Você está na página 1de 510

Jáder Ferreira Leite

Magda Dimenstein
(Organizadores)

Natal, 2013
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

Reitora Editor
Ângela Maria Paiva Cruz Helton Rubiano de Macedo

Vice-Reitora Revisão
Maria de Fátima Freire de Melo Ximenes Paula Frassinetti dos Santos

Diretora da EDUFRN Editoração eletrônica


Margarida Maria Dias de Oliveira Fabrício Ribeiro
Capa
Vice-diretor da EDUFRN
Marcela Dimenstein
Enoque Paulino de Albuquerque
Supervisão editorial
Conselho Editoral Alva Medeiros da Costa
Cipriano Maia de Vasconcelos (Presidente)
Supervisão gráfica
Ana Luiza Medeiros Francisco Guilherme de Santana
Humberto Hermenegildo de Araújo
Pré-impressão
John Andrew Fossa Jimmy Free
Herculano Ricardo Campos
Mônica Maria Fernandes Oliveira
Tânia Cristina Meira Garcia
Técia Maria de Oliveira Maranhão
Virgínia Maria Dantas de Araújo
Willian Eufrásio Nunes Pereira

Divisão de Serviços Técnicos


Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede

Estudos linguísticos diferenciados: da linguística ao ensino de língua materna /


organização Maria Assunção Silva Medeiros, Célia Maria de Medeiros. – Natal,
RN: EDUFRN, 2013.
504 p.

ISBN: 978-85-425-0052-3

1. Linguística. 2. Ensino. 3. Língua materna. I. Medeiros, Célia Maria de.


II. Medeiros, Maria Assunção Silva.

CDD 81,1
RN/UF/BCZM 2013/16 CDU 410

Todos os direitos desta edição reservados à EDUFRN – Editora da UFRN


Av. Senador Salgado Filho, 3000 | Campus Universitário
Lagoa Nova | 59.078-970 | Natal/RN | Brasil
e-mail: edufrn@editora.ufrn.br | www.editora.ufrn.br
Telefone: 84 3215-3236 | Fax: 84 3215-3206
Uma notícia está chegando lá do Maranhão.
Não deu no rádio, no jornal ou na televisão.
Veio no vento que soprava lá no litoral
de Fortaleza, de Recife e de Natal.
A boa nova foi ouvida em Belém, Manaus,
João Pessoa, Teresina e Aracaju
e lá do norte foi descendo pro Brasil Central
Chegou em Minas, já bateu bem lá no sul!

Aqui vive um povo que merece mais respeito!


Sabe, belo é o povo como é belo todo amor.
Aqui vive um povo que é mar e que é rio,
E seu destino é um dia se juntar.
O canto mais belo será sempre mais sincero.
Sabe, tudo quanto é belo será sempre de espantar.
Aqui vive um povo que cultiva a qualidade,
ser mais sábio que quem o quer governar!

A novidade é que o Brasil não é só litoral!


É muito mais, é muito mais que qualquer zona sul.
Tem gente boa espalhada por esse Brasil,
que vai fazer desse lugar um bom país!
Uma notícia está chegando lá do interior.
Não deu no rádio, no jornal ou na televisão.
Ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil,
não vai fazer desse lugar um bom país!
(Notícias Do Brasil – Os pássaros trazem)
Milton Nascimento

Desta gente que eu vivo perto,


Sou sertanejo da gema
O sertão é um livro aberto
Onde lemos o poema da mais rica inspiração
Vivo dentro do sertão
E o sertão dentro de mim,
Adoro as suas belezas
Que valem mais que as riquezas dos reinados de Aladin.
(O retrato do Sertão)
Patativa do Assaré
Agradecimentos

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico


(CNPq)
Ao Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA/UFRN)
Ao Programa de Pós-graduação em Psicologia (PPGPSI/UFRN)
Sumário

Prefácio ................................................................................................ 13

Apresentação ....................................................................................... 19

01 A formação em Psicologia para a atuação


em contextos rurais ..................................................................... 27
Jáder Ferreira Leite, João Paulo Sales Macedo,
Magda Dimenstein e Cândida Dantas

02 A categoria juventude em contextos rurais:


o dilema da migração .................................................................. 57
Otacílio de Oliveira Jr. e Marco Aurélio Máximo Prado

03 Juventude no semiárido nordestino:


caminhos e descaminhos da emigração..................................... 89
Karla Patrícia Martins Ferreira e Zulmira Áurea Cruz Bonfim

04 Jovens de ambiente rural e urbano e sua relação


com projetos de vida ................................................................ 117
Daniela Dias Furlani e Zulmira Áurea Cruz Bonfim
05 Modos de vida cigana e toxicodependência: desafios e
perspetivas no cuidado em saúde mental em Portugal ......... 143
Joaquim A. Costa Borges

06 Psicologia Social e Ambiental em Unidades de


Conservação do Amazonas ...................................................... 171
Marcelo Gustavo Aguilar Calegare e Maria Inês Gasparetto Higuchi

07 Massacre no acampamento Terra Prometida –


Felisburgo/MG: o papel da Psicologia frente
ao trauma psicossocial ............................................................. 201
Fabiana de Andrade Campos e Bader Burihan Sawaia

08 Intervención psicosocial junto a poblaciones desplazadas


por el conflicto armado en Colombia ..................................... 223
Omar Alejandro Bravo

09 Construíndo barragens e masculinidades: pesquisa


em Psicologia Social em um canteiro de obras de
uma hidroelétrica na fronteira do RS-SC ................................ 245
Priscila Pavan Detoni e Henrique Caetano Nardi

10 Mulheres e psicotrópicos: subjetivação e resistência em


trabalhadoras rurais assentadas .............................................. 273
Nathália Nunes e Araújo, Rebeca da Rocha Siqueira Nepomuceno,
Rafael Figueiró, Leonardo Mello

11 A seca e sua relação com o bem-estar das famílias rurais


do noroeste do Rio Grande do Sul........................................... 303
Eveline Favero, Jorge Castellá Sarriera,
Melina Carvalho Trindade, Francielli Galli
12 Agricultura Familiar Orgânica: em busca de qualidade
de vida no âmbito do desenvolvimento rural
mais sustentável ....................................................................... 333
Yldry Souza Ramos Queiroz Pessoa e João Carlos Alchieri

13 Políticas públicas quilombolas e produções identitárias:


percursos históricos e conflitos políticos................................ 357
Saulo Luders Fernandes e Julia Minossi Munhoz

14 Povos indígenas e o espaço acadêmico: uma articulação


para se pensar a produção do conhecimento.......................... 385
Zuleika Köhler Gonzales e Neuza Maria de Fátima Guareschi

15 A Psicologia Comunitária no contexto ameríndio:


a educação mitológica Guarani na indissociabilidade
ensino, pesquisa e extensão ..................................................... 407
Ana Luisa Teixeira de Menezes

16 Uma experiência de Psicologia Social Comunitária


na comunidade de Barra de Mamanguape ............................. 425
Thelma Maria Grisi Velôso, Flávia Palmeira de Oliveira,
Iara Cristine Rodrigues Leal Lima, Jacqueline Ramos Loureiro Marinho,
Lucélia de Almeida Andrade

17 Psicologia Comunitária e comunidades rurais do Ceará:


caminhos, práticas e vivências em extensão universitária ..... 453
Verônica Morais Ximenes e James Ferreira Moura Júnior

18 O trabalho escravo contemporâneo a partir de uma análise


foucaultiana de documentos da OIT....................................... 477
Geise do Socorro Lima Gomes e Flávia Cristina Silveira Lemos
Prefácio

N o final de 1974 os moradores da fazenda Mucatu, no municí-


pio de Alhandra, na Zona da Mata, sul da Paraíba, decidiram
não aceitar a expulsão da terra, onde moravam e plantavam há várias
gerações. O novo proprietário da fazenda queria a terra desocu-
pada para plantar cana-de-açúcar com incentivos do governo fede-
ral, através do PROALCOOL. Dez anos depois do massacre às Ligas
Camponesas perpetrado pelo golpe militar de 1964, na Paraíba era
a primeira vez que agricultores se organizavam para enfrentar uma
imposição que os levariam às condições precárias de vida nas perife-
rias das cidades. Resistiram à pressão violenta do novo proprietário
da fazenda que usava pistoleiros, a polícia militar e a polícia federal
para pressionar as famílias de agricultores que moravam nessa terra.
A fazenda Mucatu acabou sendo desapropriada pelo governo federal
e seus moradores permaneceram na terra, onde estão até hoje.
Em todo esse processo as pressões sobre os agricultores
foram muito fortes, vindas não só do proprietário da terra, mas
também de várias instâncias do Estado. Eles contavam apenas
com o apoio de setores da igreja católica local. Em um momento
muito tenso, onde os agricultores estavam em dúvida sobre como
14 | Psicologia e contextos rurais

continuar resistindo à expulsão da terra, um deles, o Sr. Pedro


Vieira, disse: “Nós precisamos procurar saída onde não tem porta.
Se formos procurar saída onde tem porta feita vamos continuar
cativos”.
Procurar saída onde não tem porta. Essa é uma frase emble-
mática, pois ela propõe que se vá além do que já está dado, esta-
belecido. Isso é muito mais do que a simples reprodução física e
econômica das pessoas, é muito mais do que simplesmente sobre-
viver. É ousar procurar por novos sentidos à vida individual e cole-
tiva. É tentar exercitar e propor novas possibilidades. Isso ocorre no
interior de uma luta por terra. Talvez, nada surpreendente.
A frase do agricultor Pedro Vieira, e o desafio que ela con-
tém, talvez dialogue com as formulações clássicas e imemoriais de
Terra Mãe, Terra Sagrada, Terra Santa, Terra de Origem. Afinal,
as questões humanas em torno da terra não se resumem apenas a
sua dimensão estritamente econômica ou a um aspecto isolado da
História, mas se referem a modos de pensar e tocar a vida, no que
isso tem de concreto e de imaginário, de individual e de coletivo, de
escravidão e de liberdade, de passado e de futuro, de reprodução e
de criação, de dependência e de autonomia.
As questões da terra marcam a história humana. As opções,
as experiências, os dilemas, os equívocos humanos sobre formas
de viver sempre tiverem e continuam tendo as questões da terra
como um de seus elementos de referência. Minimizar ou desqua-
lificar as questões humanas em torno da terra, principalmente dos
que nela vivem e trabalham mais diretamente, é um equívoco, pois
empobrece a perspectiva das procuras por caminhos mais largos,
mais oxigenados e mais integrados entre a ousadia da criatividade
humana e as possibilidades que a Natureza disponibiliza. Qualquer
violência ou desprezo nessa relação penaliza os humanos, incre-
mentando a fragilidade de nossas vidas, potencializando nossas
Psicologia e contextos rurais | 15

mediocridades e equívocos, exacerbando os mais variados tipos de


violência dos humanos entre si e contra a Natureza.
Negligenciar a importância da questão da terra pode signifi-
car uma adesão acrítica à obsessão moderna pelo mundo urbano e
a transformação da terra e da natureza em mercadoria a serviço dos
interesses de lucro imediato do grande capital, tidos como formas
inexoráveis de viver e produzir.
No Brasil, em oposição a essa lógica, tem se apresentado os
movimentos que lutam por uma democratização do acesso à terra
e às condições adequadas para fazê-la produzir. Seus atores princi-
pais têm sido os agricultores com pouca ou sem terra e grupos de
famílias pobres vindos das periferias urbanas.
Esses movimentos, assim como as lutas por demarcação das
terras indígenas e das comunidades quilombolas ressaltam que é
impossível uma democracia consistente em um país como o Brasil,
onde a propriedade da terra está concentrada numa minúscula
parcela das elites econômicas. Vale lembrar que democracia é algo
que também vai muito mais além das racionalidades das normas
sociais e de sua institucionalização. Democracia se refere também
ao exercício concreto de novas possibilidades de formas de viver e
produzir, na busca de superação dos limites impostos pelas formas
já experimentadas. Democracia é também a possibilidade de novas
tentativas humanas de buscar relações mais harmoniosas e gratifi-
cantes das pessoas entre si e delas com a Natureza.
Nessa perspectiva, esses movimentos têm buscado viabili-
zar uma agricultura que tem sido chamada de agricultura familiar
ou agricultura camponesa, de tal forma que a propriedade ou o uso
da terra, assim como o trabalho produtivo, estejam vinculados à
família. A agricultura familiar contém, nela mesma, uma diversi-
dade de situações e condições de produção, de maneira que numa
mesma comunidade é possível encontrar formas de trabalho fami-
liar bastante diferenciadas entre si.
16 | Psicologia e contextos rurais

Essa diversidade de situações permite à agricultura fami-


liar ter características importantes: do ponto de vista econômico,
segundo vários estudos já realizados, a agricultura familiar tem
uma produtividade, por área plantada, e uma absorção de mão de
obra maior do que nos grandes estabelecimentos rurais; as peque-
nas e médias propriedades rurais são responsáveis, na maior parte,
pela produção dos mais variados produtos agrícolas, em particular
dos produtos agropecuários da cesta básica da população brasi-
leira. A diversidade de iniciativas produtivas da agricultura fami-
liar e a extensão pequena da propriedade, entre outros aspectos,
permitem um manejo mais cuidadoso do meio ambiente. Além
disso, o incentivo à agricultura familiar permite um resgate da cul-
tura e do saber camponês, desqualificados pelos mecanismos de
submissão e dominação a que essa população tem sido submetida.
Por consequência, esse incentivo produz a possibilidade das pes-
soas reorientarem o próprio sentido que dão à vida, percebendo-se,
então, como sujeitos que podem começar a se responsabilizar por
suas escolhas e decisões.
Ao se falar em agricultura familiar se está falando do grupo
familiar como um todo (homens e mulheres; pais e filhos; crian-
ças, jovens, adultos e velhos), o que remete a todas as discussões
e embates sobre as relações de gênero e de gerações que se dão na
sociedade como um todo e que na agricultura familiar tem suas
singularidades.
A complexidade e heterogeneidade da agricultura familiar
se revelam, principalmente, no cotidiano de sua existência, atra-
vés das relações sociais vividas no âmbito das comunidades locais,
em que os fatores que aproximam e diferenciam as pessoas entre
si indicam a existência de avaliações e expectativas distintas sobre
os limites e possibilidades da agricultura familiar como forma de
organizar a vida produtiva e social, a partir de um pedaço de terra
disponível para viver.
Psicologia e contextos rurais | 17

O Brasil foi produzido, enquanto país, como decorrência de


uma forte e violenta luta pela terra, desde o início. Nosso país foi
e tem sido produzido pela desigualdade social, em que a manu-
tenção de condições precárias de vida, para uma grande parte da
população, tem sido condição para a manutenção dos mais varia-
dos tipos de privilégios de um reduzido grupo social, que detém a
propriedade da terra, da riqueza produzida, do conhecimento, da
informação e das decisões políticas. Ainda hoje, a alta concentra-
ção da propriedade de terras no Brasil, em mãos de um pequeno
grupo social, uma das maiores taxas de concentração de terras do
mundo, revela e confirma essa situação.
Durante toda a história de dominação, submissão e des-
qualificação dos setores populares da sociedade brasileira sempre
existiram a resistência e a luta de grupos organizados desses seto-
res contra a continuidade dessa história. No campo, essa luta teve
início com a resistência indígena, continuou com a luta dos negros
contra a escravidão e depois com as lutas de parte da população
rural por condições mínimas de sobrevivência e dignidade. Nessas
histórias de dominação e resistência, as questões da propriedade,
posse e uso da terra sempre estiveram presentes, até hoje.
Por isso mesmo, a questão da terra, também no Brasil, marca
direta ou indiretamente nossa história social, política, econômica,
cultural e, portanto, marca como nossas subjetividades têm sido
produzidas.
Em um mundo onde o que vale é a economia em larga escala
e a grande maioria da população é transformada em uma “galera”
de consumidores e do popular se aproveita apenas aquilo que pode
ser transformado em mercadoria, propor que setores dessa popu-
lação se tornem protagonistas de suas próprias histórias parece ser
mesmo uma tentativa de procurar saída onde não tem porta. Uma
tentativa de exercitar outras possibilidades de viver coletivamente,
18 | Psicologia e contextos rurais

de produzir e de se relacionar com a Natureza. É afirmar que outro


mundo é necessário. Se é possível, vamos ver na prática.
A luta pela democratização de acesso à terra e às condições
para fazê-la produzir objetiva fecundar a terra e a vida de todos.
Não é essa a destinação ética mais forte da Psicologia: contribuir
para a criação de processos de fecundação da vida para criar novas
vidas? É algo assim que este livro pretende: fecundar o debate sobre
a relação entre Psicologia e as questões da terra.
Genaro Ieno
João Pessoa/PB, janeiro de 2013.
Apresentação

D esde que iniciamos nossas investigações sobre os movi-


mentos sociais no campo, notadamente o Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), sob a perspectiva da
Psicologia Social, temos nos deparado com uma enorme lacuna de
participação da Psicologia nessas discussões, especialmente no que
diz respeito às ruralidades, aos modos de subjetivação, aos proces-
sos psicossociais e identitários no âmbito dos contextos rurais.
Enquanto algumas disciplinas das ciências sociais, a exem-
plo da Sociologia e Antropologia, vêm contribuindo significati-
vamente para pensar processos sociais e culturais no meio rural
brasileiro, a Psicologia ainda não efetivou sua entrada nesse debate.
Sua tradição de ciência e profissão eminentemente urbana gerou
um vazio de reflexões e de aproximações sobre importantes agentes
da sociedade brasileira que produzem sua existência em relação –
seja de integração, de conflito e contradições, de aproximações e
paradoxos – com a terra e com o campo brasileiro.
Desse modo, o presente livro, inédito na área, vem contri-
buir para gerar reflexões, compartilhar pesquisas e experiências
profissionais desenvolvidas com diversos atores sociais que vivem
20 | Psicologia e contextos rurais

e trabalham no campo, que têm uma importante relação com a


terra tanto em termos da elaboração de sua história, de construção
de laços identitários e de produção de suas subjetividades quanto
de engajamento em lutas sociais que visam alterar o jogo de forças
políticas que, historicamente, excluiu grande parcela da população
do campo do direito de viver de modo digno, de fazer da terra e do
campo seu lugar de vida, de trabalho e de exercício de cidadania.
Os capítulos do livro contemplam propostas advindas de
várias regiões do país e abordam inúmeras problemáticas que a
questão da terra e das ruralidades suscita nos cenários tanto regio-
nais quanto nacional. Como são diversas as formas de inserção
social dos agentes que vivem no meio rural brasileiro, são também
os temas aqui discorridos. Os seus autores, alinhados a referen-
ciais teóricos variados, estão vinculados a instituições de ensino de
nível superior de várias regiões do país e a importantes programas
nacionais de pós-graduação de Psicologia (níveis mestrado e dou-
torado), sendo que considerável parte do material resulta de inves-
tigações desenvolvidas nesses programas (teses e dissertações),
como também de projetos de extensão universitária e de exercício
profissional. Contribuem, ainda, dois autores internacionais que
nos apresentam particularidades dessas questões, a partir de expe-
riências oriundas da Colômbia e Portugal.
O primeiro capítulo, de autoria de João Paulo Sales Macedo,
Jáder Ferreira Leite, Magda Dimenstein e Cândida Dantas, des-
taca importantes eixos para se pensar o processo de formação em
Psicologia considerando os contextos rurais, haja vista termos pre-
senciado uma crescente interiorização dos cursos de graduação
no país, bem como uma presença do profissional de Psicologia
em cidades de pequeno e médio porte, com características rurais
marcantes.
Otacílio de Oliveira Jr. e Marco Aurélio Máximo Prado tra-
zem, no segundo capítulo, um tema certamente instigante, qual
Psicologia e contextos rurais | 21

seja pensar a categoria juventude no meio rural brasileiro, tendo


como ponto de ancoragem os dilemas e impasses vividos por essa
juventude em torno do fenômeno da migração.
Seguindo o tema da migração, agora no contexto de jovens
rurais do sertão cearense, Karla Patrícia Martins Ferreira e Zulmira
Áurea Cruz Bonfim, no Capítulo 3, abordam os conflitos que essa
juventude se depara entre partir e ficar em sua terra natal.
O Capítulo 4, de autoria de Daniela Dias Furlani e Zulmira
Áurea Cruz Bonfim articula aspectos psicossociais, ambientais
e projetos de vida com jovens que vivem em realidades distintas
(urbana e rural), no Estado do Ceará.
Psiquiatra de larga experiência na rede de saúde mental de
Portugal, Joaquim A. Costa Borges, no capítulo cinco, apresenta-
-nos uma experiência bastante interessante resultante de seu
acompanhamento à população cigana que vive naquele país. O
autor destaca a necessidade de reconhecimento das particularida-
des dos modos de vida cigana para uma intervenção qualificada no
tocante aos problemas vividos em torno da toxicodependência e
dos transtornos mentais que atingem a referida etnia.
No Capítulo 6, Marcelo Gustavo Aguilar Calegare e Maria
Inês Gasparetto Higuchi relatam suas experiências de pesquisa com
comunidades amazônicas situadas em Unidades de Conservação e,
sob a perspectiva da Psicologia Social e Ambiental, apontam para
a necessidade de uma atuação interdisciplinar e mesmo transdis-
ciplinar na medida que a Amazônia se insere numa realidade bio e
socioambiental bastante complexa, em que políticas governamen-
tais, discursos e práticas ambientalistas e de conservação da natu-
reza atuam sistematicamente nesses espaços.
Fabiana de Andrade Campos e Bader Burihan Sawaia, no
capítulo sete, aliam os aportes teóricos da Psicologia sociohistó-
rica e da Psicologia da libertação para discutir, por meio da cate-
goria trauma psicossocial, o fenômeno da violência no campo,
22 | Psicologia e contextos rurais

tão marcante na sociedade brasileira, mais especificamente do


massacre empreendido contra os trabalhadores sem terra do
Acampamento Felisburgo, em Minas Gerais, no ano de 2004.
O Capítulo 8, de autoria de Omar Alejandro Bravo, também
apresenta uma discussão sobre a violência no campo, mas tomando
o contexto colombiano, em que famílias camponesas vêm sendo
historicamente desalojadas de suas terras dentro da complexa rede
de violência que gira em torno das ações do Estado, de grupos para-
militares e do narcotráfico. O texto propõe, ainda, uma reflexão
sobre o alcance das intervenções psicossociais com os grupos que
sofrem o efeito dessa violência.
Questões de gênero são destacadas no capítulo nove, em
que Priscila Pavan Detoni e Henrique Caetano Nardi problemati-
zam as masculinidades produzidas em torno da vivência de homens
na construção de uma usina hidrelétrica em uma região rural nos
limites dos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Os auto-
res se alinham a pensadores como Michel Foucault e Judith Butler
para ressaltar como os atores sociais em questão se produzem como
sujeitos generificados em meio ao jogo discursivo e performático
no âmbito das relações de poder.
Nathália Nunes e Araújo, Rebeca da Rocha Siqueira
Nepomuceno, Rafael Figueiró e Leonardo Mello, autores do capí-
tulo dez, relatam-nos uma pesquisa empreendida sobre modos e
vida e estratégias de cuidado em saúde com mulheres de um assen-
tamento rural do Estado do Rio Grande do Norte. Os resultados
a que chegaram destacam como essas mulheres, a despeito dos
modelos hegemônicos de medicalização da vida como forma de
enfrentamento dos problemas de saúde, singularizaram estratégias
de cuidado no interior do grupo, resgatando tanto os saberes que
orientam historicamente sua existência quanto os produzidos em
articulação com o movimento social ao qual se integraram, no caso,
o MST.
Psicologia e contextos rurais | 23

O fenômeno da seca é uma realidade presente pratica-


mente em todas as regiões brasileiras, gerando perdas materiais e
psicológicas para inúmeras famílias do campo. É sobre o impacto
dessas perdas no bem-estar de famílias agricultoras que vivem
na parte noroeste do Rio Grande do Sul e com base na Teoria
de Conservação de Recursos, que Eveline Favero, Jorge Castellá
Sarriera, Melina Carvalho Trindade e Francielli Galli abordam no
Capítulo 11. Destacam, ainda, as estratégias de enfrentamento e os
recursos utilizados em torno dessa problemática.
Yldry Souza Ramos Queiroz Pessoa e João Carlos Alchieri
discutem no Capítulo 12 como o modelo de agricultura orgânica
familiar, desenvolvido em algumas regiões do Brasil, de base agro-
ecológica e com preocupação voltada para a saúde dos trabalhado-
res, pode ser gerador de qualidade de vida para as famílias rurais
que se envolvem com esse modelo produtivo.
As novas produções identitárias em meio às políticas públi-
cas relativas aos territórios quilombolas são tema de reflexão do
Capítulo 13. Saulo Luders Fernandes e Julia Minossi Munhoz reve-
lam um imbricado processo entre antigos e novos modos de sub-
jetivação, na medida que os espaços e territórios das comunidades
negras rurais passam a ser repensados e/ou fortalecidos enquanto
território quilombola.
No Capítulo 14, Zuleika Köhler Gonzales e Neuza Maria de
Fátima Guareschi resgatam importantes questões indígenas em
nosso país a partir de algumas indagações: como os povos indíge-
nas são incorporados no espaço acadêmico? Que concepções de
produção do conhecimento orientam o debate sobre o tema? Para
tanto, fazem uso de relatos de suas experiências enquanto docentes
e pesquisadoras universitárias no sul do país.
Ana Luisa Teixeira de Menezes apresenta-nos no Capítulo
15 uma rica experiência no âmbito da Psicologia comunitária que,
por meio da relação ensino, pesquisa e extensão, coordenou um
24 | Psicologia e contextos rurais

conjunto de atividades com a aldeia Mbya Guarani denominada


Ka’a guy Poty, localizada no interior do Rio Grande do Sul. A autora
aponta a importância da vivência comunitária na aldeia e da educa-
ção mitológica vista enquanto um potente modo de conhecimento
do povo Guarani como aspectos fundamentais para fortalecimento
das reflexões e interveções no campo da Psicologia comunitária.
No Capítulo 16, Thelma Maria Grisi Velôso, Flávia Palmeira
de Oliveira, Iara Cristine Rodrigues Leal Lima, Jacqueline Ramos
Loureiro Marinho e Lucélia de Almeida Andrade apresentam o
relato de uma intervenção psicossocial realizada na Comunidade
de Barra de Mamanguape, pertencente ao município de Rio Tinto,
Estado da Paraíba. A experiência com a comunidade, que tem sua
base de produção por meio da pesca e coleta de mariscos, deu-se
por meio de estratégias participativas e teve a preocupação de pôr
em diálogo os saberes envolvidos (acadêmicos e da comunidade) na
ação de extensão para daí, possibilitar a produção de novos conhe-
cimentos que venham contribuir com o protagonismo dos atores
envolvidos no enfrentamento dos dilemas vividos no cotidiano do
grupo.
Conhecido nacionalmente por sua trajetória e esforço de
construção de uma Psicologia Comunitária crítica, comprometida
socialmente com comunidades urbanas e rurais que vivem a reali-
dade da pobreza, e libertária em sua ação teórico-política, o Núcleo
de Psicologia Comunitária (NUCOM), vinculado à Universidade
Federal do Ceará, é apresentado no Capítulo 17 por Verônica Morais
Ximenes e James Ferreira Moura Júnior. Os autores destacam os
fundamentos teóricos e políticos que norteiam as ações do NUCOM
e historiam os trabalhos desenvolvidos em comunidades rurais do
Estado do Ceará.
Por fim, no Capítulo 18, Geise do Socorro Lima Gomes e
Flávia Cristina Silveira Lemos trazem para o debate um tema certa-
mente atual e preocupante: o trabalho escravo no campo brasileiro.
Psicologia e contextos rurais | 25

A discussão que trazem parte de uma análise de como o trabalho


escravo contemporâneo é tratado nos documentos da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) e, à luz da genealogia foucaul-
tiana, argumentam como determinados documentos, por meio dos
discursos que veiculam, acabam por produzir determinadas “ver-
dades” em meio aos jogos de poder.
Estão aí inúmeras contribuições para se pensar modos de
articulação, pontos de aproximação da Psicologia com a diversi-
dade que habita o campo brasileiro. Esperamos que este livro possa
alavancar novas ideias e reflexões. Intervenções, questões de pes-
quisa, aprendizados e encontros com os atores que vivem no meio
rural certamente hão de germinar e fazer crescer. Desejamos que a
presente obra possa contribuir com essa germinação.

Natal/RN, janeiro de 2013.


Jáder Ferreira Leite e Magda Dimenstein
A formação em Psicologia para
a atuação em contextos rurais
Jáder Ferreira Leite
João Paulo Sales Macedo
Magda Dimenstein
Cândida Dantas

H istoricamente, a Psicologia tem voltado seu olhar quase que


exclusivamente para a população urbana. Os habitantes
das grandes cidades têm sido alvo privilegiado da sua intervenção
profissional, além de tornarem-se objeto de estudos e pesquisas no
campo psicológico.
Embora estudos historiográficos de Antunes (2004) indi-
quem a existência de trabalhos isolados como o realizado por
Helena Antipoff, no ano de 1940, com educação de crianças na
zona rural, ou, mais particularmente, os do campo da Psicologia
Social Comunitária, a partir das décadas de 1960 e 1970, em assen-
tamentos sem-terra, tribos indígenas ou mutirões, a maioria das
pesquisas sobre o desenvolvimento da profissão no país explicita
a interdependência entre o processo de modernização brasileira e
28 | Psicologia e contextos rurais

a expansão do campo profissional1. Considerando ser a urbaniza-


ção uma das principais características desse processo, justifica-se
em parte a centralização das ações da Psicologia em cidades com
características predominantemente urbanas, locais de circulação
do grande capital e polos de desenvolvimento industrial.
Nesse sentido, Mello (1975), em pesquisa sobre a atuação do
psicólogo no estado de São Paulo, afirma: “[...] a Psicologia só tem
encontrado aplicação nos grandes centros urbanos ou nas áreas
industrializadas, vale dizer, nas mais ricas, e do ponto de vista cul-
tural, mais próximas dos modelos que os países desenvolvidos ofe-
recem” (Mello, 1975, p. 35).
Em 1988, em um dos mais completos levantamentos nacio-
nais, organizado pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), dos
58.277 psicólogos em atividade profissional, 75% estavam concen-
trados na região sudeste e 69% em grandes capitais, com exceção
dos estados do Maranhão e de Santa Catarina. Segundo os auto-
res do estudo, os fatores que explicariam a fixação dos psicólogos
nas capitais seriam o próprio mercado de trabalho, caracterizado
pela maior possibilidade de absorção profissional, e as condições
de vida favoráveis encontradas nessas cidades. Somado a isso, des-
tacam que a formação em Psicologia naquele momento acompa-
nhava a tendência de concentração das instituições de ensino na
região Sudeste e nas grades metrópoles nacionais. Diante desses
resultados, os autores indagam:

Somos – ou estamos sendo – profissionais urbanos,


metropolitanos. Por quê? Seriam os psicólogos desne-
cessários no interior? Seriam exclusivos dos habitan-
tes das capitais os problemas que levam as pessoas e

1 Antunes (1999; 2004) e Pessotti (1988) apontam para a importância da aplica-


ção de conhecimentos e técnicas psicológicas em questões relacionadas à orga-
nização do trabalho, em especial a com o processo de industrialização brasileiro
na década de 1930.
Psicologia e contextos rurais | 29

organizações ao gabinete dos psicólogos? (Rosas, Rosas


& Xavier, 1988, p. 39).

Em seguida, indicam que a interiorização deverá ocorrer


como forma de aumentar a clientela atendida pelos profissionais,
ou mesmo como o intuito de ampliar e/ou renovar o mercado de
trabalho (Rosas et al., 1988). Assim, percebe-se que mesmo apre-
sentando o perfil urbano como característica predominante da
Psicologia, os autores consideram importante avançar para outros
espaços territoriais, tanto como forma de ampliar seu leque de
ações quanto como garantia de uma reserva de mercado impor-
tante para o futuro da profissão.
Mesmo com essas considerações, a formação e atuação dos
psicólogos continuaram voltadas para contextos eminentemente
urbanos. O processo de “interiorização da profissão” parece ser
impulsionado apenas posteriormente, com o ingresso de psicólo-
gos em campos não tradicionais e há pouco desenvolvidos, com
especial destaque para o setor do bem-estar social que impulsio-
nará de forma efetiva o processo de interiorização, além da expan-
são do sistema de ensino superior brasileiro em direção às cidades
de pequeno e médio porte. Diante disso, o presente texto trata
dos desafios da formação acadêmica e profissional para qualificar
a atuação dos psicólogos em cidades de pequeno e médio porte,
com características marcadamente rurais. Para tanto, estrutura-
mos o texto da seguinte forma: inicialmente, abordamos o pro-
cesso de interiorização da Psicologia, tanto nos termos de entrada
de profissionais em municípios de médio e pequeno porte quanto
da abertura de cursos de formação de psicólogo nesses espaços.
Num segundo momento, trataremos do processo histórico e social
vivido pelo Brasil no tocante ao conjunto de lutas sociais travadas
em torno da democratização da terra, aspecto de fundamental
importância para a compreensão do atual modelo de organização
do meio rural, dos grupos e atores sociais que nele vivem. Por fim,
30 | Psicologia e contextos rurais

apresentaremos alguns eixos que consideramos importantes tanto


para a atuação profissional quanto para o processo de formação de
psicólogos para atuarem nesse contexto.

O processo de interiorização da
Psicologia e o meio rural
Dois aspectos marcaram a entrada da Psicologia no século
XXI, no contexto brasileiro: a interiorização da profissão e dos cur-
sos de formação em Psicologia por todo o território nacional.
Sobre o primeiro aspecto, registra-se que dos 236.100 psicó-
logos inscritos no Sistema Conselhos de Psicologia de todo o país,
48% atuam nas cidades do interior, destacando aquelas de médio
e pequeno porte, enquanto 32% estão localizados nas capitais
(Bastos, Gondim, & Rodrigues, 2010). Quanto ao funcionamento
da formação de psicólogos, observa-se que dos 510 cursos existen-
tes, 52% estão localizados nas cidades do interior enquanto 48%
estão nas capitais. Especificamente sobre os cursos localizados no
interior, pelo menos 105 funcionam em municípios de médio porte
(100 a 300 mil hab.), 59 cursos estão em municípios de médio-
-pequeno porte (50 a 100 mil hab.) e 35 cursos em municípios de
pequeno porte (menos de 50 mil hab.) (Macedo, 2012).
A tendência à interiorização do exercício profissional e das
agências formadoras em Psicologia é resultado tanto da estrutura-
ção de uma rede de serviços ligados ao campo do bem-estar social,
ou seja, fruto da municipalização das políticas de saúde e assistên-
cia social, quanto pela implantação de projetos e outros dispositivos
de reforma e expansão da educação superior, que no setor público
efetuou-se pelo REUNI e o PRONATEC e no setor privado advém
da busca por novos mercados, especialmente na região Nordeste,
com incentivos do PROUNI e o FIES.2

2 Quanto ao REUNI, trata-se do Programa de Apoio a Planos de Expansão


e Reestruturação das Universidades Federais, com vistas a expansão e
Psicologia e contextos rurais | 31

Outro aspecto deve ser levado em conta em relação ao pro-


cesso de interiorização da educação superior no Brasil: o movi-
mento de transição e reestruturação urbana de vários municípios
brasileiros de médio porte (Macedo & Dimenstein, 2011). De acordo
com Sanches (1999) é cada vez mais presente no cenário brasileiro
a parceria de agentes públicos e privados com projetos de planeja-
mento urbano para promover localidades de menor porte popula-
cional como mais atrativas para investimentos no setor comercial,
empresarial e financeiro.
Assim, cidades que apresentam determinada vocação eco-
nômica e produtiva tornam-se alvo de investimentos e planeja-
mento urbano, na perspectiva de qualificar determinados espaços
como mais vantajosos, com exigências de maior segurança, incen-
tivos fiscais e maior rentabilidade para a instalação de grandes
empresas e demais investidores. O principal objetivo desses inves-
timentos é o trabalho de redefinição da imagem de cidade dessas
localidades, para que as mesmas se constituam em polos de desen-
volvimento local e regional no país, capazes de capitanear mais
recursos, investimentos em infraestrutura, criação de empregos,
atrair turistas e gerar novos negócios (Sanches, 1999).

interiorização da educação superior no Brasil, sendo que até o momento foram


criados 48 campi e 10 universidades federais em todo o território nacional. O
PRONATEC assemelha-se ao REUNI, no entanto seu foco é o ensino técnico.
Com relação ao PROUNI e o FIES, ambos são programas de acesso à educação
superior no setor privado, que prevê a concessão de bolsas de estudo integrais
e parciais, no caso do primeiro, e o financiamento das mensalidades dos cursos
de graduação e pós-graduação, a serem reembolsados pelos estudantes poste-
riormente ao seu término, no caso do segundo. Para muitos, esses quatro dis-
positivos de ampliação do acesso à educação superior compõem os pilares da
Contrarreforma universitária em curso no país, pois orquestra uma expansão
que beneficia diretamente o setor privado da educação, com isenções fiscais
e pagamento de dívidas públicas, enquanto no setor público aprofunda a pre-
carização já existente, devido à falta de financiamento e implantação de uma
lógica de gestão voltada para o mercado, com impactos no trabalho docente sob
a marca do produtivismo e captação de recursos externos para as universidades.
32 | Psicologia e contextos rurais

As próprias Instituições de Ensino Superior (IES) (universi-


dades, centros de ensino e faculdades), no seu processo de interio-
rização, têm tido um papel importante na redefinição da imagem
das cidades. Em função disso, tal setor constitui hoje uma das prin-
cipais estratégias estruturantes do desenvolvimento local e regio-
nal de várias regiões do país, seja com a formação de profissionais
e mão de obra técnica e especializada, seja ainda pela transferência
de tecnologias para as novas localidades produtivas do país (Paula,
2006; Elias, 2007).
Com relação à Psicologia e ao movimento de aproximação
com a realidade dos municípios menor porte, indagamos por qual
direção essa participação tem se dado. Tal aproximação tem levado
em conta as novas dinâmicas espaciais e o surgimento de novas
formas de sociabilidade, como também as relações sociais que o
processo desenvolvimentista tem induzido nesses municípios?
Temos considerado as transformações nos modos de vida da popu-
lação, ou seja, nos processos de subjetivação, nas relações sociais e
de trabalho, e nas relações de pertencimento e de identidade com
o lugar, contribuindo com a produção de sujeitos mais participa-
tivos e reconhecedores dos seus direitos e aspirações, ou simples-
mente temos repetido nosso feito histórico de selecionar e adaptar
pessoas no objetivo de melhorar seu padrão de respostas frente ao
mundo do trabalho (este cada vez mais precarizado) e as exigências
e intempéries da vida?
Sabemos como se deu a primeira aliança entre a Psicologia
e o Estado brasileiro, ocorrida no início do processo de industria-
lização em 1930, em que nossa ciência inspirou confiança à nação
em diagnosticar e orientar a força de trabalho do país (Motta,
2004). A participação da Psicologia como elemento importante no
processo de desenvolvimento brasileiro, ocorrido desde o Estado
Novo, é fruto do abandono, pela burguesia industrial nascente
daquela época, “das normas tradicionais de dominação da classe
trabalhadora e adesão aos princípios da Psicotécnica da Psicologia
Psicologia e contextos rurais | 33

Racional para intensificar o processo de modernização da relação


trabalhador-capital” (Motta, 2004, p. 139). Assim, foram criados
diversos institutos, laboratórios/núcleos de pesquisa e departa-
mentos de assessoria técnica, a exemplo do IDORT3 e do ISOP4,
ligados à administração pública, a educação básica e superior e a
federação das indústrias para a aplicação de serviços de orientação
vocacional e seleção de pessoal, com base no exame das aptidões e
do caráter, além de ações de treinamento e capacitação profissional
(Penna, 2004).
Tais iniciativas em torno da atividade psicotécnica, em con-
junto com outras atreladas às novas demandas do mercado como
o psicodiagnóstico e o atendimento clínico, constituíram as bases
para associar a presença da nossa profissão aos grandes centros
urbanos e capitais brasileiras. Assim, nossa profissão passou a ser
demanda em seus consultórios, organizações de trabalho, insti-
tuições escolares, e serviços de saúde mental e assistência social,
algumas vezes, para solucionar e dar suporte para as inabilidades
e desadaptações de indivíduos frente às condições e os modos
de vida nos grandes centros urbanos: desemprego, insegurança
no trabalho, recolocação e orientação profissional, concorrência
social, fragmentação e isolamento social, violência, criminalidade,
dentre outros.
Por outro lado, sabemos que os entrelaçamentos entre
Psicologia e Estado na atualidade são outros. A própria aproxi-
mação dos psicólogos com as políticas públicas a partir da década
de 1990 dão prova de que os espaços de exercício de sua prática

3 Instituto de Organização Racional do Trabalho – IDORT, criado em 1931 na ci-


dade de São Paulo. O IDORT corresponde a primeira instituição psicométrica
criada no país com a finalidade de acelerar a industrialização (Penna, 2004).
4 Instituto de Seleção e Orientação Profissional – ISOP, criado em 1947 na cida-
de do Rio de Janeiro. O ISOP foi criado pela Fundação Getúlio Vargas (1944)
que, mais tarde, tornou-se o primeiro curso de pós-graduação em Psicologia no
Brasil (Penna, 2004).
34 | Psicologia e contextos rurais

profissional diversificaram-se. Passamos tanto a ser demandados


para intervir sobre indivíduos de outros extratos sociais quanto
a nos preocupar com a saúde e a organização social de grupos e
populações. Mas com que propósito, a serviço do quê, agenciado
com quais relações de poder?
Sabemos que as políticas públicas, especialmente aquelas de
cunho universalistas, foram estabelecidas, a partir da Constituição
de 1988, como resultado da luta pela garantia de direitos de gran-
des parcelas da população. Assim, as políticas públicas são muito
mais do que apenas a garantia de serviços e ações inclusivas pelos
aparelhos do Estado; seu princípio fundante é o fortalecimento das
instâncias de participação, movimento popular e controle social,
portanto, visa o processo de construção de cidadania e produção de
sujeitos políticos.
No entanto, o processo de implantação das políticas uni-
versalistas no Brasil é contemporâneo à instituição da agenda e do
Estado neoliberal. As ações da política neoliberal priorizam, basi-
camente, o corte dos gastos sociais e a desmontagem dos serviços
públicos em vários setores, além do aprofundamento da ação do
capital privado e financeiro na regulação dos mercados nacionais.
Na prática, isso significa tanto a diminuição do papel e da presença
do Estado frente aos problemas sociais que marcam a realidade bra-
sileira, resultando, como refere Yamamoto (2007), na oferta de ser-
viços desqualificados para uma população desqualificável; quanto
à imposição de uma agenda micropolítica aos operadores/trabalha-
dores das políticas públicas para serem postas em prática à popu-
lação em geral. Caracterizando melhor esse último aspecto, além
de desregulamentar o dever do Estado de ofertar bens e serviços
e minimizar direitos sociais e políticos, o neoliberalismo também
produz um modo hegemônico de subjetivação com formas de per-
cepção, modos de afecções/sensações e de pensar e agir no mundo,
profundamente, marcados por interesses privatizantes. Com isso,
de cidadão passamos a condição de consumidor; de sujeito da ação
Psicologia e contextos rurais | 35

transformamo-nos em sujeitos empreendedores, ou seja, sujeitos


capazes de, por conta própria, resolver problemas, desobrigando o
Estado do seu dever (Carvalho, 2009).
Nesse caso, precisamos ter clareza de como operamos nosso
fazer técnico, no sentido de quais posturas ético-políticas coloca-
mos em prática ao ingressarmos no campo das políticas públicas.
A depender de como realizamos nossas ações profissionais, pode-
mos tanto exercer ações de garantia de direitos e cidadania, como
foco de resistência a lógica neoliberal, ou como formas de controle
da vida. Assim, precisamos estar atentos para que o ingresso dos
psicólogos nas políticas públicas não se reduza a apenas a amplia-
ção de mercado de trabalho para nossa profissão. É preciso ampliar
o debate sobre qual modelo de políticas públicas nos associamos
na atualidade. Não podemos perder de vista o risco imposto pela
lógica neoliberal de conformação das políticas públicas que, sob
a marca do progresso e do desenvolvimento, busca como solução
para a questão social do nosso país o gerenciamento da pobreza e
das comunidades.
Diferente da primeira aliança entre a Psicologia e o Estado
brasileiro em que se buscava contribuir com o desenvolvimento da
nação diagnosticando e orientando a força de trabalho do país, na
atualidade, tal aliança, pode facilmente capturar nossa ciência e
profissão, de modo a prestar relevante contribuição, efetivando a
estratégia biopolítica5 de gerenciamento da população para a pro-
dução de sujeitos ao mesmo tempo saudáveis, participativos, pro-
dutivos e autoempreendedores (Passetti, 2003).

5 Conceito criado por Michel Foucault para dar visibilidade ao regime político
que toma a vida em seu aspecto biológico, subjetivo e social como objeto de
intervenção. Com a biopolítica não apenas os indivíduos tornam-se foco de in-
tervenção dos diversos aparelhos do Estado, mas também as populações, por
meio de mecanismos de regulação e controle, ou seja, de gestão e governo de
condutas e subjetividades (Foucault, 2008).
36 | Psicologia e contextos rurais

Tais questões tornam-se ainda mais urgentes, meio ao cená-


rio de interiorização da profissão e da formação de psicólogos em
todo o país. Na verdade, a aproximação dos psicólogos com os muni-
cípios de médio e pequeno porte, em que a sede desses municípios
tem estreita relação com seu meio rural, fez com que entrássemos
em contato com uma realidade nova para nossa categoria profis-
sional. No geral, são localidades que apresentam: a) alto índice
de população rural (44,93%), cuja atividade produtiva principal é
a agricultura familiar, destacando-se ainda a pecuária familiar e a
atividade pesqueira, ou o extrativismo vegetal e mineral; b) fragili-
dade econômica e administrativa, resultando na dependência das
ações e programas do governo federal; c) respostas insuficientes às
necessidades da população, devido às práticas de gestão de base
centralizadora, autoritária e clientelista; e d) uma realidade popu-
lacional que concentra problemas sociais básicos, como: mortali-
dade infantil, analfabetismo, trabalho infantil, desnutrição, fome,
pobreza, dificuldades de transportes, especialmente de desloca-
mento das comunidades rurais à sede do município e desemprego;
e ainda convive com problemas típicos de grandes centros urbanos,
como: aumento da criminalidade e violência, aumento do índice de
doenças crônico-degenerativas, gravidez na adolescência, mortes
no trânsito (motociclistas), prostituição, consumo e tráfico de dro-
gas (Macedo & Dimenstein, 2011).
Quanto ao meio rural propriamente dito, especificamente
nas áreas de assentamentos e ocupações de terra, comunidades
ribeirinhas, quilombolas, reservas indígenas, as dificuldades não
são diferentes. Pelo contrário, os problemas sociais básicos referi-
dos a pouco se agravam bem mais, isso sem falar da dificuldade de
acesso aos serviços de saúde e educação, além da insegurança fun-
diária e o convívio com inúmeras situações de conflitos e violên-
cia no campo, a exemplo da exploração da mão de obra, o trabalho
escravo, a violação de direitos e a exploração no trabalho, a violên-
cia contra a ocupação e posse de terras, as situações de expulsões e
Psicologia e contextos rurais | 37

despejos e demais conflitos em tempos de seca e estiagem por con-


trole e posse de água, e em áreas de garimpo, mineração, reservas
indígenas, extração de madeira e preservação ambiental.
Muitos desses conflitos resultam em violência direta con-
tra as famílias e comunidades, com roubos, agressões e ameaças de
morte, além de prisões, torturas e assassinatos, como temos visto
em várias regiões do país, em especial no Norte. Para o ano de 2012,
a Comissão Pastoral da Terra (CPT) contabilizou 1.364 conflitos no
campo e 36 assassinatos. Já em 2011, os dados são de 1.363 conflitos
e 29 assassinatos (CPT, 2013). Para a compilação desses dados, a
CPT considera as situações de luta por terra, água e direitos tra-
balhistas. É preocupante o fato de que há um crescimento, desde
2008, tanto dos conflitos quanto dos assassinatos.
Mesmo que não haja uma política que advogue ou demar-
que a participação do profissional de Psicologia nessas questões,
especialmente no tocante ao tema da terra, enxergamos uma
variada gama de oportunidades para seu exercício profissional que
vem se dando por um amplo campo: equipamentos institucionais
de educação, saúde, assistência social, assistência técnica e exten-
são rural, Organizações Não Governamentais (ONGs), cooperati-
vas de prestação de serviços com os trabalhadores da agricultura
familiar, movimentos sociais do campo, a exemplo do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, Movimento dos
Pequenos Agricultores – MPA, Comissão Pastoral da Terra – CPT e
Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB etc.
No entanto, tem sido por meio da Política de Saúde, com
a implantação de serviços da atenção primária em saúde e saúde
mental (Unidades Básicas de Saúde/UBS, Núcleos de Apoio a
Saúde da Família/NASF e Centros de Atenção Psicossocial/CAPS),
e da Política de Assistência Social, com os Centros de Referência
em Assistência Social (CRAS), nos municípios de médio e pequeno
porte, que a população do campo tem tido acesso de maneira mais
38 | Psicologia e contextos rurais

efetiva aos serviços dos psicólogos. Assim, os profissionais da


Psicologia vêm sendo confrontados com novos sujeitos e realida-
des que passam a demandar sua atuação. Por isso a urgência de
pensarmos como temos nos filiado as políticas públicas no Brasil,
principalmente envolvendo as lutas sociais e a questão da terra no
contexto rural.

Lutas sociais, democratização


da terra e contextos rurais no
Brasil: percurso inacabado?
Enquanto muitos países optaram pelo modelo da agricul-
tura familiar através da realização de uma política de reforma agrá-
ria, o desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro deu-se
pela manutenção de sua estrutura fundiária, conservando o lati-
fúndio e modernizando-o com pesados investimentos com vis-
tas ao aumento de produtividade garantida com a introdução de
novas tecnologias, créditos e insumos e baseado na monocultura
de exportação.
Graziano da Silva (1994) apresenta duas características fun-
damentais do que nomeia de modernização dolorosa do campo
brasileiro: a primeira, que aconteceu de forma bastante desigual,
permitindo uma forte concentração na aquisição de créditos e de
insumos aos grandes proprietários de terra, como também bene-
ficiou empresas urbanas a se tornarem proprietárias de terra. A
segunda característica foi a geração de uma forte exclusão. Se de
um lado promoveu a concentração de riquezas nas mãos de uma
elite agrária e uma consequente industrialização do campo, por
outro lado inviabilizou o projeto de inúmeros trabalhadores rurais,
lançando-os numa miséria profunda e num êxodo rural sem pre-
cedentes, fato que promoveu quase uma inversão entre a popula-
ção urbana e rural no país. Linhares e Silva (1999) destacam que
Psicologia e contextos rurais | 39

na década de 1940 a população urbana no Brasil era de 31,2% e na


década de 90 passou para 75,4% do total de habitantes.
Apesar de sermos o quinto país do mundo em extensão ter-
ritorial, temos 170 milhões hectares de terras que deveriam per-
tencer ao Estado e à União, portanto, terras públicas que poderiam
ser utilizadas para a reforma agrária. De acordo com o Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), dos 850,2
milhões de hectares que perfazem a área total do país, 102,1 milhões
são de unidades de conservação ambiental, 128,5 milhões são de
terras indígenas, 420,4 milhões de área total dos imóveis cadastra-
dos no INCRA e 29,2 milhões de área ocupada por águas territoriais
internas, áreas urbanas e ocupadas por rodovias, além de posses a
serem regularizadas. Somando tudo dá um total de 680,2 milhões
de hectares, restando 170 milhões de terras devolutas, ocupadas ile-
galmente por “proprietários”: grandes latifundiários que possuem
áreas maiores do que seus títulos legais indicam (Oliveira, 2004).
Nesses termos, convivemos com uma estrutura fundiária6
em que somente “1% dos proprietários detêm 46% de todas as ter-
ras do país” (Mauro & Pericás, 2001, p. 70). Essa alta concentração
resulta também na concentração de poder econômico, político e
simbólico, criando estruturas de sujeição da população rural, con-
sequentemente, institui uma “dinâmica perversa que bloqueia
tanto o esforço para aumentar a produção e a produtividade no
campo, quanto as tentativas de melhorar o nível de vida da popula-
ção rural, e, sobretudo, seu grau de participação no processo polí-
tico democrático” (Mendonça, 2006, p. 78).
Com o período do milagre econômico, em meio à ditadura
militar, a economia brasileira cresceu de forma surpreendente, ao
mesmo tempo que a política de arroxo salarial foi intensificada.

6 Por estrutura fundiária compreende-se a maneira como as propriedades agrá-


rias estão organizadas, em termos do número, tamanho e distribuição social,
além da forma de acesso da propriedade sobre a terra (Hoffmann & Ney, 2010).
40 | Psicologia e contextos rurais

Entre as principais distorções desse período estava o aumento da


concentração fundiária em escalas até então não verificadas, com
a “mancha dos latifúndios se expandindo para a Amazônia e todo
o Norte do Brasil” (Nakatani, Faleiros & Vargas, 2012, p. 228). Os
grandes proprietários, que já não tinham interesse na produção de
alimentos para o mercado interno, acabaram por optar pela expor-
tação de uma produção especializada e subsidiada pelo governo
militar: celulose e papel, álcool, carne de aves, suco de laranja e
derivados de soja (Belik, 2007).
Outra grande distorção que marcou fortemente esse perí-
odo foi o empreendimento de uma aceleração da industrialização
sem a realização de reformas estruturais que respondessem à ques-
tão social. Ou seja, pretendia-se avançar na acumulação capitalista
sem realizar qualquer mudança social. Isso sem dúvida aprofun-
dou os problemas sociais nas grandes cidades e, principalmente,
no campo (Fernandes, 2008).
Para Nakatani et al. (2012, p. 227), convivemos nos anos
de 1960 e 1970 com um doloroso processo de modernização,
cujo resultado foi a “derrota de qualquer proposta de uma efetiva
reforma agrária, optando-se por um desenvolvimento capitalista
no campo com a manutenção de uma estrutura fundiária pretérita”.
É nesse contexto que surge o agronegócio com um pesado com-
plexo industrial voltado para a agricultura. O agronegócio ganhou
força no Brasil justamente com a crise na década de 1980 e a eco-
nomia nacional buscou nesse setor soluções para reequilibrar sua
balança financeira.
O agronegócio se constitui pela entrada de empresas
transnacionais financiadas pelo sistema financeiro na agricul-
tura, fazendo das diversas empresas do setor um bloco que passou
a interferir e alterar o modo de produção agrícola no país (MST,
2007).
Psicologia e contextos rurais | 41

Com esse incentivo, as áreas colhidas de cana-de-açúcar


foram ampliadas de 2.607.628ha para 4.272.602ha, a área destinada
à soja de 8.774.023 para 11.487.303, e o número de bovinos abatidos
de 9.572.534 para 13.374.663, entre 1980 e 1990.7 Assim, reverteu-se
o saldo comercial brasileiro que estava negativo, porém, com drás-
ticos efeitos para a industrialização e a própria agricultura, pois o
dinheiro foi destinado apenas para pagamento e rolagem da dívida
externa, indicando o esgotamento do padrão de financiamento da
agroindústria com base nos recursos do tesouro nacional, além de
intensificar ainda mais a estrutura fundiária predatória (Nakatani
et al., 2012; Belik, 2007).
Com a retomada do crescimento econômico nos anos 1990
e 2000 assistiu-se ao quadro de retomada do desenvolvimento
agrícola, impulsionado pelo agronegócio, com a reestruturação
do setor. Inicialmente, fortaleceu-se a distribuição e a organização
da produção, com base em padrões de qualidade internacionais, e
posteriormente, houve a adoção de tecnologias e investimentos no
acesso de novos mercados (Belik, 2007). O resultado foi o aumento
da produção e das áreas destinadas à soja, que saiu de 11.487.303ha
para 23.327.296ha, de cana-de-açúcar, que foi de 4.272.602 para
9.076.706ha, do número de cabeças de gado abatidas, de 13.374.663
para 29.278,095, e aves, que foi de 962.029.422 para 4.776.233.239,
no período de 1990 e 2010.8 O aumento da produção do setor foi
acompanhado de mudanças nas relações com demais elos da
cadeia, refletindo no crescimento de fusões e internacionalização
dos mercados com a participação em commodities9 (Nakatani et
al., 2012).

7 Recuperado em 10 dezembro 2012, de www.ipeadata.gov.br.


8 Recuperado em 10 dezembro 2012, de www.ipeadata.gov.br.
9 São produtos provenientes de cultivo ou de extração e por serem mercadorias de
nível primário, propensas à transformação em etapas de produção, apresentam
nível de negociação global, ou seja, são reguladas pelo mercado internacional
com base no capital financeiro mundial (Sraffa, 1977).
42 | Psicologia e contextos rurais

Nesse caso, salvaguardado as devidas possibilidades de


desenvolvimento sustentável no setor agrícola e sua importância
na economia nacional, em vez de avançarmos sob um processo de
reforma agrária, no objetivo de permitir um movimento de demo-
cratização da terra, por meio do seu acesso e constituição dos
assentamentos rurais – espaço esses que podem, de acordo com
Ieno (2007), oportunizar uma melhoria na qualidade de vida da
população rural, historicamente excluída em nosso país –, aumen-
tamos a concentração fundiária no Brasil na última década, espe-
cialmente no âmbito da reprimarização da economia, demandado
por um mercado crescente por combustíveis (biodiesel), minérios
(especialmente o ferro) e alimentos, enquanto na produção mais
diretamente voltada ao mercado interno (milho, arroz, feijão e
trigo), a área de cultivo pouco se ampliou.
Por outro lado, surgiu nos últimos anos outra importante
questão geradora de novas tensões no setor agrário brasileiro: a
entrada do capital estrangeiro na aquisição de terras para agroe-
nergias, alimentos e matérias-primas. Trata-se de uma nova fase
da mundialização da economia em que a especulação imobiliária
no campo fortalece o problema da questão agrária no país, consti-
tuindo assim um novo obstáculo para a política de desapropriação
de terras com vistas a uma reforma agrária que atende à necessi-
dade da população brasileira (Nakatani et al., 2012).
Não de outra forma, o agronegócio e a estratégia de expansão
das exportações primárias estabelecidos pelo Governo transformou
a política agrária brasileira em mera peça acessória da política eco-
nômica. Essa opção fortaleceu a centralidade e o poder do latifún-
dio, aprofundando a exclusão social e os conflitos no campo, além
de provocar graves problemas ambientais. Nesse caso, percebe-
-se a política de assentamentos rurais como “um corpo estranho,
como também o são várias normas setoriais de proteção ao meio
ambiente (código florestal), proteção à saúde (não contaminação
Psicologia e contextos rurais | 43

dos agrotóxicos e demais poluentes) e ações de proteção ao traba-


lho etc.” (Delgado, 2011, p. 32).
Se não fosse a luta e resistência dos trabalhadores sem-
-terra, ribeirinhos, castanheiros, indígenas e quilombolas, entre
outros tantos, teríamos a presença bem mais agressiva por parte
do capital e os representantes que compõem os grandes projetos
da agroindústria atingindo não somente os povos tradicionais
que vivem nessas áreas, como assim tem acontecido por décadas e
décadas, mas também se “articulando com diversas formas de inte-
resses econômicos locais, por vezes predatórios, potencializando
situações de conflito e ameaças” (Alarcon & Guerrero, 2012, p. 27).
Ademais, não podemos esquecer que o papel do Estado tem
sido por demais tímido em relação à proteção dos povos tradicio-
nais, posseiros e trabalhadores rurais em geral, que são quem têm
resistido frente à nova ordem global de fazer do país uma superpo-
tência econômica, à custa de muita exploração, assédio, violência e
expulsões de pessoas do campo, do seu local de vida e de trabalho,
com os quais constituem a história e a memória do seu povo e cos-
tumes (Moreira, 2005). Como exemplo, Alarcon e Guerrero (2012,
p. 28) reporta-nos ao debate do próprio modo como muitos pro-
gramas e políticas setoriais governamentais, em especial àquelas
executadas pelo INCRA, entendem a população do campo “como
obsolescências históricas que precisam ser trabalhadas para ascen-
der à modernidade”.
Desse confronto entre, de um lado a busca de industriali-
zação e modernização do meio rural e, do outro, a resistência de
atores do campo por meio de seus movimentos sociais, torna-se
importante considerar que o tema da luta pela terra não caducou
nem representa um atraso em relação ao processo de capitalização
de todas as esferas da vida no nosso país. Para sustentar tal argu-
mento, Sauer (2010) apresenta, pelo menos, três pontos: primeiro,
que é preciso entender o rural não em sua relação dicotômica ou
44 | Psicologia e contextos rurais

oposta ao urbano, mas como espaço de interações, tensões e inter-


câmbios; em segundo lugar, que os atores participantes dessa luta
revestem-se de uma ação política que está para além da conquista
da terra. Nas palavras do autor: “transcendem à luta pelo acesso
aos meios de produção e se transformam em um processo de cons-
trução de sujeitos políticos, recriando relações sociais e transfor-
mando o espaço rural na constituição de uma nova ruralidade”
(Sauer, 2010, p. 36). Por fim, que a terra conquistada pode se tornar
espaço de trabalho, portanto de identidade, assim como um lugar
de reconstrução de vida, cidadania e dignidade.
Além disso, o meio rural tem se convertido num espaço
extremamente diversificado em seu modo de configuração, pas-
sando a incorporar uma série de transformações a depender de
contextos sociais, culturais e regionais, de modo a apreender novas
ruralidades em curso. Tais transformações não ocorrem em opo-
sição aos contextos urbanos, mas estão em franca interação com
os mesmos. Carneiro (2012), a partir da realidade por ela estu-
dada, destaca que novos elementos vêm sendo incorporados pelo
meio rural, tais como o desenvolvimento de atividades não agríco-
las, a exemplo do turismo, da sua definição como espaço de resi-
dência alternativo aos inúmeros problemas dos centros urbanos,
bem como de sua defesa por meio da constituição de um ideário
ambientalista.
Trata-se, portanto, de uma discussão sobre o tipo de ação
desenvolvimentista que está em curso no contexto rural brasileiro e
latino-americano. Ainda mais se considerarmos o contexto de inte-
riorização da educação superior e o papel que ela tem desempe-
nhado na redefinição da imagem das cidades de médio e pequeno
porte, bem como da realidade do campo. Inseridas nessas locali-
dades, em meio as suas especificidades e problemas, apoiamo-nos
em Sousa Filho (2006) com suas reflexões sobre a universidade
e sua missão, para pensarmos de que maneira as Instituições de
Ensino Superior têm indagado sobre as carências, potencialidades
Psicologia e contextos rurais | 45

e situações-limites vividos no contexto rural: que contribuições,


ações e estratégias a universidade tem oferecido à realidade do
campo para o enfrentamento da questão agrária e de luta pela terra?
Que sugestões têm sido apresentadas à sociedade e aos poderes
públicos? Que diálogos as instituições de ensino podem sustentar
com os diversos segmentos sociais, discutindo questões relevantes
para a população local, sobre os projetos de assentamentos rurais,
a agricultura familiar, a educação e saúde no campo, o agronegócio
e os conflitos no campo?

Psicologia e contextos rurais


Circunscrevendo esses questionamentos em torno da
Psicologia e sua relação com o contexto rural e a questão agrária,
buscamos em Martín-Baró (2009) suas indagações sobre como
temos contribuído com os problemas cruciais de nossos povos,
com a bagagem teórica e experiência prático-profissional que dis-
pomos hoje.
De que maneira nossas teorias e práticas psicológicas têm se
preocupado (ou mesmo se ocupado em suas intervenções) com o
rural? Partimos da compreensão do rural como espaço idealizado e
bucólico, com atraso e modos de vida a serem superados pelo pro-
gresso, ou como um espaço conflitivo, marcado por dinâmicas e
processos variados, diversos, permeado por situações de exploração
e de desapropriação de direitos? Daí a importância de nossa cate-
goria profissional e dos cursos de formação de psicólogos, especial-
mente aqueles localizados nas cidades de médio e pequeno porte,
se envolverem com o contexto das ruralidades, para que possamos
avançar na proposição de uma Psicologia mais próxima e compro-
metida com a realidade e as necessidades em que vive nossos povos.
Desde que deu início o debate sobre o compromisso social
da Psicologia, com diversos questionamentos sobre a função e rele-
vância do seu trabalho em relação ao compromisso com a sociedade
46 | Psicologia e contextos rurais

brasileira, pesquisadores, agências formadoras, sistema conselhos,


sindicatos e demais entidades da profissão propõem atividades
acadêmico-científicas e de intercâmbio profissional para qualificar
a atuação dos psicólogos diante das mais diversas situações de desi-
gualdade e iniquidade que sofre a população.
Foi assim que avançamos com articulações importantes
entre a Psicologia e os setores progressistas da saúde (movimento
de reformas psiquiátrica e sanitária), educação, assistência social,
segurança pública e demais grupos de militância voltados para a
proteção da criança e do adolescente, da mulher e do idoso, diversi-
dade sexual, direitos humanos e movimento sindical. Isso resultou
não só num maior entendimento da nossa categoria profissio-
nal frente ao campo das políticas públicas, como contribuiu para
uma maior empregabilidade para os psicólogos no setor público
(Vasconcelos, 2009).
Porém, cabe o registro de que o envolvimento da Psicologia
com as chamadas áreas emergentes e as necessidades da grande
maioria da população brasileira, apesar dos avanços, esteve vol-
tada, quase que exclusivamente, para o contexto urbano. E mesmo
com o desenvolvimento de Determinadas pesquisas e experiências
de intervenção refletindo sobre as possíveis contribuições dos psi-
cólogos às populações do campo, ainda assim é tímida a presença
da Psicologia no contexto das ruralidades (Martins et al., 2010).
Apesar dessa timidez, podemos identificar algumas expe-
riências acumuladas de trabalho desenvolvidos por psicólogos na
questão da terra, em que comparecem um conjunto de aportes teó-
ricos e metodológicos que se tornaram essenciais para a garantia
de uma atuação comprometida com a transformação da realidade
de opressão vivida pelos trabalhadores e trabalhadoras do campo,
pelos povos indígenas e remanescentes de quilombos.
Tais aportes vêm, em grande medida, do campo da Psicologia
Social e da Psicologia Comunitária (Lane, 1994; Martín-Baró,
Psicologia e contextos rurais | 47

1996; Campos, 1999; Góis, 2005; Brandão & Bonfim, 1999; Ieno
Neto, 2007), com trabalhos em torno das categorias de estudo da
Psicologia Social, tais como identidade, atividade e consciência,
bem como dos processos comunitários de organização participa-
tiva e emancipação (Lane, 1994; Lane & Sawaia, 1995; Ieno Neto et
al., 1985).
Outro campo marcadamente presente são as contribuições
advindas da Educação Popular (Freire, 1987, 2005), com as ações
de alfabetização de jovens e adultos, dos círculos de cultura, com
vistas a um processo de tomada de consciência dos mecanismos de
exploração vividos pelos agricultores familiares na sua relação de
trabalho com a terra.
Um terceiro campo tem relação com os Direitos Humanos
(Zenaide, 2006) na busca pela garantia do direito de acesso à terra,
nas denúncias de violação de direitos sofridos por trabalhadores
que lutam por terra, em busca da permanência no seu território ou
do seu reconhecimento.
Entendemos que na atuação do profissional de Psicologia,
bem como no seu processo de formação, algumas diretrizes neces-
sitam ser perseguidas para que possamos avançar no compromisso
social dessa ciência e profissão:
1. Conhecer a dinâmica histórica, social e política do nosso pais
no que tange ao conjunto de lutas sociais deflagradas em torno
da democratização e do acesso à terra. O Brasil se configura
mundialmente como um dos países de maior concentração
fundiária do mundo e isso impacta diretamente na produção
da existência de inúmeros trabalhadores e trabalhadoras que
vivem no campo. Aqui, entendemos ser fundamental apreender
a heterogeneidade que se formou no meio rural brasileiro por
meio dos variados modos de relação com a terra, bem como dos
processos sociais gerados nesse contexto.
48 | Psicologia e contextos rurais

2. Considerar que os trabalhadores e trabalhadoras do campo são


portadores de uma diversidade cultural, econômica e regional
nesses modos de relação com a terra e o meio rural, fato que
reverbera também em diferentes modos de subjetivação, cons-
tituídas em meio às particularidades históricas e culturais das
quais são portadores. Leite e Dimenstein (2011, 2010) apontam
como muitos dos trabalhadores envolvidos nas lutas dos movi-
mentos sociais, a exemplo do MST, acabam por incorporar, não
raro de modo conflitivo, novas modalidades subjetivas quando
de seu contato com o processo de formação política mediado
por essas agências de luta, ou seja, novos modos de subjetivação
são forjados no encontro entre a trajetória de vida desses atores
e sua entrada na militância política.

3. Contribuir com o debate sobre os processos sociais do campo,


os movimentos sociais rurais e as novas ruralidades, bem como
sobre o campo das políticas públicas relativas ao meio rural, a
exemplo da reforma agrária e da assistência técnica e extensão
rural. Nesse debate, cabe um posicionamento de que a política
de reforma agrária, longe de representar um retrocesso face ao
modelo dominante do agronegócio ou de que seja vista como
mera medida compensatória, consiste em uma conquista fun-
damental àqueles que da terra precisam para poder construir
novas possibilidades de vida no meio rural. Nesses termos, con-
cordamos com Sauer (2010, p. 38): “A luta social pela realização
de uma reforma agrária está, portanto, baseada, em primeiro
lugar, na busca de instrumentos que gerem emprego e renda,
criando melhores condições de vida no meio rural”.

4. Reconhecer a necessidade de uma articulação com outras áreas


do conhecimento, numa postura dialógica com os variados cam-
pos do saber direcionados para o meio rural. Há uma gama de
reflexões advindas do campo científico e profissional que tem
auxiliado na compreensão dos processos sociais, culturais,
políticos e econômicos do campo. Notadamente, podemos
citar diversos ramos da Sociologia e Antropologia, das Ciências
Agrárias, Economia, Direitos Humanos, Educação popular
Psicologia e contextos rurais | 49

entre outros. É imprescindível, nessa articulação, considerar os


saberes da tradição e da cultura na qual estão imersas as pessoas
do campo, sob pena de termos uma visão distorcida e descolada
de sua realidade e de suas visões de mundo.

5. Apostar numa atuação generalista do psicólogo. Se a atuação


com o meio rural nos impele a um exercício inter e multidis-
ciplinar, do mesmo modo, um conjunto de demandas que se
voltará para o profissional de Psicologia terá natureza bastante
heterogênea (demandas no campo da saúde, educação, orga-
nização social das famílias, gestão da produção, cultura, lazer,
arte etc.). Assim, torna-se fundamental fortalecer um processo
de formação desse profissional pautado numa concepção gene-
ralista que orienta o campo da Psicologia.

Considerações finais
Sem dúvida alguma que estamos diante de um campo de
discussões recente na Psicologia, embora possamos dizer que as
contribuições até aqui produzidas são inquestionáveis.
É forçoso reconhecer, dado o cenário atual, que nossas
agendas de pesquisa, ações de extensão e atuação profissional
necessitam incorporar as questões levantadas no presente capítulo,
a exemplo do processo de interiorização da formação e atuação em
Psicologia, das novas ruralidades que se desenham no campo bra-
sileiro e da diversidade de atores sociais e dos processos de subjeti-
vação inaugurados.
As possibilidades de atuação do psicólogo no que diz
respeito ao meio rural e toda diversidade que ele se reveste são
múltiplas. O cotidiano de vida das pessoas dota-se de uma hetero-
geneidade e intensidade que permite uma variedade de interlocu-
ções com tal riqueza. O que se apontou, até aqui, pode ser tomado
como ponto de partida ou de reflexão para proposições outras.
Desdobramentos podem surgir e o convívio com as comunidades
50 | Psicologia e contextos rurais

pode suscitar inúmeras ideias de aproximação e de diálogo com o


saber e o fazer psicológico. Para tanto, não podemos perder de vista
a proposição de que esse saber e fazer não estão desarticulados de
concepções políticas que podem estancar ou potencializar a eman-
cipação dos atores envolvidos.

Referências
Alarcon, D., & Guerrero, N. (2012). Governo? Por ora, “nos é que resistimos”,
dizem os extrativistas. Revista da Adusp, 52, 22-28.

Antunes, M. A. M. (1999). Processo de autonomização da Psicologia no Brasil.


Psicologia e sociedade, 11(1), 16-26.

Antunes, M. A. M. (2004). A Psicologia no Brasil no século XX: desenvolvimento


científico e profissional. In M. Massimi, & M. C. Guedes. (Org.).
História da Psicologia no Brasil: novos estudos (pp. 109-152). São Paulo:
Educ/Cortez.

Bastos, A. V. B., Gondim, S. M. G., & Rodrigues, A. C. A. (2010). Uma categoria


profissional em expansão: quantos somos e onde estamos? In A. V. B.
Bastos & S. M. G. Gondim (Orgs.), O trabalho do psicólogo no Brasil
(pp. 32-44). Porto Alegre: Artmed.

Belik, W. (2007). Agroindústria e política agroindustrial no Brasil. In P. Ramos


et al. Dimensões do agronegócio brasileiro: políticas, instituições e
perspectivas (pp. 140-170). Brasília: MDA.

Brandão, J. R., & Bonfim, Z. A. C. (1999). Os jardins da Psicologia comunitária:


escritos sobre a trajetória de um modelo teórico vivencial. Fortaleza:
Pró-reitoria de Extensão da UFC/ABRAPSO.

Campos, R. H. F. (1999). Psicologia social comunitária: da solidariedade à


autonomia. 3a ed., Petrópolis: Vozes.
Psicologia e contextos rurais | 51

Carneiro, M. J., & Teixeira, V. L. (2012). Do “rural” como categoria de


pensamento e como categoria analítica. In M. J. Carneiro. Ruralidades
contemporâneas: modos de viver e pensar o rural na sociedade brasileira
(pp. 23-50). Rio de Janeiro: Mauad: FAPERJ.

Carvalho, S. R. (2009). Reflexões sobre o tema da cidadania e a produção de


subjetividade no SUS. In S. R. Carvalho, S. Ferigato & M. E. Barros
(Orgs.). Conexões: saúde coletiva e políticas de subjetividade (pp.
33-41). São Paulo: Hucitec.

CPT (2012). Conflitos no campo. Brasil 2011. Goiânia: CPT Nacional Brasil.
Recuperado em 26 de abril de 2013, de http://www.cptnacional.org.br/
index.php/component/jdownloads/finish/43-conflitos-no-campo-
brasil-publicacao/316-conflitos-no-campo-brasil-2012?Itemid=23.

Delgado, G. C. (2011). Política agrária e reforma agrária: convergência ou


inviabilidade. In T. Merlino & M. L. Mendonça. Direitos humanos no
Brasil 2011. Relatório da Rede Espaço de Justiça e Direitos Humanos
(pp. 31-34). São Paulo: Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, 2011.

Elias, D. S. (2007). Agricultura e produção de espaços urbanos não


metropolitanos: notas teórico-metodológicas. In M. E. B. Sposito
(Org.). Cidades médias: espaços em transição (pp. 113-138). São Paulo:
Expressão Popular.

Fernandes, F. (2008). Sociedade de classes e subdesenvolvimento. 5a ed., São


Paulo: Global.

Foucault, M. (2008). O nascimento da biopolítica. Curso no Collège de France


(1978 – 1979). São Paulo: Martins Fontes.

Freire, P. (1987). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Freire, P. (2005). Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra.


52 | Psicologia e contextos rurais

Góis, C. W. L. (2005). Psicologia comunitária: atividade e consciência.


Fortaleza: Instituto Paulo Freire.

Graziano da Silva, J. F. (1994). O desenvolvimento do capitalismo no campo


brasileiro e a reforma agrária. In J. P. Stédile (Org.). A questão agrária
hoje (pp. 137-143). Porto Alegre: Editora da UFRGS.

Hoffmann, R., & Ney, M. G. (2010). Evolução recente da estrutura fundiária


e propriedade rural no Brasil. In J. G. Gasques, J. E. R. Vieira Filho,
Z. Navarro. (Orgs.). A agricultura brasileira: desempenho, desafios, e
perspectivas (pp. 45-64). Brasília: IPEA.

Ieno Neto, G (2007). A reforma agrária como alternativa à violência. In M.


Grandesso, & M. R. Barreto (Orgs), Terapia Comunitária: tecendo redes
para a transformação social – sáude, educação e políticas públicas (pp.
47-54). São Paulo: Casa do Psicólogo.

Ieno Neto, G., Nunes, B., Malheiro, D., Moreira, E., Conserva, M., Souza, M.,
Mariano, M., Neves, M., Silva, S., Queiróz, T., & Veloso, T. (1985). Uma
experiência de trabalho no meio rural. Psicologia: ciência e profissão,
5(2), 27-31.

Lane, S. T. M. (1994). A Psicologia Social e uma nova concepção de homem


para a Psicologia. In S. T. M. Lane & W. Codo (Org.). Psicologia social:
o homem em movimento (pp. 10-19). 14a ed., São Paulo: Brasiliense.

Lane, S. T. M., & Sawaia, B. B. (Orgs.) (1995). Novas veredas da Psicologia


Social. Petrópolis: Vozes.

Leite, J. F., & Dimenstein, M. (2010). Movimentos sociais e produção de


subjetividade: o MST em perspectiva. Psicologia e Sociedade, 22,
269-278.

Leite, J. F., & Dimenstein, M. (2011). Processos de subjetivação da militância


política do MST. Polis e Psique, 1(1), 13-37.
Psicologia e contextos rurais | 53

Linhares, M. Y. L., & Silva, F. C. T. (1999). Terra prometida: uma história da


questão agrária no Brasil. Rio de Janeiro: Campus.

Macedo, J. P. (2012). Relatório de Iniciação Científica Voluntária da UFPI.


Interiorização da formação de psicólogos no Brasil: investigação
curricular. Parnaíba: UFPI.

Macedo, J. P., & Dimenstein, M. (2011). Expansão e interiorização da Psicologia:


reorganização do saberes e poderes na atualidade. Psicologia: ciência e
profissão, 31(2), 296-213.

Martín-Baró, I. (1996). O papel do psicólogo. Estudos de Psicologia, 2 (1), 7-27.

Martín-Baró, I. (2009). Desafios e perspectivas da Psicologia latino-americana.


In R. S. L. Guzzo, & F. Lacerda. Psicologia social para a América Latina:
o resgate da Psicologia da libertação (pp. 199-220). São Paulo: Alínea.

Martins, A. M., Rocha, M. I. A.; Augusto, R. C., & Lee, H. O. (2010). A formação
em Psicologia e a percepção do meio rural: um debate necessário.
Psicologia: ensino & formação, 1(1), 83-98.

Mauro, G., & Pericás, L. B. (2001). Capitalismo e luta política no Brasil: na


virada do milênio. São Paulo: Xama.

Mello, S. L. (1975). Psicologia e profissão em São Paulo. São Paulo: Ática.

Mendonça, S. R. (2006). A classe dominante agrária: natureza e comportamento


– 1964-1990. In Stédile, J. P. (Org.). A questão agrária no Brasil (pp.
17-200). São Paulo: Expressão popular.

Moreira, R. J. (2005). Identidades sociais em território rurais fluminenses.


In R. J. Moreira. (Org.). Identidades sociais: ruralidades no Brasil
contemporâneo (pp. 65-88). Rio de Janeiro: DP&A.
54 | Psicologia e contextos rurais

Motta, J. M. C. (2004). Fragmentos da história e da memória da Psicologia


no mundo do trabalho no Brasil: relações entre a industrialização
e a Psicologia. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação da
Faculdade de Ciências Médicas, Universidade de Campinas, Campinas.

MST (2007). Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). (2007).
Textos para estudo e debate: 5º Congresso Nacional do MST. São Paulo:
Secretaria Nacional.

Nakatani, P., Faleiros, R. N., & Vargas, N. C. (2012). Histórico e os limites da


reforma agrária na contemporaneidade brasileira. Serviço social &
sociedade, 110, 213-240.

Oliveira, A. U. (2004). Geografia agrária: perspectivas no início do século XXI.


In A. U. Oliveira, & M. I. M. Marques (Org.). O campo no século XXI:
território de vida, de luta e de construção da justiça social (pp. 27-64).
São Paulo: Casa amarela; Paz e Terra.

Passetti, E. (2003). Anarquismos e sociedade de controle. São Paulo: Cortez.

Paula, J. A. (2006). A cidade e a universidade. In C. A. L. Brandão (Org.). As


cidades da cidade (pp. 35-54). Belo Horizonte, MG: UFMG.

Penna, A. G. (2004). Breve contribuição à história da Psicologia aplicada ao


trabalho no Rio de Janeiro. Mnemosine, 1, 143-148.

Pessotti, I. (1988). Notas para uma história da Psicologia brasileira. In


Conselho Federal de Psicologia. Quem é o psicólogo brasileiro? (pp.
17-31) São Paulo: Edicon.

Rosas, P.; Rosas, A.; Xavier, I. B. (1988). Quantos e quem somos. In Conselho
Federal de Psicologia (Org). Quem é o psicólogo brasileiro? (pp. 32-48).
São Paulo: Edicon.
Psicologia e contextos rurais | 55

Sánchez, F. (1999). Políticas urbanas em renovação: uma leitura crítica dos


modelos emergentes. Rev. Bras. Estudos Urbanos Regionais, 1(1),
115-132.

Sauer, S. (2010). Terra e modernidade: a reinvenção do campo brasileiro. São


Paulo: Expressão popular.

Sousa Filho, A. (2006). O ideal de universidade e sua missão. In J. Moll & P.


Sevegnani (Org.). Universidade e o mundo do trabalho (pp. 173-184).
Brasília: INEP.

Sraffa, P. (1977). Produção de mercadorias por meio de mercadorias. Rio de


Janeiro: Zahar.

Vasconcelos, E. M. (2009). Apresentação. Os vários significados deste livro


de Psicologia e de sua perspectiva de engajamento social no contexto
brasileiro atual. In M. Dimenstein (Org.). Produção do conhecimento,
agenciamentos e implicação no fazer pesquisa em Psicologia (pp. 9-17).
Natal: EDUFRN.

Yamamoto, O. H. (2007). Políticas sociais, “terceiro setor” e “compromisso


social”: perspectivas e limites do trabalho do psicólogo. Psicologia e
Sociedade, 19(1), 30-37. Recuperado em 10 de setembro de 2012, de
http://www.scielo.br/pdf/psoc/v19n1/a05v19n1.pdf.

Zenaide, M. N. T. (2006). A questão da terra como desafio para a Psicologia.


In CFP (Org.), Seminário Nacional: A questão da terra – desafios para
a Psicologia (Relatório) (pp. 100-105). Brasília: CFP.
A categoria juventude
em contextos rurais: o
dilema da migração
Otacílio de Oliveira Jr.
Marco Aurélio Máximo Prado

O presente texto é fruto de pesquisa sobre a migração juve-


nil e a trajetória de jovens rurais que teve como objetivo
investigar como jovens migrantes, filhos de agricultores familiares,
davam sentido ao seu percurso migratório. Em diferentes discur-
sos, a criação de melhores condições econômicas junto à terra tem
sido apontada como reversão do processo migratório juvenil, pois
permitiria a realização de projetos de vida no campo como opção
legítima e passível de ser vivida. A reversão da migração também
permitiria equacionar uma crise de reprodução da agricultura fami-
liar, fruto do esvaziamento das zonas rurais que a migração juvenil
geraria. As variáveis que garantiriam uma resolução das dificulda-
des de reprodução da agricultura familiar têm sido consideradas
como sinônimo de resolução do conjunto de problemas enfrenta-
dos pelos jovens nesses contextos. A permanência dos jovens, por
58 | Psicologia e contextos rurais

sua vez, contribuiria para a manutenção de modos de vida singu-


lares erigidos em torno da agricultura familiar. Há, portanto, uma
forte associação entre crise da agricultura familiar, juventude rural
e migração.
Essa associação faz com que os jovens rurais e seus projetos
sejam considerados apenas a partir desse prisma. Fora desse con-
junto de associações que pressupõe a permanência como um valor
inequívoco, o discurso dos jovens é deslegitimado, pois apontaria
para a sedução da cidade e a desvalorização dos modos de vida vin-
culados à ruralidade.
No entanto, os sentidos atribuídos à migração podem reve-
lar projetos diversos que incitam a repensar o campo no espaço de
disputa por diferentes discursos e sociabilidades. Nem todos esses
posicionamentos juvenis são a princípio contraditórios ou hostis
à permanência e aos modos de vida vinculados à pequena agricul-
tura. Mas exigem que a capacidade reflexiva desenvolvida pelos
jovens em seu cotidiano (Heller, 1977) seja encarada como possibi-
lidade legítima de entendimento da questão.
Tendo isso em vista, nos propomos neste capítulo a discutir
como a categoria juventude rural tem sido construída em torno do
tema da migração. A temática migratória gera discursos inflama-
dos, seja como argumento na defesa das minorias do campo, seja
contribuindo para a sua expulsão. Como consequência, a categoria
migrante aparece nos discursos, sobretudo naqueles que transitam
cotidianamente, como algo marginal ou maldito. Não buscamos
uma posição de neutralidade, mas suspender o peso de posiciona-
mentos que cercam esse debate é um esforço que visamos enfrentar.
Pode-se objetar o risco de legitimarmos projetos desenvolvimentis-
tas que contribuem para o reforço da concentração fundiária e da
opressão de diferentes grupos ao dar relevo aos discursos de jovens
migrantes. No entanto, o risco se justifica quando a compreensão
nasce do desejo de buscar alternativas que considerem os discursos
Psicologia e contextos rurais | 59

juvenis legítimos e os incluam na definição de projetos de defesa da


agricultura familiar.

O fenômeno da migração rural


na história brasileira
O tema da migração rural urbana é bastante marcante na
cultura brasileira. Há todo um imaginário constituído por ima-
gens, romances, filmes e canções. A figura central que sintetiza
todas essas manifestações presentes em obras como Vidas secas de
Graciliano Ramos ou no cancioneiro de Luiz Gonzaga é o retirante
nordestino. Fugindo do flagelo das secas, ele migra com sua família
para a cidade grande. Sua condição é frágil. Vem miserável, sem
nenhuma garantia. Junto a todos os reveses que permeiam as traje-
tórias dos migrantes empobrecidos, existe uma marca. O migrante
como portador de mau agouro.
Mas o que justifica essa presença tão marcante do migrante
no imaginário brasileiro? O que causa a simpatia e ao mesmo
tempo o horror? Podemos dizer que o que imprimiu essa marca
foi o contingente maciço de pessoas que deixaram as regiões rurais
entre as décadas de 1960 e 1980. Nesse período, o êxodo rural bra-
sileiro contabilizou 27 milhões de pessoas. “Poucos países conhe-
ceram movimentos migratórios tão intensos, quer se considere a
proporção ou a quantidade absoluta da população rural atingida”
(Camarano e Abramovay, 1999, p. 1). Assim, muitos de nós somos
descendentes ou fazemos parte dessas pessoas que vieram para as
cidades em busca de algo. Muitas histórias circulam e trazem em
seu bojo um cheiro de terra.
Esse fenômeno, tão significativo como podemos perceber,
motivou diferentes estudiosos a compreender o que ocorria para
além dos andrajos da figura dos migrantes. Num momento em que o
país intensificava a sua industrialização, um contingente grande de
pessoas oriundas das zonas rurais tornava-se trabalhador urbano.
60 | Psicologia e contextos rurais

Destacamos os estudos seminais de Antônio Cândido, Os Parceiros


do Rio Bonito publicado em 1964 e A Caminho da cidade de Eunice
Durham publicado em1973 como tentativas frutíferas de entender
esses fenômenos. Resgatamo-los não apenas pelo seu interesse his-
tórico, mas pela contribuição teórica que nos oferecem instrumen-
tos para o entendimento da persistência do processo migratório.
Principalmente ajudam-nos a compreender o lugar subalterno dos
pequenos produtores do país e como a migração vai se instituciona-
lizando como forma de sobrevivência dessas mesmas populações.
Entre meados da década de 1940 e 1950, Cândido (2001)
estudou a condição social e as formas de sociabilidade dos chama-
dos caipiras, em sua maioria pequenos agricultores, agregados ou
posseiros de uma porção extensa do território brasileiro numa área
que recobria parte dos estados de São Paulo, Minas, Mato Grosso,
Goiás e Paraná. Num período de intensificação da industrialização
do país, no qual cidades como São Paulo e Rio recebiam um grande
afluxo de migrantes provindos das zonas rurais. Um dos principais
interesses do autor era compreender o processo de transformação
dos modos de vida dessas populações. Quais eram os impactos da
economia de mercado e seus bens de consumo sobre grupos que
durante pelos menos um par de séculos gestaram uma forma relati-
vamente autônoma de se reproduzirem, ainda que num equilíbrio
precário entre as suas necessidades e os recursos do meio físico?
Para responder a essa questão foi realizada uma reconstituição his-
tórica da sociabilidade caipira a partir do estudo de suas formas de
ocupação da terra, das técnicas de produção utilizadas, dos laços
de solidariedade e dos seus recursos alimentares, portanto, de sua
cultura. A partir desse quadro, Cândido (2001) propôs uma análise
das mudanças que essa população sofria em face do fortalecimento
da civilização urbana. No nosso caso, interessa-nos apenas desta-
car de forma o mais sintética possível as contribuições teóricas do
autor para o entendimento da migração rural-urbana.
Psicologia e contextos rurais | 61

Durham (1973) por sua vez, realizou durante a década de


1960, um extenso estudo sobre o processo de integração das popu-
lações rurais brasileiras ao cenário de intensificação de industriali-
zação do país. Tendo como pano de fundo uma revisão de autores
que discutiam o impacto da expansão capitalista com as zonas
rurais, como o já citado Cândido (2001), analisou dados demográfi-
cos do período e realizou diversas pesquisas de campo com migran-
tes de origem rural:

O nosso problema fundamental é analisar as transforma-


ções que devem ocorrer no comportamento e na cultura
das populações envolvidas na expansão de um sistema
que, se de um lado aumenta a pobreza e desagrega a base
tradicional de existência das populações economica-
mente marginais, de outro incorpora percentagens dessa
mesma população como mão de obra necessária ao seu
próprio desenvolvimento (Durham, 1973, p. 9).

Desse modo, seus interesses se concentravam em entender o


processo de intensas transformações sociais pelo qual uma popula-
ção historicamente marginal representada por pequenos agriculto-
res passava naquele período. Seu enfoque compreendia o processo
migratório como parte inerente ao processo de modernização do
país1. Tendo em vista a contribuição desses dois autores, precisa-
mos então partir de um entendimento mínimo de como se consti-
tuía a economia de subsistência reproduzida por esses grupos.
Para Cândido (2001), a existência de um determinado grupo
depende do equilíbrio relativo entre as suas necessidades e os
recursos do meio que permitem satisfazê-las. A manutenção desse
equilíbrio requer do grupo soluções “mais ou menos adequadas

1 Posição um pouco divergente de Cândido (2001). Este último demarcava de for-


ma mais incisiva a necessidade de valorização desses grupos através de incenti-
vos públicos como reforma agrária.
62 | Psicologia e contextos rurais

e completas, das quais depende a eficácia e a própria natureza


daquele equilíbrio. As soluções por sua vez dependem da quanti-
dade e qualidade das necessidades a serem satisfeitas” (Cândido,
2001, p. 28). Nesse sentido, destaca-se a importância da media-
ção do grupo para a satisfação dessas necessidades. Não apenas
mediação, mas as próprias necessidades são socialmente criadas a
partir da relação entre os humanos e o meio natural. O equilíbrio
social dependerá da correlação entre as necessidades e suas possi-
bilidades de satisfação. Os momentos de crise seriam justamente a
impossibilidades de correlacioná-las. O impulso gerador da socie-
dade humana seria justamente o aparecimento “de necessidades
sempre renovadas e multiplicadas, a que correspondem recursos
também renovados e multiplicados para satisfazê-las, dando lugar
a permanente alteração dos vínculos entre homem e meio natural”
(Cândido, 2001, p. 29).
Dessa forma, a manutenção de tal equilíbrio para cada
grupo depende de uma organização social (nesse caso, diferentes
práticas de ajuda mútua) que permita a exploração do meio físico
em busca de recursos de subsistência, os quais, por sua vez, permi-
tem se aproximarem ou não da satisfação das necessidades postas.
Como o próprio autor destaca, essas equações simplificadoras per-
mitem pensarmos em fórmulas para o equilíbrio grupal no tocante
à subsistência. Ora, podemos nos perguntar: o que justificam
fórmulas tão reducionistas? Nas quais a cultura parece funcionar
como um “conjunto orgânico”? Ainda que o autor em diversas pas-
sagens reforce o caráter sociocultural das manifestações humanas,
sua preocupação é de cairmos num relativismo extremo. O reco-
nhecimento de traços culturais disfuncionais tem em vista apontar
aspectos que dificultariam não somente a integração dos grupos,
mas principalmente a sua sobrevivência. É por isso que ele recorre
à ideia de mínimos sociais e vitais:
Psicologia e contextos rurais | 63

De qualquer modo, há para cada cultura, em cada


momento, certos mínimos abaixo dos quais não se
pode falar em equilíbrio. Mínimos vitais de alimenta-
ção e abrigo, mínimos sociais de organização para obtê-
-los e garantir a regularidade das relações humanas.
Formulados nesses termos, o equilíbrio social depende
duma equação entre o mínimo social e o mínimo vital.
[...] Dir-se-á, então, que um grupo ou camada vive
segundo mínimos vitais e sociais quando se pode, veros-
similmente, supor que com menos recursos de subsis-
tência, a vida orgânica não seria possível, e com menor
organização das relações não seria viável a vida social:
teríamos fome no primeiro caso, anomia no segundo
(Cândido, 2001, pp. 32-35).

Os mínimos sociais seriam o mínimo de relações sociais


ou de organizações grupais que permitem a existência desses gru-
pos em face às suas condições precárias de existência. Sem isso, o
que teríamos seria uma anomia, pois a ausência de organização de
ajuda mútua dificultaria bastante a sobrevivência, seja ela física ou
de ordem mental. Esses mínimos sociais são representados pelo
trabalho empreendido pela família conjugal, os laços de obrigação
presentes nas relações de parentesco e compadrio e por último, os
laços de vizinhança. Essas relações geram vínculos de solidariedade
e permitem a reprodução de populações que vivem num isolamento
parcial, se mobilizando não apenas para a organização do trabalho
como organizando festas e momentos diversos de lazer. Seu isola-
mento é relativo, pois sempre houve o contato com o comércio das
vilas na busca de produtos impossíveis de obtê-los através da pro-
dução doméstica. Além disso, Durham (1973) chama-nos a atenção
que essas características se reproduziram nas diversas manifesta-
ções dos pequenos agricultores brasileiros no período.
Desse modo, a existência dos pequenos agricultores pode
ser entendida como um esforço de manutenção de mínimos sociais
64 | Psicologia e contextos rurais

e vitais de existência. Suas formas de organização social e cultural


competem para essa manutenção. Dentre essas formas, a mobili-
dade para novas terras à medida que as antigas perdiam sua ferti-
lidade e se fragmentavam com a herança dos filhos e netos, foi um
recurso importante, o que engendrava um processo de povoamento
disperso desses grupos. Isso permitia não apenas um rendimento
maior da produção frente às técnicas utilizadas como que o patri-
mônio familiar fosse conservado a partir da aquisição de novas por-
ções do território:

[...] uma característica importante da antiga vida caipira


era a presença de terras disponíveis, que desempenha-
vam papel duplo e de certo modo contraditório. De um
lado, constituíam fator de reequilíbrio, na medida que
permitiam reajustar, sempre que necessário, situações
tornadas difíceis economicamente pela subdivisão da
propriedade, devida herança, ou pela impossibilidade
de provar os direitos sobre a terra. Estes fatores, aliás,
eram mais poderosos como estímulo á mobilidade do
caipira do que a instabilidade pura e simples, que se tem
querido explicar, inclusive da mestiçagem com o índio;
mas cujas principais determinantes são sociais, sobre-
levando o caráter precário dos títulos de propriedade
(Cândido, 2001, p. 109).

A economia de subsistência no Brasil sempre existiu à mar-


gem da grande lavoura, forma de trabalho livre numa sociedade
voltada para a exportação de produtos agrícolas. Essa existência se
contrapõe ao trabalho considerado pesado e mal pago do latifún-
dio, marcado principalmente pelo uso de mão de obra escrava. Esse
conjunto de trabalhadores livres divididos entre ex-latifundiários
empobrecidos, emigrados, mestiços e libertos viviam marginal-
mente ao sistema econômico colonial (Franco, 1997). Sua exis-
tência fora permitida em grande parte pela abundância de terras
Psicologia e contextos rurais | 65

não ocupadas disponíveis. À medida que suas famílias cresciam e


que a exploração do solo com técnicas rudimentares inviabilizava
a produção, novas terras eram buscadas e novos agrupamentos
eram constituídos. Destaca-se assim como a mobilidade vai se con-
figurando um recurso institucionalizado nessas populações para
reproduzirem suas formas de vida (Durham, 1973, p. 52):

A ocupação de grande parte do território nacional havia


sido feita por uma população predominantemente livre,
dedicada em parte à agricultura, em parte à criação,
voltada para uma economia de subsistência, mantendo
relações precárias com as áreas urbanas e as áreas de pro-
dução agrícola mercantil.

Mais tarde, a legalização das propriedades e o aumento da


densidade demográfica impediram que esse equilíbrio fosse resta-
belecido. As terras passaram a ser valorizadas e adquiridas pelas
agroindústrias nascentes. A aquisição legalizada da terra benefi-
ciava aqueles que participavam do sistema político e administra-
tivo (Ibidem). Dessa forma, o fazendeiro ou o latifundiário, ao
incorporar terras ocupadas através da posse dos títulos de proprie-
dade, transformou esses trabalhadores livres em posseiros e agre-
gados, desconhecendo dessa forma seu direito legítimo à terra.
Estabelecem-se assim novos padrões de propriedade e dominação
de forma a integrar subalternamente os pequenos agricultores ao
sistema político nacional.
Esse processo de subordinação se aprofunda. A introdução
da exploração comercial da grande propriedade pela empresa rural
e mercantil gera a expansão da economia monetária para territórios
que se dedicavam a uma economia exclusivamente de subsistência.
Os trabalhadores antes mantidos numa relação de dominação que
se sustentava num plano moral e político representado por laços de
lealdade com o fazendeiro passam também a se submeterem a uma
relação de espoliação econômica.
66 | Psicologia e contextos rurais

Além disso, a introdução de bens de consumo modificou a


equação anterior entre necessidades dos grupos e sua satisfação. As
necessidades anteriores circunscritas a níveis próximos dos míni-
mos vitais passam a se elevar. Aquilo que antes era produzido no
âmbito doméstico passa a ser obtido através da compra e venda.
Isso faz com que precisem trabalhar mais para vender cada vez
mais. Em consequência, as relações vicinais de ajuda mútua que
juntamente à mobilidade concorriam para a reprodução de suas
formas de vida diminuem diante do aumento da necessidade de
individualização do seu trabalho e obrigam a reorganizar seus vín-
culos: “Quem não faz assim deve abandonar o campo pela cidade,
ou mergulhar nas etapas mais acentuadas de desorganização, que
conduzem a anomia”(Cândido, 2001, p. 213).
A falta de terras livres e o desconhecimento de técnicas
mais produtivas fazem com que o equipamento tradicional não
possa satisfazer as novas necessidades criadas. Assim, as necessi-
dades são multiplicadas enquanto os seus meios de satisfação são
insuficientes. Com isso, destaca-se o reforço da condição de um
equilíbrio precário nas formas de reprodução social dos pequenos
agricultores. Ademais, esse contexto permitiu processos de compa-
ração social que criou novos hábitos. O trabalhador que descobre
técnicas menos árduas e mais eficientes começa a achar insupor-
tável a tarefa que executa com técnicas agora vistas como rudi-
mentares. Sem a possibilidade de comparação, essas tarefas eram
simplesmente aceitas. Somado a isso, as práticas e usos associados
à urbanidade começam a circular como signo de prestígio pessoal.
Os meios de comunicação começam a disseminar novos valores e
objetos de consumo.
Nesse sentido, há possibilidades variadas no que tange a
resistência e assimilação. Disso vai depender da situação fundiária,
o que implica o tamanho da propriedade, a situação quanto à posse
da terra, se estamos falando de um sitiante, de um agregado ou
posseiro, de como se reorganiza o trabalho familiar e, em última
Psicologia e contextos rurais | 67

instância, da flexibilidade e disposição para se adequar às novas


formas de trabalho, o que nesse momento significou abandonar
padrões de sociabilidade.
É justamente nessa dinâmica complexa que a migração para
as cidades aparece como uma possibilidade de enfrentamento dos
dilemas vivenciados. No interior das dificuldades de satisfação
de uma gama de necessidades com os meios existentes está, num
extremo, a fome e num outro, o fascínio por novos valores e hábi-
tos. Sem esquecermos, é claro, do preconceito e desvalorização dos
seus meios de vida.
Diante do contexto apresentado, a migração se torna mas-
siva. O antigo recurso da mobilidade usado como estratégia de
conservação das formas de vida se imbricou às novas necessidades
impostas. Podemos dizer que a migração vai cada vez mais se ins-
titucionalizando como forma de enfrentamento das dificuldades
vivenciadas. Para Durham (1973), essa tradição migratória pode ser
entendida como um recurso tradicional para aliviar tensões econô-
micas e sociais. A incorporação dessas formas de vida à economia
monetária implica na conservação da mobilidade espacial como
um recurso adaptativo importante:

Numa cultura de mínimos vitais qualquer variação nas


condições de trabalho, clima, solo, relação com o patrão,
representa frequentemente a diferença fundamental
entre subsistência e fome. É este fator que torna a mobi-
lidade uma característica tão generalizada da vida rural
brasileira (Ibidem, p. 120).

Desse modo, ao se constituir como uma tradição migrató-


ria, esse mecanismo torna-se uma “solução” para diferentes tipos
de problemas, de tensões características do funcionamento da vida
tradicional, como dificuldades econômicas e conflitos familiares.
Podemos entrever diferentes formas de subordinação relativas às
68 | Psicologia e contextos rurais

posições de gênero, orientação sexual, entre outros, que têm na


mobilidade uma tentativa de resolução.
Quase meio século depois, ainda que muitas transforma-
ções tenham ocorrido em nossa sociedade, a pequena agricultura
continua marginalizada em nosso país. Os incentivos à grande
empresa rural apenas se intensificaram ao longo desses anos. Como
nos diz Wanderley (1996), a história do campesinato brasileiro é
um esforço de luta constante para se manter próximo aos míni-
mos vitais e sociais discutidos por Cândido em 1964. No interior
dessa resistência, a mobilidade espacial sempre se conservou como
um recurso importante para a reprodução da sociabilidade desses
pequenos agricultores. Ao mesmo tempo, atesta a sua subalterni-
dade e falta de interesse público:

Evidentemente, não é possível generalizar esta situação


limite – isto é, este padrão correspondente aos mínimos
vitais e sociais – para o conjunto do campesinato brasi-
leiros, em seus diversos momentos e em todo o território
nacional. Porém, mesmo considerando que as formas da
precariedade são diferenciadas, os camponeses tiveram,
de uma maneira ou de outra, que abrir caminho entre
as dificuldades alternativas que encontravam: subme-
ter-se à grande propriedade ou isolar-se em áreas mais
distantes; depender exclusivamente dos insuficientes
resultados do trabalho no sítio ou completar a renda,
trabalhando no eito de propriedades alheias; migrar
temporária ou definitivamente (Wanderley, 1996, p. 9).

Mesmo diante da manutenção desses dilemas, o estudo da


migração rural-urbana deixou de figurar entre os interesses prio-
ritários dos estudiosos sobre o tema: “Tudo se passa como se o
esvaziamento social, demográfico ou econômico do campo fosse
uma fatalidade inerente ao processo de desenvolvimento ou como
se acreditasse que o fenômeno estudado já tivesse perdido sua
Psicologia e contextos rurais | 69

importância quantitativa” (Camarano &Abramovay,1999, p. 1). O


que é confirmado ao realizarmos uma revisão sobre o tema. A não
ser alguns estudos de casos sobre a condição juvenil no campo que
serão apresentados, não foi encontrado nenhuma pesquisa sistemá-
tica do ponto de vista demográfico sobre a migração rural-urbana
no país desde a publicação de Camarano e Abramovay em 1999.
Os dados analisados naquela pesquisa tiveram como base o Censo
de 1991 e a Contagem Populacional de 1996. Cobriram o período
que vai da década de 1950 a meados de 1990. Há um intervalo de
quase duas décadas entre o panorama traçado por esses autores e o
momento presente. Contudo, é notória a persistência do fenômeno
do ponto de vista quantitativo na década de 1990. Entre 1990 e 1995,
o movimento migratório rural-urbano foi de 5,5 milhões de pes-
soas. O êxodo rural brasileiro no período é, sobretudo, nordestino:
“De todos os migrantes rurais do país, 54, 6 % saíram do Nordeste
entre 1990 e 1995, o que representou 31, 1 % da população que vivia
na zona rural da região no início da década” (Ibidem, p. 5).
Tendo em vista a importância dessa temática para o enten-
dimento das condições de vida das juventudes rurais, queríamos
demarcar como o processo migratório se constitui como uma dinâ-
mica histórica e estrutural das populações rurais pauperizadas no
Brasil. Essa demarcação busca situar a trajetória dos jovens rurais
como parte integrante de um extenso histórico de subordinação
dos pequenos agricultores. Em tal narrativa, pudemos perceber a
migração como um fenômeno contraditório, pois ao mesmo tempo
que permite a reprodução das formas de vida vinculadas à pequena
agricultura reforça a sua condição de precariedade.

Juventude rural como categoria social


A definição do que seria juventude rural enquanto cate-
goria distintiva de outras experiências juvenis tem apontado para
a necessidade de investigar os contextos específicos nos quais a
70 | Psicologia e contextos rurais

categoria tem sido construída e o sentido que ela assume para os


atores sociais (Castro, 2006). Em vez da busca por uma determi-
nação unívoca do que seria juventude, estamos considerando-a
como uma forma de conferir sentido à hierarquia geracional e às
relações de poder que esta enseja. Conjuntamente às desigualdades
econômicas, raciais e de gênero, existem desigualdades geracionais
que determinam diferentes formas de subordinação e interpela-
ção do poder. Desse modo, juventude seria vista como uma forma
suis generis de dar sentido à hierarquia geracional através de uma
série de atribuições sociais conferidas aos mais jovens em relação a
outras categorias em nossa sociedade (Bourdieu, 1983).
Nas pesquisas sobre o tema, a categoria juventude rural
se apresenta principalmente sobre duas matrizes analíticas: uma
que enfatiza a dimensão geográfica onde residem os jovens pes-
quisados enfatizando a relação com o território ao qual pertencem
(jovens do sertão, jovens ribeirinhos, entre outros) e outra que leva
em conta o processo de socialização dos jovens em algumas ocupa-
ções (jovens agricultores, jovens empresários rurais entre outras)
(Weisheimer, 2005). A partir dessas óticas, com destaque para a das
ocupações, a participação da juventude rural nas demais esferas
sociais fica invisibilizada.
Essa invisibilidade pode ser pensada à luz de três dimen-
sões. A primeira pela visão estereotipada dos jovens rurais a partir
de uma visão urbana de juventude, a qual pressupõe uma cultura
propriamente juvenil e de adiamento de papéis e responsabilida-
des dos adultos, principalmente quanto ao trabalho. Assim, como é
comum aos jovens rurais trabalharem e casarem desde cedo, mui-
tas vezes sem um período grande de escolarização, não são vistos
como jovens. Como consequência, têm sido privados de políticas
públicas específicas (Carneiro, 2005b). A segunda dimensão dessa
invisibilidade refere-se ao lugar de subordinação desses jovens nas
próprias comunidades em que vivem, o que tem sido responsá-
vel por uma lacuna na representação política dessa população no
Psicologia e contextos rurais | 71

espaço público da sociedade (Stropasolas, 2006). Como salienta


esse autor, os jovens e as mulheres, o que ele chama de “outros” do
espaço rural, veem seus desejos, visões e expectativas relegadas a
um segundo plano, predominando, dessa forma, os interesses de
segmentos hegemônicos da sociedade rural. Uma terceira dimen-
são refere-se justamente às matrizes apontadas por Weisheimer
(2005) anteriormente. A ênfase nos aspectos econômicos e formas
de socialização voltadas para o trabalho agrícola podem invisibili-
zar dinâmicas complexas nas quais os jovens participam.
A despeito dessa invisibilidade, diferentes autores têm se
preocupado em apreender a categoria de uma forma mais abran-
gente. Para esses (Abramovay, Silvestro, Cortina, Baldissera, Ferrari
&Testa, 2001; Brumer, 2008; Carneiro; 1998, 2005; Castro, 2005,
2006, 2009; Durston, 1998; Strapasolas, 2004, 2006; Wanderley,
2007; Weisheimer, 2005) compreender a juventude rural como
categoria implica analisar o espaço de reprodução social no qual
se constituem e as tensões e rupturas que apontam para diferentes
possibilidades de socialização.
A pertença a uma ruralidade representada pela filiação à
agricultura familiar e às mudanças ou crises que esse modelo vem
sofrendo tem se refletido na maneira como a própria juventude no
campo tem sido entendida. Como aponta Weisheimer (2005) têm
predominado “enfoques que destacam a diversidade das formas em
que a modernização e a complexificação social do rural afetam a
juventude” (Ibidemp. 17). Desse modo, teríamos, por um lado, uma
caracterização da agricultura familiar, camponesa ou tradicional,
como um modo de vida que comporta relações de poder específicas
nas quais os jovens ocupam posições determinadas no interior de
uma hierarquia própria. Por outro, esse modo de vida tem sofrido
um processo de aprofundamento de dificuldades econômicas de
reprodução e falta de políticas públicas consistentes que contri-
buam para sua sobrevivência (Abramovay et al., 2001). Somado a
isso, uma série de mudanças de valores e questionamento desses
72 | Psicologia e contextos rurais

modos de vida (Carneiro, 1998; Strapasolas, 2006) tem revelado


rupturas nas relações de poder concebidas como tradicionais. É no
interior desse debate entre ruptura e continuidade, entre possibi-
lidades de reprodução e esvaziamento do campo que a categoria
juventude rural tem sido analisada e construída como objeto de
estudo. Dado esse enfoque, a migração tem sido considerada um
grande dilema para a juventude e, em consequência, para a repro-
dução da agricultura familiar enquanto um modo de vida distinto
e legítimo.
Diante desse dilema, as explicações correntes para o fenô-
meno migratório dos jovens rurais têm se posicionado ora confe-
rindo um peso maior às dificuldades de reprodução econômica e
dificuldades de acesso a terra, ora acentuando transformações no
que tangem a individuação dos projetos juvenis ou então ressal-
tando mudança de valores que tem como resultado a interpelação
da hierarquia familiar.
Para Durston (1998) a definição da categoria juventude
rural significa inter-relacionar as particularidades do ciclo de vida,
o desenvolvimento do espaço de reprodução do trabalho familiar
(hogar paterno)2 e as mudanças nas relações intergeracionais:
“Ainda que a elaboração de projetos individuais seja uma impor-
tante e particular característica juvenil, na família rural a con-
gregação destas estratégias se vê fortemente condicionadas pelos
objetivos e estratégias da autoridade paterna” (Ibidem,p. 7). Mesmo
que em sua concepção juventude seria um período de formulação
de projetos de vida mais individualizados com vistas à assunção
de papéis condizentes à vida adulta, no caso da juventude rural,
o espaço de reprodução social da unidade familiar passa a ter um
peso determinante na construção destes projetos.

