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Filosofia, Política e História: observações acerca de sua relação no ensino de

Filosofia

Anita Helena Schlesener1

“Tudo é política, também a filosofia ou as filosofias e a única ‘filosofia’ é a


história em ato, isto é, é a própria vida; neste sentido se pode interpretar a
tese do proletariado alemão como herdeiro da filosofia clássica alemã”
(GRRAMSCI, 1977, p. 886).

Esse trabalho pretende retomar alguns aspectos da relação entre filosofia,


política e historia, a fim de efetuar algumas considerações sobre a necessidade dessa
relação no contexto do ensino da filosofia. A base teórico-metodológica para essa
reflexão são os escritos de Gramsci, apoio para explicitar a importância do ensino da
filosofia na formação de um pensamento coerente e crítico. Parte-se ainda do
pressuposto que não existe uma filosofia, mas filosofias e escolhemos sempre uma
delas. A importância de uma filosofia pode ser avaliada tanto pelo seu conteúdo
inserido em um contexto histórico quanto pelas possibilidades de análise que ela
promove a partir de suas proposições conceituais e metodológicas.
Salientamos inicialmente o significado da educação como um processo de
formação do homem para a vida em sociedade. Por educação entende-se a orientação
que nasce de uma determinada visão de mundo e de sociedade e uma concepção de
homem, que resultam em uma determinada exigência de formação continuada e que
constituem, no dizer de Saviani, o campo da filosofia da Educação (SAVIANI, 2010,
p.6). Toda filosofia porta uma ontologia e uma antropologia, em torno das quais se
define o que é educação. A educação do individuo tem um caráter social impresso
pela comunidade e que orienta a ação e o comportamento, na assimilação das normas
e leis que unem a sociedade em torno de determinados objetivos.
Compreender a relação entre filosofia, política e história exige que se retome
alguns aspectos da formação da sociedade moderna a fim de esclarecer como se
constrói a sociabilidade atual e qual a importância do ensino da filosofia ou das
filosofias historicamente elaboradas. As mudanças ocorridas a partir do século XIII a

1
Professora de Filosofia Política da UFPR (aposentada) e Professora do Mestrado e Doutorado em
Educação da UniversidadeTuiuti do Paraná. Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre
Ensino de Filosofia e Educação Filosófica (NESEF/UFPR).
partir do desenvolvimento da economia manufatureira e do comércio, que se
consolidam na nova estrutura social e na economia de mercado nos séculos XVI e
XVII, constituem a base das formulações modernas da relação entre filosofia e
história, principalmente na elaboração da dialética materialista.
A acumulação e a concentração de riquezas, que são a base da produção
capitalista, foram acompanhadas por uma redefinição das esferas do poder e das
práticas morais e religiosas e geraram uma pluralidade de valores que levaram a
modificar padrões de comportamento; com a mudança das estruturas econômicas e
sociais, aliadas às novas descobertas geográficas e científicas2, os homens passaram a
conceber o mundo e a vida de forma diferente: o que era entendido como uma
realidade inquestionável, passou a apresentar-se como um limite que era preciso
romper para seguir adiante; os critérios da revelação divina e da autoridade religiosa
já não serviam mais para explicar os fenômenos naturais ou para orientar as decisões
éticas ou políticas; o homem passou a ser valorizado em sua vida ativa, exaltado em
sua grandeza e capacidade de conquista; a razão tornou-se o instrumento de
conhecimento da natureza, para a sua transformação e dominação.
Todas essas mudanças acarretaram conflitos profundos pois significavam a perda
do poder e da hegemonia por parte da Igreja e a derrocada de uma ordem econômica e
social que predominou durante séculos. Muitos dos intelectuais que ousaram inovar e
anunciaram esses novos tempos foram executados ou perseguidos. Ao lado do
Renascimento, a Reforma Protestante, o Calvinismo, a guerra de independência
holandesa, a derrota da "Invencível" Armada espanhola, a grande expansão
econômica inglesa no período isabelino culminando na Revolução Gloriosa e, por
fim, a Revolução Francesa, foram os momentos marcantes desse processo.
Aos poucos, no decorrer dos séculos XVIII e XIX, elabora-se um novo conceito de
dialética, base para uma nova interpretação da história e da política na sociedade
contemporânea. Para explicitá-lo, precisamos recordar o caminho da filosofia nesse
período de transição, principalmente dois momentos que engendraram as condições
para o surgimento da dialética moderna: o Iluminismo francês e o Idealismo alemão.

