Você está na página 1de 11

Educação Unisinos

E-ISSN: 2177-6210
revistaeduc@unisinos.br
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Brasil

Stephanou, Maria
Bem viver em regras: urbanidade e civilidade em manuais de saúde
Educação Unisinos, vol. 10, núm. 1, enero-abril, 2006, pp. 35-44
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
São Leopoldo, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=449644422004

Como citar este artigo


Número completo
Sistema de Informação Científica
Mais artigos Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal
Home da revista no Redalyc Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto
Educação Unisinos
10(1):35-44, jan/abr 2006
10
© 2006 by Unisinos

Bem viver em regras: urbanidade e


civilidade em manuais de saúde

Good live upon rules: urbanity


and civility on health manuals
Maria Stephanou
mariast@terra.com.br

Resumo: A investigação analisa dois manuais de autoria do médico gaúcho Dr. Mário Totta.
Um deles denomina-se O médico em casa, o outro intitula-se Medicina em Pílulas: Breviário
da Saúde; ambos publicados pela Livraria do Globo de Porto Alegre, Rio Grande do Sul,
Brasil, em 1939. Caracterizam-se por apresentarem um conjunto variado de temas que
abrangem desde instruções e procedimentos para a cura de pequenas moléstias, primeiros
socorros, noções elementares de puericultura, enfim, cuidados básicos com a higiene do
corpo, alimentar, das habitações, passando também pela codificação minuciosa de condutas
de urbanidade, produzindo, conforme o estudo demonstra, uma intensa associação entre
urbanidade ou civilidade com higiene e saúde. A forma como os conselhos são apresentados
indicam que há uma intersecção de argumentos científicos e argumentos de ordem moral.
O exame dos manuais volta-se para a complexidade das relações entre o próprio texto dos
manuais, seu suporte, sua materialidade, ou seja, o objeto que comunica o texto e o ato
que o apreende, sua apropriação por múltiplas leituras de distintos sujeitos. O propósito
maior é situar os manuais em meio a um conjunto de práticas discursivas da medicina voltadas
à educação sanitária da população, detendo-se particularmente em descrever o que disseram
e propuseram os médicos sobre o tema da urbanidade, através desses textos, e seu caráter
educativo.

Palavras-chave: manuais de saúde, história da educação, civilidade.

Abstract: The investigation analyse two manuals of the physician Dr. Mário Totta, The
Physician at Home and Medicine in Pills: Short Histories Health. Both were published in 1939,
by Livraria do Globo, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. They present instructions and
procedures for the cure of small maladies, first helps elementary notions of puericulture,
and basic attentions with the body hygiene, diet, habitation, and also by the particular
codification of conduct making severe association of urbanity or civility with hygiene and
health. The form of their counsel indicates an intersection of scientific and moral arguments.
The examination of the manuals shows the complexity of the relations between the very
text of manuals, their support, their materiality, such as, the object of text and the numerous
meanings of its several subjects. The major purpose of this work is to put the manuals in
the center of a medical practice, which aimed the sanitary education of the people. It also
focuses on the discourse of the physicians about urbanity through their texts and their
educative character.

Key words: manuals of health, history of education, civility.

05 ART 03_MStephanou[rev].pmd 35 29/9/2006, 17:43


Maria Stephanou

No Brasil, nos anos 30 a 50 do O sujeito se constitui na articula- prescritivos e, por isso mesmo, de
século XX, as ações médicas nas ci- ção complexa de discursos e práti- caráter prático, caracterizam-se por
dades foram múltiplas e intensas, cas, que podem ser pedagógicos, conselhos, recomendações, especifi-
desde a formulação de propostas de médicos, terapêuticos, entre outros, cações de procedimentos a adotar,
saneamento, passando pela análise historicamente engendrados, que descritos minuciosamente. Um deta-
de problemas como a constituição instauram modos de conhecimento lhado e complexo conjunto de práti-
do tipo brasileiro, até a proposição de sobre si. A experiência de si é cas individuais é examinado e expli-
iniciativas de educação e propaganda construída, produzida, de forma com- cado didaticamente pelos médicos. Os
sanitária, dentre elas a elaboração e plexa, contraditória, contingente. discursos médicos insistiam: havia
difusão de manuais de higiene e saú- Como uma das possibilidades de or- que zelar pela própria saúde, como
de. Tais iniciativas, de uma certa for- ganização de uma consciência de si, é principal preocupação de cada um,
ma, estabeleceram uma rede de espa- sempre um processo provisório mas também como dever do cidadão.
ços de intervenção sanitarista, assis- (Eizirik, 1997, p. 42). Além do que, a Observe-se que cuidados pessoais
tência clínica e terapêutica e educa- verdade do sujeito não lhe é tão-so- cada vez mais interiorizados e, simul-
ção, assegurando a circulação dos dis- mente imposta de fora; o sujeito con- taneamente, cada vez mais explicita-
cursos médicos no campo social. Os tribui ativamente, desde si, na produ- dos e identificados com a civilidade
médicos transitaram dos consutórios ção de uma verdade sobre si mesmo. irão compor a higiene e a saúde con-
e hospitais às tribunas, dos centros e Na situação histórico-concreta temporâneas (Vigarello, 1988).
dispensários de saúde às creches, asi- elencada para a análise, situa-se um Embora prescritivos, os manuais
los e orfanatos, das escolas às facul- momento importante para a história analisados não pretendiam ser
dades, das fábricas e oficinas às admi- de um determinado modo de conhe- impositivos, mas persuasivos; tam-
nistrações públicas, das instituições à cimento e prática de si, em que no- pouco dogmáticos, mas explicativos e
intimidade dos lares. vos saberes dos indivíduos para minuciosos, visando oferecer informa-
Este estudo problematiza duas consigo, novos saberes acerca do ções, argumentos consistentes e no-
questões intimamente relacionadas. sujeito, foram produzidos e organi- ções práticas, precisas e claras, para
A primeira diz respeito à constitui- zados, valorizados, recomendados e/ ensinar a cada um como melhor se con-
ção do sujeito1 urbano. A segunda ou impostos, com uma crescente pre- duzir com vistas à polidez e à civilida-
indaga como discursos médicos fo- sença dos saberes médicos. de, como refrear os instintos que lem-
ram constitutivos da subjetividade O exame dos processos de forma- bravam a animalidade e como cultivar
moderna, do modo pelo qual os indi- ção do cidadão nas primeiras décadas modos de ser distintos e agradáveis a
víduos são levados a dar sentido e do século XX tem levado a observar si mesmo e aos outros. Intentavam cap-
valor às suas condutas, deveres, uma crescente importância dos cuida- tar a confiança dos leitores através de
sensibilidades, expectativas (Fou- dos pessoais nos domínios da urbani- uma didática que utilizava, em primeiro
cault, 1990a), como sujeitos de urba- dade ou da civilidade, em especial nos lugar, a própria linguagem, acessível,
nidade e civilidade. Para entender a domínios da higiene e da saúde. Refi- jocosa ou metafórica, rica em situações
crescente preocupação com o auto- ro-me às práticas e ações que os sujei- exemplares e por si mesmo educativas,
cuidado na discursividade médica, tos deveriam dirigir a si mesmos quan- relativas ao cotidiano da vida na cida-
fez-se necessário prestar atenção aos to à polidez das condutas, os rituais de, na casa, no trabalho, na escola, nas
processos de subjetivação, em ou- de uma estética esmerada, asseio pes- práticas de convivialidade. Sugerem
tras palavras, o modo pelo qual foi soal, cuidado com o corpo, a intimida- uma ciência do cuidado que é também
se produzindo determinada subjeti- de e a sexualidade, os novos modos um dever e um amor pelos outros, por-
vidade (in)formada pelos saberes da sociabilidade urbana. que os protege, os agrada, os aproxi-
médicos. Compreende-se a subjeti- Relativamente aos manuais de saú- ma. Um cuidado que, por isso mesmo,
vação como processo de constitui- de, escritos por médicos e que tornaria possível a convivência urba-
ção da “subjetividade”, enquanto tematizam incisivamente as regras de na, até então envolta em tantos peri-
“modo em que o sujeito faz a experi- urbanidade, pode-se observar uma gos e ameaças. Mas um cuidado, tam-
ência de si mesmo num jogo de ver- intensa preocupação, a par da saúde bém, que instauraria um novo regime e
dade em que está em relação consi- de todos, com a saúde individual. Os gênero de vida, onde a urbanidade e a
go mesmo” (Foucault, 1990b, p. 21). manuais analisados, notadamente civilidade, em relação às quais eram
36
1
Sujeito no sentido de assujeitado, submetido a outros através do controle e da dependência, e atado à sua própria identidade, pela consciência ou
o conhecimento de si mesmo (Foucault ap. Eizirik, 1994, p. 18).