2 Na definição corrente na literatura sobre o tema no Brasil, autoridade paterna


seria o termo mais correto para designar a relações de poder organizadas em
torno da figura chefe de família.
Psicologia e contextos rurais | 73

O modelo de Durston (1998) para explicar a condição da


juventude rural parte da ideia de autoridade paterna como epicen-
tro das relações de poder nas quais os jovens se inserem e a partir
das quais tecem suas escolhas e transitam na hierarquia familiar até
assumirem a posição de adultos. A posição juvenil estaria localizada
no interior de relações de subordinação no qual a figura do chefe
de família teria maior poder sobre os outros membros do grupo
familiar. Ele seria responsável pelo gerenciamento da unidade pro-
dutiva, o que lhe permite maior controle sobre os recursos, legiti-
mando, dessa forma, sua ingerência. Tal controle se estende para
decisões sobre problemas cotidianos do grupo familiar que envol-
vem desde a divisão de tarefas à sucessão hereditária, ao controle
sobrea circulação de mulheres e jovens nos espaços públicos.
Ainda para Durston (1998), a condição juvenil rural deve ser
entendida a partir da relação entre uma crescente pressão demo-
gráfica sobre a terra e os mecanismos de autoridade paterna. A
menor quantidade de terra fértil disponível por membro do grupo
familiar implica num maior controle do chefe de família sobre seus
filhos com o intuito de gerar mais recursos. Isso ocorre num con-
texto em que a fragmentação das propriedades nas sucessivas gera-
ções faz com que a herança se torne irrelevante como mecanismo
de controle. Essa dinâmica somada às possibilidades de emprego
fora da dinâmica familiar aumenta as possibilidades dos jovens se
rebelarem.
Tal condição expõe uma crescente tensão entre o que pode-
ria ser considerado um modo de vida tradicional frente a novas
possibilidades de emprego e educação tendo a cidade e a busca
de trabalhos não manuais como horizonte principalmente para
as jovens. Frente ao exacerbamento da migração feminina e juve-
nil, o celibato masculino3 apareceria como um risco para os jovens

3 O termo celibato masculino refere-se à presença de inúmeros homens solteiros


de forma quase compulsória pela ausência de mulheres solteiras disponíveis em
74 | Psicologia e contextos rurais

que permanecem vinculados à terra comprometendo por seu


turno, a reprodução social da agricultura familiar. Essa dinâmica
que combina pressão demográfica sobre a terra, novos empregos
e questionamentos nas relações de poder seria para o autor uma
forma de entendermos a migração. O aumento dos estudos como
parte dos projetos juvenis e a existências de diversidades ocupa-
cionais tensiona a organização do modelo calcado na autoridade
paterna, principalmente revelando conflitos entre a formulação
dos projetos dos jovens e a família.
Castro (2005, 2006) parte de princípios similares para o
entendimento da condição juvenil no campo. O que difere da aná-
lise anterior é o maior detalhamento da autoridade paterna como
categoria que permite elucidar a condição juvenil. Nos estudos de
caso realizados pela autora, ser jovem significava ocupar um lugar
de subordinação no interior de uma hierarquia de gênero e gera-
cional que se refletia na divisão do trabalho agrícola em diferen-
tes formas de inserções e participação na sociedade. A hierarquia
interna à família foi fortemente associada às relações de poder em
que mulheres e jovens ocupam posições de inferioridade submeti-
das à figura do chefe de família. Os jovens estariam expostos a um
intenso controle a partir do qual seriam muito vigiados, com des-
taque para as relações entre rapazes e moças. Todos esses mecanis-
mos, de desvalorização do trabalho, de redes de vigilâncias sobre os
jovens, sendo estes vistos como pouco confiáveis, podem ser enten-
didos, como propõe Castro (2006), como mecanismos de autori-
dade paterna, tendo como principal foco as jovens, excluídas dos
processos de produção agropecuária, da sucessão da herança e dos
espaços de decisão.

seu território de existência. Esse fenômeno ocorre em comunidades rurais em


que a taxa de migração feminina é maior que a masculina. Como consequência,
muitos jovens não encontram parceiras.
Psicologia e contextos rurais | 75

Dessa forma, juventude rural seria uma categoria singu-


lar para perceber como se dão as relações de poder no campo e as
disputas e conflitos envolvidos na sua construção. Além disso, a
migração rural-urbana, um problema comumente associado aos
jovens rurais, torna-se um elemento fundamental para compreen-
dermos a especificidade dessa condição juvenil. A migração seria
o elemento central que aglutinaria os dilemas da juventude do
campo.
Através do cruzamento de dados censitários, Abramovay e
Caramano (2001) apontam o envelhecimento da população rural
no Brasil, seguido da migração juvenil com maior proporção femi-
nina como dinâmicas que tem apontado para o esvaziamento do
campo e destruição de modos de vida singulares, uma vez que a
reprodução de novas gerações de agricultores tem sido comprome-
tida. Tendo isso em vista, Castro (2009) defende que não se deve
tratar a questão da migração, a despeito das especificidades do con-
texto local, sem tratar dos problemas enfrentados pelos pequenos
produtores. “(...) os problemas enfrentados pelos jovens são antes
de tudo problemas enfrentados pela pequena produção familiar e
as suas muitas formas de reprodução, como as difíceis condições de
vida e produção” (Castro, 2009, p. 222).
Nesse contexto, a autora aponta à necessidade de se repen-
sar a ideia de sair e ficar como movimentos definitivos dos jovens
e observá-los, a partir das múltiplas formas em que se apresentam,
podendo significar estratégias familiares de manutenção da terra,
ou mesmo de se afastar da autoridade paterna. Diante da impor-
tância da unidade familiar para se pensar as estratégias de saída e
de permanência, essa autora chama a atenção para dois aspectos.
Por um lado, a migração seria concernente à dificuldade de repro-
dução econômica na agricultura familiar. Por outro, ainda que sofra
implicações das dificuldades econômicas como demonstrado por
Durston (1998), estaria havendo uma mudança nas relações de
poder que se organizam sob o modelo da autoridade paterna, o que
76 | Psicologia e contextos rurais

tem indicado que o êxodo também pode significar um rompimento


com o controle e a vigília que principalmente as jovens vivenciam,
o que seria realçado pela migração juvenil feminina, pois estariam
mais expostas a essa forma de regulação.
Se autores como Castro (2005, 2006, 2009) e Durston (1998)
destacam as dificuldades de reprodução econômica e as tensões nas
relações de poder organizadas a partir da autoridade paterna como
elementos para o entendimento da condição juvenil no campo,
Carneiro (1998) enfatiza outra faceta para seu entendimento. Sem
desconsiderar as determinações econômicas e o papel da unidade
familiar, essa autora dá relevo ao processo de modernização e
estreitamento das relações campo-cidade como fundamentais para
a análise dos problemas em questão. Como consequência, temos a
construção de novas identidades nas quais valores rurais e urbanos
fazem parte da construção das pertenças dos jovens. Os projetos de
vida seriam resultado da tensão entre laços com a cultura de origem
e o espelho da cultura urbana. “O que resultaria na ambiguidade de
quererem ser ao mesmo tempo diferentes e iguais aos da cidade e
aos da localidade de origem” (Carneiro, 1998, p. 279).
Tradicionalmente quando a reprodução social se concen-
trava apenas no trabalho agrícola, ocorria em muitos casos, por
exemplo, o privilégio de um irmão na herança da terra como forma
de compensação pela responsabilidade de manutenção dos pais
até o final de suas vidas. Fatos como esses apontavam a maneira
como interesses coletivos se sobrepunham aos interesses individu-
ais e eram legitimados pela autoridade paterna. Assim, a migra-
ção significava principalmente uma estratégia de conservação do
patrimônio familiar. A partir das décadas de 1960 e 1970 com um
estreitamento das relações campo-cidade e transformações no
modelo familiar, há uma conformação de famílias nucleares com
restrição do número de filhos. Em tal contexto, de quebra gradativa
do relativo isolamento econômico e maior integração dos valores
da sociedade urbano-industrial, passam a ser estimulados projetos
Psicologia e contextos rurais | 77

voltados para “melhorar de vida” (Carneiro, 1998 p. 102). A valoriza-


ção dos estudos passa ser uma estratégia importante para a formu-
lação de projetos que têm o imaginário da cidade como horizonte,
principalmente no caso das jovens. Em consequência, o que se per-
cebe é o aumento do espaço de inviduação para a construção de
projetos de vida na qual a reprodução da unidade familiar deixa de
ser o único determinante.
Nesse sentido, as transformações ocorridas começam a
romper com alguns padrões tradicionais abrindo espaço para pro-
jetos individuais. O que essa autora propõe é que essas mudanças
combinadas à valorização dos estudos e estratégias de saída do
campo não apareceriam como polos dicotômicos à pertença rural,
mas se congregariam na formulação desses projetos. O desejo de
ficar significaria certo compromisso com valores familiares asso-
ciados à ruralidade e as aspirações quanto à saída representariam
a possibilidade de individuação dos projetos juvenis. Seria dessa
ambiguidade que resultariam novas identidades sociais a serem
investigadas.
A solidariedade intergeracional nas construções dos proje-
tos dos jovens como apontado por Carneiro (2005) pode ser um
indício para investigação sobre a importância das diferentes gera-
ções nas construções dos projetos juvenis. Ainda que possa haver
conflito, as mudanças de valores correntes podem envolver os
membros da família como um todo. A ideia de um conflito ou rup-
tura entre jovens e os projetos familiares pode ser atenuada diante
de mudanças de valores que envolvem todos os membros da uni-
dade doméstica. Desse modo, o êxodo não poderia ser encarado
apenas como resultado dos impasses da reprodução da agricul-
tura familiar frentes ao quais, por princípio, as gerações anterio-
res se esforçariam por combatê-los. A migração deveria também
ser entendida a partir da conformação de diferentes projetos que
envolvem, ainda que de maneira distintas, toda a família. O que,
78 | Psicologia e contextos rurais

por conseguinte, nos remete para a necessidade de investigação das


situações específicas.
Os projetos dos jovens para a autora aparecem, então, como
uma síntese entre campo e cidade, o que a autora chama de ideal
rurbano expresso no desejo concomitante de sair e de ficar tendo
em vista diferentes ocupações. O desejo de permanência não pres-
suporia necessariamente a assunção da profissão de agricultor. Para
a autora, mesmo que a terra permaneça como propriedade familiar,
dificilmente o trinômio terra-família-agricultura continuará como
um valor estruturante da ordem moral e econômica da atual gera-
ção de jovens.
No interior desse debate entre reprodução e crise, entre
continuidade e ruptura, no qual o jovem torna-se ator privilegiado,
a migração feminina e juvenil tem sido considerada o fenômeno
mais significativo das mudanças ocorridas. Pesquisas como de
Abramovayet et al. (2001) demonstram o desinteresse das jovens
pela permanência associada à produção agrícola. Num universo de
10.000 propriedades do oeste foi entrevistada uma amostra repre-
sentativa de 116 famílias. Dentre estas, apenas 1/3 das jovens mani-
festaram o desejo de continuar as profissões dos pais contra 69%
dos rapazes entrevistados. Estudos de caso como os apresentados
durante a exposição também indicam como o viés de gênero nos
fenômenos migratórios. Para Stropasolas (2004), estaria ocorrendo
uma série de mudanças na pequena agricultura ou agricultura
familiar principalmente no que tange a alguns valores que seriam
estruturantes de sua organização como o casamento. “A conjuga-
ção entre patrimônio fundiário, a família, e um sistema de valores
culturais reproduziam desigualdades entre gênero e geração e essa
engrenagem representava uma unidade indissolúvel no processo
de reprodução social do campesinato” (Stropasolas, 2004, p. 250).
No entanto, a divisão social da agricultura familiar e o lugar subor-
dinado da mulher nos espaços de decisão têm sido questionados.
Psicologia e contextos rurais | 79

A mudança de valores tem se revelado principalmente na


recusa das jovens em se casar e constituir família com filhos de agri-
cultores “Para as moças, uma vida como esposa camponesa conhe-
cendo outras alternativas possíveis pode ser rejeitada ou objeto de
resistência diante das aspirações de vida em outro meio cultural e
ocupacional” (Stropasolas, 2004, p. 255). A migração nesse sentido,
principalmente para as mulheres, seria resultado de um maior pre-
paro ao enfrentamento da vida urbana, questionando o que seria
entendido como servidão camponesa. Principalmente para as
moças, as possibilidades de conseguir uma independência finan-
ceira, de controle do próprio dinheiro, de sair das redes de vigilân-
cia, aparecem como a alternativa mais eminente de ruptura (Castro,
2006; Stropasolas, 2004, 2006). Nesse sentido, a dedicação aos
estudos tem significado importante estratégia de rompimento com
os laços descritos anteriormente. Essa combinação entre estudo e
novos valores, somada às dificuldades econômicas, faz com que a
autoridade muitas vezes exercida pela ameaça de deserdamento
perca força. O casamento vincula-se, assim, menos ao patrimônio
e mais ao estilo de vida.
A questão que se colocaria não seria estritamente uma con-
traposição do rural versus o urbano, mas como o estreitamento das
relações campo-cidade tem feito circular discursos que permitem
a interpelação das relações de poder. Não estaríamos diante sim-
plesmente de valores urbanos que passam a invadir o rural, mas de
uma dinâmica na qual formas de comparação social impulsionadas
por transformações nas relações de gênero e geracionais têm levado
as mulheres e os jovens a repensarem os seus direitos em diversos
contextos. Ainda que haja a desvalorização de diferentes modos de
vida por uma hegemonia urbanocêntrica, não devemos descon-
siderar processos de comparação social que podem levar a novas
sínteses como propõe Carneiro (1998) ou o questionamento mais
incisivo das relações de subordinação como aponta Stropasolas
(2004, 2006) e Castro (2006) em relação às jovens.
80 | Psicologia e contextos rurais

Nesse sentido, diante da fragilidade econômica do pequeno


agricultor e na busca de modelos contra-hegemônicos à exploração
capitalista corremos o risco de naturalizar relações de poder sem
nos preocuparmos com a própria dinâmica e autodeterminação
dos grupos. Dito de outra forma, a luta política pela reforma agrária
e o direito ao acesso a terra deve ser acompanhada pelas conquis-
tas de outros direitos que apontem para relações mais equânimes
entre os gêneros e as gerações. Diante da importância do fenômeno
migratório para o debate sobre juventude rural torna-se necessária
uma análise mais detida sobre o tema e suas implicações para o
entendimento da juventude rural.

Juventude rural e migração:


impasses e articulações
Do exposto até o momento, podemos depreender que a
juventude rural tem sido pensada a partir de três pontos-chave: pri-
meiramente o jovem rural é filho de pequenos agricultores e seus
dilemas são fruto da sua pertença a essa forma de produção econô-
mica e modo de vida particular. A pequena agricultura ou familiar
está vivenciando uma crise de reprodução como consequência de
dificuldades econômicas e mudança de valores. Por conta disso, a
migração juvenil aparece como um problema fundamental para a
reprodução social dos agricultores por um lado, e para a construção
do futuro dos jovens, por outro.
Como nos demonstra Weisheimer (2005), talvez falte
uma definição mais precisa para a designação juventude rural. O
aumento das rendas não agrícolas e as mudanças no campo têm
levado a uma diversidade na qual a agricultura familiar, ainda que
bastante representativa, não pode subsumir a complexidade do
rural:
Psicologia e contextos rurais | 81

Disso resulta que hoje em dia nem todos os jovens rurais


são necessariamente agricultores, assim como entre os
jovens agricultores há uma grande variedade de situa-
ções, como relacionadas à propriedade ou não da terra
em que trabalham. Os impactos disso são evidentes nas
diferenças entre esses jovens quanto às possibilidades
que se apresentam a cada um deles (p. 7).

Mesmo se falando de uma diversidade de situações, per-


manece um enfoque centrado em variáveis econômicas, que se
iluminam uma gama de situações, obscurecem outras. Os jovens
são definidos pela relação que estabelecem com o trabalho agrícola
a partir do lugar que ocupam na divisão social do trabalho e nas
tensões decorrentes, como indica a busca por outras ocupações no
campo ou na cidade. Além desse enfoque, a pertença a um modo
de vida concebido de forma homogênea passa a ser um denomi-
nador das experiências juvenis. Ainda que os dilemas da pequena
produção agrícola, com suas hierarquias de gênero e geracionais,
sejam um importante analisador das relações no campo, as expe-
riências juvenis têm se resumido a necessidades objetivas que têm
como substrato a ideia de resistência e apoio à agricultura familiar
como forma de produção ou modo de vida. Diante do diagnóstico
de crise da agricultura familiar, estaria depositado nas vicissitudes
das trajetórias dos jovens o futuro da produção familiar. É como
se, mantidas boas condições econômicas de existência e fazendo
alguns ajustes na hierarquia interna da família poderíamos garantir
tal futuro. As situações dos jovens do ponto de vista da permanên-
cia ou da saída são consideradas efeito de condições estruturais que
atingem os pequenos produtores. As trajetórias juvenis seriam um
indicador do problema e parte da solução.
Como demonstra Weisheimer (2005) em sua revisão sobre
a categoria, haveria um consenso mínimo no campo de estudos
sobre a juventude rural
82 | Psicologia e contextos rurais

[...] quanto ao papel estratégico dos jovens para o desen-


volvimento agrário e rural. A continuidade da profis-
são agrícola depende da reprodução com base familiar,
isso porque a sucessão tende a ser endógena, com pelo
menos um filho sucedendo o pai na administração da
unidade produtiva, sendo pouco frequente a adesão a
essa atividade por pessoas sem vivência familiar nesse
ramo (p. 18).

Brumer (2008) em outra revisão sobre a categoria juventude


rural reforça o mesmo argumento. As transformações apontadas
seriam concebidas como responsáveis por uma crise de reprodução
da agricultura familiar com reflexos na identificação negativa dos
filhos/as de agricultores com o trabalho agrícola e seus benefícios,
que conjugam mudanças de valores e falta de incentivos,

Como o ingresso na atividade agrícola, como produtor


familiar, na maioria dos casos é endógena – isto é, são os
próprios agricultores familiares que geram seus sucesso-
res –, a emigração dos jovens e sua visão relativamente
negativa da vida no meio rural revela a existência de uma
crise de reprodução social (Ibidem, p. 7).

As experiências juvenis são concebidas dentro desse enqua-


dre a despeito da diversidade de dinâmicas construídas cotidia-
namente, seja no plano concreto da existência, seja nos projetos
vislumbrados. Não desconsideramos as relações de subordinação
das áreas rurais frente a uma hegemonia das cidades, no entanto,
parece ser mais legítimo o rural almejado pelos jovens rurais desde
que ele aponte para a relação positiva com um modo de vida cam-
ponês. As análises muito estruturais centradas principalmente
numa defesa, ainda que justificável, da agricultura familiar correm
o risco de invisibilizar arranjos complexos e plurais que podem ser
objeto de identificação para muitos jovens. Desse modo, podemos
Psicologia e contextos rurais | 83

perceber um contexto de disputas por diferentes projetos de socie-


dade em que o jovem torna-se um ator fundamental. As suas esco-
lhas, seus dilemas ou formas de subordinação são vistos como um
processo que coloca em jogo tais projetos em disputa. E por isso se
tornam objeto de preocupação.
Por isso, no interior desse debate entre ruptura e crise de
um modelo de sociabilidade considerado como legítimo ou dese-
jável, a migração torna-se um grande problema. Como consequên-
cia, parecem estar determinadas de antemão as implicações da
migração juvenil. Assim, diante da ênfase dada à migração e sua
imbricação com as dinâmicas da agricultura familiar para pensar a
condição juvenil no campo, Castro (2009) faz um alerta:

A cobrança da permanência e continuidade dos jovens


no campo como valorização e possível reversão do qua-
dro de esvaziamento do meio rural recorrente em algu-
mas pesquisas recentes sobre o tema e no âmbito das
políticas públicas – deve problematizar esse olhar que
percebe no jovem o ator heroico da transformação social
(Ibidem, p. 234).

A associação entre juventude rural e reprodução da agri-


cultura familiar relaciona diretamente permanência com conti-
nuidade dos modos de vida camponês e saída com esvaziamento
das zonas rurais. O problema desse argumento é justamente o peso
analítico que tem se dado à juventude como futuro das sociedades
rurais.Desse modo, há uma ênfase na categoria juventude como
futuro dos modos de vidas centrados na pequena propriedade sem
uma consideração mais detida dos projetos em disputa e da sua
legitimidade para os jovens.
O que podemos depreender dessas considerações é que a
migração tem sido considerada de forma bastante ambígua. Se por
um lado, o jovem é forçado a migrar devido às agruras da reprodução
84 | Psicologia e contextos rurais

econômica na agricultura familiar ou se rebelando contra relações


de dominação, o que nos atentaria para legitimidade das trajetórias
desses jovens, por outro lado a migração seria considerada um pro-
blema, pois ameaçaria a continuidade de um modo de vida singular.
Por mais que o jovem seja visto sob certo ponto de vista como uma
vítima do processo, em diferentes discursos ele também é o agente
de uma saída perniciosa também para as cidades. As más condi-
ções econômicas e o baixo nível de escolaridade fariam com que
a inserção de jovens na zona urbana se faça de forma subalterna,
ocupando empregos de baixa remuneração e em condições ruins de
moradia e habitação. Esse discurso, banalizado pelo senso comum
reforça que a migração é responsável pelo aumento dos proble-
mas urbanos. Além disso, haveria outro conjunto de argumentos,
para o qual a legitimação dos fluxos migratórios com destinos às
cidades contribuiria, pelo menos ideologicamente, para a expul-
são das populações rurais e, em contrapartida, reforçaria a opres-
são do latifúndio e a agroindústria. Dessa forma, a mobilidade dos
jovens rurais é vista como, no mínimo, uma questão para quem se
dedica ao estudo da ruralidade. O que se destaca em muitas análi-
ses é o lugar do migrante como objeto das correntes migratórias. O
migrante em pouca medida é ator do seu processo de mobilidade.
Nesse sentido, precisamos construir estratégias para que o
campo seja um espaço de direitos diversos para aqueles que alme-
jam construir suas vidas nesses lugares. Diante da fragilidade da
agricultura familiar frente a outros modelos de desenvolvimento
agrícola como o par latifúndio-agronegócio, precisamos dar con-
dições aos pequenos agricultores, mas entendendo a especifici-
dade dos contextos e as opções e constrangimentos que se colocam
para a juventude. A construção de uma relação de identidade entre
migração juvenil e crise da agricultura familiar ancorada em estu-
dos acadêmicos e ações institucionais pode gerar novas formas de
controle e subordinação que, em primeira estância, estariam a ser-
viço de discursos democráticos e igualitários.
Psicologia e contextos rurais | 85

O desafio para novas pesquisas é pensar um sujeito da


migração, de modo que a análise trate o princípio da fixação de
forma mais cuidadosa. Não basta apenas afirmar a rejeição a esse
princípio e, ao mesmo tempo, lançar mão de categorias que em
seu conjunto circunscrevam o ficar como única alternativa desejá-
vel. Isso não significa necessariamente o reforço à subordinação e
a expulsão de populações do campo. Precisamos dar legitimidade
ao processo e à importância de compreender a migração a partir
de como o jovem se posiciona frente a essa temática e como seus
projetos podem ou não revelar diferentes projetos de sociedade.
É necessário apostar num sujeito migrante que tenha algo a dizer
do seu movimento e das questões que o impulsionam a se deslo-
car. Assim, em vez de tomar a migração juvenil apenas como um
problema a ser enfrentado, precisamos tomá-la como um objeto
de debate que possa apontar para um rural desejante e desejável,
como espaço para utopias. Sobre quais espaços de sociabilidade
desejados no campo o processo de migração pode dar pistas? Nesse
sentido, importa menos a realização imediata desses anseios que
a possibilidade da construção de uma utopia juvenil, ainda que
frágil, vacilante, ante as dificuldades enfrentadas. A migração tem
sido considerada mais um desvio de certa trajetória desejada do
que uma possibilidade rica de reflexão sobre os problemas viven-
ciados e as possibilidades de construção de territórios rurais plurais
e abertos a direitos diversos.
A busca pelas cidades, ou o imaginário que ela gera, se per-
niciosos por um lado, podem instaurar uma lógica de equivalência
de direitos e, a partir dessa, desnaturalizar relações de subordina-
ção vivenciadas pelos jovens rurais. O desafio é pensarmos como
essa comparação pode criar estratégias que visem à transformação
dessas relações, já que a migração, ainda que aponte rupturas em
padrões hegemônicos dos meios rurais, pode reforçar a ideia de que
nesses espaços tais transformações não são possíveis. Nossa aposta
é de que os processos de comparação social realizados na trajetória
86 | Psicologia e contextos rurais

dos sujeitos migrantes podem nos dar pistas sobre que projetos
estão em questão e suas possibilidades de realização.

Referências
Abramovay, R.; Silvestro, M. L.; Cortina, N.; Baldissera, I. T.; Ferrari, D. L.;
Testa, V. M.(1998). Juventude e agricultura familiar: desafios dos novos
padrões sucessórios. Brasília: UNESCO.

Bourdieu, P. (1983). A “juventude” é apenas uma palavra. In BOURDIEU,


Pierre. Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, p. 112 – 121.

Brumer, A. (2008) A problemática dos jovens rurais na pós-modernidade. In


Congreso Latinoamericano de Sociología Rural, 7., Quito, 2006. Anais.
Quito: s.ed., 2006. Recuperado em 10 julho 2008, de www.iica.org.uy.

Camarano, A. A.; Abramovay, R. (1999) Êxodo rural, envelhecimento e


masculinização no Brasil: panorama dos últimos 50 anos. Rio de
Janeiro: IPEA.

Candido, A. (2001) Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista


e a transformação dos seus meios de vida. São Paulo: Duas Cidades;
Editora 34.

Carneiro, M. J. (1998) O ideal rurbano: campo e cidade no imaginário de jovens


rurais. In Silva, F. C. T. da; Santos, R.; Costa, L. F. de C., (Orgs.). Mundo
rural e política: ensaios interdisciplinares. Rio de Janeiro: Campus.

Carneiro M. J. (2005) Juventude Rural: projetos e valores. In ABRAMO, H.


W.; Branco, P. P. M. (Org.). Retratos da Juventude Brasileira: análise de
uma pesquisa nacional. (pp. 243-262) São Paulo, v. 1.

Castro, E. G. (2005a) Entre ficar e sair: uma etnografia da construção social da


categoria jovem rural. Rio de Janeiro: UFRJ/PPGAS, Xiii, 380f.
Psicologia e contextos rurais | 87

Castro, E. G. (2006b) As Jovens Rurais e a Reprodução Social das Hierarquias.


In Woortmann, E. F.; Heredia, B.; Menashe, R. (Org.). Margarida Alves.
Coletânea sobre estudos rurais e gênero. Brasília: MDA / IICA

Castro, E. G. (2009). Juventude rural no Brasil: processos de exclusão e a


construção de um ator político. Rev.latinoam.cienc.soc.niñezjuv 7(1):
179-208. acessado em 23/03/2010 http://www.umanizales.edu.co/
revistacinde/index.html.

Durham, E. (1973) A Caminho da cidade. São Paulo: Perspectiva.

Durston, J. (1998) Juventud y desarrollo rural: marco conceptual y


contextual. Santiago de Chile: Naciones Unidas.

Franco, M. S. de C. (1997) Homens livres na ordem escravocrata. 4a ed. São


Paulo: Fundação Editora da UNESP.

Heller, A. (1977). Sociología de la vida cotidiana. Barcelona, Ediciones


Península.

Stropasolas, V. L. (2004). O valor (do) casamento na agricultura familiar. Rev.


Estud. Fem., v.12, n.1, p. 253-267, jan./abr.

Stropasolas, V. L. (2006). O mundo rural no horizonte dos jovens. Florianópolis.


Editora da UFSC.

Wanderley, M. N. B. (1996) Processos sociais agrários: Raízes Históricas do


CampesinatoBrasileiro. In Encontro anual da ANPOCS, 20, Caxambu.
Anais...Caxambu: [s.n.]

Wanderley, M. N. B (2007). In M. J. CARNEIRO; E. G. CASTRO (Org.)


Juventude Rural em Perspectiva. Rio de Janeiro: Mauad X.

Weisheimer, N. (2005). Juventudes rurais; mapa de estudos recentes. Brasília:


Nead/MDA, v. 1.
Juventude no semiárido
nordestino: caminhos e
descaminhos da emigração
Karla Patrícia Martins Ferreira
Zulmira Áurea Cruz Bomfim

“Agora pensando segui ôtra tria,


chamando a famia, começa a dizê:
eu vendo meu burro, meu jegue e o cavalo,
nós vamo a São Paulo, vivê ou morrê...
Nós vamo a São Paulo, que a coisa tá feia;
Por terras aleias nós vamo vagá.
Se o nosso destino não fô tão mesquinho,
Pro mêrmo cantinho nós torna a vortá”

(Patativa do Assaré, A triste partida)


90 | Psicologia e contextos rurais

Introdução

O poema “A triste partida”, do poeta cearense Patativa do


Assaré, que veio a ser brilhantemente musicado por Luiz
Gonzaga, traduz a dor do sertanejo em deixar sua terra e o desejo de
um dia, se o destino permitir, voltar ao seu lugar de origem. Sobre
isso, durante muitos anos, foi muito fácil culpabilizar a seca como
única responsável pelo grande número de emigrações nordestinas
rumo aos grandes centros urbanos do país, mesmo sendo esta um
evento climático natural de regiões semiáridas, portanto previsível
e até, de certo modo, esperada, apesar de nunca desejada.
No entanto, percebemos atualmente que o interesse e a
necessidade de jovens do campo tornarem-se emigrantes têm
diminuído gradativamente. São vários os fatores relacionados a
esse fenômeno, entre eles o notável inchaço dos maiores centros
urbanos, o que muda a política de incentivo à migração, que foi
uma das bases para a construção das grandes cidades, com mão de
obra barata e abundante vinda do campo. Outro fator tem sido a
necessidade de estimular uma revalorização da agricultura, já que
os jovens se afastavam cada vez mais desse tipo de atividade a ponto
de se temer, para o futuro, um colapso no abastecimento.
Há algum tempo percebemos que a juventude do meio rural
vem recebendo mais atenção, por causa do desinteresse desses
jovens em continuar no campo e, sobretudo, pela falta de estímulos
à atividade agrícola, já que historicamente esta tem sido completa-
mente desvalorizada em nosso país, sobretudo quando falamos de
uma agricultura familiar.
Acontece que por falta de políticas públicas adequadas para
a valorização do campo e melhoria das condições de vida, a solução
mais buscada durante muito tempo foi a emigração para os gran-
des centros urbanos, o que nem sempre trazia aos emigrantes uma
boa condição de vida. Muitas vezes apenas era trocada a miséria
Psicologia e contextos rurais | 91

do campo pela miséria da cidade, trazendo ainda diversas outras


consequências tanto em nível socioambiental e econômico, como
em nível psíquico, gerando sofrimento por causa de fatores como
desenraizamento, falta de apropriação espacial, perda dos parâme-
tros identitários existentes nas comunidades de origem, por causa
do fato de sermos, na cidade grande, apenas mais um na multidão.
Este capítulo se propõe a apresentar uma breve reflexão
sobre a emigração, baseando-nos na nossa experiência nordestina
e cearense. Pensamos em seus aspectos históricos, econômicos e
subjetivos, sobre o semiárido sertanejo e sua relação com a seca,
“personagem” historicamente culpabilizada pelos deslocamentos
de milhares de famílias para os grandes centros urbanos.
A discussão será feita a partir da realidade do Ceará, nossa
área geográfica de estudo, estado reconhecido como um impor-
tante exportador de mão de obra.
Procuramos trazer uma discussão sobre a condição de vida
dos jovens do sertão semiárido cearense, partindo de nossas pes-
quisas e intervenções nesse contexto. Também apresentamos um
pouco de como percebemos as mudanças que vêm ocorrendo nos
últimos anos e que têm influenciado na qualidade de vida da juven-
tude no meio rural.

Aspectos da migração nordestina


A história do Brasil é marcada pelo grande fluxo migratório
interno, sobretudo das regiões Norte e Nordeste para os grandes
centros urbanos, principalmente da região Sudeste, como também
para as áreas rurais do Sul e Sudeste do país. O Ceará, estado situ-
ado na área do Polígono das Secas1, tem sua história marcada pela
difícil condição climática à qual grande parte da sua população

1 É denominado Polígono das Secas uma área de 950mil km2, que compreen-
de mais da metade da região Nordeste, indo do Piauí a Minas Gerais. Essa
92 | Psicologia e contextos rurais

rural está submetida e pelas estratégias de sobrevivência desenvol-


vidas por esta para resistir aos impactos causados pelas variações
climáticas, principalmente no sertão semiárido.
Chamamos de semiárida a região submetida a um clima
caracterizado pela insuficiência de precipitações pluviométricas,
temperaturas elevadas e fortes taxas de evaporação, onde essas
precipitações apresentam-se, além de insuficientes, com uma irre-
gularidade temporal e espacial, podendo apresentar, assim, longos
períodos de estiagem.

Os fenômenos migratórios internos geraram uma grande


mudança social na medida em que as cidades, e aqui no
Brasil, algumas cidades, foram efetivamente o polo de
atração de todo este contingente humano, com todas as
consequências de desenraizamento familiar, margina-
lização e demais sequelas sociais de todos conhecidas
(Albuquerque, 2002).

Em relação ao Nordeste, a seca tem sido culpabilizada pela


miséria em que vivem muitas famílias rurais, sendo há muito tempo
o pretexto utilizado para justificar a preservação de uma lucrativa
agricultura parasitária que privilegiou os grandes proprietários na
manutenção e reprodução das arcaicas formas de dominação polí-
tica. A seca, no entanto, mesmo evidenciando a miséria em que
vivem muitos agricultores, não pode ser considerada a única causa
do sofrimento enfrentado pela população rural. O que ocorre é que
fatores como difícil acesso ao trabalho remunerado, baixo nível de
escolaridade, entre outros, caracterizam a vulnerabilidade dessas
pessoas às variações climáticas.
Deve-se estar atento, então, acerca da estreita relação
entre vulnerabilidade social, impactos climáticos, emigração do

delimitação já é uma revisão e foi feita pelo governo federal em 1951, através da
lei nº 1. 348.
Psicologia e contextos rurais | 93

semiárido e êxodo agrícola2. Considera-se que o conceito de vul-


nerabilidade diz respeito à fragilidade do indivíduo ou sociedade
em se proteger contra determinada situação de risco, ameaça ou
problema, o que a deixa mais susceptível aos efeitos negativos do
fator estressante. Percebe-se que a seca pode ser considerada um
fator estressante, pois, apesar de ser um evento climático natural
de regiões semiáridas, agrava e põe em evidência a difícil situação
em que vive grande parte da população cearense, devido à falta de
políticas adequadas para a região, o que tem, ao longo da nossa
história, deixado a população à mercê das condições da natureza.
Observa-se ainda uma desvalorização do trabalho agrícola
em consequência dos difíceis problemas enfrentados pelos peque-
nos agricultores para se manterem no campo, por causa das polí-
ticas que privilegiaram os grandes produtores e a mecanização da
agricultura em detrimento de uma agricultura familiar, que favo-
reça condições dignas de subsistência, apesar de esse tipo de pro-
dução ser ainda hoje de extrema importância para o abastecimento
do país. Faz-se necessário, desta forma, uma continuação e maior
valorização da cultura agrícola entre as famílias.
A decisão de emigrar, então, é tomada quando o sujeito
conclui que haverá uma série de vantagens concretas no lugar para
onde se dispõe a partir, como melhor salário, mais oportunidades
de emprego, estudo etc. Entretanto, de acordo com Toniatti (1978)
há também um conjunto de fatores subjetivos que influenciam o
julgamento do sujeito em relação às vantagens de emigrar.
Para que se possa falar sobre a migração é preciso que se
pense nesse fenômeno como resultado de um processo histórico de
nossa sociedade. A idéia de que a emigração nordestina como algo
“natural” deve ser desmistificada e historicizada; faz-se necessário,

2 Utiliza-se a expressão “êxodo agrícola” para fazer referência ao abandono do tra-


balho na agricultura e para diferenciá-lo do êxodo rural, sendo este último con-
siderado o deslocamento de localidades consideradas rurais para áreas urbanas.
94 | Psicologia e contextos rurais

dessa forma, estar atento aos fatos históricos que se relacionam


com a migração, pois como salienta Silva (2004): “Nenhum projeto
presente se sustenta sem o conhecimento do passado. Na dialética
entre presente, passado e futuro estão os elementos para qualquer
ação transformadora da realidade social”.
O Ceará tem sua história marcada pela emigração.
Considerado exportador de mão de obra, é um dos maiores respon-
sáveis pela emigração nordestina. Falar sobre estes deslocamentos,
portanto, faz parte da própria história do estado e de seu povo,
acostumado a se deslocar para outras regiões do Brasil. Sobre os
números que atestam o grande fluxo migratório no Ceará, Holanda
(2005) afirma:

Os últimos resultados do censo 2000 apresentam núme-


ros que reforçam o aumento dos fluxos migratórios inte-
restaduais entre os diversos estados, em especial o Ceará
que ao longo dos últimos 10 anos foi responsável por
“expulsar” milhares de cearenses para diversos estados
do país. De fato, os números atestam que 1.592.756 cea-
renses emigraram, representando uma diferença para
mais de 16,8% em relação ao censo de 1991. A posição do
Ceará como um dos seis estados maiores responsáveis
pela emigração nordestina, não é verificada apenas no
censo de 2000. De fato, os censos de 1950, 1960, 1970,
1980 e 1991 também mostram dados sobre a relevância
do estado como um dos grandes exportadores de mão de
obra para as demais regiões e estados (Holanda, 2005).

Entretanto, o censo de 2010 já apresenta mudanças neste


quadro. Segundo os dados levantados, há atualmente uma migra-
ção de retorno e o Ceará é o principal estado a receber os migran-
tes de retorno. Então nos questionamos: o que está acontecendo?
Presenciamos um importante momento no cenário econômico
e político do país e também do estado. Antes, no entanto, de
Psicologia e contextos rurais | 95

comentarmos as possíveis causas do retorno, de acordo com a nossa


perspectiva, gostaríamos de apresentar alguns motivos envolvidos
na decisão entre o partir e o ficar, encontradas a partir de uma pes-
quisa realizada por nós em 2006 (Ferreira, 2006), em que levanta-
mos a partir do relato de adolescentes, estudantes do último ano
do ensino médio, os motivos que influíam a decisão de emigrar ou
não.

Ficar ou partir? Motivos da migração


Em 2006, realizamos uma pesquisa no município de Tauá,
no Ceará, com jovens que estavam cursando o último ano do ensino
médio. O objetivo da pesquisa foi investigar a relação afetiva des-
ses jovens com o entorno e sua influência na decisão de emigrar
ou não. Eles estavam na iminência da construção da identidade de
emigrantes. Muitos já tinham passagens compradas e alguns até
mesmo promessas de emprego nas cidades de destino.
A pesquisa foi realizada em duas etapas: na primeira, para
identificar a relação afetiva com o entorno, utilizamos os mapas
afetivos (Bomfim, 2003), um método que buscou avaliar a afetivi-
dade dos jovens com a comunidade a partir de desenhos e metáfo-
ras. Na segunda etapa, com a intenção de aprofundar nos motivos
que influenciavam a decisão de partir ou ficar, trabalhamos com os
três grupos focais. Para a análise dos dados dessa etapa, utilizamos
a análise de conteúdo categorial (Bardin, 1991).
O grupo que participou da pesquisa era composto por 63
jovens de ambos os sexos, com idades entre 18 e 25 anos, estudantes
do último ano do ensino médio de três escolas públicas do muni-
cípio e que eram moradores tanto da sede como das comunidades
rurais.
96 | Psicologia e contextos rurais

Tabela 1 – Caracterização dos sujeitos da pesquisa


Variáveis Categorias F %
Sexo Feminino 41 65%
Masculino 22 35%

Idade Entre 18 e 21 anos 58 92%


Entre 22 e 25 anos 05 8%

Local de moradia Sede do município 39 62%


Comunidades rurais 24 38%

Escola Mons. Odorico 14 22%


Liceu de Tauá 29 46%
Ceja 20 32%

Trabalha Sim 49 78%


Não 14 22%

Exerce atividade agrícola Sim 24 38%


Não 39 62%

Pertence a grupo ou associação Sim 17 27%


Não 46 73%

A amostra dos grupos focais foi composta por 3 grupos de


voluntários (G1, G2 e G3). Cada grupo pertencia a uma das três
escolas pesquisadas. A escolha dos sujeitos (S1, S2, S3...) foi feita
através de procedimento não probabilístico do tipo intencional.
Nesse tipo de amostragem, “o grupo de sujeitos é constituído con-
forme critérios preestabelecidos sobre as características que esses
elementos devem ter para pertencerem à população” (Almeida &
Freire, 1997). Os critérios de seleção dos grupos fizeram referência
às idades dos participantes, escolas, nível de escolaridade, local de
moradia, condições econômicas semelhantes.
Apresentaremos neste capítulo relatos dos jovens sobre os
motivos que influenciavam a sua decisão no momento dessa pes-
quisa. A partir de então poderemos discutir sobre o que acredita-
mos que mudou na configuração do estado e o que acreditamos
Psicologia e contextos rurais | 97

que poderia ser modificado ainda para melhorar a qualidade de


vida da juventude no campo.
Os três grupos focais estão identificados como G1, G2 e G3 e
os sujeitos que participaram de cada grupo, como S1, S2, S3...

Motivos que influenciam a decisão de ficar

Medo do desconhecido

O medo do desconhecido está relacionado à insegurança


causada pela incerteza com relação ao lugar estranho. Esse medo
se contrapõe aos laços afetivos estabelecidos no lugar de origem,
quando o jovem tem uma estrutura familiar bem consolidada e não
sabe se encontrará uma equivalente no possível lugar de destino.
Observamos isso na fala de dois sujeitos, mesmo que ambos sai-
bam que se não encontrarem formas de se manterem na cidade de
origem, como fonte de trabalho, renda e oportunidades de estudo,
terão que partir para outro lugar em busca de “melhores condições
de vida”:

G3: S6 - Eu particularmente não penso assim. Eu vejo


diferente das outras pessoas, porque geralmente as
outras pessoas querem sair daqui pra procurar uma vida
melhor. Eu não. Eu prefiro ficar aqui. Por quê? É como
se fosse um risco, assim como eu posso me dar bem em
outra cidade eu posso não me dar. Vou enfrentar difi-
culdades, muitas vezes sozinha, sem parente e nada e
muitas vezes por causa das dificuldades as pessoas aca-
bam se envolvendo em tráfico, esse tipo de coisas. Não
é o caso de todo mundo, mas muita gente que vai sair
de sua cidade trabalhar em algum lugar encontra muitas
dificuldades. (Sexo feminino, 17 anos).
98 | Psicologia e contextos rurais

No relato dessa jovem, verificamos haver uma análise em


relação aos riscos que poderá enfrentar, salientando que a falta de
apoio da família, a falta de ter alguém por lá para ajudar pode levar
o sujeito ao envolvimento com a marginalidade, mencionado por
ela como relação com o tráfico. No relato que se segue, um jovem
expressou seu medo do desconhecido, através dos questionamen-
tos: “Como será lá? Será mais difícil?” Ele deixa transparecer o sen-
timento de insegurança ao mesmo tempo que relata os motivos da
emigração e deixa perceber que, apesar do medo do desconhecido,
se prepara para partir caso não surjam oportunidades no município
de origem:

G2: S1- Em relação ao que a cidade oferece...mas a ques-


tão é por dois motivos, certo? Por questões... não é por
querer sair de perto da família, sair pra outra cidade, mas
o que leva é isso! O que leva mais gente é ir em busca do
que a cidade não oferece. E a gente sabe que também,
se a gente tiver uma oportunidade, apesar de não ser o
que a gente quer, mas se existe essa oportunidade o que a
gente imagina é o seguinte: como será lá fora? Será mais
difícil? Será muita a burocracia, será que eu vou ganhar
o suficiente pra me manter e pagar uma faculdade? Tudo
isso é... mexe! (Sexo masculino, 18 anos)

Apego ao lugar

O primeiro sujeito citado a seguir expressa seu afeto pela


cidade, deixando claro que se houver alguma oportunidade,
mesmo que não seja exatamente o que ele deseja, prefere se manter
na cidade. Pensa em fazer faculdade e, mesmo não tendo no muni-
cípio o curso que gostaria de fazer, diz que se passar para algum
outro curso prefere ficar porque ama a cidade e que não queria par-
tir. Termina sua fala, entretanto dizendo que se nada der certo, vai
ter que partir:
Psicologia e contextos rurais | 99

G2: S3 - Se surgir uma proposta de emprego que dê pra


eu me manter aqui. Até porque aqui... Eu amo Tauá, eu
gosto muito daqui, eu não queria sair daqui. Claro que
se aqui tem faculdade, se eu conseguir passar no vesti-
bular. Não é isso o que eu queria pra mim... mas como
todo lugar tem suas dificuldades, né? Dando certo eu
arrumar um emprego por aqui, eu quero continuar aqui,
porque aqui eu vou estar perto da minha família. (Sexo
feminino, 17 anos).

G2: S4 - Até falar de ir embora, de morar fora pra melho-


rar a vida de gente muita gente quer, mas vamos ver que
tem gente que não quer de jeito nenhum ir embora.
Agora eu nasci e me criei nessa cidade e não queria ir
embora daqui, mas às vezes você saindo, você consegue
um futuro melhor. Ficando às vezes consegue, às vezes
não consegue... (sexo masculino 20 anos).

Os relatos acima caracterizam a relação de apego ao lugar


(Giuliane, 2004), marcada pelo sentimento de pertencimento,
como foi verificado nos mapas afetivos (Bomfim, 2003).

Medo de se afastar da família

A família representa o porto seguro, o aconchego. Nestas


falas revela-se o medo do desligamento, de ter que se virar em uma
cidade grande sem o apoio dos parentes, representado, sobretudo,
pela figura da mãe que gera, nutre e protege. São citados o apoio e
aceitação que o jovem sabe que não encontrará no lugar de destino:

G1:S2 - Pois eu vejo assim: acho que se minha mãe fosse


comigo eu não ia lembrar daqui, não. Mas como a minha
mãe vai ficar, tem dia que eu já choro, já de agora. Eu sei
que vai ser difícil... mas eu vou. (Sexo feminino, 18 anos)
100 | Psicologia e contextos rurais

G1:S1 - Tem dias que eu sinto muita falta da minha mãe,


que eu sou muito apegada a ela. Ela é muito minha
amiga, mas eu só tô aqui ainda porque eu tenho um
esposo e tenho um filho de 4 anos, aí eu também não
posso ir, mas eu vou concluir o segundo grau e aí no pró-
ximo ano eu vou, com meu esposo e o meu filho. (Sexo
feminino, 19 anos)

G1: S3 - Eu sinto saudade da mãe. Tem dias que eu tô com


saudade de lá, mas eu sei que quando eu chego lá eu fico
com saudade daqui, fico lembrando... (sexo masculino,
20 anos)

Ao emigrar se estabelecem várias rupturas afetivas, como


com o lugar, a família, amigos, hábitos e costumes locais. Tudo isso
gera uma instabilidade e muitas vezes apenas pensar nessas ruptu-
ras gera uma desestabilização e estresse.

Motivos que influenciam a decisão de partir

Foram encontradas algumas razões que influenciariam para


que o jovem optasse pela emigração. Foram estipuladas categorias
principais: o desemprego; o subemprego; o desejo de fazer facul-
dade e o incentivo de quem já partiu.

Desemprego

A falta de emprego foi bastante citada, apesar de depois com


o aprofundamento das discussões do grupo ter perdido um pouco a
força de sua importância para a categoria subemprego. Porém fica
marcado o desejo de conseguir emprego, com carteira assinada e que
lhes proporcione todos os direitos trabalhistas estipulados por lei:

G1: S1 - Eu acho assim, que a maioria prefere sair por-


que a falta de emprego aqui é muito grande, no Brasil
Psicologia e contextos rurais | 101

inteiro a falta de emprego é grande, mas eu acho que


aqui a dificuldade é maior, então quando a gente com-
pleta assim uma idade de 18 anos, a gente tem vontade
de trabalhar de ter vida própria, de ganhar seu próprio
dinheiro, então tem que sair pra melhorar de vida. Acho
que por isso muitos pensam em sair e vão. (Sexo femi-
nino, 19 anos).

G1: S3 - Eu já eu acho do mesmo jeito que ela falou aqui,


é por causa da falta de emprego. Eu mesmo já fui, com
18 anos, eu fui pra São Paulo. Aqui o cara fica aqui e
emprego aqui é difícil demais. A gente quer brincar e tal,
tem que gastar dinheiro todo final de semana e dinheiro
aqui é muito pouco, corre muito pouco. Aí lá eu morei
mais de um ano, um ano e pouco e depois vim embora.
Depois fui embora pra Fortaleza de novo. Mas se eu
tivesse emprego aqui, não saía daqui não. Ficava aqui
em Tauá mesmo. Eu gosto daqui, mas o motivo é só esse
mesmo: desemprego. (Sexo masculino, 20 anos).

G2: S4 - Eu sou de acordo assim, sabe? Se eu não encon-


trar um emprego que dê pra eu se manter, eu tenho que
sair. Não tendo um emprego pra se manter, eu vou ter
que sair pra outro lugar, atrás de um emprego melhor.
(Sexo masculino, 20 anos).

Subemprego

A categoria subemprego surgiu a partir do aprofundamento


das discussões dos grupos focais, quando foi mostrado aos jovens
que, apesar de nos relatos eles falarem que a principal causa da
emigração era a falta de emprego, 78% deles havia respondido nos
questionários que exercia atividade remunerada. Foi solicitado,
dessa forma, que eles esclarecessem melhor esse fato, assim, foram
102 | Psicologia e contextos rurais

relatadas as difíceis condições de trabalho às quais os jovens se


encontram submetidos no município. Essa categoria foi subdivi-
dida em: humilhação no trabalho; baixos salários; vontade de ter
horário; o sonho da carteira assinada; a ameaça do desemprego.

a) Humilhação no trabalho

A humilhação no trabalho surgiu em vários momentos e de


várias formas. Nas outras subcategorias que serão apresentadas na
categoria subemprego encontra-se a marca da humilhação, porém
preferiu-se subdividir por uma questão de clareza. Nas falas apre-
sentadas a seguir, encontra-se a humilhação no trabalho, como
desvalorização do sujeito, encontram-se as marcas do sofrimento
ético-político (Sawaia, 1999) em que o outro, nesse caso, o patrão
trata o jovem como inferior, subalterno, sem valor:

G3: S2 - Tenho que trabalhar, quando chega no final do


dia é humilhado, no final do mês é humilhado e no final
do mês ganha pouco (sexo masculino 18 anos).

G1:S7 - Eu trabalho em casa de família. A gente trabalha


muito, muitas vezes é maltratado e ganha muito pouco.
É humilhado, porque existe muita humilhação em quem
trabalha em casa de família e é o emprego que tem mais
aqui em Tauá (sexo feminino, 17 anos).

G1:S4 - Eu já trabalhei em uma casa que o filho da minha


patroa me bateu. Eu não fiz nada. A minha mãe também
não fez nada. Mas não é porque ele era filho da minha
patroa que ele tinha que me bater, né? Mas é a vida...
(sexo feminino, 18 anos).

G3:S1 - Nem durmo direito. A gente não pode exigir


nada. Diz ele que tem 40, 50 pessoas atrás da vaga da
Psicologia e contextos rurais | 103

gente. Por isso, não tem...não tem emprego, por isso que
a pessoas tem de aceitar (sexo masculino, 19 anos).

b) Baixos salários

Percebe-se nesta subcategoria a marca do sofrimento ético-


-político, encontra-se a humilhação do trabalhador, através da des-
valorização do seu trabalho, com baixos salários e o desrespeito às
leis trabalhistas:

G1:S1 - Aqui o pessoal desvaloriza muito quem trabalha


em casa de família, nunca vi ninguém falar que ganhasse
mais de cem reais. (Sexo feminino, 19 anos).

G2:S4 - Aqui se você ganha cento e cinquenta, você


morre de trabalhar, tem que trabalhar o dia inteiro e até
à noite. (Sexo masculino, 20 anos).

G3: S2 - Eu, na oficina, ganhava 40 por semana, traba-


lhava das seis horas...trabalhava das seis às quatro horas.
Aí final de semana passava, depois o patrão queria que
eu trabalhasse sete horas, aí eu comecei a trabalhar até
seis horas e ele queria que eu trabalhasse mais. Só pra
ganhar 40 por semana? Só o aluguel da casa eu pagava
40! (Sexo masculino, 18 anos).

c) Vontade de ter horário

Este tópico faz referência ao desejo dos jovens de terem uma


carga horária de trabalho bem definida e respeitada. O que não
tem ocorrido, como podemos observar através dos relatos.
Observa-se a exploração do trabalhador e, ao mesmo
tempo, uma resignação do jovem que se submete à exploração.
104 | Psicologia e contextos rurais

Nestes casos, de forma diferente, a emigração poderia ser vista


como algo potencializador para a decisão de mudar a sua condição
de explorado.

G3:S5 - Eu tenho vontade de ter horário. Final de semana,


eu trabalho dia e noite. (Sexo feminino, 19 anos).

G3:S1- Olhe, eu, de segunda a sábado, eu trabalho... eu


entro de 5:30 e saio 5:30 da tarde. De 5:30 da manhã às
5:30 da tarde. E no sábado entro 5:30 e saio 8 ou 9 horas
da noite! (Sexo masculino, 19 anos).

G3:S5 - Eu trabalho em um salão. Salão de cabeleireira.


Eu só tenho horário de chegada, de saída eu não tenho.
Eu já cheguei a sair 11h da noite. De 7 da manhã às 11
horas da noite! (Sexo feminino, 19 anos).

d) O sonho da carteira assinada

O desrespeito às leis trabalhistas no município é um fator


que influencia a vontade do jovem de procurar outro lugar, onde
tenha grandes empresas que ofereçam aos trabalhadores direitos
básicos como carga horária de 8 horas diárias, salário de acordo com
o mínimo estipulado para todos os trabalhadores, vale-transporte,
etc. Todos esses direitos, com os quais eles não estão contando na
sua atual situação, podem ser resumidos no sonho do trabalho com
carteira assinada, pois ela representa a imagem de ter seus direitos
assegurados. Nos relatos que seguem, pode-se verificar a situação
de exploração no município e fica também marcada a intenção de
emigrar em busca de oportunidades de conseguir a tão almejada
“carteira assinada”.

G2:S1- Por isso que é difícil a gente ficar por aqui, a opor-
tunidade de emprego aqui é pouco, a gente quer sair,
Psicologia e contextos rurais | 105

quer melhorar o emprego e trabalhar em um lugar que


assine a carteira da gente, que cumpra as leis como as leis
são. Aí é bom! A gente se satisfaz, a gente trabalhando
num lugar desses. (Sexo masculino, 18 anos).

G3:S2 - Aqui se você chegar pra um gerente de uma loja


e pedir pra assinar a carteira, o gerente manda logo você
embora. Você tá logo é pedindo sua demissão! (Sexo
masculino, 18 anos).

G1: S1 - Em cidades maiores tem mais oportunidade de


emprego, o emprego é com bom salário, com carteira
assinada e aqui não. É difícil ter assim emprego com car-
teira assinada. Assinam a carteira, mas você não ganha
aquele salário. (Sexo feminino, 19 anos).

Observa-se a exploração no trabalho e, por causa disso a


avaliação negativa que os jovens fazem da cidade, levando-os a
desejarem ir para uma outra em busca de mais oportunidades e de
respeito. A crença de que na cidade grande as condições são melho-
res é expressa na fala do sujeito 1 do grupo 1 (G1:S1), apresentada
anteriormente.

O desejo de estudar

Estudar, cursar uma faculdade faz parte dos sonhos dos


jovens entrevistados. Nos três grupos focais, os envolvidos fize-
ram referência a estudar como uma das formas de “mudar de vida”,
de sair da sua condição de excluído e explorado. Nesse desejo, há
uma potência de ação (Sawaia, 1999), que vai em busca de agir e
transformar a realidade. É colocado no relato dos jovens que um
dos fatores que estimulam o deslocamento para outras regiões é o
fato de que no município de Tauá existiam apenas três cursos para
106 | Psicologia e contextos rurais

quem desejava fazer estudos universitários. Os três estão relacio-


nados ao ensino, sendo eles: Química, Biologia e Pedagogia.

G1:S2 - Muita gente quer se deslocar daqui porque a


faculdade não tem aqui tanta faculdade que tanta gente
quer. E aí afora tem muito tipo de faculdade e aqui em
Tauá não tem, mas aí os jovens vão mais é colocar na
cabeça: ah eu vou sair, vou me embora pra Fortaleza, pra
São Paulo, de lá vou trabalhar e vou fazer uma faculdade
melhor. (Sexo feminino, 18 anos)

G2:S1 - Com relação à faculdade lá fora, é... seria interes-


sante se tivessem outros cursos aqui, porque aí isso tam-
bém já ia fazer com que os jovens já não mais tentassem
ir embora, nesse caso, pra tentar uma faculdade. Como o
que tem aqui é Química, Biologia e Pedagogia a maioria
não quer. (Sexo masculino, 18 anos).

G2:S2 - Acho que é isso, a falta de oportunidade pra quem


tá querendo chegar mais além, porque muitas vezes ele
vai fazer um curso, mas não é o que ele está querendo,
ser professor, quando chega no final é aprovado, mas
não é o que ele queria. (Sexo feminino, 19 anos).

G1:S2 – Eu vou terminar o segundo grau aqui e no pró-


ximo ano eu vou pra Fortaleza, morar com a minha mãe
e minha vontade é essa também, de concluir uma facul-
dade. (Sexo feminino, 18 anos).

Observa-se que os jovens que preferem continuar morando


no município ficam com poucas oportunidades, tendo que se sujei-
tar ao que é ofertado na cidade, seguindo muitas vezes uma profis-
são pela qual não optariam se tivessem chance de escolha.
Psicologia e contextos rurais | 107

G2: S1 - Eu vou fazer Química. Tô tentando. Se passar no


vestibular, vou cursar. Não é meu sonho fazer Química,
mas é a opção que nós temos aqui, ao nosso alcance e
eu passando, talvez eu consiga um emprego aqui que
dê pelo menos pra me manter até eu terminar o curso.
Aí, tem gente que como não se enquadra em nenhuma
dessas áreas dos cursos, aí vai embora e você tenta em
outro local, mas muitas vezes acontecem os imprevis-
tos e você nem consegue, né? Por isso que eu vou tentar
me destacar, não era o que eu queria, mas pode ser que
isso futuramente possa me trazer vários benefícios. Sexo
masculino, 18 anos).

G2: S2- Eu fiz Química, porque no caso só tinha Química


e Biologia, Pedagogia já tava lotada. Eu não queria fazer
faculdade pra professor. Fiz pra Química, mas eu mesma
disse pra minha mãe: eu botei Química, mas é difícil eu
conseguir passar na primeira fase, vou tentar...se passar,
continuo. Não gosto da matéria, mas vou tentar assim
mesmo. (Sexo feminino, 19 anos).

Um fator relevante é que os estudantes fazem uma estreita


relação entre trabalhar e estudar. Trabalhar para poder cursar uma
faculdade, trabalhar para pagar uma faculdade, enfim, não foi
observada em nenhum depoimento uma expectativa com a uni-
versidade pública. Isso mostra o quanto o acesso a ela está afas-
tado do imaginário deles. Esse fator é consequência das seleções
cruéis, que têm excluído cada vez mais os jovens provenientes das
escolas públicas e do surgimento de diversas faculdades particula-
res, que podem ser pagas a um menor valor que a maioria, apesar
de ser um investimento ainda caro para esses jovens, principal-
mente com os baixos salários aos quais estão sujeitos no municí-
pio. Mesmo quando falam em estudar fora, vem a ideia de sair para
108 | Psicologia e contextos rurais

conseguir um trabalho que lhes proporcione pagar uma faculdade


e se manterem.

G1: S2 - Eu quero ir pra São Paulo. Uma que eu já vou,


no ano que vem eu já vou, se Deus quiser, mas quando
eu chegar lá, eu quero... eu vou com o meu pensamento
assim: chegar lá, trabalhar uns dois, mais ou menos um
ano ou dois anos se for preciso, pra mim concluir uma
faculdade. Que é o meu sonho é concluir uma faculdade.
Não vai ser logo de início, mas quando eu chegar lá vou
logo trabalhar pra concluir uma faculdade. (Sexo femi-
nino, 18 anos)

G1: S4 - Ah, eu penso em ir é pra São Paulo, pra arrumar


emprego melhor, ver se eu faço uma faculdade porque
aqui, não arruma trabalho que dê pra fazer uma facul-
dade, o problema é minha mãe deixar, minha mãe não
quer. (Sexo feminino, 18 anos).

G3: S2 - Acho que também o desenvolvimento. Aqui em


Tauá se você vive, nasce, cresce, morre aqui, você não
conheceu nada, não aprendeu nada! (Sexo masculino,
18 anos).

A influência de quem já partiu

Esse fator caracteriza-se pela influência de parentes e ami-


gos que já emigraram. Para o jovem que no momento se encontra
no processo da tomada de decisão entre o ficar e o partir, esse fator
tem grande relevância. Saber de histórias de pessoas que se des-
locaram para as grandes cidades e conseguiram trabalho, renda e
certo status, enfim alcançaram seus objetivos, estimula para que
haja novas emigrações. Pode-se verificar isso no relato dos jovens
apresentados a seguir.
Psicologia e contextos rurais | 109

G3:S2 - Meu irmão foi pra São Paulo trabalhar lá. Lá ele
chegou e começou a trabalhar de... fazendo entrega de
pão, ganhava 450, só fazendo entrega no horário comum
e tudo. Com dois meses que ele tava lá passou a trabalhar
na (nome de empresa) e tá ganhando 800 reais. E agora
ta com sete meses que ele ta lá, com dois meses, quase
três meses ele já tá ganhando 800 reais. Aí optar por tá
aqui, não. Por isso que eu também pretendo ir, pretendo
não, já era pra mim tá lá, sabe? Eu ainda não fui porque
eu não consegui o apoio do diretor, não consegui o apoio
do diretor, não deu pra mim viajar, mas se eu passar por
média, no dia 2 eu viajo! Já estou com emprego, casa
certa, é só viajar. (Sexo masculino, 18 anos)

G2:S1- Eu tenho um primo que saiu daqui, trabalhava de


pedreiro. Ele saiu daqui, foi vender com meu tio numa
firma. Aí ele saiu. Fez um curso de cabeleireiro, tá num
salão lá que é bem frequentado e agora, até agora ele já
conseguiu levantar uma casa de primeiro andar e com-
prou dois carros, já com o dinheiro! (Sexo masculino, 18
anos)

Acreditar ser possível “vencer” na cidade grande impulsiona


a emigração, pois o jovem se desloca não somente porque a sua
cidade de origem não lhe oferece condições de crescimento e satis-
fação pessoal, mas por acreditar que em um outro lugar, na outra
cidade ele poderá alcançar o que almeja e nesse processo a história
de vitória do outro tem grande importância.

Algumas considerações sobre o momento atual


Emigrar é uma decisão importante que envolve vários aspec-
tos da vida do indivíduo. Essa decisão é permeada pelos afetos, pois
ao afastar-se de seu lugar de origem, distancia-se também de pessoas
110 | Psicologia e contextos rurais

queridas, de seu modo de vida, de sua cultura. Entretanto, as condi-


ções de exclusão e as dificuldades para alcançar algumas metas e rea-
lizar sonhos na cidade de origem têm levado, ao longo da história do
país, milhares de nordestinos a se deslocarem para os grandes cen-
tros urbanos, o que tem contribuído para o inchaço das cidades que
hoje se encontram com dificuldades para oferecer a seus moradores
condições adequadas de moradia, de trabalho, de estudos e oportu-
nidades. Encontra-se nas grandes cidades um cenário marcado por
um grande número de indigentes, pela poluição ambiental, violência
e pelo estresse gerado pelo modo de vida urbano.
Nesses caminhos de migração, sobretudo a de nordestinos,
a seca tem sido acusada como a grande responsável pelos deslo-
camentos. Observa-se, porém, que o fator que levou aos desloca-
mentos em massa, mesmo nos períodos de grande estiagem, foi
principalmente a situação de vulnerabilidade social à qual as popu-
lações sertanejas se encontravam e se encontram expostas.
Hoje, os jovens do semiárido ainda se afastam do trabalho
agrícola, para não ter em sua história de vida a repetição das difi-
culdades pelas quais passaram seus familiares. O desejo de estudar
e de ter um trabalho que lhes garanta renda fixa e os direitos traba-
lhistas assegurados, alimenta a possibilidade de ficar cada vez mais
longe das condições de vulnerabilidade do pequeno agricultor.
Verifica-se, porém, que os jovens enfrentam outras dificulda-
des geradas pela falta de oportunidades na cidade de origem que, se
forem somadas aos sonhos e projetos de vida que são característicos
da juventude, fazem com que a emigração acabe por se apresentar
ainda como uma boa saída, apesar de já ser em bem menor número.
Identificamos, na pesquisa, emigrantes em potencial, diferen-
tes do sertanejo que, por causa de sua vulnerabilidade à seca, perde sua
lavoura e tem que ir a procura de nova fonte de renda. Emigrantes em
potencial porque ainda não haviam saído, mas que estavam na imi-
nência de ir em busca de novos caminhos, novos lugares.
Psicologia e contextos rurais | 111

Um dos fatores que influencia na decisão entre o emigrar ou


não, é a estima relacionada ao lugar. Essa categoria foi apresentada
por Bomfim (2003) e pode ser considerada positiva ou negativa
influenciando as ações dos indivíduos em seu entorno.
A estima positiva expressa afetos positivos dos habitantes
em relação ao entorno, o espaço torna-se um lugar cheio de signifi-
cados que potencializam a ação do jovem nesse ambiente.
A estima negativa, por sua vez, traz desde sentimentos de
rejeição ao lugar até sentimentos contraditórios, que confundem
os indivíduos, despotencializando suas ações para a contribuição
da construção de melhorias no entorno.

(...) a estima é um indicador da ação do indivíduo na


cidade e de sua participação cidadã. A estima pode ser
tomada como eixo orientador da implementação de
ações que pretendam buscar o envolvimento da popu-
lação em questões urbanas e ambientais (Bomfim, 2003,
p. 206).

Para os jovens que participaram da pesquisa, a decisão de


partir não era algo fácil, pois havia uma relação de apego à cidade,
apontada através da estima deles em relação às suas comunidades,
que foi verificada, de acordo com Ferreira (2006), ser mais posi-
tiva do que negativa destacada pelo sentimento de pertencimento,
o que pode dificultar a adaptação em outro local, gerando sofri-
mento. O apego à família também foi outro fator que interferiu na
decisão de partir e a separação pode também gerar um desequilí-
brio emocional e sofrimento.
O que ficou claro na pesquisa é que a emigração era estimu-
lada não apenas pelo desemprego, mas pela falta de oportunidades
de estudo e a desvalorização do sujeito enquanto trabalhador. A
exploração e a humilhação percebidas eram gritantes e podem ser
vistas como expressão do sofrimento ético-político.
112 | Psicologia e contextos rurais

Nesse caso a emigração poderia, por vezes, ser vista como


uma potência de ação ou de padecimento (Sawaia, 1995). No pri-
meiro caso, a emigração potencializa quando o jovem procura uma
transformação da condição de explorado à qual está submetido. No
segundo, quando a emigração é feita sem uma intenção transfor-
madora, ou seja, quando o jovem é simplesmente levado pela ação
do fluxo migratório já existente, reforçando a sua situação de sofri-
mento ético-político.
Atualmente, como já relatamos anteriormente, tem sido
registrado um retorno dos emigrantes nordestinos às suas cidades
de origem. O Ceará, segundo dados do censo de 2010 (IBGE, 2012),
foi o estado que mais recebeu de volta seus filhos que, historica-
mente espalhados por diversas partes do mundo, têm voltado para
casa em virtude da falta de oportunidades nas grandes cidades, da
crise econômica em diversos países e, principalmente graças aos
investimentos feitos para o crescimento econômico do Nordeste
nos últimos anos.
De acordo com o jornal O Povo (2012, abril, 28), o censo rea-
lizado em 2010 pelo IBGE (2012) demonstrou que mais de 500 mil
pessoas voltaram para o Estado. Esse número é equivalente a 46,6
% do total da emigração de retorno no país. Esse índice refere-se a
pessoas que nasceram no estado em que residiam no momento da
pesquisa, mas que habitavam em outro local cinco anos antes.
Um dos pontos que percebemos como de extrema impor-
tância para a manutenção dos jovens em suas cidades de origem
foi o acesso à educação, através das políticas de expansão e inte-
riorização das universidades, tanto as do âmbito federal, estadual,
municipal e também as do setor privado. Isso tem dado aos jovens a
perspectiva de novas oportunidades de atuação já que a agricultura
familiar, apesar de ainda ser de suma importância para o abasteci-
mento interno do Brasil, perdeu muito a sua força em decorrência
da histórica falta de investimentos nessa área.
Psicologia e contextos rurais | 113

Em relação à educação, não podemos deixar de citar tam-


bém os esforços feitos para a construção de uma educação con-
textualizada para o semiárido, deixando de lado uma educação
baseada nos parâmetros de outras regiões do país, o que gerava
um sentimento de desvalorização de localidades do semiárido e de
valorização de outras regiões.
Nesse âmbito, destacamos o trabalho da Rede de Educação
do Semiárido Brasileiro (RESAB), que busca contribuir para um
conhecimento maior do próprio lugar em que se vive, descobrindo
muito mais do que é transmitido pela mídia– lugar apenas de seca,
de pobreza, falta de perspectivas – e que tem gerado preconceitos e
desvalorização das regiões semiáridas, como lugar apenas de seca,
de pobreza, falta de perspectivas, pois dessa forma, quem gostaria
de permanecer neste lugar?
Busca-se, dessa forma, desmistificar uma educação refor-
çadora de uma simbologia negativa sobre a região semiárida bra-
sileira e que tem fortalecido “um modelo de educação colonialista
que sempre privilegiou a cultura externa e desconsiderou os poten-
ciais locais” (Souza, 2005, p. 25). A mesma autora cita um trecho do
projeto “Inclusão e Universalização em Qualidade da Educação no
Semiárido Brasileiro” da RESAB:

A educação no Semiárido brasileiro jamais prestou um


serviço condizente à viabilização da melhoria das con-
dições de vida no contexto em questão; por outro lado,
as políticas assistencialistas desintegradas não foram
suficientes para enfrentar o ciclo de geração de pobreza
e frear o ciclo migratório das populações do Semiárido
para outras regiões do país. Os currículos desarticulados
do contexto local e propagadores de que outras regiões
são melhores que o Semiárido funcionam sempre como
um passaporte para a saída e para o inchaço nas perife-
rias urbanas. (Souza, 2005, p. 26).
114 | Psicologia e contextos rurais

O semiárido é uma região com características próprias,


cheias de belezas e dificuldades e que precisa de políticas adequa-
das para diminuir a vulnerabilidade de seus habitantes às variações
climáticas, como qualquer outra região.
É necessário, no entanto, que os governantes estejam aten-
tos às necessidades dos jovens, não apenas às básicas de sobrevi-
vência, mas aos sonhos e anseios da juventude em seus projetos de
vida (Furlani & Bomfim, 2010). É preciso que haja, além de escolas
e de um ensino de qualidade, formação técnica e ensino superior
que amplie os horizontes e para que os jovens tenham condições de
ingressar no mercado de trabalho.
Com relação ao trabalho, não basta apenas empregar.
Lembramos que 78% dos jovens entrevistados disseram ter
emprego remunerado, porém, entre estes 75% pensa em emigrar.
É necessário que haja uma fiscalização das empresas para que os
direitos dos trabalhadores sejam respeitados. Os municípios pre-
cisam fornecer subsídios para o crescimento de vagas no mercado
de trabalho interno. E é preciso que haja um projeto de educação
com os empresários e empregadores sobre o respeito aos direitos
dos trabalhadores.
Como muitos municípios do sertão têm ainda como princi-
pal fonte de renda a agricultura, é necessário que os seus dirigen-
tes estejam atentos ao abandono do trabalho agrícola por parte da
juventude e se prepare para receber o número de jovens que estão
vindo das comunidades rurais para as sedes em busca de educação
e trabalho. É necessário também que a cidade possibilite bem-estar
através de uma melhor infraestrutura que garanta uma melhor
qualidade de vida. Verificamos que há uma carência da população
jovem quanto a equipamentos de lazer e de socialização.
Uma alternativa seria a elaboração de planos a partir da
participação popular, nos quais os jovens possam falar sobre seus
anseios e necessidades, nos quais a população possa refletir sobre a
Psicologia e contextos rurais | 115

sua condição de vulnerabilidade e sobre os problemas que enfrenta


no seu cotidiano. É necessário que se dê importância ao que as pes-
soas têm a dizer sobre sua realidade e criar condições sustentáveis
de vida para a juventude para que os laços de convivência comuni-
tária, já conquistados, possam ser ampliados.

Referências
Albuquerque, F. J B. (2002). Psicologia Social e Formas de Vida Rural no Brasil.
Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 18, p. 37- 42, jan./ abr.

Almeida, L. S; Freire, T. (1997). Metodologia da investigação em Psicologia e


educação. Coimbra: APPORT.

Bardin, L. (1991). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70.

Bezerra, N. F. (2004). Fragmentando o território: bases para o desenvolvimento


do semiárido do Ceará. Fortaleza: Fundação Konrad Adenauer.

Bomfim, Z. A. C. (2003). Cidade e afetividade: Estima e construção dos Mapas


Afetivos de Barcelona e de São Paulo. Tese de doutorado em Psicologia
Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP,
Brasil.

Ferreira, K. P. M. (2006). Ficar ou partir?: Afetividade e migração de jovens


do sertão semiárido cearense. 2006. Dissertação de mestrado em
Psicologia, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil.

Furlani, D. D. & Bomfim, Z. A. C. (2010) Juventude e Afetividade: Tecendo


projetos de vida pela construção dos mapas afetivos. Psicologia e
Sociedade, 22 (1), 50-59.

Gastelo, P. (2011). Crescimento urbano e reforma agrária. Recuperado em 21


novembro, de http://www.cepac-ce.com.br/>.
116 | Psicologia e contextos rurais

Giuliani, M. V. (2004). O lugar do apego nas relações pessoas-ambientes. In


Bernard, Y. Psicologia e Ambiente. São Paulo: EDUC.

O Povo, dia 28/4/2012 Cearenses lideram ranking dos que retornam para casa.

Holanda, F. J. C. (2005). Evolução das emigrações cearenses no período de


1991 a 2003. 2005. 65f. Dissertação (Mestrado em Economia Rural):
Centro de Ciências Agrárias. Departamento de Economia Agrícola.
UFC. Fortaleza.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (2002). Censo


demográfico 2000. Rio de Janeiro: IBGE.

Sawaia, B. B. (1999). O sofrimento ético-político como categoria de análise da


dialética exclusão/inclusão. In SAWAIA B. B. (Org.). As artimanhas da
exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. Petrópolis:
Vozes, p. 97-118.

Sawaia, B. B. (1995). Dimensão ético-afetiva do adoecer da classe trabalhadora.


In Lane, S. T. M; Sawaia. B. B. Novas veredas da Psicologia Social. São
Paulo: Brasiliense.

Silva, Maria Aparecida de M. (2004). A luta pela terra: experiência e memória.


São Paulo: UNESP.

Toniatti, M. F. (1978). Migrações rurais e urbanas no estado do Ceará: suas


causas. 1978. 200f. Dissertação (Mestrado em Economia Rural): Centro
de Ciências Agrárias. Departamento de Economia Agrícola. UFC.
Fortaleza.

Vieira, R. O de C. (1992). Estrutura agrária, fluxo migratório e a formação de


favela no estado do Ceará: um estudo de caso na cidade de Fortaleza.
1992, 149f. Dissertação de mestrado em Economia Rural, Centro de
Ciências Agrárias, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil.
Jovens de ambiente rural
e urbano e sua relação
com projetos de vida
Daniela Dias Furlani
Zulmira Áurea Cruz Bomfim

T endo como base a Psicologia histórico-cultural encaramos


o homem como aquele que constrói e é construído pela his-
tória, assim como, no decorrer de sua vida, afeta e é afetado por
condições externas a ele num movimento dialético das dimen-
sões objetivas e subjetivas. Assim, Sawaia (2012) argumenta que a
Psicologia é cada vez mais necessária e requerida para discussão
em torno de políticas públicas e cabe a nós, muitas vezes, obser-
var como pano de fundo essas políticas públicas e possibilidades de
superações de desigualdades sociais.
Em consonância com tal realidade, discutiremos neste capí-
tulo a realidade psicossocial de jovens de ambiente rural e urbano e
as possíveis relações com seus projetos de vida, considerando fato-
res subjetivos e objetivos que se relacionam ao processo de escolha
desses sujeitos quando tecem esses projetos.
118 | Psicologia e contextos rurais

Enfatizaremos a afetividade, sentimentos e emoções, para a


compreensão dessa relação com a dimensão subjetiva que envolve
o processo de escolha dos jovens por levar em conta que “Emoção,
linguagem e pensamento são mediações que levam à ação, portanto
somos as atividades que desenvolvemos, somos a consciência que
reflete o mundo e somos a afetividade que ama e odeia este mundo
[...]” (Lane, 1994, p. 62),
Um dos grupos estudados originou-se de um ambiente
rural litorâneo, em Cruz, município localizado ao norte do Estado
do Ceará, distando 243 km da capital (em linha reta). O outro
grupo foi composto por jovens que viviam em ambiente urbano, na
cidade de Fortaleza. A partir dessas duas realidades de vida (rural e
urbana) procuramos traçar relações entre fatores ambientais, psi-
cossociais e projeto de vida.
Os desafios vividos pela juventude hoje no Brasil tanto nas
capitais quanto em populações oriundas de contextos rurais jus-
tifica que debrucemos especial atenção às perspectivas de futuro
desses jovens no seu cotidiano, no ambiente em que vivem, consi-
derando questões políticas, sociais, econômicas, e culturais.
Nesse sentido, emoção e a criatividade envolvidas no pro-
cesso de delineamento dos projetos de vida desses jovens se relacio-
nam com “[...]dimensões ético-políticas da ação transformadora,
de superação da desigualdade, e que trabalhar com elas não é cair
na estetização das questões sociais, ou solipcismo, mas sim um
meio de atuar no que há de mais singular da ação política emanci-
padora” (Sawaia, 2009, p. 366).

Juventudes e projeto de vida


A abordagem histórico-cultural apreende a juventude não
como uma fase normativa do desenvolvimento humano, mas antes
disso: como uma criação histórica que é atribuída de significações e
interpretações humanas. Acreditamos na necessidade de superação
Psicologia e contextos rurais | 119

dessas visões naturalizantes, onde a fase de vida da juventude é


compreendida tão somente por uma série de mudanças psíquicas
e biológicas, sem levar em conta parâmetros históricos e culturais
de diferentes épocas.
Ozella (2003) cita significados de compreensão da juven-
tude a partir da visão da Psicologia histórico-cultural, onde a
juventude é entendida como processo: “[...] uma visão longitudi-
nal e histórica como parte de um processo de desenvolvimento,
de transição para a vida adulta” (Ozella, 2003, p. 23). Assim como:
“[...] resultado de uma construção social; dependente das relações
sociais estabelecidas durante o processo de socialização, incluídos
aqui fatores econômicos, sociais, educacionais, políticos e cultu-
rais” (Ozella, 2003, p. 23).
Compreendemos que as questões referentes ao projeto de
vida para jovens torna-se um assunto de maior importância na
medida em que eles vivenciam um contínuo processo de constru-
ção de si, traçando caminhos para a realização de seus projetos.
Definimos projeto de vida como: “[...] eixos orientadores que sig-
nificam uma visão de futuro, a partir do aqui-agora de perspecti-
vas, planos, anseios a respeito de trabalho, profissão, vida familiar e
desejos relevantes que conferem sentido de vida para uma pessoa”
(Furlani & Bomfim, 2010).
O projeto como conduta organizada com o intuito de se
alcançar finalidades específicas é definido por: “[...] antecipação
no futuro dessas trajetórias e biografia, na medida que busca, atra-
vés do estabelecimento de objetivos e fins, a organização dos meios
através dos quais esses poderão ser atingidos” (Velho, 2003, p. 101).
O projeto situado no presente também se refere a um futuro que é
antecipado e incorpora um passado presentificado. Também não
se desvincula da realidade (meio social e outros indivíduos) e por
isso se constrói em acordo com esta. É o que Velho (2003) designa
120 | Psicologia e contextos rurais

como sendo a negociação com a realidade, com a qual o indivíduo


se depara ao elaborar e refletir sobre seu projeto.
O referido autor salienta que mesmo sendo os projetos algo
de cunho particular, é notável a interação dos sujeitos dos projetos
com outros indivíduos de modo que possam partir do que Velho
(2003) chamou de campo de possibilidades. Esse campo é circuns-
crito dentro de uma realidade histórica, social e cultural que se
torna o fundo, enquanto o projeto ocupa o lugar de figura para esse
indivíduo. Uma pessoa pode ter projetos diferentes e até mesmo
contraditórios. Isso pode ser compreendido quando se leva em
conta que essa realidade que subjaz o projeto faz parte do que se
denomina sociedade complexa.
Na sociedade complexa, coexistem diferenciados estilos de
vida e visões de mundo. Nesta realidade de multiplicidade os indi-
víduos também se mostram a partir de uma pluralidade, na medida
em que assumem vários papéis a partir de diferentes planos em que
transitam (trabalho, família, amigos, comunidade, grupos religio-
sos etc.). Aqui fazemos um paralelo com o conceito de Identidade
metamorfose, de Antônio Ciampa (2001), onde o indivíduo assume
vários personagens que viabilizam uma infinidade de possibilida-
des de existência, que acompanham a construção permanente da
identidade do sujeito, explicitando seu caráter processual e dinâ-
mico. E, assim como as pessoas mudam, seus projetos também
estão passíveis de transformações. Em uma relação dialética, tam-
bém entendemos que os projetos mudam as pessoas.
Velho (2003) também faz referência ao termo metamorfose
quando faz a designação de potencial de metamorfose dos indiví-
duos das sociedades complexas, que se caracterizam, entre outras
coisas, a partir de uma intensa troca cultural. Fenômenos como:
migrações, viagens, encontros internacionais, cultura e comunica-
ção de massa etc.
Psicologia e contextos rurais | 121

De forma enganosa, uma grande cidade, com seus múlti-


plos estímulos, parece ofertar muitas possibilidades de escolha
para o sujeito. Nela existem milhares de pessoas convivendo em
espaços comuns, mas que, na maioria das vezes, estão imersas
em seus mundos particulares, como uma expressão individualista
de existência.Torna-se comum nos espaços urbanos a questão da
apartação social, divisão nítida (econômica) entre espaços dos
ricos e espaços dos pobres.
As condições da sociedade atual têm facilitado ou não tal
capacidade humana? Essa questão se relaciona diretamente com
a capacidade de tecer projetos de vida, sendo essa problemática,
mais especificamente com o público jovem, algo que elegemos
como um ponto importante a ser investigado.
Para Giddens (2002), quando o sujeito “toma conta de sua
vida” ele entra em contato com o risco de enfrentar a diversidade
decorrente das possibilidades abertas. Porém, somente dessa
forma, alcançará a plenitude de uma vivência ativa e compromis-
sada com seu eu. O autor propõe então a reflexividade do eu. A prá-
tica de tal reflexividade poderia ser compreendida de maneira que

A cada momento, ou pelo menos a intervalos regulares,


o indivíduo é instado a se autointerrogar em termos do
que está acontecendo. Começando com uma série de
perguntas feitas conscientemente, o indivíduo se acos-
tuma a perguntar “como posso usar este momento para
mudar?” (Giddens, 2002, p. 75).

A mudança individual perpassa a do grupo a qual esse


sujeito faz parte já que quando um sujeito pensa sua escolha esta
não se desvincula do outro. E quando esse mesmo sujeito de forma
contínua não reflete sobre suas escolhas consideramos que aí se
envolve uma realidade de alienação que segundo Sawaia (2009,
p. 368) “[...] torna cada um contrário a todos os outros, cada qual
122 | Psicologia e contextos rurais

imaginando satisfazer seu desejo com a destruição do outro, perce-


bido como obstáculo aos seus desejos [...]”.
Assim, o autoquestionamento é necessário para que o indi-
víduo seja o autor de sua vida e se envolva com potências de ação e
não de padecimento (Sawaia, 2009). Vale ressaltar que na condição
da modernidade a pluralização de escolhas torna-se algo que per-
meia a vida das pessoas de forma intensa. Se o sujeito não conse-
gue lidar com inúmeras escolhas, pode esbarrar em conflitos que
o imobilizem para ações transformadoras como também podem
refletir aspectos sociais de alienação. A reflexividade pode então
vir a ser uma alternativa saudável para que as pessoas estejam mais
conscientes de si e da realidade social nos tempos atuais.
Quando pensamos acerca da liberdade e da escolha como
inerentes à condição humana (Sartre & Ferreira, 2004), é necessário
vincular que a existência de uma pluralidade de escolhas não signi-
fica que todos têm alcance a todas as escolhas. Essas são influencia-
das pelas variáveis socioeconômicas, assim como pelas influências
dos grupos sociais. A limitação sobre o direito de escolher pode cau-
sar tanto sofrimento psíquico quanto restrição de aspectos objeti-
vos como a moradia (Sawaia, 2012, p. 366). Ao processo de escolha
também se vincula a angústia quando o sujeito percebe que sua
escolha também se relaciona com um compromisso que envolve os
outros. Para Sartre e Ferreira (2004) a angústia se relaciona com a
responsabilidade refletida em ação que o homem tem perante toda
a humanidade. Se o homem é ação seu projeto de vida representa o
micro e o macro de uma realidade social.
Giddens (2002) atribui importância ao que designa pla-
nejamento estratégico da vida, que pode ser entendido de forma
análoga, na mesma perspectiva do que focamos como projeto de
vida. De acordo com o autor: “O planejamento da vida é um meio
de preparar um curso de ações futuras mobilizadas em termos
da biografia do eu” (Giddens, 2002, p. 83). Pensamos então que
Psicologia e contextos rurais | 123

problematizar a temática do projeto de vida na juventude, possi-


bilitando uma prática de reflexividade, é um modo de preparar o
jovem para o futuro, reconstruindo seu passado e estando compro-
missado com seu presente.

Afetividade como categoria de estudo


Com base na possibilidade de interação entre fenômenos
sociais e psicológicos, elegemos a categoria de afetividade nesse
estudo para refletirmos sobre as relações possíveis entre as emo-
ções e os aspectos sociais referentes aos grupos de jovens em foco.
Epistemologicamente, o conceito de afetividade na consti-
tuição do conhecimento foi subjugado ao que é negativo e pato-
lógico. Existe uma clara cisão, entre o emocional e o racional,
estabelecendo assim uma nítida dicotomia entre o intelecto e a
emoção. A perspectiva histórico-cultural, contrária à dicotomia
entre corpo e alma, vem se opor também a esta cisão – razão e emo-
ção) – assim como qualquer outra dicotomia proposta por alguma
teoria.
A autora Bader Sawaia (1999) investiga a categoria da afe-
tividade explicitando uma tentativa de resolução das dicotomias
entre subjetividade e objetividade, razão e emoção, interno e
externo, indivíduo e social, entre outras, tão presentes na ciência
psicológica. Pela afetividade rompe assim com o paradigma racio-
nalista e positivista, que se reflete no fato de que questões referen-
tes ao racional ao longo da história da ciência sempre obtiveram
um lugar de destaque nos diversos campos do saber. Em contrapar-
tida, estudos que tratassem da emoção e da afetividade não eram
evidenciados, mas, relegados ao âmbito da loucura, já que eram
desconhecidos e tidos como aspectos que extrapolavam o controle
e o que a sociedade impunha como norma. Ou seja, emoções e sen-
timentos eram tidos como algo que possibilitava um não controle,
uma desordem dos fatos.
124 | Psicologia e contextos rurais

Sawaia (2002) usa o termo afetividade, então, como fenô-


meno ético-político, unindo ética, política e afetividade no sentido
de demarcar uma ontologia e caracterizar a dimensão social do
afeto e a dimensão humana da ética, por isso é uma categoria trans-
disciplinar. Além disto, constitui-se um eixo orientador de obser-
vação e de análise.
Um dos autores em que Sawaia (2002) se fundamenta para
tratar de tal questão é o psicólogo russo Lev S. Vigotski. Percebe
que a obra desse autor produz um efeito real sobre a teoria das
emoções. Vigotski (2001) se ocupa da questão do psiquismo como
sendo constituído por um todo integrado, sendo a emoção uma de
suas partes que se conecta com todas as outras. Ele aborda o tema
das emoções e mostra que uma séria desvantagem do tradicional
antagonismo entre razão e afeto é o fato da Psicologia se deparar
com a dificuldade de se explicar a gênese do pensamento, incluindo
os seus motivos e as suas necessidades.
Segundo o autor: “Para compreender a fala de outrem não
basta entender suas palavras – temos que compreender o seu pen-
samento. Mas nem isso é suficiente – também é preciso que conhe-
çamos sua motivação” (Vigotski, 2001, p. 188). Essa ideia se associa
à defendida pelo autor de que todos os pensamentos que antece-
dem as falas têm uma tendência afetivo-volitiva, ou seja, são gera-
dos por emoções.
Percebemos o afeto como algo que se encontra na base das
escolhas humanas. Como se ele assumisse a posição de uma força
motriz que interfere nas atitudes dos indivíduos. Os afetos inter-
ferem nos pensamentos, que por sua vez irão influenciar as esco-
lhas, atitudes e opções que priorizamos ao longo de toda a nossa
existência. Ação e pensamento são motivados. Essa ideia está em
conformidade com a visão não dicotômica entre razão e emoção. A
emoção é, pois, a base dos pensamentos e das ações, como se fosse
o combustível que impulsiona o movimento de um automóvel.
Psicologia e contextos rurais | 125

Como enunciou Vigotski (2001), a tendência afetivo-volitiva está


por trás do pensamento. Então, não se concebe um pensamento
que não seja motivado.
Sawaia (2002, p. 7) conclui que “[...] a afetividade tinha o
potencial de ser um microcosmo, onde se cruzam, num processo
de transmutação, o social e o psicológico, permitindo, dessa forma,
analisar questões sociais, sem perder o homem de carne e osso”.
Sawaia (1999) propõe que o estudo da afetividade pode ser um meio
de se compreender o problema da desigualdade social e a dialética
da inclusão/exclusão social. Essa perspectiva coloca as emoções
como algo de cunho social, e, portanto, como um fenômeno histó-
rico, que por sua natureza se encontra em constante devir. A autora
explica que o sentido de classificar as emoções como uma questão
ético-política serve para que a Psicologia possa introduzir o sujeito
nas análises econômicas e políticas necessárias para o desenvol-
vimento social do país. Assim, a ética passa a englobar aspectos
psicológicos sociais e políticos. A organização social influencia na
maneira como as pessoas se tratam intersubjetivamente. O sofri-
mento analisado ético-politicamente vem denunciar questões
sociais que envolvem relações de opressão/opressor, dominador/
dominado, que ocorrem nas vivências cotidianas das pessoas.
Bomfim (2003) propõe uma metodologia de apreensão dos
afetos, os mapas afetivos1, uma forma de construção de sentidos
movidos pelos afetos, que avaliam como as pessoas se posicionam
diante de uma cidade, do bairro ou comunidade, ou de qualquer
tipo de ambiente onde vivem que seja um território emocional que
gera significados. Assim, a afetividade com o lugar pode conjugar
dimensões importantes quando se almeja investigar realidades
sociais das relações das pessoas com seus lugares.

1 Essa foi a metodologia utilizada na pesquisa da dissertação de mestrado intitu-


lada Juventude e afetividade: Tecendo Projeto de vida pela construção dos mapas
afetivos, mestrado em psicologia da UFC.
126 | Psicologia e contextos rurais

Com base nessa metodologia, construímos os mapas afe-


tivos de jovens de ambientes rurais e urbanos, relacionando esses
afetos com seus projetos de vida. Para isso, foi solicitado aos jovens
que desenhassem como percebiam e sentiam o ambiente a qual
faziam parte. A seguir, apresentamos o desenho de um jovem
morador do ambiente rural que ilustra uma imagem de contraste.

Figura 1 – Desenho apresentado a partir do instrumento gerador do mapa afetivo tendo


como imagem o Contraste

Quando indagado sobre seus projetos de vida, manifesta


vontade de terminar seus estudos e se qualificar com um curso
de informática. Considera que tais projetos são fáceis de realizar.
A imagem suscitada com o mapa afetivo correspondeu a de con-
traste porque o respondente expressa qualidades positivas do lugar
onde mora, relacionando-as com o turismo, no entanto, afirma
não querer permanecer morando na localidade por falta de traba-
lho. Justifica o desejo de morar em outro município onde lhe fosse
ofertado melhores oportunidades. Quando solicitado a responder
ao quesito 3 do mapa afetivo (“Caso alguém lhe perguntasse o que
pensa sobre sua cidade, o que você diria?”) o respondente afirma:
Psicologia e contextos rurais | 127

“Em certos momentos bons em outros ruins, principalmente em


administrações”. Essa insatisfação em relação ao lugar é comple-
mentada pela resposta do quesito posterior, onde compara seu
município com “um carro velho que só funciona no empurrão”.
Esse jovem, na ocasião da pesquisa, não exercia um trabalho
efetivo, a não ser ajudando sua mãe fazendo crochê (trabalho infor-
mal). Percebe-se, portanto, que a busca por trabalho é o fator moti-
vador do respondente, assim como dos outros jovens de ambiente
rural, que tem como consequência não ter vontade de permane-
cer no lugar onde vive. Em relação à comunidade, responde não se
considerar pertencente a ela, não participando de nenhum grupo.
O que de certa forma contribui com a perspectiva de deixar o lugar
de origem. Um dos desenhos representativos da relação de projetos
de vida de jovens do ambiente urbano nessa imagem de contrastes
pode ser vista a seguir.

Figura 2 – Desenho apresentado a partir do instrumento gerador do mapa afetivo tendo


como imagem o Contraste

Os contrastes de sentimentos da jovem são observados no


significado que ela atribui ao desenho. Foi percebido não só na
imagem de contraste gerada a partir do mapa afetivo, mas também
128 | Psicologia e contextos rurais

durante a entrevista quando questionado sobre seus projetos de


vida. A jovem afirma: “Eu, assim, eu nunca pensei em fazer facul-
dade né, meu pai que sempre falou pra mim e até pra minha irmã
que também não queria fazer faculdade não. Mas, assim, ele sempre
fala que é pra gente fazer e tal, mas assim meu pai é bancário, e uma
coisa que eu coloquei na minha cabeça é que eu quero ser bancária,
coloquei na minha cabeça que quero passar no concurso do Banco
do Brasil e ser bancária. Quem sabe depois de eu ter passado no
concurso do Banco do Brasil eu faça uma faculdade assim, eu quero
fazer Artes Cênicas. Meu pai também é contra. Ele fala assim, não
tem que fazer alguma coisa que dê dinheiro, não sei quê.... Mas aí
eu passando no Banco do Brasil né, aí eu posso fazer a faculdade
de Artes Cênicas”. Aqui percebemos contrastando o que a jovem
deseja realizar em sua vida, com os valores parentais. Sendo estes
últimos confusos em relação aos seus próprios projetos de vida.
Em relação ao significado do desenho escreve: “Bom, pri-
meiro tem um rio poluído. Eu acho Fortaleza suja. Depois tem um
assaltante, a violência aqui é muito grande. Mas tem uma pessoa
de braços abertos, as pessoas daqui são muito acolhedoras”. Nesse
caso, o contraste de sentimentos em relação ao lugar pode ser
decisivo em relação à dúvida expressa pela respondente durante a
entrevista ao responder sobre seu desejo de permanecer morando
em Fortaleza, onde mora há um ano: “Tenho vontade de voltar...
sei lá às vezes tenho vontade de voltar, às vezes de ficar, não sei
ainda...”.
Questionamos então como se fragilizam os projetos de vida
de jovens que vivem em ambientes expostos a situações de exclusão
social em contextos rurais e urbanos. Acreditamos que a catego-
ria afetividade, posta em destaque neste estudo, é relevante para
essa investigação por dar subsídios para compreensão da realidade
de jovens frente aos seus projetos de vidas. Lane (1994) apontou
que: “[...] a relevância atribuída ao racional, em nossa cultura, sub-
mete as emoções ao seu contrário fazendo com que aquelas não
Psicologia e contextos rurais | 129

verbalizadas sejam reprimidas vindo a constituir inconscientes”


(Lane, 1994, p. 60).
Essa repressão das emoções pode estar correlacionada com
a cultura capitalista dominante, que pretende obscurecer as desi-
gualdades sociais e legitimar as relações de opressão por que passa
a maioria da população. Acrescenta-se ainda a realidade de instru-
mentalização dos afetos e do corpo em nossa sociedade. Sawaia
(1999, p. 106) afirma que: “Saúde e felicidade são mercadorias com-
pradas em prateleiras, sob receita médica”. É o poder da técnica,
que segue a lógica do capital. Verificamos as complexas relações
entre aspectos individuais e sociais, configurados em uma interde-
pendência interacional, que nos mostra uma realidade de desigual-
dade social que vem reproduzindo processos de exclusão.

A exclusão não é um estado que se adquire ou do qual se


livra em bloco, de forma homogênea. Ela é um processo
complexo configurado nas confluências entre o pensar,
sentir e o agir e as determinações sociais mediadas pela
raça, classe, idade, gênero, num movimento dialético
entre a morte emocional (zero afetivo) e a exaltação
revolucionária (Sawaia, 1999, p. 110-11).

A compreensão do processo de inclusão e exclusão social no


contexto rural e urbano dos jovens estudados é fundamental para
a busca de ações em diversos âmbitos que possam minimizar ou
erradicar os efeitos das desigualdades sociais. Os aspectos afetivos
desvelados no contexto da vida cotidiana desses jovens podem ser
tomados como ponto de avaliação de suas reais necessidades, assim
como do nível de implicação destes com o lugar.
A implicação revela o compromisso histórico dos homens,
na medida em que os jovens têm a possibilidade de se tornar sujei-
tos críticos que fazem e refazem uma época, anunciando e denun-
ciando situações de opressão, contribuindo dessa forma com
130 | Psicologia e contextos rurais

transformações sociais. Nesse sentido, Freire (1980) lembra que


a realidade passa a ser desvelada, desmistificada quando o sujeito
sai da posição ingênua e passa a ter um olhar crítico da realidade,
transcendendo situações limites e tornando possível a superação
de opressões desumanizantes.

Modos de vida rural e urbano


Enfocamos os modos de vida rural e urbano e sua relação
com os projetos de vida de jovens com o intuito de não reforçar
o privilégio que a Psicologia tem dado a questões do urbano em
detrimento do rural, já que não é lugar comum nessa ciência o
trato com as questões de sujeitos que vivem em ambientes rurais
(Albuquerque, 2002). Para isso também enfocamos as característi-
cas da cidade na contemporaneidade, para que possamos contex-
tualizar os modos de vida e suas repercussões sobre a subjetividade
humana.
Park (1979) argumenta que a cidade vai além dos aspectos
meramente físicos e objetivos. Enfatiza os processos de relações
interpessoais que perpassam a distância de uma cidade, entendida
como resultado de algo produzido pelos homens que, como seres
agentes, imprimem suas marcas por meio dos costumes, tradições
e hábitos que vão construindo ao longo de sua trajetória histórica e
social. Rolnik (1994) também considera a cidade como resultado da
ação humana, já que a considera “[...] uma obra coletiva que desafia a
natureza” (Rolnik,1994, p. 8). A cidade pressupõe então um sentido
de coletividade, apesar de nela existirem diversas individualidades.
Difícil é a demarcação entre ambiente urbano e rural em um
mundo que se torna cada vez mais urbano (Véras, 2000). A cidade
“[...] condensa diferentes facetas ligadas ao mundo econômico, à
vida social, à cultura, atingindo os modos de vida, as subjetivida-
des, a comunicação, a questão do território e da alteridade” (Véras,
2000, p. 9).
Psicologia e contextos rurais | 131

Em relação aos processos de segregação, compara a cidade


a “[...] um mosaico de pequenos mundos, que se tocam, mas não
se interpenetram” (Park, 1979, p. 67). Essa divisão de mundos gera
exclusão social, que afeta principalmente a vida da população mais
frágil economicamente. A exclusão social na dinâmica da cidade
pode ser vista nitidamente na divisão de bairros dos ricos separados
dos bairros que concentram pessoas pobres, onde a infraestrutura
das moradias é bastante precária.
Rolnik (1994, p. 52) diz que “Do ponto de vista político, a
segregação é produto e produtora do conflito social. Separa-se por-
que a mistura é conflituosa e quanto mais separada é a cidade, mais
visível é a diferença, mais acirrado poderá ser o confronto”.
Passam a existir aí os “muros invisíveis” como resultado de
uma demarcação social de exclusão entre classes de pessoas que,
mesmo vivendo em única cidade, não convivem de forma natu-
ral, espontânea no que diz respeito ao tráfego nos mesmos lugares
dessa cidade. Em algumas cidades, os bairros de ricos e de pobres
se localizam em espaços próximos, o que muitas vezes leva a um
aumento da violência urbana, já que, como mencionamos, a convi-
vência entre os diferentes grupos não é pacífica.
Um aspecto interessante apontado por Park (1979) é que
os sentimentos dos habitantes de uma cidade são percebidos em
aspectos do físico da cidade. Ou seja, a cidade acaba agregando em
si aspectos, qualidades dos seus habitantes. O autor utiliza o con-
ceito de vizinhança, que significa “[...] uma localidade com senti-
mentos, tradições e uma história” (Park, 1979, p. 34). A vizinhança
facilita o desenvolvimento de sentimento local dos habitantes de
uma cidade.
Em relação às grandes cidades, Park (1979) argumenta que
o sentimento de vizinhança é desfavorecido no sentido de perder
muito de sua significância por causa de certos aspectos peculiares
à vida citadina. Por exemplo, o desenvolvimento, tanto dos meios
132 | Psicologia e contextos rurais

de transportes, como os de comunicação, facilita a movimentação


dos habitantes das cidades, o que faz com que a mobilidade deles
seja rápida e frequente. Logo, a intimidade da vizinhança tende
a ser dispensável. Nos centros urbanos, onde o modo de vida das
pessoas pressupõe essa mobilidade diária, verifica-se uma menor
intimidade entre os cidadãos. Porém, segundo Park (1979), isto já é
notado de forma contrária nos lugares de segregação populacional,
como as colônias raciais e de imigrantes.
Outro aspecto da cidade, como demonstra Park (1979), é
o que se refere à cidade como o espaço de possibilidades diversas
para o homem, lugar onde exercer escolhas, opções e vocações. A
comparação da cidade com um ímã, feita por Rolnik (1994), em que
a cidade exerce a capacidade de atrair incessantemente milhares
de pessoas através de uma força magnética constante, é bastante
útil quando pensamos nas múltiplas facetas da cidade que geram
a atração de pessoas. Dentro da multiplicidade de opções que a
cidade vai ofertar, os homens, por meio de competição pessoal,
poderão ser selecionados conforme suas condições específicas. A
isso se relaciona o processo de racionalização das ocupações.
O fenômeno de pessoas que são atraídas para as cidades não
é algo recente. Como apontou Rolnik (1994), já na época do declí-
nio do feudalismo, os camponeses, mesmo sem uma perspectiva
concreta de trabalho nas cidades, fugiam do campo, movidos por
um sentimento de libertação.
Usando o termo mobilidade, Park (1979) compara o homem
citadino com o camponês. Explica que mobilidade tem como corre-
lativo o termo isolamento, representando um caráter e uma condi-
ção. Salienta que não precisa necessariamente existir um obstáculo
físico para ocorrer mobilidade ou isolamento. A própria educação
ou os meios de comunicação podem interferir nesse quesito.
Rolnik (1994) relaciona a revolução industrial com a fomen-
tação dos movimentos migratórios para as cidades. Segundo a
Psicologia e contextos rurais | 133

autora, as cidades são: “[...] transformadas em polos de atração


para massas de imigrantes de regiões e países os mais variados, as
cidades passaram a ser sinônimos de heterogeneidade cultural e
étnica” (Rolnik, 1994, p. 79). Dessa forma, as características das
cidades urbanas que se tornam mais intensas a partir dos avanços
industriais afetam a condição de vida das pessoas que se deslocam
de seus ambientes de origem em busca de novas oportunidades de
trabalho. Com relação ao Brasil, a migração ocorre não somente
entre estados, mas também entre países. Um exemplo disso é a his-
tória de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, que foram palco
de imigração de italianos, espanhóis e portugueses. Rolnik (1994)
denuncia um caráter contraditório das cidades industriais, que é o
fato do aumento da violência. Refere que o avanço industrial é ao
mesmo tempo avaliado como potência de criação e de destruição.
As condições contextualizadas de cada tipo de homem (rural
ou urbano) influenciam em seus modos de vida e, portanto, na orga-
nização de distintos grupos sociais no lugar onde moram. Além do
que, a vida nas grandes cidades faz com que as relações se tornem
impessoais e racionais, o que, segundo Rolnik (1994) leva à definição
de interesses movidos por dinheiro, sendo este o centro e a causa das
grandes resoluções econômicas, sociais e políticas. Isso nos leva a
pensar que a economia também interfere nos processos de mobili-
dade das populações, que são levadas a permanecer ou não no lugar
onde moram de acordo com as mudanças no âmbito econômico.
Park (1979) argumenta que, nas grandes cidades, ao mesmo
tempo em que se multiplicam as oportunidades das pessoas de
terem contato com seus semelhantes e com outras instituições,
a qualidade desses contatos é de transitoriedade e instabilidade.
Compara a habitação das pessoas na cidade com a permanência de
indivíduos em um grande hotel. Sugere que as relações íntimas e
permanentes, próprias de comunidades menores, são substituídas
por relações casuais e fortuitas.
134 | Psicologia e contextos rurais

A cidade pode abarcar o diferente, a alteridade em alguns


casos, mas isso não significa dizer que realmente existam espaços
igualitários para todos. Como já foi analisado, a segregação e exclu-
são social são vividas de forma intensa nas metrópoles. Na realidade
de exclusão social presente nas grandes cidades, a diferença do outro
é transformada em inferioridade. O que pode ser visto como antagô-
nico, já que poderíamos supor que nas cidades, que possuem diversi-
dades tão grande de lugares, haveria de ter espaço para todos.
Como avaliou Véras (2000, p. 18): “Se a cidade global tem a
face de muitos lugares, marcas de outros povos, diferentes culturas,
por ser lugar de imigração, é também espaço de não lugares, do
transitório, do não identitário e histórico”.
Um exemplo que aqui se faz oportuno avaliar é a migração
de sertanejos para as metrópoles. Muitos deles se deslocam de seus
lugares de origem para fugir da seca com a esperança de uma vida
melhor. Ocorre que na maior parte dos casos não são bem suce-
didos em seus objetivos e passam a compor o cenário de fome e
pobreza típico das grandes cidades. São desenraizados cultural-
mente e jogados na dureza da vida urbana que não os absorve no
mercado de trabalho.
O espaço urbano, cenário de desigualdade social, provoca
o desenraizamento cultural de migrantes, mas não só deles; boa
parte da camada popular também sofre essa exclusão. Segundo
Darmergian (2001), há um processo de eliminação da heterogenei-
dade em prol da heteronomia da vontade. A sociedade despreza o
dessemelhante tentando eliminá-lo em muitas situações.
Considerando ambas as realidades (rural e urbana) encon-
tramos relações significativas entre o ambiente dos jovens estuda-
dos e seus projetos de vida, a partir dos motivos afetivo-volitivos,
entendidos como a base das palavras e do pensamento expressos
pelos jovens imersos em relações sociais existentes em sua cultura
(Vigotski, 2001).
Psicologia e contextos rurais | 135

Onde eu quero e posso viver? Como eu quero


e posso viver? O que eu quero e posso fazer?

Nenhum vento sopra a favor de quem


não sabe para onde vai (Sêneca).

