja, enquanto debate a ser decidido com base em razies epistemolégicas), pois, tal como sucede nas discussdes cientificas paradigméticas, as premissas de que resul- tam as varias posigdes so incomensurdveis (umas partem da ciéncia 18 que existe, outras da ciéncia que h4-de vir). A maneira funcionalista, isto é, explicando os fenémenos pelas suas consequéncias, pode aventar-se que a predominancia de um ou outro tipo de reflexao epistemol6gica pode ser 0 sinal da ocorréncia de um ou outro tipo de crise. Mas também aqui os critérios de predominancia podem ser relativamente incomensuraveis (0 problema da regressio ao infinito) ea decisio ter de ser igualmente exteriorizada (por exemplo, com 0 recurso a argumentos da sociologia da ciéncia). sta discussfo sobre a natureza das crises da citncia tem toda a acuidade no perfodo que vivemos e cujo inicio, para este efeito, se situa no imediato pés-guerra. Estamos numa crise de crescimento ‘ou de degenerescéncia da ciéncia moderna? Como é sabido, as po: Ges dividem-se, para além de que alguns nio aceitam sequer a distingdo entre os dois tipos de crise e outros recusam mesmo falar de crise para caracterizar o tempo cientifico presente. Como se deixou antever nos pardgrafos anteriores, a haver uma decisio para esta questdo ela $6 pode residir num discurso argumentativo, num dis- curso racional t6pico-ret6rico. Noutros trabalhos invoquei argumen- tosepistemolégicos (Santos: 1987) e sociol6gicos (Santos: 1978) que me levam a concluir que nos encontramos numa fase de crise de degenerescéncia e que ela determina o tipo de reflexao epistemo- logica a ser privilegiado. A crise da ciéncia ¢, assim, também a crise da epistemologia. Ba partir desta opgao que se compreenderd a reflexfo sobre 0 conhecimento cientifico aqui proposta. Antes de a expor, porém, € «em face do uso frequente de expressdes como «reflexdo epistemol6- ica» ou «critica epistemol6gica», nao seré despropositado pergun- tar: 0 que é afinal a epistemologia? O respigar, sem qualquer critério, entre as respostas que tém sido dadas a esta pergunta pode ajudar a compreender 0 sentido da posigao aqui defendida. Segundo Runes, epistemologia é «o ramo da filosofia que investiga a origem, a estru- tura, os métodos e a validade do conhecimento> (1968: 94). No Voca- bulaire de Philosophie de Lalande define-se epistemologia como «<0 estudo critico dos principios, hipsteses e resultados de diversas, 19 ci€ncias» (1972: 293). Blanché mostra as dificuldades em distinguir a epistemologia da filosofia da ciéncia e da teoria do conhecimento, mas acaba por considerar a epistemologia como uma reflexéo de segundo grau sobre a ciéncia, uma metaciéncia que, embora sujeita io filos6fica; se integra cada vez, mais na ciéncia pela 5 da objectividade cientifica (1972: 119 e ss). ‘Segundo Piaget, a epistemologia é «o estudo da constituigao dos conhecimentos validos, em que o termo ‘constituigao” abrange tanto 1s condigées de acesso como as condigées propriamente constituti- ‘vas» (1967: 6), acrescentando a seguir, numa segunda aproximagio genética, que € «0 estudo da passagem dos estados de menos conheci- ‘mento para os estados de mais conhecimento» (1967: 7). Bachelard pretende fundar uma filosofia cientifica, uma epistemologia que, por assim dizer, é uma filosofia nao filoséfica, «a filosofia que a ciéncia nterece». A ciéncia cria, ela propria, a sua filosofia, uma filosofia que se aplica e que por isso no € especulativa (1971: 7). Para Richard Rorty, a epistemologia € a filosofia das representagdes privilegia- das (1980: 165), a teoria do conhecimento saturada pelo «desejo de encontrar “os fundamentos” a que nos possamos agarrar, quadros de referéncia para além dos quais no podemos ir, objectos que se impdem por si, representagbes que néo podem ser negadas» (1980: 315) ©, Entre nés Sedas Nunes reconheceu que «o problema