Educação Unisinos
Bem viver em regras: urbanidade e civilidade em manuais de saúde

inerentes a higiene e a saúde, são con- cultura, enfim, cuidados básicos com objeto que comunica o texto e o ato
cebidas como as virtudes modernas2. a higiene do corpo, alimentar, das ha- que o apreende, sua apropriação por
As investigações que examinam a bitações, além da codificação minuci- múltiplas leituras de distintos sujei-
produção e disseminação de manu- osa de condutas de urbanidade. tos. Em suas palavras, “conduzido ou
ais de civilidade e urbanidade não A associação produzida entre ur- encurralado, o leitor encontra-se in-
chegam a mencionar exemplos em que banidade ou civilidade com as práti- variavelmente inscrito no texto, mas
médicos figurem como autores, em- cas de higiene e saúde é proeminente. este, por sua vez, inscreve-se de múl-
bora os textos de manuais invariavel- Saúde implica condutas polidas, asse- tiplas formas em seus diferentes lei-
mente contenham preceitos de higie- adas, de autocuidado. A civilidade as- tores”. Entretanto, mesmo reconhe-
ne. Neste estudo, foram identificados segura a saúde, pois as pessoas não cendo a pertinência dessas comple-
dois manuais de autoria do médico andam sujas, observam a higiene ali- xas relações que constituem os ma-
gaúcho Dr. Mário Totta, que tiveram mentar e não se empanturram, obser- nuais, especialmente o fato de que os
muitas reedições nos anos 30 e 40 do vam a higiene da boca e dos olhos, “textos ou palavras destinadas a con-
século XX. O médico em casa e Me- guardam distância de relações promís- figurar pensamentos e ações nunca
dicina em pílulas: breviário da saú- cuas, como beijar enfermos ou crian- são inteiramente eficazes e radical-
de foram publicados pela Livraria do ças, não se abandonam aos vícios mo- mente aculturadores” (Chartier, 1992),
Globo de Porto Alegre, em primeira dernos, não se descuidam da higiene ainda não será nesse estudo que to-
edição datada de 1939. de si próprios e, com isso, repelem as dos esses elementos serão explora-
fontes de contágio, a sujeira, as pre- dos. Até esse momento não foram lo-
disposições que tornam propícias as calizadas fontes que tenham registra-
contaminações. Isso fica claro na for- do a diversidade das práticas de lei-
ma como os conselhos são apresenta- tura, as apropriações associadas aos
dos: mesclam-se argumentos “cientí- manuais. Neste estudo, analiso a
ficos” com argumentos de ordem mo- materialidade dos manuais como for-
ral. Muitas vezes, o tom moral prevale- ma de estabelecer uma espécie de
ce, e recomendam-se, sob advertên- intertextualidade com o texto propria-
cias, ameaças, ironia ou zombaria, os mente escrito, tomando cada manual
procedimentos “naturalmente” ade- – discurso, texto e materialidade –
quados, apenas desapercebidos da tola como objeto de leitura e apropriação.
ignorância. Assim, a conjugação dos Uma ressalva importante: os do-
argumentos de ordem científica com cumentos examinados não são de-
Figura 1. Capa do livro O médico aqueles de ordem moral permite a legi- nominados manuais por seu autor
em casa. timidade de ambos. Divulgados como ou pelo editor, tampouco estampam
Considerando-se os títulos, uma de autoria de um médico, era possível em sua capa os dizeres civilidade,
primeira leitura sugere que seu con- atribuir-lhes um reconhecimento em urbanidade ou expressões como
teúdo seja matéria de caráter estrita- que o discurso científico possibilitava “boas maneiras”, “bons costumes”.
mente terapêutico. No limite, imagina- sua acolhida como verdadeiros e au- Entretanto, seus textos propõem-se
se encontrar preceitos profiláticos e torizados (Foucault, 1993). a prescrever e ensinar como com-
prescrição de comportamentos relaci- Muitas possibilidades de análise portar-se adequadamente, o que não
onados às doenças. Isso se confirma, se abrem ao estudo dos manuais. São pode ser secundarizado. Os manu-
embora surpreenda-nos um conjunto provocativas as questões formuladas ais apresentam uma determinada
variadíssimo de temas que abrangem por Chartier (1992) relativamente ao listagem de condutas tendo como
instruções e procedimentos para a cura exame da complexidade das relações pano de fundo a produção da urba-
de pequenas moléstias, primeiros so- entre o próprio texto dos manuais, seu nidade associada a um estilo de vida
corros, noções elementares de pueri- suporte, sua materialidade, ou seja, o saudável e higiênico3.