Concordamos com pressupostos existencialistas que, bus-


cando entender a existência humana, admitem que o homem é
seu projeto e existe escrevendo sua vida na medida que realiza tal
projeto (Sartre & Ferreira, 2004). Assim entrevistamos jovens para
conhecer seus projetos de vida almejando entender se eles estabe-
leciam estratégias para alcançá-los no lugar em que viviam, e se
achavam que tais projetos eram concretizáveis, entre outras ques-
tões (Furlani, 2007).
Em sua maioria os jovens tiveram como projeto de vida
concluir os estudos, fazer uma faculdade, ter um trabalho e/ou
emprego fixo e constituir uma família. Levantamos a questão de
que muitos jovens não possuíam condições de ter clareza sobre
o que pretendiam para o seu próprio futuro e que tal fato integra
condições objetivas e subjetivas. Nossa experiência apontou que os
jovens envolvidos na pesquisa retrataram vidas, depoimentos e sig-
nificados que revelaram que a “A desigualdade social se caracteriza
por ameaça permanente à existência. Ela cerceia a experiência, a
mobilidade, a vontade e impõe diferentes formas de humilhação
(Sawaia, 2012, p. 360)”.
É pertinente ao tema projeto de vida para os que vivem a
juventude, e muitas vezes se constitui um grande desafio. O jovem,
que comumente é um ser questionador, traz em si um grande
potencial para ser o grande autor de sua vida. No entanto, as difi-
culdades por que passa, sejam elas de cunho individual (crises
existenciais, alterações de humor, modificações hormonais etc) ou
de cunho social (situação socioeconômica, desigualdades sociais,
136 | Psicologia e contextos rurais

crise de valores etc.), podem influenciar na atuação consciente e


planejada desse jovem em sua própria vida.
A diferenciação dos jovens moradores de ambiente urbano
para rural não resultou em uma diferenciação completa de seus
projetos de vida. Contudo, observaram-se influências do ambiente
em que residem em relação a algumas características específicas
de seus projetos de vida. Identificamos que os jovens do ambiente
rural tendem a buscar mais cedo o trabalho, em relação aos jovens
do ambiente urbano. Observou-se ainda que estes trabalhos eram,
em geral, informais, sem a garantia de direitos trabalhistas, o que
lhes gera uma insegurança em relação ao lugar em que moravam.
Percebemos uma grande queixa dos jovens do ambiente
rural sobre a dificuldade de encontrar trabalho no lugar que viviam.
Esse fato se relaciona com o projeto deles de pretender morar em
outro lugar, na tentativa de buscar melhores oportunidades de tra-
balho. Muitos afirmaram que, se não fosse por esse fato, gostariam
de permanecer morando lá mesmo. Já em relação aos jovens do
ambiente urbano, identificamos uma queixa em relação à violência
urbana, à qual estão cada vez mais expostos, gerando sentimentos
de contraste em relação ao lugar que habitam. Ao mesmo tempo em
que gostam do lugar, devido às características atrativas dele (praias,
clima quente, hospitalidade das pessoas etc.), sentem-se mal com
assaltos, crimes e violência. A violência urbana que amedronta –
não só aos jovens – provoca um sentimento de desconforto, medo,
insegurança, que leva a certa imobilização das pessoas em geral. Os
jovens, foco específico desta pesquisa, expressaram muitas vezes
o fato de não conhecerem verdadeiramente sua cidade por causa
do medo de transitar pelas ruas. Os jovens do ambiente urbano
expressaram um maior desejo de ingressar na faculdade do que os
jovens do ambiente rural. Consideramos que isso não se relaciona
somente com a situação financeira dos jovens; relaciona-se, tam-
bém, com o fato de o meio urbano oferecer mais alternativas para o
ingresso no ensino superior, instigando quem está perto a almejar
Psicologia e contextos rurais | 137

uma participação nesses níveis mais avançados da educação. Ao


passo que, em um ambiente rural, onde não existem faculdades e
universidades, ocorre o desinteresse a partir da impressão de que
esse projeto seja distante de suas realidades.
Consideramos que a falta de perspectivas dos jovens para
construir projetos de acordo com as referências que encontram
se relaciona tanto com aspetos individuais como com condições
adversas do meio social pelo qual estão imersos. Parece existir,
então, uma relação entre condições sociais específicas de ambien-
tes diferentes e a maneira como cada um se posiciona, o que per-
mite fazer escolhas e vivenciar situações (Matheus, 2003).
A desigualdade econômica que impera atualmente em nossa
sociedade leva à exclusão social, que é experimentada pelos jovens
como ameaça que fragiliza seus projetos de vida.Tanto os jovens do
ambiente rural quanto os do ambiente urbano pertencem a classes
sociais economicamente mais desfavorecidas, compondo um qua-
dro de vulnerabilidade social. Quando os jovens demonstraram
falta de criatividade e motivação para projetar planos, objetivos e
metas diversificadas para suas vidas percebemos e identificamos o
sofrimento ético-político (Sawaia, 2012).
O imediatismo de limitar-se a questões pessoais de um pre-
sente imediato demonstrado pelos jovens que pouco refletiram
sobre suas vidas, restringindo os projetos ao que lhes parecia mais
possível de conquistar – profissão, trabalho e família, revelou-se
uma realidade dos jovens de ambos os ambientes (rural e urbano).
A participação dos jovens em grupos de iguais (religiosos,
esportivos, artísticos ou sociais) possibilita a troca de experiências,
que leva à aprendizagem, ao autoconhecimento, aos sentimentos
de bem-estar, ao crescimento pessoal, à motivação, à liberdade e
à criatividade que facilitam a expressão de seus projetos levando
em conta que “o outro é indispensável à minha existência, tal como
138 | Psicologia e contextos rurais

aliás ao conhecimento que eu tenho de mim” (Sartre & Ferreira,


2004, p. 221).
Costa (2004) argumenta que uma das consequências decor-
rentes da crise da modernidade consiste no fato de que o indivíduo
encontra-se diante do enfraquecimento de instâncias, tais como:
a família, o trabalho e a religião. Ou seja, atualmente não existe
mais tão nítido um padrão a ser seguido, prevalecendo as multipli-
cidades de normas, condutas e modelos. Com o detrimento dessas
instituições, Costa (2004) mostra que o indivíduo passa a se basear
em dois eixos de suporte: o narcisismo e o hedonismo. Narcisismo
entendido como individualismo exacerbado e o hedonismo como
uma consequência da dinâmica identitária narcisista. O sujeito
tende a se envolver apenas com compromissos particulares, além
de permanecer preso ao presente. É incapaz de antecipar proble-
mas, questões a serem pensadas, não exercendo muito a capaci-
dade de elaborar projetos de vida.
Costa (2004) defende a ideia de que as instâncias tradicio-
nais não deixaram completamente de exercer domínios sobre os
indivíduos. O que passou a ocorrer foi o que denominou de “priva-
tização” de tais instâncias. Ao invés de serem eleitas universais, pas-
sam a atuar a partir de uma multiplicidade, tendo efeito de acordo
com cada caso, não vigorando de modo homogêneo. Assim, pen-
samos como um ponto favorável à liberdade que o sujeito tem de
poder se adequar a uma pluralidade de valores, tradições e padrões
de comportamento.
Já a autora Costa (2012) designa rede de apoio social (famí-
lia, escola, pares e comunidade) como fator de proteção para jovens
se desenvolverem de forma saudável mesmo diante de condições
adversas e aponta que o papel dessa rede e sua influencia na vida da
juventude brasileira que vive em condições de vulnerabilidade social.
Concordamos com a advertência de Sawaia (2012, p. 370) de
que “a consciência/sentimento de que nossa potência de passar da
Psicologia e contextos rurais | 139

passividade à atividade só é possível por meio do outro que nos


torna comprometidos socialmente, não por obrigação, mas como
ontologia”.
Assim, políticas públicas que considerem uma de rede de
apoio social como fator de proteção para jovens se desenvolverem
de forma saudável mesmo diante de condições adversas, deve ser
um eixo prioritário do Estado. Envolvidos nessa rede de proteção,
os jovens tendem a elaborar seus projetos de vida de forma mais
estruturada e crítica.
O potencial do jovem para mobilização, reflexão, busca de
superação de desafios que gerem mudanças pessoais e grupais deve
ser aproveitado e incentivado por educadores e por profissionais de
diferentes áreas. Acreditamos que esse é um dever e um desafio em
nossa sociedade atual, principalmente num país como o Brasil, em
que os jovens representam uma grande parcela da população.

Referências
Albuquerque, F. J. B. (2002, janeiro-abril). Psicologia Social e Formas de Vida
Rural no Brasil. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 18 (1), 37-42.

Almeida, M. I. M. (2003). Noites nômades: Espaço e subjetividade nas culturas


jovens contemporâneas. Rio de Janeiro: Rocco.

Almeida L. S. & Freire, T. (1997). Metodologias da investigação em Psicologia


e educação. Coimbra: APPORT.

Bomfim, Z. A. C. (2003). Cidade e Afetividade: Estima e construção dos mapas


afetivos de Barcelona e São Paulo. Tese de doutorado em Psicologia,
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP.

Castro, L. R. (2001). Da invisibilidade à ação: crianças e jovens na construção


da cultura. In Castro, L. R. (Org.). Crianças e jovens da cultura (1a ed,
pp. 20-60). Rio de Janeiro: NAU/FAPERJ.
140 | Psicologia e contextos rurais

Ciampa, A. C. (2001). A estória de Severino e a História da Severina. 7a ed. São


Paulo: Brasiliense.

Costa, J. F. (2004). O vestígio e a aura. Rio de Janeiro: Garamond.

Costa, L. G. A rede de apoio social de jovens em situação de vulnerabilidade


social e o uso de drogas. Recuperado em 17 março 2012, de http://
www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/16339/000699006.
pdf?sequence=1.

Darmegian, S. (2001). A construção da subjetividade na metrópole paulistana:


desafios da contemporaneidade. In J. Pinheiro (Org.). Panoramas
interdisciplinares para uma Psicologia do urbano. São Paulo: EDUC,
FAPESP.

Ferreira, K. P. M. (2006). Ficar ou Partir? Afetividade e migração de jovens


do sertão semiárido cearense. Dissertação de mestrado em Psicologia,
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE. p

Freire, P. (1980). Conscientização: teoria e prática de libertação – uma


introdução ao pensamento de Paulo Freire. 3a ed. São Paulo: Moraes.

Furlani, D. D.& Bomfim, Z. A. C. (2010) Juventude e afetividade: tecendo


projetos de vida pela construção dos mapas afetivos. Psicologia e
Sociedade, 22 (1), pp. 50-59.

Giddens, A.(2002). Modernidade e identidade. Rio: Zahar.

Lane, S. T. M. (1994) A Mediação Emocional na Constituição do Psiquismo


Humano. In S. T. Lane, M & B. B. Sawaia (Orgs). Novas veredas da
psicologia social (pp. 55-63). São Paulo: Brasiliense.

Matheus, T. C. (2003). O discurso adolescente na virada do século.


Recuperado em 3 outubro 2006, de http://www.scielo.br/scielo.
Psicologia e contextos rurais | 141

php?script=ci_arttex&pid=S0103-65642003000100006&Ing+en&nrm=
iso.

Osório, L. C. (1989). Adolescência hoje.Porto Alegre: Artemed.

Ozella, S. (2003). Adolescências Construídas:a visão da Psicologia sócio-


histórica. São Paulo: Cortez.

Park (1979). A cidade: Sugestões para investigação do comportamento


humano no meio urbano In Velho, O. G. O fenômeno Urbano.4a ed.
Rio de Janeiro: Zahar.

Queiroz, M. I. P. (1976). Do rural e do urbano no Brasil. In T. Szmrecsányi


(Org.).

Vida rural e mudança social (pp.160-173). São Paulo: Companhia Editora


Nacional.

Rolnik, R. (1994). O que é cidade. 3a ed. São Paulo: Brasiliense.

Sartre, J. P. & Ferreira, V. (2004). O existencialismo é um humanismo. Chiado:


Bertrand.

Sawaia, B. B. (1999). O sofrimento ético-político como categoria de análise


da dialética exclusão/inclusão. In B. B. Sawaia (Org.). As artimanhas
da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social (pp.
97-118). Petrópolis: Vozes.

Sawaia, B. B. (2002). A afetividade como fenômeno ético político e locus da


reflexão crítico epistemológica da Psicologia Social. International
Journal of Critical Psychology (prelo).

Sawaia, B. B. (2009). Psicologia e desigualdade social: uma reflexão sobre


liberdade e transformação social. [versão eletrônica] Psicologia &
Sociedade21(3), 364-372.
142 | Psicologia e contextos rurais

Velho, G. (2003). Projeto e metamorfose:antropologia das sociedades


complexas. 3a ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Véras, M. P. B. (2000). Trocando olhares: uma introdução à construção


sociológica da cidade. São Paulo: Cultrix.

Vigotski, L. S.(1999). O Significado histórico da crise da Psicologia. In Teoria


e método em Psicologia.2a ed. São Paulo: Martins Fontes.

Vigotski, L. S.(2001). A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo:


Martins Fonte.
Modos de vida cigana e
toxicodependência: desafios
e perspetivas no cuidado em
saúde mental em Portugal
Joaquim A. Costa Borges

[…] Maria Gomes Pimentel […] de Vila Nova da Rainha no


Brasil, cúmplice no assassínio do marido só foi condenada a
dez anos de exílio em Angola, enquanto que duas ciganitas,
com cinco e dez anos de idade, foram exiladas para toda a
vida, juntamente com a mãe viúva, apenas por serem ciganas.
(Boxer, 1965, p. 202)
144 | Psicologia e contextos rurais

Introdução

E ntre os anos de 1989 e 2012 registramos na clínica pública e


privada a presença de pessoas de etnia cigana e de mestiços1,
filhos de cruzamentos entre ciganos e brancos, com a problemá-
tica da toxicodependência e distúrbios psiquiátricos. Conhecida a
nossa experiência clínica em Portugal com essa etnia, surgiu o con-
vite para integrar, em regime de voluntariado, o Grupo de Trabalho
Interinstitucional sobre a Etnia Cigana – Grupo de Trabalho Sina,
em 1997, através de Sérgio Aires, coordenador nacional da Rede
Europeia Antipobreza para as Minorias Étnicas, que integrava enti-
dades públicas e privadas de diferentes áreas (Saúde, Educação,
Segurança Social, Justiça etc.), cuja maior preocupação se centrava
nas questões de saúde pública ligadas à etnia. Esse grupo fazia parte
da Rede Europeia SASTIPEN – palavra que significa “Saúde” na lín-
gua Romaní2 –, composta por parceiros nacionais públicos e pri-
vados de solidariedade social (ONGs) e países da União Europeia
como Espanha, Portugal, França, Itália, Grécia, Bélgica, República
da Irlanda e Reino Unido, sendo que a Hungria, a Roménia, a
República Checa e a Bulgária tinham, inicialmente, o estatuto de
observadores. Todo este trabalho obteve, à época, financiamento
por parte da União Europeia, dadas as preocupações generaliza-
das ante a discriminação dessa etnia no espaço comunitário que
era percepcionada como sendo mais distónica que os imigrantes do
Brasil, África e Europa de Leste.
Em Portugal, o Grupo Sina procurou, num espírito de cul-
tura de rede, reflectir estratégias e formas de intervenção concerta-
das no que concerne aos problemas com que a etnia se confrontava.
O convite para integrarmos o grupo revelou-se tão enriquecedor

1 Conhecidos dentro da etnia como “presuntos”.


2 Romani – idioma principal do povo cigano.
Psicologia e contextos rurais | 145

quanto questionador das práticas tradicionais se considerarmos


essa experiência como alteridade à prática clínica com a maioria
paya3. Um dos objectivos do Grupo Sina era promover com as pes-
soas ou grupos que se encontravam em situação de exclusão, por um
lado, e com os agentes de intervenção (profissionais, trabalhado-
res sociais, dirigentes de instituições particulares de solidariedade
social), por outro, a integração social, a organização de serviços e
outras actividades que visassem primacialmente a expressividade
cultural, económica, psíquica, física e ética das pessoas dessa etnia.
Esse grupo de trabalho cessaria funções em 2006 com o fim do
financiamento dos projectos por parte da União Europeia. A partir
dessa data, por falta de fundos, deixaram de existir políticas con-
cretas que visassem o apoio à etnia cigana. Um dos maiores proble-
mas, actualmente e à época, da comunidade cigana era e é o abuso
de estupefacientes por parte dos jovens da etnia.

O modus vivendi dos Roma4


Existe atualmente consenso em considerar o povo cigano
como sendo oriundo do Punjab, na Índia. Daí teriam se dissemi-
nado pelo Próximo Oriente e pela Europa, chegando aos Balcãs na
Idade Média. Um século depois os ciganos estavam na Península
Ibérica, entrando em Portugal em 1498. Poucos anos depois (1516),
Luís da Silveira lhes dedica uma poesia, recolhida por Garcia de
Resende no seu Cancioneiro geral. Em 1521 Gil Vicente faz repre-
sentar no Paço Real de Évora perante o “muito alto e poderoso Rei
D. João, o terceiro deste nome” (Vicente, 1965, p. 641) a Farsa das
ciganas, em que o autor situa erroneamente a origem da etnia na
Grécia. Martina, uma das ciganas da peça, refere numa corrup-
tela do castelhano: “De Grecia sumuz hidalgaz por Diuz. Nuestra

3 Paya – nome usado pelos ciganos para designar a sociedade branca.


4 Roma – é um exónimo no português para ciganos.
146 | Psicologia e contextos rurais

ventura que fue cuntra nuz, Por tierraz estrañaz nuz tienen perdi-
daz” (Ibidem, 1965, p. 645).
Na sua itinerância e possuindo aptidões excelentes para
o negócio e comércio, os ciganos prestaram serviços notáveis à
sociedade europeia. Durante centenas de anos, quando não exis-
tiam hipermercados, as novidades chegavam ao mundo rural tra-
zidas por eles. Caraterizaram-se desde o início pela sua errância
e nomadismo revelando atualmente, e devido à pressão da socie-
dade maioritária, tendência para a sedentarização. Mantiveram ao
longo de vários séculos as suas tradições, quase sempre discrimi-
nadas pelos povos não ciganos. As referências negativas e depre-
ciativas em relação a esta etnia são uma constante, assim como as
perseguições e as tentativas de assimilação por parte da maioria,
consubstanciadas na profusão de leis persecutórias, sobretudo na
Península Ibérica. Ainda hoje a discriminação é notória, havendo
comerciantes que, para afastar os ciganos das suas lojas, colocam
nas suas vitrines sapos de louça, considerados portadores de infor-
túnio pela etnia.
Há autores como Moscovici (2009) que comparam a diás-
pora cigana à judia. Ambos os povos foram vítimas do holocausto
nazi, durante a Segunda Guerra Mundial. Estima-se terem sido
exterminados cerca de 500.000 ciganos nos campos de concen-
tração entendendo-se que este número peca por defeito (Fraser,
2000). A perseguição ao povo judeu terá acalmado substancial-
mente após a guerra, não podendo o mesmo ser dito em relação aos
Romaní. “Los gitanos fueron probabelmente los primeros refugia-
dos de Europa” (Rodríguez, 2011, p. 59).
Trata-se da principal minoria étnica da Europa, composta
por doze milhões de indivíduos, concentrados maioritariamente
no leste europeu. É, contudo, de salientar, que o Brasil é o segundo
país do mundo com a maior população de ciganos (um milhão),
só ultrapassado pela Roménia (Rodríguez, 2011). Em Portugal,
Psicologia e contextos rurais | 147

segundo a European Comission against Racism and Intolerance,


(2002), a população cigana era constituída nessa altura por 50.000 a
60.000 indivíduos maioritariamente concentrados na zona urbana
de Lisboa, bem como no litoral atlântico e em algumas localida-
des do interior que fazem fronteira com Espanha (Almeida, A et
al., 2001). Esse número não é fiel. A Constituição Portuguesa, e a
maioria das europeias, impede a existência nos dados de recensea-
mento da população de fatores que identifiquem raça, etnia ou cor
por serem potencialmente discriminatórios. Quando uma criança
é registada nenhum desses dados consta, o que favorece o desco-
nhecimento generalizado em relação a essa minoria. Os dados dis-
poníveis são provenientes das autarquias, nem sempre fidedignos,
uma vez que surgem relacionados com pedidos de auxílio, nomea-
damente para a obtenção do Rendimento Social de Inserção5 (RSI)
e de habitação social.
Os ciganos são um dos grupos socialmente mais desfa-
vorecidos (Aires, S. & Alves, I., 2003). Essa estado potencia a sua
extrema fragilidade no enfrentamento da atual crise económica.
Acrescem os problemas de integração na sociedade maioritária que
essa comunidade sempre teve ao longo dos séculos, como a exclu-
são social, a existência de um medo enraizado face aos ciganos,
medo esse eivado de preconceito e alicerçado em estereótipos que
os consideram uma “corja” de ladrões e preguiçosos. Esses receios
são motivados, essencialmente, pelo desconhecimento genera-
lizado das suas especificidades étnicas numa cultura que, desde
tempos imemoriais, puniu a diferença denegando-a.
Velhas e novas derivas (toxicodependência e crise socio-
económica) afetam neste momento a construção da identidade
cigana, as regras de parentesco, a autoridade e as suas crenças. As
gravíssimas medidas de austeridade previstas para o orçamento

5 Rendimento Social de Inserção, RSI, apoio do estado português para os indiví-


duos e famílias sem qualquer outro rendimento.
148 | Psicologia e contextos rurais

do estado 2013 potenciam a precariedade altamente penalizadoras


para a população em geral e, particularmente, para os grupos sociais
desfavorecidos como os ciganos. De acordo com o Relatório da
Primavera 2012, do Observatório Português dos Sistemas de Saúde
(OPSS) “Os efeitos da crise socioeconómica, nomeadamente, na
saúde mental são bem conhecidas. As principais manifestações são
precoces e caracterizam-se por perda de autoestima, depressão-
-ansiedade e risco de comportamentos suicidas” (OPSS, 2012, p.
16). O mesmo relatório faz uma comparação a priori com exemplos
recentes da realidade grega que apontam para um forte aumento
das infecções por HIV nos consumidores de drogas injectáveis, o
que deverá colocar Portugal numa situação de alerta ante essa pos-
sibilidade. O mesmo relatório refere que “em Portugal e Espanha
se observou um excesso de mortalidade significativa para o grupo
etário dos 15 aos 64 anos” (OPSS, 2012, p. 20). Considerando que
a pirâmide etária da etnia é composta por uma população muito
jovem, esses dados agora revelados são alarmantes.

Valores e modos de organização


A família exerce uma função básica nas relações sociais da
comunidade cigana, sendo o eixo da organização social e da vida
quotidiana. Vivem ligados a um grupo amplo de parentesco e dessa
ligação advém a sua identidade e formação de personalidade.
Nesse conceito próprio de família, há que ter em conta não só os
que vivem debaixo do mesmo teto, mas também os parentes mais
afastados no espaço, apesar de haver sempre uma procura de proxi-
midade entre os elementos da mesma família.
“O bem da família e o apoio aos seus membros sobressai e
domina outros princípios morais e qualquer outro aspeto da vida
quotidiana” (Arbex, 1999, p. 16). Têm uma vida social fechada,
centrada no clã, onde se pratica a endogamia (Frazer, 2000, p. 40),
ou praticava, o que protegia os elementos do núcleo familiar. Esse
Psicologia e contextos rurais | 149

funcionamento endogâmico, cada vez mais em desuso, terá prote-


gido a etnia da assimilação pelos gachó6 ao longo dos séculos.

De hecho, a lo largo de su devenír histórico los gitanos


se han visto obligados a vivir com una doble tensión: la
tendência a la endogamia para mantener la identidad
comunitária, com los riesgos que comporta, y la tendên-
cia a una mínima adaptación al contexto geográfico, de
riesgo también evidente (Rodriguez, 2011, p. 53).

A família cigana tem como função a socialização dos seus


elementos, a cargo das mulheres, delegando-se pouco na escola. A
figura da mãe é fundamental mantendo uma comunicação muito
próxima com os filhos. O pai exerce a autoridade e mantém maior
distância na relação com os mesmos. A ambos compete a transmis-
são dos valores próprios da etnia: respeito, fraternidade, coerência,
liberdade e eficácia (Rodríguez, 2011). Nas comunidades ciganas o
reconhecimento social da maioridade dá-se mais cedo. Nas rapa-
rigas com a menarca, nos rapazes com a primeira ejaculação. O
seu processo de maturação é mais acelerado que nos não ciganos.
Desde muito cedo começam a trabalhar havendo distinções entre
os trabalhos a desempenhar de acordo com o género. O valor eco-
nómico das crianças ciganas é elevado porque desde cedo contri-
buem para o aumento do rendimento do agregado familiar.
O casamento é uma instituição basilar na comunidade.
Considerado pela sociedade paya como sendo somente uma união
de facto, é sentido como fulcral pela comunidade, abrindo a porta à
idade adulta. A par com os batizados, é o grande momento de festa
da comunidade cigana. O casamento precoce obriga a uma assun-
ção de responsabilidades que provoca uma aceleração na obtenção
de maturidade dentro e fora do grupo. O casamento é combinado

6 O termo gachó, deriva do caló, dialeto ibérico da etnia cigana, usado para refe-
rir, pejorativamente, os brancos, os “outros”. Evoluiria no português para “gajo”.
150 | Psicologia e contextos rurais

pelas famílias aquando da infância. A taxa de fecundidade é muito


elevada e a comunidade é constituída maioritariamente por jovens
dos seis aos vinte e cinco anos (Arbex, C., 1999).
No que diz respeito à educação, a etnia tem uma das maio-
res taxas de abandono escolar do país, por causa do isomorfismo da
escola pública portuguesa, impreparada para a multiculturalidade.
Por outro lado, as caraterísticas da cultura cigana conduzem ao seu
isolamento face ao resto da população e promovem a sua resistência
à integração nas comunidades escolares. O seu escasso autocon-
trolo emocional, a maior prevalência do emocional sobre o racio-
nal e a menor motivação para o pensamento abstrato (Rodríguez;
2011), leva a que as crianças frequentem a escola até aprenderem
a ler e a escrever, uma vez que contar cedo é interiorizado, na sua
educação familiar ligada ao negócio. A ida à escola é obrigatória
para a atribuição do RSI.
Existem escolas, nomeadamente as TEIP (Território
Educativo de Intervenção Prioritária) com turmas compostas por
meninos ciganos. Cedo perceberam que o trabalho com eles e as
respetivas famílias não poderia passar pela figura do diretor de
turma (professor responsável pelo grupo/turma), sendo a comuni-
cação estabelecida através de um mediador cigano, figura da etnia,
que transmite informação aos pais sobre a vida escolar das crian-
ças. As rotinas escolares e o cumprimento de horários são difíceis
para a etnia, habituada a contar o seu tempo pelos ritmos da natu-
reza, ao sentir e não ao cumprir, justificando essa forma de estar na
vida o elevado absentismo escolar dos meninos e meninas ciganos.
Dentro da comunidade existe uma fraca valorização da escola, que
consideram desviar as crianças da contribuição para o sustento da
família, não sendo o conhecimento escolar em si valorizado uma
vez que a sua tradição cultural não sente necessidade da prática
discursiva científica.
Psicologia e contextos rurais | 151

Para a comunidade cigana a família é o espaço privilegiado


de transmissão de conhecimento, aquele que considera adequado
a um dos seus membros, feito essencialmente pelas mães, em casa.
A educação formal das meninas é considerada desnecessária. A ida
à escola rouba tempo à família e as impede do auxílio às mães nas
suas tarefas, seja a leitura da sina, na mendicidade ou nos trabalhos
domésticos: “la chabordi (a catraia) faz-me muita falta no trabalho
da casa, por isso eu não a deixo ir à escola. O “chavorrillo” (rapazito)
se quiser pode ir, mas também nos faz falta, porque sempre sai e
volta com alguma coisita que nos ajuda a governar” (Pinto, 2000, p.
68). Para as meninas da etnia, o acesso à escola é particularmente
difícil, o que explica a existência de uma taxa de analfabetismo
superior entre as mulheres. Há, felizmente, um grupo minoritário
que acede a estudos superiores em Portugal. Entre outros exem-
plos, um dos municípios, no centro do país, tem como prefeito um
cigano, licenciado em Direito.
Povo desde cedo dedicado à errância e ao nomadismo, às
caravanas familiares percorrendo os caminhos da Europa, ligados
ao chão que pisam, à natureza, à vida ao ar livre, não será de estra-
nhar que suas atividades económicas sejam consentâneas com essa
forma de estar na vida. A sua existência desde sempre se desenvol-
veu em estreito contacto com a natureza, na dedicação às ativida-
des cénicas, à leitura da sina, à agricultura, por curtos períodos de
tempo, à cestaria, à venda de gado e à pequena metalurgia.
Há que ter em conta o posicionamento cultural do povo
cigano face ao trabalho, que não é visto como uma possibilidade de
ascensão económica ou social, ou de promoção pessoal, somente
como um veículo de sobrevivência do próprio e da família. Se a sub-
sistência estiver assegurada, o trabalho deixa de ter justificação e
o cigano dedica-se aquilo que para si é fundamental: agir o viver.
Procuram trabalhos que assegurem um rendimento imediato e que
lhes permita mobilidade e flexibilidade de horário. A valorização do
que nos rodeia é feita por essa etnia de uma forma substancialmente
152 | Psicologia e contextos rurais

diferente da sociedade maioritária. A liberdade, um dos mecanis-


mos identitários dos ciganos, confronta os valores primordiais do
capitalismo, o que habitualmente produz nos empregadores payos
hostilidade em relação à contratação de ciganos.
Em Portugal existem alguns sinais que levam a acreditar
numa possibilidade de mudança. Por um lado, as associações ciga-
nas têm proliferado e mostrado sensibilidade perante a necessi-
dade de formação profissional dentro da etnia, sem diferenciação
de género, por outro, e de uma forma impositiva, a atual legislação
portuguesa exige que todos os detentores do RSI prestem quinze
horas semanais de trabalho comunitário como condição sine qua
non para a obtenção dessa prestação social. Verifica-se também um
maior recurso ao microcrédito para pequenos negócios (Almeida
et al., 2001) nomeadamente por parte das mulheres ciganas, para a
criação de microempresas de trabalhos domésticos.
No que diz respeito à habitação, o povo cigano prefere a vida
a céu aberto, modus vivendi profundamente enraizado nas suas
tradições, ou numa casa térrea, com acesso fácil ao chão, para ele
familiar enquanto possibilidade de caminho a percorrer. A grande
maioria continua sem condições mínimas no que diz respeito à
habitação e existe falta de sensibilidade das autarquias relativa-
mente às especificidades culturais da etnia e à sua necessidade de
pertença à terra. A vida em apartamentos, em bairros sociais, ver-
dadeiros guetos, localizados perto de lixeiras ou zonas industriais
poluídas não tem facilitado a sua integração (FSG7, 2007).
Dentro da comunidade existe uma valorização do patriarca,
enquanto fiel depositário de experiências de vida, o sábio que pode
orientar os mais novos. Regra geral, o mais velho de um determi-
nado acampamento ou comunidade assume o papel de tio que
decide, em última análise, o que o clã deverá fazer. As mulheres,

7 FSG – Sigla para Fundación Secretariado Gitano


Psicologia e contextos rurais | 153

enquanto veículo de transmissão da cultura cigana, agrafa8 por


excelência, são valorizadas. É com a mãe que se dá o processo de
socialização primária, e é com esta que as crianças ciganas passam
mais tempo. O casamento é combinado precocemente pela família
havendo um tabu em relação a casamentos entre ciganos e gachó,
situação esta que é mais restritiva no que concerne às mulheres,
valorizadas enquanto rainhas do lar, organizadoras das tarefas
domésticas, mas às quais nunca é reconhecida maioridade. Uma
mulher cigana não pode trabalhar fora de casa sem a companhia do
marido ou de um homem da família ou, ainda, sem outras mulhe-
res ciganas.
Apesar dos condicionantes apontados anteriormente, a
importância do género na etnia consolidou-se através da forma-
ção profissional de mulheres, no planeamento familiar e econo-
mia doméstica, bem como a sua capacitação como mediadoras
socioculturais, o que conduziu à constituição da Associação para o
Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas em 2001, com
sede na cidade de Setúbal (Almeida et al., 2001).
A comunidade cigana portuguesa tem se aproximado nos
últimos tempos da Igreja Evangélica de Filadélfia, que se tem reve-
lado um espaço alternativo de apoio ao grupo na resolução de
conflitos internos e no afastamento do mundo das drogas (o seu
sucesso é deveras relativo). A participação no culto é também vista
como lugar de transmissão de normas e condutas relacionadas com
os cuidados de saúde, especialmente álcool e tabaco nas mulheres,
bem como na toxicodependência dos homens.

8 Agrafa – cultura sem escrita, veiculada pela oralidade.


154 | Psicologia e contextos rurais

Modus operandi das sociedades


capitalistas e o modo de vida cigano
Considerando que capitalismo designa um modelo de orga-
nização social e económica, sendo também usado, num plano his-
tórico, como a antítese do socialismo, diferenciando-se deste pelo
seu carácter individualista, pela motivação do lucro, baseando-se
na propriedade privada, na livre iniciativa e empreendedorismo,
nenhum desses pressupostos tem enquadramento no modo de
viver da sociedade cigana. Orientam a sua vida tendo em conside-
ração a sobrevivência do clã, se um tem todos têm, se não existe,
não existe para ninguém. O pseudorracionalismo económico, a
ânsia de criar riqueza e forçar lucros especulativos, que modelam
a mentalidade capitalista, sobretudo na atual vertente ultraliberal
– remotamente plasmada nas ideias calvinistas e em Lutero, ele
próprio antissemita e anti-rom9 – é profundamente antagónico do
sentir cigano.
Ameaçadoramente livres numa sociedade sedentária,
amantes dos espaços e dos caminhos, ligados por um sentimento
intrínseco de liberdade típico da sua cultura, o cumprimento de
horários imposto pelos empregos convencionais afasta a etnia
desde logo do mainstream. O desapego em relação a valores mate-
riais é desde logo consubstanciado na forma como vivem o luto. As
posses do morto são destruídas, todos os cacharros10 que a viúva
acumulou ao longo da vida em comum são destruídos. Do morto
nem o nome se pode guardar, sob pena de o mesmo vir ensombrar
a vida dos vivos e não ter paz na sua vida no além. Os familiares
sobrevivos com o mesmo nome devem alterá-lo, não vá a alma do
defunto ouvir o seu nome ser pronunciado e sentir-se conjurado

9 Rom – Povo cigano, em Romaní.


10 Cacharros – peças de louça vistosas e coloridas muito apreciadas pelas mulheres
ciganas.
Psicologia e contextos rurais | 155

a regressar, pondo em perigo o “equilíbrio” existente entre os dois


mundos. A viúva não pode voltar a casar e deverá levar uma vida de
recato, abstendo-se de participar nas festas ciganas (Pinto, 2000).
Assim, no modo de ação típico da cultura cigana, os valo-
res capitalistas não são enquadráveis. Povo livre por excelência, no
seu quadro de representações mentais o dinheiro não tem qualquer
valor que não no imediato. Vale para prover o sustento da família,
extensa ou nuclear, no hoje e agora. Guardar para amanhã suscita
azar, num povo profundamente supersticioso, com dificuldade em
entender a visão gachó que incita à poupança, a uma vida regrada
de trabalho, imposta por uma sociedade disciplinar. Caraterizam-se
por uma lógica imediatista, ganhar hoje, gastar hoje. O passado
não preocupa e o futuro não angustia. Na comunidade não existe
uma prática de reserva de lucros ou acumulação de capitais. A esta-
bilidade não surge como uma necessidade premente, só o presente
interessa. Tradicionalmente ligados a atividades que lhes permi-
tam a subsistência quotidiana, partilhadas entre toda a família, em
que cada um cumpre a sua função de prover o clã, culturalmente
não revelam tendência para atividades que envolvam muitas horas
e ligadas a horários rígidos, provavelmente porque “não há, por
parte da população, uma consciência da necessidade de apreen-
são dos mecanismos de mercado-concorrência, relação qualidade/
preço – de aperfeiçoamento dos produtos fabricados, enfim, das
exigências da economia de mercado” (Pinto, 2000, p. 80), daí que
a maior parte dos negócios seja realizada dentro da própria comu-
nidade, através de troca direta. Durante muito tempo a fazenda era
medida a olho e não tendo o metro como padrão de referência.
Dedicam-se à cestaria, feita pelos homens adultos, mas a
concorrência de cestos fabricados a baixo preço na China tem difi-
cultado a venda desses artigos. A progressiva rarefação da matéria-
-prima, obtida nos canaviais, por causa de um aumento crescente
do nível de poluição dos rios portugueses, tem também obstaculi-
zado esta atividade.
156 | Psicologia e contextos rurais

A comunidade cigana vive de costas orgulhosamente volta-


das para os ideais burgueses, de vida regrada, dedicada ao trabalho
e na subsistente criação de mais-valias assentes na valorização da
propriedade, noção a qual são alheios, o que explica a legitimidade
do furto aos olhos dos ciganos, encarado somente como luta pela
sobrevivência.

A toxicodependência e a saúde
mental entre os ciganos
De uma forma geral as comunidades ciganas não procuram
os serviços de saúde excepto em casos limite. Para a comunidade,
saúde, é sinónimo de ausência de doença. Recorrem às urgências
hospitalares em situações graves, sendo alheias à prevenção. Na
toxicodependência e na saúde mental essa situação é assaz notória.
De uma maneira geral os ciganos têm uma relação proble-
mática com a doença, que é assustadora e vivida com medo, daí
os mitos e lendas transmitidos pela oralidade, por exemplo, uma
família com um membro canceroso esconde essa realidade dado
que as suas crenças consideram esse tipo de doença uma maldição
de Deus. Revelam, igualmente, fraca consciência em relação à pos-
sibilidade de prevenção e tratamento, daí que qualquer problema
de saúde seja vivido como um luto.
As crianças ciganas crescem, maioritariamente, num
ambiente insalubre, sem acompanhamento higieno-sanitário,
sem vacinas, não só pelo receio em relação dos seus efeitos, como
também devido à forma como os pais entendem o tempo, assu-
mido como entidade ligada aos ciclos da natureza e não ao tempo
medido por Greenwich. O esquecimento de prazos e datas não é
considerado relevante. A noção de espaço e tempo é difusa.
A alimentação é deficiente e irregular com uma notória
exiguidade de pratos quentes. O exercício físico não é praticado
quer por crianças quer por adultos. Os hábitos de higiene pessoais
Psicologia e contextos rurais | 157

são descurados, o banho diário quase não existe e o vestuário não


é cuidado. É comum a existência de acidentes como queimaduras,
quedas, atropelamentos, feridas com instrumentos domésticos,
fraturas, bem como a ingestão de produtos de limpeza, medica-
mentos e outros produtos tóxicos (há relatos em Espanha de crian-
ças mortas com overdose acidental quando na família se trafica).
Na raiz do problema está o abandono das crianças e a falta de super-
visão dos adultos, deixando-as entregues à sua sorte, obrigando-as
a “desenrascar-se”. Desde que nascem que a sua autonomia é incen-
tivada. É comum um rapaz de doze anos conduzir o carro do pai. As
atividades preventivas são nulas e escassa é a possibilidade da sua
implementação. A saúde não os preocupa desde que a sua ausên-
cia não se manifeste através do surgimento de doença. O médico
é procurado só quando esta se manifesta para resolver o problema
tão pronto quanto possível.
É nesse contexto que, em Portugal, cessam, sobretudo a
partir de 2008, início da crise económica, os programas da União
Europeia. Neste momento não existem, praticamente, programas
de prevenção com as camadas populacionais mais desfavorecidas,
nomeadamente nos ciganos. Houve um alheamento notório da
política governamental face às desigualdades sociais e um desin-
vestimento, com todas as consequências para a saúde pública,
desse tipo de lacuna, nessa população.
O recurso dos elementos da comunidade aos serviços de
assistência médica é baixo. A par disso, não deveremos esquecer
a ausência de documentação legal por uma parte dos ciganos, que
não tem sequer cartão de cidadão. Essa situação é conveniente para
os poderes instituídos uma vez que os desonera de responsabilida-
des sociais.
Está enraizado na sociedade portuguesa o estereótipo do
cigano ladrão e traficante de droga. Na realidade, o tráfico de droga
em Portugal não é um monopólio da comunidade cigana. Dentro
158 | Psicologia e contextos rurais

dela é residual. O tráfico de droga afeta apenas alguns dos seus


membros. Da nossa experiência clínica ressalta uma percentagem
reduzida de ciganos dedicados ao tráfico, cerca de 5%. Deverá ser
tido em linha de conta o maior peso demográfico dos grupos juve-
nis na comunidade cigana, o que pode sobredimensionar o pro-
blema de tráfico e/ou consumo de drogas como o tabaco, o álcool,
o haxixe, a heroína e a cocaína.
Inicialmente, o tráfico de drogas surgiu na comunidade
como mais uma forma de dinheiro rápido e imediato para prover o
sustento da família alargada. Numa primeira fase conseguiram uma
separação quase assética em relação aos produtos que traficavam.
A comunidade rege-se por leis próprias, obedecem à sua medida
aos tribunais, mas resistem ao seu reconhecimento. A “lei cigana”
é um conjunto de princípios que emergiram da tradição, passados
pela oralidade, sobretudo através das matriarcas, condicionando e
determinando toda a vida social. Tem inerente uma ética especí-
fica, referindo-se a regras e mestria no negociar. O tráfico de drogas
tratava-se somente de mais uma possibilidade de mercancia. Os
problemas começaram a surgir quando os jovens ciganos passaram
a consumir os produtos que vendiam. O maior prejuízo que teve a
entrada dos ciganos no comércio de droga foi o incremento expo-
nencial de toxicodependentes entre a população mais jovem, o que
forçou uma profunda mudança nas suas caraterísticas identitárias,
sobretudo no respeito por causa dos mais velhos. As disrupções
familiares ligados ao consumo de drogas têm um forte impacto na
etnia. São, sobretudo, os homens casados que abusam do consumo
de estupefacientes motivados, inicialmente, pela forma fácil de
obter sustento para a família, depressa se deixando tentar pelo con-
sumo do que era somente suposto comerciarem.
A cultura cigana em si encerra um conjunto de fatores que
potenciam o consumo de substâncias psicoactivas. As crianças
ciganas crescem num clima de permissividade face aos consumos.
Como o risco do consumo não é entendido no seio da comunidade,
Psicologia e contextos rurais | 159

elas não são protegidas. Existe uma falta de conhecimento do


alcance que o consumo desse tipo de substâncias e outras, como
o café, tabaco ou álcool podem ter. Desde cedo a educação para o
excesso e a predominância do emocional sobre o racional dificul-
tam a tomada de posições meditadas ante os consumos, dado que a
oferta é inevitável. A família cigana típica considera que o consumo
de tabaco e álcool pelos jovens do género masculino é sinal de viri-
lidade e honradez, promovendo o abuso11. A parentela, por um lado
é permissiva, por outro, perante o consumo de estupefacientes, tem
atitudes antagónicas. Ou tenta esconder ou ameaçam com a morte,
expulsão de casa ou outros castigos. No fundo, o que predomina
é um sentimento de impotência. Nas famílias em que essas subs-
tâncias circulam com normalidade não existem cuidados no sen-
tido de impedir as crianças de lhes aceder, pululando as mesmas
pelas casas como produtos inócuos. A incorporação no tráfico de
menores de idade facilita um eventual consumo futuro. Por outro
lado, ficando sozinhas durante parte do dia, em meios sociais des-
favorecidos em que essas substâncias circulam com liberalidade,
a possibilidade de consumo aumenta. Desse modo, a comunidade
cigana de repente acordou para uma realidade diferente. Alguns
dos seus jovens tornaram-se toxicodependentes. O cigano usuá-
rio de drogas tem fraca visibilidade face ao cigano traficante. Esse
facto tem vindo a ser camuflado o que origina outro problema. O
encobrimento, com as doenças potencialmente associadas ao con-
sumo, hepatite, síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA)
etc., produz preocupações e, consequentemente, inibem a procura
de apoios terapêuticos.
Existe uma enorme dificuldade em fazer estimativas sobre o
número de toxicodependentes de etnia cigana. As famílias escamo-
teiam o consumo por vergonha, por ser uma fonte de conflitos ou

11 As raparigas, na cultura tradicional cigana, estão inibidas do consumo de álcool


e de tabaco.
160 | Psicologia e contextos rurais

pela necessidade de preservar a imagem do clã. Em termos médios,


o toxicodependente cigano tem uma idade de consumo mais pre-
coce que em outros grupos sociais e, quando chegam aos centros de
assistência, fazem-no em idade mais tardia e em situações pesso-
ais mais complicadas. Se tivermos em linha de conta o casamento
precoce, facilmente se percebe que, na maioria dos casos, quando
procuram ajuda, já são pais de famílias numerosas que têm de
sustentar, levantando a situação os mais variados problemas. As
crianças desses agregados familiares são um grupo de risco a ter
em conta. Numa comunidade em que a família e os valores a ela
associados são fundamentais, a desestruturação provocada pelos
casos de toxicodependência têm consequências avassaladoras, com
impacto nos mecanismos de controlo social, colocando em causa,
muitas vezes, o prestígio e a autoridade dos mais velhos. Essa situ-
ação agrava-se com as doenças associadas ao consumo. Na clínica
pudemos comprovar indicadores preocupantes de aumento dos
casos de infeção com vírus da imunodeficiência humana (VIH),
especialmente homens, que mantêm relações sexuais com os seus
cônjuges, sem qualquer tipo de proteção.
Na nossa prática clínica verificou-se que o consumo de
drogas ilícitas é de 99% entre os homens ciganos e 1% entre as
mulheres, o que contrasta notoriamente com a realidade paya, em
que o rácio dos usuários é de 75% entre os homens contra 25% de
mulheres (Borges, 2005). Ao longo dos anos de prática clínica, 219
usuários de etnia cigana e 23 “presuntos” – designação dada pelos
próprios aos filhos de casamentos mistos – chegaram à nossa con-
sulta psiquiátrica com questões associadas à toxicodependência.
Da prática clínica ressaltam alguns dados epidemiológicos
que passamos a apresentar:
Psicologia e contextos rurais | 161

Tabela 1 – Alguns dados epidemiológicos

Género Escolaridade
Id. média N.º de
de procura filhos
da primeira por 4 6 9 12
consulta Masc. Fem. casal Analfabetos anos anos anos anos

Ciganos 27 anos 99% 1% 3,1 32% 34% 28% 6% 0%


Mestiços 29 anos 87% 13% 1,4 0% 6% 42% 48% 4%

Tabela 2 – Dados de consumo, overdose e tentativa de suicídio


Consumo médio
Tóxicos mais usados
de heroína por dia
Tentativa
Heroína Heroína Heroína Overdose de
Heroína + + + Fumado Injetado suicídio
Cocaína Álcool BZD
1,4
Ciganos 52% 19% 21% 8% 2 gramas 30% 12%
gramas
1,2
Mestiços 48% 16% 18% 18% 1 grama 25% 30%
gramas

Tabela 3 – Comorbilidade psiquiátrica

Comorbilidade psiquiátrica

Distúrbios de Doenças Debilidade Sem


Alcoolismo Esquizofrenia Neuroses
personalidade afetivas mental distúrbios

Ciganos 40% 8% 21% 9% 8% 6% 8%


Mestiços 15% 45% 15% 8% 0% 0% 17%

Tabela 4 – Patologias orgânicas

Doença orgânica

Hepatopatias HIV+ Epilepsia Tubercolose Asma

Ciganos 83% 6% 5% 6% 0%
Mestiços 76% 0% 8% 8% 8%

Embora essa amostra possa ser considerada como desequili-


brada, 219 ciganos versus 23 “presuntos”, poderão problematizar-se
diferenças a considerar entre ambos os grupos em questão.
162 | Psicologia e contextos rurais

Realizando uma avaliação grosseira dos dados da amostra,


parece verificar-se a existência de diferenças entre ciganos e mes-
tiços, sendo que os últimos apresentam padrões condizentes com
uma aculturação/assimilação face à etnia dominante. Se não veja-
mos: a comorbilidade psiquiátrica é de 92% nos ciganos, 83% nos
mestiços, se comparada com 80% nos brancos (Marques-Teixeira,
2000). Também no índice de natalidade os ciganos diferenciam-
-se significativamente quer dos mestiços quer da restante popula-
ção portuguesa. No que respeita às hepatopatias os ciganos estão
sobrerrepresentados (83% nos ciganos, 76% nos mestiços e 60%
nos brancos). O consumo médio diário de heroína nos ciganos é
sensivelmente o dobro dos brancos (Borges, 2000). A tentativa de
suicídio é manifestamente inferior nos ciganos por fatores culturais
próprios que o associam à vergonha e à fraqueza. As substâncias
tóxicas mais usadas e a ocorrência de overdoses não são disseme-
lhantes nas três populações consideradas.
Num estudo realizado no Estabelecimento Prisional do
Porto (Gomes, 2001), verificou-se que a toxicodependência afeta
gravemente uma camada essencialmente jovem da etnia cigana.
Comparando essa população com a estudada por nós é de real-
çar que a prevalência de VIH é o dobro nos detidos (12% versus
6%). Não existem diferenças significativas no rácio entre géneros,
na escolaridade, na idade de início de consumo e no tipo e via de
administração de tóxicos. Contudo, o mais devastador é que, repre-
sentando os ciganos apenas 0,5% da população portuguesa, 6% dos
encarcerados são dessa etnia! (A justiça serve quem?…).

Aptidões relacionais no seguimento


dos ciganos e adesão terapêutica
O técnico de saúde que se disponha a trabalhar com a etnia
deve ter certas características, como ser pessoa de ideias abertas,
tolerante e ter consciência da sua etnicidade. Isso o levará a não
Psicologia e contextos rurais | 163

impor valores, atitudes e comportamentos. Ao conhecer as atitudes


e valores do mundo cigano, o terapeuta saberá o que perguntar e
como perguntar. Há questões delicadas e áreas em que se deve res-
peitar o silêncio. Por exemplo, é um disparate, para além de insulto
grave, investigar a sexualidade de uma mulher cigana, ou mesmo
se ela fuma.
O trabalho clínico com ciganos é diferente da outra rotina
psicoterapêutica. O primado da psicoterapia de “insight”, baseada
na confrontação e conhecimento de si próprio, deve dar lugar a
uma maior diretividade, pois isso é aceite como um sinal de autori-
dade e sabedoria. Devem-se estabelecer regras e prescrições claras
e instituir tarefas e objectivos coerentes ao tratamento e à pessoa.
Os aspectos educacionais e de suporte são importantes. É acon-
selhável envolver no tratamento a unidade familiar alargada. Os
ciganos lidam com o jovem dentro da perspectiva cultural da inter-
dependência familiar. Assim, as figuras de autoridade familiares,
pais, avós ou tios, consoante os casos, devem ser envolvidas na tera-
pia. O clínico deve saber resistir à adversidade.
O êxito no tratamento da toxicodependência é em si
mesmo baixo. Nos ciganos, a procura de ajuda dá-se em deses-
pero, depois do fracasso dos sistemas naturais familiares, pelo que
frequentemente é pedido ao terapeuta uma solução rápida, quase
mágica. Nos ciganos há também a expectativa de que a desintoxi-
cação é o tratamento em si próprio. À parte estas condicionantes,
não descortinámos diferenças significativas na adesão ao trata-
mento, se comparadas com a população maioritária. Persistimos
em falar que o cigano não procura o “serviço”, procura antes um
terapeuta “afamado”, a quem seja outorgado a autoridade e “sabe-
doria”. Acreditamos que no tratamento de ciganos a Terapia de
Grupo, com pacientes ciganos e não ciganos, seja mais produtiva
que a Psicoterapia individual. Os grupos de autoajuda, como os
Narcóticos Anónimos, serão igualmente úteis, desde que mistos e
com a coordenação de elementos ciganos.
164 | Psicologia e contextos rurais

Saúde e comunidades ciganas (o


futuro – que esperança?)
Na nossa visão, a atuação das estruturas de Saúde, no que
diz respeito à intervenção em comunidades ciganas, deverá ter
como pontos fundamentais a prevenção, o tratamento e a des-
centralização de serviços. No tocante à prevenção, deverão ser
desenvolvidos programas de vacinação, saúde escolar, prevenção
de doenças sexualmente transmissíveis, planeamento familiar
e, sobretudo um esforço acrescido na prevenção e tratamento de
transtornos mentais e/ou toxicodependência. No que concerne
ao tratamento deverá incidir numa articulação das comunida-
des com os Cuidados de Atenção Primária (Centros de Saúde e
Unidades de Saúde Familiar), Hospitais Psiquiátricos, Equipas
de Tratamento e Unidades de Alcoologia do Instituto da Droga e
da Toxicodependência, Instituto Público (IDT, IP), equivalentes
no Brasil aos CAPS-AD. Os serviços deverão ser descentralizados
apostando-se na criação de postos avançados de saúde junto das
comunidades ciganas mais relevantes.
Para se operacionalizarem essas estratégias, deverá ter-se
em conta que as comunidades ciganas não recorrem aos serviços de
saúde para prevenir doenças, mas sim em casos-limite, dirigindo-
-se maioritariamente às urgências hospitalares. Qualquer projecto
de intervenção com essa etnia deverá levar os serviços a criar nos
próprios bairros e/ou acampamentos postos avançados de saúde/
locais de referência preparados para informar, orientar, criando
pontes de confiança que incentivem as populações a recorrer, ini-
cialmente, aos Centros de Saúde que teriam a função de triagem
primária.
Tendo como certo que as populações ciganas por tradição
procuram mais a “pessoa” do que o “serviço”, enfermeiros comu-
nitários, animadores psicossociais etc., poderão, pela sua prática
nesses locais de referência, desenvolver um ambiente propício
Psicologia e contextos rurais | 165

à intervenção. A Saúde como outros serviços não poderá intervir


sem ter em conta as necessárias ligações às estruturas e serviços
da comunidade, como sejam a Escola, as Autarquias, as Igrejas, as
Instituições Particulares de Solidariedade Social e outras estrutu-
ras que operam localmente.
Deverá realçar a necessidade de se criarem suportes de infor-
mação sobre saúde (hábitos saudáveis, prevenção, locais de acesso a
tratamentos etc.), bem como estabelecerem-se canais privilegiados
de ligação com os órgãos de comunicação social. Nos ciganos mais
carenciados, a rádio é o principal meio de comunicação e entreteni-
mento, veículo privilegiado de transmissão de informação e conhe-
cimento a ser tido em linha de conta. A nossa colaboração com a
REAPN tornou vívida a importância da rádio Vallecas-Madrid que
incorpora programação vocacionada para a etnia e produzida por
ciganos.
É de capital importância que haja com regularidade acções
de Educação para a Saúde adaptadas a esse tipo de população, ver-
sando diversos temas que os inquietam enquanto unidade cultu-
ral, utilizando para isso meios e materiais adaptados, para além
de técnicos formados e sensibilizados para esse “sentir e agir”
diferentes dos da maioria. No caso da toxicodependência, esse
modelo permitiria uma intervenção clínica de maior qualidade.
Articulando-se com as Equipas de Tratamento, e se possível, com a
existência de mediadores ciganos com formação específica na área
da Toxicodependência, criaria-se uma rede Cuidados de Atenção
Primária-Equipas de Tratamento do IDT, IP, o que facilitaria o
acesso ao tratamento, qualificando-o.
Nas Equipas de Tratamento do IDT, IP haveria necessidade
de se realizar formação especializada, tendo em conta factores
como cultura, história e tradição cigana a par com a organização
social da família. Essa formação deveria, igualmente, fazer uma ade-
quada sensibilização para as doenças sexualmente transmissíveis e
166 | Psicologia e contextos rurais

hepatites, treinando aptidões clínicas específicas para o manejo de


toxicodependentes ciganos.
Esses técnicos deveriam atender ciganos e não ciganos e
estar em articulação permanente, quer com o Centro de Saúde, quer
com o “posto avançado” no terreno. Estes deveriam, nas Equipas
de Tratamento do IDT, IP à medida que a sua experiência se enri-
quecesse, fazer trabalho de supervisão aos colegas, de modo a que,
num futuro próximo, qualquer terapeuta pudesse trabalhar com
qualidade (e sem os temores que provêm dos mitos), com jovens
ciganos toxicodependentes.

Considerações finais
Após esta análise sobre a situação da comunidade cigana
portuguesa, com enfoque na problemática da toxicodependência e
dos transtornos mentais associados, com análise de factores endó-
genos e exógenos que conduziram à actual situação, o futuro afi-
gura-se como extremamente preocupante. Num país em profunda
crise socioeconómica, em que os cortes estatais acontecem a um
ritmo alucinante, navegando o país em águas muito conturbadas,
os cortes orçamentais impostos ao Serviço Nacional de Saúde per-
mitem-nos considerar que a comunidade cigana, a par com outras
franjas desfavorecidas da população portuguesa, sofrerá muito nos
próximos tempos.
Numa época em que se antevê o desaparecimento das
Equipas de Tratamento, com canalização dos usuários para Centros
de Saúde onde é, igualmente, atendida toda a restante população,
sem profissionais devidamente preparados para as especificidades
dessa minoria da população e de outras, onde o atendimento não
poderá ter, necessariamente, a qualidade e o tempo que sempre tem
nos serviços especializados, resultados nefastos são previsíveis.
O Relatório de Primavera 2012 do Observatório Português
dos Sistemas de Saúde traça o retrato de um país com um Serviço
Psicologia e contextos rurais | 167

Nacional de Saúde em sérias dificuldades, com problemas graves de


sustentabilidade no médio prazo, com uma previsão de aumento de
patologias ligadas ao contexto de crise económica, com referências
aos problemas que os cortes impostos na comparticipação medi-
camentosa do estado trará à população, levando-a a ter que optar
entre a toma regular de medicação ou a alimentação.
De acordo com a lei de bases do Sistema Nacional de Saúde
(SNS):

Capítulo III, do Serviço Nacional de Saúde, Base XXIV,


Caraterísticas

O Serviço Nacional de Saúde caracteriza-se por:

a) Ser universal quanto à população abrangida;

b) Prestar integradamente cuidados globais ou garantir


a sua prestação;

c) Ser tendencialmente gratuito para os utentes, tendo


em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos;

d) Garantir a equidade no acesso dos utentes, com o


objectivo de atenuar os efeitos das desigualdades eco-
nómicas, geográficas e quaisquer outras no acesso aos
cuidados;

e) Ter organização regionalizada e gestão descentrali-


zada e participada (Lei n.º 48/90 de 24 de Agosto, Lei de
bases da Saúde, com as alterações introduzidas pela Lei
n.º 27/2002, de 8 de Novembro).
168 | Psicologia e contextos rurais

Essa lei da República Portuguesa é hoje uma ficção.


Apoiando-se na suposta insustentabilidade do SNS, adivinha-se o
desmantelamento do mesmo, incluindo o dos serviços como o IDT,
IP, vocacionado para os problemas de álcool e drogas, nomeada-
mente aos grandes grupos capitalistas, atribuições que antes per-
tenciam ao estado conduzindo a uma inevitável proletarização dos
trabalhadores da saúde. Tornam-se comuns as notícias de remu-
nerações de enfermeiros a dois euros e meio a hora e de médicos a
cinco euros a hora. As consequências da crescente privatização des-
ses serviços levarão a uma elitização da prestação de cuidados de
saúde, que passarão a orientar-se por preocupações economicistas,
descurando princípios humanistas que deveriam estar no centro
das atenções e que são a base da Lei de Bases do SNS. Os ricos no
futuro terão acesso aos melhores cuidados de saúde, pagando-os,
e aos pobres restará a procura de serviços públicos desvitalizados.
Assim, abandonados ficarão os “filhos do vento”12.

Referências
Aires, S. & Alves, I. (2003). Portugal Country Report. In Marginalia. Bufo. M.
(Org.). pp. 183-228. Martinsicuro. On The Roads Edizione.

Almeida, A et al. (2001). sastipen ta li, saúde e liberdade – ciganos, números,


abordagens e realidades. Lisboa: SOS Racismo.

Arbex, C. (1999). Actuar com a Comunidade Cigana. Rede Europeia


Antipobreza, Portugal.

Borges, J. (1999). La Ignorância y el Medo. In Gitanos Pensamiento y Cultura


(n. 1, pp. 30-31). Madrid.

12 Nome pelo qual se autodesignam os ciganos.


Psicologia e contextos rurais | 169

Borges, J. (2000) Saúde e Etnia Cigana. Apresentação ao Primeiro Fórum


Nacional Cigano. Coimbra. (Comunicação não publicada)

Borges, J. (2005). Hepatites Virais Crónicas e Toxicodependência. In Boletim


de Hepatologia da Zona Centro (vol. 7, n. 2, pp. 17-20). Lisboa: Roche
Farmacêutica Química Lda.

Boxer, C. R. (1965). Portuguese Society in the Tropics. Madison. University of


Wisconsin Press.

European Comission against Racism and Intolerance, Second Report on


Portugal. Adotado em 20 de Março de 2002, Versão portuguesa, 4 de
Novembro de 2002, p.21. Estrasburgo: Council of Europe.

Fraser, A. (2000). História do povo cigano. Lisboa: Círculo de Leitores.

Fundación Secretariado Gitano. (2007). Guia para a Intervenção com a


Comunidade Cigana nos Serviços de Saúde. Recuperado em 1 setembro
2012, de http://ec.europa.eu/health/ph_projects/2004/action3/
docs/2004_3_01_manuals_pt.pdf.

Gomes, A. & Gomes, G. C. (2001). Gitanos en Reclusión y Drogodependencia.


In Salud y Comunidad Gitana. Dosier Informativo sobre la Prevención
de las Drogodependencias Y Comunidad Gitana. (N.º 3, pp. 16-18).
Madrid. Iniciativas Europeas.

Lei n.º 48/90 de 24 de Agosto, Lei de bases da Saúde, com as alterações


introduzidas pela Lei n.º 27/2002, de 8 de Novembro. Recuperado
em 10 setembro 2012, de http://www.minsaude.pt/portal/conteudos/
a+saude+em+portugal/politica+da+saude/enquadramento+legal/
leibasessaude.htm

Marques-Teixeira, J. (2000). Diagnósticos Duplos: Toxicodependências e


Perturbações Psiquiátricas. In Revista Saúde Mental 2 (5), pp. 9-16,
Porto.
170 | Psicologia e contextos rurais

Moscovici, S. (2009). Os ciganos, entre perseguição e emancipação. In


Sociedade e Estado, 24 (3), pp. 653-678.

Observatório Português dos Sistemas de Saúde. (2012). Relatório de Primavera


2012. Crise & Saúde. Um País em Sofrimento. Recuperado em 30 agosto
2012, de http://www.observaport.org/sites/observaport.org/files/
RelatorioPrimavera2012_OPSS_2.pdf.

Pinto, M. F. (2000) A cigarra e a formiga. Porto: Cadernos REAPN.

Rodríguez, S. (2011). Gitanidad. Barcelona: Editorial Kairós SA.

Vicente, G. (1965). Obras de Gil Vicente. Porto: Lello y Irmão Editores.


Psicologia Social e
Ambiental em Unidades de
Conservação do Amazonas
Marcelo Gustavo Aguilar Calegare
Maria Inês Gasparetto Higuchi

F alar em Unidade de Conservação é falar sobre espaço e lugar,


seja como arena de acontecimentos sociais ou como loca-
lidade geográfica. Esse repertório de identificação do lugar e das
pessoas que nele estão inseridas manifesta processos sociocultu-
rais distintos, que são compartilhados coletivamente. Dessa forma,
cada lugar contém subjetividades designadas a ele e aos seus habi-
tantes. A clássica dicotomia urbano-rural, por exemplo, mesmo
que ainda em uso, já não contempla a necessária complexidade
presente nessa divisão. No estado do Amazonas não é costume
popular se referir à zona não urbana como sendo zona rural. Essa
linguagem é mais utilizada por acadêmicos que, por meio de deter-
minados vieses teóricos, apontam diferenças entre características e
modo de sociabilidade da vida no contexto urbano, em contraposi-
ção àquelas do contexto rural. Em decorrência dessa compreensão,
172 | Psicologia e contextos rurais

que podemos afirmar ser prioritariamente de cunho sociológico,


alguns discursos governamentais também utilizam essa lingua-
gem. Por exemplo, nas políticas educacionais, apontam-se diretri-
zes voltadas às escolas sediadas nas cidades, e outras direcionadas
especificamente às escolas rurais. Já a referência simbólica popu-
lar, utilizada para toda a região que compreende o espaço fora de
Manaus e proximidades, é simplesmente o interior.
Além da capital Manaus, existem inúmeras cidades do inte-
rior localizadas ao longo da calha de vários rios principais, como
o Negro, o Solimões, o Japurá, o Madeira, o Purus e o Juruá. Os
rios na Amazônia são marcos referenciais importantes que carac-
terizam não apenas localidades, mas também identidades. À beira
desses rios e de seus afluentes estão localizadas inúmeras comu-
nidades, onde muitos amazonenses têm constituído suas famílias,
seus modos e meios de vida pela agricultura e o extrativismo de
recursos naturais. É nesse contexto socioespacial que essas pessoas
constroem seus saberes a respeito da natureza e vivido segundo
a intensidade dos laços de parentesco. Tal qual a denominação
dada aos lugares, a denominação dessas comunidades depende do
ponto de vista adotado. Nos discursos governamentais e acadêmi-
cos, é comum encontrarmos a designação “comunidades rurais”
ou “comunidades ribeirinhas”. A primeira pelo mesmo motivo já
mencionado: do viés teórico adotado como referência. A segunda,
conforme explana Lima (1999), é decorrente do programa introdu-
zido pela igreja católica para organização política dos assentamen-
tos rurais, cuja estratégia era a transmissão da noção de direitos
comuns de residência e uso comunal dos recursos naturais, voltada
às populações que viviam à beira dos rios.
Em particular no estado do Amazonas, esse movimento
era conhecido como MEB (Movimento de Educação de Base), que
desde os anos 1960 veio incentivando os moradores de localida-
des isoladas a formarem comunidades. Entretanto, ao pisarmos
em uma dessas comunidades rurais/ribeirinhas, não é comum os
Psicologia e contextos rurais | 173

moradores atribuírem essa linguagem ao local onde vivem. Como


em todo o interior, a população simplesmente utiliza o termo
“comunidade” para designá-las.
O que apresentaremos neste capítulo é o trabalho que esta-
mos desenvolvendo nessas comunidades no interior do Amazonas,
que estão localizadas dentro de Unidades de Conservação (UCs),
o que lhes confere um status diferenciado e exige algumas consi-
derações antes de empreender nossas pesquisas. Iniciamos nossa
discussão referente ao fato de estarmos lidando com territórios
configurados como áreas protegidas, cuja gestão é de responsabi-
lidade governamental. Esses territórios são habitados por grupos
que possuem uma cultura e modo de vida particular, genericamente
denominados de povos ou comunidades tradicionais, mas que se
investigada a identidade autoatribuída, encontraremos designa-
ções diferentes daquelas estabelecidas por enquadramentos acadê-
micos ou políticos. Por lidarmos com esses segmentos sociais e em
regiões amazônicas distantes de centros urbanos, nos deparamos
com questionamentos científicos e metodológicos que deflagram
dois aspectos centrais: as condições de produção do conhecimento
na Amazônia são bastante particulares e necessitam ser seriamente
observadas; a barreira disciplinar deve ser transposta para o estudo
das questões socioambientais amazônicas, por causa do seu alto
grau de complexidade. Por fim, explanaremos a respeito dos traba-
lhos desenvolvidos nas UCs, cuja abordagem da Psicologia Social
e Ambiental tem contribuído para trazer um viés mais completo e
abrangente da vida social nessas comunidades.

Áreas protegidas e Unidade de Conservação


Para Diegues (2004), a ideia de criar áreas protegidas é man-
ter intactos pedaços do mundo natural, puro e primitivo, sendo
uma das principais estratégias mundiais adotadas para conservação
da natureza. Esse conceito é de origem norte-americana do século
174 | Psicologia e contextos rurais

XIX e se baseia na compreensão de vida selvagem ameaçada pela


civilização urbano-industrial, destruidora da natureza – o que o
autor chama de mito da natureza intocada. No entanto, Medeiros,
Irving e Garay (2006) argumentam que no Brasil o modelo de áreas
protegidas não foi simples cópia daquele norte-americano, pois o
contexto brasileiro exigiu reconfigurações do modelo. Os autores
apontam três fatores: a) a dimensão continental, pluricultural e
megadiversa do país exigiu necessidades de adequação do modelo;
b) o viés preservacionista e o conservacionista (com participação
da sociedade civil)1 caminharam paralelos; c) a preservação/con-
servação serviu também como instrumento geopolítico.
Fazendo uma retrospectiva, Medeiros (2006) explica que
entre os séculos XVI e XIX não havia instrumentos jurídicos ou
políticas estatais que denotassem qualquer organização para deli-
mitação de áreas a serem protegidas. Durante esse período, houve
algumas iniciativas isoladas, verticalizadas e que se dirigiam à prote-
ção dos recursos renováveis de valor econômico. Segundo Medeiros
et al. (2006), a delimitação de parcelas do território nacional para
a conservação da natureza, pelo ou com o aval do Estado, foi um
fenômeno típico do período republicano, iniciando mais especifi-
camente a partir dos anos 1930. Com a Constituição de 1934 (Art.
10), a natureza ganhou status de patrimônio nacional e o poder
público teve como tarefa e dever protegê-la. Com isso, a estrutura
administrativa estatal incorporou um aparato jurídico e institucio-
nal para gestão de áreas protegidas, que deixou como legado a lógica
de categorização dessas áreas em função dos objetivos e finalidades

1 Segundo Diegues (2004), essas duas abordagens a respeito do mundo natural


têm origem norte-americana no século XIX e influenciam o mundo até o pre-
sente. O preservacionismo aponta para a reverência à natureza para sua apre-
ciação estética e espiritual, devendo-se protegê-la contra o desenvolvimento
moderno, industrial e urbano e, por isso, as áreas naturais devem estar isentas
da presença humana. O conservacionismo aponta para a conservação dos re-
cursos naturais pelo seu uso racional, adequado e criterioso, o que abre a possi-
bilidade da presença humana nas áreas naturais.
Psicologia e contextos rurais | 175

de sua criação. Como resultado desse momento histórico, alguns


dispositivos legais foram instituídos, tal como o primeiro Código
Florestal de 1934. Por meio deste, criou-se a modalidade dos
Parques Nacionais, sendo o Parque Nacional de Itatiaia o primeiro
a ser instituído, em 1937. Posteriormente, outras tipologias distin-
tas de áreas protegidas também foram criadas, cada uma em um
contexto e época diferentes, como veremos a seguir.
Atualmente, há no Brasil um modelo de proteção de áreas
naturais segundo duas formas diferentes. A primeira se refere às
Áreas de Preservação Permanente (APPs) e as Reservas Legais
(RLs), ambas regidas segundo o Código Florestal recém-aprovado
em 2012 (lei nº 12.727), que após fervorosas discussões de cunho
científico e político sucedeu àquele de 1965 (e ao anterior de 1934).
A segunda está ligada às UCs, que agregam áreas protegidas terri-
torialmente demarcadas e com dinâmicas de uso e gestão bem defi-
nidas, cuja regulamentação vem pela lei nº 9.985/2000, que institui
o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC, 2011).
Em função de nos últimos anos ter crescido o apelo à conservação
ambiental no Brasil, as Terras Indígenas (TI) e os territórios com
remanescentes de comunidades dos quilombos – ambas modali-
dades territoriais estabelecidas pela Constituição de 1988 (Art. 231
e Art. 68, respectivamente), também passaram a ser consideradas
áreas de conservação da natureza. Isso é justificado da seguinte
maneira: tais territórios são habitados por povos e comunidades
tradicionais, que possuem mecanismos conservacionistas implíci-
tos em suas práticas de uso dos recursos naturais. Apesar de ques-
tionável, é comum encontrarmos nos discursos governamentais a
equiparação e agregação desses territórios com as áreas protegidas.
Essas denominações e territorialidades encontram critérios
e orientações no Snuc, o qual foi debatido por quase 10 anos antes
de ser sancionado, em função das muitas controvérsias, jogo polí-
tico e interesses de distintos grupos. Tal lei veio suprir a necessi-
dade de um sistema de criação e gerenciamento mais integrado,
176 | Psicologia e contextos rurais

que regulamentasse e agregasse distintas modalidades de UCs.


Como definição, temos que uma UC é:

Espaço territorial e seus recursos, incluindo as águas


jurisdicionais, com características naturais relevantes,
legalmente instituído pelo Poder Público, com objetivos
de conservação e limites definidos, sob regime especial
de administração, ao qual se aplicam garantias adequa-
das de proteção (SNUC, 2011, p. 5).

Existem duas modalidades de UCs: as de proteção integral


e as de uso sustentável. A primeira se propõe a preservar a natu-
reza, permitindo apenas o uso indireto dos recursos naturais, mas
sem autorizar a presença humana. São cinco modalidades: Estação
Ecológica (Esec), Reserva Biológica (Rebio), Parque Nacional
(Parna), Monumento Natural, Refúgio de Vida Silvestre. Já a
segunda tem como objetivo compatibilizar a conservação da natu-
reza com o uso sustentável de parcela dos recursos naturais, o que
abre permissão do uso destes segundo condições particulares pelas
populações residentes. São sete modalidades: Área de Proteção
Ambiental (Apa), Área de Relevante Interesse Ecológico (Arie),
Floresta Nacional (Flona), Reserva Extrativista (Resex), Reserva de
Fauna, Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS)2 e Reserva
Particular do Patrimônio Natural (RPPN). Cada uma dessas doze
modalidades foi criada em um contexto histórico diferente, resul-
tado da mobilização de distintos atores sociais, mas agregadas pelo
Snuc ao longo do intenso debate de sua formulação, aprovação e
alterações (Medeiros, 2006).

2 Segundo Calegare (2012), as Resex foram criadas nos anos 1980, pelos movi-
mentos sociais dos seringueiros do vale do rio Acre associados aos de outras re-
giões amazônicas, com objetivo de garantir a defesa de suas áreas de reprodução
socioeconômica. As RDSs, cuja primeira foi criada no estado do Amazonas nos
anos 2000, têm como principal característica a cogestão da área por cientistas,
administradores e população local, uso participativo e sustentado dos recursos
naturais.
Psicologia e contextos rurais | 177

Diegues (2004) relembra que no caso brasileiro, até meados


dos anos 1980, as áreas protegidas criadas no Brasil tinham forte
viés preservacionista e, por essa razão, as populações residentes
foram completamente desconsideradas. Houve casos em que essas
populações foram expulsas de seus territórios, outros em que houve
muitos conflitos sociais e até de recusa de saída da área. Portanto,
a criação de um sistema que abarcasse UCs de usos sustentável já
foi um avanço significativo à delimitação das áreas de proteção
ambiental.
As UCs podem ser municipais, estaduais ou federais.
O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMBio) é o órgão responsável pelo gerenciamento das UCs fede-
rais. No caso do estado do Amazonas, há o Sistema Estadual de
Unidades de Conservação – Seuc (lei complementar nº 53/2007)
e o órgão gestor é o Centro Estadual de Unidades de Conservação
(Ceuc). Essa legislação estadual comporta algumas modalidades
diferentes de UCs de uso sustentável, não presentes no Snuc: as
Reservas Particulares de Desenvolvimento Sustentável (RPDS), os
Rios Cênicos e a Estrada Parque. Já em relação às UCs municipais,
no caso de Manaus, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente e
Sustentabilidade (Semmas) é o órgão responsável pela gestão das
áreas. Segundo dados da Secretaria de Estado de Meio Ambiente
e Desenvolvimento Sustentável (s/d), em 2012 havia no Amazonas
35 UCs federais (14,29% do território), 41 UCs estaduais (12,06%),
18 UCs municipais (1,19%) e 140 TIs (27,07%), o que mostra que
54,61% do estado estava constituído por áreas protegidas. Além
disso, 97,7% do território possuía cobertura vegetal, o que o torna
um dos estados mais conservados do país – e fora do eixo do “arco
da destruição” da Amazônia. Outras áreas estão ainda em vias de
homologação, o que denota claramente a política governamental
de criação de áreas de proteção.
É no contexto de lugares denominados UCs que estamos
desenvolvendo nossos trabalhos, procurando compreender os
178 | Psicologia e contextos rurais

modos de viver e morar dessas pessoas. Como vimos, no universo


das áreas protegidas há um forte debate a respeito da permanência
de habitantes nessas localidades e, por outro lado, da função que
eles exercem para a conservação ambiental. A discussão de quem
são essas pessoas ainda permanece em pauta até hoje, apesar de
avanços significativos tanto de cunho acadêmico quanto de reco-
nhecimento governamental, como veremos a seguir.

Povos e comunidades tradicionais


Segundo Diegues (2004), Barreto Filho (2006) e Calegare
(2010), o termo populações tradicionais passou a ser utilizado no
Brasil em função de alguns fatores. O primeiro deles foi pelas dis-
cussões no âmbito do conservacionismo internacional a partir dos
anos 1960, quando a IUCN3 admitiu haver algumas exceções de ocu-
pação de povos nativos4 em áreas protegidas, dividindo-as segundo
a permissão ou não de atividades humanas. Com a emergência de
conflitos sociais nessas áreas, a evolução dos debates, o advento
da noção de desenvolvimento sustentável e a realização de even-
tos sobre o tema, passou-se a reconhecer que tais populações eram
parte do ecossistema e seus conhecimentos fundamentais a sua

3 Sigla em inglês da União Internacional para Conservação da Natureza.


4 Para Diegues (2004), a confusão dos termos populações/ sociedades/culturas/
comunidades tradicionais é decorrente também das diferentes vertentes teóri-
cas utilizadas em Ciências Sociais, dentro da quais se encontram produções que
enunciam que tais segmentos sociais se caracterizam como part society, folk
society, peasant, ecossistem people. Além das distinções teóricas, há também as
traduções dos termos para o português que geram confusões. Como esclarece
Calegare (2010, p. 193), “organismos internacionais (Banco Mundial, IUCN etc.)
utilizam a palavra indigenous, native e tribal people. A tradução para português
de indigenous não corresponde exatamente a ‘indígena’, podendo significar
também ‘nativo’. Em função dessa variação, o ‘[população] tradicional’ pode ser
a tradução para indigenous people, dependendo do contexto em que é utiliza-
do. Daí uma primeira confusão não apenas terminológica, mas conceitual. No
Brasil, em geral, povos indígenas é utilizado com o significado de ‘etnia’. E ‘tra-
dicional’ designa tanto os indígenas quanto os não indígenas”.
Psicologia e contextos rurais | 179

conservação. Em outras palavras, os saberes tradicionais, expressos


entre outras formas pelo uso/manejo de recursos naturais dessas
populações, passaram a ser considerados como práticas históricas
de adaptação que refletiam níveis de sustentabilidade ecológica.
Desse modo, no caso brasileiro também houve a importação des-
sas discussões, que trouxe tanto o viés preservacionista mais estrito
quanto abordagens conservacionistas sobre a função das popula-
ções residentes nas áreas de proteção.
O segundo fator do uso do termo no Brasil foi a tradição
do pensamento social brasileiro, que aponta para a formação de
culturas regionais distintas, que Ribeiro (1995) chama de culturas
rústicas e as descreve como sendo a cultura crioula, caipira (no
interior, mas no litoral é a caiçara), cabocla, sertaneja e sulista.
Como resume Arruda (1999), essas culturais regionais seriam
o resultado das diferentes formações do Brasil, por causa de cir-
cunstâncias econômicas, geográficas, históricas, biofísicas, entre
outras, que engendraram características genéricas e particulares
às populações que as representam. Essa produção nacional, aliada
àquelas discussões internacionais a respeito dos povos nativos, ser-
viu de base para a defesa de Diegues (2004) do que seriam as cultu-
ras e sociedades tradicionais no Brasil – cuja produção acadêmica e
engajamento político estavam voltados à defesa da permanência de
habitantes em UCs. Em sua obra, o autor recapitula abordagens em
ciências sociais a respeito da influência mútua cultura/ambiente e
do campesinato histórico, mostrando que tais teorias acentuam a
diferenciação de certos grupos sociais segundo critérios distintos:
a) se são autônomos ou não em relação à sociedade capitalista e
qual o grau de dependência; b) se a cultura está mais ou menos
atrelada ao modo de produção capitalista ou à pequena produção
mercantil; c) do grau de relação com a natureza, que define sua ter-
ritorialidade; d) como, além do espaço de reprodução econômica e
das relações sociais, o território é também o lócus das representa-
ções e do imaginário mitológico desses grupos.
180 | Psicologia e contextos rurais

Desses critérios gerais, o autor defende que as culturas e


sociedades tradicionais no Brasil possuem uma série de caracterís-
ticas particulares que as definem enquanto tais, alertando para o
fato de não haver um tipo ideal que exista em estado puro e que
a cultura é dinâmica e está em constante transformação. Segundo
Diegues e Arruda (2001), são exemplos de sociedades tradicionais:
açorianos, babaçueiros, caboclos/ribeirinhos amazônicos, caiça-
ras, caipiras/sitiantes, campeiros (pastoreio), jangadeiros, panta-
neiros, pescadores artesanais, praieiros, quilombolas, sertanejos/
vaqueiros, varjeiros e indígenas. Em suma, alguns desses segmen-
tos sociais são aqueles que habitavam as áreas demarcadas há gera-
ções e que deveriam ganhar visibilidade dentro das políticas de
conservação in situ.
Com o avanço das discussões acadêmicas nacionais e inter-
nacionais, da crescente compreensão da aliança entre conservação
da biodiversidade com a sociodiversidade e do paulatino reconhe-
cimento governamental, temos um terceiro fator para uso de popu-
lações tradicionais: a apropriação do termo pelos segmentos sociais
designados enquanto tais. Conforme ressaltam Lima e Pozzobon
(2005) estes “incorporaram a marca ecológica às suas identidades
políticas como estratégia para legitimar novas e antigas reivindi-
cações sociais” (p. 45). Para Diegues e Arruda (2001), essa carac-
terização tem legitimado identidades diferenciadas e servido
para a reivindicação de direitos territoriais e culturais específicos.
Na mesma linha, Little (2004) também argumenta a respeito do
uso sociopolítico do termo por grupos defendendo seus interes-
ses, especialmente aquele referente ao uso do território. Segundo
aponta Calegare (2010), essa paulatina visibilidade das populações
tradicionais fez que passassem a ser considerados não apenas aque-
les grupos no contexto das UCs, mas também outros segmentos
sociais que se enquadram nessa definição e que vinham reivindi-
cando direitos há anos, como por exemplo, os atingidos por barra-
gens, as quebradeiras de coco babaçu, os pescadores artesanais etc.
Psicologia e contextos rurais | 181

O primeiro reconhecimento formal do governo brasileiro


foi em 1992, com a criação do Conselho Nacional de Populações
Tradicionais (CNPT) pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), mas não houve con-
senso de quem eram essas populações (Barreto Filho, 2004). Nem
mesmo com o Snuc se chegou a um acordo, sendo inclusive vetado
o inciso XV do Art. 2, que trazia uma definição de quem eram as
populações tradicionais (Little, 2004). No entanto, entre 2004 e
2006 houve crescente visibilidade, lutas políticas, alianças estra-
tégicas e assunção dos espaços institucionais, que garantiu que
grupos organizados – cujas lutas por direitos e reconhecimento
vinham desde os anos 1980 – tivessem participação ativa nos tra-
balhos abertos pelo governo brasileiro para a formulação de uma
legislação específica a esses segmentos. Esse trabalho coletivo
resultou na elaboração e publicação do Decreto nº 6040/07, que
Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos
Povos e Comunidades Tradicionais. Por meio desta, chegou-se a
uma definição formal de quem são os povos e comunidades tradi-
cionais, descritos no Art. 3:

Grupos culturalmente diferenciados e que se reconhe-


cem como tais, que possuem formas próprias de organi-
zação social, que ocupam e usam territórios e recursos
naturais como condição para sua reprodução cultu-
ral, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando
conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmi-
tidos pela tradição (para. 3).

O marco legal representou um avanço para uma definição


clara no reconhecimento desses grupos, apontando para uma explí-
cita política pública que garantiria, em tese, condições de inclu-
são social, exercício da cidadania e equidade social. Como aponta
Almeida (2008) para o caso amazônico, há em todo esse território
inúmeras lutas de grupos que estão buscando reconhecimento,
182 | Psicologia e contextos rurais

organizando-se em movimentos sociais (formalmente organiza-


dos ou não) para reivindicação de direitos sociais e ao território.
Segundo o autor, isso tem configurado as muitas identidades cole-
tivas na Amazônia. No entanto, ainda não existem avaliações da
efetividade da aplicação dessa lei.
Retomando a existência de povos e comunidades tradicio-
nais no contexto das UCs, Vianna (2008) descreve que inicialmente
estes eram completamente desconsiderados, sendo invisíveis nes-
ses territórios. Posteriormente, foram considerados como ilegais
ou invasores para, finalmente, conquistarem o status de guardiões
da floresta, responsáveis pela manutenção da biodiversidade por
meio de suas práticas tradicionais de baixo impacto ambiental. Essa
transformação veio, em parte pela evolução da ideia de Prestação
de Serviços Ambientais (PSA), pela qual se aponta que os habitan-
tes dessas áreas devem ser remunerados pelas funções que exercem
na conservação dos recursos naturais. Essa foi uma das justificas
que serviu de base para a criação do Programa Bolsa Floresta no
estado do Amazonas, que por sua vez, se tornou modelo para o pro-
grama federal Bolsa Verde.
Considerando esse contexto socioambiental, fica visível que
há questões bastante complexas e que não se restringem a uma ou
outra área do conhecimento. No plano das UCs, já existe a defesa da
etnoconservação (Diegues, 2000), que consiste na aliança de sabe-
res de ciências sociais e naturais aos conhecimentos tradicionais,
tendo em vista a conservação da natureza. Em relação aos povos e
comunidades tradicionais, vimos que tal rótulo vem abarcar inú-
meros grupos da sociedade, que dependendo de sua história, con-
texto geográfico e de lutas políticas, se configuram de um modo
completamente distinto uns dos outros. Os temas relativos às UCs
e aos povos e comunidades tradicionais não necessariamente são
confluentes – havendo inclusive marcos legais diferentes para cada
um deles. Na prática, isso se reflete em sérias dificuldades na ges-
tão das UCs, divergência de interesses (intragovernamentais, de
Psicologia e contextos rurais | 183

movimentos sociais etc.), conflitos sociais, controle excessivo no


uso dos recursos naturais, falta de acessos a direitos sociais, sobre-
posição de áreas demarcadas, entre muitos outros.

O método em questão
No caso amazônico, estamos lidando com um cenário de
alta bio e sociodiversidade, presentes em uma área continental,
que exige que enfrentemos alguns desafios na condução de pes-
quisas: a) dispor de condições logísticas apropriadas para percorrer
longas distâncias e enfrentar as intempéries ambientais; b) tra-
balhar com equipes interdisciplinares, uma vez que o foco são as
questões socioambientais que abarcam uma multiplicidade disci-
plinar de pontos de vista. Adiante exploraremos em detalhes essas
colocações.
Sabemos que o método, em ciência, pode ser entendido
como o caminho para se chegar a um objetivo. No entanto, a impo-
nência da Amazônia faz com que tenhamos que ponderar que
esse percurso científico não seja apenas de ordem interna, isto é,
das teorias e procedimentos técnico-práticos. Existe uma série de
externalidades presentes em todos os estudos, que raramente são
consideradas nos aspectos metodológicos e que influenciam dire-
tamente nas condições de produção do conhecimento.
A primeira delas é a dimensão continental da Amazônia,
cujo bioma ocupa praticamente 60% do território nacional5 e que

5 Santos (2012) explica que há duas Amazônias: o território amazônico e a bacia


amazônica. O território amazônico é composto pelos seguintes países, com as
respectivas porcentagens de contribuição da área à Amazônia: Bolívia (10,9%),
Brasil (65,7%), Colômbia (5,3%), Equador (1,6%), Guiana (0,1%), Peru (12,6%),
Venezuela (0,7%), Suriname (1,9%) e Guiana Francesa (1,2%). No Brasil, isso re-
presenta quase 60% do território nacional e recebe o nome de Amazônia Legal,
que representa todos os estados da região norte mais Mato Grosso e Maranhão.
Já a bacia amazônica é composta pelo eixo Amazonas-Solimões-Ucayali, com
os afluentes do lado direito e esquerdo. A extensão desse eixo é de 6.727km e a
descarga é de 176.000 m3/segundo, o que o torna o mais volumoso do mundo.
184 | Psicologia e contextos rurais

faz com que tenhamos que percorrer longas distâncias para chegar-
mos a algumas localidades. Em particular no estado do Amazonas,
não há praticamente estradas ou rodovias construídas, sendo os
rios os únicos percursos possíveis por onde transita a população
da região. Isso faz com que o veículo principal de viagens seja o
barco, que demora dias para alcançar certos destinos relativamente
próximos numa medida linear. Em nossas experiências, já parti-
cipamos de trabalhos em que levamos oito dias para chegar até o
local desejado. Isso implica em ponderar três aspectos-chave: a)
ter condições logísticas disponíveis para as equipes de pesquisa,
como barco e voadeiras (pequena embarcação de metal com motor
de popa); b) dispor de alto orçamento para gastar com aluguel de
veículos náuticos, combustível e piloto com saber de navegação
local, além de alimentação, hospedagem, equipamentos, remédios
etc.; c) ter tempo para estar em campo, sem meio de comunicação
externa, e desobrigando-se de afazeres pessoais e profissionais no
local de residência. A soma desses fatores faz com que pesquisas
na Amazônia sejam extremamente onerosas, o que nem sempre é
compreendido pelas agências financiadoras e, consequentemente,
não haja verbas suficientes para sua concretização.
A segunda externalidade se refere às intempéries ambien-
tais desse bioma. Na Amazônia a sazonalidade das estações varia
apenas entre verão (seca) e inverno (chuvas). Além disso, o ciclo
das águas varia conforme a região, obedecendo à seguinte sequên-
cia: enchente, cheia, vazante e seca. Essas variações trazem difi-
culdades de locomoção, pois o nível das águas pode estar muito
baixo ou muito alto e, com isso, simplesmente não se chega em
determinadas localidades, que ficam isoladas por um bom período
do ano. Também trazem dificuldades seja pelo enfrentamento do

Ao se considerar o rio Marañon como o formador do rio Amazonas (aquele do


lado peruano, cujo nome muda ao entrar no território brasileiro), então é con-
siderado o rio mais extenso do mundo, superando o rio Nilo.
Psicologia e contextos rurais | 185

calor forte ou das fortes chuvas, o que fragiliza a saúde e disposição


dos pesquisadores. A sazonalidade determina também a disponi-
bilidade de alimentos nas comunidades, pois há períodos em que
pode haver fartura ou escassez de frutas, peixes, farinha etc. Por sua
vez, esses ciclos temporais e climáticos trazem influência na inci-
dência de insetos e outros animais, o que em determinadas regiões
torna o trabalho extremamente sofrido, desmotivador e com riscos
à saúde e à vida. Tais condições fazem com que se escolham cuida-
dosamente os períodos de viagens a campo, o número de dias de
permanência, a aquisição de materiais de apoio e a quantidade e
tipo de alimentação e água a serem levados.
Essas externalidades do caminho a ser percorrido, que
causam fascínio e temor aos pesquisadores que se aventuram na
Amazônia, exigem uma motivação e modo de agir diferentes do tra-
dicional fazer científico. O pesquisador que trabalha nessas regiões
do país deve levar em conta todas essas condições de produção do
conhecimento, para que seja possível fazer ciência. Caso tais aspec-
tos não sejam levados em conta no delineamento das pesquisas,
então a atividade científica simplesmente não será executada.
Além desses aspectos do ambiente físico, há também de se
considerar aqueles do ambiente social, pois o pesquisador se depa-
rará com códigos e culturas particulares dos povos e comunidades
tradicionais que habitam as várias regiões amazônicas. Além das
características inerentes a cada grupo em si, há também peculia-
ridades psicossociais que ocorrem em função dos rios, da área e
do estado onde vivem essas pessoas. Podemos considerar que isso
tudo é o que constitui aspectos textuais da realidade social ama-
zônica. A respeito daqueles contextuais, Calegare (2012) nos lem-
bra de que há uma série de elementos conjunturais que permeiam
transversalmente a vida dos amazônidas, como por exemplo, as
políticas desenvolvimentistas e sociais governamentais, as ideias
de desenvolvimento sustentável, as mudanças climáticas e o con-
servacionismo. Texto e contexto formam um intrincado enredado,
186 | Psicologia e contextos rurais

que tornam as comunidades ribeirinhas amazônicas um complexo


campo de estudos interdisciplinares.
Esse cenário socioambiental pleno de particularidades faz
com que tenhamos que reconsiderar as internalidades científicas
em três aspectos: a) reconhecer a limitação de cada disciplina e
partir para a interdisciplinaridade (e/ou transdisciplinaridade); b)
considerar outras formas de conhecimentos e estabelecer o diálogo
de saberes; c) ponderar procedimentos que aliem métodos quan-
titativos e qualitativos para alcançar uma visão mais holística do
objeto de estudos. Expliquemos tais afirmações.
Uma única disciplina não dá conta de compreender a
complexidade da realidade amazônica, pois são inúmeros fatores
envolvidos na composição desse cenário: geofísicos, biológicos,
históricos, psicossociais etc. Como ressaltam Calegare e Silva Jr.
(2012), as ciências naturais possuem arcabouço teórico e recursos
metodológicos para estudar uma parcela desse ambiente. As ciên-
cias humanas e sociais, por outro lado, dispõem de outros saberes
que torna possível abordá-lo por outros ângulos. Se analisarmos
as produções em Psicologia e Psicologia Social, veremos que estas
são ainda incipientes quando relacionadas aos temas amazônicos.
Portanto, estamos diante de uma limitação de nossa área de origem:
não dispomos de referenciais teóricos e metodológicos adequados
à realidade amazônica, o que nos está conduzindo a adaptações e
criação de novos pontos de vista e práticas mais apropriados a esse
universo. Nossa base é oriunda da Psicologia Social e Ambiental,
de onde tiramos conceitos, teorias e práticas que nos inspiram a
percorrer e elaborar novos caminhos. Sem desconsiderar concei-
tos originados na antropologia e sociologia, que muito fortalecem
nossa atuação.
Diante disso, nos vemos frente à necessidade de trabalhar
com equipes interdisciplinares por dois motivos: o primeiro, pela
própria limitação de cada disciplina científica em estudar um
Psicologia e contextos rurais | 187

objeto tão completo; o segundo, pelas externalidades expostas


anteriormente, que fazem com que os pesquisadores se unam para
conseguir verba e organizarem expedições científicas. Calegare e
Silva Jr. (2012) lembram que a interdisciplinaridade pode ser com-
preendida segundo três pontos de vista: como nova inteligibilidade,
como interseção metodológica ou como diálogo entre saberes. Isso
significa que o trabalho interdisciplinar não envolve apenas a par-
ticipação de profissionais de distintas áreas numa mesma equipe e
local, mas a circulação de conhecimentos entre eles para que, a par-
tir disso, se articulem objetivos, conceitos e maneiras de proceder
nas pesquisas. Pelo menos no estado do Amazonas muitas inves-
tigações já estão sendo empreendidas dessa maneira, apesar das
muitas dificuldades inerentes ao genuíno trabalho interdisciplinar.
Se por um lado há essa interação entre cientistas, por outro
há a troca de saberes entre eles e os povos e comunidades tradicio-
nais, que Diegues (2004) e Leff (2012) chamam de diálogo de sabe-
res. Por meio deste, consideram-se os conhecimentos tradicionais6
como uma ciência tão válida quanto aquela científica. Isso envolve
questionar tanto a supremacia quanto a neutralidade, objetividade
e universalidade científica, dando voz aos mitos, superstições, sabe-
res locais e senso comum dos povos amazônicos. Em termos prá-
ticos, isso significa que os participantes de uma pesquisa não são
meros informantes, mas interlocutores na construção do conheci-
mento. Seu envolvimento no delineamento das atividades cientí-
ficas é fundamental, sendo importante respeitar sua organização
social, suas práticas cotidianas e seus saberes propriamente ditos.

6 “O conjunto de saberes e saber-fazer a respeito do mundo natural e sobrenatu-


ral, transmitido oralmente, de geração em geração. Para muitas dessas socieda-
des, sobretudo para as indígenas, há uma interligação orgânica entre o mundo
natural, o sobrenatural e a organização social. Para tais comunidades, não há
uma classificação dualista, uma linha divisória rígida entre o ‘natural’ e o ‘social’,
mas sim um continuum entre ambos” (Diegues & Arruda, 2001, p. 31).
188 | Psicologia e contextos rurais

Recapitulando, vimos que há uma série de externalida-


des que influenciam diretamente na produção do conhecimento.
Discutimos também que a complexidade das questões socio-
ambientais amazônicas explicita a incompletude científica e
disciplinar, sendo necessário não apenas buscar a inter e/ou trans-
disciplinaridade, mas o diálogo de saberes para conjugar conheci-
mentos científicos e tradicionais. Por fim, resta-nos apontar que
para apreender a realidade amazônica de maneira mais abrangente
possível, em nossa prática profissional estamos lançando mão da
aliança de diversos métodos, o que Günther, Elali e Pinheiro (2011)
chamam de abordagem multimétodos e Minayo (2005) de triangu-
lação de métodos. Por meio dessa interação, busca-se captar distin-
tos aspectos de um objeto de estudo e, desse modo, ter uma visão
mais completa dos fenômenos investigados.
A eleição das técnicas e instrumentos de pesquisa depen-
derá dos objetivos de cada projeto, do tempo disponível em campo,
das condições logísticas, do local visitado e das condições de apli-
cabilidade nas comunidades ribeirinhas. De modo geral, temos
tido em nosso repertório a observação participante com registros
escrito e fotográfico, entrevistas espontâneas e semiestruturadas,
questionários, reuniões comunitárias e outras técnicas de abor-
dagem grupal, como mapas cognitivos com elaboração de croqui
socioespacial e de diagnóstico participativo com interlocutores
específicos.

Levantamentos socioambientais
Nem sempre as UCs são homologadas com base em conhe-
cimento a respeito das condições de flora, fauna e população resi-
dente da área demarcada. Em especial as UCs de uso sustentável
que estão sendo criadas a partir da demanda dos habitantes de
uma região, que solicitam aos órgãos competentes (no caso do
Amazonas, ICMBio ou Ceuc) a demarcação do território. De modo
Psicologia e contextos rurais | 189

geral, isso acontece como uma estratégia de proteção aos recursos


naturais para uso dos moradores, impedindo a entrada de invaso-
res. Em algumas localidades a entrada massiva de mineradores,
madeireiros e pescadores industriais trouxe consigo práticas dele-
térias da floresta e a gradual diminuição de possibilidades de sus-
tento das populações locais. Por isso, a criação de uma UC de uso
sustentável veio como uma estratégia não apenas para conservação
da natureza, mas para garantir o uso dos recursos pelas famílias
dessas áreas. No estado do Amazonas, nossa experiência nos mos-
tra que em muitos casos os gestores de órgãos públicos estimula-
ram a mobilização dos moradores para a criação da UC. Diante das
condições e benefícios apresentados, muitos acabaram decidindo
por criar uma modalidade de UC de uso sustentável, escolhendo
entre a gerência federal ou estadual.
Os conhecimentos a respeito da bio e sociodiversidade de
uma UC, quando não disponíveis a priori de sua homologação,
requerem um levantamento diagnóstico específico desses elemen-
tos, os quais servirão para a realização de um Plano de Manejo, que
segundo o Snuc (2011), no seu Art. 2 é definido como:

Documento técnico mediante o qual, com fundamento


nos objetivos gerais de uma unidade de conservação, se
estabelece o seu zoneamento e as normas que devem
presidir o uso da área e o manejo dos recursos naturais,
inclusive a implantação das estruturas físicas necessá-
rias à gestão da unidade (p. 6).

Esse documento técnico é elaborado com base em pesqui-


sas de diagnóstico da área, onde se levantam dados a respeito de
uma série de itens que servirão para delimitar as zonas de uso dos
recursos naturais, as regras de convivência e os planos de uso na
UC. Vejamos um exemplo, para deixar mais claro todo esse pro-
cesso. No caso da Resex do Baixo Juruá, a mobilização que lhe deu
origem iniciou em 1997, fruto da interação da população local e
190 | Psicologia e contextos rurais

da igreja católica para preservação dos lagos. A homologação da


área aconteceu apenas pelo decreto de 1/8/2001, com publicação
no Diário Oficial da União. Seu plano de manejo foi publicado ape-
nas oito anos depois (MMA, 2009) e é composto por: diagnóstico
da fauna, dos recursos pesqueiros, dos recursos florestais, do meio
ambiente físico, do uso do solo, caracterização socioeconômica,
plano de utilização e programas, zoneamento, diagnóstico rural
participativo, projeto especial de ecoturismo e cenários. Cada um
desses itens foi levantado por equipes diferentes e, após a junção
de todas as informações, formulou-se o documento final publicado
pelo governo, que contém dados gerais de caracterização e gestão
da UC, do contexto regional e dos programas de sustentabilidade
ambiental e socioeconômica.
A caracterização socioeconômica descrita nesse plano de
manejo teve como base o levantamento socioambiental realizado
pela equipe do Laboratório de Psicologia e Educação Ambiental
(Lapsea) do Inpa, publicado como relatório técnico (Higuchi,
Ribeiro & Theodorovitz, 2006). Outros levantamentos socioam-
bientais também foram realizados em outras UCs, a saber: Resex
Auati-Paraná (Higuchi et al., 2008a), Resex do Lago do Capanã
Grande (Higuchi et al., 2008b), Flona de Pau-Rosa (Higuchi et al.,
2009), Resex do rio Unini (Higuchi & Theodorovitz, 2010) e Resex
do rio Jutaí (Higuchi et al., 2011). Todas estas estão localizadas no
estado do Amazonas, mas são UCs federais7.
Esses levantamentos socioambientais foram realizados a
pedido dos gestores das áreas, que necessitavam de pesquisadores
especializados para realizar tal tarefa. Muitos gestores são jovens
concursados, em geral com formação em ciências naturais e vindos

7 A Resex Auati-Paraná foi homologada em 7/8/2001, a Flona de Pau-Rosa tam-


bém em 7/8/2001, a Resex do rio Jutaí em 16/7/2002, a Resex do Lago do Capanã
Grande em 3/6/2004 e a Resex do rio Unini em 21/6/2006. Apenas a Resex do
rio Jutaí teve o plano de manejo publicado oficialmente em abril de 2011, mas
tornado público em outubro de 2012.
Psicologia e contextos rurais | 191

de outras regiões do país, que necessitam estabelecer parcerias com


instituições de pesquisa ou consultorias para fazer os diagnósticos
de suas áreas. Em nosso caso, as atividades que empreendemos tive-
ram como finalidade não apenas subsidiar a elaboração do plano de
manejo de cada UC, mas desenvolver e ampliar nosso campo de
atuação em comunidades ribeirinhas amazônicas. Nossa intenção
foi criar estratégias de pesquisa para fornecer dados qualificados,
que contivessem uma abordagem bastante abrangente e completa
a respeito da vida social das comunidades dessas áreas.
Dentro daquilo que nos propomos, levantamos informa-
ções a respeito do ambiente físico e social, considerando que ambos
fazem parte de uma mesma realidade e são importantes no enten-
dimento da relação pessoa-ambiente. Inclui-se nesse diagnóstico
indicadores ecológicos, socioculturais e político-administrativos
nas comunidades de cada UC. Podemos exemplificar a partir dos
seguintes aspectos: localização e mapeamento da comunidade,
dados demográficos de uma parcela amostral dos residentes, con-
dições de infraestrutura das casas e da comunidade, uso de energia,
meios de comunicação, saneamento básico (água, esgoto sanitário
e destino do lixo), transporte, acesso a bens e serviços sociais (pre-
vidência e assistência social, pagamento por serviços ambientais),
condições da oferta de educação e atendimento à saúde, práticas
produtivas (agricultura, pesca, extrativismo, coleta, manufatura,
criação de animais, manejo, serviços, comércio), renda, uso de pro-
dutos madeireiros e não madeireiros, lazer, nutrição, organização
sociopolítica, atividades comunitárias, dificuldades e resolução de
conflitos, expectativas de mudança ou permanência na comuni-
dade, significado atribuído ao lugar, sentimento de pertencimento
e apropriação do lugar, posse e propriedade da terra, satisfação e
insatisfação (apego ao lugar), percepção ambiental sobre a floresta
amazônica, entendimento sobre áreas verdes, conhecimento de leis
e normas ambientais, percepção sobre o uso sustentável da floresta
192 | Psicologia e contextos rurais

e manejo florestal, percepção das mudanças climáticas e uso social


dos recursos naturais.
Um dos diferenciais de nossa proposta de levantamento
socioambiental é trazer contribuições de algumas áreas das ciên-
cias humanas e sociais, para revelar o modo de vida dos povos e
comunidades tradicionais das UCs, destacando nossa compreen-
são a respeito da interação pessoa-ambiente. Ao investigarmos a
percepção ambiental, entendida como a forma como as pessoas
vivenciam suas relações com o ambiente em todos os aspectos em
seu entorno, isto é, geofísicos, psicossociais, econômicos, cultu-
rais etc. (Kuhnen & Higuchi, 2011), estamos buscando compreen-
der como elas pensam e agem no e com esse ambiente. Isso nos dá
subsídios para entender as cognições e afetos em relação ao lugar
em que vivem, que orientam de forma direta e indireta as práticas
cotidianas e os comportamento de cuidado (ou não) com a floresta.
Por outro lado, também temos tornado explícito a dificuldade de
acesso a bens e a serviços sociais, as estratégias de reconhecimento
e as formas de organização dos moradores dessas comunidades, o
que tem revelado uma dinâmica comunitária de luta por direitos e
melhoria da qualidade de vida.
Todos esses aspectos integrados têm nos feito refletir sobre
a constituição das identidades dessas pessoas, que envolvem nuan-
ces ambientais, culturais, psicossociais e políticas, que não são
facilmente apreendidas pelas teorias de identidade de um modo
holístico. Isso tem nos levado ao questionamento das teorias vigen-
tes, pois cada uma delas parece dar acento maior a uma dessas
nuances da realidade vivida pelos povos e comunidades tradicio-
nais amazônicos, considerando esse aspecto preponderante como
o fator essencial da constituição identitária. No entanto, temos
visto que é preciso debater com mais profundidade as teorias de
identidade, ponderando-se o contexto no qual surgiram e se, por
conta disso, são adequadas aos casos amazônicos.
Psicologia e contextos rurais | 193

Do ponto de vista prático, essa nossa atuação não aconteceu


isolada, como se os aspectos da vida social não tivessem ligação
com aqueles ambientais. Muito pelo contrário, todas nossas pes-
quisas foram realizadas em parceria com o Laboratório de Manejo
Florestal (LMF) do Inpa, cujas equipes eram compostas por pro-
fissionais de distintas áreas para realizar o inventário florestal. Do
mesmo modo, os pesquisadores do LMF também tinham seus inte-
resses científicos particulares nessas UCs: conhecer as característi-
cas da floresta amazônica em cada região do Amazonas e ter dados
a respeitos da dinâmica do carbono. Essa aliança entre inventário
florestal e levantamento socioambiental tem apontado que não é
mais plausível considerar apenas um ou outro aspecto da realidade
de uma UC, isto é, as características da floresta desconectada das
particularidades do modo de vida daqueles que nela habitam. Esse
trabalho integrado tem mostrado que a floresta é importante para
seus habitantes, ao mesmo tempo que seus habitantes são impor-
tantes para a floresta. Portanto, só faz sentido realizar pesquisas
científicas que repercutam não apenas para a ampliação de conhe-
cimentos, mas especialmente que reflitam em algum tipo de bene-
fício e melhoria para aqueles que vivem naqueles ambientes.
O desenvolvimento da atuação conjunta entre pesquisado-
res de diferentes áreas tem gerado alguns frutos para além das UCs
estudadas. Atualmente, os trabalhos de inventário florestal realiza-
dos pelo LMF contam com a presença de uma equipe socioambien-
tal, por entenderem que a Amazônia tem múltiplas dimensões e é
fundamental dispor de conhecimentos vindos das ciências huma-
nas e sociais. Essa integração científica tem se tornado realidade
também em outros âmbitos. No estado do Amapá, por exemplo, o
diagnóstico socioambiental para elaboração do plano de manejo da
Floresta Estadual (Flota-AP) está sendo realizado por instituições
de pesquisa e gestão política entre 2011 e 2012, com assessoria de
pesquisadores do Lapsea. A importância de um bom levantamento
será trazer benefícios às comunidades dessa área, no momento
194 | Psicologia e contextos rurais

em que forem efetivados o plano de manejo florestal e a venda de


créditos de carbono pelo Redd+8. No caso do inventário florestal
nacional, que está em vias de ser realizado em todo país por meio
do MMA/Serviço Florestal Brasileiro (SFB), este também conta
com o levantamento socioambiental, cujo delineamento técnico
teve a participação do Lapsea.
Como prosseguimento de nossas atividades em UCs, esta-
mos atualmente desenvolvendo projeto em parceria com outro
grupo de pesquisadores de tecnologia da madeira, o Laboratório
de Engenharia e Artefatos de Madeira (Leam) do Inpa e Associação
Agroextrativista do Auati-Paraná (Aapa)9, os quais propuseram
alternativas tecnológicas de uso sustentável da madeira caída. Com
essa atividade interventiva, nos propomos a desenvolver um guia
de monitoramento e avaliação psicossocial e sociocultural dessa
iniciativa entre os moradores. Para tanto, foram elaborados indi-
cadores socioambientais adequados à realidade dos povos e comu-
nidades tradicionais de uma UC, para mensurar as transformações
psicossociais geradas a partir dessa proposta pioneira de uso desse
recurso madeireiro, contemplando dimensões sociais, econômicas,
ecológicas, comunitárias e capacitação e organização do trabalho.
Essa iniciativa conjunta está sendo acompanhada com expectativa

8 Redd plus é a sigla para uma das estratégias de Mecanismo de Desenvolvimento


Limpo (MDL), que significa Redução de Emissões pelo Desmatamento e
Degradação Florestal, em países em desenvolvimento, incluindo o papel da
conservação, do manejo florestal sustentável e do aumento dos estoques de car-
bono. Isso inclui uma contrapartida financeira às comunidades locais onde os
planos de Redd+ forem firmados, pelo importante serviço ambiental prestado à
conservação da natureza.
9 Nosso projeto faz parte do programa DCR e tem financiamento Fapeam/CNPq,
intitulado “Transformações no modo de vida dos habitantes da Resex Auati-
Paraná a partir da introdução de uma estratégia de desenvolvimento sustentá-
vel”. O projeto da Aapa, com verba Proderam, intitula-se “Aproveitamento da
madeira de árvores caídas para geração de renda e melhoria da qualidade de
vida das comunidades tradicionais na Resex Auati-Paraná, Amazonas – Brasil”.
Este possui apoio e parceria do LMF e Leam, sob a chancela do projeto INCT/
Madeiras da Amazônia, financiado pelo CNPq, Fapeam, Finep e Edutecam.
Psicologia e contextos rurais | 195

pelo ICMBio, pois poderá servir de unidade demonstrativa para


replicação em muitas outras UCs, garantindo geração de renda às
famílias e sustentabilidade ambiental.