dos fundamentos, origem, natureza, valor ¢ limites do conhecimento tem sido tradicionalmente incluido na filosofia», mas acha que € possivel tratar esse problema sem entrar em especulagdes filoséfi- cas «mediante uma tomada de consciéncia ¢ reflex acerca do que écaracteristico do trabalho cientifico e que precisamente se revela nas pr6prias produgdes intelectuais resultantes desse trabalho» (1973: 7). ‘Armando Castro distingue a epistemologia da filosofia da ciéncia. (1) Noutro passo, diz Rorty no mesmo tom: «Este projectode saber mais acerca doquen6s conhecemos edomode como podemosconhtecer methor através doestudo “decom funcionaanossa mente veioa ser baptizado com onomede epistemologia'» (1980: 137), 20 Enquanto esta «diz respeito ao conhecimento filos6fico (..) voltado para um objecto delimitado que € 0 sistema das ciéncias», a episte- motogia é uma «meta-ciéncia», aciéncia «que estuda os conhecimen- tos cientificos, formulando as leis da produgao e transformagao dos conceitos de cada disciplina» (1975: 41; 1976: 42). Para Ferreira de Almeida e Madureira Pinto, a epistemologia «tem por objecto as condigdes ¢ os critérios de cientificidade dos discursos cientificos» (1976: 18), uma diseiplina que nao funda doexterioro sabercientifico © que, por isso, € parcialmente parasitéria, «uma vez que a sua intervengao se verifica sempre apés se ter alimentado dos quadros conceptuais, disciplinares» (1976: 22). Te Femandes, depois de negar a possibilidade de uma «ciéncia da ciéncia» e de considerar inttil a pretensdo de «querer definir em termos absolutos e definiti- ‘vos 0 que € a cientificidade> (1985: 157), atribui 3 epistemologia a tarefa de tomar consciente «a normatividade cientifica, produzida na prdpria prética da ciéncia» (1985: 146). Este reposit6rio de definigdes & revelador de que a epistemologia 6 uma disciplina, ou tema, ou perspectiva de reflexio cujo estatuto & duvidoso, quer em funeodo seu objecto, quer em fungodo seu lugar especifico nos saberes. No que respeita ao objecto, a discrepancia ¢ entre 0s que pretendem estudar na epistemologia a normatividade pura € 0s critérios formais da cientificidade e os que, ao invés, pretendem estudar nela a facticidade da pritica cientifica & luz das condigdes em que ela tem lugar. A titulo de ilustragao, Armando Castro defende a autonomia dos critérios epistemolégicos de cien- tificidade e, por isso, as condigdes sociais em que se produz o conhe- ccimento sio, em seu entender, (Hirschman in Elster, 1985b: 158). E de modo semelhante se pode interpretar a teoria de Schumpeter sobre 0 empresério capitalista, pois, em sua opiniao, o sistema capitalista funciona to bem por- que cria expectativas irrealistas sobre o éxito e dessa forma inspira muito mais esforgo da parte dos empresérios do que seria 0 caso se estes fossem espiritos mais prudentes (1976). No mesmo contexto, seria ainda de salientar a andlise de Kolakowski sobre os «erros felizes» de Lenine, erros de avaliago da forga do movimento revo- lucionério que, em parte, foram responsaveis pelo éxito da revolug0, (Kolakowski in Elster, 1985b: 161). A luz destas consideragées, forgoso é concluir que caminhamos para uma nova relagio entre a ciéncia ¢ o senso comum, uma relagdo ‘em que qualquer deles é feito do outro e ambos fazem algo de novo. Como? Antes de responder é preciso ter presente que a caracteriza- ¢40 do senso comum é usualmente feita a partir da ciéncia e que, por isso, nfo surpreende que esteja saturada de negatividade (ilusao, falsidade, conservadorismo, superficialidade, enviesamento, etc.). Se, no entanto, se fizer um esforgo analitico para superar esse etno- 0, a caracterizaglo a que se chega pode ser bem B outra e bem mais positiva. E desse esforgo que resulta uma caracteri- zagiio altemativa que desenvolvi noutro lugar: «O senso comum faz coincidir causa eintengao; subjaz-Ihe uma