2
Como sugere Barrán (1995) a propósito da cultura do corpo e que considero pertinente estender às práticas de urbanidade.
3
No segundo volume da História da sexualidade (1984/1990a), ao referir-se às fontes utilizadas para examinar os modos de subjetivação, Foucault
caracteriza-as como discursos prescritivos, que pretendiam a proposição de regras de conduta, através de opiniões, conselhos, recomendações, em que
a explicitação do “comportar-se como convém” era clara, direta, portanto, textos “práticos”, produzidos para serem efetivamente “lidos, aprendidos,
meditados, utilizados”. Visavam constituir uma armadura da vida cotidiana, e, em última instância, serem operadores que permitissem aos indivíduos 37
interrogar-se sobre sua própria conduta, formá-la e conformar-se ao prescrito, colocando-se em situação de compartilhamento pessoal das regras.
Inspirando-me em percorrer essas pistas metodológicas, foram buscadas fontes representativas do discurso médico que se caracterizam por conter
indicações prescritivas, de especificação prática de condutas, procedimentos visando a produção dessa armadura de vida de que fala Foucault.

volume 10, número 1, janeiro • abril 2006


Maria Stephanou

Os manuais analisados são tex- as, crônicas e breves colunas de al e, por vezes, jocoso. Algumas si-
tos sem uma vinculação institucional matéria médica no Correio do Povo, tuações são apresentadas de forma
explícita, tampouco atados a uma lei- periódico de ampla circulação no quase bizarra, outras insistem num
tura compulsória, como os catecis- período. minucioso detalhamento da rotina
mos, ou os manuais de educação O médico em casa reúne, sob a diária, incluindo os cuidados com o
moral e escolares. Constituíram-se forma de livro, conselhos esparsamen- corpo – dentes, cabelos, olhos, etc.
como textos de consulta informal, te publicados no Correio do Povo ao – com a alimentação, o vestuário, o
facultativa, o que não implicava uma longo de alguns anos. Na breve in- uso do cigarro, do álcool, controle
leitura “tutelada”, embora o peso da trodução do manual, o Dr. Totta su- dos vícios, enfim, as regras de boas
Medicina como verdade estabeleces- gere que, pela forma simples e acessí- maneiras através de provérbios po-
se uma ordem a essa leitura. De qual- vel, lá estará o Médico, em cada casa, pulares que ilustram as atitudes
quer maneira, não eram textos a se- lado a lado a um Chernoviz5, “vene- sugeridas. O tom imperativo e essen-
rem lidos num espaço institucional rando tratado que foi inquilino cialmente prático caracteriza a forma
que os apresentaria como obrigato- indefectível de todas as estantes de do discurso, espécie de diálogo di-
riedade, mediados por comentadores, jacarandá” (Totta, 1939a, p. 7). reto com os leitores, que lança mão
como o caso dos manuais religiosos O Medicina em pílulas: breviário de um tom anedótico e sarcástico,
ou escolares. Permitiam precisamen- da saúde consistia num manual me- em pequenos textos, a exemplo de
te uma espécie de leitura íntima, na nos extenso, curiosamente publica- versículos: “pílulas”, medicina em
mesma proporção das atitudes e com- do no mesmo ano de 19396. Há mui- pílulas8.
portamentos individuais recomenda- tas semelhanças entre os dois ma- Medicina em pílulas: breviário
dos. Seu valor de verdade era ates- nuais, particularmente quanto aos da saúde. Enquanto “breviário” o tex-
tado pela condição de médico do temas e conselhos, embora a lingua- to evoca a idéia de livro de rezas coti-
autor e pelo caráter de civilidade e gem, alguns assuntos e a extensão dianas ou forma breve do ofício divi-
modernidade que sugeriam. do texto difiram significativamente. no. Conteúdo religioso que se repor-
É como se o Breviário fosse uma ta a uma profissão de fé de quem lê e
Saúde e urbanidade espécie de “tradução” ou simplifica- segue seus conselhos. Em vez de uti-
ção do outro manual, em linguagem lizar-se da expressão “versículos”,
Os manuais analisados circularam ainda mais acessível e de manuseio que caracterizam um breviário, serve-
em cidades do Rio Grande do Sul a mais didático7. O número de reimpres- se do vocabulário médico para aludir
partir do final dos anos 1930. O mé- sões e a elaboração de uma versão a cada conselho, em número de 107:
dico em casa e Medicina em pílu- simplificada dão conta da difusão “as pílulas”, pequenos e concisos
las: breviário da saúde são assina- dos mesmos e da preocupação com conselhos. Há também outra aproxi-
dos pelo Dr. Mario Totta4, respeita- sua disseminação. mação aos breviários que é sugesti-
do médico gaúcho, obstetra e pedia- Enquanto O médico em casa se va. O Medicina em pílulas: breviário
tra, professor da Faculdade de Me- caracteriza por uma linguagem da saúde está escrito em pequenos
dicina de Porto Alegre, filantropo, simplificada, porém denotando a fala tópicos independentes. Pequenas
poeta e cronista, redator de revistas de um médico que explica, argumen- drágeas de grande alcance, como o
e jornais. O Dr. Totta era popular ta e aconselha, Medicina em pílulas são as pílulas na terapêutica clínica.
como autor, tendo publicado poesi- caracteriza-se por um estilo coloqui- O texto não é necessariamente