Considerações finais
Nossas atividades de pesquisa nas comunidades do interior
do Amazonas, mais especificamente aquelas localizadas em UCs,
não se restringem a mera ampliação de conhecimentos científicos a
respeito de determinados segmentos sociais. Estamos tratando de
produzir saberes em parceria com todos os agentes sociais envol-
vidos, sejam esses cientistas de outras áreas, gestores públicos ou
habitantes locais, norteados pelo compromisso de trazer benefícios
e melhorias aos moradores dessas áreas, direta ou indiretamente e
em curto, médio ou longo prazo.
A discussão a respeito da conservação da natureza envol-
vendo diretamente a população residente de áreas protegidas tem
avançado nos últimos anos. No entanto, ainda é preciso desenvol-
ver muitas outras produções acadêmicas e estratégias que integrem
proteção da natureza e atendimento aos anseios e necessidades dos
habitantes locais. Nesse sentido, a Psicologia Social e Ambiental
tem mostrado sua contribuição nos trabalhos interdisciplinares,
por possuir recursos teórico-metodológicos para realizar boas lei-
turas da realidade, intervenções apropriadas e delineamento de
diretrizes integradoras de ação.

Agradecimento
Agradecemos à Fapeam/CNPq pela concessão de bolsa
de estudos do programa de desenvolvimento científico regional
(DCR) ao primeiro autor.
196 | Psicologia e contextos rurais

Referências
Almeida, A. W. B (2008). Terra de quilombo, terras indígenas, ‘babaçuais
livres’, ‘castanhais do povo’, faixinais e fundos de pasto: terras
tradicionalmente ocupadas (2a ed.). Manaus: PGSCA-UFAM.

Arruda, R. S. V. (1999, julho/dezembro). Populações ‘Tradicionais’ e a proteção


dos recursos naturais em Unidades de Conservação. Ambiente &
Sociedade, 2 (5), 79-92.

Barreto Filho, H. T. (2004). Notas para uma história social das áreas de
proteção integral no Brasil. In Ricardo, I. Terras indígenas & unidades
de conservação da natureza: o desafio da sobreposição. São Paulo: ISA.

Barreto Filho, H. T. (2006). Populações tradicionais: introdução à crítica da


ecologia política de uma noção. In Adams, C., Murrieta, R. & Neves, W.
(Orgs.). Sociedades caboclas amazônicas: modernidade e invisibilidade.
São Paulo: FAPESP, Annablume.

Calegare, M. G. A. (2010). Contribuições da Psicologia Social ao estudo de


uma comunidade ribeirinha no Alto Solimões: redes comunitárias
e identidades coletivas. Tese de doutorado. Instituto de Psicologia,
Universidade de São Paulo, São Paulo.

Calegare, M. G. A. (2012). Questões à Psicologia Social a partir de experiências


em comunidades ribeirinhas amazônicas. In Lima, A. F. (Org.).
Psicologia Social Crítica: paralaxes do contemporâneo. Porto Alegre:
Sulina.

Calegare, M. G. A. & Silva Jr., N. (2012). Inter e/ou transdisciplinaridade como


condição aos estudos de questões socioambientais. INTERthesis, 9 (2),
216-245. http://dx.doi.org/10.5007/1807-1384.2012v9n2p216

Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007 (2007, 7 de fevereiro). Recuperado


em 13 de novembro, 2012, de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2007-2010/2007/decreto/d6040.htm.
Psicologia e contextos rurais | 197

Diegues, A. C. A. (2000). Etnoconservação da natureza: enfoques alternativos.


In ______. (Org.). Etnoconservação: novos rumos para a proteção da
natureza nos trópicos. São Paulo: NUPAUB, Hucitec, Annablume.

Diegues, A. C. S. (2004). O mito moderno da natureza intocada (5a ed.). São


Paulo: NUPAUB, Hucitec.

Diegues, A. C. S. & Arruda, R. S. V. (Orgs.). (2001). Saberes tradicionais e


biodiversidade no Brasil. Brasília: MMA; São Paulo: USP.

Günther, H., Elali, G. A. & Pinheiro, J. Q. (2011). Multimétodos. In Cavalcante,


S. & Elali, G. A. Temas básicos em Psicologia Ambiental. Petrópolis:
Vozes.

Higuchi, M. I. G., Ribeiro, M. N. L. & Theodorovitz, I. J. (2006). Vida Social


das comunidades da Resex do Baixo Juruá-AM: Dados socioeconômicos
e demográficos das comunidades (Relatório Técnico). Manaus: INPA,
IBAMA, ICMBio.

Higuchi, M. I. G. & Theodorovitz, I. J. (2010). A Floresta e seus recursos: um


estudo sobre a percepção de moradores da Resex do Rio Unini e do
entorno (Relatório Técnico). Manaus: INPA.

Higuchi, M. I. G. et al. (2008a). Vida Social das comunidades da Resex Auati-


Paraná, Fonte Boa-AM. (Relatório Técnico). Manaus: INPA, IBAMA,
ICMBio.

Higuchi, M. I. G. et al. (2008b). Vida Social das comunidades próximas e


pertencentes à Resex Lago do Capanã Grande, Fonte Boa-AM (Relatório
Técnico). Manaus: INPA, IBAMA, ICMBio.

Higuchi, M. I. G. et al.(2009). Vida Social das comunidades próximas e


pertencentes à Flona do Pau Rosa- Maués-AM (Relatório Técnico).
Manaus: INPA, ICMBio.
198 | Psicologia e contextos rurais

Higuchi, M. I. G. et al. (2011). Vida Social das Comunidades da Resex do Rio


Jutai e Uso dos Recursos Florestais (Relatório Técnico). Manaus: INPA,
JICA, ICMBio.

Kuhnen, A. & Higuchi, M. I. G. (2011). Percepção Ambiental. In Cavalcante,


S. & Elali, G. A. (Orgs.). Temas Básicos em Psicologia Ambiental. São
Paulo: Vozes.

Leff, E. (2012). Aventuras da epistemologia ambiental: da articulação das


ciências ao diálogo de saberes. São Paulo: Cortez.

Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000; Decreto nº 4.340, de 22 de agosto de


2002; Decreto nº 5.746, de 5 de abril de 2006. SNUC – Sistema Nacional
de Unidades de Conservação da Natureza. Decreto nº 5.758, de 13 de
abril de 2006. PNAP – Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas
(2011). Brasília: MMA/SBF.

Lei Complementar nº 53, de 04 de junho de 2007. (2007, 04 de junho).


Recuperado em 13 de novembro, 2012, de http://www.ceuc.sds.am.gov.
br/downloads/category/2-leisedecretos.html.

Lei nº 12.727, de 17 de outubro de 2012. (2012, 17 de outubro). Recuperado em 13


de novembro, 2012, de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-
2014/2012/Lei/L12727.htm.

Lima, D. M. (1999). A construção histórica do termo caboclo: sobre estruturas


e representações sociais no meio rural amazônico. Novos Cadernos
NAEA, 2 (2), 5-32.

Lima, D. M. & Pozzobon, J. (2005). Amazônia socioambiental: sustentabilidade


ecológica e diversidade social. Estudos Avançados, 54, 45-76.

Little, P. E. (2004). Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma


antropologia da territorialidade. Anuário Antropológico 2002/2003.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
Psicologia e contextos rurais | 199

Medeiros, R. (2006, janeiro/junho). Evolução das tipologias e categorias de


áreas protegidas no Brasil. Ambiente & Sociedade, 09(01), 41-64.

Medeiros, R., Irving, M. A. & Garay, I. (2006). Áreas Protegidas no Brasil:


interpretando o contexto histórico para pensar a Inclusão Social. In
Irving, M. A. (Org.). Áreas Protegidas e Inclusão Social: construindo
novos significados. Rio de Janeiro: Fundação Bio-Rio.

Minayo, M. C. S. (2005). Conceito de avaliação por triangulação de métodos.


In Minayo, M. C. S.; Assis, S. G. & Souza, E. R. (org.). Avaliação por
triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. Rio de
Janeiro: Fiocruz.

Ministério do Meio Ambiente – MMA, Instituto Chico Mendes de Conservação


da Biodiversidade – ICMBio (2009). Plano de Manejo de Reserva
Extrativista do Baixo Juruá. Brasília: MMA/ICMBio.

Ribeiro, D. (1995). O povo brasileiro: evolução e o sentido do Brasil. São Paulo:


Companhia das Letras.

Santos, J. et al. (2012). Amazônia: características e potencialidades. In Higuchi,


M. I. G. & Higuchi, N. (eds.). A floresta amazônica e suas múltiplas
dimensões: uma proposta de educação ambiental (2a ed. rev. e ampl.).
Manaus: Edição do autor.

Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável


(SDS). (n. d.). Painel 2 – desigualdades regionais e critérios de
elegibilidade. Recuperado em 13 de novembro, 2012, de http://www.
seplan.am.gov.br/arquivos/download/arqeditor/desigualdades_%20
regionais_e_%20criterios_%20de_%20elegibilidade_sds.pdf.

Vianna, L. P. (2008). De invisíveis a protagonistas: populações tradicionais e


unidades de conservação. São Paulo: FAPESP, Annablume.
Massacre no acampamento
Terra Prometida – Felisburgo/
MG: o papel da Psicologia
frente ao trauma psicossocial
Fabiana de Andrade Campos
Bader Burihan Sawaia

O massacre contra trabalhadores rurais sem terra, ocorrido


no ano de 2004, no acampamento Terra Prometida, locali-
zado no município de Felisburgo, encerra mais uma cena de terror
e violência contra os povos do campo no Brasil. A impunidade, o
não atendimento às vítimas, o esquecimento e a banalização dessas
ocorrências têm se caracterizado como práticas comuns na reali-
dade brasileira. A transformação desse cenário e das consequên-
cias por ele geradas traz implicações para a Psicologia enquanto
ciência e profissão e nos coloca a problematizar seu papel frente
aos processos de transformação social. Para refletir sobre isso, pre-
tendemos utilizar contribuições de autores que compartilham de
uma visão sócio-histórica, a fim de compreender a composição dos
afetos que configuram o trauma psicossocial.
202 | Psicologia e contextos rurais

Desse modo, o objetivo deste capítulo será apresentar uma


breve revisão da literatura na área para familiarizar o leitor sobre os
estudos e intervenções psicossociais em casos de violência extrema
e sobre a política de produção de afetos; posteriormente, iremos
apresentar a intervenção psicossocial realizada; o contexto do mas-
sacre, a partir da perspectiva de reconstrução da memória histó-
rica; a metodologia adotada, baseada nos pressupostos da pesquisa
participante, da psicologia sócio-histórica e da libertação; a aná-
lise de sentido e significado baseada na teoria vigotskiana para em
seguida tecer as considerações finais.

O papel da Psicologia em casos


de violência extremada
Os estudos relacionados às formas de violência extre-
mada, tais como guerras, massacres, torturas etc., tratam tanto da
dimensão psicológica – afetos, mecanismos de defesa, sofrimento
e adoecimento mental – quanto da dimensão social: o cenário his-
tórico, terrorismo de Estado e suas interferências na vida social, a
conformação da memória histórica etc. Ambas as dimensões estão
intrinsicamente relacionadas, de forma que não podem ser com-
preendidas separadamente, portanto iremos tratar de fenômenos
psicossociais.
Ao analisar os efeitos da violência sobre a saúde mental de
povos da América Latina e Caribe, Pederson (2006, p. 1192) chama
atenção para a necessidade de se pensar o contexto regional em que
os acontecimentos são processados e suas consequências, ou seja,
“fazer as vinculações entre eles e as estruturas sociais e econômi-
cas mais abrangentes em que se originam”. Segundo ele, é impor-
tante avaliar a efetividade das intervenções psicossociais existentes
para que se possa pensar, também, na criação de novas formas. Ele
nos convida a valorizar as estratégias recuperadoras previamente
Psicologia e contextos rurais | 203

existentes na comunidade, assim como estimular para que outras


sejam despertadas.

[...] formas espontâneas de melhorar o apoio social (e.g.


festivais comunitários, cerimônias religiosas e públicas,
reuniões sociais em torno de acontecimentos importan-
tes etc.), grupos de autoapoio (i.e., organizações comu-
nitárias de viúvas e mulheres) e também sistemas de
crença que oferecem a base para a criação de significado
do trauma vivido. Preservar e fortalecer essas formas cul-
turais de apoio para curar e enfrentar o problema devem
constituir a prioridade das intervenções psicossociais
(Pedersen, p. 1196, 2006).

Segundo Pedersen (2006, p. 1190), atualmente, a nomencla-


tura Transtorno de Estresse Pós-Traumático é utilizada por espe-
cialistas que argumentam a universalidade de algumas reações,
enquanto outros sugerem que os “acontecimentos traumáticos têm
significados e efeitos muito mais amplos, variados e complexos do
que os reconhecidos pela nosologia ou pela prática psiquiátrica
convencional”, daí a importância de estudos culturais mais pro-
fundos. Porém, o autor considera que houve uma vulgarização do
conceito trauma, o que dificulta a objetividade de seu estudo. Ele
sugere cautela para analisá-lo. Sua argumentação vai de encontro
à determinação sociopolítica dos acontecimentos. Ele alerta para
o perigo da medicalização dos fenômenos sociais, pois de acordo
com ele, as omissões das origens sociais da dor e do sofrimento
levam à ampliação das desigualdades. Pedersen (2006) considera
relevante o atendimento psicológico às vítimas, porém como maior
necessidade a intervenção no contexto social que gera a repetição
dos círculos de violência e impunidade.
Martín-Baró (1988) utiliza o termo trauma psicossocial
para tratar das afecções da guerra prolongada na vida da popu-
lação em El Salvador. Ele sugere o termo para enfatizar o caráter
204 | Psicologia e contextos rurais

essencialmente dialético dessa ferida que depende da experiência


particular do indivíduo, da sua participação específica nesse acon-
tecimento e de seu pertencimento a um grupo ou classe social. Para
ele, ao falar de trauma psicossocial devem ser considerados dois
aspectos:

(a) que a ferida que afeta as pessoas tem sido produ-


zida socialmente, isto é, suas raízes não se encontram
no indivíduo, mas na própria sociedade, e (b) que a sua
natureza é alimentada e mantida na relação entre o indi-
víduo e a sociedade, através de diversas mediações ins-
titucionais, grupais e inclusive individuais. O que tem
conseqüências óbvias e importantes na hora de deter-
minar o que se deve fazer para superar estes traumas
(Martín-Baró, 2000, p. 78).

Portanto, a práxis psicossocial não deve ser reduzida ao


tratamento psicoterápico sob o risco de tornar-se mero paliativo
apaziguador das relações desumanizantes. Deve, ao contrário, ser
ampliada na sua dimensão social, política, numa perspectiva trans-
formadora das próprias relações violentas que produzem efeitos
traumáticos.
Dessa maneira, ele aponta os caminhos de um trabalho ini-
cial que conta com um intenso projeto de despolarização, desideo-
logização e desmilitarização. O que, tomado para o nosso trabalho,
significa a ampliação da consciência política e a reconstrução da
memória histórica. Nas palavras do autor: “deve-se, finalmente,
esforçar-se para educar pela razão e não pela força, de maneira que
a convivência se funde na complementariedade mútua para resol-
ver os problemas e não manter a violência como única alternativa”
(Martín-Baró, 1988, p. 81).
Dentro desse debate, uma fonte inspiradora é o trabalho
da Equipe Clínico-Grupal do Grupo Tortura Nunca Mais. Eles pro-
duzem uma clínica social ampliada, que não restringe o trabalho
Psicologia e contextos rurais | 205

psicológico ao nível do psiquismo individual, ou seja, a intervenção


psicossocial leva em consideração a determinação política e social
da produção do sofrimento. A investigação dos fatos, a recuperação
da memória coletiva, a denúncia e a luta política são dimensões
importantes para o trabalho psicológico. Segundo Cecília Coimbra:

A denúncia, o tornar público, retiram-nos do território


do segredo, da clandestinidade, do privado. Com isso,
saímos do lugar de vítima fragilizada, despontenciali-
zada e ocupamos o da resistência, da luta, daquele que
passa a perceber que seu caso não é um acontecimento
isolado; ele se contextualiza, faz parte de outros e sua
denúncia, esclarecimento e punição dos responsáveis
abre caminho e fortalece novas denúncias, novas inves-
tigações. A dimensão coletiva desse caminho se afirma
e, com isso, temos a possibilidade de começar a tocar
na impunidade; de mostrar que tal quadro – onde as
punições nunca acontecem – pode ser mudado, pode ser
revertido (Coimbra, 2001, p. 5).

Conforme a autora, a luta contra a impunidade tem um


caráter pedagógico-social, com função de criar novas formas de
subjetividade que não reproduzam e reiterem formas de violência
que foram forjadas historicamente. Embora considere que a repa-
ração econômica seja um direito dos violentados e torturados, ela
afirma que esse direito deve ser acompanhado por outros: “deve
estar aliado às lutas para que se possa construir não somente outras
formas de viver, de existir, outras sensibilidades, mas uma outra
memória histórica diferente da que nos tem sido imposta pela cha-
mada história oficial” (COIMBRA, 2001, p. 6).
Autores que trabalham no contexto das ditaduras e pós-
-ditaduras da América Latina, tais como Riquelme, Amati, Agger
e Jensen, Becker e Calderón, e Vidal (1993) apontam para a par-
ticularidade psicopatológica produzida em contextos de violência
206 | Psicologia e contextos rurais

extremada e, portanto, a especificidade do tratamento terapêutico


e da atuação profissional, que devem considerar, sobretudo, o fator
político. Nessa perspectiva, Riquelme (1993) apresenta cinco tare-
fas relacionadas à práxis psicoterapêutica e à intervenção social,
resumidamente, seriam elas:
1) Compreender os mecanismos de influência e penetração psico-
lógica da vida cotidiana produzidos pelo terror;

2) Compreensão histórica da violação dos direitos humanos (na


América Latina e no mundo);

3) Necessidade de aprender com os processos psicoterapêuticos


desenvolvidos em outras situações de terrorismo e violências
extremadas;

4) Criação de outras formas de acesso às experiências traumáticas


tendo em vista que “o idioma habitual não conta com expres-
sões para fazer comunicável a experiência do terror [...] falta
estrutura de comunicação para a dor da tortura que se autoper-
petua no vitimado”;

5) Falar de direitos humanos em casos de violência organizada sig-


nifica falar de saúde psicossocial (Riquelme, 1993, p. 11-14).

Riquelme enfatiza a importância de não relegarmos tais


acontecimentos ao esquecimento, ao contrário, devemos revelá-los
à percepção pública (publicizar as experiências). Além disso, ele
fala da necessidade da participação geral da sociedade em termos
de reflexão e amadurecimento como estratégia de recuperação e
reestruturação da ética social (Riquelme, 1993, p. 15).
Portanto, o papel da psicologia abrange tanto o atendimento
direto às vítimas, potencializando reflexões coletivas, quanto a
publicização do acontecimento, através de intervenções políticas,
jurídicas e sociais, com objetivo de criar mecanismos preventivos
Psicologia e contextos rurais | 207

e formação de consciência social, assim a intervenção psicossocial


abrange três níveis:
1) Pessoal: atendimento clínico-individual às vítimas;

2) Comunitário: formações grupais, coletivas com possibilidade de


refletir sobre o passado, presente e projetar o futuro, ampliado
na dimensão de historicidade;

3) Político: publicização do acontecimento: intervenções políti-


cas, jurídicas e sociais, com objetivo de criar mecanismos pre-
ventivos e formação de consciência política.

Composição dos afetos no trauma psicossocial


A partir do resgate das obras de Espinosa e Vigotski, Sawaia
(2006; 2011) busca valorizar a dimensão política da produção dos afe-
tos, isto é, conjunto de sentimentos e emoções produzidos e deter-
minados pelas e nas relações históricas da sociedade. A afetividade
está na base dos sistemas políticos e são utilizadas, manipuladas e
construídas de modo a produzir sujeitos autônomos ou heterôno-
mos, submissos ou libertários, medrosos ou corajosos, enfim, tris-
tes ou alegres, dependendo das conjunturas societais e das formas
de desenvolvimento do conjunto da sociedade. De acordo com a
autora, sofrimento psicossocial produz “a fixação do modo rígido do
estado físico e mental que diminui a potência de agir em prol do bem
comum, mesmo que motivado por necessidades do eu, gerando, por
efeito perverso, ações contra as necessidades coletivas e, consequen-
temente, individuais”. (Sawaia, 2006, p. 50).

Este sofrimento corrói o sistema de resistência social.


Age rompendo o nexo entre o agir, o pensar e o sentir.
[...] As condições favorecedoras da sua disseminação
são a miséria, a heteronomia e o medo. Sua forma de
contágio é o isolamento social. A sequela que deixa é a
208 | Psicologia e contextos rurais

passividade, o alcoolismo e o fatalismo, a vergonha e o


medo, o que o faz ser confundido com preguiça e irres-
ponsabilidade (SAWAIA, 2006, p. 50-51).

Posteriormente, Sawaia (2011) vai desenvolver a noção de


sofrimento ético-político.

[...] o sofrimento ético-político retrata a vivência coti-


diana das questões sociais dominantes em cada época
histórica, especialmente a dor que surge da situação
social de ser tratado como inferior, subalterno, sem
valor, apêndice inútil da sociedade. Ele revela a tonali-
dade ética da vivência cotidiana da desigualdade social,
da negação imposta socialmente às possibilidades da
maioria apropriar-se da produção material, cultural e
social de sua época, de se movimentar no espaço público
e de expressar desejo e afeto (Sawaia, 2011, p. 106).

O sistema político dominante faz uso de poderosas cargas


emotivas para manutenção do poder. Além da coerção física, direta
e objetiva, o poder é mantido também pela manipulação das emo-
ções, dos sentimentos, ou seja, da subjetividade, é isso que deno-
minamos como política de produção de afetos.
São diversas as manifestações subjetivas e afetos (sentimen-
tos e emoções) que constituem quadros de trauma psicossocial pro-
duzidos pelo sistema político em contextos de violência extrema.
Riquelme (1993) vai falar dos tons cinza e opacos de uma
época a ser superada quando o medo – agente de coerção da socie-
dade em geral e durante um longo tempo – é dominante. Segundo
o autor, as vítimas de violência organizada apresentam a experiên-
cia da destruição da confiança básica, vergonha e sentimento de
“cumplicidade inconsciente de seus verdugos”. Ele fala da subordi-
nação (indivíduos passivos e submissos) ao terrorismo – da adap-
tação geral da população aos processos de violência, [ao que Martín
Psicologia e contextos rurais | 209

Baró (2000) chama de ‘normal anormalidade’, produzida pelo ter-


rorismo de Estado]. Fala da dor da tortura que se autoperpetua no
vitimado. Riquelme aponta para o sentimento de insegurança “de
quem se sente expulso de sua terra e sem lugar no mundo”. Enfim,
profundas marcas de sofrimento, depressão, “danos psíquicos e
físicos ‘infernais’” (Riquelme, 1993, p. 11-15). Martín-Baró, em seus
estudos durante a guerra em El Salvador, encontrou sentimentos
de passividade, fatalismo e resignação.

O contexto do massacre e a Intervenção


Psicossocial no acampamento Terra Prometida
De acordo com o relato dos trabalhadores acampados, na
manhã do dia 20 de novembro de 2004, 18 pistoleiros armados inva-
diram o acampamento rural Terra Prometida, localizado na cidade
de Felisburgo, no Vale do Jequitinhonha (MG), assassinaram cinco
pessoas e feriram gravemente 12, entre estas um menino de apenas
12 anos de idade. A mando do fazendeiro Adriano Chafik (réu con-
fesso), que já esteve preso e logo depois foi libertado, os capangas
ainda atearam fogo nos barracos das famílias, ameaçaram de morte
toda a comunidade e soltaram os porcos do chiqueiro, que foram
fuçar sobre os mortos. Esse conteúdo faz parte da memória coletiva
da comunidade.
O conflito de terra passa pela questão comum na região do
Vale do Jequitinhonha, que é um espelho do modo de uso das terras
no Brasil: expropriação, exploração e expulsão de trabalhadores.
Posseiros desbravadores expulsos pela grilagem de terras1; coro-
nelismo e mandonismo na relação dos fazendeiros e agregados. A
fazenda Nova Alegria tem esse histórico quando o neto do primeiro

1 Grilagem de terras: forma que indivíduos, fazendeiros ou capitalistas tomam


terras alheias mediante falsas escrituras de propriedade. Esse nome advém da
prática de fechar grilos em gavetas, juntamente com os falsos documentos para
lhes dar aparência de antigos.
210 | Psicologia e contextos rurais

proprietário, Adriano Chafick, assume da sua família o mando


sobre as terras, decide mudar o modelo de produção da fazenda:
de agricultura familiar para pastagem de gado. Para isso, expulsa
os trabalhadores agregados (muitos nascidos na própria fazenda) e
em troca da saída compulsória o fazendeiro oferece casas de pouco
valor na periferia da cidade de Felisburgo.
A organização do MST na região está relacionada à insa-
tisfação dessas famílias e de outras sem terra e em maio de 2002
os trabalhadores rurais sem terra ocupam a fazenda. A área total é
compreendida em 1.182 hectares de terra, desse total, 569 hectares
foram reconhecidos como sendo terras devolutas pelo ITER/MG,
local onde as famílias estavam acampadas a dois anos e meio e onde
se encontravam no dia do massacre.
Em 2009, foi assinado decreto presidencial, pelo então
governo Lula, destinando a área para a reforma agrária sob os
quesitos: graves danos ambientais e gravíssima tensão social no
campo, promovidos pelos proprietários. Porém, ainda não houve
desapropriação, pois a juíza federal Rosilene Maria Clemente de
Souza Ferreira da 12ª Cível e Agrária de Belo Horizonte funda-
menta, a partir da Medida Provisória 2.183-56/2001 criada pelo
governo Fernando Henrique Cardoso, que “terra ocupada não pode
ser desapropriada”. Para agravar a situação, nesse momento há um
mandado de reintegração de posse concedido pelo Desembargador
Hilton Queiroz (TRF1 – Brasília – DF) e as famílias se encontram
com ordem de despejo. Por fim, após oito anos, o julgamento do
massacre está previsto para ocorrer em abril de 2013, no município
de Belo Horizonte.
Durante o período de 2006 até 2008 realizamos visitas ao
acampamento. A demanda por uma intervenção psicológica par-
tiu do próprio MST. Logo na primeira visita, verificamos, con-
forme havia sido relatado pela secretaria estadual do Movimento,
que as famílias encontravam-se em uma situação traumática. Não
Psicologia e contextos rurais | 211

dormiam à noite, queixavam-se e temiam novos ataques. Os mora-


dores nos revelaram que embora já tivessem sido convocados inú-
meras vezes pela Justiça, pela polícia, pelas câmaras municipais,
etc. para prestarem depoimentos, eles nunca haviam sido chama-
dos a falar do massacre sob o ponto de vista do sofrimento.
Buscamos reconstruir a história do massacre a partir da ela-
boração da memória coletiva dos trabalhadores rurais, com obje-
tivo de: a) compreender e explicitar o processo dos acontecimentos
traumáticos daí decorrentes; b) possibilitar a reelaboração dos sig-
nificados; c) potencializar a reparação do tecido social; d) envolver
a comunidade em um processo grupal que permita um espaço de
reflexão sobre os acontecimentos traumáticos e as possibilidades
de superação.
A metodologia empregada foi da pesquisa participante e os
métodos e técnicas desenvolvidos nas intervenções psicossociais
foram inspirados na abordagem Sócio-Histórica e na Psicologia da
Libertação.
Iniciamos um trabalho no acampamento a partir do resgate
da história da ocupação, do massacre e de seu desencadeamento
até os dias de hoje. Realizamos grupos de entrevistas com a maior
parte dos acampados; iniciamos a coleta de história de vida com
alguns deles. Além disso, visitamos um grupo de ex-acampados que
retornaram para a cidade de Felisburgo, e reconstruímos as histó-
rias das mulheres viúvas do massacre. No entanto, toda essa expe-
riência revelou a necessidade de aprofundar e sistematizar melhor
o trabalho. Muitas questões levantadas não foram devidamente
elaboradas. Pudemos notar que existem conflitos estabelecidos
nas relações comunitárias que estão relacionados aos impactos
causados pelo massacre, tais como: medo, (auto) culpabilização
das vítimas e das lideranças, sentimento de injustiça, sofrimento e
adoecimento mental.
212 | Psicologia e contextos rurais

Relato do sofrimento na
perspectiva das vítimas
Através de reuniões em grupos propusemos aos trabalha-
dores que relatassem os acontecimentos relacionados ao massacre
e as suas consequências em suas vidas, especialmente no que diz
respeito ao sofrimento. Posteriormente, realizamos um trabalho
de organização e devolução das entrevistas com objetivo de formar
um reconhecimento coletivo dessas produções e fortalecer assim
um sentido comum, fortalecendo também a dimensão histórica
do massacre. A partir desse material realizamos análise de sentido
e significado, baseada na teoria vigotiskiana exposta por Sawaia
(2009), destacando e compreendendo os afetos revelados na for-
mação grupal, composta por jovens e adultos, homens e mulheres.
Devemos ressaltar que enfrentamos resistências, silencia-
mentos e recusas, fenômeno que alguns autores denominam como
silêncio em relação ao terror (Riquelme, 1993). Uma das narrati-
vas representa esse silêncio diante do sofrimento provocado pelo
terror: “Tem coisas nessa história que a gente nunca divide com
ninguém”.
Logo nas primeiras entrevistas os trabalhadores afirmaram
que, em geral, não compartilhavam entre si o sofrimento provo-
cado pelo massacre. Demonstraram dificuldade em iniciar a fala,
e em geral, as narrativas foram curtas, marcadas por intenso sofri-
mento, interrompida ou acompanhada por choro. Das crianças,
o mais gravemente atingido, o menino que até hoje carrega uma
bala alojada na cabeça, recusou-se a nos dar seu depoimento, ape-
sar de aproximar-se de nós na reunião de jovens que propusemos.
Do mesmo modo, uma das cinco viúvas mostrou muita resistência
em falar sobre o assunto, apesar de nos receber muito bem, com
extremo carinho, nos oferecer comida e estadia. Para ela, falar
sobre o tema, o marido assassinado e o sofrimento decorrente disso
era muito difícil.
Psicologia e contextos rurais | 213

Em geral, os depoimentos revelaram a cena traumática,


cruel e violenta do massacre. E um fato importantíssimo: na maior
parte dos relatos a cena do trabalho precede a cena do terror. Tal
como descrevem os trabalhadores, o terror começa logo de manhã,
por volta de 10 horas e 30 minutos. “Acabei de plantar um feijão, dez
e meia eles começaram a atirar”.
Os capangas chegaram, capturaram o senhor que fazia a
guarita do acampamento e soltaram os foguetes, uma forma pró-
pria do Movimento reunir os trabalhadores no centro do acam-
pamento. Desse modo, quem estava plantando na roça, torrando
farinha, cuidando de animais, fazendo comida etc., abandonou a
atividade e foi se reunir. Os trabalhadores se deparam com a cena
de terror: um capturado, tiroteio intenso, trabalhadores caindo
mortos no chão, outros feridos, uns tentando ajudar os outros e
sendo ameaçados, perseguição às lideranças e aos moradores anti-
gos agregados da fazenda. Uma criança foi baleada e ameaçaram
matar todo mundo. Alguns ameaçados fugiram para a mata, prin-
cipalmente as senhoras mais velhas com as crianças. Os homens
tentaram voltar para salvar ou ajudar amigos feridos, escondê-los
no mato.

Eu vi na hora que eles chegou, eu tava fazendo comida.


Aí eu só vi os companheiros gritando assim: ‘Oh gente!
Vem pegando o Seu Geraldo’. Aí eu peguei e saí de dentro
de casa, deixei a comida lá no fogo, que eu ia levar pro
meu marido comida, que ele tava trabalhando fora, aí
eu saí deixei lá no fogo e fui ver. Quando eu cheguei lá
perto, aí ele já tava com Seu Geraldo e pedindo pra gente
afastar senão derrubava nois, que já tinha derrubado Zé
Aguiar, Seu Miguel, Seu Tuzinho, pai de Joaquim. Aí,
ficaram pedindo pra nois afastar, e eu ainda perguntei se
eles não tinham fé em Deus, aí eles falou assim: ‘Afasta
senão cês cai do mesmo jeito que os outros!’. Aí eu fiquei
214 | Psicologia e contextos rurais

segura no Lineu, que tem cinco anos, o menino vendo


tudo o que tava acontecendo, e ele ainda fala: ‘Oh mãe,
eu vi Zé Aguiar morrendo’ [chora].

‘Não encosta não, senão a senhora vai morrer quei-


mada!’. Aí eu saí correndo, mais meu menino, aí nois
foi né? E foi já tinha um bocado lá, os outros eu nem vi
não... Só vi os que tava morto, Seu Miguel, Zé Aguiar e
Seu Joaquim. Já tudo morto, já vi eles tudo morto encos-
tados nas barracas. Aí, nós correu lá, aí não vi mais nada,
porque não dei conta, corri embora pra lá. [...] E eu vivo
num sufoco, eu não posso ver tiro, quando eu vejo tiro,
acho que eles outra vez. Quando eu tô na rua, quando
eu vejo o tiro pipocar eu, eu sento no chão, com aquela
impressão, né? Fico imaginando, nossos companheiros
tudo, acostumado tudo junto, quatro anos e tanto que a
gente vive sofrendo, né? Desde lá da mata a gente vem
sofrendo. E pra chegar aqui e acontecer uma coisa dessa
né? Mas Deus não vai deixar, toma conta do céu e da
terra, de toda parte ora por Ele.

Alguns ainda tentaram voltar para buscar pertences nas


barracas, mas foram ameaçados. Os capangas ainda atearam fogo
em todos os barracos, a maioria teve perda total de documentos e
pertences de valor.

Aí, quando cheguei lá que eu vi que tinha Miltão, aquele


Bila, e que vinha com isqueiro riscando as tochas de fogo
e jogando aquelas tochonas na barraca do povo, e dava
aquelas risadonas, aí que eu vi meus companheiros tudo
morto lá e eu fiquei assim... gritava e chorava.

Eles pôs fogo em minha barraca, queimou tudo que eu


tinha, não ficou nada, né? E eu sai correndo.
Psicologia e contextos rurais | 215

Na medida que socorriam alguns, os trabalhadores vol-


tavam para buscar outros. Muitos feridos, baleados, haviam sido
escondidos no mato. Foram achados pelo gemido. Além dos assas-
sinatos, das ameaças, de atearem fogo nas barracas, os pistoleiros
ainda abriram o chiqueiro e soltaram os porcos sobre os mortos,
mais uma forma de humilhação instaurada na cena do massacre:

eles abriram o chiqueiro e soltou os porco dos sem terra


tudinho, e os porco desceu e os porco é vai fuçando,
comendo o sangue de Seu Chico e fuçando. eu fui
lá, toquei os porco pra lá, panhei umas enxada e, e...
jogando aquele sangue que tava, que não podia por a
mão e oiando. E com um pouco baixou um pé d’água,
e a enxurrada descendo assim, e Seu Chico caiu assim
de cabeça de bruço, e a enxurrada foi entrando dentro
da boca dele e nariz dele, e não podia pôr a mão, eu fui
puxando, tirando as enxurrada assim de lado, ó.

O povo ainda ficou muito tempo na estrada, sem amparo


público. De acordo com os depoimentos, se tivesse sido socorrido
a tempo, um dos trabalhadores baleados poderia ter sobrevivido.
Começou a chover, a polícia chegou, prenderam os trabalhadores
em cima de um caminhão e foram impedidos de sair, com fome,
molhados e humilhados.

Então, quando aconteceu o massacre, aí foi a parte que


eu mais sofri. Primeiro, porque eu não tava aqui, tinha
saído pra viajar e quando eu voltei, já encontrei. Porque
só cheguei aqui umas cinco horas, que eu só vi os cor-
pos caídos ali no chão e os barraco tudo queimado, o
sangue descendo assim ó, chuva. Isso não sai do meu
pensamento, aquela chuva de sangue descendo, a chuva
lavando o sangue. Lá em Felisburgo eu tinha encontrado
uma multidão de pessoas na porta do hospital. Quando
nós paramos e que saimo do carro, o pessoal já vinha
216 | Psicologia e contextos rurais

encontrar, já um perguntando “e meu marido como é que


tá? E o outro e meu filho?”. Então assim, um querendo
notícia, que tava lá na cidade querendo notícia e nós tava
chegando e não tinha notícia direito. Aquele desespero.
Aí, nos viemos pra aqui. E quando chegamos aqui na
estrada, tava um caminhão com um pessoal em cima,
chovendo. A polícia não deixava que saísse as mulher, as
criança com quem conseguiu voltar pra pegar os ferido
e pegou alguma roupa de cama tudo molhado em cima
do caminhão, as criança com fome, todo mundo com
fome, molhado e ali a polícia não deixava sair, porque a
polícia já tinha chegado um pouco antes. Nós descemos
aqui, chega a ver os companheiro caído, os barraco tudo
queimado. Pra mim isso já foi o cúmulo, não conseguia
assim, a gente não consegue nem pensar, né?

A análise dos dados revela mecanismos, sentimentos e rea-


ções psicossociais já estudados na literatura consultada, seriam
eles: silêncio em relação ao terror, ao sofrimento e suas consequên-
cias psicológicas; sentimento de medo, raiva, ódio; sentimento de
injustiça; mecanismo de autoculpabilização das vítimas; piora das
relações comunitárias, quebra de confiança básica, perda da ale-
gria, desânimo; insônia, depressão etc. Tendo em vista que nosso
trabalho ainda está em andamento, iremos focar na análise da
culpa, um dos afetos dominantes que configuram o trauma psicos-
social entre os acampados.

(Auto) culpabilização das vítimas


De acordo com a análise das narrativas, a culpa aparece
como um dos sentimentos mais fortes vividos pela comunidade.
A partir do massacre foi desencadeado um mecanismo de (auto)
culpabilização das vítimas, afeto encontrado por pesquisadores
Psicologia e contextos rurais | 217

em outras comunidades que sofreram violência, de acordo com


Gaborit (2009):
“Muitas vezes, os próprios familiares foram culpabilizados
pelos vitimadores por meio de afirmações e acusações buscando
assim justificar as suas ações” (Beristain, 2000, p. 103 como citado
por GABORIT, 2009, p. 255).
A inversão produzida pela História Oficial, a partir de uma
visão dominante, tende a culpabilizar as vítimas e “suspeitar” de
seus sentimentos (Gaborit, 2009, p. 255). Nesse sentido, o autor
afirma: “[...] a memória desses eventos coletivos, da ótica das víti-
mas, tem como primeira finalidade fundamentar o direito a ver-
dade, já que a falsidade destrói qualquer tipo de identidade, assim
como a integridade moral e cultural das comunidades” (Gaborit,
2009, p. 249).
Em nosso campo de trabalho, o processo de culpabilização
aparece em diversos momentos nas narrativas dos trabalhadores
e diz respeito aos variados níveis de relações sociais estabelecidas:
a) base-liderança: uma culpabilização da liderança pela base do
Movimento em relação ao ocorrido;

b) representantes públicos e moradores da cidade de Felisburgo


acusando os trabalhadores de serem culpados pelo massacre
por serem ocupantes de terra;

c) polícia ao buscar evidências de que o incêndio poderia ter sido


produzido intencionalmente ou não pelos próprios trabalhado-
res, na medida que utilizavam querosene nas lamparinas;

d) a comunidade e os próprios sujeitos se culpabilizando.

De acordo com Gaborit (2009), esse mecanismo produz


perda da confiança básica e estabelecimento de acusações, o que
pode levar à desestruturação da comunidade e à desmobilização
da luta.
218 | Psicologia e contextos rurais

Algumas narrativas exemplificam esse mecanismo. Em uma


das suas falas iniciais, a principal liderança feminina coloca a culpa
como principal sofrimento lado a lado com a própria experiência
do massacre. Ela sugere que alguns moradores da comunidade
consideram que ela teve um papel desencadeador em relação ao
massacre: “Ah, ele (um dos capangas) participou do massacre, con-
tribuiu para fazer o massacre por que ele ficou com raiva de XXX
(liderança-feminina)” (fala da entrevistada que sugere como alguns
consideram que ela teve um papel desencadeador em relação ao
massacre).
Assim, ela descreve um jogo de acusações que começou a
ocorrer após o massacre, no sentido de culpabilizar as lideranças da
própria ocorrência do massacre. Daí a impotência para falar sobre
isso, para compartilhar os sentimentos. Compreendemos que nessa
relação o sentimento de culpa vai se perpetuando, impedindo-a de
desenvolver seu papel enquanto liderança, a produzir como antes
nas relações comunitárias, provocando adoecimento, e uma tris-
teza notável a cada dia.
É quebrada a confiança, uma relação básica entre liderança
e base. A liderança sente-se perseguida, a base desprotegida culpa
a própria liderança e a si mesma. As próprias vítimas desenvolvam
esses sentimentos contra os seus.
A polícia exercia esse papel também, procurando provas
de que os próprios trabalhadores foram culpados pelo massacre
ou por partes relacionadas a ele, tal como no caso dos incêndios
dos barracos, perguntando se eles usavam querosene para acender
as lamparinas, podendo alegar a hipótese que ao invés de serem
incendiados pelos capangas, os próprios trabalhadores teriam sido
culpados pelo incêndio, ou mesmo que poderia ter sido um aci-
dente, por causa do descuido com querosene.
Os trabalhadores demonstraram uma situação de confusão
dos seus sentimentos em relação ao massacre, à comunidade e aos
Psicologia e contextos rurais | 219

criminosos. Essa ambiguidade significa que é preciso se justificar


diante do massacre, como se o sujeito fosse o culpado pelo acon-
tecimento. Após o massacre a comunidade questiona sua própria
legitimidade e se autoculpabiliza pela sua decisão política de ocu-
par a terra, eixo central de formação da comunidade. São descritos
sentimentos de impotência, temor, bloqueio e desânimo.
De modo geral, os trabalhadores demostraram desconhe-
cimento em relação às consequências psicológicas e psicossociais
decorridas a partir do massacre, assim como dificuldade em com-
preender e lidar com as reações provocadas por tal acontecimento.

Considerações finais
A violência contra trabalhadores rurais sem terra constitui
estratégia política despotencializadora da luta pela terra na medida
que produz um conjunto de afetos negativos que configuram o
trauma psicossocial. Essa estratégia política se caracteriza por sua
longa duração e tem sido utilizada por longo período histórico, afe-
tando diversas gerações e mantendo o ciclo de reprodução do poder
e da dominação privada da terra a partir de interesses restritos que
excluem grandes parcelas da população ao uso produtivo e social
da terra.
Pudemos verificar que não tematizar o acontecimento
e não compartilhar o sofrimento decorrente fortalece a falta de
compreensão das verdadeiras causas do massacre, assim como o
desconhecimento em relação às suas possíveis consequências psi-
cológicas conduz a uma banalização das manifestações traumáti-
cas. Nessa perspectiva, é fundamental compreender o significado
que os trabalhadores atribuem ao massacre e trabalhar na expan-
são do conhecimento deles em relação ao ocorrido. Ao rememora-
rem o acontecimento, os sujeitos falam das emoções suscitadas no
momento do massacre e dos sentimentos conformados posterior-
mente, refletem sobre a questão da ocupação de terras e sobre a
220 | Psicologia e contextos rurais

falta de justiça. A intervenção psicossocial torna possível a análise


consciente da situação a partir de uma dimensão sócio-histórica: a
reflexão sobre a posição do trabalhador nesta sociedade.
Consideramos que o sofrimento e a traumatização não se
curam ou esvaecem com o tempo, eles têm que ser reelaborados
para que se interrompa. Deve haver transformações, tanto no sen-
tido político, para que a causa determinante e desencadeante ter-
mine seu ciclo violento, a saber, os próprios eventos violentos que
produzem traumatizações, quanto no sentido de reconstituir uma
sociedade violentada e livre das alienações a respeito dessa própria
violência, já que os afetos negativos produzidos nessas relações
bloqueiam o desenvolvimento das funções psíquicas superiores,
produzem nefastas e perversas experiências (des) humanas e têm
efeito transgeracional.
Compreendemos assim que a Psicologia pode intervir em
uma terapêutica comunitária a partir da produção de reflexões cujo
objetivo é ampliar a formação da consciência em relação ao fato
ocorrido e as suas consequências. Permitir que os trabalhadores
compreendam que o processo histórico de produção de violência
ultrapassa a experiência específica ocorrida ali.
Frente ao silenciamento, temos que desenvolver ações de
publicizar produções de narrativas, memórias e expressões diver-
sas (subjetivações) a partir das quais seja possível a quebra, a
ruptura, do silenciamento. Assim a vergonha pode ser convertida
em orgulho, o medo em coragem, o isolamento em socialização,
politização.
Desse modo, reverter o trauma psicossocial significa pro-
duzir consciência reflexiva e potencializar o agir. Esse deveria ser o
papel da Psicologia. A arte e a política são apontadas como cami-
nhos mediadores desses processos de transformações das dimen-
sões psicossociais que incluem as esferas do pensar, agir e sentir.
Psicologia e contextos rurais | 221

Referências
Agger, I. & Jensen, S. B. (1993). A potência humilhada: tortura sexual de presos
políticos de sexo masculino. Estratégias de destruição da potência
do homem. In H. Riquelme (Ed.). Era de névoas: Direitos humanos,
terrorismo de Estado e saúde psicossocial na América Latina. São
Paulo: EDUC.

Amati, S. (1993). Contribuições psicanalíticas ao conhecimento da violência


institucionalizada. In H. Riquelme (Ed.). Era de névoas: Direitos
humanos, terrorismo de Estado e saúde psicossocial na América Latina.
São Paulo: EDUC.

Becker, D. & Calderón, H. (1993). Traumatizações extremas, processos de


reparação social, crise política. In H. Riquelme (Ed.). Era de névoas:
Direitos humanos, terrorismo de Estado e saúde psicossocial na
América Latina. São Paulo: EDUC.

Coimbra, C. M. B. (2001, março). Reparação do Crime de Tortura. Trabalho


apresentado no seminário regional, quando do lançamento do “Guia
Para la Denuncia de Torturas” em sua versão espanhola, na cidade do
México. Recuperado em 3 janeiro 2011, de Banco de Textos do Programa
de Pós-graduação em Psicologia da UFF. <http://www.slab.uff.br/bd
txt lg.php?tp=t>.

Gaborit, M. (2009). Memória Histórica: reverter a história a partir das vítimas.


In R. Guzzo & F. Lacerda Junior. Psicologia Social para a América
Latina: o resgate da Psicologia da Libertação. Campinas: Alínea.

Martín-Baró, I. (1988). La violencia política y la guerra como causas en el


pais del trauma psicosocial en El Salvador. Revista de Psicología de El
Salvador, 28, abril-junio, 123-141.

Martín-Baró, I. (2000). Psicología social de la guerra. El Salvador: UCA.


222 | Psicologia e contextos rurais

Moreira, G. Seis anos de Impunidade. Cadê a justiça? Recuperado em 3 janeiro


2010, de http://www.mst.org.br.

Pederson, D. (2006). Reformulando a violência política e efeitos na saúde


mental: esboçando uma agenda de pesquisa e ação para a América
Latina e região do Caribe. Ciência e Saúde Coletiva, 11, p.1189-1198.

Riquelme, H. (1993). Era de névoas: Direitos humanos, terrorismo de Estado e


saúde psicossocial na América Latina. São Paulo: EDUC.

Sawaia, B. B. (2006). Novas veredas da Psicologia Social. São Paulo: EDUC;


Brasiliense.

Sawaia, B. B. (2009). Psicologia e desigualdade social: uma reflexão sobre


liberdade e tranformação social. Psicol. Soc. [online]. 2009, vol.21, n.3,
pp. 364-372.

Sawaia, B. B. (2011). As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da


desigualdade social. Petrópolis: Vozes.

Vidal, M. (1993). Igualdades e diferenças nos problemas psicopatológicos


ligados à repressão política. In H. Riquelme (Ed.). Era de névoas:
Direitos humanos, terrorismo de Estado e saúde psicossocial na
América Latina. São Paulo: EDUC.
Intervención psicosocial
junto a poblaciones
desplazadas por el conflicto
armado en Colombia
Omar Alejandro Bravo

Introducción

L a violencia política en Colombia, a diferencia de la mayoría


de los países de América Latina, se mantuvo de forma inin-
terrumpida, desde la propia formación del estado nacional. A pesar
de mantener ciclos más o menos definidos, vinculados a la apari-
ción y/o la salida de escena de los diferentes actores armados o al
reacomodo de relaciones entre los ya existentes, la resolución de
diferencias políticas y sociales a través de la vía armada ha sido una
constante en la historia del país (Melo, 1992).
Las poblaciones en situación de vulnerabilidad ven acre-
centada esa condición en función de esta realidad. La enorme can-
tidad de víctimas del conflicto, que se expresan en un significativo
224 | Psicologia e contextos rurais

número de muertos, desaparecidos y desplazados, se concentran


entre la población afrodescendiente, campesinos y pueblos indíge-
nas, principalmente. Al mismo tiempo, son los jóvenes y las muje-
res los principales grupos afectados, dentro de este cuadro general
anterior (García Sánchez, 2012).
Estas poblaciones sufren los efectos sociales y psicológicos
que se desprenden de esta situación, lo que exige la necesidad de
definir políticas de reparación de carácter psicosocial, que dimen-
sionen una amplia gama de demandas y necesidades.
En lo que hace a la población desplazada en particular, la
masividad y gravedad de los problemas vinculados a esta realidad
demanda intervenciones amplias que incluyan atender a la salud
mental de los afectados.
El propósito de este texto es discutir los alcances y propósi-
tos de estas intervenciones y, en lo que hace a los aspectos teóricos,
colocar en una cierta tensión el uso de la noción de comunidad y de
la dimensión psicosocial, premisas conceptuales estas que suelen
estar presentes en este tipo de estrategias. Esta necesidad surge de
la demanda puntual planteada por el Grupo de Acciones Públicas
(GAPI) de la universidad Icesi, que atiende a poblaciones desplaza-
das como consecuencia del conflicto armado en la ciudad de Cali,
Colombia, y se enmarca en una investigación en curso que trata
de los procesos de producción de memoria en familiares de vícti-
mas de desaparición forzada, teniendo a la victimología como eje
común para ambas cuestiones.

Las venas abiertas de Colombia


Intentando acotar de alguna manera la descripción de los
ciclos de violencia en Colombia, de forma de considerar los epi-
sodios principales que afectan y condicionan la situación actual,
cabe destacar el período denominado como La violencia, conside-
rado por muchos autores como una de las causas principales de la
Psicologia e contextos rurais | 225

situación política contemporánea (Pécaut, 2012). Este ciclo se ini-


cia en el año 1948, cerrándose de forma parcial en 1953, y tuvo como
disparador el asesinato de Gaitán, candidato liberal que intentaba
introducir reformas sociales y políticas en el país que perjudicaban
los intereses de los sectores sociales más poderosos.
Posterior a este crimen, se sucedieron acciones de asesinatos,
persecución y exterminio entre sectores liberales y conservadores
que provocaron alrededor de 200.000 muertes y el desplazamiento
de poblaciones campesinas que fueron colonizando regiones del
país poco habitadas. En este marco se crean grupos guerrilleros de
filiación liberal y de izquierda que se desmovilizan parcialmente
en el año 1953, producto de una amnistía ofrecida por el gobierno
(Molano, 1985).
El mantenimiento de las condiciones de inequidad social
y política hace que algunos grupos insurgentes continúen activos;
posteriormente, en los años 70’, surgirán los dos principales grupos
guerrilleros actuales: el Ejército de Liberación Nacional (ELN) y las
Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia (FARC). Otros gru-
pos guerrilleros aparecieron años más tarde, pero accedieron a pro-
cesos de paz que llevaron a su posterior desmovilización. Las FARC
y el ELN iniciaron, en varias oportunidades, negociaciones tendien-
tes a su desmovilización e inclusión en la vida política colombiana,
pero las mismas nunca llegaron a buen término. El exterminio del
movimiento político conocido como Unión Patriótica por partes de
agentes del Estado y paraestatales, que cobró más de 5000 muertes
entre los años 1984 y 1991, acabó con la principal iniciativa en ese
sentido (Palacios, 2008).
En los años 80`, junto a la consolidación de las guerrillas
aparece el narcotráfico como un nuevo actor social, económico y
armado. Teniendo como principal foco de tensión la disputa por
la tierra, los grupos narcotraficantes, junto con algunos gran-
des propietarios rurales y sectores del Estado, conforman grupos
226 | Psicologia e contextos rurais

paramilitares que rápidamente crecen en número y presencia en


varias regiones del país. Contrariamente a sus propósitos declara-
dos, estos grupos paramilitares no tienen como objetivo principal
combatir a la guerrilla, sino apropiarse de grandes concentraciones
de tierra, asesinando, desapareciendo o desplazando a sus propie-
tarios, y eliminar cualquier atisbo de oposición a estas acciones de
concentración económica, incluyendo aquí a sindicatos, organiza-
ciones sociales y de derechos humanos, principalmente.
Una vez cumplidos sus objetivos, estos grupos, organiza-
dos como Autodefensas Unidas de Colombia (AUC), ingresan a
un proceso de desmovilización en el marco de la denominada Ley
de Justicia y Paz, del año 2005 (Colombia, 2005). A pesar de que
los grandes bloques paramilitares y sus cabecillas se desmovilizan,
accediendo a generosos beneficios jurídicos y penales, el paramili-
tarismo se mantiene activo en forma de grupos más pequeños que
tienen el propósito de evitar los tímidos intentos de reparación a
las víctimas y de devolución de los bienes y propiedades sustraí-
dos. En la actualidad, estos actores armados conviven con los dos
grupos guerrilleros mencionados que, aunque disminuidos mili-
tarmente, mantienen presencia y capacidad bélica en amplios sec-
tores del país, y con las fuerzas del Estado, cuyas acciones atentan
con frecuencia contra la población civil y los derechos humanos en
general.
Producto de esta situación, se presenta en Colombia un
número elevado de víctimas que se expresa en cifras significativas y
alarmantes. En lo que hace a la población desplazada, la Consultoría
para los Derechos Humanos y el Desplazamiento (COHDES) señala
que entre los años 1985 y 2009 la cantidad de personas que debie-
ron abandonar su hogar y su trabajo por causa de la violencia fue de
aproximadamente 4.900.000 (COHDES, 2012).
El número de desaparecidos, registrada en un período simi-
lar de tiempo, es de aproximadamente 51.000 personas, según el
Psicologia e contextos rurais | 227

informe titulado “Rompiendo el silencio: en búsqueda de los desa-


parecidos en Colombia” (Working Group Education Found, 2012).
Por otra parte, el Centro de Educación y Educación Popular
(CINEP, 2010) indica que el número de asesinatos políticos regis-
trados en los últimos 20 años fue de 53016; la cantidad de secuestra-
dos fue de 35449, considerando el mismo lapso de tiempo.
Amnistía Internacional (2008) destaca que las víctimas per-
tenecen en su mayoría a las poblaciones en situación de vulnerabi-
lidad, principalmente indígenas, afrodescendientes y campesinos.
La Primera Conferencia Internacional sobre la
Indemnización a las víctimas Inocentes de Actos de Violencia,
ocurrida en la ciudad de los Angeles en 1968, trazó la línea funda-
mental de los derechos de las mismas y las obligaciones del Estado
frente a ellas. Entre otras recomendaciones, se destacó la necesidad
de compensar y reparar a las víctimas, exigencia esta que se amplió
en sucesivas disposiciones jurídicas internacionales.
La Asamblea General de las Naciones Unidas, en su reso-
lución 40/34, definió con claridad a las víctimas, así como destacó
la necesidad de establecer mecanismos judiciales y administrati-
vos que permitan efectivos procesos de reparación y justicia. Así
mismo, se incluyó la exigencia de prestar asistencia material, psico-
lógica, médica y social de forma amplia, a través de personal debi-
damente capacitado (Naciones Unidas, 1985).
De esta forma, se entiende por víctimas a

las personas que, individual o colectivamente, hayan


sufrido daños, inclusive lesiones físicas o mentales,
sufrimiento emocional, pérdida financiera o menoscabo
sustancial de sus derechos fundamentales, como conse-
cuencia de acciones u omisiones que no lleguen a consti-
tuir violaciones del derecho penal nacional, pero violen
normas internacionalmente reconocidas relativas a los
derechos humanos (Naciones Unidas, 1985).
228 | Psicologia e contextos rurais

Por otra parte, y en relación específica a las poblaciones des-


plazadas por la violencia, el Estatuto de Roma, al definir los crí-
menes a ser considerados como de lesa humanidad, destaca a la
deportación o el traslado forzoso, incluyendo aquí a “…la expulsión
de personas de la zona donde están presentes legítimamente sin
motivos autorizados por el derecho internacional, entendiéndose
aquí que la deportación supone cruzar fronteras nacionales y que el
traslado forzoso, no” (Corte Penal Internacional, 1985).

El amplio campo de la victimología


La victimología es un campo relativamente reciente, confi-
gurado en torno a una serie de discursos y prácticas diversas. Entre
otros motivos, esta visibilidad de la víctima y su incorporación
activa en los procesos judiciales se vio históricamente postergada
por la manera tradicional en que el derecho moderno ecuacio-
naba los conflictos, donde el Estado substituía a las víctimas en
el papel de agredido y disponía de los medios y las condiciones
para el enjuiciamiento y castigo del ofensor (Foucault, 1980). La
voz de la víctima, cuando escuchada, era en general considerada en
la producción de las pruebas necesarias para el juicio, estando así
su palabra acotada a una demanda específica y circunscripta a una
determinada etapa procesal.
Dussich & Anderson (2008) definen a la victimología como

el estudio de personas que son víctimas de crímenes y


otras acciones que causan sufrimiento; es el estudio de
los hechos de la victimización, cómo las agencias o los
aparatos del Estado responden en casos de victimización
y cómo ayudan a que la víctima se recupere física, finan-
ciera y emocionalmente (p. 17).

Los autores ofrecen tres razones básicas que justifican este


campo: una razón moral, basada en la pertinencia y necesidad de
Psicologia e contextos rurais | 229

ofrecer ayuda y protección a las personas victimizadas; razones


legales, basadas en el derecho penal y civil, principalmente; y razo-
nes científicas, dada la necesidad de explicar las conductas huma-
nas involucradas en esos hechos.
La victimología reconoce una seria diversa de antecedentes
históricos, situados en su mayoría en la Europa de los años 30 y 40.
Mendelsohn, abogado rumano, es considerado el primero en utili-
zar este término en el año 1940, en el marco del estudio realizado
a víctimas de violaciones en Rumania. En el año 1948, von Hentig
analiza la vulnerabilidad de determinadas personas y/o grupos,
por lo que Mendelsohn, pocos años después, propone que a par-
tir de este objeto de interés se constituya una nueva ciencia social
(Dussich & Anderson, 2008)
Durante los años 70, en Estados Unidos aumentan los pro-
gramas de atención a las víctimas que incluían, principalmente, la
restitución y la asistencia a las mismas. Las numerosas asociacio-
nes y grupos destinados a apoyar estas iniciativas permitieron que
la victimología se incorporase de forma creciente a los procesos y
las instituciones jurídicas, ampliándose también este campo por
la incorporación de psicólogos, psiquiatras, trabajadores sociales y
sociólogos.
Esta ampliación y consolidación de la victimología no está
exenta de polémicas, dadas las diferentes formas de entender el rol
de las víctimas. Como ya fue dicho, el lugar de las mismas en los
procesos judiciales estuvo tradicionalmente centrado en la necesi-
dad de rescatar su testimonio para la producción de pruebas. Más
tarde, los procesos de reparación permiten que estas voces cobren
otra visibilidad y alcances, abriéndose así una dimensión reivin-
dicatoria de los derechos vulnerados y los daños económicos, psi-
cológicos, morales, entre otros, ocasionados por la injuria sufrida,
colocándose por momentos en una cierta tensión con el Estado y la
administración de la justicia.
230 | Psicologia e contextos rurais

De esta forma, se colocan en discusión a los propios proce-


sos sociales y políticos que determinaron esos hechos, así como la
necesidad de establecer mecanismos de reparación que incluyan
procesos de verdad, reparación y justicia, con el fin de atender a
las demandas de las víctimas y evitar a futuro la repetición de esos
hechos. Por estos motivos, las voces y la participación de las mis-
mas no se reducen ya a dar respuesta puntual a las demandas de
juristas y peritos, limitando su representación a sus abogados.
El propio hecho de constituirse en un actor colectivo, no ya
individual, otorga otra dimensión a los hechos en cuestión y una
potencia política diferente a estos actores. Esto permite rescatar
del olvido y la impunidad a ciertos delitos que, fundamentalmente
cuando cometidos por agentes del Estado, enfrentaban serias difi-
cultades para su juzgamiento.
Por otra parte, el poder de los actores sociales responsa-
bles, directa o indirectamente por estos crímenes, hacía que con
frecuencia las propias víctimas fuesen colocadas en un lugar de
sospecha y rechazo, principalmente por motivos ideológicos. Más
aún, en determinados casos, y a partir de un cierto reconocimiento
social y poder político de los victimarios, los mismos podían rei-
vindicarse como víctimas que reaccionaron frente a una amenaza
u ofensa, diluyéndose así la diferencia entre víctima y victimario,
como sucede actualmente en Colombia con los autores de viola-
ciones masivas a los derechos humanos. (Girón & Cepeda, 2008).
Así mismo, según los mismos autores, los medios de
comunicación enfatizan la condena y visibilidad de los crímenes
cometidos por ciertos actores sociales (guerrilla y narcotráfico,
principalmente), siendo que, con frecuencia, “…se intenta ocultar,
minimizar o justificar las acciones perpetradas por agentes esta-
tales o paraestatales contra personas o grupos estigmatizados por
razones sociales, económicas o políticas” (Girón & Cepeda, 2008,
p. 83).
Psicologia e contextos rurais | 231

De esta forma, el lugar activo de las víctimas en los procesos


judiciales actuales coloca en cuestión la definición de la responsa-
bilidad de los victimarios, así como la de los espacios de expresión
de los perjudicados y del sentido y forma de las condenas emitidas.
Por estos motivos, la propia denominación de víctima se
pone en discusión, ya que, a pesar de que permite reconocer la
vivencia sufrida y su impacto, puede generar “…estigmatización,
vergüenza, culpa y una sobre identificación con la construcción
social que se hace de la víctima como una persona carente de recur-
sos y sin posibilidades de continuar su proyecto de vida, o como
alguien que deja de lado el lugar activo en su proceso personal.”
(Ospina, 2008, p. 130). Por ese motivo, esta autora reivindica el uso
de los términos afectados y afectadas, ya que poseen una menor
carga peyorativa.
En relación con estas dificultades destacadas, en el contexto
colombiano actual se intenta instalar una particular noción de repa-
ración que condiciona las posibilidades de una lectura apropiada
de los sucesos que produjeron el daño, ya que se parte del principio
de que los hechos juzgados han sido superados en lo que hace a la
situación social y política que los permitió y al poder de los actores
armados que la ejecutaron. La desmovilización de los grupos para-
militares responsables por la mayoría de los crímenes cometidos
contra la población civil en los últimos treinta años, como ya fue
comentado, no implicó la desaparición de este actor armado, dado
que la persecución a los defensores de derechos humanos, sindica-
listas y opositores políticos se ha mantenido.
En particular, esta violencia se ha dirigido en los últimos
años contra líderes e integrantes de colectivos de campesinos
que reclaman la devolución de sus propiedades, al amparo de
una ley reciente que habilita al reclamo y restitución de sus bie-
nes y a la reparación por los perjuicios sufridos (Colombia, 2012).
Estas propiedades han pasado en general por procesos jurídicos y
232 | Psicologia e contextos rurais

administrativos que dificultan estas acciones restitutivas, al haber


tenido las mismas varios propietarios, que en ocasiones las parce-
laron y dividieron, multiplicándose así los dueños de los terrenos
y estableciéndose una relación difusa entre los ocupantes actuales
y los apropiadores. Caso se consigan demostrar los derechos sobre
los bienes usurpados, la presión de los actores armados, como ya
fue mencionado, constituye el obstáculo último y principal para las
víctimas.
Los propietarios legítimos sufren también con frecuencia las
consecuencias del desplazamiento forzado, que implicó para ellos
una pérdida de capitales culturales y sociales (Flaschsland, 2003)2
más allá del perjuicio económico. De vivir en un medio campesino,
sujeto a varias carencias pero en general signado por condiciones
laborales y de relación social que implicaban para el sujeto una
relación directa con su identidad y dignidad, se pasó a subsistir en
condiciones de extrema precariedad, en asentamientos provisorios
e irregulares situados en la periferia de las grandes ciudades, donde
las formas de ganar el sustento pasan por eventuales y limitadas
ayudas oficiales, subempleos o directamente la mendicidad.
Así, “…los saberes y competencias, de gran riqueza en la vida
anterior, ante la imposibilidad de recontextualizarlos, empujan al
desempeño de oficios mal remunerados” (Afrodes, 2008, p. 27). De
esta forma, es posible observar en las esquinas de las principales
metrópolis del país, a familias enteras que se identifican como des-
plazados por la violencia y que solicitan apoyo económico por su
condición.
Por todo esto, Herrera Carassou (2006) considera que existe
una quiebra de personalidad de la persona que abandona su lugar
de existencia para incorporarse a un medio urbano en condicio-
nes de marginalidad, marginalidad esta que no es solo social sino

2 Estos capitales, en el análisis de Bourdieu, son los que permiten el ejercicio de


poder de los sujetos en un campo de acción social determinado.
Psicologia e contextos rurais | 233

también psicológica. Lira (2008), destaca los efectos devastadores


que esta situación provoca en los niños, que se manifiesta en irri-
tabilidad, angustia, miedos y ansiedad, entre otros síntomas. Así
mismo, “…las redes familiares y sociales próximas, que pueden dar-
les apoyo y contención, casi siempre se ven afectadas por la misma
situación.” (p. 73).
Los hijos de estos campesinos desplazados con frecuencia
deben entonces tramitar su adolescencia en estas condiciones de
vulnerabilidad, lo que los expone también a situaciones de violen-
cia urbana. Así mismo, la distancia de estos jóvenes con sus con-
diciones anteriores de existencia, hace que el retorno a su antigua
forma de vida y relación social encuentre un obstáculo adicional.
Quintero Mejía & Ramírez Giraldo (2009) encontraron
entre personas desplazadas lo que denominaron como síndrome
de amenaza, que implica una interrogación dolorosa sobre las cau-
sas de su situación actual y el reemplazo de los sentimientos de
simpatía y solidaridad por la sensación permanente de miedo. De
esta forma, “…los lazos de amistad que entrañan la estima de sí y
el reconocimiento del otro se derrumban y, con ello, se hunde la
esfera de la subjetividad ciudadana” (p. 54).
Esta sensación de amenaza contribuye a dificultar la trami-
tación de los sucesos traumáticos vividos. Sierra Uribe (2009) ana-
liza tres categorías de duelo presentes en población desplazada que
padece estas dificultades: el duelo suspendido, donde las tentati-
vas de construir lazos sociales en el nuevo lugar de vida se limitan
al interior de los grupos sociales que padecen de los mismos pro-
blemas, lo que complica elaborar ese duelo; el duelo cristalizado,
caracterizado por la negación del hecho y de la construcción de
planes para el futuro; y el duelo aplazado, donde una cierta urgen-
cia cotidiana exige que la persona se niegue a hablar de lo suce-
dido en función de atender a las necesidades básicas propias y de
su grupo familiar.
234 | Psicologia e contextos rurais

García Sánchez (2012) analiza los efectos particulares que el


desplazamiento genera en poblaciones afrodescendientes colom-
bianas. A la vulneración inicial de su condición de sujetos indivi-
duales y colectivos, motivadora de su salida obligada de su lugar
de existencia, se agregan los comportamientos y discursos racistas
y clasistas con que las instituciones responsables de velar por sus
derechos suelen exhibir.
Por todo esto, es oportuno relacionar esta condición de víc-
timas con procesos estructurales de violencia que, según Galtung
(1998), se expresan en tres dimensiones principales: la estructural,
que comprende a las inequidades sociales, económicas y políti-
cas; la violencia directa, que incluye a la agresión física, principal-
mente; y la cultural, que valida a las anteriores a través de discursos
y prácticas de carácter clasistas, machistas y/o xenofóbicos, entre
otros. Considerando esta dimensión en su amplitud y complejidad,
se pueden entender los procesos de victimización más allá de la
simple relación entre víctima y victimario, para poder enmarcarlos
en las dinámicas sociales y políticas de las que hacen parte.
Esto permite también disminuir los riegos de lo que
Germani (1971) considera como la subordinación de una cultura a
otra, definida como una asimilación, que contiene tres dimensio-
nes de análisis: la de adaptación, vinculada a las funciones que la
persona emigrada desempeña en su nuevo espacio social; el de la
participación, que refiere a la recepción que la comunidad le brinda
al sujeto; y la de aculturación, que tiene que ver con la adquisición
de modos de comportamiento propios del lugar donde habita.
En este sentido, el concepto de integración es superador
del anterior y ofrece subsidios apropiados para intervenciones de
carácter más amplias y efectivas. Esta noción de integración supone
un doble movimiento: de la persona hacia la comunidad y de la
comunidad hacia los sujetos y grupos afectados. Esto disminuye
los riesgos de que los sujetos deban asimilarse forzosamente a su
Psicologia e contextos rurais | 235

nuevo espacio social, resignando su cultura, costumbres y formas


de vínculo y, del lado de la comunidad, permite que la misma visu-
alice a estas poblaciones en una dimensión más amplia que la de
simples víctimas, objetos de piedad o sospecha, pero siempre un
“otro” ajeno y extranjero.
De esta forma, se puede evitar también los efectos del marco
jurídico actual que, según García Sánchez (2012), permite descon-
siderar la posibilidad de soluciones estructurales a estas problemá-
ticas, al otorgarle a los desplazados una condición de migrantes,
que pueden recomponer sus condiciones de vida a través de un
simple y temporal apoyo económico.

Sobre la dimensión psicosocial y comunitaria


de los procesos de reparación
Con suma frecuencia, a la hora de diseñar políticas dirigidas
a la reparación de víctimas, se invoca el término psicosocial que,
de tan repetido, se torna ilusoriamente obvio. Esa banalización del
término, que permite congregar una amplia gama de dispositivos
teóricos y prácticos, indica por esto la necesidad de colocarlo en
discusión. En el caso particular de las poblaciones desplazadas, los
efectos de esa condición y las formas de intervención derivadas,
es pertinente incluir en esta reflexión a la noción de trauma y la
dimensión comunitaria, igualmente mencionadas de manera habi-
tual frente a estas problemáticas.
La dimensión psicosocial significa una aproximación entre
dos campos que la ciencia, en la tradición moderna, se ocupó histó-
ricamente de separar en disciplinas, métodos y teorías específicos.
La psicología social, en sus varias vertientes, intentó colocar esta
separación en discusión, pero no llegó a definir un marco teórico
común, sufriendo también una sub-clasificación entre las denomi-
nadas psicología social psicológica y la psicología social sociológica,
236 | Psicologia e contextos rurais

dependiendo del énfasis otorgado a un lado u otro de la polaridad


externo – interno o social – subjetivo (Alvis Rizzo, 2009).
Lo psicosocial suele ser entendido, desde la intervención,
como una sumatoria de aspectos que deben incluir cuestiones psi-
cológicas, económicas y jurídicas. No obstante, estas tres dimen-
siones se consideran con frecuencia de forma aislada, siendo
entonces la intervención considerada de carácter integral en la
medida en que atienda a las mismas, cada una de forma particular
e independiente.
Ante problemáticas complejas, como las que plantea en
Colombia el desplazamiento forzado, este tipo de intervención
incluiría un espectro amplio de especialistas, donde unos aten-
derían los aspectos psicológicos (principalmente desde la noción
de trauma y su superación a través de su simbolización); otros se
ocuparían de los aspectos económicos, por medio de subsidios y
ayudas materiales y otros de la parte jurídica, por medio de la asis-
tencia legal a las víctimas.
En relación a esta cuestión particular del trauma, Laplanche
& Pontalis (1981) lo definen como un acontecimiento en la vida del
sujeto que se caracteriza por su intensidad, como por la incapa-
cidad del individuo de responder adecuadamente, observándose
un trastorno que provoca efectos patógenos en la organización psí-
quica del individuo.
Esta noción de trauma está inscripta en “…un paradigma
físico-energético particularmente relevante en la teoría psicoana-
lítica, que permite suponer que la simbolización de esa experien-
cia traumática operaría a manera de una descarga que permitiría
devolver el equilibrio al sistema.” (Bravo, 2011, p. 4).
Desde esta perspectiva, el trauma puede ser procesado
independientemente de las condiciones sociales en que se produjo
y reproduce, en la medida en que el sujeto pueda hablar del suceso
que lo motivó. No obstante, estos procesos de simbolización no
Psicologia e contextos rurais | 237

llegan a tener un efecto terapéutico si no se inscriben también en


un otro social que considere ese suceso traumático como parte de
un proceso histórico común, como parte de una memoria colectiva
que reconoce ese evento traumático como una agresión al cuerpo
social en su totalidad. Sin esto, no es posible su superación, inclu-
sive porque se mantienen las posibilidades de que dichos eventos
se repitan. De esta forma, el proceso terapéutico, reducido a una
dimensión intrapsíquica, apunta a producir la resignación frente a
la pérdida sufrida y no su superación.
Contra esta lógica, Martín Baró (2003) sitúa el trauma en
una dimensión psicosocial, definiéndolo como “…un daño particu-
lar infringido a una persona, a través de una circunstancia excep-
cional. El trauma social es la huella que ciertos procesos históricos
pueden dejar en poblaciones enteras afectadas. El trauma psicoso-
cial es producido socialmente.” (p. 261).
De esta manera, se considera al trauma desde tres aspectos
principales: su carácter dialéctico, en tanto inserto en un sistema
de relaciones sociales; la necesidad de atender a las causas socia-
les que lo generaron, y la suposición de que, si se mantienen las
condiciones sociales que lo produjeron, se conservará su potencial
patogénico.
Por este motivo, Alvis Rizzo (2009) destaca la necesidad de
que las intervenciones psicosociales sitúen lo asistencial y lo eco-
nómico como parte de una dimensión psicosocial amplia, en tanto
operan como una reparación posible al daño sufrido por el sujeto y
suponen un reconocimiento social del daño sufrido, que tiene efec-
tos subjetivos.
De esta forma, las dimensiones psicológica y social mostra-
rían dos lados de una misma realidad que se relacionan de forma
dialéctica, siendo inseparables la una de la otra. Así, la reparación
económica y el apoyo legal a las víctimas tendrían efectos reparato-
rios también en lo psíquico, en la medida en que se inscriban en un
238 | Psicologia e contextos rurais

marco de relaciones signado por el respeto a los sujetos y poblacio-


nes objeto de las mismas, en lo que hace a su derecho a ser consi-
derados como actores con capacidad de opinión y decisión en estos
procesos y estén insertas en políticas más amplias que atiendan a
las condiciones estructurales que generaron esa situación inicial.
Esta comunidad de objetivos e intereses, que permiten la
movilización y participación de los afectados por estas problemá-
ticas, no se produce de forma simple, por la mera existencia de
problemas comunes. Bauman (2006) considera que las personas
sometidas a condiciones de existencia signadas por el temor, la vio-
lencia y la falta de relaciones amplias y solidarias, tienen pocas con-
diciones de desarrollar vínculos comunitarios, entendiendo que
los mismos suponen lazos sociales fraternos y significan una cierta
comunidad de deseos y proyectos en el grupo que los sostienen.
En un sentido similar, Sartre (2004) diferencia entre series y
grupos, siendo las primeras meras agrupaciones de personas sin un
propósito común y estando los segundos definidos por un sentido
colectivo de pertenencia y acción. El paso de la serie al grupo se
produce en la medida en que se creen esas condiciones colectivas,
existiendo siempre la posibilidad de retornar a la situación anterior.
Considerando esta dimensión relacional de manera diná-
mica y compleja, Montero (2008) define a la comunidad como
“…un grupo en constante transformación y evolución que en su
interrelación genera un sentido de pertenencia e identidad social,
tomando sus integrantes conciencia de sí como grupo, y fortaleci-
éndose como unidad y potencialidad social. (p. 207).
Duque Daza (2010), diferencia la noción de comunidad
pre-moderna, caracterizada como idílica y donde las diferen-
cias sociales y conflictos parecen no existir, de las que denomina
comunidades de sentido, no definidas por algún carácter territorial
común sino por los intereses, identidades y nociones colectivas de
Psicologia e contextos rurais | 239

pertenencia. La actitud de resistencia frente a una amenaza externa


sirve para consolidar esas características grupales.
La noción de lo comunitario, entonces, está vinculada a
una identidad colectiva que define y permite cierto tipo de lazos
sociales caracterizados por vínculos solidarios y fraternos. Esta
identidad colectiva no significa negar o relegar la singularidad de
cada uno de sus integrantes; por el contrario, ofrece posibilidades
más amplias de que esas dimensiones subjetivas se desplieguen de
manera más amplia, permitiendo así que los sujetos puedan movi-
lizar sus deseos y demandas.
A partir de estos principios mencionados, es posible pensar
un concepto de salud mental que no se limite al ámbito tradicio-
nal de la práctica clínica individual entendiendo que, así como los
padecimientos psíquicos se producen en la relación social, es tam-
bién en los lazos sociales comunitarios donde existen elementos
reparatorios y preventivos para estos malestares. De esta forma, las
intervenciones dejan de ser patrimonio exclusivo de los profesiona-
les, siendo también la propia comunidad una voz autorizada en lo
que hace a la planificación, sentido y desarrollo de las actividades.
En definitiva, una intervención de carácter psicosocial, en
este caso dirigida a víctimas del conflicto armado en Colombia y
en particular a grupos y personas desplazadas de su lugar de ori-
gen, debe respetar ciertos presupuestos básicos, de alguna forma
ya enumerados pero que cabe reiterar aquí a manera de conclusión.
En primer lugar, respetar el lugar de las víctimas como suje-
tos activos en estos procesos de reparación y justicia, acción esta
que también tiene que ver con la salud mental de los afectados, que
de esta manera ven reconocidas su condición de ciudadanos y se
evita las denominaciones posibles de sospechosos o de incapaces
sociales, mero objetos de piedad y conmiseración.
Así mismo, es preciso que se produzcan procesos de cons-
trucciones de memoria individuales y colectivas que permitan
240 | Psicologia e contextos rurais

resignificar las causas estructurales de la violencia sufrida y el


carácter colectivo de los daños.
Las intervenciones deben tener un carácter amplio, consi-
derando que las varias modalidades de las mismas (jurídicas, eco-
nómicas, de salud mental, entre otras) hacen parte de un mismo
proceso, siendo que cada una influye en las otras y convergen en un
propósito común de rescate de la ciudadanía y la dignidad de las
personas afectadas.
El principio de integración, que supone un doble movi-
miento de la comunidad hacia los afectados y de ellos hacia la
comunidad, debe imponerse a la tradicional noción de reinserción
o reintegración, basadas en general en el desconocimiento de las
particularidades, demandas y deseos de ambos actores sociales.
Por último, es necesario que todos estos procesos manten-
gan una lectura abarcadora y crítica de las razones profundas, his-
tóricas y socio-económicas, de los hechos sucedidos, de manera de
impulsar procesos políticos que impidan su repetición.

Referencias
Afrodes, Asociación Colombiana de Afrodescendientes Desplazados
(2008). Política pública con enfoque diferencial para la población
afrocolombiana en situaciones de desplazamiento forzado o
confinamiento. Propuestas para la construcción. Bogotá, CNOA,
Conferencia Nacional de Organizaciones Afrocolombianas; ORCONE,
Organización de Comunidades Negras; ACNUR.

Alvis Rizzo, A. (2009). Aproximación teórica a la intervención psicosocial.


Revista electrónica de Psicología Social Poiesis. N. 17, junio 2009.

Amnistía Internacional (2008). ¡Déjennos en paz¡ La población civil


víctima del conflicto armado interno de Colombia. Madrid: Amnistía
Internacional.
Psicologia e contextos rurais | 241

Bauman, Z. (2006). Comunidad. En busca de seguridad en un mundo hostil.


Madrid. Siglo XXI.

Bravo, O. (2011). Trauma, memoria, justicia y reparación. Revista electrónica


de Psicología Social Poiesis. N 22, dic 2011.

Centro de Investigación y Educación Popular – Programa por la paz (CINEP)


(2010). Una vieja guerra en un nuevo contexto. Conflicto y territorio en
el suroccidente colombiano Bogotá: CINEP).

Consultoría para los Derechos Humanos y el Desplazamiento (COHDES)


(2012). Recuperado el 14 de noviembre del 2012, de www.cohdes.com.

Colombia (2005). Ley 975 - Por la cual se dictan disposiciones para la


reincorporación de miembros de grupos armados organizados al
margen de la ley, que contribuyan de manera efectiva a la consecución
de la paz nacional y se dictan otras disposiciones para acuerdos
humanitarios.

Colombia (2012). Ley 1448. Ley de Víctimas y de Restitución de Tierras.


Recuperado el 20 de noviembre del 2012, de www.congresovisible.org.

Corte Penal Internacional (1985). Estatuto de Roma para la Corte Penal


Internacional. Recuperado el 24 de noviembre del 2012, de www.
derechos.net.

Duque Daza, J. (2010). Saberes aplicados, comunidades y acción colectiva, una


introducción al trabajo comunitario. Cali: Universidad del Valle.

Dussich, J. y Anderson, A. (2008). Historia de la victimología. En: López López,


W. y Otros. (eds.) (2008) Victimología. Aproximación psicosocial a las
víctimas. Bogotá: Pontifica Universidad Javeriana.

Flaschsland, C. (2003). Pierre Bourdieu y el capital simbólico. Buenos Aires:


Campo de ideas.
242 | Psicologia e contextos rurais

Foucault, M. (1980). La verdad y las formas jurídicas. Barcelona: Gedisa.

Galtung, J. (1998). Tras la violencia, 3R: Reconstrucción, reconciliación,


resolución. Afrontando los efectos visibles e invisibles de la guerra y la
violencia. España: Guernika.

García Sánchez, A. (2012). Espacialidades del destierro y la re-existencia.


Afrodescendientes desterrados en Medellín. Colombia. Medellín: La
Carreta.

Germani, G. (1971). Sociología de la modernización. Buenos Aires: Paidós.

Girón, C. & Cepeda, I. (2008). Las organizaciones de víctimas como actores


sociales. En: López López, W. y Otros. (eds.) (2008) Victimología.
Aproximación psicosocial a las víctimas. Bogotá: Pontifica Universidad
Javeriana.

Herrera Carassou, R. (2006) La perspectiva teórica en el estudio de las


migraciones. México: Siglo XXI.

Laplanche, J. & Pontalis, J. (1981). Diccionario de Psicoanálisis. Barcelona:


Labor.

Naciones Unidas (1985). Declaración sobre los Principios Fundamentales de


Justicia para las Víctimas de Delito y del Abuso de Poder. Recuperado el
8 de noviembre del 2012, de www.un.org.

Lira, E. (2008). Desaparición, consecuencias psicológicas y efectos traumáticos


de la ausencia ante la incertidumbre prolongada por el destino del
ausente. En: López López, W. y Otros. (eds.) (2008) Victimología.
Aproximación psicosocial a las víctimas. Bogotá: Pontifica Universidad
Javeriana.

López López, W. y Otros. (eds.) (2008). Victimología. Aproximación


psicosocial a las víctimas. Bogotá: Pontifica Universidad Javeriana.
Psicologia e contextos rurais | 243

Martín-Baró, I (2003) Poder, ideología y violencia. Madrid: Trotta.

Melo, J. (1992). Predecir el pasado: ensayos de historia de Colombia, Bogotá:


Fundación Simón y Lola Guberek.

Molano. A. (1985). Los Años del Tropel: Relatos sobre la Violencia. Bogotá:
Editorial Presencia.

Montero, M. (2008). Introducción a la psicología comunitaria. Desarrollo,


conceptos y procesos. Buenos Aires: Paidós.

Palacios, I. (2008). Memoria narrada, narración de una historia: el genocidio


político contra la Unión Patriótica. Bogotá: Universidad Nacional de
Colombia.

Pécaut, D. (2012). Orden y violencia. Colombia 1930-1953. Bogotá: EAFIT.

Quintero Mejía, M. & Ramírez Giraldo, J. (2009). Narraciones, memoria y


ciudadanía. Desplazamiento forzado. Bogotá: Universidad Distrital
Francisco José de Caldas.

Sartre, J. (2004). Crítica de la razón dialéctica. Precedida de cuestiones de


método. Buenos Aires: Losada.

Sierra Uribe, G. (2009). Los dolores de la guerra. Perspectiva terapéutica y


procesos de duelo. En: Ibañez, J. (org.) Los dolores de la guerra. Bogotá:
Universidad Piloto de Colombia.

Working Group Education Found (2010). Rompiendo el silencio: en búsqueda


de los desaparecidos en Colombia. Recuperado el 13 de noviembre del
2012, de www.law.org.com.
Construindo barragens e
masculinidades: pesquisa
em Psicologia Social em
um canteiro de obras
de uma hidroelétrica na
fronteira do RS-SC
Priscila Pavan Detoni
Henrique Caetano Nardi

Introdução

N este capítulo exploramos a experiência do trabalho de


campo1 em um canteiro de obras na fronteira entre os esta-
dos do Rio Grande do Sul e Santa Catarina no Sul durante dois anos.

1 O trabalho de pesquisa de campo foi realizado para a produção da dissertação


de mestrado em Psicologia Social e Institucional na Universidade Federal do
Rio Grande do Sul pela primeira autora (Detoni, 2010), orientada pelo segundo
autor. Esse texto reelabora elementos da pesquisa de campo e se construiu na
busca de pensar a especificidades da pesquisa neste contexto.
246 | Psicologia e contextos rurais

Buscaremos, aqui, descrever e analisar a construção das masculi-


nidades de uma população nômade que ocupou uma cidade tem-
porária para a construção de uma usina hidrelétrica. Esta pesquisa
embasou-se nas teorizações de Michel Foucault e Judith Butler. A
metodologia foi guiada pela abordagem etnográfica e pela análise
das formações discursivas que sustentavam os modelos de mascu-
linidades construídas pelo e no trabalho e na relação com as carac-
terísticas nômades desse grupo de trabalhadores. O corpus foi
constituído basicamente por observações de campo e entrevistas.
Descrevemos ao longo do estudo como são construídas subjetivi-
dades marcadas por uma hierarquia do masculino em um contexto
caracterizado por uma homossociabilidade heteronormativa.
Nosso trabalho buscou reconstituir o processo de instalação
do canteiro de obras desde a mobilização para a vinda e instalação
desses trabalhadores, passando pela organização da cidade tempo-
rária até o movimento de desmobilização/desmontagem e migra-
ção para outro local. O processo de mobilização/desmobilização
remete para a chegada e saída dos trabalhadores, o que implica em
deslocamentos entre uma obra e outra e a subsequente composição
de uma cidade temporária e de uma população específica. O des-
colamento geográfico e demográfico, nesse caso, se configurou na
construção de um canteiro de obras em antigas propriedades rurais
de pequeno porte na área de várzea no entorno da construção da
represa em questão.
Acreditamos ser necessário pontuar os deslocamentos da
própria pesquisa em descrever, analisar o percurso feito pelas esco-
lhas de operadores, relatos e observações no campo da Psicologia
Social, entendo os sujeitos como produtos de determinadas cons-
truções sociais. Este estudo permitiu conhecer melhor os aspec-
tos particulares dos processos de construção das masculinidades,
tomando como linha de análise as condições de possibilidades para
as experiências de si em uma cidade de homens, na qual são rei-
teradas e/ou alteradas as balizas para sua constituição enquanto
Psicologia e contextos rurais | 247

sujeitos produzidos numa experiência localizada, histórica e assu-


mindo a denominação de “barrageiros” em razão da migração labo-
ral para construção de barragens.

Barrageiros/ migrantes/
itinerantes: vida e trabalho

Quem não é um acaso na vida?


(Lispector, 1998, p. 18)2

Quem habita um canteiro de obras de uma usina hidrelé-


trica? De que forma? Essas são questões centrais tanto para os/as
trabalhadores/as quanto para os/as visitantes que chegam a um
canteiro de obras. Desde o primeiro contato indagamos sobre as
histórias de vida de quem participa dessa construção. Essas pessoas
não são só meros frutos do acaso, mas de um contexto de vida e
de trabalho marcado por uma fusão de migrantes e locais. Embora
existam semelhanças nas trajetórias dessa gente que segue as bar-
ragens, ao realizar a análise, nos demos conta do risco de falar das
trajetórias de uma forma homogênea, o que poderia mutilar a com-
plexidade de trajetórias singulares. Como forma de lidar com esse
risco, buscaremos sempre que possível apontar para a diversidade
de composição do grupo de trabalhadores, pensando em todos os
sujeitos que compuseram o campo durante as observações.
A precarização das condições de vida e a necessidade de tra-
balhar faz com que famílias inteiras tomem um movimento itine-
rante de migração dentro do setor hidrelétrico (Duarte, 2009), o que

2 Essa questão é do livro A hora da estrela, que traça a história da personagem


central – Macabeia – uma nordestina que vem para o Rio de Janeiro em busca
de oportunidades. Utilizamos a frase para fazer alusão ao deslocamento desses
homens, pois a maioria deles é fruto de acasos e da produção de descasos que
fazem como que partam do Nordeste do Brasil.
248 | Psicologia e contextos rurais

foi chamado pelos trabalhadores de “Seguir barragem”. Finda uma


obra, eles seguem para outra. Esse nomadismo está intimamente
associado ao cenário social, econômico e político que molda a cena
brasileira e internacional3 e que marca as relações de trabalho.
O espaço de trabalho dentro do canteiro de obras se instalou
na forma de uma cidade temporária, a qual contava com estrutura
semelhante à de uma cidade pequena com mercado, transporte,
serviços de saneamento e saúde. Nesta pesquisa o canteiro de obras
foi composto por cerca de 2.000 homens alojados, totalizando
3.500 trabalhadores/as diretos/as, e 5.000 indiretos/as que iam e
vinham diariamente de ônibus das regiões próximas, sendo que o
trabalho era ininterrupto e dividido em três turnos de oito horas.
O número de trabalhadores/as variou no período de nossa pes-
quisa de campo conforme as demandas de trabalho da construção
da hidrelétrica. Os homens representavam 90% do contingente de
trabalho, somente 10% eram mulheres e destas somente 12 ficavam
nos alojamentos internos, todas as outras moravam nas cidades
vizinhas.
Boa parte desses trabalhadores foi trazida por meio de
ônibus agenciados por um recrutador da construtora na região
Nordeste do Brasil ou através do SINE (Sistema Nacional de
Empregos), em especial dos estados do Piauí e do Maranhão, onde
o nível de desemprego e as condições socioeconômicas impulsio-
navam a busca de sustento em outras regiões. Isso explica porque
os nordestinos representavam 60% do total dos trabalhadores/as
dessa obra, mesmo ela estando localizada na região Sul do Brasil,
no oeste de Santa Catarina, fronteira com o Rio Grande do Sul. A
lógica que orientava o recrutamento da construtora, de acordo com
nossas entrevistas, se sustentava na ideia de que os nordestinos

3 As grandes empresas de construção civil brasileiras partilham as concorrências


nacionais e internacionais e contam com um plantel de trabalhadores nômades
que seguem essas obras no Brasil e no exterior.
Psicologia e contextos rurais | 249

procuravam e permaneciam nesse tipo de trabalho pesado porque


“aguentavam mais”, por trazerem em sua história de vida uma série
de dificuldades que faziam com que fossem mais resistentes. As
falas dos/as recrutadores/as assim como dos trabalhadores, de que
mesmo quem trabalha nas roças do Sul muitas vezes não conse-
gue aguentar o trabalho duro da maioria das atividades realizadas
em uma construção como essa, reforçam a ideia. Não se trata aqui
de emitir juízo de valor sobre essas afirmações que reforçam este-
reótipos e disputas regionais, mas sim de apontar para a maneira
como as masculinidades se constroem também a partir das inser-
ções regionais e que são essas divisões/hierarquias que vão orga-
nizar inclusive a distribuição dos trabalhadores nos alojamentos.
Suportar o trabalho duro é um atributo ligado à virilidade, tanto
que os trabalhadores são denominados no masculino, como barra-
geiros. Assim, essa resistência maior ao trabalho duro – atribuída
aos nordestinos – também entra como um elemento importante na
construção das hierarquias das masculinidades nesse contexto de
trabalho específico.
Ocupar um lugar itinerante, principalmente do ponto
de vista dos locais (dos sedentários) se configurava numa posi-
ção “marginal” e carregava um sentido pejorativo, a interpelação
“os barrageiros” por parte dos/as habitantes das cidades vizinhas
comportava uma carga moral de desvalorização e desconfiança. Se
por um lado, os trabalhadores aceitavam a designação barrageiros,
por outro, a tratavam com deboche, como forma de rechaçar os
estigmas colados a essa insígnia e de atenuar/transformar o sen-
tido pejorativo que os identificava naquele lugar. Duarte (2009),
ao utilizar a denominação “trabalhadores migrantes”, pontua que
as relações estabelecidas com o local das obras e os grupos que as
compõem necessitam incorporar os efeitos das mudanças cons-
tantes e organizar de forma material e imaterial, principalmente
na relação com seus locais de origem, suas famílias e seu traba-
lho. As pesquisas com populações migrantes, como é o caso dos
250 | Psicologia e contextos rurais

barrageiros, implicam em acompanhar as dinâmicas próprias das


trajetórias de vida nas suas conexões com as comunidades que se
constroem e descontroem continuamente, adicionando um fluxo
distinto da pesquisa se comparada com a pesquisa com populações
sedentárias.
A denominação êmica “barrageiros” carrega um caráter per-
formático (Butler, 1993, 1997), uma vez que os constrói como sujei-
tos trabalhadores amalgamando um conjunto de estigmas em torno
desses trabalhadores e que é incorporada por eles de forma parado-
xal, pois implica também em estratégias de construção de si a partir
de um processo de reversão do estigma. Essa nominação não só se
refere às características do trabalho na obra, mas também à insta-
bilidade da sua condição de vida marcada pelo trabalho pesado/
braçal e o suposto não compromisso e cuidado com o lugar que
temporariamente habitam porque estariam sempre em trânsito. O
peso da nominação era evidente nos relatos, pois quando na região
próxima à obra acontecia algum ato de vandalismo e/ou violên-
cia, os moradores locais atribuíam toda desordem aos barrageiros.
Tudo que acontece supostamente de ruim eles (os próprios traba-
lhadores) se olhavam e diziam rindo: “Quem fez isto? Os barragei-
ros! Foi os barrageiros, por que é sempre os barrageiros. Só pode ter
sido um daqueles barrageiros” (Diário de campo). As atribuições
negativas contidas na designação desses trabalhadores fazem com
que eles assumam a defesa dos outros perante pessoas que não são
de seu grupo e até ironizem essa condição estigmatizada.
Um dos efeitos dessa partilha entre nômades e sedentários
se evidenciava na dificuldade de acesso deles às Unidades Básicas
de Saúde do Sistema Único de Saúde (SUS) dos municípios locais
e no recebimento de medicamentos e preservativos. Esse processo
de exclusão era decorrente de um entendimento equivocado da
chamada “adscrição territorial e regionalização” do SUS, que teria
como prioridade a população local e não a itinerante. Tudo isso
convergia para aumentar a vulnerabilidade do ser “barrageiro”/
Psicologia e contextos rurais | 251

migrante/itinerante, pois eles já ocupavam a posição de margem no


contexto da população local. Afinal, sua origem não era de nenhum
dos municípios do contorno da obra e esses corpos/essas vidas eram
tratados/as como passageiros/as, pois seu destino era “seguir bar-
ragem”. No de formulação de políticas de saúde, escolhe-se quem
deve ser privilegiado com a atenção à saúde e à segurança. Segundo
Foucault (2002), os poderes reguladores operam uma oposição
entre o corpo social/burocracia de Estado, perpassando a socie-
dade e reinstalando discursos biológicos/racistas. Nesse contexto,
os barrageiros, ao mesmo tempo que eram úteis enquanto força de
trabalho, não tinham a legitimidade plena de cidadania perante o
Estado por não estarem situados dentro de um lugar circunscrito.
Seriam, então, necessárias políticas públicas que dessem
maior ênfase às populações itinerantes? Ou poderia se conside-
rar os barrageiros como uma “população especial” como algumas
minorias que reivindicam seus direitos (como as minorias raciais
e/ou sexuais)? Ou rever a própria noção de adscrição de território?
O que afinal caracteriza essa população? Como se organiza o traba-
lho? Quais suas necessidades específicas?
Conforme algumas histórias de seguidores/as de barragens,
quando uma pessoa da família vem trabalhar dentro do canteiro de
obras, logo traz e indica conhecidos e parentes. Independentemente
de serem profissionais com formação específica ou não, a maioria
deles recebe formação profissional de forma informal e/ou regula-
mentada no canteiro de obras. Essa formação se relaciona com as
hierarquias entre os trabalhadores: eles começam como ajudantes,
depois passam a ocupar o lugar de pedreiros e, com alguns anos
de experiência, se tornam mestres de obra responsáveis por uma
equipe de trabalho, o que faz com que tenham um papel decisivo
na escolha das pessoas com quem trabalham. Esse aspecto da orga-
nização do trabalho aponta para uma relação intrínseca entre os
relacionamentos pessoais e as relações de trabalho. Assim, os que
ingressam na obra geralmente são designados peões, que ficam
252 | Psicologia e contextos rurais

sob a chefia de um encarregado e este, por sua vez, é coordenado


por um supervisor que geralmente possui conhecimentos técnicos
específicos de cada função. Os peões recebem seu pagamento con-
forme as horas trabalhadas – por isso são chamados horistas – e
ficam nos alojamentos a eles destinados, onde dividem um quarto
e dois banheiros entre seis homens. Os encarregados e os traba-
lhadores que lidam com maquinário mais específico (operadores)
geralmente recebem por mês e têm privilégios nos alojamentos,
sendo que cada quarto e banheiro comportam duas pessoas. Os
encarregados, por causa da sua posição, podem ser chamados fora
do seu horário de trabalho para tomar uma decisão ou resolver
algum problema em relação à equipe ou às atividades, precisando
assim estar alertas ao que acontece durante as vinte e quatro horas
de funcionamento da obra. A maioria dos encarregados e supervi-
sores já passou pelo lugar de peão, indicando assim a forma como
essa itinerância pode se tornar uma forma de vida que se desenha
durante toda a trajetória profissional de alguns trabalhadores.
Ao pensarmos nas relações de poder nesse contexto de tra-
balho a partir de Foucault (2007), há necessidade de colocar em
suspensão a relação fixa “dominante-dominado”, pois não dá conta
de explicar as características que separam os homens nessa cidade.
Nem mesmo existe uma diferença salarial significativa entre peões
e encarregados, não obstante o fato de ser encarregado preconizar
uma estabilidade maior no percurso de seguir essas obras. A renda
derivada do trabalho, no período da pesquisa, costumava se situar
entre 850 a 2.000 reais conforme a periculosidade da função e dos
riscos a que se submetem, bem como das horas extras que faziam
e da escolaridade que possuíam. Muitos trabalhadores não traziam
sua documentação quando se instalavam no canteiro de obras e a
maioria não tinha registro/comprovação da escolaridade. Em razão
dessa ausência de documentação – que se constituía em outra
característica desse nomadismo – eles prestavam uma prova, uma
testagem padrão, a partir da qual costumava ser avaliado o nível de
Psicologia e contextos rurais | 253

escolaridade. Para incrementar a escolaridade eram oferecidos os


cursos da Educação de Jovens e Adultos – EJA – na obra. Esse enca-
minhamento era feito pelo setor de Psicologia dentro do canteiro
de obras, uma vez que existia a exigência de níveis de escolaridade
mínimos4 para o desempenho de cada função, por exemplo, para
exercer a função de encarregado é necessário ter o ensino médio.
Quando a escolaridade não é suficiente eles acabavam executando
funções auxiliares. Nestes últimos anos ocorreu nessa obra o fato
ter mais vagas do que candidatos no ramo da construção civil para
realizar a parte “bruta” da construção mostrando, possivelmente,
uma mudança das características da força de trabalho. Não falta-
vam supervisores que tivessem escolaridade e soubessem lidar com
as questões de engenharia na obra, mas faltavam peões para execu-
tar as tarefas mais braçais.
Durante a realização da pesquisa foram entrevistados 15
trabalhadores. Todos eles estavam alojados no canteiro de obras,
tinham idades entre 22 e 56 anos, o que demarcava a diferença
de gerações, além da experiência de 1 a 30 anos em canteiros de
obras; e possuíam um tempo de alojamento na obra que variava
de 4 meses até 3 anos (no momento das entrevistas a obra tinha
começado há 3 anos e seria concluída dentro de mais 2 anos). A
maioria dos entrevistados era casada e possuía uma família que
morava em outro local. Foram entrevistados: 3 trabalhadores do
Maranhão, 3 da Bahia, 3 do Paraná, 2 do Piauí, 2 de Santa Catarina,
1 do Rio Grande do Sul e 1 de São Paulo. Todos foram acessados por
meio da escola: 2 deles estavam no processo de alfabetização ofere-
cido pela escola do EJA, 6 frequentavam o Ensino Fundamental e 7

4 A escolaridade mínima exigida para todos os cargos é que se tivesse completado


a 2ª série do Ensino Fundamental, ou seja, que os/as trabalhadores/as soubes-
sem ler para identificar as instruções e as indicações dentro do canteiro de obra.
Contudo, muitos trabalhadores não eram alfabetizados, então, eles assinavam
um termo de compromisso se responsabilizando em estudar para manter o
emprego.
254 | Psicologia e contextos rurais

frequentavam o Ensino Médio. A continuidade da escolarização era


valorizada pela possibilidade de mudança de cargo e salário.
A especificidade da pesquisa, em contexto não tipicamente
urbano e com população itinerantes não deixa de ressaltar a função
do Estado no controle da população. Para que a cidade temporária
pudesse se instalar, como os endereços não são fixos, a exigência de
ter documentos se tornava mais importante no esquadrinhamento
e direção da conduta da população. Na obra e no contexto das
sociedades nacionais modernas, só podemos existir, só somos con-
siderados cidadãos e cidadãs, como apontam os estudos de Butler
(1997, 2003, 2004, 2009) e Foucault (1988, 2006), ao sermos inter-
pelados pela lei. A primeira interpelação é a exigência da certidão
de nascimento, pois precisamos ter um nome, já designado como
feminino ou masculino. Em segundo lugar, ter uma naturalidade
(um local de nascimento). Em terceiro, ter uma atividade profissio-
nal. Esses componentes se inscrevem na identidade, no Cadastro
de Pessoa Física (CPF no nosso País) e na carteira de trabalho. Mas
para trabalhar, faz-se necessário comprovar conhecimentos através
da escolaridade, sem contar uma série de documentos que eram
produzidos pelas avaliações5 feitas na entrada desses trabalhado-
res nesse canteiro de obras. Os documentos conferiam a eles um
lugar de sujeito, da mesma forma como os blocos e os quartos dos
alojados também possuiam números, bem como os crachás iden-
tificatórios utilizados no canteiro de obras. A seguir analisaremos
os relatos e as observações buscando identificar as especificidades
dessa população, sobretudo, como a hierarquia das masculinidades
se constituiu nessa cidade de homens nômades.

5 Para entrada no canteiro de obras são realizadas avaliações médica, psicológica


e técnica.
Psicologia e contextos rurais | 255

Composição da pesquisa – blocos de


concreto, vigas e compensados
Toda obra de uma usina hidrelétrica passa por processos de
modificações/(des)construções através de escavações, explosões
de rochas, abertura de estradas, alagamento de áreas. Ao mesmo
tempo, vai-se estruturando uma construção, não só civil, mas
humana. Os homens trabalhadores que se encontram nesse espaço
vão construindo as formas como performam as masculinidades, as
quais trazem na sua composição uma série de elementos que são
edificados pelas formas como eles exercem a profissão, a sexuali-
dade, se relacionam com o próprio corpo, com os colegas de tra-
balho e de alojamento e com a paternidade, entre outros aspectos.
Pensar como se dão as construções das masculinidades
dentro dos jogos de verdade de uma determinada época e local
implica inicialmente em definir o que entendemos por gênero.
Judith Butler (1997) entende gênero como algo que performamos
em um contexto social marcado por relações de poder específicas,
pois para nos tornarmos inteligíveis devemos emergir como sujei-
tos generificados. E para cada gênero, atributos são designados/
constituídos de/pela cultura, os quais, apesar de serem sugeridos
ou impostos pelo regramento de gênero, também são contestados e
reinventados no interior dos jogos de poder e verdade que marcam
cada contexto específico. Assim, partimos do pressuposto de que
as masculinidades são construídas e sujeitas às relações de poder
no interior das quais emergem. Nesta análise fizemos uma esco-
lha teórica baseada nos estudos que consideram as masculinidades
como plurais (Rodriguez, 2006; Seffner, 2006; Connell, 2003, 2006;
Clímaco, 2008). Essa escolha buscou ser coerente com o trabalho
de campo, uma vez que de acordo com os relatos dos trabalhado-
res barrageiros, existem atributos masculinos que classificavam os
homens em “mais machos”, “menos machos” e, também, “aqueles
que não querem ser machos” (Diário de campo).
256 | Psicologia e contextos rurais

Em duas entrevistas, mais especificamente, surgiu esta divi-


são de homens: os “mais machos” e os “menos machos”. Os “mais
machos” estariam ligados à lógica heteronormativa da masculini-
dade tal como concebida por Connell (1995) como a masculinidade
hegemônica, ou seja, caracterizada por uma virilidade dominante
e heterossexual. E os “menos machos” que estariam relativamente
em desvantagem em alguns aspectos, mas que se utilizavam de
outros atributos das masculinidades para se sustentar no lugar de
homem como, por exemplo, os papéis de trabalhador honesto e
provedor responsável.
O trabalho e as formas de organização desses homens mos-
traram que o canteiro de obras se constituía em espaço significativo
onde se configuravam formas de ser homem/trabalhador/prove-
dor, mesmo que, em boa parte das situações, eles estivessem dis-
tantes das mulheres e filhos/as. Nessas situações, a importância do
trabalho como forma de sustentar a família e resistir às tentações
do recurso à prostituição ou dos relacionamentos extraconjugais
balizava diferentes masculinidades. Cabe ressaltar que nem todas
as atribuições associadas às masculidades emergiam nos enuncia-
dos de forma uniforme. Assim, quando os homens/trabalhadores
entrevistados eram interrogados sobre como era viver numa cidade
de homens, uma das primeiras questões que apareciam era de que
o canteiro constituía-se em um lugar voltado para o trabalho e a
disciplina e, por essa razão, o exercício da sexualidade precisava ser
vigiado e deveria ser suspenso. Por essa razão os relatos enfatiza-
vam que a necessidade de buscar relações sexuais deveria ser exer-
cida fora da cidade de homens.
Nos relatos e na forma de organização da cidade temporá-
ria existiam delimitações físicas e morais buscando garantir que a
sexualidade ficasse do lado de fora dos muros do canteiro de obras.
Concomitantemente à contenção, existia a exaltação de uma sexu-
alidade que deveria ser praticada de maneira ativa, aliviando a pres-
são do “instinto” do macho. Essa sexualidade deveria ser regulada
Psicologia e contextos rurais | 257

não só pelas normas das instituições do trabalho e da família, mas


fundamentalmente pelo risco de comprometimento do salário.
Essa relação é tão forte nos relatos que as casas de prostituição no
entorno da obra eram chamadas de “foias”, porque ali ficava depo-
sitada uma parcela significativa da “folha de pagamento”.
Essas trajetórias genereficadas, como mostrou a tese de
Leal (2008) sobre os caminhoneiros, se assemelham aos riscos
da itinerância na vivência da sexualidade dos barrageiros, onde o
deslocamento espacial os coloca em diferentes universos (Duarte,
2009; Detoni, 2010), os quais se reconfiguram para acolher esses
trabalhadores. Instalam-se assim, nas proximidades da cidade
temporária uma série de serviços que estão associados à manuten-
ção da masculinidade hegemônica, sobretudo, o trabalho sexual de
mulheres e o acesso ao consumo de bebidas alcoólicas, as quais se
configuram como formas de lazer. Como dissemos anteriormente,
essa população de homens, por não compor as estatísticas da popu-
lação local, não é alvo das políticas de prevenção, o que faz com que
seja vítima de uma dupla vulnerabilidade, ou seja, tanto progra-
mática (pela ausência de programas e serviços) como individual,
uma vez que a masculinidade hegemônica está ligada ao necessário
exercício de uma sexualidade viril e da ideia que o sexo heteros-
sexual protege da contaminação pelo HIV. Connell (1995) já rela-
cionava a masculinidade hegemônica com a epidemia da AIDS no
final da década de 1980. Tanto que a Política Nacional voltada para
as DSTs/AIDS (Brasil, 1999) lista as seguintes populações na matriz
de risco e vulnerabilidade: pessoas presas, usuários de drogas inje-
táveis, profissionais do sexo, caminhoneiros e garimpeiros (Leal,
2008). Nos relatos sobre as experiências sexuais dos barrageiros,
encontramos similaridades com os modos de vida de garimpeiros,
como Barrientos (2005) e Eckert (2001) descreveram, e também
dos caminhoneiros de Leal (2008). As práticas sexuais, nestas pes-
quisas, são associadas às condições precárias de trabalho à falta de
atendimento de saúde voltado para esses contingentes masculinos
258 | Psicologia e contextos rurais

em deslocamento. Afinal, como já afirmamos, as intervenções e


propostas de intervenção não incluem esses sujeitos itinerantes,
apesar de sabermos que as relações sexuais respondem por 58% dos
casos de AIDS em homens (Medrado, 2004).
Os barrageiros mencionaram riscos associadas ao recurso
da prostituição, além do fato de sua mobilidade possibilitar relacio-
namentos extraconjugais. Nos relatos, a possibilidade da “traição”
da esposa e/ou namorada implicaria em riscos ligados às doenças
sexualmente transmissíveis, mas em momento nenhum falaram
de como poderiam se cuidar, se prevenir. Assim, a contaminação
parece estar mais associada a um risco moral do que às relações
sexuais não protegidas. A referência ao sexo protegido só emerge
nas falas de profissionais da saúde presentes no canteiro de obras e
nos treinamentos e das campanhas ministrados pelo GAPA (Grupo
de Apoio aos Portadores da AIDS). A dificuldade de lidar com a
sexualidade no canteiro de obras perpassa também os/as profissio-
nais de saúde do canteiro de obras, uma vez que nas campanhas,
além das informações sobre o uso do preservativo, também se
ressalta o direito dos trabalhadores em buscar o preservativo nos
postos de saúde, uma vez que o ambulatório médico da obra não
dispõe de preservativos para todos. Esse aspecto reforça o que já
afirmamos de que tanto para os/as responsáveis da empresa como
para os trabalhadores existia uma separação nítida entre trabalho
e sexualidade, assim, em um ambiente homossocial heteronorna-
tivo, a sexualidade deveria ser situada fora da obra. Contudo, em
nosso último período de trabalho de campo, evidenciamos que a
lanchonete/mercado ligada ao canteiro de obra estava vendendo
preservativos, o que não acontecia antes. Ao perguntarmos a razão
da venda, nos foi relatado que esse foi um dos pedidos do setor
de Psicologia e do ambulatório médico, o que pode ter sido um
efeito gerado por nossas perguntas sobre a questão no decorrer da
observação participante. Embora não possamos afirmar, podemos
Psicologia e contextos rurais | 259

inferir que a atividade de pesquisa permitiu desnaturalizar a dico-


tomia trabalho no interior do canteiro/sexualidade fora.
Tomando como princípio epistemológico que toda pes-
quisa é uma intervenção (Rocha & Aguiar, 2003), o fato de termos
realizado entrevistas e também feito a devolução das observações
produziu a reflexão nos trabalhadores e administradores/as sobre
aspectos naturalizados no contexto do canteiro de obras. Como os
enunciados sobre as formas de ser homem viril apontavam para
uma valorização do risco implicando em atividades de trabalho
sem a proteção de equipamentos, essa virilidade mágica que pro-
tegeria do trabalho também se repetia como forma de “proteção
mágica” nas relações sexuais. O que tensionava posições da organi-
zação desse espaço nos casos de busca de aconselhamento com os/
as profissionais de saúde dentro da obra em casos, por exemplo, de
sintomas de DSTs e necessidade de assumir outra paternidade fora
do casamento e retornar para sua família, movimentos esses que
resultavam em abandonos do trabalho.
Durante a pesquisa um modelo de homem viril, forte, cora-
joso e sempre disposto sexualmente foi o que mais se apresentou,
entretanto, o homem que se orgulhava de controlar desejos eróti-
cos em respeito à família, à religião e a si mesmo, também estava
presente. Assim como, embora de forma não verbalizada, obser-
vamos a presença de adereços típicos femininos dentro dos aloja-
mentos masculinos como esmaltes e maquiagens. O que possibilita
pensar que outros jogos e performances de gênero poderiam acon-
tecer sem ser verbalizados ou, ainda demarcando formas de manter
a hierarquia da masculinidade em brincadeiras como, por exemplo,
de pintar as unhas dos “menos machos” ou dos que “não querem
ser machos”. Formas essas que buscavam ensinar e marcar o que é e
quem pode ser homem.
Além disso, existiam masculinidades que não emergiram
nas entrevistas de pesquisa, mas que apareceram nas observações
260 | Psicologia e contextos rurais

durante as conversas na hora do almoço e que apontam para a exis-


tência de práticas homoeróticas dentro do canteiro de obras. O que
trouxe à tona a discussão da temática, durante a devolução da pes-
quisa, que conseguiu apontar a existência de relacionamentos não
heterossexuais. Estes, entretanto, ocupavam um lugar marginal e
deveriam seguir mais fortemente as recomendações para todos nas
prescrições trabalhistas institucionais de que não se deve misturar
sexualidade e trabalho, ou seja, um corpo para o prazer e outro para
a labuta.