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Conforme o escrito de Hobsbawm (1982, p. 42-4), por volta de 1780 a urbanização se formava a
passos lentos e cerca de 90% da população geral da Europa ainda era rural. Grandes cidades como
Londres e Paris tinham em torno de um milhão de habitantes. Encontravam-se cerca de vinte outras
com 100 mil habitantes espalhadas pela Europa. A revolução industrial exigiu tanto uma reforma
agrária quanto gerou a explosão demográfica urbana tornando-se o momento de emancipação do poder
produtivo das sociedades, a partir da inserção da ciência e da técnica.
O século XVIII foi denominado pelos próprios intelectuais da época como o
“Século da Filosofia” ou o “Século das Luzes”, reconhecendo que, na base de todas as
mudanças que marcavam a sua época, havia uma força criadora e expansiva, a razão.
E o sentido que conferiam a esse termo era exatamente o de força, energia, poder que
possibilitava descobrir, inventar, agir; o homem possuía uma capacidade intelectual
progressiva, isto é, o pensamento era uma força atuante que se desenvolvia e ampliava
os conhecimentos do real; o saber se constituía como um trabalho de crítica à tradição
e às crenças, acompanhado da investigação metódica mediante a experiência e a
demonstração.
Entre os pensadores franceses que se tornaram críticos dos preconceitos sociais e
defensores de uma nova filosofia tendo, por isso, contribuído para o movimento
revolucionário de 1789, estava Voltaire (1694-1778), escritor brilhante, crítico de
todas as teorias puramente especulativas, apaixonado pela idéia de justiça, que
defendia com paixão contra a intolerância e o fanatismo. Voltaire questionou os
dogmas religiosos e exprimiu com clareza os descontentamentos do povo francês com
a ordem social e política vigente.
Denis Diderot (1713-1784) e D’Alembert (1717-1783) também desempenharam
um papel importante no processo de mudanças sociais e políticas na França, por
dirigirem a redação da Enciclopédia e por defenderem os direitos da razão e da crítica
ante os preconceitos e os dogmas alimentados pela religião. Mas foi Jean-Jacques
Rousseau (1712-1778) quem mais se salientou enquanto pensador político
preocupado com a justiça e a liberdade, a ponto de assumir a tarefa de ordenar
concretamente uma cidade, embora não seja considerado iluminista, pois era
pessimista quanto ao progresso das ciências e das artes e não confiava na razão. Para
ele, o conhecimento dependia não só do intelecto, mas também do coração e da
sensibilidade.
Rousseau salientou a contradição entre natureza e sociedade no processo de
formação do homem e mostrou os paradoxos que se instauram e se renovam na
constituição da vida social. Os homens nasciam livres e com a capacidade de se
aperfeiçoarem, isto é, de criar novas expectativas e adquirir conhecimentos; a
organização da sociedade possibilitou o desenvolvimento dessas faculdades humanas,
mas gerou, ao mesmo tempo, uma perversão das condições primitivas que se
expressava na dependência e na desigualdade entre os homens; ao fazer essa
interpretação da história, Rousseau dizia que o progresso da razão não foi
acompanhado por um aprimoramento moral e pela preservação da liberdade: os
homens tornaram-se hipócritas, lutam entre si para satisfazerem seus interesses
egoístas e, tendo nascido livres, em todo lugar se encontram posto a ferros
(ROUSSEAU, 1973, p. 28).
A partir dessa constatação, a questão que Rousseau se colocava era: como instituir
uma associação política na qual os homens pudessem se manter livres e iguais? A
forma de associação encontrada para proteger e defender de toda força comum a
pessoa e seus bens foi a do pacto social, já proposto de outras maneiras por Hobbes e
Locke no século XVII; em Rousseau, o contrato não visava legitimar laços sociais e
relações políticas já existentes, mas tinha como objetivo propor um novo espaço
público em que as condições naturais de direito e moralidade pudessem ser
restauradas; o pacto significava renúncia à liberdade original para poder instituir-se a