4
O Dr. Mário Totta nasceu em Porto Alegre, em 1874, vindo a falecer, na mesma cidade, em 1947. Formou-se farmacêutico pela Faculdade de
Medicina de Porto Alegre em 1900 e, em 1904, como médico pela mesma Faculdade. Note-se sua atuação em outras atividades educacionais, como
o fato de ter sido secretário-geral da Instrução Pública do Rio Grande do Sul, em 1898, e professor de Higiene da Escola Normal de Porto Alegre.
Destacou-se como “poeta, romancista, cronista e divulgador para populares da ciência médica”.
5
O médico Pedro Luiz Napoleão Czerniewicz, conhecido como Chernoviz, nasceu na Polônia, em 1812. Em 1840, mudou-se para o Brasil. Foi admitido
na Academia Imperial de Medicina, exercendo sua profissão no país durante quinze anos, regressando à Europa em 1855. No Brasil, modificou seu
nome para Chernoviz para torná-lo acessível. Em 1841, foi publicada a primeira edição de seu Formulário e guia médico, tendo obtido popularidade
ao preencher lacuna da literatura médica no Brasil. Para que se tenha uma idéia da popularização destes manuais, em 1897 o Formulário já contava
com pelo menos 19 edições. Isto porque sua venda não foi dirigida somente aos médicos e farmacêuticos, mas ao grande público.
6
O Dr. Totta não alude a escolha do título. Mas é curioso observar que, em 1920, o Dr. Renato Kehl, importante médico eugenista brasileiro, publica
um manual destinado ao público dos 13 aos 80 anos intitulado “Bíblia da saúde”, referindo que se encontra dividida em “pílulas” (cf. Brazil Médico, Rio
de Janeiro, 40(2):11, 03/07/1926). Guereña (1997) registra que, para o caso espanhol, a multiplicação dos manuais de urbanidade desde o século XVIII
38 foi muito expressiva. Dentre os títulos observa um uso relativamente freqüente do qualificativo breve, que remete à mesma idéia de breviário.
7
Schwarcz faz notar quanto aos manuais o emprego de uma linguagem acessível cuja utilização freqüente os transformava em uma espécie de livro
didático quando o tema era a civilidade (1997, p. 12).
8
O professor Dr. Pereira Filho assim se referiu aos escritos populares de educação higiênica do Dr. Totta: “estilo faceto, com leve ironia galhofeira”;
“constantes e continuados desvelos no divulgar os meios de defesa da saúde” (Correio do Povo, Porto Alegre, 18/12/1949).

Educação Unisinos
Bem viver em regras: urbanidade e civilidade em manuais de saúde

seqüencial. Pode ser lido desordena- preensão e reflexão. Na introdução, Não é o discurso científico que
damente, saltando páginas. Cada esboça-se a conversa direta com o está materializado no texto do manu-
excerto encerra um tema, o procedi- leitor, espécie de interlocução onde al, mas, por um processo de
mento ou conselho em si mesmo e abunda o tom imperativo: pensa, re- didatização, um outro discurso que
não possui um título, nem é numera- para, segue, toma juízo, que se so- possui um status diferencial, infor-
do, dispensando um índice. Diferen- mam a uma série de normatizações. mado pelos saberes médicos, ope-
temente, O médico em casa está or- Todo o Breviário está composto por rando com outros instrumentos e
ganizado em 42 temas/conselhos, pequenos tópicos prescritivos: fazer, supondo outro dispositivo (Gvirtz,
intitulados e agrupados, constando não fazer, evitar, ocupar-se consigo, 1997).
em um sumário. aconselhar-se com seu médico. Há Quanto ao Médico em casa, nos
Quanto ao Medicina em pílulas, um empenho do autor em fazer-se capítulos de tamanho variável, o au-
o termo “pílulas” é uma imagem compreender e em exprimir uma ori- tor percorre situações cotidianas,
provocativa; sugere uma certa entação legítima. tanto relativas à saúde quanto aos
condensação – o tamanho diminuto A forma discursiva do Medicina comportamentos asseados e poli-
dos conselhos não é proporcional em pílulas caracteriza-se por parábo- dos, por meio de conselhos minuci-
ao efeito – e estabelece uma clara las ou fábulas, tom jocoso e forma osos e as devidas explicações médi-
associação a um imaginário sobre os anedótica, estilo imperativo: “procu- cas. Embora com textos mais exten-
remédios: pílulas fazem parte de uma ra”, “não ouças!” Além disso, algu- sos e explicativos, por terem sido ini-
terapêutica para cura; conselhos que mas rimas e, sobretudo, formulações cialmente divulgados em jornal, o
como remédios carregam o prescritivas figuram lado a lado a um autor se esforça por estabelecer um
conotativo de prescrição médica. A conjunto de argumentos visando ao vínculo com o leitor. Quer parecer
associação com um ideário religioso convencimento dos leitores e sua amável e, ao mesmo tempo, é incisi-
não parece fortuita. Os discursos “adesão sincera”. Em sua introdução vo na condenação de alguns hábi-
médicos se servem muitas vezes des- o autor procura ser breve, desinteres- tos e costumes. Chega mesmo a ser
se recurso de persuasão. sado, virtuoso. Afirma que não alme- ameaçador, mas faz-se cativante, al-
Direcionados ao público em ge- ja a glória, mas apenas constituir-se mejando o convencimento e a cum-
ral, buscando pela fluidez do texto como “sentinela da saúde”. Para a re- plicidade do leitor.
serem acessíveis e inteligíveis por alização deste ideal de boa vontade, Vejamos mais detalhadamente o
diferentes idades, graus de instru- não bastava que o livro fosse somen- conteúdo dos manuais no que se re-
ção e gênero, os manuais não pos- te lido: era necessário, acima de tudo, fere à urbanidade e à civilidade. No
suem imagens ilustrativas, à exceção que fossem atendidas as regras de Médico em casa há cerca de 14 con-
da imagem de capa do Médico em conduta que ele gostosamente trans- selhos que contemplam o tema da
casa e de uma única gravura de um mitia. Uma preocupação didática ca- urbanidade e, em relação ao Medici-
esqueleto humano no Medicina em racteriza o texto do manual. O Dr. Totta na em pílulas, um conjunto de 28
pílulas. não elabora apenas uma pauta de “pílulas/conselhos” relativos à urba-
Quanto à capa do Médico em prescrições e regras impositivas. Os nidade.
casa, ela traz a imagem de um médi- textos possuem um estilo singular, Quando analisam os comporta-
co com expressão grave, óculos e espécie de gramática discursiva: cada mentos de urbanidade, os textos são
guarda-pó branco, uma farta barba preceito parte da descrição das práti- genéricos, não se voltando a um dos
e poucos cabelos brancos, denotan- cas usuais, aponta os erros ou pro- gêneros exclusivamente. Há temas li-
do sapiência e experiência pela ida- blemas, referindo a ignorância dos gados à terapêutica médica, mas pro-
de avançada. A gestualidade do costumes, seguido da apresentação liferam aqueles voltados às regras de
médico apresenta-o com o dedo in- das recomendações médicas, tradu- boa conduta e urbanidade, tais como
dicador apontado para o leitor, es- zindo saberes científicos que justifi- os abusos à mesa, a higiene do nariz,
pécie de leitmotiv que estaria dizen- quem e endossem o acerto e a urgên- olhos, boca e mãos, o hábito de visi-
do: “Você! Atenção!”. cia das recomendações. Freqüente- tar, o uso do cigarro, a genuflexão e o
Especialmente no Medicina em mente, são acrescidos de alguma li- lenço, os banhos de sol, a procura da
pílulas, assim como as práticas ção moral. Diferindo do Medicina em serra ou mar, a mania de emagrecer, as
sugeridas são estritamente vincula- pílulas, o Médico em casa é mais con- práticas esportivas.
das a procedimentos individuais, sistente e procura atender ao objeti- É marcante nesses conselhos a 39
também a tessitura do texto remete a vo de constituir-se em livro de con- associação íntima entre urbanidade
um processo individualizado de com- sulta doméstica. e higiene, mostrando com isso o as-