Seguir barragens: aprendendo masculinidades


para trabalhar e morar no mundo
Começar a “seguir barragens”, como o caso de alguns traba-
lhadores entrevistados que estão na sua primeira obra, é uma posi-
ção desconfortável, o iniciante às vezes é referido como “cabaço” na
obra. Cabaço é a expressão pela qual estes trabalhadores chamam
os novatos ou aqueles sem muita experiência, o que designaria sua
inferioridade, pois cabaço seria coisa de mulher e, portanto, uma
posição abaixo daquela ocupada pelos mais machos. Os cabaços
estariam ainda aprendendo as regras do saber tácito no trabalho
na construção de barragens e também os modelos de virilidade. A
virilidade aqui está ligada a sua função na hierarquia do trabalho e
não às regras da ética do trabalho, como ética do provedor, a qual
esteve associada historicamente, no Brasil, às atribuições mascu-
linas (Jardim, 2001; Nardi, 2006). Nesse plano dos cabaços e dos
que descabaçam, a alusão sexual é evidente, pois perder o cabaço é
perder a virgindade. Encontramos aqui a lógica descrita por Daniel
Welzer-Lang (2001), quando afirma, a partir do trabalho de Maurice
Godelier, que a casa dos homens (nossa cidade dos homens) marca
um lugar de aprendizagem da dominação das mulheres e que essa
aprendizagem passa pela dominação/violência de homens sobre
outros homens, reproduzindo uma hierarquia das masculinidades.
Psicologia e contextos rurais | 261

Seguir barragens também implica em trabalhar e morar no


mesmo lugar. Os alojamentos costumam ser organizados conforme
a afinidade e pelo fato desses homens já se conhecerem de outras
obras, mas o fator mais importante para tal organização ainda se
refere aos estados (locais) de origem. A partir daí, pode-se perceber
como as divisões territoriais organizam as populações e subjetivam
esses trabalhadores, ainda que eles estejam literalmente fora dos
contextos delimitados pelas regiões e estados do País. Os grupos
vão sendo organizados primeiramente de acordo com a regiona-
lização, além de haver uma hierarquia central daqueles que têm
mais tempo de obra. Então, cabe aos novatos, além desse esforço
de inclusão, seguir as regras da empresa, que são, basicamente, evi-
tar barulho, não usar bebidas alcoólicas e substâncias psicoativas
nos alojamentos, e manter o ambiente limpo. Além dessas regras
e da forma como as normas próprias de cada quarto são combina-
das, é preciso seguir as prescrições dos mais velhos. Então, quem
chega depois precisa se adaptar às combinações anteriores de cada
quarto. Como apresentam estas falas: “Eu sou acostumado, não tem
mais problema não. O problema é assim, nós estamos em seis cada
quarto, e hoje um sai entra outro, um que a gente não conhece, e até
adaptá com ele, ele se adaptá, domesticá ele, né? (ri)” (Entrevistado
2). “O último que entra, entra na regra. Obedece a regra que já tá,
que já tá funcionando, que já tá seguindo” (Entrevistado 4).
As relações hierárquicas e de dominação também são atra-
vessadas por relações de solidariedade, mais horizontais, as quais
se constroem nos alojamentos, pelo tempo de convívio que, às
vezes, é marcado por anos de trabalho, interrompidos somente
entre uma construção e outra. Alguns barrageiros até dizem que
ali é que se encontra a sua primeira ou segunda família. Contudo,
existem homens que não conseguem estabelecer esse tipo de rela-
ção. Nessas situações se reproduzem jogos de dominação onde
um é considerado superior ao outro, construindo categorias que
os classificam como “mais machos” e “menos machos”, como já foi
262 | Psicologia e contextos rurais

apontado. Esses jogos são marcados pelas “brincadeiras” e formas


pejorativas pelas quais alguns homens denominam outros como
forma de fortalecer sua dominação nos grupos e “ensinar” a ser
homem como eles, ou seja, aguentarem o trabalho duro, o desloca-
mento geográfico e cultural, somado à falta da família.
Os trabalhadores entrevistados evocaram e diferenciaram
suas regionalizações como marcadores de si – “lá em tal lugar
(principalmente no Piauí e no Maranhão) as relações se dão de
tal maneira, aqui (no canteiro) é diferente”. Como dissemos, esses
homens alojados não estão aleatoriamente dispostos nos quartos.
Eles se distribuem conforme suas origens regionais e seus postos
de trabalho. Nos relatos a seguir eles mostram que existem vários
tipos de homens alojados segundo os marcadores sociais que ocu-
pam, como neste caso em particular, a regionalização: “[...] se lida
com gente que você não conhece. Você tem que ter um controle
muito, muito grande mesmo. Em lidá com gente de todo o tipo,
de todos os lugares, de todas as nações. Alojamento às vezes tem,
cada lugar, cada país é de um jeito. [...] Morá aqui é bom, é que tem
muita gente que tem problema de colega de quarto, daí você tem
que lidá, que nem eu falo com você, tem gente de todos jeitos. Eu
vim com gente conhecida, mas fiquei em outro quarto, devia tu ficá
com quem tu já conhece pra você falá a mesma língua da pessoa.
Não é fácil vivê com gente do Paraná, da Bahia, não sei da onde, não
sei dá onde... E aí você tem que ter muita calma, muita calma, por
isto tem gente que perde a cabeça, dá uns ‘esporros’ e vai embora.
Mas eu, graças a Deus, pelo menos no quarto que eu moro um
colega meu lá é maranhense e a gente se dá bem” (Entrevistado 15) .
Essa fala carrega as diferenças de cada estado do Brasil, os
quais tomam para o entrevistado a dimensão de nação, pois exis-
tem diferenças culturais importantes entre esses homens alojados,
inclusive na forma como se expressam e se comunicam, e esse é um
fator que provoca atritos dentro dos alojamentos, como a defesa de
cada um por seus costumes, por vezes em detrimento dos outros.
Psicologia e contextos rurais | 263

Uma mostra disso são as disputas de volume de som entre músicas


regionais no horário permitido. Eles travam uma competição entre
os ritmos regionais: um bloco ouve sertanejo, outro forró e pagode;
outro aprecia as músicas gauchescas, tudo isso junto aos sons dos
violeiros e gaiteiros que fazem parte do grupo de trabalhadores.
Por mais que exista uma tentativa entre os trabalhadores
barrageiros e da própria administração dos alojamentos em orga-
nizá-los conforme uma divisão regional, nem sempre essa distribui-
ção é possível, uma vez que precisa haver adequação às demandas
de trabalho. Os contratos – “fichamentos” – vão ocorrendo e nem
todos conterrâneos chegam juntos, como evidencia esta fala: “É
meio complicado por que é seis homens em um quarto assim, seis
culturas, seis estados, várias culturas diferentes. Às vezes a gente
encontra parceiro agradável” (Entrevistado 12).
Lidar com as diferenças regionais que ficam expressas nas
músicas, na alimentação, no vestuário, nas diferentes formas de
organizar o quarto. Tudo isso gera uma série de disputas entre esses
homens no espaço de moradia. É interessante a comparação do
alojamento com colégios internos, quartéis e outros lugares que
vão fazendo essa conexão de deslocamentos conforme o gênero.
Partindo da comparação da escola-internato descrita por Foucault,
podemos pensar como se organizam os alojamentos e de como
esses corpos são distribuídos nos espaços destinados à lógica da
produção (Foucault, 2001, p. 24):

[...] ao mesmo tempo as arquiteturas, as disposições dos


lugares e das coisas, a maneira como se arrumam os dor-
mitórios, cuja vigilância é institucionalizada, a própria
maneira como se constroem e se dispõem no interior de
uma sala de aula os bancos e as carteiras, todo o espaço
de visibilidade organizado com tanto cuidado (a forma,
a disposição das latrinas, a altura das portas, a calçada
aos cantos escuros), tudo isto, nos estabelecimentos
264 | Psicologia e contextos rurais

escolares, substituí – para fazê-lo calar – o discurso


indiscreto da carne que a direção de consciência impli-
cava. [...] tanto mais silenciosa, quanto mais vigoroso o
policiamento do corpo [...] fala-se o mínimo possível,
mas tudo, na disposição dos lugares e das coisas, designa
os perigos desse corpo de prazer. Dizer dele o menos
possível, só que tudo fala dele.

Os alojamentos são lugares de vigilância desse corpo fabril,


as masculinidades ficam cerceadas não só pelas regras institucio-
nais, mas também pelas prescrições internas constituídas pelas
combinações desses homens, seja especificamente nos seus quar-
tos, seja nos blocos ou áreas de circulação coletiva. E ali se dão as
condições de possibilidades de construção das masculinidades,
pois ali se aprende a ser homem, a partir de diferentes culturas, de
modelos de homens, de barrageiros.
Como viemos discorrendo, a maioria desses trabalhadores
interpelados como barrageiros são do Nordeste e vêm seguindo essas
obras em busca de oportunidades de emprego e melhores condições
de vida. Os alojamentos, tanto internos quanto externos, nos quais
se instalam, são elementos centrais para a vinda desses homens, e
esses lugares configuram a construção de sujeitos, o que muitas vezes
possibilita outras condições de vida, como fica expresso na fala deste
entrevistado baiano: “[...] Tem alojamentos que têm muitas pessoas,
eu vi casos que teve pessoas que chego aqui até chorô quando viu o
padrão de vida daqui, até chorô, o pessoal lá da minha terra, que tu
tem a família e não tem nem comida pra comê. O alojamento aqui
é muito bom, cada quarto aqui, até o alojamento dos peão tem dois
banheiro em cada quarto, suíte dentro dos quartos, cama boa, col-
chão bom, o piso é muito bom. Tem lugares que é muito pior, eu
já trabalhei em empresas que tem que dormi no chão, colchãozi-
nho fininho, comida malfeita por pessoa que não tinha condições
nenhuma de fazer comida. Você vai aqui, você vê o refeitório que é
Psicologia e contextos rurais | 265

maravilhoso. Assim os alojamentos aqui é maravilhoso, só falta ar


condicionado nos quartos” (Entrevistado 10).
No contexto da busca de melhores condições de vida e tra-
balho, o lugar do provedor é enunciado quando se fala nas rela-
ções familiares, sempre tendo em foco que a maioria deles tem
uma família que mora longe, assim a função do trabalho emerge
como possibilitadora do sustento para a família distante. Nem
todos entrevistados formaram ou “fizeram” uma família como eles
dizem, mas a maioria dos entrevistados assim se constitui, como
por exemplo: “fiz minha família no Paraná (Entrevistado 5), no
Ceará (Entrevistado 2), na Bahia (Entrevistado 10).” O fato de cons-
tituírem uma família com esposa (um casamento não formal, com
filhos/as) os torna legitimamente homens. Aos solteiros ou àqueles
que estão namorando cabe seguir o script esperado para essa mas-
culinidade que se institui dentro da matriz heteronormativa.
A forma como a instituição família é regulada e se mantém
pelo tempo, mesmo com mudanças estruturais, faz com que ainda
o homem seja reconhecido como o responsável pelo sustento dessa
família e em especial desses/as filhos/as (Lyra, 2004). Quando esses
trabalhadores falam da masculinidade, precisam mencionar as suas
famílias e a saudade que sentem delas e o quanto essa constituição
de família os produz enquanto sujeitos. Conforme relatam alguns
entrevistados, exercer a “paternidade à distância” é um elemento
essencial. Eles o fazem através dos telefonemas e/ou via internet
pelos aconselhamentos feitos aos/às filhos/as. E essa paternidade
reafirma o papel de homem no canteiro de obras, o que justifica
inclusive a superação das dificuldades encontradas no trabalho.
Alguns trazem a família, mesmo sabendo das dificuldades da famí-
lia em se adaptar em diferentes lugares. Outros preferem que a
família não os acompanhe, porque isso implica no deslocamento
e na adaptação da esposa e dos/as filhos/as na escola. A hierarquia
dos postos de trabalho também influencia na distância da família.
Geralmente os encarregados ou supervisores trazem as famílias,
266 | Psicologia e contextos rurais

por contarem com um suporte financeiro mais estável (pois não


são horistas) para poder manter os gastos com a mudança e com a
adaptação das mesmas.
É importante destacar que os barrageiros em razão da itine-
rância constroem uma ideia de família que não é a nuclear, o grupo
de trabalho é como uma extensão da família tradicional e mesmo
uma reprodução dessa família na obra, que se configura pelas rela-
ções de solidariedade que se estabelecem entre os trabalhadores
mais antigos e funciona como suporte material e afetivo que per-
mite lidar com as dificuldades da mobilidade. As falas a seguir
posicionam esse lugar de uma família estendida que se forma no
seguimento de uma obra após a outra, e que eles vão construindo ao
construírem a si mesmos: “Longe de casa, longe da família, a gente
que vem do norte e vem pra cá e não tem como passá, têm os ami-
gos que a gente se vê, é como irmão, como a família da gente, é que
vai acostumando, mas nunca é como uma família, vai mudando,
por exemplo, tem pessoas que eu nunca vi e vai chegando, vai
mudando. A gente acostuma” (Entrevistado 8).
Apesar da rotatividade de pessoas, algumas delas sempre
se mantêm acompanhando as outras. Então, enquanto acompa-
nhávamos o cotidiano desses/as trabalhadores/as, percebemos a
proximidade entre eles, tanto durante as refeições ao se cumpri-
mentarem como quando no ônibus quando cantavam as músicas
ao se deslocar, músicas que formavam as trilhas sonoras de deter-
minada obra, como se a nostalgia fizesse parte da reafirmação
desse lugar de barrageiros. Eles se conhecem e se reconhecem e vão
tornando aquele lugar da obra um lugar possível para existirem e se
constituírem como sujeitos, para explicar a dimensão de percorrer
esse itinerário de “seguir barragem”, “trabalhando e morando pelo
mundo”, como nos descreveram os entrevistados.
Como apresentamos ao longo do texto, as análises com-
puseram-se de elementos que tomam partes fundamentais da
Psicologia e contextos rurais | 267

edificação dessas masculinidades: a atividade sexual heterosse-


xual; o trabalho pesado e arriscado ligado à construção civil; a con-
vivência nos alojamentos; a relação de prover a família e de assumir
o lugar da paternidade; a corporeidade masculina e as relações de
amizade/solidariedade que se constroem durante o processo de ir
percorrendo as construções dessas obras – “seguindo barragens”.
Visualizamos diferentes modos de ser homem, apesar de existirem
modelos hegemônicos de masculinidade conectados à matriz hete-
ronormativa que reproduzem as hierarquias do masculino e as rela-
ções de dominação, estas são tensionadas e reformuladas quando
conectadas aos diferentes marcadores sociais, à época, ao local e às
relações que se estabelecem dentro da continuidade e da estabili-
dade que existe na itinerância dos/as seguidores/as de barragens
(Detoni, 2010).
Nessa direção, buscamos abordar a vida desses homens alo-
jados que se deparam com incertezas sobre o que vão fazer quando
a construção acabar. Para que lugares irão? Como vai ser esse outro
lugar? A partir das conversas informais no campo, pudemos per-
ceber movimentos para outra obra. Então eles diziam um ao outro
e até para a pesquisadora que estava ali por um período curto:
“Quem sabe nos encontramos na [obra tal]6?”. Essa frase fala da
continuidade daquele espaço que é referência para a produção des-
ses sujeitos, mesmo que alguns trabalhadores acabem voltando por
um tempo para suas famílias e depois voltem a “fichar” e “seguir
barragens”, como aparece nesta fala: “[...] eu saio e volto, saio e
volto” (Entrevistado 2).
Para que essa obra e essas vidas fossem/sejam possíveis,
há um processo quase que contínuo de construção, desconstru-
ção e reconstrução. O termo construção de masculinidades per-
mite explicitar o que o campo trouxe, pois, ao mesmo tempo que

6 Usamos “obra tal” para não identificar o local, mas tratavam-se de duas obras
que estavam em fase inicial no Norte do País.
268 | Psicologia e contextos rurais

existe a manutenção das perfomances masculinas hegemônicas,


elas sofrem tensões, oposições e reestruturações. É impossível ser
um homem com todos os atributos conferidos ao ideal de mascu-
linidade/virilidade. Por exemplo, não há como frequentar assidua-
mente “as foias” – as casas de prostituição – e ser um bom provedor.
Comprovar a virilidade é mostrar-se mais homem diante dos outros
homens, especialmente pela atividade sexual, mas não só por ela,
mas também ao se arriscar e testar a força no trabalho perigoso da
construção dessa usina hidrelétrica, assim como provar que resiste
às tentações e mantém a fidelidade à esposa. As masculinidades
que constroem e, ao mesmo tempo, são construídas por esses
barrageiros/migrantes/itinerantes são hierárquicas, mas também
heterogêneas, assim como os canteiros de obras.
O trabalho por si só está em constante (re) produção e
transformação. Contemporaneamente traz o desenraizamento dos
sujeitos como parte do processo neoliberal (Castel, 1998), como se a
mobilidade se constituísse como natural e universal. Ainda, temos
como elementos centrais para a caracterização deste trabalho espe-
cífico na construção de barragens as disputas que percorrem os
âmbitos territoriais, culturais, políticos e profissionais como aque-
les que se referem às questões ambientais e a proteção da popu-
lação local, emblematicamente representadas pelo Movimento
dos Atingidos por Barragens – MAB. Nessa disputa política não se
visibilizam os sujeitos que percorrem essas obras que também tra-
zem suas memórias e precisam reinventar suas identidades atra-
vés desses deslocamentos e que são estigmatizados pela condição
nômade, entretanto, não há espaço para que essa tensão seja traba-
lhada neste texto.

Terminando a obra: a pesquisa e a itinerância


A pesquisa com populações itinerantes mostra como as ter-
ritorialidades se refazem e reproduzem disputas e hierarquias nos
Psicologia e contextos rurais | 269

coletivos de trabalhadores. As masculinidades, nossa questão de


análise, se constroem/são reiteradas nesses lugares. A desnaturali-
zação das posições “sedentárias”, evidentes nessas cidades tempo-
rárias, de certa forma, escancara as categorias que organizam a vida
urbana e povoam nossas formas de pensar e fazer pesquisa. O que
encontramos não é o mesmo, mas é povoado pelo mesmo. A busca
de se re-construir e de se sustentar como sujeitos nesses espaços
outros torna possível visibilizar elementos da construção das vidas
e das masculinidades bastante naturalizadas em nosso cotidiano.
Esses cotidianos que reiteram a norma de gênero e as hierarquias
sociais, no contexto da itinerância, são obrigados e se refazer a cada
nova obra. Ao se reinstalar eles evidenciam seu caráter socialmente
construído, permitindo com que compreendamos de forma mais
clara, por vezes, as regras que nos constituem.

Referências
Barrientos, J. (2005). Comportamiento Sexual en La ciudad de Antofagasta.
Informe. Ordhum. Universidade Católica del Norte, Antofagasta, Chile,
2005. Recuperado em 29 junho 2008, de http://www.fazendogenero7.
ufsc.br/artigos/J/Jaime_Barrientos_Delgado_28.pdf.

Brasil. (1999). Política de DTSs/AIDS: Princípios, Diretrizes e Estrategias


Nacional. Ministério da Saúde. Secretária de Políticas da Saúde.
Coordenação de DTS e AIDS. Recuperado em 7 março 2010, de http://
bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cd03_17.pdf.

Butler, J. (1997). Subjection, resistance, resignification: between Freud and


Foucault. In The Psychic Life of Power. Stanford University Press.
Stanford – CA. p. 83-105.

______. (2003). Problemas de Gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

______. (2004). Undoing Gender. New York: Routedge.


270 | Psicologia e contextos rurais

______. (2009). Diagnosticando o gênero. Tradução: André Rios. Revisão


Técnica: Márcia Arán. Physis Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro,
19 [1]: 95-126.

Castel, R. (1998). As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário.


Rio de Janeiro: Vozes.

Climaco, D. A. (2008). Os laços homossociais entre homens: análise de


Between men: english and male homosocial desire de Eve Sedgwick.
In Fazendo o Gênero 8. Corpo Violência e Poder. Florianopólis, de 25 a
28 de 2008.

Connell, R. W. (1995). Políticas da masculinidade. In Educação e Realidade.


Porto Alegre, FACED/UFRGS, v. 20, n.2, jul/dez., p. 185-206.

______. (2003). Masculinidades. México: Universidad Nacional Autónoma de


México. Programa Universitário de Estudios de Género.

______. (2006). Desarollo, globalización y masculinidades. In Carrega,


Gloria; Sierra, Iavador. (Coord.) Debates sobre masculinidades: Poder,
desarollo, Políticas Públicas e Ciudadanía. México: Universidad
Nacional Autónoma de México, p. 185 - 210.

Detoni, P. P. (2010). “Seguir barragem”: (re - des) construções das masculinidades


num canteiro de obras de uma usina hidrelétrica. Dissertação de
Mestrado em Psicologia Social e Institucional. Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS.

Duarte, D. A. (2009). A migração laboral no setor de produção de


energia hidrelétrica: efeitos na subjetividade dos trabalhadores na
contemporaneidade. Dissertação de Mestrado na Faculdade de
Ciências e Letras de Assis – Universidade Estadual Paulista, UNESP,
São Paulo, SP.
Psicologia e contextos rurais | 271

Eckert, C. (2001). Do corpo dilapidado à memória re-encantada. In LEAL, O.


F. (Org). Corpo e significado. Porto Alegre: Editora da Universidade/
UFRGS, p. 163-188.

Foucault, M. (1999). A Psicologia de 1850 a 1950. In ______. Ditos e escritos v.


I – problematização do sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. Rio
de Janeiro, Brasil: Forense Universitária, p. 122-139.

______. (2001). Os anormais. Curso no Collège de France (1974-1975). São


Paulo: Martins Fontes.

______. (2002). Em Defesa da Sociedade. Curso no Collège de France (1976-


1977). São Paulo: Martins Fontes.

______. (2006). Ética, sexualidade, política. Michel Foucault; organização e


seleção de textos Manoel de Barros da Motta. Rio de janeiro: Forense
Universitária, 2006.

______. (2007). Nietzsche, a genealogia e a história. In Machado, Roberto


(Org) Microfísica do Poder. 3° edição. Rio de Janeiro: Graal.

Jardim, D. F. (2001). Performances, Reprodução e Produção dos Corpos


Masculinos. In Leal, O. F. (Org.). Corpo e significado. Porto Alegre:
Editora da Universidade/UFRGS, p. 189-201.

Leal, A. F. (2008). “No peito e na raça” – a construção da vulnerabilidade


de caminhoneiros: um estudo antropológico de políticas públicas
para HIV/AIDS no sul do Brasil. Porto Alegre: Tese de Doutorado do
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, RS.

Lispector, C. (1998). A hora da estrela. Rio de Janeiro: Editora Rocco.


272 | Psicologia e contextos rurais

Losicer, E. (2001). Caso clínico em alto mar. Abrindo a ‘caixa preta’ da p-36.
Recuperado em 1 setembro 2008, de http://www.estadosgerais.org/
encontro/caso_clinico.shtml.

Lyra, J. (2004). Paternidade: sentidos, marcas e padrões sociais. Em: Medrado,


Benedito; Franch, Mônica; Lyra, Jorge e Brito, Maíra. (Orgs.) Homens:
tempos, práticas e vozes. Recife: Instituto PAPAI/Fages/ Nepo/
Pagacapá.

Medrado, B. (2004). Sexualidades e socialização masculina: Por uma ética


da diversidade. Em: Medrado, Benedito; Franch, Mônica; Lyra, Jorge
e Brito, Maíra. (Orgs.) Homens: tempos, práticas e vozes. Recife:
Instituto PAPAI/Fages/ Nepo/Pagacapá.

Nardi, H. C. (2006). Ética, trabalho e subjetividade: trajetórias de vida no


contexto das transformações do capitalismo contemporâneo. Porto
Alegre: Editora da UFRGS.

Rocha, M. L. & Aguiar, K. F. Pesquisa-intervenção e a produção de novas


análises. Psicologia: ciência e profissão, Brasília, v. 23, n. 4, p. 64-73,
out./dez. 2003

Rodríguez, J. C. R. (2006). Y eso de La masculinidad ? aportes para una


discusión, In Carrega, Gloria; Sierra, Iavador. (Org.) Debates sobre
masculinidades: Poder, Desarrollo, Políticas Públicas e Ciudadanía.
Universidad Nacional Autónoma de México: México.

Seffner, F. (2006). Masculinidad, bisexualidad masculina y ejercicio de poder:


tentativa de comprensión, modalidades de intervención. In Carrega,
Gloria; Sierra, Iavador. (Org.) Debates sobre masculinidades: Poder,
desarrollo, Políticas Públicas e Ciudadanía. Universidad Nacional
Autónoma de México, México.

Welzer-Lang, D. (2001). A construção do masculino: dominação das mulheres


e homofobia. Revista Estudos Feministas, 9 (2) 460-481.
Mulheres e psicotrópicos:
subjetivação e resistência
em trabalhadoras
rurais assentadas
Nathália Nunes e Araújo
Rebeca da Rocha Siqueira Nepomuceno
Rafael de Albuquerque Figueiró
Leonardo Cavalcante de Araújo Mello

Introdução

A discussão que propomos neste capítulo é resultado de um


trabalho de conclusão de curso realizado por estudantes de
Psicologia no ano de 2011, em um assentamento do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). A discussão centra-se no
debate a respeito dos processos de singularização que permitem
novos modos de existir em um grupo de mulheres do assentamento
Resistência Potiguar, com foco no modo como elas se relacionam
com a saúde, particularmente no que se refere ao uso de medica-
mentos psicotrópicos. O assentamento escolhido para a pesquisa
274 | Psicologia e contextos rurais

está localizado no município de Ceará-Mirim, no estado do Rio


Grande do Norte.
A pesquisa teve duração de três meses e contou com a cola-
boração de 33 mulheres, as quais concederam entrevistas semies-
truturadas e participaram de três rodas de conversa. Foi através da
observação participante e da análise da fala das participantes que
pudemos refletir sobre as estratégias de enfrentamento das dores e
problemas cotidianos, bem como sobre os modos de vida experien-
ciados naquela comunidade.
O capítulo versa, a partir da ótica da Análise Institucional
(Baremblitt, 1992), sobre como determinados modos de vida e
estratégias de cuidado, com especial foco na saúde, se colocam
como potencializadores de uma condição de sujeitos protagonistas
de seus cotidianos, a partir das noções de autoanálise e autogestão.
Para essa discussão, serão trazidas à tona vozes de autores que dia-
logam sobre os processos de medicalização em nossa sociedade,
e formas de resistência a esse processo, numa perspectiva de que
esses atores se reapropriaram de um saber sobre si, sobre seu cole-
tivo, que em algum momento histórico lhes foi negado, lhes foi
adjetivado enquanto saber falso.
Dessa maneira, esse capítulo se apresentará em três momen-
tos. No primeiro será feita uma discussão acerca dos modos de vida
na sociedade contemporânea e os seus atravessamentos no con-
texto rural, em especial, em contextos em que há um movimento de
militância social presente. Em seguida, será discutida a experiência
da pesquisa que fundamentou esse ensaio, buscando evidenciar as
ferramentas teórico-metodológicas utilizadas pelos pesquisadores
nesse processo investigativo/interventivo, e, no terceiro e último
momento, apresentaremos o que consideramos alguns resultados,
frente ao que inicialmente propomos. O texto inteiro é uma cos-
tura que mescla a fala de algumas mulheres do contexto investi-
gado com o diálogo com autores que compõem nosso arcabouço
Psicologia e contextos rurais | 275

teórico-metodológico, além de contar também com sensações e


experimentações dos pesquisadores/autores.

Os modos de existir na sociedade


contemporânea
Ao refletirmos sobre o momento atual de nossa sociedade,
é impossível não nos afetarmos com a rapidez dos processos, das
transformações, e da própria vida. Bauman (2009) relaciona o ime-
diatismo de nossa sociedade contemporânea com o que ele chama
de “vida líquida”. Na sociedade líquido-moderna, as realizações
individuais não podem solidificar-se em posses permanentes por-
que as condições de ação e estratégias de reação envelhecem rápido
demais, tornando-se obsoletas: nada mantém a forma por muito
tempo. Aqui a vida é precária, pautada por incertezas constantes.
Essa mesma sociedade líquida promete uma felicidade fácil, “que
pode ser obtida por meios inteiramente não heróicos e que devem
estar, tentadora e satisfatoriamente, ao alcance de todos (ou seja,
de todo consumidor)” (Bauman, 2009, p. 65).
Relacionamos isso ao que Pelegrini (2003) fala acerca do
imediatismo dos tempos atuais, que está associado ao sucesso
dos medicamentos, de modo que predomina, agora, sob a ordem
do imediato, a exigência de se alcançar, o mais rápido possível, o
modelo ideal. Em 1930, por exemplo, não se via tamanha busca
por substâncias entorpecentes (Canabarro & Alves, 2009), o que
coloca em debate o atual funcionamento de nossa sociedade. Nessa
urgência, o processo, antes de constituir-se em trajetória para uma
meta, passa a ser vivido como obstáculo a ser superado, fazendo
surgir, dessa forma, a droga como solução viável. Diante disso, os
medicamentos psicotrópicos passam a ser utilizados como formas
de “livrar-se” das dores e aflições desse novo modo de vida da socie-
dade contemporânea.
276 | Psicologia e contextos rurais

Noto e Galduróz (1999) discorrem sobre o uso de drogas psi-


cotrópicas e a prevenção no Brasil, dando destaque às diferenças de
padrão de consumo entre homens e mulheres, contexto no qual as
drogas ilícitas, especificadamente, a maconha e a cocaína são mais
consumidas por homens, e os medicamentos psicotrópicos (ansio-
líticos, anfetaminas etc.) são preferidos pelas mulheres.
Sobre o significado do uso dos medicamentos para as mulhe-
res, Carvalho e Dimenstein (2004) afirmam que a recorrência a essa
estratégia representa algo imprescindível no enfrentamento de seus
problemas, o que explica o alto consumo. O ansiolítico, segundo
as autoras, funciona como um vigia permanente do desespero des-
sas mulheres, passando a ser um instrumento na luta contra suas
angústias e desequilíbrios emocionais. Podemos pensar, então, que
o significado do uso de medicamentos psicotrópicos, muitas vezes,
gira em torno da falta de capacidade que elas avaliam não ter diante
dos problemas diários, o que as leva a procurar um recurso encora-
jador ou algo para esquecer.
Na visão de Tavares (2009), por meio da medicalização irres-
trita, objetiva-se silenciar a voz do sofrimento, remediando os sin-
tomas visíveis, desconsiderando a dimensão simbólica e subjetiva
dessas formas de mal-estar. Nesse sentido, frente a essa sociedade
silenciadora, esses indivíduos vivenciam o mais forte sentimento
de desamparo, constituindo-se, em um modelo identitário, no
qual as revoluções encontram-se enfraquecidas.
Mastroianni et al. (2008), numa análise do conteúdo de pro-
pagandas de medicamentos psicoativos, constatam que os medica-
mentos antidepressivos constroem uma ideia de depressão como
uma sintomatologia feminina, bem como nas propagandas de ben-
zodiazepínicos, medicamentos com propriedades ansiolíticas e
hipnóticas. Já a imagem de homens adultos ou idosos, geralmente,
aparecem nas propagandas de medicamentos neurolépticos. Essa
representação tendenciosa e estereotipada da mulher ocasiona
Psicologia e contextos rurais | 277

a formação de um protótipo de depressão e de ansiedade, o que


pode levar os médicos à “patologizarem” suas pacientes enquanto
depressivas e ansiosas, quando elas estão, na verdade, com proble-
mas circunstanciais e/ou transitórios. O apelo das propagandas
de medicamentos, conforme concluiu esse estudo, é refletido na
prescrição médica, conduzindo ao viés de distúrbios mentais e de
gênero, bem como a supermedicalização das doenças mentais.
No meio rural, as discussões no tocante a saúde mental
apontam que o sofrimento psíquico dos agricultores tem sido uma
realidade (Domingues, 2007). A questão do sofrimento psíquico no
meio rural tem sido debatida já há algum tempo no cenário acadê-
mico. Segundo Levigard e Rozemberg (2004), no leque de proble-
mas de saúde dos trabalhadores rurais, a queixa de nervoso tem
sido comum, corroborando as estatísticas mais gerais da sociedade.
Ainda segundo os autores, as recentes mudanças ocorridas no
campo, com a extinção da policultura e sua consequente desterri-
torialização e falência de inúmeros agricultores, colaborou para as
mudanças nos padrões de morbidade e mortalidade da população
rural, incluindo aqui o aumento de doenças mentais em trabalha-
dores rurais.
Diante de tal contexto, o uso de medicamentos (calmantes)
entre trabalhadores rurais vem sendo apontado como problemá-
tico no campo da saúde (Rozemberg, 1994; Levigard & Rozemberg,
2004). De acordo com Rozemberg (1994), em pesquisa realizada
com agricultores foram encontradas 26 marcas de fantasia de
drogas de ação no sistema nervoso central em apenas 28 pessoas
entrevistadas.
Assim, frente às angústias contemporâneas, o uso de algum
psicofármaco parece ser a solução mais interessante, aliviando
nossas principais preocupações (Canabarro & Alves, 2009). Como
consequência, temos uma diminuição da capacidade de autonomia
das pessoas diante da maioria das situações de dor e sofrimento,
278 | Psicologia e contextos rurais

desligando-as da vida do sujeito, reduzindo a mero problema orgâ-


nico (Tesser, Neto & Campos, 2010), constituindo assim, um pro-
cesso de medicalização social.
A medicalização social se caracteriza por essa expansão do
campo da biomedicina, transformando experiências e comporta-
mento humano em problemas médicos (Tesser, 2006).Trata-se de
um fenômeno que se caracteriza pelo uso insdiscrimado de psico-
trópicos diante das dificuldades e angústias contemporâneas. De
uma maneira geral, podemos dizer que se trata de um processo
complexo, que transforma vivências e sofrimentos (antes adminis-
trados de outras maneiras) em necessidades médicas (Tesser et. al.,
2010). Apesar de geralmente estar centrado na profissão médica,
a medicalização não se restringe a ela, podendo estar em todas as
profissões de saúde capazes de categorizar sofrimentos em diag-
nósticos e oferecer explicações naturalizantes (Tesser et. al., 2010).
Poderíamos pensar, considerando o que expusemos a res-
peito do papel do medicamento dentro da sociedade, que as subs-
tâncias psicotrópicas podem agir na vida dessas mulheres como
inibidor das suas capacidades de refletir e pensar sobre seus modos
de vida, visto que fazer o uso dessas substâncias representa uma
escolha por um modo singular de lidar com a dor, o qual exclui
outras formas de enfrentamento.
O uso demasiado de psicotrópicos contribui para a perda
da capacidade de refletir – tanto dos profissionais de saúde quanto
dos próprios usuários – sobre outras possibilidades de tratar esses
problemas. Nessa ótica, podemos pensar que os psicotrópicos
também fortalecem o engessamento da profissão do médico, limi-
tando-a a um modelo técnico de cuidado, que exclui contemplar
outros modelos de atuação.
Seguindo esse raciocínio, articulamos o nosso problema de
pesquisa em torno de uma problemática que já foi explorada através
outras pesquisas: o uso de psicotrópicos.Optamos por investigar a
Psicologia e contextos rurais | 279

dinâmica do uso de psicotrópicos no meio rural, tendo em vista a


própria escassez de pesquisas nesse contexto. Escolhemos investi-
gar a questão em um assentamento rural vinculado ao Movimento
dos Trabalhadores Sem Terra (MST), o que nos convida a refletir
sobre a relação saúde-doença no interior dos movimentos sociais.
Dessa forma, questionamos: Como vem ocorrendo o uso de psico-
trópicos em assentamentos do MST? Quais os fatores que se rela-
cionam a esse problema?

Caminhos trilhados
Para nortear a pesquisa, adotamos como embasamento teó-
rico-metodológico a Análise Institucional, entendendo-a como um
conjunto de saberes que propõe a criação de dispositivos para que
o coletivo se reúna e debata acerca de seu cotidiano, descobrindo
a maneira como determinados efeitos antiprodutivos são a conse-
quência do não saber das contradições da estrutura e da função do
sistema, como um desvio das forças revolucionárias (Baremblitt,
1998). Nessa direção, a análise institucional propõe uma análise das
forças que compõem o social, atentando para aquilo que se coloca
enquanto instituído, dado, congelando os processos de mudanças,
tentando favorecer possíveis forças instituintes (que apresentam o
novo, a transformação), potencializando, assim, os grupos e coleti-
vos (Baremblitt, 1992).
A partir dessa direção epistemológica, fomos nos apro-
priando do método cartográfico que direcionou nosso posicio-
namento diante do fenômeno que nos dispusemos a estudar. A
cartografia, como o próprio nome indica, busca dar conta de um
espaço pensando as relações possíveis entre territórios, capturando
intensidades e atentando para o jogo de transformações desse
espaço. A cartografia está interessada em experimentar movimen-
tos/territórios, novos modos de existência, sempre a favor da vida,
dos movimentos que venham a romper com o instituído (Kirst,
280 | Psicologia e contextos rurais

2003). Para tanto, é preciso estar atento aos discursos, gestos, fun-
cionamento, o regime discursivo operante (Mairesse, 2003).
Partindo dessa perspectiva, lançamos mão da observação
participante do território onde vivem essas mulheres, no sentido de
capturar esses momentos, intensidades, discursos, etc. Queiroz et
al (2007) afirmam que, na observação participante, o pesquisador
analisa a realidade social que o rodeia, tentando captar os conflitos
e tensões existentes. Desse modo, tem a oportunidade de unir o
objeto ao seu contexto, contrapondo-se ao princípio de isolamento
pelo qual somos ensinados na ciência tradicional.
No decorrer de nossas visitas ao assentamento, fizemos uso
de diários de campo enquanto instrumento de registro das informa-
ções/impressões sobre o campo, compreendendo essa ferramenta
como estratégia didático-pedagógica, na medida que proporciona
autorreflexão das ações de si ao detalhar as pessoas, objetos, luga-
res, conversas e impressões do campo (Frizzo, 2010).
Assim, tentamos captar o cotidiano do assentamento
Resistência Potiguar, mais especificamente do grupo de mulheres
desse assentamento. O dia a dia, as conversas, os modos de vida e
as forças que compõem esse cenário foram nosso foco na tentativa
de mapear, cartografar essa paisagem psicossocial.
O Resistência Potiguar nos foi apresentado no mês de
agosto de 2011. Após alguns dias de familiarização do campo, pude-
mos expor nossa proposta de pesquisa a alguns moradores, dando
início à jornada de três meses no assentamento que, conforme já
informado, está localizado na zona rural da cidade de Ceará-Mirim,
no estado do Rio Grande do Norte. Realizamos entre uma a duas
visitas por semana, quase sempre no período da tarde e, algumas
vezes, pela manhã. Além da observação participante, realizamos
entrevistas semiestruturadas com mulheres a partir de 18 anos. A
entrevista semiestruturada tem por finalidade propor alguns ques-
tionamentos básicos sobre o tema em questão, com a capacidade
Psicologia e contextos rurais | 281

de permitir certa liberdade pra explorar outros caminhos e respos-


tas de forma mais livre (Manzini, 2004).
Procuramos traçar uma relação atravessada por afetos: em
nossas visitas, não seguíamos à risca o roteiro das entrevistas, pelo
contrário, buscávamos respostas aos nossos questionamentos atra-
vés de uma conversa que normalmente durava entre 30 a 40 minu-
tos. Nas três rodas de conversa realizadas, cada uma na casa de uma
moradora diferente, contamos com um número que variou entre 9
e 12 mulheres por encontro. O nosso objetivo nas rodas de conversa
era aprofundar a discussão dos temas levantados nas entrevistas,
porém mais focado nas perguntas referentes à história das assen-
tadas, criando, assim, condições de diálogo entre os participantes,
propiciando um momento de escuta e de circulação da palavra
(Afonso & Abade, 2008). Essa estratégia é produtiva para promover
a reflexão e discussão sobre um determinado tema. As rodas dura-
vam em torno de uma hora e meia, sempre havendo rotatividade
entre as casas: durante três semanas as rodas de conversa acontece-
ram na casa de três moradoras, em ruas diferentes.
O assentamento conta com um número de 53 famílias. O
número de mulheres entrevistadas foi de 33 das aproximadamente
65 que ali vivem. Passamos em todas as casas das quatro ruas,
porém, devido à localização do assentamento ser relativamente
distante de Natal, e a pouca disponibilidade das mulheres, em vir-
tude da jornada de trabalho, não pudemos entrevistar todas.
Aos poucos, fomos conhecendo uma a uma e construindo
uma relação que ultrapassava a de pesquisador e pesquisado.
Pudemos perceber alguns campos de forças que atravessam o
assentamento, acompanhar como essas mulheres percebem seus
cotidianos e como percebem o mundo, bem como nos emocionar
com a vida que se mostra sempre em suas diversas faces.
O assentamento localiza-se a 20 minutos da cidade de
Ceará-Mirim, se o trajeto dá-se de carro ou moto táxi. Existe há
282 | Psicologia e contextos rurais

pouco mais de sete anos, em uma área cercada por grandes cana-
viais e engenhos. A maior parte daquelas famílias veio do acampa-
mento que ficava “do outro lado da pista”, próximo ao ponto onde
hoje está o assentamento. Essa mudança de acampamento para
assentamento trouxe em si grandes novidades para esses campone-
ses: no assentamento, a conquista pela terra está concluída, a luta
foi vencida.
Sobre a realidade dos assentamentos, temos que “se cons-
tituem em espaços diferenciados de relação com o Estado e é essa
relação diferenciada que faz existir o assentamento e, por conse-
quência, os assentados, como segmento social diferenciado de
outros camponeses” (Caniello & Duqué, 2006, p. 634 como citado
em Leite et al., 2004, p. 111)
Segundo as entrevistadas, passar pelas dificuldades e pelos
medos da época das barracas até a conquista das casas constituiu-
-se numa grande vitória. A fala de Dona Célia1, por exemplo,
esclarece: “Nas barracas era bem pertinho da pista, ninguém dor-
mia direito, tinha medo de tocarem fogo. A gente ficava acordada
vigiando. Aqui é mais seguro, mas lá se juntavam mais, era mais
unido”. Outra assentada afirma: “Eu gostava de morar nas barracas,
só não gostava quando chovia (risos)”. E Dona Maria C. comple-
menta: “Lá era uma correria danada, todo dia tinha o que fazer, mas
agora tá melhor por causa da casa e do trabalho”.
É um lugar de muito sol durante o dia e, segundo as morado-
ras, frio à noite. Uma paisagem campestre encantadora para olhos
viciados em cenários urbanos. Uma comunidade rural que nos pre-
senteia diariamente com um pôr do sol inspirador, que esconde,
à primeira vista, as dificuldades e questões que atravessam a vida
dessas famílias. Essa imagem remete-nos a Ademar Bogo (2000),
complementando nossa fala, diz que a estética está presente em

1 Todos os nomes usados neste capítulo são fictícios.


Psicologia e contextos rurais | 283

tudo que fazemos e que a beleza dos assentamentos se faz de uma


obra de arte real que não está ali para ser comercializada, mas para
apontar caminhos de reconstrução da vida.

Alguns resultados
Essa seção será apresentada em três partes, que dizem res-
peito ao cotidiano e modos de vida traçados pelas mulheres do
Resistência Potiguar. As partes estão discriminadas de acordo com
os temas analisados, frente ao referencial por nós adotado, quais
sejam: Vida Maria, Modos de vida rural e processos de autogestão,
e Os processos de subjetivação militante.

Vida Maria
Após a nossa inserção no campo, chegamos a um resultado
que não se assemelha às pesquisas realizadas em contextos urba-
nos e até mesmo rurais. As entrevistas mostraram que o consumo
de psicotrópicos no assentamento é insignificante: apenas uma
mulher utiliza medicamento psicotrópico, de um total de 33 entre-
vistadas (3%).
Trata-se de uma assentada de 43 anos, Dona Maria L.,
viúva, uma mulher de poucas palavras, agricultora e dona de casa.
Dona Maria L. tem 10 filhos, dos quais sete moram com ela. Está
no assentamento desde sua ocupação, tendo permanecido um ano
no acampamento. Relatou utilizar um serviço de saúde próximo ao
assentamento para se consultar. Confessa ter problemas de pres-
são e de estresse, causados, segundo ela, após a morte do marido,
que passou meses no hospital, gerando uma situação de sofri-
mento para a família. A moradora usa medicamento psicotrópico
(Bromazepam) há três meses. Dona Maria L. diz: “Mas é só um por
dia”, demonstrando certa cautela em falar sobre o assunto.
284 | Psicologia e contextos rurais

Entre os medicamentos mais utilizados pelas entrevistadas,


estão os analgésicos para dor de cabeça, dor de coluna e dor de bar-
riga, mencionados em 11 entrevistas, mas sempre em caráter de uso
esporádico. Em seguida, temos os anticoncepcionais, citados por
seis mulheres.
O baixo consumo de psicotrópicos no assentamento logo
nos direcionou alguns questionamentos: será que o assentamento
não tem acesso aos serviços públicos de saúde? Isso indica que essa
comunidade enfrenta um baixo índice de problemas? Quais estra-
tégias são utilizadas para lidar com o sofrimento psíquico?
Segundo as entrevistadas, há acesso aos serviços de saúde,
bem como há a oferta de medicamentos psicotrópicos. Todas as
entrevistadas, inclusive Dona Maria L., usuária de psicotrópico,
apontaram uma Unidade Básica de Saúde localizada em um povo-
ado vizinho ao assentamento como referência em atendimento
à saúde; também citaram o Hospital de Ceará-Mirim, infor-
mando, porém, que por ser mais afastado, recorrem menos a ele.
Questionadas sobre qual serviço de saúde era mais utilizado por
elas, Dona Dalva afirmou “Nós vamos pro posto lá na Primavera2,
que fica aqui perto. Tem um ônibus que passa aqui na pista e deixa
a gente lá perto. Outra companheira complementa: “Lá a gente faz
preventivo, essas coisas. Quando é uma coisa mais séria eu vou pra
Ceará-Mirim, pro hospital”.
É relevante destacar que, segundo os dados coletados, a
comunidade não enfrenta menos problemas em relação a outros
grupos, como bem ilustra a fala de Dona Dalva: “É... problema tem
em todo canto, né? Aqui não é diferente dos outros... mas aí vai fazer
o quê?”. Em uma roda de conversa, onde estiveram nove mulheres,
surgiram falas emocionadas, entre momentos de risos, que nos
diziam sobre a vida delas. Dona Maria H. rememora: “Com doze

2 Pequeno povoado.
Psicologia e contextos rurais | 285

anos eu ia pra escola escondida (risos), com medo de apanhar do


meu pai, porque tava deixando de trabalhar”; Dona Ruth diz: “Perdi
meus pais e meu filho, é muita dor”. Dona Maria R. relata: “Perdi
minha mãe e meu menino, aqui recebo apoio do meu marido”.
Essas falas das moradoras explicitaram algumas angústias
vividas pelo povo do assentamento: a perda de familiares, a infân-
cia difícil, as dificuldades na criação dos filhos, os obstáculos na
organização do coletivo. O que nos chama atenção é a escolha delas
em utilizar outras estratégias para lidar com isso. Estratégias essas
que vão no sentido oposto à medicalização das dores cotidianas
através do consumo de psicotrópicos. Como Dona Dalva afirma:
“Bota é a trouxa na cabeça, que se a gente for se levar só pela tris-
teza, a gente não vive”.
Nesse sentido, passamos a investigar outras possibilidades
explicativas para o baixo uso de psicotrópicos no assentamento.
Como explicar esse fenômeno que contraria as pesquisas relacio-
nadas ao tema? É o que tentamos explicitar no próximo tópico.
Modos de vida rural e processos de autogestão
Quanto às estratégias utilizadas para lidar com as doenças
dentro do assentamento, podemos considerar que o contexto rural
aqui representa um forte determinante no modo como essas pes-
soas cuidam da própria saúde e da saúde de sua família. As espe-
cificidades do cenário rural, naquilo que diz respeito à cultura do
saber popular, contribui para que a população que vive no campo
opte, muitas vezes, por estratégias de cuidado com a saúde advin-
das do saber do povo campesino, representada, por exemplo, na
confecção de medicamentos caseiros com produtos manipulados
no quintal de suas casas.Os efeitos produzidos por esse modo de
vida no campo podem ser identificados na fala das moradoras ao
serem questionadas sobre as estratégias que usavam para enfrentar
as dificuldades e dores do cotidiano.
286 | Psicologia e contextos rurais

O uso de chás, para fins medicinais, por exemplo, mostrou-


-se predominante entre as falas das entrevistadas, no que diz res-
peito ao tratamento de dores de cabeça, barriga e também para
efeito calmante, estando presente em 18 entrevistas (54%).
Dona Maria R. relata que, ao ter perdido um filho com 10
dias de resguardo, ficou meio “agoniada” na época, mas não che-
gou a fazer uso de psicotrópicos, pois diz ter recebido apoio de seu
marido nesse momento de luto. Acrescenta, ainda, que atualmente
faz uso de chá, mas só quando tem dor de barriga. Dona Fátima
também faz uso de chás, dando preferência ao de pitanga e capim
santo, o qual, segundo ela, lhe ajuda a diminuir as dores de cabeça.
Relata que quando se estressa desconta nos cigarros que ela mesma
prepara e nas outras pessoas; a moradora acrescenta “eu arengo3
mesmo, aí depois fica tudo bem”.
Ainda sobre o consumo de psicotrópicos, uma das entre-
vistadas afirmou já ter feito uso, mas decidiu interrompê-lo por
vontade própria, pois entendeu não haver mais necessidade de dar
continuidade ao tratamento. Diz Dona Dalva:

Eu já tomei esses remédios tarja preta4 uma vez por


causa do meu problema de pressão, né, pra que eu não
fique nervosa e ela suba, mas não gostei não, me deu
uma leseira e eu não quis [...] quando eu não tô com
sono, eu tomo um chazinho ou qualquer coisa e vou dor-
mir... pronto [...] Dormir eu já durmo, não tem pra quê
eu tomar remédio pra isso (Dona Dalva).

As entrevistadas também destacaram a religião enquanto


elemento importante na superação dos sofrimentos. Algumas

3 Expressão típica da região, cujo exato significado não corresponde necessaria-


mente ao seu verbo – arengar (disputar, falar) –, mas ao sentido de brigar, arran-
jar confusão.
4 Tarja preta: nome popularmente conhecido dos medicamentos psicotrópicos.
Psicologia e contextos rurais | 287

moradoras reuniam-se semanalmente para rezar um terço na


casa de uma das companheiras, o que também servia como um
momento em que elas podiam se reunir pra conversar. Além disso,
há relatos de outras assentadas que afirmam rezar quando se depa-
ram com algum problema.
Dona Celma, quando questionada sobre quais estratégias
utilizava para lidar com o estresse ou algum sofrimento, responde:

Quando eu tô estressada assim com a vida, com as coi-


sas, eu não tomo nenhum remédio não [...] o que eu faço
é gritar (risos), né? Grito com os meninos com o marido,
às vezes eu faço é chorar mesmo... às vezes saio por aí
andando sem rumo e só volto pra casa quase de noite
na hora da janta quando tô já relaxada mesmo (Dona
Celma).

O conteúdo do depoimento dessa moradora foi comparti-


lhado pela maioria das companheiras que participavam da nossa
roda de conversa, em falas como a de Dona Celma: “Ah, quando
tem algum aperreio mais assim (grande) [...] eu vou é trabalhar,
adiantar os serviços, sempre tem alguma coisa pra fazer dentro de
casa ou fora”, e ainda outra assentada acrescentou: “eu choro né,
desabafo com alguma amiga, [...] a gente faz caminhada quase todo
dia, é bom que emagrece o corpo e fica com a cabeça leve (risos)”.
Entre depoimentos e risadas, as assentadas foram acres-
centando experiências de superação, de problemas enfrentados, os
quais, segundo elas, foram vencidos apenas pela força de vontade
e apoio mútuo por parte dos assentados. Em nenhum momento
foi relatado o uso de medicamento enquanto busca por solução de
algum problema vivido por elas, mas sim por indicação médica, o
que para algumas não foi suficiente para prosseguir com o uso.
Durante nossa inserção no assentamento, foi possível
observar um sentimento de solidariedade entre as moradoras,
288 | Psicologia e contextos rurais

solidariedade esta típica de pequenas comunidades, o que propor-


ciona uma relação de ajuda mútua entre elas. Essa relação pode ser
representada pela fala de Dona Vilma:

A gente sempre aqui conta também uma com a outra, já


passamos por algumas coisas juntas, desde a época do
acampamento [...] hoje por cada uma ter sua casa é mais
difícil se encontrar, mas a gente tenta se reunir quando
dá pra conversar (risos). (Dona Vilma).

Para muitas, a relação que se estabelece entre as compa-


nheiras de assentamento serve como suporte para as angústias vivi-
das, produzindo uma rede de apoio capaz de fortalecer cada uma
das moradoras frente às adversidades da vida.
Nesse sentido, percebemos que acontecem no assentamento
processos de ajuda mútua, ou seja, apoio emocional e acolhimento ao
colega/indivíduo em sofrimento. Esse tipo de atenção pode evoluir
no sentido de abarcar questões mais amplas como vida social, lazer,
cultura, política e até mesmo os projetos de vida das pessoas, configu-
rando assim uma prática de suporte mútuo (Vasconcelos, 2008).
A ajuda mútua tem sido considerada uma importante estra-
tégia de empoderamento, entendendo este enquanto um aumento
no grau de autonomia e poder pessoal de grupos historicamente
excluídos (Vasconcelos, 2008). Ao optar por essa estratégia de empo-
deramento, as moradoras apostam no saber e na capacidade de ação
delas próprias, já que, concordando com Vasconcelos (2003), os gru-
pos possuem um saber valioso sobre suas situações de vida, sendo
capazes de colocá-lo em prática em seus cotidianos para pensar não
só sua condição de saúde e respectivo tratamento, como suas pró-
prias vidas. Nesse sentido, ressaltamos aqui o quanto o saber popu-
lar, nesse coletivo, vem operando como potencializador do cotidiano
das moradoras do assentamento Resistência Potiguar.
Psicologia e contextos rurais | 289

Para pensar a importância dessa questão convêm alguns


apontamentos. Sabemos que, historicamente, presenciamos um
processo de invalidação do saber/fazer dos grupos e coletivos
humanos, e simultâneo surgimento e fortalecimento do lugar ocu-
pado pelos experts em nossa sociedade. Particularmente na moder-
nidade, assiste-se a uma descapacitação dos indivíduos e coletivos
de gerirem seus próprios problemas, de resolverem suas questões
cotidianas, dada a posição ocupada pelos saberes ditos científicos/
especializados (Baremblitt, 1992). É nesse sentido que as diferen-
tes correntes da análise institucional, segundo Baremblitt (1992),
se propõem a devolver ou deflagrar os processos de autoanálise e
autogestão (processos esses em contínua inter-relação) a diferentes
agrupamentos humanos, favorecendo, ou fazendo com que sejam
mais bem sucedidos os processos revolucionários. Baremblitt
(1992) conceitua a autogestão como algo que é ao mesmo tempo o
processo e o resultado da organização que os coletivos se dão para
gerenciar sua vida, e autoanálise, que seria o processo de re-apro-
priação de um saber acerca de si mesmos, suas necessidades, dese-
jos e demandas, termos esses próprios da análise institucional, que
nos direciona a uma aposta no coletivo, no grupo.
Nesse sentido, entendemos que o modo de funcionamento
do assentamento, tendo vista sua história de vinculação ao MST,
e o processo de militância e luta pela terra, opera no sentido de
produzir modos de vida transversalizados pela prática da autoa-
nálise e autogestão, valorizando o saber e a capacidade de ação de
seus atores. Nessa mesma direção, cabe destacar que nossa postura
enquanto pesquisadores-interventores é a de provocar, potenciali-
zar tais movimentos. A roda de conversa como método, por exem-
plo, abre espaço para o diálogo entre essas mulheres acerca do tema
que lançamos ao grupo e aquilo que o próprio grupo lança pra nós,
com o objetivo de problematizar as questões referentes ao uso de
psicotrópicos através das trocas de experiências entre as mulheres
290 | Psicologia e contextos rurais

a partir de suas narrativas, na tentativa de produzir espaços de dis-


cussão e problematização do cotidiano.

Os processos de subjetivação militante


A discussão que fizemos até o momento ajuda a entender-
mos que no assentamento temos um movimento diferente daquele
observado nos contextos urbanos (e até mesmo em alguns contex-
tos rurais), no que diz respeito aos modos de organização, e gestão
do cotidiano.
Tendo em vista esse ser um assentamento que possui uma
história atravessada por um movimento social, acreditamos que
isso contribuiu para que a comunidade pudesse preservar deter-
minados modos de vida, bem como produzir outros processos de
subjetivação que possam reafirmar esse movimento que vai contra
as modelos de subjetivação hegemônicos.
O MST apresenta-se como uma investida de uma nova pos-
sibilidade de pensar a organização da nossa sociedade, visto que
tem o compromisso de “articular com todos os setores sociais e
suas formas de organização para construir um projeto popular que
enfrente o neoliberalismo, o imperialismo e as causas estruturais
dos problemas que afetam o povo brasileiro” (MST, 2011, s/p).
Nesse contexto, temos que um dos interesses da Psicologia
pelo movimento se dá justamente através da ótica que o vê como
um campo de estudos que produz modos de subjetivação diferen-
ciados. Assim, compartilhamos com Leite e Dimenstein (2006) o
conceito de subjetividade, a qual foge à concepção de um sujeito
psicológico abstrato, interiorizado e em dicotomia com os proces-
sos sociais.
Ao assumirmos que nossas noções acerca da subjetivi-
dade se compõem a partir da compreensão desta como processo
histórico, político, social, cultural, assumimos, também, que este
Psicologia e contextos rurais | 291

conceito abandona as clássicas definições cunhadas por escolas


tradicionais da Psicologia, Sociologia e Medicina. Nestas escolas
clássicas de pensamento, a subjetividade é compreendida em ter-
mos de uma experiência universal, racional, natural, que permeia o
mundo privado, o âmago de cada ser, trazendo em suas conceitua-
ções traços fortes das características das chamadas ciências moder-
nas (objetividade, neutralidade, replicabilidade, etc.). Assim, ao
abandonarmos essa noção clássica, que situa a subjetividade em
nível puramente individual e natural, a recolocamos, epistemologi-
camente, como uma realidade que tem origem social. No seio dessa
discussão, concordamos com Leite e Dimenstein (2002, pp. 116-117):

A subjetividade é um fato social construído a partir


de processos de subjetivação, o qual é engendrado por
determinantes sociais – históricos, políticos, ideológi-
cos, de gênero, de religião, conscientes ou não. Dessa
forma, em diferentes contextos culturais, diferentes sub-
jetividades são produzidas.

A subjetividade, sob esse ponto de vista, apresenta-se como


plural, não sendo, assim, resultado de estruturas fixas (Guattari,
1992), mas sim de um processo de produção, a partir de disposi-
tivos como a ciência, a política, a mídia etc., tendo, portanto, um
caráter industrial, ou seja, “fabricada, modelada, recebida, con-
sumida” (Guattari & Rolnik, 1986, p. 34). Para os autores, os pro-
cessos de subjetivação não só são históricos como dizem respeito
ao modelo de sociedade que se tem. Em nosso modelo capitalista,
por exemplo, os processos de subjetivação ocorrem em função
dessa sociedade. A subjetividade é forjada socialmente levando
em conta os valores que dizem respeito ao modo de vida capita-
lista: assim, cria-se uma subjetividade para o consumo, atravessada
pela lógica Capital X Trabalho, alienante e produtora de exclusões.
Nesse sentido, os autores trazem a perspectiva de que os processos
292 | Psicologia e contextos rurais

de subjetivação capitalísticos são produzidos em escala industrial,


homogeneizando maneiras de existir e de pensar.
Porém, se por um lado temos esse processo de despotencia-
lização dos coletivos em favor de uma subjetividade capitalística,
por outro, de acordo com Guattari e Rolnik (1986), temos a possi-
bilidade de criar novos modos de vida. Maneiras verdadeiramente
autênticas de existir, pensar e se organizar, ao que os autores deno-
minam processos de singularização:

O que vai caracterizar um processo de singularização


(que, durante certa época, eu chamei de “experiência
de grupo sujeito”), é que ele seja automodelador [...]
Essa capacidade é que vai lhes dar um mínimo de pos-
sibilidade de criação e permitir preservar exatamente
esse caráter de autonomia tão importante (Guattari &
Rolnik, 1986, p. 46).

Nesse sentido, entendemos e apostamos na ideia de que os


movimentos sociais, nesse caso o MST, pode operar processos de
subjetivação diferenciados, favorecendo processos de singulariza-
ção. Leite e Dimenstein trazem uma importante discussão sobre os
processo de produção de subjetividade no MST:

Entendemos que sua produção pode voltar-se tanto no


sentido de reprodução de modelos dominantes das rela-
ções sociais, como também de criação de espaços de rup-
tura, de modelos que redefinem o campo social. Nessa
ótica, o MST está sendo entendido enquanto um movi-
mento social que, ao defender um modelo de organiza-
ção coletiva da sociedade e das subjetividades, coloca-se
como um agente de subjetivação, com o qual os traba-
lhadores acampados passam a ser afetados por meio de
falas, rituais, programações e mobilizações no cotidiano
do acampamento (Leite, 2003 como citado em Leite &
Dimenstein, 2006, p. 21).
Psicologia e contextos rurais | 293

O MST, nessa perspectiva, passa a ser visto enquanto um


potente regime de subjetivação em que as ações coletivas e o pro-
cesso de formação postos em curso possam vir a desembocar num
modo de subjetivação militante que atinja todo seu âmbito (Leite
& Dimenstein, 2011).
Em consonância com esse pensamento, Guattari e Rolnik
(1986) pontuam a importância dos movimentos sociais contem-
porâneos: “Enquanto os movimentos que pretendem desembocar
numa transformação social combaterem, com práticas e referên-
cias arcaicas que veiculam uma visão maniqueísta, a onipotência
da produção de subjetividade capitalística, eles estarão deixando
o campo totalmente livre para essa produção” (Guattari & Rolnik,
1986, p. 49), o que reforça a ideia de que novos processos de subjeti-
vação se fazem também necessários a um projeto de transformação
social de maior amplitude.
O processo de singularização, conforme definem Guattari
e Rolnik (1986), propõe a ideia de revolução molecular enquanto
processos revolucionários que dizem respeito à produção de con-
dições de uma vida não só coletiva, mas também da encarnação da
vida para si próprio, tanto no que diz respeito ao campo material
quanto também no subjetivo.
Guattari e Rolnik (1986, p. 42) defendem que os equipa-
mentos coletivos como, por exemplo, os centros de saúde, cons-
tituem o Estado numa função ampliada, situando-se enquanto os
operários de uma máquina de formação de subjetividade capitalís-
tica, incidindo nas “montagens” da percepção, memória, produ-
zindo “modos de como se trabalha, se ama, se trepa, como se fala
etc.”. Há ainda uma tentativa de eliminação do que o autor chama
de processos de singularização, pois tudo deve ser classificável e
enquadrado em algum ponto de referência. Essa produção de sub-
jetividade “desconhece dimensões existenciais da existência como
a morte, a dor, a solidão [...]. Um sentimento como a raiva é algo
294 | Psicologia e contextos rurais

que surpreende, que escandaliza” (1986, p. 43). E, acrescentamos,


que é passível de se medicalizar.
Entretanto, essa estratégia de controle social se choca com
fatores de resistência, segundo apontam Guattari e Rolnik (1986),
capazes de produzir processos de diferenciação permanente.
Nesses termos, identificamos a produção de subjetividade dentro
desse processo de resistência, resistência essa encarnada nas práti-
cas, cotidiano, e na própria proposta política do MST.
Assim, embora estejam postas formas hegemônicas capi-
talistas de produção de subjetividades, temos, em contrapartida,
movimentos de potência dentro do assentamento. As histórias de
vida contadas durantes os três meses que permanecemos no assen-
tamento diziam de vidas marcadas por lutas, conquistas, esperas,
resistências.Como por exemplo, a história de Dona Vera, primeira
moradora do assentamento.

Eu fui a primeira a chegar aqui, quando eu cheguei, aqui


não era nada. Lá no acampamento eu lembro do meu
neto bem pequeno brincando ainda nas barracas...hoje
ele já tá um rapaz. Ah! As coisas eram muito difíceis na
época, a gente veio pra cá sem ter nada ainda, aqui era
tudo vazio, dai aos poucos foram fazendo as casas, daí
hoje tá assim, n/é? A minha até ficou escondida aqui [...]
A minha neta estuda na escola de Rio dos Índios, essas
semana a gente não foi porque a escola tá em greve [...]
Eu comecei a ir pra escola esse ano pra aprender a ler, daí
vou com minha neta no ônibus que passa aqui na pista
toda noite (Dona Vera).

Dona Vera foi a nossa última entrevistada; ela hoje tem 83


anos e nos contou histórias de uma vida marcada por lutas. A bata-
lha, segundo ela, começou desde criança, quando tinha que car-
regar lata d’água na cabeça. Histórias como a de Dona Vera foram
sendo repetidas em nossos encontros. Talvez pela faixa de idade
Psicologia e contextos rurais | 295

das mulheres que participaram de nossas rodas ser entre 40 e 70


anos, ouvíamos muitas histórias sobre dias difíceis, em que “não
havia tempo pra brincar, só sabiam o que era trabalhar”, como dizia
Dona Dalva.
E Dona Maria H. acrescentava:

Eu não fui criança não, eu não sabia o que era brincar


como esses meninos que tão aí fora brincando de bola.
Na minha época não importava se era criança, se era
adulto, todo mundo tinha que cuidar dos bichos, cuidar
da casa, levar água no jumento [...] o que eu fazia que era
acertar passarinho com baladeira (Dona Maria H.)

Dona Maria H., durante a entrevista, filosofa: “Eu trabalho


todo dia, no roçado, não tem tempo ruim, [...] o homem às vezes
parece que é que nem caramujo, que em vez de se esticar se enco-
lhe, mas tem mais é que falar mesmo”. Dona Maria H. referia-se
ao momento em que os moradores conquistaram a terra, que, a
seu ver, fez com que eles se acomodassem que nem caramujo den-
tro de sua concha. A moradora, ao dizer que “tem mais é que falar
mesmo”, reivindicava que as pessoas deviam ser mais ativas e ques-
tionadoras – para o que acrescentamos: tal como ela é.
Essa fala de Dona Maria H. nos provocou desde o primeiro
instante servindo como ponto de partida para discutirmos os dife-
rentes processos de subjetivação em curso na contemporaneidade,
aqui exemplificados nos modos de vida do trabalhador rural, e no
processo de produção do militante dentro do MST tendo em vista
que a militância não se configura enquanto algo pontual, mas diz
de uma posição do sujeito no mundo. Apesar de atualmente estar
mais afastado do MST, haja vista a conquista da terra, o assenta-
mento Resistência Potiguar teve, em sua gênese, uma intensa rela-
ção com o MST.
296 | Psicologia e contextos rurais

Leite e Dimenstein (2011) remetem a Paiva (2003), para quem


o processo de formação militante é um tema que os movimentos
sociais consideram importante para a conquista da autonomia e
para a emancipação e a liberdade humana (Paiva, 2003 como citado
em Leite & Dimenstein, 2011). As mulheres do assentamento costu-
mavam falar sobre militância ou formação militante, mencionando
reuniões que aconteciam durante o período de acampamento:

Eles faziam umas reuniões lá com a gente, ia um pes-


soal pra lá [referindo-se ao acampamento] ou a gente
ia lá pra Ceará-Mirim. Daí eles ensinavam umas coisas
pra gente, às vezes tinham uns cursos sobre agricultura,
sobre cozinhar com resto de alimento...essas coisas,
sabe? Ensinavam mais as coisas pra gente (Dona Dalva).

A maioria das mulheres referia-se ao MST da mesma forma


como Dona Dalva.Elas viam o movimento como importante para o
processo de formação de um coletivo, principalmente, pelos proje-
tos e cursos realizados durante a época do acampamento.
Tendo em vista que o assentamento existe há 7 anos, pode-
mos pensar que durante esse tempo foram se configurando outras
formas de organização e de produção de subjetividades. As mulhe-
res carregam a lembrança do tempo de acampamento enquanto
uma época difícil, mas ao mesmo tempo boa, de muita união e luta.
Dona Dalva nos contava:

A nossa vida é só luta mesmo, só Deus sabe o que a gente


passou nas barracas pra depois conseguir essa terra [...]
A gente era bem unidas na época das barracas, porque
a gente precisava se organizar. Todas essas coisas foram
difíceis mas é bom pra gente valorizar o que a gente tem
hoje [...] A gente aprendeu muito com aquela época
(Dona Dalva).
Psicologia e contextos rurais | 297

Diante dessas considerações, a partir do olhar das moradoras


sobre o processo de ocupação e as vivências dentro do movimento,
defendemos que o MST operou como um importante potencializa-
dor na produção de processos de singularização daqueles agricul-
tores, atuando na formação de uma posição de resistência que até
hoje mostra-se presente naquela comunidade. Tal constatação nos
transporta ao pensamento de Rolnik (2001, p. 4):

A resistência, hoje, tende a não mais se situar por opo-


sição à realidade vigente, numa suposta realidade para-
lela; seu alvo agora é o princípio que norteia o destino
da criação, já que, como visto, esta tornou-se uma das
principais – senão a principal – matérias-primas do
modo de produção atual. O desafio está em enfrentar a
ambigüidade dessa estratégia contemporânea do capita-
lismo, colocar-se em seu próprio âmago, associando-se
ao investimento do capitalismo na potência criadora,
mas negociando para manter a vida como princípio ético
organizador. Este é um desafio que se coloca atualmente
em todos os meios, com problemas específicos em cada
um deles.

Frente a isso, podemos pensar que a resistência se coloca


na vida, não sendo algo inventado, fictício, mas sim um processo
que se constitui a partir do momento em que se cria novos devires
e formas de se libertar daquilo que nos captura, a todo momento,
para um lugar de homogeneização. Resistir, nesse contexto, pode
ser compreendido como uma prática cotidiana, exercida por sujei-
tos que podem ou não estar inseridos em um movimento social.
Podemos também pensar que a escolha por estratégias de
cuidado em saúde que diferenciam-se dos modelos impostos pelo
capitalismo representa-se como uma posição criativa. Não usar psi-
cotrópicos, acreditar e inventar outras formas de existência diz da
invenção de linhas de fuga, ou seja, rupturas por quais é possível
298 | Psicologia e contextos rurais

ampliarmos nosso território, sem deixarmos de fazer parte dos


agenciamentos que nos compõe, e a partir disso, ampliar nossas
possibilidades, para que se possam criar espaços para novas formas
de expressão, escapando ao poder que oprime o indivíduo, inven-
tando um modus operandi mais potente e afirmativo (Deleuze,
2004).
É possível, em modelo de conclusão, pensarmos que os
modos de vida daquelas mulheres vêm de uma construção histó-
rica, atravessados por fatores que foram determinantes na produção
de uma posição de resistência frente aos modelos de produção de
subjetividade capitalísticos.Pensar sobre saúde no Assentamento
Resistência Potiguar é pensar sobre vidas que se reinventam, movi-
mentam-se, resistem e vivem.

Referências
Afonso, M. L. & Abade, F. L. (2008). Para Reinventar as Rodas: rodas de
conversa em Direitos Humanos. Belo Horizonte: RECIMAM.

Baremblitt, G. F. (1992). Compêndio de Análise Institucional e outras correntes:


teoria e prática. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos.

Baremblitt, G. F. (1998). Introdução à esquizoanálise. Belo Horizonte:


Biblioteca do Instituto Félix Guattari.

Bauman, Z. (2009). Vida líquida. Rio de Janeiro: Zahar.

Bogo, A. (2000). O MST e a cultura. Veranópolis: Caderno de Formação 34.

Canabarrro, R. C. S. & Alves, M. B. (2009). Uma pílula para (não) viver. Rev.
Mal estar e subjetividade, Fortaleza, 9 (3), 839-866.

Carvalho, L. F. & Dimenstein, M. (2004). O modelo de atenção à saúde e o


uso de ansiolíticos entre mulheres. Estudos de Psicologia, 9(1), 121-129.
Psicologia e contextos rurais | 299

Deleuze, G. (2004). Diálogos. Lisboa: Relógio D’Água.

Domingues, E. (2007). Vinte anos do MST: a psicologia nesta história. Psicol.


estud. Maringá12(3), 573-582.

Frizzo, K. R. (2010). Diário de campo: reflexões epistemilógicas e


metodológicas. In J. C. Sarriera; E. T. Saforcada (Orgs.). Introdução
à Psicologia comunitária: bases teóricas e metodológicas (pp. 40-52).
Porto Alegre: Sulina.

Guattari, F (1992). Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34.

Guattari, F. & Rolnik, S. (1986). Micropolítica: cartografias do desejo.


Petrópolis: Vozes.

Kirst, P. G. (2003). Redes do Olhar. In Kirst, P. G. & Fonseca, T, M. G. (org)


(2003). Cartografias e Devires: A Construção do Presente. (pp. 43-52).
Porto Alegre: EDUFRGS.

Leite, J. F. & Dimenstein, M. (2002) Mal-estar na psicologia: a insurreição da


subjetividade. Mal-Estar e Subjetividade, 2 (2), 9-26.

Leite, J. F. & Dimenstein, M. (2006). Subjetividade em movimento: o MST no


Rio Grande do Norte. Psicologia e Sociedade, 18 (1), 21-30.

Leite, J. F. & Dimenstein, M. (2011). Militância política e produção de


subjetividade: o MST em perspectiva. Natal: EDUFRN.

Leite, S. et al.(2004). Impacto nos assentamentos: um estudo sobre o meio


rural brasileiro. Instituto Interamericano de Cooperação para
Agricultura: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural.
São Paulo: UNESP.

Levigard, Y. E. & Rozemberg, B. (2004). A interpretação dos profissionais de


saúde acerca das queixas de “nervos” no meio rural: uma aproximação
300 | Psicologia e contextos rurais

ao problema das intoxicações por agrotóxicos. Cad. De Saúde Pública,


20 (6), 1515-1524.

Mairesse, D. (2003). Cartografia: do método à arte de fazer pesquisa. In P. G.


Kirst & T. M. G. Fonseca (Orgs.). Cartografias e Devires: A Construção
do Presente (pp. 259-272). Porto Alegre: EDUFRGS.

Manzini, E. J. (2004). Entrevista semiestruturada: análise de objetivos e de


roteiros. In Seminário Internacional de pesquisa e estudos qualitativos,
2, A pesquisa qualitativa em debate. Anais... Bauru: SIPEQ.

Mastroianni, P. C.; Vaz, A. C. R.; Noto, A. R. & Galduróz, J. C. F. (2008). Análise


do conteúdo de propagandas de medicamentos psicoativos. Revista
Saúde Pública, 42 (5), 529-535.

MST (2011). Quem somos. Recuperado em 12 abril 2011, de http://www.mst.


org.br/taxonomy/term/324.

Noto, A. R. & Galduróz, J. C. F. (1999). O uso de drogas psicotrópicas e a


prevenção no Brasil. Revista Ciência Saúde Coletiva, 4 (1), 145-151.

Pelegrini, M. R. F. (2003). O abuso de medicamentos psicotrópicos na


contemporaneidade. Psicologia Ciência e Profissão, 23 (1), 38-41.

Queiroz, D. T.; Vall, J.; Souza, A. M. A. & Vieira, N. F. C. (2007). Observação


participante na Pesquisa qualitativa: conceitos e aplicações na área da
saúde. Revista Enfermagem UERJ,15 (2), 276-283.

Rozemberg B. (1994). O consumo de calmantes e o “problema de nervos”


entre lavradores. Rev. Saúde Pública, 28, 300-308.

Tavares, L. A. T. (2009). A depressão como “mal-estar” contemporâneo:


medicalização e (ex)-sistência do sujeito depressivo. Dissertação de
Mestrado, Universidade Estadual Paulista, Assis, SP.
Psicologia e contextos rurais | 301

Rolnik, S. (2001). Despachos no museu: sabe-se lá o que vai acontecer... São


Paulo Perspectiva, 15 (3), 03-09.

Tesser, C. D. (2006). Medicalização social (II): limites biomédicos e propostas


para a clínica na atenção básica. Interface – Comunic., Saúde, Educ., 10
(20), 347-362.

Tesser, C. D.; Neto, P. P. & Campos, G. W. (2010)Acolhimento e (des)


medicalização social: um desafio para as equipes de saúde da família.
Ciencia e Saude coletiva, 15 (3), 3615-3624.

Trisotto, S. & Filho, K. P. (2008). O corpo problematizado de uma perspectiva


histórico-política. Psicologia em Estudo, 13 (1), 115-121.

Vasconcelos, E. M. (2003). O poder que brota da dor e da opressão:


‘empowerment’, sua história, teoria e estratégias. São Paulo: Paulus.

Vasconcelos, E. M. (2008). Abordagens psicossociais volume II: reforma


psiquiátrica e saúde mental na ótica da cultura e das lutas populares.
São Paulo: Hucitec.
A seca e sua relação com
o bem-estar das famílias
rurais do noroeste do
Rio Grande do Sul1
Eveline Favero
Jorge Castellá Sarriera
Melina Carvalho Trindade
Francielli Galli

Introdução

U m dos problemas que mais têm relevância para as famílias


rurais do Rio Grande do Sul é a seca e que historicamente
tem afetado grande número de pessoas, especialmente na por-
ção Noroeste desse Estado. No entanto, embora sendo a seca um
problema antigo, ocorreram poucos avanços em políticas públicas

1 Capítulo derivado da tese O impacto psicossocial das secas em agricultores


familiares do Rio Grande do Sul: Um estudo na perspectiva da psicologia dos
desastres, de autoria de Eveline Favero, bolsista do CNPq no Programa de Pós-
graduação em Psicologia, UFRGS.
304 | Psicologia e contextos rurais

para a minimização de suas consequências econômicas e sociais.


Observa-se, nesse sentido, uma tendência para a adoção de medi-
das governamentais paliativas, como a prorrogação de dívidas e a
aprovação de linhas de crédito emergenciais para as famílias rurais
(Câmara dos Deputados, 2010).
As secas não causam apenas prejuízos econômicos e sociais.
Dentre as suas consequências, estão também os impactos psicoló-
gicos. Bosch (2004), por exemplo, identificou que durante perío-
dos de secas prolongadas ocorrem mudanças na relação entre os
casais, especialmente no que diz respeito à comunicação. O marido
passaria a conversar menos com sua esposa e surgiriam sintomas
de estresse e depressão, principalmente naquele indivíduo que é o
chefe da família. As gerações mais novas teriam mais dificuldades
financeiras para enfrentar períodos prolongados de seca, segundo
a autora, o que faz com que comumente migrem para buscar traba-
lho nas grandes cidades, provocando assim rupturas de laços fami-
liares e sociais (Bosch, 2004).
Embora diferentes tipos de crises financeiras ocorram com
frequência – e muitas delas tenham sérias implicações econômicas
e sociais – são poucos os estudos que abordam os efeitos psicológi-
cos desse tipo de evento. De acordo com Ünal-Karagüven (2009),
uma crise financeira se instala quando recursos necessários para
a sobrevivência não estão disponíveis, desencadeando assim um
processo de estresse psicológico. O termo “recursos” compreende
os “objetos, condições, características pessoais e energias que tem
valor para a sobrevivência, direta ou indiretamente, ou que ser-
vem como meio de atingir esse fim” (Hobfoll, 1998, p. 54). Hobfoll
delimitou essa dimensão a partir da valorização atribuída por uma
ampla classe de indivíduos a respeito de determinados recursos,
sendo esses percebidos como salientes tanto para as pessoas em
geral, quanto para o indivíduo.
Psicologia e contextos rurais | 305

Os recursos dividem-se entre instrumentais e simbólicos,


podendo ser classificados em: a) Recursos primários: alimentação
e abrigo, os quais estão relacionados à sobrevivência; b) Recursos
secundários: senso de conhecimento e domínio de determinado
fenômeno, bem como assistência à saúde e transporte. Os recur-
sos secundários aumentam a probabilidade de obter e proteger os
recursos primários; c) Recursos terciários: status social e apoio
social, estando apenas simbolicamente vinculados com a necessi-
dade de sobrevivência. Tais recursos possuem um valor que mantem
o sentimento de se estar distante da pobreza e, consequentemente,
da falta de alimentação e abrigo (Hobfoll, 1998).
O estresse psicológico, por sua vez, foi definido por Hobfoll
(1989) como uma reação a um ambiente no qual existe pelo menos
uma dessas situações: a) a ameaça da perda de recursos concretos;
b) a perda desses recursos; c) a ausência de ganhos após o inves-
timento de recursos. Ambos, percepção e perda real, ou a falta de
ganhos, seriam suficientes para produzir estresse. Perder recursos
é mais importante do que obter ganhos no que se refere ao grau
de impacto no bem-estar, sendo considerado o principal ingre-
diente no processo de estresse (Hobfoll, 2001; Hobfoll & Lilly, 1993;
Ünal-Karagüven, 2009). A percepção da perda envolve a avaliação
cognitiva da situação e não apenas a perda real, sendo a primeira
diretamente relacionada com a intensidade do estresse percebido
pelo indivíduo (Lazarus & Folkman, 1984).
Desse modo, adequar recursos pessoais, sociais, econômi-
cos e ambientais com demandas externas é sempre um desafio para
a manutenção do bem-estar, determinando a direção e os resul-
tados das respostas psicológicas ao estresse (Hobfoll, 1989). Um
longo período de crise financeira, por exemplo, pode causar perdas
contínuas e uma alta demanda por recursos, afetando os mecanis-
mos de coping, os quais desempenham um papel importante nas
reações dos indivíduos nessas situações (Lazarus & Folkman, 1984;
Ünal-Karagüven, 2009). No caso da atividade agrícola, a perda
306 | Psicologia e contextos rurais

de recursos financeiros pode ocorrer por diferentes razões como,


por exemplo, o preço dos produtos, oscilações climáticas como
falta ou excesso de chuvas, granizo e vendaval (Logan & Ranzijn,
2008). Além disso, não é apenas o agente externo que determina o
grau de perdas, mas também as características do contexto (Ünal-
Karagüven, 2009), como, por exemplo, a disponibilidade de recur-
sos de enfrentamento sejam eles materiais, sociais ou psicológicos.
A teoria Conservation of Resources (COR) postula que os
indivíduos utilizam estratégias de coping específicas para cada
situação, uma vez que o coping está diretamente “embebido” do
contexto (Hobfoll, 2001; Ünal-Karagüven, 2009). O termo coping
foi definido como um esforço cognitivo ou comportamental para
lidar com situações que são percebidas como estressantes (Lazarus
& Folkman, 1984), sendo que estilos de coping proativos, junta-
mente com recursos tais como status socioeconômico, controle
pessoal e apoio social, têm sido considerados fundamentais para a
resiliência ao estresse (Hobfoll, 1989).
De acordo com o modelo de COR o processo de conservação
de recursos é o produto tanto das condições de vida como um todo,
quanto das circunstâncias crônicas ou agudas que levam à perda de
recursos. Quando faltam recursos de enfrentamento, a tendência
é que seja gerado ou desencadeado um processo de perdas. Diante
das perdas, os indivíduos adotam estratégias de conservação de
recursos, ou seja, utilizam os meios disponíveis de maneira a aper-
feiçoá-los e com isso, gerar novos recursos que possam reabastecer
e compensar as condições de perdas agudas ou crônicas. Quando
o esforço para conservar recursos não produz os resultados espe-
rados, ocorrem consequências emocionais e funcionais negativas,
gerando perdas secundárias, o que leva ao agravamento das cir-
cunstâncias crônicas ou agudas e a diminuição dos recursos dis-
poníveis. Nessa condição, uma crise se instalaria, desencadeando
um processo de estresse psicológico (Hobfoll, 1989/2001; Hobfoll &
Lilly, 1993; Kaniasty & Norris, 1995).
Psicologia e contextos rurais | 307

O processamento de recursos como o apoio social desem-


penha um papel importante no enfrentamento do estresse quando
considerado o coping como um esforço não apenas individual, mas
também comunitário. Muitos eventos estressantes, e aqui se pode
citar os desastres, são experimentados coletivamente e acabam por
esgotar recursos tanto individuais, quanto sociais (Hobfoll, 1989).
O modelo de conservação de recursos leva em conta que: a) mui-
tos estressores têm um componente interpessoal; b) os esforços
individuais de coping podem afetar o ambiente social; c) ações de
coping, na maioria das vezes, requerem interação com outras pes-
soas (Hobfoll, 1989, 2001). Em relação ao apoio social em desastres,
Norris e Kaniasty (1996) constataram que as pessoas que enfren-
taram melhor o furacão Hugo e o Andrew, por exemplo, foram as
que dispunham mais de apoio social, como pessoas com quem con-
versar e com quem resolver problemas. Desse modo, o apoio social
nos ajuda a interpretar os fatos como menos estressantes e mesmo
quando interpretamos um fato como muito estressante, o apoio
social pode nos ajudar a enfrentá-lo.
A teoria de conservação de recursos (Hobfoll, 1989) pode
ser aplicada na análise das perdas e estratégias de coping frente a
situações de desastres. Muitos estudos na área de desastres mos-
traram que a perda de recursos é um forte preditor para a mobili-
zação de estratégias de coping (Hobfoll, 2001; Norris, Perilla, Riad,
Kaniasty, & Lavizzo, 1999). As secas são eventos coletivos que, além
das consideráveis perdas econômicas, redução na disponibilidade
de recursos necessários para a sobrevivência como água, alimentos
e outros, podem gerar crises individuais e sociais, com consequ-
ências significativas na autoestima e bem-estar (Boeckner, Bosch,
& Johnston, 2003; Bosch, 2004; Logan & Ranzijn, 2008). Elas se
diferenciam de outros desastres como enchentes e incêndios pela
sua dimensão temporal (Boeckner et al., 2003). Nesse sentido, as
famílias que atravessam as secas podem desenvolver altos níveis
de estresse psicológico quando se deparam com o declínio nos
308 | Psicologia e contextos rurais

ganhos agrícolas, bem como com a falta de controle sobre o evento


e suas consequências difusas, sendo importante considerar que o
bem-estar das famílias rurais está diretamente relacionado com o
sucesso na produção agrícola (Logan & Ranzijn, 2008).
Considerando a ocorrência de secas em algumas regiões
do Rio Grande do Sul, especialmente na região Noroeste e, con-
sequentemente, perdas agrícolas e de recursos de sobrevivência
familiar, este trabalho objetiva: a) analisar, com base na Teoria
de Conservação de Recursos (Hobfoll, 1989, 2001), como as per-
das ocasionadas pelas secas exercem influência sobre o bem-estar
familiar; b) identificar as estratégias de coping e os recursos utiliza-
dos pelos agricultores para lidar com o evento.

Método
Participaram do estudo sete agricultores num total de
seis entrevistas, considerando que uma delas foi concedida pelo
casal. Todos residiam na zona rural do município de Frederico
Westphalen, RS, sendo três do sexo feminino (papel familiar = mãe)
e quatro do sexo masculino (papel familiar = pai). Os participantes
estavam casados e possuíam de um a dois filhos no momento da
pesquisa. A idade variou de 33 a 51 anos (M = 42; DP = 5,22), com
faixa de renda entre um e acima de quatro salários mínimos. Todos
os participantes possuíam ensino fundamental incompleto. Como
critério de inclusão, utilizou-se trabalhar na agricultura e morar na
zona rural do município escolhido (onde há incidência de secas) há
pelo menos cinco anos e ser maior de 18 anos.
A seleção dos participantes se deu por meio dos seguintes
procedimentos: 1) Primeiramente foi aplicado um questionário
quantitativo com 198 agricultores, o qual fazia parte do estudo de
tese da primeira autora. Os participantes desse estudo responde-
ram no questionário se gostariam ou não de conceder uma entre-
vista, e, em caso afirmativo, forneceram seu número de telefone; 2)
Psicologia e contextos rurais | 309

Foram sorteados um total de 20 participantes dentre os que haviam


respondido afirmativamente; 3) Estes foram contatados pela ordem
de sorteio e o número de entrevistas realizado até atingir o critério
de saturação dos dados. Adotou-se a entrevista semiestruturada,
seguindo um roteiro que abordava os seguintes assuntos: percep-
ção do desastre, seca e bem-estar familiar, sentimentos relaciona-
dos ao desastre, apoio social, preparo familiar e estratégias para
lidar com a seca. Para a coleta de dados biosociodemográficos foi
utilizado um breve questionário.
Os agricultores entrevistados desenvolviam as seguin-
tes atividades agrícolas: produção de leite, cultivo de porongo
para fabricação de cuia, cultivo de amendoim e agroindústria de
rapadura, fabricação de carvão, cultivo de fumo, cultivo de grãos
(milho, feijão, soja). Para fins de análise e para preservar a identi-
dade dos participantes, seus nomes foram substituídos por partici-
pante P1F, P2F, P3M, P4M, P5M, P6M e P6F, sendo M = masculino
e F = feminino.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do Instituto de
Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
através do Protocolo número 2010003. As entrevistas foram rea-
lizadas após autorização dos participantes e seu consentimento
expresso por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
e da autorização para a gravação de áudio, conforme os critérios éti-
cos para a pesquisa com seres humanos que constam na Resolução
196/96 do Conselho Nacional de Saúde (CNS, 1996).
Após transcrição das entrevistas na íntegra, os dados foram
analisados pelo método qualitativo de Análise de Conteúdo (Bardin,
1979), com auxílio do programa Atlas.ti, versão 5.6. Realizaram-se
as seguintes etapas de análise: a) leitura e discussão de cada caso,
buscando identificar características gerais e especificidades; b)
exploração e codificação, por meio da classificação das falas em
unidades de análise independentes; c) agrupamento das unidades
310 | Psicologia e contextos rurais

em categorias analíticas, resultantes daquelas propostas a priori


(dedutivo) em consonância com as que emergiram do contexto dos
dados (indutivo); d) tratamento dos resultados, por meio da des-
crição das categorias analíticas e do estabelecimento de relações
entre elas; e) interpretação do sentido adquirido entre as unidades
e categorias no contexto do estudo. As unidades de sentido, a cate-
gorização final e a interpretação dos resultados foram obtidas por
consenso entre três juízes.

Resultados e discussões
Os resultados das entrevistas foram agrupados em cate-
gorias analíticas, descritas na Tabela 1, compostas de unidades de
análise, identificadas e extraídas da fala dos participantes. A seguir,
descreve-se cada uma das categorias.
Psicologia e contextos rurais | 311

Quadro 1 – Categorias relativas à seca no contexto da família agrícola


Categoria analítica Unidades de análise
– falta de água
– clima abafado
– secam as plantas
Descrição física do desastre
– falta de chuva
– seca a terra
– sol forte

– a seca é esperada
– a vida seria melhor sem a seca
Percepção do desastre – o desastre é ruim para a agricultura
– traz prejuízo
– a seca é recorrente

– alteração da rotina familiar


– redução nas atividades de lazer
– dificuldades financeiras
Impactos objetivos da seca
– restrições na dieta alimentar
– falta de água para consumo humano, animal e
higiene pessoal

– desânimo
– desespero
– insegurança
– impotência
Impactos subjetivos da seca
– tristeza
– aborrecimento
– preocupação
– prejuízo no sono

– autocontrole
– antecipar plantio
– corte de gastos
– buscar uma fonte de renda alternativa
Estratégias para lidar com o
– buscar novas possibilidades para lidar com o
desastre
desastre (irrigação)
– saída do campo
– utilizar recursos externos
– acostumar-se com o desastre

– apoio familiar
Apoio social – apoio dos amigos/outros
– ajuda externa (pública)

Descrição física do desastre


Ao serem solicitados a falarem sobre a seca, os partici-
pantes passaram a descrevê-la a partir de suas características e
312 | Psicologia e contextos rurais

consequências, como por exemplo, “falta de chuva, morre tudo,


seca a terra... Falta água, fica abafado... Falta umidade no ar. Morre
a planta, a árvore e tudo” (Participante 1 Feminino = P1F).
Os agricultores definem a seca do ponto de vista da agricul-
tura, relacionando o desastre com suas implicações na atividade
agrícola, na modificação do ambiente em que vivem e como algo
distinto da normalidade física. Ao mesmo tempo em que descre-
vem a seca, apontam suas consequências, tais como: “tu faz as
planta (sic), pastagem pras vacas, essas coisas, praticamente não
desenvolve nada, não cresce, falta de água, né, e, para tudo” (P5M).
Teoricamente existem diferentes definições para seca,
como por exemplo, secas meteorológicas, secas agrícolas, secas
econômicas e ainda secas de recursos hídricos (Pereira, Cordery, &
Iacovides, 2002). Observa-se na fala dos participantes uma compre-
ensão global do fenômeno a partir de suas experiências empíricas,
sendo que a descrição física da seca é acompanhada pela dimensão
do prejuízo que ela traz (carência de diferentes tipos de recursos
primários), como pode ser observado na seguinte fala: “termina a
água, daí, termina a pastagem pra quem tem gado, seca a planta,
não tem, não dá nada (P6M)”, ao mesmo tempo em que relacionam
seus impactos com as consequências psicológicas e no bem-estar
familiar, aspectos que são abordados nas demais categorias.

Percepção do desastre
Relativo à percepção do desastre, os participantes descreve-
ram a seca como um evento esperado por causa da sua recorrência
e que traz prejuízo, conforme as falas a seguir: “a gente se dá conta
que está acontecendo e sempre é esperado” (P1F) e “a seca é uma
coisa que vai trazer prejuízo com certeza” (P3M).
Desse modo, a percepção que os participantes têm da seca é
de um evento esperado e negativo, sobre o qual têm pouco controle,
Psicologia e contextos rurais | 313

especialmente, quando relacionado com as suas consequências, ou


seja, as perdas reais na agricultura.

Então, a seca pra nós é o inimigo maior na agricultura


porque tu planta (sic) esperando que cresça e não desen-
volve nada, né. Então pra nós é uma das piores coisas
assim (P5M).

Para Slovic (2010), a população de um modo geral possui


uma concepção ampla de riscos, qualitativa e complexa, que incor-
pora considerações, tais como medo, incerteza, potencial catastró-
fico, controlabilidade, equidade, risco para as futuras gerações, etc.
Ao mesmo tempo em que os participantes reconhecem que a seca é
um desastre esperado, também assumem a dificuldade de contro-
lar os seus impactos na agricultura e que, obviamente, resultam em
prejuízos para a família em diferentes aspectos.
No caso da seca, não está presente a ilusão de invulnera-
bilidade, o que é muito comum frente ao risco de desastres, espe-
cialmente aqueles de caráter súbito e com consequências incertas.
Nesse sentido, Paez, Fernández e Martín Beristain (2001) referiram
que quando as pessoas sabem que os efeitos negativos de um evento
afetam a todos de maneira indiscriminada, como no caso da seca,
a tendência é não mostrarem ilusão de invulnerabilidade e, nesse
caso, perceberem o risco de ser afetadas pelo desastre.

Impactos objetivos da seca


Os participantes referem que um dos principais impactos
da seca é no setor financeiro e, consequentemente, isso traz impli-
cações para o bem-estar, através de preocupação, aborrecimento e
prejuízo no sono, além de dificuldades de higiene e prejuízos na ali-
mentação. Em relação aos impactos financeiros destacam: “reflete
que tu perdendo a safra tu perde (sic), tu não tem (sic) salário, tu
não tem (sic) do que viver” (P1F). E ainda:
314 | Psicologia e contextos rurais

Tu planta (sic) pra dar, gasta pra tu botar (sic) na lavoura,


e não, depois não dá nada. A gente se sente mal, né,
aborrecido. Como que tu vai (sic) pagar alguma dívida?
Vai (sic) tirar de onde pra pagar se não dá na lavoura? É
triste. (P6F)

Em relação aos efeitos da seca no bem-estar, Boeckner et al.


(2003) constataram que este último declina quando ocorre o desas-
tre, e está relacionado com o decréscimo nos ganhos financeiros,
o alto nível de estresse, menor contato social e maior incidência
de adoecimento, especialmente entre os mais velhos, em épocas
de seca. Os autores também referiram que o estresse financeiro
é frequentemente um dos aborrecimentos diários que as famílias
têm que lidar. Somando-se a outras dificuldades, decorrentes ou
não das secas, o estresse financeiro pode se tornar agudo ou crô-
nico. Staniford et al. (2009), numa pesquisa com citricultores, veri-
ficaram que as dificuldades financeiras, decorrentes das secas ou
oscilações de mercado, são a principal fonte de estresse para essa
população.
Foi possível constatar, a partir do estudo com os agricultores
familiares do Rio Grande do Sul, que a seca é um evento que não
permite à família se organizar financeiramente, diante da dificul-
dade de prever a sua duração e consequências, bem como diante
da recorrência do desastre muitas vezes em anos consecutivos. Um
dos aspectos relatados como reflexo do desastre é o acúmulo de
dívidas relacionado com a perda da produção e a consequente falta
de dinheiro para a subsistência familiar e manutenção das ativida-
des na propriedade, assim como para saldar os compromissos da
safra anterior e investir no próximo processo produtivo:

A preocupação. Sempre a gente tem compromisso, e


quer pagar. E quando chega de madrugada a gente se
acorda e se lembra. E vamos pagar amanhã com o quê?
Se o dinheiro que vem é da lavoura, se não vem da lavoura
Psicologia e contextos rurais | 315

é muito pouco [...]. Mas vêm acumulando de um ano pra


outro, de um ano pra outro... vêm acumulando (P4M)

Recorrer a estratégias que levam ao acúmulo de dívidas,


segundo Roncoli et al. (2001), só acontece quando as famílias esgo-
taram outros recursos e estratégias para lidar com o desastre. Para
os autores, esta é uma estratégia das famílias mais pobres, que
posteriormente acabam tendo que vender produtos por um baixo
preço para pagar suas dívidas.
A seca também interfere na rotina diária, levando algumas
famílias a terem que providenciar água e alimentação para seus
membros e para os animais. Além de aumentar a preocupação,
aumenta também o volume de trabalho diário:

Interfere, porque perde tempo atrás de buscar água e o


pasto morre, aí tem que providenciar outra comida, e
pra gente também falta verdura, falta fruta, até perde,
de repente, tipo o feijão, coisas assim, arroz, né... (P1F).

Sobre o aumento de volume de trabalho mencionado pela


participante, outros aspectos também podem contribuir. Roncoli
et al. (2001) verificaram que, diante das perdas agrícolas, por exem-
plo, é normal os agricultores terem que replantar suas lavouras, o
que dobra a necessidade de esforços para produzir naquele perí-
odo. Isso também foi constatado no contexto deste estudo, sendo
o replantio da lavoura uma estratégia de enfrentamento dos preju-
ízos do desastre (Favero, 2006).
Dificuldades de higiene e lazer também foram menciona-
das pelos participantes: “ah, mas desde a higiene, desde a água,
você não tem água, como é que você vai ter higiene? Nunca” (P6F),
ou:

Tu vai (sic) sair de casa pra ir (sic), digamos assim ó, se


fosse à festa domingo lá, tá, vamos sair, vamos à festa.
316 | Psicologia e contextos rurais

Agora tá (sic) tudo calmo, tá (sic) tudo quieto, tudo é


fresquinho, é frio, nada de perigo de incêndio, nada, mas
se for quente tu vai (sic) sair o dia inteiro, a vaca está
passando sede, o terneiro de repente pega sol, morre do
calor, e assim vai indo tudo, a casa tu fecha (sic), aquilo
vira um perigo de pegar fogo, daí tu sai (sic) e a cabeça
fica em casa (P1F).

Verifica-se que a seca traz várias implicações em diferentes


domínios do bem-estar familiar e que embora seus prejuízos possam
ser mais bem avaliados pela dimensão financeira, os agricultores
estudados evidenciaram outros aspectos pertinentes. Constatou-se
que também são importantes os impactos na higiene, lazer, rotina
diária, descanso e alimentação, de modo que o bem-estar das famí-
lias rurais não pode ser avaliado apenas pelos aspectos objetivos,
mas também pelos subjetivos.

Impactos subjetivos da seca


Os entrevistados relataram vários sentimentos decorrentes
do desastre, tais como, desânimo, aborrecimento, preocupação,
desespero, insegurança, impotência e tristeza: “dava aquela sensa-
ção assim de faltar tudo né, porque tu estás vendo aí que está mor-
rendo tudo, tu esperas o quê? Dá um desespero né! Por que, o que
mais? É, é uma pena!” (P3M) e “a gente sempre tem um sentimento,
né? Vê (sic) a lavoura morrendo dia por dia, e sabendo que não dá
pra fazer nada, né?” (P4M).

A gente sempre se sente mal porque olha tudo o que a


gente trabalha, se esforça e... e ver o sol, que o sol vai
levando tudo, o trabalho da gente, né, isso é difícil da
gente... dá vontade até de desistir de ser agricultor (P3M).
Psicologia e contextos rurais | 317

Faltando água dá uma sensação de insegurança, de que


tu não vais ter de repente com o que sobreviver e que vai
te faltar a renda, a renda gera em cima disso ali, mor-
rendo as plantas, as coisas, se foi, faltou água, morre o
gado, morre tudo... (P1F).

Pode-se constatar que as mudanças objetivas que ocorrem


no ambiente em decorrência da seca se refletem em mudanças
subjetivas para os agricultores, o que ficou evidente na fala dos
participantes. Desse modo, observa-se um vínculo estreito entre
o agricultor e a natureza, de modo que as consequências objetivas
são sentidas subjetivamente e expressas por meio de suas falas.
Autores como Staniford et al. (2009) encontraram sintomas
depressivos e afetivos ao analisar os impactos da seca em citriculto-
res do Sul da Austrália. Dentre os sintomas estavam: sentir-se mal,
tristeza, perda da motivação, ideação suicida, isolamento, nega-
tivismo, baixa autoestima, além de frustração, desapontamento e
irritabilidade. Se comparados esses resultados com os do estudo
atual, pode-se perceber muita semelhança entre os dois contextos.
No entanto, não foi mencionada ideação suicida ou irritabilidade,
ao passo que os participantes deste estudo referiram o sentimento
de impotência diante da seca e insegurança quanto ao futuro, o que
pode estar relacionado à percepção da seca como um fenômeno
incontrolável (Logan & Ranzijn, 2008).
O estresse por fatores financeiros está também relacionado
aos prejuízos no sono de acordo com Bosch (2004), dado corrobo-
rado pelos entrevistados deste estudo: “Ah interfere (referindo-se
ao bem-estar). Interfere porque a gente já fica preocupado (sic), né,
não dorme, às vezes não... porque a preocupação a gente sempre foi
de nunca negar conta né. [...] Chega o dia, e daí?”( P3M).
Pode-se constatar que a seca é um desastre com potencial
para afetar a saúde psicológica dos agricultores. Dentre os senti-
mentos evidenciados, estão a impotência e a insegurança quanto
318 | Psicologia e contextos rurais

ao futuro, bem como o desânimo e a tristeza. Destaca-se que o


quanto uma seca se prolonga no tempo e o quanto de prejuízo ela
causa, são variáveis importantes a serem considerados na análise
do bem-estar para esta população.

Estratégias para lidar com o desastre


Partindo do contexto estudado, os participantes afirmaram
não estarem preparados para lidar com a seca, por causa da sua
condição econômica, verbalizando nos seguintes termos: “acredito
que não” (P6M) e “mais ou menos. Não muito. Até pelo poder aqui-
sitivo, né” (P1F).
Nesse sentido, uma expressão utilizada para descrever a
maneira de lidar com o desastre é “ir levando”:

Não tem o que fazer, tem que ir indo, vai levando, vai
fazendo como e o que dá porque não tem alternativa [...]
se não for muito grande até que... mas agora, se der uma
seca grande mesmo não (P3M).