visio do mundo assente na acgiio € no prineipio da criati idades indivi- duais. O senso comum € pratico e pragmitico; reproduz-se colado as trajectérias e as experiéncias de vida de um dado grupo social e nessa correspondéncia se afirma de confianga e da seguranga, O senso ‘comum € transparente e evidente; desconfia da opacidade dos objec- tos tecnol6gicos © do esotetismo do conhecimento em nome do prinefpio da igualdade do acesso ao discurso, & competéncia cogni- fiva e A competéncia lingufstica. O senso comum é superficial por- ‘que desdenha das estruturas que esto para além da consciéncia mas, por isso mesmo, é eximio em captar a profundidade horizontal das relagdes conscientes entre pessoas ¢ entre pessoas e coisas. O senso comum é indisciplinar e imet6dico; nao resulta de uma pritica espe- cificamente orientada para produzir; reproduz-se espontaneamente no suceder quotidiano da vida, Por tiltimo, o senso comum € ret6rico € metaférico; nio ensina, persuade» (Santos, 1987: 56 e ss). Esta caracterizagao altemativa do senso comum procura salientar & positividade do senso comum, 0 seu contributo possivel para um projecto de emancipagio cultural e social. Em que con ccabe aqui falar sendio das condi¢&es te6ricas. A condigao teérica mais importante € que 0 senso comum s6 podera desenvolver em pleno a sua positividade no interior de uma configuracdo cognitiva em que tanto ele como a ciéncia modema se superem a si mesmos para dar lugar a uma outra forma de conhecimento. Dai o conceito de dupla ‘ruptura epistemolégica: uma vez feita a ruptura epistemolégica com © senso comum, 0 acto epistemolégico mais importante é a ruptura com a ruptura epistemolégica ©. Para compreender o alcance da (G) Madurcira Pinto refere também a necessidade de uma «nova rupture» (1.9840: 134), mas em sentido muito diferente daquele que € proposto por mim. A nova ruptura 6, segundo Madureira Pinto, a ruptura com o senso comum ow as pressuposiges espontinens acerca das condigées de observacio sociolégica. Ao 44 dupla ruptura epistemolégica deve ter-se em mente a ideia de Bache- lard de que os obstéculos epistemolégicos se apresentam sempre aos pares e que, por isso, se poderé falar de uma «lei psicolégica da polaridade dos erros» (1972: 20). Tal como sucede com os obsticulos epistemolégicos, a dupla ruptura nfo significa que a segunda ruptura neutralize a primeira e que, assim, se regresse ao statu quo ante, & ituago anterior A primeira ruptura, Se esse fosse 0 caso, regressar- -ia a0 senso comum e todo o trabalho epistemol6gico seriaem vio, Pelocontrério, « duplaruptura procede aum trabalho de transformagio tanto do senso comum como da ciéneia. Enquanto a primeira ruptura € imprescindivel para constituir a ciéncia, mas deixa o senso comum, tal como estava antes dela, a segunda ruptura transforma 0 senso comum com base na ciéncia constituida © no mesmo proceso transforma a ciéncia, Com essa dupla transformagao pretende-se um senso comum esclarecido ¢ uma ciéncia prudente, ou melhor, uma nova configurago do saber que se aproxima da phronesis aris- totélica, ou seja, um saber prético que dé sentido e orientagdo & cexisténcia ecria o habito de decidir bem. Aproximando-se emborada phronesisatistotélica, anova configuragao do saber dis tudo dela. A phronesis combina 0 cardcter préticoe prudente do senso comum com o cardcter segregado e elitista da ciéncia, uma vez. que 6 um saber que s6 cabe aos mais esclarecidos, isto é, a0s sabios. A dupla ruptura epistemolégica tem por objecto criar uma forma de conhecimento, ou melhor, uma configuracao de conhecimentos que sendo prética nflo deixa de ser esclarecida e sendo sabia nfo deixe de estar democra-ticamente distribuida. Isto, que seria utépico no tempo de Arist6teles, possivel hoje gragas ao desenvolvimento tecnol6gico da comunicago que a ciéncia modema produziu. De facto, a ampli- tude