volume 10, número 1, janeiro • abril 2006


Maria Stephanou

pecto civilizado da assepsia, ou ain- idéias que ele exprime. Alguns pre- para designar certos estabelecimen-
da, sob um cunho moral, o aspecto ceitos são especialmente elucidati- tos culinários, aquela expressão su-
da virtuosidade e da dedicação ao vos. Referindo“os abusos da mesa”, gestiva: - “Casa de pasto”. Tem de
trabalho meticuloso que o asseio in- o Dr. Totta estabelece um confronto ser.
dividual exige: tarefa diária, constan- entre o comportamento humano e a
te, morosa. Outra associação vincu- animalidade através do ditado popu- O médico trava um diálogo em que
la saúde e urbanidade, mostrando lar “O peixe morre pela boca”, ao que é, ao mesmo tempo, o narrador e o
como as práticas de polidez, adequa- ele afirma: personagem dos pensamentos, es-
ção, sobriedade concorrem à saúde tabelecendo uma relação em que ele
e, por seu viés moral, como os exces- Eu tenho pensado muitas vezes, à também é aquele que cultiva em si os
sos são condenados pela civilidade cabeceira dos doentes, que se o peixe hábitos e os conselhos que propõe.
e o quanto seu controle por cada in- pudesse falar e apresentar a sua esta- Para enfrentar os maus hábitos, que
tística, o homem lhe ficava a dever. abertamente condena, apresenta uma
divíduo concorre à saúde.
Os conselhos estão dirigidos não série de argumentos que mostram a
Com isso, sugere que algumas
só à gente simples, mas também àque- contra-indicação médica a esses
atitudes humanas colocam o homem
les “que se jactam de uma educação modos de proceder e os prejuízos à
em posição inferior ao animal, no as-
esmerada”, mas se esquecem fre- saúde que decorrem dos excessos.
pecto fisiológico e no aspecto mo-
qüentemente de princípios comezi- Entretanto, sua recomendação suge-
ral. Para ele, alguns indivíduos incor-
nhos de boa educação e civilidade, re uma educação pessoal e uma ati-
riam na inversão do princípio racio-
como o hábito de lavar as mãos an- tude moral traduzíveis em boas ma-
nal e, em vez de comerem para viver,
tes das refeições, não fumar nas neiras e elegância.
viviam para comer. Elias (1994) cha-
alcovas, etc. Para o Dr. Totta Cabe assinalar o modo como vão
ma a atenção para o fato de que os
se explicitando as ocupações consi-
médicos inscrevem em seu discurso
[...] desde o mais obscuro trabalha- go, um elaborar a si próprio que en-
um caráter intencionalmente racional,
dor, que leva a maior parte do seu dia volve a temperança e a virtuosa so-
manuseando instrumentos desassea- donde “faz-se assim porque é higiê-
briedade, tanto quanto o asseio e a
dos, até o burocrata por cujas mãos nico”. É o que parece suceder com
atenção a regras de civilidade, de-
passam papéis de várias procedênci- os argumentos apresentados pelo Dr.
marcando mais uma vez uma
as, todos nós, quaisquer que sejam a Totta. Associa os abusos à mesa à
triangulação urbanidade-saúde/higi-
profissão e os hábitos de vida, deve- irracionalidade e, por isso mesmo, à
mos ter sempre as mãos num estado ene-moral. Essas minuciosas opera-
animalidade, buscando provocar re-
de limpeza tão esmerada quanto pos- ções em que se define um conjunto
pulsa no leitor. Tal é a afronta aos
sível. de comportamentos e adequação, por
princípios da saúde e da polidez, que
razões médicas ou morais, foram par-
o autor expressa um conjunto de ca-
Se intercalamos os conselhos de ticularmente significativas no que diz
ricaturas dos excessos à mesa:
um manual com as instruções de ou- respeito à higiene alimentar e o ritual
tro, podemos perceber que as varia- das refeições, compondo no contex-
São as vítimas do garfo, são os glu-
ções não apenas repetem, mas em tões, os esganados, os empanturra-
to dos manuais uma espécie do que
certa medida explicitam o que se de- dos, os que comem com voracidade, hoje poderíamos denominar etique-
seja transmitir. os que limpam com o último bocado ta dos bons costumes. Ampliam-se
A idéia de urbanidade vai sendo de pão a última gota de molho e ainda as recomendações em torno desse
tecida nos fios de um discurso que estalam a língua com gozo e saudade ritual para além da higiene das mãos
dá sentido ao conjunto dos conse- [...]. e da sobriedade, como se pode ob-
lhos do manual; aparece como fruto servar nos excertos abaixo:
de uma boa educação, atenção ao No Medicina em pílulas há uma
referência semelhante, indicando Não te assentes à mesa irritado. Per-
conselho médico, estética corporal e
turbarás a digestão e farás muito mal
asseio, enfim como experiência que condutas próximas à animalidade:
aos que te cercam. A hora da refeição
denota a dignidade de um indivíduo. é sagrada. Até Jesus está presente.
Em outras passagens do Médico [...] e ele, então, abarrotado me disse: Come com calma e com alegria, em
em casa, tais acepções se explicitam - “Eu cá sou assim, doutor. Como fe- benefício da tua saúde e da saúde dos
40 de forma difusa, não tão pontual rozmente! Como como um cavalo”! teus.
como no excerto acima, ainda que E eu fiquei a pensar: foi naturalmente Não guardes no bolso o palito com
por causa de tais viventes que se criou que acabaste de esgaravatar os den-
exemplificando e decompondo as