A expressão “ir levando” pode estar indicando uma necessi-


dade dos participantes de se acomodarem à nova situação e, então,
com o passar do tempo poder decidir o que fazer diante das mudan-
ças no contexto de vida. Pela característica de imprevisibilidade
da seca, ela acaba se configurando num desastre que dificulta a
tomada de decisão. É difícil precisar quando irá acabar e contabili-
zar as suas consequências inicialmente. Além disso, de acordo com
Hobfoll (1989), indivíduos que têm poucos recursos tendem a usar
o coping passivo, de modo a tornarem-se menos vulneráveis para
a perda. A perda de recursos é um importante fator de risco para o
bem-estar subjetivo para Hobfoll, de modo que a tendência do indi-
víduo é tentar minimizá-la em situações de estresse, por meio do
mecanismo de conservação de recursos. Desse modo, utilizar uma
Psicologia e contextos rurais | 319

estratégia de coping passivo não é o mesmo que não fazer nada,


uma vez que existe uma intencionalidade neste comportamento.
Dentre as estratégias de coping, os participantes também
mencionaram fazer uso do Programa Nacional de Fortalecimento
da Agricultura Familiar (PRONAF) como uma alternativa de renda
em épocas de seca: “ah, isso a gente faz, a gente faz empréstimo,
a gente faz aqueles PRONAF investimento, essas coisas é o único
ganho, aí a gente consegue repor alguma coisa” (P2F).
No entanto, o objetivo do programa é apoiar financeira-
mente atividades agropecuárias e não agropecuárias exploradas
mediante emprego direto da força de trabalho do produtor rural e
de sua família (Rocha et al., 2008), não se tratando de um programa
de compensação de renda. Desse modo, políticas públicas específi-
cas para o caso da seca são de fundamental importância neste con-
texto, especialmente porque poder contar com mais uma fonte de
apoio social não é apenas relevante do ponto de vista financeiro,
mas também psicológico, na medida em que pode auxiliar as famí-
lias a vislumbrarem novas perspectivas de futuro e a perceberem
que há mecanismos de apoio social disponíveis.
A partir da experiência com o desastre, as famílias também
desenvolveram algumas estratégias de coping ativo, focado na reso-
lução do problema, de maneira a minimizar seus efeitos, tais como:
“primeiramente a gente se prepara quando tem previsão de seca,
plantar mais cedo” (P4M) e “primeiro de tudo, procura nessa época
não gastar muito, né. A gente sempre não conta com a produção
lá na frente. E daí, a gente sempre economiza” (P5M), ou ainda
“comecei a produzir mais leite e a aumentar a produção de leite”
(P5M), de modo a ampliar a diversificação dos ganhos. Observa-se
na fala dos participantes que ao mesmo tempo em que a seca traz
o sentimento de insegurança quanto ao futuro, ela também pro-
voca nos agricultores uma atitude clara de antecipação de futuro. A
estratégia de antecipação de futuro é uma característica da agência
320 | Psicologia e contextos rurais

humana para Bandura (2006), que se reflete em autoeficácia e con-


trole pessoal sobre as circunstâncias de vida e representa um fun-
cionamento psicológico positivo diante das adversidades.
Todavia, está também presente nas falas dos participantes
uma aceitação do fenômeno, sobre o qual não teriam amplo con-
trole: “tem que ir lidando com ela, né? Esperando que amanhã ou
depois chova, né? E a gente endireita tudo de novo” (P4M), ainda
“olhar pra Deus mandar chuva pra tu fazer (sic) alguma coisa? É
né, o que tu vai (sic) fazer?” (P6F). Esse dado pode estar refletindo
o sentimento de desamparo aprendido ou fatalismo, ou seja, um
estado de pessimismo que resulta de se explicar um evento negativo
através de fatores estáveis, internos e globais. Esse tipo de interpre-
tação da realidade leva à desesperança, à depressão e a diminuição
do esforço de enfrentamento e tem suas raízes na cultura, a qual
fornece as explicações e significado para a maioria dos aconteci-
mentos (Aronson, Wilson, & Akert, 2002).
Autores como Wenger e Weller (1973) descreveram que
repetidas crises com mais ou menos a mesma magnitude (como
ocorre com a seca no contexto estudado) causariam o que chama-
mos de “subcultura do desastre”, ou seja, a diminuição da percep-
ção do risco e a consequente aceitação do seu potencial de perdas.
O desenvolvimento da subcultura também funcionaria como uma
estratégia de mitigação dos efeitos do estresse (Coêlho, 2007), o
que pode ser observado nas seguintes afirmações: “tô (sic) acostu-
mado já com ela. Cada segundo ano dá uma seca. A gente tá (sic)
meio preparado pra isso aí” (P4M) e, “ah, nós já acostumamos né,
todos os anos se vier seca a gente até nem estranha muito mais, né”
(P5M).
Ainda no sentido de lidar com o estresse, uma participante
fez referência a uma estratégia de coping cognitivo: “ultimamente
até aprendi a me controlar, mas antigamente eu sofria muito, eu
até perdia o sono” (P1F). A definição de coping implica no fato de
Psicologia e contextos rurais | 321

que as ações não são classificadas de acordo com seus efeitos, mas
com as características do processo podendo estar relacionadas, por
exemplo, com elementos internos (coping focado na emoção), na
tentativa de reduzir um estado emocional negativo, ou mudar a
avaliação da situação de estresse (Krohne, 2002).
No que diz respeito à perspectiva de futuro, a irrigação foi
apontada como uma maneira de minimizar os impactos do desas-
tre: “a minha ideia é fazer irrigação pelo menos um pouco da pasta-
gem, né. Pra nessa época da seca tu teres um pedaço lá que tu pode
(sic) irrigar pra não faltar alimento pra vaca” (P5M). No entanto, as
famílias referiram não ter recursos financeiros para isso.
Um participante mencionou a saída do campo como possí-
vel estratégia para lidar com a seca, mas, no contexto da entrevista,
também referiu outros fatores que influenciam a sua intenção de
sair do campo. Autores como Logan e Ranzinjn (2008) observaram
ter havido um declínio no interesse pela vida no ambiente rural por
causa de fatores como a seca, falta de serviços básicos, enfraqueci-
mento das comunidades, baixo preço dos produtos e o aumento do
desejo por educação e oportunidades de emprego. Assim se expres-
sou a participante: “o que a gente pensou é em ir embora. Arrumar
um emprego, ou coisa assim” (P6M).
Observa-se que algumas das estratégias adotadas pelas
famílias têm sua origem na própria experiência com o desastre, já
prevendo que ele possa ocorrer, e isso faz com que antecipem cul-
tivos, cortem gastos e façam economias quando da iminência de
uma seca. A diversificação das atividades é um meio de minimizar
possíveis perdas, de modo que nem todos os ganhos sejam afetados
com o desastre. Constata-se assim que as estratégias adotadas obje-
tivam a minimização do estresse por meio do aumento do controle
sobre a situação.
322 | Psicologia e contextos rurais

Apoio social
Em relação ao apoio social, os participantes fizeram refe-
rência ao apoio da família, dos amigos e outros e à ajuda externa.
Foi possível identificar dois tipos de apoio, o psicológico e o finan-
ceiro. Quanto ao primeiro, a família é considerada a principal fonte
de apoio: “a família um consola o outro, agora no caso, digamos
assim, prefeitura, Estado, governo federal, essas coisas, muito
pouco” (P1F), e ainda “ah, da família sim. Porque toda a família
sente” (P3M). Os amigos também fazem parte da rede de apoio psi-
cológico em épocas de seca:

Conversa. A gente conversa, assim, só que pedir ajuda


não, a gente faz diálogo entre os amigos, o que acontece,
o que eles perdem, o que a gente perde, o que a gente, né,
só que buscar ajuda fora não (P2F).

Em relação ao apoio social, Marotta (2010) enfatizou que,


em desastres, família e vizinhos devem ser estimulados a falar sobre
sua experiência, promovendo assim apoio e conforto uns para com
os outros, desencadeando o fator curativo do altruísmo e promo-
vendo a resiliência natural e eventual recuperação. Observa-se que
a população estudada não referiu buscar ajuda psicológica, o que é
comum para populações rurais em razão de questões de estigma e
dificuldades de acesso (Boyd, Quevillon, & Engdahl, 2010; Logan &
Ranzijn, 2008), de modo que a família e os amigos desempenham
um papel crucial na recuperação psicossocial em desastres.
Sobre o conteúdo das conversas informais entre vizinhos
e amigos em épocas de seca, um participante referiu: “ah, a gente
conversa, mas daí é tudo lamento, né. A gente só lamenta, não tem
outra coisa a fazer” (P6M). Logan & Ranzijn (2008) também cons-
tataram em sua pesquisa com mulheres da zona rural, que em épo-
cas de seca o clima é o principal assunto nas conversas informais.
Psicologia e contextos rurais | 323

Quanto ao apoio financeiro, os participantes falaram sobre


a ajuda emergencial do governo: “é, se consegue, assim tipo, uma
prorrogação, pro (sic) ano que vem. No ano que vem você tem que
pagar igual” (P6M). Não foram encontradas referências a programas
permanentes de minimização dos impactos da seca nas famílias,
embora, se saiba que as consequências desse desastre costumam
perdurar no tempo (Pereira et al., 2002) e que o apoio social, ou
seja, a percepção de que existe ajuda disponível com a qual se pode
contar para atender nossas necessidade (Hobfoll & Vaux, 1993), é
um importante elemento no processo de manutenção da saúde e
bem-estar em períodos de dificuldades.

A seca e o bem-estar dos agricultores


familiares do Rio Grande do Sul
Constatou-se pela análise dos dados que quando uma seca
ocorre as suas consequências afetam, especialmente, os recursos
de sobrevivência familiar, por meio de perdas e de dificuldades diá-
rias, causando impacto na saúde e bem-estar. Frente a isso, as famí-
lias utilizam estratégias de coping, as quais variam de acordo com a
disponibilidade de recursos familiares e apoio social, podendo ser
estes suficientes ou não para dar conta das demandas do contexto.
As famílias também podem acessar outros recursos disponíveis
como os comunitários e diferentes tipos de ajuda externa, sendo
importante que possam ter a garantia de recursos alternativos para
a minimização dos impactos do desastre.
Diante disso e tendo como referência Hobfoll (2001), a
Figura 1 apresenta um modelo de compreensão da seca no contexto
da família rural, buscando sistematizar como ocorre o processo de
perdas desencadeado pelo desastre e a consequente utilização de
recursos de enfrentamento pelos agricultores estudados.
324 | Psicologia e contextos rurais

Figura 1 – O uso de recursos pelos agricultores familiares afetados pelas secas e sua relação
com o bem-estar

Nota: Adaptado de Hobfoll (2001).

Foi possível observar no relato dos participantes que as


famílias buscam lidar com as consequências do desastre, primei-
ramente utilizando recursos próprios, acessando posteriormente a
ajuda de parentes, vizinhos e comunidade, para por fim, quando se
esgotam esses recursos, buscar a ajuda externa por meio do auxílio
governamental. Dependendo dos recursos familiares e das caracte-
rísticas do desastre, bem como dos seus impactos, algumas vezes
Psicologia e contextos rurais | 325

é possível obter resultados positivos e, assim, diminuir o tempo de


exposição ao estresse. Por outro lado, quando recursos primários e
secundários são escassos, a tendência é que as famílias necessitem
de auxílio público para minimizar as consequências negativas do
desastre.
A disponibilidade de ajuda externa, além de ser um fator
protetor para os impactos psicológicos da seca, quando adequada,
pode levar as famílias a obterem resultados positivos em seus esfor-
ços para lidar com o desastre, além de devolver-lhes a perspectiva
de futuro, um fator importante para o funcionamento psicológico
positivo. Do contrário, as famílias poderão não alcançar os resul-
tados pretendidos com seus esforços, levando ao agravamento das
perdas e do tempo de exposição ao estresse para além inclusive da
duração do desastre em termos meteorológicos. Nesse último caso,
pode-se citar como exemplo o endividamento que leva a perdas
secundárias, ou seja, a perda de outros recursos importantes para a
sobrevivência, vindo a prolongar o período de exposição ao estresse
e influenciar negativamente o contexto de vida familiar mais amplo.
Por outro lado, resultados positivos podem levar a ganhos secun-
dários que aumentam a disponibilidade de recursos de coping e
influenciam positivamente na vida da família, mantendo a crença
de eficácia para lidar com o desastre, um fator importante para a
manutenção da saúde psicológica.
Quanto a utilizar recursos coletivos de coping, é importante
considerar que as estratégias comunitárias quase sempre tendem
a gerar ganhos positivos se comparadas ao uso da ajuda externa,
como, por exemplo, a que provêm de doações e medidas emergen-
ciais. Norris e Kaniasty (1996) referiram que o apoio recebido pode
ser uma ameaça para a autoestima quando utilizado de maneira
inadequada, pois não desenvolve o empoderamento pessoal e
comunitário. Além disso, esse tipo de ajuda tende a ser paliativo ou
a se retirar antes mesmo dos problemas terem sido solucionados, o
326 | Psicologia e contextos rurais

que não significa que não seja um tipo de apoio necessário, mas que
não irá permanecer no longo prazo (Dass-Brailsford, 2010).
Por outro lado, a mobilização comunitária mantém a per-
cepção de apoio social a qual tem relação direta com a manutenção
da saúde psicológica e do bem-estar (Norris & Kaniasty, 1996), ao
mesmo tempo em que a recuperação do indivíduo está diretamente
relacionada com a recuperação comunitária (Boyd et al., 2010). Por
exemplo, uma família que necessita fazer uso de recursos externos
como o financiamento para a sua sobrevivência devido às perdas
na produção agrícola está assim adquirindo uma dívida e, por sua
vez, futuramente poderá ter de vender algum bem para pagá-la.
Do contrário, uma família que necessitou de água durante uma
seca e, juntamente com outras famílias com o mesmo problema,
mobilizou-se para conseguir a construção de um poço artesiano, na
próxima seca esse mesmo problema certamente será minimizado,
pois foi adquirido um importante recurso que gera não apenas
água, mas também fortalecimento do apoio comunitário por meio
da mobilização coletiva.
Por fim, o apoio social mobilizado no âmbito da comuni-
dade, para ter efeito positivo no bem-estar, precisa também ser
disponibilizado de maneira igualitária (Norris & Kaniasty, 1996).
O apoio social nasce das relações sociais, as quais promovem ou
facilitam a preservação de outros recursos importantes (Hobfoll,
1989). Quando adequado, promove no indivíduo o senso de com-
petência para lidar com situações estressantes (Norris & Kaniasty,
1996), tornando-se assim um aspecto fundamental na manutenção
da saúde em desastres.

Considerações finais
O presente capítulo teve como objetivo analisar como as
perdas ocasionadas pelas secas exercem influência sobre o bem-
-estar dos agricultores e identificar as estratégias de coping e os
Psicologia e contextos rurais | 327

recursos utilizados pelas famílias rurais para lidar com o evento.


Buscou ainda estabelecer relações entre esses diferentes aspectos,
de modo a compreender o desastre seca no contexto de vida das
famílias rurais.
Constatou-se a necessidade de que as políticas para a seca
não sejam direcionadas apenas aos impactos econômicos do desas-
tre, mas que também ofereçam apoio psicossocial às famílias afe-
tadas, pois as consequências objetivas do desastre são também
vividas subjetivamente pelos agricultores. Numa sequência de
perdas, perceber algum tipo de ganho é importante para a redução
do estresse num contexto de alta demanda por recursos, de modo
que as políticas sociais poderiam contribuir tanto na manutenção
dos recursos essenciais para a sobrevivência quanto no desenvolvi-
mento de programas de fortalecimento das famílias frente a desas-
tres futuros. Desse modo, políticas públicas para o caso da seca, em
caráter permanente, poderiam auxiliar na redução dos impactos
do desastre, minimizando a exposição das famílias ao estresse não
apenas através da manutenção dos recursos mínimos de sobrevi-
vência, mas como fonte de apoio socialmente reconhecida, man-
tendo-se disponível no longo prazo e ampliando as perspectivas de
futuro para as famílias.
Observa-se no contexto de estudo a ausência de políticas
públicas de longo prazo e a presença de medidas emergenciais.
Estas não funcionam como um recurso de apoio social disponível
que mantém também a percepção dos agricultores em poder con-
tar com este importante recurso, pelo seu caráter momentâneo e
não articulado. Embora instrumentais, são medidas que não pos-
sibilitam aos agricultores se organizarem de maneira a controlar as
consequências do desastre pelo fato de serem disponibilizadas ape-
nas depois da ocorrência da seca e quando os prejuízos já tomaram
proporções significativas.
328 | Psicologia e contextos rurais

Embora não tenha sido o foco do estudo, os participantes


referiram que as pessoas mais jovens têm dificuldades de perma-
necer na agricultura, o que interfere na disponibilidade de mão de
obra familiar uma vez que a unidade familiar é a base desse tipo de
estrutura produtiva (Logan & Ranzijn, 2008). A justificativa para
isso, segundo os participantes, está na pouca atratividade pela vida
no campo, sair para estudar e não regressar mais, além de que, atu-
almente, em muitas regiões do brasil está sendo possível residir no
campo e trabalhar na cidade, onde os jovens encontram melho-
res condições de trabalho e rendimentos do que os alcançados na
agricultura.
Dentre as limitações do estudo está o fato de que inicial-
mente alguns dos participantes apresentaram dificuldades para
responder à entrevista, utilizando respostas como “não sei respon-
der”, ou frases curtas. Desse modo, foi difícil manter o roteiro da
entrevista, tendo-se que encontrar a maneira mais adequada de
se perguntar a mesma coisa para cada entrevistado em específico
e desse modo facilitar o desenvolvimento do diálogo entre entre-
vistador e entrevistado. Conversando com os participantes desco-
briu-se que eles pensavam que havia uma resposta certa para cada
pergunta e esclarecer que não existia resposta certa facilitou com
que verbalizassem seu ponto de vista.
Em relação ao trabalho do psicólogo com comunidades
rurais, cabe mencionar que a maioria dos profissionais, além de
viver em cidades, foi treinada para trabalhar com populações urba-
nas, de modo que muitos aspectos devem ser considerados antes de
se analisar uma realidade que de certa forma é estranha à Psicologia.
Viver no campo é estar ligado diariamente a eventos incontroláveis
como o clima e a oscilação dos preços dos produtos, por exemplo.
A exposição ao risco é por si só uma fonte considerável de estresse
e a ocorrência de qualquer tipo de desastre deve ser considerada ao
se tratar de saúde psicológica, pois o bem-estar dessa população
está diretamente relacionado com o sucesso produtivo da unidade
Psicologia e contextos rurais | 329

familiar (Logan & Ranzijn, 2008) e, obviamente, com a capacidade


de ter controle sobre as consequências dos infortúnios climáticos.
O grau de perdas, a disponibilidade de recursos e a percepção de
apoio social configuram-se também em importantes indicadores
de saúde mental em populações rurais.

Referências
Aronson, E., Wilson, T. D., & Akert, R. M. (2002). Psicologia social em ação 1:
Psicologia social e saúde. In E. Aronson, T. D. Wilson, & R. M. Akert,
Psicologia Social (pp. 323-342). São Paulo: LTC.

Bandura, A. (2006). Toward a psychology of human agency. Perspectives on


Psychological Sciences, 1(2), 164-180.

Bardin, L. (1979). Análise de conteúdo (L. A. Reto & A. Pinheiro, Trans.) São
Paulo: Edições 70. (Original publicado em 1977).

Bosch, K. R. (2004). Cooperative extension responding to family needs in


time of drought and water shortage. Journal of Extension, 42(4), 1-10.

Boeckner, L., Bosch, K., & Johnston, C. E. (2003). Coping in stressful times
during drought (Historical Materials, G1525). Disponível em University
of Nebraska, Lincoln. Recuperado em abril de 2013 de http://
digitalcommons.unl.edu/extensionhist/1735

Boyd, B., Quevillon, R. P., & Engdahl, R. M. (2010). Working with rural and
diverse communities after disasters. In P. Dass-Brailsford (Ed.), Crisis
and Disaster counseling: Lessons learned from hurricane Katrina and
other disasters (pp. 149-163). Los Angeles: Sage.

Câmara dos Deputados (2010). Situação das estiagens no Rio Grande do Sul.
Brasília: Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados. Recuperado
em Março de 2012 de http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/
bdcamara/4187/situacao_estiagem_rs.pdf?sequence=1.
330 | Psicologia e contextos rurais

Coêlho, A. (2007). Percepção de risco no contexto da seca: Um estudo


exploratório. Psicologia para a América Latina, 10. Recuperado
em novembro de 2009 de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S1870-350X2007000200012&lng=pt&nrm
=iso.

Conselho Nacional de Saúde (CNS). (1996). Resolução 196/96 sobre pesquisa


envolvendo seres humanos. Bioética, 4(2), 15-25.

Dass-Brailsford, P. (2010). Effective disaster and crisis interventions. In P.


Dass-Brailsford (Ed.), Crisis and disaster counseling: Lessons learned
from hurricane Katrina and other disasters (pp. 213-228). Los Angeles:
Sage.

Favero, E. (2006). A seca na vida das famílias rurais de Frederico Westphalen-RS


(Dissertação de Mestrado). Universidade Federal de Santa Maria,
Programa de Pós-Graduação em Extensão Rural. Recuperado em abril
de 2013 de http://cascavel.cpd.ufsm.br/tede/tde_arquivos/15/TDE-
2007-02-23T070620Z-399/Publico/eveline%20favero.pdf.

Hobfoll, S. E. (2001). The influence of culture, community, and the nested-


self in the stress process: Advancing conservation of resources
theory. Applied Psychology: An international review, 50(3), 337-421.
doi: 10.1111/1464-0597.00062.

Hobfoll, S. E. (1998). Stress, culture, and community: The psychology and


philosophy of stress. New York: Plenum Press.

Hobfoll, S. E., & Lilly, R. S. (1993). Resource Conservation as a strategy


for community psychology. Journal of Community Psychology,
21(2), 128-148. doi: 10.1002/1520-6629(199304)21:2<128::AID-
JCOP2290210206>3.0.CO;2-5.

Hobfoll, S. E., & Vaux, A. (1993). Social support: Social resources and social
context. In L. Goldberger & S. Breznitz (Eds.), Handbook of stress:
Theoretical and clinical aspects (pp. 685-705). New York: Free Press.
Psicologia e contextos rurais | 331

Hobfoll, S. E. (1989). Conservation of Resources: A new attempt at


conceptualizing stress. American Psychologist, 44(3), 513-524. doi:
10.1037/0003-066X.44.3.513.

Kaniasty, K., & Norris, F. (1995). In search of altruistic community: Patterns


of social support mobilization following Hurricane Hugo. American
Journal of Community Psychology, 23(4), 447-477. doi: 10.1007/
BF02506964.

Krohne, H. W. (2002). Stress and coping theories. Recuperado em março de


2012 de http://userpage.fu-berlin.de/~schuez/folien/Krohne_Stress.
pdf.

Larazus, R. S. (1999). Stress and emotion: A new synthesis. London: Free


Association Books.

Lazarus, R. S., & Folkman, S. (1984). Stress, appraisal and coping. New York:
Springer.

Logan, C., & Ranzijn, R. (2008). The bush is drying: A qualitative study of
South Australian farm women living in the midst of prolonged drought.
Journal of Rural Community Psychology, 12(2). Recuperado em julho
de 2009 de http://www.marshall.edu/jrcp/VE12%20N2/jrcp%2012%20
2%20Logan%20and%20Ranzijn.pdf.

Marotta, S. A. (2010). Voices of hope: A commentary on dislocation and


relocation. In P. Dass-Brailsford (Ed.), Crisis and disaster counseling:
Lessons learned from hurricane Katrina and other disasters (pp. 165-
180). Los Angeles, Sage.

Norris, F. H., Perilla, J., Riad, J., Kaniasty, K., & Lavizzo, E. (1999). Stability
and change in stress, resources, psychological distress following
natural disasters: Findings from Hurricane Andrew. Anxiety, Stress,
and Coping, 12, 363-396.
332 | Psicologia e contextos rurais

Norris, F. H., & Kaniasty, K. (1996). Received and perceived social support in
times of stress: A test of the social support deterioration deterrence
model. Journal of Personality and Social Psychology, 71(3), 498-511.

Pereira, L. S., Cordery, I., & Iacovides, I. (2002). Coping with water scarcity
(Technical Documents in Hidrology no. 58). Paris: UNESCO.

Rocha, F. E. C., Albuquerque, F. J. B., Coelho, J. A. P. M., Dias, M. R., &


Marcelino, M. Q. S. (2008). Avaliação do Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar: A intenção de pagamento do
crédito. Psicologia: Reflexão e Crítica, 22(1), 44-52.

Roncoli, C., Ingram, K., & Kirshen, P. (2001). The costs and risks of coping
with drought: Livelihood impacts and farmers responses in Burkina
Faso. Climate Research, 19, 119-132.

Slovic, P. (2010). The psychology of risk. Saúde & Sociedade, 19(4), 731-747

Staniford, A. K., Dollard, M. F., & Guerin, B. (2009). Stress and help seeking
for drought-stricken citrus growers in the Riverland of South Australia.
Rural Health, 17, 147-154. doi: 10.1111/j.1440-1584.2009.01059.x.

Ünal-Karagüven, M. H. (2009). Psychological impact of an economic crisis:


A Conservation of Resources Approach. International Journal of Stress
Management, 16(3), 177-194. doi 10.1037/a0016840.

Wenger, D. E., & Weller, J. M. (1973). Disaster subcultures: The cultural


residues of community disasters (Preliminary paper no. 9). Disponível
em University of Delaware, Disaster Reseach Cente. Recuperado
em janeiro de 2012 de http://dspace.udel.edu:8080/dspace/
handle/19716/399.
Agricultura Familiar Orgânica:
em busca de qualidade de vida
no âmbito do desenvolvimento
rural mais sustentável
Yldry Souza Ramos Queiroz Pessoa
João Carlos Alchieri

Introdução

O modelo predominante norteador do desenvolvimento rural


brasileiro, desde a II Guerra Mundial, está sinalizando indi-
cadores de esgotamento socioambiental. Esse cenário deve-se não
somente ao desgaste dos recursos naturais, mas também à degra-
dação da fauna e flora, além das consequências deletérias à saúde
do agricultor.
Pretende-se contribuir com o conhecimento acerca da
Agroecologia, sugerindo que esse novo enfoque científico seja
uma estratégia voltada para uma agricultura mais sustentável.
Desse modo, aponta-se como um tipo de agricultura que apresenta
334 | Psicologia e contextos rurais

adequado manejo da terra, tornando-se um trabalho que valoriza o


saber fazer do agricultor, dignificando-o socialmente.
Ademais, considerando-se o aumento da procura por ali-
mentos saudáveis no mercado, a produção orgânica revela-se como
uma promissora alternativa para o desenvolvimento sustentável.
Esse cenário constitui-se relacionado a uma maior conscientiza-
ção ecológica, que anuncia um novo horizonte para redefinir-se as
bases da atividade agrícola no país.
A adoção de práticas orgânicas prevê mudanças observadas
tanto na qualidade dos alimentos quanto na saúde dos trabalhado-
res. É relevante destacar ausência do uso de agrotóxicos no cultivo
e liberdade do agricultor para gerir sua produção. Logo, o caminho
sugere uma sociedade guiada por um comportamento com base
ecológica e social mais justa.
Refletir sobre a qualidade de vida do agricultor familiar
torna-se necessário evidenciar as peculiaridades do mundo rural,
dentro do conjunto cultural de cada comunidade. Para tanto, rela-
cionar qualidade de vida e AOF (Agricultura orgânica e familiar)
possibilita a promoção de valores sociais, aumento da autonomia
dos agricultores e uma percepção positiva acerca do estado geral de
saúde da família.
No meio rural, a QV (Qualidade de Vida) se relaciona
ao grau de conhecimento dos agricultores de que suas necessi-
dades podem ser supridas através de práticas agroecológicas.
Alicerçadas em relações sociais e familiares capazes de promover
o resgate cultural e melhorar as condições de vida do trabalhador
do campo. Nessa perspectiva, o vínculo que o agricultor constrói
com sua atividade laboral e o reconhecimento da sociedade, não
lhe relegando a papel secundário no processo produtivo, apre-
senta-se como um elo importante na promoção da qualidade de
vida no contexto da AOF.
Psicologia e contextos rurais | 335

Agricultura orgânica e familiar:


uma proposta sustentável
No Brasil rural, as condições de vida e de trabalho expres-
sam-se comprometedoras. A modernização agrícola brasileira, sob
a ordem do agronegócio, incentiva a agricultura convencional1. O
maior ponto de vulnerabilidade é a sua dependência do uso insus-
tentável de recursos naturais renováveis e não renováveis (Weid,
2012). Desenvolve-se sob a ideia de maximização da produtividade,
intensa jornada de trabalho, exploração do meio ambiente e coloca
o futuro da alimentação em situação de risco.
Concomitante a esse modelo de desenvolvimento, emerge
um movimento global norteado a defender e a promover manei-
ras sustentáveis de produção de alimentos. Por não aceitar os pre-
ceitos da agricultura convencional esse processo inicialmente foi
chamado de “agricultura alternativa”. Somente a partir de 1990,
especialmente na América Latina, essa nomenclatura foi alterada
pela “Agroecologia” (Duque; Mello, & Araujo, 2012). Trata-se de um
novo modelo de agricultura com base no sistema de sustentabili-
dade2, na produção de alimentos e na preservação dos recursos
naturais (Franco Netto et al., 2009), restaurando a resiliência e a
força dos agroecossistemas.
Em contraposição ao sistema convencional que usa o
emprego intenso de capital e trabalho mecânico, a Agroecologia
privilegia o trabalho qualificado empregado em pequenas unidades
de gestão familiar. Assim, as condições de vida do homem podem
ser estudadas e inseridas na saúde dos ecossistemas, enaltecendo a

1 O termo agricultura convencional aqui utilizado se refere à agricultura pratica-


da dentro da perspectiva do Padrão Técnico Moderno (PTM).
2 Conforme Altieri (2009, p. 77), “sustentabilidade é compreendida como a capa-
cidade de um sistema de manter sua produtividade quando submetido a estres-
ses e perturbações, então, de acordo com princípios básicos de contabilidade,
os sistemas de produção que danificam a estrutura do solo ou exaurem seus
nutrientes, matéria orgânica ou biota, são insustentáveis”.
336 | Psicologia e contextos rurais

sustentabilidade socioambiental que tenha como norte o respeito à


vida e à diversidade sociocultural das populações.
De forma mais explicita, há existência de experiências de
práticas alternativas no meio rural, com características de susten-
tabilidade no cultivo de alimentos, preservação ambiental e maior
qualidade de vida no campo, a exemplo da agricultura familiar
e agricultura orgânica, viabilizando relações entre o campo e a
cidade. Essa relação é no intuito de incluir equidade de oportu-
nidades, justiça social, segurança alimentar e crescimento econô-
mico (Franco Netto, et al., 2009).
A Agricultura Familiar (AF) é, indiscutivelmente, a base
sociocultural que generaliza a alternativa agroecológica, uma vez
que mais de 1,4 milhões de agricultores espalhados pelo mundo
optaram pelos princípios Agroecológicos. Depois de estudos reali-
zados em vários projetos constatou-se que houve aumentos médios
de 100% na produtividade e 400% em condições transitórias nos
sistemas manejados de acordo com o enfoque agroecológico (Weid,
2012).
Entende-se por Agricultura Familiar um modo de produ-
ção que abarca particularidade relacionada à força de trabalho.
Constitue-se basicamente de origem familiar, cujos membros da
família são os principais responsáveis pelas tarefas agrícolas, de
maneira que “a unidade familiar se entrelaça e se confunde com a
unidade produtiva” (Ribeiro, 2009, 53). Compreende-se que a agri-
cultura familiar passou a existir como um novo paradigma coletivo
integrador em oposição ao empresário rural produtivista, tecnicista
e predador, consequentemente, opondo-se à agricultura patronal3.
Segundo Muller (2011, p. 198), “a agricultura de lógica
familiar, por sua maior capacidade de cumprir com o papel da

3 Conforme Ribeiro (2009), tem como características: organização centralizada,


completa separação entre gestão e trabalho e ênfase nas práticas padronizáveis.
Psicologia e contextos rurais | 337

multifuncionalidade, tem demonstrado estar mais próxima ao ide-


ário de uma agricultura sustentável”. Heuser (2003, p. 101) ressalta
a melhoria da qualidade de vida dos agricultores familiares com o
resgate das maneiras mais fidedignas de lidar com o meio “sobre-
tudo nas relações de trabalho, com a valorização não só daquilo que
é obtido a partir desse esforço humano, mas também do próprio
processo laboral”.
A agricultura familiar é a que mais se adapta às característi-
cas da Agricultura Orgânica (AO), essencialmente por apresentar,
em geral, área de plantio pequena, por ser diversificada, autossus-
tentável e, principalmente, por ter mão de obra disponível. A AO é
um sistema produtivo que rompe com o Padrão Técnico Moderno4
e é um instrumento de um projeto social focado para o desenvol-
vimento da AF. Na sua constituição busca questionar os resulta-
dos do referido padrão produtivo sobre as condições de vida. Seu
objetivo principal volta-se para a melhoria da qualidade de vida
dos produtores e dos consumidores. Garante no processo produ-
tivo a sustentabilidade ambiental, com desenvolvimento e promo-
ção social da atividade agrícola. Revela-se atenta às relações que
articulam os conceitos sobre saúde, partindo do pressuposto que
a qualidade de vida é uma construção cultural multidimensional.
Ademais, os agricultores familiares têm, por meio de práticas de
uma AO, a possibilidade de agregar valor aos seus produtos em fun-
ção de sua diferenciação ecológica.

4 O Padrão Técnico Moderno (PTM) da agricultura, ao priorizar altos ganhos


de produtividade, suscitou crises em três dimensões: na dimensão econômica,
mediante a elevação da eficiência tecnológica e comercial, incentivando a su-
perprodução, cujas consequências ocorreram sobre o dinamismo da atividade
produtiva; na dimensão social, uma vez que a modernização enfocou a grande
propriedade agrícola tradicional, minimizando a necessidade da força de tra-
balho; e, por último, na dimensão ambiental, com o uso excessivo e indiscrimi-
nado dos agrotóxicos, com o risco de um sério desgaste de recursos naturais e
humano (Azevedo, 2004).
338 | Psicologia e contextos rurais

Neste paradigma, a Agricultura Orgânica Familiar (AOF)


é regida pelo norte da agricultura familiar, acrescentando-se à
premissa de uma agricultura orgânica. O sistema de AOF surgiu
em oposição ao sistema convencional, que indica o uso maciço
de agrotóxicos, objetivando aumentar a produtividade e, por con-
seguinte, o lucro. Além do mais, colabora para a contaminação
ambiental e compromete a saúde dos agricultores e dos consumi-
dores pela quantidade acentuada de resíduos químicos nos alimen-
tos (Cuenca, Moreira, Nunes, Mata, Guedes, Barreto, Lopes, Paz,
Silva & Torres, 2007).
Em contraposição, os produtos produzidos na AOF proveem
do trabalho coletivo familiar com valor nutricional equilibrado e
isentos de venenos cujo consumo se relaciona com a promoção da
saúde humana. São produzidos mediante atividade laboral que
incentiva relações socioculturais salutares, bem como entrelaçam
vínculos entre a promoção de um desenvolvimento rural mais sus-
tentável e o resgate da qualidade de vida no campo. Diante desta
premissa percebe-se a crescente conquista dos produtores familia-
res orgânicos ganhando cada vez mais espaço junto aos consumi-
dores, formando um novo nicho de consumo.
A Oceania aglomera os países com as áreas mais extensas
de produção orgânica, seguido da Europa e da América Latina.
Ressalta-se que a produção orgânica também é cultivada nos demais
continentes, porém em áreas menores, equivalentes a 5% (Willer,
2010). O Brasil revela-se como o país mais promissor na produção
orgânica do mundo. Há 90 milhões de hectares agriculturáveis,
sem mencionar as áreas de produção convencional que se encontra
em transição para a agricultura orgânica (Planeta Orgânico, 2010).
A região brasileira que agrupa o grande número de pro-
priedades que cultivam a agricultura orgânica é o Nordeste com
42.236 propriedades. Conforme França, Del Grossi e Marques
(2010), o Nordeste abarca 50% dos estabelecimentos de AF do
Psicologia e contextos rurais | 339

país totalizando 2.187.295 hectares, sendo em média 13 hectares


por estabelecimento agrícola. O Estado da Paraíba reúne cerca de
3.362 propriedades e cerca de 450 famílias paraibanas sobrevivem
da Agricultura Familiar Orgânica e colocam o estado no primeiro
lugar no ranking da região Nordeste nesse tipo de produção. Dados
do Ministério da Agricultura (Mapa) revelam que a Paraíba tem a
maior área plantada por esse segmento da região, cerca de 149 hec-
tares (Oliveira, 2012).
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística –
IBGE, por meio do Censo Agropecuário 2006, divulgado somente
no ano de 2009, na distribuição dos estabelecimentos produto-
res de orgânicos por grupo de atividade econômica, os estabele-
cimentos com plantios de lavoura permanente e de horticultura/
fruticultura figuravam com proporções de 10,4% e 9,9% em 2006,
respectivamente.

Entre 1996 e 2006 aumentou a participação dos estabe-


lecimentos da agricultura familiar que passaram de 85
para 88% do total. Houve um aumento de 412.598 esta-
belecimentos familiares (de 9,9%) e uma diminuição na
área total de menos de 1% [...], bem como percebemos
que houve aumento na participação do valor bruto da
agricultura familiar de 38% para 40% e em todas as regi-
ões do país, especialmente no Norte e Nordeste, onde
o crescimento foi de 11% e 9%, respectivamente (IBGE,
2006, p. 10).

Por isso, a AOF favorece a conciliação entre os aspec-


tos complexos5 desejados e a supervisão e domínio do processo e

5 Os aspectos complexos são compreendidos como sustentabilidade econômica,


social e ecológica.
340 | Psicologia e contextos rurais

organização6 de trabalho necessário. É relevante a maximização da


utilização de modelos de produção orgânica no desenvolvimento
da agricultura familiar, especialmente junto aos produtores de
menor nível de capitalização. Porquanto, o trabalho na AOF é rele-
vante, pois incorpora os preceitos ecológicos, econômicos e sociais
de sustentabilidade (Gemma, 2008). Portanto, a AOF volta a sua
atenção para o resgate cultural na medida que enaltece o saber tra-
dicional do agricultor familiar.
Diante disso, surge um momento de debate para a inclu-
são do agricultor no mercado econômico e desenvolvimento rural
mais sustentável, aspectos que também permeiam as discussões de
qualidade de vida. Todavia, a relação entre qualidade de vida e tra-
balho deve ser analisada focada em condições sociais, econômicas,
políticas, psicológicas e antropológicas. Por isso ela se configura
como importante por abarcar uma gama de fatores que perpassam
o âmbito exclusivamente laboral, envolvendo, muitas vezes, quali-
dade de vida.

Saúde e Qualidade de Vida


do trabalhador rural
Falar sobre saúde implica um olhar amplo e detalhado. A
palavra saúde pode remeter a múltiplos sentidos, dependendo
da cultura, do momento histórico e do indivíduo. Nesse sentido,
Ferreira (2008, p. 103) diz que “a noção de saúde e doença é tam-
bém uma construção social, pois o indivíduo é doente segundo a
classificação de sua sociedade e de acordo com os critérios e moda-
lidades que ela fixa”.

6 A organização do trabalho é entendida neste trabalho como aquela que “define


a estrutura ‘horizontal’ que especifica as fronteiras dos ‘postos’ (as máquinas,
ferramentas utilizadas), e sobretudo as tarefas atribuídas com os procedimentos
correspondentes” (Montmollin & Leplat, 2007, p. 42).
Psicologia e contextos rurais | 341

A partir da segunda metade do século XX inicia-se uma


mudança no modelo cartesiano-positivista até então dominante na
saúde. Os próprios profissionais da saúde identificaram a necessi-
dade de mudança no sistema e começaram a construir uma nova
visão do conceito de saúde, ou melhor, “promoção da saúde”. A
expressão “promoção da saúde” foi evidenciada pela primeira vez
em 1945, quando o historiador e médico Henry Sigerist a citou como
uma das tarefas da medicina. Sigerist defendia uma ação integrada
entre políticos, lideranças sindicais, trabalhadores e patrões, edu-
cadores e médicos. Essa união de esforços objetivava implementar
políticas e programas de saúde, que seriam facilitados quando as
necessidades básicas do indivíduo (emprego, saúde, educação, vida
social) fossem satisfeitas (Pordeus et al., 2002).
Segundo Guimarães (1996), até os primeiros cinquenta anos
do século XX, apesar das distintas concepções existentes sobre a
saúde, dava-se destaque às enfermidades e aos meios de curá-las.
Um exemplo disso é a recorrência na literatura da ideia de que a
saúde é concebida apenas como a ausência de doença (Saforcada,
1992; Paim & Almeida Filho, 1998). A saúde foi conceituada em ter-
mos ‘positivos’ em 1948 pela Organização Mundial de Saúde (OMS)
como: “Saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e
social e não apenas a ausência de doença” (OMS, 1987).
Após Sigerist direcionar o rumo e a direção desse modelo de
atenção à saúde, diversos documentos e eventos respeitáveis foram
surgindo e confirmando as bases da promoção da saúde. Nesse sen-
tido, destacam-se, segundo Buss (2000a):
• Informe Lalonde (1974): Representou o marco inicial de refe-
rência para as políticas públicas no campo da saúde, ou seja,
para se entender o conceito de saúde é preciso levar em consi-
deração quatro componentes – biologia, humano, ambiente e
estilo de vida.
342 | Psicologia e contextos rurais

• Declaração de Alma Ata (1978): Trouxe o slogan “Saúde para


todos no ano de 2000” que diretamente reforçava que a saúde é
um direito humano fundamental e uma das mais importantes
metas sociais mundiais.

• Carta de Otawa (1986): Assumiu a definição de saúde da OMS e


afirmava que a equidade em saúde é um dos focos da promoção
de saúde.

• Declaração de Adelaide (1988): Seu tema principal foram as


políticas públicas saudáveis que significam o interesse e preo-
cupação de todas as áreas das políticas públicas em relação à
saúde e sua igualdade, além dos compromissos com o impacto
de tais políticas sobre a saúde da população. O principal obje-
tivo dessa declaração foi criar um ambiente favorável para que
as pessoas possam viver vidas saudáveis.

• III Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde (1991):


Destacou a relação intrínseca entre saúde e ambiente em todos
os aspectos: físicos, sociais, econômicos e políticos.

• Declaração de Jacarta (1997): Enfatizou o surgimento de novos


determinantes de saúde, como acesso aos meios de comunica-
ção, globalização e degradação ambiental. Ressalta-se que foi a
primeira conferência a incluir o setor privado no apoio à promo-
ção da saúde.

Pode-se compreender que as conferências trouxeram


importantes contribuições para que ao conceito de saúde fossem
integradas características sociais, econômicas, políticas e culturais,
que perpassam a herança genética, o biológico. O que leva a refletir
que esse conceito de saúde divulgado pela OMS em 1948 foi sendo
diluído ao longo desses eventos, com exceção da Carta de Otawa,
e ao mesmo tempo recebendo inúmeras críticas. Esse conceito da
OMS, longe de ser uma realidade, simboliza um compromisso, um
horizonte a ser perseguido. Remete à ideia de uma “saúde ótima”,
possivelmente, inatingível e utópica já que a mudança e não a
Psicologia e contextos rurais | 343

estabilidade é predominante na vida. Saúde não é um “estado está-


vel”, que uma vez atingido sempre será mantido.
Consoante inúmeras discussões a esse respeito, destaca-
-se Dejours (1986) que desconsidera a saúde e a doença como um
processo. Não existem em estado “completo’”. Segundo ele saúde
“não é estado de bem-estar, mas um estado do qual procuramos
nos aproximar” (Dejours, 1986, p. 8). Winslow (1920 como citado
em Czeresnia & Freitas 2003, p. 17) já dizia que “a saúde se dá com o
aperfeiçoamento da máquina social, a qual assegura ao indivíduo,
dentro da comunidade, um padrão de vida adequado à manuten-
ção da saúde”. Já Sigerist (1946 como citado em Czeresnia & Freitas
2003, p. 17) dizia que “saúde se promove proporcionando condições
de vida decentes, boas condições de trabalho, educação, cultura
física e formas de lazer e descanso”. Assumido o conceito da OMS,
nenhum ser humano (ou população) será totalmente saudável ou
totalmente doente.
Desta forma, a saúde não está em completo estado de equilí-
brio e sim dinâmico. O estado de completo bem-estar parece supor
uma existência sem angústia, desconsiderando que os erros, os fra-
cassos, as infidelidades não fazem parte de nossa história. Como
diz Dejours (1986, p. 8) “o estado de saúde não é certamente um
estado de calma, de ausência de movimento, de conforto, de bem-
-estar e de ociosidade. É algo que muda constantemente”. A própria
compreensão de saúde tem alto grau de subjetividade na medida
que indivíduos e sociedades consideram ter mais ou menos saúde
dependendo do momento, do referencial e dos valores que atri-
buam a uma situação. Saúde não é um simples resultante de estar
ou não doente, mas sim a resposta complexa às condições gerais
de vida a que as diferentes populações estão expostas (Rouquairol,
1994).
Nesse sentido, Paim e Almeida Filho (1998) enfatizam a
necessidade de um marco teórico conceitual capaz de reconfigurar
344 | Psicologia e contextos rurais

o campo social da saúde, atualizando-o face às evidências de esgo-


tamento do paradigma científico que sustenta suas práticas. Os
autores propõem um movimento ideológico que possa articular-
-se a novos paradigmas científicos capazes de abordar o objeto
complexo saúde-doença-trabalho, respeitando sua historicidade e
integralidade.
Pode-se compreender que o conceito de saúde não deve se
restringir somente a aspectos biológicos. Envolve também fatores
determinantes de saúde, condições históricas, sociais, econômicas,
políticas, culturais e individuais. As condições individuais, por sua
vez, comportam um alto grau de subjetividade. Por isso, a saúde
vai além do orgânico, pois nela há algo de singular, tornando-a um
conceito dinâmico, amplo e complexo.
Conforme Cunha e Panúncio-Pinto (2005, p. 5) defendem
que há uma relação entre a saúde e o contexto social que se encon-
tram inseridos os indivíduos, a saber:

A realidade do ambiente material (física, química, bio-


lógica), a realidade afetiva, relacional e familiar (psico-
lógica) e a realidade social (organização do trabalho).
Defendem que a saúde, para cada homem, mulher ou
criança, é ter meios de traçar um caminho pessoal e ori-
ginal em direção ao bem estar físico, mental e social.
(grifo dos autores)

Esses caminhos são desenhados ou traçados em direção à


busca pela saúde em termos do bem-estar físico, repouso corporal,
e saciamento das necessidades básicas do homem. Em se tratando
do bem-estar psíquico “os meios de alcançar a saúde estão ligados
à liberdade que é deixada ao desejo de cada um na organização da
sua vida” (Cunha, & Panúncio-Pinto, 2005, p. 5). Por fim, o bem-
-estar social consiste no agir com liberdade, seja individual ou cole-
tivamente, sobre a organização do trabalho.
Psicologia e contextos rurais | 345

Salienta-se que não existe a necessidade de criar um novo


paradigma frente aos já existentes. Deve-se empenhar em adotar
uma visão global da realidade, absorvendo as contradições como
complementos necessários à vida. Essa linha de pensamento pro-
porciona um conceito mais amplo de saúde que conduz à cons-
trução de práticas sociais mais abrangentes. Possam modificar os
modelos assistenciais vigentes buscando alternativas mais eficazes
para entender a vida com qualidade para assim contribuir com a
plena realização do potencial de saúde dos indivíduos e comunida-
des em todo o mundo.
Uma característica relevante é que os pressupostos saúde e
qualidade de vida surgem comumente explorados. O desafio aqui
foi relacionar esses conceitos à Agricultura Orgânica e, mais pre-
cisamente, à Agricultura Familiar Orgânica (AFO). Importante
mencionar que no Brasil esses dois modelos são bastante próximos
porque em torno de 90% dos produtos orgânicos produzidos no
país são derivados da Agricultura Familiar (AF) (MAPA, 2008). A
noção de Qualidade de Vida (QV), ainda em construção, é extre-
mamente rica em dimensões subjetivas, compreendidas dentro
de uma percepção ampla e multicultural (Minayo, Hartz, & Buss
2000). Analisando o meio rural a partir da agricultura, percebe-
-se que o padrão produtivo determina mudanças significativas na
saúde social e ambiental, refletindo-se na qualidade de vida dos
agricultores.
A Constituição da República Federativa do Brasil (Brasil,
1989) menciona o termo QV, porém o faz apenas em cooptação
com o meio ambiente ao analisar os riscos de impacto sobre ele.
No Capítulo VI – Do Meio Ambiente, ela dita em seu Art. 225:
“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo
e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Seu Parágrafo 1º,
inciso V, relaciona QV com a incumbência do poder público para:
346 | Psicologia e contextos rurais

“V – Controlar a produção, a comercialização e o emprego de téc-


nicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a
qualidade de vida e o meio ambiente”. Observa-se não existir um
conceito do que é ter qualidade de vida sadia, mas indícios de
fatores que intervêm sobre ela. A Organização Mundial de Saúde
(OMS) define a qualidade de vida como “a percepção do indivíduo
de sua posição na vida, no contexto de sua cultura e dos sistemas de
valores em que vive e em relação a suas expectativas, a seus padrões
e as suas preocupações” (Lima, & Fleck, 2008, p. 116).
Sennett (2008) conceitua QV mediante dois fatores: capa-
citação (combinações possíveis de coisas que uma pessoa está apta
a fazer ou ser) e funcionalidades (as várias coisas que uma pessoa
faz ou é). Portanto, a QV é capaz de ser analisada em termos de
capacitação para obter funcionalidades, desde as mais incipien-
tes (comer adequadamente, ter saúde, abrigo etc.) às que abarcam
patamares maiores de necessidades (autorrespeito, integração
social, participação na vida da comunidade). A compreensão do
conceito dessa autora atingirá todas as áreas, sobretudo a social,
que na maioria das vezes é relegada a um segundo plano em bene-
fício da econômico-desenvolvimentista.
Em busca da sustentabilidade da AOF, com a preservação
do meio ambiente, o agricultor necessita possuir em seu ambiente
de trabalho QV, que se caracteriza por sua natureza abrangente.
Estar diretamente atrelada àquilo que o próprio trabalhador sente
e percebe, acerca da sua “saúde física, o seu estado psicológico, o
nível de independência, suas relações sociais, suas crenças pessoais
e a relação com aspectos significativos do meio ambiente” (Fleck,
2008, p. 25). Nessa perspectiva, pode-se inferir que a QV no meio
rural encontra-se pautada considerando-se as maneiras certas de
manejo adequado da terra proposto pela AFO.
Esse sistema produtivo visa a autossustentação da pro-
priedade agrícola, disponibilidade de infraestrutura que possua
Psicologia e contextos rurais | 347

saneamento básico, acesso aos meios de educação e saúde, oferta


de produtos saudáveis e balanceados, e preservação da saúde
ambiental e social. Questiona as repercussões negativas do sistema
moderno de produção de alimentos e se aproxima da noção em
busca de Qualidade de Vida.
Os conceitos de QV rural, ecologia e meio ambiente não se
amparam sem a presença do homem do campo. O caminho indica
uma sociedade norteada por uma causa baseada nos pilares ecoló-
gico e social como saída para a crise na agricultura e como opção
ao desenvolvimento rural sustentável. Entende-se que esse é res-
paldado em três pilares essenciais: econômico, social e ambiental e
seu eixo central é a Qualidade de Vida do agricultor.
No domínio econômico a AOF configura-se como uma
estratégia de oferta de produtos saudáveis que tem aumentado de
10% ao ano no mercado interno e entre 20% a 30% no mercado
externo (SEAGRI, 2004), criando oportunidades para os peque-
nos produtores adentrarem no mercado. A renda dos produtores
elevou-se 65% de 2000 a 2009, e isso reflete uma condição cres-
cente de produtividade, da produção final dos produtos agrícolas
e do aumento do mercado exportador. No que diz respeito à esfera
social, a AO significa para a agricultura familiar uma estratégia de
sustentação do modo de vida rural, da própria condição de social.
Ocorre valorização do saber tradicional do trabalhador
rural e o respeito à sua integridade cultural. Em relação ao domí-
nio ambiental, a AOF preocupa-se em manter a diversidade bio-
lógica e o meio ambiente saudável isento de insumos químicos,
utilizando energia renovável. Nessa mesma direção a AFO revela
ser um caminho de promoção de valores sociais e de Qualidade de
Vida no campo, com repercussões também importantes sobre as
condições de vida no meio urbano. Acredita-se que a QV no meio
rural se correlaciona ao grau de conhecimento dos agricultores
de que suas necessidades podem ser supridas, assim como dos
348 | Psicologia e contextos rurais

recursos disponíveis de maneira sustentáveis. A sustentabilidade,


na AFO, precisa ser compreendida de maneira dinâmica e o desen-
volvimento deve implicar limites para concretização do bem-estar
econômico para se alcançar um bem-estar social e ambiental.

Relações e processo de trabalho


no contexto rural
O processo de trabalho é o cruzamento entre o homem e
o campo, através do qual aquele utiliza sua energia e força, para
transformar, manter, ou produzir bens necessários à sua sobre-
vivência. A afinidade que ele estabelece com o meio ambiente, a
forma como se apropria da natureza e a transforma, resulta tam-
bém no processo saúde-doença. Na agricultura familiar orgânica,
as relações produtivas são oriundas dos elos familiares e não apoia-
das na condição de salário. Consequentemente, observa-se a não
geração de mais-valia, o que caracteriza um perfil não capitalista
(Tavares, 1984). Além disso, tem a finalidade à reprodução social da
família e da unidade produtiva e não o acúmulo de dinheiro.
Abarca etapas diferentes de acordo com o desenvolvimento
do crescimento familiar modificando conforme o tempo da relação
entre trabalho e consumo (Kautsky, 1998). O modo como o traba-
lho na Agricultura Familiar Orgânica (AFO) é executado configura-
-se como uma atividade consciente e é gerido pelo homem adulto
(marido, pai), que adquire características de chefe do processo
produtivo, uma vez que apresenta domínio de um saber agrícola
específico.
Trata-se de um saber fazer passado no ambiente de traba-
lho, o que significa um aprendizado que abarca desde a dimensão
simbólica, educativa, ao processo de trabalho da AOF. Nessas con-
dições, a transmissão do saber é mais do que transmissão de téc-
nicas, ela envolve valores e construção de papéis (Menezes Neto,
2003). O trabalho no campo é extremamente dinâmico e cheio de
Psicologia e contextos rurais | 349

sentido. Não é apenas “um teatro aberto ao investimento subje-


tivo”, ele é também um espaço de construção do sentido, portanto,
da conquista da identidade, continuidade e da historicização do
sujeito (Dejours, Abdoucheli & Jayet, 1997, p. 143).
Configura-se um espaço agrícola, bem como espaços de
interações sociais de gênero e gerações. Trata-se também de um
ensino focado na socialização dos filhos no mundo adulto, na
lógica do trabalho e da produção. Pode-se analisar o processo de
trabalho na agricultura familiar orgânica através de dois elementos:
a) a divisão do trabalho entre os diversos membros da família e b)
a intensidade da utilização das diferentes frações de mão de obra,
tanto na unidade de produção quanto fora dela.
Os sistemas de produção de olerícolas7 e frutas orgâni-
cas são divididos em múltiplas fases ou subsistemas que são fre-
quentemente partilhadas por toda a família. Por sua vez, essas
fases admitem inúmeras tarefas que precisam ser organizadas ao
longo do tempo. Ressalta-se que o momento de transformação das
tarefas idealizadas em trabalho concreto define-se como o mais
importante nesse processo. Isso implica afirmar que só haverá um
produto final se houver uma interpolação da força humana. Na
agricultura é aproveitada a força de trabalho de todos os compo-
nentes da família. Contudo, os afazeres das mulheres na agricul-
tura são, geralmente, em tempo parcial, porque elas também são
responsáveis pelas tarefas domésticas (Karam, 2004).
Pode-se afirmar que as relações de poder no âmbito da AFO
predizem as condições de participação tanto dos homens como das
mulheres nos lugares de decisão acerca do destino da sociedade
em direção da construção do desenvolvimento rural sustentável.
Analisa-se que os produtos cultivados passam por certificação e são
classificados com indicador de segurança alimentar. Sua produção

7 Comumente conhecidas como hortaliças e que engloba culturas folhosas, raí-


zes, bulbos e tubérculos.
350 | Psicologia e contextos rurais

não compromete o meio ambiente e as gerações futuras. A AFO


garante condições de vida menos precárias para o produtor, que
tem percebido que a agricultura convencional pode prejudicar sua
Qualidade de Vida e de sua família.
Importa destacar que a agricultura de base agroecológica
colabora para uma melhora na renda, na satisfação das necessida-
des dos agricultores e na sua qualidade de vida. Percebe-se que esse
sistema de produção determina uma reorganização das relações
dos homens entre si e com a natureza, estimulando laços de coope-
ração e participação, além de exigir um manejo adequado do solo,
das plantas e das águas.
Adicionalmente, a AOF oferece meios de produção susten-
tável que podem diminuir a fome e a miséria e gerar a soberania
e a segurança alimentar e nutricional da população. A proposta é
ainda uma estratégia de suscitar a dignidade social dos agriculto-
res e minimizar os riscos ambientais relacionados à produção de
alimentos.

Considerações finais
Fundamentalmente, destaca-se a importância de reco-
nhecer métodos intersetoriais para promover a saúde e o desen-
volvimento sustentável. A zona rural deve ser um lugar em que os
especialistas da área de saúde trabalhem com outros profissionais,
objetivando melhorar a qualidade de vida do agricultor e a preser-
vação do meio ambiente. Com efeito, é primordial compreender
a agroecologia enquanto estratégia de promoção da saúde para o
desenvolvimento de novas agriculturas.
Avaliando o Brasil como um país de base agrícola, repensar o
meio rural e a AOF como atividade primária fundamental revela-se
como tática imperativa para edificar as propostas de segurança ali-
mentar e de promoção da saúde e da sustentabilidade. A AOF é um
Psicologia e contextos rurais | 351

caminho para a preservação ambiental, para o melhoramento das


condições de vida e para o incremento econômico no meio rural.
No que se refere à Qualidade de Vida no campo, observa-
-se que sua análise abarca condições e estilos de vida do agricultor.
Sua proximidade com a natureza, o uso de seu conhecimento e as
relações interpessoais construídas no trabalho coletivo respaldam
uma reflexão importante acerca da Qualidade de Vida no campo.
Em relação ao processo produtivo, é predominante uma relação de
gênero constituída hierarquicamente, mas não de soberania por-
que o saber é compartilhado por todos os membros da família. Por
fim, esse tipo de reflexão é importante porque permitirá aos pes-
quisadores compreender que o meio rural é um espaço para reco-
nhecimento social e preservação da saúde ambiental e humana.
Compreendida como alternativa produtiva, a AOF pro-
move desenvolvimento rural em busca da sustentabilidade, con-
figurando-se como de um sistema agrícola socioambiental viável.
Não pode ser observada somente como uma práxis que recusa o uso
de venenos, mas sim um novo caminho associando o agricultor, o
trabalho e o campo numa articulação sob um ponto de vista mais
ecológico.
Portanto, é um espaço de semear-se a promoção de saúde
tanto dos produtores quanto dos consumidores, situando o desen-
volvimento mediante práticas agrícolas alternativas que preserve
os ecossistemas. Tratando-se de importante área para os pesquisa-
dores compreenderem que o meio rural é também um vasto campo
para o reconhecimento social e preservação da saúde ambiental e
humana.

Referências
Altieri, M. (2009). Agroecologia: a dinâmica produtiva da agricultura
sustentável. 5. ed. Porto Alegre: UFRGS.
352 | Psicologia e contextos rurais

Azevedo, E. (2004). Alimentação e modos de vida saudável. SAÚDE REV., 6


(13), p. 31-36.

Brasil, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.


Brasília: Senado Federal.

Buss, P. M. Promoção de saúde e qualidade de vida. Ciências & Saúde Coletiva,


5 (1), p. 163-177, 2000a.

Czeresnia, D.; Freitas, C. D. (2003). Promoção da Saúde: conceitos, reflexões,


tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz.

Cuenca, M. A. G.; Moreira, M. A. B.; Nunes, M. U. C.; Mata, S. S.; Guedes,


C. G. M.; Barreto, M. F. P.; Lopes, V. R. M.; Paz, F. C. A.; Silva, J. R.;
Torres, J. F. (2007). Perfil dos consumidores e do consumo de produtos
Orgânicos no Rio Grande do Norte. Embrapa Tabuleiros Costeiros,
Aracaju, 2007. Recuperado em 1 maio 2012, de www.cpatc.embrapa.br.

Cunha, L. M. V. R.; Panúncio-Pinto, M. P. (2005). O Programa de Atenção à


Saúde do Adolescente: a experiência interdisciplinar de atenção básica
desenvolvida pela Universidade de Uberaba. Simpósio Internacional
do Adolescente, 2, 2005, São Paulo. Recuperado em 18 julho 2012, de
http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php>.

Dejours, C.; Abdouchelli, E.; Jayet, C. (1997). Psicodinâmica do trabalho:


contribuições da escola dejouriana à análise da relação prazer,
sofrimento e trabalho. São Paulo: Atlas.

Dejours, C. (1986). Por um novo conceito de saúde. Revista Brasileira de Saúde


Ocupacional, 14. p. 7-11.

Duque, G.; Mello, A.C.P.; Araujo, M.G.B. Ação coletiva e desenvolvimento


sustentável. Desenvolvimento e Meio Ambiente, 25, p. 109-116, jan./
jun. 2012.
Psicologia e contextos rurais | 353

Franco Neto, G. (2009). Informe Unificado das Informações sobre Agrotóxicos


Existentes no SUS. Recuperado em 6 abril 2011, de HTTP://portal.
saude.gov.br/portal/saude/visualizartexto.cfm?id.

Ferreira, M. C. S. (Org.) (2008). Enfermagem e trabalho: fundamentos para a


atenção à sapude do trabalhador. São Paulo: Martinari.

Fleck, M. P. A. & cols. (2008). A avaliação de qualidade de vida: guia para


profissionais da saúde. Porto Alegre: Artmed.

França, C. G.; Del Grossi, M. E.; Marques, V. P. M. A. (2010). O Censo


Agropecuário 2006 e a Agricultura Familiar no Brasil. Recuperado em
28 novembro 2011, de <http://www.mineiropt.com.br/media/uploads/
destaques/arquivos/arq4b1018b266063.pdf.

Gemma, S. F. B. (2008). Complexidade e Agricultura: organização e análise


ergonômica do trabalho na agricultura orgânica. Campinas, p. 297.
Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de
Engenharia Agrícola, Campinas, São Paulo, SP.

GUIMARÃES, A. F. La Educación para la Salud em la Formación Inicial de


Maestro: Concepciones sobre Salud y Estratégias para su Moficicación,
1996,

Heuser, D. M. D. (2003). Repercussões do Agroturismo na Qualidade de Vida


de Núcleos Familiares Receptores de Santa Rosa de Lima (SC). Um
Processo Criativo e Solidário. Dissertação (Mestrado em Engenharia de
Produção) – Pós-Graduação em Engenharia de Produção, Universidade
Federal de Santa Catarina, Santa Catarina, SC.

IBGE. Instituto Brasileiro Geografia. Censo Agropecuário 2006. Recuperado


em 28 novembro 2011, de http://prefira orgânicos.com.br.

Kautsky, K. (1998). A questão agrária. São Paulo: Teotonio Vilela.


354 | Psicologia e contextos rurais

Karam, K. F. (2004). A Mulher na agricultura orgânica e em novas ruralidades.


Estudos Feministas, 12 (1), p. 360, janeiro-abril.

Lima, A. F. B. S.; Fleck, M. P. A. (2008). Qualidade de vida e alccolismo. In


FLECK, M.P. A de & cols. A avaliação de qualidade de vida: guia para
profissionais da saúde. Porto Alegre: Artmed.

MAPA. Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Produção


e comércio de orgânicos têm novas regras. 2008. Recuperado em 10
agosto 2012, de http://www.agricultura.gov.br/.

Menezes Neto, A. J. (2003). Além da Terra: cooperativismo e trabalho. São


Paulo: Quartet.

Minayo, M. C. S.; Hartz, Z. M. A.; Buss, P. M. (2000), Qualidade de vida e


saúde: um debate necessário. Ciencia Sáude Coletiva. 5 (1), p. 7-18.

Montmollin, M de; Leplat, J. (2007). As relações de vizinhança da ergonomia


com outras disciplinas. In Falzon, P. Ergonomia. São Paulo: Edgar
Blucher.

Muller, J. M. (2001). Do tradicional ao agroecológico: as veredas das transições


(o caso dos agricultores familiares de Santa Rosa de Lima, SC).
Florianópolis, 2001. Dissertação (Mestrado em Ciências Agrárias)
– Programa de Pós-graduação em Agroecossistemas, Universidade
Federal de Santa Catarina, Santa Catarina, SC.

OMS. Organização Mundial de Saúde. Carta de Otawa para la promoción y


educación para la salud. Revista de Sanidad y Higiene Pública, 61, p.
129-139,1987. Recuperado em 21 agosto 2006, de <www.scielo.com.br>.

Oliveira, L. (2012). Agricultura familiar paraibana é líder no Nordeste.


Recuperado em 18 agosto 2012, de http://www.agenciasebrae.com.br/.
Psicologia e contextos rurais | 355

Paim, J.; Almeida Filho, N. (1998). Saúde Coletiva: Uma “nova saúde pública”
ou campo aberto para novos paradigmas? Revista de Saúde Pública, 32
(4). Recuperado em 21 agosto 2012, de <www.scielo.com.br>.

Planeta Orgânico. (2010). Posição do Brasil no Mercado de Alimentos


Orgânicos. Recuperado em 28 novembro 2011, de http://www.
planetaorganico.com.br.

Rouquayrol, Z. M. (1994). Epidemiologia & Saúde. Rio de Janeiro: Medsi.

Pordeus, A. M. J. et al. (2002). Promoção da saúde à luz do pensamento de


John Locke. In Moreira, R. V. O.; Barreto, J. A. E (Org.). A vigilância de
cargos. Fortaleza: Casa de José de Alencar/Programa Editorial.

Ribeiro, C. M. (2009). Estudo do modo de vida dos pecuaristas familiares da


região da campanha do Rio Grande do Sul. Tese de Doutorado. Programa
de Pós-graduação em Desenvolvimento Federal Universidade Rural do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS.

Saforcada, E. (1992). Psicología Comunitaria – El enfoque ecologíco


contextualista. Buenos Aires: Centro Editor da América Latina.

Sennett, R. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo


capitalismo. 11. ed. Record, Rio de Janeiro, 2008.

Tavares, S. J. V. (1994). Crítica da sociologia rural e a construção de uma outra


sociologia dos processos sociais agrários. In ______. Ciências Sociais
Hoje. São Paulo: ANPOCS/Vértice.

Weid, M. V. (2012). Alimentando o Mundo no Século XXI. Agriculturas


experiências em agroecologia, 9 (1), p. 8-11.

Willer, H. (2010). Organic Agriculture Worldwide: The main results of the


FiBL-IFOAM Survey. Recuperado em 28 novembro 2011, de http://
www.ifoam.org.
Políticas públicas quilombolas
e produções identitárias:
percursos históricos e
conflitos políticos
Saulo Luders Fernandes
Julia Minossi Munhoz

Desinventar objetos. O pente, por exemplo. Dar ao pente


funções de não pentear. Até que ele fique à disposição de
ser uma begônia. Ou uma gravanha.
Usar algumas palavras que não tenham idioma

Manoel de Barros (O livro das ignorãças, 2010, p. 300).

O presente capítulo pretende realizar uma reflexão acerca das


políticas públicas quilombolas e suas repercussões nas pro-
duções identitárias e processos de subjetivação das comunidades
negras rurais implicadas nesse processo. Questionar o percurso
das políticas quilombolas em nosso país não se torna apenas uma
358 | Psicologia e contextos rurais

reflexão sobre as normativas e leis que se constituíram e se fazem


presentes, mas é preciso pensar como tais enquadres repercutem
nas relações comunitárias e nas produções do ser e fazer-se negro
no Brasil. É refletir de que forma as políticas de identidade, com
seus aparatos institucionais e jurídicos, delineiam e atuam como
estratégia de manutenção e cooptação das fronteiras dos planos
possíveis e inventivos das identidades políticas das comunidades
negras. Identidade política compreendida aqui como processo de
grupos minoritários que investem na construção de valores, cren-
ças e sentidos que agregados a um projeto político coletivo galguem
ganhos de direitos e participação política que historicamente foram
negados.
Assim, este capítulo propõe analisar as estratégias adotadas
pelo Estado, por meio de suas políticas de identidade, para cooptar
os planos inventivos dos processos de subjetivação dos movimen-
tos sociais e grupos minoritários, que configuram linhas de fuga
que escapam e resistem às produções homogeneizantes do poder.
É no espaço da falta que se produz o processo inventivo, é
no não lugar atribuído aos excluídos que jorra a fonte de potência
criativa e de resistência. Como afirma Deleuze (2010, p. 161):

Os povos não preexistem. De certa forma o povo é o que


falta, como dizia Paul Klee. Será que existia um povo
palestino? Israel diz que não. Sem dúvida existia um,
mas isso não é o essencial. Pois a partir do momento
em que os palestinos são expulsos de seu território,
na medida que resistem, eles entram num processo de
construção de um povo.

É nesse lócus de resistência que também atuam as estraté-


gias de dominação e cooptação do novo, enquanto válvula propul-
sora de captação desejante para esfera do mesmo.
Psicologia e contextos rurais | 359

Quilombos e seu percurso


histórico: estratégias de luta e
produção de linhas de fuga
Compreender o percurso das políticas quilombolas requer a
reconstrução do conceito de quilombo no perpassar histórico dos
negros no Brasil, que desde sua chegada apresentam-se incluídos
enquanto força produtiva, explorados para engendrar a riqueza da
nação e expropriados enquanto sujeito de direitos.
Os primeiros registros do conceito de quilombo datam do
ano de 1740 quando o Conselho Ultramarino, como afirma Leite
(2008), na tentativa de desqualificar e instituir um lugar de mar-
ginalidade ao quilombo, o descreve ao rei de Portugal como: “toda
habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despo-
voada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem
pilões nele”. Essa conceituação reduz o quilombo a um caráter pejo-
rativo que nega sua organização político-econômica e o caracteriza
de forma marginal nos campos de atuação e produção da realidade
colonial do país.
Tal caracterização marginal do quilombo configura compre-
ensões binárias falaciosas do fenômeno em dois campos estanques:
os de dentro, que constituem e participam do processo na consoli-
dação das relações sociais instituídas; e os de fora, que na distância
encontram-se a parte do processo de produção da realidade. Como
se existisse um fora marginal que não engendrasse linhas contínuas
de tensão, transformação e enfrentamento com as formações ins-
tituídas. Tal compreensão dicotômica enrijece o fazer histórico e
produz entendimentos dos quilombos, como pontua Leite (2008),
como espaços de alguns negros fugidos que sem organização polí-
tica e produção econômica potencial para implicar relações com o
universo colonial dos brancos, refugiam-se em pequenos ranchos,
isolados geograficamente e marginalizados economicamente na
360 | Psicologia e contextos rurais

imagem do pilão, como instrumento que reduz a produção econô-


mica diversa do quilombo ao espaço da subsistência.
Desqualificar e lançar os processo de resistência como par-
ticipação periférica na produção da realidade são estratégias de
desviar olhares para aqueles que como via marginal questionam
e reinventam processos de desterritorialização na promoção de
campos subjetivos emergentes. Na era colonial, como afirma Arruti
(1997), os quilombos não só implicavam relações políticas de acor-
dos e enfrentamentos com o império, mas atuavam diretamente
na economia política, na produção de fumo e alimentos para mer-
cadores da região e população circunvizinha, bem como na emer-
gência de uma economia subjetiva (Guattari & Rolnik, 2008), que
engendrava novos modos de sociabilidade e processos de subjetiva-
ção, que ao se processar questionavam a ordem social vigente.
Os quilombos podem ser compreendidos como agências
de resistência dos marginalizados no período colonial. Local de
encontros híbridos, como apresenta Arruti (1997), entre negros,
índios e desfavorecidos que na tentativa de resistir ao sistema polí-
tico econômico vigente configuraram formas de sociabilidade que
fugiam às regras postas pelo modelo normativo, na luta contra as
formas de exploração e expropriação estabelecidas. Essas produ-
ções resistentes apresentaram-se nos campos fronteiriços da dife-
rença, no encontro de grupos marginalizados que ao agenciarem
suas vivências diversas produziram outras formas de sociabilidade.
Com a efetivação da acumulação de riquezas realizada pelos
países colonizadores, calcada na força escrava e na exploração das
colônias, fortalece-se o capitalismo nos grandes centros, que por
necessidades de expansão econômica lançam-se sobre as colônias
e as insere, como aponta Fernandes (2008), na dita ordem compe-
titiva. Ordem essa que exigia para seu desenvolvimento a queda do
regime colonial e instauração do “trabalho livre”.
Psicologia e contextos rurais | 361

Os senhores, como afirmam Calheiros e Stadtler (2010),


ao constatarem que a abolição da escravatura estava por vir, para
manterem-se no poder político e econômico no país, articulam e
aprovam em 1850 a Lei de Terras. Lei essa que institui a aquisição de
propriedades somente por meio da compra e venda de terras. Como
se apresenta no artigo 1o dessa lei: “Ficam proibidas as aquisições de
terras devolutas por título que não seja o da compra”.
É por meio desse aparato jurídico, como afirma Martins
(2009), que os senhores proprietários de terras, em um processo de
exclusão contínua, marginalizaram negros e índios, que sem condi-
ções de adquirir propriedades por meio da compra submeteram-se
ao trabalho livre para os mesmos senhores. As mesmas populações
que no início do Brasil serviram como mão de obra escrava para a
produção do país, agora, novamente são incluídas perversamente e
de forma precária enquanto força de trabalho, e excluídas enquanto
sujeitos políticos de direitos.
Muitos negros “livres”, como afirma Almeida (2009), con-
tinuaram a exercer atividades nas mesmas fazendas nas quais tra-
balhavam no período escravista, agora sendo pagos, ou doados
pedaços de terras pelos senhores para o cultivo de subsistência.
Mudam-se as configurações, porém as relações de opressão, humi-
lhação e subserviência ainda perduram, o que levou muitos negros
a fugirem para as terras ditas “de ninguém”, constituindo novos
ordenamentos comunitários de resistência, mesmo fora do regime
colonialista. Tal afirmativa indica que o conceito de quilombo não
deve estar enraizado enquanto processo organizativo fadado ao
período colonial, ele se fez e se faz presente nas comunidades cada
qual em seus caminhos e percursos históricos singulares.
Nesse contexto de marginalização, as comunidades negras
são integradas no emergente Estado brasileiro, como afirma
Fernandes (2007), como aqueles que não possuem as capacidades
adequadas para nova ordem social do trabalhado livre. Na história
362 | Psicologia e contextos rurais

oficial, os negros aparecem como sujeitos passivos diante dos fatos


e os retrata como aqueles que foram submetidos e que atuaram
com papéis marginais frente à grandeza dos atos históricos pro-
duzidos pelos senhores que trouxeram o dito progresso da nação.
Talvez devêssemos lançar nossos olhares às produções marginais
como espaços de produções inovadoras e desviantes, que no ato de
resistir possibilitam outras trajetórias e formas de organização da
vida e das relações.
Essas contradições apontam para o fato de como a história
oficial ilegítima a luta dos povos excluídos, que, contrário ao poder
do Estado, produziram e produzem as lutas e as linhas históricas.
Histórias essas que com suas narrativas margeiam os fatos oficia-
lizados e irrompem como ecos lançados no passado que ressoam
nos ouvidos do presente. Como afirma Benjamim (1994, p. 224):
“Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como
ele realmente foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência tal
como ela relampeja no momento de um perigo”.
Essa história retratada por vozes marginais é a que deve-
mos proliferar, promovendo campo da pluralidade histórica trans-
formando-a em histórias. Histórias – essas – que não são regidas,
como aponta Benjamin (1994, p. 229), por um: “tempo homogêneo
e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’”, de memórias, contos,
cantos, corpos e narrativas.
Com base nessa história marginal é que os ecos do passado
percorrem o imaginário social e irrompem em outro fazer cotidiano
na realidade presente. O negro marginalizado que entoava seus
cânticos de resistência no passado reivindica sua voz no presente
ao requerer direitos e reconhecimento de suas lutas e formas alteras
de viver. Esse percurso de enfrentamento forja nos anos 1930, como
afirma Leite (2008), a Frente Brasileira Negra, consolidada como
uma das mais importantes organizações de luta contra o racismo.
Psicologia e contextos rurais | 363

Em linhas de fortalecimento do movimento negro, em mea-


dos dos anos 1960 e 1970 os intelectuais, a sociedade civil organi-
zada e os movimentos sociais, empunharam lutas e bandeiras para
democratização das políticas públicas no país. Os questionamen-
tos se acirram também quanto ao papel político e o direito à terra
das populações tradicionais. Nesses processos de reivindicação
estruturam-se estratégias de problematização e ressignificação do
conceito de quilombo, que de espaço marginalizado é retomado
como dimensão de luta política de grupos que foram negados a
terra e com ela os direitos e a posição de cidadão.

Atualização política do quilombo: identidades


inventivas e processos de subjetivação
A tentativa de ressignificação do conceito de quilombo,
que ganha corpo nos anos 1970, é compreendida como estratégia
política de grupos minoritários que se apresentam historicamente
marginalizados. Excluídos historicamente dos direitos sociais e
marginalizados quanto ao universo simbólico, que por meio de
seus aparatos semióticos legitima e reproduz a ordem do branco
opressor e imprime sobre os negros o estigma de uma segunda
categoria. Retomar o conceito de quilombo de forma inventiva é
produzir projeto político coletivo que promova a proliferação de
formas de existência antes negadas e oprimidas.
De acordo com Deleuze e Guattari (2008) e Deleuze (2010),
produzir para si o direito de constituição enquanto grupo minori-
tário é constituir territórios políticos de existência, que imprimem
linhas desviantes às construções hegemônicas dadas, na tentativa
de ruptura às produções legitimadoras. O processo de produção de
outro para si que foge às rígidas linhas identitárias é lançar-se em
um devir minoria que almeja em seu bojo configurações subjetivas
emergentes, que em linhas de fuga, realizam pontos de clivagem
nas relações simbólicas e sociais instituídas.
364 | Psicologia e contextos rurais

Como afirma Santos (2000) ao se referir aos processos de


produção identitária dos grupos minoritários, quem procura rei-
vindicar uma identidade é aquele que se encontra em uma situ-
ação de subordinação, mas que ao se referir enquanto outro que
difere das estruturas hegemônicas as questiona e as enfrenta. Por
isso aponta os processos identitários políticos como uma ficção
necessária que autentica a diferença dos grupos que estão em uma
situação de carência frente aos que se estabelecem como modelos
a serem seguidos.
Os territórios emergentes que se constituem enquanto pro-
jeto político de grupos minoritários se fazem por meio de consti-
tuições criativas, de espaços de desterritorialização que produzem
significados e formas alternativas de ação e busca por direitos dife-
renciais frente à realidade reificada. Tais processos se engendram e
são apanhados no espaço da falta em que se encontram tais grupos.
É no campo desse não lugar ocupado, ainda por fazer, que emerge
os territórios da resistência. Como afirma Deleuze (2010, p. 161): “O
que é preciso é pegar alguém que esteja ‘fabulando’, em flagrante
‘delito de fabular’. Então se forma, a dois ou em vários, um discurso
de minoria”. Fabular no sentido de criar, pelas necessidades e con-
dições que lhes são dadas, espaços de enfrentamento e emergência
de novos territórios subjetivos que possibilitem apanhar um devir
minoritário que questiona a ordem social.
Os processos de constituição de identidades políticas são
aqueles que procuram oferecer aos grupos arcabouços simbólico e
semiótico para ações que produzam esferas de negociação e linhas
de enfrentamento frente ao Estado e às instituições, na produção
de campos de ação que insiram e auxiliem tais grupos a configura-
rem, de forma autônoma, um espaço de participação política.
Nesse sentido, podemos afirmar que nem toda identidade é
política. Ela pode, enquanto categoria de identidade social, interfe-
rir nas relações e práticas da vida cotidiana. Porém, para tornar-se
Psicologia e contextos rurais | 365

uma identidade política, necessita-se “fabular”, como diria Deleuze


(2010), e lançar-se sobre um projeto que procure alterar as linhas
maquínicas para uma produção subjetiva que foge às linhas duras
legitimadas, na produção de políticas que efetuem voz e ações para
grupos que se situam marginalizados sócio-historicamente.
A ressignificação do conceito de quilombo pode ser enten-
dido como processo político inventivo do movimento negro como
tentativa de engendrar processos de subjetivação desterritoriali-
zados que permitem agregar novas formas de atuação aos grupos
negros rurais. Grupos esses que por meio desse novo sentido de ser
negro lançam-se na luta pela terra e por direitos sociais.
O movimento negro, ao retomar o conceito de quilombo
como forma insurgente de definição e prática sobre as comunida-
des negras rurais, possibilita novo espaço de luta e resistência, entra
em processo de produção identitária política, em um devir mino-
ria, que procura pelas linhas de fuga criar formas atuais de produ-
ção subjetiva, com outros valores e sentidos, ao povo negro. Com
esse modelo inventivo é que o movimento procura, por meio de seu
lócus social desfavorecido, buscar a negociação com o Estado e a
consolidação de políticas públicas que atendam suas necessidades.
Por vezes, esse modelo inventivo, quando inserido nos apa-
ratos do Estado, pode perder sua capacidade criativa e constituir-se
como modelo de esquadrinhamento a ser seguido. Devemos pen-
sar as políticas públicas e sua efetivação como agenciamentos de
mudanças, mas sempre em perspectivas que as ultrapassem para
além das políticas, em processos de desterritorialização constan-
tes que escapem aos territórios já apropriados e codificados pelo
Estado e seus espaços micropolíticos de ressonâncias.
As políticas públicas seriam a expressão desse conflito de
grupos minoritários e o poder do Estado, que ao produzirem linhas
de fuga, como afirma Deleuze e Guattari (2008), configuram em
territórios já postos segmentos ainda por explorar, em um processo
366 | Psicologia e contextos rurais

de subjetivação desterritorializada, em continuidade as formações


instituídas, que procuram em linhas duras estabelecidas, ramificar-
-se nas entranhas micropolíticas e sobrecodificar as linhas desvian-
tes, na tentativa de captura e reterritorialização dessas produções
criativas e resistentes.
Como afirmam Deleuze e Guattari (2008, p. 108):

Todo centro de poder tem efetivamente estes três aspec-


tos ou estas três zonas: 1) sua zona de potência, relacio-
nadas com segmentos de uma linha sólida dura; 2) sua
zona de indiscernibilidade, relacionada com sua difusão
num tecido microfísico; 3) sua zona de impotência, rela-
cionada com os fluxos quanta que ele só consegue con-
verter, e não controlar nem determinar. Ora, é sempre do
fundo de sua impotência que cada centro de poder extrai
sua potência: daí sua maldade radical e sua vaidade.

É nesse espaço de impotência do não controle dos centros


de poder que se produzem o novo, no qual os processos de subje-
tivação resistentes acontecem, mas é também nesses campos que
atuam as linhas de captura que procuram cooptar as formações
insurgentes para dentro dos sistemas de controle.

Da legitimação do Art. 68 ao retrocesso da


Instrução Normativa do INCRA 49/2008
A promulgação do Art. 68 da constituição de 1988 pode
ser compreendida nesse processo de enfrentamento entre grupos
minoritários que requerem para si novas formas de produção sub-
jetiva e efetivação de direitos frente ao poder do Estado. Por meio
do resgate histórico-político do conceito de quilombo os proces-
sos identitários das comunidades negras rurais são ressignificados
e oferecidos a eles com o respaldo jurídico dado pelo Estado ao
Psicologia e contextos rurais | 367

direito à terra e à conservação de seu patrimônio cultural, como se


segue no Art. 68:

Aos remanescentes das comunidades de quilombo que


estejam ocupando suas terras é reconhecida a proprie-
dade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos
respectivos (Brasil, 1988).

O Art. 68 da constituição brasileira apresenta ganhos e


avanços a um grupo que se constituiu de forma marginal enquanto
sujeito de direitos, os quais, mesmo sendo expropriados de suas
terras, sua cultura e sua história, resistiram ao período colonial
e lutam para manter-se em suas terras na era do capital mundial
integrado. Porém, concomitante a esse processo de desterritoriali-
zação que possibilitou novas formas de interpretação e de subjeti-
vação de ser negro rural, com o advento do Art. 68, essas formações
instituintes adquirem roupagens esquadrinhadas com o conceito
de “remanescentes” que definem de forma restrita as identidades
do ser quilombola, ligando-os estritamente a formações de qui-
lombos ancestrais do passado colonial. Ficam excluídas as comu-
nidades que resistiram e se produziram fora das raízes ancestrais
dos quilombos, com histórias próprias e peculiares as suas lutas.
As linhas de fuga que atuam como espaço de produção do novo,
quando ligadas aos aparelhos institucionais do Estado, adquirem
configurações de linhas de captura, que cooptam as diferenças e as
reproduz em modelo identitário a ser seguido.
O que era emergente, no caso a inventividade do conceito
de quilombo, que escapava e atuava na zona de impotência dos
centros de poder na promoção da diversidade, promove espaços de
linhas duramente estabelecidas ao ser integrada pelos agenciamen-
tos maquínicos do Estado. Como afirma Guattari (2004), a capaci-
dade de permanência do capital mundial integrado é o seu regime
de volatização semiótico, que reajusta as diferenças e as lançam em
368 | Psicologia e contextos rurais

um sistema de semiotização que as acolhem para integrá-las aos


moldes de produção do capital.
Os agenciamentos nômades que se proliferavam de forma
desterritorializadas entram em configurações sedentárias que se
ajustam aos valores econômicos e simbólicos do capital. A nova
ordem capitalista não se configura apenas em suas atuações macro-
estruturais, mas em produções que se incutem no desejo e nas
produções subjetivas do que delas fazem parte, em produções nor-
mativas que apreendem o desejo.
O Art. 68, ao definir o reconhecimento das comunidades
negras rurais pelo conceito de “remanescentes”, as submete à esfera
da ancestralidade para o legítimo reconhecimento. Define e limita
os processos identitários quilombolas a um mito de originalidade
e às produções históricas fadadas aos quilombos do passado. Essa
definição impede muitas comunidades negras, que apresentam
histórias próprias e divergem das raízes calcadas em quilombos
ancestrais a terem posse de suas terras.
A definição das comunidades por meio do conceito de
remanescentes leva a interpretações que buscam no mito de origi-
nalidade africana um passado intocado, no qual essas populações
ainda devem viver e perdurar. De forma atemporal e sem compre-
ender as especificidades, de como cada comunidade estabeleceu
suas relações e suas expressões culturais, esses modelos estereoti-
pados prejudicam a autenticidade da constituição histórico-social
de cada população e promovem a busca ou a produção de elemen-
tos por vezes inexistentes nesses territórios.
O que capacitou as comunidades negras rurais a se perpetu-
arem ao longo do transcurso histórico foram as suas diferentes for-
mas de se relacionar e viver com as realidades locais, cada qual com
suas peculiaridades de enfrentamento, e não um modelo linear
histórico que se estende a todas. Como afirmam Santos e Doula
(2008), alguns grupos ocuparam terras abandonadas após a queda
Psicologia e contextos rurais | 369

do açúcar no mercado brasileiro e que tinham como meio de vida


o uso comum da terra; outros em terras doadas por seus senhores
após a escravidão e que ainda perduram nesses territórios; e outras
tantas histórias diversas a serem apresentadas que não cabem aqui.
Não queremos negar as raízes históricas nas quais as comu-
nidades negras se estabeleceram. Contudo, cabe questionar essa
busca pelas origens de uma história e pensar nos processos histó-
ricos que se fazem em percurso e que não se reduzem a produções
identitárias em um ponto original convergente, mas em planos
de multiplicidades heterogêneos: políticos, sociais, econômicos e
desejantes. Não compreendemos os processos de subjetivação ou
inventividade política das comunidades tradicionais atrelados à
busca de uma identidade cultural fiel a um passado irremediável,
mas de luta e enfrentamento político frente a um presente neces-
sário a ser mudado.
Nesse sentido que Guattari e Rolnik (2008) afirmam que o
conceito de identidade pode apresentar-se enquanto uma cilada.
Pois, ao mesmo tempo que o conceito produz um nível de autoi-
dentificação entre seus membros e possibilita sua organização, ele
atua também como espaço representacional autorreferente que nos
impede de compreender as formas compostas e conexões diversas
que ali atuam, promulgando compreensões homogêneas sobre for-
mas que se fazem transversais em seus vários níveis de alteridade.
Como apresentam Guattari e Rolnik (2008, p. 82):

A única observação que estou em condições de fazer é


que me parece que os conceitos de cultura e de identi-
dade cultural são profundamente reacionários: a cada
vez que os utilizamos, veiculamos sem perceber modos
de representação da subjetividade que a reificam e que
com isso não nos permitem dar conta de seu caráter
composto, elaborado, fabricado [...].
370 | Psicologia e contextos rurais

A identidade deve ser compreendida como espaço no qual


as formações singulares percorrem e se expressam. Como territó-
rios de agregação subjetivos que se apropriam desde campo para
lançar-se a novas formas de atuação. A identidade não é o campo
de definição generalizável no qual os processos de subjetivação se
expressam, ela apresenta-se como pontos de produções desejantes
que se expressam em devires minoritários diversos que buscam o
questionamento da ordem social.
O movimento negro, ao fabricar politicamente o conceito
quilombola não está recorrendo somente a um reconhecimento
identitário cultural fadado e circunscrito a seu grupo social, mas
requer reflexões que dizem respeito aos brancos, às mulheres, aos
homossexuais, às crianças e a outros grupos oprimidos. Procura
adentrar por meio do devir-negro de forma transversal nos vários
interstícios sociais, no questionamento da opressão e da desigual-
dade promovida pelo sistema capitalista aos grupos marginais.
O enquadramento do Art. 68, ao definir comunidade qui-
lombola por meio de critérios de ancestralidade, procura a partir
de determinantes históricos de origem definir um conceito que foi
talhado e produzido por tensões e conflitos políticos. Como afirma
Bawman (2005, p. 21-22): “a ‘identidade’ só nos é revelada como
algo a ser inventado, e não descoberto; como alvo de um esforço,
‘um objetivo; [...]’”. A identidade deve ser pensada enquanto pro-
jeto político criativo que reinventa seus objetivos e propósitos a
partir das necessidades dos espaços das faltas que são apresenta-
dos aos grupos marginalizados. Inventar não seria a construção do
falso, pelo contrário, é possibilitar novos modos de atuação política
que permitam a tais grupos galgar espaços de reconhecimento e
conquistas de direitos. Como diria o poeta Manoel de Barro (2010,
p. 325): “Tudo que não invento é falso”. Pensar a identidade nesse
plano inventivo é oferecer-lhe potencial para a produção da diversi-
dade. O conceito de quilombo foi produzido para realizar-se como
Psicologia e contextos rurais | 371

campo de autenticação das diferenças e não do esquadrinhamento


do homogêneo.
Outro impasse produzido pelo Art. 68 é a impossibilidade
de autoatribuição das comunidades. Promove-se a propagação do
conceito de quilombo, porém exige-se um atestado do Estado para
legitimar a definição de quilombolas às comunidades. As lutas
históricas e processos de resistência desses grupos sociais, como
afirma Bawman (2005), são descaracterizados no momento em
que necessitam comprovar sua autenticidade perante o poder do
Estado.
Para garantir o direito à terra, legitimado pelo Art. 68, as
comunidades devem se submeter à tutela do Estado, às suas com-
preensões normatizadoras promovidas por políticas públicas que
ao perpassar o modo de vida da população, na tentativa de atender
suas necessidades, exige dela um enquadre identitário e formata-
ção de suas produções plurais de expressão. Assim, compreender
as políticas públicas é pensar em suas diversas formas de atuação e
controle social sobre as formas de vida das populações que engen-
dram seus modos de agir, pensar e viver.
Como pontua Foucault (2006), ao afirmar que o poder do
Estado não está nas formas de violência ou repressão que lança
sobre os sujeitos, mas na gestação de uma racionalidade que pro-
duz formas de vida e tecnologias políticas que capilarizam o poder
em nível de atuar diretamente nos modos de ser e existir dos
indivíduos.
Assim, governar torna-se a arte de gestar a vida das popula-
ções em suas produções simbólicas e relações cotidianas. Nas pro-
duções biopolíticas, como afirma Foucault (2006), o poder investe
em vias de fazer-viver ao invés de produzir a morte, o limite da vida.
Esse fazer-viver perpassa o corpo social como mecanismos de nor-
matização dos ordenamentos subjetivos e sociais, como uma pala-
vra de ordem que sentencia como se deve produzir a vida.
372 | Psicologia e contextos rurais

As políticas públicas podem ser entendidas como essas


formações biopolíticas que atuam no governo da vida das popula-
ções, propagando modelos e formas de expressões enrijecidas que
mesmo não correspondendo às diversidades produzidas na vida
cotidiana devem ser seguidas e almejadas.
Como afirma Dimenstein (2011), as políticas públicas pas-
sam não apenas a atuar como economias subjetivas que controlam
a vida daqueles que dela fazem parte, mas atravessam o corpo social
e emergem nas práticas da vida diária. Atuam como dispositivos,
que ao transbordar as instituições as quais se destinam, gerenciam
as produções de subjetividade cotidianas e os modos de existência
que ali se engendram.
As políticas públicas são processos que se produzem em
entremeios de tensão entre linhas duras estabelecidas que procu-
ram cooptar as formações inovadoras e a produção de linhas de fuga
que atuam no plano do desejo revolucionário que clivam espaços
emergentes de ser e existir e escapam aos ditames do poder norma-
tizante. É nesse jogo de tensão que nos localizamos e nele tam-
bém que devemos atuar. Em intervenções políticas que produzam
campos desterritorializados que se apliquem no questionamento
do viés normatizante das políticas públicas.

Avanços e retrocessos: política quilombola


para além da ancestralidade
Na tentativa de oferecer algumas saídas aos questionamen-
tos e enfrentamentos realizados pelo movimento negro frente ao
Art. 68 que institucionaliza o conceito de quilombo e enrijece o
processo de reconhecimento das comunidades negras tradicionais,
o Presidente da República assina o Decreto 4.4887/2003, que tra-
balha o conceito de quilombo para além das compreensões históri-
cas de ancestralidade, apanha as discussões e lutas realizadas pelo
movimento negro e procura outorgar legitimidade para as lutas
Psicologia e contextos rurais | 373

históricas e processos de resistência das comunidades. Como se


segue (Brasil, 2003):

Consideram-se remanescentes das comunidades dos


quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-
-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com tra-
jetória histórica própria, dotados de relações territoriais
específicas, com presunção de ancestralidade negra rela-
cionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

A promulgação do decreto representa um avanço, pois legi-


tima no plano jurídico uma compreensão plural em relação ao con-
ceito de quilombo e ressignifica o entendimento de remanescentes
para uma compreensão que respeita as especificidades históricas
e culturais de cada comunidade. Abrem-se possibilidades a com-
posições heterogêneas e inventivas ao ser e fazer-se quilombola.
Diferente do Art. 68, que reconhece os remanescentes pelo que res-
tou da cultura dos quilombos historicamente enraizados, a com-
preensão de presunção proposta pelo decreto lança as produções
históricas e sociais das comunidades no plano político inventivo
enquanto grupo minoritário que pela falta de direitos, terra e valo-
rização cultural objetiva reconhecimento.
Fazer-se quilombola não é somente a busca de processos
históricos ancestrais enraizados em um passado remoto, mas a pro-
cura de reconhecimento das relações assimétricas de poder esta-
belecidas e os enfrentamentos realizados pelos grupos negros que
têm seus direitos historicamente negados. O decreto abre espaço
a um devir minoritário que desterritorializa as formações identi-
tárias do ser quilombola socialmente arraigadas e as promove em
campo político que autentica as lutas e processos de resistência
próprios a cada comunidade.
A promoção do princípio de autoatribuição, a que o Decreto
4.4887/2003 se propõe, permite às comunidades quilombolas a
374 | Psicologia e contextos rurais

definição partindo de suas compreensões históricas e expressões


culturais próprias, condizentes ao seu território. Tal medida, como
afirma Chasin e Perutti (2009), vem ao encontro da Convenção 169
da Organização Internacional do Trabalho (OIT), um instrumento
internacional que vigora no Brasil desde 2003 e que garante pelos
princípios de autoreferência identitária o direito à terra às comuni-
dades tradicionais.
O Decreto fortalece discussões que ultrapassam o âmbito
nacional e levam as organizações comunitárias a tomarem parte de
seu processo, lança para os sujeitos que delas fazem parte a reflexão
do que os identifica e caracteriza enquanto quilombolas. Há um
desvio no discurso, que se desloca dos saberes especializados dos
profissionais do Estado para as práticas discursivas dos que viven-
ciam e compreendem o que é ser negro rural no Brasil.
Discurso aqui entendido por Foucault (2009) como prá-
tica social, como espaço de investimento do poder, que orien-
tado por meio dos saberes especializados constituem os objetos
que permeiam a realidade. Nas práticas discursivas o sujeito não
se apresenta como origem do discurso, como aquele que atua na
representação dos objetos, mas como dispositivo produzido e pro-
dutor de enunciados que atualizam o real em suas práticas discur-
sivas cotidianas. Assim, os enunciados não são representações que
se sobrepõem às formações do real, eles o produzem, o reificam e
o reinventam.
Esse deslocamento discursivo promovido pelo processo de
autoatribuição reestrutura os campos do saber-poder, que de atu-
ações normativas empregadas para a promoção do ser quilombola,
reinvestem-se em enunciados que os produzem enquanto atores
políticos, os fazendo operar sobre o processo de autoatribuição
como possibilidade de reconhecerem-se como sujeitos em produ-
ção e não produzidos por quem lhes oferece nome ou um signo
Psicologia e contextos rurais | 375

dado. Escapa-se ao entendimento de ser para fazer-se quilombola,


sobre as práticas sociais e políticas vivenciadas em seu cotidiano.
Os avanços apresentados pelo Decreto 4.4887/2003 acirram
disputas de poder e território no cenário nacional. A bancada rura-
lista sente-se atingida com a medida que procura efetivar o direito
que já estava garantido desde 1988 pelo Art. 68, mas que por estra-
tégias que dificultavam o reconhecimento e a demarcação terri-
torial não se concretizaram no país. A resposta ao Decreto, como
apontam Chasin e Perutti (2009), apresentou-se por meio de algu-
mas tentativas de parlamentares ligados às oligarquias nacionais
a sustar o decreto ou inviabilizá-lo ao justificar que ele não espe-
cificava critérios exatos para o processo de autoatribuição, o que
levaria a titulação da terra a grupos não tradicionais. Porém, tais
investidas que tinham como intuito deter diretamente a promul-
gação do Decreto 4.4887/2003 foram negadas pelo poder judiciá-
rio, alegando as justificativas propostas pelos parlamentares como
inconstitucionais.
No Brasil, a detenção do poder político e as artimanhas da
dominação situam-se nos entremeios da luta agrária. Compreender
as investidas contra a efetivação do Decreto 4.4887/2003 é enten-
der que a questão agrária é uma pauta nacional urgente, porém
protelada e impedida pelas oligarquias nacionais.
Em um país, como afirma Martins (1993), que no período
militar associou as grandes propriedades ao grande capital, ao
subsidiar os latifundiários com incentivos fiscais para a compra e
manutenção da terra “[...] o que vocês perdem pagando a renda da
terra, nós subsidiamos pagando incentivos fiscais” (Martins, 1993
p. 87); a terra é princípio de poder, da dominação política e do capi-
tal. A terra que seria um empecilho para o investimento capitalista
torna-se, com os incentivos subsidiados pelo Estado, acumulação
de capital, passando a ser valorizada não pelo que produz, mas pelo
seu caráter especulativo, ao capital acumulado sobre ela.
376 | Psicologia e contextos rurais

Em outubro de 2008 o presidente do INCRA (Instituto


Nacional de Colonização e Reforma Agrária) estabelece a Instrução
Normativa IN 49/2008 que estabelece os critérios para: “identifi-
cação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão,
titulação e registro das terras ocupadas pelos remanescentes de
comunidades dos quilombos” (Brasil, 2008). Os critérios estabele-
cidos nessas instruções apresentam-se inicialmente como afirma-
tivas que vêm a colaborar para a efetivação do Art. 68, bem como
o Decreto 4.4887/2003. No entanto, pode ser compreendido como
estratégia para retroceder os ganhos adquiridos ao Decreto de
2003. Como apresenta o Art. 6 da presente Instrução Normativa
que de forma escamoteada provoca retrocessos no momento em
que submete o critério de autoatribuição das comunidades a cer-
tidão de registro pela Fundação Cultural Palmares, que sem esse
registro não pode iniciar o processo de reconhecimento. Como se
segue: “Parágrafo único. A autodefinição da comunidade será cer-
tificada pela Fundação Cultural Palmares, mediante Certidão de
Registro no Cadastro Geral de Remanescentes de Comunidades de
Quilombos do referido órgão [...]” (Brasil, 2008).
A certidão de registro no cadastro geral da Fundação
Palmares, antes da Instrução Normativa IN 49/2008, atuava apenas
como instrumento de registro das comunidades que estavam em
processo de reconhecimento no país. Porém, o que antes operava
como instrumento de registro torna-se documento exigido para
o inicio do procedimento de titulação e demarcação da terra que
ateste reconhecimento legítimo como comunidade quilombola.
Com essas estratégias, os ganhos adquiridos pelas comuni-
dades negras rurais como critérios de autoatribuição e a suposição
de ancestralidade quilombola retrocedem. O critério de autoa-
tribuição, que antes estava a menção de uma declaração da pró-
pria comunidade que a caracterizava e certificava enquanto grupo
quilombola, passa a ser referenciada novamente pelo aparato do
Psicologia e contextos rurais | 377

Estado, por meio de certidão que exige o olhar de um outro que


valide e ofereça veracidade ao seu estatuto identitário.
A certidão emitida pela Fundação Palmares exige estudo
minucioso das características históricas que retratem aspectos
ancestrais das comunidades, que na busca de validar o conceito de
quilombo descaracteriza o campo político da titulação que seria a
luta pela terra, a qual foi negada historicamente às comunidades
negras rurais e lança a discussão para o reconhecimento identitário
de ancestralidade histórica. A implicação do tornar-se quilombola
para as comunidades negras rurais transpassa o espaço de compro-
vação ancestral e constitui-se como esfera de luta política por direi-
tos que os foram negados.
Nesse sentido, os processos identitários aqui implicados
constroem-se enquanto processos políticos como modelos mino-
ritários necessários para o enfrentamento e conquistas sociais. A
identidade produzida não se apresenta como objetivo final, como
uma verdade a ser alcançada e seguida, mas como meio de se atin-
gir os desejos propostos em seu devir minoritário, como espaço de
agregação e agenciamento subjetivo que fortalecem os vínculos
sociais ali produzidos e promovam campos semióticos comuns.
A regulamentação da titulação de terras das comunida-
des quilombolas pela IN 49/2008 engessa as possibilidades de um
trabalho que se volte para as diferenças políticas e históricas que
cada grupo apresenta, enrijece os processos de reconhecimento por
tantos procedimentos burocráticos necessários os quais as comu-
nidades devem se submeter para o ganho da titulação. São esses
processos de rigidez que protelam e por vezes impedem muitos
negros rurais no Brasil de adquirirem seus direitos.
A problemática não se aplica apenas ao reconhecimento
identitário, mas na objetivação dessas identidades dentro de suas
esferas diferenciais, no respeito às formas de vida e atuação de cada
grupo. A questão não fica circunscrita à esfera da preservação das
378 | Psicologia e contextos rurais

identidades tradicionais, mas à da promoção e autenticação das


diferentes formas de se viver enquanto sujeito quilombola, de criar
condições objetivas para a promulgação desses processos de subje-
tivação no plano da vida.
A legalidade da IN no 49/2008 no Brasil efetiva-se, mesmo
contrariando o Decreto emitido pelo presidente da república, bem
como o Art. 68 da constituição federal de 1988 e ainda a Convenção
169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). No Brasil,
como afirma Martins (2009), efetuou-se a modernização da econo-
mia e do mercado, porém, no campo político, ainda somos regidos
pelos ordenamentos das oligarquias nacionais, que pelo poder da
terra mantém e reproduz a ordem estatal vigente.
Vivemos uma democracia falaciosa, que se institui via nor-
mas e regras, porém é limitada no seu exercício e efetivação. Como
diria Martins (2009, p. 95): “Um país em que se pode falar em
democracia, mas não se pode, de fato, falar em cidadania”. Não que
devamos cair em uma compreensão niilista com tal afirmativa, mas
galgar rupturas e espaços das possíveis atuações políticas frente à
conjuntura que nos é apresentada. Atuar nas fronteiras que se esta-
belecem entre as políticas públicas e a produção da vida.

A psicologia e seus campos possíveis de


atuação nas políticas quilombolas
Ao compreender as políticas públicas como espaços que
atuam diretamente na produção da vida das comunidades negras
rurais, no seu ser e fazer cotidiano, é que devemos pensar nossas
práticas psicológicas em ações que por meio de políticas afetivas
criativas possibilitem a produção de devires minoritários que bur-
lem as linhas enrijecidas, que da reprodução identitária normativa
criam formas emergentes de existência.
Em vez de respondermos por identidades normativas que
procuram legitimar a representação do ser quilombola, devemos
Psicologia e contextos rurais | 379

como diria Pàl Pelbart (2003), perguntarmos pelos fenômenos


enquanto processos híbridos, em formações fronteiriças, nos quais
as identidades normativas entram em contato com as necessidades
históricas de cada comunidade na produção de novos territórios e
formas de vida.
No espaço do entre, de intermezzo, é que as produções dese-
jantes se encontram e transbordam. Desejo aqui entendido, por Pàl
Pelbart (2003), como local de encontro de potências que se mes-
clam em uma produção desviante e inovadora. Não como o local da
falta que busca a completude de um quadro já desenhado, mas da
fronteira no qual as potências se encontram.
Lançar olhares a essa formação desejante marginal é aten-
der às produções diversas presentes em cada território das comu-
nidades, compreendendo que os processos ali constituídos não se
apresentam em ressonância com a representação que se pretende
efetivar do sujeito quilombola implicado nas políticas identitárias
do governo.
Os fenômenos são atos e não atuam como representação
fidedigna do real, mas em rearranjos que os criam e os reinventam.
Ficar circunscritos no âmbito da representação, no caso as identi-
dades postuladas nas políticas quilombolas, é ficar preso à cópia
da vida e não a seu processo. As cópias são tentativas de imitação,
como aponta Pàl Pelbart (2003), que na repetição do mesmo pro-
duzem a diferença, o desvio. Cada tentativa de imitação ou norma-
tização pode recair sobre um rearranjo de elementos que desvia em
configurações divergentes e autênticas. É no plano desses rearran-
jos inventivos, que fogem aos ditames das formações instituídas,
que devemos atuar, em uma política vida que faz da reprodução o
viés da diferença.
Ter como parâmetro os planos das políticas de identidade
do Estado é calcar nossas investigações ou práticas em uma con-
cepção de unidade do fenômeno como medida definidora do que
380 | Psicologia e contextos rurais

é ser quilombola. Romper com tal compreensão homogeneizante e


totalizadora é possibilitar o entendimento dos processos de subje-
tivação no campo da multiplicidade, e não de medidas ou médias
sobre as quais se esquadrinham a conceituação da vida. Como afir-
mam Deleuze e Guattari (2009, p. 37): “É que o meio não é uma
média; ao contrário, é o lugar onde as coisas adquirem velocidade”.
As práticas psi se engendram nesse entre, não localizável
em um ponto ou outro, mas nas conexões diversas que cada comu-
nidade, com sua história e campo de signos, encontra com suas for-
mas de resistência e produção da vida. Intervir nesse intermezzo
do campo de desejo é atuar e possibilitar à população cartografias
de seus territórios de existência. Cartografar, como diriam Deleuze
e Guattri (2009), é delinear mapas que apanham os fenômenos no
momento em que se produzem, é potencializar a linha de fuga que
desvia e se desterritorializa, burlar o decalque transcentende que
busca em modelos instituídos sobrecodificar o plano da vida em
uma reprodução ao infinito.
Reinventar a identidade quilombola definida pelas políticas
públicas implicada em cada comunidade é desfazer-se do decalque
que procura instituir um modo de se viver quilombola e produzir
mapas que apresentam entradas diversas, que sobre o plano homo-
gêneo do ser quilombola trazem à tona as várias formas históricas e
sociais de fazer-se negro rural no Brasil.
As produções identitárias são relevantes, como afirmam
Leite e Dimenstein (2011), enquanto campo extensivo que produ-
zem planos de consistência no qual os processos de subjetivação
passam e se singularizam, como espaços de agregação e agencia-
mentos subjetivos, que fortalecem os vínculos sociais produzidos
em cada território na renovação de campos semióticos comuns,
potencializando as lutas políticas necessárias para a expressão das
multiplicidades que ali se encontram.
Psicologia e contextos rurais | 381

A problemática se encontra quando essas estruturas iden-


titárias se enrijecem e tornam-se o molde no qual as formações
subjetivas devem se expressar. As identidades são necessárias
enquanto produções que possibilitem negociações a enfrentamen-
tos políticos de grupos minoritários que requerem para si seus
direitos. Como afirma Deleuze (2010, p. 218):

Quando uma minoria cria para si modelos, é porque


quer tornar-se majoritária, e sem dúvida isso é inevitável
para sua sobrevivência e salvação [...]. Mas sua potên-
cia provém do que ela soube criar, e que passará mais ou
menos para o modelo, sem dele depender.

Nossas intervenções devem se voltar para o campo criativo


das identidades, local que configura e expressa as singularida-
des envolvidas no processo de reconhecimento e luta política das
comunidades negras rurais. É no plano intensivo de expressão que
procuramos aplicar nossas intervenções e investigações na tenta-
tiva de potencializar e compreender como os sujeitos quilombolas
apreendem os campos das políticas públicas para configurar seus
enfrentamentos ético-políticos em seu fazer cotidiano.
Temos que tomar precauções para que esse campo inventivo
se efetive com práticas que atendam as necessidades das comuni-
dades tradicionais e não se processem de forma rígida e autoritária,
como medida de tutela e controle sobre tais grupos. Não promover
a palavra de ordem, como afirmam Deleuze e Guattari (2007), que
autoriza um veredicto que define e limita o plano da vida.
Compreender os processos identitários promovidos nas
localidades e na vida cotidiana das comunidades negras rurais
como fenômenos que transbordam o conceito de quilombo estabe-
lecido pelas políticas públicas aqui tratadas. É nesse espaço fron-
teiriço e emergente de produção subjetiva que as políticas públicas
quilombolas devem ser efetivadas e pensadas.
382 | Psicologia e contextos rurais

Referências
Almeida, A.W. B. (2009) Terras de preto, terras de santo, terras de índio:
uso comum e conflito. In Godoi, E. P.; Menezes, M. A. e Marin, R.
A. (Orgs.). Diversidade do campesinato: expressões e categorias, v. 2:
estratégias de reprodução social. São Paulo: editora UNESP; Brasília,
DF: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento rural.

Arruti, J. M. A. (1997). A emergência dos “remanescentes”: notas para o diálogo


entre indígenas e quilombolas. Mana, Rio de Janeiro: 3 (2).

Bauman, Z. (2005) Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar.

Brasil (1988). Constituição Federal. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico.

Brasil (2003). Decreto no4.887 de 20 de novembro. Brasília; Presidente da


República.

Brasil (2004). Instrução normativa n049/2008. Diário Oficial da União


01.10.2008.; Brasília: Presidente do Instituto Nacional de Reforma
Agrária.

Calheiros, F. P. e Stadtler, H. H. C. (2010) Identidade étnica e poder: os


quilombos nas políticas públicas brasileiras. Katál. Florianópolis 13 (1),
jan/jun.

Chasin, A. C. M. e Perutti, D. C. (2009) Os retrocessos trazidos pela


Instrução Normativa do Incra n.º 49/2008 na garantia dos direitos
das Comunidade Quilombolas. Comissão pró-índio de São Paulo.
Recuperado em 8 novembro 2011, de http://www.cpisp. org.br/acoes/
upload/arquivos/ARTIGO%20IN%2049.pdf.

Barros, M. de. (2010) Livro sobre nada. In Barros, M. de Poesia completa. São
Paulo: Leya.
Psicologia e contextos rurais | 383

Benjamin, W. (1994). Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura


história da cultura. São Paulo: Brasiliense.

Deleuze, G. e Guattari, F. (2007). Postulados da Lingüística. In Deleuze, G. e


Guattari, F. (Orgs), Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 2. São
Paulo: Ed. 34.

Deleuze, G. e Guattari, F. (2008). Micropolítica e segmentaridade. In Deleuze,


G. e Guattari, F. (Orgs), Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3.
São Paulo: Editora 34.

Deleuze, G. e Guattari, F. (2009). Introdução: rizoma. In Deleuze, G. e


Guattari, F. (Orgs.), Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. São
Paulo: Editora 34.

Deleuze, G. (2010). Conversações. São Paulo: Editora 34.

Dimenstein, M. (2011). A ação clínica e os espaços institucionais das


políticas públicas: desafios éticos e técnicos. In Conselho Federal de
Psicologia (Org.) V seminário Nacional Psicologia e Políticas Públicas
– Subjetividade, Cidadania e Políticas Púbicas. Brasília: CFP.

Fernandes, F. (2007). O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Global.

Fernandes, F. (2008) A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo:


Globo.

Foucault, M. (2006). Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense


Universitária.

Foucault, M. (2009). A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense


Universitária.