liberdade e a igualdade políticas; mas essa alienação não se fazia em favor de outro,
Estado ou senhor, que viria a se constituir em autoridade política, mas se fazia em
favor da comunidade como um todo. O indivíduo colocava-se sob a direção da
vontade coletiva e soberana.
A vontade geral não se apresentava como a soma das vontades particulares, mas
como o resultado do que havia de comum entre as vontades. A vontade geral
expressava-se em leis, regras universais que deviam ser reconhecidas como
politicamente legítimas. “Cada um dando-se a todos não se dá a ninguém e, não
existindo um associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede
sobre si mesmo, ganha-se o equivalente de tudo que se perde e maior força para se
conservar o que se tem” (ROUSSEAU, 1973, p. 39). Para Hobsbawm, se a a
Inglaterra “forneceu o modelo para as ferrovias e fábricas, o explosivo econômico que
rompeu com as estruturas sócio-econômicas tradicionais do mundo não europeu”, a
França direcionou a revolução quanto a sua política e a sua ideologia, oferecendo para
a maior parte do mundo “o vocabulário e os temas da política liberal e radical-
democrática” (HOBSBAWM, 1982, p. 71).. Precisamente nesse momento histórico
começam as elaborações de uma filosofia da história.
Entretanto, para compreender a relação entre filosofia e história, mediada pela
política, assim como se propõe na nossa epígrafe, precisamos salientar a relação entre
as mudanças políticas que aconteciam particularmente na França e que culminaram na
Revolução de 17893 e o pensamento alemão do século XVIII, que foi particularmente
rico e exerceu uma influência marcante na formação da filosofia moderna. Admirados
com o movimento político francês, os pensadores alemães dessa época precisavam
conviver com o descompasso entre as idéias revolucionárias e a realidade política e
social alemã, onde o Estado monárquico exercia um poder ainda nos moldes feudais.
A forma que encontraram para enfrentar essa contradição foi a de refletir sobre os
fundamentos da existência e do pensamento, base para entender o processo político e
responder às exigências históricas de organização do Estado e da sociedade.
Da relação entre esses movimentos políticos e filosóficos nasceu o marxismo,
que se apresentou como nova filosofia da história, elaborada a partir do propósito de
“compreender o real e demonstrar a sua inteligibilidade” (DIAS, 2007, p. 33). O que
se questiona é o caráter abstrato da filosofia sistemática e se evidencia a necessidade
de, finalmente, mostrar os vínculos da filosofia com o real concreto, identificando-a
com a história. A filosofia passa a ser entendida não apenas como o pensamento desse
ou daquele filósofo, deste ou daquele grupo social, mas como a resultante da
combinação de todos os modos de pensar de uma época. A história designa o
movimento de construção da vida no qual a força motriz é o trabalho. A política
constitui no processo pelo qual se constituem e se atualizam permanentemente as
relações de força que constituem o real na sua formação social.
Nesse contexto, as categorias fundamentais para a compreensão do movimento
real deixam de ser a pura consciência de si e o pensamento voltado sobre si mesmo,
mas o trabalho e as formas que este assume no processo de construção das condições
materiais de existência, na formação social enquanto um conjunto articulado de
relações de força pelas quais se formam estruturas contraditórias que precisamos
conhecer para superar.
Hegel reconheceu a atividade material que se exprime no trabalho humano e
abriu caminho para soluções revolucionárias ao pensar a contradição como motor
interno dos acontecimentos, mas permaneceu no plano da ontologia; Feuerbach, por
sua vez, afirmou a materialidade do homem, mas não valorizou a dialética que se
exprime na sua capacidade de agir e de definir seu caminho. Marx procurou entender
o homem a partir de sua atividade criadora, isto é, de sua capacidade de se produzir e
de se aperfeiçoar por meio do trabalho, que define a própria natureza do homem como