Educação Unisinos
Bem viver em regras: urbanidade e civilidade em manuais de saúde

tes. Logo mais, quando de novo o uti- nas uma civilidade que transpareça lho “O hábito de visitar doentes”,
lizares, ele estará em piores condi- publicamente uma distinção social; que figura n’O médico em casa, o Dr.
ções que uma lasca de pau de gali- não é apenas a preocupação com Totta recomenda um cuidado minu-
nheiro. uma imagem pública, mas um senti- cioso do costume das visitas.
Não procures limpar a boca na manga do de urbanidade que visa estabele-
do casaco, se quiseres ter limpos o Nascido naturalmente de um senti-
cer regras de convivência social, de-
casaco e a boca. mento de fraternidade, do anseio de
terminar as formas de sociabilidade,
especialmente quando as aglomera- ser benéfico, do desejo de comparti-
Um outro preceito que exprime a lhar o sofrimento alheio por um im-
polidez e a assepsia das práticas e ções urbanas passam a reunir um
pulso de solidariedade, o hábito de
dos corpos é o que trata da higiene grande número de pessoas numa visitar doentes, mesmo na pureza
da boca. Schwarcz (1997) faz notar que profusão de contatos sociais. Este dessas intenções, perdeu o seu con-
alguns conselhos desses manuais aspecto, que poderia ser aproxima- dão de utilidade e de conforto moral
são tão diretos que chegam a ser cons- do de uma idéia de gerenciamento para se transformar numa das mais
das relações sociais, parece marcan- caudalosas fontes de malefícios. Ra-
trangedores. É o que sucede com o
te nas mudanças que a civilidade vai ras são as visitas de proveito real. Na
Médico em csa, em que a mensagem maior parte dos casos, ou elas repre-
inicial diz respeito aos hábitos: sofrendo, transitando de um momen-
sentam simples ato de convenção so-
to em que ela delimita, por meio de cial fácil de executar por outro meio,
Descura-se, em geral, e principalmen- uma estética da geografia social, uma ou são movidas por um reles instinto
te com relação às crianças, da higiene ênfase que reside na visibilidade de bisbilhotice.
da boca. Não se pode cometer falta pública fundada na higiene, a um
mais grave. [...] a boca representa momento mais voltado à urbanida- Dentre as boas normas de convi-
papel de capital importância na nos-
de: aos comportamentos, à cortesia, vialidade social figuravam ainda os
sa vida social, porque ela é o órgão da
palavra. à amabilidade, ao embaraço. Por isso, cuidados com a higiene da casa, par-
discursos como os de um manual de te de um ritual cada vez mais atento
Se o hábito é descuidar-se da hi- urbanidade são expressivos do que aos pormenores e a uma racionalida-
giene da boca, o problema apontado Foucault indica a propósito da de dos procedimentos. Repetiam-se
é seguido de imediato por uma ex- governabilidade: alguém está gover- os benefícios à saúde e a manifesta-
planação médico-científica, não sem nando ensinando a outros como go- ção de asseio.
antes lembrar que por amor de nós vernar-se (Stephanou, 1998).
Um conjunto de conselhos bus- Não fumes à noite na alcova. Se não
mesmos, ou seja, da dignidade, e por
achares na casa outro lugar que te agra-
amor dos outros, ou seja, da convi- ca estabelecer salutares regras de
de, vai para o quintal ou para cima do
vialidade agradável, exige-se que se convivência social. São conselhos telhado. No telhado ficarias mais à
conserve a cavidade bucal num as- que passam por pequenos gestos, feição: é onde desembocam as chami-
seio que não será jamais excessivo. tais como: nés. Assim, não viciarás o ambiente
com essa fumaceira nauseabunda e
Já, sem falar na impressão desagradá- Não tussas, nem espirres na cara dos com o cheiro asqueroso das “pontas”
vel que dão as bocas desasseadas; já outros. Os outros têm amor à saúde e dos teus cigarros. Não prejudicarás a
sem referir os embaraços de dicção horror a tais chuvisqueiros. Além dis- saúde dos que dormem no mesmo
que produzem os dentes cariados, so, deves imaginar (embora te custe aposento e que precisam respirar,
entravando, pelas suas arestas, o muito este esforço de imaginação) que durante o sono, ar mais puro. Princi-
movimento fácil da língua para a mo- os outros sejam mais asseados. palmente os teus filhos mais
dulação da voz na expressão dos nos- pequeninos.
sos sentimentos; já deixando de par- Há uma preocupação com os con- Não semeies o chão da tua casa com
te, todo o malefício, nas relações so- as pontas dos teus cigarros. Cada uma
tágios que é marcante nesse momen-
ciais, do hálito que vem da putrefa- dessas pontas, além de manchar o
to, como de resto nas primeiras dé-
ção dos alimentos, na cavidade dos assoalho, constitui um foco de exala-
dentes estragados, basta apenas, para cadas do século. Mas há também ção desagradável. Arranja um cinzei-
impor um asseio irrepreensível da uma progressiva delimitação do que ro (que pode ser até um caco de telha)
boca, as moléstias que se originam ai. consistia o cuidado em preservar as ou atira-as pela janela. É simples e
individualidades e, por extensão, muito mais asseado.
Parece significativo explorar, ain- essa atenção à intimidade e ao que é 41
da, que, a partir de um determinado do âmbito do privado. No mesmo re- Finalmente, dentre muitos outros
momento, o que se coloca não é ape- gistro dessa intimidade, no conse- aspectos que poderiam ser explora-