Guattari, F. (2004) Plan sobre el planeta: capitalismo mundial integrado y


revoluciones moleculares. Madrid: Traficantes de Sueños.
384 | Psicologia e contextos rurais

Guattari, F. e Rolnik, S. (2005) Micropolítica Cartografias do Desejo. São


Paulo: Ed. Vozes.

Leite, J. F. e Dimenstein, M. (2011). Militância política e produção de


subjetividade: o MST em perspectiva. Natal: EDUFRN.

Leite, I. B. (2008). O projeto político quilombola: desafios conquistas e


impasses atuais. Estudos Feministas, Florianópolis, 16 (3): 424, set/
dez.

Martin, J. de S. (2009). Exclusão social e a nova desigualdade. São Paulo:


Paulus.

Martins, J. de S. (1993). A chegada do estranho. São Paulo: Hucitec.

Pàl Pelbart, P. (2003). Da Função Política do tédio e da alegria. In Fonseca,


T. M. G. e Kirst, P. G. (Orgs.) Cartografias e devires: a construção do
presente. Porto Alegre; Editora da UFRS.

Santos, A. e Doula S. (2008) M. Políticas públicas e quilombolas: qeustões


para debate e desafios à prática extensionista. Revista Extensão rural,
UFSM, n. 16, jul/dez.

Santos, B. de S. (2000) Pela mão de Alice: o social e o político na pós-


modernidade. São Paulo: Cortez.
Povos indígenas e o espaço
acadêmico: uma articulação
para se pensar a produção
do conhecimento
Zuleika Köhler Gonzales
Neuza Maria de Fátima Guareschi

Introdução

P ensar a produção de conhecimento no âmbito das práticas


científicas de pesquisa requer visibilizar os esquemas que
estabelecemos e nos quais nos conectamos para efetivar a realiza-
ção dessas práticas. Neste capítulo, nos valemos de questões for-
muladas a partir do encontro dos povos indígenas com o universo
acadêmico, constituindo uma “cena de pesquisa” para se refletir
como fazemos perguntas e instituímos os quadros de referência e
validade no âmbito do conhecimento.
O pensamento que articula os passos trilhados neste
estudo toma por referência as investigações arquegenealógicas
386 | Psicologia e contextos rurais

empreendidas por Foucault e os questionamentos de Latour sobre


a produção do conhecimento e suas articulações científico-polí-
ticas em nosso contemporâneo. Dessa forma, colocar em pauta o
encontro dos povos indígenas no espaço acadêmico por meio de
políticas governamentais de fomento à afirmação da diversidade
dos mais variados povos no âmbito das universidades não é pensar
em um encontro-objeto, ou mesmo em um encontro a ser focali-
zado em última instância – pois sabemos que na sua virtualidade
comporta inúmeras causas-condições que estabelecem relações
para o acontecimento em si e para além de si – mas sim atentar
para as práticas e relações que compõem os seus ditos, as possibi-
lidades de presença nesse encontro, as invisibilidades, os proces-
sos, as técnicas, táticas e estratégias políticas que possibilitaram o
encontro-acontecimento como efeito do que se operou nas forças
econômico-políticas desse momento histórico.
A cena, em questão neste estudo, envolve o âmbito da for-
mação universitária na região noroeste do RS, no envolvimento e
interesse de alunos indígenas e não indígenas nas políticas gover-
namentais de afirmação desses povos no contexto universitário.
Seria, portanto, pensar a presença dos povos indígenas no espaço
universitário, naquilo que esse encontro provoca de tensionamen-
tos, mobilizações, alianças, interesse e elaborações conceituais em
produções científicas.
O convite é para que sigamos o percurso de alguns fluxos
estabelecidos por esta cena: primeira semana de aula do segundo
semestre letivo de 2010 numa universidade comunitária que inte-
gra as regiões das Missões e do Alto Uruguai no noroeste do Rio
Grande do Sul. A direção acadêmica divulga a todos na universi-
dade que está ocorrendo a Mostra Vídeo Índio Brasil promovida
pelo Governo Federal nas dependências de seu salão de atos, o
espaço central para grandes eventos públicos, sejam acadêmicos ou
não. A coordenação do curso de Psicologia convoca os professores
Psicologia e contextos rurais | 387

interessados para levarem suas turmas ao evento desde que a temá-


tica da mostra esteja de acordo com a disciplina trabalhada.
Como professora de um curso de Psicologia nessa univer-
sidade e trabalhando numa disciplina intitulada Projetos Sociais,
sinto-me implicada com a Mostra considerando que, segundo a
ementa, devemos “analisar contextos e propor projetos sociais”.
Essa disciplina contempla o estudo de políticas públicas no âmbito
da saúde, educação e assistência social para um “projeto de inter-
venção psicossocial com seus pressupostos éticos, contextuais e
de implicação”. Como o contexto da universidade se insere numa
região tradicionalmente indigenista, e um evento voltado para os
povos indígenas – como a Mostra em questão –, decorre da imple-
mentação de políticas públicas afirmativas, a inserção de nossos
estudos nos processos que constituíram esse encontro, apresenta-
-se como solo fecundo para análise dos modos em que nos consti-
tuímos a partir do governamento da vida por políticas e tecnologias
estatais, no contexto de um curso de Psicologia pertencente a essa
universidade.
A trama que compõe essa cena vai se formando: práticas
em Psicologia e em formação, populações indígenas conectadas
ao espaço universitário, a implementação de políticas públicas, a
publicização das questões indígenas na região – com seus terri-
tórios demarcados, com seus costumes desqualificados aos olhos
dos colonizadores brancos, com sua presença malquista no espaço
comum pelo ordenamento higienista do espaço público – e no
país pelo aparato de Estado e, como solo para o debate, o universo
acadêmico-científico.
A cidade de Frederico Westphalen no Rio Grande do Sul fora
escolhida pelo Governo Federal através do Ministério da Cultura
junto a outras 110 cidades em todo o país para sediarem a Mostra
em sua 3ª edição com o tema: A imagem dos povos indígenas no
século XXI. Possivelmente a escolha da cidade pelos organizadores
388 | Psicologia e contextos rurais

do evento deve-se por ser a região das Missões e do Alto Uruguai


a que concentra o maior número de indígenas no Sul do Brasil.
A maior comunidade indígena do Rio Grande encontra-se em
Guarita, a 60 km de Frederico Westphalen, com uma população
de 7000 habitantes. Em sala de aula, pergunto aos alunos “vocês
sabem o que está acontecendo esta semana na universidade”? Os
rostos expressam surpresa, curiosidade, indiferença; algumas falas
apontam para reuniões ordinárias, festas de calouros... Uma aluna
diz: “ah, eu sei... é uma coisa de índio?”. A indiferença por alguns, a
repulsa por outros e a invisibilidade de e por tantos contrasta com
as convocações de Estado para se voltar para a imagem incômoda
dos povos indígenas.
Essa é uma região que os movimentos sociais e as lutas
políticas dos povos ameríndios em defesa de suas terras e de seus
costumes convocaram a regularização estatal de seus territórios.
Cabe dizer, que a região situa-se predominantemente em terras
originariamente indígenas. Ali, essas terras continuam sendo alvo
constante de disputas sociais, políticas, econômicas e, sob grande
tensão, elas permanecem, por força da lei, garantidas como aldeias
Kaigangues e Guaranis. São chamadas de reservas. Reservas que
garantem um espaço próprio e legítimo, mas que também confi-
nam. Estabelecem limites e um campo reservado do que é permi-
tido e do que não é permitido a um índio fazer. Denotam o que
Foucault (2008) chamou de uma razão governamental levada
a cabo pelos economistas a partir do século XVIII e que ainda aí
estão, incidindo sobre a regulação pelo Estado dos interesses priva-
dos de cada um, tomando como problema a quantidade de pessoas,
o trabalho, a circulação de mercadorias, etc. no que se caracterizou
como o surgimento das chamadas populações.
No estabelecimento de territórios-reservas indígenas vemos
aí um investimento na vida das populações que possibilita-lhes
melhores condições na qualidade de vida e garantias em direitos
coletivos constitucionais, mas que, por outro lado, efetivamente,
Psicologia e contextos rurais | 389

as controla homogeneizando-as em parâmetros padronizados de


igualdade e as limita em movimentos previamente considerados
nos regimentos legais públicos.
Essa questão vinculada à demarcação dos territórios indí-
genas também pode ser analisada do ponto de vista dos direitos
modernos que, por sua vez, instituiu o sujeito de direitos garan-
tindo-lhes algumas condições no âmbito civil, político e social no
arranjo liberal dos interesses econômicos individuais. É uma trama
política em que uma condição vincula-se à outra, ou seja, consti-
tuir-se em direitos nesse arranjo político-moderno só é possível na
trama das barganhas contratuais de um social composto por indi-
víduos, cada um com seu interesse privado buscando ser contem-
plado e garantido em seus direitos. Nesse sentido, podemos pensar
no tensionamento presente nessa discussão entre os direitos de um
sujeito coletivo de direitos – como são consideradas as populações
indígenas – e o sujeito de direito constituído numa trama polí-
tico-econômica liberal em que vigoram os interesses individuais.
Vemos aí uma tensão que vigora no campo das políticas públicas
que se formulam visando as populações indígenas, e com isso, nos
levam novamente à nossa cena de pesquisa.
Esta então é a nossa cena: o campo da Psicologia se fazendo
questões ao se deparar com os povos indígenas acessando o espaço
acadêmico-universitário e a constituição de políticas públicas a
eles direcionadas.
Em primeiro lugar, por que esta denominação: “cena de pes-
quisa”? Porque queremos deslocar o modo de elaborar as questões
de pesquisa da tradicional perspectiva moderna em que a relação
sujeito-objeto aprioristicamente estabelece os esquemas concei-
tuais e metodológicos de se pensar os acontecimentos e as coisas,
numa relação que o sujeito-pensante apartado das “coisas-em-si”
pensa as coisas objetivando-as nesse pensamento, para a possibi-
lidade de descrever uma cena de pesquisa em que o pensamento
390 | Psicologia e contextos rurais

que indaga se conecta com a dimensão política, social, passional e


linguística dos artefatos de um real sempre móvel.
Atreladas a uma proposta de investigação que remete à cena
de pesquisa já apresentado em texto produzido em nosso núcleo
acadêmico (Guareschi et al., 2011), damos prosseguimento nesse
pensamento para refletir formas de se produzir conhecimento. E é
nesse sentido que pensar uma cena de pesquisa não é buscar afir-
mações-respostas que correspondam a um estado de coisas, mas
sim, indagar como o que está aí, nessa cena, foi se transformando
em afirmações com pretensão de universalidade e mais tarde com
referência a um contexto. Pensando com Latour (2001), colocar a
cena em questão não seria entender as referências estabelecidas
pelos elementos da pesquisa como exteriores ao discurso e à socie-
dade numa tentativa de purificá-las para acessar “as-coisas-em-
-si”, mas, justamente reconhecê-las nos movimentos de mudança,
transformações, alianças, vínculos, interlocuções, e nos mecanis-
mos que institucionalizam esses fluxos.
A nossa cena de pesquisa se instaura no campo acadêmico,
no espaço interno da universidade, como mediadora e instrumento
de formulação das verdades científicas modernas. Dessa forma,
a entrada para trilharmos o percurso dos questionamentos feitos
sobre a nossa cena de pesquisa ocorre no próprio espaço acadêmico
ao ser convocado pelo “mundo externo” – os povos indígenas, as
organizações não governamentais e o Estado – que por sua vez,
mobiliza a temática indígena na ordem do debate. Na multiplici-
dade que compõe o espaço-acadêmico, situamo-nos no campo da
Psicologia e é a partir daí que colocamos as questões-problema para
pensarmos esse encontro.
Nesse ponto, cabe-nos indagar os processos que possibili-
tam que o campo Psi venha a se ocupar dos acontecimentos e da
ordem relativa ao que acontece entre os homens.
Psicologia e contextos rurais | 391

A inscrição do campo psicológico


na regulamentação político-
estatal das populações
Se os elementos que compõem a nossa trama, visibilizam a
materialidade de uma razão governamental sobre a vida das pes-
soas, remontamos ao que Foucault (2008) apresenta como correla-
tivo à emergência dessa forma de governamentalidade, que vigora a
partir das transformações ocorridas com o surgimento dos Estados
modernos, ou seja, o aparecimento de um conhecimento que não
é qualquer conhecimento científico, mas sim um conhecimento
indispensável para o estabelecimento de um bom governo nos
moldes, sobretudo, econômicos que então se formulavam. Nessa
transição, instauram-se modos específicos e particulares de se pen-
sar o mundo e as coisas, que não são da ordem da natureza, mas
de uma naturalidade específica às relações dos homens entre si,
ou seja, “ao que acontece […] quando eles coabitam, quando estão
juntos, quando intercambiam, quando trabalham, quando produ-
zem”. (Foucault, 2008, p. 470). É algo da ordem de uma naturali-
dade do que se instituiu como sociedade – o lugar da existência em
comum dos homens. Vemos então se positivar uma naturalidade
da sociedade. Essa sociedade que emerge como campo de objetos
dos quais o Estado deve se ocupar, tomar a seu encargo, e conhe-
cer. Apresentam-se aí processos que devem ser conhecidos pelos
mesmos procedimentos de qualquer um dos conhecimentos cien-
tíficos, com todas as suas regras de evidência e da racionalidade
que os constitui. Com a assunção da população como um objeto
de análise para o bom governar, desenvolve-se práticas, saberes e
intervenções que incidirão sobre as leis de uma naturalidade social.
Podemos com isso nos perguntar sobre os arranjos que foram se
constituindo para dar condições à emergência de uma Psicologia
que se voltasse para o social.
392 | Psicologia e contextos rurais

Em primeiro lugar, podemos colocar em pauta o próprio


surgimento da Psicologia no âmbito das ciências modernas. Uma
análise com uma perspectiva histórico-política empreendida por
Foucault nos ajuda a estabelecer a trama dos caminhos, interrup-
ções, manobras, táticas e estratégias feitas no âmbito das relações
político-econômicas em curso na modernidade para que as ciên-
cias exatas e naturais se voltassem para o homem e o tomassem
como objeto de estudo e de conhecimento.Na conjunção de uma
ambiguidade moderna e da constituição da individualidade como
uma experiência no âmbito da estruturação dos Estados moder-
nos – a emergência de um indivíduo autônomo e livre e, por outro
lado e ao mesmo tempo, um indivíduo disciplinado, ou sob con-
trole das disciplinas que se constituem para melhor investir nesse
indivíduo a ser normatizado e vinculado a um parâmetro de nor-
malidade – surgem as condições para que se institua como campo
de conhecimento as ciências do psicológico. Voltadas para esse
indivíduo inicialmente soberano, que se constitui aí dotado de uma
interioridade, que o faz ser capacitado para estabelecer as bases de
um contrato social, esse indivíduo moderno surge no princípio da
igualdade aos demais e sob a regulamentação das leis do Estado
para o controle e a efetividade desse novo campo social. Aqui, esse
indivíduo-soberano é fonte para o estabelecimento de uma racio-
nalidade de estado, mas não ainda o alvo a ser investido pelos cál-
culos de um governamento estatal. Com uma razão econômica
sustentando a inscrição da liberdade como elemento central desse
novo modo de se estabelecer a relação entre o Estado e o corpo
social, surgem mecanismos de segurança para que esse governo
dos homens seja limitado, assegurando aos homens o estatuto de
homens livres, ao mesmo tempo que se garantem os direitos de
desenvolvimento desses processos econômicos ou intrínsecos à
ordem das populações.
No domínio dessa nova razão governamental produzem-
-se técnicas de si na formulação desse sujeito-homem-livre,
Psicologia e contextos rurais | 393

objetivando o governo da individualização nos modos de ser tra-


balhador, ser criança, ser adulto, ser mulher, ser estudante etc.
Para isso, concorrem as ciências humanas engendradas nessa nova
inteligibilidade, estabelecendo os parâmetros de validade para se
conhecer o objeto-homem e se proceder da melhor maneira com
vistas a esse sujeito-homem-objetivado.
É nesse contexto também que se instaura um novo domí-
nio jurídico para dar conta desse ordenamento e desenvolvimento
populacional. Novos regulamentos e novos códigos para uma
melhor gestão das populações e garantia dos direitos das liberdades
individuais são pensados meticulosamente com o aporte dos sabe-
res instituídos no âmbito das ciências voltadas para esse indivíduo
moderno. É na formulação e utilização de tecnologias políticas de
governamento das populações que o domínio das políticas públi-
cas se estabelece, regulando e otimizando os processos de fomento
para o desenvolvimento econômico dos Estados-nação modernos
ao mesmo tempo que propaga em discurso e práticas todo um rol
de programas voltados para a garantia dos direitos humanos de
forma global.
Vemos aí o investimento na formulação de políticas que
regulam e controlam ao mesmo tempo que dão garantias aos
povos inscritos nos Estados-nação reconhecidos pelas leis políti-
cas internacionais. Com isto, deparamo-nos com o ordenamento
e a inscrição dos povos indígenas no Estado brasileiro através das
tecnologias de governamento e de inclusão na ordem político-eco-
nômica vigente.

Políticas públicas e ações afirmativas


correlativas aos povos indígenas:
Ao continuarmos nosso percurso, nos deparamos com a
constituição de um sujeito jurídico em torno das regulamentações
e normatizações estatais sobre os povos indígenas. Em âmbito
394 | Psicologia e contextos rurais

global, a discussão pelos direitos das populações indígenas se con-


cretiza na virada do século XX para o século XXI. Na esteira dos
Direitos Humanos, é em 2007, após muita luta e discussão por parte
de organizações civis e movimentos sociais pela questão indígena
durante mais de uma década, que o Conselho de Direitos Humanos
da ONU aprova o texto da Declaração das Nações Unidas sobre os
Direitos dos Povos Indígenas, com a ressalva de que ainda na vés-
pera de sua aprovação ocorreram mudanças e emendas impostas
pela Assembleia das Nações Unidas que não haviam sido discutidas
anteriormente nos debates sociais, relacionadas, sobretudo, ao uso
das terras (Stock, 2010).
Ainda em meados do século XX, sob uma perspectiva polí-
tica de desenvolvimento econômico das nações, a OIT (Organização
Internacional do Trabalho) declara em 1957 a Convenção 107,
Convenção sobre a Proteção, a Integração das Populações Indígenas
e outras Populações Tribais e Semitribais de Países Independentes
“com vistas à proteção das populações interessadas e sua integração
progressiva na vida dos respectivos países” (Parte I – dos Princípios
Gerais. Art. 2º, Item 1). Imediatamente após a identificação de qual
população seria alvo dessa convenção nos seus Princípios gerais, o
texto volta-se para a ocupação territorial na Parte II – intitulada das
Terras. É aqui também que se diz em nome de quê se investe nas
Populações Indígenas. No Art. 12, é expresso que “As populações
interessadas não deverão ser deslocadas de seus territórios habi-
tuais sem seu livre consentimento, a não ser de conformidade com
a legislação nacional por motivos que visem à segurança nacional,
no interesse do desenvolvimento econômico do país ou no interesse
da saúde de tais populações” (Magalhães, 2005).
No Brasil, em plena ditadura militar, o general Humberto
Castelo Branco promulga em 1966 o Decreto n. 58824 promulgando
a Convenção 107 da OIT e, em 1967, institui a FUNAI (Fundação
Nacional dos Índios). Segundo Oliveira e Freire (2006), o aparato
Psicologia e contextos rurais | 395

tutelar era empregado pela FUNAI para impedir qualquer mobili-


zação dos índios em face do Estado.
Em 1973, de acordo com práticas políticas ditatoriais e
militares vigentes e exercidas em nome da segurança nacional, do
desenvolvimento econômico e da ordem social se institui o Estatuto
do Índio. O seu texto denota uma preocupação em demarcar, regu-
lamentar e controlar os territórios indígenas bem como integrar os
povos indígenas na ordem social visando uma comunhão nacional.
Com um caráter assimilacionista, o Estatuto visava aculturar os
índios no socius brasileiro, de predomínio branco, eurocêntrico e
totalizante na tomada de suas populações e territórios. Esse enqua-
dre dos povos indígenas em regulamentações jurídicas seria uma
preocupação com um espaço “descoberto” a um possível inimigo
de Estado?
Já com o processo de discussão dos direitos políticos, civis e
sociais ocorrido com a democratização na década de 80 do século
XX, resulta na Constituição de 1988 um capítulo específico regu-
lamentando a vida indígena no país. Como parte da Ordem Social
(Título VIII), em seu VIII Capítulo (dos Índios) o Estado reconhece
em dois artigos – o Artigo 231 e 232 – que os povos indígenas têm o
direito sobre as terras que ocupam, mas com a União demarcando,
protegendo e fazendo respeitar os seus bens; o avanço em rela-
ção ao Estatuto do Índio será no reconhecimento de direitos. No
texto diz: “os povos indígenas serão reconhecidos em seus modos
de ‘organização social, seus costumes, sua línguas, crenças e tradi-
ções’”, denotando uma virada com relação à lógica integrativa na
comunhão nacional presente no texto de 1973.
Com a nova Constituição Brasileira em 1988, houve um
esforço dos movimentos sociais e entidades civis voltadas para
os direitos humanos em discutir e buscar a vigência dos direitos
fundamentais do homem (Artigo 5º, § 1º e Artigo 60, § 4º) para
que os direitos civis, sociais, econômicos, culturais, ambientais e
396 | Psicologia e contextos rurais

étnico-raciais fossem promovidos, cumpridos e implementados


em leis e políticas públicas na sociedade. Uma preocupação, no
entanto, surge quando se quer combater as injustiças e desigualda-
des sociais no que tange aos direitos dos grupos étnico-raciais com
a promulgação de políticas ditas universais, pois esse enfoque uni-
versal de alguma forma não vem a contemplar as especificidades e
costumes de cada povo. Foi assim, a partir dessa preocupação, que
os movimentos sociais articularam-se ao debate da igualdade e da
justiça social no âmbito público.
Correntemente, as ações afirmativas são concebidas como
“políticas públicas que têm como objetivo corrigir distorções histó-
ricas responsáveis pelo sofrimento de determinados grupos sociais
ou étnico-raciais como, por exemplo, mulheres, pessoas portado-
ras de necessidades especiais, negros e índios” (Barbosa, J. L.; Silva,
J. S. & Sousa, 2010, p. 71). Mas, ironia do percurso, justamente por
uma crítica ao universalismo presente na elaboração de políticas
étnico-raciais, é que se pensa em ações peculiares e de afirmação
no espaço da universidade. O paradoxo do peculiar no campo que
se instituiu como Uno.

As políticas públicas direcionadas aos povos


indígenas articuladas ao universo acadêmico
Com relação às investigações acadêmicas em torno das
questões indígenas, de forma geral, predominam aquelas que são
realizadas a partir de um olhar e saber antropológico, principal-
mente na identificação e caracterização das formas de vida das
mais diversas etnias indígenas. Alguns estudos focalizando a temá-
tica da saúde encontram-se ou partem da Psicologia. O Conselho
Regional de Psicologia de São Paulo (CRP/06) instituiu um grupo
virtual “Psicologia e Povos Indígenas” que reúne diversos profissio-
nais que discutem um possível encontro com as questões indígenas.
Psicologia e contextos rurais | 397

Em um dos estudos1, a autora busca pensar um possível lugar para o


psicólogo dentro da área de saúde indígena. E se pergunta: como os
indígenas vivenciam a experiência de se hospedar na Casa de Saúde
do Índio de São Paulo? Indaga principalmente como se dá a comu-
nicação entre pacientes e acompanhantes indígenas e a equipe não
indígena... Já numa outra perspectiva, o estudo de Bianca Stock
(2010)2 partindo de um pensamento ancorado na Filosofia da
Diferença, instiga a produção de outras conexões, na busca, sobre-
tudo, de múltiplos possíveis para a vida dos indígenas, abordando o
que ela chamou de um “devir-ameríndio”.
A preocupação dos acadêmicos atualmente gira em torno
da presença indígena no espaço urbano. Devidamente tutelados,
regulamentados, confinados (?!) em suas terras já demarcadas, os
indígenas transitam nos centros citadinos buscando talvez a pura
sobrevivência. Os apelos totalizantes desse modelo liberal convo-
cam a todos para as “benesses” e facilidades de consumo e ascensão
econômica irradiado na condensação das cidades. Considerando
um modo de se organizar calcado no nomadismo ou na itinerância
em muitas etnias do sul do país – como os Kaingang e Guaranis
–poderíamos pensar que essa preocupação dos brancos com a pre-
sença indígena no espaço urbano poderia estar relacionada com a
matriz lógica de nossos tempos atuais em que nada escapa à vigi-
lância para melhor controlar, principalmente àqueles que escapam
aos modos hegemônicos prescritos por esse modelo político libe-
ral? Como controlar a quem escapa no nomadismo ou está fora
da reserva? Como poderíamos analisar os processos praticados na

1 GONÇALVES, Lucila de Jesus Mello. (2007). Entre culturas: uma experiência


de intermediação em saúde indígena. Dissertação de Mestrado. Fac. de Saúde
Pública-USP, São Paulo, SP.
2 STOCK, Bianca Sordi. (2010). A alegria é a prova dos nove: o devir-ameríndio no
encontro com o urbano e a Psicologia. Dissertação de Mestrado. Programa de
Pós-graduação em Psicologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, RS.
398 | Psicologia e contextos rurais

constituição de políticas públicas voltadas aos indígenas, já que


esses processos acontecem sob a lógica do controle e da vigilân-
cia própria de nosso tempo moderno e que, portanto, preconiza a
segregação ou confinamento de todos aqueles nas populações que
ameaçam a ordem e o progresso das nações?
As atenções acadêmicas no que tange à constituição de polí-
ticas públicas orientadas para as populações indígenas voltam-se
para o Censo 2010 – contabilização das populações pelo Estado.
Como último dos redutos apartado das estatísticas de Estado, os
índios nesse último Censo foram o alvo mais visado e promissor
para finalmente, devidamente inscritos nas regulamentações esta-
tais com seus dados e números, instrumentalizarem estudos que
auxiliem na constituição de políticas públicas. Segundo Gersem
Baniwa, coordenador-geral de educação indígena da Secretaria
de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) do
Ministério da Educação em reportagem para a revista Pesquisa
On-line3 da FAPESP – a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
de São Paulo, na edição 173, de julho de 2010, declara que “o dado
mais importante será a identificação da presença dos índios em
áreas urbanas, onde não têm cobertura especial dos governos fede-
ral e estadual e, no geral, vivem em situação de penúria, sem aten-
dimento de saúde”.
As técnicas de controle populacional aprimoram-se: nesse
Censo 2010, ao se autodeclarar indígena, o entrevistado respon-
derá também a que etnia ou povo pertence e qual é a língua ou
idioma indígena que habitualmente fala em casa. Além disso, pre-
tende-se atingir totalmente o universo dos indígenas. Antes eram
indagados por amostra, agora são incluídos nos questionários des-
tinados a todos os brasileiros. A antropóloga e demógrafa Marta
Maria Azevedo, pesquisadora do Núcleo de Estudos de População

3 Recuperado em 6 outubro 2010, de http://revistapesquisa.fapesp.


br/?art=4192&bd=1&pg=2&lg=.
Psicologia e contextos rurais | 399

(NEPO) da Unicamp aposta em dados mais fidedignos ao dizer: “É


nítida a falta de sistemas de informações populacionais mais deta-
lhadas para orientar e avaliar as políticas públicas para os índios.
Acima de tudo, os dados do Censo vão ajudar o Estado e as orga-
nizações indígenas a melhorar o controle social sobre as políticas
públicas dos índios. As várias instâncias governamentais terão uma
base melhor para pensar e avaliar políticas”, e, fazendo voz aos que
se preocupam com os indígenas em áreas urbanas diz: “se observar-
mos que determinada etnia está mais em cidades do que em terras
demarcadas, teremos que revisar nossos programas. Afinal, se ape-
sar das demarcações de terras os índios continuam migrando para
as cidades, algo nos escapou”.
Ainda segundo a Revista da FAPESP (julho/2010) foi só em
1991 que os índios foram incorporados e investigados nacional-
mente pela primeira vez. Com isso, incluiu-se “A categoria indí-
gena no quesito ‘raça ou cor’ do Censo” sendo “possível se separar
essa categoria das pessoas que se classificavam como ‘pardas’ nos
Censos até 1980”.
O interessante nessas técnicas de esquadrinhamento popu-
lacional são os artifícios e tipologias criadas para que todos sejam
devidamente identificados e classificados. O antropólogo Artur
Nobre Mendes, coordenador-geral de gestão estratégica da FUNAI,
diz na Revista da FAPESP (julho/2010) que com o censo estatal vai
se “discriminar etnia e língua (o que) vai nos dar uma pista do indí-
gena real. Se a pessoa não souber falar a que grupo pertence e que
língua fala, saberemos estar diante de um ‘índio genérico’”.
É interessante notar a correlação das práticas científicas
modernas – vinculadas ao ordenamento estatal das populações
– com a emergência das regulamentações brasileiras na vida dos
povos indígenas. Logo após a implementação da nova Constituição
brasileira, os interesses científicos ocasionam as primeiras discus-
sões e, por fim, regulamentações estatais em torno do universo
400 | Psicologia e contextos rurais

indígena. Cabe ressaltar que não se buscava a legitimação ou afir-


mação dos direitos indígenas. O fim da ditadura militar não acar-
retou o fim das relações autoritárias da oligarquia rural no uso da
terra, e nas suas relações com o Estado e em seus atravessamentos
acadêmicos, longe disso, um dos primeiros decretos mencionando
os povos indígenas em terras brasileiras trata da coleta, por estran-
geiros, de dados e materiais científicos no Brasil, promulgado pelo
então presidente da república, José Sarney. Esse decreto versa o
seguinte:

Art.1º Estão sujeitas as normas deste Decreto, as ativi-


dades de campo exercidas por pessoa natural ou jurí-
dica estrangeira, em todo o território nacional, que
impliquem o deslocamento de recursos humanos e
materiais, tendo por objeto coletar dados, materiais,
espécimes biológicos e minerais, peças integrantes da
cultura nativa e cultura popular, presente e passada,
obtidos por meio de recursos e técnicas que se destinem
ao estudo, à difusão ou à pesquisa, sem prejuízo ao dis-
posto no Art. 10. Parágrafo único. Este Decreto não se
aplica às coletas ou pesquisas incluídas no monopólio
da União (grifo das autoras).

A dimensão indígena aparece apenas por ocupar áreas de


interesse científico-ambiental e econômico. É apenas no 4º Artigo
desse decreto, ao apontar os órgãos estatais responsáveis pela
autorização das atividades científicas de entidades estrangeiras no
Brasil, que no inciso III determina-se o Ministério do Interior atra-
vés da FUNAI (Fundação Nacional do Índio) e do IBAMA (Instituto
brasileiro do meio ambiente e de recursos renováveis) como res-
ponsáveis pelas “autorizações que envolvam a permanência ou
trânsito por áreas indígenas e de preservação do meio ambiente,
respectivamente”. Esse decreto vem a substituir o Decreto nº
65.057, de 26 de agosto de 1969, período forte da ditadura militar.
Psicologia e contextos rurais | 401

Tal decreto versava sobre a “concessão de licença para a realização


de Expedições Cientificas no Brasil”.4
De acordo com uma concepção de ciência positivista
moderna, preocupada com o progresso e a descrição de leis que
possibilitem a dominação da natureza, é que vemos as questões
indígenas sendo inseridas gradualmente nas primeiras regulamen-
tações estatais brasileiras que mencionam os territórios ou povos
indígenas. Por outro lado, não é de se espantar essa inscrição polí-
tico-acadêmica dessas populações nos esquemas jurídicos estatais,
pois segundo Chauí (2001, p. 51), na universidade brasileira, foram
sempre mantidas pelo menos três concepções em seus modelos
operatórios, ou seja, modos de operar que “vinculam a educação à
segurança nacional, ao desenvolvimento econômico e à integração
nacional”. É nesse sentido que vemos uma clara articulação entre
formas e esquemas de se fazer ciência com as constituições nor-
mativas e os encaminhamentos políticos dos Estados frente a suas
populações, em nosso caso específico, na inscrição dos povos indí-
genas nas regulamentações do Estado Brasileiro.
Em meio a todo esse investimento estatal e proliferação de
estudos em torno das questões indígenas, nos perguntamos como
se constitui a inscrição em um ordenamento estatal jurídico – que
toma por base um direito positivo composto em normas universais
e que, portanto, não atende a práticas particulares – de povos que
organizam-se socialmente em processos e modos próprios, com
seus próprios regimentos e justamente por isto, constituem-se em
nações?
E os índios? O que falam? Como falam? O que dizem daquilo
que viveram, das regulamentações estatais, das normatizações bio-
políticas? Sentindo na pele práticas de extermínio, confinamento,
capturas e prescrições em legislações que preconizam formas

4 Recuperado em 15 janeiro 2012, de http://www2.camara.gov.br/legin/fed/


decret.
402 | Psicologia e contextos rurais

hegemônicas de se organizar socialmente, de se conduzir, ou seja,


inscritos no governamento populacional em uma razão de Estado,
urge pensar e analisar os processos instituídos no confronto desses
povos, considerando a singularidade de seus modos e processos de
vida no encontro com interesses, fluxos, redes e saberes configura-
dos por esse pensamento científico ocidental moderno que aí está.

As questões indígenas e as políticas públicas


fazendo pensar o próprio espaço acadêmico
De acordo com o relato de Latour (2001), em sua descrição
dos acontecimentos e do fazer científicos na Esperança de Pandora,
pensar as questões indígenas e as políticas a elas direcionadas
incorrendo no espaço acadêmico já as faz ser alvo das atenções do
mundo trazendo-as para o centro da controvérsia; e, ao mantê-las
em jogo nesse embate de contraposições, incorre-se na pulsação
dos fluxos de acordo com as alianças e o grau de interesse ativado
por essas questões, tanto no “mundo interno” da ciência como no
“mundo externo” a esse espaço acadêmico. Temos aqui uma cena
de pesquisa que transcorre no próprio espaço pensante dos fatos
científicos. Seria então: os elementos constituintes dessa cena pen-
sando o seu próprio espaço de cena a ser pesquisada. O campo aca-
dêmico – instrumento de formulação de verdades científicas – e o
mundo público – nos vários elementos constituintes do colocar em
jogo a governabilidade dos povos indígenas – publicizando o uni-
verso do índio a partir da universidade.
Aqui também nos encontramos com o pensamento de
Despret (2002) quando propõe uma cultura da desespacialização
ou do des-locamento, no sentido de derrubar muros construídos
em torno de algumas dimensões consideradas ora da ciência, ora
do social. Ou ainda, em torno da célebre dicotomia moderna entre
natureza e cultura. E, sobretudo, aqui neste momento, na tradicio-
nal relação moderna entre sujeito-objeto.
Psicologia e contextos rurais | 403

O convite de Despret (2002) é para que se pense essa relação


como vários Outros numa cena: tanto o sujeito-que-pensa (o pes-
quisador) sair desse lugar de um Eu (ou nós) que pensa e se deslocar
para o lugar de um Outro também a ser perguntado, assim como
os objetos-sujeitos da pesquisa considerados já tradicionalmente
como Outros desconhecidos a serem investigados. Nesse encontro
de Outros, e não mais “Eu – Outro”, vale considerar o “contraste”
que surge entre esses elementos e as várias versões que surgem na
indagação desse contraste; e não entrar em um esquema predomi-
nante nas ciências que é o de identificar controvérsias entre teorias
que buscam o saber de um outro para dar evidência de um saber
correto, de uma causa natural, original, verdadeira e universal, mas
sim, considerar as várias versões controversas como um campo de
análise que constitui “sujeitos-objetos impuros” num jogo político
de interesses.
Nas versões surgidas no contraste entre esses outros, pode-
mos nos voltar para uma reflexibilidade – ou seja, um voltar-se para
as versões ou verdades que cultivamos de nós mesmos... aqui não
estou falando de um “eu íntimo – subjetivo”, mas, das versões feitas,
ou fabricadas como definições últimas no âmbito de um saber cien-
tífico sobre a vida. No entanto, o que nos interessa aqui é pensar o
percurso até chegar às versões, é pensar o que no viés da reflexibi-
lidade nos leva a pesquisar esse outro-sujeito-objeto e a lhe fazer
perguntas. Cabe-nos indagar também sobre o que e como somos
levados a produzir esse contraste assim como nos perguntar sobre a
dimensão de nosso interesse em fazer interessante não só o que nos
interessa, mas, outras versões surgidas nesse encontro.
Dessa forma, se deslocar, ou pensar na desespacialização,
não é perguntar ao outro aquilo de que teríamos nos esquecido ou
aquilo que não podemos saber, mas, sim, é perguntar as possibili-
dades de invenção que os encontros com um Outro-sujeito-objeto
podem dispor.
404 | Psicologia e contextos rurais

Referências
Barbosa, J. L.; Silva, J. S. & Sousa, A. I. (2010). Ação afirmativa e desigualdade
na universidade brasileira. (pp. 69 – 81). Col. Grandes Temas. Rio de
Janeiro: UFRJ.

Brasil. (1988). Constituição Federal do Brasil. Recuperado em 15 janeiro


2012, de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
constitui%C3%A7ao.htm.

Brasil. (1990). Decreto nº 98.830, de 15 de janeiro de 1990. Recuperado em


15 janeiro 2012, dehttp://www.funai.gov.br/projetos/Plano_editorial/
Pdf/Legisl/capitulo-06.pdf.

Chauí, M. (2001). Escritos sobre a Universidade. São Paulo: Editora da UNESP.

Despret, V. (2001). Le emozioni – etnopsicologia dell’autenticità, Milano:


Eleuthera.

Foucault, M. (2008). Segurança, território, população. São Paulo: Martins


Fontes.

Gonçalves, L. J. M. (2007). Entre culturas: uma experiência de intermediação


em saúde indígena. Dissertação de Mestrado. Fac. de Saúde Pública-
USP. São Paulo.

Guareschi, N.; Lara, L. de; Azambuja, M. A.; Gonzales, Z. K. (2011). Por uma
lógica do desassujeitamento: o pensamento de Michel Foucault na
pesquisa em ciências humanas. Pesquisas e Práticas Psicossociais 6.
(2), São João del-Rei, MG.

Latour, B. (2001). A esperança de pandora. Bauru: EDUSC.

Magalhães, E. D. (Org.). (2005). Legislação Indigenista Brasileira e normas


correlatas 3. ed. Brasília: FUNAI/CGDOC.
Psicologia e contextos rurais | 405

Oliveira, J. P.; Freire, C. A. da R. (2006). A Presença Indígena na Formação


do Brasil. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional.

Stock, B. S. (2010). A alegria é a prova dos nove: o devir-ameríndio no encontro


com o urbano e a Psicologia. Dissertação de Mestrado. Programa de
Pós-graduação em Psicologia Social, Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, RS.
A Psicologia Comunitária
no contexto ameríndio: a
educação mitológica Guarani
na indissociabilidade ensino,
pesquisa e extensão
Ana Luisa Teixeira de Menezes

Introdução

A Psicologia Comunitária tem se constituído ao longo das últi-


mas décadas a partir de um esforço sistemático de interven-
ção com os diversos grupos sociais, notadamente os grupos mais
empobrecidos ou em situação de inclusão, marginalizada na vida
social e, até mesmo, de exclusão social. Essa interação tem se dado
de maneira geral, e tendo como referência o contexto brasileiro, a
partir da ênfase na autonomia e no protagonismo das populações
com as quais se tem trabalhado, através da ampliação da critici-
dade desses sujeitos em relação ao contexto e aos problemas que
apresentam. Nesse processo, a partir da incorporação de elementos
408 | Psicologia e contextos rurais

presentes na Educação Popular (Freire, 2004, 2006; Góis, 2005) e


através da formação de uma perspectiva crítica de Psicologia Social
Comunitária (Lane, 1995; Montero, 2000; Sawaia; 1995; Góis; 2012;
Ximenes et al.; 2008), algumas categorias foram se formando tanto
para a compreensão da vida comunitária quanto para a intervenção
a partir da Psicologia nesses campos.
Considerando esse referencial teórico comunitário, Góis
(2008), ao pensar a saúde comunitária, problematiza a noção de
ciência evidenciando a história ameríndia que se constitui, na
América, de vários povos convivendo num espaço geográfico, his-
tórico, cultural e humano, cujo início remonta aos primeiros povos
pré-históricos e, num processo de transformação contínuo, chega
até os dias atuais.
Este trabalho pretende elucidar alguns elementos que
podem agregar à construção de um conhecimento social e comuni-
tário tendo como campo o contexto rural indígena. Um dos aspectos
que se coloca é considerar os saberes ameríndios como conheci-
mentos que são, ao mesmo tempo, epistemológicos e ontológicos.
Destacam-se a vivência comunitária e a educação mitológica, que
se constituem como processos coletivos identitários e tornam-se
relevantes para os estudos da Psicologia Comunitária.
Problematizar a cultura Guarani, presente no interior do
Rio Grande do Sul, tem produzido uma dinamicidade para o enten-
dimento dos processos grupais e comunitários, tendo em vista que,
muitas vezes, existe um completo desconhecimento e até mesmo
um preconceito em relação a essas populações. Tal posicionamento
leva a uma ideia de um índio folclórico, mitificado como um perso-
nagem exótico e selvagem.
Morin (2011), dentro de um movimento complexo, reflete
sobre a necessidade de integrar o pensamento do sul, ou seja, os
saberes indígenas e africanos ao pensamento do norte, europeu e
norte-americano. Os saberes denominados do sul constituem o
Psicologia e contextos rurais | 409

pensar a partir da dança, do canto, das sensações, da afetividade,


dos elementos da natureza, dos instintos, aspectos que são desen-
volvidos há milhares de anos num modo de vida da América Latina.
Os saberes do norte, por sua vez, orientam a ciência e os modos de
ação no sentido analítico, interpretativo, cultivando uma ideia de
distanciamento neutro, fundamentados num modo de vida norte-
-americano e europeu, predominantemente racionalista.
Pretende-se, dessa forma, trazer à luz alguns desses conhe-
cimentos numa prática educativa universitária que envolve a
indissociabilidade entre pesquisa, ensino e extensão no campo
transdisciplinar, que atravessa a prática e o pensar da Psicologia
Comunitária.

Campo transdisciplinar: indissociabilidade


entre ensino, pesquisa e extensão
A aldeia Mbya Guarani denominada Ka’a guy Poty, que sig-
nifica Flor da Mata, situa-se no município de Estrela Velha, no inte-
rior do Rio Grande do Sul. Seu território foi doado aos Guarani pela
CEEE – Companhia Estadual de Energia Elétrica do Rio Grande do
Sul, no ano de 2002. No ano de 2012, 30 pessoas residiam na reserva
indígena com uma área de 500 hectares. A aldeia fica a 19 quilôme-
tros de Estrela Velha, e a quatro quilômetros da Vila Itaúba. Existe
na aldeia uma escola de educação básica diferenciada, com profes-
sor Guarani. Não há posto de saúde dentro da aldeia. Há energia
elétrica e a água vem de um poço artesiano. A língua falada no dia
a dia é a Guarani. O português é falado somente na comunicação
com os não índios. Na escola se aprende a escrever e a falar em
Português, e o ensino vai até a 4ª série do ensino fundamental. A
escola recebe merenda escolar mensalmente do Estado.
No ano de 2006, iniciou-se um trabalho com o Departamento
de Psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, atra-
vés do qual os alunos das disciplinas de Psicologia Comunitária I
410 | Psicologia e contextos rurais

e II e da Pós-graduação em Educação Biocêntrica1 visitavam as


aldeias numa proposta de ensino participativo, através de observa-
ção participante, conversas em roda e entrevistas abertas. A partir
dessas atividades, foram surgindo outras interações com caráter
de extensão: venda e exposição do artesanato indígena na UNISC,
palestras e curso de extensão sobre a cultura indígena ministrado
por Eduardo Acosta2, professor da escola Guarani. O espaço de
venda de artesanato tornou-se também um momento de comuni-
cação, de diálogo interétnico.
Em 2007, ocorreu na aldeia o 1° Encontro de Medicina
Tradicional do Rio Grande do Sul, no qual se fizeram presentes
diversas lideranças religiosas e políticas Guarani. Esse encontro
provocou uma sensível mudança na visão da comunidade vizinha
frente aos Guarani. Na abertura do evento, estavam presentes o
Prefeito e o Vice-Prefeito de Estrela Velha, o Secretário Municipal
de Agricultura, a Secretária Municipal da Saúde, um representante
da Secretaria Municipal de Educação, o pastor da comunidade
evangélica e representantes de órgãos como: FUNAI (Fundação
Nacional do Índio), FUNASA (Fundação Nacional de Saúde),
EMATER/ASCAR-RS (Empresa de Assistência Técnica e Extensão
Rural), COMIN (Conselho de Missão entre Índios), CEPI (Conselho
Estadual dos Povos Indígenas) e UNISC (Universidade de Santa

1 Educação Biocêntrica é uma proposta educativa, oriunda do princípio biocên-


trico, que trabalha para o desenvolvimento dos vínculos afetivos, da criativi-
dade, da transcendência, percebendo a identidade como presença no mundo.
Suas bases epistemológicas estruturam-se a partir da Complexidade (Morin),
da Teoria Dialógica de Ação (Paulo Freire) e da Biodança (Rolando Toro). Um
dos conteúdos do curso é o estudo do conhecimento ameríndio e da educação
indígena. Para quem quer aprofundar os estudos, recomenda-se a leitura de
Cavalcante, Ruth et al. (2001). Educação biocêntrica – um movimento de cons-
trução dialógica. Fortaleza: edições CDH.
2 Destaca-se que todos os nomes citados são verídicos e propositadamente no-
meados, reforçando a ideia de que são sujeitos participantes da construção
prática e teórica do conhecimento na interlocução com os trabalhos de ensino,
pesquisa e extensão universitária.
Psicologia e contextos rurais | 411

Cruz do Sul), além de diversos agricultores vizinhos. Nesse dia, o


Vice-Prefeito fez menção à presença da UNISC na região e agrade-
ceu o fato à aldeia Guarani.
Os Guarani, nessa ocasião, solicitaram apoio das entida-
des presentes em relação à agilidade da demarcação de suas terras
em diversos locais no Rio Grande do Sul, a uma maior valorização
das parteiras indígenas nos hospitais e à manutenção dos saberes
dos Karaís, suas lideranças religiosas. Os Karaís e as Kunhãs Karaís
representam a concentração da sabedoria milenar Guarani e estão
sempre pensando na sustentabilidade da vida. Foi lembrada tam-
bém a história de permanência dessas famílias em Estrela Velha. O
pastor Armin Hullas relatou o dia da audiência pública, há mais ou
menos oito anos, realizada para a aprovação ou não da vinda dos
Guarani para a região. Relatou que houve uma reação preconcei-
tuosa por parte dos colonos e das lideranças políticas da época, os
quais estão respondendo a um processo por calunia e difamação
feitas aos Guarani, pois “os colonos não queriam deixar as terras
para eles, porque queriam usar para o gado. A procuradora deu o
parecer favorável ao processo”. O Vice-Prefeito fez referência às
dificuldades que os Guarani viveram para se instalar e permanecer
nessa área.
Da mesma forma que se percebe um empoderamento da
aldeia com a presença da UNISC, ressaltam-se os avanços para a
universidade que, com a presença indígena, foi provocada sobre os
sentidos de fortalecer a inserção social. Para Oliveira (2004), não se
trata apenas de inclusão social, mas da construção de uma univer-
sidade que reconhece, promove valores e visões de mundo diferen-
ciados e empodera a sociedade.
A indissociabilidade é uma premissa constitucional que
legitima a universidade no tripé ensino, pesquisa e extensão. Essa
questão tem pautado as discussões institucionais que envolvem
o planejamento universitário e o projeto de educação. Trabalhar
412 | Psicologia e contextos rurais

no sentido de um conhecimento indissociável significa assumir


a educação num processo de reflexão, de inserção comunitária,
de sistematização, de investigação aprofundada dos aspectos que
organizam a realidade, ou seja, uma formação crítica e afetiva que
convida as pessoas a se movimentarem dentro de uma comunicação
dialógica (Menezes & Síveres, 2011). Assumir a indissociabilidade
enquanto um projeto educacional remete a dimensões constitucio-
nais, de compromissos políticos institucionais, de fluxos organiza-
cionais, de processos de integração entre sujeitos universitários e
de avaliações do Ministério da Educação.
Na transdisciplinaridade, o educador percebe-se como um
sujeito que, ora estando no ensino, ora na pesquisa, ora na exten-
são, vive a educação como uma aprendizagem do viver e da convi-
vência, na qual as disciplinas interagem, mas não são o centro dos
objetivos e do conhecer (Moraes, 2005). Por isso, viver a indisso-
ciabilidade é transcender a própria disciplina que nos formou e
nos legitima como profissionais. A vivência de indissociabilidade
com os Guarani no campo disciplinar da Psicologia Comunitária
leva a uma reflexão de que transcender, contudo, não significa
desaparecer, mas ampliar os horizontes da formação, perceber-
-se como complementar. Tendo a aldeia Guarani como campo, o
ensino, a pesquisa e a extensão eram formas de diálogo, nos quais
a prática e o conhecimento metodológico de um acrescia ao outro,
gerando nos atores acadêmicos, tanto estudantes quanto profes-
sores e técnicos, um modo de aprendizagem de estar em diálogo
com os Guarani e com uma cultura diferenciada, ora na aldeia, ora
na universidade. Essa dimensão transdisciplinar envolve saberes
da Psicologia Comunitária, da Antropologia, da Educação, da
política, da Filosofia dos ameríndios, da ordem dos afetos. Os
conhecimentos se atravessam e ganham sentido nessa costura
epistemológica e no sentido da vivência de cada sujeito envolvido
nessa trama disciplinar.
Psicologia e contextos rurais | 413

Vivência Comunitária e Educação Mitológica


Nesse percurso da indissociabilidade, no ano de 2008
deu-se início ao projeto de pesquisa denominado A produção da
vivência comunitária através do mito: um estudo a partir da dança
Guarani. A pesquisa teve como eixo central a investigação do modo
de vida Guarani, através da dança como processo mítico, que atua-
liza a vivência comunitária e singular.
Dilthey (1988) define a vivência como o instante vivido no
contato com o imediato sensível e sensorial. Para Merleau Ponty
(2004), a percepção brota da experiência da corporeidade, que é, ao
mesmo tempo, sensível e concreta. Os ritos apresentam-se, entre
os Guarani, como um processo a partir do qual as vivências comu-
nitárias são atualizadas, apresentando-se como instrumento para
a resistência cultural, a religiosidade e a aprendizagem que per-
mite ressignificar experiências pessoais e recolocá-las a partir das
referências coletivas dentro de um espaço imaginativo e simbólico.
Através dos mitos, dos ritos e do próprio cotidiano, os indígenas
desenvolvem processos psíquicos ativando a imaginação no modo
de ação e interação (Escobar, 1993).
Os afetos permeiam as diversas instâncias da consciência,
sendo capazes de produzir campos imaginativos que podem mui-
tas vezes reorientar o pensamento frente à realidade vivida. Os
mitos são produzidos e atualizados através dos ritos dentro de um
campo imaginativo. Mitos são imagens que orientam as ações, o
pensamento pessoal e coletivo. Para Campbell (1990), os mitos
lidam com a transformação da consciência, no que se relaciona à
passagem de uma preocupação puramente pessoal para uma res-
ponsabilidade social, quer seja através de causas políticas, sociais
e/ou espirituais. Os mitos possuem uma linguagem poética e
flexível. Por isso, podemos encontrar várias versões mitológicas
de um mesmo mistério. Nos mitos Guarani, a dança, presente
na formação do mundo, possibilita uma ação e um pensamento
414 | Psicologia e contextos rurais

reflexivo para além do sofrimento pessoal. O mito, para Campbell


(1990), cumpre quatro funções: a mística, que abre as portas para
a dimensão do mistério e da transcendência; a cosmológica, que
provoca a compreensão sobre a forma do universo, no qual o mis-
tério novamente se manifesta; a sociológica, que fala da organiza-
ção social, das validações das formas de vida sociais; e a dimensão
pedagógica, que nos ensina como viver uma vida humana em
qualquer circunstância.
Larsen (1991), partindo da noção de que nossas mentes
necessitam tanto da estrutura como da flexibilidade, desenvolve
a ideia de que a psique exige mais do que um só mito. Segundo
o autor, faz-se necessária uma pluralidade mítica que nos possi-
bilite uma abertura à diversidade da vida. Nesse sentido, os mitos
são parte de um estudo sobre os modos de vivência comunitária,
de estruturação pessoal e coletiva. O mito evidencia-se como cate-
goria subjetiva e objetiva organizadora do pensamento Guarani. A
dança, enquanto rito, transporta os Guarani a um tempo de reco-
nhecimento de suas identidades. O rito Guarani está ligado a uma
estrutura profunda de organização coletiva emocional, dentro de
uma função vital, de elevação espiritual e uma integração ao seu sis-
tema de pertença. Os ritos possuem a função vivificadora do mito,
através da representação teatral dentro de uma dimensão imagina-
tiva. Para os Guarani, Nhanderú฀ ensinou a dança e mandou dançar
a dança, que surge de uma percepção mitológica e seu surgimento
confunde-se com a própria existência. Chamorro (1998) afirma que
a dança Guarani representa um movimento de resistência cultu-
ral, da religiosidade e de um exercício de aprendizagem constante.
Os rituais das danças entre os Guarani são interpretados por essa
autora como uma resistência agressiva frente aos invasores, afir-
mando a identidade na corporificação xamã, na reza, na palavra e
no movimento. Menezes (2009), em seu estudo etnográfico e feno-
menológico sobre dança e processos educativos entre os Guarani,
localiza a dança na relação entre rito, mito e identidade pessoal e
Psicologia e contextos rurais | 415

coletiva, através de depoimentos de jovens e velhos, fazendo refletir


sobre a necessidade de uma investigação dos processos subjetivos
relacionados à identidade, à comunidade e à educação mitológica.

Narrativas em roda: construindo


conhecimento com os Guarani
A pesquisa ocorreu dentro de um processo participativo,
através das ações conjuntas e de conversas em roda realizadas
com diversos grupos de estudantes das disciplinas de Psicologia
Comunitária I e II. Nessas conversas, os estudantes perguntavam
aos Guarani sobre suas vidas. A metodologia adotada constituiu-
-se de diálogos em grupo, através de etnografia, das anotações em
diários de campo e da pesquisa participante, tendo em vista que a
pesquisa teve uma interface com o ensino e a extensão, para a pro-
dução de projetos conjuntos. A etnografia é desenvolvida a partir
da descrição densa de Geertz (2008), da imersão no contexto e na
percepção de cada palavra e de cada gesto enquanto uma descrição
percebida, interpretada e vivida. A pesquisa participante estrutura-
-se na educação popular e na compreensão de que os sujeitos da
pesquisa, em seus campos, vivem um processo de consciência mais
amplo a partir das reflexões vividas. Os sujeitos são legitimados
como produtores de conhecimento, dentro de um saber consagrado
coletivamente. O diário de campo é um espaço de registro e de sis-
tematização dos saberes e das emoções, é um modo de expressão
poética e científica (Brandão, 1982, 1983).
As conversas em roda eram coordenadas pelo cacique João
Paulo, pelo professor de língua Guarani Eduardo e pelo vice-caci-
que Alex. Nas rodas, ficavam presentes as crianças, Dona Catarina,
liderança mais velha, outras mulheres da aldeia, professores e estu-
dantes de Psicologia da UNISC. As perguntas surgiam a partir da
curiosidade e do interesse dos próprios estudantes. As perguntas
são exercícios que desenvolvem no estudante uma postura ativa
416 | Psicologia e contextos rurais

frente ao conhecimento, à consciência de que precisam saber e que,


para isso, necessitam indagar como uma prática de aprender “com”,
ao mesmo tempo que reconhecem os saberes diferenciados.
Freire (1992, p. 117), em suas reflexões sobre a necessidade
de diálogo, afirma: “não penso autenticamente se os outros tam-
bém não pensam. Simplesmente, não posso pensar pelos outros,
nem para os outros, nem sem os outros”. Essa vivência da inter-
rogação, que é característica do diálogo, estimula o pensar junto,
um saber que necessita do outro para saber. Quando o Guarani
responde, ele está pensando sobre suas respostas e, tanto a per-
gunta como a resposta, geram novos questionamentos frente à sua
cultura. Observa-se que as constantes indagações, aliadas às ações
dos estudantes e do grupo de pesquisa, realizadas em conjunto com
os indígenas, despertaram a comunidade para a participação con-
junta, que, para Góis (2008), permite a ampliação da consciência.
O trabalho conjunto gerou uma cooperação entre Guarani
e universidade, o que, para Maturana (1995), é o sentido genuíno
de cooperação: ser capaz de operar junto. Isso demandou tempo,
muitas idas e vindas, presença viva e uma predisposição maior para
o diálogo, enquanto pensar junto. A ação e o pensamento não se
separam, mas se estimulam. Agir conjuntamente é um exercício
profundo de diálogo e de pensamento. Isso é bem evidente nessa
prática, pois os Guarani fazem pensar repetidas vezes sobre o que
se está fazendo, e o que essa ação gera para a aldeia. Foi um apren-
dizado nesta pesquisa observar o efeito da ação individual para o
coletivo. Como exemplo, podem ser citados os diálogos realizados
para firmar a presente parceria: seguidamente o cacique questio-
nava sobre se o que estava sendo proposto, enquanto inserção, era
“para valer”, pois a aldeia começava a mobilizar-se para os momen-
tos de encontro e atividades propostas. A responsabilidade do caci-
que está na repercussão que isso gera em sua comunidade. Pensar
sobre a ação, tanto a sua própria, como a do outro, é uma meto-
dologia do viver Guarani. Eduardo, professor da aldeia, conta que
Psicologia e contextos rurais | 417

uma das lideranças deixou de ser cacique, pois começou a realizar


ações com os não indígenas, tomar decisões individuais, sem con-
versar coletivamente, deixando de pensar sobre os efeitos dos seus
atos para a aldeia e agindo em seu próprio favor. Para os Guarani,
agir individualmente é estar perdido, fragilizado, desconectado da
cultura Guarani.
O pensamento é uma qualidade do viver Guarani. Os jovens
estão sempre pensando sobre o sentido da vida e de seu caminhar.
Bergamaschi (2009) fala de uma postura meditativa desses indí-
genas, referindo-se a eles como uma cultura “caminhante”, desde
seu deus Nhanderú que vive dançando, aos próprios Guarani, que
vivem caminhando de uma aldeia a outra, tendo e adquirindo uma
consciência de si mesmos e de sua cultura, que está também sem-
pre em movimento.
No diálogo com os Guarani, uma pergunta tornou-se central:
quais os sentidos e significados elaborados no cotidiano Guarani?
Para respondê-la, trabalhou-se com a dança, o artesanato, com tro-
cas e construção de projetos e com participações no cotidiano da
aldeia. A dança é parte de uma tríade, juntamente com a oração
e o canto. Seus elementos não acontecem em separado no pro-
cesso de educação Guarani. Montardo (2002) registra a crença de
que, para os Guarani, existe vida na Terra, porque eles a estão cui-
dando e de que esse cuidar passa pela tríade cantar, rezar e dançar.
Quando uma aldeia não está dançando também não está entrando
em contato com Nhanderú. Isso fragiliza a força dos Guarani. Em
uma aula de Psicologia Comunitária, João Acosta refletiu sobre o
sentido da dança na cultura Guarani e pediu ajuda aos estudan-
tes para conseguir um violino, para fortalecer o grupo de dança da
aldeia. Em termos históricos, inicialmente os instrumentos utili-
zados pelos Guarani eram apenas o tambor e o chocalho. A par-
tir do contato desse povo com os jesuítas no século XVII, novos
instrumentos foram introduzidos em seus rituais, como o violão e
o violino, ambos de origem europeia. Desde então, os sons desses
418 | Psicologia e contextos rurais

instrumentos fazem parte da musicalidade presente nos rituais


Guarani, conferindo-lhes seu sentido cultural genuíno. Envolvidos
com a causa dos Guarani, os estudantes fizeram uma rifa e con-
seguiram o violino. Esse foi entregue a Dona Catarina como um
presente do grupo de estudantes, num rito criado por eles. A pos-
sibilidade de uso de um violino surtiu um efeito imediato de forta-
lecimento da cultura na aldeia, através do ressurgimento do ensino
da dança às crianças e da vivificação do mito.
Evidenciam-se alguns aspectos sobre mitos, a partir de
Almeida (2007), presentes no modo de vida Guarani: a circulari-
dade da dança, o diálogo permanente que perdura no tempo, que
ultrapassa a morte, no sentido de ser uma cultura instigadora de
imagens e pensamentos. O verdadeiro Karaí, personagem central
entre os Guarani, é aquele que mantém uma relação com o divino,
é o escolhido para perpetuar o diálogo, que não existe sem o narra-
dor, o ouvinte e a narração. As histórias são sempre atualizadas no
presente, na experiência enquanto vivência revitalizadora. Nesse
sentido, o mito convida os Guarani a participarem da dança. Não
há dança sem participação. Através dessa forma de participação,
a consciência vai se constituindo repleta de significados coletivos
engendrados um no outro. Dessa forma, o Guarani vai se consti-
tuindo como pessoa, sendo continuamente convidado a participar,
a pertencer ativamente, a dançar.
Wanderlei, jovem Guarani, certa vez, falou sobre o que
acontece dentro da Opy, casa de reza dos Guarani: “cada um de
nós tem uma ligação, uma linha invisível. Se estiver dentro da Opy,
todos estão ligados. Se uma pessoa está triste, você sente, a energia
flui, que nem a Via Láctea”. A Opy é o lugar do mito, da instauração
do mito, que se vivifica a partir do rito, da dança e das palavras, que,
segundo Eduardo, não precisam ser entendidas por completo, mas
precisam existir sempre, para suscitar o desejo de, algum dia, com-
preendê-las. É a distância mítica necessária que revela para cada
ser o seu estado inacabado, de transição. Cabe à consciência mítica
Psicologia e contextos rurais | 419

Guarani guardar a verdadeira substância da vida de sua cultura: seu


grande mistério.
O Guarani criador, produtor de cultura, transforma a natu-
reza, reproduzindo-a e revivificando-a. Transforma sua cultura
dentro de um processo de inclusão, ou seja, afirmando-a em seu uso
e em sua criação. É o que acontece no processo de uso da madeira
nos bichinhos, como da taquara em jaká (cesto) e das sementes
em colares, bolsas e pulseiras. Além do aspecto econômico, encon-
tra-se a dimensão cultural e singular nesse processo. João Acosta,
cacique, diz que o artesanato os tem estimulado em relação ao
conhecimento da língua portuguesa, o que propicia a negociação.
Revela também que cada artesanato é único, apesar de serem muito
parecidos. Segundo João, cada Guarani relaciona-se com a produ-
ção de uma forma diferenciada. Serginho, jovem Guarani, relatou
que gosta muito de fazer corujas e que, ao fazê-las, sempre se lem-
bra de uma caminhada que fez com seu pai, quando tinha dez anos,
e apareceu uma coruja. Conta esse fato como um grande aconteci-
mento em sua vida. Para os Guarani, o sentido da criação está dire-
tamente ligado ao diálogo, à comunicação. O processo artístico do
artesanato representa um trânsito, dentro da concepção de Freire
(1984), que implica um conhecimento transformado em ação, um
tornar-se sujeito. Esculpir é um ato de esculpir a si mesmo, de se
refazer, de mobilizar-se internamente. A arte Guarani representa
uma integração que o enraíza, no sentido desenvolvido por Freire
(1984), ao encontro da liberdade, despertando uma consciência
plástica, criadora. A expressão que se dá no ato criador é a potência
da singularidade coletiva Guarani, é o trânsito entre a semente e a
arte, entre a natureza e a cultura. Cultura que, ao ser criada, for-
talece a procura da natureza, numa relação harmônica entre ima-
nência, lugar de criação e transcendência, lugar que ultrapassa a
cultura, a natureza, a expansão.
No ano de 2009, dentro de um programa de aprendizagem
em extensão, um conjunto de professores, estudantes e técnicos
420 | Psicologia e contextos rurais

elaborou um projeto para facilitar a venda de artesanato Guarani,


dentro de um edital da Caixa Econômica Federal. Em 2010, o pro-
jeto foi aprovado e realizado. Para a universidade, esse projeto con-
tribuiu para a reflexão do conhecimento ameríndio. A presença dos
Guarani reforçou a importância de uma reflexão sobre a cultura
indígena na sala de aula e em encontros étnicos produzidos pelo
DCE (Diretório Central dos Estudantes), pelo Departamento de
História e pela Pró-Reitoria de Extensão e Relações Comunitárias.
O projeto de comercialização indígena representou também a con-
tinuidade de uma política que integrou ensino, pesquisa e exten-
são. Destacou-se nesse projeto a possibilidade da produção de
diálogos de aprendizagem entre culturas que caminham em dire-
ções opostas, tanto no pensamento econômico como nas relações
familiares e nos tempos vividos. O tempo de produção, de pensar
em grupo sobre os acontecimentos, difere significativamente do
nosso tempo, bem mais pragmático e individual. Enfrentar essas
dimensões, dentro de prazos e de lógicas já predeterminadas, pos-
sibilitou fazer reflexões rumo a aprendizados comuns. As relações
interétnicas são desafiadoras, pois colocam em xeque verdades
que se possuem como legítimas e produzem um repensar quanto à
forma como nos colocamos no mundo.

Considerações finais
O trabalho de cooperação, realizado através da indissocia-
bilidade entre ensino, pesquisa e extensão, possibilitou uma inte-
gração na formação universitária, estimulando o desenvolvimento
dos alunos de Psicologia, extensionistas e da Pós-graduação em
Educação Biocêntrica. Através dele, constituíram-se novas par-
cerias com instituições que trabalham com os indígenas e com a
Prefeitura de Estrela Velha, sendo construídos vários projetos que
integraram a aldeia Guarani e a UNISC.
Psicologia e contextos rurais | 421

O caminho metodológico da pesquisa, do ensino e da exten-


são constituiu-se dentro de uma estrutura mitológica de narrativas,
nas quais a universidade colocou-se no lugar de ouvinte, que parti-
cipa da comunidade indígena de uma forma respeitosa e ativa. Os
espaços em nossa universidade também foram alterados através das
relações constituídas, que mudaram a invisibilidade indígena nas
salas de aula e no centro de convivência. As conversas em roda tive-
ram eco e produziram o desejo de estar juntos, fato que provocou
contradições e reflexões culturais, principalmente sobre o modo de
ser comunitário indígena e o modo de viver individual não indí-
gena. Foi percebido que o conceito de comunitário não indígena
é uma representação sobre o comunitário, e que essa diferença na
relação com os indígenas tornou-se um elemento atrativo e proble-
matizador. Ainda há muito a caminhar com os Guarani, para que se
entenda o pensamento do Sul (Morin, 2011), ameríndio e o sentido
de comunidade. A relação de pesquisa, de ensino e de extensão,
pautada nas narrativas, numa perspectiva mitológica, estimula a
ampliação de nossas percepções para a construção de ações con-
juntas e para a aprendizagem dos sentidos da vivência comunitária
Guarani, dentro de uma construção cotidiana mitológica do ser.
Para a construção da Psicologia Comunitária, destaca-se a
importância dos estudos dos mitos nos processos identitários que
envolvem a dimensão singular e comunitária e o quanto os saberes
ameríndios estão presentes nos conhecimentos populares, organi-
zando o pensamento e as organizações comunitárias nos contextos
populares.
A dança é um exemplo de conhecimento ameríndio, que,
enquanto mito e rito, se revela, entre os Guarani, como um pro-
cesso a partir do qual as vivências comunitárias são atualizadas,
apresentando-se como instrumento para resistência cultural, reli-
giosidade e aprendizagem.
422 | Psicologia e contextos rurais

Para entender os processos comunitários, necessita-se


investigar e trabalhar com a diversidade cultural, resgatando a his-
tória social ameríndia, na qual os indígenas são atores ativos. Esses
atores falam da construção de uma epistemologia que pressupõe
a ontologia, o desenvolvimento do ser no conhecer, partindo da
noção de que o conhecimento pressupõe a vivência. A Psicologia
Social Comunitária, ao dar um destaque especial aos estudos sobre
identidade na América Latina, necessariamente abre a possibili-
dade para a investigação dos estudos indígenas, pois esses proble-
matizam a nossa formação social, educacional e acadêmica.

Referências
Almeida, C. L. (2007). O mito e o jogo como modelos originários para a vivência
em Biodança. Apostila do Seminário de Vivência em Biodança. Porto
Alegre: Escola Gaúcha de Biodança.

Brandão, Carlos Rodrigues (1982). Diário de campo: a antropologia com


alegoria. São Paulo: Brasiliense.

Brandão, C. R. (1983). Casa de Escola: cultura camponesa e educação rural.


Campinas: Papirus.

Campbell, J. (1990). O poder do mito com Bill Moyers. São Paulo: Palas Athena,
1990.

Chamorro, G. (1988). A espiritualidade guarani: uma teologia ameríndia da


palavra. São Leopoldo: Sinodal.

Dilthey, W. (1988). Teoria de las concepciones del mundo. Madrid: Alianza


Editorial.

Escobar, T. (1993) La bBelleza de los otros: arte indígena del Paraguay.


Asunción: Rediciones.
Psicologia e contextos rurais | 423

Freire, Paulo. (1984). Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz
e Terra.

Freire, Paulo. (1992). Extensão ou comunicação. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Freire, P. (2004). Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra.

Freire, P. (2006). Pedagogia da autonomia: saberes nescessários ą prática


educativa. 33. ed. São Paulo: Paz e Terra.

Geertz, Clifford. (2008). A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: GEN.

Góis, C. W. L. (2005) Psicologia comunitária: atividade e consciência.


Fortaleza: Publicações Instituto Paulo Freire de Estudos Psicossociais.

Góis, C. W. L (2008). Saúde comunitária: pensar e fazer. São Paulo: Aderaldo


& Rothschild.

Góis, C. W. L. (2012). Psicologia clínico-comunitária. Fortaleza: Banco do


Nordeste.

Lane. S. T. M. (1995). A mediação emocional na constituição do psiquismo


humano. In Lane. S. T. M & Sawaia. B. B (eds) Novas veredas da
Psicologia Social. São Paulo: Brasiliense:EDUC.

Larsen. S. (1991) Imaginação mítica. A busca do significado através da


mitologia pessoal. Rio de Janeiro: Campus.

Maturana, R.; Varela, F.(1995). A árvore do conhecimento: as bases biológicas


do entendimento humano. Tradução Jonas Pereira dos Santos. São
Paulo: Editorial Psy.

Menezes, A. L. T. & Bergamaschi, M. A. (2009). Educação ameríndia – a dança


e a escola guarani. Santa Cruz do Sul: Edunisc.
424 | Psicologia e contextos rurais

Menezes, A. L. T. & Siveres, L. Nas fronteiras da indissociabilidade – A


contribuição da extensão universitária. In Menezes, A.L.T. & Siveres.
L. (eds). Transcendendo fronteiras. A contribuição das Instituições
Comunitárias de Ensino Superior. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2011.

Merleau P. M. (2004). Conversas. São Paulo: Martins Fontes.

Montardo, D. L. O. (2002). Através do Mbaraka: música e xamanismo Guarani.


Tese de doutoramento apresentada ao Curso de Pós-graduação em
Antropologia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo.

Montero, M. (2000). Construción, desconstrucíon y crítica: teoria y sentido


en la psicologia social comunitaria em America Latina. In Campos,
R. H.& Guareschi, P. Paradigmas em Psicologia Social. A perspectiva
latino-americana. Petrópolis: Vozes.

Moraes, M. C. O. (2005). Paradigma educacional emergente. Campinas:


Papirus.

Morin, Edgar. (2011). Encontro Internacional para um Pensamento do Sul.


Anais. Rio de Janeiro: SESC, Departamento Nacional.

Oliveira, F. J. P. (2004). Seminário: desafios para uma educação superior para


os povos indígenas no Brasil: políticas públicas de ação afirmativa e
direitos culturais diferenciados – Hotel Nacional/Brasília – Relatórios
de Mesas e Grupos – outubro.

Sawaia. B.B. (1995). Dimensão ético-afetiva do adoecer da classe trabalhadora.


In Lane. S. T. M & Sawaia. B. B (eds.). Novas veredas da Psicologia
Social. São Paulo: Brasiliense: EDUC.

Ximenez, V. M. et al. (2008). Psicologia comunitária e educação popular.


Fortaleza: LC Gráfica e Editora.
Uma experiência de Psicologia
Social Comunitária na
comunidade de Barra
de Mamanguape
Thelma Maria Grisi Velôso
Flávia Palmeira de Oliveira
Iara Cristine Rodrigues Leal Lima
Jacqueline Ramos Loureiro Marinho
Lucélia de Almeida Andrade

Introdução

N este capítulo, trataremos de um projeto de intervenção psi-


cossocial, que desenvolvemos, desde 2008, na Comunidade1
de Barra de Mamanguape (Rio Tinto/PB). Pretendemos relatar essa

1 Cabe registrar que definimos Comunidade como um grupo social que tem certo
nível de organização, intimidade pessoal, compartilha o mesmo espaço físico e
subjetivo e alguns objetivos comuns derivados de um sistema de representações
e de valores. Assim, mantém um sistema de interações que se dão nas dimen-
sões temporal e espacial (Gomes, 1999; Nisbest, 1974, como citado em Sawaia,
1996, p. 50).
426 | Psicologia e contextos rurais

experiência atentando para os recursos teóricos e metodológicos


que temos utilizado, com a intenção de contribuir para o fortaleci-
mento ou a potencialização dessa Comunidade e dos atores sociais
envolvidos.
A Comunidade de Barra de Mamanguape localiza-se
no litoral norte do estado da Paraíba e faz parte da Unidade de
Conservação de Uso Sustentável, denominada Área de Proteção
Ambiental (APA) da Barra do Rio Mamanguape. Compreende
14.640 hectares de ecossistemas de mangue, dunas, restingas,
rios e zona costeira, com remanescente de Floresta Atlântica. Há
dezoito comunidades no interior da APA (incluindo seis aldeias
indígenas). Essa área abriga também espécies da fauna ameaçadas
de extinção, como o peixe-boi marinho (trichechus manatus mana-
tus) e o cavalo-marinho (hippocampus sp.) (Rodrigues; Antunes &
Rodovalho, 2008).
Formada por, aproximadamente, 80 famílias de pescado-
res e de marisqueiras, Barra de Mamanguape tem cerca de 400
habitantes2, cujo modo de subsistência principal são a pesca e a
coleta de mariscos. O turismo ecológico constitui uma fonte de
renda complementar, que se desenvolve em parceria com a APA do
Mamanguape/ICMBIO.
A intervenção que desenvolvemos nessa área caracteriza-
-se como um projeto de extensão universitária3, operacionalizada
através de uma parceria entre a Universidade Estadual da Paraíba
(UEPB) e o Instituto Chico Mendes de Conservação à Biodiversidade
(ICMBIO).

2 Fonte oral. Informações obtidas na Colônia de Pescadores Antônio Brito Z-13,


junho de 2012.
3 O projeto, atualmente, é intitulado como “Uma proposta de extensão popu-
lar na Comunidade de Barra de Mamanguape (Área de Proteção Ambiental da
Barra do Rio Mamanguape/Rio Tinto/ PB)”.
Psicologia e contextos rurais | 427

Sem perder de vista o princípio da indissociabilidade entre


ensino, pesquisa e extensão, a extensão universitária é entendida
aqui como uma prática transformadora, em que interagem os sabe-
res científicos e os populares, visando construir novos saberes que
sejam instrumentos de mudança social. Portanto, diferencia-se de
práticas assistencialistas de extensão, cujo único objetivo é de pres-
tar cursos e serviços (Melo Neto, 2001).
A extensão popular deve ser pensada como um trabalho
social. Social porque pressupõe o outro e, por isso, pretende ser útil.
Apesar de, através do ensino e da pesquisa, ser possível desenvolver
trabalhos sociais úteis, a extensão se diferencia, e sua intenciona-
lidade política serve como base, ao mesmo tempo questionadora
e norteadora, para o ensino e a pesquisa. Popular, no sentido de se
pretender democrática e inclusiva, o que implica se articular com
os setores marginalizados pela sociedade. Pressupõe o estabeleci-
mento do diálogo entre saberes e práticas, entre pessoas que dese-
jam uma sociedade justa (Melo Neto, 2007; Silvan, 2007).
O projeto de extensão popular, que desenvolvemos em
Barra de Mamanguape, vem se guiando pelos referenciais teóricos
e metodológicos da Psicologia Social Comunitária, área que se uti-
liza dos fundamentos teóricos da Psicologia Social crítica e histó-
rica, priorizando a formação de grupos e desenvolvendo trabalhos
de investigação e/ou intervenção em comunidades. Sua teoria e
prática se pautam em valores como ética da solidariedade, resgate
dos direitos humanos fundamentais e busca da melhoria da quali-
dade de vida, e sua proposta implica o desenvolvimento de estra-
tégias que visem o estímulo à autonomia, ao desenvolvimento de
uma consciência crítica e ao protagonismo social dos grupos com
os quais trabalha, com vistas à transformação social (Campos, 1996;
Lane, 1996; Freitas, 1996, 2001).
Como alerta Montero (2010), nessa perspectiva, pro-
põe-se que a transformação social seja alcançada por meio de
428 | Psicologia e contextos rurais

transformações nas comunidades e nos atores sociais que delas par-


ticipam. Nesse sentido, a autora afirma que o objetivo da Psicologia
Social Comunitária é fortalecer a capacidade dos atores sociais de
gerarem mudanças e análises críticas da realidade. A noção de for-
talecimento ou potencialização da Comunidade é ressaltada como
fundamental para a transformação das comunidades e dos atores
sociais. Montero (2010) propõe o termo fortalecimento, ao invés de
empowerment, empoderamento ou apoderamento, como utilizado
por outros autores.
Segundo a referida autora, o termo fortalecimento reflete
melhor o significado que se pretende dar à prática e define esse pro-
cesso da seguinte maneira:

[…] proceso mediante el cual los miembros de una


comunidad (individuos interesados e grupos organiza-
dos) desarollan conjuntamente capacidades y recursos
para controlar su situación de vida, actuando de manera
comprometida, consciente y critica, para lograr la trans-
formación de su entorno según sus necesidades y aspira-
ciones, transformandose al mismo tiempo a sí mismos
(Montero, 2010, p. 72).

Os elementos fundamentais desse processo de fortaleci-


mento da Comunidade são, entre outros, a participação, a autoges-
tão, a reflexão crítica e o compromisso.
Orientadas por esses referenciais teóricos, desenvolvemos
um projeto de extensão, em Barra de Mamanguape, cujo objetivo
principal é fortalecer, incrementar e fomentar espaços de escuta e
de problematização da realidade, para estimular a autonomia popu-
lar, a participação e o processo de desenvolvimento da capacidade
de análise crítica. Objetiva também, considerando a interligação
entre ensino, pesquisa e extensão, promover para os participantes
da equipe técnica do projeto, através da experiência vivenciada na
Psicologia e contextos rurais | 429

Comunidade, espaços de reflexão sobre as possibilidades de atua-


ção do psicólogo.

Um pouco de história: o
percurso que trilhamos
A história desse projeto de extensão se iniciou no final de
2007, quando, através de um contato com a coordenação da Base
Avançada do Centro de Mamíferos Aquáticos (CMA/PB)/Projeto
Peixe-boi, soubemos do interesse desse órgão em incentivar e reto-
mar os trabalhos de pesquisa e de extensão na área que compreende
a APA da Barra do Rio Mamanguape. Optamos, então, por desen-
volver um trabalho na Comunidade de Barra de Mamanguape.
Como estratégia de aproximação e de levantamento de informa-
ções sobre a Comunidade, realizamos, em 2008, uma pesquisa,
guiando-nos pelos princípios da pesquisa-ação4. Corroboramos,
assim, “a necessária relação e dependência entre investigação/pes-
quisa e produção de estratégias de ação” (Freitas, 2001, p. 62).
Para realizar esta pesquisa, recorremos à História Oral (HO),
uma metodologia de pesquisa voltada para o estudo do tempo pre-
sente e baseada nas vozes de testemunhas sobre o passado (Lang;
Campos & Demartini, 2001). Foram entrevistadas, a partir do crité-
rio de acessibilidade, 36 pessoas (20 homens e 16 mulheres), com
faixa etária entre 17 e 70 anos, das quais solicitávamos que falassem
sobre a história da Comunidade.
Através do depoimento oral, que se caracteriza pelo “tes-
temunho do entrevistado sobre sua vivência ou participação em

4 Como estratégia de conhecimento e método de intervenção, a pesquisa-ação se


apresenta como uma alternativa ao padrão de pesquisa convencional e tem por
objetivo realizar, junto com os membros da Comunidade, um trabalho que par-
ta das suas necessidades práticas e tenha como resultados ações concretas. Os
objetivos da pesquisa terão sempre uma finalidade prática, que possa provocar
mudanças e transformação social (Thiollent, 2000).
430 | Psicologia e contextos rurais

determinadas situações ou instituições” (Lang et al., 2001, p. 12), foi


possível conhecer a versão dos pescadores e das marisqueiras sobre
a história da Comunidade e sobre os fatos que marcaram e marcam
a realidade desses moradores. Nessas entrevistas, foram apontados
alguns problemas da Comunidade, a saber: carência de emprego;
consumo excessivo de álcool e uso de outras drogas; alto custo de
vida; problemas com serviços sanitários (ausência da coleta de lixo)
e de urbanismo (má qualidade das estradas); queixas sobre carên-
cia de serviços na área de saúde e transporte público e questões
conflituosas acerca do uso de recursos naturais na Área de Proteção
Ambiental (APA) – o que pode, o que não pode e por que pode, ou
não, ser feito numa Unidade de Conservação.
Após a transcrição das entrevistas e a análise de conteúdo
dos depoimentos (Demartini, 1988), retornamos à Comunidade e
encaminhamos os resultados da pesquisa. Para isso, selecionamos
trechos das entrevistas e elaboramos o roteiro de uma peça a ser
encenada por nós, composta por personagens (pescadores e maris-
queiras) que falavam da demanda comunitária ressaltada através
das entrevistas. A ideia da encenação dessa peça se inspirou na pro-
posta do Teatro do Oprimido (TO).
Assim, a peça foi encenada até o momento do ápice de deter-
minada situação-problema. Nesse momento, a plateia foi convi-
dada a buscar alternativas. Dissemos que a alternativa não poderia
ser apenas falada, mas, também, encenada pelas pessoas da plateia.
Nossa intenção era de que, por meio desse mecanismo, como aponta
Boal (2008), o espectador pudesse abandonar o papel de passividade
e assumisse o de protagonista, para transformar a ação dramática ini-
cialmente proposta, ensaiando soluções possíveis, debatendo proje-
tos modificadores e preparando-se para a ação real.
A situação-problema foi gerada a partir da seguinte ques-
tão colocada no final da apresentação da peça encenada por nossa
equipe: “Então, o que é que a gente pode fazer?”. Para estimular
Psicologia e contextos rurais | 431

o grupo a entrar em cena e ensaiar respostas, pedimos que todos


se levantassem e formassem um círculo. Utilizamos, então, dois
exercícios de TO, intitulados “mosquito africano”5 e “floresta de
sons”6, com os quais trabalhamos a descontração e a interação do
grupo e o estimulamos a encenar. Em seguida, o grupo discutiu
sobre a montagem da cena que responderia à pergunta “Então, o
que é que a gente pode fazer?” e encenou uma situação em que
todos, juntos, reivindicavam aos órgãos competentes providências
em relação às necessidades apontadas nas entrevistas (reproduzi-
das na peça encenada, inicialmente, pela nossa equipe).
A discussão levou a uma decisão coletiva de se organizar
uma reunião dos moradores da Comunidade com os representan-
tes da APA e da Base Avançada do CMA/PB (que foi viabilizada), a
fim de buscar os primeiros encaminhamentos relativos às deman-
das da Comunidade, em especial, no que diz respeito ao uso dos
recursos naturais na Unidade de Conservação.
A partir de então, começamos a ir, regularmente, à
Comunidade, e o trabalho passou por várias fases em que viven-
ciamos diferentes experiências e nos deparamos com os inúmeros
desafios que surgem numa proposta de Psicologia em Comunidade.
Os “resultados” da pesquisa realizada contribuíram, tanto em

5 “Pede-se que façam um círculo e avisa-se que um mosquito está sobrevoando


a cabeça da pessoa do lado. A pessoa que está ao lado dela deve afugentar o
mosquito com uma batida de palmas. Imediatamente, avisa-se que o mosquito
fugiu para sobrevoar a cabeça da outra pessoa e pede-se que a pessoa que está
ao lado dela também afugente o mosquito com palmas e, assim, consecutiva-
mente. Cada vez mais rápido, o mosquito foge de uma cabeça para outra, e os
participantes tentam pegá-lo, produzindo um som ritmado através das palmas”
(Boal, 2002, como citado em Centro de Teatro do Oprimido, s.n., p. 16-17).
6 “O grupo se divide em duplas: um parceiro será o cego (fecha os olhos) e o outro
o guia, que emite o som de um animal qualquer, enquanto seu parceiro escuta
com atenção e procura segui-lo. O guia é responsável pela segurança do parceiro
(cego) e deve parar de fazer o som se o cego estiver prestes a esbarrar em algo
ou alguém. O guia, constantemente, muda de posição, e o cego deve segui-lo
através do som emitido. Em seguida, troca-se de papel – o cego passa a ser o guia
e vice-versa” (Boal, 2008, p. 155 -156).
432 | Psicologia e contextos rurais

termos de conhecimentos sobre a Comunidade quanto em termos


de estratégias de aproximação e problematização da realidade, e
foram se “somando” ao processo que foi se desencadeando. O diá-
logo frutífero estabelecido entre a Psicologia Social Comunitária e a
Educação Popular (Lane, 1996; Freitas, 2008) nos auxiliou a estimu-
lar formas coletivas de aprendizado, com a intenção de fomentar o
desenvolvimento da capacidade de análise crítica sobre a realidade
e de aperfeiçoamento das estratégias de luta e de enfrentamento
(Vasconcelos, 2001).
Nas idas à Comunidade, priorizamos a realização de visi-
tas domiciliares, conversas informais, reuniões e oficinas, que são
registradas em diário de campo e avaliadas pela equipe de acordo
com os princípios da ação-reflexão-ação. No que diz respeito às
visitas, utilizamos a observação participante, com a intenção de
obter mais informações sobre a realidade, através da constituição
de uma relação face a face com a população (Cruz Neto, 1995).
Como afirma Araújo (1999a, p. 79), “é muito limitado querer com-
preender a vida cotidiana comunitária somente pelas vias formais;
é preciso buscar uma con-vivência com o povo do lugar/comuni-
dade, dirigindo especial atenção aos processos interativos e comu-
nicativos”. (Grifo do autor).
Utilizamos a visita domiciliar como um dos instrumentos
que potencializa as condições de conhecimento do cotidiano dos
sujeitos, em seu ambiente de convivência familiar e comunitária,
nas relações que estabelecem nesses espaços (Amaro, 2003). Assim
como afirmam Amaral, Gonçalves e Serpa (2012), como estratégia
de intervenção na Comunidade, as visitas domiciliares têm possi-
bilitado construir uma relação interpessoal com os seus moradores.
Também têm sido um espaço de escuta e de problematização. São
situações em que estimulamos o protagonismo social e a reflexão
crítica, ao mesmo tempo que obtemos elementos para compreen-
der a vida cotidiana, pois, quando isso acontece, entre outros aspec-
tos, “poder-se-ão entender as participações e não participações nas
Psicologia e contextos rurais | 433

práticas comunitárias, nas redes de solidariedade, nas convivências


interpessoais” (Freitas, 2008, p. 39).
No que se refere às reuniões e às oficinas, elas se consti-
tuem como uma estratégia para a formação de grupos. Nesse sen-
tido, cabe, inicialmente, fazer algumas considerações teóricas. Em
primeiro lugar, a utilização do termo processo grupal nos auxilia
a considerar o fenômeno grupal inserido em um contexto histó-
rico e dialético, além de considerar a articulação entre os aspec-
tos pessoais e grupais, subjetivos e objetivos de um grupo (Lane,
1984). A utilização do termo processo remete ao fato de o grupo ser
uma experiência histórica, construída num determinado espaço e
tempo, fruto das relações que ocorrem no cotidiano. Como adverte
Carlos (2002), utilizar esse termo implica considerar que o grupo
não é uma entidade acabada, mas um projeto, um “eterno vir-a-ser”.
Assim, numa concepção histórico-dialética, compreende-
mos que grupo não é apenas a reunião de pessoas que comparti-
lham objetivos em comum, é mais do que isso, porquanto congrega
experiências articuladas com aspectos gerais da sociedade, expres-
sas nas contradições que ali emergem. “O grupo tem sempre uma
dimensão de realidade referida a seus membros e uma dimensão
mais estrutural referida à sociedade em que se produz. Ambas as
dimensões, a pessoal e a estrutural, estão intrinsecamente ligadas
entre si” (Martín-Baró, 1989, como citado em Martins, 2003, p. 203).
Conviver em grupo significa estabelecer vínculos, compre-
ender as necessidades individuais e/ou coletivas das ações do dia a
dia. “O grupo é também uma estrutura social, uma realidade total,
um conjunto que não pode ser reduzido à soma de seus membros,
supondo alguns vínculos entre os indivíduos, ou seja, uma relação
de interdependência” (Martins, 2007, p. 77).
Ao propor a formação de grupos na Comunidade, parti-
mos da ideia de que, isoladamente, a pessoa termina vendo o seu
problema como exclusivo, como necessidade individual. Ao se
434 | Psicologia e contextos rurais

reunirem em grupo, as pessoas começam a perceber que têm pro-


blemas semelhantes, fruto das próprias condições sociais. É no
contexto grupal que nos diferenciamos e, ao mesmo tempo, identi-
ficamo-nos com o outro. Isso auxilia a compreenderem que a orga-
nização coletiva, ao contrário da ação individual isolada, é capaz de
auxiliar na resolução desses problemas (Lane, 1984).
O grupo constitui, então, condição tanto para o conheci-
mento da realidade comum e para a autorreflexão quanto para a
ação conjunta e organizada. A participação dos indivíduos em gru-
pos leva-os a “superarem o individualismo e a se unirem em ativi-
dades” que visam “mudar o seu cotidiano” (Lane, 1996, p. 20).
Cabe enfatizar que não estamos defendendo uma opo-
sição entre o individual e o grupal, pois “social e singular não se
constituem como esferas dicotômicas” (Zanella, 2011, p, 65), mas
enfatizando a potencialidade dos grupos. Assim, ao longo desses
três anos e meio de atuação na Comunidade, foram realizadas, na
Colônia de Pescadores, algumas reuniões para discutir diferen-
tes temas. Foram discutidas questões acerca da saúde pública, do
recolhimento do lixo e da precariedade da escola. Também houve
debates sobre as possibilidades de se organizar uma Associação de
Marisqueiras que funcionasse nos moldes de uma cooperativa.
Além disso, foram formados quatro grupos: um de mulhe-
res; um de adultos, de exibição e discussão de filmes e curtas-metra-
gens; um de adolescentes e adultos jovens, que se constitui como
um grupo de teatro; e um de crianças. Os recursos metodológicos
utilizados nas oficinas realizadas com cada grupo foram condicio-
nados às suas especificidades, assim como aos objetivos do projeto
de extensão e ao referencial teórico que fundamenta essa proposta
e que vem sendo assinalado neste texto.
Neste relato, daremos ênfase às oficinas realizadas com
as crianças. No entanto, cabe registrar que, no grupo de mulhe-
res, refletia-se sobre temas de interesse do grupo (como saúde,
Psicologia e contextos rurais | 435

menopausa, sexualidade etc.). O objetivo principal era propor-


cionar uma reflexão sobre a realidade cotidiana, estimulando as
mulheres a exercitarem a autonomia, a participação e o senso crí-
tico. As atividades com esse grupo foram realizadas no período de
junho de 2010 a setembro de 2011. No grupo dos adultos – de homens
e mulheres – são exibidos e discutidos filmes e curtas-metragens
com o objetivo de fomentar um espaço de discussão e problemati-
zação da realidade cotidiana através da expressão cinematográfica.
Os temas dos filmes são previamente escolhidos pelos participantes
do grupo. Esse grupo existe desde abril de 2011, e o dos adolescentes
e adultos jovens se constituiu, desde abril de 2012, como um grupo
de teatro. O objetivo é montar peças de teatro que abordem temas
ligados à realidade da Comunidade. Esses momentos proporcio-
nam a esse grupo uma reflexão mais crítica sobre o cotidiano, além
de estimular o protagonismo social. A seguir, descreveremos as ofi-
cinas psicopedagógicas realizadas com as crianças.

Oficinas psicopedagógicas
Esse grupo surgiu de uma demanda concreta explicitada em
outubro de 2009 pelo diretor da Escola de Ensino Fundamental de
Barra de Mamanguape por ocasião de uma visita realizada por nossa
equipe à escola. Ele nos disse que até as crianças que sabiam ler
tinham dificuldade de interpretar o que liam. Inicialmente, o grupo
foi formado por crianças que já sabiam ler, filhos de pescadores e
marisqueiras da Comunidade, porém, aos poucos, foi se ampliando
e, atualmente, é composto por crianças que sabem e que não sabem
ler e por pré-adolescentes, cuja faixa etária varia de cinco a treze anos.
As oficinas têm de 10 a 26 participantes de ambos os sexos. Cabe res-
saltar que, no planejamento e realização das oficinas, levamos em
consideração as especificidades de cada faixa etária.
Esses encontros, com duração de, aproximadamente,
duas horas, são realizados aos sábados à tarde, com os objetivos
436 | Psicologia e contextos rurais

de estimular o gosto pela leitura e de incentivar o protagonismo


social, a criatividade e a reflexão crítica. Para convidar as crianças
para participarem do grupo, fomos de casa em casa, falar com os
pais e explicar os objetivos da proposta. Esse encaminhamento
passou a fazer parte do trabalho. Assim, no sábado pela manhã,
as crianças são convidadas a participar da oficina. Aos poucos não
foi mais necessário explicar os objetivos nem falar com os pais. Ao
mesmo tempo, as crianças passaram, com bastante entusiasmo,
a se juntar a nós e a participar desse “ritual”, convidando conosco
as outras crianças. À medida que passamos nas casas, o grupo vai
aumentando, pois outras crianças vão se agrupando. Esse encami-
nhamento, a nosso ver, fortalece tanto o sentimento de pertença ao
grupo quanto o protagonismo social.
Para planejar as oficinas, recorremos às contribuições do
“Projeto Geraldo Maciel (Barreto)” (Biblioteca Municipal de Catolé
do Rocha/Secretaria Municipal de Cultura de Catolé do Rocha/PB,
2009), assim como aos exercícios e jogos do Teatro do Oprimido
(TO) propostos por Augusto Boal.
No que diz respeito ao “Projeto Geraldo Maciel (Barreto)”,
é importante assinalar que um dos seus fundamentos é o conceito
de habitus proposto por Bourdieu7. O habitus é um conjunto de

7 “As estruturas constitutivas de um tipo particular de meio (as condições ma-


teriais de existência características de uma condição de classe), que podem ser
apreendidas empiricamente sob a forma de regularidades associadas a um meio
socialmente estruturado, produzem habitus, sistemas de disposições duráveis,
estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturan-
tes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das representa-
ções [...]. A prática é, ao mesmo tempo, necessária e relativamente autônoma
em relação à situação considerada em sua imediatidade pontual, porque ela é o
produto da relação dialética entre uma situação e um habitus − entendido como
um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as
experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percep-
ções, de apreciações e de ações − e torna possível a realização de tarefas infinita-
mente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas, que per-
mitem resolver os problemas da mesma forma, e às correções incessantes dos
resultados obtidos, dialeticamente produzidas por esses resultados” (Bourdieu,
1972, p. 13-18, grifos do autor).
Psicologia e contextos rurais | 437

disposições responsável pela recepção e pela apreciação dos bens


simbólicos, que circulam socialmente, entre eles, a literatura.
Desse modo, o desejo ou não pela leitura não se trata apenas de
uma questão individual, mas grupal e depende do universo do qual
o indivíduo faz parte. Assim, um dos objetivos do “Projeto Geraldo
Maciel” é construir ou ampliar habitus, constituindo grupos favo-
ráveis à leitura, desenvolvendo e mobilizando o gosto pela leitura
do texto literário. Outra base teórica desse Projeto, fundamentada
nas ideias da educadora argentina Delia Lerner, defende que lemos
movidos por necessidades, por isso precisamos criar necessidades
sociais para a leitura (Marques, 2010a).
Na sociedade atual, o indivíduo se afirma ou é reconhecido
socialmente quando é sujeito econômico, consumidor (de grifes,
celulares etc.). As estratégias de leitura devem, então, possibilitar
ao leitor (sujeito econômico ou não) afirmar-se como sujeito cul-
tural e, inclusive, sentir-se como parte do universo letrado. A partir
desses referenciais teóricos, as estratégias metodológicas propos-
tas pretendem fazer que o desejo de pertencimento, de participa-
ção, de reconhecimento ou de afirmação social provoque a leitura
literária (Marques, 2011).
As estratégias propostas pelo “Projeto Geraldo Maciel
(Barreto)” se caracterizam, então, como recurso ou atividade que
seja capaz de mobilizar no leitor “o desejo pela leitura, a necessi-
dade de ler, de ler mais e/ou melhor o texto literário” (Marques,
2011, p. 2). Dentre as estratégias mais técnicas, estão a contação e a
antecipação.
A primeira se caracteriza em ler para contar. Em seguida,
o leitor é indagado com perguntas que contemplam aspectos pre-
dominantemente afetivos. Esses aspectos são contemplados uma
vez que contribuem para o estabelecimento de relações com o texto
literário, permeadas pela emoção, e que estimulam o gosto pela lei-
tura (Marques, 2011, 2010b).
438 | Psicologia e contextos rurais

Assim, nas oficinas que realizamos em Barra de


Mamanguape, algumas crianças contam ao grupo histórias infan-
tis que leram. Essas histórias que elas escolhem são entregues pela
nossa equipe no dia que antecede a oficina. Depois de contar as
histórias que leram, são indagadas com perguntas do tipo: o que
mais gostaram, o que não gostaram, sobre o que falariam para os
seus autores, caso se encontrassem com eles, se modificariam algo
na história lida, se a história provocou alguma emoção, se ela tor-
ceu por algum personagem, entre outras. A ideia é promover um
diálogo crítico entre os leitores acerca dos textos lidos e estimular
a expressão da visão do leitor da forma mais espontânea possível.
A outra estratégia proposta – a antecipação – consiste em
provocar o leitor para que ele preveja algum aspecto do texto lite-
rário que será lido ou está sendo trabalhado. Segundo Marques
(2011), a utilização de tal técnica pode ocorrer em três momentos
alternativos: antes da leitura do texto, ao longo do texto e antes do
final. Vale salientar que não se trata de adivinhação, mas de um
momento de criação que, certamente, será posteriormente conec-
tado ao texto e/ou ao seu autor.
Quando vamos utilizar essa estratégia nas oficinas psicope-
dagógicas em Barra de Mamanguape, fazemos uma leitura dramati-
zada de um texto infantil ou exibimos imagens de histórias infantis
(através da utilização do data show) – com texto escrito ou não – e
suprimimos uma parte do texto. Em seguida, dividimos o grupo em
subgrupos e utilizamos outros recursos para estimular esse momento
de criação e reflexão sobre a história, tais como pintura, modelagem,
encenação (teatro de sombras, teatro de bonecos), entre outros. Isto
é, sugerimos que as crianças criem a parte do texto que foi suprimida
com a utilização de um desses recursos. Depois, há a socialização,
para o grupo todo, do final do texto literário que tinha sido supri-
mido e dos textos que foram construídos nos subgrupos.
Psicologia e contextos rurais | 439

No que diz respeito à utilização dos exercícios e dos jogos


propostos pelo método de Teatro do Oprimido (TO), eles são uti-
lizados de acordo com os objetivos específicos de cada oficina, em
articulação com os objetivos do grupo e da proposta de extensão.
Dependendo dos objetivos da oficina, esses exercícios poderão ser
realizados no início, no meio ou no final da oficina.
Os exercícios e os jogos são agrupados por Boal (2008) em
cinco categorias: sentir tudo o que se toca, procurando “diminuir a
distância entre sentir e tocar”; escutar tudo o que se ouve; desen-
volver os vários sentidos ao mesmo tempo; ver tudo o que se olha; e
ativar a memória dos sentidos.
Segundo o referido autor, há no ser humano uma tendên-
cia a monopolizar o sentido da visão, uma vez que não estamos
habituados a sentir o mundo externo a partir dos outros sentidos.
Considerando a hegemonia do olhar e o atrofiamento dos demais
sentidos, os exercícios e os jogos de TO têm como objetivo desme-
canizar os corpos por meio da reativação dos sentidos. O corpo
encontra-se mecanizado pela incessante repetição dos gestos e é
necessário que o sujeito volte a sentir certas emoções e sensações
das quais já se desabituou, ampliando a sua capacidade de sentir e
de expressar (Boal, 2008). Além disso, esses exercícios estimulam
valores ligados à integração do grupo, à união, à solidariedade etc.
Por exemplo, o exercício intitulado “João-bobo ou João-teimoso”,
que faz parte dos exercícios gerais da categoria “Sentir tudo o que
se toca”, é utilizado por nós com o objetivo de estimular a confiança
e a integração do grupo. Nesse exercício,

pede-se ao grupo que faça um círculo, com todos em


pé, olhando para o centro. Um voluntário vai ao centro,
fecha os olhos e deixa-se tombar; todos os outros devem
sustentá-lo com as mãos, permitindo-lhe inclinar-se até
bem perto do chão. Em seguida, devem recolocá-lo nova-
mente no centro, porém ele tombará em outra direção.
440 | Psicologia e contextos rurais

É seguro sempre pôr, pelo menos, três companheiros.


Ao fim, pode-se ajudar o protagonista a rolar em círculo,
pelas mãos dos companheiros, em vez de retorná-lo em
direção ao centro (Boal, 2008, p. 95).

Assim, utilizamos esses exercícios e jogos nas oficinas tanto


com a intenção de desmecanizar os corpos, quanto como uma
ferramenta para estimular, entre outros aspectos, novas posturas
diante da realidade e das relações estabelecidas, o que contribui
para o desenvolvimento de uma consciência crítica e o fortaleci-
mento da Comunidade.
Nas oficinas, recorremos, ainda, à reflexão de histórias com
a projeção de curtas- metragens de animação. Assim como Orozco-
Gomes (2003, como citado em Zanini & Weber, 2010), concordamos
que, através dessas exibições, são criados e elaborados sentidos, e
a nossa intenção é de problematizá-los. A reflexão desencadeada a
partir dos temas enfocados nos filmes selecionados contribui para
incrementar a nossa proposta psicopedagógica com esse grupo.
Encerramos as atividades das oficinas com música e dança,
pois, como afirma Araújo (1999b), a música pode ser utilizada como
recurso legítimo para a expressão de sentimentos e/ou aspectos
relacionados à realidade concreta, à cultura, às lutas ou aos sonhos
coletivos. A música é utilizada pelo psicólogo comunitário como
um recurso metodológico na facilitação do processo de construção
e fortalecimento de identidades comunitárias. Na experiência em
destaque, temos utilizado esse recurso, sobretudo, com o objetivo
de promover momentos de interação e descontração do grupo.
Acreditamos que essas estratégias metodológicas têm auxi-
liado a problematizar a realidade e convidado as crianças a exa-
minarem “criticamente suas ações cotidianas e opiniões acerca do
mundo, da vida e de si mesmas [...]” (Oliveira; Ximenes; Coelho &
Silva, 2008, p. 156).
Psicologia e contextos rurais | 441

Nesse processo, ao abordar não apenas o aspecto cognitivo,


mas também os afetivos, concordamos que as emoções têm a possi-
bilidade de desestabilizar e questionar problemáticas psicossociais
(Sawaia, 2004). As emoções são uma forma de linguagem que pode
desencadear o desenvolvimento de uma consciência crítica ou frag-
mentá-la (Lane, 1995). Assim, compreendemos a afetividade como
um ato ético-político, transformador de questões psicossociais,
que une emoções e transformação social (Lima; Bomfim & Pascual,
2009). Entendemos que a afetividade é o reflexo das relações que
surgem no decorrer da história do sujeito e adquire sentido em
relações específicas. Sentimentos e emoções, embora sejam fenô-
menos referentes a um corpo que é afetado, são alterados em meios
ideológicos e psicológicos distintos, uma vez que “é o indivíduo que
sofre, porém esse sofrimento não tem gênese nele, e sim, em inter-
subjetividades delineadas socialmente” (Sawaia, 2004, p. 99).
Como afirma Montero (2004, p. 134, como citado em Vieira-
Silva, 2008, p. 95-96):

Lo importante es que la afectividad es un aspecto cons-


titutivo de la actividad humana que se expresa en los
innumerables actos de la vida cotidiana. En tal sentido,
el trabajo comunitario al proponer procesos de proble-
matización, de desnaturalización conducente a la desi-
delogización, de conscientización, necesariamente debe
tomar en cuenta la parte afectiva de tales procesos. El
afecto, la consciencia y la acción está relacionados y es
sólo por un acto de prestidigitación teórica que pode-
mos separar lo cognoscitivo, lo afectivo y lo conativo.

Cabe destacar, ainda, que, nas oficinas realizadas em 2011


com o grupo de crianças, montou-se uma peça teatral, que foi
apresentada para toda a Comunidade. Essa proposta, fruto do inte-
resse que as crianças demonstraram pelo teatro, orientou-se pelo
que o “Projeto Geraldo Maciel” denomina de “estratégia pública”
442 | Psicologia e contextos rurais

ou “estratégia social”, que seriam os eventos. Assim, entre as estra-


tégias sociais de leitura, o referido projeto assinala: a palestra, o
recital, o jogral, o concurso e a performance. Esta última consiste
na encenação teatral de um texto literário. Essas estratégias pode-
rão funcionar como necessidades criadas para a leitura (Marques,
2011).
O texto escolhido foi a fábula A Cigarra e a Formiga (adapta-
ção da obra de La Fontaine). Para discutir e adaptar o texto, fizemos
uma leitura dramatizada da fábula e suprimimos o final da histó-
ria com o intuito de que as crianças criassem outro, estimulando,
assim, a criatividade e o protagonismo delas. Em subgrupos, elas
refletiram sobre qual seria o final da fábula. Dos vários finais que
foram criados, alguns se aproximaram do original, em que a cigarra
fica com fome e frio e recebe um castigo por não trabalhar, e outros
mais solidários, em que as formigas acolhiam a cigarra. Então, após
a discussão em grupo, elas optaram pela solidariedade e decidiram
que as formigas procurariam a cigarra e cuidariam dela.
Em todas as oficinas para a apresentação da peça, utiliza-
mos exercícios de TO que estimularam aspectos como a confiança,
a integração do grupo, a atenção, a concentração, a descontração, a
imaginação, a improvisação, a memória, a percepção e a expressão
através da linguagem corporal. Além disso, formamos subgrupos
para as crianças refletirem sobre os figurinos, o cenário e para os
ensaios da peça.
No que diz respeito à confecção do figurino e do cenário,
levamos uma mala básica, com alguns materiais necessários: TNT,
cartolina, tesoura, cola, tinta, isopor etc. No primeiro momento,
cada criança falou das características dos personagens (formigas,
cigarra, plantas e demais bichos). Depois, guiando-nos pelo exer-
cício de TO, “objeto transformado”8, colocamos os materiais que

8 “Esse jogo pode ser usado em combinação com um grande número de jogos
de criação de personagens. Por exemplo: ‘O baile na embaixada’ (ver p. 221) ou
Psicologia e contextos rurais | 443

seriam usados para a confecção dos figurinos e o cenário da peça


espalhados no meio da sala, e as crianças foram convidadas a dizer
o que poderia ser feito com aqueles objetos. Objetivamos, assim,
estimular a imaginação e o protagonismo do grupo. As ideias foram
utilizadas para a confecção dos figurinos e do cenário.
Priorizamos o diálogo na medida que entendemos que ele
é uma condição para qualquer crescimento pessoal e comunitário.
Numa postura dialógica, “os interlocutores o fazem como sujeitos
de uma mesma ação comunicativa, na qual cada um tem a capa-
cidade de argumentar suas preposições na frente do outro”. Esse
diálogo, por si mesmo, contradiz quaisquer formas de opressão e
dominação existentes nos grupos entre seres humanos (Brandão,
1999, p. 34). Esses encaminhamentos possibilitaram as crianças a
refletirem, de maneira coletiva, sobre tudo o que era necessário
para a montagem e a apresentação da peça.
Todo o processo, desde o primeiro sinal de interesse delas
pelo teatro, a discussão do texto, a confecção do figurino e do
cenário, até o dia da apresentação (as crianças convidaram toda a
Comunidade para assistir à peça, passando, com uma de nós, em
todas as casas), houve a participação ativa do grupo, pois, como
afirma Montero (2004, p. 106, como citado em Ansara & Dantas,
2010, p. 99), na proposta de Psicologia Comunitária, a

participación no busca sólo remediar algún mal, cum-


plir algún deseo, sino además generar conductas que
respondan a una proyección activa del individuo en su
medio ambiente social, así como concepción […] de ese
medio y de su lugar en el.

‘Guerrilheiros e Policiais’ (ver p. 220). Pegando os objetos trazidos por alguém,


os participantes mudam seu significado usando-os de diferentes formas ou em
diferentes contextos, seja como cenografia ou figurino” (Boal, 2008, p. 212, gri-
fos do autor).
444 | Psicologia e contextos rurais

Enfatizamos, também, que o estímulo à criação artística


nesse grupo (seja através da pintura, do desenho ou da encenação)
é mais um recurso metodológico utilizado. Não desconsideramos
a ideia de que a criatividade é algo exigido constantemente pela
sociedade capitalista. A modernidade exige que os sujeitos sejam
criativos, polivalentes e tenham iniciativa. No entanto, isso não
significa desconsiderar que a ação criativa comprometida com
uma lógica não excludente é potencialmente capaz de construir
uma relação em que os sujeitos possam estar comprometidos com
outros sujeitos e conviver e construir relações sociais pautadas em
uma “ética pela vida”.

Continuamos precisando, portanto, de sujeitos criati-


vos, porque continuamos lutando por condições sociais
e políticas que permitam a humanização, a constituição
de sujeitos que possam viver com plenitude o que a his-
tória da humanidade nos tem possibilitado produzir e
possam engendrar ações efetivas no sentido de trans-
formá-la (Zanella, 2004, p. 137).