e a diversidade das redes de comunicagio que é hoje posstvel contrério, @ segunda ruptura epistemoligica por mim proposta incide sobre 0 conhecimento cientifico em si e no sobre o processo da sua aquisigfo, e visa precisamente romper com a ruptura ou rupluras com o senso comum em que ele 4s estabelecer deixam no ar a expectativa de um aumento generalizado da competéncia comunicativa. Sucede, contudo, que, entregue a sua prdpria hegemonia, a ciéncia que cria a expectativa é também quem a frustra. Dai a necessidade da dupla ruptura epistemolégica que permita destruir a hegemonia da ciéncia moderna sem perder as expectativas que ela gera. A nova configuraciio do saber é, assim, a ‘garantia do desejo e 0 desejo da garantia de que o desenvolvimento tecnol6gico contribua para o aprofundamento da competéncia cogni- ‘iva e comunicativa e, assim, se transforme num sabet pritico e nos ajude a dar sentido ¢ autenticidade & nossa existéncia. E 0 desejo de Socrates no Fédon de Plato, depois de o fil6sofo verificar que a investigagao das coisas tomada possivel pela ciéncia do seu tempo 0 deixava sem qualquer orientagao. A dupla ruptura epistemolégica € o modo operatério da herme- néutica da epistemologia. Desconstr6i a ciéncia, inserindo-a numa totalidade que a transcende. Uma desconstrugio que nfo é ingénua nem indiscriminada porque se orienta para garantir a emancipago © & criatividade da existéncia individual e social, valores que s6 a ciéncia pode realizar, mas que niio pode realizar enquanto ciéncia, A desconstrugao hermenéutica, que se realiza na dupla ruptura epis- temolégica, esté, assim, sujeita a alguns fopoi de orientagiio, O primeiro topos € que se deve progressivamente atenuar o que Foucault designa por desnivelamento dos discursos. Diz ele que se produz. regularmente nas sociedades um desnivelamento entre os discursos: «Os discursos que ‘se dizem’ na sequéncia dos dias e das, trocas e que passam com o acto em que so pronunciados; € os discursos que estio na origem de um certo mimero de actos novos de alavras que os retomam, os transformam ou falam deles, em suma, discursos que, indefinidamente, e para além da sua formulagfo, so ditos, permanecem ditos ¢ ainda ficam para dizerm (1971: 24). Os Primeiros discursos sio os discursos vulgares, sem eira nem beira, os discursos do senso comum; os segundos so os discursos anormais, agasalhados de muita roupa, os discursos eruditos. A dupla ruptura epistemolégica, sem querer abarcar a totalidade destes discursos, 46 pretende que cles se falem, que se tornem comensurdveis © nessa medida atenuem o desnivelamento que os separa. segundo topos & que se deve progressivamente superar a dicotomia contemplagao/acgo. Esta dicotomia subjaz. & filosofia grega e, desde entdo, tem dominado o pensamento ocidental, ati gindo a sua méxima expresso no paradigma da ciéncia moderna. também nele que as contradigées da dicotomia mais claramente se manifestam, Por um lado, os critérios de verdade do conhecimento cient interiores a0 processo cientifico e a tinica acgio relevante a este nivel é a acgao da investigacdo eda experimentacio. Qualquer outro tipo de acgo, nomeadamente a acco social, € exte- rior ao conhecimento, constitui ti0-s6 0 campo da sua aplicagao, é, em suma, tecnologia: Mas, por outro lado, o fosso que assim se cria entre a verdade cientifiea da ciéncia (a ciéncia-em-si) ¢ a verdade social da cigncia (a tecnologia) é um fosso falso; ainda que ideologi- ‘camente separadas, as duas verdades pertencem-se mutuamente, No que respeita a0 modelo de racionalidade, é sabido, desde Bacon Descartes, que a ciéncia modema pretende conhecer 0 mundo nao para 0 contemplar mas para o dominar e transformar, e neste sentido a sua racionalidade € instrumentalista (Bacon, 1933: 110; Descartes, 1984: 49). No que respeita &s condigdes de producdo do conheci- mento cientifico, é