volume 10, número 1, janeiro • abril 2006


Maria Stephanou

dos, tão ricos se apresentam os ma- excessos de todo tipo. Barrán (1995) lho “A mania de emagrecer” ocupa
nuais e leituras que podem ser fei- é especialmente insistente em mos- cinco páginas. É muito expressivo,
tas, penso que ainda é oportuno um trar como o autodomínio vai se voltando-se às mulheres seduzidas
exame daqueles conselhos que se erigindo como conduta virtuosa e pelas novidades da vida cosmopoli-
dirigem aos cuidados a observar e a saudável, e como esses elementos ta e os imperativos da moda. O médi-
dispensar a si mesmo, como modo passam a coincidir. Assim, o Dr. Totta co tece dura crítica não só à “mania”
de constituir-se asseado, polido, ci- aconselhava: de emagrecer, como também, em par-
vilizado, em suma, saudável. ticular, a todo um conjunto de práti-
A higiene do corpo tinha proemi- Comer devagar, comer com sobrie- cas femininas de produção de si, a
nência no labor a dedicar a si próprio dade e mastigar bem – aí estão três que o autor pejorativamente chama
cotidianamente. É marcante em alguns chaves de ouro das que abrem as de modismo e que dá a entender
portas do palácio da longevidade
conselhos a preocupação com os como pouco racionais e quiçá tam-
(1939b, p. 16).
embaraços que o desasseio causava bém ancoradas na ignorância. Para
nas relações sociais ou com uma apa- ele, o primeiro problema é que as
Os conselhos visavam, ainda, à
rência que se produzia para que fosse mulheres mal compreendem o que é
educação da vontade e ao cultivo da
reconhecida pelo outro. Outros con- a beleza. O segundo é que não res-
perseverança, a que o autor alude
selhos fazem menção a um descon- peitam a natureza do corpo e suas
como uma forma “saudável” e não
forto pessoal, um incomodar-se con- especificidades por desconhecê-las,
mórbida ou deprimida de encarar a
sigo mesmo quando estando em des- e o terceiro é que ignoram, por ex-
vida. O cuidado consigo mesmo en-
cuido com a higiene, o que deveria tensão, as regras de saúde e de bem
volvia, então, aquelas práticas indi-
conduzir a uma escrupulosidade no viver.
viduais que remetem à meditação e a
asseio de si próprio, como refere o Os manuais sobre os quais me
uma experiência existencial:
conselho sobre a higiene dos pés. detive foram objeto de significativa
Não estafes o teu cérebro a pensar circulação e difusão, sendo manifes-
Lavar todos os dias os pés. Podes ser melancolicamente no que podias ter ta a preocupação do Dr. Mário Totta,
vítima de um acidente na rua e, na feito e não fizeste. Exalta-te com a seu autor, em atingir diferentes gru-
intenção do socorro, haverá, talvez, chama de um ideal que te comprome- pos sociais. Embora descuidados
necessidade de te descalçarem. Tira- tes firmemente a realizar. (Totta, pelas investigações no âmbito da
rão primeiro um dos teus sapatos. E 1939b, p. 29).
depois [...] não sobrará coragem para História da Educação9, constituíram-
As imprudências que se cometem con- se em meios educativos por excelên-
tirarem o outro pé. tra a saúde são obras de tentação dia-
Não te preocupes apenas com o teu cia, voltados especialmente à popu-
bólica. São cascas de banana para pre-
coração, com os teus pulmões, com os
judicar o homem (que é uma criação
lação das cidades e visando a uma
teus rins... Cuida, também, com zelo educação sanitária para além das es-
de Deus) que o Cão Tinhoso espalha
igual, da tua pele. Mesmo para que colas. Mais do que um conteúdo
no caminho da nossa vida. A escorre-
não te chamem de casca grossa. A pele instrucional, os manuais se colocam
gadela é certa e com ela o tombo. Às
desempenha, no seu labor silencioso,
vezes o tombo é leve e os seus efeitos como dispositivo privilegiado no
um papel de monta na defesa do orga-
são facilmente curáveis com panos que se refere à produção de novas
nismo; as suas funções são múltiplas
quentes. Em outras vezes, porém, a subjetividades, identificadas com as
e da mais alta relevância na manuten-
queda determina a fratura da base do atenções a dispensar a si mesmo,
ção da saúde. Não é ela, em verdade, o
crânio e, então, adeus, vida! Quando
teu melhor manto de proteção? produzir-se como sujeito de uma hi-
o Diabo puser diante dos teus pés a
Com o mesmo interesse com que apa- giene, uma educação e uma conduta
casca de banana desvia o passo, repe-
ras as unhas das mãos, apara tam- próprias à urbanidade e, afinal, “ci-
le a tentação. Acautela-te contra os
bém, periodicamente, as dos pés. É vilizadas”.
ardis do Tinhoso (Totta, 1939b, p.
hábito benéfico: nos sulcos sub-
51-52). Os conteúdos das aprendizagens
ungueais juntam-se sujeiras que, sem
contar com outros malefícios que ori- propostas pelos manuais dão conta
ginam, agridem a sensibilidade das Ainda quanto às atenções para de um processo de normatização dos
narinas. consigo, alguns conselhos, cuja pequenos detalhes da vida individu-
conotação moral é evidente, são di- al, mas também das práticas sociais
Outras recomendações propu- retamente dirigidos ao gênero femi- cotidianas e triviais, com desdobra-
42 nham-se a ensinar o controle dos nino. N’O médico em casa, o conse- mentos expressivos ao que podería-

9
Entre os poucos trabalhos em História da Educação que se ocupam de manuais, ressalto o excelente trabalho de Guereña (1997).