A utilização da arte nas oficinas, na perspectiva de uma


ação criativa, auxilia, através do diálogo, “como um contexto para
a problematização e a reconstrução cultural”, na “construção inter-
subjetiva de significados”, elementos cruciais para a proposta da
Psicologia Social Comunitária (Campos, 1996, p. 175).
Nessa perspectiva, cabe ressaltar que os significados que os
sujeitos atribuem ao mundo são socialmente produzidos, de acordo
com as experiências vivenciadas cotidianamente. O sujeito é uma rea-
lidade histórico-social, fortemente enraizado em um modo de vida
social peculiar, em determinado espaço histórico, social, cultural, eco-
nômico, simbólico e ideológico, e participa de uma rede de relações
sociais complexas (mais além do interpessoal e do grupal) de uma
sociedade historicamente determinada (Gonçalves & Bock, 2009).
Psicologia e contextos rurais | 445

Como afirma Reis, Zanella, França e Ros (2004, p. 53), o


“olhar humano” não é natural, não é uma capacidade inata que pre-
cisa, apenas, de um estímulo ambiental para se manifestar. É um
“olhar” histórico e socialmente construído, que constitui um modo
de ver o mundo através de “sistemas específicos de atribuição de
sentidos culturalmente produzidos”.
Sabemos também o quanto é desafiante e complexo des-
construir e ressignificar sentidos já estabelecidos e reproduzidos
em diferentes instâncias do social, o que implica construir e des-
construir afetos, desejos e emoções. Acreditamos, no entanto,
no potencial da percepção estética, um “olhar” que busca outros
ângulos de leitura, produzindo novos sentidos. É um “olhar” crí-
tico, capaz de re (significar) o instituído. Amplia as possibilidades,
o poder reflexivo e criativo dos sujeitos, “permite que se retire a
marca de familiaridade da realidade, que não se tome a máscara
que lhe dá um sentido único, mas que essa possa ser vista como
polissêmica e multifacetada” (Reis et al., 2004, p. 54).
O “olhar de estranhamento” que a arte possibilita contribui
para que essas crianças ampliem suas possibilidades de reflexão e
criação, porquanto a arte tem esse papel de “inventar” a vida, de
reelaborar cognições, afetos e vivências. “A arte possibilita à pessoa
ir além do ‘estar no mundo’, para ‘ser com o mundo’, em possibili-
dades infinitas de ser” (Deleuze & Guattari, 1996, como citado em
Higuchi; Alves & Sacramento, 2009, p. 235, grifos dos autores).

Considerações finais
Ao recorrer às experiências e às investigações acumuladas
no campo das práticas Psi em Comunidade, dialogando com a
Educação Popular e avaliando constantemente os nossos “fazeres”,
estamos, aos poucos, construindo uma proposta de intervenção
psicossocial em Barra de Mamanguape, que jamais estará pronta e
acabada, uma vez que a realidade é dinâmica, um “eterno vir-a-ser”.
446 | Psicologia e contextos rurais

Nossa prática é fruto desses diálogos e nos convida a refletir cons-


tantemente sobre os nossos avanços, limites e desafios, a mudar
“rotas” e “ampliar caminhos”.
Buscamos, em todas as oficinas realizadas com os grupos que
foram formados em Barra de Mamanguape, assim como nas visitas
domiciliares, fomentar espaços de problematização e de reflexão crí-
tica e estimular a criatividade e a autonomia, objetivando um pro-
cesso de organização coletiva, através da participação social ativa.
Os recursos metodológicos utilizados, por exemplo, nas ofi-
cinas com as crianças, isto é, as estratégias de leitura, os exercícios
e os jogos do Teatro do Oprimido, vinculados ao estímulo à cria-
ção artística, vêm contribuindo para a potencialização de diálogos,
para a construção de novos significados e para a “reinvenção” das
emoções nesse grupo.
Esperamos que o relato que nos propusemos a fazer tenha
contado um pouco do “caminho” que percorremos, pois nossa
intenção é de contribuir com a reflexão sobre os possíveis “cami-
nhos” para as práticas Psi, tendo como horizonte a certeza de que

Caminhante, são teus rastros


o caminho, e nada mais.
Caminhante, não há caminho,
faz-se caminho ao andar.
Ao andar faz-se o caminho,
e ao olhar-se para trás
vê-se a senda que jamais
se há de voltar a pisar.
Caminhante, não há caminho,
somente sulcos no mar.

(Antônio Machado)

Agradecemos as valiosas contribuições dadas ao projeto


pela Professora Sedy Marques (in memorian).
Psicologia e contextos rurais | 447

Referências
Amaral, M. S.; Gonçalves, C. H. & Serpa, M. G. (2012). Psicologia Comunitária
e a Saúde Pública: relato de experiência da prática Psi em uma Unidade
de Saúde da Família. Psicologia: Ciência e Profissão. 32 (2), 484-495.

Amaro, S. (2003). Visita domiciliar: guia para uma abordagem complexa.


Porto Alegre: AGE.

Ansara, S. & Dantas, B. S. A. (2010). Intervenções psicossociais na comunidade.


Psicologia & Sociedade, 22 (1), 95-103.

Araújo, R. C. O. (1999a). Processo de inserção em Psicologia Comunitária:


ultrapassando o nível dos papéis. In Brandão, I. R. & Bomfim, Z. A.
C. (Orgs.). Os jardins da Psicologia Comunitária: escritos sobre a
trajetória de um modelo teórico-vivencial (pp. 79- 110). Fortaleza: UFC/
ABRAPSO.

_______. (1999b). A música como instrumento da Psicologia Comunitária.


In Brandão, I.R. & Bomfim, Z. A. C. (Orgs.) Os jardins da Psicologia
Comunitária: escritos sobre a trajetória de um modelo teórico-vivencial
(pp. 121-129). Fortaleza: UFC/ABRAPSO.

Boal, A. (2008). Jogos para atores e não atores. 12. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira.

Bourdieu, P. (1972). Esquisse d’une théorie de la pratique. Geneve:


Lib. Droz. Traduzido por Paula Montero. Recuperado em
21 setembro 2012, de http://pt.scribd.com/doc/61705520/
Esboco-de-Uma-Teoria-da-Pratica-Pierre-Bourdieu.

Brandão, I. R. (1999). As bases epistemológicas da Psicologia Comunitária.


In Brandão, I. R. & Bomfim, Z. A. C. (Orgs.) Os jardins da Psicologia
Comunitária: escritos sobre a trajetória de um modelo teórico vivencial.
(pp. 31-47). Fortaleza: UFC/ABRAPSO.
448 | Psicologia e contextos rurais

Campos, R. H. F. (1996). A Psicologia Social Comunitária. In ______. (Org.).


Psicologia Social Comunitária: da solidariedade à autonomia. (pp.
09-16). Petrópolis: Vozes.

Carlos, S. A. (2002). O processo grupal. In Strey, M. N. (Org). Psicologia Social


Contemporânea. (pp. 198-205). Petrópolis: Vozes.

Centro de Teatro do Oprimido (s.n.). Teatro do Oprimido de ponto a ponto:


Brasil, Moçambique, Guiné-Bissau. Rio de Janeiro.

Cruz Neto, O. (1995). O trabalho de campo como descoberta e criação. In


Minayo, M. C. S. (Org.) Pesquisa social: teoria, método e criatividade.
(pp. 51-66). Petrópolis: Vozes.

Demartini, Z. B. F. (1988). História de vida na abordagem de problemas


educacionais. In Simson, O. M. V. (Org.). Experimentos em História de
Vida. (pp. 44-71). Itália - Brasil, São Paulo: Revista dos Tribunais.

Freitas, M. F. Q. (1996). Psicologia na Comunidade, Psicologia da Comunidade


e Psicologia (Social) Comunitária – práticas da Psicologia em
Comunidade nas décadas de 60 a 90, no Brasil. In Campos, R. H. F.
(Org.) Psicologia Social Comunitária: da solidariedade à autonomia.
(pp. 54-80). Petrópolis: Vozes.

_______. (2001). Psicologia Social Comunitária Latino-americana: algumas


aproximações e intersecções com a Psicologia Política. Revista
Psicologia Política, 1 (2), 54-68.

_______. (2008). Estratégias de ação comunitária e mudança social:


relações a partir da vida cotidiana e dos processos de participação. In
Dimenstein, M. (Org.) Psicologia Social Comunitária: aportes teóricos
e metodológicos. (pp. 23-42). Natal: Editora da UFRN.

Gomes, A. M. A. (1999). Psicologia comunitária: uma abordagem conceitual.


Psicologia: Teoria e Prática. 1(2), 71-79.
Psicologia e contextos rurais | 449

Gonçalves, M. G. M. & Bock, A. M. B. (2009). A dimensão subjetiva dos


fenômenos sociais. In _______. (Orgs.). A dimensão subjetiva da
realidade: uma leitura sócio-histórica (pp. 116-157). São Paulo: Cortez.

Higuchi, M. I. G; Alves, H. H. S. C. & Sacramento, L. C. (2009). A Arte no


processo educativo de cuidado pessoal e ambiental. Currículo sem
fronteiras, 9 (1), 231-250.

Lane, S. T. M. (1996). Histórico e fundamentos da Psicologia Comunitária no


Brasil. In Campos, R. H. F. (Org) Psicologia Social Comunitária: da
solidariedade à autonomia. (pp. 17-34). Petrópolis: Vozes.

______. (1995). A mediação emocional na constituição do psiquismo humano.


In Lane, S. T. & Sawaia, B. (Orgs.). Novas veredas da Psicologia Social.
(pp. 55-63). São Paulo: Brasiliense.

______.(1984). O processo grupal. In Lane, S. T. M. & Codo, W. (Orgs.).


Psicologia Social: o homem em movimento. (pp. 78-98). São Paulo:
Brasiliense.

Lang, A. B. S. G.; Campos, M. C. S. S. & Dermatini, Z. B. S. (2001). História oral


e pesquisa sociológica: a experiência do CERU. São Paulo: Humanitas.

Lima, D. M. A.; Bomfim, Z. A. C. & Pascual, J. G. (2009). Emoção nas veredas


da Psicologia Social: reminiscências na Filosofia e Psicologia Histórico-
cultural. Psicol. Argum. 27(58), 231-240.

Marques, S. (2011). Sistematização da metodologia de exploração do acervo.


João Pessoa. Mimeografado.

______. (2010a, 21-28 de maio). A leitura do texto literário: um jeito de buscar.


Jornal Contraponto, p.A-4.

______. (2010b). A bibliografia comentada: uma reflexão. João Pessoa.


Mimeografado.
450 | Psicologia e contextos rurais

Martins, S. T. F. (2003). Processo grupal e a questão do poder em Martín-Baró.


Psicologia & Sociedade, 15 (1), 201-217.

______. (2007). Psicologia Social e processo grupal: a coerência entre fazer,


pensar e sentir em Sílvia Lane. Psicologia & Sociedade, 19 (n.spe2),
76-80.

Melo Neto, J. F. (2007). Diálogos de extensão popular: reflexões e significados


- Parte 1(vídeo). Recuperado em 28 agosto 2007, de http://
extensãopopular.blogspot.com.

______. (2001). Extensão universitária: uma análise crítica. João Pessoa:


Editora Universitária/UFPB.

Montero, M. (2010). Teoría y práctica de la Psicología Comunitaria: la tensión


entre comunidad y sociedad. Buenos Aires: Paidós.

Oliveira, F. P.; Ximenes, V. M.; Coelho, J. P. L. & Silva, K. S. (2008). Psicologia


comunitária e educação libertadora. Psicologia: teoria e prática. 10 (2),
147-161.

Reis, A C.; Zanella, A.; França, K. & Ros, S. (2004). Mediação pedagógica:
reflexões sobre o olhar estético em contexto de escolarização formal.
Psicologia: reflexão e crítica, 1(17), 51-70.

Rodrigues, I. A.; Antunes, L. R. & Rodovalho, R. (2008). Perfis social, econômico


e ecológico da área de influência da APA da Barra do Rio Mamanguape
(PB) – Bases para a classificação e seleção de estabelecimentos rurais
para Gestão Ambiental. In ______. (Orgs.). Avaliação de impactos
ambientais para a Gestão da APA da Barra do Rio Mamanguape (PB).
(pp. 12-37), Jaguariúna: Embrapa Meio Ambiente.

Sawaia. B. B. (1996). Comunidade: a apropriação científica de um conceito tão


antigo quanto a humanidade. In Campos, R. H. F. (Org.) Psicologia
Social Comunitária: da solidariedade à autonomia. (pp. 35-51).
Petrópolis: Vozes.
Psicologia e contextos rurais | 451

______. (2004). Artimanhas da exclusão. Petrópolis: Vozes.

Secretaria Municipal de Cultura (2009). Projeto Geraldo Maciel (Barreto).


Catolé do Rocha/Pb.

Silvan, C. (2007). Diálogos de extensão popular: reflexões e significados - parte


1 (vídeo). Recuperado em 28 agosto 2007, de http://extensãopopular.
blogspot.com.

Thiollent, M. (2000). Metodologia da pesquisa-ação. 9. ed. São Paulo: Cortez.

Vasconcelos, E. M. (2001). Redefinindo as práticas de saúde a partir da


educação popular nos serviços de saúde. In ______. (Org.). A saúde
nas palavras e nos gestos. (pp. 11-19). São Paulo: Hucitec.

Vieira-Silva, M. (2008). Práticas em psicologia social comunitária:


questionamentos e articulações com a extensão universitária em
Minas Gerais. In Dimenstein, M. (Org.) Psicologia Social Comunitária:
aportes teóricos e metodológicos. (pp. 87-101). Natal: Editora da UFRN.

Zanella, A. V. (2011). Psicologia Social, arte e política: breves incursões pelas


trilhas da ABRAPSO. In Medrado, B. & Galindo, W. (Orgs.). Psicologia
Social e seus movimentos: 30 anos de ABRAPSO. (pp. 53-70). Recife:
Editora Universitária da UFPE.

______. (2004). Atividade criadora, produção de conhecimentos e formação


de pesquisadores: algumas reflexões. Psicologia & Sociedade, 1(16),
135-145.

Zanini, M. C. & Weber, L. I. (2010). Cinema sem pipoca, mas com debate:
reflexões acerca do uso do cinema no ensino e na extensão em
Antropologia. Extensio: R. Eletr. de Extensão, 7 (9), 87-99.
Psicologia Comunitária e
comunidades rurais do Ceará:
caminhos, práticas e vivências
em extensão universitária
Verônica Morais Ximenes
James Ferreira Moura Júnior

Introdução

C ompartilhar as vivências, as histórias, os encontros, as des-


pedidas, as descobertas, as angústias, que foram construí-
das ao longo dos anos nas comunidades rurais do Ceará, propicia
um mergulho no mundo de sentimentos de alegria e de satisfação.
A escrita de um texto é algo que precisa ser sentida, pois, somente
dessa forma, ela pode reverberar o que queremos socializar.
A construção da Psicologia Comunitária no Ceará e no
Núcleo de Psicologia Comunitária1 (NUCOM) da Universidade

1 NUCOM se constitui como um núcleo de ensino, pesquisa e extensão/coopera-


ção que tem como objetivos a co-construção de sujeitos comunitários através do
454 | Psicologia e contextos rurais

Federal do Ceará são histórias fundidas em um processo que emer-


giu, em 1983, dos trabalhos de extensão universitária nas comunida-
des do Pirambu (bairro de Fortaleza) e de Pedra Branca (município
do Ceará) para demandar o desenvolvimento de conceitos e cate-
gorias teóricas. Um longo caminho foi percorrido e muito ainda
temos a descobrir e desenvolver.
Os desafios de desconstruir paradigmas de que a Psicologia
é uma ciência e uma profissão elitista e que não tem muito a con-
tribuir com o contexto das zonas rurais, demandam uma dedicação
dos psicólogos a fim de evidenciar a necessidade de se desenvolver
práticas e teorias contextualizadas nessa realidade. Essa é uma das
contribuições que pretendemos com esse trabalho.
Para socializar as nossas ideias, apresentamos um pouco do
contexto social das comunidades rurais brasileiras, apontado para
dados que contribuem na compreensão da imbricação da realidade
social e individual. Posteriormente, aprofundamos nos aspectos
teóricos e metodológicos da Psicologia Comunitária, como tam-
bém relatamos vivências em extensão universitária nas comunida-
des rurais de Pentecoste e Apuiarés (municípios do Ceará).

Contexto social das comunidades


rurais brasileiras
As áreas rurais se referem, segundo o Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatísticas (IBGE, 2011), às localidades que estão
situadas fora do perímetro urbano. Possuem casas permanentes,
que estão situadas a uma distância de 50 metros ou menos entre si,
constituindo, assim, um povoado considerado um

aprofundamento da consciência e do fortalecimento da identidade individual e


social; a formação e profissionalização dos estudantes integrantes do Núcleo; e
o aprofundamento e sistematização da Psicologia Comunitária no Ceará. Mais
informações estão disponíveis no site: www.nucom.ufc.br.
Psicologia e contextos rurais | 455

aglomerado rural sem caráter privado ou empresarial,


ou seja, não vinculado a um único proprietário do solo
(empresa agrícola, indústrias, usinas etc.), cujos mora-
dores exercem atividades econômicas, quer primárias
(extrativismo vegetal, animal e mineral; e atividades
agropecuárias), terciárias (equipamentos e serviços) ou,
mesmo, secundárias (industriais em geral), no próprio
aglomerado ou fora dele. O povoado é caracterizado pela
existência de um número mínimo de serviços ou equipa-
mentos para atender aos moradores do próprio aglome-
rado ou de áreas rurais próximas (IBGE, 2011, p. 1).

Para nós, o povoado representa a comunidade rural. No


entanto, segundo Albuquerque (2001), as áreas rurais não podem
ser somente compreendidas como baseadas em aspectos demo-
gráficos. Assim, compreendemos comunidade a partir das consi-
derações de Rebouças Jr. e Ximenes (2010, p. 155) como “um espaço
territorial em que a subjetividade se constrói nas relações de seus
moradores entre si e com os contextos sociais. São construídos vín-
culos afetivos, sentimento de pertença, problematizações sobre a
vida e a realidade”.
Segundo experiências extensionistas desenvolvidas no
NUCOM em comunidades rurais, os moradores dessas comuni-
dades geralmente constroem vínculos afetivos consolidados entre
seus familiares e seus vizinhos. De acordo com Góis (2005), ape-
sar da distância física entre as casas em alguns contextos rurais, os
moradores das comunidades rurais possuem uma maior vincula-
ção afetiva entre si. Há, geralmente, o reconhecimento face a face
dos integrantes da comunidade rural.
Esse aspecto ocorre de forma menos significativa no con-
texto urbano, pois, em algumas situações, as comunidades urbanas
são permeadas por uma grande mobilidade entre distintas áreas
da cidade, além de haver incongruências na delimitação espacial
456 | Psicologia e contextos rurais

da comunidade urbana, dificultando, dessa maneira, a vincula-


ção entre os moradores. Essas incongruências relacionam-se com
a diversidade de nomes que os bairros/comunidades das grandes
cidades possuem, o que dificulta o processo de apropriação e vin-
culação dos moradores. Cada política pública atribui um nome
diferente à comunidade. No caso das comunidades rurais, esse pro-
blema é mais raro.
Geralmente, os moradores das áreas rurais cultivam senti-
mentos positivos relacionados às suas comunidades apesar de, na
maioria dos casos, o acesso aos serviços básicos de Educação, de
Segurança, de Saúde e de Assistência serem de difícil acesso. Em
uma pesquisa realizada por Albuquerque e Pimentel (2004) com
jovens residentes do meio urbano e do meio rural, os significados
relacionados à área rural estavam vinculados com aspectos posi-
tivos, como proximidade com a natureza. Entretanto, segundo
Albuquerque (2001), os significados relacionados à palavra rural
ainda portam caracteres depreciativos relacionados a unicamente
uma visão de atraso, de rústico e de agrário.
Essa abordagem depreciativa à área rural, na visão de
Alburquerque (2001), pode estar ligada à falta de investimentos
governamentais e às políticas públicas específicas, pois os inte-
resses estatais estiveram historicamente mais voltados ao meio
urbano. No entanto, atualmente, já existe uma maior abrangên-
cia de algumas políticas públicas específicas voltadas à população
rural. Apesar desse pequeno avanço, o urbano ainda torna-se mais
atraente, fomentando o êxodo rural e o crescimento desordenado
das grandes cidades. Prova disso foi a redução de 2 milhões de
pessoas nas áreas rurais desde de 1990 até 2010, sendo que essas
comunidades rurais portam 15,9% dos 190.755.799 de brasileiros,
segundo dados do Censo 2010 (IBGE, 2011).
Psicologia e contextos rurais | 457

Assim, partindo da compreensão de que o Brasil é um dos


países mais desiguais do mundo no G202, perdendo somente para
África do Sul (Economia BBC Brasil, 2012), as áreas rurais podem
ser abordadas como um dos contextos mais precários no território
brasileiro. Nessa região, vivem 47% dos pobres do país. Leal (2011)
afirma que um quarto dos extremamente pobres do Brasil está na
área rural, sendo que 5,7 milhões dessas pessoas têm renda fami-
liar per capita de R$ 1 a R$ 70 reais mensais e 1,8 milhão não tem
renda própria. Albuquerque (2002) compreende que a manutenção
da desigualdade social e da pobreza no Brasil e no campo é uma
ferramenta de manutenção do status quo.
Moura Jr. (2012) também compartilha dessa compreensão
de que a pobreza funciona como ferramenta ideológica de crista-
lização da realidade. Há um conjunto de papéis sociais que per-
meiam e constituem o psiquismo humano do pobre, situando-o nas
posições de conformado, de incapaz, de culpado, de vagabundo, de
perigoso e de causador de mazelas sociais. Essas formas de reco-
nhecimento enfraquecem as potencialidades do sujeito, consti-
tuindo uma identidade de oprimido e de explorado. Esta se refere
a uma série de práticas, valores e crenças que delimitam o modo de
viver dos oprimidos, desenvolvendo essa forma específica de iden-
tidade que é “negada, sofrida, desamparada, frágil, e também vio-
lenta” (Góis, 2008, p. 60); e constituindo igualmente o fatalismo.
Nesse ponto, a religiosidade acrítica pode ser constituinte
de atitudes fatalistas. No mapeamento psicossocial3 realizado na

2 G20 é o grupo das 19 maiores economias do mundo mais a União Europeia com
objetivo de discutir e planejar os rumos da economia global.
3 Esse mapeamento refere-se à realização de uma pesquisa qualitativa a partir
das técnicas de observação participante, de diários de campo e de entrevistas
semiestruturadas com os moradores da comunidade, tendo o objetivo de siste-
matizar informações sobre educação, saúde, lazer, trabalho e cultura e analisar
os valores, as crenças e as práticas que permeiam o cotidiano dos habitantes da
comunidade.
458 | Psicologia e contextos rurais

comunidade de Canafístula, em Apuiarés, por extensionistas do


NUCOM no ano de 2011, também surgiu de forma significativa nos
discursos dos moradores uma crença divina que posicionava Deus
como responsável por tudo, muitas vezes obscurecendo a critici-
dade e a responsabilidade no rumo das decisões relacionadas à
dinâmica comunitária. Para Martín Baró (1998), o fatalismo corres-
ponde a aspectos psicológicos do latino-americano inseridos em
condições de opressão, fomentando nesse sujeito uma compreen-
são predeterminada da realidade explicada a partir do estabeleci-
mento de uma ordem natural ou divina. O sujeito torna-se passivo
frente às adversidades vigentes, consequência de uma estrutura
macrossocial opressora. Cidade, Moura Jr. e Ximenes (2012) afir-
mam que essas posturas desempenhadas pelos oprimidos são tam-
bém estratégias de sobrevivência frente uma realidade que é cruel e
desumana, sendo geralmente a única via encontrada para suportar
essas adversidades sociais, simbólicas e concretas.
Apesar desse caráter macrossocial opressor, segundo Góis
(2005), as comunidades rurais compartilham de forma mais sig-
nificativa o modo de vida, os aspectos históricos, os valores e a
identidade social do lugar, desenvolvendo uma maior integração
ideológica, social e psicológica entre seus moradores e sendo o
lugar de mediação entre os indivíduos e a sociedade mais ampla.
Há um cotidiano regido por uma lógica social e simbólica cons-
truída historicamente na comunidade, impactando no psiquismo
humano. Isso ocorre porque a realidade psíquica é constituída pela
realidade social (Vygotsky, 1927/2004).
No entanto, segundo a Agência Brasil (2012), a área rural
também porta problemas específicos relacionados à violência na
disputa de terras, ao adoecimento por conta do uso de agrotóxi-
cos e à insegurança alimentar proporcionada pela falta de renda
dos moradores das comunidades rurais, sendo as mulheres as prin-
cipais vítimas dessas agruras. As mulheres do campo têm menor
acesso às terras e aos serviços rurais, apesar de geralmente serem
Psicologia e contextos rurais | 459

responsáveis pela preservação do ecossistema e das práticas cultu-


rais tradicionais.
Werneck e Leal (2011) relatam a precariedade da zona rural
a partir de um estudo comparativo de indicadores sociais das áreas
rurais e das favelas do país com dados do Censo 2010 (IBGE, 2011).
Esses indicadores demonstram melhores resultados nas regiões
favelizadas do que nas comunidades rurais, sendo apontado que
a renda da população das áreas rurais era muito menor do que os
habitantes das favelas, assim como o acesso à educação. A taxa de
analfabetismo de indivíduos acima de 15 anos nas favelas era de
8,4% enquanto, nas regiões rurais, 23% dos moradores eram anal-
fabetos. Entretanto, Albuquerque (2002, 2004) aborda que está
ocorrendo um processo de desenvolvimento e de diversificação
da economia na área rural. A renda dos aposentados, a economia
agrária, o comércio e o setor de serviços estão trazendo um maior
desenvolvimento econômico para as comunidades rurais.
Assim, as comunidades rurais podem ser consideradas como
espaços possíveis de fortalecimento e de integração por suas carac-
terísticas espaciais, sociais e simbólicas. No entanto, estão inseri-
das igualmente em uma teia opressora de manutenção do status
quo permeando processos de depreciação social dessas comunida-
des e dos seus moradores. A partir desse panorama, apresentare-
mos algumas considerações sobre a Psicologia Comunitária como
estratégia de desenvolvimento dessas comunidades rurais expondo
as experiências extensionistas do NUCOM no Ceará.

Psicologia Comunitária, comunidades


rurais e extensão universitária
A Psicologia Comunitária (Góis, 2005) é uma área da
Psicologia Social da Libertação e que tem como objetivo o desenvol-
vimento do sujeito comunitário. O conceito de comunidade agrupa
as pessoas pelo seu local de moradia, em que estão associados
460 | Psicologia e contextos rurais

valores, crenças e sentimentos entre seus moradores. É um espaço


de consensos, de contradições e de convivência entre as pessoas.
Sawaia (1996), Góis (2005) e Guareschi (2010) contribuem para a
importância desse conceito nos trabalhos desenvolvidos pelos pro-
fissionais da Psicologia. Nos nossos trabalhos teóricos e práticos
de Psicologia Comunitária, a partir de um posicionamento ético e
político, sempre optamos em trabalhar em comunidades urbanas
e rurais em situação de pobreza, tendo em vista que a maioria dos
trabalhos desenvolvidos pela Psicologia sempre atenderam às clas-
ses média e alta.
Assim, o tripé teoria, prática e compromisso social dá
suporte a Psicologia Comunitária e aponta para uma práxis liber-
tadora. Segundo Ximenes e Góis (2010), essa libertação vincula-se
a uma situação de opressão, de exclusão, de dominação e de desi-
gualdades que precisam ser desveladas objetivamente e subjetiva-
mente a fim de que os sujeitos possam ser autônomos, conscientes
e livres.
A prática e a teoria da Psicologia Comunitária desenvolvida
no NUCOM tiveram como base os trabalhos nos projetos de exten-
são universitária. A problematização é uma categoria importante e
está presente quando questionamos o conceito de extensão. O que
seria extensão? Estender o conhecimento científico produzido nas
universidades à população que não o tem? Será a verdade absoluta?
A problematização da extensão universitária vigente e a
construção de uma postura dialógica, cooperativa, comprometida
com a transformação da realidade de opressão e construtora de vín-
culos afetivos entre os envolvidos nesse processo é o que se expressa
no termo cooperação.

A proposta de uso do termo cooperação em lugar de


extensão vem contribuir para a definição de uma rela-
ção de igualdade entre os atores – universidade e comu-
nidade – onde ambos são responsáveis pelas atividades
Psicologia e contextos rurais | 461

extensionistas. Cada ator terá o seu papel e poderá apor-


tar e construir conhecimentos que serão utilizados para
a construção de uma sociedade mais humana e justa
(Ximenes, Nepomuceno & Moreira, 2007, p. 19).

Dessa maneira, acreditamos e praticamos uma cooperação


universitária que respalda a nossa produção científica, que está
comprometida com a denúncia das desigualdades sociais e aponta
para caminhos que possibilitem a superação dessa realidade. Então
a Psicologia Comunitária que desenvolvemos não propõe a neu-
tralidade científica, mas sim, a construção de vínculos afetivos
entre membros da universidade e os moradores das comunidades.
Percebemos que sua potência para denunciar a realidade de opres-
são pode contribuir também com a construção e com as análises
de categorias psicossociais presentes no desenvolvimento do psi-
quismo, estabelecendo uma fusão constante entre teoria e prática
em práxis. Com isso, apresentaremos os caminhos da Extensão
universitária nas áreas rurais desenvolvidos pelo NUCOM, evi-
denciando os meandros teóricos, metodológicos e concretos dessa
atuação.

Processos de facilitação comunitária


– chegadas e partidas
No caso da Psicologia Comunitária e dos projetos de exten-
são desenvolvidos pelo NUCOM, o processo de facilitação comu-
nitária constitui-se em etapas que abarcam desde a inserção até o
desligamento progressivo da comunidade. Segundo Rebouças Jr.
e Ximenes (2010), os processos de inserção e de desenvolvimento
das atividades na comunidade são baseados na interação social ali-
cerçada por posturas dialógicas, afetivas e cooperativas. Para Góis
(2005, p. 69), o objetivo dessa inserção comunitária é o “desenvol-
vimento do sujeito comunitário mediante ações coletivas de desen-
volvimento da comunidade. Transformação de um espaço sem ou
462 | Psicologia e contextos rurais

com pouco sentido em espaço de significado positivo para os mora-


dores, um espaço físico-social com sentido”. Ou seja, espera-se que
os processos de facilitação desenvolvidos tenham repercussão na
consolidação de ganhos materiais e simbólicos, de movimentos de
conscientização, de estratégias de fortalecimento da identidade
pessoal e comunitária e da autonomia dos moradores. Esses mora-
dores também são reconhecidos como portadores de potencialida-
des para organizar suas vidas e sua comunidade.
Nos trabalhos de extensão universitária do NUCOM, o pro-
cesso de escolha das comunidades acontece a partir de convites que
recebemos de projetos, ONGs, equipamentos das políticas públicas
e lideranças comunitárias. Primeiramente, realizamos uma visita
para conhecer a comunidade e saber se há convergência dos obje-
tivos da Psicologia Comunitária com os dos propostos pelos possí-
veis parceiros. Caso seja positivo, damos continuidade ao processo
de construção da parceria.
O processo de entrada na comunidade é realizado a partir
de observações. É interessante realizar caminhadas pelas ruas da
comunidade. Nas comunidades rurais, essas caminhadas tendem
a serem mais longas devido à disposição espacial das casas. Então,
é importante o apoio de alguma liderança comunitária ou de uma
pessoa de referência para auxiliar nesse processo inicial, como
os agentes comunitários de saúde. É conveniente realizar essas
caminhadas em diferentes horários e turnos ao longo da semana
na comunidade. Nas comunidades rurais, o extensionista4 é logo
reconhecido como um estranho no espaço. Ele, então, tem que
apresentar seu discurso de forma mais clara possível, utilizando
ilustrações do cotidiano da comunidade como possíveis trabalhos

4 É utilizado o termo extensionista porque se refere às experiências praticadas por


estudantes inseridos no NUCOM. No entanto, essas considerações traçadas so-
bre a atuação comunitária podem servir de modelo para qualquer profissional
que realize ou queira realizar trabalhos com a perspectiva comunitária liberta-
dora em comunidades.
Psicologia e contextos rurais | 463

a serem realizados. Segundo Albuquerque (2001), os moradores de


comunidades rurais têm uma maior capacidade de compreensão
com o fornecimento de exemplos simples e concretos.
Então, o primeiro foco da inserção é de observação e de
consolidação da confiança entre extensionista e morador. É fun-
damental a utilização da observação participante, que possibilita
a interação de forma horizontalizada entre as pessoas da comuni-
dade e o agente externo (extensionista) mediante o diálogo. As sis-
tematizações das observações são transcritas em diários de campo
(Montero, 2006), que são registros dos acontecimentos com inter-
pretações e análises desse agente. Como também evidenciam as
resoluções de erros cometidos e suas aprendizagens a partir deles.
Deve ser escrito ao final da jornada de trabalho, registrando com
cuidado e atenção, narrando o que foi observado.
Essa observação deve ser desempenhada a partir do método
de facilitar-pesquisando e pesquisar-facilitando a dinâmica comu-
nitária. Segundo Góis (2008), esse processo se refere à imersão na
comunidade com uma postura analítica, inclinando-se a apreen-
der os valores, as práticas e as crenças que permeiam o modo de
vida dos moradores da comunidade. Essa análise da comunidade
é potencializada na dimensão vivencial em que o profissional vai
construindo vínculos afetivos com os moradores e ampliando a
possibilidade de compreensão da realidade da comunidade.

Ajuda-nos a compreender o modo de vida dos morado-


res, o entorno em que vivem e como estes se refletem
em suas mentes na forma de significado, sentido, senti-
mento e ação. É um método científico e político, intera-
tivo, reflexivo e vivencial, no qual morador e psicólogo,
conjuntamente, analisam e vivenciam a comunidade,
constroem conhecimento e aprofundam suas cons-
ciências de si e do lugar. Para nós, é o método princi-
pal da Psicologia Comunitária. Se apoia em uma dada
464 | Psicologia e contextos rurais

concepção de indivíduo, de comunidade e de ação, evi-


denciando uma ética (de libertação) e uma relação de
inserção, ação e convivência, comum na ação-partici-
pante, na observação-participante e na pesquisa-parti-
cipante (Góis, 2005, p. 90).

As posturas do profissional devem estar balizadas por uma


ética da libertação, pois, de acordo com Ximenes e Barros (2009)
e Martín Baró (1998), o conhecimento e a prática devem estar vol-
tados à mudança social a favor dos oprimidos. Para Guzzo (2010),
essa ética, como já mencionado, baseia-se no desvelamento das
estruturas opressoras da sociedade que tornam enfraquecidas as
potencialidades dos indivíduos. Então, a partir da realização dessas
posturas, já são apresentadas possibilidades de criação de relações
promotoras de fortalecimento, de autonomia e de criticidade entre
moradores e extensionistas. No entanto, essas relações somente
são desenvolvidas a partir de interações sociais com foco na hori-
zontalidade e na valorização dos sujeitos partícipes desse processo.
Freire (1979) corrobora essa compreensão, explicitando que
o diálogo e, consequentemente, o aprofundamento de consciên-
cia somente ocorrem quando há fusão de horizontes e respeito à
posição do outro na relação. Com isso, progressivamente, poderá
haver a consolidação da identificação mútua entre morador e
agente externo; o reconhecimento das possíveis lideranças locais;
o mapeamento das potencialidades e das dificuldades da comuni-
dade; e o estabelecimento de uma estratégia de cooperação para o
desenvolvimento da comunidade. O processo de inserção é muito
importante para a efetividade de uma intervenção psicossocial nas
comunidades rurais.
Em um segundo momento, de acordo com Góis (2005),
há a intensificação da inserção na comunidade a partir da análise
das atividades comunitárias, dos grupos existentes e da facilitação
de grupos populares em diversas metodologias, como círculos de
Psicologia e contextos rurais | 465

cultura, círculos de encontro, exercícios de Biodança, reuniões de


quarteirão, entre outros. Os grupos são importantes estratégias
de desenvolvimento comunitário. Lane (1996) traz a relevância do
grupo no processo de fortalecimento da identidade pessoal.
Segundo Montero (2006), nessa fase está sendo efetivada a
familiarização, a identificação das necessidades, o estabelecimento
de metas específicas a curto e a longo prazos com os moradores e
a divisão de trabalho. Nesse ponto, há possibilidade de desenvolvi-
mento de processos de aprofundamento de consciência de forma
mais significativa. Segundo Freire (1980), a conscientização refere-
-se ao processo de compreensão crítica da realidade. Essa critici-
dade é fomento da ação, fazendo que o sujeito atue ativamente na
sua comunidade. No entanto, não há aprofundamento de consci-
ência sem a problematização da realidade. Montero (2006) afirma
que a problematização fundamenta-se na exposição de uma per-
gunta relacionada a algum conhecimento pessoal construído pela
pessoa que a coloca em uma posição de busca de sentidos diferen-
tes dos que estejam estabelecidos em sua consciência. Esse con-
ceito teve como base os trabalhos de Paulo Freire com alfabetização
de adultos na década de 1960.
Assim, o desenvolvimento de atividades comunitárias está
voltado para a concretização prática de objetivos comuns e comu-
nitários compartilhados pelos moradores, como também para
satisfação de motivos pessoais dessas pessoas, fomentando nes-
ses sujeitos a realização de suas necessidades, o fortalecimento da
autonomia, da criticidade, da identidade social e do sentimento de
pertença à comunidade. Com isso, o processo de desenvolvimento
comunitário está relacionado à consolidação de atitudes coopera-
tivas, potencializadoras da dinâmica comunitária e fortalecedoras
da identidade cultural do lugar entre os moradores, desenvolvendo
a participação social na comunidade e no município.
466 | Psicologia e contextos rurais

Segundo Ximenes, Amaral, Rebouças Jr. e Barros (2008), o


desenvolvimento comunitário pode acarretar o desenvolvimento
local, que está relacionado a uma maior integração da comuni-
dade ao município, assumindo uma perspectiva de fortalecimento
da participação social em nível macro e microssocial. Com isso, o
desenvolvimento comunitário se refere a uma estratégia socioeco-
nômica, política e psicológica, promovendo igualmente o surgi-
mento do sujeito comunitário, no qual os moradores estão em um
processo constante de aprofundamento de consciência, de cidada-
nia e de autonomia.
Os processos de fortalecimento dos moradores podem ser
fomentados pela realização de oficinas de capacitação de técnicas
de grupo, formação de lideranças, organização de eventos cultu-
rais, construção de projetos produtivos e várias atividades que
estimulam o trabalho em grupos. Dessa maneira, nessa etapa, há
a consolidação das atividades comunitárias existentes, podendo
haver o desenvolvimento das lideranças democráticas a partir de
criação de fóruns de desenvolvimento da comunidade. Nesses
espaços coletivos, há a avaliação das atividades comunitárias e
dos seus respectivos resultados. Com essa estratégia de avaliação,
ocorre o refinamento das atividades comunitárias existentes de
acordo com a definição pelos moradores de novas problemáticas a
solucionar e a investigar. Dessa maneira, há a ampliação das ações
no campo comunitário e a consolidação da relação morador-agente
externo-grupos.
Por fim, desenvolvemos o processo de desligamento pro-
gressivo da comunidade (Góis, 2005). Há a avaliação coletiva da
totalidade do processo desenvolvido com a redefinição da relação
entre extensionista-morador-grupo. Os encontros periódicos entre
agentes internos (moradores) e agentes externos são mais espaçados
e há a realização de visitas pontuais. E o momento de desligamento
é concretizado com a despedida, mas a certeza da permanência dos
laços de amizade e de solidariedade. É importante ressaltar que o
Psicologia e contextos rurais | 467

imprevisto é uma constante na realização de trabalhos envolvendo


a Psicologia Comunitária em comunidades urbanas e rurais, mas,
segundo Montero (2006), essa imprevisibilidade tem que ser usada
como ferramenta do processo de facilitação do desenvolvimento
comunitário.

Pentecoste e Apuiarés: trabalho em extensão


universitária em comunidades rurais
Desde a sua fundação como Projeto de Extensão em
Psicologia Comunitária, o NUCOM tinha como objetivo desen-
volver projetos de extensão em comunidades urbanas e rurais.
O seu primeiro trabalho em comunidades rurais foi em 1988 no
Município de Pedra Branca (Ceará). Com o passar dos anos, muitas
comunidades rurais participaram dos projetos de extensão, como:
Praia de Parajuru (Município de Beberibe), Itapajé, Crateús, São
Gonçalo do Amarante, Icapuí, Guaramiranga, Beberibe, Aracati,
Maranguape, Maracanaú e Quixadá.
Em 2005, o NUCOM iniciou seus trabalhos no Município de
Pentecoste. Dessa vez, a parceria foi com o Programa de Educação
em Células Cooperativas (PRECE), coordenado pelo Prof. Manoel
Andrade do Departamento de Química da Universidade Federal
do Ceará e que desenvolve atividades de extensão universitária
desde 1994 no município de Pentecoste, localizado no semiárido
do Ceará. Sobre o NUCOM e o PRECE,

Algumas coisas eram parecidas nestes projetos, a opção


teórica e metodológica por Paulo Freire, a influência
das ideias de Carl Rogers, a busca pela construção de
uma humanidade mais autônoma, livre e feliz, a par-
ticipação efetiva dos alunos como protagonistas nestes
projetos, a relação horizontal e sem hierarquia entre os
coordenadores (professores) e os alunos, a opção por
468 | Psicologia e contextos rurais

uma cooperação universitária (extensão) comprome-


tida com a classe oprimida, a busca pela construção de
uma ciência que nasça da simbiose entre conhecimento
popular e científico e outras questões que foram desco-
bertas durante a convivência (Ximenes, Lopes & Alves,
2008, p. 21).

A partir da parceria do NUCOM e PRECE, iniciamos os tra-


balhos de extensão de forma conjunta em Pentecoste e construímos
o projeto “Protagonismo juvenil e desenvolvimento local susten-
tável” e o projeto “Desenvolvimento comunitário no município
de Pentecoste”, que desenvolveram as seguintes ações: assessoria
na formação da União dos Moradores do Vale do Rio Curu, curso
de formação política para jovens lideranças, acompanhamento à
formação de uma cooperativa com produtores rurais, assessoria
ao grupo de jovens apicultores, facilitação de grupos de jovens da
Escola Popular Cooperativa5 (EPC) e outras atividades que surgi-
ram no decorrer da nossa inserção na comunidade. A equipe de
extensionistas era formada por estudantes do NUCOM e do PRECE
e os dois professores da UFC. A equipe do NUCOM estava quin-
zenalmente nos finais de semana nas comunidades, enquanto a
equipe do PRECE estava todos os finais de semana.
Em 2006, os referidos projetos foram contemplados com
o financiamento do “Programa de Apoio à Extensão Universitária
voltado às Políticas Públicas” (PROEXT 2005 – MEC/SESu/
DEPEM), o que possibilitou recursos financeiros que viabilizaram
as atividades de extensão. Também publicamos um livro, Psicologia

5 A Escola Popular Cooperativa é formada por grupos de estudos com o objeti-


vo de estudar de forma cooperativa para o ingresso ao Ensino Superior. Esses
grupos são orientados por monitores que já foram ex-integrantes da EPC e que
agora já ingressaram à universidade. É utilizado o método de aprendizagem
cooperativa, incentivando o protagonismo desses jovens por ações de autoges-
tão de cada EPC que estão espalhadas em diferentes cidades do Ceará. As EPC
constituem uma das ações do PRECE.
Psicologia e contextos rurais | 469

Comunitária e Educação Popular, com artigos sobre nossas experi-


ências em extensão universitária.
Em 2008, iniciamos o processo de desligamento nas comu-
nidades trabalhadas a partir da avaliação com os moradores
envolvidos e resolvemos focar nossas atividades na comunidade
de Canafístula (Município de Apuiarés, vizinho ao Município de
Pentecoste). A comunidade de Canafístula é o novo foco dos nossos
trabalhos em virtude da parceria estabelecida com a Escola Popular
Cooperativa (EPC), vinculada ao PRECE. Assim, com caminhadas
comunitárias, encontros com lideranças e participação na dinâ-
mica comunitária, passamos a desenvolver trabalhos com os pro-
dutores rurais com o objetivo de construção de uma cooperativa e
com os jovens com o intuito de resgate da história da comunidade.
Posteriormente, na fase de ampliação das atividades comunitárias,
foi realizado pelos jovens um vídeo sobre a comunidade e apresen-
tado numa “Noite cultural”6.
Assim, já havia o fortalecimento da vinculação e da iden-
tificação entre integrantes do NUCOM e moradores, como tam-
bém, um maior conhecimento da dinâmica da comunidade de
Canafístula por meio do método de análise e vivência da dinâmica
comunitária, fornecendo as bases para desenvolvermos uma nova
atividade junto com um grupo de jovens da EPC. O objetivo desse
trabalho era fomentar a autonomia, o fortalecimento da identidade
pessoal e social do lugar e o sentimento de pertença desses jovens
através de oficinas, utilizando técnicas como: círculo de cultura,
exercícios de Biodança, de arte-terapia, de arte-identidade, entre
outras.
Com o estabelecimento dessa atividade, organizamos junto
com os moradores um fórum sobre a avaliação das atividades

6 A “Noite cultural” é um evento criado pelos moradores da comunidade para


integração da comunidade com fins festivos, sendo desenvolvida a partir de al-
guma temática específica que seja de interesse dos envolvidos.
470 | Psicologia e contextos rurais

comunitárias desenvolvidas. Assim, observamos conjuntamente


que estávamos restringindo nossa atuação somente ao espaço da
EPC, evidenciando que poderia haver outras atividades potenciais
de desenvolvimento comunitário. Então, nesse momento, com essa
nova avaliação, reorganizamos nossas atividades para realizar um
novo processo de inserção na comunidade de Canafístula, a partir
da realização de um mapeamento psicossocial da comunidade.
Realizamos, igualmente, esse mapeamento por meio
do método de pesquisar-facilitando e facilitar-pesquisando.
Visitamos a maioria das casas da comunidade, totalizando por
volta de 600 moradores, ao longo de aproximadamente oito meses.
Paralelamente à realização do mapeamento psicossocial, facili-
tamos atividades no grupo de jovens. Dessa maneira, junto com
os moradores, avaliamos que a Festa de São João era uma prática
cultural tradicional na comunidade e que estava sendo esque-
cida. Definimos como estratégia realizar visitas a pessoas de refe-
rência que anteriormente participavam ativamente desse festejo.
Também entramos em contato com a Escola de Ensino Médio e
Fundamental e a Associação dos Agricultores Rurais de Canafístula
sobre a possibilidade de parceria para organização de uma festa
junina, fomentando e problematizando a importância histórica
dessa festividade.
Com esses contatos realizados e a organização de reuni-
ões para planejamento da festividade, mesclávamos as dimensões
instrumentais e comunicativas da atividade comunitária a partir
de posturas dialógicas, cooperativas e problematizadoras. Assim,
desenvolvemos esse festejo junino, constituindo um espaço de
efetiva participação comunitária, de amorosidade e de cultura.
Analisamos que essa atividade pode ter desenvolvido um processo
de aprofundamento de consciência em alguns moradores. Isso
é evidenciado, porque, com o fim do festejo, um grupo de jovens
de Canafístula nos convidou para participar junto com eles de
um grupo para, segundo as palavras desses jovens, “solucionar os
Psicologia e contextos rurais | 471

problemas da comunidade de Canafístula e da regiões próximas”. O


nome desse grupo foi intitulado “Baluartes”.
Com isso, ainda na perspectiva de ampliação das atividades
comunitárias, passamos a facilitar algumas ações desse grupo. Esse
novo grupamento era a demonstração que o processo de autonomia
e de fortalecimento da identidade pessoal e comunitária estava se
consolidando, promovendo um avanço significativo no desenvol-
vimento comunitário. Dessa maneira, ao longo dos meses, foram
realizadas reuniões quinzenais. Eles atuaram, então, na revitaliza-
ção do time de futebol de Canafístula, na criação de um time de
futsal feminino e na organização interna do próprio grupo.
Os dados do mapeamento psicossocial foram analisados
a partir da Análise de Conteúdo de Bardin (1977) com a ajuda do
software de análise de dados qualitativos Atlas ti. Realizamos uma
oficina de validez ecológica7, pois desenvolvemos um espaço de
legitimação das análises com os integrantes do Grupo Baluartes
em que dialogamos sobre a validade daquelas informações. Essa
mesma oficina ocorreu com os artistas locais – repentistas, corde-
listas e violeiros – sobre a relevância daquelas informações. Esses
artistas, então, se comprometeram a criar produções artísticas a
partir daqueles dados para apresentarem em uma “Noite cultural”.
A realização da “Noite cultural” contou com a presença da
maioria dos moradores da comunidade e foi organizada por nós
juntamente com os jovens da EPC, os membros da Associação de
Agricultores e do Grupo Baluartes em um processo de divisão do
trabalho e de cooperação, com a presença do diálogo, do afeto e da
solidariedade nas interações sociais. Nessa “Noite cultural”, o mape-
amento psicossocial foi apresentado em forma de repente pelos
artistas locais e avaliado como muito significativo para uma maior
compreensão da história da Canafístula. No encontro de avaliação

7 A validez ecológica ocorre a partir da avaliação da relevância das análises reali-


zadas com pessoas de referência para o tema investigado (Montero, 2006).
472 | Psicologia e contextos rurais

desse evento com os parceiros, definiu-se a organização de um cro-


nograma para realização de oficinas temáticas sobre os principais
temas presentes no mapeamento psicossocial, ampliando, então, o
leque de possíveis atividades comunitárias ainda a serem realizadas.
Assim, percebemos que nosso percurso nas comunidades
rurais do Ceará pode ser entendido como uma constante parceria
com os moradores locais. Eles nos guiam pelas possíveis estradas de
terra e de símbolos, apontando horizontes e compartilhando sabe-
res. Compreendemos que essa caminhada pode ser entendida como
a construção cotidiana de processos de desenvolvimento comuni-
tário. É um processo que está em constante renovação e formação,
mas que segue também etapas estruturadas teórico e metodologi-
camente pela Psicologia Comunitária, desenvolvendo tanto agen-
tes externos mais engajados e comprometidos com transformação
social como moradores mais fortalecidos, integrados e críticos.

Considerações parciais
Ainda temos muito a compartilhar. Sabemos que a leitura
permite que o leitor se desloque para outros espaços, que despertam
questionamentos, visualização de relações e lembranças de outras
experiências. Dessa forma, podemos estar em lugares que nunca
estivemos. Esperamos ter socializado esses caminhos vivenciados
por nós nessas histórias e reflexões relatadas aqui. Também sabe-
mos que nada melhor do que um bom banho de realidade viva para
alimentar a nossa alma. Esse é um convite que deixamos: vamos
nos permitir se entranhar nas comunidades rurais dos municípios
desse imenso Brasil.
Reafirmamos a necessidade do compromisso ético da liber-
tação com o desvelamento das situações de opressão que as comu-
nidades rurais e seus moradores vivenciam cotidianamente. A
Psicologia Comunitária, então, pode apontar possíveis caminhos
para o enfrentamento da marginalização social, política e simbólica
Psicologia e contextos rurais | 473

que as comunidades rurais estão inseridas, utilizando estratégias


presentes nessas próprias comunidades rurais. No entanto, faz-
-se necessário o estabelecimento constante de posturas dialógicas,
cooperativas e problematizadoras entre morador e agente externo.
A Psicologia Comunitária contribui muito com suas teorias
e práticas para a análise de problemas psicossociais vividos pelos
moradores das comunidades rurais. Existem muitos espaços ocio-
sos que precisam ser apropriados por estudantes e profissionais
de Psicologia que tenham esse compromisso ético-político com a
libertação dessa realidade de opressão e pobreza. Para que possa-
mos estar nesses espaços, precisamos desenvolver atividades de
pesquisa, ensino e extensão que propiciem aprendizados contextu-
alizados com os problemas e as potencialidades do povo brasileiro.
Não temos a pretensão de sermos os “libertadores” das pes-
soas, já que nos apoiamos nas palavras de Paulo Freire (1987, p.
34) quando anuncia que “ninguém liberta ninguém, as pessoas se
libertam em comunhão”. Então moradores, estudantes e profissio-
nais vivenciam esse processo de libertação de forma conjunta. É
uma proposta ousada, mas o que seria da vida se não tivéssemos
força para ousar?

Referências
Albuquerque, F. J. B. (2001). Aproximación metodológica desde la psicología
social a la investigación en las zonas rurales. Estudios Agrociales y
Pesqueros, 191 (1), 225-233.

Albuquerque, F. J. B. (2002). Psicologia Social e formas de vida rural no Brasil.


Psicologia: Teoria e Pesquisa, 18 (3), 37-42.

Albuquerque, F. J. B. & Pimentel, C. E. (2004). Uma aproximação semântica


aos conceitos de Urbano, Rural e Cooperativa. Psicologia: Teoria e
Pesquisa, 20 (2), 175-182.
474 | Psicologia e contextos rurais

Agência Brasil. (2012). Mulheres representam quase metade da


população rural brasileira. Jornal do Brasil. Recuperado em 12
março 2012, de http://www.jb.com.br/pais/noticias/2012/03/08/
mulheres-representam-quase-metade-da-populacao-rural-brasileira/.

Bardin, L. (1977). Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70.

Cidade, E. C., Moura Jr., J. F. & Ximenes, V. M. Implicações Psicológicas da


Pobreza na Vida do povo Latino-Americano. Psicologia Argumento, 30
(68), 2012.

Economia BBC Brasil. (2012). Brasil é segundo país mais desigual do G20,
aponta estudo. BBC Brasil. Recuperado em 12 março 2012, de http://
www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/01/120118_desigualdade_
pesquisa.shtml.

Freire, P. (1979). Extensão ou Comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Freire, P. (1980). Conscientização: teoria e prática da libertação: uma


introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Cortez e Moraes.

Freire, P. (1987). Educação e Mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Góis, C. W. L. (2005). Psicologia Comunitária: atividade e consciência.


Fortaleza: Publicações Instituto Paulo Freire de Estudos Psicossociais.

Góis, C. W. L. (2008). Saúde Comunitária: pensar e fazer. São Paulo: Editora


HUCITEC.

Guareschi, P. (2010). O mistério da comunidade. In J. Sarriera, & E. Saforcada,


(Org.). Introdução à Psicologia Comunitária: bases teóricas e
metodológicas (pp. 13-23). Porto Alegre: Sulina.

Guzzo, R. S. L. (2010) Da Opressão à Libertação: uma perspectiva urgente para


a Psicologia – a conclusão de um projeto, a abertura de perspectivas.
Psicologia e contextos rurais | 475

In F. Lacerda Jr. & R. S. L. Guzzo, (Orgs.). Psicologia & Sociedade:


interfaces no debate sobre a questão social. (pp. 13-18). Campinas:
Alínea.

IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2011). Sinopse do Censo


Demográfico. Recuperado em 13 março 2012, de http://www.ibge.gov.
br/home/estatistica/populacao/censo2010/sinopse.pdf

Lane, S. T. M. (1996). Histórico e Fundamentos da Psicologia Comunitária


no Brasil. In R. F. Campos (Org.). Psicologia Social Comunitária: da
solidariedade à autonomia. (pp. 17-34). Petrópolis: Vozes.

Leal, L. N. (2011). Área rural receberá atenção especial do Brasil sem Miséria.
Estadão. Recuperado em 12 junho 2012, de http://www.estadao.com.
br/noticias/nacional,area-rural-recebera-atencao-especial-do-brasil-
sem-miseria,770604,0.htm.

Martín Baró, I. M. (1998). Psicología de La Liberación. Madrid: Trotta.

Montero, M. (2006). Hacer para transformar: El método em Psicología


Comunitaria. Buenos Aires: PAIDOS.

Moura Jr., J. F. (2012). Reflexões sobre a pobreza a partir da identidade de


pessoas em situação de rua de Fortaleza. Dissertação de Mestrado,
Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal do
Ceará, Fortaleza, CE.

Rebouças Júnior, F. G. & Ximenes, V. M. (2010). Psicologia comunitária


e psicologia histórico-cultural: análise e vivência da atividade
comunitária pelo método dialógico-vivencial. Pesquisas e Práticas
Psicossociais, 5 (2), 151-162.

Sawaia, B. (1996). Comunidade: a apropriação científica de um conceito tão


antigo quanto a humanidade. In R. Campos (Org.). Psicologia Social
Comunitária da solidariedade à autonomia. (pp. 35-53). Petrópolis:
Vozes.
476 | Psicologia e contextos rurais

Vigotski, L. S. (1927/2004). Teoria e Método em Psicologia. São Paulo: Martins


Fontes.

Ximenes, V. M.; Nepomuceno, B. B. & Moreira, A. E. M. M. (2007). Cooperação


Universitária: uma prática comunitária/libertadora a partir da
Psicologia Comunitária. In A. Cordeiro, E. M. Vieira & V. M. Ximenes
(Orgs). Psicologia (em) transformação social: práticas e diálogos. (pp.
16-38). Coleção Extensão Universitária/UFC. Fortaleza: Aquarela.

Ximenes, V. M., Amaral, C. E. M., Rebouças Jr., F. G. & Barros, J. P. P. (2008).


Desenvolvimento Local e Desenvolvimento Comunitário: uma visão
da Psicologia Comunitária. In V. M. Ximenes, C. E. M. Amaral & F. G.
Rebouças Jr. Psicologia Comunitária e Educação Popular: Vivências de
Extensão/Cooperação Universitária no Ceará. (pp. 89-103). Fortaleza:
LC Gráfica e Editora.

Ximenes, V. M., Lopes, H. L. & Alves, M. I. M. (2008). Núcleo de Psicologia


Comunitária e Programa em Células Cooperativas: um encontro
amoroso entre projetos de cooperação universitária. In V. M. Ximenes,
C. E. M. Amaral & F. G. Rebouças Jr. Psicologia Comunitária e Educação
Popular: Vivências de Extensão/Cooperação Universitária no Ceará.
(2008). (pp. 11- 24). Fortaleza: LC Gráfica e Editora.

Ximenes, V. M. & Barros, J. P. P. (2009). Perspectiva Histórico-Cultural: Que


contribuições teórico-metodológicas podem dar à práxis do psicólogo
comunitário? Psicologia Argumento, 27(56), 65-76.

Ximenes, V. M. & Góis, C. W. L. (2010). Psicologia Comunitária: uma práxis


libertadora latino-americana. In F. Lacerda Jr. & R. S. L. Guzzo (orgs.).
Psicologia & Sociedade: interfaces no debate sobre a questão social.
(pp. 45-64). Campinas: Alínea.

Werneck, F.; Leal, L. N. (2011). Favelas concentram 6% da população brasileira,


com 11 mi de habitantes. Estadão. Recuperado em 12 março 2012, de
http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,favelas-concentram-6-
da-populacao-brasileira-com-11-mi-de-habitantes,813838,0.html.
O trabalho escravo
contemporâneo a partir de
uma análise foucaultiana
de documentos da OIT
Geise do Socorro Lima Gomes
Flávia Cristina Silveira Lemos

O objetivo do presente texto é suscitar uma discussão do modo


como determinados documentos são utilizados como dis-
positivos políticos que interferem nas condições de possibilidades
de constituição de um “objeto”, e de como essa interferência produz,
por sua vez, práticas de poder e de subjetivação sem intencionalida-
des e como emergência/proveniência genealógicas, de acordo com
os trabalhos de Michel Foucault. Usaremos como materialidade de
nossas análises fragmentos de contribuições realizadas em disser-
tação de Mestrado1 financiada pela CAPES, por meio de um dos

1 Dissertação de Mestrado, intitulada Análise de documentos que compõem as


noções acerca das práticas de ‘exploração de trabalhadores rurais: um estudo
genealógico, financiada pela CAPES, orientada pela Profa. Dra. Flávia Cristina
Silveira Lemos e defendida em junho de 2011.
478 | Psicologia e contextos rurais

capítulos confeccionados na ocasião, que versava sobre o emprego


dos documentos da OIT (Organização Internacional do Trabalho)
relativos ao trabalho escravo contemporâneo.
Assim, uma pergunta-chave na dissertação foi como eram
forjados os saberes e quais domínios de uma história política da
verdade constituíam o objeto de preocupação trabalho escravo
contemporâneo. Essa pergunta trazia um cenário com várias ins-
tâncias (lugares institucionais e posições de sujeito), as quais lidam
com as questões que envolvem o uso da força de trabalho de traba-
lhadores de zonas rurais (caso mais típico e divulgado no Brasil)
e de trabalhadores de zonas urbanas, como os domésticos, além
dos de carvoarias, de pequenas produções têxteis e de sapatos, de
vendedores de telemarketing e em restaurantes de sanduíches que
admitem jovens em subempregos hiperexplorados, entre outras
situações de tráfico de pessoas na exploração sexual.
O interesse pelo estudo desse tipo de acontecimento tem
sido recente, tanto por parte do meio acadêmico quanto por parte
das instituições, organizações governamentais, não governamen-
tais e organismos multilaterais, como a OIT.
A partir de informações apropriadas no site oficial da OIT e
do acesso aos documentos produzidos por essa organização, visu-
alizamos que, por volta dos anos de 1930, em esfera internacional,
começou-se a divulgar relatos sobre a existência de escravidão
ainda presente no mundo atual e passou-se a separar, por meio
de práticas divisórias, o que era classificado como “escravidão” e
o que era considerado como “trabalho forçado”. Dessa maneira, as
Convenções 29 e 105 da OIT (respectivamente de 1926 e 1957) tra-
tam do tema de duas formas diferentes.
Na primeira Convenção, encontra-se uma das maneiras de
definir “trabalho forçado” pela OIT e a preocupação em fazê-la
diferente da noção de “escravidão”, uma vez que essa prática con-
tinuava sendo autorizada, em alguns países, apesar de a Sociedade
Psicologia e contextos rurais | 479

das Nações ter exigido sua abolição, desde 1926. Vale mencionar
que, até essa data, muitos países não eram membros de organi-
zações multilaterais e não pactuavam das convenções internacio-
nais e, mesmo os que diziam aceitar os acordos formulados nesses
organismos, podiam não assinar as Convenções ou assinar e não
cumpri-las. Assim, um longo processo de práticas de exploração
e violências diversas contra trabalhadores continuava se expan-
dindo, apesar de intervenções da ONU que começaram a difundir
e articular redes com objetivos protetivos, na esfera internacional
dos direitos trabalhistas e dos direitos fundamentais, lutando pelo
que denominava trabalho decente.
Ao estudarmos os documentos da OIT, lembramos sempre
de contextualizá-los e cotejá-los na história, procurando descre-
ver quais acontecimentos se interconectaram para que um deter-
minado objeto viesse a ser forjado em campos de visibilidade e de
dizibilidade e a se tornar alvo de preocupação, tal como nos alerta
Foucault (2008c), ao desnaturalizar o modo como os documentos
eram tratados, como materiais “inertes”, utilizados com o fim de
decifrar um passado. O próprio documento é parte dessa histó-
ria, forjado em meio a batalhas e lutas entre diferentes posições
de saber e poder, portanto, um monumento, que não é apenas um
registro de acontecimentos, mas um novo acontecimento e produz
efeitos de verdade por meio de práticas correlatas (Foucault, 2006;
Le Goff, 2003). É a partir dessa perspectiva que traçamos nossas
análises acerca dos documentos estudados.
Entre os discursos que são forjados e difundidos pela OIT,
em articulação com organizações governamentais e não gover-
namentais, estão os que visam criminalizar a prática chamada
trabalho forçado. Simultaneamente a esse movimento que busca
criminalizar, há o paradoxo da flexibilização dos direitos trabalhis-
tas, na atualidade, o que nos aproxima de um cenário que opera
por diversas vias e linhas de força. Destaca-se que a definição tra-
balho forçado torna-se uma tipificação jurídica e de caráter penal
480 | Psicologia e contextos rurais

internacional, e fica explícito, na Convenção 29, que cada país-


-membro deve elaborar suas leis, desde que elas estejam de acordo
com os artigos e proposições da Convenção.
Com a intensificação dos direitos e manifestações popula-
res e de movimentos sociais, percebemos novas transformações
ao tratar dessas questões, as quais ganharam visibilidade na 2ª
Convenção da OIT sobre trabalho forçado, com a extinção dos
acordos que permitiam ou concediam possibilidades de quebras
de artigos da Convenção, por meio de práticas de cumplicidade ao
trabalho sem contrato e com extrema exploração e até mesmo pri-
vação de liberdade e com submissão às várias formas de violência.
Esse efeito das lutas de movimentos sociais indica que interesses
diversos atravessam a construção de um determinado documento
e, por conseguinte, seus efeitos em políticas públicas estatais e
não estatais.
Assim, para uma organização que garante estar preocupada
com os direitos humanos, ao permitir que os Estados se utilizem do
trabalho forçado, em “determinadas condições”, nos faz questionar
essa suposta “preocupação” com os direitos e de que modo algumas
pessoas são autorizadas a negá-los ou a consenti-los. Nesse sen-
tido, enfatiza Gomes (2011, p. 103):

Uma governamentalização do trabalho forçado é o que


visualizamos, em que as relações de poder entre a organi-
zação e os países membros se dão por meio de disposições
que atendam aos interesses de ambos os grupos (Estado
e OIT) e que consigam regular a vida das populações,
destacando esse grupo de trabalhadores como alvo. Essa
primeira Convenção apresenta-se como uma das inicia-
tivas a uma espécie de “aliança global” contra as práticas
de trabalho forçado, contudo, ainda muito permissiva, se
levarmos em consideração o disposto anteriormente [...].
As mudanças históricas, a mutação dos acontecimentos
Psicologia e contextos rurais | 481

que produzem efeitos diversos são determinantes para as


mudanças acrescidas aos documentos.

Mecanismos biopolíticos e tecnologias de governamentali-


dade instituem, assim, a gerência da vida e a gestão dos riscos que
desde o final da Segunda Guerra Mundial encontram na ONU um
dispositivo pacificador em escala internacional, operando junto de
suas agências multilaterais, tais como a OIT. Nesse cenário, desta-
camos os seguintes objetivos estratégicos elencados pela OIT:

Promover os princípios fundamentais e direitos no tra-


balho através de um sistema de supervisão e de aplica-
ção de normas; promover melhores oportunidades de
emprego/renda para mulheres e homens em condições
de livre escolha, de não discriminação e de dignidade;
aumentar a abrangência e a eficácia da proteção social;
fortalecer o tripartismo e o diálogo social (Constituição
da OIT, 2008).

Em nome da defesa dos direitos humanos referentes ao tra-


balho, vemos que essa organização vai articulando, dessa forma,
conjuntos de princípios a se observar, entre os que permeiam
assuntos ligados aos processos de mundialização, tais como o do
capital, da cultura e do governo. E fazendo eco aos discursos pro-
duzidos pela ONU, cria-se uma preocupação em torno da garantia
da paz mundial, a qual será estabelecida com a efetivação de “direi-
tos”, destacando-se os direitos humanos, como os do trabalho,
das crianças, das mulheres etc. Visualizamos essa preocupação na
seguinte afirmativa da OIT: “[...] existem condições de trabalho que
implicam, para grande número de indivíduos, miséria e privações,
e que o descontentamento que daí decorre põe em perigo a paz e a
harmonia universais [...]” (OIT, 2008).
Sendo o Brasil um dos países membros da OIT e tendo
assinado diversas Convenções, de que modo linhas de forças que
482 | Psicologia e contextos rurais

operam a construção desses documentos produzem ressonâncias


em esfera nacional?

A repercussão desse tema no Brasil


Tendo como esfera as relações de trabalho, as linhas de força
que operam na construção desses documentos produzem, por sua
vez, práticas que irão regular as manifestações dos elementos cons-
tituintes dos acontecimentos em questão. Para tanto,

[...] dados são levantados pelas agências internacionais


como prova de que existe um problema sério, no Brasil,
em relação ao “trabalho forçado”, de sorte que afirmam
existir urgência em enfrentá-lo, por meio de medidas
que deveriam ser criadas pelo país. Portanto, o Brasil,
enquanto um país membro da OIT deve permitir que
considerações sejam suscitadas por essa agência e que
os seus assessores nos auxiliem a produzir planos de ati-
vidades que julgarem pertinentes ao enfrentamento de
tais práticas de “trabalho forçado”. (Gomes, p. 99, 2011).

Por meio de um site oficial, essa agência armazena e difunde


algumas cartilhas sobre trabalho, divulga campanhas sobre a erra-
dicação do trabalho forçado, trabalho infantil, reuniões, con-
venções, artigos e documentos diversos, bem como vídeos sobre
assuntos relacionados ao trabalho em geral.
Embora tenhamos relatado que o trabalho forçado começou
a ser objeto de preocupação em 1930, ele só veio ganhar evidência
após o ano 2000, ao serem divulgados três relatórios sobre a situ-
ação dessa prática, em todo o mundo, com o intuito de incentivar
ações que a combata e previna.
No caso estudado do Brasil, vamos encontrar na literatura
uma rede tecida entre movimentos sociais ligados aos direitos
humanos e setores da Igreja Católica, tais como a Comissão Pastoral
Psicologia e contextos rurais | 483

da Terra, a qual vai invocar essa entrada da OIT na discussão dos


casos identificados como de trabalho forçado.
Nesse sentido, temos com Carvalho (2008) um panorama
histórico de como esse tema começou a ser discutido no país. De
acordo com esse autor, foi em meio à Ditadura Militar brasileira que
algumas denúncias acerca dessas práticas começaram a despontar,
mas que não eram levadas a sério pelo Estado, que as tachava de
“invenções da Igreja Católica”, uma vez que as práticas de explo-
ração dos trabalhadores rurais foram nomeadas de “escravidão”,
fazendo sempre referência ao passado escravista brasileiro.
Outro fator que inibia o “aceite” das denúncias se pautava
no episódio de ser o próprio governo militar o maior incentivador
e investidor de grandes empresas agropecuárias e madeireiras, em
geral, a se instalarem na região amazônica, local onde despontavam
as primeiras denúncias (Loureiro & Pinto, 2005; Martins, 1995).
Diante dessa situação, movimentos sociais, sindicatos de
trabalhadores rurais e a Comissão Pastoral da Terra começaram
a denunciar o Brasil em esfera internacional. Conforme Buclet
(2005) foi por meio de uma pequena nota publicada na imprensa
internacional, focalizando o depoimento de trabalhadores rurais
que conseguiram fugir de uma fazenda paraense, que foi permitida
uma visibilidade internacional para esse acontecimento.
A Organização dos Estados Americanos (OEA) é então acio-
nada e ameaça o Estado brasileiro das sanções cabíveis, exigindo
que se investigassem essas práticas e fossem tomados os procedi-
mentos necessários para se solucionar essas questões (Sakamoto
& Mendes, 2009). O Brasil, em decorrência, se compromete a fis-
calizar essas práticas e a criar planos de atuação sobre o problema
denunciado.
Moura (2006) destaca, no entanto, que parece que o Estado
brasileiro só passou a “oficializar” a existência da perpetuação do
trabalho escravo no Brasil em 1985, quando foi criado o Ministério
484 | Psicologia e contextos rurais

do Desenvolvimento e Reforma Agrária como uma resposta às pres-


sões exercidas pela sociedade, sobretudo rural, para que políticas
públicas e ações governamentais fossem voltadas para a população
rural.
Desde esse tempo, um maior número de casos considerados
como de exploração de trabalhadores rurais começou a ganhar mais
destaque na imprensa brasileira, bem como houve a ampliação dos
espaços para discussão do tema. A produção de pesquisas, embora
cresça nas áreas de humanidades e das ciências sociais aplicadas,
ainda é tímida frente à relevância dessa problemática no país.
De acordo com a literatura levantada nesta pesquisa, obser-
vamos que um maior monitoramento dessa forma de violação de
direitos vem ocorrendo e tais práticas começaram a ser notificadas.
E, nas denúncias de tais práticas, há um grande número que foi rea-
lizado em fazendas paraenses, de sorte que, durante muitos anos,
o Estado do Pará foi considerado “líder” em número de denúncias
de trabalho escravo e da reincidência de trabalhadores. Esses indi-
cadores foram reunidos pelas agências ligadas ao Governo Federal,
como o Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério Público do
Trabalho, pela OIT e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), uma
das maiores responsáveis pela produção de material dessa temática
no Brasil.
Esses relatórios e publicações da CPT indicam não só a
ocorrência de práticas de exploração de trabalhadores rurais, mas
também violências cometidas contra militantes e religiosos envol-
vidos nos movimentos sociais que lutam pela posse de terra e pela
preservação do meio ambiente.
Os indicadores juntados foram utilizados pelos organismos
e entidades para dar visibilidade à situação e engendrar reivindi-
cações por políticas públicas na área. Assim, o Relatório Global da
OIT, de 2009, tem como título “O custo da coerção”, ao tratar de
como essas práticas afetam a economia mundial, uma vez que as
Psicologia e contextos rurais | 485

empresas usufruem de um ganho ilícito ao usarem a força de traba-


lho de pessoas em situação de exploração. Além de serem práticas
categorizadas de desonestas pela OIT, violam igualmente os direi-
tos humanos e merecem a atenção dos países e seus governantes.
O mencionado relatório apresenta novas perspectivas sobre
o “trabalho forçado”, em relação ao anterior (do ano de 2005), e
estabelece algumas diferenças em um quadro de novas situações
registradas como trabalho forçado, na atualidade, atinentes à
exploração de trabalhadores e que podem ser inseridas ou julgadas
como práticas de “trabalho forçado”. Essas análises são realizadas
por “peritos” da OIT que estabelecem uma série de nomeações e
classificações empregadas para tentar objetivar as “categorias” ou
“gêneros” de exploração de trabalhadores em uma definição global
de “trabalho forçado”, como o caso brasileiro.
Os militantes e pessoas ligadas à discussão desse tema, de
forma geral, no país, comumente adotam o termo “trabalho escravo”
para se referir a essas práticas. Essa nomeação tem um peso ou um
valor simbólico muito grande, exercendo sobre a sociedade brasi-
leira maior sensibilização por conta de nosso passado escravista,
ainda recente (um pouco mais de cem anos), tornando-se, assim,
uma “expressão” utilizada para rememorar esse passado e pressio-
nar o governo e a sociedade a não esquecê-lo, buscando medidas e
ações que erradiquem todas as formas de exploração de trabalha-
dores. Essa nomeação, por outro lado, ganhou destaque em fun-
ção das semelhanças encontradas no modo como os trabalhadores
rurais brasileiros eram tratados, nas fazendas paraenses.

seguidas vezes, nas fazendas em que os policiais federais


dão batidas, eis que acusadas de emprego de trabalho
escravo, são encontrados vários instrumentos de castigo,
como chicotes, correntes para amarrar os peões para não
fugirem, e outros instrumentos que dão indício da exis-
tência de tortura (russo, 2005, p. 75-76).
486 | Psicologia e contextos rurais

Além dessas, outras características são apontadas pelas


pesquisas:

Em todos os estados houve registros de grupos armados,


efetuando uma vigilância constante e intensiva, com-
posta por capatazes e jagunços contratados por fazen-
deiros e empreiteiros. Esta vigilância implicava em um
cerceamento que reforçava o impedimento dos trabalha-
dores em sair dos locais de trabalho, já imobilizados por
dívida (Mendes, 2002, p. 108).

São elementos, portanto, que se inserem dentro das par-


ticularidades descritas pela OIT quanto a sua definição de tra-
balho forçado:

A definição da OIT de trabalho forçado compreende dois


elementos básicos: o trabalho ou serviço é exigido sob
ameaça de castigo, e é realizado involuntariamente. O
trabalho das entidades de fiscalização da OIT serviu para
esclarecer esses dois elementos. O castigo não tem de ser
realizado na forma de sanções penais, mas também pode
assumir a forma de perda de direitos e privilégios. Além
disso, a ameaça de uma penalização pode assumir mui-
tas formas diferentes. Comprovadamente, a sua forma
mais extrema envolve violência física ou repressão, ou
até mesmo ameaças de morte dirigidas à vítima ou a
seus familiares. Também podem existir formas sutis de
ameaça, por vezes de natureza psicológica. As situações
analisadas pela OIT incluem ameaças de denúncia das
vítimas às autoridades policiais ou de imigração, quando
sua situação laboral é ilegal, ou denúncia aos líderes de
seus povoados, no caso de jovens forçadas a se prosti-
tuírem em cidades distantes. Outras punições podem
assumir um caráter financeiro, incluindo penalizações
econômicas relacionadas com dívidas. Os empregadores
Psicologia e contextos rurais | 487

muitas vezes exigem que os trabalhadores entreguem os


seus documentos de identificação, e podem usar a ame-
aça da confiscação desses documentos para exigir traba-
lho forçado (OIT, 2009, p. 5-6).

Estando em acordo quanto a essas características e suas


semelhanças, o Brasil e a OIT se propõem eliminar tais práticas do
território nacional, usando como sustentação as recomendações
propostas pela OIT. Destacaremos, no próximo tópico, algumas
dessas recomendações que se tornaram tanto práticas concretas de
enfrentamento quanto práticas de controle e subjetivação.

Direcionamentos: a criação de
modalidades distintas de biopolíticas
No domínio internacional, a OIT se configura como uma
gestora das relações de trabalho, função que lhe é atribuída por
diversos países e por si própria, sendo uma mediadora de ações
entre esses países e em suas relações internas, no plano diplomá-
tico. A OIT, ao assumir, por sua vez, o “papel” de investigadora das
práticas de trabalho forçado, formulou como uma das suas princi-
pais atividades estabelecer direcionamentos aos países-membros,
ou seja, orientações políticas, reportando medidas de prevenção
e erradicação do que denominou trabalho forçado, pois essa é a
nomenclatura usada e defendida por esse organismo multilateral.
A OIT orienta que os Estados confeccionem leis ou mudem sua
legislação, a fim de justificar de forma penal as medidas de punição
aos considerados culpados por realizarem tais práticas:

Certamente tem sido dada uma atenção considerável aos


aspectos potencialmente criminais da exploração labo-
ral, pois cada vez mais países têm corrigido suas leis pen-
ais no sentido de reconhecerem o delito do tráfico para
488 | Psicologia e contextos rurais

exploração laboral, e de estabelecer penalizações mais


fortes (OIT, 2009, p. 2).

Esse acontecimento dissemina um “clamor” pela crimina-


lização e consequente punição, contudo, com um efeito de certo
modo restrito, pois essas práticas de exploração se desdobram em
uma variedade de maneiras de trabalho forçado e, nesse caso, a
definição da OIT é insuficiente para abarcar tal multiplicidade.
Levando em consideração que um dos saberes que rege esses dis-
cursos sobre o tema é o do Direito, exige-se que haja uma correta
definição dos termos, para que possa realizar um julgamento mais
“adequado”, com penas correlatas à tipificação criada.
Nessa perspectiva, as definições ganham efeitos de verdade
e são mais aceitas ao permitirem a invenção de mecanismos refina-
dos de controle, como as leis e as normas de saúde e de trabalho.
Nesse panorama, muitos casos de trabalho forçado não são julga-
dos como crimes hediondos, mas, em geral, como irregularidades
trabalhistas (OIT, 2009).
Nos relatórios da OIT, há a citação de práticas classificadas
como exitosas no que denomina de enfrentamento ao trabalho for-
çado, as quais são apresentadas como um exemplo a ser seguido
por outros países, como uma receita a ser replicada, independen-
temente das especificidades das situações de cada realidade local e
em cada contexto dos Estados em que ocorrem.
Em 2009, a OIT lança uma espécie de manual para nortear
os juristas em todo o mundo. Nesse documento, estão contidas
informações e orientações sobre a forma de identificar as práticas
de trabalho forçado. Por meio dessa medida, a OIT vai direcionando
quais devem ser os “experts” que irão intervir sobre o tema como
capazes de exercer as avaliações das situações de trabalho forçado,
apontando os caminhos a serem trilhados para uma aliança global
a propósito do tema. Assim, propõe que todos sejam submetidos a
Psicologia e contextos rurais | 489

uma generalização abstrata de um conceito a respeito de um objeto


supostamente prévio.
São apontados exemplos de Estados que já efetuaram alte-
rações em suas legislações e os efeitos produzidos a partir dessas
ações. O relatório salienta que muitas mudanças já ocorreram nesse
sentido, todavia, as práticas persistem e evidenciam a demanda de
criação de alternativas de eliminação e prevenção, como podemos
visualizar a seguir.

Os inspetores do trabalho podem aplicar um conjunto de


métodos de pesquisa que não se encontram disponíveis
em outras autoridades de execução da lei. Por exemplo,
têm o direito de entrar livremente em qualquer local de
trabalho sujeito a inspeção, a qualquer momento e sem
aviso prévio. Devem investigar qualquer queixa relativa
a violações da lei laboral, sem revelar sua origem. Podem
aplicar um vasto conjunto de ferramentas de forma arbi-
trária e flexível, como a emissão de notificações antes de
iniciar a instauração do processo contra um empregador,
ou encerrar a produção no caso de perigo iminente para
a saúde e segurança dos trabalhadores. Assim, os ins-
petores do trabalho podem usufruir de uma vantagem
no combate a questões relacionadas com o trabalho for-
çado, em comparação com outras agências de cumpri-
mento da lei, cujos mandatos são muito diferentes e, por
vezes, muito limitados (OIT, 2009, p. 47).

Nesse extrato do Relatório 2009 da OIT, há a apresentação


de uma maneira de lidar com determinadas medidas que propõem
diferentes operacionalizações de estratégias de biopoder, no âmbito
da relação, da vida, do trabalho e da linguagem. Caracteriza o que
Foucault descreve como diversas manifestações da gestão do poder
ramificado em variadas linhas de força e direções sem linearidade,
490 | Psicologia e contextos rurais

ampliando a intervenção tanto no corpo individual quanto no cole-


tivo (Foucault, 2008a).
No que concerne às medidas de prevenção, cita-se a elabora-
ção de medidas de proteção social ao trabalhador, buscando abran-
ger, sobretudo, os que são considerados e classificados em situação
de risco, como os desempregados e com poucos anos de escolariza-
ção, que seriam mais propícios a aceitar as propostas desdobradas
em trabalho forçado ou tráfico de pessoas, segundo a OIT. Algumas
dessas medidas indicadas pelo Relatório 2009 são: criação de novos
postos de trabalho; aumento de fiscalização a ser realizada pelas
agências de recrutamento de trabalhadores e pelos governos locais;
fiscalização das redes de fornecimento das empresas; fiscalização
para a contratação de trabalho formal e contribuição na redução da
pobreza, a partir da articulação entre diferentes ministérios.
Essas medidas sugerem a regulamentação do trabalho em
todas as suas esferas e criticam a flexibilidade encontrada em rela-
ção às leis trabalhistas e à impossibilidade de fiscalização de traba-
lhos na condição de informalidade, o que gera constantes processos
de desregulamentação do trabalho. Quer dizer, solicita-se que as
relações de trabalho estejam sempre supervisionadas e vigiadas por
uma legislação.
Entretanto, essa vigilância pode se estender do Estado para
outros grupos sociais, como os sindicatos. O relatório traz diver-
sas passagens convidando os sindicatos de trabalhadores a mudar
suas concepções e posturas, no que tange as relações de trabalho2,
especialmente as informais, em uma tentativa de ampliar os direi-
tos trabalhistas a todos, já que muitas vezes os desempregados são

2 “Os sindicatos de todo o mundo estão cada vez mais conscientes de que preci-
sam ampliar suas atividades a fim de defender os direitos dos trabalhadores do
setor informal e dos desprotegidos, incluindo os trabalhadores migrantes em
situação regular ou irregular” (OIT, 2009, p. 53).
Psicologia e contextos rurais | 491

excluídos desse processo por serem considerados culpados por


estar desempregados.
Acerca desse tema, Lazzarato (2006) argumenta, de
maneira mais crítica, que a “parceria” crescente entre sindicatos
e empresas não significa necessariamente uma real preocupação
com a ampliação e garantia dos direitos dos trabalhadores, mas
um arranjo encontrado entre ambos os grupos para proteger seus
interesses. Portanto, cada caso deve ser cuidadosamente analisado.
Porém, encontramos considerações direcionadas às empresas pri-
vadas. São recomendações sobre suas práticas e organização para
que entrem como parceiras nessa rede criada contra a exploração
de trabalhadores, que, por sua vez, também cobram da OIT e dos
governos que as “auxiliem” na identificação de tais práticas e na
criação de leis que avaliam como “claras” e que ofereçam suporte às
empresas, na contratação.
Essa preocupação é apresentada como uma referência para
as empresas que pretendem ser consideradas “socialmente respon-
sáveis”. O título de “responsável socialmente” funciona para muitas
empresas como um marketing a ser cultivado, principalmente na
atualidade, em que os fluxos das informações são intensivos, e o
fato de a empresa ter sua marca vinculada ao uso de trabalho for-
çado ou escravo não lhe traz vantagens diante dos clientes e espe-
cialmente investidores. Vale ressaltar como algumas mídias têm
desempenhado um papel relevante nesses últimos anos quanto à
divulgação das práticas de trabalho forçado. Os nomes das empre-
sas e dos empregadores que estão na lista de denúncia do uso do
trabalho forçado são publicadas, pelas mídias, produzindo reper-
cussão na imagem das empresas.
Em análise dos relatos extraídos dos documentos da OIT
estudados para esta pesquisa, é possível afirmar que há impactos
nas políticas de enfrentamento geradas pelo governo brasileiro.
Em primeiro lugar, podemos citar os dois Planos Nacionais de
492 | Psicologia e contextos rurais

Erradicação ao Trabalho Escravo, os quais estabelecem uma série


de medidas a serem tomadas por diversos setores da sociedade,
tanto da esfera governamental quanto dos movimentos sociais,
entidades, grupos de pesquisas de universidades etc. São delegadas
determinadas funções a cada setor e prazo para cumprimento das
medidas.
Podemos ressaltar que a pressão exercida por parte dos
movimentos sociais e a CPT tem propiciado a visibilidade desse
tema, nas esferas nacionais e internacionais. Caso o Estado brasi-
leiro descumpra diretrizes da OIT ou minimize a sua preocupação,
poderá sofrer sanções. E se o Brasil não aceitar as recomendações
feitas por esse organismo, em face do trabalho forçado, e negligen-
ciar as denúncias realizadas, sofrerá um desgaste político e econô-
mico, o que opera como uma pressão permanente da OIT sobre o
país.
Ao agenciarmos os direcionamentos da OIT com as propos-
tas dos movimentos sociais e de direitos humanos no Brasil, perce-
bemos que este tem conseguido que suas ações ganhem destaque
entre outros países. No relatório de 2009 da OIT, há uma declara-
ção de elogios de diversos países às ações concretizadas no Brasil,
diante do trabalho forçado. Em 2010, foi publicado outro relatório
pela OIT, tratando somente dos casos brasileiros e de suas práticas
de erradicação: “Combatendo o trabalho escravo contemporâneo:
o exemplo do Brasil”.
Comparando esses documentos, vamos encontrar muitas
semelhanças nos discursos que os compõem, principalmente no
que tange a criminalização dessas práticas de trabalho escravo/for-
çado e dos mecanismos que devem ser criados, com o objetivo de
eliminar tais práticas e de se promover a sua prevenção. Para tanto,
julga-se necessário um planejamento técnico capaz de envolver o
estudo das situações encontradas, o perfil econômico e social das
Psicologia e contextos rurais | 493

pessoas envolvidas, a sua distribuição em território nacional, a


quantidade de casos registrados etc.
Um planejamento técnico como esse pode funcionar,
segundo Foucault (2008b), como um dispositivo de segurança por
parte dos governantes, já que o planejamento técnico está dire-
tamente associado com uma preocupação com o futuro, que não
necessariamente é uma preocupação capital com a eliminação ou
a extinção de um determinado evento, mas uma busca de regular
suas variações.
Esse planejamento técnico é baseado, sobretudo, em esta-
tísticas, o que justifica a frequente solicitação da OIT da divulga-
ção dos “dados”. Enquanto esses indicadores não são monitorados
pelo país, este não pode acompanhar e atuar com efetividade polí-
tica nas intervenções sobre o trabalho forçado, de acordo com esse
organismo multilateral.
A ação do Estado Brasileiro tem se materializado em forma
de repressão e opera mais destaque com as ações do Grupo Móvel de
Fiscalização do Governo Federal e no setor jurídico, procurando a
criação e a adequação de leis que possam punir mais “eficazmente”
os considerados criminosos. A OIT, atuando como gestora global e
incentivadora dessa complexa rede, torna-se uma “parceira” desses
setores e garante o cumprimento dos acordos internacionais, tra-
balhando nos interstícios das particularidades brasileiras, já que
não se tem um tribunal internacional para julgar e punir de fato as
práticas de trabalho escravo, embora se observe um empenho em
normalizar, em âmbito mundial, essas práticas como crime. Logo,
enfatiza o documento:

Em sintonia com as particularidades e necessidades


brasileiras para o enfrentamento da questão, o Projeto
de Cooperação Técnica “Combate ao Trabalho Escravo
no Brasil”, desenvolvido pela OIT, desde abril de 2002,
tem buscado fortalecer a articulação das instituições
494 | Psicologia e contextos rurais

nacionais parceiras (governamentais e não governa-


mentais) que defendem os direitos humanos, além de
contribuir para a prevenção do trabalho escravo e a rea-
bilitação de trabalhadores resgatados, de modo a evitar
o seu retorno às condições de trabalho análogas à escra-
vidão. A OIT-Brasil, desse modo, atua em uma lógica
complementar ao governo brasileiro, que centra esforços
nos mecanismos de repressão do trabalho escravo (OIT,
2010, p. 126).

Sob a perspectiva de Foucault, todas essas ações podem ser


encaradas como estratégias políticas de normalização da popula-
ção, buscando controlar seus desvios, especificando as ameaças e
perigos decorrentes. No entanto, por que falar em ameaça e perigo
nesse tema, nessa situação? Por que, a partir do momento em que
esse tema começa a ser mundializado, é criada uma aliança glo-
bal visando à garantia dos direitos, a universalização de “boas-
-práticas”? Como são subjetivados esses trabalhadores que são
alvo da intervenção da OIT, dos Estados e de movimentos sociais?
Trabalhadores rurais, explorados, vítimas de engodo, desprovidos
de educação e renda etc. O que é que se deseja que seja identifi-
cado? Essa é uma preocupação colocada pelos dispositivos de segu-
rança que organizam e planejam esse acontecimento como um
meio a se interferir.
Nesse sentido, a OIT vem trabalhando na elaboração de
propostas específicas para a construção de planos de ações para os
próximos quatros anos, visto que se autointitula como liderança
global, ocupando, portanto, um lugar de saber-poder em que opera
determinados regimes de verdades, por meio de diferentes tecno-
logias de poder.
Psicologia e contextos rurais | 495

Referências
Buclet, B. (2005). Entre tecnologia e escravidão: a aventura da Volkswagen na
Amazônia. Revista do Programa de Pós-graduação em Serviço Social
da PUC-Rio: O Social em Questão, n° 13, primeiro semestre.

Carvalho, J. M. (2008). Cidadania no Brasil: o longo caminho. (10a ed.) Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira.

Diagnóstico Dos Direitos Humanos no Estado Pará (2007). Universidade


Federal do Pará.

Foucault, M. (2006). A vida dos homens infames. In M. B. da Mota (Org.),


Estratégia, poder, saber. (2a ed.). Rio de Janeiro: Forense Universitária,
(Ditos e Escritos Vol. IV).

Foucault, M. (2008a). Genealogia e poder. In Microfísica do poder. (25a ed., R.


Machado, Org. e Trad.). Rio de Janeiro: Graal.

Foucault, M. (2008b). Segurança, Território e População. (E. Brandão, Trad.).


São Paulo: Martins Fontes.

Foucault, M. (2008c). A Arqueologia do Saber. (7a ed., L. F. B. Neves, Trad.).


Rio de Janeiro: Forense Universitária.

Gomes, G. S. L. G. (2011). Análise de documentos que compõem as noções


acerca das práticas de “exploração de trabalhadores rurais”: um estudo
genealógico. Dissertação de Mestrado em Psicologia, Universidade
Federal do Pará, Belém, PA.

Lazzarato, M. (2006). As revoluções do capitalismo: a política no Império. Rio


de Janeiro: Civilização Brasileira.

Le Goff, J. (2003). História e memória. Campinas: UNICAMP.


496 | Psicologia e contextos rurais

Loreiro, V. R. & Pinto, J. N. A. (2005). A questão fundiária na Amazônia:


algumas fontes para a compreensão do problema atual. Estudos
avançados, 19 (54), São Paulo.

Martins, J. S. (1995). A reprodução do capital na frente pioneira e o


renascimento da escravidão. Tempo Social; Revista de Sociologia. USP,
SP, 6 (1-2): 1-25.

Mendes, A. G. (2002). Trabalho escravo contemporâneo no Brasil: interpretando


problemas de dominação e de resistência. Dissertação de Mestrado em
Extensão Rural, Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, MG.

Moura, F. A. (2006). Escravos da precisão: economia familiar e estratégias


de sobrevivência de trabalhadores rurais em Codó (MA). Dissertação
de Mestrado. Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais,
Universidade Federal do Maranhão, São Luís.

Organização Internacional do Trabalho. (1944). Constituição da Organização


Internacional do Trabalho e seu anexo. Recuperado em outubro, 2008,
de http://www.oitbrasil.org.br/inst/fund/docs/index.php.

Organização Internacional do Trabalho. (1930). Convenção 29 sobre o trabalho


forçado ou obrigatório. Recuperado em outubro, 2008, de http://www.
oitbrasil.org.br/inst/fund/docs/index.php.

Organização Internacional do Trabalho. (1957). Convenção 105 relativa a


abolição do trabalho forçado. Recuperado em outubro, 2008, de http://
www.oitbrasil.org.br/inst/fund/docs/index.php.

Organização Internacional do Trabalho. (2009). O custo da coerção. Relatório


Global no seguimento da Declaração da OIT sobre os Direitos e
Princípios Fundamentais do Trabalho. Recuperado em março, 2009,
de http://www.oitbrasil.org.br/inst/fund/docs/index.php.
Psicologia e contextos rurais | 497

Organização Internacional do Trabalho (2010). Combatendo o trabalho


escravo contemporâneo: o exemplo do Brasil. (Patrícia Trindade
Maranhão Costa, Org.). Brasília: ILO.

Russo, A. M. V. (2005). Os direitos humanos e a escravidão por dívida do


trabalhador brasileiro. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-
graduação em Direito. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São
Leopoldo, Rio Grande do Sul, RS.

Sakamoto, L. & Mendes, M. M. (2009). Combate ao trabalho escravo: como


plantar uma floresta de direitos humanos. Revista Direitos Humanos.
Brasília, n° 2, junho.
Sobre os autores

Ana Luisa Teixeira de Menezes possui graduação em Psicologia


pela Universidade Federal do Ceará (UFC), mestrado em Psicologia
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUC-RS) e doutorado em Educação pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é pró-reitora de Extensão
e Relações Comunitárias da Universidade de Santa Cruz do Sul
(UNISC) e professora titular do Departamento de Psicologia e pro-
fessora colaboradora do mestrado em Educação (UNISC). Tem pes-
quisas na área de Psicologia e Educação, atuando principalmente
nos seguintes temas: educação guarani, Psicologia Comunitária e
Educação Biocêntrica.
E-mail: luisa@unisc.br

Bader Burihan Sawaia possui graduação em Ciências Sociais, mes-


trado e doutorado em Psicologia Social pela PUC-SP. Atualmente
é professora titular da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP) e colaboradora da Universidade de São Paulo –
Instituto de Estudos Avançados – IEA/USP. É parecerista ad hoc do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.
Email: badbusaw@pucsp.br
500 | Psicologia e contextos rurais

Candida Maria Bezerra Dantas possui graduação (2003) e mes-


trado (2007) em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (UFRN). Doutoranda do programa de pós-graduação em
Psicologia (UFRN), atualmente é docente do curso de Psicologia da
Universidade Potiguar (UnP). Possui experiência acadêmica e em
pesquisa em Psicologia com ênfase nos seguintes temas: Psicologia
Social, políticas sociais, formação e atuação do psicólogo e história
da Psicologia.
E-mail: candida.dantas@gmail.com.

Daniela Dias Furlani possui graduação (2004) em Psicologia


pela Universidade de Fortaleza (Unifor) e mestrado em Psicologia
(2007) pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Aluna de douto-
rado do curso de pós-graduação em Educação Brasileira (UFC). Tem
experiência na área de Psicologia, com ênfase em Desenvolvimento
Humano e Psicologia Social e Educação.
E-mail: furlanidaniela@gmail.com

Eveline Favero é doutora em Psicologia (UFRGS) com está-


gio de doutorado no grupo de pesquisa em Psicologia dos
desastres (University of California Santa Barbara). Membro
da International Society for Traumatic Stress Studies (ISTSS), pes-
quisadora do Centro de Estudos e Pesquisas sobre Desastres da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CEPED/RS) e dos gru-
pos de pesquisa em Psicologia Comunitária (GPPC) e Gestão de
Riscos e Desastres (GRID) da UFRGS.
E-mail: evelinefavero@yahoo.com.br

Fabiana de Andrade Campos é psicóloga, mestre em Psicologia


Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), douto-
randa em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP). Atualmente é professora de Psicologia e
Políticas Públicas na Pontifícia Universidade Católica de Minas
Psicologia e contextos rurais | 501

Gerais (PUC/MG). Estuda e acompanha o Movimento dos


Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) desde 2001. Participa de
estudos sobre Psicologia Sócio-Histórica e tem interesse nas práti-
cas da Psicologia da Libertação.
Email: fabiana.andrade.campos@gmail.com

Flávia Cristina Silveira Lemos é professora adjunta em Psicologia


Social na Universidade Fernando Pessoa (UFP). Psicóloga, mestre
em Psicologia Social e doutora em História pela UNESP/Assis/SP.
Coordenadora do PPGP/UFPA.
E-mail: flaviacristinasilveiralemos@yahoo.com.br

Flávia Palmeira de Oliveira é estudante do curso de graduação


em Psicologia da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Área
de interesse: Psicologia Social Comunitária, Psicologia Clínica.
E-mail: flaviapalmeir@hotmail.com

Francielli Galli é psicóloga, mestranda em Psicologia na


Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e
Especializanda em Terapia de Família (DOMUS). Experiência em
psicologia clínica e comunitária. Membro do Grupo de Pesquisa em
Psicologia Comunitária (UFRGS).
E-mail: francigalli@gmail.com

Geise do Socorro Lima Gomes é psicóloga e mestre em Psicologia


pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Foi bolsista Capes
(Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior).
Atua como docente no ensino superior privado e como psicóloga
em CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) e CREAS
(Centro de Referência Especializado de Assistência Social).
E-mail: geisepsi@yahoo.com.br
502 | Psicologia e contextos rurais

Henrique Caetano Nardi é professor do Programa de Pós-graduação


e do Departamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Possui doutorado em Sociologia
(UFRGS) e pós-doutorado pela Ecole des Hautes Etudes en Sciences
Sociales (EHESS) de Paris. É bolsista de produtividade em pesquisa do
CNPq e pesquisador associado do IRIS-EHESS-Paris. Coordena o
Núcleo de Pesquisa em Relações de Gênero e Sexualidade (Nupsex –
www.nupsex.org) e o Centro de Referência em Direitos Humanos:
Diversidade Sexual e Relações de Gênero, ambos sediados na UFRGS.
Principais temas de interesse: diversidade sexual, subjetividade, relações
de gênero, preconceito, ética, políticas públicas de saúde e educação.
E-mail: hcnardi@gmail.com

Iara Cristine Rodrigues Leal Lima é estudante do curso de gra-


duação em Psicologia da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).
Realiza estágio supervisionado no Centro de Atenção Psicossocial
(CAPS III – Campina Grande) na área de Psicologia Social
Comunitária. Área de interesse: Psicologia Social Comunitária.
E-mail: iaracristinelima@gmail.com

Jacqueline Ramos Loureiro Marinho é graduada em Psicologia


pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Realizou está-
gio supervisionado no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS III
– Campina Grande) na área de Psicologia Social Comunitária.
Especialista em Saúde Pública pela Fundação Universitária de
Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extensão (FURNE). Psicóloga do
Programa Residência Integrada Multiprofissional em Saúde –
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Área de
interesse: Psicologia Social Comunitária.
E-mail: jacque_loureiro@hotmail.com

Jáder Ferreira Leite é psicólogo pela Universidade Estadual da


Paraíba (UEPB), mestre em Psicologia pela Universidade Federal do
Psicologia e contextos rurais | 503

Rio Grande do Norte (UFRN) e doutor em Psicologia Social (UFRN).


É professor adjunto do departamento de Psicologia e do Programa
de Pós-graduação em Psicologia da UFRN. Principais temas e áreas
de interesse: relações de gênero, movimentos sociais e produção de
subjetividade, Psicologia Comunitária e contextos rurais.
E-mail: jaderfleite@gmail.com

James Ferreira Moura Jr. é graduado em Psicologia pela


Universidade Federal do Ceará (UFC), mestre em Psicologia
(UFC) e doutorando em Psicologia pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS). Integrante do Grupo de Pesquisa em
Psicologia Comunitária (GPPC/UFRGS) e Colaborador do Núcleo
de Psicologia Comunitária (NUCOM/UFC). Principais temas e
áreas de interesse: pobreza, Psicologia Comunitária, saúde comu-
nitária, comunidades rurais e extensão universitária.
E-mail: jamesferreirajr@gmail.com

João Carlos Alchieri é professor associado e bolsista produtivi-


dade (CNPq) na Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN) onde atua como orientador de mestrado e doutorado, no
PPG Psicologia e no PPG Ciências da Saúde. Coordenador do GT
Processos Avaliativos em Psicologia (ANPPEP) e coordenador e tutor
de projeto na Univesidad Nacional del Mar del Plata no Programa
Centros Associados para o Fortalecimento da Pós-graduação Brasil/
Argentina e Movilidad Académica para la Integración (MAPI). Red
de Facultades de Psicología del MERCOSUR.
E-mail: jcalchieri@gmail.com

João Paulo Sales Macedo é professor adjunto do Departamento de


Psicologia da Universidade Federal do Piauí (UFPI), no campus Parnaíba.
Possui mestrado e doutorado em Psicologia pela Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN). Principais temas e áreas de interesse:
saúde coletiva, saúde mental e formação de psicólogo.
E-mail: jpmacedo@ufpi.edu.br
504 | Psicologia e contextos rurais

Joaquim A. Costa Borges é médico psiquiatra. Diretor do Centro


de Respostas Integradas de Coimbra do I. D. T., I. P.
E-mail: joaquim.borges@idt.min-saude.pt

Jorge Castellá Sarriera é doutor em Psicologia, professor do


Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS), pesquisador 1A do CNPq. Coordenador do Grupo
de Trabalho em Saúde Comunitária da Associação Nacional de
Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP) e coordenador
do Grupo de Pesquisa em Psicologia Comunitária (GPPC/UFRGS).
E-mail: jorgesarriera@gmail.com

Karla Patricia Martins Ferreira é graduada em Psicologia (UFC,


2003), mestre (2006) em Psicologia pela Universidade Federal
do Ceará (UFC), mestre (2006) em Psicologia (UFC) e doutora
em Educação (UFC), com doutorado sanduiche na Université de
Nantes – França (2011). Tem experiência nas áreas de Psicologia,
educação e saúde, com ênfase em Psicologia Fenomenológico-
Existencial, Psicologia Ambiental, Psicologia Social, Psicologia da
Educação, Educação Ambiental e Educação Popular.
E-mail: karlaferreirapsi@gmail.com

Leonardo Cavalcante de Araújo Mello é graduado em Psicologia


(2006) pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
e mestre (2010) em Psicologia (UFRN). Tem experiência na área
de Psicologia Social com atuação nos temas Psicologia e Direitos
Humanos, Psicologia e Movimentos Sociais e Psicologia e Políticas
Sociais. Atualmente é docente da Universidade Federal de Campina
Grande (UFCG), atuando no Centro de Educação e Saúde.
E-mail: leo.melloufrn@gmail.com

Lucélia de Almeida Andrade é concluinte do curso de gradua-


ção em Psicologia da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).
Psicologia e contextos rurais | 505

Realizou estágio supervisionado no Centro de Atenção Psicossocial


(CAPS III – Campina Grande) na área de Psicologia Social
Comunitária. Área de interesse: Psicologia Social Comunitária.
E-mail: almeidaandrade.luca@gmail.com

Magda Dimenstein é professora titular do Departamento


de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN). Membro do Programa de Pós-graduação em
Psicologia (UFRN). Doutorado em Ciências da Saúde pelo IPUB/
UFRJ e pós-doutorado em Saúde Mental pela Universidad Alcalá
de Henares – Espanha. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do
CNPq – Nível 1. Principais temas e áreas de interesse: saúde mental
e Atenção Primária.
E-mail: magda@ufrnet.br

Marco Aurélio Máximo Prado é doutor em Psicologia Social pela


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor
do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). Coordenador do Núcleo de
Direitos Humanos e Cidadania LGBT (UFMG) e pesquisador junto
ao Núcleo de Psicologia Política (UFMG). Bolsista CNPq e Fapemig.
Temas de interesses: sexualidades e política, participação social e
juventudes, teoria política e subjetividades.
E-mail: mamprado@gmail.com

Melina Carvalho Trindade é psicóloga, especializanda em


Terapia de Família (DOMUS) e Terapia Cognitivo-Comportamental
(WP). Desenvolve pesquisas no âmbito da Psicologia Comunitária
e de desastres. Membro do Grupo de Pesquisa em Psicologia
Comunitária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS).
Email: melctrindade@hotmail.com
506 | Psicologia e contextos rurais

Nathália Nunes e Araújo é graduada em Psicologia pela


Universidade Potiguar (UnP), estagiária no campo da Saúde
Mental, atuando na perspectiva da desinstitucionalização com
residentes de hospital psiquiátrico na cidade de Natal-RN.
E-mail: nathalia.psic@gmail.com

Neuza Maria de Fátima Guareschi é professora/pesquisadora do


Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS), coordenadora do grupo de pesquisa
Estudos Culturais e Modos de Subjetivação e do Núcleo e-politcs.
E-mail: nmguares@gmail.com

Omar Alejandro Bravo é professor do Departamento de Estudios


Psicológicos da Universidade Icesi, de Cali, Colombia. Mestre e dou-
tor em Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB). Principais
temas e áreas de interesse: saúde mental e população carcerária;
construção de memória e sentido em familiares de desaparecidos
na Colômbia.
E-mail: omarlakd@gmail.com

Otacílio de Oliveira Jr. é mestre em Psicologia pela Universidade


Federal de Minas Gerais (UFMG) e doutorando em Psicologia
(UFMG). Pesquisador junto ao núcleo de Psicologia Política do
Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG). Temas de interesse: juventudes em dife-
rentes contextos, participação social e políticas públicas.
E-mail: otaciliodeoliveira@gmail.com

Priscila Pavan Detoni é mestre e doutoranda pelo Programa


de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS). É pesquisa-
dora do Núcleo de Pesquisa em Relações de Gênero e Sexualidade
(Nupsex –www.nupsex.org) e membro da equipe do Centro de
Psicologia e contextos rurais | 507

Referência em Direitos Humanos: Diversidade Sexual e Relações de


Gênero, ambos sediados na UFRGS. Principais temas de interesse:
Psicologia Social, políticas públicas, direitos humanos, saúde
do/a trabalhador/a, estudos das relações de gênero e sexualidade.
E-mail: ppavandetoni@gmail.com

Rafael de Albuquerque Figueiró é psicólogo, mestre em


Psicologia, doutorando em Psicologia Social pelo Programa de Pós-
graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (UFRN), professor do curso de Psicologia da Universidade
Potiguar (UnP), coordenador do Grupo de Pesquisa Subjetividade
e Movimentos Sociais.
E-mail: figueiroz@hotmail.com

Rebeca da Rocha Siqueira Nepomuceno é graduada em


Psicologia pela Universidade Potiguar (UnP), estagiária no campo
da saúde mental, com foco em usuários de álcool e outras drogas,
atuando em hospital psiquiátrico na cidade de Natal-RN.
E-mail: rebecanepomucenorn@gmail.com

Thelma Maria Grisi Velôso é psicóloga, professora do


Departamento de Psicologia da Universidade Estadual da Paraíba
(UEPB) e professora do mestrado em Serviço Social da Universidade
Estadual da Paraíba (UEPB). Doutora em Sociologia. Área de inte-
resse: Psicologia Social. Temas de investigação: Saúde mental;
posições identitárias; construções discursivas. Área de interven-
ção: Psicologia Social Comunitária.
E-mail: thelma.veloso@ig.com.br

Verônica Morais Ximenes é professora do Programa de Pós-


graduação em Psicologia e do Departamento de Psicologia da
Universidade Federal do Ceará (UFC). Doutorado em Psicologia
– Universidade de Barcelona e Pós-doutorado em Psicologia na
508 | Psicologia e contextos rurais

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista de


produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 2. Coordenadora
do Núcleo de Psicologia Comunitária (NUCOM/UFC). Principais
temas e áreas de interesse: Psicologia Comunitária, pobreza, saúde
comunitária e políticas públicas.
E-mail: vemorais@yahoo.com.br

Yldry Souza Ramos Queiroz Pessoa é graduada em Psicologia


(UEPB) e mestre em Saúde Coletiva (UEPB). Doutoranda em
Psicologia (UFRN). Coordenadora do Curso de Psicologia da
Faculdade Maurício de Nassau em Campina Grande-PB.
E-mail: yldry.souzaramos@gmail.com

Zuleika Köhler Gonzales é mestre em Psicologia Social pelo


Programa de Pós-graduação em Psicologia pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), doutoranda
em Psicologia Social e Institucional Programa de Pós-graduação em
Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
E-mail: zuleika3012@yahoo.com.br

Zulmira Áurea Cruz Bonfim possui graduação em Psicologia


pela Universidade Federal do Ceará/UFC (1985), mestrado em
Psicologia Social e da Personalidade (1990) pela Universidade
de Brasília (UnB) e doutorado em Psicologia Social (2003) pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É espe-
cialista em intervenção socioambiental e pesquisadora em Espaço
Público e Regeneração Urbana pela Universidade de Barcelona
no ano de 2001. Atualmente é professora adjunta da Universidade
Federal do Ceará (UFC). Tem experiência na área de Psicologia
Social e Psicologia Ambiental, atuando principalmente nos seguin-
tes temas: Psicologia Social Comunitária, Psicologia Ambiental e
afetividade. Coordena o Laboratório de Pesquisa em Psicologia
ambiental – LOCUS.
E-mail: zulaurea@uol.com.br

Você também pode gostar