hoje mais do que nunca claro que as pretensdes de verdade social da ciéncia so constitutivas do processo de produgio da cigncia e sobredeterminam, por isso, as pretensGes de verdade cientifica, a tal ponto que nao faz hoje sentido distinguir entre ciéncia puraeciéncia apticada —uma questo que sera adiante desenvolvida no capitulo sobre a sociologia da ciénci ‘Masa separaco ideol6gica das duas verdades da ciéncia tem uma eficécia especifica. Porque a patticipagao interna (constitutiva) da verdade social da ciéncia nao é epistemologicamente assumida, cla exerce-se sem qualquer controlo pablico, nio & submetida ao teste piiblico da critica dentro e fora da comunidade cientifica e, por isso, € facilmente apropriada por quem detém poder politico e social para a fazer valer a seu favor. Esta auséncia de controlo pablico numa 41 sociedade de classes — que, alids, se reproduz enquanto tal gragas a essa auséncia — € responsavel pela redugao da praxis & técnica, que caracteriza a crise de degenerescéncia do paradigma da ciénc moderna, A superagao desta crise.nao pode ter lugar dentro do paradigma, porque ela pressupde que a pertenga miitua da verdade cientificae da verdade social da cigncia sejam explicitamente assumidas. O con- ceito pragmatista da verdade da ciéncia, o caminho dificil das Consequéncias para as causas, aponta nesse sentido. Parafraseando William James, podemos dizer que a fungao global da epistemologia pragmética consiste em saber «que diferenga faz, para ti ou para mim, em instantes precisos da nossa vida, se esta formula-mundo ou aquela {formula-mundo € verdadeira> (1969: 45). A ciéncia é uma incansével criadora de formulas-mundo (e nao apenas daquela em que a ciéncia modema se «especializou»), Para escolher entre elas no podemos deixar de pensar na reflexio de Ostwald, que James cita com apro- vaco: «Todas as realidades influenciam a nossa pritica, ¢ essa influéncia 60 significado delas parands» (1969: 44). Esta valorizagao global da nossa praxis toma possivel que a técnica — que, como jf referi, é um instrumento indispensavel na construgao da sociedade comunicativa — se converta numa dimensao da pritica e ndo, a0 con- twario, como hoje sucede, que a pritica se converta numa dimensao da técnica, 0 terceiro e Ultimo topos que orienta a dupla ruptura epis- temol6gica é que € necessério encontrar um novo equilbrio entre adaptagio e criatividade. Nao é hoje surpresa para ninguém que 0 conforto que a sociedade de consumo nos proporcionou (a todos os que tém uma procura solvente, pois s6 essa conta) tem um prego. invistvel (para além do que esté colado &s mercadorias): a nossa rentineia a liberdade de agir, ao fruir com autonomia. A produgao técnica da natureza € do meio ambiente bem como as tecnologias sociais que se foram acumulando para conformar, a niveis cada vez ‘mais fundos, 0 nosso quotidiano, criam dependéncias miiltiplas para © individuo ou o grupo que tornam dificil a conquista ea preservagao 48 dda identidade pessoal ou social. Dat o privilégio socialmente dado a0 poder adaptativo do homem em detrimento do seu poder criativo. Constitufram-se ciéncias, desenvolveram-se tecnologias, criaram-se instituigdes para ensinar 0 homem a exercitar 0 seu poder adaptativo (da psicologia ¢ da sociologia & psicandlise; das teorias da escolha racional as teorias da dissonancia cognitiva; dos hospitais psiquidtri- cos e do Bstado- Providéncia as universidades). Enquanto a formagao das preferéncias adaptativas se transformou num objecto de investi- gagJo importante (Elster 1985b: 109 e ss) a criatividade continua, como ja em Popper, a palmithar a lama da irracionalidade. E necessério, pois, encontrar um novo equilfbrio entre adaptagz0 € criatividade, € isso s6 serd possivel no contexto de uma praxis globalmente entendida ¢ servida por uma compreensio da ciéncia que, por privilegiar as