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Conforme Gramsci, a Revolução Francesa teve como fundamento a filosofia iluminista, que formou
um novo modo de pensar.
criador de si próprio, o seu modo de ser, não só material mas também espiritual; por
meio do trabalho o homem domina as forças da natureza e satisfaz não só as suas
necessidades físicas, mas constrói e manifesta a sua liberdade. O trabalho é, portanto,
uma condição da existência humana, comum a todas as formas de sociedade.
A partir de sua participação direta nos movimentos sociais e políticos do
século XIX e pela elaboração de uma crítica minuciosa da realidade social, Marx
desenvolveu uma nova visão da história em que os antagonismos sociais são os
elementos que formam as sociedades e que também possibilitam a sua superação e
transformação radical. Desse modo, a história passa a ser entendida como o processo
de construção das sociedades e de emancipação do homem, a ser realizado no
presente, por meio de um programa político a ser concretizado por meio da
mobilização e organização dos trabalhadores.
Cabe acentuar o novo significado da filosofia que passa a ser entendida como
uma atividade essencialmente política e histórica, com a função de problematizar e de
descobrir as significações que a realidade apresenta a cada momento para formular
uma visão de conjunto e, assim, poder interferir no processo histórico e transformar a
realidade política e social. Esse aspecto foi acentuado por Marx na Tese XI contra
Feuerbach: : “os filósofos apenas interpretaram o mundo de várias maneiras tratando-
se, agora, de transformá-lo” (MARX, 1974, p. 59).
Essa afirmação retumbante, que pode ser lida tanto relacionada com as teses
anteriores quanto como uma afirmação isolada que traz implícito um programa que
implica a relação da filosofia com a política e a história ou, em outras palavras, a
relação entre teoria e prática. Significa acentuar que o pensamento se produz seguindo
a necessidade de responder a problemas que a realidade (social e política) nos
colocam e que exigem uma resposta.
De modo algum significa negar a importância da atividade filosófica, mas sim
mostrar que o ponto de abordagem se modificou, que a base de sua atenção não é
metafísica, mas social, isto é, não mais o Ser Absoluto, mas o processo contraditório
de formação da sociedade. Com isso, o que Marx fez foi retirar da burguesia o
privilégio de construir um pensamento sobre a realidade e dar às classes trabalhadoras
a possibilidade de refletir sobre suas lutas, seus sonhos e seus projetos; de assumir e
de reinterpretar todo o passado cultural a partir de uma perspectiva mais abrangente
da realidade;4 de, enfim, elaborar a sua própria concepção de mundo e pensar seus
problemas de um outro ângulo para, assim, encaminhar suas propostas de luta e de
transformação social e política. Pela primeira vez na história se esclarece o vínculo da
filosofia (teoria) com a atividade do homem (política), isto é, o papel de um
conhecimento que é gerado pela prática social e tem a função de aperfeiçoar ou até de
transformar esta prática.5
Do mesmo modo a noção de história apresentada pelos teóricos mais
tradicionais a partir de uma cronologia linear e factual que, encadeando fatos, nomes e
datas numa relação de causa e efeito, mostram uma história cristalizada, congelada,
repleta de heróis que se pretendem imparciais, capazes de decidir sem pestanejar pelo
mais justo, como se estivessem acima do bem e do mal. Uma história ascendente, que
mostra como nasceu e se desenvolveu a civilização (em nome da qual as maiores
atrocidades foram cometidas simplesmente porque se julgava a melhor forma de vida)
que resultou na sociedade na qual vivemos. Esta história e o pensar sobre ela é a
consciência da classe dominante. Marx apresenta a história como história das lutas de
classes. Deste modo, a temporalidade vivida na sociedade capitalista apresenta-se
como uma das temporalidades possíveis, havendo a possibilidade de uma praxis
libertadora, que só pode ser colocada se admitida a alienação temporal.
Trata-se de compreender a história enquanto movimento contraditório pelo qual
as forças sociais em presença tentam construir ou conformar-se a um modo de vida. E
entender que a análise crítica de uma sociedade historicamente constituída, que é o
capitalismo, implica avançar para a superação pela praxis revolucionária, ou seja, em
Marx a teoria crítica não se separa da teoria política, das lutas do proletariado pela
construção de uma nova ordem social. O processo histórico se faz pela negação de um
presente que se repete e pela construção de uma nova sociedade onde se inaugure um
novo tempo histórico, qualitativo, em que o homem, vivendo uma nova
temporalidade, possa afirmar-se como sujeito da história.