Educação Unisinos

05 ART 03_MStephanou[rev].pmd 42 29/9/2006, 17:43


Bem viver em regras: urbanidade e civilidade em manuais de saúde

mos considerar os grandes detalhes, saudáveis, adequadas e legítimas em Interrogando como sucedeu que
como sugere Scwarcz (1997). Ainda que a medicina se empenhou nesse manuais de saúde viessem a tratar
em relação aos manuais, a autora momento. O Dr. Totta dá forma e de temas que não se restringem a
pondera que materialidade a esse intento através primeiros socorros, terapêutica das
dos manuais. De maneira inusitada, doenças ou recomendações higiêni-
importa perceber como a ruptura en- os manuais estão a contemplar tanto cas, parece importante resgatar o fato
tre a demonstração e a contenção de a saúde quanto a educação, desígni- de que as transformações que afe-
sentimentos foi sendo absorvida de os máximos da medicina social da épo- tam os costumes e as condutas de
modo crescente, até tornar-se um há-
ca: conselhos terapêuticos e urbanidade não podem ser circuns-
bito compulsivo e internalizado.
profiláticos, normas de bem viver, cui- critas tão-somente, ao longo da His-
dados de si para consigo mesmo. tória, apenas no registro da civilida-
É preciso estabelecer restrições a
É preciso considerar, como assi- de. Também nos domínios da higie-
um tom categórico quanto à interna-
nala Revel (1991), que os deslocamen- ne e da intimidade corporal produzi-
lização dos hábitos recomendados
tos que se operaram do século XVI ram-se mudanças significativas que
pelos manuais. A procura e a
ao XIX e que parecem extensivos às circularam, em certo sentido, da Me-
receptividade que tiveram estão li-
primeiras décadas do século XX, pro- dicina às escolas, da Medicina à
gadas também a uma expectativa con-
duziram uma complexa transformação sociedade como um todo, oportuni-
creta dos indivíduos de um determi-
das sensibilidades e das práticas. zando-se novos modos de socializa-
nado tempo, e nessa medida vieram
Se retomamos as questões propos- ção dos corpos e de suas práticas,
a responder a anseios e desejos que
tas por Chartier (1992), podemos pen- reinscrevendo novos sentidos à ci-
mesmo parecendo fugazes e
sar nos usos diferenciados e opostos vilidade (cf. Revel, 1991).
efêmeros, como atualizar-se, moder-
dos mesmos manuais e das mesmas Os manuais de saúde e higiene
nizar-se, agir com refinamento e ade-
idéias ou, em outras palavras, pensar que foram analisados, em sua fun-
quação, em meio à velocidade das
nos processos de apropriação que ção de sistematizadores e
mudanças da cidade, estabeleceram
supõem variações nas práticas, ou disseminadores de um código soci-
o exercício efetivo de sua aceitação
seja, disciplina e invenção. Teriam al, ou de normas básicas quanto a
e circulação, do autor aos leitores e
sido os conselhos voltados à família valores, atitudes e condutas, enun-
dos leitores em relação ao autor.
e à casa, mais suscetíveis de ciam a idéia de urbanidade como
Note-se que muitos conselhos dos
(re)invenção, ou de transgressão? Ou modo de submeter as práticas indi-
manuais foram sendo paulatinamen-
nisso, precisamente, a ação médico- viduais e coletivas. Uma operação de
te publicados em jornal de grande cir-
pedagógica dos manuais teria sido refinamento para que fosse extinto o
culação na época e somente depois
mais intensa? Ou ainda, qual a liber- caráter primário, tosco, grosseiro, ani-
reunidos sob a forma de livro. Estaria
dade “gazeteira” das práticas de lei- mal, implicando que cada um cultivas-
o autor, através das colunas do jor-
nal, respondendo a consultas e ori- tura desses manuais (Certeau, 1994)? se em si mesmo, reconhecesse em si e
entações solicitadas? O tom Quais os modos distintos, silencio- nos outros, as normas sociais admiti-
anedótico de alguns conselhos foi um sos, dispersos, quase invisíveis, de das como sendo saudáveis e de “boa
modo de atenuar ou a severidade da realização dos conselhos proclama- educação” (Guereña, 1997).
crítica que formulavam ou o tema dos pelo senhor doutor Mario Totta?
constrangedor de que se ocupavam. A circulação dos manuais e de Referências
Ainda assim, se alguns conselhos seus conselhos, anedotas, casos
se fizeram mais constantes nas práti- exemplares, não indicam, em absolu- BARRÁN, J.P. 1994. El disciplinamiento
cas sociais e individuais, outros pa- to, tudo o que eles significaram para (1860-1920): historia de la
recem ter caído em desuso, indicando seus leitores; é necessário analisar sensibilidad en el Uruguay. Tomo II.
aquilo que foi aceito e adotado na vida uma espécie de manipulação que se Montevidéu, Ediciones de la Banda
cotidiana e aquilo que foi rechaçado opera pelos sujeitos inscritos nas Oriental, 303 p.
pelo exercício de outras práticas, pela relações com esses discursos. As BARRÁN, J.P. 1995. Medicina y sociedad
en el Uruguay de novecientos: la
disputa com outros discursos ações que se exercem mutuamente.
invención del cuerpo. Tomo 3.
prescritivos, tornando-se, enfim, prá- Ou, mais explicitamente, o exercício
Montevideo, Ediciones de la Banda
ticas e conselhos descontínuos ao do poder onde diversas condutas,
longo do tempo. Acima de tudo, es- diversas reações ou modos de com-
Oriental, 342 p.
CERTEAU, M. de. 1994. A invenção do
43
ses manuais revelam a mesma vonta- portamento podem acontecer cotidiano: 1. artes de fazer. Petrópolis,
de de conduzir e ensinar as maneiras (Foucault, 1995). Vozes, 351 p.

volume 10, número 1, janeiro • abril 2006


Maria Stephanou

CHARTIER, R. 1992. Textos, impressão, FOUCAULT, M. 1990b.Tecnologías del yo Companhia das Letras, p. 169-209.
leituras. In: L. HUNT (org.), A nova y otros textos afines. Barcelona, Ediciones SCHWARCZ, L.M. 1997. Introdução. In:
história cultural. São Paulo, Martins Paidós Ibérica, I.C.E. de la Universidad J.L. ROQUETTE, Código do Bom-
Fontes, p. 211-238. Autónoma de Barcelona, 150 p. Tom, ou, Regras de civilidade e de bem
CORBIN, A. 1991. O segredo do indiví- FOUCAULT, M. 1993. História da sexu- viver no século XIX. São Paulo, Com-
duo. In: M. PERROT (dir.), História alidade I: a vontade de saber. 11ª ed., panhia das Letras, p. 7-33.
da vida privada, 4: da Revolução Rio de Janeiro, Graal, 377 p. SEPTIÉN, V.T. 1998. La urbanidad como
Francesa à Primeira Guerra. São Pau- FOUCAULT, M. 1995. A arqueologia do un mecanismo de gobernabilidad.
lo, Cia. das Letras, p. 419-501. saber. 4ª ed., Rio de Janeiro, Forense Universidad Iberoamericana, México.
ELIAS, N. 1994. O processo civilizador: Universitária, 239 p. In: IV Congresso Iberoamericano de
vol. 1: Uma história dos costumes. 2ª GUEREÑA, J.-L. 1997. Los manuales de Historia de la Educación Latinoameri-
ed., Rio de Janeiro, Jorge Zahar. urbanidad. In: A.E. BENITO (dir.), His- cana, Santiago, Chile, 1998. (mimeo)
EIZIRIK, M.F. 1994. Michel Foucault: tória ilustrada del libro escolar en STEPHANOU, M. 1998. Práticas
sobre a passagem do poder/saber à España: del Antiguo Régimen a la formativas da medicina: manuais de
genealogia da ética. Porto Alegre, Segunda República. Madrid, saúde e a formação para a urbanidade.
PPGEdu-UFRGS, 18 nov. 1994. (aula Fundación Germán Sánchez Ruipérez, Véritas, 43:97-102.
proferida/mimeo). p. 467-499. (Biblioteca del Libro, 68). TOTTA, M. 1939a. O médico em casa.
EIZIRIK, M.F. 1997. Ética e cuidado de GVIRTZ, S. 1997. Del curriculum Porto Alegre, [s. n.t.], 158 p.
si: movimentos da subjetividade. Edu- prescripto al curriculum enseñado. TOTTA, M. 1939b. Breviário da saúde:
cação, Subjetividade e Poder, Buenos Aires, Aique Editor, 128 p. medicina em pílulas. Porto Alegre,
4(4):36-43. REVEL, J. 1991. Os usos da civilidade. In: Globo, 55 p.
FOUCAULT, M. 1990a. História da sexu- P. ARIÈS e G. DUBY (dirs.), História VIGARELLO, G. 1988. O limpo e o sujo: a
alidade II: o uso dos prazeres. 6ª ed., da vida privada: vol. 3: Da Renascen- higiene do corpo desde a Idade Média.
Rio de Janeiro, Graal, 232 p. ça ao Século das Luzes. São Paulo, Lisboa, Editorial Fragmentos, 209 p.

Maria Stephanou
UFRGS, RS, Brasil

44

Educação Unisinos

05 ART 03_MStephanou[rev].pmd 44 29/9/2006, 17:43

Você também pode gostar