consequéncias, obrigue © homem a reflectir sobre os custos e os beneficios entre o que pode fazer eo que the pode ser feito. Uma pritica assim entendida saber dar a técnica o que & da técnica e & liberdade 0 que ¢ da liberdade ‘A hermenéutica da epistemologia é 0 modo mais adequado de propiciar a transigo para uma epistemologia pragmética. E uma hermeneutica critica e sociolégica porque privilegia, por contrapeso, a reflexdo sobre a verdade social da ciéncia moderna como meio de questionar um conceito de verdade cientifica demasiado estreito, obcecado pela sua organizagdo metédica e pela sua certeza, e pouco ou nada sensivel a desorganizagao e incerteza porele provocadas na sociedade e nos individuos. E com este othar que se deve analisar a seguir a metodologia das ciéncias sociais. 49 3 METODOLOGIA E HERMENEUTICA 1 Quando deparares com uma contradigéo faz uma distingdo Adagio escolistco Introdugio Anhermenéutica critica tem de comecar por analisara ciéncia que se faz para que seja compreensfvel e eficaz.a erftica da ciéncia que se faz, do mesmo modo que uma teoria critica tem de comegar por analisar a sociedade que existe para que seja compreensivel ¢ eficaz a critica da sociedade que existe. A luz da dupla ruptura episte- ‘mol6gica estudada no capitulo precedente pode concluir-se: a) que todo 0 conhecimento é em fico consiste em dar sentido a outras priticas sociais ¢ contribuir para a transformagao destas; b) que uma sociedade complexa é uma configuragao de conhecimentos, constituida por varias formas de conhecimento adequadas as varias priticas sociais; c) que a verdade de cada uma das formas de conhecimento reside na sua adequacio concreta a pratica que visa constituir; d) que, assim sendo, a critica de ‘uma dada forma de conhecimento implica sempre a critica da prética social a que ele se pretende adequar; e) que tal critica nao se pode confundir com a critica dessa forma de conhecimento, enquanto si uma prética social, cujo trabalho espe- 31 pritica social, pois a prética que se conhece ¢ 0 conhecimento que se pratica esto sujeitos a determinagdes parcialmente diferentes. Ji/em 1906 William James dizia que significa colocar 0 conhecimento produzido, tanto pelo seriso comum como pels ciéncia, num registo pragmético, ‘num registo (ndo tenhamos medo das palavras) finalista e utilitario, O conhecimento que nos guia conscientemente € com éxito na pas- sagem de um estado de realidade para outro estado de realidade €, nessa medida, um conhecimento verdadeiro, O éxito sera sempre oda participagdo especifica (e necessariamente parcial) desse conhec mento na transformagao. Essa transformagao tem de ser consciente no sentido de que as consequéncias tém de estar antecipadas no proprio conhecimento (Dewey, 1916: 319), pois, doutro modo, sao elas que acontecem ao conhecimento em vez de ser o conhecimento 1 faré-las acontecer (como sucede no caso dos «efeitos perversos», das «profecias auto-confirmadas e auto-falsificadas», j4 hoje abu dantemente estudadas na sociologia). A verdade nao é assim uma caracteristica fixa, inerente a uma dada ideia. A verdade acontece @ uma dada ideia na medida em que esta contribui para fazer acontecer 0s acontecimentos por ela antecipados. ‘Ao contrario do que & primeira vista pode pensar-se, uma con- cepeio pragmatica do conhecimento cientifico desloca 0 centro da reflexio do conhecimento feito para o conhecimento no processo de se fazer, do conhecimento para o conhecer. Alids, a dificuldade fundamental da concepgao pragmatica reside em fixaro momentoem que 0 conhecimento esté feito, ou melhor, 0 momento em que 0 conhecimento € feito verdadeiro. Esta fraqueza, desde que ple namente assumida, transforma-se numa forga, até porque esta con- cepgo sabe que, nas concepgSes maximalistas (idealistas ou mate- 3 rialistas) da verdade 0 que normalmente se reivindica como ver- dadeiro € menos 0 verdadeiro do verdadeiro do que o verdadeiro da reivindicacio. Sendo a verdade, ela propria, um acontecer mais do ‘que um acontecimento, a epistemologia pragmética nao tem uma cconcepgio terminal da verdade. Pelo contrsrio, como as consequén- ccias t8m de ser queridas ¢ por isso antecipadas, o centro da gravidade da reflexio epistemolégica desloca-se do conhecimento feito para 0 cconhecer como pratica social. Dai a centralidade da metodologia enquanto anélise critica dos procedimentos que medeiam entre 0 querer e o ter conhecimento, No plano metodol6gico, a dupla ruptura epistemolégica mani- festa-se na resposta a duas perguntas: como se faz ciéncia? (primeira ruptura); como é que a ciéncia se confirma ao transformar-se num novo senso comum? (segunda ruptura). A este nivel, torna-se ainda mais claro 0 que no capitulo precedente se disse sobre o facto de a segunda ruptura, longe de neutralizar a primeira ruptura, ser condi- cio da plena realizagao desta. De facto, no plano metodolégico, a pri meira ruptura consiste em romper com a concepgao do senso comum sobre o modo como se faz-ciéncia, uma concepeao que é, als, muitas vvezes interiorizada pelos cientistas (que so tio vulneriiveis ao senso ‘comum quanto os demais) e que se toma responsavel pela relagio imaginéria que eles tém, nesse caso, com a sua prética de cientistas. Esta ruptura mostra que as diferencas entre os modos de produgio do ‘conhecimento do senso comum edo conhecimento cientifico nao séo tio absolutas quanto 0 senso comum julga (cont base na incomensura- bilidade dos discursos) mas que, mesmo assim, existem ¢ sto signi- ficativas. Em termos reais hé, pois, um misto de cumplicidade e de dentincia mitua entre as duas formas de conhecimento eé esta ambi- guidade que toma possivel a segunda ruptura. Se as duas formas de conhecimento fossem totalmente distintas, a ciéncia néo podia aspirar a transformar-se em senso comum, se fossem idénticas, a cigncia nio podia pretender transformaro senso comum. Mas, porseu lado, a segunda ruptura € quem dé sentido & primeira, pois a ciéncia 86 pode saber como se faz. (contra o senso comum) se souber o que 4 pode fazer (transformar o senso comum, transformando-se em s comum).. Como ja se deixou antever, o discurso metodol6gico dominante 86 incide sobre a primeira ruptura e a pergunta a que ela responde (como se faz cigncia?). A segunda ruptura é uma exigéncia da teflexiio hermenéutica sobre a metodologia e, por agora, nao é mais do que um projecto cuja concretizagao plena, como igualriente se deixou antever, s6 teré lugar no interior de um novo paradigma cientifico. Este desenvolvimento desigual das duas probleméticas reflecte-se, como seria de esperar, nas andlises que subjazem a discussio da Metodologia da Investigacdo nas Ciéncias Sociais. No que precede, usaram-se por vezes indiferentemente as expresses ‘«cineias» ¢ «ciéneias sociais». Esta ambiguidade foi propositada, pois a0 nivel a que foi feita a discussio nao era preciso discutir a questo da especificidade metodol6gica das ciéncias sociais. Essa cespecificagao viré de imediato, 3.1. Discurso metodolégico I: das ciéneias naturais A questo de saber se 0 estatuto de cientificidade ou a forma lgica das ciéncias sociais é igual ou diferente do das ciéncias naturais, uma das mais discutidas e das menos resolvidas em todo 0 discurso epistemol6gico. Em face disto, nao ficaré mal que & partida definaem linhas gerais a minha posicao a este respeito: 1. A questo do unitarismo ou dualismo epistemol6gico entre as ciéncias naturais e as ciéncias sociais est, desde 0 infcio, marcada pela hegemonia da filosofia positivista das ciéncias naturais. Foi por aterem aceitado que os positivistas a procuraram ampliar, adoptando ‘a posigdo do unitarismo. Foi igualmente por a terem aceitado que os 38

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