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Conforme Gramsci (1978, p. 106-7), a “filosofia da práxis pressupõe todo o passado cultural, o
Renascimento e a Reforma, a filosofia alemã e a Revolução Francesa, o calvinismo e a economia
clássica inglesa, o liberalismo laico e o historicismo; em suma, o que está na base de toda concepção
moderna de vida”. (...) Trata-se “de uma filosofia que é também uma política e de uma política que é
também uma filosofia”.
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Gramsci acentua que a filosofia da práxis “é a plena consciência das contradições, na qual o filosofo –
entendido individualmente ou como grupo social global – não só compreende as contradições, mas
coloca a si mesmo como elemento da contradição , eleva esse elemento a principio de conhecimento e,
consequentemente, de ação” (GRAMSCI, 1978, p. 114-5).
A partir desses pressupostos, pode-se ensinar filosofia? E se possível, como
ensinar? Retomamos algumas colocações de Gramsci a respeito desse assunto,
observações práticas que podem ser interessantes, visto que Gramsci sempre acentuou
a importância desse conhecimento para os trabalhadores, tanto que, na prisão, quando
teve oportunidade de propor cursos de estudo, no programa sempre constava a
filosofia:

No ensino da filosofia dedicado não a informar historicamente o discente sobre o


desenvolvimento da filosofia passada, mas para formá-lo culturalmente, para
ajudá-lo a elaborar criticamente o próprio pensamento e assim participar de uma
comunidade ideológica e cultural, é necessário partir do que o discente já conhece,
de sua experiência filosófica (após ter demonstrado que ele tem uma tal
experiência, que ele também um ‘filosofo’ sem o saber) (GRAMSCI, 1978, p.
148).

O ponto de partida, portanto, é a pressuposição de um certo conhecimento dos


discentes a respeito de filosofia, a partir de “informações soltas e fragmentárias”, sem
qualquer preparação metodológica ou crítica, ou seja, daquilo que chamamos “senso
comum” (GRAMSCI, 1978, p. 148). Sabe-se que o senso comum se compõe do que o
autor chama “folclore”, entendido como um conjunto fragmentado e incoerente de
conhecimentos, ou seja, de tudo o que o indivíduo acumula ao longo de sua vida,
desde o que recebe da tradição, da religião e da cultura popular, até o conhecimento
cientifico mais avançado. Em outras palavras, idéias que provém tanto do passado
mais remoto quanto do ideário das classes que detém o poder. Iniciar desse ponto
significa mostrar os seus limites e contradições, bem como as suas relações políticas e
históricas.
Partir do senso comum também possibilita valorizar os elementos populares6 da
cultura, que Gramsci esclarece que podem trazer os germens de um novo pensamento.
Somente mais tarde se poderia entrar nos “sistemas filosóficos elaborados pelos
grupos intelectuais tradicionais” (GRAMSCI, 1978, p. 148). E como fazê-lo? Essa
orientação podemos encontrar em alguns fragmentos, principalmente um que nos
ensina a abordar os escritos de Marx:

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Cabe acentuar ainda o significado de “popular” que ressalta dos escritos de Gramsci: “populares são
os intelectuais que expressam as idéias e os sentimentos populares”, que efetuam “uma crítica social e
apontam as contradições históricas, podendo ser retomados e compreendidos pelo povo, em épocas
históricas diferentes” (SCHLESENER, 2007, p. 55).
Enquanto investigação histórico biográfica, estudar-se-á quais os interesses
que motivaram o seu filosofar, levando em conta a psicologia do jovem
estudioso que, por vezes, se deixa atrair ntelectualmente por qualquer nova
corrente que estuda e examina e que forma a sua individualidade através
desses erros, que criam o espírito crítico e o pensamento original, apos ter
experimentado e confrontado tantos pensamentos contrastantes; estudar-se-á
também quais os elementos que ele incorporou, homogeneizando-os ao seu
pensamento, mas notadamente aquilo que é criação nova” (GRAMSCI, 1978,
P. 189).

Para fazer o que se propõe aqui é necessário contextualizar o pensamento do


autor, fazer a relação entre filosofia e história a fim de identificar no pensamento que
se estuda os elementos culturais que o constituem, as relações que estabelece e o
modo como assimila o pensamento de sua época, ou seja, buscar o conjunto de
relações nas quais o intelectual se insere e o ponto de vista que defende. Sempre
atento ao contexto histórico, rico em contradições, Gramsci acentua que estas não
podem ser esquecidas ou dissimuladas, mas são o campo próprio para a reflexão
crítica e a formação de um pensamento crítico. O objetivo implícito é superar o senso
comum e elaborar um pensamento coerente.
O ensino da filosofia visa ainda a nos auxiliar a nos apropriarmos de uma
metodologia que possibilite compreender o real para além de suas aparências: a
dedução e a indução, próprias da lógica formal, servem como abordagem inicial para
uma ação educativa, mas a elaboração de uma consciência crítica exige que se
descubram as contradições que permeiam o social, o político e o cultural; a
aprendizagem consiste em compreender o particular articulado a uma “base histórica
que contenha as premissas materiais” que possibilitem alcançar o que se esconde por
trás das aparências e elaborar um pensamento crítico no qual “dedução e indução
sejam combinadas”, assim como identidade e diferença, positivo e negativo, abstrato
e concreto, sempre com referência ao contexto histórico (GRAMSCI, 1977, P. 34). O
pressuposto teórico-metodológico precisa auxiliar-nos a compreender efetivamente o
real e analisar as forças que atuam na história, identificando a estrutura para distinguí-
la das características conjunturais, a fim de compreender-nos como seres em situação.
Essa abordagem nos oferece apenas a filosofia da praxis, a qual permite compreender
a história em seu movimento e em suas contradições.
A grande contribuição da filosofia em seu retorno ao ensino médio nas escolas
brasileiras estaria, dessa perspectiva, em dar aos discentes as condições necessárias
para a formação de um pensamento crítico e autônomo, dando-lhes condições, assim,
tanto de compreender a realidade e as contradições nas quais se inserem, quanto em
dar-lhes a possibilidade de tomar nas mãos o seu destino, ou seja, contribuir para
mudanças sociais relevantes.

Referências bibliográficas:

DIAS, Edmundo Fernandes. Compreender o real, demonstrar sua inteligibilidade. In:


SCHLESENER, A. H. E PANSARDI, M. V. (Orgs.) Políticas Públicas e Gestão da
Educação. Curitiba: UTP. 2007, p. 33-46.
GRAMSCI, Antonio. Quaderni del Cárcere, Torino : Einaudi, 1977.
______Concepção dialética da História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
HOBSBAWM, E. A era das Revoluções. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
MARX, Karl. Teses contra Feuerbach. In: Pensadores, São Paulo: Abril Cultural,
1974.
ROUSSEAU, J.-J. Do contrato social. São Paulo, Abril Cultural, 1973.
SAVIANI, Dermeval. História das Idéias Pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores
Associados, 2010.
SCHLESENER, Anita Helena. Hegemonia e cultura: Gramsci. (3a. Ed.) Curitiba :
Ed. UFPR, 2007.

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